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Giorgio Vasari
Vida de Michelangelo Buonarroti
Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto
(1568)
Tradução, Introdução e Comentário
Luiz Marques
Texto original: www.memofonte.it
ii
ÍNDICE
Prefácio
Introdução
1 – Origens
Florença (1524-1527)
Roma Clementina
Sob Alessandro (1533-1536)
Morte e transfiguração (1537-1539)
A cura de Camaldoli
2 – Michelangelo e Paolo Giovio (1541-1548)
A parte de Michelangelo
O tríptico de Paolo Giovio
A revitalização do gênero histórico
3 – O presente como problema histórico: a terceira perspectiva
Giorgio Vasari
Vida de Michelangelo Buonarroti.
Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto
Comentário
Advertência sobre o Comentário
1. Proêmio, 1-12
2. Nascimento e ascendência de Michelangelo, 13-24
3. Instrução e primeira formação artística, 25-43
4. As cópias e o Jardim de São Marco, 44-55
5. A Centauromaquia e a Madonna della Scala, 56-67
6. O Hércules e o Crucifixo de S. Spirito, 68-74
7. A primeira estada em Bolonha, 75-84
8. O San Giovannino, o Cupido e a primeira viagem a Roma, 85-97
9. O Cupido Galli, o Baco e a Pietà, 98-115
10. O retorno a Florença e o Davi, 116-145
11. O Davi em bronze, os tondos e o São Mateus, 146-153
12. A Madona de Bruges e o Tondo Doni, 154-162
13. A Batalha de Cascina, 163-192
14. Roma e a encomenda do Sepulcro, 193-228
15. O Moisés e o retorno a Florença, 229-251
16. A segunda estada em Bolonha e a estátua de Júlio II, 252-265
17. Os afrescos da abóbada da Capela Sistina, 266-348
18. O retorno aos Medici e a Fachada de San Lorenzo, 349-382
19. A Sacristia e Biblioteca de San Lorenzo, a Leda e o Cristo da Minerva, 383-426
20. A Fuga e a Defesa de Florença, 427-455
21. A Biblioteca Laurenziana, 456-472
22. O sepulcro de Júlio II e os afrescos do Juízo Final, 473-538
23. A Capela Paolina, a fortificação do Borgo e a Pietà de Florença, 539-550
24. A Basílica de São Pedro, o Capitólio e o Palácio Farnese, 551-567
25. Júlio III e as tumbas de S. Pietro in Montorio, 568-585
iii
26. San Giovanni dei Fiorentini, 586-591
27. Intrigas, o palácio de Júlio III e a ponte Santa Maria, 592-598
28. A Escadaria da Biblioteca Laurenziana, 599-603
29. Paulo IV, a morte de Urbino e a destruição da Pietà, 604-628
30. O modello da cúpula de São Pedro, 629-634
31. Pio IV, os retratos de Michelangelo e a Sala Grande, 635-650
32. A Porta Pia e Santa Maria degli Angeli, 651-653
33. San Giovanni dei Fiorentini, o Bruto e Tiberio Calcagni, 654-658
34. Últimas manobras contra Michelangelo, 659-662
35. Morte, desenhos de homenagem, dicta e retrato de caráter, 663-754
36. As exéquias e a homenagem da Academia, 755-820
Bibliografia
Índice onomástico
Indice remissivo das obras de Michelangelo
iv
Prefácio
Il mondo come ‘torso’. Em 1940, Roberto Longhi assim definia a arte de
Michelangelo, compensando por uma fulgurante intuição o (quase) silêncio que seu
gênio crítico manteve em relação ao maior artista da Idade Moderna1. Fulgurante essa
intuição é porque diz o elemento de Michelangelo. É no torso que se formula sua
consciência do Antigo como cosmos e como fragmento, como começo e como fim; é
por ele que se opera a implacável redução da multiplicidade fenomenológica do visível
à unidade do nu; é nele, numa palavra, que se elabora a síntese entre história e natureza.
O torso oferece de Michelangelo a imagem essencial do embate com a
interioridade e com a superfície do mármore, embate que atravessa a existência do
artista, até se sublimar em educação pela pedra, exercício espiritual, experiência
religiosa. A Michelangelo, mais que a ninguém, poder-se-ia aplicar a sentença de
Schleiermacher2: “ser alma quer dizer ter corpo”. O mundo como torso remete, enfim, à
proclamação do artista segundo a qual o mármore contém o universo do exprimível3.
Séculos depois, Ezra Pound4 diria algo semelhante na equação Dichten = Condensare.
A primeira edição de Le Vite de’ più eccellenti architetti, pittori e scultori
italiani da Cimabue insino a’ tempi nostri, descritte in lingua Toscana, da Giorgio
Vasari Pittore Aretino. Con una sua utile et necessaria introduzione a le arti loro, para
os tipos de Lorenzo Torrentino, editor ducal, aparece em Florença em março de 1550. O
título será alterado na segunda edição, de 1568, com inversão na ordem das artes: Delle
Vite de’ più eccellenti pittori scultori et architettori, scritte da M. Giorgio Vasari... di
nuovo dal Medesimo riviste et ampliate, con I Ritratti loro, et con l’aggiunta delle Vite
de’ Vivi et de’ Morti, dall’anno 1550, infino al 1567. Con tavole copiosissime De’ nomi,
Dell’opere, E de’ luoghi ou’elle sono. In Fiorenza appresso i Giunti. A Vita di
Michelagnolo de Giorgio Vasari, na edição de 1568 – de que se propõe aqui a tradução
e uma versão abreviada da Introdução e do comentário que constituiu minha Tese de
Livre Docência (2010)5 –, narra o percurso do artista entre Lorenzo de’ Medici, morto
em 1492 e o pontificado de Pio IV, morto em 1565. Nenhuma das transformações
históricas que, entre esses dois marcos cronológicos, remodelaram a fisionomia da Itália
passa ao largo da arte de Michelangelo. Poucas são as personagens centrais da história
política, literária ou artística da península que, em um momento ou outro desses três
quartos de século, deixaram de interagir, direta ou indiretamente, com ele. Ao
reconstituir o tecido dessas relações, Vasari põe em evidência outro sentido da máxima
de Longhi: no torso em torno do qual gravita a arte de Michelangelo, encerra-se o
mundo que se convencionou chamar Renascimento. Isto não significa apenas que
Michelangelo é, em medida maior que a de qualquer outra personalidade de seu tempo,
aí incluídos papas, reis e imperadores, um fenômeno tentacular cujo estudo pressupõe o
das mais diversas esferas da história. Isto significa, principalmente, uma presença
qualitativa: vistas pelo prisma de sua arte, as diversas determinações de seu século
1 Cf. Longhi [1940/1980:160]. Nas notas de seu curso de 1913-1914, Longhi [1913/2005:78] via
Michelangelo “imaginando uma humanidade gigantesca que age, mas em movimentos contidos e
concisos e como que travado pela massa”. Sobre as reservas de Longhi ao Juízo Final, expressas neste
curso, e seu relativo laconismo em relação ao artista, cf. Agosti, Farinella [1987:9]. 2 Apud E. Staiger, Grungbegriffe der Poetik (1968), trad. port., Rio de Janeiro: 1972, p. 63.
3 Non ha l’ottimo artista alcun concetto / c’un marmo in sé non circonscriva. Soneto datável entre 1538 e
1544 (Girardi, 151). Vide infra o texto da biografia e as notas 417 e 704. 4 Ezra Pound, ABC of Reading (1934), New York: Penguin Books, 1960, p. 97.
5 O texto integral encontra-se em www.vasari.art.br
v
parecem entrar em perspectiva e formar uma figura. Retirado o prisma, a história da arte
do século XVI seria reduzida à aparência absurda de uma anamorfose. Poder-se-ia,
assim, transitar facilmente da fórmula de Longhi para a de Hegel, e afirmar que a arte de
Michelangelo é “seu tempo apreendido em um torso”6.
A paráfrase de Hegel é tanto mais pertinente pelo fato de ter sido necessário à
arte de Michelangelo, para apreender seu tempo, não se limitar a ser apenas um aspecto
dele, mesmo o mais “profundo”. Para exprimi-lo em sua totalidade, esta arte deveria
estar, de certo modo, desidentificada com seu tempo. Esta desidentificação deve ser
entendida em dois sentidos. De um lado, Michelangelo é o passado do século XVI e um
passado que o século XVI já não reconhece como seu. A pretensão michelangiana de
condensar no nu, e tão somente nele, o universo do exprimível permanece tributária do
horizonte cultural da Florença dos anos 1480-1494, momento em que o jovem artista
estruturou sua forma mentis. Ora, desse horizonte a Itália, precipitada em crises político-
militares e religiosas abissais, seria rapidamente distanciada, e isto já a partir do
pontificado de Leão X (1513-1521). Não obstante o fato de que os nus de Michelangelo
– retorcidos, vergados e arcados sob o peso da “expressão” –, já nada têm a ver com o
homo quadratus do Quatrocentos, eles permanecem a seu modo um paradigma
absoluto, que o século XVI, finda sua “Idade de Ouro”, tenderá a abandonar e mesmo a
censurar. Neste sentido, a arte de Michelangelo é, paradoxalmente, uma arte do passado,
no sentido de uma arte não-atual ou intempestiva. Malgrado o endeusamento de que o
artista foi objeto em vida, o fato incontornável é que a recepção de sua arte foi, desde ao
menos os anos 1540, crescentemente negativa. Michelangelo não podia dar ao século de
Trento a arte pela qual este ansiava.
Por outro lado, a arte de Michelangelo desidentifica-se com a arte do século XVI
por ser, igualmente, uma arte do futuro, enunciadora de um destino não-advertido pelos
homens de seu século. Assim Burckhardt a vê em um texto de 1885:
[Michelangelo] “foi como uma personificação do destino para a arte; nas suas obras e no seu
sucesso residem os elementos essenciais para definir a íntima natureza da cultura moderna. A
característica da arte dos últimos três séculos, vale dizer, a subjetividade, comparece aqui sob as
vestes de uma criatividade absolutamente livre de todo limite. E isto não involuntariamente ou
inconscientemente, como em tantos grandes movimentos culturais do Quinhentos, mas com uma
intencionalidade hiper-potente. Dir-se-ia que Michelangelo tenha concebido tão
sistematicamente a arte que cria e postula o mundo, quanto algumas filosofias pensam o Eu
criador do mundo7.
Maurizio Ghelardi retira dessa passagem, bem como de um texto extremo de
Burckhardt, que ele publica em 1991, seus desdobramentos últimos: Burckhardt é o
primeiro a ter percebido em toda a sua agudez o “contraste entre o historicismo
rafaeliano da Escola de Atenas, ao qual atribuíra grandíssima importância artística e
ética, e a arte de Michelangelo, na qual vira, ao contrário, o exemplo típico de fuga do
clássico equilíbrio dos pesos e das medidas, a manifestação de um ato de existir mais
que de conhecer, o símbolo da preponderância do ser sobre o conhecer”8. Nesta “fuga
do clássico” – fundadora da maniera e premonitória de um além histórico-artístico cujo
6 Hegel, Philosophie der Rechts (1805): Die Philosophie [ist] ihre Zeit in Gedanken erfasst (A filosofia é
seu tempo apreendido em ideias). Em 1927, Ernst Cassirer iniciava a Introdução a Indivíduo e o Cosmos
na Filosofia do Renascimento, problematizando esta afirmação de Hegel no que tange à filosofia desse
período. Mas não é com a filosofia, e sim com a arte de Michelangelo que se pode parafrasear o dictum de
Hegel. 7 J. Burckhardt, Gesamtausgabe, IV, ed. por H. Wölfflin, Basileia, 1933, p. 82, apud Ghelardi [1991:607].
8 Cf. Ghelardi [1991:608]. Agradeço a Cássio Fernandes ter chamado minha atenção para esse texto.
vi
alcance foi apenas parcialmente compreendido por seu século, manifesta-se o que
Longhi viu já no Tondo Doni9:
“Mesmo na Itália, o ápice clássico não durara mais que poucos anos. Máximo autor do desvio
ninguém mais que Michelangelo. E sua atitude não devia parecer algo que se pudesse retomar e
trocar em miúdos, tão altiva, solitária, aparentemente intocável era sua intenção primeira".
Em mais de uma passagem dessa biografia, Vasari colocará Michelangelo fora da
história, em parte para poder nele fundar a história da arte, mas em parte também
porque o biógrafo parece consciente de que a arte de seu amigo apontava para um
horizonte situado muito além da recepção adversa que começava então a se desenhar.
Antes de passar, na Introdução, ao percurso que leva Vasari às suas biografias de
artistas, impõe-se uma palavra sobre o cerne deste trabalho: a tradução do texto do
biógrafo e o comentário que este engendra. Pouco há a avançar no que se refere à
tradução10
, realizada a partir do texto de 1568, segundo a edição de 1966-1987, proposta
por Paola Barocchi e Rossana Bettarini. 6 volumes, volume 6, Florença: S.P.E.S., 1987,
disponível no site da Fondazione Memofonte (www.memofonte.it).
Não cabe a mim um juízo sobre o valor literário do original. Vasari não está
entre os maiores literatos do século de Pietro Bembo. Mas é um escritor que olha nos
olhos do leitor e que possui no mais alto grau três qualidades: um senso inigualável da
écfrase, uma enorme verve narrativa e um senso da história em grande angular. As duas
primeiras qualidades foram-lhe reiteradamente louvadas. A última não lhe terá talvez
sido reconhecida em sua justa medida. As Vidas compõem uma história de três séculos
da civilização italiana, construída graças ao talento de grande orquestrador de seu vasto
material histórico; graças também a uma genuína teoria da história, à qual não faltam
uma aguda consciência da unidade desse período, a especificidade de seu objeto e a
maestria no manejo de seu aparato conceitual. Trata-se de uma genuína, complexa e
fecunda teoria da história, irredutível ao “evolucionismo” ou a uma simplória crença no
“progresso” das artes a que se a quis expeditiva e anacronicamente reduzir.
Acima de tudo, Vasari é um homem capaz de imensa empatia em relação a seus
semelhantes, qualidade imprescindível de todo grande biógrafo. Com seus pares, ele
revive sucessos e alegrias, mas também infortúnios, que lhe oferecem ocasião para
digressões de plutarquiana memória sobre o inelutável destino e a “inimizade que há
entre a fortuna e a vontade (virtù)”. Em uma carta a André Gide de 25 de agosto de
1894, Valéry escrevia: Il faudra écrire la vie d'une théorie comme on a trop écrit celle
d'une passion. Justamente, Vasari foi capaz de escrever nesta biografia de Michelangelo
a vida de uma ideia de arte como se escrevesse a vida de uma paixão. Quem quer que o
tenha traduzido terá passado por uma experiência gratificante, pois não se pode
conviver com seu texto sem se deixar contagiar por seu entusiasmo. Caberá ao leitor
ajuizar o resultado aqui obtido. Para maior comodidade de leitura, acrescentamos em
nossa tradução os subtítulos que pontuam o texto.
O comentário foi concebido a partir de um modelo: o Commento a esta biografia
publicado por Paola Barocchi em 1962, com o título: La Vita di Michelangelo nelle
redazioni del 1550 e del 1568, 1 volume de Texto e 4 volumes de Comentário,
Milão-Nápoles: Riccardo Ricciardi. Nestes 4 volumes, a estudiosa retraça a fortuna
9 Vide infra a nota 159 do Comentário.
10 Uma tradução parcial desta Vida de Michelangelo, por A. Della Nina, comparece no volume X da
coleção Biografias de Homens Célebres, São Paulo, Editora das Américas, 1955.
vii
crítica de cada frase do texto de Vasari sobre o artista, fornecendo, ademais, análises
penetrantes sobre seu valor crítico. De 1960 a 2010, meio século de bibliografia sobre
Michelangelo e sobre Vasari, como biógrafo, supera, ao menos em número de títulos,
tudo o que fora escrito sobre ambos os artistas nos quatro séculos anteriores. Apenas os
livros, artigos e Atas de Congressos publicados no quarto centenário da morte de
Michelangelo, em 1964, os estudos sobre novas atribuições e interpretações
iconográficas, sobre as relações do artista com a história política, religiosa e literária,
sobre as descobertas de um número considerável de suas obras juvenis, sobre as
restaurações do Tondo Doni, da Capela Sistina, da Capela Paolina e do Sepulcro de
Júlio II, apenas os novos catálogos dos desenhos e de sucessivas exposições sobre os
mais diversos aspectos e períodos de sua vida e atividade de artista e poeta, e, enfim, as
tentativas de síntese, ultrapassam nestes últimos decênios a casa dos mil títulos.
O objetivo primeiro do presente comentário foi dar a devida evidência a esta
literatura surgida após a publicação do Commento de Barocchi, destacando os trechos
em que se cristaliza o pensamento dos estudiosos. Salvo quando se tratava de passagens
de outras biografias do próprio Vasari, da correspondência de Michelangelo, de seus
outros biógrafos quinhentistas (Giovio, Condivi, Varchi), ou, ainda, de autores centrais
dos estudos michelangianos (Gotti, Thode, Tolnay...), ative-me, em geral, ao critério de
remeter ao Commento de Barocchi os textos anteriores a 1960, já ali citados. Além
disso, não-raro retomei as análises da própria Barocchi acerca de Vasari e de
Michelangelo. No mais, tentei seguir de perto seu método que consiste em organizar o
próprio comentário tanto quanto possível como um mosaico de passos relevantes de
outros autores sobre o tema discutido.
Isto posto, convém explicitar a ordem de exposição adotada nos comentários
aqui propostos. Salvo nas notas puramente informativas e de contexto (notícias sobre
personagens e fatos históricos citados), priorizou-se grosso modo a seguinte hierarquia:
I. Em relação ao texto:
a. questões atinentes à tradução;
b. eventuais discrepâncias entre o texto vasariano de 1550 e o de 1568;
c. cotejamento dos textos vasarianos com o das outras biografias coevas de
Michelangelo (Paolo Giovio, Ascanio Condivi, Benedetto Varchi) e demais
testemunhos antigos;
d. exame da Correspondência e da Poesia de Michelangelo;
e. análise dos comentários modernos à passagem em apreço
II. Nas notas relativas às obras de Michelangelo:
Tentou-se em seguida a análise da obra, sucedendo-se em princípio em nosso enfoque
os seguintes aspectos: iconografia, datação, estudos preparatórios, circunstâncias da
encomenda, recepção, fortuna crítica, etc.
A seleção dos aspectos considerados mais relevantes da bibliografia é, em si,
uma tácita tomada de posição. Quando cabível, as notas explicitam posicionamentos
próprios em relação ao debate em curso.
O segundo objetivo deste Comentário é reconstituir de modo sistemático a
biografia e o Corpus das obras de Michelangelo, através da análise da documentação
textual e visual disponível. No que se refere à documentação visual, uma ênfase especial
foi colocada na ilustração do Comentário, que remete a imagens da quase totalidade das
viii
obras de Michelangelo e, secundariamente, também de obras de outros artistas que com
estas se relacionam. A este Corpus de 960 imagens tem-se acesso no sítio
www.vasari.art.br, que deverá no futuro abrigar todas as imagens de obras existentes,
bem como seus estudos preparatórios, cópias e derivações, mencionadas nas Vite de
Vasari. A leitura do texto de Vasari e do comentário que ele engendra deve ser feita
concomitantemente com a consulta das imagens deste sítio. Ele se desenvolve, de resto,
em estreita interação com outro, também de nossa autoria – www.mare.art.br –, graças
ao qual as obras de Michelangelo são colocadas em perspectiva do ponto de vista da
história da iconografia.
* * *
Ao longo de seu desenvolvimento esta pesquisa recebeu apoio, que aqui
agradeço, da FAPESP e do CNPq. É com prazer também que agradeço meu
Departamento pelo apoio prodigalizado sob diversas formas no curso deste trabalho. A
Pina Ragionieri e ao Prof. Luciano Berti agradeço a generosidade e confiança de que
deram prova ao emprestar em 1996 ao Museu de Arte de São Paulo, quando de minha
atuação nesta instituição como Curador-Chefe, um conjunto apreciável de desenhos de
Michelangelo pertencentes à Casa Buonarroti, ocasião em que pudemos organizar um
proveitoso colóquio internacional consagrado ao artista.
Com Luciano Migliaccio, Maria Berbara, Jens Baumgarten, Daniela Cabrera,
Juliana Barone, Ricardo de Mambro Santos, Waldemar Gomes, Alexandre Ragazzi,
Elisa Byington, Letícia M. de Andrade, Marina Berriel, Fernanda Marinho e Patrícia
Dalcanale Meneses compartilho há anos o amor por Michelangelo, por Vasari e pela
arte italiana. Talvez não avaliem na justa medida o muito que este trabalho lhes deve.
Jens Baumgarten, Maria Berbara e Elisa Byington leram parte da Introdução. Luciano
Migliaccio dirimiu, além disso, muitas dúvidas de italiano. João Angelo Oliva corrigiu e
melhorou enormemente meu português. Luiz Arnaldo Ribeiro ocupou-se com sua
habitual competência e prestatividade da montagem dos sítios www.vasari.art.br e
www.mare.art.br. A todos esses amigos, renovo aqui minha gratidão. Agradeço também
aos meus alunos de graduação e pós-graduação pelo interesse e paciência com que
acompanham ano após ano meus cursos sobre Vasari e Michelangelo. Enfim, os
comentários da banca examinadora de meu concurso de Livre Docência a que submeti
este trabalho em março de 2010 foram de grande utilidade para corrigi-lo e aperfeiçoá-
lo.
À Sabine, Elena, Leon e Iza, dedico este trabalho.
ix
INTRODUÇÃO
1 – Origens
Giorgio Vasari nasce em Arezzo em 30 de julho de 1511 e morre em Florença
em 27 de junho de 157411
. Embora tenha passado parte de sua vida em Roma e em
Florença, cidades nas quais convive com muitas das mais agudas mentes de sua
geração, é a pequena Arezzo, com seus cinco mil habitantes, que permanece sua
referência primordial, sua família, seu lar e, quando vier a prosperar, seu foco de
investimentos imobiliários. A igreja em que se batizou, a belíssima Pieve, é a mesma
que escolherá por jazigo, junto de seus antepassados12
. Em Arezzo, radicara-se seu
bisavô, Lazzaro di Niccolo de’ Taldi, nascido em 1396 ou 1399 em Cortona (morto em
1468) e o mais antigo membro de sua família de que se tem notícia. Em sua Vita, Vasari
afirma, não decerto sem exagero, ter ele sido um “artista famoso em seu tempo, não
apenas em sua pátria, mas em toda a Toscana”, além de “amicíssimo de Piero della
Francesca”. Na realidade, seu nome não comparece nos registros corporativos dos
pintores de Arezzo e ao menos em sua declaração de bens ao censo (Estimo) de Cortona
de 1427 ele se declara um artesão fabricante de selas de cavalo, um sellaio13
. Em
princípio, tal declaração não exclui a possibilidade de uma atividade artística, naquele
tempo muito versátil, e Vasari afirma que Lazzaro adornava selas, sendo nisso “ótimo
mestre, afeito em pintar figurinhas com muita graça, as quais em tais selas muito bem se
ajeitavam”. É plausível que, radicado em Arezzo pouco antes de 1458, Lazzaro tenha
satisfeito a demanda “quase industrial” por “cassoni”, o que levou Roberto Longhi a
imaginar se o Maestro delle Nozze degli Adimari não seria, “quase por milagre”, o
próprio Lazzaro14
, o qual teria também assumido ao menos algumas das encomendas
artísticas que Vasari lhe atribui15
. Seja como for, parece evidente que o biógrafo projeta
no patriarca da família as qualidades cortesãs “reformadas”, que são de fato suas
próprias: “pessoa agradável e argutíssima no falar; e ainda que muito dedicado aos
prazeres, jamais se afastou da vida honesta”16
.
O filho de Lazzaro, Giorgio, “lavorò benissimo di rilievo”, isto é, teria sido um
ótimo modelador de relevos em terracota. Sua atividade principal, contudo, é a de
11
A bibliografia sobre Vasari é imensa. Entre os estudos biográficos e de análise de sua evolução
intelectual, ressaltam os de Del Vita [1930:51-75], Idem [1952:215-220], Boase [1979], Barocchi [1984],
Barolsky [1991], Rubin [1995], Le Mollé [1995], Kliemann [1997:10-25], Salem [2002] e Pozzi e
Mattioda [2006]. Mas é no próprio artista-escritor que se encontram os elementos de sua biografia,
consignados em três fontes principais: as Vite (que incluem uma autobiografia, 1568), as Ricordanze
(1527-1573) e a Correpondência (1532-1573). 12
Para as figuras, ver o sítio www.vasari.art.br. 13
Cf. Milanesi, ed. de G. Vasari, Vita di Lazzaro Vasari [1878-1885/1906:II,553], nota 1. 14
Cf. Longhi [1927/1980:101] e Idem [1940/1975:58] 15
Por exemplo, o afresco de S. Vicente Ferrer na igreja de S. Domenico em Arezzo e os afrescos
fragmentários de uma Crucificação e de cenas da Vida de S. Catarina, nos Servitas de Perugia, pintados
por volta de 1460. Cf. Boase [1979:4]. 16
Cf. Vasari, Vita di Lazaro Vasari. Salvo indicação em contrário, todas as citações das Vidas de Vasari
são tomadas do texto editado por Paola Barocchi e Rossana Bettarini, Le Vite de' piú eccellenti pittori,
scultori ed architettori nelle redazioni del 1550 e 1568. 6 volumes, Florença: S.P.E.S., 1966-1987,
disponível no site da Fondazione Memofonte de Florença (www.memofonte.it).
x
vasaio, ceramista poteiro, ofício que o leva a adotar o sobrenome Vasari17
. Giorgio era
hábil em modelar grandes vasos que, ao que parece, podiam passar por antigos, e seu
neto, ainda mais habilmente, nobilita essa competência, associando-a a um interesse
pelas cerâmicas etruscas, abundantes em território aretino18
, o que o teria levado após
1473, durante o episcopado aretino de Gentile de’ Becchi (o amigo de Ficino e
Poliziano, além de preceptor de Lorenzo de’ Medici), a “redescobrir o segredo da cor
vermelha e negra dos vasos de cerâmica que desde os tempos do rei Porsena os velhos
aretinos haviam trabalhado. E ele que era pessoa industriosa fez vários vasos grandes
em um torno, da altura de uma braça e meia, que ainda em sua casa se vêem”19
. Além
disso, não falta ao avô a magnificência de presentear Lorenzo de’ Medici, quando de
sua passagem por Arezzo em abril de 1483, com quatro grandes e autênticos vasos
etruscos por ele descobertos, o que, diz ele, sela para sempre os vínculos de clientela
(servitù) da família Vasari com os Medici. Os filhos de Giorgio seguirão o ofício do pai,
mas Antonio, pai de Vasari, morto na peste de 152720
, parece não ser particularmente
dotado, pois terá de suplementar suas parcas rendas como pequeno comerciante, tanto
assim que Vasari o definirá um “pouero cittadino e artigiano”21
. De Maddalena Tacci,
mãe do escritor, nada se sabe, além da data da morte em 1557 e de sua fisionomia
quando jovem, que lhe pinta de memória o filho em 1563.
A pretensão de Vasari de descender de uma estirpe de artistas “aretinos” tem,
sobretudo na edição Giuntina das Vidas, de 1568, o sabor de um discreto paralelo
histórico: se a história da arte italiana deve, nas Vidas vasarianas, confluir em
Michelangelo, a história da arte em Arezzo deve confluir no próprio Vasari, que, de
resto, como notado, não hesita em fazer de sua cidade um reflexo direto do
protagonismo florentino22
. Essa pretensão genealógica inscreve-se no proêmio da Vita
di Lazaro Vasari com força quase heráldica:
“É verdadeiramente grande o prazer dos que têm em um de seus antepassados e da própria
família alguém singular e famoso em uma profissão, de armas, letras ou pintura, ou em qualquer
nobre ofício.”
Ela retorna em uma passagem da mesma Vida de seu bisavô, segundo a qual ninguém
menos que Luca Signorelli (1450c.-1523) – o mais notável discípulo de Piero della
Francesca23
, o artista que conclui a gesta dos artistas da Segunda Idade e o único
imediato precedente pictórico de Michelangelo – é sobrinho de Lazzaro, “nascido de
uma sua irmã”24
. Mais que isso, Lazzaro te-lo-ia generosamente trazido de Cortona e o
introduzido no ateliê aretino de Piero, promovendo, assim, um dos mais fecundos
entroncamentos artísticos do Quatrocentos25
. Nenhum documento corrobora a relação
17
Cf. Milanesi, loc cit. 18
Cf. Giovanni Villani, Cronica, I, cap. 47, p. 72: “anticamente fatti per sottilissimi maestri vasi rossi con
diversi intagli... parevano impossibili a esser opera umana, e ancora se ne truovano” (antigamente feitos
por sutilíssimos mestres, vasos vermelhos com diversos entalhes... parecia impossível que fossem obra de
mãos humanas, e ainda se encontram). Já citado por Rubin [1995:61]. 19
Cf. Vasari, Vita di Lazaro Vasari. 20
Cf. Descrizione delle opere di Giorgio Vasari, autobiografia com que se concluem as Vite. 21
Cf. Frey, Lit. Nachlass [1923-1930:I,30], já citado por Rubin [1995:62]. 22
Cf. Bozzoli [2007:9-20], Melani [2007:39-49] e Torricini [2007:59-66]. 23
Cf. Vasari, Vita di Piero della Francesca: “foi seu aprendiz Luca Signorelli de Cortona, que o honrou
mais que qualquer outro”. Sobre Piero na “linhagem aretina” das Vidas, cf. Melani [2007:39-49]. 24
Veja-se Vita di Lazaro Vasari. Idem na de Signorelli: “tornandosi [Signorelli] in casa di Lazzaro Vasari
suo zio”. 25
Vita di Lazaro: “tirossi (...) in casa Luca Signorelli da Cortona suo nipote, nato d’uma sua sorella, il
quale, essendo di buono ingegno, acconciò com Pietro borghese acciò imparasse l’arte dela pittura”.
xi
de parentesco entre Signorelli e os Vasari26
, mas nenhum tampouco o refuta, o que
permite no limite pôr em dúvida, mas não descartar, o depoimento do biógrafo, ainda
que este seja evidentemente pro domo. Ainda menino, Vasari diz ter conhecido
Signorelli quando de sua passagem por Arezzo em 1519 ou em 152227
e deixa dele uma
recordação comovente, ao mesmo tempo em que o faz convocá-lo a assumir seu destino
de artista: “impara, parentino!” (aprende, parentezinho!), exclama ele, após conclamar o
pai a iniciá-lo nas artes do desenho28
. Tal recordação, além uma rápida menção a um
primeiro aprendizado autodidata, copiando os afrescos das igrejas de Arezzo e junto ao
artista de vitrais, Guillaume de Marcillat, então em Arezzo, é tudo o que nos informam
de sua infância as interpolações autobiográficas nas Vidas, bem como a autobiografia do
artista-escritor, antes de seu tirocínio como artista a partir de 1524 em Florença.
Antes, porém, de segui-lo a Florença é preciso ressaltar que Vasari teve mais
que uma simples iniciação nas letras. Vale registrar seu apego a dois mestres de
infância, Antonio da Saccone e Giovanni Lappoli, conhecido como Pollastra,
recordados nas Vite de Rosso, de Giovanni Antonio Lappoli (seu sobrinho) e de
Cecchino Salviati. Na primeira, sabemos que Rosso pintou em Arezzo, em uma
abóboda da igreja da Madonna delle Lagrime, quatro afrescos cujo programa foi-lhe
ditado “pelo belo engenho de messer Giovanni Polastra, canônico aretino e amigo de
Rosso”. Na segunda, Vasari recorda Pollastra como “uomo litteratissimo”, poeta e
comediógrafo. Na terceira, a de Salviati, estende-se mais, fornecendo algumas
informações importantes sobre sua formação:
“Em 1523, passando por Arezzo Silvio Passerini, cardeal de Cortona, como legado do papa
Clemente VII, Antonio Vasari, seu parente, levou Giorgio, seu filho maior, para fazer reverência
ao cardeal. Vendo aquele menino, então com menos de nove anos, pela diligência de messer
Antonio da Saccone e de messer Giovanni Polastra excelente poeta aretino, ter sido de tal
maneira introduzido nas primeiras letras que sabia de memória uma grande parte da Eneida de
Virgilio, quis ouvi-lo recitar; e vendo que havia aprendido a desenhar com Guilaume de
Marsillat, pintor francês, ordenou que Antonio mesmo conduzisse aquele menino a Florença”.
Vasari tinha algum comando do latim, como indicam inúmeras passagens das
Vite. Mas ainda que tivesse fresco na memória seu Donato, o manual escolar de latim
então em uso, e embora a memorização fosse uma prescrição pedagógica usual, ele
pode ter recitado não o texto latino, mas alguns versos da tradução italiana dos cantos
VI e XII da Eneida, realizada pelo próprio Pollastra, que permanece seu “médico”
espiritual, como demonstra uma magnífica carta de 1537 ao mestre, em agradecimento
por uma indicação aos monges do Ermo de Camaldoli, que lhe encomendam a
decoração de sua igreja. Como se verá adiante, alguns indícios cronológicos disponíveis
permitem conjecturar que Vasari concebeu neste retiro de Camaldoli as primeiras notas
das suas Vite, o que faria de Pollastra seu primeiro, ainda que indireto, inspirador.
26
Como fazem notar, por exemplo, Rubin [1995:61] e Henri, Kanter [2001:13]. 27
Em 1519, Signorelli recebe a encomenda do retábulo para a Compagnia di San Girolamo, que ele
entrega com pompa e circunstância em 1522. Vasari diz que a visita ocorreu por ocasião da entrega da
obra, mas, por outro lado, diz ter então a idade de 8 anos, um lapsus memoriae explicável pois Signorelli
deve ter vindo a Arezzo para assinar o contrato em 1519. 28
Vita di Luca Signorelli: “Disse muitas outras coisas de mim, que calo por saber não ter em grande parte
confirmado o juizo em que me teve aquele bom velho”.
xii
Florença (1524-1527)
Graças, como visto, a uma providencial relação de parentesco com Passerini
(não confortada por outra documentação), o adolescente de 13 anos “subiu” tão
repentinamente para Florença, onde as portas se lhe abrem de par em par. Para a cidade
que dominava havia muito Arezzo, Vasari é levado em maio de 1524, por ordem do
tirânico cardeal de Cortona, Silvio Passerini (1469-1529), já datário de Leão X e figura-
chave do poder em Florença, na qualidade agora de legado pontifical de Giulio de’
Medici, eleito papa Clemente VII em 3 de novembro do ano anterior29
. Vasari afirma ter
sido introduzido pelo cardeal de Cortona no ateliê de Michelangelo, com quem convive
“alguns meses”, antes deste partir para Roma, chamado por Clemente VII. A
informação, reiterada na autobiografia, na Vita de Salviati e na de Michelangelo, é
contradita pelos fatos, pois como nota Barocchi e como demonstra a correspondência de
Michelangelo, este parte para Roma entre 26 de novembro e 12 de dezembro de 1523, e
já se encontra de retorno em 22 de dezembro de 1523, antes, portanto, da chegada de
Vasari a Florença30
. É na realidade no ateliê de Andrea del Sarto (1486-1531), artista
muito próximo dos Medici e de Passerini31
, que o adolescente seguirá sua formação
artística, prosseguida entre 1525 e 1527 junto a Baccio Bandinelli e sempre em amistosa
emulação com Francesco Salviati.
Passerini instala Vasari na casa de Messer Niccolò Vespucci, nas imediações do
Ponte Vecchio32
. Cavaleiro de Rodes, Vespucci era membro de uma família de
mecenas, velha aliada dos Medici, sendo ele próprio figura de projeção no cenário
cultural florentino de então, retratado por Parmigianino e por Giulio Romano33
, além de
amigo de Ariosto, que se hospedara dez anos antes em sua casa, cenário de sua paixão
por Alessandra Benucci. Em uma carta de agradecimento por sua hospitalidade, escrita
de Roma em 8 de fevereiro de 1532, Vasari garante que jamais se esqueceria de ter sido
“educado em casa vossa” e recorda quanto deve a seu primeiro anfitrião por tê-lo
afastado das extravagâncias indecorosas de um “temperamento de artista”, por assim
dizer sodomiano34
ou pontormiano35
, modelo ao qual começava então a se contrapor um
ideal de artista-cortesão, de que Vasari far-se-á novo paradigma: “Agradeço-vos ainda
pelos confortos que me dá em ser modesto, amoroso, benigno e de bons costumes, não
estranho, lunático e bestial, como costuma ser a escola de nós todos”36
.
Este ideal de gentilezza implicava um aperfeiçoamento dos estudos e o jovem
seguirá a tal fim, por ordem do cardeal Passerini, os cursos diários de duas horas
29
Sobre o Cardeal Passerini, vide infra a Vida de Michelangelo e a nota 386 do Comentário. 30
Vide infra as notas 387 e 389 do Comentário. 31
Além de executar os afrescos de Poggio a Caiano (Homenagem a Lorenzo il Magnifico), Andrea
desenhara havia pouco para Passerini os cartões para os parati (paramentos) enviados pelo cardeal à
Catedral de Cortona. Cf. Rubin [1995:81]. 32
Vita di Francesco Salviati. 33
Giulio Romano inclui-o entre os membros da corte de Leão X no Batismo de Constantino, na Sala de
Constantino no Vaticano (1523-1524). O retrato atribuído a Parmigianino encontra-se em Hannover. 34
Na Vita de Sodoma, Vasari o toma como um caso exemplar de vida “extravagante e bestial”: “Se
Giovannantonio da Verzelli, que teve boa fortuna, tivesse tido (...) igual virtù, não teria no fim da vida,
que foi sempre extravagante e bestial, caído loucamente em míseras dificuldades”. 35
Paradoxalmente, Niccolò era um protetor de Pontormo. Na Vita deste, Vasari relata ter sido Niccolò
Vespucci a indicar o artista a Ludovico Capponi para a decoração de sua célebre capela em S. Felicita. 36
Cf. Trevor-Hoper [1976/1991:11-52] e Marques [2004:77-98]. Salvo menção em contrário, as citações
da correspondência de Vasari são feitas a partir da edição Le Opere di Giorgio Vasari con nuove
annotazioni e Commenti di Gaetano Milanesi. Volume VIII, Florença, 1885, reimpressão de 1906,
contendo as Lettere edite e inedite di Giorgio Vasari, pp. 227-515.
xiii
ministrados por Pierio Valeriano37
aos dois Medici bastardos sobre os quais repousavam
as esperanças da família: Alessandro (1510-1537), futuro duque de Florença, e o
talentoso Ippolito, de quem Vasari se torna um protégé e amigo até sua morte em 1535.
Na Vita de Francesco Salviati, Vasari recorda esta experiência:
“Entrementes, não deixando o estudo das letras, Vasari, por ordem do cardeal, ocupava-se todo
dia durante duas horas com Ippolito e Alessandro de’ Medici, sob Pierio, mestre deles e muito
competente”.
Umberto Baldini sublinha agudamente a importância do ensinamento de Pierio
Valeriano para Vasari, que de sua expertise dos hieróglifos teria aprendido “as
equivalências entre objetos, figuras e conceitos, tais como apareciam enunciadas em um
texto alexandrino de Horapolo em cuja nova redação o próprio Valeriano estava então
empenhado”38
. A bagagem literária que trazia de Arezzo somada aos benefícios
advindos da convivência com os círculos cultivados de Niccolò Vespucci devem ter
possibilitado a Vasari extrair um enorme proveito de seu treino metódico por três anos
com um humanista excepcional como Valeriano, cultor ademais do toscano, em cuja
controvérsia ele intervém com autoridade. Tal frequentação continuará em Roma, em
1532, em especial nas reuniões acadêmicas promovidas por Claudio Tolomei. Basta ler
as primeiras cartas conhecidas de Vasari, de 1532 e 1533, a personagens do calibre de
Niccolò Vespucci, Ottaviano de’ Medici, Paolo Giovio, Ippolito de’ Medici e Pietro
Aretino, para se dar conta de que seu comando da sintaxe e do léxico não são, bem
longe disso, o de um aprendiz. Além disso, se excetuarmos Michelangelo e talvez o
compatriota Leone Leoni (1509-1590), nenhum artista do século XVI possui em tão alto
grau os dotes de escritor de Vasari.
Uma pouco notada passagem desta Vida de Michelangelo demonstra de modo
cabal este excepcional desempenho na esfera das letras. Anexa a uma carta datada de 19
de setembro de 1554 (BR:MCXCVII), Michelangelo envia a Vasari o célebre soneto de sua
velhice Giunto è già il corso dela vita mia (Girardi 285). O biógrafo reproduz o poema
e prossegue:
“Vasari respondeu-lhe com uma breve carta (...) e com um soneto rimado de modo
correspondente ao que Michelangelo lhe enviara”.
Não é raro no século XVI esse gênero de exercício poético, mas ele evidentemente
supõe um virtuosismo a que se tem acesso apenas após um longo e intenso treinamento
na arte da versificação. É errôneo, portanto, considerar Vasari como um pintor que se
aventura na esfera das letras, como ele mesmo se qualifica em suas captationes
benevolentiae de praxe39
. Na realidade, em sua infância e adolescência seu treinamento
foi, em termos de rigor, continuidade e método, mais literário que artístico. Até 1530,
isto é, até os 19 anos, Vasari, como ele próprio relembra em sua autobiografia, “quase
não havia tocado nas cores” (ancorché io non avessi quasi ancor tocco colori). Ainda
37
Giovannni Pietro Dalle Fosse (1477-1558), chamado Pierio Valeriano, amigo de Egidio da Viterbo,
tradutor de Luciano e comentador de Catulo em Roma, é mais conhecido por suas duas obras,
Hieroglyphica (ed. 1556), suma sobre a simbólica egípcia (contendo uma passagem sobre o non-finito
michelangiano), e De litteratorum infelicitate, um diálogo iniciado na atmosfera deprimente de Roma em
1529, inacabado e publicado apenas em 1620. Cf. Gouwens [1998:35,147] e Gaisser [1999], Introdução.
Sobre Valeriano, vide infra as notas 621, 705 e 714 do Comentário. 38
Cf. Baldini [1994:11]. Sobre o Horapollo, cf. Boas [1951/1993]. 39
Por exemplo, na Conclusione della Opera agli Artefici et a’ Lettori da edição das Vite de 1550: “Não
porque espere ou me prometa o nome de historiador ou de escritor, no que jamais pensei, sendo minha
profissão pintar, não escrever”.
xiv
que, oito anos depois, sua Natividade de Camaldoli seja louvada em epigramas latinos
por Fausto Sabeo (outro indício da familiaridade do artista com eruditos de primeira
grandeza)40
, a verdade é que até os 29 anos, em 1540, data aposta sobre sua ambiciosa41
Ceia de S. Gregório para o refeitório do convento de S. Michele in Bosco em Bolonha,
a proficiência de Vasari nas letras ainda supera seu cabedal como pintor. É preciso
insistir sobre este ponto: nos anos 1540, Vasari não transita para as letras. Permanece
nelas, enquanto desenvolve paralelamente seus dotes de pintor e arquiteto42
.
Roma Clementina
A expulsão dos Medici e o restabelecimento da República florentina em maio de
1527 leva o tio de Vasari, Don Antonio, a chamá-lo de volta a Arezzo, onde, sobrevinda
em 24 de julho a morte do pai, vitimado pela “crudeltà della peste”, ele deve assumir o
sustento da família. Exceto por uma fuga para Pisa em outubro de 152943
, sob a ameaça
dos soldados imperiais de Filiberto d’Orange, que avançam sobre Arezzo em sua
marcha para Florença44
, e por uma breve estada em Florença nesse mesmo período, os
48 registros das Ricordanze, de outubro de 1527 a dezembro de 1531, confirmam o
melancólico relato que Vasari faz a Niccolò Vespucci de seu “ostracismo” aretino45
:
“e além de me ter de refugiar nos bosques a pintar santos para as igrejas do campo, por não se
poder como sabeis, habitar na cidade [de Arezzo], chorava, percebendo como mudara minha
situação da comodidade de que desfrutava quando ele [meu pai] estava vivo, para a
incomodidade sofrida após sua morte. Até que voltei, aqui em Roma, a servir o grande Ippolito
de’ Medici. (...) E ora vejo este senhor ainda mais empenhado em animar e apoiar, não só a mim,
que sou uma sombra, mas a quem se engenha e esforça por aprender toda sorte de virtude”.
As mencionadas estadas em Pisa e em Florença em 1529, seu encontro em Arezzo com
Rosso em 1528, que lhe ajuda com desenhos e conselhos46
, sua participação em
Bolonha na decoração dos arcos do triunfo para a coroação de Carlos V em 1530 e uma
40
Veja-se a autobiografia: “messer Fausto Sabeo, uomo letteratissimo et allora custode della libreria del
Papa, fece, e dopo lui alcuni altri, molti versi latini in lode di quella pittura”. 41
Ambição manifesta não apenas na complexidade compositiva e no acabamento mais refinado, mas em
incursões “arqueológicas” na representação da arquitetura. Assim, Vasari escreve nas Vite di Fra’
Giocondo e di Liberale [da Verona]: “Giovanni [Carotto] desenhou todas as plantas das antiguidades de
Verona, e os arcos triunfais e o Coliseu, desenhos revistos por Falconetto, arquiteto veronês, para adornar
o livro das Antiguidades de Verona, escrito segundo esses desenhos por messer Torello Saraina, que o
publicou. E Giovanni Caroto enviou-me-o a Bolonha – onde eu então decorava o refeitório de San
Michele in Bosco – (...) para que dele me servisse, como o fiz em um daqueles quadros”. 42
Cf. Barocchi [1984:117]: “Também no plano literário, Giorgio [Vasari] tinha méritos, decerto maiores
que os de Pontormo, [Battista] Tasso, Sangallo e Tribolo, sendo já conhecido como correspondente ativo
e apreciado”. E nota a versatilidade com que enfrenta gêneros diversos em sua atividade epistolar.
Também Rouchette [1959:19] insiste na solidez de sua formação no âmbito das letras, e Pozzi e Mattioda
[2006:3] não hesitam em afirmar que Vasari “era bem mais que um artista que sabe segurar em uma pena:
era um artista que havia feito estudos robustos e se atualizava também no que poderíamos chamar cultura
geral”. 43
Cf. Ricordanze 27: “Recordo como no dia 4 de outubro de 1529, fugi dos soldados que vinham assediar
Forença (...) e fui a Pisa e pus-me a trabalhar com Piero di Marcone, ourives florentino, por 14 grossi ao
mês, mais as despesas, acordando-nos em 28 grossi”. 44
Francesco degli Albizzi, comandante de uma força de dois mil soldados da República florentina
retirara-se de Arezzo em pânico ao anúncio da capitulação de Cortona, deixando Arezzo à mercê dos
imperiais, que ocupam a cidade em 18 de setembro de 1529. 45
O relato é substancialmente reiterado na autobiografia e na Vita de Francesco Salviati. 46
Cf. Vasari, Vita di Rosso, autobiografia, e Franklin [1994:229-261].
xv
viagem de trabalho ao monastério de Monte Oliveto são os únicos eventos que se
destacam nesse obscuro interregno, terminado em 1531 quando o cardeal Ippolito de’
Medici, “desejando que ele [Vasari] fizesse algum fruto na arte e tê-lo junto a si,
ordenou a Tommaso de’ Nerli, seu comissário em Arezzo, que o enviasse a Roma”47
.
A Roma em que o jovem de 20 anos vinha viver estava ainda ferida pelo Saque
de 1527, pela inundação do Tibre de 7 de outubro de 1530, quando o rio atinge as
escadarias da basílica de São Pedro, destrói várias pontes, cerca de 600 casas e palácios,
trazendo de volta a peste48
. A única força simbólica em torno da qual a cidade podia se
reerguer, Clemente VII, só retorna de Viterbo em outubro de 1528, após 17 meses de
ausência. Mas suas já parcas energias diminuem ainda mais com a grave enfermidade
que o acomete em 8 de janeiro de 1529, e que os médicos, no dizer de Berni, só fazem
piorar49
. Mesmo recuperado a partir de março, o foco de sua atividade até ao menos
finais de 1530 não será a revitalização de Roma, mas a reconquista de Florença
republicana, em troca da qual entrega a Carlos V o que lhe resta de poder e riquezas50
,
selando uma aliança que inclui o casamento (efetivado em 1536) da filha natural deste,
Margarita de Áustria51
, com Alessandro de’ Medici, seu filho (formalmente, filho
natural de Lorenzo de’ Medici, duque de Urbino)52
.
Isto posto e malgrado o impacto da barba lutuosa e encanecida do papa53
, Roma
não entende adotá-la. A corte cardinalícia, conclamada a voltar à Urbe pela encíclica de
outubro de 1528, mostra-se pronta a retomar seu ritmo e modos de vida. Vida de corte,
reuniões literárias e libertinagem entrelaçam-se inextricavelmente. Funda-se em 1531 a
Accademia de’ Vignaiuoli cujo título é já um programa e que congrega, na residência do
mantuano Uberto Strozzi (sobrinho de Baldessare Castiglione e proprietário de
fragmentos do cartão da Batalha de Cascina de Michelangelo), literatos como o prelado
Ludovico Beccadelli, Giovanni della Casa, que acabara de adquirir seu título de clérigo,
Agnolo Firenzuola, Francesco Maria Molza e Francesco Berni54
. Conserva-se uma carta
47
Cf. Vasari, Vita di Francesco Salviati e autobiografia. 48
Cf. Gregorovius [1859-72/1973:III,2566]. 49
Francesco Berni, Rime (XXXVIII): Sonetto a Papa Chimente VII Malato. No início de seu De
Litteratorum infelicitate [1529/1999:81], Piero Valeriano refere-se aos vãos rumores acerca de sua morte
(obitu vanis rumoribus). 50
Além de ceder ao imperador, no tratado de Barcelona, ratificado em 29 de junho de 1529, a investidura
no reino de Nápoles, Clemente concorda em pagar a guerra contra Soliman na Hungria com um quarto
dos proventos da Igreja, tal como o fizera o papa Adriano VI (1521-1522), outrora preceptor de Carlos V.
Clemente VII ilude-se com as concessões de momento do imperador, que em 21 de abril de 1531 declara
“nulas as pretensões romanas sobre Modena, Reggio e Rubiera”. Sobre os termos desse tratado, veja-se
Guicciardini [1537-40/1975:III,922-965]. 51
Em 1529, Margarita de Áustria, a futura “Madama” de que o Palazzo Madama (sede atual do Senado
da Itália) e a Villa Madama em Monte Mario terão o nome, tem então apenas 7 anos. Viúva de
Alessandro, casa-se em 1538 com Ottavio Farnese (1524-1586), dedicatário dos Elogia de 1546 de Paolo
Giovio. 52
Sobre Alessandro e Clemente VII, vide infra as notas 419, 469 e 470 do Comentário. 53
Clemente VII retorna a Roma com a barba crescida e embranquecida, signo dos sofrimentos a ele
infligidos pelo Saque. Assim se faz representar em diversos retratos de Sebastiano del Piombo, inclusive
sobre ardósia, material alusivo à perenidade, como o são os retratos da Galleria Nazionale de Parma, do
Museu de Nápoles e do Getty Museum, 105,5 x 87,5 cm, inv. 92.PC.25. Solicita, além disso, a
Michelangelo, que ajude Bugiardini a retratá-lo com idêntico aspecto, como se deduz de duas cartas de
Sebastiano ao escultor, de 22 de julho (BR:DCCCXX) e de 3 de outubro de 1531 (BR:DCCCXXVIII).
Por essas cartas, sabe-se que Sebastiano realizou diversas versões desse retrato barbado do papa. Além
das versões de Parma, Los Angeles e Nápoles, um retrato desse tipo, sempre de Sebastiano, encontra-se
no Kunsthistorisches Museum de Viena, óleo sobre tela, 92 x 74 cm, cf. Lucco [1980:117]. 54
Cf. G. Manganelli, “Premessa” a Giovanni della Casa, Galateo [1977/1988:6], que cita a respeito dessa
brigata de poetas uma carta de Beccadelli, mais tarde autor de uma célebre biografia de Petrarca, além de
arcebispo de Ragusa na Dalmácia. Sobre Uberto Strozzi, ver infra o texto de Vasari e a nota 192.
xvi
de Giovanni Mauro d’Arcano, secretário do cardeal Cesarini, a Gandolfo Porrino,
secretário de Giulia Gonzaga, relatando uma noitada oferecida em 1531 aos poetas por
Giovanni Antonio Muscettola, regada a vinho de Pontano, presentes Umberto Gambara,
bispo de Tortona e Giovanni Tommaso Sanfelice, bispo de Cava55
. O fasto de Roma era
garantido, sobretudo, pelo primo em segundo grau de Clemente VII, o jovem e
impulsivo Ippolito de’ Medici (1511-1535), recém-nomeado cardeal, cuja virilidade
mundana apontava para um renovado clima de magnificência. Poeta e músico talentoso,
tradutor de Virgílio, amante régio de Giulia Gonzaga e promotor de caçadas e festas
suntuosas, Ippolito é o emblema da recuperação da grande corte de Roma, na qual
mantinha, segundo Vasari, “infiniti virtuosi, molti scultori e pittori”56
. Para ele, Vasari
faz (perdidas) pinturas de tema mitológico, entre as quais uma Vênus com as Graças,
um “sátiro libidinoso espreitando Vênus e as Graças”, terminando em junho de 1532
uma imensa tela de mais de 5 metros (“lunga dieci braccia”) representando uma
Bacanal com uma batalha de Sátiros, obra que dá a seu protetor, “por ser alegre e
cômica, sumo prazer” (“per essere gioiosa e ridicula, ha dato sommo piacere al
cardinale”). De pouco efeito é, assim, o Harpócrates, signo do silêncio introspectivo,
que Vasari lhe pinta, a pedido de Clemente VII, “per esempio del cardinal nostro”57
.
Na realidade, malgrado suas feridas estarem ainda abertas, a Roma que Vasari
vê recupera-se a uma imprevista velocidade. Restauravam-se ou reconstruíam-se aos
poucos os palácios atingidos pelos incêndios e depredações do Saque, como o
magnífico palácio da Via Papale que Baldassare Peruzzi (1481-1536) projeta em 1532
para Piero Massimo, hoje conhecido como Palazzo Massimo alle Colonne.
Simultaneamente, seus irmãos, Angelo e Luca Massimo, encomendam a Giovanni
Mangone e a Antonio da Sangallo, o Jovem seus palácios ao lado e em frente da obra-
prima de Peruzzi58
. No Vaticano, Montorsoli realizava neste mesmo ano ou em 1533 as
integrações do braço direito e do antebraço esquerdo do Apolo do Belvedere59
. Roma
voltava a atrair artistas como Francesco (Cecchino) del Salviati, que se hospeda desde
1531 no Palácio de seu protetor, o cardeal Giovanni Salviati, de quem tomará o nome.
Mas a Urbe atrai também artistas do norte da Europa. Entre 1530 e 1532, Michiel Coxie
trabalha a afresco em duas capelas de S. Maria dell’Anima, igreja da “nação” alemã, e
Maarten van Heemskerck aí permanece entre 1532 e 1536, estada de que os famosos
desenhos de Berlim, representando esculturas antigas no contexto dos palácios romanos
desses anos, são o testemunho mais precioso60
. Philibert de L’Orme, atraído mais tarde
pela arquitetura florentina de Michelangelo61
, encontra-se em Roma em 1533, aos 19
anos, e aí permanece até 1536, protegido pelos Farnese, por Marcello Cervini e pelo
cardeal Jean du Bellay. Ainda vivo Clemente VII, outro francês explora, com de
55
Homem de confiança de Carlos V e amigo de Paolo Giovio, que o faz um dos interlocutores de seu
Dialogus de viris litteris illustribus (1527), Muscettola é membro de uma ilustre família napolitana. Sobre
esta noitada e a carta em questão, cf. Price Zimmermann [1995:116]. 56
Cf. Vasari, Vita di Alfonso Lombardi Ferrarese, di Michelagnolo da Siena e di Girolamo Santacroce
Napoletano scultori e di Dosso e Battista pittori ferraresi. 57
Carta a Ottaviano de’ Medici de 13 de junho de 1532. Para os quadros citados, veja-se também a
autobiografia. 58
Cf. Frommel [2007:152]. 59
Sobre Giovanni Angelo Montorsoli (1507c.-1563), escultor muito estimado por Michelangelo e a quem
Vasari dedica uma biografia muito elogiosa, vide infra o texto e as notas 395, 414, 421, 422, 449, 457,
462 e 741 do Comentário. Sobre a restauração do Apolo, cf. Vasari, Vita de Montorsoli e Brummer
[1970:50]. 60
Cf. Dacos, in Dacos, Meijer [1995:22-25]. 61
Cf. Guillaume [1987:279-288].
xvii
L’Orme, as ruínas romanas: Rabelais, cujo Gargantua, publicado em 1534, acusa o
estudo metódico da arquitetura romana62
.
De resto, mesmo não sendo um mecenas comparável a Leão X, Clemente VII
não renuncia a certas iniciativas no âmbito da arquitetura e das artes em geral,
principalmente no que se refere à restauração de numerosas igrejas63
. Giovanni da
Udine restaura em 1531 os mosaicos da abside de S. Pedro, Jacopo Sansovino trabalha
em S. Giovanni dei Fiorentini, Cellini brilha na casa da moeda do papa64
e Sebastiano
del Piombo, que, segundo Lodovico Dolce65
, restaura então as Stanze de Rafael, é
agraciado com a rentável sinecura de Bullarum plobator, desenvolvendo então uma
atividade de retratista, essencial para a vida da corte. Não apenas Sebastiano, mas
também Vallerio Belli Vicentino é chamado a Roma por Giovio e o cardeal Salviati,
onde desenvolve importante atividade de retratista, realizando inclusive o retrato de
Clemente VII66
. Em Marselha, em 1533, as núpcias de Catarina de’ Medici com o
segundo filho de Francisco I, Henrique (1519-1559), então duque d’Orléans (e a partir
de 1547 Henrique II, rei de França), oferecem ao papa a ocasião de lhe encomendar em
inícios de 1532 um de seus presentes de núpcias, o famoso cofre em prata dourada
decorado com 21 relevos em cristal de rocha, representando cenas da vida de Cristo,
hoje em Florença, Museo degli Argenti67
. Por sua iniciativa, a Universidade é restaurada
e vários eruditos começam a retornar à cidade. Roma começa a reordenar-se
simbolicamente sob a égide do Arcanjo Miguel, como notou Chastel68
, e é ainda sob o
pontificado clementino, em 1533, que se retoma o projeto dos afrescos michelangianos
da Capela Sistina, os quais, como lembra Vasari, incluíam então não apenas o Juízo
Final, mas ainda, na parede oposta da Capela, outro triunfo do Arcanjo Miguel: a
Queda dos Anjos Rebeldes69
.
A segurança, o conforto material e os estímulos intelectuais e artísticos que o
cardeal Ippolito proporciona a Vasari em Roma, desde inícios de 1532, são
excepcionais70
. Único Medici, ao lado de Ottaviano, com quem Michelangelo entretém
relações de amizade na idade adulta, Ippolito é então um dos mais refinados mecenas de
Roma71
. Mesmo quando parte como legado papal para a Hungria, no comando de suas
tropas na guerra contra os turcos (junho de 1532), o cardeal deixa-o aos cuidados de seu
maggiordomo, Domenico Canigiani. Obcecado pela ideia de mostrar a seu protetor
62
Cf. Blunt [1958:15-28]. 63
Cf. Pastor [1895-1915:X, 350-354]. 64
Em 16 de abril de 1529, Cellini é nomeado pelo papa: “mestre das impressões da casa da moeda”, com
remuneração de 6 scudi ao mês. Cf. La Vita, I, xlv, ed. cit., p. 105. 65
Cf. Dolce [1557/1960]: “E tendo os soldados partido [do saque de Roma] e o papa Clemente retornado,
desgostoso que tão belas cabeças permanecessem arruinadas, as fez repintar por Sebastiano”. 66
Cf. Vasari, Vita di Valerio Vicentino. 67
Veja-se a propósito a carta de Pietro Bembo a Belli de 12 de março de 1532, na qual se refere à
“Cassetta Medici” como já terminada, apud Gasparotto [1996:186] e Cox-Rearick [1995:389-391]. Vide
infra a nota 473 do Comentário. 68
Cf. Chastel [1983:248-304]. 69
Sobre esses afrescos, não executados, vide infra o texto de Vasari e as notas 275 e 464, 465 e 466 do
Comentário. 70
Como o asseguram suas cartas a Vespucci e a Ottaviano de’ Medici, de 8 de fevereiro e 13 de junho de
1532. É inverossímil a passagem de Cellini (La Vita I,lxxxvi) em que se jacta de ter hospedado Vasari
(Giorgietto Vassallario, como ele o chama pejorativamente) em Roma, tê-lo mantido e o ter em seguida
introduzido na casa de Ippolito. Cellini tenta vingar-se da calúnia que imputa a Vasari, sob pressão de
Ottaviano de’ Medici, segundo a qual ele teria dito desejar ser o primeiro a tomar de assalto as muralhas
de Florença, ao lado dos republicanos. Sobre as tumultuadas relações de Vasari com Cellini, cf.
Calamandrei [1952:195-214] e vide infra as notas 742 e 755 do Comentário. 71
Sobre Ippolito e suas relações com Michelangelo, vide o poema Girardi 85 e infra o texto e as notas
386, 470, 686 e, sobretudo, 672 do Comentário.
xviii
progressos tangíveis no desenho, o artista vara as noites, untando-se os olhos para
espantar o sono com óleo de lamparina, o que quase lhe custa a vista, salva pelos
cuidados médicos de Paolo Giovio72
.
Antes de partir, Ippolito recomenda Vasari a Alessandro de’ Medici73
, que o
manterá em Florença até 1537, data de seu assassinato. Desde logo, apropria-se em
finais de 1532 da primeira pintura conservada de Vasari, hoje na Casa Vasari em
Arezzo, pintada originariamente para o cardeal: o Cristo levado ao sepulcro, obra em
que se acusa a frequentação de Bandinelli, um estudo detido da Deposição74
de
Sansepolcro de Rosso Fiorentino e, sobretudo, do Cristo da Pietà romana de
Michelangelo.
O projeto de retornar a Florença para passar o verão, a chamado de Alessandro,
malogra quando, debilitado talvez pelo esforço, o artista contrai malária após o dia 13
de junho de 1532. A crise converte-se em febre quartã, não sem antes quase o matar,
como matara seu irmão de 13 anos na peste de Florença de 1530. De Arezzo, onde se
recolhera aos cuidados da mãe, Vasari escreve em 4 de setembro a Paolo Giovio, que
havia transmitido ao cardeal Ippolito o rumor de sua morte, pedindo-lhe que a
desmentisse75
. Anexa à carta, um desenho alegórico destinado a divertir o cardeal
representa uma alegoria intitulada “A árvore da Fortuna”, na qual se encontra a única
alusão àquela Roma ruinosa de Clemente VII76
, e talvez a única sátira política e dos
costumes em geral nascida da pena de Vasari. Do alto de sua árvore, a Fortuna vendada
deixa cair ao acaso seus frutos sobre diversos animais que encarnam a fauna humana77
:
“e cai o reino papal sobre a cabeça de um lobo, e ele vive e administra a Igreja com aquela sua
natureza; tal como uma serpente, o Império envenena, destrói e devora os reinos, e faz com que
todos os povos seus percam as esperanças”.
Ao final da carta, Vasari envia suas saudações “aos amigos meus de vossa academia”.
Prisioneiro com o papa em Castel Sant’Angelo em 1527, e em seguida hóspede de
Vittoria Colonna em Ischia, Giovio retorna a Roma com o retorno de Clemente VII para
se tornar conselheiro do cardeal Ippolito desde sua nomeação em 1529. Líder de um
impressionante entourage de homens de letras, Giovio participa como protagonista de
um cenáculo nascido das cinzas da velha Academia romana de Angelo Colocci e de
Johann Küritz, desbaratada pelo Saque de 152778
. Trata-se de um sodalício que
continuará a existir de modo substancialmente inalterado após a morte de Clemente VII
(1534) e de Ippolito (1535), posto que as mesmas personagens serão absorvidas na
órbita de Paulo III e de seu homônimo neto, Alessandro Farnese (1520-1594), feitos
papa e cardeal em 1534. Dele participam Francesco Maria Molza79
, Francesco Berni
72
Carta a Ottaviano de’ Medici de 13 de junho de 1532: “volendo cacciare il sonno dagli occhi, mentre
disegnavo la notte, me gli ugnevo con l’olio della lucerna; che, se non fussi stato la diligenza e medicina
di monsignor Iovio, facevo scura la luce mia innanzi a chiuder gli occhi al sonno della morte”. 73
Mesma carta: “m’ha lassato Sua Signoria Reverendissima una lettera costì al signor duca Alessandro” 74
As relações com Rosso foram notadas por Baldini [1994:12]. Vasari não pinta, contudo, seu Cristo nu,
como o fizera Rosso em sua Deposição para a Confraternità di Santa Croce em Sansepolcro, nudez
considerada “muito indecente” pelo bispo de Sarsina em 1583. Cf. Franklin [1994:164]. 75
A recordação da malária retorna na autobiografia. 76
A oposição entre a Roma ruinosa de Clemente VII e a Roma novata de Paulo III (1534-1549), a Roma
dos Farnese, delineia-se nestes termos no discurso fúnebre de Paulo III pronunciado por Roncolo Amaseo
em 1549. Cf. Arasse [1986:50-59]. 77
Carta a Paolo Giovio de 4 de setembro de 1532. O texto dessa carta de Vasari a Paolo Giovio, seminal
na história da iconografia italiana da Fortuna, é parcialmente transcrito infra na nota 427 do Comentário. 78
Cf. Price Zimmermann [1995:115]. 79
Poeta de Modena, mais conhecido por sua vida dissoluta e por suas “dottissime” Stanze sul ritratto
della Gonzaga – a partir do retrato de Giulia Gonzaga por Sebastiano del Piombo, pintado em junho de
xix
(1497-1536)80
, Giovanni della Casa, Gabriele Cesano e Claudio Tolomei, entre outros.
Também Vasari o frequenta no primeiro semestre de 1532 e continuará a fazê-lo
quando, de retorno a Roma em 1540, e antes mesmo de sua viagem a Veneza em 1542,
foi introduzido no convívio da corte. Já na carta de fevereiro de 1532 a Vespucci, Vasari
anuncia, orgulhoso, o benefício da proteção de Paolo Giovio, secundada pela de seus
secretários, Gabriele Cesano (1490-1568) e Claudio Tolomei (1492-1556), dois dos
maiores eruditos da corte de Ippolito:
“Os meus protetores são monsenhor Giovio, M. Claudio Tolomei e o Cesano, que, por serem
nobres e virtuosos, favorecem-me, amam-me e educam-me como a um filho”.
Jurista de formação, epistológrafo abundante e admirado, Claudio Tolomei81
será
importante para Vasari possivelmente pelo exemplo de sua língua, mas também, no
início dos anos 1540, por introduzi-lo na leitura de Vitrúvio, foco das atividades de sua
Accademia della Virtù82
.
Sob Alessandro (1533-1536)
Na carta a Ottaviano de’ Medici de junho de 1532, Vasari queixa-se do
desorientamento e do desânimo que lhe causa a ausência de Ippolito. Colhido em julho
(ou finais de junho) pela malária que o obriga a deixar Roma por Arezzo, ele retorna
(após um brevíssimo interregno em Roma em novembro) em finais de 1532 à atribulada
Florença, onde o chamara o duque Alessandro. De lá, ainda em dezembro de 1532,
Vasari escreve a Ippolito na esperança de retornar ao seu convívio tão logo o cardeal
voltasse para Roma. O cardeal está já de retorno a Roma em 1533, mas não chama
Vasari para não afrontar Alessandro, que agressivamente se apropriara em finais de
1532 do Cristo levado ao sepulcro, dedicado ao cardeal, e determinara que
permanecesse a seu serviço83
. Vasari não é Cellini, que em inícios de 1535 retornara a
Roma desafiando a ordem expressa de Alessandro84
. Resta-lhe, portanto, servir ao
duque que o confia a Ottaviano de’ Medici (1482-1546)85
, figura paternal para o artista,
1532 (coleção Earl of Radnor) –, Molza (1489-1544) é um amigo de Vasari, de Varchi e de
Michelangelo, sendo ao que parece o primeiro a louvar por escrito seu Juízo Final, antes mesmo de seu
término em 1541, vide infra a nota 500 do Comentário. Suas relações com Ippolito são mencionadas por
Giovio em uma passagem de seu Dialogo dell’imprese militari e amorose: (...) “del poeta Molza,
modenese, il qual fu molto amato e largamente beneficato così dal prefato [Ippolito de’] Medici come da
questo Farnese”. 80
De retorno a Roma em 1532, Berni vive brevemente no séquito de Ippolito. Dos poemas reunidos nas
Rime, os de número 56, 57 e 58 (S'i' avessi l'ingegno del Burchiello) são dedicados ao cardeal. 81
Para Claudio Tolomei (1492-1556), ardoroso defensor da República de Siena e amigo de Michelangelo,
conforme atestam Vasari e Ascanio Condivi [1553], vide infra o texto de Vasari e a nota 680 do
Comentário. Cf. Croce [1945:II,66]. 82
Cf. Pagliara [1986:67], Rubin [1995:94]. 83
Em uma carta a Antonio di Pietro Turini, um amigo de seu pai, de março de 1534, Vasari afirma que o
duque: “mi ha chiesto al cardinale per suo” (pediu-me ao cardeal). 84
La Vita I, lxxxi-lxxxii [1566/1973:175-177]. 85
Ottaviano di Lorenzo di Bernardetto de’ Medici (1482-1546) é tesoureiro (depositario) de Alessandro.
Não nascido no ramo ducal, a ele se liga ao casar-se com Francesca Salviati (vide nota sucessiva), filha de
Jacopo Salviati e de Lucrezia de’ Medici, filha de Lorenzo il Magnifico (1449-1492). Ottaviano é,
portanto, sobrinho do papa Leão X, também ele filho de Lorenzo il Magnifico e primo em segundo grau
de Alessandro. Com Francesca Salviati, terá um filho, Alessandro (1535-1605), papa Leão XI. Cf.
Bracciante [1984:1-29].
xx
a ponto deste se definir seu “figliuolo” em sua autobiografia e, na Vida de Andrea del
Sarto, “fanciullo e creatura di messer Ottaviano”. O tesoureiro dos Medici é de fato um
vigoroso protetor dos artistas em Florença, “compadre” de Michelangelo como afirma
Vasari em sua biografia do mestre, além de colecionador refinado86
, proprietário de um
perdido cartão juvenil de Leonardo da Vinci87
e apreciador de Pontormo, a quem ele
encomendara os afrescos de Poggio a Caiano e de quem possui o retrato de Cosimo, nos
Uffizi88
.
Em sua carta a Ippolito, Vasari diz ser bem tratado por Alessandro, que o
acomoda confortavelmente e trata-o com familiaridade, pois, como visto, tivera-o por
condiscípulo nos cursos diários de Pierio Valeriano, entre 1524 e 1527. Temperamento
lúbrico, destituído de interesses elevados, odiado em Florença por seus malfeitos89
e
pela violência de seus esbirros – Alessandro Vitelli, Alessandro Corsini, entre outros –,
Alessandro é retratado por Vasari entre 1533 e 1534 segundo o modelo michelangiano
do retrato do “altivo” Giuliano na Sacristia Nova, mas a partir de um programa muito
diverso90
, elaborado pelo próprio artista e descrito em detalhe em uma carta a Ottaviano
de’ Medici, não-datada, mas de 1534. Ela merece ser citada extensamente, pois define
de uma vez por todas a nova postura do artista diante do Príncipe que vinha surgindo
nesses anos, da qual Vasari faz-se paradigma:
“Esforço-me em trabalhar e aprender quanto possível, para não ser menos grato a Alessandro
Medico que Apeles ao magno Macedônico. Eis, aqui, o significado do quadro. As armas brancas,
lustrosas, são como o espelho do príncipe, que assim deve ser para que seus povos possam nele
se espelhar nas ações da vida. Armei-o todo, deixando à mostra apenas a cabeça e as mãos,
desejando mostrá-lo preparado por amor da pátria a toda e qualquer defesa pública e privada.
Senta-se mostrando o poder e tendo em mãos o cetro do domínio todo em ouro, para reger e
comandar como príncipe e capitão. Tem atrás de si, por ser passado, uma ruína de colunas e
edifícios alusivos ao assédio da cidade de 1530, através da qual se vê por uma brecha aberta uma
Florença que, contemplada atentamente, dá sinal de seu repouso, envolta que está em uma
atmosfera toda serena. A cadeira redonda sobre a qual se senta, não tendo nem início nem fim,
mostra o seu reinar perpétuo. Aqueles três corpos cortados, três por cada perna, número perfeito,
são seus povos que, guiando-se segundo a vontade de quem acima os comanda, não tem braços
nem pernas. Essas figuras convertem-se embaixo em uma pata de leão, parte do signo de
Florença. Há aí uma máscara embridada por certas faixas que representa a Volubilidade,
desejando-se com isso mostrar que aqueles povos instáveis estão ligados e imobilizados pelo
castelo construído e pelo amor que os súditos têm por Sua Excelência. Aquele pano vermelho
posto sobre o assento onde estão os corpos cortados, mostra o sangue derramado daqueles que se
86
Ottaviano possuía, segundo Vasari, obras de Lorenzo di Credi, Fra Bartolomeo, Andrea del Sarto,
Bugiardini, Andrea Schiavone, Rustichi, Alfonso Lombardi e o famoso retrato de Leão X por Rafael,
além de uma cópia por Tribolo da Madona da Capela Medici de Michelangelo (vide infra nota 416 do
Comentário), conservadas em sua “bellissima villa di Campi” e em sua residência, onde mantinha “molte
altre pitture moderne fatte da eccellentissimi maestri”. Sobre sua casa, estabelece-se a Compagnia dello
Scalzo, que reunia artistas florentinos, pois Ottaviano “entendia daquele ofício e era amigo e protetor de
todos os artistas de nossas artes, deleitando-se mais que outros em ter suas casas adornadas com obras dos
mais excelentes”. Vejam-se as Vidas de Fra Bartolomeo, Lorenzo di Credi, Andrea del Sarto, Sebastiano
del Piombo, Battista Franco e Giovan Francesco Rustichi. Cf. Bracciante [1984:29-91]. 87
Representando o Pecado Original, preparatório de uma tapeçaria destinada ao rei de Portugal (D.
Afonso V ou D. João II?), jamais, entretanto, tecida. Cf. Vasari, Vita de Leonardo da Vinci., 88
Para as relações de Ottaviano com Pontormo, cf. Berti [1973:94] e Costamagna [1994:42,150].
Ottaviano encomenda a Pontormo (ou a Bronzino) o retrato de sua esposa, Francesca Salviati, hoje no
Städelsches Kunstinstitut de Frankfurt. Para a atribuição a Bronzino, cf. Costamagna [1994:296]. 89
Cf. Capponi [1875/1876:III,327-29] e De Armas [1982:172-179]. Vide infra as notas 419, 469 e 470 do
Comentário 90
Sobre a associação entre a ideia de Vida Ativa e a estátua de Giuliano de’ Medici, duque de Nemours,
na Sacristia Nova, executada entre 1525 e 1526 (mas terminada nos detalhes por Giovanni Angelo
Montorsoli em 1533), vide infra o texto da biografia e a nota 422 do Comentário.
xxi
insurgiram contro a grandeza da ilustríssima casa dos Medici; e uma parte dele, cobrindo uma
coxa do armado, mostra que também estes de casa Medici tiveram seu sangue derramado na
morte de Giuliano e nas feridas de Lorenzo, o Velho. (...). O elmo que não traz na cabeça, mas
no chão, é a eterna paz, que, procedendo da cabeça do príncipe por seu bom governo, mantém os
povos seus cheios de alegria e amor. Eis, Senhor meu, o que souberam fazer meu pensamento e
minhas mãos (...)”.
O retrato do Museo Mediceo é em todos os sentidos inferior aos de Pontormo em
Chicago e Philadelfia, pintados após setembro de 153491
. Mas não há mais desabrido
elogio do absolutismo político em toda a literatura política do século XVI que o que
“souberam fazer o pensamento e as mãos” de Vasari nesta obra e nesta carta a
Ottaviano. O Alessandro de Vasari parece, ironicamente, uma resposta a Maquiavel,
que, como se verá adiante, detectava na incapacidade florentina de superar seus
conflitos internos em prol de uma estável unidade política, o problema histórico maior
de sua cidade e da Itália. Essa incapacidade levou Florença a uma nova situação
histórica da qual Alessandro é o signo, e Vasari, o maior intérprete.
Compatibilizar sua própria servitù em relação aos Medici com o entusiasmo
sagrado que nele suscita a altivez de Michelangelo em face dos Medici, e em particular
de Alessandro, será uma das maiores habilidades de que dará prova, mais tarde, o
biógrafo. Tanto mais porque Vasari não podia ignorar que Michelangelo, nos últimos
quatro anos, fora submetido à clandestinidade para fugir à morte pelas mãos de
Alessandro Corsini, por ordem do duque Alessandro (agosto de 1530), sofrendo em
seguida o saque e a depredação de sua casa, além de extorsões, censura de sua
correspondência e condições de trabalho próximas à escravidão, que o levam ao
esgotamento físico e nervoso92
. Ademais, como informa adiante a biografia, recusara-se
com risco de tremendas retaliações a fazer ou mesmo a supervisionar o projeto tão
acalentado por Alessandro, o “castello” de que fala Vasari acima, isto é, a Fortezza di
San Giovanni Battista, ou Fortezza da Basso, realizado por Antonio da Sangallo o
Jovem93
, masmorra dos republicanos na qual Filippo Strozzi se suicidaria como novo
Catão de Útica em 153894
.
Em sintonia com sua construção conceitual e visual do perfeito tirano, Vasari
termina em 1534 no Palazzo di Via Larga95
a decoração em estuques e grisailles
iniciada por Giovanni da Udine, ainda sob Leão X, com as “imprese de gl’uomini e
signori di quella casa illustrissima”. Nos arcos inferiores da abóbada, deixados vazios
por Giovanni da Udine, Vasari, por encomenda do duque96
, completa a série dos Medici
ilustres com quatro cenas (perdidas) da vida de Júlio César, alusivas à magnanimidade
91
Alessandro faz-se representar aí de preto, em sinal de luto pela morte de Clemente VII, ocorrida em
setembro de 1534. Na autobiografia, Vasari lembra da dificuldade encontrada em imitar o brilho dos
metais da armadura, sendo aconselhado por Pontormo que lhe recomenda abandonar a pintura “dal vero”,
pois a biacca será sempre menos lúcida que o ferro. 92
Três poemas de Michelangelo desses anos (Girardi 51, 52 e 53) refletem pensamentos suicidas. Vide
infra as notas 421, 448, 449 e 450 do Comentário. 93
Vide infra a nota 547 do Comentário. 94
Vasari condensa seu desprezo pelos republicanos em uma carta a Pietro Aretino de 15 de julho de 1534,
laudatória da Fortezza da Basso: “estes são similares ao tição apagado na água, que no começo produz
fumaça e calor e, exposto ao ar, com o tempo se anula”. Vide infra as notas 224 e 470 do Comentário. 95
A residência dos Medici, hoje Palazzo Medici-Riccardi, sede da Prefeitura, em Via Cavour. Vide infra
as notas 56, 374 e 402 do Comentário. 96
Carta a Antonio di Pietro Turini de março de 1534: “desejando [o duque] que eu permaneça aqui a
pintar uma sala no palácio dos Medici”. Vide infra a nota 376 do Comentário
xxii
do perdão do papa aos republicanos, virtude tipicamente cesariana97
. Com essa
decoração nascia algo de novo na história de Florença. De fato, desde o Ad Petrum
Paulum Histrum dialogus de Leonardo Bruni98
, Florença e seus litterati haviam
cultivado sentimentos preponderantemente hostis a César, o que explica por que a
cidade não admitira em suas paredes a figura de César como Imperator, presença
frequente, ao contrário, nos ciclos pictóricos das cortes da Itália setentrional, na tradição
literária do De viris illustribus99
. A primeira representação de César, o afresco
representando Presentes e Tributos prestados a César de Andrea del Sarto, ocorre
apenas em 1519-1521 na villa de Poggio a Caiano, não por acaso um espaço fora da
cidade, destituído de ostensividade política e protegido pela ambiguidade da pietas
familiar. De modo que a introdução do imperador no palácio dos Medici em Florença
devia ser sentida pelos republicanos como uma simbólica travessia do Rubicão. Era
pelas mãos de Vasari que César finalmente entrava em Florença, em 1534, instalando-
se, ironicamente, no espaço projetado por Michelangelo, que transformara uma loggia
pública de canto do palácio em uma sala fechada com duas janelas inginocchiate,
conforme se lê adiante na biografia100
. Um signo e silentio de que Michelangelo recebe
mal esses afrescos, que ele ainda teve tempo de conhecer antes de sua definitiva
transferência para Roma em finais de setembro de 1534, é uma passagem do segundo
dos Diálogos de Roma de Francisco de Hollanda na qual, ao discorrer sobre “que obras
há em Itália famosas de pintura”, o artista menciona esses afrescos de Giovanni da
Udine, calando-se sobre os de Vasari que os completavam: “Em Florença, minha pátria,
nos paços dos Médicis há obra de grutesco de João de Udine; e assim por toda
Toscana”.
Embora viva então em Florença, decerto em contato regular com Ottaviano de’
Medici, Michelangelo, quase sexagenário, não entretém qualquer relação pessoal com o
jovem Vasari, então com apenas 22 ou 23 anos. Uma passagem da autobiografia trai
essa falta de familiaridade. Vasari escreve ter tido acesso à Sacristia Nova através de
Ottaviano e ainda assim apenas quando Michelangelo encontra-se em Roma, o que
ocorre diversas vezes entre 1532 e 1534:
“tive a oportunidade, por meio de tal senhor [Ottaviano], de entrar na sacristia nova de San
Lorenzo, onde estão as obras de Michelangelo, tendo ele naqueles dias viajado a Roma”.
Como se depreende de uma passagem das Cene (I, 8) de Antonfrancesco Grazzini, Il
Lasca, o acesso à Sacristia era então controlado por Michelangelo101
. Outro indício da
ausência de contatos entre o artista e o biógrafo: desde 1533, Vasari está em frequente
97
Vita di Giovanni da Udine: “Giorgio [Vasari] aí pintou histórias dos feitos de Júlio César, aludindo a
Giulio cardeal, que a tinha encomendado”. Vejam-se também a autobiografia, a carta a Turini de março
de 1534 e a carta a Pietro Aretino, também de 1534, na qual Vasari detém-se mais na descrição dos quatro
afrescos e pela qual se sabe que lhe enviara o cartão de uma das cenas. 98
Cf. Bruni [1401/1952: 41-99]. Do Ad Petrum Paulum Histrum dialogus de Leonardo Bruni (1401) ao
Dialogi di Donato Giannotti de’ Giorni che Dante consumò nel cercare l’Inferno e ‘Purgatorio (1539-
1546), a fortuna histórica de César entre os florentinos é objeto de controvérsias. 99
Tradição que afunda raízes no século XIV e que se mantinha viva na época de Vasari. Ainda em 1531,
por exemplo, Dosso Dossi propõe ao cardeal Bernardo Cles a decoração da “Libraria” de seu Magno
Palazzo em Trento, com uma série de 18 Viris Illustribus, executada pelos Dossi em 1532, mas não
concluída até 1549. O programa decorativo do forro dessa Biblioteca é definido por Erasmo e por
Johannes Eck, o Cochlaeus. E entre 1537 e 1538, Tiziano pinta para Federico Gonzaga a série de 12
Imperadores romanos, hoje conhecida através das cópias executadas em 1561 por Bernardino Campi. 100
Sobre a loggia pública transformada por Michelangelo em espaço privado do palácio, vide infra as
notas 374, 375 e 376 do Comentário, a autobiografia e as cartas a Turini e Aretino já mencionadas. 101
Vide infra nota 414 do Comentário.
xxiii
contato epistolar com Pietro Aretino, mas é somente em meados de 1535, quase um ano
depois da partida de Michelangelo para Roma, que se permite enviar a seu conterrâneo
dois desenhos dos Capitani da Sacristia Nova102
.
Morte e transfiguração (1537 - 1539)
Em 10 de agosto de 1535, Ippolito de’ Medici morre em Itri, no Lácio
meridional, a caminho de Gaeta, de onde deveria zarpar para a Tunísia para encontrar
Carlos V, prestes a reconquistá-la dos turcos. Segundo a documentação disponível, a
causa mortis não é a malária, mas o veneno, a ele administrado por Giovan Andrea da
Castello a mando do duque Alessandro. A perda é imensa para Vasari, que a ela se
refere em termos tocantes em sua autobiografia103
. Após a morte de Clemente VII em
setembro de 1534, a de Ippolito encerrava o longo mecenato dos Medici em Roma,
tornando mais exclusivos os laços de Vasari com Florença, ao menos até 1537.
Desembaraçado de Ippolito, porta-voz dos republicanos que o haviam eleito para
representá-los junto a Carlos V, Alessandro consolida seu poder. Não apenas é
agraciado, em Nápoles, com o favor do Imperador no processo que lhe movem os
republicanos, mas dele obtém nessa mesma ocasião que vá a Florença e autorize enfim
suas bodas com sua filha natural, Margarita de Áustria, celebradas em 19 de junho de
1536. Os dois eventos tinham força decisiva na legitimação da nova Florença ducal e
era essencial preparar condignamente a cidade tanto para a entrada do imperador quanto
para a de sua filha. Segundo Vasari104
, o duque o indica aos quatro responsáveis pelo
programa de tais cerimônias – Luigi Guicciardini, Giovanni Corsi, Palla Rucellai e
Alessandro Corsini – como diretor artístico dos aparatos, posição invejável para um
forasteiro, que o torna alvo da cabala dos artistas locais e mesmo de Bertoldo Corsini,
provedor geral do duque. A responsabilidade era imensa, os prazos eram críticos105
e o
resultado punha em jogo a sorte do artista em Florença.
Em 29 de abril de 1536, Carlos V entra em Florença106
. O melhor relato da
recepção artística que o aguardava é do próprio Vasari, em uma longa carta a Pietro
Aretino escrita no dia seguinte107
. Interessa aqui apenas recordar a passagem em que,
tudo pronto na manhã desse mesmo dia, ele pode enfim dormir um momento sobre uma
ramagem improvisada na igreja de San Felice, “mezzo morto dalle fatiche”, após cinco
noites passadas em claro. O duque, já a caminho de seu encontro com o imperador,
detém-se, maravilhado, diante da mencionada fachada de San Felice e manda chamar
Vasari:
102
Conforme a carta de agradecimento de Aretino de 15 de julho de 1535, (ed. Camesasca/Pertile [1526-
1554/1957:I,24]), vide infra a nota 415 do Comentário. 103
Vide infra a nota 672 do Comentário. 104
Sobre ambos os aparatos, ver a Vita di Tribolo, a autobiografia de Vasari e suas cartas a Raffael dal
Borgo e Pietro Aretino, de 15 de março e 30 de abril de 1536, respectivamente. 105
A 45 dias da entrada de Carlos V, Vasari declara a Raffael dal Borgo não ter ainda formado uma
equipe, desertado que fora pelos artistas florentinos, em número de 20. Na autobiografia, esclarece que
lhe competia: “desenhar todos os arcos e outros ornamentos para aquela entrada (...) além das bandeiras
grandes do castelo e da fortaleza (...) a fachada com função de arco triunfal feita em S. Felice in Piazza,
com 40 braças de altura por 20 de largura; e ao lado a decoração da porta em S. Pietro Gattolini, obras
todas grandes e superiores às minhas forças”. 106
O imperador permanece em Florença até 4 de maio, quando, antes de partir, visita a Sacristia Nova
para apreciar as esculturas de Michelangelo. 107
Aretino responde a essa carta em 7 de junho, cf. Camesasca/Pertile (ed.) [1526-1554/1957:I, 25].
xxiv
“rindo, fez-me chamar imediatamente e quando me apresentei, sonolento, pateta, esgotado e
atônito, disse ele essas palavras em presença de toda a corte: ‘a tua obra, meu Giorgio, é até aqui
a maior, mais bela, melhor compreendida e mais rapidamente terminada que as de todos esses
mestres. Por ela vejo o amor que me tens e por essa homenagem o duque Alessandro não tardará
em te reconhecer esses e outros trabalhos. E tu dormes, bem agora que é hora de estar desperto?’;
e segurou-me a cabeça com uma mão e, aproximando-a de si, beijou-me a testa, e partiu. Senti
meus espíritos agitados, que antes me haviam por causa do sono abandonado. Assim, a lassidão
fugiu dos membros afadigados, como se eu tivesse me repousado por um mês. Este ato de
Alessandro não foi menor em liberalidade que o de Alexandre quando deu a Apeles as cidades,
os talentos e sua amada, Campaspe”.
O relato bem atesta a velha familiaridade entre o artista e seu mecenas, a confiança
crescente que o duque vinha nele depositando e, sobretudo, a centralidade de que Vasari
começava a desfrutar no cenário artístico de Florença. Sua remuneração por esse
trabalho foi régia: 700 scudi, 300 dos quais em detrimento dos demais artistas que nada
receberam por não terem terminado sua parte do trabalho. Doze anos após sua chegada
à grande cidade como um estrangeiro, um adolescente, um simples aprendiz, nove anos
após a proclamação da república que o devolvera ao ostracismo, Vasari consolidava sua
cidadania artística. Estava entre os artistas mais bem pagos de Florença e, sobretudo,
desfrutava de uma posição privilegiada em relação ao duque, que o fazia seu mediador
em suas delicadas relações com Pietro Aretino108
. Vasari podia, enfim, considerar-se
capaz de tener lo campo109
. Apenas três anos atrás, como acima lembrado, ele não tinha
sequer acesso às esculturas de Michelangelo na Sacristia Nova, senão por intermédio de
Ottaviano de’ Medici. De forasteiro protegido, passava, agora, a protetor e a mediador
em relação aos Medici. Assim, é graças a ele que Tribolo, doente e excluído dos
trabalhos da Sacristia, reencontra seu lugar ao sol, como narra o próprio biógrafo na
Vita desse escultor:
“Tribolo, desanimado, além de doente, andava contrariadíssimo, não vendo nem em Florença,
nem fora, como obter algo para si. Mas Giorgio Vasari, que foi sempre seu amigo, amou-o de
coração e o ajudou quanto possível, confortou-o, dizendo que não se perdesse, pois
providenciaria para que o duque Alessandro lhe encomendasse algo, mediante o favor do
magnífico Ottaviano de’ Medici, de quem o fizera se tornar um próximo cliente”.
Em setembro de 1536, o prestígio de Vasari e suas relações na corte de Alessandro são
tais que ele se permite a magnificência de enviar como presente pessoal a Pietro Aretino
nada menos que uma cabeça de cera e um desenho das mãos de Michelangelo110
. A
mediação entre o duque e Aretino por Vasari deve-se de fato à amizade entre os dois
aretinos, mas não deixa de confirmar a posição de Vasari como uma sorte de
“representante” de Michelangelo em Florença. Não por outra razão, Alessandro
consigna então a seu fiel artista a cópia em terracota da Noite de Michelangelo que
108
Veja-se a carta de Vasari a Pietro Aretino de 15 de setembro de 1536 (Milanesi, XVIII). 109
Tanto mais porque, sob Alessandro, o campo da pintura estava livre dos florentinos de maior
envergadura. Andrea del Sarto morrera em 1530. Rosso estabelecera-se nesse mesmo ano em
Fontainebleau. Salviati continuava em Roma; Michelangelo e Jacopino del Conte para lá se mudaram em
1534 e 1535. Pontormo e Bronzino, os maiores artistas então presentes em Florença, estavam absortos na
decoração da villa de Careggi (1535-1536). 110
As duas obras não são identificadas, nem o são seus proprietários. Veja-se a carta de Vasari a Pietro
Aretino de 7 de setembro de 1536: “não deixo de vos enviar uma cabeça de cera de mão do príncipe e
monarca, único perseguidor da natureza, mais que humano”. Nas tratativas para a obtenção das duas
obras, Vasari vale-se do auxílio do amigo comum, então de passagem em Florença, o grande retratista
Girolamo da Carpi (1501-1556), cf. Pattanaro [2000:23].
xxv
Niccolò Tribolo executara em finais de 1534, dando-a a Figiovanni que, por sua vez, a
dera a Alessandro111
.
De modo que quando Florença, em 6 de janeiro de 1537, dia da Epifania, é
sacudida pela notícia de que Alessandro fora na noite anterior assassinado por seu primo
distante, Lorenzino112
, o mundo de Vasari vacila. Quatro dias depois, em 10 de janeiro,
ele escreve em uma carta a seu tio, Antonio:
“Eis, tio honorando, as esperanças do mundo, os favores da fortuna, o apoio advindo da
confiança nos príncipes e os prêmios de tantas fadigas, findos em um expirar”.
Mais uma vez, um revés sofrido pelos Medici repercutia sobre seu destino. De
resto, também sobre o de Florença e mesmo da Itália. O ato atingia o Imperador na
figura de seu genro e Lorenzino, “novo Brutus”113
, escreve em princípio de fevereiro
uma carta “aberta” na qual declara estar em vias de embarcar para Constantinopla para
solicitar, por recomendação francesa, a intervenção de Soliman contra Carlos V na Itália
meridional. O papa Paulo III, que nutria os piores sentimentos em relação aos Medici,
abençoa a contratação de mercenários pelos revoltosos, financiados por Filippo Strozzi.
O enfrentamento decisivo entre as forças ducais e republicanas ocorre, como se sabe,
em 2 de agosto de 1537, na assim chamada batalha de Montemurlo: Cosimo de’ Medici,
então com apenas 18 anos, e seu condottiere Alessandro Vitelli, à frente de uma força
de 10 mil cavaleiros e infantes, apoiados por mercenários espanhois e alemães,
encurralam e conseguem a rendição das tropas de Filippo Strozzi e de Baccio Valori,
assediados no castelo de Montemurlo, nas imediações de Prato.
Para Vasari é hora de se refugiar de novo em Arezzo, onde ele já se encontra em
fevereiro de 1537. É natural supor que Florença nesses meses de extrema instabilidade
não oferecesse nem boas condições de trabalho, nem segurança para um pintor que,
acima de todos, era identificado com Alessandro. Mas seu retorno a Arezzo parece
motivado também por razões mais interiores. Na realidade, o assassinato de Alessandro
marca uma verdadeira transfiguração em sua mentalidade, fazendo nascer um
sentimento de culpa em relação a seu fascínio pelas expectativas de ganho e celebridade
que, como uma miragem, a vida de cortesão lhe oferecia. Na mesma carta ao tio, de 10
de janeiro, ele confessa:
“Percebo, agora que se me rasgou o véu diante dos olhos, que o não temer a Deus, o não
reconhecimento de onde me tirou (...), que se eu continuasse nessa dependência (servitù), muito
embora conquistasse honra, fama e riqueza para o corpo, dava vergonha e dano à minha alma e a
fazia infeliz. Agora, portanto, que a morte rompeu as cadeias de minha dependência já
estabelecida com essa ilustríssima casa, resolvo separar-me por um tempo de todas as cortes,
tanto das dos príncipes eclesiásticos quanto das seculares”.
Em 6 de julho, em uma carta a Niccolò Serguidi, o desencanto transformou-se
em desapreço e mesmo em rancor contra a experiência da corte, contra “as duras
111
Vide infra a nota 416 do Comentário 112
Lorenzino (1514-1548) é neto de Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici (1463-1503) e filho de
Pierfrancesco (1487-1525) e de Maria Soderini. Pertence portanto ao ramo cadete dos Medici e é primo
em primeiro grau de Giovanni delle Bande Nere (1498-1526), pai de Cosimo (1519-1574), futuro
granduque da Toscana. 113
Lorenzino aparece então em uma medalha, cunhada no norte da Itália, réplica de uma medalha de
Brutus comemorativa do assassinato de César. Sua efígie, em vestes romanas, é ladeada pela inscrição
“Laurentius Medicis”. No verso da mesma, representava-se o capuz frigiano entre duas adagas, emblema
de Brutus. Vide infra a nota 654 do Comentário.
xxvi
cadeias da servitù que sofria na corte, e a sua crueldade, a ingratidão, e as vãs
esperanças, o veneno e a doença das adulações”114
.
A cura de Camaldoli
Em Arezzo, ainda em janeiro ou fevereiro de 1537, Vasari adoenta-se, ao que
parece seriamente, e é tratado por Baccio Rontini, o mesmo médico que trata
Michelangelo por duas vezes, a segunda das quais quando, antes de 10 de abril de 1541,
machuca ou fratura a perna em decorrência “de uma ruinosa queda de andaime em
andaime” na Capela Sistina115
. Sabemos por sua carta a Baccio Rontini que em
fevereiro ele já recobrara as forças, o suficiente em todo o caso para terminar uma
Descida da Cruz encomendada pelos dominicanos de Arezzo em 1535116
. O artista, que
se diz “trancado em um quarto” (mi son serrato in una stanza), assim descreve seu
estado de espírito, passada a fase crítica da doença, durante a qual esteve hospedado na
casa de Roncini: “desde que deixei vossa casa, estou tão melancólico pela morte de meu
duque que tenho estado e ainda estou a ponto de perder a cabeça” (son stato e sono per
girare col cervello).
Terminado o quadro, Vasari parte para Roma, em um momento desconhecido do
primeiro semestre, como se infere de uma carta a Pietro Aretino de novembro de 1537.
Em Roma, permanece até julho de 1537 – período em que retoma furiosamente seus
estudos do antigo –, mas desde agosto ou setembro de 1537 encontra-se no Ermo de
Camaldoli, sobre os Apeninos, uma centena de quilômetros ao norte de Arezzo, a
realizar o que se anunciava ser de início uma pequena decoração para a igreja de seu
monastério117
. A envergadura do trabalho acaba sendo muito maior que a prevista,
embora pequena permaneça a expectativa de ganho, haja vista a pobreza dos monges.
Em uma carta ao primeiro mestre, Giovanni Pollastra, Vasari exprime a razão primeira
de aceitar aquele trabalho em tais condições:
“Se todos os males fossem conhecidos pelos médicos como vosso acume percebeu a razão do
meu, creio que a morte faria pouco dano ao gênero humano. Perdido em Arezzo, desesperado
pelos padecimentos causados pela morte do duque Alessandro, desagradando-me o comércio
com os homens, a familiaridade dos parentes e os cuidados domésticos, tinha-me por melancolia
fechado em um quarto, nada fazendo senão trabalhar. E consumia a obra, o cérebro e a mim
mesmo ao mesmo tempo, sem a mente, que se fizera melancólica por horrendos pensamentos, e
estes haviam-me a tal ponto adoecido o intelecto que, creio, se neles perseverasse acabava em
mau fim. Sede, Messer Giovanni, meu caro, mil vezes bendito, pois foi por vosso intermédio que
fui conduzido ao ermo de Camaldoli, e não poderia, por minha própria inciativa, ter caído em
melhor lugar”.
Na sua autobiografia, Vasari lembra quanto lhe agradara “sommamente
l’alpestre et eterna solitudine e quiete di quel luogo santo”, a imperturbada quietude da
114
“le catene dure della servitù che avevo della corte, e la sua crudeltà, l’ingratitudine, e le vane speranze
sue, il tosco, e il morbo delle adulazioni”. 115
Vide infra o texto e a nota 503 do Comentário. Veja-se a carta de Vasari a Baccio Rontini, de fevereiro
de 1537, na qual lhe agradece pelo desvelo: “devolveste-me uma vez a vida e outra a saúde”. 116
Desde finais do século XVIII na SS. Annunziata de Arezzo, e hoje em más condições de conservação.
cf. Ricordanze de 3 de janeiro de 1535 e Maetzke, in Corti, Davis, Kliemann [1981:329]. Há um desenho
preparatório em Hartford, Wadsworth Atheneum (EUA). 117
“De mim vos digo que este ano, após o retorno de Roma, que foi em julho, enquanto lá estive não fiz
mais que desenhar, e a despojei das mais dmiráveis coisas que lá existem; e desde então estive com três
ajudantes a Camaldoli para realizar um grandíssimo trabalho”.
xxvii
vida monástica naqueles cimos. Ela o salva da malinconia que o roía desde a morte de
Alessandro. O luto está feito e o artista pode voltar a Roma, onde desde finais de
1537118
almeja reinstalar-se, e onde passará boa parte do crucial decênio sucessivo. Mas
é importante deter-se nestes momentos passados na solidão de Camaldoli, pois neles se
opera uma verdadeira experiência de liberação moral e psicológica de Vasari em relação
aos Medici. Duas longas cartas a Ottaviano de’ Medici escritas já de Roma, sem data,
mas de 1539, surpreendem pelo tom de garboso desafio ao velho protetor, que o chama
a Florença. Na primeira carta, Vasari pela primeira vez desobedece a Ottaviano e
declara sua decisão de ficar em Roma, preferindo não abdicar de seus próprios desafios
artísticos em troca da segurança da vida cortesã. A atitude é tão surpreendente que lhe
vale ser tachado de louco (pazzo) por Ottaviano e pela corte florentina. Escreve então a
segunda carta a Ottaviano que o deve surpreender ainda mais, e que surpreende ainda o
leitor contemporâneo. Digna de figurar em qualquer antologia do desprezo do mundo,
comparável, em sua concisão, ao De infelicitate principum de Poggio (1440), ao Momus
de Alberti (1447c.) e ao Elogio da Loucura de Erasmo (1509), essa segunda carta não
foi, parece-me, devidamente apreciada pela literatura sobre Vasari ou sobre o tema da
loucura no século XVI119
, e deveria ser transcrita aqui quase na íntegra. Contentemo-nos
com sua conclusão:
“Portanto, decido que quando Vossa Senhoria e outros de vossa casa me dão o título de louco,
que me seja ele uma coroa, não de louro ou de mirto, mas de puríssimo ouro (...) Enquanto isso,
eu, que nada invejo do que é vosso, agradeço-vos do título que me dais, parecendo-me elogio
maior que qualquer outro”.
Quando recapitulamos o percurso de Vasari nestes dois anos transcorridos entre
janeiro de 1537 e essas duas cartas de 1539, percebemos que as sucessivas perdas de
Ippolito e de Alessandro, em 1535 e 1537, agiram em profundidade em seu espírito. O
jovem de 24 anos que depositara toda esperança de reconhecimento e de glória nos
Medici tem agora outro horizonte mental. É certo que seus vínculos com Ottaviano de’
Medici permanecem estreitos até a morte do Magnífico em 1546 e que a servitù em
relação aos Medici se renovará com força inigualável na figura de Cosimo I, a partir de
1550 e, sobretudo, após sua decepção com o papa Júlio III (1550-1555). Mas a reação à
morte de Alessandro, a melancolia sucessiva e a experiência de Camaldoli produzem
nele, como demonstram de modo incontrovertível as cartas desse período, uma
verdadeira transfiguração. É na própria consciência da dignidade moral da vocação de
artista – equiparada à dos apóstolos que a tudo renunciam para seguir Jesus120
– que
Vasari encontra forças em 1539 para afirmar a “loucura” de ser independente em
relação a Ottaviano.
É ainda essa transfiguração mental que permite a Vasari, artista cortês por
antonomásia, tornar a independência de Michelangelo em relação à corte uma espécie
de leit-motiv de sua biografia do artista, quase um contra-modelo ideal de si próprio. Já
ao final da redação de 1550, ele enaltece o “exemplo admirável” de Michelangelo que
“fugiu o comércio com a corte quanto pôde”, tema que atravessa de ponta a ponta a
118
Veja-se a carta a Ottaviano de’ Medici, de dezembro de 1537: “il desiderio che mi sprona, un dì, s’io
potrò farlo, è di ricondurmi a quella Roma”. 119
Ela não é sequer citada, por exemplo, no erudito estudo sobre o tema da loucura no humanismo, de
Klein [1963/1970:433-450]. Apenas Barocchi [1984:117] registra, mas apenas de passagem, essa
incursão vasariana em “quello [genero] sofisticato delle contradizioni della pazzia”. 120
“e assim como os amigos de Jesus renunciaram às riquezas e ao mundo para se dar a ele inteiramente,
assim resolvo-me a esquecer o passado e frutificar-me naquilo que costuma fazer quem com esforço se
exercita”. Ed. Milanesi, XXV.
xxviii
biografia121
. De fato, entre os conflitos de ideias e sentimentos que animam a Vida de
Michelangelo de Vasari, e que a tornam um documento ímpar da vida artística do
Quinhentos, um dos mais notáveis é a admiração do biógrafo por um modelo de artista
que estava se tornando inatual. Um artista que não abdicava da tradição antiga do poeta
como homo divinus, cujos valores não tinham por parâmetro o Príncipe, e sim a vera
nobilitas, enaltecida por escritores de formação quatrocentista, de Poggio a Michele
Marullo e a Maquiavel122
, virtù autônoma, e mesmo altiva, em relação aos poderosos.
Michelangelo, continua Vasari em 1550, “só se dava com aqueles que tinham
necessidade dele ou porque sua virtù o levava a amá-los”123
. Da mesma maneira, Vasari
dirá a Ottaviano, justificando sua permanência em Roma:
“razão pela qual penso na promessa que o coração me dita: Se realizas isso, não serás preclaro,
vistoso e famoso, mas terás prazer em te aproximares à grandeza de teus superiores, se não em
riqueza, nobreza e grau, mas por virtù”.
Para Vasari, cumpria-se a condição mental sine qua non para o projeto de conferir aos
artistas a dignidade de protagonistas de uma história autônoma, no sentido próprio do
termo, isto é, dotada de uma própria norma e inteligibilidade. Algo que superasse o
exemplo de Ghiberti e da crônica biográfica, em prol de uma teoria histórica da
evolução artística da arte italiana. E é lícito supor que seja na solidão fecunda de
Camaldoli, de onde ele não se ausenta senão nos invernos de 1537-1540124
, que Vasari
tenha transformado os registros mnemônicos que acumulava “infin da giovanetto per un
certo mio passatempo”125
no projeto de redigir a obra monumental em que se tornaria
suas Vite. Quando Aretino, em sua carta de 7 de junho de 1537126
, elogia a descrição
que Vasari lhe enviara em 30 de abril de 1536 da entrada de Carlos V em Florença, ele
chama Vasari de “istorico, poeta, filosofo e pittore”. Ser chamado por Aretino de
istorico era algo que devia ressoar com força no jovem conterrâneo, fortalecendo-o em
sua tentação de escrever história. Não se esqueça, ademais, que é Pollastra, seu mestre
de poesia e retórica, que o aconselha a tal trabalho-retiro e o recomenda aos monges.
Pode-se bem imaginar que entre as palavras de aconselhamento de seu velho professor
de letras e “médico de alma”, incluia-se a sugestão de uma reflexão de maior fôlego
sobre a condição histórica do artista moderno. É convidativo o paralelo entre esta
experiência e a passagem relatada por Condivi e Vasari sobre os efeitos que suscitam
em Michelangelo a solidão dos oito meses de 1505 passados nas montanhas de Carrara,
preparando-se mentalmente para o maior projeto escultórico de sua vida, o sepulcro de
Júlio II: “E como convidado por aqueles rochedos, veio-lhe a fantasia de esculpir para
121
Vejam-se o texto e as notas 138, 241, 244, 260, 348, 435, 439, 475 e 497 do Comentário. 122
O De vera nobilitate de Poggio Bracciolini, de 1440, retoma e revigora a quaestio nobilitate, já
presente, por exemplo, no De nobilitate de Buonaccorso da Montemagno (1428), debate entre a nobreza
de linhagem e a de virtù, que atravessa o Quatrocentos e repercute no epitáfio que em 1466 Michele
Marullo compõe para Francesco Sforza: “Si genus audieris, spernes: mirabere gesta. Illud fortunae est,
hoc opus ingenii.” (Se souberes de sua família, desprezarás: admirarás os feitos. Aquela é da fortuna,
estes, obra do engenho). O mesmo timbre encontra-se no proêmio da Vida de Castuccio Castracani de
Maquiavel. Cf. Canfora, Introdução a Poggio, [1440/1999:7-21]. 123
“e solo dimestichezza tenuto con quegli che o per le sue faccende hanno avuto bisogno di lui, o per
termini di virtù veduti in loro è stato astretto amarli”. 124
Ainda em 1539, Vasari está em Camaldoli, como atesta um passo da Vita di Cristofano Gherardi
relativo às obras que deve executar nesse ano para os monges do monastério de “San Michele in Bosco
fuor di Bologna”: “aonde Giorgio ainda não chegara por estar ainda em Camaldoli”. Cf. Boase [1979:28].
Em carta a Francesco Leoni de 30 de outubro de 1540, Vasari desculpa-se por não ter respondido antes,
pois acabava de retornar de Camaldoli onde trabalhara intensamente “para que o frio ali não me pegue”. 125
Sobre essa passagem sempre citada da autobiografia, veja-se mais adiante. 126
Camesasca/Pertile (ed.) [1526-1554/1957:I, 25] e vide infra nota 7.
xxix
deixar memória de si, como já o haviam feito os antigos, estátuas colossais”127
. As
estátuas colossais de Vasari a que lhe convidam as montanhas de Camaldoli serão a
empresa, apenas pouco menos colossal, de suas biografias.
Que o projeto de se converter em historiador dos artistas italianos tome corpo em
Camaldoli é algo mais que simples conjectura. Para confirmá-la, basta ler a Conclusão
de sua obra, na redação de 1550, onde declara estar concluindo dez anos de trabalho128
:
“Ainda que com grande esforço meu, despesas e incômodos, em inquirir minuciosamente
durante dez anos por toda a Itália sobre os costumes, sepulcros e obras daqueles artistas dos
quais descrevi as Vidas”.
Sabemos que Vasari está escrevendo esse texto em 1548, pois duas páginas antes
declara que Michelangelo (1475-1564) tinha então 73 anos129
. Que as Vite estejam
praticamente redigidas em 1548 é certeza, pois outros testemunhos independentes a
reforçam. Já em outubro de 1547, em sua breve estada em Rimini, Vasari submete seu
manuscrito a Don Gianmatteo Faetani, prior do Convento dos Olivetani daquela cidade,
que o lê e dele faz uma cópia130
. No Dialogo di Pittura de Paolo Pino, publicado em
1548, a redação das Vite é descrita como algo já ocorrido131
:
“E Giorgio de Arezzo, jovem que, além de prometer sucesso raro na arte, é também
virtuosíssimo e é aquele que, como verdadeiro filho da pintura, uniu e recolheu em um livro,
com estilo puro, todas as vidas e obras dos mais preclaros pintores”.
Enfim, em 10 e 15 de dezembro de 1547, Paolo Giovio e Annibale Caro atestam em
duas bem conhecidas cartas a Vasari sua leitura do manuscrito das Vite e isto em termos
que asseguram que o manuscrito está, senão pronto, ao menos sendo ultimado. A essas
duas cartas, bem como aos demais testemunhos que pontuam a redação das Vite desde
1546, devemos retornar mais adiante. O que importa reter, aqui, é que tudo converge
para uma mesma e única conclusão: o projeto das Vite formulara-se entre 1537 e 1538,
nos momentos de repouso e de restauração de suas energias hauridos na benfazeja
solidão de Camaldoli.
2 – Michelangelo e Paolo Giovio (1541-1548)
O retorno de Vasari à Roma Farnese, a que, como visto, ele aspira desde finais
de 1537, passa por Florença, onde ele se encontra de novo em 1540 a serviço de
Ottaviano de’ Medici, retornando entretanto a Camaldoli para um último intermezzo
veranil de trabalho132
. Em outubro, encontra-se de retorno em Florença, para executar o
127
Vide infra o texto e as notas 204 e 205 do Comentário. 128
A informação de que a obra lhe demandara 10 anos é repetida na carta a Cosimo de’ Medici de 8 de
março de 1550 (Milanesi, XXXVIII), que acompanha um exemplar das Vite enviado de Roma: “além de
me vos ter dedicado, apresento-vos não as labutas e o esforço de dois meses, mas de dez anos”. 129
Vide infra a nota 549 do Comentário. 130
Cf. Tosi [1941:43-49], Boase [1979:46], Le Mollé [1995:104]. 131
Ed. Barocchi, Trattati [1548/1960:I] e em www.memofonte.it p. 21
132
“Em Florença, portanto, copiei de um retrato grande até os joelhos um cardeal Ippolito para messer
Ottaviano, e outros quadros, com os quais ia me entretendo naquele calor insuportável do verão; o qual,
chegado, retornei à quietude e ao fresco de Camaldoli para fazer o retábulo do altar maior”.
xxx
retábulo para seu novo protetor, Bindo Altoviti, mas já no ano sucessivo parte, enfim,
para Roma.
Não é graças aos Medici que o retorno a Roma se viabiliza. De fato, com a
morte de Ippolito em 1535 e a ascensão de Paulo III ao trono pontifício, os Medici
perdem apoios firmes na Urbe. Ele viabiliza-se, ao contrário, graças a um florentino
arqui-inimigo dos Medici, Bindo Altoviti, banqueiro radicado em Roma e personagem
de destaque nos meios florentinos exilados em Roma133
. O encontro com Altoviti é,
segundo a autobiografia, casual. O banqueiro aprecia os trabalhos de Vasari em
Camaldoli, onde se encontra em 1539, inspecionando a madeira dos grandes abetos
destinada à construção da basílica de S. Pedro, e encomenda-lhe uma obra para sua
capela em SS. Apostoli de Florença. Além de pagá-la regiamente, Altoviti chama-o a
Roma e acolhe-o em sua casa em 1541134
.
A correspondência de Vasari nos anos 1540-1550 mostra-o preponderantemente
em Roma, com diversas estadas em Florença135
e frequentes viagens pela Itália, a mais
importante das quais a Veneza, em 1542, chamado por Pietro Aretino para trabalhar
para a Compagnia della Calza e realizar a cenografia de sua comédia La Talanta,
encenada durante o carnaval de 1542136
. Outras cartas escritas de Bolonha (1541) e de
Lucca (1544), além de menções autobiográficas de passagens por Nápoles (novembro
de 1544 a setembro de 1545), Verona, Modena, Rimini (1546)137
, Parma e Mântua
(nessas três últimas cidades para ver as obras de Correggio e Giulio Romano),
confirmam sua declaração, acima citada, de que por dez anos percorreu a Itália em
busca de documentação visual para a redação de suas Vite. De retorno à casa de Altoviti
em Roma em 1542, Vasari recebe o choque dos afrescos do Juizo Final de
Michelangelo, que ele comenta na biografia138
:
“A executar esta obra, Michelangelo penou oito anos e descobriu-a no ano de 1541 (creio eu), no
dia de Natal, com estupor e maravilha de toda Roma, ou melhor, de todo o mundo; naquele ano
deixei Veneza por Roma para vê-la e fiquei assombrado”.
O contraste entre a experiência de Veneza, dominada pela frequentação de Tiziano, e o
assombro causado pela “superação de si”139
empreendida por Michelangelo nesses
afrescos terá contribuído não pouco para suscitar uma reflexão sobre as antinomias
fundamentais da cultura figurativa italiana nesses anos, antinomias que decerto aguçam
sua perspectiva histórica.
133
Sobre Bindo Altoviti, vide infra o texto e as notas 586, 601, 674, 681 e 682 do Comentário. 134
“no ano seguinte [1541, Altoviti] fez-me tantas cortesias e delicadezas em sua casa em Roma, (...) que
eu lhe serei sempre obrigado à sua memória”. 135
O artista encontra-se, de novo em Florença em 1542, quando pinta a “grandissima tela” de S. João
Batista em apenas seis dias, para comemorar o batismo de Francesco de’ Medici. E novamente em 1543,
após passar o inverno em Roma na casa de Ottaviano de’ Medici, “la quale io poteva dir casa mia”. 136
Em carta a Francesco Leoni de 20 de novembro de 1540, Vasari menciona como iminente a viagem a
Veneza e em outra a Ottaviano de’ Medici, escrita de Veneza em 1542, a montagem de La Talanta é
detalhadamente descrita (Milanesi XXXI). Veja-se ainda a autobiografia e a Vita de Cristofano Gherardi
detto Doceno, biografia rica de menções autobiográficas, cf. Manfredi e Della Bianchina [2007:144]. 137
Cf. Autobiografia e Vita di Cristofano Gherardi detto il Doceno, p. 294 138
Vide infra o texto e a nota 538 do Comentário. 139
Adiante, Vasari afirma que Michelangelo, nos afrescos do Juizo Final: “mostrou não apenas vencer os
artistas precedentes que ali haviam trabalhado, mas quis vencer também as próprias pinturas da abóbada,
graças a ele tão celebrizadas. E ultrapassando-as em muito, a si próprio superou”.
xxxi
A parte de Michelangelo (1543-1550)
Neste ativíssimo ano de 1542, Vasari ainda encontra tempo para começar os
afrescos de sua nova casa em Arezzo e para pintar para seu anfitrião a já mencionada
Descida da Cruz (perdida) obra que será, graças à intermediação de Bindo Altoviti e de
Paolo Giovio, a cabeça de ponte de seu acesso à corte de Alessandro Farnese. Este,
efetivamente, encomenda-lhe em 6 de janeiro de 1543, a partir de uma maquinosa
invenzione de Giovio, a Justiça ou Astrea para a grande sala do Palazzo della
Cancelleria, hoje em Capodimonte140
. Consumava-se assim a inserção de Vasari na
corte Farnese, o ambiente em que floresce a redação das Vite, germinada no humus de
Camaldoli.
É decerto também na casa de Bindo Altoviti ou graças a seu intermédio que,
nesse mesmo ano de 1543, começa o efetivo convívio de Vasari com Michelangelo.
Este era de longa data amigo do banqueiro e desde ao menos 1511 valia-se dos serviços
de seu banco romano em suas remessas de dinheiro à família em Florença141
. De modo
que é verossímil a informação transmitida por Vasari em sua autobiografia de que sua
Descida da Cruz de 1542 “não tenha desagradado” a Michelangelo142
.
Independentemente do valor artístico intrínseco da obra, o grande artista deve-se sentir
inclinado favoravelmente a um hóspede de seu amigo. De fato, em uma carta de 25 de
janeiro de 1545 a Luigi del Riccio, ele reitera ser “servitore di messer Bindo e di tucti e’
sua” (servidor de messer Bindo e de todos os seus). E Vasari era então um “dos seus”.
De modo que soa convincente a passagem sucessiva da autobiografia:
Naquele mesmo tempo, fazendo eu muitos obséquios a Michelangelo Buonarruoti e dele
recebendo parecer em todas as minhas obras, teve-me por sua bondade muito mais afeição.
Razão pela qual, ao ver certos desenhos meus, aconselhou-me a que de novo e com melhor modo
dedicasse-me à arquitetura; o que porventura jamais teria feito se aquele homem excelentíssimo
não me tivesse dito o que disse, o que, por modéstia, calo.
De fato, em ao menos três sentidos, Michelangelo exerce então uma influência
decisiva sobre Vasari. Em primeiro lugar, fortalece o pendor do biógrafo para a
arquitetura, já manifesto em 1536, quando se iniciara na arte da fortificação no afã de
corresponder às expectativas do duque Alessandro. Seu interesse pela arquitetura
reacende-se graças à frequentação em inícios dos anos 1540 da Accademia della Virtù
fundada e dirigida, como visto, por Claudio Tolomei, e dedicada à leitura de Vitrúvio.
Tal interesse coincide com o retorno do próprio Michelangelo aos problemas da
arquitetura militar. Sua experiência na defesa de Florença em 1528-1530, especialmente
na fortificação da colina de San Miniato, fora rica de ensinamentos143
e notabilizara-o
como engenheiro militar, de modo que o artista via-se agora cada vez mais solicitado
por Paulo III a opinar sobre a refortificação de Roma e em particular a do Borgo. Era
inevitável, em tais circunstâncias, o confronto com as concepções e com o “clã” de
Antonio da Sangallo, que ele substituirá em 1546 em todas as suas funções como
140
Óleo sobre tela, 353 x 252 cm. Veja-se a carta de Vasari a Alessandro Farnese de 20 de janeiro de
1543, contendo a descrição do programa e Baldini [1994:163]. E a autobriografia: “Por meio também
desse quadro, sendo-lhe mostrado por Giovio e messer Bindo, fui apresentado ao ilustríssimo cardeal
Farnese, a quem pintei por sua encomenda, em um painel de oito braças de altura por quatro de largura,
uma Justiça...”. 141
Veja-se a carta de Michelangelo ao pai, de 4 de outubro de 1511 (BR:LXXXIX). 142
O quadro “por sua graça não desagradou ao maior pintor, escultor e arquiteto de nossos tempos e
talvez dos passados”. 143
Vide infra o texto da biografia e as notas 408 a 413 do Comentário.
xxxii
arquiteto do papa144
. Não é surpreendente, portanto, que um tema recorrente de
conversação entre Michelangelo e seu biógrafo fosse nesses anos a arquitetura, domínio
que se converteria em objeto central de suas reflexões após 1546, quando assume a
direção do projeto e do canteiro da basílica de S. Pedro. O segundo domínio em que se
exerce essa influência, a pintura, é ainda melhor documentado, pois, possivelmente para
atender a um pedido de Bindo Altoviti, Michelangelo promove Vasari a uma parceria à
qual só haviam tido acesso amigos muito próximos como Sebastiano del Piombo,
Bugiardini ou Pontormo145
. Com efeito, o mestre faz-lhe então um (perdido) desenho
para que, a partir dele, pinte uma Vênus para Altoviti, em cuja casa romana ele continua
a residir em 1544 (“un quadro d’una Venere col disegno di Michelagnolo”).
O terceiro aspecto dessa influência diz diretamente respeito às Vidas e em
particular à Vida de Michelangelo. Nesta última, lê-se que, na redação de suas
biografias, “muitas recordações suas [de Michelangelo] de coisas diversas, Vasari as
recebera de viva voz, como de um artista de maior idade e juízo”. Que direito temos de
duvidar dessa afirmação? Que Vasari tivesse desfrutado o privilégio de recolher essas
recordações em seguidos encontros é certificado pelo tom de familiaridade com que
Michelangelo o trata na primeira carta conservada, a ele endereçada em agosto de 1550,
e pelo modo, mais que apenas formular (pois ausente de cartas a outros destinatários),
de chamá-lo ao final dessa carta “amico singulare”. É esse convívio afetuoso com
Michelangelo entre 1542 e 1548 que permite a Vasari escrever a primeira longa
biografia do mestre repleta de informações de primeira mão, sobretudo sobre os anos
romanos do escultor.
A afirmação de Vasari de ter recebido diretamente de Michelangelo as
informações que transmite em sua biografia foi ignorada ou posta em dúvida por alguns
estudiosos. Nenhuma evidência, contudo, permite dela duvidar, como faz um estudioso
do porte de Johannes Wilde, segundo o qual Michelangelo: “discordou completamente
do conteúdo do livro no que tangia à sua pessoa”146
. A conjectura de Wilde é aceita sem
restrições por Michael Hirst, que, contrariando sem justificativa o depoimento de
Vasari, afirma: “Michelangelo não fora consultado sobre os detalhes de sua própria
biografia e estava descontente com seu teor”147
. A lógica e o bom-senso, entretanto,
militam aqui em favor de Vasari. É impensável que, cauteloso e observante da
autoridade como era, desfrutando ademais de uma atestada amizade com Michelangelo,
Vasari se pusesse a escrever sua biografia sem a submeter ao nihil obstat do biografado.
De resto, os calorosos elogios em verso e prosa com que Michelangelo acolhe
imediatamente essa obra são notórios e não podem ser considerados pura formalidade,
sobretudo de parte de uma personagem olímpica, tão susceptível e tão superior aos
rituais de corte. Tais manifestações de apreço devem ser, portanto, tomadas pelo que
são: uma validação, pública e privada, de sua biografia. Em favor da hipótese de Wilde
e de Hirst pôde-se fazer valer tão-somente uma carta de Michelangelo de 14 de abril de
1548 escrita de Roma a seu sobrinho, Leonardo, pedindo uma segunda via de seu
registro de nascimento148
. Ela foi interpretada como indício de que Michelangelo
forneceu a Ascanio Condivi dados de sua infância e juventude para que redigisse sua
biografia, publicada em 1553. A hipótese é verossímil, tanto mais porque Vasari fora
144
Vide infra o texto da biografia e as notas 546 e 547 do Comentário. 145
Vide infra o texto e as notas 713 e 714 do Comentário. 146
Cf. Wilde [1950/1978:8]: “thoroughly disagreed with the contents of the book as far as his own affairs
were concerned”. Vide infra o texto e as notas 30 a 36 do Comentário. 147
Cf. Hirst, Introdução a A. Condivi, Vita di Michelagnolo Buonarroti [1553/1998:1]: “Michelangelo
had not been consulted about the details of his own biography and was unhappy about its contents”. 148
Vide infra a nota 13 do Comentário.
xxxiii
lacunoso e cometera alguns erros ou imprecisões no que se refere à infância e à
adolescência do artista. Lacunas e erros que, de resto, ele se apressa a corrigir na
redação de 1568, baseando-se tacitamente no texto de Condivi. Mas essa carta de 1548 e
as divergências de detalhe entre as biografias de Vasari (1550) e de Condivi (1553) no
que se refere, como dito, aos anos de formação do artista, não permitem concluir que
Michelangelo “discordasse completamente” (Wilde) ou “não tivesse sido consultado
[por Vasari] e estivesse descontente com seu conteúdo” (Hirst). Carece, em conclusão,
de substância documental e mesmo de verossimilhança, toda tentativa de atribuir a
Michelangelo a intenção de polemizar com Vasari, contrapondo-lhe a biografia de
Condivi. Longe de ser uma “resposta” de Michelangelo a Vasari, a biografia de Condivi
nascia de uma necessidade sentida de modo profundo por Michelangelo: explicar e
justificar suas sucessivas dilações na execução do projeto do sepulcro de Júlio II, cuja
forma final de 1545, muito diminuída, fora geralmente mal recebida149
. No mais,
tratava-se apenas de completar lacunas e corrigir informações errôneas da biografia
vasariana, como, por exemplo, suas relações com Ghirlandaio entre 1487 e 1489.
A principal debilidade de que padecem todas as tentativas de subestimar a
presença de Michelangelo na redação de sua biografia vasariana, e na das Vite em geral,
é que seus propositores são obrigados, ipso facto, a atribuir exclusivamente a Vasari150
a
gênese de suas concepções históricas gerais e, sobretudo, a clareza e complexidade
conceitual dos Proêmios às Segunda e Terceira Parte da obra. Tome-se, por exemplo, a
ideia fundamental, expressa em uma das mais cruciais passagens do Proêmio da
Terceira Parte:
Nas medidas [da Segunda Idade] faltava um reto juízo, de tal modo que, sem que as figuras
fossem mensuradas, tivessem em suas grandezas uma graça que excedesse a medida.
A premissa dessa passagem é o mote sempre repetido por Michelangelo, reportado por
Vasari mais adiante na biografia, e de novo em uma carta de 1570 ou 1573 a Martino
Bassi, de que o artista precisava “ter o compasso nos olhos e não na mão, porque as
mãos operam e o olho julga”151
. Subjacente à afirmação de que o juízo, peculiar à
Terceira Idade, supera a medida (própria da Segunda Idade) está a ideia mesma de
superação, isto é, da dinâmica intrínseca à toda emulação – com seu inexorável
encadeamento ternário: aprendizagem, equiparação e superação –, determinante na
definição do caráter das Três idades de que as Vite se compõem. Essa concepção geral,
implicando a superação dos modelos antigos por Michelangelo, Vasari a recebe com
toda verossimilhança do próprio Michelangelo, ideia central entre todas, posto imprimir
às Vite sua forma geral de sucessivas superações até a superação final: o absoluto
michelangiano, modelo único de todas as artes152
.
Uma demonstração igualmente patente da dependência intelectual de Vasari em
relação a Michelangelo é a famosa carta escrita em 1547 a Benedetto Varchi sobre a
“maggioranza e difficultà della scultura e pittura”, vale dizer, a disputa em torno da
149
Trata-se de motivação já aventada por Hirst, na Introdução à biografia de Condivi, que, segundo
escreve o estudioso inglês, almejava “to exonerate Michelangelo over his delays in working on the tomb
of Julius II and his failure to complete the monument in an adequate fashion” (p. x). 150
Ou, alternativamente, a eruditos florentinos e romanos frequentados por Vasari, tal como propõe, entre
outros, Frangenberg [2002:244]. Mas o eventual auxílio recebido desses meios terá se limitado, se tanto,
ao acabamento estilístico no texto dos Proêmios, já que nada permite pressumir em tais eruditos uma
proficiência histórico-artística superior à de Vasari. 151
Vide infra o texto da biografia e a nota 669 do Comentário. 152
Cf. Barocchi, Introdução a P. Giovio [1523-27/1977:I,5]: Vasari “exalta as conquistas dos vários
artistas, colocando no vértice Michelangelo, que foi o incentivo de seu entusiasmo de historiador”.
xxxiv
primazia e da diversa natureza da pintura e da escultura. Vasari justifica o caráter
equívoco de sua resposta pelo fato de que Michelangelo, por ele indagado a respeito,
esquiva-se, sorrindo enigmaticamente153
, e nada responde: “dissemi per risposta essere
un fine medesimo difficilmente operato da una parte e dall’altra, nè volle risolvermi
niente” (disse-me por resposta que uma e outra parte dificilmente buscam o mesmo fim,
nem me quis resolver nada). Vê-se claramente nessa carta, e nesse debate que retorna
com força nos anos 1540, como o biógrafo entende-se então como porta-voz, em tudo
quanto concerne à reflexão sobre arte, do pensamento de Michelangelo.
O tríptico de Paolo Giovio
Se Vasari deve a Michelangelo a forma geral das Vite – suas concepções
histórico-artísticas centrais e seus conceitos estruturais –, deve sobretudo a Paolo
Giovio, “quell’uomo raro de’ tempi nostri”, como o chama o biógrafo154
, a armadura
formal das Vite de 1550, parte de seu léxico crítico, além da mediação com os auctores
antigos – Cícero, Varrão, Plínio e Plutarco –, elementos esses que se situam na base do
nascente gênero da biografia de artista155
. Paolo Giovio é, ao lado de Michelangelo, o
outro grande vetor de enriquecimento intelectual que Roma propicia a Vasari nesse
decênio. Giovio conhecera Vasari em 1531 ainda em Arezzo e sua proteção datava,
como visto, dos tempos da primeira estada de Vasari em Roma em 1532, na corte de
Ippolito de’ Medici, quando o jovem se orgulhava em sua carta a Vespucci de nomeá-lo
entre seus protettori. Dez anos depois, novamente em Roma, Vasari tem ainda Giovio,
então no último decênio de sua vida, seu grande defensor junto aos Farnese. É graças a
suas intervenções e invenzioni que ele pinta não apenas a primeira obra para o cardeal, a
já citada Justiça, mas também sua obra máxima, os afrescos do Palazzo della
Cancelleria em 1546, que tanto prestígio lhe conferem156
.
Um retrato de Sebastiano del Piombo, hoje em Washington, representando o
Cardeal Bandinello Sauli acompanhado por um geógrafo e um historiador – Giovanni
Maria Cattaneo e Paolo Giovio – oferece a imagem de Giovio em 1516, aos 33 anos.
Um ano antes, como professor de filosofia moral e natural no Studio romano, captara o
favor de Leão X; um ano depois, em 1517, a fracassada conjura para assassinar o papa
oferece-lhe a ocasião para uma progressiva aproximação com os Medici157
. Giovio viria
a exercer uma influência política sem rival na corte de Clemente VII e do cardeal
Ippolito de’ Medici, mas sua posição na de Paulo III tende a se enfraquecer a partir de
finais dos anos 1530. Isto se deve, sobretudo, à sua invariada adesão ideológica ao
partido imperial e à sua amizade por protagonistas desse partido, como Alfonso
d’Avalos158
e Ferrante Gonzaga159
, em contraste com a discreta inclinação do papa por
153
Barocchi [1984:116] sublinha o quanto Vasari permanece hesitante entre o “múltiplo fascínio da
pintura” e “a autoridade daquele sorriso (l’autorevole ghigno) para ele incompreensível de Buonarroti”. 154
Cf. Vasari, Vita di Cristoforo dell’Altissimo. 155
Cf. Barocchi [1523-27/1977:I,3-33], Price Zimmermann [1976:406-424]. 156
Cf. Vasari, Autobiografia: “No mesmo ano, desejando o cardeal Farnese que se decorasse a sala da
Cancelleria no palácio de San Giorgio, monsenhor Giovio, quis que o fosse por minhas mãos e fez-me
fazer muitos desenhos de várias invenções”. 157
Cf. Price Zimmermann [1976:14-15], Agosti [2008:12]. 158
Alfonso d’Avalos (1502-1546), marquês de Vasto e de Pescara e governador do ducado de Milão a
partir de 1538, é evocado por Giovio na Musaei Ioviani Descriptio, a descrição de seu Museu colocada
na abertura das Elogia de 1546, como “digno das duas coroas de louro, ilustre assistente dessa obra do
xxxv
Francisco I160
. Sua dedicação a Vittoria Colonna (1490-1547), que desde 1541, com as
expropriações papais dos feudos dos Colonna, entrara em rota de colisão com Paulo
III161
, sua simpatia pela tolerância de Carlos V em relação ao protestantismo162
e pelo
reformismo católico dos círculos de Viterbo163
, bem como seu ceticismo em relação ao
programa do Concílio de Trento são outros tantos fatores que tampouco serviam à sua
causa na corte Farnese.
Isto posto, seu prestígio como homem de letras parece intacto. A ele o cardeal
Farnese confia, como visto, as inventiones da assim chamada Sala dei Cento Giorni no
Palazzo della Cancelleria e sua liderança intelectual, ao lado de veteranos como Pietro
Bembo e Jacopo Sadoleto (que desaparecem, entretanto, em 1547), parece indiscutível.
Em torno dele, nas noitadas do Palácio San Giorgio, gravitam doravante literatos mais
jovens, muitos deles ciceronianos –, como ele, Bembo e Sadoleto – de estrita
observância: Gabriele Cesano (1490-1568), Claudio Tolomei (1492-1556), Marcantonio
Flaminio (1498-1550)164
, Marcello Cervini (1501-1555)165
, Annibale Caro (1507-1566),
Bernardino Maffei (1514-1549)166
, entre outros. É neste ambiente, e precisamente entre
abril e junho de 1546, meses durante os quais Vasari trabalha nos afrescos da
Cancelleria, que transcorre a noitada descrita por Vasari ao final de sua Autobiografia
(1568), longa passagem inevitavelmente citada, posto oferecer a cena histórica da
gênese de sua obra167
:
Naquele tempo, findo o dia, ia com frequência ver o ilustríssimo cardeal Farnese cear. Ali
estavam sempre, a entretê-lo com belíssimas e honradas conversações, Molza, Annibale Caro,
messer Gandolfo168
, messer Claudio Tolomei, messer Romolo Amaseo, monsenhor Giovio, e
muitos outros literatos e cavalheiros, de que é sempre repleta a corte daquele senhor. Certa noite,
veio à baila o Museu de Giovio e os retratos de homens ilustres que nele os colocou com ordem e
inscrições belíssimas. E passando-se de um assunto a outro, monsenhor Giovio disse de sua
constante vontade de acrescentar ao Museu e ao seu livro dos Elogios um tratado relativo aos
homens ilustres na arte do desenho, de Cimabue a nossos dias. E discorrendo a respeito,
demonstrou decerto grande conhecimento nas coisas de nossas artes. Contudo, atinha-se apenas
às suas linhas gerais, sem se deter no particular. E com frequência, referindo-se a tais artistas,
trocava os nomes e sobrenomes, os lugares de nascimento, as obras, ou então não dizia as coisas
começo ao fim”. De fato, subvencionou a construção do Museu e nele se ospedou diversas vezes, cf.
Minonzio [1546/2006:15], nota 4. 159
A Ferrante I Gonzaga (1505-1557), Giovio dedica um Elogium em 1551. Ele sucede em 1546 a
Alfonso d’Avalos no governo do ducado de Milão. Em 1527 está à frente dos lanzichenecchi que
perpetram o saque de Roma. 160
Cf. Pastor [1895-1915:XII,194] e Minonzio, Bianco [2006:civ]. 161
Vide infra a nota 705 do Comentário. Após o saque de Roma, Giovio fora hóspede de Vittoria
Colonna em seu castelo de Ischia, ocasião em que se consolida sua amizade pela Marquesa de Pescara. 162
Veja-se sua carta de 18 de fevereiro de 1546 ao duque Cosimo I acerca da benevolência de Carlos V
para com os protestantes nos colóquios de Regensburg (janeiro-março de 1546): “Na realidade, nunca a
espada do imperador será desembainhada contra os Protestantes”, apud Pastor [1895-1915:X,282]. 163
A simpatia de Giovio pelo reformismo católico evidencia-se não apenas em suas relações com Vittoria
Colonna, mas ainda na seleção dos beneficiários de Paulo III na fachada maior da Sala della Cancelleria.
Aí figuram, com efeito, ao lado do próprio Giovio, Reginald Pole, Gasparo Contarini e Michelangelo. 164
Sobre esse poeta de carmi latinos, próximo amigo de Baldessar Castiglione, Juan de Valdés, Reginald
Pole e Vittoria Colonna, além de revisor em 1542 do Il Beneficio di Cristo de Benedetto Fontanini
(Veneza, 1543), cf. Ginzburg, Prosperi [1975], Dacos [1977/1986:68] e Shearman [1992/1995:110]. Vide
infra a nota 673 do Comentário. 165
Sobre Cervini, vide infra o texto da biografia e a nota 604 do Comentário. 166
Sobre Bernardino Maffei, secretário de Marcello Cervini, incluído por Vasari no rol dos amigos de
Michelangelo, vide infra o texto e a nota 677 do Comentário. 167
Vide infra a nota 584 do Comentário. 168
Como acima lembrado, o poeta Gandolfo Porrino de Modena é secretário de Giulia Gonzaga. Amigo
de Michelangelo, com ele intercambia poemas em 1543, vide infra as notas 395 e 420 do Comentário.
xxxvi
como de fato ocorreram, mas de modo impreciso. Terminada sua preleção, o cardeal voltou-se
para mim e disse: “Que dizeis, Giorgio, não seria essa uma bela obra, um belo esforço?”. “Bela”
– respondi – “monsenhor ilustríssimo, se Giovio tiver alguém da arte que o auxilie a colocar as
coisas em seus lugares e a dizê-las como estão verdadeiramente”. “Podereis, portanto,” –
acrescentou o cardeal, a pedido de Giovio, Caro, Tolomei e outros – fazer-lhe um compêndio e
uma organizada notícia de todos esses artistas, de suas obras, segundo a ordem dos tempos; e
assim também de vós receberão este benefício as vossas artes”. Ainda que eu soubesse ser isso
algo acima de minhas forças, prometi, na medida das minhas possibilidades, fazê-lo com prazer.
E assim, começando a recuperar meus registros e anotações a respeito, redigidos desde que era
jovenzinho por passatempo e pela afeição que tinha à memória de nossos artistas, sendo-me
caríssima cada informação a respeito, reuni tudo que me pareceu a propósito e levei-o a Giovio.
E ele, após muito elogiar meu esforço, disse-me: “Giorgio, meu caro, quero que tomeis a vós
esta tarefa de redigir tudo nesse modo que, vejo, otimamente sabereis fazer, pois não tenho
ânimo para tanto, não conhecendo as maneiras, nem sabendo muitos particulares que podereis
saber vós. Sem os quais, não poderia fazer mais que um tratadinho similar ao de Plínio. Fazei o
que vos digo, Vasari, porque vejo que será algo belíssimo, segundo o ensaio que disto me destes
nessa narração”. Mas lhe parecendo que eu hesitasse, fez com que sua exortação fosse reforçada
por Caro, Molza, Tolomei e outros amicíssimos meus. De modo que finalmente acabei por
colocar mão à obra com a intenção de submetê-la, quando terminada, a um deles para que,
revista e convenientemente disposta, publicasse-a sob outro nome. Depois, partindo de Roma em
outubro de 1546, e dirigindo-me a Florença...
Desde Kallab e Schlosser, a literatura sobre Vasari notou como essa passagem
“oferece dificuldades cronológicas de toda espécie e parece criada artificiosamente”169
.
De fato, se a noitada ocorre em 1546, Molza, morto em fevereiro de 1544, não poderia
nela estar presente, nem insistir para que Vasari aceitasse a incumbência de Giovio.
Além disso, Annibale Caro desde 1545 não se encontra em Roma, mas em Piacenza e
em Parma, como atesta sua correspondência170
. A mais flagrante incoerência
cronológica do relato é naturalmente a rapidez com que os “registros e anotações” de
abril-junho de 1546, coligidos segundo afirma o pintor de um material bruto
colecionado por passatempo, convertem-se, repentinamente, nas palavras atribuídas a
Giovio, no “ensaio que disto me destes nessa narração”. Já não se trata mais, portanto,
de “registros e notas”, mas de uma “narração”, a partir da qual Giovio pode já
vislumbrar a obra feita.
Conhece-se razoavelmente bem, graças, sobretudo, à correspondência de Giovio
e Caro com Vasari, o avanço da redação das Vite. A primeira menção à obra – a carta de
Giovio a Vasari então em Florença, em 27 de novembro de 1546 –, indica que esta deve
estar em um estágio muito avançado, pois Giovio oferece-se para atuar como editor da
obra171
. Em 10 de março de 1547, Anton Francesco Doni escreve a Francesco Revesla
comunicando-lhe sua intenção de publicar o livro de Vasari, já então com um título
muito próximo do que viria a ter172
. Em 8 de julho de 1547, um ano apenas após a
noitada, outra carta de Giovio estabelece um firme terminus ante quem, senão para o
169
Cf. Schlosser [1924/1977:291]. Barolsky [1991:112-115] exagera ao considerá-la “a tale always
recognized to be a fiction”. Mais equilibrado, o juízo de Price Zimmermann [1995:214]: “Vasari’s
vignette betrays some evidence of literary reconstruction, although not as much as sometimes supposed”. 170
Cf. Caro [1538-1566/1763:I,140-154], cartas de 15 de junho de 1545 (n. 131) a 11 de setembro de
1546 (n. 146), escritas de Piacenza. Após essa última carta, Caro escreve ainda ao próprio Vasari, sempre
de Piacenza (sem data, carta n. 147), pedindo-lhe que providenciasse (servindo-se de um coleborador) um
desenho da escultura de Vênus pertencente ao cardeal Cesi. Pede, enfim, notícias do cardeal Farnese
(“Scrivetemi qualcosa di M. Alessandro”), o que permite supor que há tempos não estivera em Roma.
Uma carta ao cardeal Farnese escrita em 19 de setembro de 1547 (n. 170) documenta-o ainda em Parma. 171
Cf. Frey, Lit. Nachlass [1923-1930:I,175]. 172
Cf. Lettere del Doni. Libro secondo (1547), apud Rubin [1995:107]. O título é então: Le vite de gli
artefici, architetti, scultori, & pittori, cominciando da Cimabue fino a tempi nostri, scritte per Giorgio
Vasari pittore Aretino, con una introduttione nell’arti del medesimo non meno necessaria che nuova.
xxxvii
manuscrito revisado, ao menos para a redação final de Vasari: “mi congratulo che
haviate condotto el libro al fine”. Em 10 de dezembro de 1547, Giovio afirma: “devorei
vosso livro tão logo o tive em mãos”. No dia seguinte, em 11 de dezembro de 1547, em
uma carta escrita de Roma ao pintor, Annibale Caro agradece pelo envio de “parte del
Commentario che avete scritto degli Artefici del Disegno” e o elogia “per quel ch’io ho
veduto fin qui, e per quello che voi promettete nella sua Tavola”173
. Como Vasari não
submeteria a um literato como Caro um rascunho, já que a ele caberia rever seu estilo,
deve-se concluir que o manuscrito enviado a Giovio e a Caro no mais tardar em
novembro de 1547, era sua última redação. Ela estava, portanto, parcialmente terminada
e estruturada em sua totalidade. Mas, de outro lado, como visto acima, Vasari afirma em
1548 ao final das Vite, que a redação delas lhe haviam custado dez anos de trabalho,
afirmação mais de uma vez repetida. Portanto, o trabalho desenvolvido entre a noitada
de março-junho de 1546 e novembro de 1547 diz certamente respeito à redação final da
obra. A famosa noitada não pode, definitivamente, ser considerada como um marco
cronológico para o seu início.
Mais especiosa que as incoerências cronológicas soa, ao contrário, a excessiva
coerência dessa passagem, sua aparência de cena “construída”, de tableau vivant. A
narrativa sente ao teorema pelo qual se demonstra o direito do artista de se alçar à
condição de literato e, sobretudo, à de historiador, e isto por exortação dos máximos
literatos e do máximo historiador que era então Giovio. De fornecedor do material
histórico, Vasari é guindado por ele a organizador do discurso histórico. Essa promoção
é crucial, pois desde a Antiguidade o gênero do discurso histórico, elevado por
excelência, situa-se acima do commentarius, simples registro do material histórico,
como bem atestam, por exemplo, a ardilosa modestia de César e a epístola de Cícero,
rogando ao historiador Luceio a redação de uma história de seu consulado a partir de
seus apontamentos174
. A antiga tensão entre o gênero do commentarius e o da obra de
história está plenamente presente na gênese das Vite. Deve-se recordar que Ghiberti
havia chamado seu manuscrito Commentarii e que assim Annibale Caro chama o
manuscrito de Vasari na carta acima citada175
. O artista está inicialmente disposto a
seguir a proposta de Caro e pensa intitular sua obra Commentario degli artefici del
disegno, enquanto seu velho amigo Don Miniato Pitti propõe que lhe dê por título nada
menos que Storia176
. Aqui, mais uma vez, Giovio assume importância crucial na cena
vasariana. Ao ser criticado por Vasari por sua ignorância do material histórico, Giovio
não apenas concorda, mas percebe que tal ignorância o impediria de fazer mais que um
“tratadinho” à maneira de Plínio. Isto significa que a tarefa confiada a Vasari é realizar
algo mais ambicioso que as nugae de Plínio: uma história vera e propria, isto é, a
organização dos fatos em um nível de narratividade superior a eles, regido por uma
lógica de causalidade e por categorias do epidítico: o elogio, a crítica, o juízo, a análise
das paixões, além de certa abundância de ornamento. De artista amoroso das práticas e
das obras de seus pares a demiurgo de um cosmos histórico, o salto de Vasari é
vertiginoso. Ele carecia de uma defesa e ilustração advinda de quem de direito, vale
dizer, dos próprios literatos e do “dottissimo e grandissimo istorico messer Paolo
Giovio”, como o chama Vasari na Vita de Franciabigio (1550), o historiador por assim
dizer “oficial” da Roma dos Medici e dos Farnese. Tal é o sentido dessa passagem, a
mais cautelosa das tantas captationes benevolentiae que se lêem nas Vite, e isso a tal
173
“parte do Commentario que escrevestes sobre os Artistas di Desenho”; “pelo que vi até até aqui e pelo
que prometeis em seu Sumário”. 174
Ad fam., V, 12, de abril-maio de 56 a.C. 175
Também Giovio nomeia suas impressões sobre os turcos, de 1531, Commentari delle cose de’ Turchi. 176
Cf. Le Mollé [1995:97].
xxxviii
ponto que ela se conclui pela afirmação de que a obra criada pelo artista deveria
aparecer sob outro nome, isto é, sob o nome de um literato.
Não é, portanto, se contentando em apontar o caráter “inverídico” dessa
passagem que se pode interrogá-la com proveito. Ao contrário, é justamente por não ser
simples retrato de um jantar que ela se torna história, e, portanto, verdade. A concepção
de verdade histórica não se subordina ainda, no tempo de Vasari, ao “wie es eigentlich
gewesen ist” rankiano, mas pertence de pleno direito ao domínio do verossímil177
. Se as
Vite se querem discurso histórico, e não apenas crônica da poeira do vivido, elas devem
ser capazes de elaborar o material documental de maneira a conferir-lhe o decus que o
torna digno de memória. Quando se trata de justificar a gênese do discurso que inaugura
um novo objeto da história – a história da arte –, deve-se esperar de Vasari, como de
quem quer que se pretenda historiador no século XVI, uma capacidade de síntese e de
composição do material histórico, o poder de plasmar o continuum dos eventos,
insignificantes em si, em uma cena histórica178
. Ao conceber e pintar as cenas da
história dos Farnese na grande sala da Cancelleria, Giovio e Vasari não procediam de
modo essencialmente diferente.
Entre março de 1549 e março de 1550, os fiéis amigos florentinos de Vasari –
Miniato Pitti, Cosimo Bartoli, Pierfrancesco Giambullari, Carlo Lenzoni179
e, sobretudo,
Vincenzio Borghini – prestaram-lhe um inestimável auxílio na escolha do editor180
, na
revisão tipográfica, nos índices e nas xilogravuras venezianas das Vite181
. Do lado
romano, Annibale Caro apontou, como se verá, certas inabilidades de estilo, enquanto,
do lado florentino, é enorme a contribuição de Vincenzio Borghini.
Maître à penser de V. e seu principal aliado em sua exploração do mecenato de
Cosimo I e de Francesco I, Borghini é a única personalidade cuja influência sobre as
Vite pode ser comparada, ainda que não igualada, à exercida por Giovio. Ele revisa a
fundo, e talvez reescreva, mas em uma medida impossível de avaliar, o gran finale das
Vite na edição de 1550, conforme atesta uma carta do biógrafo, instado por Júlio III em
177
“Quando se lê Vasari, é preciso sempre lembrar sua concepção da história, que não é em absoluto ser
verdadeira, mas verossímil”, escreve Germain Bazin, apud Le Mollé [1995:97]. O verossímil é não
apenas o plausível e o persuasivo, mas também o discurso conforme ao seu gênero (poético, dramático,
histórico, etc.). A valorização do valor literário da obra de Vasari por Barolsky [1991:3-8], embora válida
em si, permanece prisioneira de uma tensão verdade/ficção estranha a Vasari, posto que ditada pelas
exigências da Geschichtswissenschaft oitocentista. Se, como bem sublinha Barolsky, o valor literário da
obra de Vasari é incontestável, não é menos incontestável o fato que ela não se pretende ficção literária, e
sim discurso de verdade histórica. 178
Com razão, Boase [1979:43] cogita que a descrição da cena “pode bem ser uma peça literária (a
literary set piece), resumindo um processo mais gradual”. O mesmo faz Le Mollé [1995:96-97] : “Vasari
não iria em sua autobiografia recapitular treze anos de encontros e fazer o histórico de uma iniciativa que
deve ter amadurecido lentamente. Então, ele condensou tudo, fazendo da noitada de setembro [sic] de
1546 o emblema de todas as noitadas anteriores”. 179
Bartoli, Giambullari e Lenzoni deviam ver com particular simpatia as Vite, ardentes defensores que
eram do toscano, sendo por isso chamados por troça de “aramei”, isto é aramaicos, já que Giambullari
sustentara em seu Origini della lingua fiorentina, altrimenti Il Gello [1546/15492] que o toscano provinha
do estrusco e este, do aramaico. Cf. Pirotti [1971:28]. 180
O editor flamengo das Vite, Laurens Lenaerts van der Beck, estabelecido em Bolonha e depois, a partir
de 5 de abril de 1547, em Florença como impressor ducal, com o nome de Lorenzo Torrentino, substitui
Anton Francesco Doni, que havia fugido para Veneza. Torrentino era uma grande aquisição de Cosimo I
para revitalizar a atividade editorial de Florença, como atesta Pier Vettori em carta a Francesco
Davanzati, e nesse mesmo ano de 1550 publicará ainda a tradução de Ludovico Domenichi do De re
aedificatoria de Alberti . Cf. Hoogenwerff [1952:93-104] 181
Cf. Rubin [1995:110-115], que reconstitui passo a passo, através da correspondência entre Vasari e
seus amigos, a cronologia e as peripécias da fabricação do livro.
xxxix
1550 a partir para Roma. Sua influência sobre Vasari não se limita, contudo, à
assessoria linguística. Borghini é provavelmente também um dos colaboradores de V.,
senão na concepção, ao menos no refinamento da tricentenária parábola evolutiva da
arte italiana (1270c.-1570c.), de Cimabue a M., sendo dele, por exemplo, o paralelismo
entre Donatello e M., que V. transcreve ao final da Vita daquele:
“tendo o doutíssimo e muito reverendo don Vincenzio Borghini (...) reunido em um grande libro
infinitos desenhos de excelentes pintores e escultores, antigos e modernos, escreveu em grego
com muito juízo, à guisa de ornamento, dois motes nas duas páginas contrapostas em que se
encontram desenhos de Donatello e de M.. A Donatello: E DONATOS BONARROTIZEI, e a
M.: E BONARROTOS DONATIZEI. Em latim, soam: Aut Donatus Bonarrotum exprimit et
refert, aut Bonarrotus Donatum’. E em nossa lingua: “Ou o espírito de Donatello opera em
Buonarroti, ou o de Buonarroti antecipou o de Donatello”)182
.
Talvez a perícia com que Vasari incrustra a tópica de Plínio no tecido narrativo e
anedótico das Vite, bem como seu “gosto” pela pintura das duas Primeiras Idades
tenham sido aprimorados por Borghini, que cultuava a pintura “antiga” e possuía uma
Madona de Fra Angelico (una Nostra Donna piccola bellissima). Borghini pode ter
também facilitado as relações de um “estrangeiro” como V. com os artistas florentinos,
pois era comitente, por exemplo, de Battista Naldini (Degli Accademici del Disegno) e
amigo de artistas tão diversos como o misântropo Pontormo, “col quale si ricreava
alcuna volta” e o cortês Federico Zuccari, que lhe retratou e deu-lhe o desenho
preparatório de seus afrescos mosaicos no Belvedere, conforme V. relata nas Vite de
Pontormo e de Taddeo Zuccari. O próprio Borghini declara sua afeição pelos artistas em
sua carta de agradecimento ao duque por tê-lo nomeado em janeiro de 1563 seu Lugar-
Tenente na Accademia del Disegno: “conquanto não seja dessa profissão, sempre por
ela tive, entretanto, singular inclinação e afeto”. No que se refere à edição de 1550 das
Vite, a estreita aliança de V. com Borghini, baseia-se em suma, para além da assessoria
literária, no reforço e no refinamento de uma concepção histórica fundada no primado
da Toscana, na unidade da parábola histórica iniciada por Cimabue e Giotto e em vias
de se concluir com Michelangelo, alçado à condição de nume tutelar da Florença dos
Medici. Este concepção histórica dará, em 1568, sustentação ao “sistema das artes”
posto em marcha no terceiro quarto do século, de que resultará a criação em 1563 da
Accademia del Disegno, com seus mais 60 membros iniciais183
.
Mas ninguém como Giovio forneceu tanto incentivo, nem tantos elementos
formais e literários às Vite. Giovio é o primeiro a profetizar a fama perene da obra. Em
2 de abril de 1547, afirma em carta a Vasari: “il bel libro dellj famosi pittori (...) vi farà
al certo immortale”. E aplica-lhe o antigo topos da maior longevidade dos escritos em
relação às obras de arte: “quello che scriuerete non lo consomerà il ladro tempo”184
(o
que escrevereis não o consumará o tempo ladrão). O mesmo topos retorna em uma carta
de 7 de maio de 1547, ainda mais exortativo: “E certo, sarete assaj piu allegro, piu
glorioso e piu richo dauer fatto questa bell opera, che se auessi dipinto la capella di
Michelagniolo, quale si va consumando con il sanitro e con le fessure. Scriuete, fratel
mio, scriuete” (E decerto sereis mais feliz, glorioso e rico por ter feito essa obra, que se
tivesseis pintado a capela de Michelangelo, a qual se vai consumindo pelos sais e pelas
rachaduras. Escreveis, irmão meu, escreveis!).
182
Nos Ragionamenti accademici [1567], Cosimo Bartoli retomará este mesmo paralelismo, aplicando-o
respectivamente a Johannes Ockeghem e Josquin Des Prez. 183
Ginzburg [2007:147-203] examina amplamente a contribuição de Borghini à edição de 1550. Sobre
Borghini, vide infra o texto da biografia e a nota 740 do Comentário. 184
Cf. Frey, Lit. Nachlass [1923-1930:I,196-97], já citado por Rubin [1995:107].
xl
Também Annibale Caro, na citada carta de 11 de dezembro de 1547 a Vasari,
prevê a fortuna da obra que acabara de ler parcialmente: “E v’annunzio che sarà
perpetua: perché l’istoria è necessaria, e la materia dilettevole”. Mas da própria carta do
poeta deduz-se que suas intervenções no texto das Vite são apenas de concepção geral.
Enquanto sua participação na redação final da Vita de seu genro, Ascanio Condivi, pode
ter sido muito avantajada185
, no que se refere a Vasari, o grande literato procura apenas
refrear-lhe a inclinação por certas abundâncias de estilo e por certos rebuscamentos
sintáticos, que ele considera aqui e ali inadequados para uma história de artistas, escrita,
ademais, em toscano186
:
“Parece-me ainda bem escrita, e puramente, e com belas observações. Só desejo que se retirem
certos transportamentos de palavras, e certos verbos postos no fim da frase por vezes por
elegância, que nesta língua a mim incomodam. Em uma Obra similar, prefiriria a escrita como a
fala, isto é, com uso de vocábulos mais em sentido próprio que metafórico ou excêntrico; e mais
o coloquial que o afetado. E assim ela é de fato, salvo em pouquíssimos momentos que, relendo,
notareis e facilmente corrigireis”.
Por outras razões ainda é mais substantiva a contribuição de Giovio. Desde logo,
na composição entre 1524 e 1527 de exempla prestigiosos: seus ensaios biográficos
sobre Leonardo, Michelangelo e Rafael, balões de ensaio de um projeto maior nunca
realizado de Vidas de grandes artistas. Vasari dá testemunho desse projeto, ao lembrar a
“constante vontade [de Giovio] de acrescentar ao Museu e ao seu livro dos Elogios um
tratado relativo aos homens ilustres na arte do desenho, de Cimabue a nossos dias”. De
fato, ao explicitar seu projeto ao início dos Elogia, Giovio divide-os em quatro classes:
a primeira e a segunda são dedicadas respectivamente aos homens de letras já mortos e
ainda vivos. Percebe-se imediatamente como Vasari retoma esta divisão e a torna
funcional à sua homenagem a Michelangelo, único artista vivo nas Vite de 1550. A
quarta classe de Giovio, “será dedicada aos mais importantes papas, reis e condottieri
que conquistaram fama na paz ou na guerra”. Ela se realiza no segundo volume dos
Elogia, de 1551. Finalmente, “a terceira classe recolherá os artistas que atingiram o
máximo grau de excelência”187
. O projeto de Giovio constituía-se, em suma, como um
tríptico biográfico, dedicado aos homens ilustres vivos e mortos que se distinguiram nas
letras, nas artes e no poder, notadamente das armas188
. De tal maneira que as Vite de
Vasari, embora nascidas de um projeto próprio do pintor, acabam por se constituir como
a segunda aba de um tríptico concebido e apenas em parte realizado por Giovio.
185
Cf. Wilde [1950/1978:10-14]. 186
Cf. Caro [1538-1566/1763:I,177-178], carta 174. Não é de minha competência abordar a questão do
estilo de Vasari, em parte sem dúvida moldado pelos debates sobre a questão da língua toscana. Embora
afunde raízes no século XV (Alberti, Landino, Poliziano), essa adquire uma importância maior na vida
intelectual da primeira metade do seculo XVI, desde Bembo, Castiglione, Trissino, etc. Para os efeitos
sobre o estilo vasariano dessa querela sobre a codificação e a estilística do vernáculo, cf. Migliorini
[1966:291], S. Bertelli [1976:249] e Le Mollé [1988:212]. Mas se deve ressaltar que nas Vite Vasari
desmarca-se explicitamente desse debate. 187
Cito da tradução italiana [1546/2006:20]. 188
Duas obras desse tríptico foram publicadas por Giovio com os títulos: Elogia veris clarorum virorum
imaginibus apposita. Quae in Musaeo Ioviano Comi spectantur, Veneza: Michele Tramezzino, 1546; e
Elogia virorum bellica virtute illustrium veris imaginibus supposita, quae apud Musaeum spectantur,
Veneza: Michele Tramezzino, 1551. Ambas foram editadas em tradução italiana aos cuidados de F.
Minonzio, cf. Giovio [1546/2006] e [1551/2006].
Dia 21 -> lunes
Maria: Lampsonius
O que é esse teatro português? Jesuítico?
xli
Laura Liliana Vargas Murcia: “Pintura de Romanos”
“Palas” Casa del Escribano, pintura a têmpera. Tunja, a partir de René Boyvin
[Lavinia Fontana, segundo José Emilio Burucúa]
sistema educacional
Nada em Bogotá?
Patrícia Zalamea, “Un gênio como Rafael”, Gregorio Vásquez de Arce y Ceballos
(1638-1711) –
Heroi nacional / ofício de pintar / contextualizar historicamente /
Juízo Final há modelos europeus a partir de uma gravura?
Mariana, Alberti
- 1448-49 – Momus, uma mordente sátira lucianesca del principe e in genere delle vanità e debolezze di tutti gli uomini. Aplicada especificamente a gravitas antiga, ela está presente ao menos desde o Momus
de Alberti, no qual, por exemplo, o topus de Heráclito que chora e Demócrito que ri faz
seu ingresso em Florença sob o inesperado signo do cômico.
“Non mi stancherò mai di ripetere, a questo proposito, la nota sentenza di Pitagora: è
assolutamente certo che la natura non discorda mai di se stessa. Così è. Ora, quei
numeri che hanno il potere di dare ai suoni la concinnitas, la quale riesce tanto
gradevole all’orecchio, sono gli stessi che possono riempire di mirabile gioia gli occhi e
l’animo nostro. Pertanto proprio dalla musica, la quale ha fatto dai numeri oggetto di
approfondita indagine, e inoltre dagli oggetti nei quali la natura ha dato di sé cospicue e
alte prove, ricaveremo tutte le leggi della delimitazione”.
Fernanda Marinho -> 1962/1989 -> L’Antirinascimento -> manifesto historiográfico
Antirenascimento –> Anti-Europa -> Bakhtin
Ernesto Soto Homo selvaticus
Martin Schongauer
Crónicas de Froissart, 1470-1472 British Library
Hans Holbein
Juan de Castellanos, “Salvaje más crecido que gigante”
Fachada da catedral de Valladolid
Anónimo Cihuacoatl, Historia de la Indias, Diego Durán, vol. I, pl. 20 Madrid, BN
-----------
Larissa Carvalho Habiti Antichi et Moderni di Tutto il Mondo, di Cesare Vecellio, 1598
– antologia do vestuário mundial.
Espelho no homem mexicano prudência braços cruzados Magnati e più vecchi dell’Isola
(Isola Virginia)
Theodore de Bry, Les Grands Voyages, 1590
xlii
A insistência do historiador na imortalidade que valerá a Vasari suas Vite deve-
se grandemente à sua crença na superioridade do texto sobre a imagem189
, mas também
ao fato de que essa segunda aba, as vidas dos artistas ilustres, era quase uma criação ex
nihilo – caso único entre os gêneros literários desenvolvidos nos séculos XV e XVI –,
haja vista o naufrágio dos modelos do gênero criados pela Antiguidade, dos quais Plínio
é um reflexo indireto. O próprio título da obra de Vasari, com sua ênfase nas vidas dos
artistas più eccellenti, foi aparentemente uma escolha de Giovio e advém com toda
evidência do título de sua obra sobre os mais preclaros homens de letras, publicada por
Michele Tramezzino em Veneza em 1546, Elogia veris clarorum virorum imaginibus
apposita. Quae in Musaeo Ioviano Comi spectantur (Elogios dos homens preclaros,
justapostos aos seus retratos verdadeiros, como se vêem no Museu de Giovio em
Como). De resto, é de todos conhecido o esforço de Vasari para apor retratos dos
artistas nos frontispícios de suas biografias segundo o modelo do Museu de Giovio –
onde cada retrato era acompanhado de uma nota biográfica –, esforço que será possível
apenas na edição Giuntina de 1568. Os primeiros commentarii sobre as vidas dos
artistas florentinos remontavam a Lorenzo Ghiberti e mesmo a Filippo Villani, e vinham
amadurecendo rapidamente com Antonio Billi e o Anônimo Magliabechiano na
primeira metade do século XVI. Desde os anos de Camaldoli (1538-1540), Vasari devia
ter desenvolvido soluções próprias de organizacão de seu material e mesmo alguma
incipiente estruturação de seu projeto. Mas, como foi mais de uma vez notado, é apenas
a partir do modelo do Museu, organizado entre 1537 e 1543190
, e, sobretudo, dos Elogia
de 1546 de Giovio, que uma verdadeira tratativa histórica da arte italiana encontra sua
forma literária e pode se desenvolver de modo pleno191
.
Vasari refere-se ao Museu de Giovio na edição de 1568 como a uma empresa de
conservação da memória, muito similar à sua. Na Vita de Piero della Francesca, por
exemplo, lamentando a perda dos afrescos do grande mestre nas Stanze do Vaticano,
salienta como os vários retratos ali pintados foram copiados por ordem de Rafael e
dados por Giulio Romano a Giovio, que os colocou em seu museu em Como. Na Vita
de Fra Angelico, lembra como os retratos pintados por ele em Santa Maria sopra
Minerva “teriam sido perdidos, se Giovio não os tivesse recuperado para o seu museu”.
Nas Vite de Fra Giocondo e de Liberale da Verona, recorda que Francesco Torbido, il
Moro, pintou o retrato de Fracastoro por encomenda de Giberti, que o enviou a Giovio,
“o qual o colocou em seu museu”. Mais importante para a nossa biografia é a passagem
189
Veja-se a dedicatória dos Elogia de 1546 de Paolo Giovio a Ottavio Farnese, e o comentário a respeito
de Minonzio [1546/2006:8], nota 4. 190
Em 1537, Paolo Giovio começa a construir sua villa em Borgovico, ao norte de Como, segundo
cânones vitruvianos, nas imediações do sítio onde se encontram os vestígios da villa de Plínio, La
Commedia. É nesta villa que recolhe sua coleção de mais de 400 retratos, antigos e contemporâneos, além
de objetos provenientes do Oriente Médio. 191
Como já notava Brizio [1952:83], ao comentar a passagem de Vasari acerca da fatídica ceia de 1546:
“Toda a narração de Vasari é bem conhecida: mas eis o ponto essencial: a relação instituída com o Museu
e os Elogia de Giovio, assumidos como exemplos e modelo da obra futura”. Le Mollé [1995:96] cita e
acolhe inteiramente a observação de Brizio: “Pode-se pensar que uma relação se estabeleceu em seu
espírito [de Vasari] com o museu de Giovio e seus Elogia. Ele viu neste sistema de organização um
modelo para sua obra futura”.
xliii
da Vita de Aristotile da Sangallo na qual afirma que Giovio intermedia a doação da
cópia do cartão da Batalha de Cascina de Michelangelo192
. Na Vita de Cristoforo
dell’Altissimo, escreve, enfim, que ele próprio, Vasari, por inciativa de Cosimo I,
enriqueceu o museu gioviano com “muitos retratos”.
Isto posto, do ponto de vista do espírito em que são escritos, os retratos de
Giovio nos Elogia, não-raro de impiedosa ferocidade193
, contrastam com os retratos de
caráter dos artistas propostos por Vasari, sempre celebrativos e, mesmo nas críticas, de
invariável bonomia. Vasari parece seguir, aqui, menos a inclemência de Giovio que a
afabilidade de Plutarco, cujo conhecimento ele talvez deva ao próprio Giovio194
. Para
Giovio, “por uma sorte infausta à natureza, não há virtude que consiga brilhar em plena
luz sem ser deturpada por alguma mácula de vício, como para escarnecer da ideia
mesma de beatitude”195
. Graças a esse álibi, o historiador instala-se de pleno na tradição
da malignidade dos humanistas que ele mesmo se compraz em descrever com
abundância de variações, exímio que é na forma aguda de maledicência de que é
exemplar a cúria romana196
. Em sua Descrizione del Giovio (Rime XLIII), Francesco
Berni confirma esse traço do temperamento de Giovio, afirmando que “qualche
buffoneria sempre diceva”. Por uma carta a Pietro Aretino de 6 de outubro de 1541,
Vasari ecoa Berni ao se referir a seu protetor como “quella cicala del Iovio” (aquele
tagarela do Giovio), haja vista a indiscrição do grande erudito.
Ao contrário de Giovio, Vasari desconhece o vitupério e é com sincero pesar que
censura em um artista um excesso ou um vício, em decorrência do qual seu herói não
consegue realizar plenamente o que seus dons lhe prometiam. É o caso, por exemplo, de
Uccello e Pontormo. Nem mesmo quando é mais duro em suas críticas, como no caso
de Bramante, dos Sangallo e, sobretudo, de Bandinelli, cuja função no contexto das Vite
é sabidamente a de fornecer um pano de fundo sombrio sobre o qual Michelangelo
possa melhor refulgir, Vasari é capaz da malícia de Giovio. Nessa qualidade do
temperamento de Vasari – tanto quanto na consciência dos riscos de “jouer à la cour des
Grands” – reside talvez seu segredo de se fazer amar (resguardada a clamorosa exceção
de Cellini) pelas mais contrastantes e temperamentais personalidades de seu tempo, de
Ippolito e Alessandro de’ Medici, a Pietro Aretino, a Giovio e ao próprio Michelangelo.
A revitalização do gênero histórico
Ressaltadas essas diferenças entre os Elogia de Giovio e as Vite de Vasari, é
importante notar que Vasari, por mais que multiplique suas declarações de ser pintor,
não historiador, não deixa passar despercebido em 1550 o paralelismo entre a empresa
do grande historiador que foi seu compariota, Leonardo Bruni, e a sua própria197
. Na
192
Vide infra a nota 168 do Comentário. 193
Burckhardt [1860/1958:222-225, 237] já notava a atenção aos aspectos negativos dos retratos
esboçados por Maquiavel que nos aparecem “sob uma forma horripilante de verdade”. Aos Elogia de
Giovio, Michele Mari se refere como a “Museo degli orrori”, cf. Mari, Prefácio a P. Giovio, Elogi degli
Uomini Illustri [1546/2006:vii-xvi]. 194
Edições integrais das vidas plutarquianas em tradução latina haviam sido publicadas em Veneza em
1478 por N. Jenson, em 1491 por Lucantonio Giunta, em 1496 por B. Zanni e ainda em 1502, sempre em
Veneza, por D. Pincio. Em 1499, J. Britannico publicara-as em Brescia, então sob domínio vêneto. 195
Cf. Elogia [1546:2006:250]. 196
Burckhardt, loc. cit., define Giovio, em sua desmoralização de Egidio da Viterbo (1469-1532), como
um “verdadeiro curial”. 197
Na sua dedicatória a Júlio III, constante em dois exemplares conservados na Vaticana, pois substituída
por outra a Cosimo I. Cf. Ginzburg [2007:150] e Garin [1974/1990:42]: “non si dimentichi che Vasari,
nel ’68 [sic], collocava le Vite in parallelo con ‘le onorate fatiche della istoria fiorentina del suo
xliv
realidade, Vasari e Giovio desfrutarão do mesmo clássico epíteto dos grandes
historiadores, o de dar vida aos mortos. Terminando uma carta de 1° de agosto de 1550
a Vasari (BR:MCXLVIII), Michelangelo escreve:
Mas não me maravilho, sendo vós ressuscitador de homens mortos, que alongais a vida aos
vivos, ou melhor, que aos que mal vivem arrebatais por infinito tempo da morte.
Um epíteto semelhante comparecerá no retrato de Paolo Giovio, nos Ritratti di Storici
da Galeria de Giambattista Marino:
Or che dirà l'Invidia, infame mostro,
che più contro i più degni ha lingua ardita?
Dee morir la memoria di colui
che fa ne' fogli suoi vivere altrui?
(Ora, que dirá a Inveja, infame mostro, / que mais contra os mais dignos tem língua atrevida? / Deve
morrer a memória daquele que faz nos livros seus viver outrem?)
A confirmação de Vasari como historiador era o resultado natural de sua quadra
histórica. As condições para a redação das Vite haviam amadurecido ao longo dos
pontificados de Júlio II (1503-1513) e de Leão X (1513-1521). O surgimento dos ciclos
de Michelangelo e de Rafael no Vaticano em concomitância com o desenvolvimento de
portentosas coleções de esculturas monumentais antigas no Cortile delle Statue, e em
numerosos palácios e vigne de Roma e de outras cortes italianas, aguçavam a percepção
do contraponto entre o antigo e o moderno e favoreciam uma reflexão sobre as relações
entre ambos, bem como sobre a historicidade mesma do “antigo” e do “moderno”.
Estava cada vez mais na ordem do dia o projeto de uma história dotada de senso épico,
capaz de conferir narratividade a um novo tipo de herói, o artista toscano, em vias de
superar os antigos. Da progressiva urgência dessa empresa, não unicamente florentina,
dão prova não apenas os ensaios de Giovio, mas outros bem conhecidos episódios da
pré-história das Vite: as notas de Antonio Billi (1516-1530) e as do Anonimo
Magliabechiano (1541-1545), bem como as de Marcantonio Michiel, as duas últimas
abortadas justamente pela publicação das Vite em 1550198
. Tratava-se de um projeto
acariciado antes por historiadores, literatos e humanistas que por artistas, e deve-se
recordar que, assim como Giovio, Michiel, antes de ser un conoscitore, era um
historiador e é como tal que concebe seu projeto de redigir as Vite de’ pittori e scultori
moderni. O próprio Vasari na Vita de Daniele da Volterra recorda que ninguém menos
que monsenhor Giovanni della Casa chegou a compor, sem provavelmente o terminar,
um tratado sobre pintura:
compatriota messer Leonardo Bruni’” (não se esqueça que Vasari em ‘68 [sic] colocava as Vidas em
paralelo com “as honradas obras da história florentina de seu compatriota Leonardo Bruni”). 198
No caso de Michiel (1484-1552), o projeto parece menos avançado que o do Anonimo
Magliabechiano, mas é impossível avaliar o quanto, pois o manuscrito perdeu-se. Ele é mencionado em
uma cópia da famosa carta do humanista napolitano, Pietro Summonte (1453-1526) sobre as artes em sua
cidade, mas foi abandonado por causa da “opera di un altro”, evidentemente Vasari, cf. Schlosser
[1924/1977:215]. Trata-se de fato editorial então corriqueiro: a edição das Comédias de Terêncio de
1493 frustra a edição que se preparava em Basiléia com perto de 150 ilustrações, parte das quais
atribuídas a Dürer; em 1549, a biografia de Cipião Emiliano (Scipionis Vita) por Antonio Bendinelli
determina a supressão da de Carlo Sigonio, que a compunha em emulação com seu rival, cf. McCuaig
[1989:7]. Da mesma maneira, Rabelais desiste de seu projeto de publicar uma topografia da antiga Roma
ao tomar conhecimento da iminente publicação da Urbis Romae Topographia de Bartolomeo Marliani
[Roma: Antonio Blado, 1534].
xlv
“Tendo monsenhor messer Giovanni della Casa, florentino e homem doutíssimo (como o
demonstram suas elegantíssimas e doutas obras, latinas e vernáculas) começado a escrever um
tratado das coisas de pintura” (...).
Vasari alude, nesse contexto, a uma encomenda a Ricciarelli por Giovanni della Casa,
datável de 1555-1556 – Mercúrio ordena a Enéias que abandone Dido a partir de uma
invenção de Michelangelo –, o que leva a supor que a iniciativa de escrever sobre
pintura date dos anos finais da vida do autor do Galateo, morto em 1556, de onde seu
provável inacabamento. Se a edição torrentiniana das Vite pode tê-lo estimulado a
escrever sobre a arte florentina e italiana, ela certamente não engendrou ex nihilo o
desejo de escrever sobre esse tema, sentido doravante como um gênero novo do saber
histórico.
Engendradas pelos desenvolvimentos artísticos do primeiro vintênio, a redação
das Vite de Vasari transcorre paralelamente a um fenônomeno que se desenvolve ao
longo dos anos 1520-1550 e com o qual ela mantém uma fecunda interação: a
revitalização do gênero histórico. Nesses anos, nascem os grandes monumentos da
historiografia italiana do Quinhentos: as Istorie fiorentine de Maquiavel (1520-1524c.),
a Storia d’Italia de Francesco Guicciardini (1537-1540), a Historiarum sui temporis
(ed. 1550 e 1552) de Paolo Giovio. É sintomático dessa revitalização o fato de que o
Princeps da república das letras latinas e italianas nesses anos, Pietro Bembo, seja
nomeado em 1530 historiógrafo oficial da Sereníssima e componha ao longo desse
decênio sua história de Veneza199
. Conversão similar, e correlativa em Florença, será a
de Benedetto Varchi, que, literato e filósofo, recebe em 1546 do duque Cosimo I a
incumbência de escrever a história de Florença, da qual resultará sua obra-prima200
.
A prosa histórica como gênero elevado nasce, como se sabe, com Leonardo
Bruni em princípios do século XV. Mas a história converte-se aos poucos no
Quatrocentos em encômio da cidade ou do príncipe e, em todo o caso, deixa-se absorver
talvez em demasia em exercícios de imitatio dos monumentos historiográficos da
Antiguidade. Paradoxalmente, é o infortúnio a causa maior de sua nova vitalidade. Esse
paradoxo foi formulado por Eric Cochrane de modo talvez exagerado, mas com grande
poder de síntese, de modo que convém citá-lo em extenso201
:
“Algo como sete décadas após seu nascimento, a historiografia humanista estava morrendo de
inanição. Ela sofria de falta de propósitos claramente definidos, de ausência de um objeto
apropriado, de confusão de metodologia e, sobretudo, de inabilidade em prover uma análise
significativa do presente ou um guia confiável para o futuro. O que a salvou – o que evitou que a
historiografia humanista se tornasse uma forma de literatura puramente decorativa e celebrativa,
o que finalmente a dotou de utilidade política e filosófica (...) – foram as calamità d’Italia”.
A progressiva constatação de impotência político-militar em face das agressões
francesas e espanholas, a falência da Liga de Cognac (última tentativa ambiciosa de
uma coalização de Estados italianos com a finalidade estratégica de retomar o controle
199
De 1483, ano em que se interrompe a Rerum venetiarum ab urbe condita lib. XXXIII de Marco
Antonio Sabellico (1483-1506), a 1513, data da ascensão de Leão X ao trono pontifício. Terminada em
1543 e publicada postumamente em 1552, em tradução italiana, com o título Della historia vinitiana di m.
Pietro Bembo card. volgarmente scritta. Libri 12. Veneza: Gualtiero Scoto. De resto, a história de
Sabellico será traduzida e publicada em 1544 por Ludovico Dolce, outro signo do interesse desses anos
pela historiografia. 200
Cf. Pirotti [1971:30-32]. 201
Cf. Cochrane [1981:163].
xlvi
da península202
) e o subsequente saque de Roma de 1527, enfim, a inaudita violência de
um novo e muito mais destrutivo tipo de guerra entre potências “estrangeiras”, de que a
Itália é ao mesmo tempo cenário e presa, estimulam a reflexão histórica, seja sobre a
grandeza que se tornava memória, seja sobre as origens das calamidades presentes. Um
novo desequilíbrio entre Fortuna e Virtù instala-se aos poucos na concepção mesma da
história, que marca a imensa distância existente entre o penúltimo capítulo do Príncipe
de Maquiavel (1513) e o desencanto em relação ao exemplo de Roma como princípio
norteador da ação, que impregna mentes como a de Francesco Vettori (1474-1539)203
e
de Francesco Guicciardini (1483-1540), vituperado como modelo de cinismo por De
Sanctis em um ensaio memorável204
. Um dos documentos mais expressivos dessa nova
situação histórica é o De litteratorum infelicitate de Pierio Valeriano, escrito em 1529,
obra que dispõe em galeria retratos vívidos e de primeira mão da precariedade
sociológica dos litterati italianos, devida sobretudo às vicissitudes sofridas por seus
mecenas. Vasari deve, talvez mais do que se supõe hoje, a Pierio Valeriano, seu mestre
dos anos 1524-1527, sua maestria no manejo do topos da “fortuna invejosa”, figura
ubíqua e onipotente nas Vite, inclusive na de Michelangelo205
. Deve-lhe talvez ainda
algo do sabor que sabe incutir na anedota, na peripécia e mesmo no infortúnio dos
artistas, talento que frequentemente lembra a perícia de Valeriano em contar como a
felicidade de seus literatos revela-se subitamente antesala de uma atroz infelicidade.
Distanciava-se, em suma, para a Itália aquele dia 2 de maio de 1517, quando
Michelangelo podia ainda afirmar, em uma carta a Domenico Buoninsegni, que tinha
ânimo bastante para fazer da arquitetura e das esculturas de sua fachada da basílica de
San Lorenzo, “o espelho de toda a Itália”206
:
Após 1527, na ordem do dia está menos o ato que a história do feito; menos a
descoberta do saber e das formas, que a história dessa descoberta. Aretino formula essa
nova realidade da mais elegante maneira em sua carta de 23 de junho de 1538 a
Giovio207
, conclamando-o possivelmente a prosseguir na redação do Historiarum sui
temporis, cujo primeiro volume é publicado em 1550:
Ainda que a idade nossa, Monsenhor reverendo, seja por si mesma estupenda, pareceria de
nenhum valor se o magnânimo de vossa pena não desse o corpo aos seus gestos e a alma ao seu
nome. Só o engenho ilustre do sacro Paolo é apto a manter vivos os sentidos dos espíritos em
seus membros.
É a História o elemento convocado para “manter vivos os sentidos dos espíritos em seus
membros”. Se este sentimento de uma história já “realizada” – este “sentiment de
l’histoire accomplie”, como bem o chama Chastel – situa-se a uma grande distância
202
Cf. Pieri [1952:585]: “com o colapso da segunda Liga santa tem fim o último grande esforço que o
italianos, com uma ação ao menos aparentemente concertada, fizeram para reconquistar a própria
liberdade” 203
“Nem se creia que nesta cidade [Florença], haja homem que pense em viver livre, mas cada um pensa
em seu benefício próprio. E estes exemplos de Bruto e Cássio, tão mencionados, são fábulas de se dizer
ao fogo” cf. F. Vettori, Il Sacco di Roma. Dialogo [1527/1972:281]. 204
Cf. F. De Sanctis [1869/1952:III,1-23]. 205
Vide infra o texto e a nota 427 do Comentário. Sobre os sentimentos de ambilavência de Vasari em
relação ao presente e ao futuro, vide infra a nota 12 do Comentário. 206
Vide infra nota 360 do Comentário, com a tradução. Da mesma maneira, em carta de 2 de maio de
1506 (BR:VIII), M. afirmava a Giuliano da Sangallo que o sepulcro de Júlio II será “uma bela coisa como
prometi, pois estou certo de que, se se fizer, o mundo todo não terá coisa equivalente”. Vide infra a nota
200 do Comentário. 207
Ed. Camesasca/Pertile [1526-1554/1957:I,116], carta LXXV, e em Barocchi [1971/1977:II, 255].
xlvii
mental do espírito produtivo de Michelangelo que se prontifica, na acima citada carta de
maio de 1517, a criar (e não rememorar) uma imagem de toda a Itália, essa distância
torna-se astronômica quando confrontada com a petição de princípio de Alberti no Della
Pittura: “Não como Plínio recitamos histórias, mas de novos fabricamos uma arte”.
Maquiavel (1469-1527) é o pensador maior dessa fratura histórica, não só pela
potência de seu pensamento, mas porque sua obra de historiador decorre, ela própria, da
falência de seu projeto existencial de ação política, vale dizer, da falência do projeto
político italiano. Ainda em 1525, ao apresentar sua Istorie fiorentine a Clemente VII,
tenta uma última vez convencê-lo da crucial importância de se criarem milícias
nacionais, mas o papa, imerso em suas ilusões de mediação entre a Espanha e a França,
não podia entender esse último grito de alarme do grande florentino e reduzia seus
livros a obras de leitura apenas deleitosa208
. É irônico que Maquiavel, que não se definia
ainda como “historiador”, seja incluído, quarenta anos após sua morte, na imponente
galeria de historiadores “oficiais” de Florença, pintada em uma arquitetura efêmera em
Porta al Prato, como parte dos preparativos para as núpcias de Francesco de’ Medici
com Joana de Áustria em 1566. Trata-se, salvo engano, da única representação pictórica
de Maquiavel como historiador, documentada graças à descrição circunstanciada de tais
aparatos realizada por Vasari em 1568 ao final da Descrizione degli Accademici del
Disegno209
. Mas não é somente sob tal aspecto que Vasari, como se verá adiante, liga-se
à controvertida recepcão quinhentista do grande florentino.
3 - O presente como problema histórico: a terceira perspectiva
Entre 1513 e 1521, Maquiavel elaborou as bases para a compreensão do que
usualmente se designa pelo termo Renascimento210
. Da historiografia quatrocentista, ele
herdara a convicção de que a Antiguidade é modelo. Mas Maquiavel é talvez o único a
explorar plenamente a dimensão simbiótica dessa relação com a Antiguidade. Nos
Discorsi sopra la Prima Deca di Tito Livio (1514-1517), por exemplo, a República
romana e o presente explicam-se reciprocamente. A similitudo temporum não é apenas o
momento da memória na arquitetura retórica do discurso, mas filosofia da história,
princípio de inteligibilidade do presente. A República romana antiga e sua passagem ao
Império fornecem a Maquiavel, ao mesmo tempo, a percepção da unidade histórica do
presente – uma unidade cujas características essenciais se delineiam em Florença desde
a segunda metade do século XIII – e dos desafios imensos que a ameaçam. Vale dizer
que a interrogação maquiaveliana do modelo antigo permite entender pela primeira vez
o presente como situação histórica e como problema histórico.
208
Veja-se a carta de Francesco Vettori a Maquiavel de 8 de março de 1525, na qual, advertindo o amigo
sobre a possibilidade de que Clemente VII não o gratifique pela Istorie fiorentine, cita uma frase do papa:
“creio que seus livros podem ser lidos com prazer”. Cf. Opere, vol. II, ed. C. Vivanti, Turim: Einaudi,
1999, p. 391. 209
Cf. Vasari, Descrizione della Porta al Prato, in Degli Accademici del Disegno, etc.: “Dos
historiadores, em seguida, viam-se messer Francesco Guicciardini, Niccolò Machiavelli, messer Lionardo
Bruni, messer Poggio, Matteo Palmieri, e os primeiros Giovanni e Matteo Villani e o antiquíssimo
Ricordano Malespini”. 210
Adota-se o termo sem o definir. A definição de qualquer período histórico é desnecessária, impossível
e mesmo indesejável. O saber histórico sobre um período é o conjunto das interpretações que a
documentação disponível suscita. Na impossibilidade de abarcar em uma nota as referências essenciais da
questão desde Burckhardt [1860], pode-se ao menos mencionar a última: um conjunto de textos reunidos
em torno da possibilidade de uma “teoria do Renascimento”, cf. Elkins, Williams [2008].
xlviii
Essa unidade de quase três séculos de história florentina (1250-1520) é
onipresente no pensamento de Maquiavel. Sua Istorie Fiorentine é, como se sabe, uma
obra encomendada em novembro de 1520 pelo Studio fiorentino e indiretamente pelo
cardeal Giulio de’ Medici, que, eleito papa em 1523, recebe-a das mãos de Maquiavel
em Roma em 1525. Tratava-se de uma chance preciosa de consolidar sua reabilitação
junto aos Medici, após a prisão de 1513 e seu subsequente isolamento211
. Nos mesmos
anos da composição dessa obra, outra encomenda evoluía no salão nobre da villa de
Poggio a Caiano: os afrescos celebrativos da Idade de Ouro dos Medici, encomendados,
ao que parece, também por Giulio de’ Medici a partir de um programa formulado por
Paolo Giovio, então em ascensão na corte de Leão X. Entre 1519 e 1521, Franciabigio
aí executa o afresco representando o Retorno triunfal de Cícero do exílio, alusivo ao
retorno de Cosimo il Vecchio de seu breve exílio em 1434, ano marcante da ascensão
dos Medici ao poder212
. A prudência aconselhava que também Maquiavel começasse
sua Istorie fiorentine em 1434. A tarefa delicada de seu Proemio será, por isso, justificar
outro começo. Não obstante Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini, “dois
excelentíssimos historiadores, tivessem narrado circunstanciadamente todas as coisas
que de lá para trás haviam ocorrido” (“due eccellentissimi istorici, avessero narrate
particularmente tutte le cose che da quel tempo indrieto erano seguite”), era preciso
recontar essa história pré-1434. É que a tais historiadores havia escapado, segundo
Maquiavel, o princípio de contradição – “as discórdias civis e as intrínsecas inimizades”
– que confere unidade e inteligibilidade não apenas àqueles anos, mas à história
sucessiva de Florença. Tratava-se de entender a Florença dos anos 1434-1512 a partir de
uma situação histórica que tem sua gênese em outubro de 1250 com o estabelecimento
de um poder Guelfo contra o qual nada mais pode Frederico II às vésperas de sua morte.
Tal situação define-se justamente pelo problema que lhe confere a consistência de
período histórico, caracterizado no caso pela dramática incapacidade da cidade de
transformar os conflitos internos em uma situação de hegemonia213
:
E, sem dúvida, se Florença tivesse tido tanta felicidade que, após se liberar do Império, tivesse
tomado uma forma de governo capaz de a manter unida, não sei que república, moderna ou
antiga, ter-lhe-ia sido superior.
A história de Florença, em seu entender, é a história de sua capacidade de superar o
conflito externo (com o Império) e de sua incapacidade de superar o conflito interno
(entre suas camadas sociais)214
. A liberdade em relação ao inimigo externo fora
conquistada215
, mas não a liberdade republicana, isto é, a estabilidade de suas
211
Em 1519, o cardeal Giulio de’ Medici encomendara a Maquiavel um parecer sobre o futuro regime da
cidade de Florença. Ele escreve o Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii
Medices, texto que assinala um seu modesto retorno aos negócios públicos. 212
Cf. Vasari, Vita di Francia Bigio: “quando Cícero é carregado pelos cidadãos romanos para a glória
sua. Essa obra fora encomendada pela liberalidade de Leão X em memória de Lorenzo, seu pai (...); tais
[histórias] foram dadas a Andrea del Sarto, Jacopo Pontormo e Franciabigio pelo doutíssimo historiador
messer Paolo Giovio, bispo de Nocera, então predileto do cardeal Giulio de’ Medici”. Cf. Price
Zimmermann [1995:34]. McKillop [1974:67-76] propõe variantes à narrativa vasariana que não alteram
substancialmente seu teor. 213
Texto da edição de M. Martelli, Tutte le opere, Florença, Sansoni, 1971, p. 633. 214
É verdade que Leonardo Bruni vincula a prosperidade de Florença à derrota do opressor imperial em
1250, mas ele não vê nos conflitos internos da cidade seu problema histórico de base. 215
Esta é a percepção básica das Istorie segundo, por exemplo, Francesco Minerbetti que, entre 1521 e
1525, comenta sua leitura da obra em uma carta a Maquiavel: “(...) ao escrever a gesta pátria a partir de
1250, quando teve princípio certa forma de liberdade”. Cf. Opere, vol. II, edição de C. Vivanti, Turim,
Einaudi, 1999, p. 463.
xlix
instituições, garantida por uma hegemonia consentida. Para Maquiavel, o conflito é o
elemento que confere à série de eventos políticos a possibilidade de ser percebida como
uma unidade internamente definida. Os anos 1250-1520 configuram um período
histórico delimitado, não por um critério externo – encomiástico, memorial ou religioso
–, mas por uma razão que lhe é intrínseca: a permanência de um mesmo problema ou de
uma mesma problemática.
Também nos Discorsi sulla Prima Deca di Tito Livio (I,2), a “perfeição” da
República romana decorre da “desunião” entre o Senado e a Plebe:
[Roma] permanecendo mista [i.e., regida pelo Consulado, o Senado e o Tribunato da Plebe], fez
uma república perfeita, perfeição que advém da desunião entre a Plebe e o Senado.
A República romana explica a florentina por contraste. O que é comum a ambas
as situações históricas, e permite que se expliquem reciprocamente, é o problema de
como construir harmonia a partir da desarmonia. Lembre-se, enfim, que o mesmo pode-
se concluir da análise da virtù, noção que se opõe (de modo complementar) à de
situação histórica. Quando se trata de mostrar o modelo do condottiere moderno, é mais
uma vez a uma personagem dos séculos XIII-XIV, Castruccio Castracani (1281-1328),
que Maquiavel recorre para a composição de uma biografia exemplar. Exemplar,
porque, personagem construída sobre a tópica do César plutarquiano, Castracani
constitui em 1300 o modelo da ação político-militar requerida para a superação do
problema histórico, não apenas florentino, mas italiano, que se reencarna em César
Borgia.
Não apenas para Maquiavel e não apenas para a história política, a situação e o
problema histórico dos anos 1480-1520 se deixam apreender a partir das revoluções
florentinas da segunda metade do século XIII. Por volta justamente de 1480, a perdida
Raccolta aragonesa, florilégio de poesia, sobretudo toscana, reunido por Angelo
Poliziano (1454-1494) e Lorenzo de’ Medici e oferecido por este último a Federico
d’Aragona, filho do rei de Nápoles, compreendia 449 poemas e abrangia desde os
poetas sicilianos do século XIII aos protagonistas dos stil nuovo, e da Vita nova de
Dante a alguns sonetos do próprio Lorenzo, compostos para a morte de Simonetta
Cattaneo (1453c.-1476), esposa de Marco Vespucci. Não por acaso Gianfranco Contini
considera a Epistola que lhe serve de introdução “a primeira reflexão crítica sobre
nossa poesia, se se prescinde do De vulgari [eloquentia]” de Dante, pois compreende
plenamente como a língua e imitação literária dos modelos antigos (em latim e em
italiano) haviam definido seu destino em Florença entre os séculos XIII e XIV. A
Raccolta é o documento princeps que permitirá a Pietro Bembo definir esse destino na
encruzilhada entre a aspereza conceptista de Dante (1265-1321) e a elegância cortês de
Petrarca (1304-1374). É, de fato, a partir desses dois modelos literários – concebidos em
emulação com Virgílio e, secundariamente, com outros expoentes da épica e da lírica
latinas – que se define a situação literária italiana no Quinhentos. Dante e Petrarca
ressurgem nas edições Aldine propostas por Bembo no biênio 1501-1502 como
referências basilares da questão presente da língua e da literatura italianas, questão que
Bembo cristaliza em 1525 na Prose della Volgar Lingua, ponto de partida, por sua vez,
de um debate que dominará o segundo quarto do século XVI. Importa notar, aqui, que
essa correpondência entre unidade política e unidade linguístico-literária da Florença
dos anos 1250-1520, essa correspondência entre duas perspectivas – a de Maquiavel e a
l
de Bembo (personalidades em tudo o mais tão diversas216
) –, configura-se como uma
tríade de consonâncias (política, linguístico-literária e artística) quando Vasari faz
igualmente nascer na Toscana da segunda metade do século XIII, com Cimabue e
Giotto (e em 1568 com Nicola Pisano), a situação histórica e o problema histórico da
arte italiana de seu tempo.
Como Maquiavel, Vasari não deduz a história de uma teoria, mas consegue
estabelecer um diálogo incessante entre uma sua filosofia da história, a cadeia viva dos
eventos narrados e o que se pode chamar de crítica de arte217
, tal como atesta o Proêmio
da Segunda Parte em que se define esse equilíbrio, desde então insuperado:
e esforcei-me não só em dizer o que [os nobilíssimos artistas] fizeram, mas ainda em eleger,
discorrendo, o melhor do bom e o ótimo do melhor, e notar diligentemente os modos, os
semblantes, as maneiras, os traços e as fantasias dos pintores e dos escultores, investigando, o
melhor que soube, para ensinar aos que por si mesmos não sabem fazê-lo, as causas e as raízes
das maneiras, e do progresso e declínio das artes ocorrido em diversos tempos e em diversas
pessoas.
A tal programa das Vite em que a crítica, o evento e suas causas se entrelaçam, livres de
todo a priori, poder-se-iam aplicar, sem alterar uma vírgula, as palavras de Gennaro
Sasso sobre as Istorie fiorentine de Maquiavel218
:
Sem aderir ao velho juízo segundo o qual, nesse livro, os fatos teriam sido assujeitados ao
tirânico império da teoria, e, ao contrário, rejeitando esse juízo e decididamente recusando-nos a
assumi-lo como termo de discussão, será necessário dizer, antes, que a autêntica e difícil questão
posta pelas Istorie fiorentine reside em sua capacidade de estabelecer, não com palavras, mas nos
fatos, o nexo entre a historicidade intrínseca à teoria politica de Maquiavel e a mais profunda
historicidade que, ao retornar àquela sua ‘origem’, que é a história de Florença, ele consegue por
fim determinar.
Também em Vasari encontra-se realizado esse nexo entre “historicidade
intrínseca” e “mais profunda historicidade” decorrente do exame das origens do
presente como problema histórico. Mas além dessa unidade entre presente e passado,
entre história e filosofia da história, Vasari mantém com Maquiavel outra afinidade,
qual seja uma mesma consciência de historiador do significado do futuro. Como seu
grande predecessor, Vasari sabe que o futuro não será melhor que o presente; sabe, em
suma, para dizê-lo com Garin, que para a Itália “è cominciata la stagione sucessiva”219
.
Ao nos aproximarmos de Vasari, devemos manter em mente a premissa de que suas
216
Nada é mais oposto aos anseios transformadores de Maquiavel que a adesão ao establishment curial de
Bembo. Embora amigo de personagens de grande inquietude religiosa, como Vittoria Colonna, Contarini,
Reginald Pole, Carnesecchi, Marcantonio Flaminio e outros, Bembo, como bem afirma Dionisotti, DBI e
[2002:164], “era homem para quem o cardinalato [obtido em 1539], em uma igreja visível que estivesse
na vanguarda da cultura humanista e humana, valia bem uma missa”. 217
Sobre Vasari crítico de arte, cf. Longhi [1950/1985:13]: “No Quinhentos, malgrado as denegações de
nossos professores de doutrina, na antologia [de uma crítica de arte] terá um belo lugar Vasari, não
obstante muitos preconceitos, antes, justamente pela força com que sabe superá-los no momento justo.
Não era pouco, que um dos principais atores do maneirismo, como era Vasari, conseguisse recuperar o
sentido de proximidade de certo grande Trezentos”. A alusão aos “professores de doutrina” visava
possivelmente Ragghianti [1933:736-826], mas se aplicaria hoje a Price Zimmermann [1976:406], entre
outros. Bastaria lembrar, por exemplo, a noção vasariana de “dipingere unito”, estudada por Longhi em
seu ensaio sobre Stefano Fiorentino, para refutar a ideia de que falta a Vasari: “a developed critical
vocabulary and well articulated critical standards” (Price Zimmermann). 218
Apud Garin [1993:29]. 219
“Começaram os tempos sucessivos”. Cf. Garin [1974/1990:47]. Sobre o pessimismo de Vasari a
respeito do destino da Itália, veja-se, por exemplo, sua carta a Ottaviano de’ Medici de 20 de abril de
1544 (Milanesi, XXXIV).
li
Vidas são – após Maquiavel e Bembo –, como a terceira perspectiva de uma mesma
reflexão sobre o presente histórico como situação e como problema, da qual surgirá –
mais que das grandes matrizes historiográficas oitocentistas – a imagem melhor que
podemos nos fazer hoje de seu tempo220
.
220
Não se trata de retomar a ideia de Chabod segundo a qual em Vasari converge a “formulação clássica”
do conceito de Renascimento, ideia cujos limites foram postos em evidência por Garin [1974/1990:39-
47]. Trata-se, entretanto, de perceber que, assim como Castracani e Petrarca são, para Maquiavel e
Bembo respectivamente, auctoritates em prol de uma atualíssima agenda, assim também Cimabue e
Giotto não figuram nas Vite como simples incipit encomiástico da glória florentina, mas como parte
atuante e imprescindível de uma crucial elaboração do sentido do presente.