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CURSO DE DIREITO EDÊNIA MARIA CORDEIRO KARAM O DIREITO DE MORADIA E A USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS FORTALEZA 2016

CURSO DE DIREITO EDÊNIA MARIA CORDEIRO KARAM O DIREITO DE MORADIA E A USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS

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CURSO DE DIREITO

EDÊNIA MARIA CORDEIRO KARAM

O DIREITO DE MORADIA E A USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS

FORTALEZA

2016

CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO DE SÁ.

CURSO DE DIREITO

O DIREITO DE MORADIA E A USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca

Examinadora do Centro Universitário Estácio de Sá,

como requisito à obtenção do grau de Bacharel em

Direito, sob a orientação da Prof.ª: PATRICIA

ESTEVES DE MENDONÇA.

FORTALEZA

2016

O DIREITO DE MORADIA E A USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS

Edênia Maria Cordeiro Karam1

RESUMO

Este trabalho busca discorrer acerca do instituto da Usucapião e conhecer se existem

possibilidades de imóveis públicos virem a ser usucapidos. Tem por finalidade analisar a função

social da posse e da propriedade e comparar de que maneira os bens dos particulares se diferem

dos públicos, quanto ao ônus do cumprimento da função social que os qualifica. Busca, ainda,

fazer um breve apontamento sobre os tipos de usucapião previstos no ordenamento jurídico

brasileiro; conhecer as características dos bens públicos; apontar os posicionamentos atuais da

doutrina e da jurisprudência sobre a vedação constitucional à aquisição de bens públicos e, ao

final, concluir se os valores principiológicos da Constituição Federal estão em sintonia com as

regras que proíbem a usucapião de propriedade pública.

Palavras chave: Usucapião; Bens Públicos; Propriedade; função social da propriedade.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 A AÇÃO DE USUCAPÍÃO2.1 A Usucapião no direito brasileiro e a divergência doutrinária sobre sua aplicação aos

bens públicos.2.2 A função social da posse e da propriedade e suas implicações para a possibilidade de

usucapião do bem público.2.3 O entendimento jurisprudencial acerca de usucapião do bem público.2.4 USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL ADMINISTRATIVA E SUA APLICAÇÃO AOS

BENS PÚBLICOS.

3 CONCLUSÃO

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará.

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1 INTRODUÇÃO

A importante discussão sobre a vedação de se adquirir um bem público através de uma

ação de usucapião vem aumentando a cada dia. Isso porque a Constituição Federal de 1988,

em seus arts. 183, §3º e 191, parágrafo único, como também no Código Civil, Art. 102

estabelecem uma proibição legal impedindo que isso aconteça. Em verdade, há uma

necessidade de se analisar o porquê da vedação. Questionar por que imóveis públicos, mesmo

quando não estão sendo utilizados na prestação de serviço público, ou ainda que não atendam

aos comandos da função social da propriedade, não podem ser usucapidos.

Dessa forma, o presente trabalho tem por objetivo sustentar a usucapião de bens

públicos frente à grande relevância jurídica da discussão sobre o assunto. Fundamenta-se em

uma análise axiológica dos princípios constitucionais vistos a partir de casos concretos.

Pretende-se discorrer acerca dos parâmetros legais de aquisição e abordar as controvérsias

doutrinárias a esse respeito; definir quais as hipóteses de cabimento e buscar discorrer sobre a

aplicação do princípio da função social que qualifica os imóveis públicos.

A nossa pretensão, ao decidirmos escrever sobre esse tema, foi de reunir esforços e

propiciar acesso a textos qualificados que apresentam como elemento comum a análise de

direitos fundamentais, vistos sob a ótica de regras e princípios previstos nos artigos, 1º, III; 5º,

XXII e XXIII da CF c/c artigos 102, 1.204, 1236, 1240 e 1.261 todos do CC/02.

A metodologia aplicada neste trabalho é de cunho bibliográfico, pois se baseia na

pesquisa em livros, periódicos e artigos retirados da internet, bem como das jurisprudências

dos Tribunais relacionados ao tema.

Para uma melhor compreensão do assunto, buscou-se dividi-los em itens

didaticamente organizados. Por oportuno, cabe ressaltar, que não se buscou aqui esgotar todo

o assunto, posto ser um campo vasto a ser explorado, o que, por si só, jamais se conseguiria

exaurir em um artigo.

Em princípio, será abordado acerca da ação de Usucapião no ordenamento jurídico;

suas espécies, aplicações e quais os requisitos necessários para a aquisição. Ainda nesse

tópico, buscou-se discorrer sobre as espécies de posse e a classificação de bens públicos.

Num segundo momento, abordou-se acerca da função social da propriedade e sobre o

paradigma que gira em torno de se ter esse princípio implícito aos bens públicos. No contexto,

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apontou-se recentes decisões dos Tribunais sobre o tema e a nova interpretação que começa a

ser dada aos dispositivos legais.

Por derradeiro, abordou-se dois temas relevantes, a saber: a usucapião prevista na Lei

nº 11.977/2009- Programa Minha Casa Minha Vida, e a nova dinâmica da aquisição de

imóveis através da usucapião administrativa e sua aplicação estabelecida pelo novo Código de

Processo Civil de 2015.

2 A AÇÃO DE USUCAPÍÃO

2.1 A Usucapião no direito brasileiro e a divergência doutrinária sobre sua aplicação aos bens públicos.

Usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade, urbana ou rural, pela

posse prolongada, na forma da lei.

Conforme pensamento de Sílvio de Salvo Venosa:

A posse prolongada da coisa pode conduzir à aquisição da propriedade, se presentes determinados requisitos estabelecidos em lei. Em termos mais concretos denomina-se usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições. (Venosa, 2005, p. 216).

O efeito principal da usucapião é a formação de um título com efeito erga omnes, para

aqueles que têm a finalidade de tornar-se dono da coisa, móvel ou imóvel. A propriedade,

então, cumpridos certos requisitos, será transferida ao possuidor de forma originária, primária,

desimpedida, livre de quaisquer ônus. Assim, os débitos existentes em decorrência do próprio

bem, conhecidas obrigações “propter rem”, não irão acompanhar o imóvel, como exemplo: os

impostos inerentes ao próprio imóvel, o IPTU.

A usucapião encontrou suas origens no Direito romano. A Lei das XII Tábuas já se

referia a sua existência e determinava prazos para tal aquisição. Naquela época restou

consagrada, então, como uma modalidade de aquisição da propriedade de bens móveis e

imóveis, com prazo de um ou dois anos. (Diniz, 2008, p. 152).

Com finalidade de convalidar vícios de legitimação, a ação de usucapião era

empregada desde que presente a boa-fé do possuidor. Por envolver casos complexos e tendo

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em vista as inúmeras solenidades que envolviam a transmissão de bens, o prazo de aquisição

foi sendo mais prolongado, conforme no informa Cristiano Chaves:

Com o passar do tempo o possuidor peregrino passou a ter direito a uma espécie de prescrição, como forma de exceção, que serviria de defesa contra ações reivindicatórias. O prazo para adquirir o bem através da posse prolongada passou a ser de 10 e 20 anos. (Chaves & Rosenvald, 2009)

No Brasil, a origem do instituto da usucapião surgiu da necessidade de se retirar das

mãos dos grandes proprietários, espaços de terras que não estavam sendo utilizados, para que

fossem transferidas àqueles que cumprissem com certos requisitos. Dentre esses requisitos,

destaca-se o de ter o “animus” de aproveitá-la de forma adequada e usá-la de modo racional,

com destinação específica. Dessa forma, a usucapião ganhou contornos constitucionais.

O instituto da usucapião no ordenamento jurídico brasileiro encontra assento legal na

Constituição Federal, no art. 183. Porém, é no Código Civil de 2002 que encontramos

estabelecidos suas hipóteses de cabimento, formas de aquisição, prazos, requisitos.

São 10 as modalidades de usucapião previstas no ordenamento jurídico brasileiro, a

saber:

1) Usucapião extraordinária- Art. 1.238 CC.

2) Usucapião extraordinária com prazo reduzido- Art. 1.238, parágrafo único, CC.

3) Usucapião ordinária. Art. 1.242 CC.

4) Usucapião ordinária com prazo reduzido, ou tabular. Art. 1.242, parágrafo único.

5) Usucapião especial urbana- Art. 1.240 CC e art. 183 CF.

6) Usucapião especial urbana por abandono de lar- Art. 1.240-A CC.

7) Usucapião especial rural ou pró-labore- Art. 1.239 CC e art. 191 CF.

8) Usucapião coletiva- Art. 10 da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade.

9) Usucapião em defesa na ação reivindicatória- Art. 1.228 §4º CC.

10) Usucapião indígena- Lei nº 6.001/1973 – Estatuto do Índio.

Evidentemente, conforme já fora dito, passa-se pelas modalidades em rápidas

pinceladas, sem a pretensão de adentrar nas características e pormenorizar cada detalhe, mas

tão somente citar as espécies e seus dispositivos. Assim, em complemento ao assunto,

recolhe-se a ideia segundo a qual afirma-se que, para que a propriedade possa ser adquirida

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pela usucapião, mister se faz necessário que sejam observados alguns requisitos, sem os quais

a posse ad usucapionem não poderá ser pleiteada:

Posse com intenção de dono (animus domini);

Posse mansa e pacífica;

Posse contínua e duradoura, em regra, e com determinado lapso temporal;

Posse justa;

Posse de boa-fé e com justo título, em regra.

Com base no que até agora foi exposto, verifica-se que, cumpridos com os requisitos,

formais e materiais, a ação de usucapião poderá ser pleiteada. Não obstante, a Constituição

Federal, conforme observado, permite a usucapião nos bens móveis e imóveis de particulares,

mas proíbe, expressamente, a usucapião em imóveis públicos. A vedação está estabelecida

nos artigos 183, §3º e 191, parágrafo único da Constituição, mas para que se possa entender

melhor o assunto, convém primeiro saber qual a classificação dos bens públicos.

O Código Civil de 2002, em seu art. 99, classifica os bens públicos da seguinte forma:

• Bens de uso geral ou comum do povo (art. 99, I do CC) - São os bens destinados à

utilização do público em regra, sem necessidade de permissão especial, caso das praças,

jardins, ruas, estradas, mães, rios, praias, entre outros.

• Bens de uso especial (art. 99, II, do CC) - São os edifícios e terrenos utilizados pelo

próprio Estado para a execução de serviço público especial, havendo uma destinação

específica, denominada afetação. São bens de uso especial os prédios e as repartições

públicas.

• Bens dominicais ou dominiais, (art. 99, III) - são os bens públicos que constituem o

patrimônio disponível e alienável da pessoa jurídica de Direito Público, abrangendo tanto os

móveis quanto imóveis. São exemplos de bens dominicais os terrenos de marinha, as terras

devolutas, as estadas de ferro, as ilhas formadas em rios navegáveis, os sítios arqueológicos,

as jazidas de minerais com interesse públicos o mar territorial, entre outros.

É nesse contexto que Celso Antônio Bandeira de Mello, igualmente buscando outra

caracterização, afirma que bens públicos são também aqueles que, embora não pertençam às

pessoas jurídicas de direito público da administração direta ou indireta, estão a serviço das

paraestatais, ou seja, aquelas organizações que recebem incentivos do Poder Público.

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Todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem), bem como os que embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público. (CELSO DE MELO, 2007, p. 876)

Em face da já referida contextualização de que vem a ser bens públicos, cabe ressaltar

que os bens públicos de uso geral do povo e os de uso especial são bens do domínio público

do Estado. Os dominicais são do domínio privado do Estado, uma vez que podem ser

alienados. Diante de tal pensamento da doutrina, esta vem se posicionando no sentido de

defender a possibilidade de bens dominicais virem a ser usucapidos. Esse assunto será

abordado mais adiante, mas primeiro falaremos sobre a vedação:

Conforme se depreende dos artigos abaixo, os bens públicos não podem ser

usucapidos por falta de provisão legal. Essa é a tese que extingue os processos sem resolução

de mérito, uma vez que, na maioria das decisões de 1º grau, o pedido é negado com base nos

artigos 102 do Código Civil, e artigo 183, §3º e 191, parágrafo único, da Constituição Federal.

Não obstante, a mesma vedação também pode ser encontrada no art. 200 do DL nº 9.760, de 5-

9-1946 (Lei dos Bens Imóveis da União) e súmula 340 do STF, in verbis:

Art. 200. Os bens imóveis da União, seja qual for a sua natureza, não são sujeitos a usucapião. Súmula 340 do STF - Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.

É justamente nesse sentido que assume particular relevância a constatação de que, para

muitos estudiosos e doutrinadores, dos quais podemos citar: José dos Santos Carvalho Filho,

César Fiuza, Maria Silvia Zanella Di Pietro, a possibilidade de usucapir bens públicos não é

nem mesmo possível de ser cogitada, pois, se a Constituição veda expressamente, não há que

se falar em usucapião em bens públicos, conforme podemos inferir do texto abaixo:

O novo Código Civil espancou qualquer dúvida que ainda pudesse haver quanto à imprescritibilidade dos bens públicos, seja qual for sua natureza. Nele se dispõe expressamente que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião” (art. 102). Como a lei não distinguiu, não caberá ao intérprete distinguir, de modo que a usucapião não poderá atingir nem os bens imóveis nem os bens móveis. (...) O domínio patrimonial está sujeito a regime administrativo especial, não se lhe aplicando as normas que regem a propriedade privada, a não ser supletivamente. Orienta-se o domínio patrimonial por quatro princípios basilares, a saber, a inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e não oneração. (CARVALHO FILHO, 2005, p.883-884)

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A regra geral é que a Administração Pública não pode alienar seus bens. Tal só

ocorrerá excepcionalmente, na dependência de lei que autorize a transação. Assim, pelo fato

de serem inalienáveis, os bens públicos são também inadquiríveis, enquanto durar a

inalienabilidade. Destarte, não serão afetados pela “prescrição aquisitiva ou usucapião”.

(FIUZA, 2003, p. 643-644)

Nessa linha argumentativa, os Tribunais, de forma quase unânime, rejeitam as ações

postuladas nesse sentido e as indeferem por impossibilidade jurídica do pedido, ao argumento

de que bens públicos são imprescritíveis:

TRF-4 - APELAÇÃO CIVEL AC 50321193420114047100 RS 5032119-34.2011.404.7100 (TRF-4). Data de publicação: 16/07/2015Ementa: USUCAPIÃO. IMÓVEL VINCULADO AO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. O entendimento desta Corte é firme no sentido da impossibilidade jurídica de aquisição por usucapião de bem público (art. 183, § 3º, da CF), categoria em que se enquadram os imóveis financiados com recursos do Sistema Financeiro da Habitação. Sentença de improcedência mantida. Disponível em: <http://trf-4.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/209998446/apelacao-civel-ac-50321193420114047100-rs-5032119-3420114047100> Acesso 28/02/2016.

Em verdade - e tal aspecto deve ser constatado- cabe tecer um comentário acerca da já

citada súmula 340 do STF, datada de 1963, cujo teor anuncia: “Desde a vigência do Código

Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por

usucapião”. (BRASIL, 2016).

Ocorre que, a referida súmula foi elaborada antes da Constituição de 1988 e durante o

Código Civil de 1916. Assim, ela não está em conformidade com o ordenamento jurídico

vigente e com a realidade social. De se ver, então, que doutrinadores e Tribunais se utilizam

de uma súmula ultrapassada, não atentando, em regra, para os anseios sociais, nem tampouco

para os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

Feitas essas considerações, cabe tecer o comentário de que há alguns possíveis e

relevantes posicionamentos contrários, de doutrinadores tradicionais como Flávio Tartuce,

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que defendem possibilidade de se adquirir

um bem público através da usucapião, o que já não é mais inalcançável, conforme será

demonstrado no capítulo III desse trabalho.

2.2 A função Social da Posse e da Propriedade e suas implicações para a possibilidade de Usucapião do Bem Público.

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Para definir o conceito de posse, há doutrinas divergentes. A dúvida que surge é em relação

à categoria referente à sua natureza, ou seja, se se trata de um fato ou de um direito. Há duas

grandes correntes, uma que afirma se tratar de um mero fato e outra que afirma ser a posse,

realmente, um direito. A segunda corrente, no entanto, é a que predomina e afirma ser a

possuem direito do cidadão.

O autor Flávio Tartuce está filiado à corrente pela qual a posse é um direito de

natureza especial, e que isso se pode inferir da teoria tridimensional do Direito, de Miguel

Reale. Isso porque a posse é o domínio fático que a pessoa exerce sobre a coisa, uma vez que,

“ se o Direito é fato, valor e norma, logicamente a posse é um componente jurídico, ou seja,

um direito". (TARTUCE. 2015. P. 678)

De qualquer modo, em que pese haver tais desenvolvimentos em torno da natureza

jurídica da posse, é posição unânime da doutrina a de que a posse, sendo fato ou direito, ela

deverá cumprir com sua função social. Não obstante, frise-se que o instituto denominado

"posse" já vinha sendo discutido há muito tempo no Brasil, mas o princípio da “função social

da posse”, só passou a ser conhecido e discutido com a Constituição Federal de 1988.

Diante desse cenário, a Constituição Federal de 1988 garantiu o direito de propriedade

com previsão no art., 5º XXII, mas também estabeleceu que, a posse, para que seja

conservada, mister se faz cumprir com certas regras impostas, certas restrições, pois em vista

da coletividade, a Constituição estabeleceu que a propriedade deverá cumprir com a sua

função social.

Por essas razões, o direito à propriedade, que é uma garantia do indivíduo, deve ser

adquirido com o objetivo de conciliar o direito individual com o interesse social, numa

perspectiva intersubjetiva o que implica em uma obrigação geral de respeito pela pessoa.

O tema “função social da propriedade privada” ganhou bastante relevância, uma vez

que foi nela dado uma qualificação à posse e à propriedade. Assim, o cumprimento da função

social se dá quando o proprietário atende, antes de mais nada, às determinações contidas no

Plano Diretor de sua cidade, sendo as medidas tanto positivas quanto negativas, ou seja, pode

existir determinação de se fazer algo ou de se abster de fazer. Mas ainda outros parâmetros

precisam ser observados, nos termos do art. 186 CF, quais sejam:

• Aproveitamento racional e adequado da propriedade.

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• Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio

ambiente.

• Observância das disposições que regulam as relações de trabalho.

• Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Esses dispositivos estabelecem elementos que deverão ser observados

simultaneamente pela propriedade, para que possam indicar se ela está cumprindo com a sua

função social. Todavia, no que toca à “função social da propriedade pública”, esse princípio

vem inserido de forma implícita em alguns dispositivos constitucionais que tratam da política

urbana. É isso que nos informa a Prof.ª Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

O princípio da função social da propriedade pública não está consagrado com tanta clareza na Constituição. Ele não é definido senão por meio de diretrizes a serem observadas pelo poder público. Ele está sintetizado no art. 182. O dispositivo coloca como objetivo da política de desenvolvimento urbano “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (DI PIETRO, 2016. Nº6)

As Constituições pretéritas já destacavam a função social da propriedade como

sustentáculo econômico e social do país. A propriedade, socialmente falando, seria o dever

imposto ao poder público de criar as leis voltadas ao bem-estar da sociedade de um modo

geral. Do mesmo modo, o Código Civil de 2002, determinou várias sanções para aquelas

propriedades privadas que não cumprem com sua função social. Foram estabelecidas

penalidades também na Constituição, em seu art. 184, uma delas, por exemplo, é a

desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Assim, o imóvel rural que

não esteja cumprindo sua função social será desapropriado, mediante uma prévia e justa

indenização em títulos da dívida agrária, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do

segundo ano de sua emissão, cuja utilização será definida em lei.

Já na Lei nº 10.257/01- Estatuto da Cidade, algumas sanções também foram definidas,

a saber: o parcelamento e edificação compulsórios do solo, o imposto sobre a propriedade

predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, a subsequente desapropriação com

pagamento mediante títulos da dívida pública, a usucapião especial urbana e a concessão de

uso.

Justamente quando se chega a esse ponto, surge um questionamento: Os bens públicos

também devem cumprir com sua função social e sofrer as mesmas sanções, caso não o faça?

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A pergunta surge da observação de que, de acordo com o que informa a maioria da doutrina,

mesmo que a propriedade pública esteja ociosa, não haverá que se falar em usucapião. Ignora-

se, portanto, completamente, o princípio da função social esculpido na Constituição Federal,

pelo simples fato de ser um bem público. Assim, por faltar previsão constitucional expressa,

diz-se que o referido princípio é incompatível com a noção de bens públicos, uma vez que não

sofrem sanções se descumprirem com a função social por parte do Estado. O argumento é

simples: bens públicos são de propriedade difusa, do povo, então o particular não pode

usucapir o que é do povo.

Partindo do pressuposto “omissão da Constituição”, a autora Cristiana Fortini afirma

que a Constituição não desobriga os bens públicos do dever de cumprir a função social e que

qualquer interpretação que se distancie desse propósito não encontra respaldo nela.

A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social. (FORTINI, 2004, p. 117.)

Com efeito, além dessa prerrogativa, os bens públicos ainda guardam consigo o

atributo da Supremacia do Interesse Público sobre o privado e seus bens trazem agasalhados

dentro de si, implicitamente, o princípio da função social da propriedade pública, vistos, por

exemplo, em dispositivos constitucionais que tratam de política urbana.

Contudo, data máxima vênia, cabe tecer o comentário de que a Administração Pública

fica desobrigada, irresponsavelmente, do ônus de ter de demonstrar, de fato e de direito, que

está cumprindo, efetivamente, com a função social da propriedade. Tal concepção, embasa

nesse princípio implícito um atributo à propriedade pública, qual seja, uma proteção especial,

e dessa forma, chega-se à conclusão que somente os bens dos particulares teriam que suportar

as sanções pela desídia de seus bens. Nesse sentido, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald

ensinam que a propriedade privada é um direito subjetivo ao passo que a propriedade pública

é função social, sendo característica inerente aos bens públicos. (ROSENVALD, 2013 p.

352).

Ao versar sobre a temática em apreço, a Constituição Federal não separa o interesse

público do particular, pois não são opostos, posto que se complementam, e assim nos ensina

Humberto Ávila:

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O interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado. (...) se eles- o interesse público e o privado- são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre o outro fica prejudicada, bem como a contradição entre ambos. A verificação de que a administração deve orientar-se sob o influxo de interesses públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça uma relação de prevalência entes os interesses públicos e privados. Interesse público como finalidade fundamental de atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os interesses privados não estão principalmente em conflito, com pressupõe uma relação de prevalência. Daí a afirmação de HÄBERLE: “ Eles comprovam a nova, aberta e móvel relação entre ambas as medidas. ” (ÁVILA, 2001, p.13-14)

Além do mais, tal linha de aproximação, nos permite afirmar, que diante da crise pela

qual atravessa a política, a economia, um Estado Democrático de Direito não interprete suas

leis de acordo com uma unidade axiológica, dando uma melhor solução para o descaso e

abandono de alguns imóveis públicos. Não há que se aceitar que imóveis sem funcionalidade

nenhuma sejam blindados com a imprescritibilidade.

Ademais, muitos imóveis abandonados guardam dentro de si uma função social

hipotética, sem serventia, tendo um caráter absoluto por causa do princípio da supremacia

pública sobre o privado, e assim, não sofrem sanções nas mesmas proporções que o particular.

Dessa forma, temos que esse princípio do direito administrativo não pode ser reconhecido

como um ponto de partida absoluto, uma vez que os interesses públicos não podem ser

interpretados separadamente, ou de forma contraposta aos interesses do particular, pois estes

são uma parte daqueles e a relação entre eles se entrelaçam.

Com efeito, para se garantir o bem-estar social e garantir que a sociedade tenha o

direito de questionar o cumprimento da norma constitucional contra a inércia do Estado,

restou apenas o direito poder pleitear o adequado uso de seus bens através da ação popular ou

da ação civil pública. Assim, a inércia somente poderá ser submetida à uma sanção jurídica

nesses termos. De se ver, desde logo, que se a propriedade privada tem o dever de cumprir

com a função social, quiçá, a propriedade pública. Ademais, não seria lícito isentar o poder

público no que tange a administração de seus próprios bens.

Chaga-se a conclusão, portanto, que não há prevalência entre estes princípios, mas sim

uma ponderação de interesses entre eles; que não combina com o ordenamento jurídico uma

aplicação pura e simples das regras sem os valores dos princípios, sem que se observe os

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direitos fundamentais do indivíduo, nem muito menos que não se verifique a efetividade do

princípio da dignidade da pessoa humana.

2.3 O entendimento jurisprudencial acerca de Usucapião Do Bem Público.

De outra parte, em que pese a imprescritibilidade dos bens públicos, alguns

doutrinadores, como Flávio Tartuce, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, contrários a esse

pensamento absolutista, vêm defendendo de que sim, é possível a usucapião de bens

dominicais, ou seja, aqueles desafetados e sem serventia para a Administração. Isso porque

uma habitação é um direito fundamental e garantia do cidadão, defendida pela Constituição

Federal, sendo, inclusive, uma cláusula pétrea.

Dessa forma, a hermenêutica aplicada sobre uma lei deve levar em consideração os

fatos sociais do momento e a realidade da sociedade, pois segundo a doutrina de Ferdinand

Lassalle, a Constituição é concebida como fato social e não exatamente como norma. Assim,

o conteúdo positivo de uma Constituição seria o resultado da realidade social do país.

De acordo com o autor, no livro “ A Essência da Constituição”, convivem no Estado

duas Constituições: uma, real e efetiva, que corresponde à soma dos fatores reais de poder, e a

outra, escrita, por ele chamada “folha de papel”. Esta folha de papel só terá validade se

corresponder à Constituição real, pois, num eventual conflito, a Constituição escrita (folha de

papel) sucumbiria perante a Constituição real em virtude da força dos fatores reais de poder

dos grupos que a dominam, ou da elite que a dirige.

Segundo esse autor, o valor e a durabilidade da Constituição escrita depende da sua

coerência com os fatores sociais existentes, e segue dizendo: “de nada serve o que se escreve

numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder"

(LASSALLE ,2002, p.68).

Dessa forma, surge uma necessidade de se interpretar as leis conforme as mudanças

que a sociedade vem passando. Interpretá-las de acordo com a realidade atual, sob pena de se

tornar a lei em letra morta.

Além do mais, necessário se faz que seja dada uma correta interpretação do

ordenamento jurídico, observando a necessidade de mudança diante de uma nova conjuntura.

Novas técnicas de interpretações surgiram tendo fundamento o neoconstitucionalismo, em

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busca de uma eficácia constitucional, principalmente no que toca à concretização dos direitos

fundamentais. Sobre isso, bem observou Walber de Moura Angra, ao escrever:

O neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado Democrático Social de Direito. (...) dentre suas principais características podem ser mencionadas: a) positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e regras; c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva. (AGRA, 2008, p.31, apud LENZA, 2014, p. 72).

Feitas essas considerações, conforme se observa, a regra é a de que os bens públicos

são inalienáveis, impenhoráveis, imprescritíveis, por expressa previsão legal. Por esses

motivos, uma nova dinâmica de interpretação poderá ser aplicada aos dispositivos que vedam

a usucapião em qualquer caso. A partir da análise partida de um caso concreto, a realidade

social em choque com os dispositivos será melhor observada. Desse modo, a interpretação

sistêmica, olhando a Constituição como um todo para depois chagar a uma parte, e, por

conseguinte, “resolver o problema”, parece ser a melhor solução.

Nesse contexto, podemos dizer que é certo afirmar que os bens de uso comum do povo

e os de uso especial, têm como característica intrínseca, a sua própria função social, pois estão

sendo usados pela população ou a serviço dela. Mas isso não é assim em relação aos bens

dominicais. Estes, por sua vez, são os bens considerados desafetados, como é o caso das terras

devolutas, imóveis abandonados, edifícios em ruínas, e muitos outros terrenos espalhados por

todo país, que possuem essa característica.

Ademais, a Administração Pública poderá aliená-los, permutá-los ou mesmo cedê-los

conforme o interesse social, e mais, há quem entenda que o tratamento dado a estes bens

dominicais equipara-se aos dados aos bens particulares. Conforme mencionado alhures, esses

imóveis, quando desafetados, tornam-se alienáveis, portanto, perfeitamente capaz de serem

usucapidos.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, elenca as características do bem dominical em seu

livro Direito Administrativo da seguinte forma:

1. Comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas

ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de

interesse geral; a consequência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada

serviço público, mas uma atividade privada da Administração;

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2. Submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age,

em relação a eles, como um proprietário privado. O problema é que existem muitos bens

públicos dominicais que não tem serventia nenhuma e que não cumprem com a sua função

social e existe uma população que não teve o privilégio de ter uma propriedade e assim

efetivar um direito constitucional seu: o da propriedade. De se ver ainda, conforma já

comentado, há choque entre princípios, pois se de um lado está o Princípio da Dignidade da

Pessoa Humana, do outro está o da Supremacia do Interesse Público sobre o privado. (DI

PIETRO, 2013, p. 525)

Além disso, em um artigo publicado na Revista Eletrônica de Direito, a mesma autora

escreveu, que os bens dominicais, a exemplo dos demais, também devem cumprir com uma

função social, pois esse princípio impõe um dever ao Poder Público de criar, para

coletividade, a observância da norma constitucional, senão vejamos:

(...) com efeito, não há por que excluir os bens dominicais da incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade, quer para os submeter, na área urbana, às limitações impostas pelo Plano Diretor, quer para enquadra-los, na zona rural, aos planos de reforma agrária . (...), desse modo, enquanto o princípio a função social da propriedade privada impõe um dever ao proprietário (e, de certo modo exige a atuação do Poder Público para garantir o cumprimento do princípio), o princípio da função social da propriedade impõe um dever ao Poder Público e cria para os cidadãos direito de natureza coletiva, no sentido de exigir a observância da norma constitucional. Disponível em:<Http://www.direitodoestado.com/revista/rede-6-abril-2006-maria%20sylvia.pdf>. Acesso em 18 de maio de 2016 às 14:02.

Atualmente, conforme já mencionado anteriormente, a doutrina vem respondendo

sobre essa questão da usucapião de bens públicos, atentando para o fato de que um novo

paradigma está surgindo, e assim, deverá haver uma flexibilização do texto constitucional,

uma vez que o Estado, muitas vezes, não cumpre o seu papel de exercer o domínio de forma

correta. Nesse sentido escreve TARTUCE:

(...)superada essa primeira questão controvertida, a segunda se refere à questão da usucapião dos bens públicos. Como outrora destacado, a CF/1988 proíbe expressamente a usucapião de imóveis públicos, sejam urbanos ou rurais (arts. 183, § 3.º, e 191, parágrafo único). O CC/2002 reproduziu a regra em seu art. 102, sendo esse o caminho seguido pela doutrina e pela jurisprudência majoritárias, inclusive nos Tribunais Superiores (entre os julgados mais recentes: STJ, REsp 864.449/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, j. 15.12.2009, DJe 08.02.2010).

“Apesar da literalidade da norma, há juristas que defendem a possibilidade de usucapião de bens públicos. Entre os clássicos, Sílvio Rodrigues sustentava a sua viabilidade, desde que a usucapião atingisse os bens públicos dominicais, caso das terras devolutas. O argumento utilizado era no sentido de que, sendo alienáveis, tais bens seriam prescritíveis e usucapíveis”(...) A tese da usucapião de bens públicos é

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sedutora, merecendo a adesão deste autor. Para tanto, deve-se levar em conta o princípio da função social da propriedade. Clama-se pela alteração do Texto Maior, até porque, muitas vezes, o Estado não atende a tal regramento fundamental ao exercer o seu domínio. Como passo inicial para essa mudança de paradigmas, é importante flexibilizar o que consta da CF/1988. Anote-se que há julgados estaduais recentes admitindo a usucapião das terras devolutas (ver: TJSP, Apelação 991.06.028414-0, Acórdão 4576364, Presidente Epitácio, Décima Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Mário de Oliveira, j. 08.06.2010, D JESP 14.07.2010 e TJSP, Apelação 991.04.007975-9, Acórdão 4241892, Presidente Venceslau, Décima Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Conti Machado, j. 24.11.2009, DJESP 29.01.2010). (TARTUCE 2015- pag. 743).

Em suma, cabe à doutrina e à jurisprudência a tarefa de rever esse antigo paradigma,

alterando-se a legislação superior. Olhando para o futuro, baseada na funcionalização dos

institutos; essa parece ser a tendência. É o que se espera, pelo menos!

Entre os doutrinadores contemporâneos, a tese de usucapião dos bens públicos é

amplamente defendida por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, merecendo

destaque as suas palavras:

A nosso viso, a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao princípio constitucional da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade. Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 267).

Para os autores supracitados, os bens formalmente públicos possuem registro em nome

da pessoa jurídica de Direito Público, mas não se encontram excluídos de alguma forma de

ocupação, tanto para moradia, como para o exercício de qualquer atividade produtiva. Não

obstante, os bens que são considerados materialmente públicos são aqueles aptos a preencher

critérios de legitimidade e merecimento, uma vez que são dotados de alguma função social,

ou seja, são aqueles que estão sendo usados no serviço público e/ou possuem uma destinação

público-social específica.

Porém, segundo entendimento de Cristiano Chaves de Farias, a Constituição Federal

não atendeu a esta peculiaridade, “olvidando-se de ponderar o direito fundamental difuso à

função social com o necessário dimensionamento do bem público, de acordo com a sua

conformação no caso concreto”. Ou seja: se o bem for formalmente público, será possível a

usucapião, satisfeitos os demais requisitos; se for materialmente público, haverá óbice à

usucapião. E segue acrescentando: “Esta seria a forma mais adequada de tratar a matéria, se

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lembrarmos que, enquanto o bem privado ‘tem’ função social, o bem público ‘é’ função

social” (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 344).

Com efeito, para os autores, se o bem é formalmente público, seria possível a

usucapião, satisfeitos os demais requisitos: sendo formal e materialmente público, haveria o

impedimento de usucapi-lo, e nesse cenário, temos que as terras devolutas são formalmente

públicas e, numa conclusão lógica, estas podem ser usucapidas.

Sobre as terras devolutas, por força da previsão constitucional, são bens da União,

indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias

federais de comunicação e à preservação ambiental. São definidas em lei, conforme o art. 20,

II, da CFRB/88. Além destas, somam-se a elas as terras dos Estados Federados que, por sua

vez, são as terras devolutas não compreendidas entre as da União, nos termos do art. 26, IV,

da CF e em Leis esparsas. A lei que delimita o tema é a Lei n. 601/1850, que em seu art. 3º,

que assim aduz:

Art. 3º São terras devolutas:§ 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal.§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei.

Assim, importante mencionar, que em julgado recente, o STJ reconheceu a usucapião

de terras devolutas na faixa de fronteira entre o Brasil e Paraguai, isso porque não havia

registro de propriedade do imóvel em favor do Estado, e por esse motivo, existia apenas uma

presunção relativa de que se tratava de terras devolutas. Por essa razão, cabe ao ente público

provar a titularidade pública do bem, caso contrário, a propriedade poderá ser usucapida.

Com este entendimento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não

atendeu a pedido da União e acabou mantendo a decisão de segunda instância que reconheceu

a aquisição originária de terra situada no município de Bagé (RS) por usucapião para duas

mulheres.

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. USUCAPIAO. FAIXA DE FRONTEIRA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇAO EM FAVOR DO ESTADO DE QUE A TERRA É PÚBLICA.

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1. O terreno localizado em faixa de fronteira, por si só, não é considerado de domínio público, consoante entendimento pacífico da Corte Superior.2. Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado, presunção iuris tantum de que sejam terras devolutas, cabendo a este provar a titularidade pública do bem. Caso contrário, o terreno pode ser usucapido.3. Recurso especial não conhecido. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5927270/recurso-especial-resp-674558-rs-2004-0071710-7-stj. Acesso em: 18/05/2016 às 14:08.

Conforme se pode extrair dessa decisão, os Tribunais Superiores pacificamente vêm

decidindo que se faz necessário a demonstração por parte do ente público, através de um

registro, que a terra devoluta lhes pertence. Do contrário, não será tido por bem dominial e,

portanto, pode ser alienada e passível de usucapião. E assim, firme está o entendimento de

que, se a terra não está registrada como pública, não pode ser tida como presumidamente

pública por tratar-se de terra devoluta, mas sim, nos termos da lei civil é terra de ninguém e,

portanto, usucapível.

Um outro caso interessante com entendimento favorável à usucapião ocorreu na cidade

de Antônio Dias, na comarca de Coronel Fabriciano, em uma decisão proferida em

08/05/2014 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o qual confirmou a sentença de 1º grau,

conforme se verifica: (processo nº 0112383-35.2010.8.13.0194)

EMENTA: APELAÇÃO CIVIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA - DETENÇÃO - INOCORRÊNCIA - POSSE COM "ANIMUS DOMINI" - COMPROVAÇÃO - REQUISITOS DEMONSTRADOS - PRESCRIÇÃO AQUISITIVA - EVIDÊNCIA - POSSIBILIDADE - EVIDÊNCIA - PRECEDENTES - NEGAR PROVIMENTO.

"A prescrição, modo de adquirir domínio pela posse contínua (isto é, sem intermitências), ininterrupta (isto é, sem que tenha sido interrompida por atos de outrem), pacífica (isto é, não adquirida por violência), pública (isto é, exercida à vista de todos e por todos sabida), e ainda revestida com o animus domini, e com os requisitos legais, transfere e consolida no possuidor a propriedade da coisa, transferência que se opera, suprindo a prescrição a falta de prova de título preexistente, ou sanando o vício do modo de aquisição". Disponível em: <http://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/120456151/apelacao-civel-ac-10194100112383001-mg> acesso em: 23/02/2016.

Os funcionários de uma Autarquia, Departamento de Estradas e Rodagens de Minas

Gerais- DER/MG, iniciaram a construção de uma rodovia- BR- 381. Pela ocasião da

construção, os funcionários montaram um acampamento. Os anos foram-se passando, de

maneira que hoje, 30 anos depois, lá residem 10 famílias, cerca de 120 pessoas. O

acampamento tornou-se um vilarejo, cuja área ocupada é de cerca de 36 mil metros

quadrados, que correspondem a 26% do imóvel, área essa dotada de infraestrutura como:

asfalto, energia elétrica, uma mina e uma pequena igreja.

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Ocorre que as famílias pleitearam ação de usucapião, posto cumprir com todos os

requisitos, quais sejam: posse contínua, ininterrupta, pacífica, exercida à vista de todos e por

todos sabida, e ainda revestida de “animus domini”. Pediram, então, que cumpridos com os

requisitos legais, fossem transferidos e consolidados aos possuidores a propriedade dos

imóveis.

Em sede de contestação, por sua vez, o DER/MG, solicitou a desocupação dessa área,

ao argumento de que a Autarquia é proprietária do imóvel, e que nesse contexto, “os

servidores sempre souberam que o imóvel era da Autarquia, e que sua tolerância na utilização

do bem configura mera detenção consentida”.

Não obstante, o MM Juiz jugou procedente o pedido contraposto pelos réus para

“declarar o domínio dos requeridos sobre os imóveis descritos na exordial, devendo a presente

sentença servir de título para registro, oportunamente, no Cartório de Registro de Imóveis”.

Essa foi uma decisão polêmica, isso porque o julgado afirmou não se tratar de um bem

público, contudo, não resta dúvidas que se tratou de um imóvel público do DER/MG, uma

autarquia estadual, evidenciando um equívoco do julgador, contudo, essa decisão deu azo a

fortes discursões sobre o tema, inclusive, deu ensejo a esse trabalho.

Do exposto, conclui-se que a Constituição Federal elevou o princípio da dignidade da

pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil. Por esse motivo,

a Constituição considera que o Estado existe em função das pessoas e não as pessoas em

função do Estado. Dessa forma, a ação do Estado deverá considerar cada pessoa como um fim

em si mesmo. Quando a administração admite a possibilidade de usucapir um bem desafetado,

por um particular, ela estará efetivando o interesse público, uma vez que a propriedade ociosa,

passa, nesse momento, a cumprir uma função social e dando força ao direito fundamental

social de moradia.

Os institutos da afetação e desafetação dizem respeito à destinação do bem público.

José dos Santos Carvalho Filho afirma que:

Afetação e desafetação são os fatos administrativos dinâmicos que indicam a alteração das finalidades do bem público. Se o bem está afetado e passa a desafetado do fim público, ocorre a desafetação; se, ao revés, um bem desativado passar a ter alguma utilização pública, poderá dizer-se que ocorreu a afetação. (FILHO, José dos Santos Carvalho, 2006, p. 947).

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Em rápidas pinceladas, em um outro julgado em sede de embargos infringentes, temos

que os bens dominicais são desprovidos de afetação, podendo, portanto, ser alienados. Dessa

forma, a partir do momento da desafetação, o bem perde o seu caráter público e passa a ser

um bem disponível pelo Estado, uma vez que o Estado demonstra seu desinteresse por ele.

Assim julgou a justiça de São Paulo ao considerar que um imóvel público poderia ser objeto

de ação de usucapião por uma Empresa. A decisão rejeitou o recurso interposto pela Empresa

Municipal de Desenvolvimento de Campinas (EMDEC) contra decisão que favorecia a

empresa COPERSTEEL, que tentava obter o título do terreno que ocupa. A decisão foi por

maioria de votos.

EMBARGOS INFRINGENTES POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE PÚBLICO DOMINIAL DESAFETADO EMBARGOS REJEITADOS. (TJ-SP - EI: 9172311972007826 SP 9172311-97.2007.8.26.0000, Relator: Lucila Toledo, Data de Julgamento: 22/05/2012, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/06/2012)(...)A conjugação dos argumentos acima leva à conclusão da possibilidade da usucapião de bens públicos dominais, desafetados para a alienação, cumprida sua função social pelo particular usucapiente. Conforme exposto, a doutrina ensina que a natureza jurídica do bem público define-se pela destinação que ele recebe. Atenho-me ao bem dominial, que é o objeto da presente demanda. Os bens públicos dominiais são os desprovidos de afetação. São bens que podem ser destinados à alienação. A partir do momento em que o bem entra para a esfera de disponibilidade do Estado, ele perde seu caráter público. A desafetação para alienação demonstra que o Estado já não possui mais interesse naquele bem. Significa que ele já não desfruta de interesse público. Se assim ocorre, não devem mais ser aplicadas as prerrogativas de que dispõem os bens essencialmente públicos. O imóvel destinado à alienação, como o do presente caso, torna-se apenas formalmente público. Não se pode afirmar que a sua natureza jurídica continua a mesma de, por exemplo, uma escola ou um hospital mantido pelo Estado. Não há, portanto, razão para a sua imprescritibilidade, cuja observância, nesses casos, fere a proporcionalidade. Se é possível ao Estado alienar certo tipo de bem, não faz sentido que ele não possa perdê-lo, pela sua própria inércia. Impedir a prescrição aquisitiva do bem desprezado pelo Estado afronta a função social da propriedade. A função social passou do limite da propriedade para se tornar o seu conteúdo. Ela é uma cláusula geral que visa funcionalizar o direito contemporâneo. A norma constitucional que estabelece que os bens públicos são insuscetíveis de usucapião, deve ser interpretada de acordo com a destinação do bem. E o bem já desafetado não tem mais destinação pública. Disponível em: <disponível em<http://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22256135/embargos-infringentes-ei-9172311972007826-sp-9172311-9720078260000-tjsp.> acesso em 29/02/2016 às 15:40h.

Assim, conforme se observa, uma nova interpretação tópica vem sendo dada ao

assunto, derrubando o paradigma que há muito vinha sendo imposto pela letra da lei, razão

pela qual passa-se a verificar uma mudança nos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários,

conforme se buscou observar fartamente nesse trabalho.

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2.4 Usucapião extrajudicial administrativa e sua aplicação aos bens públicos.

O novo Código de Processo Civil trouxe uma grande novidade em seu conteúdo: a

usucapião administrativa- pleiteada em uma via extrajudicial. Procedimento feito em cartório

de registro de imóveis, com a participação dos notários, tabeliães e Poder Público. Esse ato

visa não só a retirada, do judiciário, de ações das quais não há contencioso, dando assim, uma

celeridade processual. Com efeito, essa descentralização dos serviços públicos veio dar

eficiência através dos Servidores em colaboração com o serviço público. Todavia, isso não

quer dizer que o instituto não possa ser defendido por uma via jurisdicional.

Esse procedimento extrajudicial, insculpido pelo art. 1.071 do novo CPC, acrescentou

o art. 216-A à Lei de Registros Públicos, dando uma qualificação à lei que o disciplina com o

fito de desjudicialização do instituto da usucapião. Dessa forma, podem ser pleiteados em

cartórios as ações de usucapião em casos que não haja lide, seguindo a mesma esteira da

retificação de registro, da regularização fundiária, do divórcio e do inventário. Com efeito,

sendo, pois, um processo administrativo, a revisão jurisdicional é a qualquer tempo possível e

viável, tanto durante o curso do processo, ou após seu término, quando se poderá buscar uma

revisão judicial.

Não obstante, em que pese a novidade de desjudicialização do instituto da usucapião

trazida pelo novo CPC, esse rito especial já havia surgido com a Lei Federal nº 11.977/2009-

Programa Minha Casa Minha Vida-, que o manteve em circunstâncias a situações de

regularização fundiária de interesse social, conforme se verá.

O processo de usucapião extrajudicial no seu procedimento comum poderá ser

utilizado para qualquer espécie de usucapião imobiliária, ou seja, qualquer imóvel passível de

ser usucapido. Contudo, a usucapião do direito de propriedade decorrente do registro do título

e legitimação da posse, expedido pelo Poder Público em processo de regularização fundiária

de interesse social, tem procedimento extrajudicial especial. Para as demais hipóteses aplica-

se o procedimento extrajudicial comum de usucapião. (BRANDELLI, 2016, pág. 24)

No que toca a Usucapião administrativa, verifica-se que a ação deixou de ser uma

simples tutela da posse e, nesse caso, passou a ser um meio de regularização legalmente

formalizado, desde que cumpridas com certas exigências formais e materiais.

Dessa forma, o capítulo III da lei Federal nº 11.977/09- Lei do Programa Minha Casa

Minha Vida- foi o primeiro a dispor sobre a regularização fundiária em áreas urbanas, sendo

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esse o primeiro marco jurídico de caráter nacional. Além de conceituar, a lei cria novos

instrumentos e procedimentos, define competências e responsabilidades, com o objetivo de

agilizar e tornar efetivos os processos de regularização, especialmente nos casos em que esteja

configurado o interesse social.

Entende-se por regularização fundiária o processo feito pelo Poder Público em

parceria com a população beneficiada, o qual envolve medidas jurídicas, urbanísticas,

ambientais e sociais, com a finalidade de integrar assentamentos irregulares ao contexto legal

das cidades. Ademais, envolve a legalização ao direito de permanecer em seus imóveis os

quais usam para os fins de moradia. Dessa forma, a população de baixa renda que não teve

acesso à formação de uma habitação legal e que vive em condição de insegurança

permanente, poderá ter, além de seu direito social de moradia, outros direitos constitucionais,

a saber: trabalho, educação, laser e saúde.

Dessa forma, estabelece o art. 60 da Lei nº 11.977/09 que, sem prejuízo dos direitos

decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação da posse,

poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registo de

propriedade, com vistas à sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição

Federal.

No contexto, cabe inferir, que a usucapião implantada pela Lei nº 11.977/09-

PMCMV- trouxe algumas restrições e efeitos limitados, pois conforme se observa, a

usucapião só será possível exclusivamente para regularização fundiária urbana o qual envolve

um procedimento bastante complexo e a contagem do prazo para a ação está atrelado ao

prévio registro do título de legitimação da posse.

A legitimação de posse é um instrumento através do qual se reconhece a posse de

moradores de áreas objeto de demarcação urbanística e tem como a finalidade identificar,

através do poder público, uma situação de fato, qual seja, a posse mansa e pacífica.

Os requisitos para o reconhecimento da usucapião extrajudicial pelo procedimento

especial previsto na Lei nº 11.977/2009 são mais restritos do que os do procedimento comum.

Isso porque, em primeiro lugar, há de se tratar de situação de regularização de parcelamento

do solo irregular ou clandestino, de interesse social, no qual o Município expressa título de

legitimação de posse.

23

Nesse contexto, dividiu o legislador as espécies de regularização em duas

características, a saber: de interesse social e de interesse específico. As primeiras têm

cabimento nos termos do art. 47, VII, da lei do Programa Minha Casa Minha Vida, quando se

tratar de imóveis habitados pela população de baixa renda e ali estiverem há pelo menos 5

anos. São as ZIES (Zona Especial de Interesse Social), ou em áreas de entes públicos

declaradas de interesse social para implantação de projetos de regularização fundiária de

interesse social.

O que o legislador fez foi dar possibilidade ao Poder Público, após registrada a

regularização do parcelamento do solo, outorgar título de legitimação de posse aos ocupantes

dos lotes, assim cadastrados pelo Poder Público. Os posseiros receberão um título

administrativo e nos termos do art. 58 §1º da Lei nº 11.977/2009, o Poder Público concederá o

título de legitimação de posse. Ato contínuo, o possuidor poderá registrar o seu título na

matrícula do imóvel e habilitar-se à usucapião extrajudicial. (BRANDELLI, 2016, pág. 112).

A segunda, por sua vez, se caracteriza por interesse específico, qual seja, a

regularização fundiária na qual não está caracterizado o interesse social nos termos acima,

mas essa modalidade regularização será objeto de um outro estudo específico nessa área.

3 CONCLUSÃO

O Direito das Coisas é uma área sensível do direito privado, pois reflete uma dimensão

política do regramento, cuja história se faz presente nos textos constitucionais contemporâneos.

Diante disso, a interpretação das normas constitucionais por parte dos legisladores e julgadores,

deve buscar, antes de mais nada, o interesse da coletividade, da sociedade como um todo.

Como visto no decorrer desse trabalho, a construção desse Direito tem como ponto de

partida a função social da propriedade. Vimos que esta, por sua vez, deve ser exercida em

consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que venham a ser preservados,

além da propriedade, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio

histórico e artístico. A ideia do legislador foi a do social, do direito difuso, tendo como fundamento o

princípio da dignidade da pessoa humana. Não obstante, chega-se aqui à essência do discurso; de se

analisar até que pondo a dignidade não está acima de normas que justificam atos que muitas vezes

atentam contra à dignidade da pessoa humana, mas que por outro lado, são considerados legítimos.

24

Dworkin, filósofo do Direito, ao sustentar a existência de um direito das pessoas de não

serem tratadas de forma indigna, reforça que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios

padrões e convenções a respeito do que constitui essa indignidade. Critérios esses que irão variar

conforme o local e época. (DWORKIN, p. 305). Dessa forma, temos que a moradia precária, sem

segurança, fere, por si só, os direitos do indivíduo. Desse fato surge a pergunta: quais os direitos que

o indivíduo possui enquanto ser humano e cidadão de uma comunidade? Quais princípios irão

vincular o legislador e o aplicador do direito quando a matéria versar sobre dignidade, liberdade,

igualdade?

Da resposta a estas indagações retira-se os padrões e convenções para mensurar a

indignidade que a população sente, das quais Dworkin falou. De se ver ainda, que temos aqui um

choque entre a regra da vedação de aquisição de propriedade pública pela usucapião e a regra

através da qual se garante ao cidadão o direito de propriedade e o direito de moradia. Quanto a isso,

Robert Alexy, (1993, p. 81), nos ensina que, em caso de conflito entre regras, uma deverá eliminar a

outra, posto que regras se encontram no plano da validade, ou seja, será tudo ou nada. Espera-se,

nesse caso, que seja a regra que veda a aquisição de bens públicos dominicais através da ação de

usucapião.

Em suma, os valores principiológicos da Constituição Federal e as regras que proíbem a

usucapião de propriedade estão em uma relação de tensão e não podem ser solucionadas com base

em uma precedência absoluta de um desses deveres. Ademais, nenhum desses deveres goza, por si

só, de prioridade. “O conflito deve ser resolvido por meio de um sopesamento entre os interesses

conflitantes”. (DWORKIN, pag. 95). Entre os princípios que envolvem os direitos da Administração

Pública e aqueles que envolvem os direitos dos administrados não há hierarquia, razão pela qual

devem ser sopesados diante de um caso concreto. E assim, vale a máxima do Direito do qual se diz:

"LUTA. Teu dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a

Justiça, luta pela Justiça." (Eduardo Couture).

25

4 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1997.

ALVES, José Carlos Moreira. Posse. Estudo dogmático. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público

sobre o Particular”. In: Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização

Jurídica, v. I, nº. 7, outubro, 2001. Disponível em <http://www.direitopublico.com.br>.

Acesso em 26 de abril de 2016 às 16h20.

BRANDELLI, Leonardo. Usucapião Administrativa. De acordo com o novo Código de

Processo Civil. São Paulo. Saraiva. 2016.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula nº340. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?

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às 10h08.

BRASIL, Tribunal Regional Federal- APELAÇÃO CIVEL AC 50321193420114047100 RS

5032119-34.2011.404.7100 (TRF-4). Data de publicação:16/07/2015Disponível em

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