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I Colóquio Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade nas Artes Performativas e Audiovisuais Matemática e Movimento em Performance: um estudo de caso Telma João Santos “A matemática, é preciso dizê-lo, é muito bonita. Tem afinidades com a estética, com o corpo, com tudo.” (José Gil) Introdução Conceitos como conjunto, sucessão, função, continuidade, limite, bem como turbulência, são apenas alguns exemplos de noções matemáticas que são, de alguma forma, parte também do vocabulário usado em processos de criação artística. São de alguma forma porque de facto estas noções não estão ainda formalmente assentes ou definidas no contexto dos estudos em performance. Proponho aqui usar alguns destes conceitos em diversas camadas através de um estudo de caso. Apresento neste artigo um modelo aberto em processos artísticos onde alguns dos conceitos são apresentados como uma base teórica para um processo de construção onde está presente a interdisciplinaridade entre matemática e performance com a utilização de uma reformulação (ou remediation 1 ) desses conceitos, e onde outros conceitos pertencem a outras camadas no contexto da construção, sendo ferramentas concretas com as quais se manipulam e constroem novas interpretações possíveis relativamente ao objecto final, e onde surge um trabalho transdisciplinar a partir das relações entre a matemática, as técnicas de dança, a performance, a multimédia (e também a antropologia visual). Neste artigo apresento também um estudo de caso, a performance On a Multiplicity, onde a matemática é usada em várias direcções no seu processo de construção e que, juntamente com a improvisação de movimento onde são usadas técnicas de dança e 1 Para mais detalhes relativamente ao conceito de remediation e seu enquadramento no contexto da arte e dos estudos da performance ver (Santos 2013).

"Matemática e Movimento em Performance: um estudo de caso" Conference Paper, PT, FLUL, 2014

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I Colóquio Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade

nas Artes Performativas e Audiovisuais

Matemática e Movimento em Performance:

um estudo de caso

Telma João Santos

“A matemática, é preciso dizê-lo, é muito bonita. Tem afinidades com a estética, com

o corpo, com tudo.” (José Gil)

Introdução

Conceitos como conjunto, sucessão, função, continuidade, limite, bem como

turbulência, são apenas alguns exemplos de noções matemáticas que são, de alguma

forma, parte também do vocabulário usado em processos de criação artística. São de

alguma forma porque de facto estas noções não estão ainda formalmente assentes ou

definidas no contexto dos estudos em performance. Proponho aqui usar alguns destes

conceitos em diversas camadas através de um estudo de caso.

Apresento neste artigo um modelo aberto em processos artísticos onde alguns dos

conceitos são apresentados como uma base teórica para um processo de construção

onde está presente a interdisciplinaridade entre matemática e performance com a

utilização de uma reformulação (ou remediation1) desses conceitos, e onde outros

conceitos pertencem a outras camadas no contexto da construção, sendo ferramentas

concretas com as quais se manipulam e constroem novas interpretações possíveis

relativamente ao objecto final, e onde surge um trabalho transdisciplinar a partir das

relações entre a matemática, as técnicas de dança, a performance, a multimédia (e

também a antropologia visual).

Neste artigo apresento também um estudo de caso, a performance On a Multiplicity,

onde a matemática é usada em várias direcções no seu processo de construção e que,

juntamente com a improvisação de movimento onde são usadas técnicas de dança e

                                                                                                               1 Para mais detalhes relativamente ao conceito de remediation e seu enquadramento no contexto da arte e dos estudos da performance ver (Santos 2013).

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de performance, permitem um conjunto de conexões intersubjectivas através da

multimédia. Proponho ainda a performance On a Multiplicity também como um

ambiente onde a questão “como é que me apresento ao exterior – ou ao mundo” é

essencial2, referindo-me às formas actuais de comunicação e performance do

indivíduo nas redes sociais e profissionais onde várias variáveis estão presentes, bem

como diferentes noções do que é o “real” e o “virtual”.

Na primeira secção este artigo vou apresentar algumas relações interdisciplinares e

transdisciplinares já conhecidas entre a matemática e a dança ou entre a matemática e

a performance. Na segunda secção vou abordar em geral como se relacionam a

matemática, o movimento e a multimédia na construção de uma performance, usando

conceitos gerais, bem como um modelo e uma abordagem bastante generalizados para

que o estudo de caso On a Multiplicity seja no final visto como um exemplo concreto

desta mesma abordagem. Na terceira secção vou reflectir sobre o que esta nova

abordagem nos traz de novo nas perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar. Na

quarta e última secção vou apresentar a performance On a Multiplicity, descrevendo-a

e apresentando-a também como um exemplo concreto do modelo abordado

anteriormente bem como exemplo das relações inter e transdisciplinares entre a

matemática, o movimento e a multimédia, tendo em conta ainda uma perspectiva

autoetnográfica e documental.

1. Algumas relações interdisciplinares e transdisciplinares conhecidas entre a matemática e a dança ou entre a matemática e a performance  Tradicionalmente a Matemática e a Dança são olhadas como elementos dualistas, no

sentido em que a Matemática está “naturalmente” associada a um lado lógico-racional

do indíviduo, e a Dança, ou o Movimento num sentido mais geral, associada a um

lado sensório-emocional. Alguns trabalhos têm sido realizados entre a Matemática e a

Dança, o que nos permite afirmar que o dualismo racional/emocional através da

relação Matemática/Dança tem sido abandonado nestas últimas décadas, com o

trabalho de vários Matemáticos, Coreógrafos, Performers, como por exemplo a dupla

Erik Stern & Karl Schaffer, Katarzyna Wasilewska e Esther Ferrer.

Erik Stern & Karl Schaffer têm desenvolvido um trabalho em torno da

divulgação do movimento do corpo como parte da aprendizagem de conceitos

                                                                                                               2 Esta pergunta tem a sua origem em (Noe 2012).

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matemáticos, bem como na construção de coreografias onde são abordadas teorias da

Matemática. Erik Stern é biólogo e bailarino/coreógrafo e ensina dança na

Universidade Weber State em Ogden Utah (EUA) e Karl Schaffer é matemático e

bailarino/coreógrafo e ensina matemática no DeAnza College em Cupertino,

Califórnia (EUA) e juntos criaram em 1987 a companhia de dança Dr. Schaffer and

Mr. Stern Dance Ensemble, bem como têm percorrido imensas escolas e

universidades a partilhar o que a dança e a matemática juntas podem acrescentar

quando são apreendidas de forma interligada.

Katarzyna Wasilewska fornece-nos em (Wasilewska 2012) um “piscar de

olhos” a um estudo sobre algumas direcções em que ferramentas e teorias da

matemática trazem novos olhares sobre um espectáculo de dança. Neste artigo, a

autora descreve várias relações entre a Matemática e a Dança; aquela que

aparentemente está mais relacionada com a Dança, ou a que reconhecemos em geral

como sendo a mais próxima é claramente a geometria. Em geometria, podemos

considerar formas, ângulos, simetrias em vários aspectos diferentes da dança, e nos

vários momentos que compõem um espectáculo, desde um momento em que um

bailarino está imóvel e em silêncio no palco, até a um grupo de bailarinos em

movimento a ocupar um palco. Ou seja, podemos “olhar” para as linhas que um corpo

descreve no espaço, bem como as que vários corpos descrevem nas relações que

estabelecem. Quanto maior o número de bailarinos, maior é o nº de relações possíveis

no seu conjunto. Um espectáculo de dança, quando olhado como um conjunto de

elementos que mudam de posição à medida que o tempo passa, pode ser visto também

como um sistema dinâmico multidimensional: consideramos a posição de cada

bailarino no espaço como os elementos do sistema, e podemos explorar o

comportamento do sistema à medida que o tempo passa. É ainda possível olhar para o

sistema de bailarinos e observar como certos tipos de movimento aparecem, e

estaremos assim a explorar as propriedades estatísticas da peça. Podemos estudar a

proporção de tempo em que os bailarinos estão a usar movimentos suspensos ,

movimentos no chão, ou saltos, e podemos também analisar quantos movimentos

staccato ou fluídos, rápidos ou lentos há ao longo do espectáculo. Estas possibilidades

de estudo e análise podem ser ferramentas muito importantes ao longo do processo de

construção do espectáculo, no sentido em que é possível relacionar o ritmo que se

pretende com a variedade de possibilidades de posicionamento e movimento do

corpo.

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Refiro aqui também a performer do país basco Esther Ferrer devido à sua

relação com o corpo enquanto ferramenta essencial de todo o seu trabalho, bem como

a questão recorrente do infinito que Esther Ferrer trabalha através dos números

primos, ou através da existência de números irracionais ou dízimas infinitas não

periódicas como o π, ou seja, a sua relação com conceitos matemáticos.

Relativamente aos números primos, e como não se sabe no infinito se estes se

manterão como números primos ou se no infinito todos os números serão divisíveis

por outros números que não eles próprios e a unidade. Relativamente a π, impõe-se a

questão de saber se algum dia se chegará ao último decimal de π. Para Esther Ferrer

os números primos estão de alguma forma relacionados com o cosmos no sentido em

que o cosmos está em expansão, e por outro lado quanto mais se avança na série de

números primos, mais distância existe entre eles, como se respirassem e se

ampliassem.

2. Como se relacionam a Matemática, o Movimento e a Multimédia na

construção de uma Performance

Nesta secção vamos abordar alguns conceitos mais gerais onde a matemática, o

movimento e a multimédia são utilizados na construção de uma performance. De uma

forma geral, temos o esquema:

 

   

Performer

Movimento Técnicas de Imp

(Laban) Corpo-Instrumento

Multimedia Técnicas de Edição Corpo-Memória

Matemática Conceitos-Construção Foco no Movimento

Performance

Multiplicidade de Auto-Representações

Identidade Media/Redes Sociais

Construção contra-exemplos para o Dualismo

Cartesiano

Processo documental autoetnográfico

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Existem várias direcções nas quais a matemática, o movimento e a multimédia se

relacionam. Na construção da performance On a Multiplicity está implícita uma

estrutura: são apresentadas projecções de multimédia a partir de vídeos como registo

de improvisação de movimento bem como sobre vários discursos sobre a construção

da performance e sobre o trabalho de pesquisa que se está a desenvolver. A esta

primeira camada chamamos o trabalho autoetnográfico que é depois transformado em

material visual e sonoro. Os discursos podem ser também sobre a investigação em

Matemática desenvolvida ao longo da construção da performance propriamente dita.

A performance final é composta por projecções de vídeo e som, bem como

improvisação de movimento e som em tempo real.

Assim, temos 4 direcções específicas:

1. Foco na investigação (em curso) em matemática antes ou durante a improvisação

em movimento que é filmada e depois projectada na performance;

2. Utilização na performance dos discursos de apresentação de resultados da

investigação em matemática em conferências – som editado e som trabalhado em

tempo real;

3. Utilização de alguns conceitos de matemática na construção de paradigmas nos

processos de criação em performance;

4. Performance como matriz intersubjectiva resultante de investigação e

experimentação em matemática, movimento e multimédia.

Relativamente ao ponto 1, temos então 2 sentidos ou camadas de relação entre a

investigação em matemática a que o intérprete se dedica no decorrer do processo de

criação como foco de pensamento: uma delas diz respeito a pelo menos 5 horas de

investigação em matemática (seguidas) e no máximo 10 minutos de pausa entre o

final destas 5 horas e a improvisação em movimento filmada. A outra é o foco na

investigação em matemática (em curso) durante a improvisação em tempo real na

apresentação pública da performance. Nesta direcção estamos então a referir-nos à

relação entre a matemática e a improvisação de movimento, seja a que se segue a

várias horas de foco na investigação em matemática e que é filmada, seja a que

acontece durante a apresentação pública da performance. Aqui apenas nos referimos

ao foco de pensamento e atenção na investigação em matemática, seja porque o

intérprete passou várias horas com esse foco de atenção e em seguida improvisa

movimento, não com o foco na investigação em matemática mas com a influências

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que as várias horas com esse foco deixaram, seja o foco de atenção enquanto

improvisa movimento em tempo real. Há assim uma relação interdisciplinar entre a

matemática e a improvisação de movimento, e portanto entre a matemática e a dança

no sentido em que se tenta de alguma forma relacionar a matemática e a dança,

usando a matemática como foco de pensamento e as técnicas de dança como

instrumentos concretos. No entanto há também uma relação transdisciplinar entre a

matemática e a improvisação de movimento no sentido em que a improvisação de

movimento após várias horas de foco na investigação em matemática deixa de ser

apenas improvisação de movimento com o foco de atenção noutro tema qualquer e

passa a ser um intérprete específico a criar um novo ambiente de improvisação de

movimento a partir de estados de percepção específicos consequentes das várias horas

de investigação em matemática. A transdisciplinaridade está também presente quando

existe o foco de atenção na investigação em matemática enquanto o intérprete

improvisa movimento em tempo real na apresentação da performer, no sentido em

que, também pelo facto de a investigação em matemática se debruçar sobre problemas

novos e ainda por resolver, permite o aparecimento de um conjunto de novas

abordagens nos estudos da performance.

No que respeita o ponto 2, ou seja, a utilização na performance dos discursos de

apresentação de resultados da matemática em conferências – som editado e som

trabalhado em tempo real, temos presentes a utilização de raciocínio matemático

associado à investigação que decorre no contexto e ao longo do processo de criação

artística, bem como a forma como ela é partilhada em contexto de conferências de

matemática como uma das ferramentas multimédia na performance. Ou seja, são

gravadas – o som apenas - réplicas das apresentações feitas, ou a fazer no futuro, em

conferências de matemática, e em especial de Cálculo das Variações, que são depois

editadas e reformuladas como material sonoro a utilizar na performance concreta.

Também em tempo real são executados alguns excertos dessas apresentações ou

preparações das mesmas como material performático, e portanto como objectos. A

utilização dos discursos de matemática como objectos na criação artística é um

elemento transdisciplinar desta proposta para processos de criação artística, pois

pretende gerar-se um conjunto de multiplicidades onde estejam presentes a

matemática, a multimédia e a autobiografia no contexto da performance. O som

gravado e manipulado é usado como banda sonora dos vídeos de improvisação de

movimento gravados após várias horas de estudo e foco de atenção sobre os

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problemas sobre os quais os discursos se debruçam. O som em tempo real está

associado a discursos relativos à investigação em curso na altura da apresentação

pública. Ou seja, se existir um intervalo suficientemente grande entre duas

apresentações, existirão excertos de discursos diferentes em tempo real. Isto acontece

pelo facto deste trabalho ser auto biográfico e também autoetnográfico, e assente na

improvisação e na relação com o tempo “real” como técnicas principais.

Esquematicamente, temos:

Relativamente ao ponto 3, ou seja, a utilização de alguns conceitos de matemática na

construção de paradigmas nos processos de criação em performance, vamos

apresentar um pouco melhor uma proposta de modelo de criação artística, que assenta

em alguns conceitos matemáticos na sua base, mas que pode na verdade ser visto

como um modelo bastante geral. Começamos então por introduzir alguns conceitos e

em seguida descrever o modelo e a forma como ele pode ser entendido e aplicado.

Assim, temos:

Definição 1.1 Um axioma é uma proposição que não é demonstrada, mas

considerada como auto-evidente ou sujeita a decisão necessária. Assim, a sua

verdade é tomada como certa e serve como ponto de partida para a dedução de

outras verdades (estas já dependentes de uma teoria).

Utilização de raciocínio matemático associado à investigação e à forma como ela é partilhada em contexto de conferências como uma das ferramentas

multimédia na performance.

Som Editado a partir da réplica de uma apresentação

pública

Som em tempo real a partir das questões que estão a ser

investigadas

Gerador de multiplicidades no contexto da performance  

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A noção de axioma refere-se naturalmente ao que não é demonstrado ou

questionado no que respeita a sua origem, dentro de um processo de criação. Por

exemplo, a ideia inicial ou conceito de partida de uma performance concreta tem uma

origem axiomática. Reflecte-se sobre ela, mas não se questiona o seu aparecimento. A

partir deste conceito deduzem-se e encontram-se outros conceitos, mas considero

neste trabalho o primeiro conceito inquestionável na origem.

Neste modelo são usadas definições como as de Imagem Axiomática, Sub-Imagem e

Dinâmica que introduziremos mais à frente. Para tal, vamos primeiro introduzir o

conceito de imagem como é entendida neste artigo e neste contexto. Em (Damásio,

The Feeling of What Happens: Body, Emotion and the Making of Consciousness

1999) António Damásio afirma que o termo “imagens” significa os padrões mentais

com uma estrutura construída usando a moeda corrente de cada uma das modalidades

sensoriais: visual, auditiva olfactiva, gustativa, somatosensorial”. De forma muito

simples, podemos dizer que a forma como entendemos e lidamos com o mundo que

nos rodeia traduz-se no cérebro como um conjunto de imagens pertencentes a

diferentes níveis de consciência. Este conceito de “imagem” é o que vou seguir neste

trabalho, ainda que se entendam aqui as modalidades sensoriais de forma não-

dualista, ou seja, também relacionadas com as imagens abstractas.

Os padrões mentais têm uma natureza organizada e estruturada, ainda que não

tenhamos conhecimento total sobre o que acontece no cérebro. Os neurocientistas

ainda procuram uma resposta definitiva para a forma como gerimos estas “imagens” e

as transformamos em conceitos. Neste processo de consciência e gestão das imagens

no cérebro, também autores como Alva Noë discutem e argumentam a importância da

experiência do corpo, a forma como o mundo se nos mostra/apresenta/representa e

como nós nos mostramos/apresentamos/representamos ao mundo (ver por exemplo

(Noë 2002)). Neste trabalho sigo a ideia defendida por Alva Noë de que a consciência

não é algo que acontece, é algo que fazemos, indo para além da ideia de que a

consciência é algo que está dentro de nós, separada do mundo exterior, o que

podemos ainda considerar uma outra forma de dualismo.

Uma ferramenta muito importante é o valor atribuído às imagens e padrões

mentais. Uma abordagem mais abrangente às noções de imagem e o seu valor é

fornecida em (Damásio, Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain

2010): o autor defende que o dualismo cartesiano não faz sentido pois a partir dos

casos estudados, emoção é também razão e razão é também emoção, corpo é também

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mente e mente é também corpo, em diferentes proporções, dependendo das

circunstâncias e respectivo valor que lhes atribuímos. Assim,

Definição 2.1 Uma Imagem Axiomática (IA) é uma imagem inicial que surge

axiomaticamente, tendo como condições suficientes a criação de consciência e de

padrões mentais relativamente ao que rodeia um indivíduo, e que permitem que tal

aconteça.

Uma Imagem Axiomática é uma proposição que não é demonstrada, o que em

qualquer performance específica pode ser visto como um conceito, ideia ou universo

conceptual limitado, que não pode ser demonstrado, sendo a sua validade tomada

como certa. A origem axiomática da Imagem Axiomática é quase sempre não lógica,

no sentido em que no contexto de uma qualquer performance específica lidamos

principalmente com ideias, conceitos e acções subjectivos e que derivam de outras

mais simples. Assim, não tem que ser verdadeira universalmente, apenas considerada

certa no contexto de alguma perspectiva de vida e arte, com teoria e conceitos

matemáticos associados.

Qualquer processo de criação tem o seu início efectivo quando a IA surge e

começa a ser modelada no processo de construção de padrões mentais e consciência

dos mesmos. Obviamente, determinamos o momento do seu aparecimento como

aquele em que nos apercebemos da sua origem e pertinência. Podemos também

afirmar que a IA define o universo de pesquisa em que o performer está envolvido.

Podemos também dizer que temos uma IA que surge como um conjunto de conjuntos

de padrões mentais. Depois de um processo de improvisação e compreensão das

capacidades de percepção, considerando-as teoricamente, obtemos várias funções

quase-contínuas, cada uma delas associada a um conjunto de padrões mentais nos

quais todas essas técnicas de improvisação, percepção e teoria se juntam. O passo

essencial é considerar e analisar os limbos de cortes destas funções quase-contínuas,

pois estes pontos são aqueles em que podemos mudar de direcção ou criar novos

universos multidimensionais.

Em seguida temos então a definição de Sub-Imagem:

Definição 2.2 Uma Sub-Imagem (SI) é uma imagem que é um corte no processo de

disseminação quase contínua da IA.

Claro que existem muitas – podem até ser infinitas – possibilidades de

considerar e definir Sub-Imagens, dependendo das funções quase-contínuas, e

também dos cortes considerados ao longo do processo de criação. Existe um ponto –

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ponto limite – neste processo de gerar as SI no sentido em que, quanto mais SI

gerarmos, mais tendemos a distanciarmo-nos da IA, pois é um universo limitado.

Assim, existe um momento em que paramos, pois atingimos ou aproximamo-nos –

com uma distância infinitesimal - do ponto limite que pertence à fronteira do conjunto

mais geral definido pela IA. Se não pararmos, passamos a fronteira e atingimos o

exterior da IA, o que já não nos interessa neste trabalho.

Cada SI pode ser vista como um conjunto onde podemos considerar uma função que

representa todas as acções dentro da SI. Também podemos considerar subconjuntos

onde as funções diferentes são definidas. No contexto da criação de Dinâmica dentro

de cada SI, estas funções estão associadas a acções concretas. Como criar esta

Dinâmica? Consideramos um primeiro movimento ou acção ou ainda estado de

presença/ausência como axiomático. Em seguida seguimos a metodologia já

introduzida - em que geramos SI a partir da IA – usando técnicas de improvisação e

percepção tal como abordagens teóricas associadas neste contexto específico. Estas

técnicas e abordagens teóricas levam-nos a gerar funções quase-contínuas com pontos

de descontinuidade que serão os cortes que analisamos e nos quais podemos parar ou

continuar o percurso associado à função utilizada, ou ainda mudar de direcção e este

corte torna-se um ponto de mudança para outras direcções possíveis. Ou seja,

Definição 2.3 A Dinâmica dentro de uma SI é um conjunto de funções quase

contínuas do conjunto de técnicas de improvisação e percepção, bem como de

abordagens teóricas num ricochetear entre cortes e continuidade.

Assim, tendo em cada SI um subconjunto e uma função quase-contínua em

que podemos parar, analisar e mudar de direcção nos seus cortes, é também possível

criar subconjuntos de acções, movimentos multidireccionais que farão parte da

narrativa. Isto significa que criamos a partir de um conjunto e de uma função quase

contínua em cada SI várias funções quase-contínuas, tendo em conta as possíveis

mudanças de direcção em cada ponto de descontinuidade ou corte.

Para mais detalhes relativamente aos vários conceitos matemáticos aqui utilizados,

ver (T. J. Santos, On a Multiplicity: deconstructing Cartesian dualism using

mathematical tools in Performance 2015)

Relativamente ao ponto 4, temos que de facto, e utilizando este modelo lógico

de construção de processos artísticos, uma performance pode efectivamente ser vista

como uma matriz intersubjectiva resultante de investigação e experimentação em

matemática, movimento e multimédia, tendo em conta a pesquisa autoetnográfica

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associada. Como refere Daniel N. Stern em (Stern, The Present Moment in

Psychotherapy and Everyday Life 2004), “our mental lide is cocreated. This

continuous cocreative dialogue with other minds is what I am calling the

intersubjective matrix”, referindo ainda no mesmo livro que obviamente a cocriação

pode ser com a sua própria mente. Ou seja, o diálogo intersubjectivo entre conceitos,

ideias e disciplinas é o que permite a construção de uma matriz intersubjectiva, mas

ela pode envolver apenas o diálogo de uma mente consigo própria, tendo em conta

que cada indivíduo é em si uma multiplicidade. No nosso caso, a matriz

intersubjectiva é cocriada por três elementos: matemática, movimento e multimédia

nas suas várias interelações e interdependências possíveis. Por outro lado, esta matriz

intersubjectiva tem um comportamento rizomático com tendência a líquido, onde

“rizoma” é um conceito de G. Deleuze e F. Guattari e introduzido em (Deleuze e

Guattari 2008), e “líquido” é um conceito de Z. Bauman definido em (Bauman 2000).

Temos então que o nosso modelo pode ser descrito de forma esquemática da seguinte

forma:

 

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3. A Interdisciplinaridade e a Transdiciplinaridade  Nesta secção queremos referir-nos ao que defendemos neste trabalho ser

Interdisciplinar e Transdisciplinar, referindo a importância de ambas para que o

trabalho e a performance sejam válidos de várias perspectivas, seja na perspectiva

científica e respectiva importância que cada disciplina nos traz, bem como as novas

formas de fazer e pensar sobre o que a transdisciplinaridade nos permite. Temos que,

esquematicamente,

O que é neste modelo e nesta abordagem interdisciplinar e transdisciplinar? Existem

aqui 3 disciplinas ou áreas de estudo que são centrais: matemática, movimento e

multimédia. Por um lado existe um trabalho interdisciplinar entre elas no sentido em

que são usadas como ferramentas com o objectivo de fornecerem mais informação e

mais capacidade de compreensão das outras disciplinas. No entanto, o que é mais

interessante e inovador neste trabalho e nesta abordagem é efectivamente a

transdisciplinaridade, no sentido em que estas três áreas geram nas suas relações

intersubjectivas novas formas de fazer performance, bem como novas formas destas

Utilização  de  conceitos  e  ideias  matemáticas  para  apresentar  modelos  de  

criação  artística

Imagem  Axiomática

Sub-­‐Imagens

Dinâmica

Utilização  de  multimédia  para  gerar  um  

corpo-­‐memória  e  multiplicidades  em  

performance  

Registo  de  vídeos  como  memória  de  um  corpo  a  improvisar  movimento

Edição  de  vídeos  que  permite  gerar  a  ideia  de  multiplicidade

Som  editado  e  em  tempo  real

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disciplinas se descreverem, apresentarem, bem como de serem vistas como novas

possibilidades de si. Temos então:

 

4. A performance On a Multiplicity  Nesta secção final vamos então descrever a performance On a Multiplicity e

argumentá-la como exemplo de aplicação do modelo descrito na secção 2.

On a Multiplicity é, na sua forma final, uma performance multimédia, onde a

projecção de vídeo e som, bem como o trabalho de movimento e criação de som em

tempo real, formam uma ideia de multiplicidade. Surgiu da Imagem Axiomática mais

geral de pensar a nossa multiplicidade enquanto seres humanos, com a capacidade de

sermos conscientes das nossas existências e acções, a partir de uma perspectiva

Transdisciplinaridade:

A  matemática  e  as  técnicas  de  dança  como  geradores  de  novos  ambientes  de  movimento  e  novas  formas  de  pensar  a  

matemática

geram-­‐se  novas  fomas  de  movimento

geram-­‐se  novas  possibilidades  em  matemática

A  multimédia  como  elemento  transformador  e  gerador  de  novas  formas  de  construir  matemática,  movimento  e  multimédia.  

geram-­‐se  novas  formas  de  fazer  multimédia

geram-­‐se  novas  formas  de  apresentação  e  representação

Novas  formas  de  fazer  performance  e  de  construir  performers!!!

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pessoal; ou seja, usei a minha experiência pessoal como exemplo de multiplicidade.

Assim, restrinjo o universo da IA para a minha experiência pessoal, para a minha

própria multiplicidade, usando uma abordagem autoetnográfica.

O processo de construção de On a Multiplicity foi dividido em duas fases.

Numa primeira fase, a que decidi chamar Série de Improvisações, documentei-me em

vídeo a improvisar movimento usando algumas técnicas de dança contemporânea, em

especial improvisação a partir da técnica de Laban, e com regras bastantes restritas no

que respeita o espaço e o foco mental. Na segunda fase editei e manipulei estes

vídeos, juntamente com investigação em voz sobre possíveis discursos à volta de

vários assuntos relacionados com matemática e performance, e a partir daí foram

criados dois vídeos com som a serem projectados e com eles construí a performance

concreta, com movimento e som em tempo real. Estas duas fases deste projecto

podem ser vistas como independentes no sentido em que podem ser consideradas

individualmente como objectos artísticos e/ou materiais de investigação.

Fotografia de Filipe Oliveira

Fotografia de Tiago Frazão

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A performance On a Multiplicity pode também ser vista como uma

experiência visual e performativa autoetnográfica, em especial por três razões: em

primeiro lugar, porque este trabalho tem uma série de experiências visuais

documentais onde estou essencialmente interessada em mim como um ser com

multicamadas contextualizado num tempo, num espaço e num lugar. Em segundo

lugar, acredito que esta performance produz efectivamente objectos que questionam

as fronteiras entre o visual como ferramenta de construção de objectos artísticos, e

também como ferramenta para investigar em etnografia visual, a partir de várias

perspectivas diferentes. Em terceiro e último lugar, considero esta performance na sua

forma final como um exemplo concreto de como Tami Spry define ‘performing

autoethnography’ em (Spry 2001), dado que estou a ser performer de mim própria a

partir de uma perspectiva contextualizada em multicamadas.

Em Série de Improvisações decidi registar-me em vídeo após pelo menos 5

horas de investigação em cálculo das Variações – Matemática, dentro de algum

espaço específico de cada uma das casas em que vivi entre o final de 2010 e Setembro

de 2011, tempo em que desenvolvi o processo de registos em vídeo ou filmagens. Ao

longo deste tempo mudei de casa/residência regular 3 vezes, definindo aqui

casa/residência regular como o lugar onde vivo, onde desenvolvo a maior parte do

meu trabalho e consequentemente onde estou a maior parte do tempo. Em cada casa

escolhi alguns espaços específicos relacionados com a ideia de que o espaço

escolhido seria um dos espaços onde passava a maior parte do tempo ou com a qual

sentia bastante empatia.

Uma parte da essência da construção desta performance é a escolha de estar

sozinha e portanto filmei-me sozinha, á procura de um ambiente onde fosse possível

reconfigurar-me a um nível infinitesimal em espaços ou circunstâncias restritos. É

também desenvolvida, naturalmente, uma relação com a câmara neste processo.

“I want a corner, I want a wall, I want to feel the machine and to know that I cannot

move too much in order to fit inside the screen” (excerto de registos escritos ao longo

do processo de registo de Série de Improvisações).

Assim, foi aceite uma primeira Imagem Axiomática: Eu e os Meus Eus. Defini

também cinco Sub-Imagens: Corredor, Sala de Estar, Espaço Entre, Casa de Banho,

Cozinha. Observemos que as SI não são mutuamente exclusivas ou independentes

umas das outras. Elas pertencem a uma “matriz intersubjectiva” de eus (como já foi

referido, “matriz intersubjectiva” foi um termo introduzido por Daniel N. Stern em

Page 16: "Matemática e Movimento em Performance: um estudo de caso" Conference Paper, PT, FLUL, 2014

(Stern, The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life 2004)). A Dinâmica

introduzida em cada SI da Série de Improvisações é caracterizada pela investigação de

movimento usando algumas técnicas de improvisação de Laban, bem como

referencias de Nicole Peisl e Alva Noë (ex-bailarina da companhia de Dança Forsythe

e filósofo da Universidade de Berkeley) no que respeita algumas técnicas de

percepção em estados de presença/ausência3. Gostaria também de referir os trabalhos

de performers portugueses como Tânia Carvalho4 e a dupla Sofia Dias & Vítor

Roriz 5 . No trabalho de Tânia Carvalho inspiram-me os novos universos de

movimento construídos, bem como a importância da música e do canto. O trabalho da

dupla Sofia Dias & Vítor Roriz inspira-me pelo trabalho de percepção bastante

meticuloso. Alguns vídeos sobre Série de Improvisações podem ser encontrados em

http://telmasantos76.wix.com/onamultiplicity e que também podem ser encontrados

no meu site pessoal http://www.telmajoaosantos.net.

Para mais detalhes sobre a relação desta performance com o conceito matemático de

turbulência, ver ainda (T. J. Santos, On turbulence: in between mathematics and

performance 2014).

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Bauman, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2000.                                                                                                                3 Ver, por exemplo, http://www.youtube.com/watch?v=zMT-pFHy3D0, uma conversa entre William Forsythe e Alva Noë sobre consciência. Pode também consultar-se http://blip.tv/dancetechtvbliptv/dance-as-a-way-of-knowing-interview-with-alva-no%C3%AB-1003324 para um aprofundamento das ideias de Alva Noë no que respeira a dança como forma de conhecer e explorar as expreiências na relação com o mundo através do movimento. 4 Tânia Carvalho é uma bailarina/performer portuguesa que tem feito explorações interessantíssimas no que respeita movimentos considerados “diferentes, como podemos ver nos videos: http://www.youtube.com/watch?v=CNR7imd44N4, http://www.youtube.com/watch?v=0jylzf-tPis, http://www.youtube.com/watch?v=1VnPZ9Wy_9s. Ela faz também experiências e performances com voz e canto que podem ser vistas em: http://www.youtube.com/watch?v=lE6lfsU5bNc, http://www.youtube.com/watch?v=RoA9IYqwqW4. 5 O trabalho desenvolvido pela dupla Sofia Dias & Vítor Roriz é um dos mais interessantes desta geração, na minha opinião, no que respeita ao trabalho sobre percepção e construção de ambientes que se metamorfoseiam ao longo das peças de forma extraordinária: http://www.youtube.com/watch?v=VNjhEbcEfOQ.

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