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ISOFORMA

RITA DINIS

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PARA A MINHA MÃE,

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CAPÍTULO 1 - PARIS

AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO FÁCEIS.

Depois dos dois meses e meio de Verão, chegava o momento da partida. Não que a

minha família não estivesse habituada a ver-me partir por alguns meses e voltar nas férias

de maior temporalidade mas, por mais vezes que a situação se repetisse, nestes momentos

sempre se atingia um pico de exagerado proteccionismo.

O voo cujo destino era Paris foi calmo e não demorou mais de duas horas. Viajar sozinha

para um outro país era, de facto, um grande desafio para mim…e uma enorme fonte de

preocupação para os meus pais.

Após aterrar pacificamente no Aeroporto d’ Orly, tratei de recolher as minhas

bagagens e enquanto percorria o terminal do aeroporto em busca da saída, pensei no que

ainda teria para fazer e organizei mentalmente uma lista de prioridades. Primeiro, tinha

que telefonar aos meus pais para lhes dizer que já tinha chegado, pois se bem os conhecia,

provavelmente teriam cronometrado o tempo de viagem e estariam certamente a

perguntar-se o porquê de eu ainda não ter dado notícias. Depois, teria que apanhar um

táxi, porque não fazia ideia da localização do apartamento onde iria viver durante o

próximo ano. Finalmente, teria que ser cautelosa, porque Paris não era o tipo de cidade à

qual eu estava habituada.

Dois volumosos sacos de viagem resumiam a quantidade de bagagem que trazia

comigo, o que até não era muito, avaliando as monumentais cargas com que eu já vira

algumas pessoas que tinham passado por mim, com uma dificuldade evidente em gerir

aquelas enormes quantidades de bagagem. O terminal do Aeroporto d’ Orly era muito

grande, indubitavelmente gigantesco em comparação com o terminal do aeroporto de

Faro, a minha cidade natal e de onde parti no voo que me trouxe até Paris. Ainda que

fosse considerado o aeroporto mais pequeno e o mais antigo, era um dos que recebia

alguns voos internacionais, pelo que as minhas opções estavam claramente limitadas.

Localizava-se a vinte quilómetros a sul do centro da cidade e podia, agora, constatar que

era bastante movimentado, mas tal provavelmente dever-se-ia à hora do dia: eram onze

horas da manhã. Apesar da sua grandiosidade, estava muito bem sinalizado e nem sequer

precisei de perguntar por direcções. Alguns quilómetros adiante, saí pelo terminal Orly-

Sud e encontrei a famosa fila para os táxis. Já me haviam informado que a melhor opção

para quem não está familiarizado com a rede de caminhos de ferro, - como era o meu caso

– a melhor opção seria, sem dúvida, um táxi. Olhei. Estavam cerca de quinze pessoas

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aguardando táxi mas, para minha satisfação, a fila desfez-se rapidamente e, em menos de

dez minutos, fui atendida por um simpático senhor de bigode, sorridente, que me

cumprimentou de forma entusiástica enquanto colocava as bagagens dentro da mala do

táxi.

- Bonjour mademoiselle!

- Eh…Bonjour…- respondi, atrapalhadamente. A língua ia, definitivamente, ser um

problema. Já dentro do táxi, tirei da mala um papel com um endereço rabiscado: era o

local para onde seria suposto dirigir-me. Aclarei a garganta e apliquei um esforço

substancial para pronunciar o endereço da forma mais correcta possível.

- Cité Universitaire, Boulevard Jourdan, s’il vous plaît.- declarei, triunfante.

Presumi que a minha tentativa tivesse sido bem sucedida, uma vez que o taxista acenou

em sinal de confirmação e, segundos depois, dava início à viagem. Portanto, tinha-me

feito entender e senti-me muito satisfeita com este meu pequeno sucesso linguístico, logo

à chegada.

A viagem foi calma, grande parte dela no periférico de Paris. Pude então observar

que, a certa altura, tomámos o desvio na direcção do centro da cidade e foi aí que percebi

que íamos entrar concretamente e mergulhar na enorme Paris. Tive dificuldade em prestar

atenção a tantos pormenores, direcções, edifícios e, quando dei por mim, já estava perdida

em tantos sentidos únicos, semáforos e rotundas. Desisti de tentar compreender e

identificar onde estava, quando olhei e vi a marca incomparável da cidade: a torre Eiffel.

Fiquei um pouco desiludida com a minha primeira impressão e o meu pensamento

imediato foi “Pensei que fosse maior…”. De facto, já a tinha visto inúmeras vezes na

televisão e realmente a ideia com que se fica é outra. A viagem continuou e, entre

inúmeros desvios, não demorei mais de trinta minutos a chegar ao destino.

O endereço era uma referência aproximada do local onde eu ia residir que, podia

agora observar, se localizava muito próximo da Cité Universitaire. O apartamento

pertencia a um edifício cinzento de aspecto estável, com cinco andares. Olhei. A porta de

entrada do prédio parecia ter sido esculpida por artistas de há dois séculos atrás. Retirei da

mala um par de chaves de aspecto tosco mas consistente, que se relacionavam com o

aspecto do prédio. Ao entrar, encontrei um hall antigo, mas bem conservado, forrado a

mármore cinza, plantas a flanquear as paredes e logo após cinco degraus de escadaria,

diversas caixas de correio harmoniosamente esculpidas na parede, com a mesma precisão

e detalhe que tinha encontrado na porta de entrada do prédio. Espantoso! Seria impensável

existirem prédios assim em Portugal sem serem imediatamente vandalizados no dia

seguinte.

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Percorrido o hall, finalmente, encontrei o elevador. Lá dentro, cabia eu e as minhas

modestas bagagens, – com alguma dificuldade - e desejei sinceramente não encontrar

ninguém até chegar ao terceiro andar, onde teria que sair. Felizmente, não havia

movimentação àquela hora e cheguei ao destino sem demoras nem interrupções. Ao sair

do elevador, procurei pela letra C, que encontrei facilmente. Apressei-me a destrancar a

porta e entrei.

Estava escuro, procurei com a mão por interruptores ao longo da parede a que

tinha acesso, até que encontrei o que pretendia, clicando imediatamente. Agora com

luminosidade, entrei com as bagagens e fechei a porta atrás de mim, para me deparar com

um apartamento escassamente mobilado. Ao entrar, reparei que as paredes do hall tinham

um tom amarelo suave, assim como todas as divisões, excepto a cozinha e a casa-de-

banho, que estavam forradas a azulejos de uma cor neutra, clara. Havia dois quartos e uma

sala pequena. Fui imediatamente abrir as portas dos quartos e concluí que eram

exactamente iguais, em termos de espaço e acessórios: uma cama, roupeiro e secretária.

“O essencial para estudantes”, pensei. A única diferença era a vista, pelo que, sem

grandes hesitações, ocupei o quarto que tinha vista para a Boulevard Jourdan, por me

parecer mais luminoso. Ao colocar as bagagens em cima da cama, ocorreu-me com algum

nervosismo que ainda não tinha realizado o telefonema obrigatório para os meus pais.

Apressei-me a encontrar o telemóvel e efectuar a chamada, atendendo-me uma voz

masculina que eu conhecia muito bem.

- Sim, pai?

- Oh, filha, então? Já chegaste há muito tempo?

A sua voz evidenciava uma preocupação marcante.

- Sim, talvez… meia hora. Mas está tudo bem.

- Ainda bem, querida. E… já estás em casa?

- Já, já…

- E que tal?

- É…acolhedora - afirmei, com alguma hesitação na escolha da palavra. - Serve

perfeitamente para o que eu estou cá a fazer.

- O teu tio confirmou-me que está bem localizada e em boas condições.

- Sim, pai, é óptima!

- A outra rapariga também chega hoje, mas provavelmente mais à noitinha.

- Ah, é verdade…

- Vais ver que ela é simpática e que se vão dar bem!

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- Espero que sim… Não estou com muita disposição para festas e paródia neste ano aqui

em Paris - declarei, algo incomodada. - Estou aqui para estudar e não para festejar -

esclareci, com um tom um pouco amargo.

- Garantiram-me que ela é estudiosa - disse o meu pai, com um tom de voz esperançoso.

- Espero que sim. Agora vou arrumar as coisas e talvez comprar algo para o almoço.

- Está bem. Nós telefonamos à noitinha.

- Ate já então.

- Se precisares de alguma coisa, liga, está bem?

- Está bem.

- Até já.

- Até já.

Ao desligar o telefone, respirei fundo. A minha cabeça parecia um turbilhão. A

ideia de ter que partilhar a casa com alguém que eu não conhecia assustava-me um pouco.

Eu prezava bastante a tranquilidade para poder estudar em paz e se a rapariga se

comportasse como uma boémia íamos certamente entrar em conflito. Pior, se fosse uma

hippie com ideias vanguardistas e rotinas excêntricas, certamente quereria divertir-se sem

limites e eu iria seguramente arreliar-me. Assim, avizinhar-se-ia um ano académico

catastrófico.

Sentei-me na beira da cama, um pouco incomodada com a minha última linha de

pensamento. Definitivamente não podia estar já a imaginar um desfecho tão funesto para

esta relação com uma pessoa que eu ainda nem sequer conhecia. Pelo menos, teria que lhe

dar o benefício da dúvida, dar-lhe uma hipótese de se revelar. Não iria ser assim tão

complicado coabitar com alguém – completamente – desconhecido. Definitivamente,

precisava de aclarar as ideias. Dirigi-me à casa-de-banho, localizada estrategicamente

entre os dois quartos, entrei e olhei para o espelho. A imagem reflectida resumia-se a um

semblante de cansaço, preocupação e expectativa, com umas ligeiras olheiras e uns longos

caracóis monótonos. Hoje sentia-me diferente, talvez pelo facto de estar num país

estrangeiro… e de me ter levantado a horas impróprias para chegar sem atrasos ao

Aeroporto. A minha face consistia numas feições suaves, o nariz semi-arrebitado, coberto

de sardas, assim como a zona malar. Sem dúvida tinha sido o intenso sol de Verão do sul

de Portugal o responsável pelo destaque que esta minha imagem de marca apresentava,

assim como pela maior intensidade da cor da pele. Até os meus olhos evidenciavam uns

ocasionais laivos esverdeados na íris castanho-avelã que, com o sol, também sobressaíam.

O cabelo era, quase sempre, o grande causador de modestos atrasos matinais. Quando

estes genes são dominantes, os descendentes não têm hipótese de escolha, a não ser uma

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elevada quantidade de acessórios para controlar o volume que, às vezes, mais parece

omnipotente. Por isso, nunca o podia deixar crescer mais do que tinha neste momento,

sensivelmente na linha média das costas.

Rapidamente concluí que um duche seria a melhor opção. Ágil, saltei para a banheira e o

alívio foi-se revelando quase imediato, a tensão foi desaparecendo à medida que a água

quente corria, atenuando assim os pensamentos menos bons.

O resto do dia decorreu pacificamente e nem me apercebi da passagem do tempo,

enquanto arrumava as bagagens e a escassa roupa que levava, tentando ainda personalizar

o quarto (que estava bastante descaracterizado), mas sem sucesso evidente.

Eram sensivelmente seis horas da tarde quando ouvi a porta principal abrir-se. Só

poderia ser ela. A hippie, a boémia, concebida na minha mente. Saí rapidamente do quarto

e dirigi-me ao hall de entrada, para encontrar uma rapariga esguia, de cabelo e olhos

escuros, de aparência elegante, muito característica. Exactamente na zona central da testa

evidenciava um sinal avermelhado, de um tamanho considerável, denunciando a sua

origem. Os olhos dela eram enormes, expressivos, escuros mas muito bonitos e que,

juntamente com as suas harmoniosas feições, lhe conferiam uma expressão muito alegre,

contagiante. Até os lábios dela pareciam ter sido minuciosamente desenhados, e o cabelo

negro que possuía parecia, literalmente, brilhar de tão liso que era, mais ou menos do

tamanho do meu. Exibia uma espampanante veste com diversos tons de azul que faziam

sobressair as suas modestas formas e estava acompanhada por um homem de feição grada

que, pelos traços faciais, só poderia ser um familiar próximo, provavelmente o pai. Ambos

tinham uma cor característica que imediatamente cataloguei de asiática – indiana, muito

provavelmente – e falavam num dialecto que confirmou as minhas suspeitas. A rapariga

dirigiu-se a mim com um sorriso, estendendo-me a mão.

- Bonsoir!

Raios.

Ela falava em francês. Senti-me a bloquear, incapaz de formular uma única frase,

presumia eu que fosse da surpresa que, certamente, deveria estar espelhada na minha face.

- Inglês? - Sorriu ela, timidamente, semicerrando um pouco os olhos.

- Sim, por favor - afirmei eu, com um tom um pouco desesperado. Ainda me sentia muito

pouco à vontade com esta nova língua que em breve teria que dominar. De facto, poder

falar qualquer outra língua (que não a minha língua materna) com um mínimo de à-

vontade, era deveras confortável.

- É o meu pai - declarou a rapariga.

- Dhaval.

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O senhor estendeu-me a mão, cumprimentando-me vigorosamente. Apresentei-me.

- Maria.

- És a sobrinha do Henri, n’est ce pas?

- Sim.

- Estás bem recomendada. O teu tio diz maravilhas de ti.

Sorri suavemente mas fiquei um pouco incomodada. O que andaria o meu tio a

dizer? Muito provavelmente a espalhar aos sete ventos que a sobrinha dele já era quase

médica, a alegria e o orgulho da família. E isso não era uma coisa que eu apreciasse

particularmente.

- Bem, vou-vos deixar. Ainda tenho muito para fazer hoje – referiu. - Maria, foi um

prazer.

- Igualmente – disse eu.

E assim, saiu rapidamente, despedindo-se da filha. Pude constatar que era um

homem de poucas palavras. Imediatamente após o pai sair, a rapariga dirigiu-se a mim

com ar indignado.

- Oh, Maria, que falta de educação a minha! Chamo-me Bhaktivashya, - declarou ela,

triunfantemente. E continuou, – significa Aquela-que-é-conquistada-por-devoção.

Fiquei sem palavras e, involuntariamente, arregalei os olhos em sinal de espanto.

O nome dela significava… isso? Esperaria ela que eu lhe dissesse o significado do meu?

Maria?… hum, não fazia ideia, mas neste momento talvez significasse Aquela-que-tem-

cara-de-idiota-sem-fazer-muito-esforço. E, para não mencionar aquele nome, que era

simplesmente impronunciável. A minha expressão facial certamente seria um espelho de

surpresa e espanto.

- Já sei que é difícil de proferir, mas… é o meu nome - declarou ela, ligeiramente

ressentida com a minha aparente inércia.

- E…não há alternativas? - Tentei solucionar.

- Não - afirmou ela, com um tom irredutível.

- Não sei se consigo… verbalizar. E que tal um diminutivo? - Disse eu, tentando esboçar

um sorriso.

Ela não parecia muito feliz com a minha constatação. Mas que poderia eu fazer?

Era, sem dúvida, uma palavra que não se conseguia pronunciar sem pensar várias vezes e

ela não me estava a dar alternativas. De repente, algo se formou na minha mente.

- És indiana?

- Sim… – ela parecia curiosa com a minha pergunta.

- Importavas-te se eu te chamasse…Shiva? - Perguntei eu, a medo.

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Os olhos dela abriram-se expressivamente e eu fiquei momentaneamente

preocupada, porque não conseguia perceber se ela estava contente ou… ofendida com a

minha sugestão.

- Sentir-me-ia muito honrada!... - Exclamou ela, visivelmente sensibilizada.

Não pude evitar rir, lançando uma pequena gargalhada. Honrada, pois claro que

sim. Quem não se sentiria honrada se alguém sugerisse chamá-la pelo nome do deus

supremo, meditante e benevolente, onde se diz residir toda a alegria? Não obstante, era

bem mais prático e… fácil de pronunciar, acima de tudo. A minha pequena explosão de

originalidade valeu-me sorrisos para o resto da tarde e noite. Shiva estava muito

entusiasmada com a ideia de vivermos juntas – ainda que fosse só por um ano -,

conversarmos e treinarmos várias línguas. Realmente era uma situação caricata: eu era

portuguesa, ela era indiana, ambas comunicávamos em inglês e estávamos num país de

língua oficial francesa. Seria, certamente, um ano muito produtivo em termos linguísticos.

Acompanhei-a na arrumação do quarto, ajudando-a a desfazer as inúmeras bagagens que

trazia. Fiquei então a saber que, apesar de ser de origem indiana, estudava Física em

Londres e estava em Paris este ano no Programa de Intercâmbio, tal como eu, por

conselho paternal. Pareceu-me uma rapariga calma, apesar de bastante extrovertida, o que

de certo modo atenuou as preocupações com que estava há algumas horas atrás.

Nessa noite encomendámos uma pizza para o jantar. Ambas tínhamos alguma

dificuldade em comunicar abertamente em francês e como tal constatámos que ainda não

estávamos preparadas para a grande Paris e o seu enorme esplendor. Afinal de contas,

tínhamos chegado a um novo país ainda não havia vinte e quatro horas. Como era

domingo, resolvemos projectar as tarefas para o dia seguinte: ainda não tinham começado

as aulas, havia tempo para explorar as faculdades, horários e desvendar as labirínticas

linhas do Metropolitano, Comboios e outros eventuais transportes públicos de que

pudéssemos necessitar. Senti-me mais acompanhada e até satisfeita por ter esta rapariga

como colega de casa, ainda que só a conhecesse por algumas horas. Já passava da meia-

noite quando nos fomos deitar.

Acordei sobressaltada e ainda demorei alguns segundos a relembrar-me onde

estava, no entanto o barulho e as vozes na rua ajudaram-me a tirar qualquer dúvida. Sim,

estava mesmo em Paris e eram oito da manhã. Ainda fiz algumas tentativas para voltar a

adormecer mas como já não conseguia dormir, resolvi levantar-me e preparar-me para o

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dia em cheio que me esperava, a mim e à minha companheira, Shiva. Quando saí do

quarto pude constatar que ela estava já a pé, preparada, com o pequeno-almoço pronto,

para duas pessoas. Surpreendentemente, Shiva hoje já não trazia a característica veste com

que a tinha visto ontem.

- Olá, bom dia! - Disse ela, alegremente.

- Bom dia! - Respondi eu, enquanto olhava de forma surpresa para a quantidade exagerada

de comida que Shiva tinha disposta na mesa da cozinha. Era mais que suficiente para

quatro ou cinco pessoas.

- Hoje ofereço eu. Aqui mesmo ao virar da esquina está um pequeno supermercado -

explicou ela, triunfantemente.

- Estás a habituar-me mal! - Retorqui eu, sorrindo, enquanto me sentava na cadeira que

estava mais próxima de mim.

Tomámos o pequeno-almoço enquanto conversávamos alegremente sobre o que

iríamos fazer nesse dia que, decerto, não iria ser nada monótono. Decidimos que primeiro

iríamos à descoberta das nossas faculdades, depois almoçar e, durante a tarde, visitar um

pouco de Paris.

Saímos e procurámos o Metropolitano que, segundo Shiva, era a forma mais rápida de

chegar fosse onde fosse. Não foi muito difícil encontrá-lo, no entanto, tivemos que optar

primeiro pelo eléctrico, para poder chegar à estação de metro mais próxima. Decifrar

todas aquelas linhas apresentava-se uma autêntica Odisseia, pelo menos para mim, que

somente estava habituada às escassas cinco linhas do Metropolitano de Lisboa. Mais uma

vez me valeu a experiência da minha recente amiga, que estava familiarizada com as

linhas igualmente complexas do Metropolitano Londrino.

Chegámos, sem grandes demoras à Faculté de Physique, onde acompanhei Shiva nas suas

tarefas e burocracias relacionadas com alunos de Intercâmbio. Foi aí que ficámos a saber

que nesse mesmo dia haveria uma reunião para alunos de Intercâmbio de todos os

Centros.

- Lá se vai a nossa tarde de passeio - retorquiu Shiva.

- Ainda podemos aproveitar grande parte da tarde. Já viste as horas da reunião? - Disse eu.

- Às nove da noite?! - Exclamou ela.

Limitei-me a sorrir, levantando ligeiramente o sobrolho.

- Vamos, que ainda tenho que descobrir onde é a minha faculdade - Alertei eu.

A faculdade de medicina encontrava-se a algumas estações de metro de distância

da faculdade que Shiva frequentava. Ainda me sentia vagamente deslocada naquela

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imensidão de cidade, mas certamente iria adaptar-me, mais tarde ou mais cedo. Uma vez

na faculdade, procedi às mesmas burocracias e mais uma vez confirmámos a existência da

dita reunião para alunos de Intercâmbio, confirmando de novo a hora e o local: às vinte e

uma horas, na Biblioteca Universitária da Universidade Paris 6 Pierre e Marie Curie, à

qual ambas as nossas faculdades pertenciam.

A manhã já estava praticamente no fim e aproximava-se a hora de almoço. Por conselho

das simpáticas funcionárias da faculdade, fomos almoçar à Maison Internacionale, que

fazia parte da Cité Universitaire, um agradável campus onde existia um refeitório, um

pequeno bar e inúmeras residências para estudantes, das mais variadas nacionalidades. Era

um espaço muito engraçado, com relvados enormes e uma disposição harmoniosa.

Almoçámos e saímos. A tarde estava muito luminosa e quente, mesmo para início de

Outubro e, como tal, resolvemos passear um pouco pelo vasto Campus, admirando e

observando os vários edifícios que formavam as residências, cada um com características

do seu país.

Com espanto, pudemos constatar que o nosso modesto apartamento se localizava muito

perto de uma das saídas do Campus, o que seria certamente muito prático nas alturas em

que o tempo para cozinhar fosse escasso.

A tarde passou vagarosamente, mas de forma muito agradável, em conversa com a

minha nova amiga. Perto das oito e trinta da noite, pusemo-nos a caminho, para estarmos

a horas na dita reunião. Shiva estava muito agitada, presumo eu que fosse da expectativa

de conhecer novas pessoas, em situação similar à nossa.

Quando lá chegámos, foi fácil perceber quem eram os alunos de Intercâmbio, porque

tinham um ar tão perdido quanto o nosso, seguramente. A maior parte deles encontravam-

se espalhados em pequenos grupos de três, quatro pessoas, sentados nas escassas cadeiras

encostadas à parede, conversando timidamente. Sem aviso prévio, Shiva resolveu dirigir-

se a um pequeno grupo de duas pessoas que estavam de pé, em frente a umas portas

gigantescas que provavelmente pertenceriam a um anfiteatro.

- Bonsoir! - Exclamámos, sorrindo.

Shiva foi a primeira a iniciar a conversa, primeiro em francês e, cerca de cinco afirmações

depois, em inglês, pelo que percebi que grande parte das pessoas que ali estava não

compreendia o francês melhor que eu.

Aquele era um par bastante sui géneris: Vera, era uma dinamarquesa séria, alta, esguia e

de tez branca como neve, olhos azul celeste e cabelo tão loiro que quase parecia branco;

Thomas era alemão, mas não muito típico, pois tinha olhos e cabelos castanhos, de

estatura média e um sorriso muito expressivo. Pela forma como comunicavam, era óbvio

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que ambos partilhavam mais do que exibiam, o que me fez pensar que talvez já se

conhecessem há mais tempo. Shiva estava destemida, focada em não deixar morrer a

conversa com aqueles dois estudantes que quase não tinham tempo para elaborar

respostas. Com alguma dificuldade, consegui inserir-me na conversação que estava agora

a ficar mais leve, mais equilibrada, em suma, bastante agradável.

A certa altura, as portas do anfiteatro foram abertas por um funcionário que nos informou

que o professor responsável estava alguns minutos atrasado e, como tal, que entrássemos e

esperássemos alguns minutos. Entrámos e sentámo-nos todos perto uns dos outros, o que

facilitava a comunicação. Podia agora constatar que Shiva já tinha estendido a sua

extasiante simpatia aos restantes alunos que ali se encontravam e, inclusivamente, estava

já a combinar uma saída e um jantar para todos os alunos de intercâmbio, incluindo

eventuais visitas a várias zonas de Paris.

O nosso pequeno grupo manteve-se animado e entretido durante cerca de dez minutos, até

que entraram duas pessoas no anfiteatro. Todos nós olhámos automaticamente na direcção

deles, presumindo que fossem alunos de Intercâmbio e esperando, naturalmente, que

viessem juntar-se a nós. Contudo, não foi isso que aconteceu. Os dois alunos sentaram-se

no canto exactamente oposto ao nosso e não se incomodaram, nem em cumprimentar-nos,

nem em olhar na nossa direcção. Era como se nenhum de nós estivesse ali. Como se não

existíssemos.

Shiva estava sentada à minha direita e também olhava surpresa – quase ofendida –

para aqueles dois estranhos alunos, que tinham um aspecto desconcertante. Ambos

vestiam roupas escuras e o aspecto geral era bastante descuidado. Um deles tinha cabelo

negro, disposto de forma a esconder os olhos negros que se deixavam adivinhar pelos

movimentos erráticos que fazia e a sua pele, branca como cal, fazia sobressair o negro do

cabelo e olhos. O outro também tinha uma tez branca, de um pálido doentio e o cabelo

escuro, também desalinhado, caía-lhe para a face, como se estivesse a tentar escondê-la.

Não consegui distinguir a cor dos olhos mas, de um modo geral, este tinha um aspecto

ligeiramente melhorado, dentro do género.

A postura deles era perturbadora. Estavam ligeiramente curvados para a frente, como se

estivessem com alguma dor ou algo a incomodá-los superficialmente, como se um

nervoso miudinho se tivesse apoderado deles e os impedisse de relaxar. As mãos e os

braços, ora se mantinham escondidos, ora pendiam das cadeiras com uma postura tensa,

enquanto murmuravam entre si palavras ininteligíveis.

Foi Shiva que interrompeu a minha observação com uma constatação que nos fez a todos

desviar o olhar.

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- Devem ser de Artes… - sussurrou.

- Sejam eles do que for, são assustadores - constatei, com alguma tensão.

- Que aspecto horrível…- afirmou Vera.

- Se calhar são tímidos…- declarou novamente Shiva, com um tom esperançoso. - Se

estão aqui, são alunos de intercâmbio.

Olhámos todos para ela. Uma constatação óbvia. Claro que eram alunos de intercâmbio,

mas não tinham que ser obrigatoriamente simpáticos como todos os outros que ali se

encontravam.

O professor responsável pela reunião chegou finalmente, entrando apressadamente,

atribuindo a demora ao trânsito e desculpando-se repetidamente. A chegada do professor

tinha desviado a nossa atenção dos perturbantes recém-chegados e agora fitávamos

atenciosamente o professor que retirava com uma rapidez desastrosa, inúmeros papéis da

sua volumosa pasta. Observei à nossa volta e constatei que o anfiteatro estava

escassamente ocupado por um total de dez pessoas.

Finalmente, dava-se início à reunião, que consistia numa série de avisos, ajudas e

conselhos para os alunos de Intercâmbio, com a finalidade de os ajudar na integração e

facilitar a compreensão da língua durante o tempo que estaríamos em Paris.

Estava com alguma dificuldade em concentrar-me no discurso monótono do professor e,

mais uma vez, olhei discretamente para aquele par perturbador. Era inevitável não olhar

para eles, mas não pelas melhores razões. Naquele momento, estavam ligeiramente

agitados, mantinham uma frequência respiratória algo irregular e, ocasionalmente,

afastavam o cabelo da cara. Foi então que observei que, afinal, o rapaz de “melhor”

aspecto tinha olhos claros e a cor da pele, definitivamente, apresentava uma tez muito

pouco saudável. Por momentos considerei se aqueles dois poderiam ter algum problema

que pudesse explicar o aspecto tão doentio que tinham. Sim, definitivamente, tinham que

ter algum problema e, fosse o que fosse, era concomitante com a sua aparência

absolutamente sinistra, principalmente o dos olhos negros que parecia, agora, imerso num

transe que lhe dava um aspecto quase animalesco.

Esta minha última constatação obrigou-me a desviar o olhar e já não consegui espreitar

nem mais uma vez aquelas duas figuras que, sem sombra de dúvida, tinham algum

problema, viessem donde viessem. Ainda estava eu a fazer um esforço considerável para

me abstrair daquela visão transtornante, quando ouvimos tocar um telemóvel. Era do

professor que, mais uma vez se desculpou, afirmando que tinha que atender a chamada.

Imediatamente começou o burburinho característico no pequeno grupo de alunos em meu

redor.

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- Eu vou convidá-los para o jantar - declarou Shiva, decidida.

Olhei para ela, incrédula.

- Vais fazer o quê?

- Então, eles são nossos colegas. Eu vou lá - insistiu ela.

- Não percebo para quê Shiva!! Eles não estão interessados!!... É bem visível - afirmei eu,

tentando, de alguma forma, demovê-la.

- Tentar não custa - disse ela, piscando-me o olho, com um sorriso malandro.

- Boa sorte… - sussurrei. Claramente Shiva gostava de desafios. Só podia ser essa a razão

pela sua disparatada insistência.

Sinceramente não compreendia qual era a sua verdadeira intenção. Que interesse poderia

ela ter naqueles dois? Observei atentamente a investida da minha recente amiga, enquanto

ela se dirigia a eles, lentamente, sem aquelas duas figuras sequer olharem na nossa

direcção. Uma vez lá, pude constatar que a cara de espanto deles era tão óbvia quanto a

dela, o que me fez esboçar um leve sorriso, que tentei esconder de imediato. Shiva iniciou

o seu discurso pausadamente, em inglês, explicando o que estava a organizar, não que eu

estivesse a ouvir o que ela dizia, mas o tema já me era familiar. Eles olhavam para ela de

uma forma estranha, visivelmente surpreendidos, como se dela emanasse ousadia,

simplesmente por se ter dirigido a eles. Por instantes, pensei que tudo fosse descambar

naquele momento.

Pude, então, observar que só o dos olhos negros falou, interrompendo o discurso de Shiva,

que o olhava boquiaberta enquanto ele proferia as palavras que eram, sem dúvida,

agressivas, pelo tom que ele exibia e pela face atónita que Shiva evidenciava. O outro

rapaz, sem nunca falar, olhava-a ocasionalmente com ar desinteressado e vago. Ele era,

sem dúvida, misterioso, com feições mais elaboradas, mas ainda assim não deixava de ser

intimidante.

A determinada altura, vi a minha colega regressar na minha direcção, com uma expressão

de censura absoluta. Tal como seria de prever, a conversa não tinha sido, de todo,

amigável.

- Então? - Perguntei eu.

- São uns antipáticos - respondeu Shiva.

Olhei para ela com ar inquiridor, mas não surpreendida.

- Era previsível…

- Aquele italiano idiota disse-me que não estavam interessados - afirmou ela, visivelmente

ofendida.

- Italiano?

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- Sim, aquele dos olhos negros. Tem um sotaque inconfundível - confessou ela, com um

tom um pouco amargo.

- E o outro?

- Deve ser mudo - disse ela, sarcasticamente. - Não proferiu nem uma palavra.

- E são artistas? - Brinquei eu.

Ela olhou para mim com uma expressão divertida.

- Por acaso são. Tal como eu suspeitava - afirmou, sorrindo.

O regresso do professor e da sua interminável chamada telefónica trouxe-nos de volta à

realidade. A reunião recomeçou e, mais uma vez, aqueles estranhos rapazes se

mantiveram à parte, como se de foragidos se tratasse. Por uma única vez, interromperam o

professor e foi a vez do rapaz de olhos claros falar, num francês tão fluido e elegante, que

quase me fez duvidar que de um aluno estrangeiro se tratava. A sua voz era tão segura e

forte, que parecia não pertencer a uma pessoa com um aspecto tão inconsistente e…

estranho. O professor olhou-os de forma atónita e, após pestanejar um par de vezes,

acenou, dando-lhes clara permissão para saírem. Reparei então que ambos eram de

estatura média e que a forma como se afastavam reflectia alguma urgência. Sinceramente,

fiquei aliviada por vê-los sair.

Voltei a olhar para Shiva. Felizmente, podia constatar que o episódio anterior não lhe

tinha deixado marcas muito profundas, pois que já se encontrava a segredar palavras

divertidas aos nossos recentes amigos, como se nada se tivesse passado.

Foi então que percebi que a reunião já tinha terminado e que o afamado jantar que incluía

todos os alunos de intercâmbio já estava marcado para o próximo sábado, às oito da noite,

em Montmartre.

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CAPÍTULO 2 - MONTMARTRE

A SEMANA QUE SE SEGUIU FOI BASTANTE PRODUTIVA A NÍVEL SOCIAL.

A chegada à faculdade nos restantes dias da semana revelou-se muito agradável e,

para minha surpresa, a maior parte dos colegas eram bastante simpáticos e afáveis. Como

qualquer pessoa que vai estudar para o estrangeiro, tinha algum receio de não ser

particularmente bem recebida, mas felizmente não foi esse o caso. Conheci uma rapariga

bastante amável que, ao ver o meu semblante perdido, se dirigiu a mim, oferecendo a sua

ajuda. Chamava-se Adèle e era uma rapariga de tez rosada, com olhos claros - azulados –,

cabelo castanho claro, ligeiramente ondulado e de feições tão características que a faziam

assemelhar-se a uma boneca de porcelana. Desde que a conheci, mantive-me quase

sempre perto dela, dentro e fora das aulas, questionando-a constantemente acerca do

funcionamento das aulas práticas e dos inúmeros entraves linguísticos com que me

deparava.

Finalmente, chegava o fim-de-semana e poderia descansar minimamente, se não

fosse a energia inesgotável da minha colega de casa que, às oito da manhã de sábado, já

estava pronta para dar início a uma tournée pelas lojas de Paris. Compras.

Não tive muita hipótese face às suas investidas e argumentos acerca das inquestionáveis

razões para sair da cama tão cedo. E assim foi. Eram dez da manhã e já estávamos em La

Défense, uma zona nos subúrbios oeste de Paris com inúmeros edifícios ultra-modernos

que criavam uma atmosfera quase independente do resto da cidade. Ali, num imenso

centro comercial espelhado, - Les Quatre Temps - pretendíamos cumprir o objectivo de

saciar o apetite consumista de Shiva. Pessoalmente, não estava com muita disposição para

fazer compras, mas a convicção da minha recente amiga era tal que, meia hora depois, já

estava a experimentar roupa com ela.

Apesar da minha escassa iniciativa em tocar em assuntos que não fossem a faculdade,

tinha que admitir que estaria a perder muito divertimento se não estivesse com ela e, até

certo ponto, se não me deixasse levar, de vez em quando, pelas suas extravagâncias.

Talvez este fosse um ponto (entre tantos outros, sem dúvida alguma) que eu devesse tentar

melhorar na minha fastidiosa personalidade. O que restava da manhã, assim como toda a

tarde, passou célere, enquanto nos divertíamos e, rapidamente se aproximava a hora do

jantar em Montmartre, o momento tão esperado do dia para Shiva.

Saímos de La Défense e rumámos para Montmartre, para o local onde o jantar ia

ter lugar. Extasiada, Shiva informava-me que tinha sido ela a escolher o restaurante, a

reservar mesa e que estava muito entusiasmada com a expectativa de conhecer melhor os

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colegas de intercâmbio que, segundo ela, por terem mais em comum, tendiam a

aproximar-se uns dos outros, o que não era, de todo, irreal, mas não era regra geral, como

tínhamos observado em primeira mão na reunião de intercâmbio. E, mais uma vez, ela se

referia com amargura aos dois “artistas” antipáticos e anti-sociais que tão ofensivamente

se tinham recusado a fazer parte da sua ideia inovadora.

Montmartre localizava-se, literalmente, numa colina, assemelhando-se a uma

simples vila, mas de onde se podia observar a agitada metrópole Parisiense. Após

subirmos várias escadarias íngremes com centenas de degraus que quase me esgotavam as

forças – tendo em conta os quilómetros que já tinha percorrido no centro comercial –,

caminhámos por mais algumas ruas caracteristicamente estreitas, de calçada, onde as

moradias permaneciam pintadas de branco e onde existiam vários jardins que se

prolongavam até às mais variadas escadarias, rusticamente iluminadas por candeeiros

antigos. Chegámos finalmente ao local onde já se encontrava Thomas, presumivelmente à

espera que alguém conhecido aparecesse, naquele espaço que era a Place de Tertre. Ao

vê-lo, a face de Shiva iluminou-se de uma forma tão óbvia que tocava o exagero.

Sinceramente, ela conhecia-o havia meia dúzia de dias. Resolvi não dar importância ao

momento, pois provavelmente seria o entusiasmo a falar mais alto.

A Place de Tertre era relativamente ampla, mas não excessivamente grande, onde

existiam vários restaurantes, cafés e já se dispunham vários pintores com as suas telas,

expostas em vitrinas claramente improvisadas para o momento. Grande parte deles

dedicavam-se a desenhar retratos e caricaturas, abordando as pessoas que ali passavam,

disponibilizando a sua arte. Ponderei seriamente em pedir a um deles que me desenhasse a

carvão, mas se o fizesse, só seria depois do jantar.

Subitamente, vi Vera aproximar-se de nós, com um semblante próximo do da neutralidade

e, dirigindo-se a Shiva, informou-a que os outros não viriam, por motivos alheios ao

conhecimento dela. Como tal, éramos uma multidão de quatro pessoas para uma mesa

reservada para vinte. Pareceu-me ver Shiva corar de irritação, ao ver como o evento

organizado por ela não tinha tido o sucesso esperado. Após um pequeno silêncio, vi-a

dirigir-se ao restaurante, com o intuito de comunicar ao gerente que afinal, só eram quatro

pessoas. Thomas e Vera comunicavam, mais uma vez, sem palavras, deixando-me a

sensação de que algo mais se passava entre eles, embora eu não compreendesse o porquê

da necessidade de esconder fosse o que fosse. Mas enfim, eles lá teriam as suas razões.

Shiva regressava agora, com um semblante bem mais leve. Pelo alívio que emanava, o

diálogo com o gerente do restaurante tinha sido amigável.

- Vamos, então! - Informou ela, fazendo-nos sinal para entrar.

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O restaurante não era grande, mas tinha um aspecto bastante confortável, a decoração era

simples e típica. Sentámo-nos numa mesa para quatro pessoas, onde começámos a

conversar alegremente. Foi Thomas quem iniciou a conversação.

- Então, Maria…- afirmou, na minha direcção. Como reflexo, olhei para ele, curiosa. -

Estás em que faculdade?

- Eh… Medicina - respondi eu. - E tu? – Inquiri.

- Letras - retorquiu ele, com um sorriso. - Assim como Vera.

O característico sotaque cerrado de Thomas fazia-o proferir o “V” mais como “F”,

com vogais graves, de tal forma de mais parecia pronunciar o nome de Vera como Fêrra

e, constatar esta realidade fazia-me esboçar um leve sorriso, enquanto tentava abstrair-me

da sua cómica troca de consoantes.

- Estudam o mesmo? - perguntei eu, tentando dar continuidade ao diálogo.

- Não, eu estudo Filologia Germânica e Vera, Filologia Românica. Mas estamos ambos na

mesma faculdade.

- Claro - acenei eu, com um ligeiro sorriso. Agora sim, compreendia o porquê da

cumplicidade entre eles, pois era mais fácil conviver com alguém de áreas semelhantes, na

mesma faculdade, ainda que não me parecesse que fosse assim tão inocente. Seguramente,

algo se passava entre eles, ou então… ia passar-se, quase de certeza.

- Já exploraram Paris? - Disparou Shiva, mudando de assunto.

- Mais ou menos - declarou Thomas. E continuou, com um sorriso. - Ainda só passou uma

semana, só tive tempo para descobrir onde era a faculdade e localizar as salas de aulas.

- Como eu te compreendo… - afirmei eu, em tom de desabafo, na direcção dele.

Continuámos a conversar e a conviver animadamente, durante todo o jantar, ao

som da mais variada música francesa, donde se destacava a incrível “Le petit pan au

Chocolat” do não menos famoso Joe Dassin, a qual Shiva cantarolava divertida, pedindo

inclusivamente ao garçon que passasse a música repetidas vezes, para que ela pudesse

treinar o seu francês. Como opção unânime, resolvemos experimentar um prato típico do

país – Tartiflette - que se revelou uma escolha divinal, em termos gastronómicos, pois

consistia numa verdadeira iguaria concebida à base de queijo Reblochon.

Já eram quase onze da noite quando decidimos sair. Todos ríamos, genuinamente

divertidos com a nossa aparente dificuldade em comunicar as nossas intenções aos

pacientes garçons que nos serviam no restaurante, sempre com um sorriso nos lábios.

Desembocámos novamente na praça central, que agora parecia bem mais pequena, devido

à quantidade de pessoas que ali se encontrava.

- Crepes? - Sugeriu Shiva, olhando-nos, expectante.

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- Boa ideia! - Exclamou Vera.

- Vão andando. Eu já vou ter convosco - declarei eu, enquanto apontava na direcção dos

pintores. - Portrait - afirmei, com uma pronúncia marcadamente exagerada.

- Queres que espere por ti? - Sugeriu Shiva, sorrindo.

- Não, não é preciso…vai ser rápido. E não te preocupes, eu não me perco!

- É já ao fundo daquela rua. É fácil - elucidou Vera, enquanto apontava para uma das

ruelas à nossa esquerda.

- Até já! - Exclamei eu, enquanto me dirigia ao pintor que se encontrava disponível

naquele momento. Sentei-me no local que ele indicou e deixei-me estar, contemplando

aquele espaço, tentando memorizar os sons, os cheiros, os pormenores daquele sítio tão

agradável. Paris teria certamente imenso para oferecer e eu tinha que pensar, seriamente,

em tirar algum proveito.

Em vinte minutos o desenho estava terminado. O pintor entregou-mo e eu não pude deixar

de o observar de forma curiosa. Era estranha a forma como eu estava representada naquele

pedaço de papel: as linhas do meu rosto eram tão marcadas, o sorriso parecia forçado e os

olhos… bem, mostravam mais do que deviam, uma expressividade excessiva, com

demasiada transparência, um caminho directo até aos confins da alma. A única

característica que imediatamente identificava como minha era, sem dúvida, o cabelo, com

os caracóis viçosos e indomáveis. Nesta pintura, mais parecia estar a olhar para um

familiar afastado do que propriamente para mim própria. Engraçado, esta não era a

imagem que eu tinha de mim mesma e, lamentavelmente, talvez esta fosse a forma como

os outros me viam, como alguém comum e insalubre.

Repentinamente, despertei do pequeno momento de introspecção, para concluir que tinha

que ir ter com o resto do grupo que, a julgar pelo apetite voraz de Shiva, já teria

certamente dado lucro suficiente à casa de crepes. Olhei em meu redor, tentando orientar-

me e recordar para onde teria que dirigir-me. Apesar de todas as ruas me parecerem

iguais, alguns segundos foram suficientes para deduzir qual das ruas era a correcta e, de

forma apressada mas firme, pus-me a caminho.

Nas estreitas ruas por onde caminhava não circulavam veículos, somente pessoas

e, à medida que avançava, estas eram cada vez mais escassas. Era um bairro muito

pitoresco e alegre. Contudo, a noite estava escura e só a fraca luz dos candeeiros permitia

que eu visualizasse toda a longitude do percurso que me aguardava. Presumivelmente ter-

me-ia enganado, porque nesta rua não havia nenhum estabelecimento comercial e, em

meu redor, só existiam moradias, muito provavelmente abandonadas ou em recuperação.

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Definitivamente, havia pouco movimento e… Raios! Agora sim, tinha a certeza absoluta

que estava na rua errada.

À medida que caminhava pela calçada, só ouvia o som dos meus apressados

passos, enquanto pensava na forma mais rápida de encontrar a rua correcta, até que, a

certa altura, fui invadida por uma sensação de desconforto. Claro…o escuro e a minha

imaginação, a dupla infalível para alimentar os mais ridículos pavores na minha cabeça.

Estava distraída, pensando como iria reencontrar o meu grupo de amigos, quando ouvi um

gemido abafado vindo de uma ruela escura, à minha direita. De imediato, senti o meu

batimento cardíaco acelerar e, instintivamente, olhei na direcção do ruído.

Ali estavam duas pessoas, intimamente entrelaçadas junto à parede, só podia discernir o

pouco que a fraca luz do candeeiro me permitia. Parecia-me uma rapariga e um rapaz, mas

a confirmação só surgiu alguns momentos depois: a rapariga tinha cabelo loiro, comprido,

algo emaranhado e o rapaz, alguns centímetros mais alto do que ela, tinha cabelo escuro,

que lhe cobria a cara enquanto estava debruçado sobre ela. Ele tinha também um casaco

indistinto, mas era só isso que conseguia ver, pois todo o resto estava obscurecido pela

escuridão da ruela. Subitamente, a rapariga moveu-se, trémula, descansando a cabeça

sobre o braço dele, que estava posicionado de modo a evitar qualquer tentativa de

movimento ou fuga.

Foi aí que vi a cara dela. A expressão dela era de surpresa e os seus olhos emanavam

terror e medo numa magnitude tal que eu pensava não ser possível existir. Do seu nariz e

boca semi-aberta, escorria lenta e vagarosamente um líquido viscoso avermelhado que,

instintivamente, identifiquei como sangue. Fiquei presa naquela visão horrível, não

consegui falar, nem gritar, nem mover-me. O que se estaria ali a passar que eu não

conseguia compreender o que era, nem no que consistia?

O rapaz moveu-se ligeiramente, de forma lenta mas firme, afastando-se um pouco da

rapariga, sem nunca a deixar, até que o olhar dele encontrou o meu. Continuava sem

conseguir descobrir os traços da sua face, pois a sua postura era engenhosa e os seus olhos

claros tinham uma profundidade intemporal, um brilho absolutamente animalesco, que me

fez tremer de medo.

Eu não devia estar aqui, constatei para mim mesma. Ainda assim, não fui capaz de me

libertar do seu olhar. Ele não me deixava.

O que era isto?

A cor pálida da sua pele, era algo que me era familiar, mas de onde? Tinha uma cor tão

pouco natural, tão… doentia. Subitamente, engoli em seco. Eu sabia quem ele era, a sua

tez tinha-o denunciado.

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Mas o que estava ele a fazer? – Questionei-me.

- Maria! - Ouvi repentinamente. Pude libertar-me daquela agonizante visão e olhar na

direcção oposta. Pelo tom de voz, era Shiva que chamava por mim. - Estamos aqui!

Instintivamente, voltei a olhar para a ruela e, para minha surpresa, não encontrei nada,

nem vestígios, nem marcas de que alguém ou algo tivesse estado ali segundos atrás. Por

momentos, pensei se tudo o que tinha visto não teria sido imaginação minha. Não.

Definitivamente, não poderia ter imaginado algo tão vívido, algo tão… intenso.

Dirigi-me apressadamente na direcção do pequeno grupo que agora me esperava ao fundo

da rua.

- Então? Perdeste-te? - Brincou Thomas.

- Acho que sim… - sussurrei eu, com um sorriso amarelo, ainda chocada com o que

acabara de observar.

- O que foi? - Questionou Shiva, dirigindo-se a mim e observando a minha postura tensa.

Senti alguma relutância em descrever o que tinha observado. Não era algo fácil de

relembrar.

- Acho que vi ali qualquer coisa… – confessei, para logo depois, desmentir. - Não, eu

acho que não vi nada… – referi, mais como um sussurro, como se estivesse simplesmente

a pensar alto. Todos eles me olhavam como se eu estivesse à beira da loucura.

- Mas, afinal, viste ou não viste… algo? - Reforçou Thomas, visivelmente curioso.

- Parece-me que… sim - afirmei eu, concordando comigo própria, absolutamente segura

de que tinha, efectivamente, visto algo.

- E? - Perguntou Vera, olhando-me, também curiosa.

- Foi muito estranho… - comecei eu.

- Estranho? - Agora era a vez de Shiva revelar impaciência face à minha relutância em

falar.

- Sim…ali, numa ruela, estavam um rapaz e uma rapariga… - ia eu começar, quando Vera

me interrompeu bruscamente.

- Ah, isso. Acontece muito por aqui.

Olhei para ela com olhar inquisidor, atónita.

- Prostituição - esclareceu ela.

- Não me pareceu… isso - hesitei eu, semicerrando os olhos enquanto relembrava o

episódio que havia observado, na minha mente. - Ela estava a… - hesitei um pouco antes

de dizê-lo. - …sangrar do nariz e da boca.

- Hum!! Um cliente violento, talvez - brincou Thomas.

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Definitivamente, não me estavam a levar a sério. O que seria necessário eu afirmar para

que os conseguisse convencer de que aquilo era algo mais que um simples episódio de

prostituição?

- O rapaz… eu reconheci-o - declarei eu.

Foi instantâneo. Olharam todos na minha direcção como eu fosse comunicar um segredo

de estado.

- Era um dos rapazes da reunião - sussurrei eu, como se tivesse receio de o afirmar com

um tom de voz mais elevado. Seguiu-se um pequeno e incómodo silêncio.

- Os artistas? - Vociferou Shiva, espantada.

- A-Acho que sim - hesitei eu, uma vez mais, embora estivesse completamente segura de

que era ele, era aquele rapaz da reunião.

Novamente, senti-me o centro das atenções, mas não pela melhor razão. Provavelmente

pensariam que eu era doida ou então que era muito inocente, por não ser capaz de

reconhecer à simples vista uma prostituta a trabalhar. Senti o olhar de crítica dos meus

colegas na minha face. Claro está que foi Shiva que quebrou o gelo com a mais inesperada

intervenção.

- Oh! Será que ele a vai levar para casa e pintá-la numa tela, como fez aquele artista no

vídeo Always dos Bon Jovi?

- Shiva! Por favor! - Exclamei eu.

Foi gargalhada geral, a qual tive que acompanhar, dado o ridículo da afirmação.

- Não é nada fora do comum nos artistas, Maria - afirmava agora, Thomas.

- O quê?

A minha curiosidade era sincera, estaria ele a referir-se a levar prostitutas para casa para

as pintar?

- Contratar… serviços.

- Ah…

Pois claro, serviços. Tudo isto era demasiado excêntrico para mim. Estudantes

estrangeiros de Arte a contratarem “serviços”? Ao fim de uma semana de aulas? Essa não

seria certamente uma associação que eu faria de modo imediato e aqueles rapazes da

reunião não pareciam ser desse tipo, apesar da sua aparência desconcertante…

- É que a rapariga… não parecia uma prostituta - referi, tentando justificar-me da melhor

forma possível.

- A maior parte delas não parece, Maria - constatou Thomas. - E as aparências iludem…

bastante - reforçou novamente.

23

- Estamos em Paris, aqui as coisas são diferentes - advertiu Vera. - Não estás em casa,

Maria.

Pelo tom de voz, concluí que era claramente uma provocação e senti suavemente a

amargura das suas palavras expressarem a opinião que tinha de mim, que certamente se

aproximaria dos conceitos de ingénua e simplória. Não pude evitar olhá-la com

reprovação. O modo como ela se expressava era de uma austeridade lamentável. Eu sabia

o que tinha visto e sabia que não era nada daquilo que eles tentavam convencer-me que

era. Apesar de tudo, achei melhor deixar o assunto morrer ali. Não valia a pena, pois,por

mais que eu tentasse explicar que o que eu tinha visto me parecia mais do que uma

prostituta com um cliente, sempre encontrariam algum argumento que anulasse a minha

linha de pensamento e Vera sempre haveria de encontrar algo para continuar a descompor-

me. Por isso, continuámos a andar, até que nos dirigimos para a grande movimentação que

se encontrava perto da Basílica Sacré Coeur, apesar de já ser bastante tarde. A forma

como estava iluminada conferia-lhe um aspecto quase celestial, embora eu não

conseguisse deslocar a minha atenção para apreciar fosse o que fosse em meu redor.

Agora encontrávamos novamente as íngremes escadarias e as infindáveis ruas que nos

levariam – finalmente – até à Boulevard Rochechouart, movimentada o suficiente para

encontrar facilmente um táxi. Enquanto descíamos, Thomas, Vera e Shiva conversavam

alegremente. Só eu, não conseguia esquecer aquele episódio infeliz, talvez por estar ainda

demasiado recente na minha memória. Por momentos, desejei ser mentecapta e ignorante,

para que não conseguisse entender o que me rodeava nem pudesse contestar o que me

diziam. Talvez se não fosse minimamente inteligente, não teria a sensação de que tudo

aquilo que tinha testemunhado era mais do que parecia. E isso incomodava-me

profundamente.

Uma vez na Boulevard Rochechouart, Shiva apressava-se, com passos miudinhos, a

procurar um táxi. Estava cansada de tanto andar e instalava-se agora um vento incómodo,

frio para o que era costume em Outubro. O nosso pequeno passeio estava a tornar-se, a

todos os níveis, desagradável. Sentia um desejo súbito de chegar a casa. Despedimo-nos

rapidamente uns dos outros, com promessas renovadas de outros jantares e cafés em

conjunto, nas semanas seguintes.

Em qualquer sítio, mas não aqui, por favor.

Foi o último pedido que verbalizei para mim própria, assim que entrei para o táxi com a

minha colega de casa, rumo ao nosso apartamento.

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Aconchegada no conforto da minha cama, não conseguia fechar os olhos, pois

estava demasiado tensa com todos os acontecimentos dessa noite. O que mais me

perturbava naquela imagem que se negava a sair da minha cabeça era o olhar daquele

rapaz que tinha uma intensidade tão extraordinária quanto aterradora, como se tivesse

algum significado que eu não conseguia depreender qual era, como se ele estivesse a falar

numa língua que eu não entendia. Isto era extremamente frustrante, para além do facto de

eu não compreender o porquê das circunstâncias. Recusava-me a aceitar que fosse um

episódio de prostituição, tal como os meus colegas sugeriam de uma forma tão impetuosa.

Simplesmente não podia ser, porque eu sentia que não era assim e esta minha certeza

interior começava a ser tão perturbante quanto os factos em si. Fechei os olhos e tentei

relaxar, procurando uma linha de pensamento mais racional. Alguns minutos depois,

falhava completamente, outra vez. Isto tinha que parar, de uma vez por todas, pela minha

própria sanidade mental.

Concentrei-me arduamente. - Não interessa o que viste. Já passou. Não vale a pena

perderes tempo a pensar sobre algo que não tem importância… – e, a pouco e pouco,

tudo começou a melhorar. Senti a minha mente e corpo a relaxar quando, finalmente,

adormeci, num sono tranquilo e livre de sobressaltos.

Acordei já tarde, com alguém a tocar vigorosamente à porta do meu quarto. Só

poderia ser a incansável Shiva, com a sua inesgotável energia.

- Sim? - Rosnei eu, ainda dominada por um sono colossal.

- Olá, dorminhoca! - Afirmava ela, entrando no meu quarto, dirigindo-se firmemente para

a janela, começando a puxar o estore, enquanto uma luminosidade gradual começava a

inundar aquele modesto quarto, que consistia nos meus aposentos.

- Que horas são?

- Hum… quatro da tarde… - informou Shiva, com um leve sorriso.

- Oh... Raios! - Era tardíssimo. Levantei-me de rompante, puxando os lençóis e a coberta,

de forma que fiquei sentada à beira da cama, enquanto Shiva também se sentava ao meu

lado.

- Ora, é Domingo! Quando é que nos podemos dar ao luxo de dormir assim, Maria? -

Exclamou ela, enquanto observava com atenção a forma das suas unhas, que tinham uma

cor escura e densa que eu não consegui discernir qual era, mas aproximava-se do

castanho. Certamente consistiria numa tentativa de aproximação a garras.

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- Estão enormes, Shiva. Como é que consegues fazer seja o que for com as unhas desse

tamanho? - Declarei eu, enquanto sorria, olhando na direcção das suas enormes garras.

- É uma questão de hábito - elucidou ela, com um tom repleto de firmeza. - São lindas.

Pois claro.

- Como te sentes, hoje? - Questionou ela, olhando-me com uma preocupação genuína nos

seus expressivos olhos escuros.

- Estou bem. Obrigado - respondi eu, enquanto acenava, como se, desta forma,

pretendesse confirmar a minha última asseveração.

- Ontem estavas tão…incomodada! - Declarou ela, hesitando claramente ao voltar a falar

daquele assunto. Na verdade, a última coisa que eu não precisava neste momento era

alguém relembrar-me do que eu tão forçosamente tentava esquecer.

- Não interessa, Shiva - afirmei, enquanto fechava os olhos e me deixava, novamente, cair

para a cama. Só esperava que ela não insistisse muito, porque sinceramente, não tinha

mais nenhuma desculpa suficientemente credível que servisse de justificação.

- De certeza? - Reafirmou ela, olhando-me novamente

- Absoluta - reafirmei eu. - Não vou dar importância a algo insignificante.

- Muito bem - sorriu Shiva, aparentemente satisfeita com as minhas ambíguas

justificações.

- Vou comer alguma coisa, estou francamente esfomeada! - Declarei eu, enquanto me

levantava novamente, desta vez de uma forma mais vagarosa e procurava pelas minhas

confortáveis pantufas cor-de-rosa que pareciam estar dispersas em cantos opostos do

quarto.

- Eu acompanho-te - afirmou Shiva, enquanto seguia atrás de mim, na direcção da

cozinha, reparando que ambas estávamos de pijama, o que classificava o nosso domingo –

caracteristicamente - como dia de descanso, a todos os níveis, físico e mental. De forma

pachorrenta, com sumos de fruta da época e sanduíches mistas de pão integral, deixámos a

tarde passar, ao som dos vários episódios da série “CSI Miami” dobrada em francês, que

se revelava a melhor opção de entre as disponíveis nos limitados canais a que tínhamos

acesso.

Estava dez minutos atrasada. Raios! Tentei telefonar a Adèle mais de dez vezes,

sem sucesso aparente. Provavelmente ela já estaria na aula, com o telemóvel no silêncio e

eu… perdida algures no Hospital Saint-Antoine. Definitivamente, ia chegar atrasada à

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minha primeira sessão de práticas, facto que me aborrecia de forma visceral. Após várias

tentativas falhadas para encontrar o Departamento de Medicina Legal, rendi-me às

evidências e resolvi perguntar onde estaria o respectivo departamento - em francês. Fiz

um esforço sobre-humano para conseguir elaborar um discurso coerente e perceptível, à

medida que me aproximava de duas senhoras com aspecto sério mas acessível, que

conversavam animadamente frente a uma marquesa.

- Pardon, le Département de Médicine Légal, s’il vous plaît ?

Olharam-me com curiosidade. Certamente a minha pronúncia característica ter-

me-ia denunciado. Com um sorriso na face, uma delas explicou-me com uma lentidão

desnecessária, onde estava localizado o Departamento. Felizmente, não estava longe dali,

apressei-me a descer dois lances de escadas, depois sempre em frente e última porta à

esquerda, recordando as indicações da prestável senhora.

À medida que avançava, caso não tivesse a certeza se o departamento era ali ou não, o

cheiro que começava a intensificar-se no ar retirava qualquer sombra de dúvida. Ao abrir a

porta, encontrei de imediato uma simpática senhora que me observou com olhar crítico,

pois eu estava ligeiramente ofegante da minha pequena corrida. Sem dizer uma palavra,

apontou para um recanto onde se encontravam várias dezenas de cacifos, onde presumi

que tinha que deixar todas os meus pertences. Aproximei-me do conjunto metálico à

minha direita, para encontrar somente um cacifo vazio, ainda com a chave na fechadura.

Tal como imaginava, a frequência às aulas práticas era rigorosamente controlada. E eu

estava atrasada!! Apressei-me a colocar tudo o que trazia dentro do cacifo e voltei à

pequena entrada, esperando encontrar novamente a senhora, para lhe perguntar onde

estavam a decorrer as práticas de Medicina Legal que, muito graciosamente, me informou

onde eram. Alguns corredores mais adiante, comecei a ouvir uma voz forte, com um

burburinho característico à mistura. Só poderia ser ali! Graças a Deus! Finalmente, ia

terminar a minha odisseia matinal na procura da sala de aula.

Encontrei facilmente o olhar surpreso do professor e o dos meus colegas, não sei se por

estar atrasada, se por apresentar um ar de espanto misturado com fatiga, como se tivesse

acabado de correr uma maratona. Percorri os olhares até encontrar o de Adèle, que me

acenou com um sorriso aberto e reparei também que todos estavam vestidos

caracteristicamente, o que me fazia parecer completamente deslocada naquela enorme

sala. O professor olhava-me com estranheza por cima dos seus minúsculos óculos,

posicionados caracteristicamente na ponta do nariz. Era um homem grisalho, ligeiramente

calvo e com barba um pouco comprida e olhos claros, de um azul quase transparente.

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Também ele se vestia caracteristicamente, deixando entrever a camisa branca com uma

elegante gravata azul escura. Subitamente, ouvi-o falar na minha direcção:

- Mademoiselle Maria?

- Oui - respondi prontamente.

- Par ici, s’il vous plaît - ordenou, firmemente, manifestando-se algo incomodado com a

minha demora…ou com a minha interrupção, ou… até mesmo, com ambas. Desculpando-

me como podia, incansavelmente, segui o professor até uma pequena sala disposta

lateralmente à anterior, na qual ele me informou onde estavam diversas vestimentas, as

quais teria que usar sempre durante a temporalidade das práticas de Medicina Legal.

Rapidamente me vesti, pronta para acompanhar a aula que estava mesmo a começar, tal

como havia comentado o professor. Novamente na sala com os meus colegas, reparei que

estavam todos dispostos em grupos de três, o que me deixava a mim sem grupo. Mais uma

vez, o professor foi extremamente compreensivo e permitiu que me juntasse ao grupo de

Adèle, que comigo constituía uma pequena multidão de quatro pessoas.

Éramos dezasseis alunos, dispostos frente a cinco marquesas, ainda vazias. Enquanto o

professor explicava o funcionamento das práticas, entraram alguns auxiliares com os

nossos “objectos de estudo”, ou seja, cinco cadáveres, onde cada grupo iria “trabalhar”.

Pude observar, de soslaio, a postura divertida e maliciosa dos auxiliares, que certamente

esperariam, a qualquer momento, que algum aluno desmaiasse ou fizesse uma cena, mal o

professor desse início à aula. Senti um pequeno formigueiro no estômago, estava a ficar

um pouco nervosa à medida que observava o professor a destapar os cadáveres, dando

instruções aos alunos acerca do que fazer. Por fim, chegou ao meu grupo e enquanto nos

advertia das nossas tarefas, olhei sorrateiramente para o vulto coberto diante de mim. Só

conseguia distinguir que era uma mulher.

O que se passou em seguida foi muito rápido. O professor começou a destapar o cadáver e

mal vi a cara da pessoa à minha frente, senti um choque que me incapacitou de formular

qualquer pensamento coerente. Eu conhecia aquela face, tinha-a visto há duas noites atrás,

naquela ruela em Montmartre, com aquele… rapaz.

Senti perder as forças e, instintivamente, dei dois passos para trás, colidindo com a mesa

dos instrumentos, que caíram ruidosamente no chão. Todos os olhos naquela sala se

fixaram em mim e senti o riso abafado dos auxiliares na minha direcção. Naquele

momento, não existia ninguém em meu redor, era só eu e ela, não conseguia deixar de

olhar para ela. Como era possível ela estar aqui, neste local, morta?

Senti a mão de Adèle no meu ombro e encontrei em mim o seu olhar preocupado.

- Maria? Estás bem?

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Não conseguia ouvir nem dizer nada, nem formular o mais simples monossílabo. Voltei a

olhar para ela, ali deitada, à minha frente, como uma estátua humana. O cabelo loiro

estava agora mais escurecido e a cor dela era de um branco-acinzentado intenso,

provavelmente por estar debaixo do foco luminoso. Quase que identificava um brilho em

seu redor, como se de um anjo se tratasse. Um anjo caído. Tinha várias marcas nos pulsos,

pescoço e peito, que não consegui identificar. Ouvi alguém, longínquo, chamar pelo meu

nome.

- O que se passa? Maria? - Era o professor, que me fitava de forma atenta.

Olhei para ele. Tinha que lhe dizer alguma coisa, dar-lhe alguma explicação.

- Eu conheço-a. - Foi o que consegui articular.

Conseguia sentir a tensão no ar que me rodeava, os meus colegas olhavam-me algo

aterrorizados e os auxiliares estavam agora perto de mim e do professor, curiosos.

- E-Eu vi-a…- voltei a balbuciar, sem conseguir deixar de olhar para ela.

- Maria, é melhor sairmos. Vamos - interrompeu o professor, apontando para a porta da

saída.

Saí acompanhada pelos auxiliares, debaixo do constante olhar perplexo de todos, na

direcção de uma pequena sala não muito longe dali, onde me sentei num pequeno sofá. Os

auxiliares informaram-me de que o professor viria rapidamente acompanhar-me e saíram,

deixando-me sozinha. Poucos segundos depois fui invadida por uma enorme sensação de

infelicidade e tive que fazer um esforço considerável para não chorar.

O que era isto? O que teria eu visto e o que se teria passado naquela ruela, para a rapariga

estar na morgue daquele hospital? Tinha o meu batimento cardíaco aceleradíssimo, quase

conseguia ouvi-lo a sobrepor-se à minha voz interior e estava a ficar taquicárdica.

Coloquei as minhas mãos nas fontes e tentei acalmar-me, fechando os olhos e tentando,

em vão, pensar em algo menos funesto.

Ouvi alguém aproximar-se de mim e abri os olhos automaticamente. Era o professor, que

puxava uma cadeira e se sentava exactamente à minha frente, como se fosse interrogar

uma criminosa.

- Então, conta-me o que se passou - pediu ele, calmamente.

Inspirei fundo, numa tentativa de aclarar a minha mente e conseguir explicar com o

mínimo de lógica e coerência o que se tinha passado nas últimas quarenta e oito horas.

- Sábado à noite fui sair a Montmartre com uns amigos - comecei. O professor olhava-me

atentamente.

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- A certa altura perdi-me e… meti pela rua errada - voltei a inspirar fundo. Estava a

aproximar-me do momento difícil de descrever. - Numa rua transversal vi…vi-a com um

homem.

Olhei novamente para o professor, que se mantinha inexpressivo.

- Continua - disse ele.

- Ela…parecia estar assustada e… – hesitei, olhando novamente para ele, que acenou para

que eu continuasse a falar. - …estava a sangrar.

Seguiu-se um silêncio desconfortável.

- Então, não a conhecias – concluiu ele.

- Não, eu só a vi … nas circunstâncias que acabei de lhe explicar - esclareci eu.

- E achas que lhe aconteceu alguma coisa, foi?

- Não sei… – Foi a minha resposta imediata. - Foi uma situação tão estranha, não consigo

explicar-lhe o que se estava ali a passar.

- Fala-me do homem que estava com ela - pediu o professor.

O modo como me pediu que descrevesse o “homem” assustou-me ligeiramente, o que me

fez pensar que talvez não fosse muito boa ideia referir que o tinha reconhecido. Até

porque eu o considerava mais como um “rapaz” que como um “homem”, mas a verdade

era que eu não sabia concretamente como descrevê-lo.

- Não consegui ver bem… - menti. - Estava escuro… só vi que tinha um casaco escuro

e…

- Sim?

- …era muito pálido - terminei, como se esta característica fosse excepcionalmente

informadora.

- Pálido?

Acenei com a cabeça, confirmando a minha última afirmação.

- E viste-lhe a cara?

- Não - menti, novamente. Bem, não era propriamente uma mentira, pois se eu não o

tivesse visto na reunião de intercâmbio, nunca o teria reconhecido. - Tinha o cabelo a

tapá-la - reforcei.

- Mas viste que era pálido.

- Sim…

As minhas afirmações estavam a contradizer-se, de certo modo. Quer dizer, não lhe tinha

visto a face, mas sabia que era pálido. Além disso, estava a sentir-me ligeiramente

manipulada. Comecei então a perceber o que se estava a passar: se o professor estava a

30

tentar que eu me contradissesse, então estava a conseguir. Era a justificação perfeita para

me desarmar.

- Hum. E achas que ele lhe fez mal?

- Não sei - menti, mais uma vez. Eu tinha a certeza absoluta que ele lhe tinha feito alguma

coisa. - Provavelmente… não sei.

O professor lançou-me um olhar inquisidor, avaliando a minha resposta cautelosamente.

- Estás em Paris há quanto tempo?

- Há uma semana.

Senti o sorriso dele ainda não tinha acabado de pronunciar as minhas últimas palavras, o

que não me agradou de todo.

- Oh, Maria… - continuou ele, sorrindo. - Provavelmente confundiste-a com alguém que

viste nessa noite. Ela tem uma cara comum.

Fiquei estupefacta a olhar para aquele homem, que mais parecia estar a zombar de

mim e da minha sanidade mental.

- Não é possível que seja a mesma rapariga. Sabes porquê?

Eu mantinha-me em silêncio, olhando-o, atónita.

- Esta rapariga suicidou-se na madrugada de domingo em sua casa. Tinha problemas

psiquiátricos.

Fiquei boquiaberta. Como era possível? Eu estava tão segura, tinha a certeza, eu sentia

que era ela. Tudo isto era demasiado estranho e, ao mesmo tempo, demasiado complexo

para mim. Seria o meu ponto de vista assim tão ridículo? Era ela que tinha estado naquela

ruela, com aquele rapaz, era ela a rapariga que jazia naquela morgue. A mesma pessoa.

- Como é que ela se suicidou? - Perguntei eu.

- Isso, mademoiselle, é que eu pretendo que deduza - referiu alegremente o professor. -

Estás pronta para voltar para a sala de aula?

- Acho que sim - afirmei eu, enquanto me levantava do sofá.

- Faça o favor - disse o professor, permitindo-me passagem.

Voltámos silenciosamente para a sala de aula, onde estavam os outros grupos,

debruçados nos seus cadáveres. Regressei para junto do meu grupo, que continuava a

lançar olhares curiosos na minha direcção. O professor ficou connosco analisando o

cadáver, dando-nos pistas e informando-nos do que considerava necessário para

chegarmos à conclusão que estava já descrita no relatório de autópsia.

- Repara, Maria - chamou ele. - Feridas infligidas com objecto afilado, ângulos de entrada

consistentes com auto-agressão e lesão de artérias principais. Causa de morte?

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- Hemorragia intensa - respondi eu, automaticamente, enquanto na minha mente pululava

a palavra Homicídio.

- Voilá! - Sorriu o professor, na minha direcção.

Senti todo o grupo dispersar, o que significava que a aula tinha terminado. Olhei mais uma

vez para aquela rapariga, que parecia estar envolta num manto de serenidade.

Instintivamente, toquei-lhe na testa, dirigindo-me depois para o maxilar. Estava fria, e a

pele tinha uma textura característica, de uma enorme suavidade. Raios! Tinha a certeza

absoluta que era ela.

- Então, Maria, tudo bem? - Perguntou o professor, mais uma vez, dirigindo-se a mim.

- Sim - confirmei eu. - Tem razão, professor. Devo tê-la confundido com alguém que vi

naquela noite - menti, descaradamente. Sem dúvida, seria melhor assim, para não levantar

suspeitas desnecessárias sobre mim.

O professor, por outro lado, parecia algo desconfiado da minha súbita aceitação dos factos

que tão discretamente tinha rejeitado há pouco.

- Obrigado e… desculpe todo este episódio lamentável - reforcei, mais uma vez.

- Até amanhã! - Retorquiu ele.

- Até amanhã.

Apressei-me a sair daquela sala e daquele local, precisava de ar para pensar com

mais calma no que ali tinha visto. Tinha uma certeza imperiosa que era aquela a rapariga

que eu vira na ruela com ele. E não tinha sido suicídio, eu estava absolutamente ciente

disso. Seguramente algo tinha acontecido naquela noite e eu não estava a perceber o que

era. Fosse o que fosse, era algo sério e eu tinha testemunhado esse evento.

Aniquilando todo o esforço que tinha feito nos dias anteriores, com o objectivo de

esquecer aquele episódio, tentei recordar pormenorizadamente o que tinha visto naquela

noite, com o intento de compreender o que se estava a passar em meu redor. O que estava

ela a fazer com ele, naquele beco? Afinal eu tinha razão. Ela não era uma prostituta, mas

sim alguém… com problemas psiquiátricos. Quem era ele e o que quereria dela? E o que

lhe fez ele? Esta última linha de pensamento assustava-me particularmente, porque eu

sabia que ele me tinha visto, portanto ele sabia quem eu era. E eu acabava de levantar

ondas na morgue do hospital. Tinha que chegar a casa rapidamente, sentar-me e pensar

calmamente e em silêncio no assunto.

Nunca a viagem de metro até casa me pareceu tão demorada. Já em casa, no meu

quarto, sentei-me na beira da cama e tentei organizar toda a sequência de eventos na

minha cabeça. Tinha que ser, acima de tudo, racional, pois tudo isto certamente teria uma

explicação óbvia e eu não estaria, certamente, a atingi-la. A imagem daquela rapariga,

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naquele beco, alternada com a imagem dela deitada naquela marquesa, não tinha uma

sequência lógica. Suicídio? Feridas auto-inflingidas? Tudo isto era demasiado

conveniente, demasiado… correcto. A certa altura, ocorreu-me que deveria ter pedido o

relatório da autópsia. O professor não mo negaria e, certamente, seria um pedido comum

entre os alunos.

Tudo isto era uma coincidência perturbante. Se havia algo que me cansava acima de tudo,

era eu não compreender o que estava por detrás de todos estes acontecimentos que, para

todos pareciam insignificantes, excepto para mim. O que me levaria a contestar tudo e

todos? Porquê esta situação, em concreto, a pôr constantemente em causa toda a minha

racionalidade?

Não, eu não poderia estar a pensar nestes termos. Provavelmente, seria eu que estaria a

complicar o que é simples e a criar uma história misteriosa em redor de uma pessoa que

tinha problemas mentais sérios, que a levaram ao suicídio. Talvez tudo isto não fosse mais

do que uma coincidência infeliz. Sim, provavelmente seria isso.

Adiante.

Era hora de almoço e não tinha fome nenhuma. Mais uma vez relembrei a face daquela

rapariga, tão fria, tão distante. Desejei ser capaz de eliminar estas imagens da minha

mente, sem rejeitar instantaneamente todo e qualquer pormenor da história que me tinham

“vendido”.

Definitivamente, este era um fantasma que eu tinha que exorcizar sozinha.

Nessa tarde e noite resumi-me ao silêncio do meu quarto e somente dirigi um

escasso conjunto de palavras a Shiva, que estranhou, como seria de esperar, a minha

atitude de alienação. Ainda considerei mencionar-lhe o que se tinha passado de manhã, na

aula prática de Medicina Legal, mas desisti da ideia quase instantaneamente. Porque

haveria ela de acreditar em mim e nas minhas teorias que, segundo todos, estavam

deslocadas da realidade? Certamente haveria de justificar a presença da rapariga na

morgue com a mesma certeza e segurança que os demais e eu seria apelidada como aquela

tola que alimentava teorias conspirativas. Por momentos, imaginei-me em camisa-de-

forças, rodeada de pessoas dispostas a internar-me num hospital psiquiátrico. Sim, sem

dúvida seria o desfecho mais provável se eu continuasse a insistir em questionar o que era

aparentemente tão óbvio para todos, excepto para mim.

Estava sentada na minha cama, a olhar concretamente para nada, enquanto ouvia Shiva a

preparar-se para ir dormir, a julgar pela movimentação que sentia no corredor e na casa-

de-banho. Talvez fosse melhor eu fazer o mesmo. Talvez fosse melhor deixar a noite

33

passar e dormir sobre o assunto, para que o amanhã pudesse ser um dia o mais próximo

possível do normal.

Só esperava que conseguisse dormir descansada para que o dia seguinte fosse

minimamente suportável.

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CAPÍTULO 3 – NADINE

PARIS AMANHECEU RUIDOSA E ACORDEI MUITO ANTES DA HORA, de um sono sem

sonhos, graças a Deus.

Hoje seria mais um dia de aula prática de Medicina Legal e Forense, realidade que me fez

sentir um pequeno formigueiro no estômago. Apesar da minha incessante vontade de

esquecer todos os eventos que me perturbavam a mente, a ideia de voltar àquela morgue

era aliciante, pois talvez pudesse espreitar o relatório da autópsia da tal rapariga. Era uma

hipótese de exorcizar o meu fantasma. A ideia retirou-me todo e qualquer vestígio de sono

ou preguiça que pudesse ainda residir em mim e, com uma rapidez invulgar, levantei-me e

tratei de tomar duche, vestir-me e tomar o pequeno-almoço, apressando-me a sair de casa,

com o meu recente objectivo bem definido.

Hoje, tudo em meu redor parecia movimentar-se em câmara lenta, desde a água que saía

do chuveiro, tornando o duche matinal mais demorado, o leite a sair da embalagem, a

torrada a tostar, até o elevador do prédio a descer, assim como a viagem de Metro até ao

Hospital, que foi estranhamente vagarosa. Provavelmente seria o excesso de adrenalina

que eu tinha, hoje, a percorrer a minha circulação sanguínea.

Cheguei ao departamento de Medicina Legal quase trinta minutos antes da hora da aula:

eram oito e meia da manhã. Com uma rapidez pouco típica para uma hora tão matutina,

coloquei os meus pertences no cacifo e dirigi-me à sala onde, no dia anterior, tinha sido a

protagonista do tão memorável episódio, para lá encontrar já alguém que não o professor

responsável. Provavelmente seria um médico ou até mesmo um auxiliar. Era difícil

distingui-los porque todos se vestiam da mesma forma e quase nenhum evidenciava

crachás identificativos para facilitar a nossa tarefa. Fosse o que fosse, estava

decididamente concentrado a preencher papéis no balcão mais longínquo da sala e só lhe

conseguia distinguir os óculos de forma quadrilátera, a face engelhada e a ausência quase

total de cabelo, sendo o pouco que tinha de uma cor cinza esbranquiçado, dificilmente

visível por debaixo do gorro, mas que se adivinhava pelas escassas patilhas que

ameaçavam começar a formar-se.

- Bonjour - cumprimentou-me, alegremente, sem se incomodar em olhar na minha

direcção.

- Bonjour! - Respondi, com timidez. E agora? Dizia o quê? Como lhe ia eu explicar o

porquê da minha chegada trinta minutos antes da hora? Ainda estava eu a tentar elaborar

um modo de intervir de forma discreta, quando ele se dirigiu a mim.

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- Chegaste cedo – afirmou, olhando para mim agora de forma curiosa, enquanto eu

acenava com a cabeça, como se estivesse a confirmar a sua óbvia afirmação. Pronto, ele

tinha-me reconhecido. Claro que sim. Imagino quem é que naquele departamento ainda

não saberia do meu mediático episódio na sala de autópsias.

- Então, foste tu que reconheceste a Nadine?

Olhei-o com espanto. Nadine. Era esse o nome dela. A sua imagem angélica, prostrada na

mesa da autópsia surgiu-me de imediato na mente, o que me fez demorar um pouco a

preparar uma resposta.

- Sim. Quer dizer, não - apressei-me a corrigir, desviando o olhar. - Afinal, confundi-a

com alguém. Aparentemente ela tinha uma cara comum e eu só cá estou há uma semana -

terminei eu, com um tom de voz ligeiramente sarcástico e um ligeiro sorriso amarelo, que

se começava a formar na minha face.

- Hum. Não te preocupes. Isso acontece mais vezes do que imaginas - retorquiu ele.

- Pois, acredito - reafirmei, com segurança.

Regressando à sua elaborada papelada, aquele homem parecia agora aparentemente

desinteressado da nossa pequena troca de palavras. E eu precisava de ter acesso ao

relatório da autópsia. Essa era a minha grande necessidade, neste momento.

- Os alunos têm acesso aos relatórios de autópsias? - Disparei, praticamente sem pensar.

Raios! Se estava a tentar ser discreta, tinha acabado de falhar redondamente.

O homem diante de mim admitiu uma postura séria e desconfiada, olhando-me como se

me estivesse a pedir uma justificação. De imediato senti-me amargamente arrependida de

ter feito a pergunta daquela forma.

- Queria confirmar um óbito. - Foi a única fundamentação credível que me surgiu naquele

momento.

- Ah… - retorquiu o homem, que não parecia muito convencido. - E de quem queres

confirmar o óbito? Posso saber?

Agora a sua postura era de uma curiosidade desafiadora, como se já soubesse qual ia ser a

minha resposta, aguardando somente a confirmação. Foi um momento um pouco

desagradável e como não manifestei a prontidão desejada a responder à pergunta,

respondeu ele por mim.

- Se procuras o relatório da Nadine, então tenho imensa pena, mas o caso dela já foi

arquivado.

Olhei para aquele homem com estranheza.

- Arquivado? - Perguntei, pasmada, sem ideia do que isso poderia significar.

36

- Temos problemas de espaço. A ocorrência foi resolvida, o corpo foi cremado e o caso

encerrado.

Novamente olhei para aquele homem com espanto. A indiferença com que ele se

referia ao processo da pobre Nadine era admirável, pelas piores razões. Para não

mencionar a terrível referência à cremação, que era simplesmente arrepiante.

- Mas, se tens dúvidas, podes perguntar ao teu professor - referiu o homem, com nítido

sarcasmo, enquanto olhava firmemente por cima do meu ombro.

Pude então constatar que o meu professor tinha acabado de chegar e não parecia muito

contente com a minha pequena invasão antes da hora estabelecida.

- Mademoiselle Maria, - referiu ele, enquanto me fitava por cima dos seus arcaicos óculos,

visivelmente desagradado - pensava que já tínhamos esclarecido todas as dúvidas acerca

deste caso.

- Sim, já esclarecemos - aprontei-me a concordar.

- Então porque é que insiste em mencionar novamente o assunto, Maria? - Voltou a

perguntar, aumentando ligeiramente o tom e continuando a insistir.

- Há algo que a incomoda? Alguma dúvida respeitante ao que ontem aqui foi dito?

- N-Não - respondi timidamente.

- Acho bem, Mademoiselle - respondeu ele, com frieza. - Há assuntos que, uma vez

resolvidos, devem ser esquecidos. Deixe a rapariga descansar em paz, Maria!

O seu tom finalizou firmemente a nossa conversa e eu não tive a mínima hipótese de

voltar a mencionar o assunto. Aliás, nem me atreveria a fazê-lo.

Algo desiludida, dirigi-me à sala do vestuário. Talvez fosse melhor assim, era da forma

que teria que esquecer definitivamente este assunto que, tinha que admitir, estava a

ocupar-me a mente de uma forma desproporcionadamente exagerada. Já mais

conformada, vesti-me e preparei-me para a aula que ia começar dentro de minutos,

procurando desocupar a minha mente dos assuntos que tinham, para todos os efeitos,

morrido naquela sala de autópsias.

O dia passou-se sem ocorrências marcantes. A prática de Medicina Legal mostrou-

se bastante proveitosa e foi com algum alívio que constatei que o meu episódio prévio de

aparente insubordinação não tinha afectado em nada a relação professor-aluno: ele

comportava-se como se nada se tivesse passado.

Aproveitei toda a tarde para organizar os meus apontamentos e começar, definitivamente,

a estudar. Se estava num país com uma língua que não dominava, então seria prudente

começar a estudar nessa língua com alguma antecedência, para que não colapsasse quando

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chegasse a hora dos exames. Eram já oito da noite quando ouvi Shiva entrar em casa,

muito provavelmente vinda da faculdade. Pensei convidá-la para me acompanhar no

jantar, um pouco como forma de compensar a minha atitude anti-social do dia anterior.

- Olá! - Cumprimentei eu, alegremente

- Olá! - Respondeu ela, visivelmente incomodada.

- Então que tal o dia?

- Terrível - referiu ela, claramente aborrecida. - Carregaram-me de trabalhos e projectos.

Não sei se vou conseguir dormir, hoje.

- Ah… - Não me parecia que tivesse a sorte de ter companhia para jantar, mas ainda assim

perguntei-lhe.

- Já jantaste?

- Sim - respondeu-me prontamente. - Jantei na faculdade, para poder chegar a casa e

começar imediatamente a trabalhar.

- Está bem.

Jantar sozinha não era algo que me incomodasse mas também não me agradava muito,

pelo que decidi dirigir-me à cozinha, tentando pensar em algo saboroso para cozinhar.

Como a minha imaginação para a culinária hoje não estava particularmente aguçada,

desisti prontamente da ideia e resolvi ir jantar ao refeitório na Maison Internationale, a

opção mais próxima de casa. Era prático e certamente ainda voltaria a tempo de estudar

algo.

- Shiva, vou jantar à Maison, está bem? Não demoro.

- O.K.! - Respondeu ela, do quarto.

Decidi levar somente as chaves de casa. Ia ser um jantar rápido e certamente não iria ter

telefonemas urgentes na próxima meia hora, pelo que desci e caminhei na direcção da

Maison Internationale.

O sol estava a pôr-se e a luminosidade que se abatia sobre a cidade tinha um tom laranja –

acastanhado, reflectindo-se estrategicamente nas folhas das imensas árvores que

constituíam o enorme campus, dando-lhe um aspecto de tela acabada de pintar. Corria um

vento fresco, demasiado frio para o que eu estava acostumada, mas ainda assim muito

agradável e extremamente ajustado ao cenário por onde passava. Paris era, de facto, uma

cidade mágica.

À medida que passava no campus, observava as residências atentamente, perguntando-me

instintivamente onde estaria a Maison de Portugal. Provavelmente noutra zona que, de

certeza, ainda não tinha explorado.

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Finalmente, chegava ao edifício que constituía a Maison Internationale em si e dirigi-me

ao refeitório.

Entrei pelas portas basculantes e caminhei até encontrar as diferentes ofertas para as

refeições do dia. Desinteressada do aspecto do Plat du Jour e sem vontade de arriscar os

grelhados, constatei que a melhor opção provavelmente seria a Pasta que, de facto, estava

bastante saborosa. Jantei rapidamente, com a minha mente um pouco alheada do que me

rodeava, planeando mentalmente a ordem de temários a estudar numa outra disciplina que

ainda não tinha iniciado.

Levantei-me, coloquei o tabuleiro no local correspondente e dirigi-me à saída do

refeitório, enquanto trincava uma consistente e volumosa maçã que tinha retirado para

sobremesa. Reparei que já era noite cerrada, o que me fez sentir subitamente

desconfortável e, instintivamente, apressei o passo enquanto percorria os corredores que

me levariam à saída do edifício.

Contudo, quando cheguei às portas da saída, não foi preciso fazer um grande esforço para

me aperceber que lá fora estava alguém à minha espera. Ao olhar em frente, encontrei um

par de olhos claros e brilhantes que perturbadoramente aprisionaram o meu olhar por um

momento eterno. Eu sabia quem ele era, eu reconhecia aquele olhar que era marcante, da

pior maneira possível. Ele estava a cerca de dez metros da porta, do lado de fora, com uma

ira e uma segurança no olhar que me fez ter a certeza de que era eu quem ele procurava,

no meio daquela pequena multidão de pessoas que nos rodeava. E eu sabia porquê.

A minha reacção foi instantânea: voltei para dentro do edifício, sem saber para onde ir

nem o que fazer, sem conseguir pensar nem falar. Era uma situação que já me acontecera,

e, pela segunda vez, sentia em mim aquele olhar incapacitante, quase que a arder na minha

mente, quando fechava os olhos. Quando dei por mim, percebi que os meus pés me

tinham levado até à casa-de-banho, onde me sentei, desesperada. Definitivamente

precisava de pensar.

E agora, fazia o quê? Arrependia-me amargamente de ter tido uma reacção tão cobarde,

como se estivesse a planear uma fuga que só podia classificar de patética, no mínimo.

Agora ele já sabia quem eu era, onde estava e, acima de tudo, que estava cheia de medo, o

que não abonava a meu favor. Subitamente, lembrei-me do porquê. Claro, algo muito

sério deve ter mesmo acontecido naquela ruela, porque senão ele não estaria aqui, a

perseguir-me, a vigiar-me com aquele olhar demente.

Senti uma enorme vontade de chorar. Eventualmente eu teria que sair daqui e ele ia estar à

minha espera, para me fazer sabe Deus o quê. Olhei para as minhas mãos, lívidas do stress

e, nos bolsos do casaco, somente encontrei as chaves de casa. Nem sequer tinha o

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telemóvel, nem nada com que pudesse contactar alguém. Raios! Não deveria ter sido tão

imprudente e agora… ele tinha-me apanhado. Não tinha hipótese. Por momentos, lembrei-

me de Nadine. Seria esta a aflição em que ela estaria, antes de se encontrar nos braços

daquele rapaz que, definitivamente, lhe tinha feito alguma coisa? Respirei fundo e olhei

para o relógio: tinham passado dez minutos. Eu tinha passado dez minutos escondida na

casa-de-banho a congeminar uma escapatória. Era incrível como o desespero nos podia

tornar nos seres mais ridículos à face da terra. Se não fosse a gravidade inerente ao facto,

até seria capaz de encontrar piada a toda esta situação em que me encontrava. Eu,

escondida na casa-de-banho, com medo de alguém que me tinha fitado com um olhar

funesto.

Ter-se-ia ele ido embora? Meu Deus, como eu desejava que isso fosse verdade.

A minha única chance era pedir a alguém que me acompanhasse a casa. Não seria muito

difícil, o edifício estava cheio de estudantes e eu poderia explicar facilmente a situação.

Era uma hipótese, sem dúvida, à qual eu teria que me agarrar para poder sair dali e chegar

a casa, sã e salva. Expirando ruidosamente, saí da casa-de-banho com o intento de

encontrar alguém que me pudesse ajudar. Contudo, para minha desilusão, não encontrei

absolutamente ninguém naquele edifício, com excepção das pessoas que estavam a

trabalhar no refeitório e no bar. Definitivamente, tudo isto parecia uma brincadeira de

muito mau gosto, pois não encontrava nada nem ninguém a que me pudesse agarrar para

fugir dali, para fugir dele.

E agora?

Estava desesperada e sentia-me a começar a hiperventilar.

Subitamente lembrei-me de algo que, eventualmente, me poderia salvar daquele pesadelo

tão real. O edifício tinha duas saídas, uma delas pelo lado do bar… instintivamente, sem

pensar duas vezes, apressei-me nessa direcção.

Ao sair, percorri de imediato, com olhar atento, todo o Campus a que conseguia ter acesso

e não vi ninguém. Aparentemente. Contudo, ao descer as escadas percebi que, afinal,

estava errada e que aquele estranho rapaz estava, literalmente, à minha espera, no final do

lance de escadas, encostado despreocupadamente ao muro, como se esperasse a minha

óbvia reacção. Senti o meu coração disparar, não só de medo mas também de vergonha,

pois a minha ridícula tentativa de fuga tinha sido facilmente descoberta.

Não tenho hipótese… - congeminei.

Agora sim, tinha que descer as escadas e ir ao encontro daquele obscuro indivíduo que,

somente com a sua presença, ameaçava a minha frágil existência. Desci lentamente as

escadas, temerosa com o que se iria passar. Subitamente, senti o olhar dele em mim, tão

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característico, tão intenso… recordava-me perfeitamente daquele mesmo olhar que me

havia lançado naquela noite, na ruela… e assustava-me profundamente. Tive a ligeira

sensação de que ele sabia perfeitamente o efeito que provocava em mim. Chegaria eu a

casa, esta noite?

À medida que descia, abrandava instintivamente o passo, enquanto ele se dirigia a mim,

nunca deixando os meus olhos, até parar a cerca de dois metros de mim, como se essa

fosse a “distância de segurança”.

- Olá - cumprimentou ele. Abordou-me em inglês e pude recordar o timbre da sua voz.

- Olá - respondi, secamente, quase sem voz.

Seguiu-se um estranho silêncio e foi aí que eu tive oportunidade de o observar com algum

pormenor. Não havia luar, a única luz existente era a fraca luminosidade proveniente dos

candeeiros da rua, junto com a que emanava do edifício. Ele vestia calças escuras e uma

camisa clara com um casaco, também escuro, visivelmente leve para o frio que estava. As

mãos estavam tensamente escondidas nos bolsos e a sua postura era defensiva. Pude

observar que o cabelo estava disposto de um modo anárquico, escondendo parcialmente a

face mas, ainda assim, podia agora discernir-lhe as feições com mais pormenor. Eram

bastante finas, como que trabalhadas e a palidez que delas emanava era absolutamente

única e muito pouco natural, tal como eu recordava das últimas duas vezes que o tinha

visto. Os olhos claros eram, afinal, verdes e continuavam fixos em mim, certamente

procurando respostas na minha face. Ou, pelo menos, assim parecia.

- És aluna de intercâmbio, certo? - Perguntou, com um sotaque tipicamente britânico.

Limitei-me a acenar, espantada com a sua perspicácia. Afinal, lembrava-se de mim da

reunião de intercâmbio.

- Chamo-me David, David Henshaw. E tu és…? - Questionou, com uma voz calma e

segura.

- Maria - respondi secamente.

- Maria… - parafraseou ele, com uma entoação claramente diferente da minha. Se não

fosse pelas circunstâncias, provavelmente rir-me-ia da pronúncia que ele tinha utilizado ao

referir o meu nome.

- És hispânica? – Perguntou novamente, a sua face curiosa.

- Sou Portuguesa - respondi, com uma voz fraca. Não estava a perceber onde queria

chegar com tais perguntas.

- Ah, estou a ver - constatou. - E és estudante de Medicina, não é verdade?

A convicção nas palavras dele era assustadora. Como é que ele sabia o que eu

estudava? Limitei-me a responder com monossílabos.

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- Sim…

A postura dele alterou-se minimamente, afastando os olhos dos meus, pela primeira vez

desde que tínhamos iniciado o nosso estranho diálogo. Senti-me instantaneamente mais

confortável, agora que ele parecia imerso num estranho transe, claramente afastado do

mundo real. Este rapaz era, definitivamente, muito esquisito.

Subitamente, senti-o aproximar-se de mim, com uma rapidez invulgar, fitando-me

intensa e perturbadoramente, quebrando a distância de segurança que ele próprio tinha

estabelecido.

- Portanto, suponho que sejas uma pessoa muito racional - disparou ele.

- T-Tento ser… - engasguei, em vão. Que raio de afirmação era esta?

- E aplicas essa linha de pensamento a tudo na vida? - Continuou, visivelmente

interessado em ouvir a minha resposta. O problema era que eu não estava a compreender

qual era o objectivo recôndito daquela pergunta.

- O que… queres dizer com isso? - Tentei, em vão, perguntar e senti-o aproximar-se,

novamente, com um passo firme, na minha direcção.

- Consegues encontrar sempre uma explicação racional para tudo? - Questionou.

Agora sim, a pergunta tinha um objectivo, que estava claramente explícito por detrás das

palavras tão graciosas que tinha utilizado.

- Eu tento…mas nem sempre consigo.

Foi o melhor que consegui elaborar, pois a proximidade dele era algo desconcertante, o

seu olhar era intimidante e eu estava a ficar francamente assustada.

- E porque é que achas que isso acontece? - Perguntou novamente, com sério interesse na

voz. Senti-me estremecer, ao aperceber-me que não sabia como responder a estas

enigmáticas perguntas. Por momentos perguntei-me quando é que ele me iria atacar e

comecei a sentir um pico de desespero.

- Não estou a perceber o que… - tentei começar, quando ele me interrompeu com uma

firmeza irredutível.

- Aparentemente, há acontecimentos que são inexplicáveis.

Fiquei absolutamente perplexa, incapaz de pronunciar uma palavra.

- O que eu estou a tentar dizer é que… há factos que são como são e… deixemo-los

permanecer assim - concluiu ele, com um tom claramente ameaçador.

A minha face deveria certamente ser um espelho do espanto que eu sentia. Estava

perplexa.

- Está bem.

Foram as únicas duas palavras que consegui articular.

42

- Boa noite - disse, afastando-se.

- Boa noite… - sussurrei, atónita, enquanto o via desaparecer, imerso nas sombras do

Campus.

Tentei, com um esforço notável, recompor-me e pensar no que ali se tinha passado.

Sem dúvida alguma, esta tinha sido a ameaça mais eloquente que alguma vez me tinham

feito e, finalmente, compreendia agora a gravidade da minha situação, ou seja, eu tinha

testemunhado algo grave e teria que me remeter ao silêncio. Desejei de todo o coração não

voltar a vê-lo nunca mais.

Agora, longe da sua influência, sentia os efeitos daquele pavor que tinha acumulado a

libertar-se, trazendo lágrimas aos meus olhos e obrigando-me a respirar mais

profundamente. Apressei-me a caminho de casa, aproveitando a fresca brisa que corria

para aclarar as ideias, enquanto limpava com o dorso das mãos as insistentes lágrimas que

corriam pela minha face, resultantes do perturbante episódio que tinha vivido minutos

atrás.

Cheguei a casa em dez minutos, incapaz de apagar este encontro da minha mente. Assim

que abri a porta de casa, deparei-me com Shiva, com um aberto sorriso que se desvaneceu

mal olhou para mim. Eu devia ser muito transparente. Só esperava que os meus olhos não

obviassem a recente libertação lacrimal.

- Maria, passou-se alguma coisa? - Perguntou ela, visivelmente preocupada.

- Não vais acreditar no que me aconteceu - disse eu, expirando ruidosamente. Graças a

Deus, as lágrimas já tinham cessado.

- Preciso de me sentar - afirmei eu, enquanto me dirigia ao meu quarto, seguida pelos

passos miudinhos de Shiva, que se sentou comigo em cima da cama, enquanto me olhava

com uma expressão de curiosidade na face.

- Então, o que foi?

- Acabei de ter uma conversa extremamente perturbante - respondi eu, sem olhar para ela,

enquanto colocava desesperadamente as mãos na cara.

- Com quem?

- Com um dos nossos colegas de intercâmbio - disse eu, olhando-a. Shiva levantou o

sobrolho, com uma expressão de interrogação.

- Os… artistas – esclareci eu, como se fosse algo muito óbvio.

Imediatamente Shiva arregalou os olhos, em ar de espanto.

- Qual deles?

- O de olhos claros. Verdes. Chama-se David - elucidei eu, novamente. Houve um

pequeno silêncio.

43

- O que é que ele queria?

- Sinceramente… não sei - desabafei eu.

- Então, mas… o que é que ele te disse, concretamente?

Respirei fundo, sem saber como caracterizar aquela bizarra conversa que tinha mantido

com ele, de forma a não estimular excessivamente a imaginação de Shiva.

- Ele… fala por enigmas - expliquei eu. - E é, garantidamente, assustador.

- Enigmas? - Repetiu ela, semicerrando os olhos.

- Sim… por exemplo, perguntou-me se eu era uma pessoa racional - comecei. - E se tinha

explicação para tudo.

Observei o ar indignado da minha colega ao ouvir as minhas palavras, enquanto

ela acenava lentamente com a cabeça.

- Isso é muito esquisito, no mínimo - concluiu ela. - E não disse mais nada?

- Também disse que havia factos que eram inexplicáveis ou qualquer coisa do género -

afirmei eu, sem compreender o significado das palavras que tinha acabado de proferir.

Shiva mantinha-se sem palavras, perplexa. Era visível na sua face, o que era

normal, tendo em conta que ela desconhecia inteiramente o verdadeiro significado das

palavras aparentemente absurdas daquele rapaz.

- Acho que eles se metem nas drogas, Maria – mencionou, triunfantemente, Shiva,

fazendo-me sorrir levemente. Sim, sem dúvida seria essa a conclusão mais óbvia a que

qualquer pessoa normal chegaria.

- Não sei… provavelmente - concordei eu.

De facto, era o que parecia, mas eu sabia que a realidade era bem diferente. Só esperava

que todas estas peripécias terminassem por aqui, pois seria extremamente complicado não

poder partilhá-las com alguém. Sentia uma enorme vontade de desabafar com Shiva, mas

algo me impedia de o fazer, provavelmente seria a certeza quase imperiosa de que ela não

iria acreditar em mim. Na verdade, se ela não acreditou em mim no início, porque iria

acreditar agora? E, fosse como fosse, seria melhor mantê-la à parte das ocorrências, para

bem dela. Não me imaginava a chegar a casa e dizer-lhe “Olá, acabei de ser ameaçada

por aquele rapaz que eu vi na ruela com a tal rapariga que, por acaso, está morta.” Não

conseguia imaginar qual seria a reacção dela, caso alguma vez lhe comunicasse alguma

coisa deste género. Se de pânico, se de troça.

- Oh, Maria, esquece isso. Os estudantes de Arte, aqui em Paris, têm uma fama que os

ultrapassa – esclareceu Shiva, rolando os olhos em ar de crítica.

Acenei, em ar de confirmação, sem compreender o porquê de uma afirmação que, na

minha opinião, era extremamente caricata.

44

- Ainda assim, tiveste sorte! - Afirmou Shiva na minha direcção, com um sorriso maroto. -

Esse é bem mais interessante que o italiano, não achas?

Olhei para ela com pasmo. Esta rapariga era impressionante! Como era ela capaz

de fazer uma afirmação destas com o lhe tinha acabado de relatar?

- Não sei Shiva porque, sinceramente, não reparei! - Disparei eu, com algum sarcasmo.

Estava demasiado ocupada a ser ameaçada, pensei, de imediato.

- A sério? - Afirmou, com bastante surpresa. - Como é que isso é possível? Não acredito

que não o tenhas observado minimamente.

Tentei rever na minha mente os momentos em que o observei, que ainda estavam recentes

na minha memória. Recordava pormenorizadamente as suas esculpidas feições, tão

marcantes quanto a sua palidez, assim como a intensidade do seu misterioso olhar e o seu

abstracto discurso. De facto, todas estas características se harmonizavam estranhamente

entre si, conferindo-lhe um aspecto assustador, mas ao mesmo tempo, enigmático e, sem

dúvida, diferente.

- Ele é muito estranho - foi a única característica que consegui verbalizar.

- Hum! Pode ser que o encontres outra vez - provocou Shiva, sorrindo e piscando-me o

olho.

Não consegui rir-me perante aquela afirmação.

- Espero, muito sinceramente, que isso não aconteça - respondi eu, com um tom um pouco

amargo, enquanto me dirigia para a janela do meu quarto, sob o olhar malicioso de Shiva.

Sentia-me francamente arrependida de lhe ter mencionado o episódio desta noite.

Contrariamente ao previsto, já não consegui estudar mais nada nessa noite, pois o eco das

palavras daquele rapaz era constante, na minha mente. Resolvi deitar-me e tentar dormir,

numa tentativa vã de enviar para o meu subconsciente todos estes bizarros episódios. A

minha vida rotineira tinha-se transformado um verdadeiro cubo de Rubik! Teria a

realidade assim tantas faces, algumas delas tão inexplicáveis como incompreensíveis?

Imersa em pensamento, nem dei conta de Shiva se dirigir a mim, olhando-me com uma

expressão simultaneamente preocupada e carinhosa.

- Maria…porque é que estás a dar tanta importância a isto?

- Não estou a dar importância…só estou impressionada, é isso - retorqui eu, enquanto

compunha os lençóis e a coberta da cama, afastando as almofadas que a decoravam.

- Tens que relaxar mais, Maria!… Não podes dramatizar tanto as coisas.

Se tu soubesses…, respondeu, de imediato, a minha mente.

Olhei-a, concordando com um sorriso amarelo, sabendo eu que ela nunca iria

compreender o meu ponto de vista.

45

- Vai dormir, descansar. Amanhã é um novo dia. Esquece este episódio - aconselhou

Shiva, acariciando-me os caracóis.

- Eu sei - sussurrei eu.

Quem me dera conseguir esquecer isto tudo…

- Até amanhã - afirmou ela, enquanto se afastava de mim, na direcção do seu quarto.

- Até amanhã…e obrigado pelas palavras de conforto - declarei eu.

- Não tens que agradecer! – Exclamou Shiva, enquanto apagava as luzes que iluminavam

o nosso modesto apartamento.

46

CAPÍTULO 4 – REVELAÇÃO

AS SEMANAS QUE SE SEGUIRAM FORAM PARTICULARMENTE CALMAS.

As aulas foram bastante produtivas, tive oportunidade de fortalecer a minha amizade com

Adèle e preparar-me para os exames que se aproximavam. As minhas tardes de estudo

eram extraordinariamente rigorosas, mas de vez em quando permitia-me distrair com a

constante boa disposição de Shiva e com as mensagens amigas de Adèle. Estava a

melhorar francamente a minha fluência na língua francesa, tal como Shiva previra,

inclusivamente dava por mim, às vezes, a murmurar opiniões em francês.

Estávamos agora em meados de Novembro e o frio que se fazia sentir em Paris era

abismal. Diariamente saía de casa munida de uma enorme quantidade de adereços para

tentar combater o gélido vento que se instalava pela manhã e que ameaçava a integridade

dos meus pavilhões auriculares. O vestuário de eleição consistia quase sempre em alegres

camisolas de lã com as típicas calças de ganga e botas de pêlo, envolta por fim num kispo

de penas, que eu esperava ser elegante o suficiente para que não me assemelhasse ao

boneco da Michelin.

A minha mente estava agora mais leve, despreocupada e longe das perturbantes

ocorrências da primeira semana de Outubro. Raramente pensava no assunto e recordava

todos aqueles episódios mais como um ilusão distante e irreal, um delírio longínquo no

tempo e no espaço. Ainda assim, evitava deliberadamente sair à rua depois do pôr-do-sol,

não fosse o acaso refrescar-me a memória. Shiva não compreendia de modo algum a

minha renitência em manter-me em casa a partir das sete horas da noite, mas também não

me contrariava… muito. Por inúmeras vezes, perdi jantares e convívios com os nossos

colegas de intercâmbio, simplesmente por serem à noite.

As semanas de exames aproximavam-se e eu começava a ficar francamente preocupada

com algumas das disciplinas que exigiam algo mais da minha fluência linguística,

contrariamente à componente científica, a qual dominava com orgulho. Foi em Adèle que

encontrei uma preciosa ajuda, mais uma vez.

Adèle vivia relativamente perto de mim, a algumas estações de metro do meu

apartamento, num prédio luminoso e robusto, fácil de encontrar. Fui convidada a passar a

tarde com ela, repassando e treinando os vocábulos-chave para o exame que seria dali a

três dias. Acabei por jantar em sua casa, rodeada da sua simpática família.

Eram dez e meia da noite quando saí de sua casa. Já era noite, o que me fez sentir

imediatamente desconfortável. A viagem de Metro não era a minha preocupação, já que

47

rara era a estação que estava deserta, fosse a que horas fosse. Paris era, sem dúvida, “a

cidade que nunca dorme”. O que me preocupava realmente era o percurso que eu teria que

fazer desde a estação de metro até ao eléctrico e deste até casa, sendo este último tão

luminoso durante o dia quanto obscuro durante a noite, o que me fazia pensar em

encontrar uma outra alternativa. Olhei para o relógio, faltavam dez minutos para as onze

da noite. A melhor opção seria, sem dúvida, atravessar a Cité Universitaire que, mesmo a

uma hora tão tardia, sempre teria algum movimento, alguém a circular.

Como tal, uma vez na Cité Universitaire, entrei e imediatamente procurei o caminho mais

rápido para chegar a casa, que ficava estrategicamente situada perto de uma das saídas do

enorme Campus. À medida que avançava pelos calmos passeios do campus, podia

constatar que o movimento era escasso, não só devido à hora, mas muito provavelmente

devido ao frio que se fazia sentir, que era cortante. Dei por mim a pensar que, se

continuasse assim, certamente iria nevar, ideia que me fez esboçar um leve sorriso de

expectativa. A imagem de Paris coberta de um manto branco levou-me imediatamente a

imaginar como seria a sensação e a textura dos flocos de neve na face, nas mãos e…

batalhas de bolas de neve. Sorri, mais uma vez, só de pensar.

Reparei que já avistava a saída alguns metros à minha frente quando, subitamente,

ouvi um barulho sufocado vindo dos arbustos localizados a alguns metros do passeio, por

onde eu passava naquele momento. Era um recanto escuro como breu e, à primeira vista,

não me pareceu ver nada nem ninguém. Provavelmente algum animal, pensei.

Ainda não tinha terminado de verbalizar mentalmente a minha linha de pensamento,

quando o cenário se tornou mais óbvio… e dantesco.

No chão jazia alguém, que me parecia ser um rapaz, visivelmente inanimado e sobre ele

estavam debruçados três indivíduos, astuciosamente vestidos de negro. Confundiam-se

facilmente com a sombra que os rodeava e tive necessidade de semicerrar os olhos para

conseguir distingui-los.

À medida que avançava, pude observar com mais clareza o que se estava a passar. Um

deles tinha a face estrategicamente encaixada no pescoço do rapaz, enquanto lhe afastava

o queixo para cima, com a mão, numa tentativa óbvia de facilitar o acesso. O rapaz tinha

os olhos abertos, mortiços, com a cara salpicada de sangue e os outros dois, curvados

sobre ele, pareciam olhá-lo avidamente, respirando com sofreguidão, como se de um

alimento suculento se tratasse.

Subitamente, o olhar deles desviou-se do rapaz para se centrar, agora, em mim e foi com

um terror inexplicável que eu os vi erguer-se e observar-me com uma postura atenta e

hostil. O brilho no olhar deles era marcante, mas não desconhecido, pois era exactamente

48

igual ao dele, David, naquela ruela. Seguro, aterrador e…incapacitante. Com igual

ligeireza, o que estava debruçado sobre o pescoço do rapaz ergueu-se e, lentamente,

voltou-se na minha direcção.

Se a imagem que estava a ter já era terrível, a que agora se juntava a este conjunto era

absolutamente diabólica. O rapaz, certamente moribundo, agonizava enquanto jorrava

sangue das artérias carótidas que tinham sido, por certo, destruídas e a sua garganta estava

exposta, rasgada. Pelo diminuto tamanho que o jorro de sangue apresentava, o rapaz já

estaria certamente esvaído... como se tivesse sido… drenado.

O outro indivíduo, eu conhecia-o. Era um dos rapazes da reunião de Intercâmbio, o

italiano que tinha “ofendido” Shiva com a sua amarga argumentação. Mas agora ainda

estava mais assustador que da última vez, algo que eu nunca pensei ser possível. Tinha a

face coberta de sangue, que pingava do nariz e escorria pela boca, até ao pescoço, o que

lhe dava um aspecto selvagem e intensificava ainda mais a sua doentia palidez. Tinha o

cabelo negro caído sobre a cara, onde aderia de forma caótica devido ao sangue que aí se

encontrava. E agora, estava a olhar para mim. Todos eles estavam a observar-me, com

uma postura agressiva… cruel. Agora sim, sabia o que tinha acontecido com Nadine.

Vi o italiano movimentar a cabeça ligeiramente para o lado, sem nunca deixar os meus

olhos, com uma feição curiosa, seguramente constatando o óbvio: ele conhecia-me e ia

atacar-me. Eu conseguia sentir a determinação no olhar dele.

Fiquei ali parada no tempo, durante… um segundo? Um minuto? Uma hora? Não sabia.

Senti os livros que trazia escorregarem dos meus braços e ouvi como caíam desamparados

no chão, o que me libertou momentaneamente da visão funesta em meu redor.

Foi instantâneo. Não pensei e comecei a correr. Senti-me desesperada, à medida que

corria o mais rápido que podia, pelos passeios escuros, acompanhada pela fraca luz

disponível que me rodeava na direcção da saída que, cada vez mais, me parecia

inatingível. Enquanto corria vi, com espanto, a rapidez invulgar com aqueles rapazes se

movimentavam. Era simplesmente impossível alguém – humano – correr àquela

velocidade. Pela direcção que eles estavam a tomar, percebi que estavam a cercar-me e

então, aí sim, comecei a entrar em pânico. O meu destino ia ser o mesmo do daquele

rapaz, eles iam aniquilar-me.

Maldita a hora em que havia entrado na Cité Universitaire.

Ainda não tinha tido tempo para me consciencializar do terrível fim que me aguardava,

quando senti um forte puxão que me derrubou rapidamente para o arvoredo mais próximo,

num recanto que eu nem sabia existir. Esperava encontrar a qualquer momento a espessa

vegetação nas mãos e na face, ferindo-me e segurando o impacto que havia sofrido.

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Contudo, o que encontrei foi bem diferente. Senti uns gélidos braços em meu redor e uma

forte mão glacial cobrindo-me a boca, enquanto a outra me imobilizava os membros

superiores.

- Shhhh - suspirou uma voz, na direcção do meu ouvido direito, enquanto me arrastava

para os confins daquele obscuro recanto, cheio de vegetação. Não podia mover-me mesmo

que tentasse, tinha a respiração acelerada e o batimento cardíaco a um ponto que parecia

ser audível num raio de vários metros.

Repentinamente, parei. As mãos e os braços gélidos mantinham-se, sem hesitar, sem se

mover e sentia trespassar o frio que deles emanava, pela minha espessa vestimenta. Não

conseguia discernir onde estava nem com quem, nem sequer tive tempo para entrar em

desespero, quando senti o sussurro glacial de uma voz inconfundível, quase anestesiando

o meu ouvido direito: David.

- Não fales.

Mesmo que quisesse, não conseguiria articular uma única palavra e sentia-me a enregelar

cada vez mais. A noite estava fria, ele estava frio, já estava a sentir uma espécie de

formigueiro onde a sua pele tocava a minha, eu parecia estar encerrada, imóvel, numa arca

frigorífica. A minha respiração estava cada vez mais dificultosa, por estar limitada a

utilizar somente o nariz, contudo estranhava curiosamente a rara essência que emanava em

meu redor e que, com cada inspiração que fazia, me entorpecia os sentidos. Seria este

aroma proveniente da abundante vegetação que me rodeava? Provavelmente. O que estava

ele a fazer aqui, e o que me iam fazer a mim? Não conseguia compreender o que se estava

a passar, mais uma vez.

Repentinamente, senti três presenças a rodearem-nos, dirigindo-se a nós. Podia sentir a

hostilidade no olhar deles, como o leão que se prepara para atacar a zebra e, naquele

momento, só desejei poder ter uma morte rápida e indolor. A uma distância sensivelmente

de um metro observei, espantada, que a investida tinha cessado e que aqueles três haviam

retrocedido e mantinham-se afastados, garantindo a distância de segurança, ainda que nos

cercassem de forma animalesca.

- David - ouvi o italiano chamar, com uma voz desagradável, ligeiramente surpreendida.

- Nevio - respondeu a fria voz, detrás de mim. Ah, era esse o nome do italiano.

A partir daí, iniciou-se um diálogo repleto de palavras ininteligíveis, que eu não consegui

identificar com nenhuma das línguas que tinha ouvido até agora. Pela sonoridade parecia-

me ser oriundo dos países de Leste, mas não conseguia identificar qual deles.

O facto de eu não compreender o que estavam a dizer, sabendo eu que estava envolvida na

discussão, junto com a amargura das palavras trocadas era, a meu entender, sinal de que a

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conversa estava a correr mal, o que me fazia sentir ainda mais desesperada. E não estava

enganada.

A voz de David estava a adquirir um tom exaltado, sem nunca perder a firmeza,

contrariamente a Nevio, que estava notoriamente descontrolado. Os outros dois nunca

intervieram em nenhum momento do diálogo.

A certa altura, David mencionou três ou quatro palavras com um tom de voz que parecia

deformada, quase gutural, semelhante a um grunhido, encerrando claramente o diálogo

com o italiano. Esta última intervenção fez-me estremecer da cabeça aos pés. E agora, o

que iria ser de mim?

Senti todos os olhares fixos em mim, como se tivesse verbalizado o meu último

pensamento. Abruptamente, senti David a mover-se por detrás de mim, a sua face a tocar

no meu cabelo, pescoço, orelha e, quase de imediato, senti-me invadida por uma enorme

vontade de dormir, um cansaço enorme, excessivo, pouco comum. Parecia que as minhas

pálpebras tinham vontade própria, pesadas, tal como todo o meu corpo, atordoado. Ainda

tive tempo para considerar que talvez me tivessem drogado, quando, sem mais demora,

senti-me a perder os sentidos e abandonar toda a minha vontade, segura nuns braços

firmes como pedra.

Acordei com uma intensa sensação de tontura e náusea, uma dificuldade imperiosa

de abrir os olhos e uma estranha torpeza de movimentos. A habitação onde me encontrava

era-me familiar… era o meu quarto, mas estava escuro e a única luz disponível emanava

do exterior, entrava pela minha janela, que estava completamente aberta, deixando o luar

invadir o modesto cubículo onde me encontrava. Comecei a movimentar-me lentamente,

quando senti uma presença mover-se na sombra, num recanto escondido do meu quarto. A

minha reacção foi imediata. Sentei-me e recolhi-me defensivamente até encontrar a

cabeceira da cama, com joelhos flectidos, braços e as pernas contraídos, aguardando o

desconhecido.

- Vais-me fazer mal? - Sussurrei eu, a medo, na direcção da sombra que parecia estar viva.

- Não - respondeu firmemente aquela voz que, imediatamente, reconheci como a de

David. Aquele sotaque era inconfundível, até mesmo na imensa escuridão que nos

rodeava, onde eu não conseguia distinguir nada, a não ser vultos imprecisos.

- O que é que me aconteceu? - Questionei, sem saber muito bem o que esperar como

resposta.

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- Perdeste os sentidos e eu trouxe-te para casa - afirmou ele, secamente.

Instintivamente, lancei a mão ao interruptor, numa tentativa de iluminar melhor o nosso

recente espaço de diálogo e porque me fazia uma certa confusão falar com um autêntico

semblante animado. Constatei, com alguma surpresa, que não tinha luz em nenhum

instrumento electrónico no meu quarto.

- É melhor conversarmos assim - afirmou ele, claramente respondendo à minha acção

anterior. Era melhor conversarmos assim?… para ele, certamente, porque para mim, era

extremamente frustrante. Olhei para a porta e pensei automaticamente em Shiva. Estaria

ela em casa? Que horas seriam? Da última vez que tinha olhado para as horas, era perto

das onze da noite.

- Que horas são? - Perguntei eu, alarmada.

- São duas da manhã.

Meu Deus! Eu tinha estado inconsciente todo este tempo? E Shiva? Teria ela perguntado

por mim?

- Não te preocupes com a tua colega. Ela hoje não veio dormir a casa - afirmou

novamente. Pela segurança das suas palavras, certamente teria lido a preocupação na

minha face. Sim, eu deveria ser muito transparente. E como é que ele sabia disso?

Provavelmente Shiva ter-me-ia deixado uma nota ou uma mensagem que eu, obviamente,

não li. Comecei a ficar nervosa, à medida que recordava os eventos ocorridos há algumas

horas atrás. Eram chocantes, graves, horríveis - concluí. Aqueles rapazes matavam,

perseguiam… e David era um deles e estava aqui, agora, comigo. Tinha uma franca e

sincera dificuldade em compreender o porquê de todos estes acontecimentos. Mais uma

vez, David interrompeu o meu confuso raciocínio para responder à minha visível

incompreensão dos factos.

- Compreendeste o que viste?

- Sinceramente, não sei… - Respondi, com toda a franqueza, sem olhar na direcção dele.

Era verdade. Não sabia, não compreendia o que tinha visto. A única certeza que tinha era

que se tratava de algo altamente disfuncional.

- Vocês… - comecei eu.

- Sim? - Interrompeu ele.

- … pertencem a algum Culto, ou assim?

Seguiu-se um pesado silêncio após a minha pequena intervenção, enquanto eu olhava

vagamente para a sombra onde ele se encontrava, imóvel. A sua postura alterou-se

ligeiramente e eu percebi que ele estava a olhar na minha direcção, pelo leve brilho que

me pareceu distinguir na escuridão, certamente pertencente ao seu intenso olhar.

52

- É isso que tu pensas? - Perguntou ele, com um tom visivelmente desapontado, o que me

fez deduzir que a minha suposição estava errada.

- É só uma hipótese…mas, muito sinceramente…

As palavras fugiam-me. Estava a ficar bastante desesperada com o meu óbvio

desconhecimento dos factos. Mais valia perguntar directamente do que vaguear sem

objectivos concretos.

- O que é se passou ali? - Indaguei eu, com um tom algo desesperado.

- Tu viste - Foi a sua resposta imediata.

- Mas… mas eu não consigo… não entendo… - respondi eu, visivelmente atrapalhada.

A reacção dele foi inesperada. Vi-o dirigir-se a mim, com uma ligeireza pouco

natural, abrandando na interface luar/sombra e levantando um braço na minha direcção,

um claro pedido para me aproximar. Hesitante, levantei-me da minha posição quase fetal e

fiquei de pé, a poucos metros dele, vacilando inúmeras vezes, enquanto encurtava a

distância entre nós com tímidos passos na sua direcção. Não conseguia ver-lhe a face nem

parte do tronco, que mantinha escondido na sua própria sombra, enquanto todo o resto

estava exposto ao luar, dando-lhe uma tonalidade quase marmórea, como se de uma

estátua viva se tratasse. Reparei que tinha vestido exactamente o mesmo casaco que das

outras escassas vezes em que o vi e parei a cerca de um metro dele. O que queria ele de

mim? Como pretenderia dar-me respostas, depois do que eu tinha visto?

Com uma rapidez invulgar, agarrou-me o pulso com uma firmeza tão suave que me fez

estremecer - de medo? -, efeito certamente potenciado pela sua gélida temperatura.

- Olha para mim - ordenou ele, saindo da sombra e expondo-se, agora, à luz do luar.

Fiquei estupefacta a observar o estranho rapaz cuja face revelava mais idade do

que aparentava e que estava, agora, a escassos centímetros de mim. Os olhos eram a sua

característica mais marcante, pela intensidade que deles emanava e, contrariamente a

todas as outras vezes, agora não lhes encontrava hostilidade nem ira, mas sim tristeza e

desapontamento. Reconheci o invulgar aroma que nos rodeava, constatando que era dele

que emanava, enquanto o cabelo se posicionava persistentemente a turvar os pormenores

que nele existiam, escondendo todos os seus mistérios.

Levantei a minha mão trémula na direcção da sua face, afastando lentamente algumas

madeixas, para poder descobrir o que a sua face me escondia. Das suas esculpidas feições

brotava a tão característica palidez, que eu tão adequadamente qualificava de doentia e

agora estava tão intensificada pela luz do luar. A sua pele tinha uma aparência marmórea,

quase intemporal e ao toque era fria, cadavérica, igual à de Nadine.

53

- É fria… - sussurrei eu, verbalizando o meu pensamento. Ele não me respondeu.

Manteve-se ali, à minha frente, como uma estátua viva, continuando a agarrar-me o pulso

que, neste momento, já se encontrava ligeiramente dormente. Foi então que reparei nos

dois vultos proeminentes que sobressaíam discretamente do lábio superior e,

instintivamente, passei os dedos por esses vultos, tentando em vão adivinhar no que

consistiam. David tinha os lábios firmemente cerrados mas, ao adivinhar a minha

curiosidade, abriu-os ligeiramente, permitindo-me observar algo que eu nunca mais iria

esquecer.

Aqueles vultos pertenciam a um par de volumosos caninos, que se elevavam a um nível

diferente dos restantes dentes, dando-lhe uma aparência absolutamente felina. Agora, sim,

percebia a forma como aquele rapaz tinha morrido, recordando as imagens da sua

garganta rasgada e as suas carótidas destruídas. A minha inevitável conclusão fez-me

cobrir a boca com a mão, em ar de choque, à medida que me afastava, com pequenos

passos para trás. David já me havia deixado o pulso, sem que eu me apercebesse.

- Vocês… bebem sangue?

- Sim - afirmou ele, secamente.

- Porquê? - A minha voz perdia firmeza e mais parecia um sussurro.

- É vital.

- E os dentes servem para… - Não conseguia encontrar um verbo para descrever aquele

acto tão característico dos mais ferozes felinos.

- Sim - interrompeu ele, adivinhando a causa da minha hesitação.

- Mas… nunca tinha reparado que…

- São retrácteis - explicou ele e, com um passo, aproximou-se novamente de mim. Pude

observar, com assombro, os proeminentes caninos a desaparecerem tão rapidamente

quanto tinham aparecido. Sem dúvida, estava perante estranhas criaturas.

- Meu Deus - suspirei eu, chocada.

Não conseguia acreditar no que tinha acabado de contemplar. Tudo isto parecia um

autêntico circo de monstruosidades, cada uma mais excêntrica que a outra. Sangue?

Caninos retrácteis? Estes rapazes tinham, sem sombra de dúvida, algum problema. Estaria

eu a sonhar? Provavelmente. Só em sonhos poderia eu conceber tais fantasias, só num

mundo imaginário era possível a sua existência.

- Porque é que me estás a dizer estas coisas? - Perguntei eu, com toda a sinceridade que

tinha em mim.

Como que adivinhando o sobressalto que se apoderava de mim, senti-o dirigir-se para a

porta do quarto e olhei para ele, questionando-o com o olhar.

54

- Evita apareceres à noite – disse, inesperadamente.

Com tal resposta, vi-o desaparecer na sombra que se abatia por toda a casa e ainda pude

ouvir a porta principal fechar-se, precedida de um ruidoso click. Imediatamente, apareceu

o característico intermitente do meu relógio-despertador e o candeeiro da minha mesa-de-

cabeceira encheu-se de luz.

Agora, sentada à beira da cama, não conseguia formular um pensamento coerente. Apenas

olhava indistintamente para o vazio. A pouco e pouco sentia-me a ganhar compostura,

tentando processar toda a informação desta atribulada noite. Levantei-me e aproximei-me

da janela, que me dava acesso a toda a Avenida, agora completamente deserta e somente

inundada pela luz do luar e pela chama artificial dos candeeiros que a decoravam. Olhei

para o relógio. Eram duas e quarenta da madrugada.

Encerrei a janela, puxando firmemente os estores, enquanto concluía que precisava

urgentemente de dormir, sem pensar nem contestar nada do que se tinha passado…por

enquanto.

Decidida, saí do quarto e ao abrir a porta, encontrei uma nota de Shiva rabiscada num

post-it em forma de flor aderido à porta do seu quarto, onde me avisava de forma

resumida que ia dormir a casa de uma colega e onde as palavras “projecto”, “stress” e

“prazo limite” se salientavam especialmente. De imediato, recordei que as palavras firmes

de David informando-me da ausência de Shiva teriam seguramente como base esta

distinta nota.

Dirigi-me à casa-de-banho, preparando-me para me ir deitar, quando ao olhar-me no

espelho, reparei que estava com a mesma roupa que tinha vestido pela manhã, o que me

fez relembrar da dolorosa realidade. Mesmo tendo passado por aquele incidente

assustador, perdido os sentidos e posteriormente acordado com alguém no meu quarto,

esse alguém não tinha invadido a minha integridade física, o que me acalmou quase

instantaneamente. De igual forma, constatei que não tinha marcas de ter sido drogada nem

a pele perfurada com nenhum objecto afilado.

Após confirmar várias vezes se a porta de casa estava completamente encerrada, dirigi-me

velozmente para o meu quarto e, já aconchegada na cama, desejei conseguir adormecer

rapidamente, para não ter tempo de me consciencializar da desconhecida realidade que me

envolvia.

55

CAPÍTULO 5 – PESQUISA

COMO SERIA DE ESPERAR, FOI MUITO COMPLICADO ADORMECER NESSA NOITE.

O que mais me perturbava era a constante imagem daquele rapaz, moribundo, que

insistentemente não me saía da cabeça, tal como tudo o resto que acontecera e que eu

classificava de absolutamente irreal.

Não fui à faculdade no dia seguinte. Eram onze da manhã quando recebi uma mensagem

de texto de Adèle, que estranhava a minha ausência, perguntando-me o que se tinha

passado e se estava bem. Sentida com a preocupação da minha recente amiga, tratei de

responder de imediato à sua inquieta mensagem, comunicando-lhe que me sentia cansada

e que tinha optado por ficar a descansar durante toda a manhã. Enquanto enviava a

mensagem, senti-me imediatamente culpada por estar a arranjar desculpas vagas e a

mentir vergonhosamente a uma pessoa que se preocupava comigo. Contudo, seria

absolutamente impensável contar-lhe a verdade acerca da autêntica razão pela qual estava

eu, encerrada em casa a sete chaves, como quem teme a chegada do dia do juízo final.

Sorri levemente ao imaginar a cara de espanto de Adèle se eu me justificasse afirmando

que ontem tinha testemunhado um homicídio e que, depois de reconhecer os

intervenientes como colegas de intercâmbio, tinha perdido os sentidos para, momentos

depois, acordar no meu quarto com um deles a observar-me de forma doentia. Não.

Definitivamente, esta não seria uma opção viável.

Deixei-me estar aconchegada no meu volumoso edredão enquanto ouvia,

longínquos, os ruídos da cidade, durante algum tempo. Tentava recordar com o máximo

pormenor possível a minha conversa com David, pois estava certa de que todas as

respostas às minhas questões estariam seguramente nas entrelinhas do seu discurso,

aparentemente incoerente e evasivo. Era complicado falar com aquele rapaz, pois o pouco

que dizia estava rodeado do mais puro dos mistérios. Pensar que se ia tornar habitual

conversar com ele era algo inquietante, mas ao mesmo tempo, despertava-me a

curiosidade. Era provável que assim fosse, agora que estava completamente ciente das

bizarras actividades do seu pequeno clube. Mas o que quereria ele dizer com evitar

aparecer à noite? E porquê, se eu já vira o que não era suposto ter visto? Decididamente,

não compreendia esta questão. Nem esta, nem uma consistente centena delas que ele, tão

amavelmente, se esquivava a aclarar. Fechei os olhos e expirei ruidosamente. Isto era

extremamente frustrante.

56

Levantei-me num pulo, abrindo os estores da janela, para descobrir um dia repleto

de sol. Havia uma movimentação excessiva na zona da Cité Universitaire para a qual eu

tinha acesso directo da minha janela. Subitamente, lembrei-me se teriam encontrado o

corpo do rapaz.

Essa hipótese fez-me sentir arrepios na espinha. Eu também tinha lá estado e isso poderia

meter-me em sarilhos, ainda que eu tivesse participado como mera observadora. Pensar

nestes termos fez-me aperceber da verdadeira situação em que eu me encontrava: eu tinha

testemunhado um homicídio, conhecia os assassinos e, ao remeter-me ao silêncio, fazia de

mim cúmplice.

Olhei para a minha secretária, onde estavam os livros que no dia anterior tinha deixado

cair naquele maldito passeio na Cité Universitaire. Cuidadosamente empilhados, era como

se nunca tivessem saído do meu abraço, como se eu tivesse chegado a casa pelo meu

próprio pé. Até o meu casaco estava pendurado no bengaleiro, como é meu hábito e eu

não recordava tê-lo colocado ali, ontem. Eram imensas perguntas sem respostas,

demasiadas para uma pessoa normal ficar quieta em casa e conformar-se. Eu não

conseguia fazê-lo.

Dirigi-me à casa-de-banho para o meu duche diário, que hoje ia ser particularmente

rápido. Resolvi vestir as típicas calças de ganga, com umas botas confortáveis e uma

quente camisola de lã de tons alaranjados, que combinava com o dia. O meu cabelo estava

particularmente implacável, pelo que tive obrigatoriamente que colocar inúmeros ganchos

para que o meu aspecto fosse minimamente civilizado. Dei duas dentadas numa torrada e

peguei no casaco, preparando-me para sair, enquanto acabava de beber um iogurte líquido.

Quando saí do prédio, parei momentaneamente para organizar o começo oficial da minha

busca de respostas e dirigi-me com firmeza ao local que mais recente estava na minha

memória. Primeira paragem: Cité Universitaire.

Sempre havia ouvido dizer que os assassinos voltam ao local do crime e estes não

seriam excepção. Então, fui caminhando apressadamente pelo Campus até reconhecer os

edifícios e as tenebrosas vegetações da noite anterior e, aí, o meu passo tornou-se mais

hesitante. Eram momentos e memórias difíceis.

Observei com atenção o passeio por onde caminhara na noite anterior e examinei a

vegetação que escondia o recanto onde eu vira o rapaz moribundo. Dirigi-me para o

interior desse mesmo recanto e foi com alguma surpresa que constatei que não havia

qualquer sinal de que tivesse ocorrido um homicídio naquele local, a não ser que esmagar

algumas formigas que por ali circulavam se pudesse considerar um assassinato. Debaixo

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do meu olhar atento, confirmei que não havia salpicos de sangue, nem pegadas, enfim,

nenhum vestígio de todo. A terra estava completamente macia, sem marcas, e a vegetação

parecia intocada. Impressionante.

Saí daquele verdejante recanto, como se fosse uma paranóica exploradora de

plantas, debaixo do olhar atento de dois alunos que passavam ali naquele momento e que,

provavelmente, pensariam que eu estaria afectada por algum tipo de demência.

Percorria agora o passeio por onde recordava ter corrido desalmadamente, até ter sido

puxada por David para mais um recanto apinhado de vegetação. Sem dúvida estes rapazes

tinham uma obsessão por zonas recatadas e escondidas. Dirigi-me novamente ao interior

deste novo recanto que agora conseguia distinguir estar repleto de um intenso arvoredo.

No seu interior havia uma pequena clareira, formada pela disposição natural das pequenas

árvores, precisamente onde eu tinha estado aprisionada nos braços daquele estranho rapaz.

Da vegetação emanava um suave aroma floral e os fracos raios de sol que por ela

penetravam davam-lhe um aspecto absolutamente viçoso, mesmo sendo Inverno. Muito

diferente da perspectiva que tivera ontem à noite. Olhei atentamente, para me desiludir

mais uma vez: nem uma marca, nem um vestígio. Nada.

Aqueles indivíduos eram como sombras, espectros com vida própria, que deambulavam a

velocidades inacreditáveis e capazes das maiores atrocidades, como fantasmas que

aterrorizavam quem se cruzasse no seu caminho. Má sorte a minha - pensei.

Rapidamente saí daquele apinhado recanto para encontrar novamente os raios de sol,

enquanto caminhava, consternada, a caminho de casa. Mais uma vez, sem respostas.

Ao entrar em casa, constatei que ainda estava sozinha. Shiva só chegaria à noite,

quase de certeza. Olhei para o relógio, era uma e meia da tarde. Tinha demorado mais de

uma hora à procura de respostas inexistentes na Cité Universitaire, o que se revelou uma

pura perda de tempo.

Tentei distrair-me a fazer o almoço, enquanto tentava pensar no que teria que fazer

durante a tarde, pois tinha um exame dali a dois dias. Mas a minha mente tinha outras

ideias, outros caminhos que, invariavelmente, sempre iam desembocar nos eventos da

noite anterior. Tinha que me concentrar e tentar libertar-me destas imagens que

ameaçavam permanecer constantemente na minha cabeça.

Uma vez preparado o almoço, acendi a televisão e obriguei-me a ouvir o que o locutor

dizia, enquanto comia calmamente. Tive sucesso durante dez minutos.

Dei por mim a analisar a imagem de David que parecia tinha impressa em todos os

neurónios existentes em mim. A face dele consistia num semblante de mistério, na qual

era quase impossível discernir qualquer sentimento, qualquer emoção. Era, de facto, muito

58

pouco expressivo. Contudo, as linhas do rosto não eram muito marcadas, o que significava

que, aparentemente, era novo, sem dúvida entre os vinte e os vinte e cinco anos de idade,

apesar de existir algo nele que emanava antiguidade. O olhar dele era chocante, sem

margem de dúvida, mas era todo o conjunto que o tornava assustador. Outra característica

que não conseguia compreender era aquela constante necessidade de esconder a cara com

o cabelo, marca comum em todos eles.

Sim, definitivamente ele tinha um aspecto doentio. Ninguém de perfeita saúde tinha uma

cor daquelas, aquela palidez certamente esconderia alguma doença que eu não conseguia

diagnosticar neste momento preciso. Explicaria essa doença o seu estranho

comportamento, a sua bizarra… necessidade? De repente não me ocorria nenhuma

situação em que um ser humano pudesse adquirir dentes retrácteis. Estariam eles afectados

por alguma patologia rara que explicasse todas estas características? Mas, quatro pessoas

exactamente com a mesma doença rara era algo altamente improvável. Se bem que não, de

todo, impossível.

E ele estava sempre…frio, com a mesma temperatura horrorosamente gélida, tanto lá fora,

como ontem, no meu quarto. Poder-se-ia explicar como um ser humano saudável pode

admitir uma temperatura cadavérica, sem forçar até ao limite todas as teorias existentes?

Tentei fechar os olhos, tentando desviar a minha linha de pensamento para algo mais

agradável, como por exemplo praias paradisíacas com palmeiras e frutos tropicais. Acenei

negativamente para mim mesma, colocando as pontas dos dedos nas fontes. Mais

perguntas sem respostas.

Terminei de almoçar e, num ápice, arrumei a loiça e a confusão que tinha arranjado para

preparar o almoço. Voltei, sem alento, para o meu quarto. Era imperativo estudar nessa

tarde, mais que não fosse pela pressão da proximidade do exame de sexta-feira. O

problema era que a minha desconcentração estava a atingir níveis que eu pensava não

existirem. Não conseguia estar mais de vinte minutos centrada num tema, pois as imagens

da noite anterior eram uma constante presença mental.

Estava a ficar arreliada com a incapacidade que sentia para levar a cabo tarefas que, há

dois dias atrás, me eram completamente triviais. Só queria conseguir não pensar naquele

assunto durante uma quantidade de tempo considerável. O problema de não querermos

muito uma coisa é exactamente o facto de ela persistir em nós, exactamente com a mesma

magnitude, como por exemplo quando fazemos um grande esforço para não chorar e que o

resultado obtido é exactamente o contrário.

Rendi-me às evidências. Talvez fosse melhor fazer alguma coisa para aniquilar a minha

desconcertante curiosidade.

59

Instintivamente, peguei num post-it e escrevi:

Por momentos, senti-me o Dr. House a escrever os sinais e sintomas mais marcantes no

seu famoso quadro, enquanto massacrava sem escrúpulos os seus subalternos. Mas esta

minha tentativa estava longe de se assemelhar aos rocambolescos raciocínios tão

característicos daquele personagem, apesar de estar perante um enigma bastante fora do

vulgar. Olhei para as três palavras e não consegui lembrar-me de nenhuma doença que

conjugasse especificamente estas três características. Conseguia associar “palidez” e

“sangue” a patologias porfíricas, contudo algo me dizia que não iria encontrar “dentes

retrácteis” em nenhum livro de texto, por mais vanguardista que fosse. A minha opção

imediata era a base de dados do Harrison’s Medicina Interna. Quase sem pensar, procurei

o livro e vi que, numa contra-capa, tinha disponível o DVD de instalação, que coloquei

imediatamente no computador portátil que entretanto já tinha ligado.

Enquanto esperava que o computador iniciasse e que o DVD começasse a correr, folheava

pacientemente o glossário, sabendo que não iria encontrar alguma destas palavras de

forma imediata. Uma vez disponível o motor de busca, dei entrada das três palavras que

havia escrito, aguardando os resultados.

Como seria de esperar, da terceira palavra não surtiram resultados e da associação das

duas primeiras remeteram-me aos capítulos de doenças genéticas e do metabolismo.

O primeiro resultado falava das Porfírias, o que não me surpreendeu. Apesar de já ser um

tema que eu havia estudado em algumas disciplinas, e mesmo sabendo do que se tratava

na generalidade, sempre haveria algum pormenor importante que, muito provavelmente,

seria relevante. E, neste caso, os pormenores eram, sem dúvida, fundamentais.

Da minha extensa e atenta leitura no capítulo das Porfírias, concluí que, somente

dominada por uma enorme capacidade imaginativa, teria alguma possibilidade de estar

certa ao considerar que David e os seus semelhantes encaixavam bizarramente no quadro

de Porfiria. Apesar de existirem vários tipos, todas elas consistiam em distúrbios

enzimáticos no qual os pacientes manifestavam desde palidez, a necessidade contínua de

transfusões sanguíneas, eritrodoncia, orelhas afiladas, mãos em forma de garra, sérios

problemas hepáticos, a clara intolerância à luz solar. Uma grande variedade de

Palidez Sangue: vital Dentes retrácteis

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manifestações que não necessariamente surgiam em simultâneo e que, ao fazer uma

selecção conveniente daquelas que mais relevância tinham, não obtinha mais do que uma

conclusão forçada, ou seja, seria uma atitude incorrecta e imprecisa, do ponto de vista

médico e clínico. Se bem que não havia nada de correcto nem de preciso nesta história

toda. Só incoerências e utopias. Literalmente.

Onde estava, agora, a minha racionalidade?

Ainda assim, continuei. À parte dos dentes avermelhados e mãos em forma de garra, que

eu já tinha observado que não possuíam, as orelhas afiladas permaneciam um mistério.

Assim, as únicas características que eu encontrava – de certa forma - a encaixarem com o

semblante deles, eram a palidez e a (eventual) necessidade de sangue. Por outro lado,

coincidência ou não, a verdade é que eu nunca os tinha visto em plena luz do dia, mas

sempre depois do pôr-do-sol.

Olhei vagamente em meu redor, pensando no que poderia isto significar. Sim, era uma

hipótese – remota -, ainda que encontrar quatro pessoas não aparentadas, com a mesma

doença genética, seria uma descoberta quase cósmica, para não mencionar que haveria

certamente métodos mais civilizados para conseguir a quantidade de sangue necessário

para a sua sobrevivência, sem ser necessário cometer assassinatos. Mas e porquê ingerir

sangue e não… transfundir, como se faz hoje em dia, sem dúvida uma forma mais

civilizada de obter o que se necessita?

Acenei a cabeça, semicerrando os olhos, consternada. Obtinha resposta a umas perguntas,

contudo, surgiam outras. Cada uma mais irreal do que a outra. Provavelmente, toda esta

loucura aparente seria justificável pelas manifestações neurológicas que grande parte dos

pacientes porfíricos podem sofrer, mais cedo ou mais tarde. Sim, sem dúvida um

comportamento desviante como assassinar pessoas para depois se alimentar do seu

sangue poderia ser facilmente explicado como um transtorno psiquiátrico de base

orgânica… ou genética. Pelo menos, era bem mais confortável… e com menor capacidade

de gerar controvérsia em qualquer mente minimamente racional.

No entanto, mantinham-se as questões pertinentes, às quais muito provavelmente eu só

conseguiria resposta se lhe perguntasse directamente. Mas para isso era necessário que ele

me quisesse responder e, acima de tudo, eu teria que voltar a vê-lo novamente.

Pensar nestes termos fez-me vacilar imediatamente. Estaria a minha curiosidade a

sobrepor-se ao meu sentido de auto-preservação? Claramente.

Com um suspiro frustrado, repousei a minha fronte nas pontas dos meus dedos, cerrando

os olhos durante o processo. Isto não me iria levar a lado nenhum. Nenhuma teoria, nada

palpável ao meu alcance teria capacidade argumentativa suficiente para que eu

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conseguisse… satisfazer a minha curiosidade. No entanto, teria que ser capaz de abstrair-

me.

Consegui voltar a estudar para o exame de sexta-feira alguns momentos depois de

encerrar o computador e voltar a colocar o Harrison na prateleira, enquanto olhava

fixamente para as palavras escritas no post-it, sabendo que por dois dias, teria de esquecer

que existiam.

E assim foi. Nos dois dias que se seguiram, ocupei propositadamente, de uma forma

exaustiva, a minha mente com os temários em avaliação para sexta-feira. Shiva regressou

nessa mesma noite, também atarefada com as suas avaliações constantes, pelo que não

tinha absolutamente nenhum factor de distracção.

Sexta-feira. O exame estava marcado às dez horas da manhã. Com algum nervosismo,

dirigi-me para a faculdade, desejando que o exame corresse bem e que pudesse descansar

um pouco durante a tarde, pois os dois dias que tinham passado haviam sido

extremamente cansativos. Mal cheguei à universidade, encontrei de imediato Adèle, que

me sorriu, evidenciando também o seu nervosismo. Assim que me aproximei dela, senti

necessidade de tirar o casaco pois estava com um calor invulgar, já que dentro da

faculdade o aquecimento estava quase sempre a uma temperatura tão elevada que quase

parecia estarmos nos trópicos e a espessa camisola que trazia era, decerto, desadequada

para o ambiente que ali se fazia sentir. Tirei o casaco e arregacei as mangas da camisola,

abanando-me com um papel dobrado que tinha à mão, enquanto Adèle se divertia com a

minha súbita reacção.

- Por mais exames que faça, enervo-me sempre de uma forma incrível - afirmei eu,

sorrindo abertamente.

- Compreendo perfeitamente - respondeu Adèle, também com um sorriso na face.

Ouvimos subitamente o professor a chamar-nos para dentro da sala, ao que Adéle me

sussurrou “Boa sorte”, à medida que íamos entrando. Retribuí-lhe as palavras e expirei,

concentrando-me no exame que ia fazer.

A parte escrita correu bem, porém bem pior foi a parte oral. O professor tinha uma

pronúncia cerrada, falava muito depressa e eu tive uma franca dificuldade em perceber as

perguntas que me fazia. Não tive alternativa senão rogar-lhe que falasse um pouco mais

pausadamente, para que eu pudesse compreender o que me dizia.

Saí da sala já passava das duas horas da tarde, completamente consumida e com uma dor

aguda na zona frontal, que parecia que não dormia havia três dias. Para meu espanto

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encontrei Adèle à minha espera, rodeada de mais uns colegas nossos que eu reconhecia

serem da minha turma mas que não sabia como se chamavam.

- Maria, então que tal? - perguntou-me Adèle.

- Bem, eu acho que correu bem…. - retorqui eu, exibindo um leve sorriso.

- Conseguiste fazer bem o exame oral?

- A princípio não. Fiquei com o Dr. Michel, que tem uma pronúncia terrível - esclareci eu,

relembrando os fatídicos momentos em que não compreendia o que o professor dizia.

- Ah! Não te admires. Eu própria tenho dificuldade em compreendê-lo e a minha língua

nativa é o francês! - respondeu-me uma rapariga de tez chocolate, com um sorriso muito

expressivo e olhos escuros.

– Olá, eu sou a Chlöe.

- Maria - apresentei-me eu.

- Julien e Henri - apresentou Adèle os restantes rapazes.

- Vamos almoçar fora, que bem merecemos - afirmou Henri, visivelmente contente por ter

terminado o exame.

Com entusiasmo, juntei-me ao animado grupo que seguia na direcção do Metro, saindo da

universidade. Fomos almoçar a um simpático e familiar restaurante situado em frente à

Catedral de Notre Dame, onde certamente já era comum a realização de almoços pós-

exame, a julgar pelo fantástico tratamento que recebemos. À refeição, falámos

alegremente de animais de estimação, férias em países estrangeiros e praias paradisíacas.

Henri ficou muito entusiasmado com o facto de eu ser portuguesa e residir no Algarve,

garantindo-me que tinha familiares a viver numa cidade ao sul de Portugal mas não

conseguia pronunciar correctamente o nome. Julien estava claramente perdido a elogiar os

abundantes e fortes caracóis de Chlöe, que não parecia dar-lhe muita importância

enquanto Adèle me informava que, abaixo dos Pirinéus, nada lhe era familiar.

Foi um almoço que se prolongou até às quatro da tarde, hora a que decidimos ir comer a

sobremesa a uma Casa de Gauffres que Julien afirmava ser a melhor de Paris.

Com desejos redobrados de bom fim-de-semana e promessas de descanso intensivo,

separámo-nos à entrada do Metro, onde segui, sozinha, em direcção ao meu apartamento.

Quando cheguei a casa ainda era dia e estava francamente exausta. Pelo silêncio que

reinava na casa, Shiva ainda não tinha chegado e, como tal, resolvi aproveitar para

dormitar um pouco. Mal me deitei na cama, senti-me adormecer num sono profundo.

63

Acordei um pouco sobressaltada com alguém a tocar à porta do quarto. Só podia

ser Shiva.

- Sim… - afirmei eu.

- Olá! - Cumprimentou-me ela, alegremente. - Então, que tal correu o exame?

É verdade!! O exame. A sensação que tive foi que me perguntavam por um evento

decorrido há dias.

- Bem, bem…acho eu - afirmei, ainda meio adormecida. Foi então que reparei que Shiva

estava à porta do meu quarto e que já estava escuro.

- Entra, entra - convidei eu, acendendo a luz e sentando-me na cama, afastando o pequeno

cobertor que me cobria parcialmente.

- Que horas são? - Perguntei, visivelmente curiosa.

- Oito e meia da noite - respondeu ela, triunfante, enquanto se sentava na beira da cama.

Arregalei os olhos em resposta.

- Aquele exame cansou-me bastante - disse eu, em tom de justificação. - Então e tu, que

tens feito?

- Oh, hoje eu entreguei os projectos e fiz a defesa na aula. Correu tudo muito bem -

concluiu ela, visivelmente contente, olhando-me com um sorriso franco e os olhos

excessivamente abertos, como se estivesse espantada com algo que estava a observar. Não

foi preciso pensar muito para eu concluir que só poderia ser o meu cabelo que, certamente,

estaria com o aspecto de um arbusto selvagem, devido ao meu breve sono vespertino.

- Ah!… Os caracóis são mesmo assim. Um desafio diário - afirmei eu, sorrindo, enquanto

tentava acalmar o volume excessivo do cabelo, penteando-o com os dedos. Shiva

respondia-me com uma aguda gargalhada.

- Vamos jantar? - Adiantou.

- Vamos.

Dirigimo-nos as duas para a cozinha, dispostas a cozinhar uma iguaria digna do final de

uma árdua semana de trabalho e estudo. Contudo, foi Shiva que me convenceu a provar

um prato indiano típico que, segundo ela, era absolutamente delicioso. Chamava-se Thali.

A única exigência que lhe fazia era que não estivesse excessivamente condimentado.

Shiva adorava cozinhar e quando ela decidia dar liberdade aos seus dotes culinários, não

havia ninguém que a convencesse a parar. Conversávamos animadamente enquanto Shiva

preparava os ingredientes para o famoso prato, rejeitando qualquer auxílio que eu lhe

oferecia. A certa altura, Shiva dirigiu-se ao frigorífico, enquanto eu punha a mesa, até que

a ouvi chamar-me.

- Maria…

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- O que foi?

A pasmada face de Shiva estava agora fixa num ponto em concreto, lá fora, a olhar pela

janela da cozinha.

- Vem cá, por favor - disse ela mais uma vez, sem desviar o olhar, mantendo a sua face

séria.

Dirigi-me à janela, sem imaginar o que seria que ela estaria a ver, esperando que fosse

mais uma das suas brincadeiras típicas. Contudo, mal olhei pela janela, percebi

imediatamente a razão pela qual a minha colega de casa estava tão surpreendida. A janela

da cozinha do nosso terceiro andar tinha a mesma vista do meu quarto e podia ver grande

parte da Boulevard Jourdan. No passeio que acompanhava uma das fachadas da Maison

Internacionale, estava um indivíduo que eu reconheci imediatamente, somente pela

postura que admitia. Era David. Só podia ser David.

Estava de pé, entre os candeeiros que intervalavam a rua e mantinha, caracteristicamente,

as mãos nos bolsos. Não olhava para nada em concreto, nem se movia. Parecia

genuinamente uma estátua, como tantas outras que existem pela cidade. Levantei os

sobrolhos, surpresa.

- O que é que ele está a fazer aqui? - Disse eu, baixinho.

- Ia-te perguntar exactamente isso - respondeu Shiva, observando-me com um olhar

malandro.

- Eu não sei! - Afirmei eu, levantando o tom. Sinceramente, aquela insinuação tinha-me

atingido.

- Maria, Maria…- afirmou Shiva, sorrindo maliciosamente, na minha direcção. - O que é

que se anda a passar que não me contaste?

Ela estava delirante e eu estava chocada. Como é que era possível ela idealizar uma

situação destas, conhecendo-me minimamente?

- Shiva, por favor, - sussurrei eu, semicerrando os olhos e afastando-me do seu expressivo

olhar. - Não inventes!

- Maria, combinaste com ele? - Disparou ela, com um entusiasmo exagerado.

- Não!

Shiva olhou para mim de uma forma que me desacreditava completamente. Estava a

prever que ia ser difícil convencê-la do contrário.

- Já te disse que não sei o que é que ele está aqui a fazer - reafirmei eu. - E que eu saiba a

rua é pública, ele pode estar onde quiser.

Seguiu-se um silêncio desconfortável, enquanto ambas olhávamos fixamente aquela

estátua que só sabíamos viva por mero acaso.

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- Quererá ele falar contigo? - Sugeriu Shiva, repentinamente.

- Duvido - respondi quase de imediato. - Se ele quisesse falar comigo, provavelmente

olharia na minha direcção.

Ainda não tinha terminado de proferir a última palavra quando, para minha surpresa,

encontrei o olhar fixo de David em mim. Perguntei-me vagamente se seria possível ele ter

ouvido a minha última afirmação ou se, simplesmente, teria a capacidade de ler os meus

pensamentos.

Neste momento, tinha duas pessoas a olharem para mim. Shiva olhava-me com um sorriso

nos lábios, deslumbrada pelo olhar de David em mim que, segundo ela, valia mais que mil

palavras. De facto, só alguém que não tinha a mínima ideia do que se estava a passar é que

poderia supor tal barbaridade.

David continuava a olhar na minha direcção, tão estátua quanto antes e o olhar era, mais

uma vez, perturbador. Talvez ele quisesse mesmo falar comigo, por qualquer motivo que

eu desconhecia… ou talvez o motivo fosse mais óbvio do que eu pensava, dado o meu

problemático envolvimento na sua obscura realidade. Ainda que este facto me assustasse

consideravelmente, teria agora a hipótese de obter mais algumas respostas às novas

questões que me tinham surgido, pelo que concluí que não podia deixá-lo escapar, mesmo

que ele não tivesse nada para me oferecer.

- É melhor eu ir lá abaixo - constatei eu, afastando-me da janela e dirigindo-me ao meu

quarto, onde fui buscar o telemóvel, chaves de casa e casaco, porque, seguramente, estava

frio. Ao dirigir-me à porta de casa, ouvi Shiva dizer “Até já”, com um sorriso malandro,

enquanto me acenava. Respondi com um completo olhar de censura na direcção dela,

obviamente sem o efeito pretendido.

À medida que descia as escadas até à entrada do prédio, estava a ficar progressivamente

nervosa, hesitando inúmeras vezes. Era impressionante o efeito que este indivíduo tinha

em mim. Ao abrir a porta do prédio observei imediatamente que ele olhava na minha

direcção, o que não me permitia organizar mentalmente as perguntas que lhe queria fazer.

Contudo, à medida que avançava na sua direcção, pude observar como desviava, com

desinteresse, o mesmo olhar que, minutos atrás, era apelativo. Constatar esta realidade foi

suficiente para me bloquear imediatamente o raciocínio e eu não saberia o que lhe dizer

quando me aproximasse dele.

Parei a cerca de um metro, olhando-o com alguma melancolia, pois não conseguia

perceber o porquê da presença dele, aqui e agora, à porta do prédio onde eu vivia. Estava

bastante frio e corria uma brisa cortante, que fazia oscilar levemente os ramos das árvores,

provocando um ruído característico. Agitava também os meus caracóis e o seu

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característico cabelo que, mais uma vez, lhe caía caoticamente pela face e,

ocasionalmente, conseguia discernir-lhe as feições, que já me eram familiares, quando a

brisa mo permitia.

Mais uma vez, vestia calças de ganga, usava uma camisa que me pareceu ser azul clara e o

tão característico casaco escuro, claramente ligeiro para o frio do Inverno que se fazia

sentir.

- Olá - arrisquei eu.

Ele não se moveu, nem disse nada. Inclusive, parecia que nem respirava nem pestanejava.

Era uma figura absolutamente estática. Assim ia ser difícil perguntar-lhe fosse o que fosse.

Mas o que estava ele a fazer aqui? Provavelmente viria confirmar se eu tinha dado com a

língua nos dentes e exposto o seu tão precioso segredo.

- David… - era a primeira vez que verbalizava o nome dele e soava-me de forma estranha,

com a pronúncia que eu lhe dava. - Eu não vou dizer nada do que vi, a ninguém.

Dele obtive mais silêncio. Senti-me claramente a mais – como se isso fosse possível –

numa enorme multidão formada apenas por duas pessoas. Percebi que não ia ser possível

dialogar com ele e decidi ir-me embora, preparando-me para dar meia volta e regressar a

casa. Enquanto efectuava o movimento de retirada, subitamente, ouvi-o falar.

- Não é essa a questão.

- Então qual é a questão? Porque é que estás aqui? - Disparei eu, quase automaticamente.

A feição dele moveu-se na minha direcção e o olhar fixou-se novamente em mim,

emanando uma tristeza e um desconforto que eu não compreendia.

- O que foi? - Insisti eu, sem sucesso, pois não obtive resposta, mais uma vez.

O nosso diálogo ia ser, definitivamente, difícil. Voltei a aproximar-me, dando-lhe mais

uma oportunidade.

- Apetece-te…falar? - Sugeri eu, já sem ideia do que poderia dizer para estimular a

comunicação. Meu Deus! Se ele respondesse que não, provavelmente teria um colapso

nervoso.

- É-me indiferente – respondeu ele, com uma voz fria, enquanto olhava agora numa outra

direcção que eu não consegui precisar.

Bem, pelo menos não era um NÂO redondo, o que me deixou um pouco mais à vontade.

Posicionei-me ao lado dele, como se fosse um colega da faculdade.

- Posso fazer-te uma pergunta?

- Sim - afirmou, secamente.

- Estás doente?

67

A reacção dele foi imediata, olhando na minha direcção com um espanto que quase lhe

conferia uma expressão cómica.

- Não. Porque perguntas?

- Bem, estive a pensar que…

Ele continuava a fitar-me com espanto e curiosidade, esperando que eu terminasse a frase.

Eu estava com uma dificuldade visível em escolher as palavras adequadas.

- …provavelmente… poderias sofrer de uma doença que explica em parte as tuas…

vossas necessidades.

Sentia-me uma completa idiota ao proferir as últimas palavras. Não era nada disto que eu

queria dizer e definitivamente não desta maneira. Como era possível uma teoria que

parecia tão adequada três dias atrás, agora parecer um autêntico disparate?

- Necessidades? - Repetiu ele, com um ténue sorriso nos lábios, visivelmente surpreso

pela minha disparatada afirmação. A sua face parecia quase distinta quando não admitia

aquele semblante sério e grave, a que eu estava acostumada. Sem dúvida alguma, era

possível habituar-me a este David.

- Então… vocês precisam de sangue e… são pálidos. Muito - interrompi eu, tentando

recapitular as principais características que tinha lido três dias atrás. - E só te vejo à noite,

nunca durante o dia.

- E que doença seria essa?

- Porfiria?... - sugeri de imediato, embora duvidando de mim mesma.

- Ah! Claro. Porfiria – afirmou ele, com uma ligeira ironia na voz, enquanto olhava para o

vazio. - Tenho imensa pena, mas não - concluiu ele.

- Tens a certeza? - Experimentei novamente.

- Absoluta – confirmou ele, com bastante segurança na voz. - Aliás, até sou bastante

saudável – adicionou ele, agora com um ligeiro tom de troça.

As minhas hipóteses estavam agora aniquiladas, depois da infeliz demonstração da minha

ignorância e sentia-me, para além de frustrada, bastante envergonhada.

Ele deve ter lido a decepção na minha face, seguramente bastante óbvia e, com uma

rapidez alucinante, colocou-se à minha frente, mais uma vez a olhar-me fixamente, com

tal intensidade que me senti obrigada a desviar o olhar.

- Não te preocupes. Não é fácil - constatou ele, com uma certa conformação na voz.

- Pois - confirmei eu, enquanto olhava, consternada, na direcção dos meus pés.

- Mas posso assegurar-te uma coisa… - afirmou ele, continuando a olhar-me com firmeza,

enquanto se aproximava lentamente de mim, obrigando-me a fitá-lo. Raios, era este o

olhar incapacitante que eu tanto temia.

68

- …estás a procurar nos livros errados - sussurrou-me ele ao ouvido. Portanto, havia livros

que explicavam toda esta situação?

A sua proximidade fez-me arrepiar, não de frio, mas de algo mais que eu não sabia

classificar, relembrando-me imediatamente da noite em que fui puxada para aquele

recanto na Cité Universitaire mas, desta vez, sem sentir aquele terror horrível. E o aroma

que dele emanava era algo único, de tal forma que tive que aplicar todo o meu

discernimento mental para conseguir verbalizar o que pretendia dizer.

- Em… em que livros devo procurar? - Disse eu, com a voz quase a falhar.

O olhar que ele me lançou em seguida foi, no mínimo, estranho. Sem me dizer uma única

palavra, consegui perceber perfeitamente que ele não me iria responder e que se ia

embora. Nada mais. Naqueles intensos olhos verdes havia mais, mas ele bloqueava-me o

acesso. Como era ele capaz de comunicar com o olhar era algo absolutamente inexplicável

para mim.

- Vais-te embora - afirmei eu, quase em tom de pergunta.

- Evita apareceres à noite - afirmou ele mais uma vez, enquanto se afastava de mim, na

direcção da Cité Universitaire para desaparecer, como já era costume, nas sombras que

envolviam a noite.

Permaneci ali parada durante algum tempo, ainda confusa com o nosso recente

diálogo, que continuava a ser enigmático e evasivo, mas ao qual já estava a ficar

acostumada. As respostas que dele tinha obtido não eram mais do que confirmações

ambíguas das minhas incertezas, para não mencionar a sua metafórica sugestão. Procurar

noutros livros, que não nos meus. E como é que ele sabia onde é que eu fazia as minhas

pesquisas? Existiria porventura um livro que me decifrasse esta realidade

incompreensível? Francamente, seria altamente improvável, a não ser que o significado da

sua sugestão estivesse oculto sob aquelas simples palavras. De uma maneira ou de outra,

teria que partir do zero. Outra vez.

Dirigi-me a casa, apressadamente, com as suas estranhas afirmações a dançar na

minha mente, sem lógica aparente. Quando entrei em casa, encontrei uma Shiva bastante

alegre e sorridente, já se estava a adivinhar porquê. Antes que ela começasse a dizer

alguma coisa, antecipei-me.

- Nem penses - afirmei eu, secamente.

- Que tal foi? - Continuou ela, sorrindo, como se eu não lhe tivesse dito nada.

- O costume, - respondi eu. - Nada.

A sua expressão foi a de um autêntico balde de água fria e o sorriso desvaneceu-se por

completo. Ela estava desiludida comigo.

69

- Não acredito, Maria! Porque é que não me contas o que se passa na tua vida? Pensava

que éramos amigas!

- Shiva, se houvesse algo para contar, serias a primeira a saber - disse eu, na direcção dela.

- Então o que é que ele estava aqui a fazer?

- Ele não me respondeu a essa pergunta.

- Então, estiveram a falar este tempo todo sobre o quê?

Ups. Uma pergunta difícil e eu não tinha uma resposta preparada, o que me fez demorar

muito tempo a inventar uma desculpa que fosse minimamente credível.

- Pronto, não respondas - afirmou ela, visivelmente aborrecida. - Só não compreendo

porque é que não admites que se passa algo entre vocês.

- Shiva, por favor, - respondi eu, elevando o tom de voz. - Não sabes o que estás a dizer!

- Elucida-me, então! - Afirmou ela, abrindo exageradamente os olhos, com um ar

desafiador.

Tive uma vontade enorme de lhe dizer tudo o que se estava a passar, todos os pormenores,

todas as preocupações, todas as dúvidas, mas não podia. E agora, o que é que eu lhe dizia

para terminar com esta conversa de uma vez por todas, antes que a nossa amizade ficasse

comprometida?

- Não há absolutamente nada por detrás dos nossos diálogos, garanto-te – esclareci. - E eu

não sei o que é que ele quer de mim. - Afirmei eu, com uma sinceridade que era mais

sentida do que Shiva poderia imaginar.

- Estás a tentar dizer-me que falas com ele constantemente e ainda não percebeste o que

ele quer? - Afirmou ela, olhando para mim como se eu não estivesse a deduzir algo

estupidamente evidente.

- Só falei com ele três vezes, incluindo hoje. E os nossos diálogos não são propriamente

convencionais.

Ela olhou-me com ar inquisidor, sem entender o que queria eu dizer com a minha última

frase.

- Eu não compreendo grande parte do que ele diz - esclareci eu, pronunciando as palavras

de uma forma excessivamente vagarosa.

- Como é que isso é possível? - O tom de Shiva emanava incredulidade.

- Essa é uma excelente pergunta, para a qual eu não tenho resposta. Já podemos ir jantar? -

Perguntei eu, com uma ligeira ironia na voz, dando o assunto por encerrado.

- Muito bem - afirmou Shiva, levantando os braços, em sinal de resignação.

Definitivamente, este assunto estava encerrado.

70

Dirigimo-nos à cozinha, onde já estava o jantar pronto, na mesa. Sentámo-nos e

começámos a comer, com um silêncio incomodativo a pairar sobre nós. Pontualmente,

comentava algo referente às suas habilidades culinárias, tentado dar início a algum

diálogo, mas sem sucesso. Ela estava mesmo triste comigo e com a minha constante

persistência em não me abrir com ela, o que, certamente, considerava injustificável. E

tinha a sua quota de razão. Eu queria, mas não podia, apesar de lamentar bastante esse

facto incontestável.

Extraordinário o modo imperceptível como certas pessoas entram na nossa vida e

ameaçam arruinar tudo o que nos rodeia: amizades, princípios, hábitos.

Não pude evitar sentir-me culpada pelo pesado ambiente que se estava a instalar entre nós.

Ao terminarmos de jantar, arrumámos a cozinha e rumámos aos nossos quartos, sempre

acompanhadas de uma incomodativa ausência de assunto.

- Boa noite.

Foram as únicas palavras que a ouvi proferir antes de encerrar a porta do seu quarto.

- Boa noite - respondi eu, enquanto entrava também para o meu quarto.

Fechei a porta e olhei em meu redor, sem saber o que procurar. De facto, não procurava

nada, estava somente a olhar para tudo e para nada, ao mesmo tempo.

Senti-me frustrada. Era um sentimento que já me tinha invadido vezes de mais para o meu

agrado e, ainda assim, não podia fazer nada para eliminá-lo, por muito que tentasse.

Relembrei-me das palavras de David da primeira vez que conversámos, quando ele

afirmara que era assim que as coisas eram. Inexplicáveis. Incontestáveis.

Como era possível eu conformar-me com esta teoria? Eu recusava-me a aceitar os factos

desta forma. Tinha que haver uma explicação, há sempre uma explicação para tudo, por

muito recôndita e improvável que seja. E eu tinha que conseguir descobrir essa

explicação.

Sem mais demoras, fechei o estore da janela e vesti o pijama, aninhando-me no conforto

que o meu edredão de penas me oferecia e, já deitada, tentava adormecer imaginando uma

realidade onde um David sorridente pudesse existir, longe das macabras e estranhas

necessidades que a minha realidade lhe exigia.

71

CAPÍTULO 6 – LOUVRE

JÁ ERA DEZEMBRO.

Estávamos, oficialmente, a viver todo o fervor Natalício e Paris cobria-se quase

diariamente de um manto branco de neve, para meu deleite. Na universidade, o delírio era

constante, o que me surpreendeu bastante, tendo em conta que os Parisienses estavam já

familiarizados com a neve, principalmente nesta altura do ano. Numa fria manhã de aulas,

Adèle sugeriu-me fazer uma incursão ao segundo andar da torre Eiffel sem utilizar os

elevadores, não só para exercitarmos os nossos preguiçosos músculos, mas especialmente

para usufruirmos da maravilhosa vista que, à medida que subíamos, se ia tornando cada

vez mais extraordinária. A subida poderia ter sido bastante frutífera, não fosse o vento frio

que se fazia sentir e me trazia lágrimas aos olhos, assim como o volumoso casaco que

vestia e me dificultava os movimentos. Os adereços protectores de extremidades eram-me

extremamente necessários para conseguir sobreviver àquele clima bastante rigoroso. Era

sempre possível encontrar um gorro ou um cobre-orelhas original que pareciam divertir os

meus colegas, que constantemente afirmavam que era “um exagero” da minha parte. Só

Adèle se mostrava compreensiva com a minha aparente intolerância ao frio parisiense.

A minha relação com Shiva tinha melhorado ao longo dos dias, o que me levou a concluir

que, ou se tinha esquecido, ou então se tinha conformado com as minhas respostas

evasivas e nunca mais mencionou uma única palavra sobre aquele assunto. Faltava uma

semana para as férias do Natal, o que deixava Shiva absolutamente agitada pois, desta

forma, tinha uma oportunidade obrigatória para fazer algo que ela tanto adorava: compras.

Deixámos uma tarde unicamente dedicada a este propósito, na qual nos lançámos com

ímpeto a todas as lojas adequadas para comprar as tão características lembranças de Natal.

Foi uma tarde bastante alegre e, contrariamente àquela perturbante noite onde o nosso

diálogo estava decididamente comprometido, agora estávamos bastante comunicativas,

comentando e aconselhando-nos mutuamente sobre que lembranças oferecer aos diversos

elementos da família. Acabámos por comprar lembranças semelhantes para os nossos pais

– uma elegante caneta com os respectivos nomes gravados – e para a minha mãe tinha-me

decidido por um elegante par de brincos que estava certa que ela iria adorar. Já Shiva tinha

escolhido uma sofisticada moldura de prata com relevos em estanho. Contudo, o grande

desafio prendia-se à necessária originalidade da lembrança para a minha irmã Catarina,

que tinha um gosto bastante requintado, no pior dos sentidos. Depois de muito ver e

72

pensar, acabei por me restringir aos acessórios, decidindo-me por um alegre conjunto de

cachecol, gorro e luvas que, certamente, ela iria gostar. Pelo menos eu esperava que assim

fosse.

Sem que Shiva se apercebesse, tinha comprado uma original peça de roupa para lhe

oferecer, já que o seu aniversário seria nas férias, mais precisamente no dia vinte de

Dezembro.

Com antecipação, chegámos à última semana de aulas e, tanto eu como Shiva,

mantínhamos uma carga extra de adrenalina no sangue só de pensar que, em breve,

estaríamos novamente em casa, com a nossa família, no nosso país. Nessa semana tive

alguma dificuldade em concentrar-me nas aulas, pois só conseguia imaginar o dia em que

voltaria para casa, dadas as enormes saudades que sentia dos meus pais e irmã, assim

como de alguns amigos da minha cidade natal.

Nunca mais tinha sido visitada pelo meu “obscuro amigo”, expressão pela qual eu

caracterizava David. Aparentemente, parecia que se tinha eclipsado, como se fosse uma

memória, uma recordação passageira que se havia, agora, desvanecido. Por um lado, a sua

prolongada ausência era calmante, deveras favorecedora para a minha sanidade mental e

para a minha adequada concentração nas verdadeiras tarefas do dia-a-dia, especialmente

no que tocava à universidade. Mas, por outro lado, a ausência de respostas era sempre um

motivo, quase constante, para me relembrar da sua existência, das suas actividades, dos

seus estranhos comportamentos. Só este facto me impedia de esquecê-lo

completamente…ou, pelo menos, eu queria acreditar que sim, apesar de não passar um dia

em que eu não recordasse as suas misteriosas palavras, a sua estranha postura, a subtileza

das suas feições e…a intensidade do seu olhar. Ainda que não o fizesse propositadamente,

sempre haveria um momento do dia em que o meu subconsciente insistia em recordar-me

a sua existência, normalmente à noite, quando a minha mente estava mais abstraída dos

eventos diários. Era realmente curioso que, concretamente nos momentos em que poderia

relaxar e descontrair, o principal elemento que me surgia na mente fosse a figura mais

perturbadora de todas.

E, assim, o grande dia chegou. O último dia de aulas. Estava completamente

delirante, nem tinha conseguido dormir decentemente, só de pensar que no dia seguinte

viajaria para a minha cidade natal, Faro. Tal como já tinha ouvido proferir inúmeras vezes,

sente-se uma doentia saudade de casa quando se está obrigatoriamente longe dela, e era

verdade. Mal podia esperar que chegasse a hora de partir.

73

A manhã foi bastante atribulada, em todos os sentidos. Despedi-me calorosamente de

todos os meus colegas, especialmente de Adèle, que tinha um significado especial para

mim, pela incansável amizade que demonstrava, sem pedir nada em troca. Era

verdadeiramente genuína. Assim, entre promessas de almoços comemorativos de entrada

no novo ano e desejos de boas férias e muito descanso, saí da universidade em direcção ao

meu apartamento, para acabar de tratar das minhas bagagens, que eram mínimas em

comparação com as de Shiva, que mais parecia partir definitivamente para o outro lado do

mundo.

- Nunca se sabe do que posso precisar - afirmava ela, como desculpa mais que plausível

para a enorme quantidade de malas que levava que, certamente, ultrapassaria o peso limite

máximo imposto para bagagem.

Almoçámos rapidamente algo pouco elaborado e, depois de arrumar a cozinha,

confirmando que todas as janelas e portas estavam bem fechadas, saímos carregadas de

armas e bagagens, directas ao aeroporto. Shiva tinha sugerido um táxi, pois era

verdadeiramente impossível carregar toda aquela quantidade de bagagens em transportes

públicos. Assim foi, desta forma, que chegámos ao Aeroporto d’ Orly, onde fomos

imediatamente levantar os bilhetes que tínhamos requisitado por Internet. Chegara a hora

da despedida e senti uma enorme nostalgia por ter que deixar, ainda que por um tempo

limitado, a minha distinta colega de casa. No entanto, foi Shiva que me surpreendeu,

lançando-se a mim com um forte abraço, que eu tive dificuldade em retribuir com a

mesma intensidade. Shiva vivia de uma forma demasiado intensa todos os pequenos

detalhes da vida e, nestas alturas, mostrava-se extremamente frágil, o que me comoveu

particularmente.

- Shiva, voltamos daqui a duas semanas! Não fiques assim - acalmei eu.

- Oh! Maria, já estou cheia de saudades tuas… - afirmou ela, com a voz trémula.

- Podemos telefonar uma à outra… ou trocar e-mails - disse eu, tentando salvar o

momento.

- Está bem. Não me vou esquecer, manda-me um e-mail todos os dias, ouviste? - exigiu

ela, visivelmente satisfeita com a solução que eu tinha sugerido.

- Com certeza! - respondi eu, com um sorriso nos lábios, acrescentando, - Aproveita estas

duas semanas em casa!

- Tu também. Boa viagem.

- Boa viagem - desejei eu, reforçando o seu abraço.

Foi com alguma saudade no olhar que a vi dirigir-se ao terminal de onde partiria o

seu voo, enquanto eu permanecia, estática, no local da nossa despedida.

74

Subitamente olhei para o placard electrónico, onde já piscava o aviso “EMBARQUE” e

apressei-me na direcção que me levaria para o conforto da minha casa, no meu país natal.

As férias do Natal passaram num ápice, aliás, como quaisquer férias que sejam.

Passam sempre rápido demais e são sempre demasiado curtas. Voltar a ver os meus pais e

a minha irmã foi simplesmente arrebatador e agora, mais do que nunca, sentia-me em

casa, segura e feliz, imersa em toda a atenção que eles me concediam. Pelo menos estava

longe da fonte de… distúrbio emocional, ainda que eu tivesse a noção de que a minha

sensação de segurança era fictícia, simplesmente por estar a milhares de quilómetros do

local onde se encontrava a verdadeira ameaça à minha estabilidade mental.

O espírito natalício que se vivia na minha casa contribuía grandemente para me abstrair

dos pensamentos menos bons e, por vários dias seguidos, o sobressalto das vivências em

Paris não me acordava a meio da noite, não me incomodava durante o dia, não me

ocupava a mente nos momentos mais introspectivos.

A minha insistente irmã insistia em afirmar diariamente que eu “estava muito estranha” e

que “havia de descobrir o que se estava a passar”. Claro que, apesar da sua inconveniente

bisbilhotice, resolvi muito simplesmente não lhe dar importância, alegando que ela se

comportava como uma pré-adolescente irritante que criava cenários imaginários na sua

mente, com príncipes encantados e unicórnios que surgiam sob o arco-íris. A reacção dela

frente às minhas acusações conseguia ser sempre tão exagerada quanto cómica,

terminando sempre na criação obrigatória de um espaço físico entre nós, durante pelo

menos um par de horas, até os ânimos acalmarem.

A minha mãe insistiu em cozinhar todos os meus pratos favoritos, afirmando

constantemente que, com toda a certeza, eu “me alimentava mal” e que estava com um

aspecto “desgastado”, certamente pela ausência de carinho maternal durante quase três

meses. Já o meu pai mostrava-se totalmente alheado do meu suposto aspecto desgastado e

simplesmente sorria com maior expressividade, pois estava contente por eu estar em casa,

com eles, com a minha família. Momentos perfeitos.

Mas eu sabia que, mais rapidamente do que eu gostaria, o dia do regresso para Paris

chegava e, com ele, a obrigatoriedade de reviver toda a mágoa da partida. Mais uma vez.

75

No início de Janeiro, Paris estava exactamente igual, como seria de esperar.

Por opção própria, resolvi regressar dois dias antes do início das aulas, para organizar a

imensa quantidade de temários das inúmeras disciplinas, às quais seria avaliada em breve.

Para meu espanto, quanto cheguei ao meu apartamento, Shiva já estava em casa, com um

aspecto revigorado e sempre com a sua contagiante boa-disposição, sufocando-me durante

toda a tarde com todos os pormenores e aventuras da sua estadia no seu país natal. A certa

altura, já não ouvia o que ela me dizia, perdida na enorme quantidade de nomes estranhos,

animais exóticos e novas conquistas fugazes que ela insistia em empreender, sempre que a

ocasião o permitia.

De regresso à faculdade, a minha mente estava demasiado ocupada para pensar noutras

questões, nomeadamente a questão que envolvia aquele rapaz que parecia mais ter

assombrado a minha vida durante algumas ocasiões, para depois desaparecer, por

completo. Todos aqueles bizarros eventos pareciam-me agora estranhamente distantes,

como se tivessem ocorrido há muitos anos atrás ou fossem recordações de uma vida

passada, que iam perdendo definição com a passagem do tempo. Claro que eu sabia que a

realidade não era essa, mas a verdade é que as horas passavam, os dias seguiam-se e cada

vez mais ele me parecia mais um ilusão, fruto de um sonho muito vívido.

Já começava a conformar-me com o seu desaparecimento e com a sua ausência

permanente, de tal forma que já era um dado quase adquirido, ainda que as suas constantes

advertências relativamente ao cuidado que eu deveria ter para “evitar aparecer à noite”,

pululassem na minha mente sempre que o pôr-do-sol surgia.

A época oficial de avaliações escritas e orais no final de Janeiro e início de Fevereiro

absorveram-me quase totalmente. Até Shiva se encerrava no quarto a estudar, sem

efectuar as constantes pausas às quais já estava habituada.

O início do segundo semestre era oficializado sensivelmente a meio do mês de

Fevereiro, interrompido por uns escassos dias de férias de Carnaval – ou Mardi Gras,

como era hábito designar o Carnaval em França e que Shiva tão entusiasticamente me

informava. Eu não era uma praticante exímia de fantasias carnavalescas. Aliás, o

Carnaval, tal como o Halloween, não me diziam particularmente nada, apenas o Natal e a

Páscoa tinham um significado concreto para mim. Mas Shiva vivia com sofreguidão todas

as ocasiões em que se pudesse enfiar num disfarce e desfilar pelas ruas com o mesmo

entusiasmo de uma criança de oito anos.

76

Hoje era segunda-feira, véspera de Carnaval. Estava sozinha em casa, dormitando

vergonhosamente no sofá da sala, já de pijama vestido e parcialmente coberta com uma

manta polar que Adèle me tinha oferecido no Natal, decorada de forma errática com a

personagem Jack da animação da Disney “Pesadelo antes do Natal”, que ela sabia ser

uma das minhas favoritas. A televisão estava ligada, exibindo um programa que eu não

sabia qual o conteúdo nem o tema que se discutia, pois só ocasionalmente abria

preguiçosamente os olhos e constatava que aquelas senhoras defendiam os seus pontos de

vista de uma forma acérrima. Shiva estava insuportavelmente entusiasmada e ainda não

havia chegado da sua exaustiva tarde de compras, uma verdadeira peripécia em busca do

disfarce adequado, pois ainda não havia decidido qual a sua fantasia para este ano.

Foi com um estrondoso ruído que a ouvi entrar em casa, fazendo-me saltar do sofá,

sobressaltada, sem saber o que se estava a passar.

- Maria, Maria, olha, é lindo! LINDO! - Exclamou Shiva, na minha direcção, ostentando

um cabide na mão, de onde caía um vestido branco que me parecia um vestido de noiva de

cetim de qualidade duvidosa, com um corte absolutamente retrógrado, seguramente do

século passado. Era simplesmente horrível.

- Shiva… vais mascarar-te de noiva? - Declarei eu, tentando não obviar descaradamente a

minha verdadeira opinião em relação ao seu disfarce.

- Hum. Mais ou menos. Mas não uma noiva qualquer.

Olhei-a, atónita.

Às vezes, esta rapariga consegue ser completamente alucinada.

- Vou vestir-me, para veres. Até porque estive a informar-me e hoje à noite há uma festa

na Maison des États Unis que celebra em grande a entrada no Mardi Gras - afirmou ela,

enquanto sorria, absolutamente extasiada, dirigindo-se para o quarto.

Voltei a sentar-me no sofá, olhando novamente para a televisão e tentando concentrar-me

no que diziam, mas era impossível. Eu conseguia ouvir Shiva numa azáfama sem

precedentes. Mais parecia que ela estava a destruir o quarto. Às vezes ela conseguia ser

absolutamente esgotante. Ainda assim, deixei-me estar, esperando que ela eventualmente

me surpreendesse, quando estivesse preparada. E, pelo tempo que estava a demorar, mais

parecia que estava a preparar-se para uma cerimónia a rigor do que propriamente para um

evento carnavalesco.

Quase uma hora depois, ouvi a porta do quarto dela abrir-se, seguido de um ruído que

identifiquei ser de sapatos de salto alto. Sorri ligeiramente ao esperar, com uma ligeira

expectativa, pela figura de Shiva dentro daquele vestido que eu considerava hediondo.

Contudo, à medida que ela se aproximou de mim, revelando a natureza da sua fantasia de

77

Carnaval, não consegui evitar desfazer o sorriso que tinha nos lábios e substituí-lo pela

maior expressão de terror possível. Neste momento, o vestido não era o que prendia a

minha atenção, mas sim a maquilhagem e a forma como ela estava maquiavelicamente

sedutora. Toda a face, pescoço e o peito exposto estavam cobertos de uma maquilhagem

tão branca que a faziam parecer um cadáver; na zona da boca e mandíbula, algo viscoso

de cor vermelha – que pretendia obviamente simular o sangue – dispunha-se de forma

absolutamente errática, dando-lhe um aspecto mais real do que ela poderia alguma vez

imaginar. O cabelo estava pulverizado com cores diferentes da sua cor original e

pintalgado de acessórios brancos, da mesma categoria do vestido. Nos olhos tinha

colocado umas lentes de contacto brancas, que lhe dava um aspecto totalmente…

diabólico.

As recordações daquela noite na Cité Universitaire onde eu tinha visto… aquilo,

reapareceram na minha mente de uma forma excessivamente nítida. E o aspecto de Shiva

parecia-se tanto com o de Nevio, naquela noite, que me senti estremecer de medo somente

por constatar este facto.

- O que foi? Não estou bem? - Questionou ela, com uma expressão igualmente

aterrorizada. Não consegui responder de imediato, pois demorei algum tempo a reunir

coragem para lhe perguntar qual era o nome da fantasia.

- Que raio que é isso? - Disparei eu, com excessiva amargura nas palavras.

- A noiva do Drácula - respondeu Shiva de imediato, como se fosse uma constatação

demasiado óbvia.

- É uma piada de muito mau gosto… - sussurrei eu, fechando os olhos em sinal de

introspecção, sem coragem para explicar o porquê da minha declaração.

- Maria! Que falta de sentido de humor - retorquiu Shiva, dirigindo-se a mim como se eu

fosse uma pessoa realmente entediante. E continuou, como se nada fosse. - E já estou a

ver que não estás com disposição para te divertir.

Não tinha respostas para lhe dar, face ao que me dizia. A realidade era que, de facto, a

disposição já era pouca e agora… tinha desaparecido completamente. Nem acorrentada

me iam tirar de casa.

- É melhor começares a pensar em aproveitar mais a vida, Maria. Se não nos divertirmos,

a vida torna-se um marasmo completo.

A face de Shiva era grave e o seu tom acusatório. De alguma forma, senti que

aquela acusação era para mim, que era eu que não me divertia e que era a minha vida que

era um marasmo e a dela não, porque ela sabia como divertir-se, como aproveitar a vida.

Expirei ruidosamente, tentando controlar a minha indignação, enquanto Shiva agora

78

voltava para o quarto, certamente para retocar o seu disfarce. Eu mantinha-me sentada no

sofá, imersa em pensamentos.

Se ela soubesse, calava-se. Se ela tivesse passado por o que eu passei, fugia e escondia-se

como uma verdadeira cobarde. Oh, se ela soubesse…

- Até já. Volto tarde - afirmou Shiva, na minha direcção, com um tom seco, sem sequer

olhar para mim. Ouvi a porta fechar-se firmemente, conseguia até discernir o ruído dos

sapatos no vão do prédio, enquanto ela esperava pelo elevador.

Desliguei a televisão e encaminhei-me para o meu quarto, semi-enrolada na minha manta

polar, desligando as luzes atrás de mim. Os meus pés levaram-me até à janela, sem eu

perceber porquê. Olhei para a rua, que tinha um movimento escasso, mas conseguia

imaginar a animação que já existia na Maison des États Unis. E percebia as razões de

Shiva. Ela queria divertir-se a todo o custo. Mas as minhas razões eram mais fortes. Tão

fortes quanto surreais.

Agora observava-a enquanto ela atravessava a rua e se dirigia para a Cité Universitaire,

escolhendo aquele caminho que eu sabia ser tão perigoso, principalmente à noite, apesar

de ainda não ser muito tarde. Vi-a desaparecer por entre as árvores que rodeavam o

caminho, observando como aquele pitoresco vestido branco ocasionalmente oscilava à

medida que ela avançava. Só esperava que ela chegasse bem, sã e salva àquela maldita

festa, que ia ter lugar num dos edifícios mais recônditos daquele Campus. Só esperava que

ela não tivesse a pouca sorte de encontrar alguém cujo disfarce não era uma ocasional e

simples fantasia de carnaval, mas sim um semblante permanente.

- Maria, tenho uma ideia! - Exclamou Shiva, ainda no pequeno corredor que

separava os nossos quartos. Conseguia ouvir os seus apressados passos na minha direcção,

esperando a qualquer momento que ela abrisse a porta, de rompante.

Mal entrou no meu quarto, aproximou-se de mim. Eu estava pachorrentamente sentada à

secretária, tentando acabar de ler – mas sem sucesso – um parágrafo cuja leitura já tinha

iniciado três vezes. Hoje sentia-me particularmente desconcentrada, mas não sabia porquê.

Olhei para ela com um semblante de aborrecimento.

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- Não consigo estudar - desabafou ela, olhando-me com uma expressão ligeiramente

frustrada.

- Eu… também não. Não sei porquê… - respondi eu, com um desconhecimento genuíno

na voz.

- Podíamos aproveitar a tarde de outra forma - declarou Shiva, com um tom ligeiramente

provocador. Oh! Não. Se ela me fosse sugerir uma tarde de compras, eu não ia conseguir

suportar as verdadeiras maratonas a que ela me sujeitava quando decidia entrar em todas

as lojas dos mais variados centros comerciais. - E se fizéssemos uma tarde cultural?

A sugestão dela apanhou-me de surpresa.

- Tarde cultural?

- Sim, estava a pensar no Museu do Louvre - afirmou Shiva, com um sorriso triunfante a

iluminar-lhe o rosto.

Ora aí estava uma boa sugestão, que me agradava genuinamente. Ainda não tinha visitado

o Museu do Louvre, apesar da - quase diária - insistência de Adèle, que afirmava ser um

autêntico crime eu estar em Paris há tanto tempo e ainda não ter visitado aquele museu,

que era mundialmente famoso, com colecções de pinturas, esculturas, antiguidades e

objectos de arte europeus.

- Eu estou totalmente de acordo. Vamos já? - Declarei eu, levantando-me de imediato da

cadeira e encerrando o livro de texto à minha frente.

- Vamos - concordou Shiva, enquanto saía disparada na direcção do quarto dela, em busca

do casaco e da mala que, miraculosamente, desapareciam quando ela queria dirigir-se a

algum sítio. Ela era extraordinariamente desarrumada.

Aparentemente Shiva sabia como chegar ao Museu do Louvre utilizando os transportes

públicos, pelo que me limitei a segui-la, sem contestar. Shiva tinha-se informado que o

Museu se localizava na zona oeste de Paris, com acesso directo numa das saídas do metro,

sendo esta a entrada correcta para quem não tinha bilhete, que era o nosso caso. De facto,

a entrada através do Caroussel tinha uma fila de espera curta, pelo que rapidamente nos

pusemos a caminho, atingindo a zona da Pirâmide de vidro, objecto simplesmente

colossal, um verdadeiro projecto modernista de enormes dimensões. Na secção das

Informações recolhemos uma planta do museu e resolvemos aventurar-nos pelas galerias,

já que o bilhete era válido para todo o dia.

Estava plenamente consciente de que ia ser impossível ver tudo numa tarde, num museu

tão grande e vasto, pelo que talvez fosse boa ideia simplesmente passear pelo museu, sem

a pressão de ver, ver, ver desenfreadamente. Um aspecto positivo que me alegrou bastante

foi o facto de as galerias estarem claramente assinaladas, cada sala tinha um número, pelo

80

que seria difícil perdermo-nos. Começámos, assim, por visitar as Esculturas Francesas

desde a Idade Média até ao século XIX, seguidas das Antiguidades Romanas e Etruscas

que se localizavam também no piso térreo, onde encontrámos duas colegas de Shiva que

debatiam com afinco, opinando sobre algo que eu não compreendia em relação a uma

estátua que lá se encontrava. Ainda que eu não percebesse muito de Arte, nem fosse uma

apreciadora exímia, era simplesmente impossível não ficar deslumbrada com a beleza, o

talento e a maravilha que era contemplar todas aquelas peças que estavam ali expostas,

sala após sala. Ao passar para o primeiro andar, no topo do patamar de uma escadaria,

observávamos agora uma antiga figura da proa de um navio cuja pose se assemelhava

mais à de voo, concluindo que era a famosa escultura Vitória de Samotrácia, datada de

190 aC. Deixámo-nos ficar aí durante algum tempo.

Ainda não tinha passado um par de horas e Shiva começava agora a ficar impaciente,

afirmando que estava “farta de esculturas” e queria ir ver as pinturas, pelo que demos

início a uma nova fase da nossa movimentada tarde cultural.

No primeiro andar, podíamos agora apreciar as pinturas italianas do século XVI ao

XVII, onde demorámos mais de uma hora, vagueando pelos imensos corredores cujas

paredes vermelhas e tectos ornamentados nos faziam desejar que o tempo pudesse esticar,

para que pudéssemos ver melhor e admirar com verdadeira justiça, as maravilhosas obras

de arte que ali estavam. Pessoalmente, as pinturas suscitavam-me mais interesse e, pela

movimentação de Shiva, parecia-me que a ela também. Era neste piso que se encontrava o

famoso Retrato de Mona Lisa, de Leonardo DaVinci, constantemente rodeada de centenas

de pessoas, todas ávidas por uma simples fotografia, por um olhar o mais perto possível.

Foi simplesmente impossível aproximarmo-nos mais de dez metros do referido retrato.

Uma vez no segundo andar, dávamos entrada na zona da Escola Francesa de Pintura, do

século XVIII ao XIX e eu já me estava a sentir cansada. Já tinha dificuldade em andar, e

os meus movimentos já se aproximavam mais do arrastar dos pés, pelo que resolvi sentar-

me nuns sedutores bancos acolchoados, de forma redonda, onde cabiam cerca de oito a

dez pessoas. Ao avistar um assento vago, sentei-me imediatamente, descansando as pernas

e recolocando a planta do museu no local exacto onde me encontrava, projectando a

restante visita. Estava um calor enorme lá dentro e sentia-me quase a sufocar dentro da

espessa roupa de Inverno que trazia.

Olhei à minha volta, tentando aproveitar os momentos em que estava sentava para

observar algumas das pinturas que se localizavam perto de mim. O meu alcance visual

conseguia captar quatro telas, mas só uma delas me prendeu quase totalmente a atenção,

pelo conteúdo que exibia. Era a que se encontrava mais perto de mim e do sítio onde eu

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estava sentada e que ocupava um local mais central. A razão pela qual me prendia a

atenção consistia no facto de um dos elementos que estavam aí retratados se assemelhar

estranhamente a alguém que eu conhecia e que já tinha visto várias vezes.

A tela tinha um tamanho considerável e um fundo escuro que contribuía para destacar –

ainda mais – os elementos que a constituíam. Consistia em duas pessoas, uma delas

certamente um elemento da realeza, pela ostentação das suas vestes, pelo aspecto

soberano que todo ele exibia, de uma forma luxuosa, desde o chapéu que lhe ornamentava

a cabeça, até aos sapatos reluzentes que calçava. Certamente seria um dos reis de França,

embora eu não soubesse concretamente qual era. Tinha bigode e barba clara e apertava a

mão de outro indivíduo que, apesar de parecer humano, eu sabia que não o era. Quem

olhasse inocentemente para aquela pintura pensaria quase de certeza que aquele indivíduo

seria um doente em estado terminal, devido ao aspecto que emanava. Um dos grandes

talentos destes pintores era, sem dúvida, a forma fiel como reproduziam o que pintavam,

fossem pessoas, fossem paisagens. Aquele indivíduo que apertava a mão do rei

apresentava uma silhueta elegante, com roupas mais modestas, em tons de preto e

vermelho, cor que forrava discretamente todas as peças de roupa que vestia, salientando-

se a camisa branca que estava cuidadosamente apertada junto ao pescoço, onde também

exibia um sofisticado lenço de cor negra que fazia sobressair todas as suas características

físicas. A sua palidez era marcante, o olhar emanava um poder que se mantinha, um brilho

intenso que se destacava, mesmo através da pintura, e a sua postura era tão semelhante ao

que eu já havia visto que me desconcertava.

Era um autêntico déja-vu. Aquele homem que ali estava retratado junto do rei não era

novo, nem velho, a sua verdadeira idade não se conseguia discernir, o longo cabelo que

possuía era negro e os olhos claros como a mais límpida água glacial. Fosse aquele

homem o que fosse, não era humano. Fosse aquele homem o que fosse, era o mesmo que

David, o mesmo que Nevio e os outros. Algo mais que humanos.

Levantei-me de rompante, chocada com a minha conclusão, que me levava à óbvia

pergunta - O que eram eles, afinal?

Aproximei-me da pintura, confirmando vezes sem conta o que havia concluído. Aquele

indivíduo com ar sereno e calmo, mais parecia um parente distante de David ou de Nevio,

não pelas semelhança das feições, mas pela afinidade física que os classificava dentro de

algo que era afim, que os fazia pertencer à mesma… espécie?! Como era isso possível?

Não podia ser! Não poderia existir uma outra espécie, semelhante à nossa, mantida em

segredo, no desconhecido!

82

A minha indignação e choque elevavam-se a níveis que me toldavam a visão, que me

ocupavam os sentidos, que me faziam sentir sozinha naquele museu, a olhar aquela

pintura, rodeada de um ensurdecedor silêncio, enquanto a criatura daquela pintura me

segredava os mais inóspitos mistérios que guardava.

Subitamente, o meu momento de concentração foi invadido por uma enorme massa

de pessoas que se aproximavam, agora, na direcção onde eu estava, na direcção daquela

perturbante pintura. Era um conjunto de cerca de trinta pessoas, todos eles orientais,

presumivelmente japoneses, pelas formas faciais e oculares características. Com eles, as

mais variadas categorias de máquinas fotográficas que certamente seriam de topo, pelo

aspecto aerodinâmico que apresentavam, enquanto segredavam de forma rápida naquele

incompreensível idioma. Uma mulher com aspecto ocidental ocupava agora um lugar ao

lado da pintura que continuava a captar a minha atenção, pelo que deduzi que seria a guia

do grupo que ali estava. Eu encontrava-me ligeiramente perto da pintura e, devido à

dormência que se tinha apoderado de mim nos minutos prévios, não me mexi de onde

estava. Mais parecia um elemento da decoração do museu. Verdadeiramente, uma estátua.

Subitamente, a guia falou, num tom de voz firme e cativante e num idioma que eu

compreendia perfeitamente.

Inglês.

- Por favor, a vossa atenção - pediu ela, enquanto levantava os braços, na direcção do

animado mas atento grupo de pessoas à sua frente, dispostos estrategicamente em redor do

quadro, envolvendo-me com eles.

- Aqui está a grande atracção para os mais supersticiosos, Le Traité avec les Immortels.

A expectativa daquele enorme grupo revelava-se agora, sob a forma de um discreto

burburinho, acompanhado por rostos repletos de medo e terror, enquanto a guia se

preparava para continuar.

- Nesta pintura temos o Rei Henri IV, o primeiro da dinastia Bourbon, em cujo reinado

pôs fim às guerras religiosas, revelando-se um verdadeiro apologista do diálogo.

Curiosamente foi o único rei que morreu no interior do Louvre, apunhalado nas ruas por

um assassino e arrastado para o interior do museu, para morrer. Dizia-se que o rei Henri

IV havia estabelecido um pacto secreto com “aqueles que caçavam homens”, para pôr fim

ao medo que reinava durante as trevas obrigatórias da noite, onde ocorriam eventos

verdadeiramente barbáricos que eram escondidos do conhecimento da realeza e, muitas

vezes, atribuídos a ataques de animais selvagens.

Aparentemente, alguns desses indivíduos (caçadores de homens) pertenciam à nobreza da

época, que contava com o apoio do rei, apesar de serem constantemente acusados como os

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responsáveis pelos barbáricos eventos. Foi uma época de grande discórdia e tumulto, pois

o medo havia-se apoderado de todos. Relatos de testemunhas afirmavam ver a forma

animalesca como aqueles colhiam a vida dos inocentes, sempre depois do pôr-do-sol,

aguardando na esquina mais escondida, no beco mais escuro e recôndito, pelas suas

vítimas. Chamavam-lhes as Criaturas da Noite ou, como o folclore as descreve, Vampyre,

Aqueles que bebem sangue...

Ouviam-se agora, em meu redor, os sussurros de espanto que aquela última

revelação tinha causado. Após uma pausa mínima, a guia continuou.

- Dizia-se que estas criaturas eram imunes a toda e qualquer doença, não envelheciam,

tinham poderes ocultos que alguns descreviam como mágicos e que a nada eram

susceptíveis, excepto à luz solar. Havia quem afirmasse que os havia visto trepar até aos

pontos mais altos dos edifícios, onde nenhum homem, por mais forte que fosse, conseguia

chegar e que, nas florestas, se transformavam em animais selvagens, mas sem nunca

perder a forma humana, exibindo garras, caninos afiados e olhos cintilantes, cativando as

suas vítimas com os seus poderes.

Para terminar com as constantes histórias e relatos fascinantes, Henri IV convocou uma

reunião com o representante das criaturas que, respeitosamente, deixou desconhecido o

nome pelo qual era conhecido na altura. Ficou então acordado que as actividades dos

Imortais seriam controladas, sujeitas a uma maior discrição, de forma a ser possível a

coexistência.

Hoje em dia, há quem afirme que os tratados eram renovados a cada reinado e que era

sempre o mesmo imortal a presenciar o acordo, apesar de não existir nenhuma prova

concreta de que, de facto, existiram tratados desta natureza. Esta pintura, datada do início

do século XVII, foi encontrada por mero acaso, encerrada num forte estojo de aço,

mergulhada nas fundações de um velho mosteiro que já não existe, situado nos arredores

de Paris, e julga-se ter sido pintada por um jovem artista, desconhecido, que se recolheu

àquele mosteiro para, alguns anos mais tarde, desaparecer sem deixar rasto.

A verdade é que a segunda metade do reinado de Henri IV se revelou bem mais pacífica, o

que corrobora com esta teoria fantástica. Contudo, grande parte dos críticos históricos e

artísticos da actualidade não crê na existência de tais criaturas e atribuem o sucesso do

reinado de Henri IV à simples melhoria na gestão política e social do reino. E, quanto ao

“senhor” da pintura, afirmam que se tratava de alguém muito provavelmente doente, que

era muito próximo do Rei e que este, piedoso, contratara um jovem artista não célebre

para levar a cabo esta pintura como último desejo de um moribundo.

84

Voltava-se agora a ouvir o tão característico burburinho que emanava do

abundante grupo em redor da pintura.

- São lendas, meus senhores, pura história ficcional! Sejamos realistas e não alimentemos

teorias imaginárias! – Exclamou a guia, ostentando um sorriso nos lábios, enquanto

tentava captar a atenção do grupo que, agora, parecia totalmente envolto nas histórias que

ela havia descrito.

- Vamos continuar a nossa visita - afirmou ela, com um tom firme, enquanto aquele

volumoso conjunto de pessoas se dirigia exageradamente coeso, atrás dela, seguindo-a

com determinação, enquanto eu observava como desapareciam na imensidão de um

corredor que eu ainda não conhecia.

Voltei a olhar a pintura e a pequena placa por baixo, onde referia o Nome - Le Traité avec

les Immortels (O Tratado com os Imortais) -, e o Artista – Inconnu (Desconhecido).

Estava imóvel, incapaz de proferir qualquer palavra. Estas eram as respostas que eu

procurava e que, agora, eram tão óbvias. De repente, todos os factos eram extremamente

lógicos e encaixavam na perfeição, sem forçar nenhuma das peças. Os acontecimentos

deslizavam na minha mente, como uma curta-metragem, uma recordação muito vívida,

algo muito real. E assim era, um mundo paralelo ao meu, imperceptível, que existia

debaixo dos nossos narizes, passando completamente despercebido.

Bem, não completamente.

- Maria, o que estás a fazer aí? - Shiva parecia ter aparecido do nada, surgindo atrás de

mim, curiosa com o meu propósito.

- Estava a ouvir… - comecei eu, sem saber como terminar a frase que tinha iniciado.

- E então?

- É…interessante - rematei eu, sem desviar o olhar da tela que me havia conferido mais

respostas do que qualquer livro de texto existente à face da Terra. Senti o olhar chocado

de Shiva na minha direcção, surpresa com a minha asseveração.

- Interessante?? - Shiva semicerrava os olhos na direcção da tela, como se a imagem da

pintura ofendesse o seu olhar, pela simplicidade que dela emanava. - Maria, são duas

pessoas num aperto de mão. Como é que isso pode ser minimamente interessante? - O tom

de voz dela era de um espanto que tocava a indignação.

- Sim, realmente… mas está muito bom, sem dúvida. A nível técnico… - balbuciei.

Não tinha a mínima noção do que tinha acabado de dizer, nem do quão deslocada era a

minha ridícula justificação. Constatava agora como era aborrecido o olhar de Shiva,

enquanto observava a pintura sem o mínimo de interesse. O que até seria normal, para ela.

Mas para mim, era a revelação do século.

85

- Vamos continuar… ainda há imenso por ver neste corredor. Olha! Ali estão elas! -

afirmava Shiva, acenando na direcção das colegas, enquanto me agarrava o braço,

puxando-me suavemente, como se quisesse certificar-se que me levava com ela.

- Está bem – concordei eu, olhando mais uma vez de soslaio para aquela pintura.

Era inevitável. Não conseguia concentrar-me para apreciar minimamente nenhum dos

quadros que vimos naquele corredor, nem nos outros que se seguiram. Já nem me

importava o que ainda não tinha visto e o que queria ver. Só sentia um nervoso miudinho,

da cabeça aos pés que me afectava os movimentos, do mais complexo ao mais básico. A

minha vontade, naquele momento, consistia somente em retirar todos os pormenores que

pudessem existir naquela pintura extraordinária e gravá-los para sempre na minha mente,

para que eu pudesse confirmar, vezes sem conta, que o que estava a constatar era real, e

não um sonho muito vívido, como tantas vezes pensara.

Contudo, o que mais queria, o que mais desejava agora era voltar a ver David, para lhe

poder dizer que agora compreendia os intricados caminhos do seu mundo. Poderia ele

partilhar comigo a extensão, o funcionamento da sua realidade que parecia, sem dúvida,

reger-se por normas tão diferentes das nossas? Só de pensar no assunto sentia a minha

respiração e o meu ritmo cardíaco afectados. A minha curiosidade estava, sem dúvida, a

sobrepor-se ao meu sentido de auto-preservação.

Mas quando? Eu não tinha forma de saber onde ele estava, nem forma de o contactar.

Restava-me esperar que ele me fizesse uma das suas misteriosas visitas. Mas agora… era

eu que estava em vantagem, as suas enigmáticas afirmações já não guardavam segredos

incompreensíveis e a sua insistente relutância em esconder os factos já não tinha razão de

ser. Pensar nestes termos fazia-me sorrir levemente, enquanto caminhávamos por

corredores que eu já não conseguia identificar de que categoria artística eram. Nem me

importava, sequer. Percebia que ainda continuávamos na secção dos quadros, somente

pela cor e disposição das pinturas nas paredes em meu redor.

Foi necessário um esforço quase sobre-humano para conseguir trocar simples

monossílabos com Shiva e com as suas colegas, enquanto percorríamos as restantes áreas

do Museu. Desejava chegar a casa o mais depressa possível, só de pensar na probabilidade

de poder, ainda hoje, ser visitada, por ele. Olhei discretamente para o relógio. Eram cinco

horas da tarde. Definitivamente, estava na hora de voltar para casa e aguardar.

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CAPÍTULO 7 – ISOFORMA

TINHA OS OLHOS EXAGERADAMENTE ABERTOS, FITANDO A RUA.

Estava praticamente colada ao vidro da janela do meu quarto, aguardando a

aparição daquela estátua com movimentos erráticos, que eu tão bem conhecia. Suspirei

com desalento, enquanto mantinha a testa encostada ao vidro da janela e os olhos fixos

naquela rua onde tinha decorrido o nosso obscuro diálogo, da última vez.

Já eram dez da noite…e começava a sentir-me uma completa idiota. Eu estava,

literalmente, a fazer uma espera a uma criatura que sabia que poderia tornar-se

imprevisível, para o informar que afinal já sabia do que se tratava e que estava ciente dos

seus hábitos nutricionais. Fechei os olhos e acenei a cabeça negativamente: eu só podia

estar louca.

Sem pensar duas vezes, saí da minha fixa posição em frente à janela e dirigi-me à cozinha,

para encontrar uma Shiva bastante alegre, imersa nos seus delírios culinários.

Não estava com muita imaginação para cozinhar fosse o que fosse, pelo que me dirigi,

sem mais demoras, ao frigorífico, mais concretamente à prateleira do congelador,

procurando algo que fosse rápido e saciante. Estive imersa naquele aglomerado de

embalagens que não conseguia distinguir à primeira vista, enquanto a brisa gelada do

congelador, que permaneceu aberto durante pelo menos dois minutos, se estendia já no

sentido de Shiva. Resolvi preparar Bacalhau à Brás, enquanto retirava, agora, os ovos do

frigorífico.

Ao encerrar ambas as portas do frigorífico e do congelador, olhei despreocupadamente

pela janela da cozinha. Com uma subida de adrenalina absolutamente incontrolável,

constatei que, lá fora, estava alguém que mais parecia um elemento extra da decoração da

avenida, absolutamente imóvel. Só podia ser ele.

Senti um nervoso miudinho apoderar-se de mim instantaneamente. Era agora, ou nunca.

Com toda a calma possível que consegui reunir, coloquei a embalagem congelada e os

ovos em cima da bancada e olhei despreocupadamente para Shiva.

- Já volto - comuniquei eu, secamente, evitando o seu olhar.

Como reacção, a face dela mostrou-se espantada mas provavelmente percebeu do que se

tratava, porque não me perguntou sequer onde ia, nem fazer o quê, como era costume

dela. Fui rapidamente ao quarto buscar o casaco, o telemóvel, as chaves de casa, e

encaminhei-me para a porta de casa, saindo silenciosamente.

Sem paciência para ir de elevador, voei praticamente pelas escadas abaixo, sem hesitar um

único momento, contrariamente ao que tinha ocorrido da última vez. Alcancei a porta da

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entrada do prédio, que abri firmemente, e olhei procurando aqueles olhos verdes que eu

tão bem distinguia. Não foi preciso muito para encontrá-los a fitar-me fixamente, com

aquele brilho ameaçador tão característico, ao qual eu já estava acostumada.

Características inerentes da espécie, pensei eu, relembrando as palavras da guia,

enquanto caminhava na sua direcção.

- Olá - afirmei eu, sorrindo levemente ao alcançá-lo, sem nunca deixar o seu olhar. -

Tenho estado à tua espera.

O seu semblante alterou-se de forma quase instantânea e consegui encontrar na sua face e

no olhar um espanto profundo, assim como apreensão, enquanto levantava ligeiramente o

sobrolho, muito provavelmente como reflexo dos seus sentimentos.

- Tens? - Ouvi-o perguntar, quase como um sussurro, enquanto ele fitava, agora, um ponto

perdido no espaço à sua frente.

- Sim - esclareci eu, com um leve sorriso nos lábios.

Agora, eu tinha que ser extremamente exacta no que pretendia dizer. A sua expressão

mantinha-se inalterável, contemplando o vazio.

- Eu sei - afirmei eu, com um regozijo incontrolável na voz.

- Sabes o quê? - Respondeu, quase de imediato.

- Sei… o que te move, porque é que tens que fazer…o que fazes.

Apesar da hesitação, a escolha das palavras que pretendia utilizar estava a fluir de uma

forma quase ideal.

- Importas-te de ser mais específica?

O tom dele continuava a ser seco, sinal de que ele estava visivelmente desinteressado do

nosso murcho diálogo. Pois bem: estava na hora de lhe mostrar o que tinha concluído após

algumas horas de introspecção depois da visita à secção das pinturas do Museu do Louvre.

- Precisas do sangue para viver, obrigatoriamente, tal como o oxigénio o é para nós,

humanos.

Estava, definitivamente, a sair-me melhor que da última vez e, por isso, continuei.

- Tens os sentidos apurados… e os dentes, bem, servem as tuas necessidades nutricionais.

Serem retrácteis é, claramente, uma vantagem para te poderes… misturar sem dar muito

nas vistas.

Respirei fundo, enquanto fazia uma pausa e dirigia o meu discurso na direcção dele, que

parecia continuar – aparentemente – desinteressado.

- O modo como te moves, a rapidez… tens uma clara intolerância à luz solar, o que

explica a cor da pele e… os hábitos nocturnos.

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- Pareces muito bem informada – retorquiu ele, com uma expressão ligeiramente

frustrada, o que me confundiu ligeiramente. Pensava eu que ele ficaria mais expectante

por eu ter descoberto o que ele era.

- Ah, e… tens certas capacidades… hum, especiais. - Terminei eu, com um tom místico na

voz, sem especificar que capacidades eram aquelas. Não porque não quisesse, mas porque,

na realidade, não estava completamente ciente de que capacidades eram.

Foi com espanto que o ouvi rir-se suavemente, sem nunca olhar para mim directamente.

Esperava sinceramente que não fosse um riso sarcástico.

- E então, qual é o diagnóstico? - Continuou ele, sorrindo, o que dificultava a minha

concentração. Era extraordinário como ele parecia quase outra pessoa quando sorria ou

quando não colocava aquela máscara sinistra que parecia acompanhá-lo quase sempre.

- Bem… - comecei eu, sem saber muito bem o que haveria de dizer. - …não tens nenhuma

doença, por isso não posso diagnosticar nada em concreto - concluí eu, relembrando a

parte do discurso da guia em que referia que eles eram imunes a toda e qualquer doença.

- Mas tens um nome? - Perguntou ele, dando um tom declaratório à questão e olhando

agora para mim com uns olhos que revelavam um mar de tristeza e desilusão. E, mais uma

vez, eu não compreendia porquê. Confrontei-me com uma sincera dificuldade em pensar

em algo que fosse capaz de verbalizar.

- Eh… não tenho a certeza…

- Não tens a certeza, ou não queres dizer?

O olhar dele fitava-me agora de uma forma tão intensa que eu pensava que não ia ser

capaz de responder à pergunta. E, definitivamente, eu era muito transparente.

- Não me agrada o nome pelo qual vocês são conhecidos… - confessei eu, sentindo uma

ligeira vergonha por estar a admitir que não gostava de pronunciar um nome que me fazia

surgir na mente criaturas bípedes semelhantes a morcegos, vestidas a rigor, de cartola e

luvas e que atacavam senhoras inocentes com penteados renascentistas e volumosos

vestidos exageradamente decotados.

- Porquê?

O tom de voz que ele empregava parecia sincero, assim como o seu excepcional olhar.

- Não sei… É…- balbuciei eu, evitando o seu olhar. Estava a ter francas dificuldades em

explicar-lhe o porquê da minha relutância em chamar-lhe vampiro.

- Assustador?

Acenei, em sinal de confirmação. Sim, de facto, era mesmo isso. Aquela palavra

assustava-me porque a associava a conceitos lendários puramente animalescos.

89

- Vais ter que dizê-lo, mais cedo ou mais tarde - afirmou ele, desviando o olhar e fixando-

se novamente num ponto imaginário algures no solo. - É o que eu sou.

Ouvi-lo confirmar algo era, seguramente, diferente de suspeitar. Ainda que eu não fosse

capaz de o considerar um vampiro, independentemente do significado da palavra.

- Prefiro pensar que és… uma isoforma - declarei eu, olhando na direcção dele, esperando

que a minha asseveração lhe chamasse a atenção. E não me enganei.

- Uma isoforma?! - Repetiu ele, elevando as sobrancelhas e olhando novamente na minha

direcção, como se eu tivesse proferido um disparate monumental.

- Sim, por fora és como um ser humano mas, por dentro… és algo diferente - expliquei eu,

sentindo-me, de alguma forma, triunfante por conseguir encontrar uma alternativa à

terrorífica palavra vampiro. Seguiu-se um pesado silêncio que, finalmente, foi quebrado

pelas suas palavras.

- Bem, tenho que admitir que é… original, - declarou ele, com um sorriso genuíno

embebido no rosto. E eu também tinha que admitir que vê-lo a sorrir era uma imagem à

qual eu me rendia sem pensar duas vezes. - Pelo menos, não te surgiu a típica expressão

“Criatura do Inferno.”

- Passou-me pela cabeça… - sorri eu, esperando que ele nunca deixasse de sorrir, para que

eu continuasse a poder vê-lo, assim. Era tão diferente e tão… cativante, ao mesmo tempo.

Seria possível?

Não pude deixar de sentir compaixão por ele ao imaginar a quantidade de vezes que ele

teria ouvido a ofensa “Criatura do Inferno” sem, efectivamente, o ser… pelo menos, na

minha perspectiva.

- E posso perguntar-te como é que chegaste a essa conclusão? - Perguntou ele, na minha

direcção.

- Apenas… olhei à minha volta. Hoje à tarde estive no Museu do Louvre e vi uma peça de

arte muito esclarecedora.

O modo evasivo como o informava não lhe dificultava minimamente o raciocínio,

pois nem foram necessários dois segundos para que ele me respondesse com a maior

segurança que alguma vez já tinha ouvido.

- Le Traité avec les Immortels - afirmou ele, com um sotaque absolutamente divino.

- Exactamente. Confesso que tive uma pequena ajuda para completar o raciocínio, mas o

que interessa é a conclusão final - afirmei eu, sem rodeios, relembrando os momentos em

que ouvia as incríveis e reveladoras palavras da guia.

- Então… e o que pensas disso?

90

Era uma pergunta difícil de responder, não por eu não saber a resposta, que consistia numa

manifesta aceitação dos factos, mas porque desejava transmitir-lhe, com toda a segurança,

que acreditava no que estava a dizer e que as minhas palavras não eram simplesmente uma

forma de ir ao encontro da opinião dele.

- Penso que… é perfeitamente possível coexistirmos. Quero dizer, tal como tantas

espécies no planeta que...

- Sabes? Às vezes… não é assim tão simples - interrompeu-me ele, desviando o seu olhar

do meu, como se eu tivesse dito algo muito grave. Contudo, ele nem sequer me tinha

deixado terminar o que eu queria dizer!

- Porque é que dizes isso? - Perguntei eu, sem perceber genuinamente porque é que ele

dizia que “não era assim tão simples”. Seria assim tão óbvio que eu não estivesse a ver o

que era?

- Não interessa - disparou ele, enquanto começava a afastar-se de mim. Eu tinha que o

parar, pelo menos para lhe perguntar se o iria voltar a ver.

- Espera, eu...

- Evita apareceres à noite.

Novamente era eu interrompida pela sua famosa frase de aviso, que já só faltava surgir

como um letreiro intermitente, com luzes amarelo fluorescente, de cada vez que o via.

Sinceramente, ele, às vezes, conseguia ser muito irritante.

- Mas…

- Ouve bem o que eu te digo. Evita, mesmo, apareceres durante a noite.

O semblante dele era tão sério que parecia estar a proferir uma ordem, mais do que um

eventual conselho, cujas palavras proferia com uma lentidão desnecessária, enfatizando

excessivamente na palavra mesmo. Na face dele só conseguia discernir… severidade.

Tinha a ligeira sensação de que ele não me estava a revelar, completamente, os contornos

de tais exigências. Porque é que ele era tão incisivo em relação à questão de eu aparecer à

noite? Afinal, qual era o problema?

Ainda pensei em perguntar-lhe, mas a sisudez que embebia as suas feições bloqueava-me

toda e qualquer hipótese.

- Espera… vou voltar a ver-te? - Voltei a insistir, esperando que a minha voz não

revelasse um tom desesperadamente óbvio, enquanto ele já estava a começar a virar-se

para se ir embora.

- Para teu bem…espero que não - afirmou ele, por cima do ombro, na minha direcção, sem

um olhar, sem um aceno. Nada.

91

Observei, desalentada, como se afastava com os seus passos firmes, a sua postura

inflexível e as mãos nos bolsos, perfurando a brisa que ia de encontro a ele e que lhe

alvoroçava o cabelo, eriçando algumas melenas.

Definitivamente, dialogar com ele era muito difícil, pois nem sequer me dava hipótese de

lhe perguntar o que queria, de expor as minhas dúvidas restantes. Expirei ruidosamente,

mais uma vez, sem perceber as suas reacções.

E o que é que ele quis dizer com “para meu bem, espera que não o volte a ver”?

A minha mente era um verdadeiro turbilhão, enquanto atravessava a rua e me

encaminhava novamente para o meu prédio. Parecia impossível que, neste preciso

momento, não conseguisse concluir nada do conteúdo da nossa conversa, excepto pelo

facto que sorriu algumas vezes, o que até não estava nada mal, considerando o terrível

humor com que se encontrava sempre.

Voltei para casa visivelmente decepcionada. Pelo olhar que Shiva me lançou, percebi que

ela tinha reparado que o meu semblante era, agora, bem mais pesado que aquele com que

tinha partido, mas não proferiu uma palavra sobre o assunto. Sinceramente, era melhor

assim. Escusava de lhe mentir, coisa que detestava fazer, fosse em que circunstância fosse.

O cheiro que pairava vindo da cozinha relembrou-me que ainda não tinha jantado.

Apressei-me a fazer o jantar, desejando poder estar sozinha na calma e silêncio do meu

quarto para pensar calmamente no que se tinha passado neste dia. Jantei praticamente de

pé na cozinha, junto ao balcão, completamente absorta. Francamente, humano ou não, eu

não podia deixar que ele tivesse este efeito em mim! Ainda que fosse provável que ele

pudesse exercer determinados efeitos em mim que eu não compreendia, dadas a suas…

capacidades!! Sim, ainda estava recente na minha memória a minha estranha perda de

sentidos naquela terrível noite na Cité Universitaire. Logo eu, que não era nada

susceptível a perder os sentidos assim, sem mais nem menos... Aquele desmesurado peso

nas minhas pálpebras e aquele sono desmedido era, no mínimo, suspeito. Sim, muito

provavelmente, teria sido um efeito produzido por ele.

Sem mais demoras, arrumei o que estava por arrumar na cozinha e rumei ao meu

quarto, verificando que Shiva já estava encerrada no quarto dela e, quase de certeza,

aborrecida por se verificar esta situação uma vez mais e por eu insistir em não a incluir

nos acontecimentos da minha vida. Se ela tivesse a mínima ideia da confusão onde eu a

meteria, daria graças ao Deus dela pela minha insistência.

Das imensas características de Shiva, uma delas era a sua enorme capacidade de esquecer

rapidamente estes pequenos episódios, pelo que optei por acatar o conselho que ela me

92

dera uma vez, ainda que face a circunstâncias completamente diferentes: não dramatizar e

deixar a noite passar por este assunto.

Já dentro do meu quarto, estava completamente imersa no pensamento, enquanto olhava

novamente pela janela, para o local onde, há pouco, tinha estado a conversar com David.

Definitivamente, eu não o compreendia, mesmo depois de todas estas revelações. Agora

que entendia tudo e compreendia as características inerentes à espécie dele, ele continuava

a ser um mistério. Que escondia ele por detrás daquele semblante, por detrás daquele

estranho olhar? Não sabia se seria melhor saber…ou não. E a julgar pelas suas últimas

palavras, parecia que não.

Talvez o mundo dele não fosse o que eu idealizava… daí a sua renitência em falar sobre

esse assunto, o que me fez sentir invadida por uma estranha impressão de que não o ia

voltar a ver, muito provavelmente devido à firmeza das suas palavras.

Tudo isto parecia uma piada de mau gosto… para quê dar-se ao trabalho de me salvar,

conversar comigo duas míseras vezes, assegurar-se que eu estava ciente do que ele era e

depois…desaparecer?

Acenei a cabeça, enquanto vestia o pijama e me encostava desajeitadamente em cima da

cama, numa posição no mínimo estranha, olhando para o tecto, mas não fixando nada em

concreto.

Era um estranho mundo, o de David, com estranhos comportamentos e princípios ainda

mais bizarros, difíceis de compreender…difíceis de aceitar, para um humano. Gostava de

poder saber mais, de poder partilhar o conhecimento desse mundo…mas não podia. Eu

sentia-o. Restar-me-ia saber da sua existência e acomodar-me a essa realidade? Saber que

tais estranhos seres coexistem connosco e não poder dizer nada? Saber que David é um

deles e deixar que o seu mundo me seja vedado? Porquê, se agora já sei da sua existência?

Talvez, com as suas últimas metafóricas palavras, ele me estivesse a aconselhar a esquecer

que tudo isto se passou, e voltar, de uma vez por todas, à minha vida rotineira; Livros e

estudar.

Após alguns segundos constatei que talvez não fosse assim tão simples.

Não sei se sou capaz.

E foi com este melancólico pensamento que mergulhei no conforto do meu imenso

edredão, na esperança de encontrar uma fonte quase inesgotável de vontade e esperança

que me desse forças para, uma vez por todas, esquecer este assunto.

Por fim, senti o sono vencer-me, lutando constantemente com as imagens e pensamentos

que insistiam em manter-se vivos, enviando-me para um sono estranhamente repousante.

93

Março estava aí e, com ele, uma enorme expectativa relativamente à chegada de

calor.

Mas qual calor?

Estava mais frio em Paris que num Inverno exageradamente rigoroso em Faro, pelo que

aquela era uma emoção que eu tinha dificuldade em compreender.

As aulas passavam calmamente, sem grandes acontecimentos relevantes, enquanto eu

frequentava assiduamente a componente prática e estudava, agora, com mais

concentração, a componente teórica das diferentes disciplinas que frequentava neste

semestre. Felizmente já conseguia concentrar-me forma mais eficaz, pois já não tinha

aquele factor estranho a perturbar-me. Literalmente, alienígena.

Era inevitável lembrar-me dele. E da sua condição. Não se esquece com facilidade o

momento em que se descobre que, afinal, existe outra espécie racional para além da

humana. Aliás, nem é algo que se possa esquecer assim, de ânimo leve. O truque consistia

em manter-me ocupada, não aliviar demasiado a mente, nem ter demasiados tempos

livres, para evitar que aquelas imagens voltassem a povoar a minha mente como um

maldito bug informático.

Shiva andava muito alegre ultimamente e eu já estava a adivinhar porquê. Era Março, a

Primavera aproximava-se e, a julgar pela tendência geral que os estudantes universitários

têm de organizar eventos para comemorar todo e qualquer acontecimento – por mais

insignificante que seja -, certamente esperar-nos-iam umas sólidas dezenas de

comemorações alusivas à estação do ano que estava prestes a chegar, por toda a Cidade

Universitária.

E não me enganava. Shiva informava-me que, exactamente no dia em que a Primavera ia

fazer a sua silenciosa aparição no mundo europeu, ou seja, na madrugada do dia vinte para

dia vinte e um de Março, ela já havia organizado um pequeno convívio para todos os

alunos de intercâmbio, onde eu me integrava – obrigatoriamente. Desta vez, Shiva havia

dito que a minha ausência num evento organizado por ela era completamente

injustificável.

Ora, não que eu não me importasse de ir com ela e com todos os outros celebrar a chegada

da Primavera. O problema eram as palavras de um certo… vampiro, que me alertava

constantemente para eu evitar sair à noite. Aliás, evitar mostrar-me, relembrava eu, numa

tentativa de ser mais precisa. Como se alguém fosse notar que eu ali estivesse, fosse onde

fosse.

94

Expirei ruidosamente, acenando negativamente a cabeça. Isto era extremamente injusto.

Como é que eu deixava que ele mandasse em mim, na minha vontade? E, ainda por cima,

sem ele me dar uma justificação concreta. Só exigências e nada de cedências.

Estava francamente farta de me comportar como alguém que obedece cegamente às

exigências de um… um… vampiro. Ainda tinha dificuldade em verbalizar aquela palavra,

mesmo que fosse mentalmente. Era muito agressiva e … irreal. Pois.

Não haveria de fazer mal se eu saísse uma simples noite. E ninguém haveria de me ver.

Pois então, com tantas pessoas em Paris – só Paris e subúrbios englobavam tantos

habitantes como Portugal inteiro – logo eu ia ser a estrela da noite, a expor-me? Sem

dúvida, isso seria altamente improvável.

O dia do famoso convívio chegara. Era um sábado e estava um frio que eu

classificava de glaciar, tão desadequado para receber a tão aclamada chegada da

Primavera. Shiva estava no seu quarto a preparar-se para o grande evento, como se fosse

desfilar num concurso de beleza.

Eu, por outro lado, não estava com muita disposição para sair de casa. Apesar de tentar

não pensar muito nos constantes avisos de David e estar completamente ciente que estava

a desobedecer claramente a um pedido que ele me tinha feito – várias vezes – não podia

evitar sentir-me ligeiramente culpada. E, definitivamente, a culpa era dele, da constante

insistência que tinha em não me explicar o porquê das coisas. Se, de facto, existisse algum

problema em eu aparecer à noite, então porque é que ele não me dizia qual era? Porquê a

renitência dele em explicar-me o que se passava, o que estava por trás de tão misteriosas

palavras, agora que eu já sabia de tudo? A única resposta óbvia que eu encontrava era que

não havia razão suficientemente forte que pudesse explicar a atitude dele. Não tinha lógica

nenhuma eu ficar em casa e privar-me de sair – à noite - com os meus amigos somente

para atender um capricho de um… vampiro teimoso e… que não me dava respostas. Era

só o que faltava.

Ia sair, sim. Ou, como ele afirmava, ia mostrar-me, sim. Porque eu queria. E ele não era

meu dono para me exigir fosse o que fosse.

Saí firmemente do meu quarto para encontrar Shiva, já preparada, no corredor que

separava os nossos quartos.

- Vamos? - sorriu ela, com uma expressão de felicidade estampada na face.

Sorri, acenando como resposta. Talvez a noite se revelasse mais divertida do que eu

esperava.

95

O convívio tinha lugar no Hard Rock Café em Paris, que se localizava na Boulevard

Montmartre. Shiva havia comunicado a hora e o local do evento a todos os colegas, mas

só Thomas e Vera haviam respondido, confirmando a sua presença pouco depois das onze

e meia da noite.

Eram vinte e três horas e vinte minutos quando eu e Shiva chegámos ao local, abrandando

o passo à porta do famoso Hard Rock Café, que emanava animação do seu interior.

- Talvez seja melhor esperarmos por eles aqui, à porta, não achas? - sugeriu Shiva,

olhando-me com indecisão.

- Sim, esperamos por eles aqui. Não temos pressa - afirmei eu, enquanto sorria, na

direcção de Shiva, que esboçou um ligeiro sorriso como resposta.

E, de facto, não tínhamos pressa. A noite estava fria, como seria de esperar, mas

havia uma grande quantidade de pessoas na rua, àquela hora. Muitas delas arriscavam já

finas fibras de algodão como se, dessa forma, o calor da primavera fosse chegar mais

depressa. Eu estava francamente agasalhada. Aliás, eu era mais uma personificação do

Inverno que da Primavera, como era suposto ser esta noite. A certa altura, passou por nós

uma concentração de pessoas que, quase seguramente, eram estudantes estrangeiros,

saídos de um autocarro de turismo que havia estacionado alguns metros atrás. Aquela

pequena multidão de cinquenta pessoas entrava agora no Hard Rock Café, absolutamente

ávidos para comprar lembranças na modesta zona de vestuário que rapidamente se

eclipsava frente a tantos pedidos. Não pude evitar sorrir frente ao que observava, enquanto

Shiva enviava, agora, uma mensagem de texto a Thomas, perguntando-lhe onde estavam e

se demoravam muito.

Subitamente fui invadida por uma forte sensação de agonia, que se revelava incomodativa.

Sentia algo estranho, que não conseguia descrever, mas a sensação que tinha parecia-me

ser que… estava a ser observada. Por alguém.

Senti um arrepio na espinha, enquanto procurava a fonte do olhar que me observava

daquela forma sobrenatural e que eu conseguia sentir, à distância.

Isto não é normal.

Não foi preciso muito esforço para encontrar um par de olhos escuros que se encontravam

do lado oposto da rua onde nos encontrávamos. Era Nevio. Podia afirmá-lo mesmo antes

de confirmar que aqueles olhos eram mesmo os dele. E não estava nada contente.

Nevio observava-me, tal como eu relembrava, com uma hostilidade marcada no olhar, à

qual se juntavam espanto e choque, que eram tão óbvios quanto ele. A postura dele era

caracteristicamente a de alguém que se sente surpreendido por encontrar algo que não

96

esperava encontrar. Vi-o semicerrar os olhos, mantendo o olhar dele fixo na minha

direcção, como se estivesse a constatar que eu estava de boa saúde.

Hum! Isto não era um bom sinal. Repentinamente, passou um autocarro, que abrandou de

tal forma que se mantinha como uma barreira física entre nós, cortando assim, o fluxo de

informação que corria no olhar que ele me lançava. Nevio assustava-me. Era um facto.

Contudo, naquele momento, não sabia se desejava encontrar novamente o olhar dele, ou

não, sob pena de descortinar lá algo, terrivelmente maquiavélico. Quando o autocarro

avançou novamente, Nevio já não estava no local onde eu pensava que ele se encontrava.

Olhei, assustada, em meu redor. Estaria ele por aqui, mais perto de mim? Quereria ele

fazer-me mal?

Sentia o meu batimento cardíaco alterar-se, à medida que constatava que eu sabia bem a

resposta àquela pergunta. A resposta era um Sim categórico.

Por muito que olhasse, não via Nevio em sítio algum, o que me aliviava

momentaneamente. Mas, agora, já nada havia a fazer. Ele tinha-me visto. Ponto final. Eu

sabia que ele era um vampiro. Mas ele não sabia que eu sabia. E talvez fosse esta a razão

pela qual David me alertava com tanta frequência… e com tal tenacidade, para eu… evitar

mostrar-me à noite.

Expirei ruidosamente. Agora, já não havia nada a fazer e a minha noite de divertimento

estava, definitivamente, arruinada.

- Maria, o que foi? - questionou Shiva, na minha direcção.

- Ah!…Nada. Eh… não me sinto muito bem… - afirmei eu, sentindo a lividez nas minhas

mãos.

- Olá! - A voz de Thomas interrompia agora o nosso pequeno momento, enquanto eu já

ponderava ir-me embora para casa, sob pena de Nevio voltar. E se isso acontecesse, seria

bem pior, pois eu não saberia o que fazer.

- Ela não se sente bem - declarou Shiva, olhando-me com um verdadeiro semblante de

preocupação.

- Sim, de facto, estás ligeiramente pálida… - declarou Thomas, enquanto me observava

atentamente.

- Eu vou para casa. É melhor - declarei eu, enquanto olhava atentamente para Shiva.

- Eu vou contigo… - sugeriu ela, de imediato.

- Nem pensar, Shiva. Esta é a tua festa. Tens que ficar e divertir-te - declarei eu, enquanto

olhava em meu redor, pensando como encontrar um táxi. - Eu fico bem.

Sentia a hesitação em todos eles, face à minha repentina decisão.

97

- Provavelmente foi alguma coisa que eu comi… - menti eu, esperançosa que me

deixassem ir para casa sem mais demoras, sem mais perguntas.

- Está bem - acabou por concordar Shiva. E continuou, - Mas por favor, se te sentires

muito mal, telefona-me!

- Combinado! - Sussurrei eu na direcção dela, para depois lançar um breve sorriso a todos.

- Divirtam-se.

Comecei a andar rapidamente, olhando de soslaio em meu redor, tentando

encontrar as luzes que me poderiam salvar daquele pesadelo e levar-me a casa

rapidamente. Naquele momento, eu não queria saber de mais nada a não ser chegar a casa,

o mais depressa possível. Olhei novamente para a rua e descobri, finalmente, um táxi que

acabava de deixar alguém apeado. Era a minha salvação.

Entrei no táxi, sobressaltada, tentando reunir forças para verbalizar o destino da viagem.

Após um esforço considerável, lá consegui. Olhava nervosamente em meu redor, com

receio de encontrar aqueles olhos sombrios que me atemorizavam verdadeiramente.

Senti uma enorme saudade da presença de David, pois recordava como naquela noite na

Cité Universitaire, ele me havia salvo da perseguição de Nevio e dos outros. Meu Deus,

como eu precisava dele, aqui e agora.

Mal dei conta de chegar a casa, trancar portas e janelas e enfiar-me na cama, escondida

dos olhos de todos, rezando para que tudo isto não fosse mais do que um grande susto.

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CAPÍTULO 8 – ESTRASBURGO

PARECEU-ME ESTAR A SONHAR profundamente, sem noção de qual era o conteúdo

do sonho. Todavia, fosse o que fosse, tinha-me acordado do pesado sono em que estava

imersa e sentia as pálpebras exageradamente pesadas. Quanto tempo tinha passado desde

que me deitei? Horas, minutos? Aconcheguei-me novamente, confortável no quente que

emanava do meu extraordinário edredão e fechei os olhos, preparando-me para adormecer

novamente.

Foi então que ouvi um ruído em forma de três suaves batidas. Abri imediatamente os

olhos, todo o peso das pálpebras desaparecera e, exageradamente alerta, tentava discernir

o que era o ruído e de onde vinha. Mantive-me imóvel, durante alguns segundos que mais

pareceram horas, a olhar para o escuro que me rodeava. Contudo, esta tarefa estava a

revelar-se muito difícil, uma vez que o meu batimento cardíaco parecia ecoar no silêncio

da noite como um trovão. Ainda assim, esperei.

As três suaves batidas repetiram-se, agora com mais firmeza. Levantei-me de rompante,

com um arrepio na espinha, sentando-me na cama e sentindo de imediato o frio da

madrugada em meu redor, apesar de a janela estar completamente fechada. Olhei para o

meu relógio despertador. Eram exactamente cinco da manhã. Acendi a luz, sem perceber

muito bem o que tinha ouvido, se era real ou não e mantive-me sentada, aguardando e

olhando em redor.

Mais uma vez, as três batidas repetiram-se e eu percebi donde vinha o ruído: exactamente

da minha janela. Mas… como poderia alguém bater à minha janela, num 3º andar? Ou

estariam a lançar algo à janela para chamar a minha atenção? Mas… às cinco horas da

manhã? Ah! Por favor! Se fosse mais uma das brincadeiras de Shiva, ela ia ouvi-las pela

manhã! Afastei rapidamente o meu pesado conjunto de cama e, sem paciência para calçar

as pantufas, dirigi-me à janela, puxando calmamente o estore, pensando nas ofensas que

iria proferir quando encontrasse, quase seguramente, um divertido grupo de estudantes a

troçar de mim, lá em baixo, na rua. Contudo, mal abri o estore por completo, o que vi foi

algo bem diferente: alguém estava agilmente agachado no parapeito da minha janela, com

um dos antebraços a repousar descontraidamente num dos joelhos, enquanto o outro se

apoiava na parte superior da janela com o outro braço. Olhava-me com o maior ar de

censura que eu alguma vez tinha recebido.

Não acredito nisto. David?

99

Fiquei a olhá-lo, espantada. A sua postura assemelhava-se ao de um autêntico malabarista

que exibia o seu número mais perigoso ao ar livre, apesar de parecer mais uma cena saída

de um filme de terror. O vento que corria lá fora fazia com que o seu cabelo parecesse

mais fluido, marcando também a escassa roupa que trazia, demasiado fresca para uma fria

madrugada do primeiro dia de primavera. O luar marcava-lhe as feições, destacando-lhe o

olhar e dando-lhe uma aparência, sem dúvida, sobrenatural. Se eu ainda tivesse alguma

dúvida de que este rapaz não era humano, agora teria a confirmação.

Definitivamente, de todas as reacções que o tinha visto ter, esta era a mais extrema de

todas: a estas horas? Subir ao parapeito da minha janela? Como? Porquê? E para quê?

Tinha que ser algo mesmo sério. E provavelmente quereria falar comigo.

Maria, recompõe-te e abre a janela de uma vez.

À medida que abria a janela, senti imediatamente a fria brisa da Primavera que acabara de

começar, arrepiando-me.

- O que é que-

Não consegui terminar a frase. Senti-me rapidamente puxada para o exterior, saindo pela

janela, como se estivesse a ser sugada, para então colidir com uma verdadeira muralha

com forma humana, absolutamente hirta e forte, aprisionando-me em seu redor. O que se

passou de seguida decorreu a uma velocidade que os meus olhos não conseguiam

acompanhar mas, pelo movimento e pela direcção do vento que parecia enregelar-me.

Fiquei com a sensação que estava a subir… o instinto dizia-me para me agarrar ao que

conseguia ter acesso e, foi assim que encontrei algo que se assemelhava a uma fina fibra

de algodão, percebendo que era o que cobria aquele ser que agilmente trepava vários

andares com uma facilidade estonteante.

Como é que ele não tinha frio?

Repentinamente, todo aquele fugaz e nauseante movimento cessou e, ao abrir os olhos,

pude perceber onde estava: no tecto do prédio onde vivia. Tão depressa como me puxou

da minha janela, depositou-me a uns consistentes três metros de distância dele, enquanto

se mantinha de costas para mim, como se ofendido com alguma coisa que eu tivesse dito –

mas eu nem sequer tinha proferido uma palavra. Ainda se mantinha em mim aquela ligeira

sensação de náusea, quase certamente devido aos movimentos acelerados que tinha

sofrido.

Malditas capacidades vampíricas.

Foi então que eu me apercebi do estado lamentável em que me encontrava: de pijama, o

cabelo parecia um arbusto selvagem, a cara e olhos inchados de ter sido acordada

repentinamente e… descalça, já estava a sentir o frio a atingir os meus pés de forma

100

intensa. No tecto, onde estava, ainda sentia mais frio, o que me fez colocar os braços em

redor de mim mesma, para evitar que enregelasse.

David estava imóvel, sem proferir uma única palavra e eu dei por mim a desejar que ele

dissesse alguma coisa rapidamente, sob risco de eu entrar em hipotermia.

- Eu disse-te para não apareceres à noite - falou ele finalmente, com um tom seco,

enquanto se virava até ficar de perfil, olhando na minha direcção. Aquela expressão

reflectia claramente um elevado grau de impaciência e irritação.

- Disseste-me para eu evitar aparecer à noite… já há algum tempo.

- Isto é sério - disparou ele, agora virando-se completamente, de frente para mim e

mantendo a distância, agora com uma expressão absolutamente irredutível na face.

- Sério? – Repeti eu, sem conseguir atingir onde é que ele queria chegar… e, por outro

lado, sentia que estava a ficar gelada.

- Eles viram-te… e agora eu tenho que te tirar daqui.

- Eles? Eles quem?

- Nevio e… os outros.

- Mas o que é que isso significa?

O meu desconhecimento era genuíno.

- Significa… problemas.

Pela primeira vez, via-o hesitar, certamente em busca da palavra mais adequada. E, para

um alguém audaz como ele, isso não era muito bom sinal.

- Mas, porquê? Eu não fiz nada de mal…

Seguiu-se um pesado silêncio, interrompido somente pelo ruído do vento que passava

ocasionalmente por nós, enquanto ele olhava, sério e impaciente, para algo que eu não

sabia o que era, nem onde estava, mas seguramente seria muito longe do tecto onde nós

nos encontrávamos.

- Vamos voltar para o quarto.

E com isto, vi-o dirigir-se a mim com passos firmes, como um leão se lança a uma zebra,

e só tive tempo de sentir o meu batimento cardíaco acelerar. Assustada, fechei os olhos.

Só desejava que ele não me fizesse mal, porque, muito sinceramente, eu não sabia o que

tinha feito de errado. Os movimentos que eu senti eram estranhos…e, claramente, a

descer. Ele agarrou-me firmemente mas sem me magoar e, mais uma vez, agarrei-me ao

que tinha acesso. Desta vez foi ao casaco, presumia eu, pela diferença na textura da fibra.

A sua agilidade e facilidade em transportar-me fez-me considerar por momentos, se seria

comum transportar humanos para telhados e de telhados, como se fossem coletes salva-

101

vidas. Para não mencionar que, para além das demais características, desafiar a gravidade

era mais uma das vantagens da sua espécie.

Repentinamente, o frio que se fazia sentir cessou e eu senti-me colocada, mais uma vez,

em chão firme. Estava de regresso ao meu quarto. Abri os olhos e vi-o, agora, a uns

sólidos dois metros de mim, como se eu fosse portadora de alguma doença altamente

contagiosa. Tive a sensação que não se afastava mais de mim porque o tamanho do quarto

não o permitia. Qual era o problema dele? Claramente, evitava qualquer tipo de contacto.

Seria por causa da alimentação? Credo, não me tinha lembrado desse pormenor; Nós

éramos a sua fonte de alimentação.

Tentei afastar esse nefasto pensamento e reflectir sobre o que o traria aqui,

verdadeiramente, relembrando a nossa conversa no telhado e mantendo um tom de voz

baixo, mas audível. Não podia arriscar-me a acordar Shiva, apesar de não saber se ela

estava em casa ou não.

- Mas… o que é que se passa? - Perguntei eu, exasperada.

- Já te disse. Foste imprudente e expuseste-te. Agora tenho que te tirar daqui.

A sua voz não podia ser mais seca.

- Imprudente? Mas…

- Não temos tempo para isto.

Ele estava a ficar visivelmente impaciente.

- Não me podes tirar daqui. Não assim... – sussurei eu, exasperada, face às suas palavras.

Era o único raciocínio que conseguia efectuar, até que ele me interrompeu subitamente.

- Tens que sair de Paris, já.

Olhei-o com reprovação. “Já.”!?

A sua exigência estava a enervar-me particularmente, porque ele insistia em não me

oferecer uma explicação minimamente credível para eu perceber o que se estava a passar.

- Sinceramente, David. Apareces à minha janela às cinco da manhã, raptas-me para o

telhado e exiges que eu me vá embora de Paris, sem uma única explicação?

- É necessário.

- É essa a única explicação que tens para me dar? - “É necessário?”

Olhei-o, questionando-o com o olhar. Sinceramente, ele não poderia esperar que eu

acatasse as suas ordens como se eu fosse um vegetal? Ele retribuía-me o olhar, sem dizer

nada. Talvez não fosse má ideia ser mais explícita.

- Esperas que eu aceite tudo o que me dizes sem contestar nada?

- Não… mas desta vez preciso que seja assim.

- As coisas não funcionam assim...

102

Apesar da sinceridade da sua resposta, não podia simplesmente aceitar as suas imposições.

Por amor de Deus, eu mal o conheço.

Estava numa situação extrema, imersa na minha insegurança, ainda que sentisse algo

dentro de mim, algo semelhante à certeza que senti quando tinha visto Nadine naquela

ruela, a certeza de que sabia o que se tinha passado. Agora, essa mesma certeza dizia-me

para confiar nele.

Confiar nele? Valha-me Deus, onde é que tens a cabeça?

Foi a intervenção de David que interrompeu a minha linha de pensamento.

- Por favor…

A expressão dele era dolorosa. Dolorosa e frustrada. Raios! Ele sabia como influenciar-

me, sabia utilizar as palavras certas. Seria esta expressão genuína, ou seria somente um

truque para persuadir humanos? Mais uma capacidade vampírica vantajosa? Procurei

respostas no seu olhar, que era de um intensidade simultaneamente sincera e triste, o que

me fez procurar um ponto longínquo onde me fixar para, consequentemente, conseguir

pensar. Com alguma dificuldade, fui capaz de elaborar uma débil frase.

- Porquê?

- Tu não estás a salvo…

- Não estou a salvo do quê? - Questionei eu, quase instantaneamente, ao ouvir as suas

secas palavras. Raios, ele sabia mesmo ser evasivo e desagradável.

- Eu explico-te mais tarde, mas agora tens mesmo de sair de Paris.

Claro, muito típico. Explicações mais tarde, como?… nunca?

- Eu não posso ir-me embora assim, eu tenho aulas e…

- É temporário. Uma semana, no máximo - interrompeu-me ele, mais uma vez.

Olhei-o desesperada, constatando que ele não me ia dar escolha ou alternativa.

- Isto não está a acontecer… - sussurrei eu, cruzando os braços, enquanto acenava a

cabeça negativamente e olhava fixamente para um ponto aleatório no quarto, mais em tom

de desabafo que de constatação. Estava a ficar sem forças, sem desculpas mas, por outro

lado, também estava a ficar sem razões para duvidar dele. Que razões tinha eu para não

confiar nele? Está bem, ele não era humano, eu não o conhecia – a nenhum nível –,

testemunhei um momento de refeição… aliás, dois. Mas nunca me fez mal, pelo menos

fisicamente. Sim, porque emocionalmente, tinha que admitir que ele exercia em mim um

efeito totalmente… sobrenatural!

- Por favor, Maria…

Ouvi-lo afirmar repentinamente, como se adivinhando o dilema interno em que eu me

encontrava, era algo que me transtornava de uma forma tão incomodativa quanto…

103

extraordinária. Tinha que decidir – com alguma rapidez - o que fazer, se bem que cada vez

mais estava com a sensação de que ele não me daria nenhuma hipótese a não ser aceitar as

suas exigências. Raios! Eu não tinha mesmo escolha. Como sempre.

- Muito bem… para onde é suposto eu ir?

- Já foi tudo tratado. Faz a mala, rápido.

- Agora? - Perguntei eu, com espanto. Olhei para o relógio, eram cinco horas e vinte

minutos. Ele estava mesmo com muita pressa!

- Sim.

- E o que devo levar? - Questionei eu, enquanto me dirigia ao armário, onde tinha a roupa.

- Vai estar frio.

- Para onde é que eu vou?

- As explicações ficam para depois.

Evasivo como sempre. E o que mais me arreliava era que eu sabia que não valia a

pena contrariá-lo, pois se ele não quisesse responder a uma pergunta, não respondia. Ponto

final. Comecei a colocar roupa no saco de viagem, sem a mínima noção da quantidade que

precisaria. Uma semana no máximo. As palavras dele ecoavam na minha mente.

Instintivamente, lembrei-me que estava de pijama. Não poderia sair de casa assim. Peguei

na roupa que tinha à mão, nomeadamente a que tinha vestido no dia anterior e dirigi-me à

porta do quarto, enquanto o informava para onde ia.

- É só um momento, eu vou vestir-me.

Ao sair do quarto, lembrei-me de Shiva. Não sabia se estava em casa ou não. Pelo sim,

pelo não, seria prudente não fazer barulho, para evitar situações embaraçosas. Se ela

encontrasse David no meu quarto, a esta hora, estando eu de pijama, então nunca mais ia

ter descanso. Uma vez na casa-de-banho, vesti-me num ápice e arranjei-me minimamente,

em especial o cabelo, que estava particularmente indisciplinado. Olhei-me ao espelho. A

minha cara consistia num todo desconcertante: os olhos inchados, o nariz vermelho do frio

que tinha passado. Peguei em tudo o que necessitava da casa-de-banho para poder

sobreviver uma semana num sítio onde iria estar frio – Talvez um iglo?, pensei

ironicamente – e rumei silenciosamente para o quarto, onde David me esperava,

exactamente no mesmo sítio onde o tinha deixado. A sua figura imóvel relembrava-me as

estátuas gregas que tinha observado naquela extraordinária tarde cultural, em grupo, no

Museu do Louvre.

Tentei resumir mentalmente se teria tudo o que precisava para a minha semana de

introspecção no desconhecido. Literalmente.

104

- Podemos ir. Vou só deixar uma nota a Shiva - disse eu, enquanto me dirigia à minha

secretária, pensando no que haveria de escrever, ou seja, na desculpa mais esfarrapada que

teria que inventar. - Não posso desaparecer assim sem mais nem menos.

Subitamente, senti a presença de David perto de mim.

- Não lhe podes dizer.

- Como é que eu lhe posso dizer onde estou se eu própria não sei para onde vou? -

Afirmei eu, com uma pitada de escárnio na voz, enquanto o fitava com reprovação, como

que relembrando-o que estava a ser injusto por não me dar nenhuma explicação. Após

pensar alguns segundos, escrevi firmemente:

Shiva:

- Então, satisfeito? - Disse, apontando com a mão para a minha recente nota, com ar

desafiador, enquanto pousava a caneta na secretária.

- Não sejas difícil - afirmou ele, com um tom firme, dando por terminado o tópico de

conversação.

- Podemos ir… - tentei eu afirmar com o tom mais seco possível, enquanto agarrava o

meu saco de viagem. Olhei para o relógio despertador. Eram cinco e quarenta da manhã.

Repentinamente, vi David aproximar-se de mim com uma determinação que me fez

retroceder alguns passos para trás. Mas eu não era suficientemente rápida e não tinha a

capacidade de me deslocar à sua velocidade e, quando dei conta, ele estava exactamente à

minha frente, a escassos centímetros de mim, com um olhar apreensivo, que eu não

compreendia – mais uma vez, como tantas outras vezes.

Subitamente, senti a mão dele na minha, o que me fez arrepiar. Ele estava gelado. Sim, eu

já sabia disso, mas ainda assim, o toque dele era algo… indescritível. E, mais uma vez,

devo ter admitido a expressão facial mais idiota à face da terra. Sem dúvida, estes eram

momentos em que a minha transparência não era claramente favorecedora para manter a

pouca dignidade que ainda me restava. Suavemente, senti-o retirar a mala de viagem das

minhas mãos.

Vou passar esta semana a casa dos meus tios. Desculpa não ter avisado mais cedo.

Beijinhos, diverte-te.

105

- Eu levo-te a mala. É o mínimo que posso fazer - afirmou, enquanto se afastava de mim.

Claro, o típico cavalheiro, ainda que teimoso, subtil e… persuasivo.

- Por favor, podemos usar a porta? - Sussurrei eu, enquanto seguia atrás dele, saindo do

meu quarto. Com delicadeza, fechei a porta e deixei o post-it firmemente colocado na

porta do meu quarto, para que Shiva o visse mal acordasse. E, esperava eu, que não se

lembrasse de fazer muitas perguntas. Nem inventar histórias.

- Com certeza - sussurrou ele, enquanto se dirigia agora à porta principal, no escuro, como

se tivesse memorizado o caminho exacto até à saída.

Eu própria já estava perdida na escuridão do meu reduzido apartamento, com receio de

derrubar algum elemento da escassa decoração e acordar Shiva. Ao olhar em frente, só via

o brilho dos olhos de David, que mais parecia um felino em posição de ataque,

observando cuidadosamente o percurso da presa.

Credo, definitivamente ele não é humano.

Os olhos dele seguiam-me, observando-me enquanto me aproximava dele, enquanto eu

tentava remover da minha mente qualquer semelhança com o momento National

Geographic que se identificava, em tudo, ao que eu estava a sentir naquele instante. Eu,

verdadeiramente como uma presa oprimida.

Ao chegar à porta, destranquei-a o mais silenciosamente possível e saímos discretamente

de casa. No prédio já me sentia mais à-vontade e a minha reacção instantânea foi ligar a

luz, que iluminou intensamente todo o hall. Senti-me de imediato mais aliviada, agora

acompanhada por alguma claridade. Por esta altura, David já estava à minha espera no

elevador, mantendo a porta semi-aberta, esperando que eu entrasse. Como ele se movia

sem eu me aperceber era algo incompreensível. Entrei e carreguei no botão para descer. A

viagem até ao rés-do-chão foi breve, mas o silêncio dele perturbava-me. Tinha uma

vontade imperiosa de lhe fazer perguntas, mas já sabia que não valia a pena, porque ele

não me ia dar respostas. Melhor suportava eu um silêncio incomodativo que tentar

inúmeras vezes questioná-lo sem sucesso. Eu também tinha o meu orgulho.

Ao sair do prédio, reparei que já estava um carro à nossa espera e não demorei muito a

perceber que era um táxi. David dirigiu-se à bagageira, colocou lá a minha mala e trocou

breves palavras com o motorista, que se apressou a voltar ao lugar do condutor, enquanto

David fechava a porta da bagageira e se dirigia à porta mais perto de mim, abrindo-a e

fazendo-me sinal para entrar.

- Se fazes favor.

106

Contrariada, entrei e ele entrou depois de mim, fechando a porta suavemente. O motorista

olhou para nós pelo espelho retrovisor e arrancou, mergulhando na madrugada escura de

Paris.

O silêncio mantinha-se como uma verdadeira barreira impenetrável e eu estava a sentir-

me cada vez mais desesperada e cada vez mais consciente do que se estava a passar. O

que iria ser de mim? Tinha que tentar, mais uma vez, obter respostas.

- Para onde é que vamos? - Questionei eu, discretamente, enquanto olhava, absorta, para

as minhas mãos.

- Para a estação de comboios.

- Porquê?

- É movimentado.

Pronto, limitava-se a informar-me para onde ia, mas já o porquê, não o revelava. Isto era

frustrante… era absolutamente intolerável.

Como é que eu me fui meter nisto?

Às vezes ele conseguia ser muito irritante. E o que quereria ele dizer com Movimentado?

Definitivamente, eu não me conseguia habituar às suas rebuscadas expressões e, muito

menos, decifrá-las.

A viagem até à estação de comboios durou cerca de vinte minutos, tempo durante o qual

atravessámos inúmeras zonas de Paris que me eram totalmente desconhecidas. Tentei

abstrair-me e retirar o melhor da viagem, observando atenciosamente cada detalhe, cada

pormenor do mistério e da beleza da cidade durante a noite. Ninguém pronunciou uma

única palavra durante o tempo que durou o resto da viagem.

Ao chegar ao destino, David saiu e eu fiz o mesmo, seguindo-o para onde ele se

encaminhava, com o meu saco de viagem firmemente seguro na sua mão. Estava com

alguma dificuldade em acompanhar o passo dele, mas também não me queixei. A estação

de comboios consistia num edifício majestoso, de percursos labirínticos que David parecia

conhecer de cor. Nem uma vez o vi hesitar durante o trajecto que fizemos até encontrar a

plataforma que, provavelmente, seria a que ele procurava, pois foi lá que o vi abrandar o

passo e, finalmente, parar. Precisei ainda de alguns segundos para chegar ao pé dele e,

agora sim, tinha tempo para observar um pouco o que me rodeava. Facilmente constatei

que me perderia se tentasse voltar para trás, pois não conseguia de forma alguma

reconstituir o caminho que tinha acabado de percorrer. Senti-me, pela enésima vez esta

noite, extremamente frustrada.

Onde estávamos havia pelo menos quatro plataformas, mas percebi que havia mais umas

quantas dezenas que eu não fazia ideia como chegar até lá. A imensidão das linhas de

107

comboios era comparável à das linhas do metro, ou seja, uma confusão na qual eu me

sentiria completamente perdida, sem a menor sombra de dúvida. Estavam duas pessoas

sentadas num banco a cerca de dez metros de nós, aparentemente absortas em algo longe

da estação de comboios. Fazia muito frio, eu sentia a respiração ofegante da minha recente

corrida, na tentativa inútil de acompanhar o passo veloz de David e o meu nariz estava a

enregelar. Perguntei-me, mais uma vez, para onde iria e olhei-o desesperadamente,

assustada com o que ele me pudesse dizer. Ao encontrar o meu olhar, vi-o pôr a mão

dentro do casaco e retirar de lá um espesso envelope, que me entregou.

- Aí tens tudo o que precisas para uma semana.

Curiosa, abri o envelope e encontrei uma quantidade exagerada de dinheiro em notas de

vinte Euros, reserva para uma semana num hotel cujo nome não consegui pronunciar e um

bilhete de comboio, que referia como destino uma cidade francesa que eu ainda não

conhecia.

- Estrasburgo? - Perguntei eu, ingenuamente.

- Lá estarás em segurança.

Quase que cedia à tentação de lhe perguntar porquê, mas eu já sabia que ele não me iria

responder. Eu sentia a determinação no seu olhar.

- Em segurança… É muito elucidativo - afirmei eu, com um tom irónico, enquanto

acenava como se concordasse cegamente com o que ele me estava a dizer.

- Não comeces. Acredita que é necessário.

O tom dele era de firmeza, sinal de que a conversa iria terminar ali.

- Sim, eu acredito em ti, hoje já disseste isso duas vezes - retorqui eu, recusando-me a

deixá-lo com a última palavra. E ainda me acusava de eu ser difícil. Eu? Sinceramente!

Ele era mil vezes mais difícil do que eu.

O silêncio voltara-se a instalar entre nós. Ele não queria falar e eu, muito sinceramente,

também não. Olhei para o relógio, eram seis horas e cinco minutos. Ainda faltavam dez

minutos para o comboio chegar, conforme avisava o placard electrónico.

Que maravilha! Mais dez minutos de silêncio na companhia do vampiro mais teimoso à

face da terra.

A minha irritação transformava-se agora em indignação. Não conseguia deixar de pensar

no que é que poderia ter despoletado toda esta situação. Eu tinha que ter feito qualquer

coisa, porque David tinha mencionado que os outros me tinham visto, mas eu não me

lembrava de nada em concreto. Repentinamente, fez-se luz.

Foi hoje, há umas horas atrás, quando eu saí do Hard Rock Café.

108

Parecia que estava a reviver aquele momento outra vez, aquele instante em que os meus

olhos encontraram os do italiano, cujo olhar consistia num misto de espanto e raiva.

Definitivamente, só podia ser essa a causa, ainda que fosse difícil para mim acreditar

nessa hipótese.

- Foi por eu ter aparecido na rua hoje à noite que…

- Não foi só por isso. Na realidade, tudo remonta a alguns meses atrás - Interrompeu-me

ele novamente, como se adivinhando o que eu iria dizer. Eu seria assim tão previsível? E,

mais uma vez, não me tinha respondido directamente à pergunta. Agora era eu que não

compreendia a minha idiota insistência em continuar a fazer-lhe perguntas, se já sabia que

ele não me iria responder.

- Espero que haja uma boa justificação para tudo isto - sussurrei, com um tom irritado.

- Eu hei-de contactar-te. Até lá, peço-te que não digas a ninguém onde estás - afirmou ele,

desviando claramente o assunto.

- Está bem… – respondi eu, secamente, mais como um sussurro, sentindo o olhar dele em

mim, enquanto eu, propositadamente, desviava o olhar na direcção exactamente oposta.

A minha estratégia consistia agora em concordar fosse com o que fosse que ele me

dissesse. Eu já me sentia desesperada o suficiente com a situação e, com sinceridade,

preferia não falar mais com ele, simplesmente porque não o considerava merecedor da

minha atenção. Ele estava a ser injusto e desagradável. Estava eu a tentar fixar-me num

ponto aleatório algures no sombrio horizonte, que agora já começava a aclarar, admitindo

uma tonalidade de azul celeste, deixando adivinhar a proximidade do amanhecer, quando

senti uma presença exageradamente perto de mim, exactamente à minha frente. A minha

reacção imediata foi de surpresa, afastando-me ligeiramente para trás, como resposta à

investida de David, que continuava a olhar fixamente para mim, pedindo-me atenção mas,

desta vez, eu recusava-me a devolver-lhe o olhar.

Pois, eu também tenho o meu orgulho. E agora, sou eu que não quero saber do que tens

para me dizer.

Foi no meio da minha inflexível linha de pensamento que eu senti os seus gélidos dedos

tocarem na minha face. Senti-me imediatamente a fraquejar. Inflexível? Pois claro.

Com humanos, sem dúvida; com vampiros…bem, continua a tentar.

Como é que era possível estar tão segura de mim própria e bastar um simples toque para

destruir tudo? Eu era, sem dúvida, uma humana muito patética.

David estava a tentar colocar-me frente a ele, movimentando-se com uma suavidade

extraordinária, objectivo facilmente concretizado em alguns segundos. Certamente era

algo mesmo muito importante que ele tinha para me dizer. Os seus dedos já tinham parado

109

mas continuavam imóveis encostados à minha face, enquanto eu olhava, agora, para a

pálida pele que lhe cobria a garganta, o pescoço, uma pequena parte do peito que estava

descoberta pelos dois botões desabotoados da camisa que, conseguia ver agora, era clara e

mais parecia uma extensão da sua imensa palidez. Senti os seus dedos moverem-se na

direcção do meu queixo, mais como uma carícia que como uma advertência.

O que é. que ele. está. a fazer?

Foi instantâneo. O meu batimento cardíaco, a minha respiração, bem como outras funções

vegetativas, alteraram-se de uma forma vergonhosamente incontrolável, enquanto David

me elevava o queixo na sua direcção, até que o meu olhar encontrou o dele. O olhar dele

era um mar de emoções, uma mistura caótica de uma intensidade indescritível, que me

deixava, literalmente, sem palavras. Foi então que o ouvi falar.

- Terás as tuas respostas. Dou-te a minha palavra.

A referência dele às “respostas” abstraiu-me ligeiramente do seu fixo olhar (em que eu me

encontrava, de algum modo, perdida) mas deu-me senso suficiente para conseguir elaborar

uma resposta que, desta vez, sentia estar à altura.

- Dá-me uma boa razão para eu confiar em ti.

- Estás viva - respondeu ele sem hesitar, como se previsse a minha última pergunta,

enquanto ele se afastava calmamente e se fixava agora, num ponto inexistente, algures no

horizonte.

Senti um arrepio ao ouvi-lo proferir aquelas duas últimas palavras. Pela primeira vez,

nesta noite e por alguma razão que me era alheia, não quis contestar nem questionar os

porquês dessa realidade, porque algo dentro de mim me dizia que a verdade seria bem

mais terrível do que eu imaginava. Afinal, talvez houvesse uma razão bem forte detrás de

toda a sua renitência em responder às minhas insistentes perguntas.

Os olhos dele reflectiam, agora, tristeza e desapontamento, enquanto olhavam o início da

linha do comboio, como se esperassem a qualquer momento que o comboio aparecesse.

Mais uma vez, sentia-me completamente perdida e…desesperada, sem saber o que dizer

nem o que fazer.

- Vem aí - disparou ele na minha direcção, interrompendo o meu atribulado pensamento.

Olhei. Não vi nem ouvi nada. Vampiro exibicionista.

Por instantes desejei que o tempo parasse ali e agora, só eu e ele, para que eu pudesse

receber imediatamente todas as minhas respostas e perguntar-lhe tudo o que queria, sem

restrições nem entraves, sem metáforas nem evasivas. Era o mínimo que eu poderia exigir.

O barulho do comboio a aproximar-se arrancou-me da minha pequena bolha pensativa e

foi aí que eu encontrei novamente o olhar fixo de David que, por momentos me assustou,

110

mas não pelas razões usuais. No olhar dele não encontrei nada do que estava à espera,

nem sequer nada do que já tinha visto, mas sim algo novo, uma enorme expressão

de…receio, o que era completamente novo para mim. David, com receio…de quê? Senti-

me desconfortável e atemorizada por vê-lo a sentir-se assim, o que me levou a concluir

que, sem sombra de dúvida, devia tratar-se de algo muito grave…e sério. E eu estava no

meio. Senti novamente o meu batimento cardíaco a acelerar.

- Calma. Eu hei-de contactar-te - reafirmou ele, como se tivesse ouvido as alterações do

meu ritmo cardíaco.

- E se-

- Garanto-te que o farei – interrompeu-me ele, com uma segurança na voz e no olhar que

me retirou qualquer réstia de dúvida que eu pudesse ter.

- Estarei à espera.

- Cuida-te.

- Tu também.

- Vai.

Foi a última palavra que o ouvi proferir, enquanto o comboio parava, por momentos, para

permitir que as pessoas subissem para as carruagens. Éramos três, eu e os recatados

indivíduos que estavam sentados naquele longínquo banco há cerca de dez minutos atrás.

Subi apressadamente, procurando um lugar perto da janela, os meus predilectos neste tipo

de viagem, enquanto olhava para a plataforma, de onde David me fitava como uma estátua

viva, como um guardião de pedra cuja única prioridade era garantir a minha segurança, a

minha integridade. Às vezes era-me muito fácil perceber o que ele pretendia transmitir,

sem ser necessário proferir uma única palavra, bastava simplesmente um olhar, uma

expressão, um contacto. Definitivamente, quando ele queria, conseguia ser muito

transparente. Mas só quando ele queria. E, infelizmente, essa realidade resumia-se a uma

quantidade muito reduzida de ocasiões.

Desviei momentaneamente o olhar para me sentar no lugar que havia encontrado, à janela,

tal como pretendia. Quando voltei a olhar para a plataforma, ele já se tinha desvanecido.

Senti-me estranhamente desprotegida, agora sem a sua presença perto de mim.

O comboio iniciou o seu percurso, acelerando à medida que percorríamos algumas zonas

periféricas da cidade. Ainda era noite, mas já se adivinhavam os vários tons que

precediam o amanhecer. Lembrei-me subitamente da necessidade de David em proteger-

se da luz solar, claramente um agente nocivo para aqueles da sua espécie. Talvez o receio

que lhe vi no olhar fosse exactamente o medo da luz solar, certamente ele sentiria o chegar

do amanhecer como algo ameaçador da sua integridade. Dei por mim a desejar que ele

111

tivesse chegado a tempo a algum sítio, para se proteger. Ele teria casa, certo? Algum sítio

para viver, provavelmente com os outros? Meu Deus, havia tanta coisa no mundo dele que

eu desconhecia… e quanto mais eu pensava, mais dúvidas me surgiam e mais queria

saber. Cada vez mais. E não devia, porque o mundo dele já me tinha trazido problemas

suficientes.

Voltei a abrir discretamente o envelope. Que quantidade de dinheiro estupidamente

exagerada!! Ali estariam, seguramente, perto de seiscentos euros… como se eu

conseguisse gastar todo este dinheiro numa semana. Nem que eu fosse às compras todos

os dias!! Shiva haveria de gostar dessa opção, sem dúvida, já a estava a imaginar a

programar tardes intensivas de loucura consumista, procurando as lojas mais excêntricas e

de renome. Pensar em Shiva fez-me sentir nostálgica, revendo mentalmente todos os

acontecimentos da minha atribulada madrugada. Sentia-me cansada e assustada, ainda não

estava em mim. Eu ia para uma cidade a cerca de seiscentos quilómetros de Paris e a única

pessoa que sabia onde eu estava nem sequer era humana. Era um vampiro sedento,

teimoso e misterioso, que se recusava a dar-me explicações e me tinha praticamente

exigido que me afastasse de Paris durante uma semana. Sozinha, sem ninguém saber do

meu paradeiro. Definitivamente, eu devia estar louca.

Mas que raio é que eu estou a fazer?

Eu já não me conhecia a mim própria. A Maria que eu conhecia não corria riscos desta

maneira. A Maria que eu conhecia era obstinada, realista e não se deixava levar pelas

convicções de outras pessoas. Se bem que ele não se poderia considerar outra pessoa, de

facto, nem sequer era uma pessoa. Seria esse facto uma justificação razoável para o meu

comportamento imprudente? Porquê? O que é que tinha mudado?

Tudo.

Foi entre perguntas e constatações imersas em dúvida e desconhecimento que me senti

adormecer, suavemente embalada pelo movimento do comboio e confortavelmente

apoiada no encosto do lugar onde me encontrava, absorta nos caóticos eventos decorridos

há cerca de uma hora atrás.

Seis horas depois chegava a Estrasburgo, após um sono intermitente interrompido pelos

mais variados ruídos, que me sobressaltavam exageradamente, de cada vez que acordava.

112

Sentia-me esgotada, sem forças para nada. Só tinha vontade de chorar, mas não podia, sob

pena de me abordarem, de me perguntarem o que se passava e, aí, eu não poderia

responder com a verdade dos factos. Portanto, pensariam que eu era louca.

Ao sair do comboio, tentei orientar-me e pensar em encontrar num táxi, que seria a única

forma viável de eu chegar ao hotel. Neste momento, não conseguia arriscar-me a utilizar

transportes públicos, estando eu numa cidade que desconhecia completamente.

Encontrei facilmente um táxi, dando as instruções do hotel da melhor forma possível, para

que eu me fizesse entender. Para meu espanto, a corrida até ao hotel não demorou muito,

tendo em conta que o hotel se localizava no centro da cidade. Rapidamente dei entrada,

debaixo do olhar curioso da recepcionista que, certamente, se perguntaria se eu teria com

algum problema, dado o aspecto miserável que eu deveria ter. Só agora reparava que, no

envelope que David me havia entregue, estava um comprovativo de reserva de quarto,

pelo que eu só tinha que mostrar o documento para receber a chave electrónica que

permitia a entrada na habitação.

Rapidamente, subi até ao quarto andar do edifício, procurando pelo quarto 411.

Felizmente não precisei andar muito para o encontrar pois estava somente a alguns metros

da saída do elevador. Ao entrar no quarto, constatei que era exageradamente grande para

mim. Tinha duas camas, uma bancada de apoio com uma cadeira, uma televisão

estrategicamente colocada no canto próximo da janela e uma ampla casa de banho que era

mais que suficiente para mim. Sentei-me à beira de uma das camas, deixando-me cair

lentamente para trás. Estava exausta e precisava urgentemente de dormir.

Sem pensar duas vezes, saltei para o duche e deixei os músculos relaxarem com o

contacto da água quente que saía, em jorro, do chuveiro. Já satisfeita e bem mais calma,

vesti o pijama e aninhei-me num dos enormes edredões que cobriam as camas, onde me

deixei estar até perder a consciência por completo.

Mais uma vez acordei sobressaltada, sem noção do local onde estava. Foi preciso

um esforço quase sobre-humano para constatar que era verdade. Sim, estava em

Estrasburgo. E eu era uma fugitiva sem razão aparente. Ainda era dia, pois a luminosidade

que emanava da janela era caracteristicamente solar e não proveniente do luar.

Sentei-me de rompante, procurando o telemóvel para poder ver que horas eram. Sim, de

facto era dia, meio-dia em ponto e hoje era segunda-feira. Arregalei os olhos, espantada.

Eu tinha dormido praticamente um dia e uma noite. Levantei-me e rumei à casa-de-banho,

113

considerando meter-me no duche novamente, enquanto relembrava, mais uma vez, os

acontecimentos da noite passada. Sinceramente já não sabia o que tinha sido pior, se o

olhar perturbante de Nevio, se a avalanche de emoções a que David me tinha sujeitado, se

a violência de seis horas de viagem a repercutir-se no meu corpo.

Por outro lado, sentia fome, pois já não comia há pelo menos vinte e quatro horas. Mas

antes, tinha algo bem mais importante para fazer – manter a farsa para esconder a minha

verdadeira localização. Sentia-me uma autêntica criminosa, como se tivesse cometido um

delito grave e agora mantinha-me escondida de tudo e de todos, excepto do meu comparsa

vampiro.

Assim, depois do duche, decidi enviar mensagens. Adèle foi a primeira, que me respondeu

de imediato a referir que não ficasse preocupada com as aulas e que aproveitasse para me

divertir com a minha família. Shiva já me tinha enviado uma mensagem, a perguntar-me

se eu estava melhor e a informar-me que a noite de convívio no Hard Rock Café tinha sido

genial, pois tinha travado inúmeras amizades novas. Aquela rapariga era impressionante,

simplesmente incansável.

E deixei ficar a farsa por ali pois tinha a sensação que, à noitinha, quando conversasse

com os meus pais ao telefone, iria ser bem pior.

Era hora de almoço e resolvi ir explorar as minhas opções alimentares.

Independentemente do que encontrasse, tinha dinheiro suficiente para almoçar e jantar

fora, todos os dias, no restaurante mais caro da cidade, pelo que não estava minimamente

preocupada. Ao chegar ao hall de entrada do hotel, constatei que era um espaço bastante

agradável. Na recepção, a simpática senhora que lá se encontrava informou-me que no

hotel tinham um sistema de refeições pré-pagas – com senhas – e que, como tal, podia

fazer ali todas as refeições diárias, sem ser necessário sair, obrigatoriamente, do hotel. De

facto, era bastante confortável.

Depois do almoço, que consistiu num saboroso e consistente prato típico francês

Andouille, voltava agora ao quarto, sem saber muito bem o que fazer. Sentei-me na cama

e liguei o televisor. Após dez fastidiosos minutos, constatei que estava aborrecida. O que é

que eu ia fazer com tanto tempo livre?

Devia estar nas aulas.

Era um pensamento que me fazia sentir culpada. Faltar às aulas, por razões que me eram

alheias. Eu só sabia o que ele me permitia saber - o que tinha que ser grave o suficiente

para ele me manter escondida a seiscentos quilómetros de Paris.

Sim, provavelmente seria mesmo grave. E sério.

114

O meu pensamento não me levava para muito longe de Paris e das tarefas que deveria

fazer, nos sítios onde precisava de estar e não estava. Não. Precisava de alterar a minha

estratégia. Eu não podia sair de Estrasburgo, era uma espécie de segredo de estado, que só

eu e David partilhávamos. Relembrava-me muito nitidamente das palavras dele, referindo

que eu, aqui, estaria em segurança. Não tinha hipótese a não ser confiar nele.

E já agora que estava numa cidade que desconhecia, mais valia aproveitar, enquanto aqui

estava, para levar a cabo visitas culturais. Ia ser uma semana em cheio.

Nessa mesma tarde comprei um mapa de Estrasburgo, onde também podia

encontrar as mais variadas sugestões de locais para visitar. Comecei por sair do hotel, para

desembocar a quinze minutos dali na Place de la Catédral onde se situava um

extraordinário edifício que se denominava Le grand ange rose de Strasbourg. Era uma

elegante catedral gótica com uma fachada absolutamente maravilhosa. Toda a restante

tarde foi passada no interior da catedral, onde pude acompanhar algumas visitas guiadas

que revelavam todos os segredos e pormenores extraordinários que se escondiam em cada

estátua, em cada vitral, em cada pilar. Apesar de qualquer componente do interior da

catedral ter uma complexa história por detrás, o que mais me chamava a atenção era, sem

dúvida, o Relógio Astronómico – L’horloge astronomique – que consistia num misto de

ciência, tecnologia e arte e, segundo um dos guias, a peça de arte que melhor reencarnava

o espírito renascentista.

Já o sol se estava a pôr quando finalmente regressei ao hotel, preparando-me para o jantar.

Ainda que não estivesse particularmente ensonada, queria dormir descansada para

aproveitar o dia seguinte que iria ser dedicado inteiramente a passear por Estrasburgo.

Eram perto das onze horas da noite quando me decidi deitar, após ter conversado com os

meus pais ao telefone e de ter sido particularmente difícil mentir-lhes tão descaradamente.

Nessa noite praticamente não preguei olho. Era horrível estar deitada e não conseguir

dormir, principalmente à noite, quando o silêncio e a escuridão nos prega as maiores

partidas e os piores – e mais improváveis - cenários se tornam autênticas tragédias.

Desesperada, contava os minutos a passarem, olhava inúmeras vezes pela janela do quarto

à procura de nada nem ninguém em particular, confirmava várias vezes as horas, assim

como a chegada de zero mensagens no telemóvel… era simplesmente esgotante, não

conseguir dormir.

Quando finalmente começava a amanhecer, resolvi preparar-me para ir tomar o pequeno-

almoço e dar início à minha pequena odisseia pela cidade. Mal saí do hotel, pude constatar

que fazia um frio de rachar, excessivamente rigoroso para uma manhã de Março. Voltei a

115

desembocar na Place de la Catédral, mas hoje iria explorar outras zonas, pelo que

comecei por observar, mesmo junto à Catedral, a Maison Kammerzell, uma moradia

mercantil que se destacava pela sua construção massiva em madeira, com inúmeras

janelas minuciosamente esculpidas com as variadas figuras do Zodíaco, heróis da

Antiguidade Clássica e das lendas medievais, entre outras. Inclusivamente, foi numa

pequena loja de recordações onde entrei para pedir indicações que me informaram que

aquela sumptuosa moradia tinha uma quantidade tão elevada de janelas simplesmente para

ostentar riqueza, pois na altura em que havia sido construída, pagava-se imposto por cada

janela existente.

O meu dia na cosmopolita cidade de Estrasburgo estava agora a começar e foi passado em

locais como La Place du Marche-aux-Cochons-de-Lait, à qual se chegava facilmente

aproveitando uma das ruelas que saíam da Place de la Catédral; mais tarde, um passeio

pelo enorme Chateau Rohan, pela Place Gutenberg e, para terminar o dia em cheio, um

extraordinário passeio de barco pelo rio Ill, uma viagem que se revelou lindíssima.

Cheguei ao hotel já de noite, cansadíssima de toda a minha actividade cultural, em

formato intensivo. Estava verdadeiramente convencida que nessa noite fosse dormir

profundamente, mas estava enganada. Adormeci cedo, para acordar absolutamente

eléctrica às três horas da madrugada, sem forças para me obrigar a dormir novamente. A

carga de adrenalina que tinha a circular dentro de mim deveria estar a atingir níveis

absolutamente invulgares.

Mais uma vez, fiquei acordada até ao amanhecer, momento em que dava início a mais um

dia dedicado a explorar a cidade. Hoje, estava decidida a visitar uma zona que me parecia

bastante interessante pois já a tinha observado várias vezes nos postais que se

encontravam à venda no hotel. Era La Petite France e as suas pontes cobertas - Ponts

Couverts.

Foi fácil perceber quando me encontrava na Petite France, pois era, sem sombra de

dúvida, o espaço que mais beleza emanava, de tudo o que já tinha contemplado em

Estrasburgo. Percorri lentamente toda a área, sempre junto ao rio Ill, até atingir Le

Quartier des Tanneurs, onde existiam uns confortáveis bancos de jardim, num dos quais

me sentei por momentos, apreciando a vista que aquele recanto me proporcionava. Era

uma zona verdadeiramente mágica e, por momentos, desejei não ter que abandonar a

cidade nunca mais, onde certamente me perderia vezes sem conta.

116

CAPÍTULO 9 - LAÇOS

ESTAVA A CONTAR OS DIAS…E AS NOITES.

Hoje já era quinta-feira. De David, nem uma palavra. Nada.

Mais uma vez acordei para a minha rotina, nas pequenas férias que fui – literalmente –

obrigada a aceitar. Com a quantidade de desculpas e intrujices que já tinha proferido

durante os últimos dias, mais umas semaninhas e tornar-me-ia numa verdadeira mestre da

mentira. Era lamentável estar a mentir desta maneira por alguém e por algo que eu não

sabia o que era. Ainda. Eu não estava esquecida, ele tinha-me prometido respostas.

Só esperava que ele fosse fiel à sua palavra.

Todos os dias – e hoje não era excepção – a minha primeira acção matinal consistia em

ver se tinha alguma mensagem no telemóvel, que estava sempre com som, não fosse eu

deixar passar algum aviso durante o leve sono que dormia. Após constatar o óbvio :

0 mensagens novas – dava início à minha rotina: um duche rápido, vestir algo

confortavelmente quente, compor o cabelo e tentar esconder as marcas físicas de alguém

que tem dificuldade em dormir, que sente saudades de casa e que está desesperadamente

ansiosa. Ainda tinha uma quantidade enorme de dinheiro e certamente não o iria gastar

todo, pelo que, mais uma vez, retirei uma pequena parte para comprar as senhas das

refeições diárias.

Saí do quarto e dirigi-me ao elevador, pensando no que iria escolher para o pequeno-

almoço. Havia uma reduzida fila de pessoas na área das refeições, todas elas consistiam

em turistas, pequenas famílias com crianças ainda impertinentes do recente despertar.

Afinal, eram nove e meia da manhã. Sentia os olhos cansados, mas tinha uma séria

dificuldade em adormecer, principalmente à noite; como resultado de um sono nocturno

intermitente, durante o dia sentia um cansaço imenso, em especial depois das refeições,

quando regressava para o quarto e me deparava com um imenso nada para fazer.

E hoje não era excepção. Após um pequeno-almoço composto de lait au chocolat

acompanhado de croissant com doce de morango, regressava vagarosamente para o

quarto, lutando contra o sono que teimava em apoderar-se de mim. A sensação que tinha

era que não dormia há vários dias, – o que não era, de todo, incorrecto. Talvez hoje

devesse render-me ao descanso que o corpo me pedia. Ao chegar ao quarto, optei por

recostar-me na cama, descansar durante umas horinhas, para depois aproveitar a tarde e

visitar um pouco mais de Estrasburgo. Foi numa imensidão de planos e guiões de visitas

117

turísticas que adormeci profundamente, embalada pelos ruídos diurnos da calma cidade de

Estrasburgo.

Acordei por mim própria, para encontrar o quarto já coberto de uma luminosidade

branco-azulada, sinal de que já estava a anoitecer. Quantas horas teria eu dormido? Nove,

dez? Não sabia, mas sentia-me bem mais revigorada. Estirei-me preguiçosamente e

deixei-me estar, mantendo ainda os olhos fechados, deixando fluir o adormecimento que

ainda se ocupava de mim e pensando em que horas seriam. Faltaria muito para a hora do

jantar? Na verdade, já sentia um ligeiro apetite.

Como reflexo, procurei o telemóvel para ver que horas eram. Mal o encontrei, vi algo que

quase me fez parar o coração: 1 mensagem nova. Trémula, respirei fundo um par de

vezes até conseguir a concentração – e coragem – suficiente para clicar na tecla correcta e

ver a mensagem, que muito provavelmente seria de David.

E no visor o que aparecia era o seguinte:

Detalhes na Recepção.

David.

Típico. Pensei eu, com algum sarcasmo.

Era impressionante. Provavelmente ele já estaria em Estrasburgo, já tinha estado no hotel

e mantinha-me numa irritante ignorância. Dei por mim a sair do quarto e a dirigir-me ao

elevador, a caminho da recepção, pensando na forma mais adequada de abordar quem lá

estivesse. Ao sair do elevador, constatei que, de facto, subtileza e descontracção eram

duas características que eu tinha dificuldade em combinar.

- Eh… alguma mensagem para o quarto 411?

- Nome, por favor.

- Maria Aires Brito.

- Aqui tem.

- Obrigado.

A mensagem consistia num envelope igual ao que David me tinha entregue na estação de

comboios em Paris, pelo que era mais uma confirmação de que a mensagem era mesmo

dele e estava endereçada a alguém com o meu nome - Maria. Com um nervoso miudinho a

apoderar-se de mim, apressei-me a voltar para o quarto, optando agora pelas escadas, pois

estava demasiado impaciente para esperar pelo elevador.

118

Entrei no quarto e sentei-me na beira da cama, constatando que estava bastante ansiosa e

trémula com a expectativa de ler o que escondia o interior do envelope. Pelo aspecto, o

conteúdo deveria consistir somente numa folha de papel. Decidida, abri-o, para encontrar

uma breve mensagem:

Às 21.30 h . Place de la Catédral.

David.

De facto, um simples detalhe. Um encontro.

Finalmente ia ter as minhas respostas, pensamento que me fez esboçar um leve sorriso.

Reli a mensagem. Place de la Catédral. Sim, eu já sabia onde era, tinha passeado por lá

todos os dias, enquanto visitava a cidade. Durante quatro longos e penosos dias.

Não pude evitar reparar na frieza da mensagem. Nem olá, nem estás bem, somente uma

comunicação, o dito “detalhe”, sem mais. Constatar esta realidade entristecia-me

inexplicavelmente, embora não me surpreendesse. Então, ele é um vampiro, não poderia

imaginar mensagens inundadas de adjectivos calorosos, como eram as de Shiva, ou as de

Adéle, ou até de quaisquer outros colegas… humanos. Não me podia esquecer que ele não

era humano e que, portanto, nunca poderia agir como um deles. Ainda assim, depois de

tantos episódios com David, parecia impossível que ainda me deixasse surpreender com a

sua frieza e o seu mistério. Mas ainda assim, esquecia-me. Constantemente.

Olhei para as horas. Eram vinte horas e trinta minutos. Talvez fosse melhor ir jantar,

preparar bem o estômago para o célebre encontro – ou, melhor caracterizado, como sessão

de esclarecimentos – na tão famosa Place de la Catédral. Na verdade, a última coisa que

me apetecia fazer neste momento era comer.

Praticamente piquei o jantar e às nove horas da noite já estava de volta ao quarto. Tinha

algo a constrangir-me o corpo e a alma, chamava-se David e era um vampiro. Não sabia o

que esperar deste “encontro” e estava a sentir-me estupidamente ansiosa. Alguns minutos

mais tarde sentia-me ridícula, por estar a deixar que a simples presença dele me afectasse

tanto. Talvez fosse pelo facto de ele ser um vampiro, ou talvez fosse a expectativa das

revelações que ele me tinha prometido. Sim, provavelmente era isso.

119

Aproximei-me da janela do quarto e abri-a lentamente para verificar como estava a noite.

Excepcionalmente fria. Corria uma brisa leve mas cortante e, como tal, eu teria que sair

bem agasalhada. Encerrando novamente a janela, dirigi-me à casa-de-banho e observei

com algum detalhe a minha imagem reflectida no espelho. Transbordava agitação. Não

era típico de mim lidar desta forma com as situações. Quão diferente eu era agora?! O que

eu daria para ser um pouco da Maria que eu conhecia, calma e serena, capaz de lidar com

o maior sangue-frio com qualquer situação que se apresentasse!! Mas esta “situação” não

era comum, longe disso. E essa invulgaridade tinha-me modificado, exigindo de mim

outras atitudes, outros sentimentos, outras emoções.

Tentei pentear-me, dando uma forma aceitável ao cabelo, enquanto colocava uma espuma

controladora de volume que ainda não tinha experimentado (aconselhada por Shiva),

apesar de o cabelo dela ser excepcionalmente liso e sem volume, exactamente o oposto do

meu. Se queria conselhos de cosmética, seguramente seria ela a fonte mais actualizada

sobre o assunto.

Olhei para o que trazia vestido: camisola de lã rosa claro, calças de ganga e confortáveis

botas a condizer, um todo aconchegante. Só faltavam agora os meus indispensáveis

acessórios para poder sair e não congelar, ou seja, o volumoso cachecol dos mesmos tons

e as luvas que o acompanhavam. Preparei-me para sair, procurando não me esquecer de

nada enquanto vestia o casaco – o telemóvel, as chaves e…o envelope com a

“mensagem”, ainda que duvidasse que fosse precisar dela. Ainda olhei mais uma vez para

a minha imagem ao espelho. Estava na hora de receber as minhas respostas.

Saí do hotel e encaminhei-me, calmamente, pelas ruas de Estrasburgo, pelo

caminho que eu já conhecia, que já tinha repetido durante quatro dias. Não encontrei

ninguém na rua, à excepção de um senhor idoso que passou por mim com uma expressão

desejosa de chegar ao conforto do lar, claramente visível na sua face engelhada. A cidade

estava calma, imersa num silêncio imponente, ouvindo-se somente a leve brisa que,

ocasionalmente, fazia mover as árvores e quebrava o silêncio da noite. Alguns momentos

depois fui invadida pelos discretos ruídos do rio Ille, que fluía tranquilo, chamando-me a

atenção. O luar reflectia na superfície da água, dando-lhe um aspecto quase celestial, de

uma beleza extraordinária. Senti uma vontade quase inexplicável de ficar ali, a contemplar

o rio e a sua perfeição, como se nada mais importasse.

Olhei para as horas, eram nove horas e vinte minutos. Eu ia chegar antes da hora.

120

As ruas por onde passava agora estavam completamente vazias, a única companhia que

tinha era a luz proveniente dos candeeiros e das inúmeras lojas que ia encontrando ao

longo do caminho. Estava a aproximar-me da praça e hesitei levemente quando vi que

tinha que percorrer a rua lateral da Catedral, que estava muito pouco iluminada. Ocorreu-

me, naquele momento, a possibilidade de a mensagem não ser de David.

E se for uma armadilha?

Pensar nesses termos fez-me hesitar e abrandei o passo até parar completamente, mesmo

antes de cruzar a esquina que me levaria à rua lateral. Será que algum dos outros

descobriu onde eu estava e está aqui para me apanhar? E David? E… eu?

Por um lado, senti-me a fraquejar e considerei, por breves instantes, voltar para trás, mas

por outro, tinha a completa noção de que estava a ser extraordinariamente cobarde e a

desconfiar das certezas absolutas que David me tinha prometido. Teria que arriscar.

Agora sentia, novamente, aquela segurança, aquela convicção que me dizia para ir em

frente, para confiar nas palavras dele, como já o tinha feito outras vezes.

Inspirando fundo, encaminhei-me firmemente para a Praça da Catedral, já conseguia ver a

Maison Kamerzell e os inúmeros cafés que animavam aquela pequena área.

Ao chegar à Praça, constatei que não estava sozinha, o que me acalmou parcialmente.

Estavam várias pessoas sentadas alegremente a conversar nos vários restaurantes e cafés,

enquanto outros passeavam sem pressa, sem se encaminharem numa direcção concreta.

Olhei em meu redor e novamente para o meu relógio. Eram exactamente vinte e uma

horas e vinte e cinco minutos e não via sinal dele em sítio algum.

Estava exactamente no centro da Praça, com a Catedral por trás de mim, sentia-me algo

exposta. E agora? Bem, teria que esperar. Olhei novamente em meu redor, tentando

encontrar um sítio recatado e discreto onde me pudesse sentar.

Não tive tempo para chegar a uma conclusão, porque repentinamente ouvi uma voz

exactamente atrás de mim.

- Chegaste mais cedo.

Aquele sotaque inconfundível. David. Instantaneamente senti o meu ritmo cardíaco

acelerar. Virei-me repentinamente, para encontrar a sua misteriosa face, que escondia uma

ligeira satisfação sob a forma de um discreto sorriso. Restava, agora, saber porquê. Não

pude evitar ficar algo surpreendida.

- Tu também.

- Já cá estou há algum tempo - informou ele.

- Ah…

Já calculava.

121

Olhei-o com alguma surpresa. Ele estava diferente; menos sombrio, menos frio, mais

expressivo, mais… leve, como se tivesse sido aliviado de um fardo pesado e prolongado.

Ainda que mantivesse as marcas físicas tão características da sua espécie, hoje ele parecia

alguém bem mais alegre, alguém que, finalmente, podia ser ele próprio. Definitivamente,

nem parecia o mesmo. Até a voz dele admitia um timbre bem mais afável.

Como sempre, vestia as suas escassas e escuras peças de roupa, como se estivéssemos

numa amena noite de Primavera de um país tropical.

- Vamos? - Sugeriu ele.

- Onde?

- Caminhar. Tenho uma promessa a cumprir, não me esqueci - referiu ele, como se fosse

uma constatação muito óbvia. Por um lado, estava grata que tivesse sido ele a relembrar-

se da sua própria promessa. Sem dúvida, facilitava-me a vida.

Começámos a caminhar lentamente lado a lado, na direcção de La Petite France.

Estávamos a aproximar-nos do rio, pois já conseguia ouvir o barulho da ondulação a

embater no passeio. Não pude deixar de comentar a leveza que dele emanava.

- Estás… bem disposto.

- É esta cidade. Tem este efeito em mim - afirmou ele, mais como um desabafo.

- O que tem de especial?

- É uma cidade muito controlada. Nós só podemos entrar aqui com permissão.

- Vocês?...

- Sim. É a única cidade no país onde os humanos não são… caçados.

Não pude evitar sentir-me aliviada com a sua constatação, embora não fizesse ideia do

porquê dessa realidade.

- Porquê?

- Aqui é a residência de um… indivíduo importante da nossa espécie, o chefe de estado

francês. É a nossa autoridade máxima. É muito exigente e não permite a alimentação em

humanos na cidade.

- Por isso é que me trouxeste para aqui?

- Sim.

Ainda que não compreendesse totalmente toda esta realidade, estava a tornar-se mais

esclarecedora e, agora sim, era o momento de colocar as perguntas correctas, enquanto

caminhávamos pelos calmos passeios à beira-rio.

- Mas…o que é que se passou?

122

- A realidade é muito complexa, Maria - afirmou ele, enquanto olhava para nada em

concreto. Mais uma vez, a sua afirmação mais parecia um desabafo e admitia um tom

triste que não me era estranho de todo.

- Eu… imagino que seja.

- Eu não sou companhia para ti…nem o que me rodeia - disse ele, enquanto me olhava

com a tão característica intensidade no seu olhar, deixando-me sem palavras. O tom de

voz dele era sério, o que deixava adivinhar a austeridade das palavras que ele pretendia

empregar.

- A tua vida tem estado em risco desde que testemunhaste actividades da minha espécie.

Nós, vampiros, vivemos como uma sociedade, tal como a vossa e… entre vocês. Desde o

pôr-do-sol até ao amanhecer, partilhamos o mundo com os humanos, mantendo um

equilíbrio delicado. Contudo, há regras e leis que têm que ser obrigatoriamente cumpridas

para que o sistema funcione. E aqueles que querem fazer parte dele são obrigados a aceitar

e a cumprir as regras.

Eu, Nevio, Pierre e Gustave somos responsáveis por vigiar uma das zonas periféricas de

Paris, que inclui Montmartre, Sacré-Coeur, até à Boulevard Clichy. Basicamente nós

controlamos qualquer actividade inadequada ou reveladora da nossa espécie. Outros como

eu são responsáveis por controlar outras áreas e, desta forma, Paris está constantemente

vigiada e o segredo da nossa espécie salvaguardado. Este sistema funciona e existe em

todas as cidades e países da Europa. Desta forma, a nossa existência é manejável e não

arriscamos exposição, deixando o conhecimento da nossa espécie a um número de

humanos muito restrito e controlado.

- Então e… quando alguém vê o que não deve? - Arrisquei eu, embora já imaginasse que a

resposta não iria ser, de todo, optimista. David olhava-me de soslaio, numa tentativa de

encontrar a forma mais suave de me comunicar algo desagradável.

- Quando um humano testemunha qualquer tipo de actividades da minha espécie, deverá

ser obrigatoriamente silenciado. É esse o meu dever, assim como o dos meus colegas.

- Ah!!

Não pude evitar sentir um arrepio na espinha ao adivinhar o fatal destino a que t inha

escapado. Por agora.

- A primeira vez, em Montmartre, percebi que não foi significativo, mas depois…

começaste a fazer perguntas – esclareceu ele.

- Como é que soubeste?

123

- Eu sei de tudo o que se passa com as minhas vítimas – explicou ele, enquanto olhava na

minha direcção, como se fosse uma constatação muito óbvia. Talvez eu tivesse razão e ele

fosse mesmo omnipresente. Ou então, muito bem informado. E continuou.

- Mas as coisas complicaram-se naquela noite na Cité Universitaire quando viste mais…

explicitamente o que estávamos a fazer. E aí, nós tínhamos o nosso dever para cumprir,

independentemente do acaso que te levou àquele sítio, naquele exacto momento.

O olhar dele era, agora, sério e vi-o respirar fundo antes de continuar.

- Foi a partir daí que começaram, efectivamente, os problemas. Eu responsabilizei-me por

tratar do assunto, mas a tarefa revelou-se bem mais… complexa do que eu estava à

espera. Eu…

Eu olhava-o perplexa enquanto ele hesitava, procurando claramente as palavras

correctas para pronunciar. David contemplava, agora, a superfície da água que corria,

calma, ao nosso lado.

- Eu… simplesmente não consegui fazê-lo. Não me parecia correcto, porque tudo não

passava de uma casualidade. Por isso… levei-te para casa.

- Sim, eu lembro-me muito bem desse momento - afirmei eu, enquanto relembrava as

imagens daquele terrível episódio.

- Estavas francamente assustada, se bem me lembro - sorriu ele, levemente.

- Tinha boas razões para estar assustada.

- Seja como for, na semana passada quando cheguei a casa, tinha uma massa muito

revoltada à minha espera. Nevio viu-te e ficou muito encolerizado, porque obviamente

pensava que eu já tivesse tratado do assunto. De ti. Foi uma confusão. Nevio censurava-

me em italiano e os outros…bem, o olhar deles era de óbvia reprovação.

- E então?

- Então, fomos pedir aconselhamento ao nosso superior e tutor, Lothaire La Croix. É ele o

responsável pela vigia da nossa área em Paris, é ele que autoriza e monitoriza todas as

nossas actividades, contacta com os responsáveis pelas outras zonas e, desta forma,

funcionamos como um todo, praticamente sem falhas. Lothaire é um vampiro bastante

ancião e muito inteligente, tem as suas capacidades refinadíssimas. Graças à sua enorme

compreensão, ele disponibilizou-se a ouvir-me, apesar do escândalo que Nevio incitou.

- E o que é que lhe disseste?

- Primeiro expliquei-lhe como se tinham passado as coisas na Cité, incluindo que os meus

colegas tinham sido bastante irresponsáveis em alimentar-se daquela forma. Procurar

presas e expor-se daquela maneira é um erro infantil para vampiros da nossa idade.

124

Depois, argumentei que um humano não deveria ter que pagar com a vida pela

irresponsabilidade deles.

Apesar de tudo, já esperava que a reacção dele não fosse a melhor. Ficou muito sério,

irritado e…claramente desiludido comigo, connosco. Em vinte anos de ensinamentos,

nunca algo assim tinha ocorrido. Nem uma falha, nem um engano, nem uma hesitação.

Por fim, ele comunicou-me o que eu já sabia: teria que obedecer às regras,

independentemente das circunstâncias. Teria que silenciar-te.

Seguiu-se um silêncio desagradável, enquanto David olhava com seriedade para

um ponto perdido algures à sua frente, antes de continuar.

- Eu tentei, várias vezes. Eu tentei...

A sua face era agora um espelho de dor e frustração, contemplando o vazio com

uma expressão de culpabilização que me surpreendia.

- …Mas…não conseguia.

- Era por isso que aparecias à porta do meu prédio? Para…

- Sim… – sussurrou ele.

Perceber agora as verdadeiras intenções das suas esporádicas visitas chocava-me

ainda mais, embora não me surpreendesse de todo. Suspeitar de algo estranho era

claramente diferente de confirmar os factos e, agora, tudo fazia sentido. A sua postura, as

suas expressões, a sua antipatia, o seu evasivo discurso e o mistério que o rodeava, tudo

não era mais do que um estranho conjunto de circunstâncias cujo objectivo

era…aniquilar-me. Agora, relembrava-me do quão ignorante e imprudente tinha sido

naquelas noites em que decidira ir “conversar” com ele.

- Como é que conseguiste… não o fazer?

- Não sei. Provavelmente pensavas que eu era louco.

- Talvez mais…estranho, assustador…e arrepiante.

- Seja como for, ou era eu a tratar do assunto ou…eram eles. Isso, então, seria impensável.

Eu não podia deixar que eles tratassem de ti. Seria… cruel. E foi por isso que eu apareci à

tua janela àquela hora da madrugada. O resto… bem, já sabes como foi.

Cruel. Era uma palavra que pressupunha muitos significados, que eu nem queria

imaginar o que poderiam, realmente, implicar. Contudo, muito provavelmente relacionar-

se-iam com algo semelhante ao que tinha ocorrido àquele rapaz, naquela fatídica noite na

Cité Universitaire.

- E nestes dias, o que é que se tem passado?

- Depois de te deixar na estação de comboios, assegurando-me de que já estavas segura, a

caminho de Estrasburgo, voltei para casa e fui falar com Lothaire. Claro, praticamente

125

nem foi necessário falar porque foi suficiente o olhar dele para adivinhar o que eu tinha

feito.

- Ele consegue fazer isso?

- Sim, quanto mais velhos são os vampiros mais… perspicazes são. Ele limitou-se a olhar-

me, apesar de eu ainda ter começado explicar-lhe o porquê da minha atitude e as minhas

razões.

- E…?

- E ele avisou-me acerca das consequências de desobedecer directamente às regras.

- Consequências?

- Sim, por desobedecer a uma ordem expressa eu tenho que responder a instâncias acima

do meu tutor. É algo semelhante aos julgamentos, na vossa sociedade.

- E o que é que isso significa, concretamente?

- É… uma espécie de pró-forma, nada de especial.

- Claro, “nada de especial” - referi eu, com algum sarcasmo. Como se eu acreditasse que,

no mundo dele, algo fosse assim tão simples. - E não há hipótese de…

- Maria, tudo isto já atingiu um nível do qual não é possível retroceder - interrompeu-me

ele, com seriedade na voz e no olhar. - Mas… eu tenho estado a tentar pensar numa

solução que provavelmente vai funcionar.

- Que provavelmente vai funcionar?

- Maria, tens que compreender que, no meu mundo, certezas é algo que não existe.

Pois, e no meu também não.

- E que solução é essa?

- Eu pedi uma audiência para o nosso chefe de estado, Philippe Vignet. Ele é o chefe-

máximo, é ele que detém toda a autoridade em França e, felizmente, acedeu em ouvir-me

– declarou, firmemente.

Uma audiência com o chefe de estado vampiro. Ele estava, seguramente, louco e eu…

estava metida numa linda confusão.

- E o que é que lhe vais dizer? - Disparei eu, com óbvia preocupação e ansiedade na voz,

sentindo-me claramente oprimida, de tal modo que parei de caminhar para encontrar o seu

olhar.

- Não precisas de te preocupar com isso, já tenho tudo pensado.

- Não preciso de me preocupar? Como é que podes dizer uma coisa dessas?

- Maria, ouve! - Interrompeu-me ele, novamente, enquanto me fitava fixamente e me

segurava o meu braço esquerdo, como se quisesse assegurar-se que eu não fugia. - Se há

alguém que pode alterar esta realidade, é ele. Pode poupar-te a ti e absolver-me a mim.

126

- Mas e se…

- Não podes pensar assim.

- Não consigo pensar de outra maneira! - Exclamei eu, visivelmente descontrolada,

enquanto me tentava libertar dele. Estava assustada. E tudo isto era demasiada informação

para eu conseguir gerir assim tão… repentinamente. Olhei em meu redor. A noite

continuava calma, sem um único ruído; o luar reflectia na superfície do rio Îll que, agora,

se encontrava a escassos metros. David permanecia estático, sem se mover, dando-me

espaço para me movimentar e olhava-me com óbvia curiosidade. Olhei-o por alguns

momentos. As roupas escuras que trazia, junto com o seu negro cabelo salientavam a

palidez das suas feições, assim como a intensidade do seu olhar, que era…ofuscante. Este

era um daqueles momentos em que a sua transparência era incomodativa, mas agora, não

pelas piores razões, pois dele emanavam preocupação e … afecto.

- Preciso de me sentar - sussurrei eu, enquanto me dirigia a um banco de madeira próximo

de nós, à beira-rio. Ao sentar-me, verifiquei que David já se encontrava sentado ao meu

lado, com uma expressão pesada na face.

- Eu sou o responsável por te ter envolvido nesta situação. O mínimo que posso fazer é

tirar-te dela.

Viva, de preferência, pensei eu, de forma imediata, ao processar as suas palavras.

Estava demasiado atónita para elaborar qualquer tipo de raciocínio, por muito elementar

que fosse. Foi David que interrompeu o pesado silêncio que nos rodeava.

- Se tens perguntas, agora é a altura certa para as fazer.

- Estou… assustada.

Não era uma pergunta. Simplesmente verbalizava o que sentia naquele momento,

enquanto olhava fixamente para a mínima ondulação que se formava ocasionalmente à

superfície do rio.

- Não te vou dizer para não te sentires assim. Só te posso garantir que não estás sozinha

nesta… situação.

- Obrigado… acho eu - sussurrei, enquanto olhava na direcção dele, à minha esquerda.

Seguiu-se um silêncio de alguns momentos, necessário para me consciencializar do que

ele me tinha informado. David não me interrompeu, nem proferiu nenhuma palavra,

simplesmente se limitou a esperar que eu o abordasse novamente.

- Há algo que eu não compreendo – desabafei eu, repentinamente, captando a sua atenção.

- O que é?

- Porque é que me envolveste nesta situação? Porque é que não conseguiste… tratar de

mim?

127

- É uma pergunta difícil… - expirou ele, com uma expressão frustrada na face.

- É?

- É…

Senti-o a hesitar. E eu já sabia o que isso significava.

- Se não quiseres responder, não respondas - afirmei eu, secamente.

- Não é que eu não queira. O problema é que… eu não sei a resposta.

Fiquei chocada. Não acreditava no que estava a ouvir.

- Estás a tentar dizer-me que não sabes porque é que me meteste a mim… e a ti nesta

situação? Desculpa, mas tenho muita dificuldade em acreditar nisso.

- Não estou a mentir. Eu, simplesmente, não sei.

Era muito difícil acreditar que ele não soubesse a razão que o movia. Não, era

mesmo impossível. O que estaria ele a esconder? O que seria assim de tão desconhecido

que levasse um vampiro a desobedecer tão cegamente às ordens rígidas e inflexíveis às

quais era obrigado a aceder, sabendo as consequências que o esperavam? Olhei-o e,

surpreendentemente, vi na sua face, um reflexo límpido da sua alma, que não escondia

absolutamente nada. E, pude constatar que, de facto, ele não sabia mesmo as razões que

estavam por detrás da sua recente rebelião. O amargurado olhar que dele emanava,

encontrava agora o meu.

- Maria… eu guio-me pelos meus instintos. Mas não sei a razão pela qual eles me

impedem de te aniquilar.

- Mas não te impediram de aniquilar outras vidas.

- É… diferente.

- Não estou a ver como é que pode ser diferente…

- Maria… - interrompeu-me ele, mais uma vez, olhando-me fixamente. - …alguma vez

sentiste um impulso súbito e estranho que conduzisse a tua força de vontade de uma

forma… incontrolável?

Ora aí estava algo que eu não conseguia explicar… e ao qual também não

conseguia reagir. Palavras subjectivas e graciosas, entrelaçadas num discurso elegante,

debitado por uma criatura capaz de aprisionar qualquer olhar humano de uma

forma…extraordinária. Obviamente, não fui capaz de concluir nada acerca do tal impulso

incontrolável capaz de aprisionar intenções. Mesmo que quisesse. Com muita força.

- Vocês são criaturas muito estranhas - concluí eu, em tom de desabafo, sem coragem para

admitir que não fazia ideia do que ele falava. - Já te tinha acontecido antes?

- Não…

- Vês? É isso que eu não entendo – desabafei eu, novamente consternada.

128

- Eu também não…e acredita que é tão frustrante para ti como para mim - disparou ele na

minha direcção, como se constatar essa realidade o enfurecesse. O olhar dele agora

centrava-se num ponto distante, algures na superfície do vasto rio Îll.

- Não tens perguntas mais fáceis? - Brincou ele, enquanto esboçava um leve sorriso na

minha direcção.

Perguntas!! Nem sequer fazia ideia por onde começar. Fiz um esforço para me relembrar

das minhas pesquisas há alguns meses atrás, das dúvidas que me surgiram, assim como da

mais recente informação que David me tinha proporcionado. Foi com alguma dificuldade

que consegui elaborar uma pergunta que seria, sem dúvida, fácil para ele responder, pois

relacionava-se com as estranhas capacidades da sua espécie.

- Quando te referes à perspicácia dos vampiros, o que é que isso significa…

concretamente?

- A perspicácia é proporcional à idade, como já te tinha referido. Ser perspicaz consiste

em ter a capacidade de perceber o estado de espírito dos outros, tanto vampiros como

humanos. Claro que é muito mais fácil em humanos…

- Estado de espírito?

- Sim, determinadas sensações facilmente exteriorizáveis. Por exemplo, culpa, raiva,

alegria, medo, nervosismo…

- E tu, consegues…?

- Alguns… aqueles mais óbvios, mais… explícitos. Mas também depende da pessoa, se é

mais expressiva, é-me mais fácil interpretá-la; se é mais reservada é mais complicado

discernir o que sente.

Ao ouvi-lo, dei por mim a pensar se ele conseguiria ser assim tão perspicaz em relação aos

meus variados estados de espírito, não só agora mas também das inúmeras vezes que

experimentava variados sentimentos… especialmente quando estava com ele. Dada a

minha inerente transparência, não era muito difícil concluir que sim. Hum…

Seguramente.

- Além do mais, é uma capacidade que se refina com a idade e eu... ainda sou muito

jovem.

- És?

- Sim, sou um vampiro bastante jovem. Nasci em 1944. Mas só sou… assim, há quarenta

e dois anos – asseverou ele, referindo-se a si mesmo como se fosse portador de uma

característica vergonhosa.

- Então, foi…

- Aos vinte e cinco anos de idade. Foi nessa altura que fui…transformado.

129

- Como é que… aconteceu?

- Bem… eu era o filho mais velho de uma família modesta. O meu pai tinha uma livraria

familiar onde eu trabalhava. Londres não era uma cidade muito segura nos finais dos anos

sessenta e, uma noite, eu tive que ir ao armazém tratar de umas encomendas e…fui

apanhado.

- Apanhado?

- Assaltantes. Viviam-se tempos difíceis e certamente pensavam que eu teria dinheiro

comigo. Como não tinha… esfaquearam-me algumas vezes e deixaram-me ali para

morrer. Até que fui encontrado por aquele que me transformou.

A sua face era um espelho de sofrimento, o que revelava, sem dúvida, o quão lhe custava

relembrar aqueles acontecimentos.

- E, aqui estou eu - concluiu ele, com um ligeiro sorriso.

- O que te trouxe a França?

- Cumprir uma sentença.

Não pude evitar mostrar-me espantada com a sua afirmação, até que o ouvi continuar.

- Nos meus primeiros tempos como vampiro, o meu comportamento não era o melhor.

Eram muitas regras para cumprir, pouca liberdade e muita falta de controlo, a todos os

níveis… a dieta, a limitação horária, as novas capacidades… era tudo muito difícil de

gerir. O meu criador deu-me ensinamentos básicos para a sobrevivência, mas as

limitações sociais eram as mais difíceis de suportar. Quando ele me informou que eu

estava proibido de voltar a ver a minha família, tive muita dificuldade em aceitá-lo, por

isso…alguns meses após ter sido transformado, quebrei essa regra.

Encontrei os meus pais, irmão e irmã, ainda a chorarem a minha perda. Mas a dor da

minha mãe…eu senti a dor dela de tal modo que pensei que me incapacitaria para sempre.

E…não tive coragem de me revelar, eles não entenderiam o que eu era nem no que me

tinha tornado. Mas… ainda visitei outra pessoa nessa mesma noite.

- Quem?

- A minha noiva. Nós estávamos noivos quando eu “desapareci”. Ela era…ainda é

enfermeira. Encontrei-a já casada e grávida. Presumo que tivesse recuperado rapidamente

da minha perda. - O seu tom era agora irónico e simultaneamente triste.

- Nessa noite ela estava sozinha e…eu não resisti e mostrei-me. Apareci do nada e

perguntei-lhe se ela era feliz.

- E ela?

- Ela perdeu os sentidos - revelou ele, com um sorriso amarelo. - Acabei por deitá-la no

chão e fui-me embora. Nessa noite ainda fiz uma última visita ao cemitério para visitar a

130

minha própria sepultura… onde fiquei, basicamente a culpabilizar-me até que… fui

encontrado.

- Pelo teu criador – alvitrei eu.

- Sim. Ele… tratou de decidir qual seria a minha sentença. Honestamente, estava tão

chocado com os acontecimentos dessa noite que estava completamente indiferente ao que

se iria passar. Só nessa noite percebi o porquê da necessidade de cumprir as regras que eu

tão obstinadamente quebrei.

- E qual foi a sentença?

- Fui banido do meu país e condenado a um mês de circulação sem alimentação sob a

supervisão do governo Francês. Foi aí que conheci o meu tutor, Lothaire e a instância

acima, Läis.

- Circulação? – Repeti eu, sem compreender ao que se referia.

- Consiste em vaguear entre os humanos durante a noite. Sem alimentação – esclareceu

ele, com uma expressão dolorosa no rosto.

- Isso…deve ser muito…difícil de suportar – balbuciei eu.

- É, bastante.

- E… Läis, conhece-la?

- Sim. Mas só a vi algumas vezes.

- Como é que ela é?

- Bem, ela é…bastante rígida.

- Rígida?

- Extremamente inflexível. É a vampira mais antiga que eu conheço e a autoridade

máxima em Paris. Todos respondem perante ela, incluindo Lothaire e os seus semelhantes,

por isso… imagina o poder dela.

- Ela sabe o que se está a passar?

- Não precisamente. Ela não sabe concretamente o que se está a passar mas pressente a

agitação em que nós nos encontramos, por isso toda esta situação não lhe é completamente

alheia.

- Ainda ninguém lhe disse?

- Ela não precisa que alguém lhe diga porque, como uma verdadeira anciã, ela capta

qualquer alteração mínima na nossa estabilidade individual, revelando-nos facilmente.

Mas Lothaire é obrigado, por lei, a informá-la das ocorrências assim que ela chegue da sua

viagem.

- Ah, ela tem estado ausente… Tenho a sensação que ela, quando voltar, não vai ficar

muito contente com os últimos acontecimentos.

131

- Sem dúvida nenhuma, vai ficar bastante enfurecida. Ela não gosta de ser contrariada.

- Então e…os teus colegas?

- Bem… Nevio… conheci-o quando fui banido do meu país, porque ele estava

exactamente nas mesmas circunstâncias. Ele foi banido de Itália por ter quebrado as

regras…duas vezes. Aparentemente, os italianos são mais brandos no julgamento por

desobediência.

- O que é que ele fez?

- O “nascimento” de Nevio não foi muito agradável, pelo que me constou. Ele não gosta

de falar disso. Aparentemente, o seu criador não o “educou” adequadamente e ele não

conseguia lidar com as suas novas necessidades… e acabou por cometer dois erros graves.

Um deles foi…alimentar-se de alguém à vista de todos; o outro…bem, foi semelhante ao

meu. Então, o governo italiano baniu-o e enviou-o para França, onde foi novamente

julgado e sentenciado por Läis a um mês de exposição durante o dia, sem alimentação.

- Exposição durante o dia? Mas eu pensava que…

- Pois, por isso deve ter sido extremamente agonizante - interrompeu-me ele, com um

semblante sério e continuou. - Cerca de uma hora antes do amanhecer, nós começamos a

sentir a temperatura a aumentar e, à medida que o amanhecer se aproxima, torna-se…

sufocante. Por isso, não consigo sequer imaginar como terá sido para Nevio cumprir a

sentença, encerrado num cubículo perdido em Paris, num terceiro andar, com janelas e

portas não estanques. Foi certamente um mês bastante penoso.

- Mas não serão essas sentenças um pouco… excessivas?

- Não fiques tão surpresa. Läis tem razão, até certo ponto. Têm que haver regras estritas

para que possamos funcionar como uma sociedade civilizada e alguém tem que assegurar

que nós não pisamos o risco. Se assim não fosse, o nosso comportamento seria caótico,

grotesto e extremamente perigoso para a vossa espécie. Não seríamos mais do que grupos

desorganizados de criaturas, aterrorizando a existência dos seres humanos durante a noite,

um pouco como o folclore nos descreve.

O tom dele revelava uma enorme amargura por detrás das palavras que tinha

acabado de proferir, enquanto pausava o seu discurso, momentaneamente. Foi a minha

intervenção que interrompeu o silêncio que se abatia sobre nós.

- Deve ser muito difícil para vocês lidar com… tudo.

- É, especialmente no início. Contudo, à medida que amadurecemos começamos a

acostumar-nos e, eventualmente, acabamos por aceitar a nossa condição, com tudo o que

ela envolve. Não que tenhamos muitas mais alternativas…

- E os outros?

132

- Pierre e Gustave? Eles são os vampiros bem-comportados, trabalham comigo. Ou, por

outras palavras, asseguram-se que nós não pisamos a linha. Afinal, eu e Nevio já temos

cadastro - afirmou ele, com alguma tristeza. - Nós os dois somos… os proscritos.

O semblante dele reflectia uma marcada melancolia e algum pesar. Não deveria ser nada

fácil, um britânico e um italiano, com um historial conhecido de insubordinação, banidos

do seu próprio país, vigiados pela própria espécie como se fossem animais.

- O que é mais difícil para ti? Como vampiro…

- O que mais me custa na minha condição é não poder ver nem saber nada da minha

família. Emocionalmente, é… penoso, embora já tenha aprendido a lidar com essa dor. A

aproximação do amanhecer também é, fisicamente, bastante dolorosa…e a alimentação, às

vezes… é difícil.

O semblante de David era, agora, bastante sério.

- Mas não há alternativas a… nós?

- Infelizmente… não. Já experimentámos várias alternativas…substitutos, animais, sangue

clonado. Mas nada é tão saciante como o sangue humano. Presumo eu que talvez seja dos

variados elementos que existem na vossa circulação, cuja presença é inexplicavelmente

irreproduzível de forma artificial. Por isso, restam-nos os bancos de sangue e a

alimentação… da forma que já viste.

- Mas… e o sangue que obtêm dos referidos bancos? Provêm de dadores humanos!

Deveria ser… suficiente.

- Pensava-se que sim, mas infelizmente… não. A alimentação em humanos é…

indispensável mas, felizmente, ocasional.

- Ocasional?

- Grande parte das nossas necessidades pode ser satisfeita através do sangue proveniente

de dadores. Só quando nos sentimos ansiosos, irrequietos… é sinal de que necessitamos

de sangue humano… fresco. E, tal como eu te disse, isso acontece esporadicamente.

- E o que é esporadicamente…para ti?

- Para mim… uma, duas vezes por mês. Para outros, a frequência pode variar…duas a três

vezes por mês para vampiros imaturos e até dois, três meses para aqueles que já têm uma

idade considerável. Contudo, a idade nem sempre é o factor determinante. Há aqueles que

mantêm sempre um apetite verdadeiramente voraz… mas felizmente esse tipo de

vampiros está bastante controlado…e existe num número bastante reduzido.

- Conheceste algum… assim?

133

- Não, felizmente. Mas ouvi relatos de situações bastante desagradáveis que ocorreram há

alguns anos. Lothaire insiste em manter-nos bem informados, especialmente no que toca a

consequências de desobediências.

- Tu…Vocês…como é que escolhem a…vítima?

- Nós optamos por não… escolher, por assim dizer. É uma das nossas regras. A vítima é

que nos escolhe, ao aproximar-se de nós, ao tentar cativar-nos, ao sentir-se atraída, ao ser

insistente.

- Estás a querer dizer-me que a Nadine é que te escolheu? Sinceramente, mais parece uma

forma de te sentires menos culpado por-

- Nadine estava doente - interrompeu-me ele, subitamente. - Eu conseguia cheirar o cancro

que a consumia. Por isso, sim, eu acredito que ela me tenha escolhido porque, de algum

modo, sentia que eu era a forma de a libertar do sofrimento que a corroía. Não me sinto

culpado por isso.

- Ela… sofreu?

- Não. De todo.

- Posso perguntar-te uma coisa?

- Força.

- Quando me “apanhaste” na Cité Universitaire, eu… perdi mesmo os sentidos ou foste tu

que fizeste alguma coisa? Quero dizer, para além da perspicácia, da rapidez…e da óbvia

habilidade que vocês têm de desafiar a gravidade.

- Bem… sim, fui eu - afirmou ele, sorrindo levemente. - É uma capacidade que nós

temos… enfim, é uma espécie de persuasão não verbal. Basta eu…concentrar-me no que

pretendo e… já está. Torna-se mais fácil conseguir o que quero.

- E funciona… – afirmei eu, mais como uma confirmação que como uma pergunta,

relembrando a forma eficaz como eu tinha “apagado”, resultado da influência dele em

mim.

- Por enquanto, só em humanos – adicionou ele, com um leve sorriso, olhando na minha

direcção.

- Utilizaste essa capacidade na Nadine?

- Sim, mas só quando chegou o momento… crítico - explicou David, visivelmente

incomodado. - Não para ela me escolher.

- Pensar nisso é-te desconfortável?

- É. Se eu pudesse, não me alimentaria em humanos… mas, para meu próprio bem, tenho

que fazê-lo.

- É mesmo necessário?

134

- Se eu… nós não nos alimentarmos de sangue humano fresco, perdemos o controlo dos

nossos instintos e tornamo-nos… selvagens. Por isso, optamos por fazê-lo de forma

esporádica e… monitorizada.

David olhava-me agora de forma leve, mas curiosa, como esperando que eu

continuasse.

- Não tens mais perguntas?

- Hum…Bem…não, de momento.

- Muito bem.

Vi-o levantar-se firmemente do banco onde estávamos sentados há algum tempo, o que

me fez olhá-lo de forma espantada. Onde quereria ele ir agora?

- O que foi? - Perguntou ele.

- Vamos a algum sítio?

A minha ignorância era genuína, enquanto ele me respondia com um sorriso aberto, que

eu nunca lhe tinha visto, visivelmente divertido com a minha pergunta.

- Tu vais para o hotel - explicou ele, olhando-me com firmeza.

- Agora?

- Agora. Sabes que horas são?

As horas. Nem sequer tinha reparado no tempo a passar.

- Já passa da uma da manhã - aclarou ele. Naquele momento senti-me como uma criança a

ser repreendida pelos pais por ainda estar a pé a uma hora tão tardia.

- Não tenho sono… - esclareci eu, com um tom firme.

David semicerrou os olhos, fixando-me com um olhar de reprovação, ainda que mantendo

um leve sorriso na face.

- Não sejas teimosa. Precisas de descansar.

Com isto, estendeu-me a mão, pedindo-me claramente para o acompanhar. Estendi a mão,

tocando na dele. Parecia uma pedra de gelo, pois a sua temperatura era muito semelhante à

temperatura ambiente que se fazia sentir. E o frio dele era-me familiar, um frio que eu

recordava de tantas outras ocasiões em que a minha pele quente tocava a dele, gélida,

como se de um cadáver andante se tratasse. Uma estátua viva, animada por algo

desconhecido, misterioso. Por vezes ele olhava-me estranhamente, de uma forma que eu

não conseguia definir, nem o que significava, nem o seu conteúdo. Tentar compreender

um vampiro era, sem dúvida, complexo. David era alguém misterioso, enigmático,

contudo sabia-o agora um ser extraordinário, com valores e com um elevado apreço pela

espécie humana. Ainda que um pouco esquivo, tinha que admitir que a sua rebeldia o

tornava ainda mais único e, até algo… interessante. O seu intenso olhar esmeralda

135

mantinha-se em mim enquanto eu estava perdida nos meus calorosos pensamentos,

quando me relembrei que, seguramente, ele estaria a depreender o meu estado de espírito

e, portanto, sabia que eu estava… contente, o que me fez sentir uma forte onda de

constrangimento, por estar a expor-me de uma forma tão evidente.

- Não há problema nenhum em te sentires… bem - sussurrou ele, enquanto mantinha o seu

olhar em mim, hesitando claramente em relação à palavra que haveria de utilizar. “Bem”

estava perto, ainda que não fosse exactamente esse o meu estado de espírito. Por

momentos, dei graças a Deus por ele ser um vampiro jovem e de a sua perspicácia ainda

ser algo limitada – por enquanto.

- Vamos? - Sugeriu ele.

- Sim… - respondi eu, repentinamente, libertando-me do seu olhar e retirando a minha

mão da sua, para colocar ambas as mãos nos bolsos do casaco que vestia.

- Então e tu? Não tens um sítio para onde voltar? - Perguntei eu, na direcção dele,

enquanto andávamos, lentamente, pelas ruas desertas.

- Sim, tenho. Mas hoje ainda tenho tarefas para cumprir.

Olhei-o com ar inquisidor, atónita. Tarefas em Estrasburgo?

- Hábitos alimentares… - esclareceu ele, em resposta ao meu olhar.

- Ah…

- Como cheguei há pouco, ainda tenho que encontrar a fonte adequada de alimentação. E

não inclui humanos, fica descansada - explicitou ele, com um sorriso nos lábios, face à

minha expressão de espanto. - Não te preocupes comigo, preocupa-te sim em dormir e

descansar porque amanhã é a noite da audiência.

A referência dele à audiência teve um efeito quase imediato em mim e senti-me

automaticamente com os nervos à flor da pele, o ritmo cardíaco claramente acelerado.

- Às onze da noite, no hemiciclo do Parlamento Europeu - informou ele. Vi-o agarrar-me

o braço suavemente, como se sentisse a minha inquietação, olhando-me fixamente,

enquanto eu, por outro lado, evitava encontrar o seu olhar. - Calma… - sussurrou ele.

- Desculpa, mas não consigo evitar… - balbuciei, nervosa.

- Tens que acreditar em mim. Quando quero, consigo ser muito argumentativo - reforçou

ele, enquanto mantinha o olhar fixo em mim, como se assim se assegurasse que eu

compreendia melhor o que ele estava a tentar transmitir-me.

Não tinha sequer alternativa senão acreditar nele. Tal como tantas outras vezes, tinha

mesmo que acreditar e confiar nele, esperando que os argumentos dele fossem fortes o

suficiente para convencer o supremo vampiro chefe de estado.

136

Caminhámos lentamente e em silêncio até ao hotel onde eu me encontrava, sem proferir

uma única palavra. À porta do hotel, fui eu quem quebrou o silêncio.

- Tu dormes?

- Não à noite.

- Sim, eu sei, mas…onde?

Percebia pela sua postura e olhar, assim como pelo tom e conteúdo – evasivo - das

respostas, que ele não queria avançar no assunto. Arrependi-me quase instantaneamente

de o ter abordado.

- É melhor para ti que não saibas onde eu fico, por uma questão de… segurança.

- O.k. - respondi eu, com intenção de finalizar o frio diálogo que decorria entre nós.

- Mas… sim, eu durmo durante o dia. Num local… seguro.

A sua súbita resposta fez-me olhá-lo, como que surpreendida pela sua intervenção. Era

uma faceta recente nele, a de cedência. Normalmente, ele era muito decidido nas suas

atitudes – se não queria responder-me, não respondia. Ponto. Mas hesitar em responder e

logo ponderar uma justificação era algo absolutamente novo nele.

Ele devolvia-me o olhar, absolutamente sobrenatural. Fora do vulgar. Impressionante.

Como era possível um olhar conter tanto e, ao mesmo tempo, nada? Nada definível, nada

concreto, mas simultaneamente, tudo o que é necessário para que eu me perdesse nele.

- Bem… eu vou… - disparei eu, subitamente.

- Sim, claro… - concordou ele, com um ligeiro sorriso na face, sem nunca deixar o meu

olhar.

- Então…boa noite e… - a minha hesitação surpreendeu-o. Vi-o levantar uma das

sobrancelhas, claramente curioso em relação ao que eu iria dizer em seguida. - …uma boa

refeição.

Que modo ridículo de desejar a alguém “bom apetite”. Sentia-me, agora, verdadeiramente

patética. Libertei-me do seu olhar e aproximava-me, agora, da entrada do hotel.

- Boa noite.

Ainda o ouvi dizer, olhando mais uma vez para o seu semblante, para o leve sorriso que

ostentava e para o extraordinário olhar que dele emanava, enquanto eu desaparecia para o

interior do edifício.

Olhei para o relógio que se encontrava no hall da recepção. Eram exactamente duas horas

da manhã.

137

CAPÍTULO 10 – HEMICICLO

O SONO QUE DORMI NESSA NOITE ESTEVE MARCADO POR VÁRIOS SONHOS.

Eram sonhos bizarros, uma mistura caótica idealizada pelo meu subconsciente, repleta de

episódios que David me tinha relatado. Inúmeras vezes acordei, sobressaltada, com o teor

macabro concebido pela minha mente, tão sobrelotada de informação.

Uma dessas vezes acordei perturbada por um sonho particularmente penoso – cujo

conteúdo envolvia David e a sua noiva, alguém que eu não conhecia mas a quem a minha

mente já tinha conferido rosto, tronco e membros…e até a feição. No sonho, ela tinha-lhe

sido retirada, de uma forma totalmente impiedosa, o seu mundo tinha-lhe sido proibido e

ele observava-a, desesperado, através de uma barreira invisível, como se algo de concreto

os separasse, algo irremovível, algo incontestavelmente poderoso. Até aqui, conseguia

compreender donde provinha o conteúdo do sonho, pois tratava-se das situações que

David me tinha relatado na noite anterior; contudo, a novidade que o meu subconsciente

tinha adicionado era particularmente requintado: eu mantinha-me como observadora,

presa entre os dois mundos – o dele e o dela – e conseguia sentir o que ele sentia naquele

momento, enquanto ele a observava como se fosse a última vez, como se ela se tratasse de

uma peça valiosa, uma obra-prima, a qual só podia observar uma única vez. Como se

aquela fosse a última vez. Dele emanava uma tristeza atroz, de uma intensidade que me

atingia com uma magnitude incapacitante. Sentia-o agora como se fosse eu própria a

interveniente. A sua face era mais expressiva, mais coerente e nele eram marcantes os

sinais de descontrolo emocional - este era o David mais jovem, mais imaturo, incapaz de

lidar com a sua nova vida. Já não era humano e tudo nele tinha sido…destruído.

A sua dor oprimia-me o peito e fazia-me brotar lágrimas, de forma totalmente

inconsciente, sem hipótese de lutar contra elas, acabando por ser a dificuldade em respirar

a responsável por me retirar da revolução emocional que a minha mente tinha construído,

e que eu estava a viver… para finalmente acordar com a respiração ofegante.

Já acordada, sentei-me momentaneamente na cama, tentando recompor a frequência

respiratória, com as imagens do meu sonho ainda muito vívidas, muito recentes.

Conseguia recordar perfeitamente as sensações que tinha experimentado, as imagens que

tinha observado. Só podia concluir que era difícil, assim como injusto… e árduo ter que

passar por algo assim e não poder fazer absolutamente nada para modificá-lo. Ter

obrigatoriamente que conformar-se. E sofrer. Muito.

138

Agora conseguia compreender um pouco do porquê do mistério e aspereza de David. Os

seus quarenta e dois anos como vampiro tinham-no tornado assim, sem hipóteses de poder

voltar atrás e retirando-lhe tudo o que, para ele, tinha significado. Sem dó nem piedade.

Sentia, agora, uma enorme compaixão por ele. Tantas situações, gestos e atitudes eram,

sem dúvida, totalmente justificáveis…e compreensíveis.

Levantei-me e dirigi-me à janela, afastando ligeiramente a cortina. Ainda era noite. Olhei

para as ruas que estavam completamente vazias. Era difícil evitar de pensar onde estaria

David. Teria ele encontrado…alimento? E para onde iria ele dormir? Como seria dormir

para ele? Seria igual ao sono dos humanos ou algo completamente diferente, típico de

outra espécie cujo funcionamento era totalmente desconhecido? Sonharia, ele?

A minha curiosidade, assim como a minha preocupação, eram genuínas, mas tinha a

perfeita noção de que só teria acesso à informação que ele me permitia. Para minha

segurança. As suas palavras ecoavam na minha mente.

Dirigi-me novamente para a cama, aninhando-me confortavelmente nos lençóis,

esforçando-me para voltar a dormir. Precisava de descansar, era um facto. Tal como

David previra, eu estava… sentia-me cansada. E amanhã era um dia importante.

Inquestionavelmente decisivo. - A minha salvação e a absolvição dele.

Era difícil não pensar nas implicações dos acontecimentos prévios… e nos vindouros.

Imersa em dúvidas e questões, acabei por deixar-me vencer pelo cansaço, mergulhando

num sono profundo e calmo.

Foi a luminosidade que inundava o meu quarto de hotel a responsável por acordar-

me do sono que eu só podia classificar de revitalizante. Preguiçosamente, coloquei a

almofada em cima da cabeça, ainda sem vontade de me levantar. Que horas seriam? Argh,

já era tarde, de certeza…e, muito seguramente, muito para lá da hora de almoço.

Sacudi firmemente a almofada, seguida dos lençóis e olhei, procurando o telemóvel.

Encontrei-o no bolso do casaco, onde o tinha deixado ontem, antes de partir para o meu

“encontro” com David, para constatar que eram duas horas da tarde… e 0 mensagens

novas.

O meu pensamento fluiu quase instantaneamente para o evento que iria decorrer esta noite

e para a minha ignorância quase total relativamente a esse mesmo evento, assim como as

circunstâncias que o rodeavam. Era difícil não ficar ansiosa com a perspectiva de ir

conhecer o vampiro chefe de estado, a autoridade máxima da espécie análoga à humana.

Quantos humanos teriam tido a honra…ou a pouca sorte? E quantos deles ainda estariam

139

vivos? Toda esta situação era completamente excepcional e eu só esperava conseguir sair

dela ilesa.

Tentado sacudir os pensamentos menos bons, resolvi concentrar-me nas tarefas que ainda

tinha que fazer durante a tarde de hoje, ainda que não fossem de todo significativas. Só

serviam para passar o tempo.

Após proceder a um relaxante duche, comecei a ponderar no que vestir, nomeadamente no

que seria mais adequado para vestir numa ocasião destas. Haveria alguma etiqueta

específica? Não sabia, – mas, pelo sim, pelo não, talvez fosse melhor optar por algo

semelhante ao que David vestia: escuro e elementar. Observava agora as minhas opções,

avaliando o conteúdo da minha mala de viagem. A maior parte das minhas peças eram

excessivamente coloridas, mas consegui encontrar uma camisola de um tom escuro que

me parecia ser a mais adequada para o evento. Vesti-me e procedi à fase seguinte, que

consistia, como sempre, na tentativa quase herculiana de pentear o cabelo, sempre

auxiliada por uma excessiva quantidade de ganchos. Enquanto procurava – na minha

interminável colecção – uns ganchos discretos, encontrei ocasionalmente um par deles que

tinham a forma de morcegos. Não consegui evitar esboçar um leve sorriso ao imaginar

entrar no hemiciclo do Parlamento Europeu, com o cabelo decorado de acessórios desta

estirpe que, para eles, seria certamente uma piada de muito mau gosto. E, dada a natureza

da audiência, talvez fosse prudente não abusar da minha sorte.

Assim que terminei, dirigi-me à porta e desci para a zona da recepção, onde pretendia

saber as opções que teria no refeitório, pois já eram quatro da tarde. A senhora que lá se

encontrava era a mesma dos dias anteriores, tinha-o sido durante toda a minha estadia no

hotel e, agora, informava-me alegremente que o refeitório estava disponível fora das horas

de expediente para pequenas refeições.

Para minha surpresa, a restante tarde foi passada de forma animada no refeitório onde,

para além de mim, se encontrava um pequeno grupo de escoceses que, ao ver-me sozinha,

trataram de encetar uma acesa conversação. Eram dois rapazes e duas raparigas, todos eles

com uma tez extraordinariamente clara e a cor dos cabelos oscilava entre o louro e o

ruivo, o que os fazia parecer todos da mesma família, apesar de obviamente, não o serem.

Fiquei então a saber que se chamavam John, Ian, Helen e Sarah e pertenciam ao colectivo

de uma escola de dança em Edimburgo. Informaram-me que eram uns ocupantes assíduos

do hotel onde nos encontrávamos e que adoravam França, apesar de “Estrasburgo ocupar

sempre um lugar especial no nosso coração”, tal como referia Ian, com uma certa

nostalgia. Apesar de o nosso diálogo nem sempre ser compreensível, devido à minha

notória dificuldade em descortinar o que diziam por detrás daquele marcante sotaque, -

140

facto que os divertia bastante – mostraram-se bastante surpreendidos quando eu referi que

estava “sozinha” em Estrasburgo, já que nos encontrávamos a meio de um semestre

académico. Com alguma dificuldade em fabricar uma desculpa credível, consegui

convencê-los de que a minha presença em Estrasburgo se devia essencialmente a motivos

pessoais inadiáveis, sem avançar muitos pormenores. De facto, eu já estava a conseguir

confeccionar desculpas tão evasivas como as de David, ainda que não fossem tão

elaboradas. Afinal eu ainda era uma principiante e ele já praticava a sua arte de evasão

linguística havia, pelo menos, quatro décadas.

Já era noite quando voltei para o quarto, após prometer ao animado grupo que não

iria faltar ao espectáculo que eles tinham agendado na sala do hotel reservada para tal, às

nove horas da noite, ainda que não estivesse segura de que o conseguiria realmente pois,

esta noite, eu já tinha compromissos. E bastante sérios.

Dentro do quarto procurei, mais uma vez, o telemóvel. Observei que eram oito horas da

noite, e… 1 mensagem nova. A minha tarde tinha sido excepcionalmente relaxante, mas

agora, todos os meus sentidos estavam alerta. Seguramente que a mensagem era de David.

Sem remetente, datava de há dez minutos atrás e consistia no seguinte:

Às vinte e duas horas em ponto na recepção. David.

Às dez horas da noite. Assim sendo, talvez ainda conseguisse ver um pouco do tão

publicitado espectáculo dos alunos escoceses.

As nove horas chegaram rapidamente, sem dar conta do tempo a passar. Sem mais

delongas, desci para o hall de entrada, onde encontrei um aglomerado de pessoas que, a

julgar pelo sotaque e aspecto, só podiam ser os alunos da escola de Dança. Estavam todos

vestidos da mesma forma, com trajes típicos do seu país de origem, o que tornava fácil

distingui-los entre os restantes residentes do hotel. Todos vestiam a tão característica saia

escocesa, camisa branca e ténis o que de certa forma lhes conferia um aspecto bastante

original. Alguns deles, onde se incluía Ian, traziam boinas e gaitas de foles. Não foi

preciso muito para eu encontrar Sarah e Helen, divertidíssimas, vindas da sala de

espectáculos.

- Que bom! Vieste! - Exclamou Sarah, na minha direcção.

- Eu disse-te que vinha! - Sorri eu, na direcção dela.

- Vamos começar dentro de dez, quinze minutos - informou Helen. - Tenta ficar numa

zona onde consigas ver melhor o espectáculo.

141

- Vai ser muito divertido - reforçou Sarah. - Até já! - Continuou ela, piscando-me o olho,

enquanto se afastava, juntamente com Helen, novamente na direcção da sala de

espectáculos.

Sorri como resposta às suas acesas informações. E eu… ia ter que sair a meio do

espectáculo. Era previsível. O melhor seria tentar encontrar um local na sala de

espectáculos que me permitisse sair discretamente, sem me fazer notar, para que ainda

conseguisse apreciar algo durante o tempo que iria lá estar.

A sala de espectáculos era semelhante aos anfiteatros da universidade, ainda que de um

tamanho mais reduzido e já se encontrava parcialmente cheia. Ao entrar, conseguia ver a

agitação que se apoderava dos alunos que se encontravam por detrás da cortina que cobria

o palco. Sentei-me num local que me permitiria sair sem dar muito nas vistas, mas donde

conseguia ver aceitavelmente o palco onde iria decorrer o espectáculo e, mais uma vez,

olhei para as horas – eram vinte e uma horas e dez minutos.

O espectáculo começou dez minutos depois, já com a sala de espectáculos a abarrotar de

pessoas que incluíam não só os residentes do hotel mas também os responsáveis da

organização, administração e convidados. Aparentemente, era comum esta escola fazer

espectáculos desta magnitude neste hotel. A actuação dos vinte alunos consistia numa

harmoniosa dança que se processava ao som característico da gaita-de-foles, misturado

com as tendências musicais mais actuais. Sarah e Helen, assim como as outras raparigas,

moviam-se graciosamente e até os rapazes mostravam ser uns dançarinos exímios. Pude

constatar que Ian era um dos poucos que tocava instrumentos, sendo menos participativo

na dança. Os alunos eram aplaudidos estrondosamente por várias vezes, em especial

quando algum deles procedia a alguma técnica mais rebuscada, o que fazia com que o

espectáculo se tornasse bastante dinâmico.

Repentinamente, senti o telemóvel vibrar, – eram exactamente dez horas da noite. Nem

tinha dado pelo tempo passar. Estava na hora de me retirar.

Levantei-me sorrateiramente, aproveitando um momento de aplausos e a agitação que se

produzia de cada vez que o elenco se retirava do palco para preparar a seguinte dança.

Avançava agora a passos ligeiros, passando pelo bar, pela sala de convívio, até chegar à

recepção.

Não foi preciso esforçar-me muito para avistar uma imagem que quase me perfura a

retina. David mantinha-se estático, perto da zona do balcão da recepção, a olhar

firmemente na minha direcção, como se adivinhasse de onde eu vinha. E, como sempre,

de mãos nos bolsos. À medida que me aproximava dele, observava que hoje, ele vestia de

uma forma mais… elegante: trazia uma camisa e calças pretas, com uns ténis também

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pretos animados por umas riscas brancas laterais. O conjunto ajustava-se a ele como uma

luva, fazendo-o parecer mais esguio e distinto. Afinal, eu tinha razão – sempre havia uma

certa etiqueta quando o assunto envolvia uma audiência com o vampiro chefe de estado.

Até o cabelo não se encontrava com aquela disposição caótica e desalinhada, mas agora,

sim, mais arranjado, expondo mais da sua pálida face e, por momentos, consegui

distinguir traços que nunca nele tinha observado. Hoje os seus olhos estavam

particularmente expressivos, embora eu não soubesse nem percebesse o porquê. Foi ele

que o primeiro a falar, ainda que mantendo sempre o seu característico tom seco.

- Olá.

- Olá.

- Estás pronta?

Ia responder-lhe que não, quando a voz de Sarah interrompeu o nosso recente diálogo,

enquanto caminhava, vinda da sala de espectáculos, na nossa direcção.

- Maria! Então, foste embora?

O tom dela era de pesar e, simultaneamente, de indignação. Ao aproximar-se de nós,

observei o olhar dela saltar de mim para David, visivelmente admirada. Só agora me

apercebia da tamanha inconveniência que a desculpa “motivos pessoais inadiáveis” que

eu havia dito, poderia agora admitir.

- É… o David - apresentei eu, olhando na direcção dele.

- Muito prazer - afirmou ele, com um aceno.

- Sarah - apresentou-se ela própria.

Sarah observava-o com uma curiosidade genuína e até com um certo atrevimento,

provocando um ligeiro desconforto entre nós. O olhar dela continuava fixo nele,

analisando-o descaradamente.

- És britânico… - afirmou ela, na direcção dele, mais como uma constatação que como

uma pergunta. Ela queria iniciar conversa com ele. Era óbvio.

- Sim - respondeu ele, secamente, sem olhar para ela. - Estás pronta? - Perguntou ele,

subitamente, olhando na minha direcção, como se Sarah não estivesse fisicamente ali,

junto de nós. Estava a gerar-se um silêncio desconfortável.

- Pensava que estavas cá sozinha… - disparou Sarah, agora na minha direcção, com um

tom acusatório e um sorriso malandro, questionando-me com o olhar.

- E estou… – respondi de imediato. - Eh… tenho que ir buscar o casaco ao quarto –

acrescentei eu, por fim, com a voz a fraquejar.

- Eu vou contigo - declarou ele, apanhando-me de surpresa. A minha expressão facial,

naquele momento, reflectia certamente a admiração que eu sentia face à sugestão dele,

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enquanto o observava, boquiaberta. – Se … não te importares - adicionou ele, hesitante,

face à minha reacção.

Sarah limitava-se a olhar-nos com pasmo, como se estivesse a assistir a um diálogo sem

nexo, visivelmente sem compreender a misteriosa comunicação entre eu e David.

- Não… Claro que não.

Foi a única frase que eu consegui elaborar, como resposta.

- Até já - emitiu ele, sem olhar para Sarah, enquanto de dirigia na minha direcção.

- Até já… - respondeu ela, com um tom manifestamente lascivo.

Encaminhávamo-nos agora, lado a lado, na direcção dos elevadores, sem proferir uma

única palavra. Sarah ainda nos observava, certamente, porque eu sentia o olhar dela em

nós, vigiando-nos de longe. Subitamente senti a mão de David no meu braço, o que me fez

olhá-lo quase instantaneamente, questionando-o com o olhar. Como resposta obtive um

breve olhar e um sussurro célere.

- Criança inconsciente… - o tom dele reflectia uma censura absoluta, referindo-se ao

discurso intrusivo de Sarah. E adicionou, - Vamos pelas escadas.

Não questionei a sua opção, nem trocámos uma única palavra até ao quarto, onde entrei.

Já me encontrava no interior do quarto quando reparei que David ainda se encontrava do

lado de fora da porta de entrada. Olhei-o, espantada.

- Podes entrar, se quiseres.

- Obrigado - respondeu ele, entrando lentamente e fechando a porta atrás de si.

- Não demoro, é só mesmo ir buscar o casaco.

A resposta dele consistiu num aceno, em sinal de aprovação. Enquanto me dirigia à minha

mala de viagem para retirar o casaco, observei-o algumas vezes, encontrando sempre o

seu intenso olhar.

- Não tens frio?

- Não.

O tom com que me respondia dava por encerrada a temática, ainda que tivesse consistido

somente numa pergunta, com uma resposta seca. Vesti o casaco e dirigi-me à porta do

quarto, seguida pela presença dele. Novamente optámos pelas escadas, por onde

descemos, sem trocar uma única palavra, até que, por fim, saímos do hotel. Na rua, onde

nos encontrávamos agora, corria, tal como no dia anterior, uma leve brisa que me atingia,

fazendo-me arrepiar. David nem sequer vacilava e podia agora observar como a sua face

estava então mais descoberta e a sua palidez tão marcada que contrastava intensamente

com o seu escuro tom de cabelo, assim como as suas escuras roupas, fazendo-o parecer

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mais uma criatura angelical do que propriamente humano - o que não era, de todo,

mentira.

Seguia-o, agora, ao longo do passeio, sem perceber para onde nos dirigíamos, até que o vi

dirigir-se a um automóvel estacionado não muito longe de nós - era um Toyota Auris

negro, novinho em folha.

- É teu? - Não podia evitar perguntar-lhe, algo surpresa.

- Não, - respondeu ele, com firmeza. - Mas eu tenho bons contactos aqui em Estrasburgo.

E, além do mais, seria impensável irmos a pé até ao Parlamento - acrescentou ele, com um

discreto sorriso, enquanto entrava para o carro - Entra.

Assim o fiz. Alguns segundos depois, já estávamos a caminho, por ruas e avenidas que eu

desconhecia, mas que David parecia conhecer perfeitamente. A cidade estava pouco

iluminada, em comparação com Paris, mas ainda assim tinha um encanto difícil de

descrever. Dei por mim a pensar como gostaria de visitar, poder explorar melhor a cidade

e todos os seus segredos, noutras circunstâncias que não estas; estar em Estrasburgo com

ele sem ter que, para isso, temer pela minha própria vida e, simplesmente, aproveitar tudo

o que a cidade teria para me oferecer, aproveitando a companhia dele. David tinha muitas

facetas, mas agora eu já conhecia aquela em que ele conseguia ser agradável e…normal,

capaz de conversar comigo sem mistérios, nem segredos. O quanto eu lamentava não o ter

conhecido noutras circunstâncias e de não o poder conhecer melhor, ainda que, na

realidade, nenhuma dessas hipóteses fosse possível, pois o meu mundo e o dele eram

inconciliáveis. Proibidos pelas altas instâncias. Constatar esta dolorosa realidade

entristecia-me, pois estava totalmente ciente de que nada poderia fazer para a alterar.

Afinal, eu era uma simples humana, que confraternizava sorrateiramente com um vampiro

e, como consequência, estava metida numa linda alhada. Olhei-o momentaneamente. A

fraca luz que emanava do interior do carro, juntamente com a esporádica iluminação que

provinha dos intermitentes candeeiros que decoravam a cidade, destacava-lhe as feições,

de tal forma que quase parecia resplandecer, tal como o brilho no olhar que já lhe tinha

visto algumas vezes, noutras circunstâncias. Que estranha espécie era esta? O que os

movia? Como suportavam eles o fardo da imortalidade, limitados a vaguear durante a

noite, escondidos entre os humanos?

Foi a voz dele que interrompeu o lamentoso pensamento em que me encontrava perdida.

- O que tens? - Perguntou ele, em desviar o olhar da estrada. Certamente teria sentido

alguma alteração no meu estado de espírito durante a nossa silenciosa viagem.

- Nada… - respondi eu, com um tom de voz que denunciava a minha incerteza.

- Estás triste - constatou ele.

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- Não importa... - respondi eu, com alguma amargura na voz, enquanto olhava para as ruas

praticamente desertas, por onde passávamos naquele momento.

- Não? - Contrapôs David.

- Há-de passar-me - concluí eu, consternada. E, de facto, não tinha hipótese, a não ser

conformar-me com a dura realidade. Uma realidade que eu não podia partilhar com

ninguém – humano – pois envolvia seres de outra espécie que não estavam

particularmente alegres com as minhas involuntárias descobertas. Era frustrante.

David não proferiu nem mais uma palavra durante o resto da viagem, mantendo-se

visivelmente concentrado na condução, - ou, pelo menos, assim parecia - enquanto eu

olhava, distraída, para a paisagem citadina que nos envolvia, tentando abstrair-me do que

me esperava quando a viagem terminasse. A certa altura comecei a distinguir um enorme

edifício, forrado de espelhos e com uma forma que se aproximava à elíptica, pelo menos

da perspectiva que eu estava a ter. Era aquele o edifício do Parlamento Europeu,

certamente. Não precisei de perguntar a David se estava correcta porque, ao vê-lo

estacionar em frente do magnânime edifício, acabava de confirmar a minha suspeita.

Sentia-me algo tensa à medida que o observava a desligar o carro, calmamente, sem

proferir uma única palavra. Foi ele quem quebrou o silêncio que ameaçava esmagar

qualquer hipótese de diálogo entre nós.

- São vinte e duas horas e quarenta. Temos tempo - Afirmou ele, com ar informativo,

enquanto dirigia o olhar na minha direcção. - Preciso que me faças um favor.

- Diz - respondi, mais como um sussurro.

- Tenta… controlar as tuas emoções quando estivermos na audiência. - O olhar dele era,

agora, bastante austero, fixo firmemente em mim. - Ninguém te vai fazer mal, por isso

tenta manter-te sóbria.

- Está bem - afirmei eu, começando a sentir-me assustada com as suas afirmações.

- Não ajuda se vais amedrontada, nervosa e ansiosa para um espaço fechado com

vampiros mais velhos que os monumentos desta cidade - esclareceu ele, com nítida

apreensão na voz, enquanto continuava a observar-me fixamente, com um olhar

absolutamente extraordinário. Apesar de não possuir o tão característico brilho, estava

dotado de uma enorme expressividade e dele emanavam as mais variadas formas de algo

que eu não sabia o que era, mas que, com toda a certeza, afectava o meu ritmo cardíaco,

assim como a frequência respiratória, de uma forma incontrolável. Tal era, para mim e

sem dúvida, ridiculamente embaraçoso.

- Isso… também é de evitar - assegurou ele, sem nunca deixar de fitar-me, agora com um

tom de voz mais leve.

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- Peço desculpa… - disse eu, desviando o olhar e tentando aclarar a garganta, numa

tentativa de abstrair-me do seu intenso olhar, cujo efeito ainda se mantinha em mim. -

Não… voltará a acontecer - esclareci eu, firmemente.

- Muito bem. Vamos - afirmava ele, enquanto saía do carro. Fiz o mesmo e segui-o na

direcção da entrada do Parlamento Europeu.

Caminhámos por umas longas passagens até encontrarmos o edifício propriamente

dito, que reflectia intensamente a luz do luar que preenchia a noite. Havia um monumento

de forma circular disposto de forma exacta no centro do pequeno átrio exterior que

precedia a entrada oficial do edifício. Ao entrarmos pelas portas que se mimetizavam com

as restantes portadas e janelas em nosso redor, percebi que não estávamos sozinhos.

O espaçoso hall de entrada do edifício estava todo forrado a mármore, com vários sofás

dispostos estrategicamente, aproveitando todas as saliências arquitectónicas; à nossa

esquerda, encontrava-se um indivíduo esguio, alto e… pálido, tal como David. Aliás,

como todos eles. Não foi preciso esforçar-me muito para perceber que era um vampiro. As

roupas que trazia eram predominantemente escuras, mas de um género diferente do que

estava habituada a ver em David e nos seus colegas. Ainda que discretas, eram

esteticamente mais requintadas, tornando-os mais elegantes. As feições deste estavam

bastante expostas, contrariamente a David, e podia observar nele um cabelo curto e claro,

claramente tipificado, ornamentado por um gélido olhar azul que lhe dava um aspecto

caracteristicamente germânico.

O distinto indivíduo olhava atentamente para David, que se encontrava estrategicamente à

minha esquerda, cobrindo-me parcialmente. O olhar que ambos trocavam era austero e

desafiador, embora eu não atingisse o porquê, mas a intensidade que deles emanava era

suficiente para perceber que eles estavam a comunicar, de uma forma absolutamente

sobrenatural… e agressiva. Foi o indivíduo quem quebrou aquele estranho momento.

- David Henshaw - afirmou ele, com um tom firme e ousadia na voz.

- Albert Legrand - cumprimentou David com um tom semelhante.

- É essa a tua humana? - O tom dele era desafiador e, simultaneamente, sarcástico. Nesse

momento, senti-me como um perfeito ruminante negociado num mercado de gado.

- É esta a humana - corrigiu David, sem desviar o olhar de Albert.

- Agora dedicas-te a poupar humanos? Não te conhecia assim tão… misericordioso… - O

seu tom continuava a ser provocador, enquanto ostentava um sorriso absolutamente

maquiavélico.

- Então e tu, agora és cão de guarda du Monsieur Vignet?

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A resposta de David à provocação incitada por Albert fez com que o seu sorriso

desaparecesse quase automaticamente da sua face lívida, visivelmente desagradado com o

comentário de David. Algo se estava ali a passar que eu não sabia o que era mas, pelo tom

e teor das amargas palavras trocadas entre eles, tinha sido certamente algo bastante grave,

muito provavelmente uma querela do passado.

- Cuidado, David - avisou Albert. - Eu não sou tão tolerante como Lothaire.

- Não me desafies - sussurrou David, visivelmente alerta.

Os dois olhavam-se como dois felinos prestes a iniciar uma luta. A a postura de ambos

estava alterada, inundada de agressividade. Olhei para David. Por momentos vi aquele

David que encurralava vítimas em ruelas, com um brilho hostil no olhar e uma atitude que

eu só conseguia definir como animalesca. Os seus afilados caninos já estavam expostos,

ostentados como uma arma letal, assim como Albert, que exibia a sua pontiaguda dentição

retráctil com um sorriso cruel nos lábios. Estava a ficar amedrontada, pois este não era

seguramente o momento mais adequado para resolver intrigas do passado.

- David… - arrisquei eu, com um tom de voz sumido, tocando-lhe no braço, receosa. Nem

sei como tinha reunido coragem para me dirigir a ele neste estado de “animal-selvagem-

pronto-a-atacar”. Ele olhou-me subitamente, surpreso com a minha intervenção. Vi-o

retrair os seus caninos, retomar a sua postura prévia – bem mais civilizada – e,

progressivamente, as suas feições voltaram a admitir um aspecto mais… humano.

- Ele está à tua espera - retorquiu Albert, claramente desiludido pela sua provocação não

ter surtido o efeito que esperava e também admitia, agora, uma postura menos agressiva,

como se fossem…tréguas de algo inevitável, que é adiado, mas não esquecido. Nunca.

Senti um arrepio na espinha quando passava por Albert, juntamente com David, para nos

dirigíamos, agora, aos extensos corredores que nos levariam ao hemiciclo.

- O que é que se passou ali atrás? - sussurrei eu.

- É uma longa história… - desabafou David, enquanto caminhava, a meu lado, com um

semblante aflitivo.

- Ele é… malvado - afirmei eu, após alguns momentos de silêncio, como se estivesse a

constatar uma realidade difícil.

- Nem imaginas... - concluiu David, com o seu característico tom seco que dava por

encerrado o diálogo. E eu tinha razão. Algo de mesmo muito sério tinha ocorrido entre

David e Albert. E a magnitude desse acontecimento justificava, certamente, o silêncio de

David, que agora caminhava firmemente pelos espaçosos corredores que decoravam o

interior do Parlamento Europeu. Só agora conseguia observar que caminhávamos por uma

espécie de plataformas, que descobriam um mar de xisto disposto sob nós, para além da

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frondosa vegetação suspensa que animava as “ruas” que constituíam o enorme edifício,

que mais parecia uma cidade, ornamentada por ténues luzes interiores.

David encaminhava-se agora por uma das “ruas” que dava acesso a uma escada de

forma helicoidal, com dois lances de escadas opostos. Abrandei o passo

involuntariamente, enquanto olhava atónita para aquela obra arquitectónica que

aparentemente parecia perfeita mas que tinha a particularidade de parecer inacabada.

Além do mais, enquanto subia as escadas, reparava que quem subia não se encontrava

com quem eventualmente descesse. Era algo extraordinário.

Agora no primeiro andar, podia observar com mais detalhe como as inúmeras placas de

xisto estavam dispostas na base do edifício, dando a sensação de simular a ondulação da

água a correr, como se de um rio se tratasse. Foi a intervenção de David que interrompeu a

minha atenta observação.

- Lembra-te do que combinámos.

Acenei em sinal de confirmação. Claro que me lembrava que tinha que tentar manter-me

como uma estátua emocional, evitando revelar os meus transbordantes estados de espírito,

fossem eles de que natureza fossem. David parou em frente a uma imensa porta, igual a

tantas outras por onde passámos e sussurrou, na minha direcção.

- Vamos.

Ao entrar na extensa sala que consistia no hemiciclo do Parlamento Europeu, limitei-me a

seguir David, tentando manter-me “sóbria” emocionalmente, tal como ele me havia

pedido. À medida que descíamos pela escadaria, ouvi uma voz forte, que se destacava,

vinda da zona central da sala.

- Senhor Henshaw.

Aquela poderosa voz provinha de um homem já grisalho que era, muito provavelmente, o

chefe de estado, Philippe Vignet.

- Excelência - proferiu David, com um tom de voz respeitável.

- Aproxime-se, Sr. Henshaw. E a humana, por favor.

Descemos pela escadaria o mais rápido que ela nos permitia, até nos encontrarmos em

frente à imponente mesa que se destacava na zona central do hemiciclo. Nessa mesa

encontravam-se dois indivíduos, dos quais se salientava Philippe. Observei-o

discretamente. Era um vampiro extremamente charmoso, apesar da sua idade aparente,

que eu classificaria meia-idade; a sua tez pálida reflectia uma sabedoria imensa, como de

alguém que já havia percorrido séculos na Terra e dos seus calorosos olhos escuros

emanava um excepcional olhar, absolutamente distinto. Ao seu lado direito encontrava-se

um vampiro que, em comparação, era extraordinariamente comum, de olhos e cabelo

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escuro, de aspecto mais jovem e que fazia um esforço notório para se igualar ao seu

superior. Ambos vestiam roupas escuras, em tudo semelhantes às que David vestia hoje,

tal como Albert, exhibindo um toque de requinte que, junto com as particulares

características da espécie, lhes dava um aspecto quase divino. Ambos nos olhavam com

nítida curiosidade e foi David quem iniciou o diálogo.

- Ex.cia, queria começar por pedir desculpa por…

- Poupe-me as suas escusadas desculpas, jovem - interrompeu Philippe. - Ambos sabemos

que esta situação é altamente irregular. Para que saiba, eu só acedi em ouvi-lo dada a

ausência de Läis em Paris. E, devo confessar, que o seu pedido despertou a minha

curiosidade.

Philippe olhava na minha direcção, com um semblante de absoluta indignação.

Segundos depois, Philippe fitava, agora, David como se ele fosse um criminoso a abater,

com uma austeridade marcante.

- Então, pode explicar-me porque considera que esta humana é digna de se sobrepor às

nossas leis?

David demorou uma fracção de segundo a elaborar uma resposta.

- Esta humana tem estudos, Ex.cia, pelo que nos pode ser muito útil.

- E que estudos são esses?

- Medicina, Excelência. Para além de que possui nacionalidade portuguesa, local onde

tenho conhecimento de que escasseiam mensageiros.

A postura de Philippe era, agora, pensativa.

- Só isso?

- Não compreendo, Ex.cia.

- Conhecimento médico numa zona praticamente desprovida de mensageiros não é uma

justificação suficientemente forte, Sr. Henshaw. Você sabe disso.

- Mas, Ex.cia…

- A humana tem mais alguma capacidade que nos interesse? - Interrompeu novamente

Philippe. - Algo que nos possa ser vantajoso?

David mantinha-se em silêncio, visivelmente desarmado. Naquele momento, só

desejava ser capaz de ler mentes ou de predizer o futuro, para que pudesse salvar-nos

daquele constrangimento.

- Francamente, Sr. Henshaw. Não acredito que me tenha feito perder o meu precioso

tempo com uma anedota desta magnitude - afirmou Philippe, com um nítido tom de troça

e despeito. Definitivamente, a audiência estava a correr muito mal. Olhei, discretamente,

para David. Estava desesperada quando, finalmente, o seu olhar encontrou o meu, mas

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nele não encontrei respostas concretas, antes somente o olhar de alguém que estava tão

oprimido quanto eu.

- Ela é… - começou ele, enquanto desviava o olhar agora na direcção de Philippe, que

continuava a fitá-lo curiosamente.

- Sim?

David hesitava, olhando o vazio e eu já sabia que isso era muito mau sinal, pois

significava que ele não tinha argumentos válidos para lançar.

- …especial.

A sua última afirmação valeu-lhe a atenção redobrada de todas as pessoas naquela sala, eu

inclusive. Que raio de comentário era aquele?

- Importa-se de se explicar, Sr. Henshaw?

O olhar de Philippe em David era, agora, intenso e eu tive a sensação de que ele

estava a tentar confirmar a veracidade das palavras que David tentava proferir. Tal como a

mim me acontecia tantas vezes quando David me olhava daquela forma, mas agora era ele

quem estava a ser analisado e testado.

- Ex.cia, há que considerar a situação, estrategicamente. A utilidade desta humana a nível

geográfico é incontestável. E, para além disso, há que considerar as suas enormes

capacidades cognitivas, que são absolutamente fora do comum.

- Continue.

- O intelecto desta humana é excepcional, o seu raciocínio extremamente veloz e as suas

aptidões profissionais são absolutamente marcantes.

Agora sim, eu estava a ficar preocupada. Ele estava a mentir descaradamente e eu

sentia-me bastante constrangida, enquanto David continuava, imparável.

- Seria, sem dúvida, uma pena desperdiçar um espécime como este. Pense nas vantagens e

na conveniência desta humana uma vez utilizada em nosso benefício, ajudando a encobrir

os vestígios dos nossos hábitos alimentares e a dispersar a atenção que, eventualmente, se

colocaria sobre nós.

- E como faria ela isso?

A curiosidade que Philippe manifestava era, agora, genuína. Podia afirmá-lo pela

expressividade manifesta no seu rosto.

- Ao trabalhar num hospital, este tipo de actividade é extraordinariamente facilitada. Para

não mencionar a dificuldade inerente à infiltração de mensageiros neste tipo de

instituições, como V. Ex.cia bem sabe.

Philippe mantinha-se agora em silêncio, analisando a excessiva argumentação de

David. Excessiva, exagerada, implacável…e completamente falsa. Eu, com capacidades

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fora do comum? Intelecto excepcional? Aptidões marcantes? Considerar-me-ia ele um

espécime, tal como tinha referido tão friamente? Agora, sim, apercebia-me

verdadeiramente do papel que os humanos tinham no mundo dos vampiros. Éramos como

gado. Úteis, com um objectivo. Nada mais do que simples acessórios vantajosos.

Descartáveis. E eu não conseguia evitar sentir-me… mal. Foram as palavras de David que

me alertaram para a ocasião e para o local onde estávamos.

- Pára… - sussurrou David, olhando na minha direcção. - Não estás a ajudar.

Não respondi, apesar de saber perfeitamente ao que se referia. Tentei controlar-me, como

conseguia, tanto quanto a minha fraca capacidade humana me permitia, enquanto Philippe

nos observava atentamente, como que tentando discernir algo oculto, para além das

palavras amargas de David, porque obviamente ele sabia, ele sentia perfeitamente o

tumulto entre nós.

Só desejava que aquele momento terminasse rapidamente.

- São… essas as suas razões, Sr. Henshaw?

Só me apercebi que David respondia positivamente sob a forma de um leve aceno, preso

no olhar centenário de Philippe.

- Muito bem, já ouvi… e vi o suficiente – elucidou Philippe, subitamente.

- Mas, Ex.cia,…

- Silêncio! - Interrompeu Philippe. - Não pretendo continuar a discutir este assunto. Já

compreendi onde queria chegar, Sr. Henshaw. É suficiente.

David limitava-se a acenar, olhando-o, estupefacto.

- Vou considerar todos os seus argumentos e, em breve, comunicarei a minha decisão aos

seus superiores. Podem retirar-se.

David olhou-me momentaneamente, fazendo-me sinal para o seguir. Começámos a subir a

enorme escadaria, no sentido da saída, quando ouvimos Philippe lançar uma pequena

declaração, com um tom ligeiramente sarcástico.

- E… boa sorte, Sr. Henshaw.

David abrandou momentaneamente o passo, enquanto olhava, por cima do ombro,

encontrando novamente o olhar de Philippe. Ao voltar a olhar em frente, mantinha uma

expressão sofredora na face, à medida que nos aproximávamos da enorme escadaria, cada

vez mais próximo da saída.

- “Boa sorte?” - arrisquei eu, atónita, na direcção de David, sem compreender a razão

daquele comentário.

- É uma piadinha para mim… quando Läis souber que passei por cima da autoridade

dela... bem vou precisar de sorte.

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Tinha uma vontade imperiosa de lhe fazer mais perguntas, embora tivesse a plena noção

de que agora não era o momento ideal para o fazer. Ele seguia veloz, a passos que eu só

conseguia acompanhar se corresse ocasionalmente, pelas escadas helicoidais, pelos longos

corredores do edifício do Parlamento Europeu, pelo hall onde já não havia sinal de Albert

e, finalmente, pela saída do Edifício, até atingirmos o Toyota Auris estacionado

pacificamente a uns sólidos cem metros do Parlamento Europeu, onde David, finalmente

parou.

Ainda demorei alguns segundos a aproximar-me dele e, quando o fiz, encontrei na sua

face uma expressão ilegível, donde emanava um profundo desespero, enquanto ele se

fixava num ponto bem longe dali, como se tentasse aí encontrar forças.

- David…

- Agora não, por favor… - interrompeu-me ele, firmemente, afastando-se de mim. Não

sabia o que fazer, nem o que pensar. Sentia-me absolutamente inútil, um empecilho. Em

suma, uma humana patética. Afastei-me dele, dando-lhe espaço… tempo e o que quer que

fosse que ele necessitasse. Sentei-me à beira do passeio, deixando uns consistentes dez

metros de distância entre nós. Não conseguia pensar no que se tinha passado, nem analisar

se a audiência tinha corrido bem, ou mal. Eu não tinha proferido nem uma palavra, ele

tinha mentido sem escrúpulos ao supremo chefe de estado e… parecia impossível, mas eu

sentia-me à beira da ruptura.

- Ele sabe - afirmou repentinamente David, de onde estava.

- Ele sabe o quê? - Respondi-lhe eu, sem força na voz.

- Tudo.

Não lhe respondi. Claro que Philippe sabia tudo, era previsível que assim fosse. Ele era

um vampiro ancião, com uma perspicácia muito acima da média, capaz de nos descobrir

facilmente, sem ser necessário esforçar-se muito. A minha mente estava vazia, não

conseguia pensar em nada concreto. Naquele momento, estava demasiado desesperada no

conforto do silêncio que me rodeava.

Subitamente, senti uma presença conhecida à minha frente, observando-me atentamente.

- Ele sabe… que eu exagerei em relação a ti. E sabe das minhas… incertezas.

O tom dele era acusador, o que me fazia sentir cada vez pior, ao ouvi-lo proferir estas

palavras. Não sabia o que dizer, nem o que responder face às suas afirmações.

- E o que é que queres que eu faça? - Disparei eu, levantando-me subitamente, de forma a

ficar frente a frente. Ele olhou-me surpreso, como que espantado com a minha pequena

explosão. Não me admirava, pois eu própria também estava surpreendida com a audácia

que, subitamente, se tinha apoderado de mim.

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- Não me olhes assim. Eu não tenho culpa de nada disto! - Continuei eu, sentindo a voz a

falhar-me. - Tenho imensa pena que não consiga estar à tua altura, nem que consiga

manter-me como um bloco de gelo emocional quando é necessário e que seja uma humana

idiota que se afeiçoa a seres de outras espécies.

Nem sequer tinha noção do que tinha dito – as palavras simplesmente tinham

saído, de forma involuntária.

Um silêncio pesado abatia-se sobre nós, enquanto David continuava a olhar-me fixamente.

O silêncio dele era o mais difícil de suportar, especialmente após a minha pequena

explosão emocional e eu…também não sabia o que dizer.

- Ouve, eu… - ia ele começar.

- Esquece.

Agora era a minha vez de o interromper, enquanto desviava o olhar e fixava um ponto

inexistente longe dali. E, definitivamente, não queria voltar a falar deste assunto outra vez.

Não desta forma.

Ele, mais uma vez, remetia-se ao silêncio, mantendo-se estático, à minha frente.

Conseguia observá-lo, pelo canto do olho, enquanto tentava acalmar-me o suficiente para

combater o desespero que ameaçava destruir toda a minha dignidade.

- Maria.

Ele estava a chamar-me pelo meu nome. Era estranho ouvi-lo pronunciar o meu nome

para me chamar a atenção; normalmente bastava um olhar, um toque. Mas agora, não

conseguia sequer olhá-lo, estava demasiado amargurada para o fazer. Aliás, neste

momento, nem sabia se queria ouvir o que ele tinha para me dizer.

Voltei a sentar-me, expirando ruidosamente. Sentia-me idiota, enquanto observava

desatentamente o que me rodeava. David aproximava-se de mim, lentamente, até que o vi

sentar-se ao meu lado, mantendo-se silencioso.

- Maria... - pediu ele, olhando-me propositadamente.

- Sim? - Respondi eu, secamente, sem o fitar.

- Não correu… mal. Philippe vai ter em conta os meus argumentos, o que já é muito bom -

explicou ele. – Agora, temos que esperar pela decisão dele.

- Está bem.

Ouvi-lo falar da audiência era doloroso. Relembrava-me da forma como ele se referia a

mim e à minha espécie, às minhas características “úteis” para a espécie dele, como se eu

fosse mercadoria para negociar. Um extraordinário espécime multiusos, vantajoso e útil.

- Eu sei que não foi fácil para ti ouvir o que foi dito ali dentro - afirmou ele, como se

tivesse adivinhado o que eu estava a pensar há segundos atrás.

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- Tens razão, não foi. - Confirmei eu, com um tom seco. - Mas não te preocupes, já estou a

ficar habituada… - acrescentei eu, sarcasticamente. Não conseguia evitar pensar nas

palavras que ele tinha utilizado, no que eu era para a espécie dele e, em consequência, o

que eu era para ele. Era uma realidade cruel e … triste.

Levantei-me, sem aviso, para me aproximar do carro, com o propósito de lhe dar a

entender que me queria ir embora daquele sítio, rapidamente. Contudo, ainda estava a

iniciar o movimento de retirada, quando o encontrei exactamente à minha frente, como

uma parede móvel, uma estátua viva, como tantas vezes o classificava.

- Maria.

Agora era impossível evitar o seu intenso olhar, que se fixava no meu. Dele emanava algo

que me enfureceu instantaneamente.

- Pára com isso. Eu não preciso da tua misericórdia! - Lancei palavras encolerizadas. A

última coisa que eu precisava era de um vampiro com acessos de arrependimento

inexplicáveis, com pena dos seres humanos. Era deplorável.

- Não é misericórdia - retorquiu ele.

- Então, o que é? - Afirmei eu, quase automaticamente, enquanto o fixava, vendo-o

claramente a hesitar, à medida que procurava as palavras adequadas.

- É…apreensão.

- Apreensão? Porquê? Para quê? – Questionava eu agora, com dificuldade em manter a

voz firme. - O que é que eu sou para ti, afinal?

A minha última afirmação quase me leva às lágrimas, não fosse uma força extraordinária

que eu não sabia existir e que se conservava dentro de mim, mantendo-me íntegra, sem

vacilar – exteriormente, porque por dentro, sentia-me arruinada. E ele sentia-a, essa ruína

que ameaçava levar-me ao ponto de ruptura. Eu conseguia vê-la reflectida nos seus olhos.

Sinceramente, não sabia se queria ouvir a verdadeira resposta dele à minha pergunta. Não.

Definitivamente não queria. Agora sim, a ausência de palavras, personificada pelo silêncio

dele, era-me, pela primeira vez, reconfortante.

- Não… respondas. Simplesmente… esquece - balbuciei, evitando o seu olhar. - Tudo isto

tem sido demasiado para mim, ultimamente.

Ele continuava a observar-me, eu conseguia sentir o peso do seu olhar em mim. Quando

percebi que, afinal, ele ia responder-me, quase que senti o meu batimento cardíaco parar.

- Eu… responder-te-ia, se eu soubesse qual era a resposta. Já falámos sobre isto-

- Podemos ir? - Interrompi eu, desejosa de regressar ao quarto de hotel. De facto, desejava

estar em qualquer sítio, excepto aqui.

155

- Claro - respondeu ele, automaticamente, dirigindo-se ao Toyota Auris que se mantinha a

poucos metros de nós. Entrei dentro do carro enquanto o seguia, silenciosamente e,

poucos segundos depois, David dava início à viagem que me levaria de volta ao hotel.

Foi dos trajectos mais penosos que já tinha realizado, não só pelo pesado silêncio

que nos separava, mas especialmente porque eu estava a começar a descomprimir – e a

descompressão vinha normalmente acompanhada de lágrimas. Era mais uma questão

fisiológica que emocional.

Mas, eu tinha o meu orgulho, a minha dignidade – ou o que restava dela, que era

seguramente muito pouco, mas ainda era algo. E era exactamente esse pequeno algo que

me impedia de esvair-me em lágrimas naquele preciso momento. Certamente David

sentia-o, conseguia quase de certeza sentir a minha mágoa, a pressão que se acumulava

dentro de mim, oprimindo-me. Contudo, não proferia nem uma palavra, nem me dirigia

um único olhar. Eu, intimamente, agradecia. Neste momento, proibia-me

determinantemente de pensar fosse no que fosse, em especial nos acontecimentos desta

noite.

Durante os longos vinte minutos de viagem, mantive-me aparentemente interessada na

paisagem que passava veloz, apesar de não a observar verdadeiramente, pois estava

demasiado concentrada em chegar ao hotel, o mais depressa possível. Quando finalmente

senti David abrandar, percebi que estávamos a chegar ao destino. Era altura de lhe fazer

algumas perguntas, obviamente relacionadas com assuntos menos difíceis.

- Quando é que posso ir para Paris?

- Quando quiseres - respondeu ele, de forma tão seca que quase me fez perder a

compostura naquele preciso momento.

- Muito bem - retorqui eu, tentando manter um tom de voz firme, mascarando a dor que

sentia ao ouvir as suas amargas palavras.

Tinha que sair daquele carro o mais depressa possível, antes que a minha ridícula máscara

implacável se desmoronasse. Já sentia a voz desaparecer e a garganta constrangida. Estava

na hora.

Apressei-me a procurar o manípulo da porta, para poder sair, quando o ouvi chamar pelo

meu nome.

- Maria…

A voz dele era afável, ainda que firme, como de costume, mas agora…eu não podia. Não

podia olhar para ele, porque já sabia que não ia conseguir resistir àquele olhar que parecia

exercer poder sobre mim. Agora, não o poderia suportar e, como tal, tinha que sair

daquele carro o mais depressa possível.

156

- Boa noite… - respondi eu, interrompendo-o, sentindo a voz a fraquejar.

Saí do carro a passos largos, na direcção do hotel. Já não olhei para trás. Limitei-me a

concentrar-me no meu objectivo que, naquele momento, consistia em chegar ao meu

quarto de hotel, para poder chorar, sozinha, como verdadeira infeliz que era e que me

sentia.

157

CAPÍTULO 11 – REGRESSO

NEM DEI CONTA DE PERCORRER O CAMINHO ATÉ AO QUARTO DE HOTEL.

Sentia dificuldade em adquirir a concentração necessária para colocar o cartão magnético

na ranhura e abrir a porta do quarto, os meus olhos já não conseguiam focar nem discernir

os pormenores necessários, pois estavam absolutamente inundados de lágrimas. Só

conseguia pensar na idiota que era e no quão estúpida me sentia por estar neste… estado.

Mais uma vez, eu não me conhecia a mim própria. O que mais lamentava era não

conseguir lidar com esta situação de uma forma mais fria e… madura, de deixar que isto

me afectasse desta forma. Talvez um dia eu fosse capaz de aceitar os factos com mais

naturalidade, mas agora… não era capaz. Tinha que me render às evidências.

Finalmente, entrei no quarto – Não tinha forças para dar nem mais um passo e, como tal,

encostei-me à porta e deixei-me estar, deixei-me escorregar até o meu corpo encontrar o

chão, onde me sentei. As lágrimas já corriam copiosamente, sem eu ter hipótese de as

travar, sem me dar tempo sequer para soluçar. Era a primeira fase da descompressão:

libertar lágrimas sem saber aparentemente porquê, mas o simples facto de as deixar sair

aliviava-me um pouco a tensão em que me encontrava. Não tinha forças para nada, nem

para me levantar, nem para limpar as lágrimas, nem para orientar os músculos oculares

numa outra direcção. Nada.

Ali fiquei, durante algum tempo – Minutos, horas? Não sabia. A minha mente começou a

passar à fase seguinte – a de consciencialização. Esta sim, era bem mais dolorosa. Eu

queria bloqueá-la, ou até adormecer antes que ela chegasse, mas no fundo, sabia-o ser

impossível. Inadiável.

Involuntariamente, apareciam imagens na minha mente – David, na audiência, a proferir

aquelas dolorosas expressões… “a humana de utilidade incontestável”…”o espécime

vantajoso e conveniente”. Não sabia qual delas me magoava mais, nem qual delas era

mais fria e cruel. Ouvi-las verbalizadas por ele era francamente doloroso, pois

contrapunha-se totalmente à imagem que tinha dele, exactamente da noite anterior. Agora,

as imagens que inundavam a minha mente eram exactamente aquelas à beira do rio Îll,

quando David parecia outro, mais sensível, mais… humano. A imagem dele naquela noite

era-me particularmente dolorosa e trazia-me novas lágrimas, que não paravam de correr.

Quão diferente era ele, sob o luar que nos inundava naquela noite, onde havia partilhado

comigo tantos episódios da sua vida! Aquele olhar enérgico, firme … amável, que agora

tinha desaparecido, para dar lugar a um olhar hostil e a palavras repletas de crueldade.

Seria possível?

158

Sentia-me sem forças. O poder daquelas imagens na minha mente era incapacitante.

Quase…insuportável.

Não dei conta do tempo a passar.

Sentia agora os olhos a fecharem-se. Eu estava a ceder, esgotada, cansada da minha

tristeza, da minha mágoa. E estava sozinha. Completamente sozinha.

Concentrei-me arduamente, tentando encontrar forças para chegar à cama. Quando

finalmente consegui lá chegar, nem sequer me incomodei em tirar a roupa e mergulhei nos

lençóis tal qual como me encontrava, vestida e calçada. Só tive tempo de colocar as mãos

na face, cobrindo-a, pois sentia vergonha de mim mesma, por estar a chorar desta forma

por alguém que me tinha envolvido na sua perversa realidade, na qual eu não era mais do

que um peão descartável.

Acordei, sobressaltada, com a luz ainda acesa, inundando todo o quarto em meu

redor. A luz feria-me os olhos, e a minha acção automática foi colocar o braço em redor

da vista, protegendo-a da luz que ameaçava cegar-me. A dor de cabeça extraordinária que

eu sentia impedia-me de voltar a dormir, exigindo-me claramente um analgésico.

Levantei-me vagarosamente, encaminhando-me na direcção da minha mala de viagem,

onde tinha os medicamentos algures perdidos na imensidão de roupas e acessórios, a

maior parte deles não utilizados. As recordações que apareciam repentinamente na minha

mente teimavam em massacrar-me durante todos os minutos e segundos em que estava

acordada. Sem perceber porquê, a recordação que agora ocupava a minha mente

remontava à noite em que David praticamente me havia raptado do meu quarto em Paris,

recordação essa responsável por trazer-me lágrimas novinhas em folha, quando eu

pensava que já não existiam mais líquidos em mim para verter pelos canais lacrimais. Isto

ia ser complicado, no mínimo. Se as recordações dele me afectavam desta maneira, só

poderia significar que estava a afeiçoar-me a ele, em demasia. De forma exagerada.

Desequilibrada. E tudo isto em dois dias? Meu Deus, o que aconteceria se eu estivesse

com ele mais vezes?

Exactamente. Por isso é que tinha que parar com isto.

Pelo amor de Deus, ele nem sequer é humano.

Inspirei fundo e iniciei uma meticulosa procura pelo analgésico forte o suficiente para me

retirar a dor – já que era impossível eliminar a verdadeira causa – que martelava sem

159

piedade nos meus ouvidos, na minha mente. Toda esta situação era fisicamente

desgastante.

Quando finalmente o encontrei, tomei-o, juntamente com um consistente meio litro de

água. Tinha que me deitar, tentar dormir, para descansar minimamente, recuperar destes

últimos dias absolutamente catastróficos, a todos os níveis. Para isso, talvez fosse melhor

vestir o pijama, pois era bem mais confortável que dormir vestida, sem sombra de dúvida.

Dirigi-me à casa-de-banho com o intuito de me preparar para dormir – novamente –,

quando encontrei o meu reflexo no espelho da mesma. Era uma imagem desconcertante e,

por momentos, amaldiçoei o momento em que resolvi olhar para o reflexo que o espelho

me devolvia. Do todo absolutamente miserável que era a minha face, o que mais me

incomodava eram os olhos, que estavam quase irreconhecíveis, de tal modo que quase

parecia que tinha sido agredida por alguém. Olhei com mais pormenor, ainda tinha as

marcas da almofada na face, de ter acordado sobressaltada…e vestida.

Subitamente ouvi um ruído que me aguçou a audição. Olhei instantaneamente na direcção

da porta do quarto e aguardei. Após três longos segundos, voltava-se a repetir e agora

conseguia discernir que eram três discretas batidas na porta. Mas quem seria, a uma hora

destas? Não que eu soubesse que horas eram, mas já era, certamente, tarde. De

madrugada, seguramente.

Aproximei-me da porta, encostando o ouvido e esperando ouvir novamente as três

batidas, ainda com esperança que fosse engano. Foi com pasmo que, ao ouvir novamente

as três batidas, me apercebi que não eram da porta, mas sim… da janela. Imediatamente

senti uma opressão inexplicável no peito. Já sabia que era ele. Só podia ser ele. Mas o que

é que ele queria de mim? Já não era suficiente fazer da minha vida um inferno, ainda tinha

que fazer visitas importunas a meio da noite? E logo depois de uma noite como esta?

Ainda dei alguns passos na direcção da janela, mas agora hesitava, estática a meio

caminho, considerando não abrir a janela. Não podia evitar relembrar-me das alturas em

que eu queria (muito) vê-lo para o questionar com as minhas insistentes perguntas – às

quais ele, amavelmente, não respondia – assim como o episódio em Paris que envolveu

janelas… e um passeio ao telhado, ida e volta… agarrada a ele como uma camisa-de-

forças.

Valeria a pena ouvir o que ele tinha para me dizer? Se é que ele tinha algo para me dizer.

Haveria novidades da audiência? Saberia ele de algo que fosse… importante? Assim

sendo, talvez fosse melhor abrir a janela e deixá-lo… falar. Fechei os olhos, acenando

involuntariamente a cabeça. Era impressionante a quantidade de desculpas que eu era

160

capaz de elaborar, só para não admitir que gostaria de o ver outra vez, mesmo estando

sentida com ele e com as suas amargas palavras.

Ao atingir a janela, afastei as cortinas lentamente, trémula, até que encontrei o seu

olhar, aparentemente neutro. Abri a janela o suficiente para lhe dar espaço para entrar,

enquanto me afastava no sentido oposto.

Quase automaticamente, senti a fria brisa que corria lá fora, antes de o ouvir fechar sem

ruído a janela. A sua presença era silenciosa, mas marcante – novamente conseguia sentir

o peso do olhar dele em mim, questionando-me. Da posição em que me encontrava,

conseguia vê-lo, mas não tinha coragem de encontrar – ainda – o seu olhar, contudo podia

perceber que mantinha uma postura tensa. E vestia exactamente as mesmas roupas, pois a

escuridão que o perfil dele emanava, denunciava-o. Ainda demorei alguns segundos a

recolher a coragem suficiente para me dirigir a ele.

- O que se passa? - Questionei eu, com a voz mais firme possível.

- Isso pergunto eu – respondeu ele, automaticamente, como se tivesse a resposta na ponta

da língua.

- Perdão?

- Ouviste perfeitamente.

O tom dele era de uma firmeza incrível.

- Está tudo bem – retorqui, com insegurança na voz. Era muito difícil afirmar algo que não

era, de todo, verdade. Era, também, evidente que as recordações dos acontecimentos de há

algumas horas atrás me afectavam profundamente, efeito que, seguramente, se reflectia na

minha face e… no meu estado de espírito. David olhava-me com atenção, como se me

estivesse a analisar.

- És péssima a mentir - declarou ele, com um tom mais leve.

Apesar de não abonar a meu favor, tinha que admitir que ele tinha razão e eu… não tinha

uma resposta concreta para lhe oferecer, pelo que decidi que mais valia perguntar-lhe o

que queria de mim.

- Pois então, o que queres que te diga?

Vi-o avançar na minha direcção, lentamente mas com passos largos, sem nunca

deixar o meu olhar, até que parou a menos de um metro de mim. A presença dele era, de

facto, algo absolutamente absorvente, capaz de prender todos os meus sentidos – enquanto

ele estava ali, à minha frente, tão perto de mim, só ele existia. Como é que ele fazia isto?

- Diz-me porque é que te estás a sentir assim.

- Assim, como?

161

- Maria… - começou ele, olhando-me de forma impetuosa e aproximando-se mais um

pouco. Sem dúvida, ele conseguia ser muito persuasivo, quando queria. - …assim, da

forma que consigo ouvir o teu batimento cardíaco a quatro quarteirões de distância…-

via-o agora hesitar, enquanto me observava atentamente. - …sinto claramente a tua

tristeza e a tua… mágoa.

Estava estupefacta pelas suas sábias palavras, que me tinham desarmado,

completamente. Ele sabia do que falava. Ele sabia o que eu sentia. E agora, queria as

minhas razões.

Sentia a voz falhar, ao recordar as amargas palavras que havia pronunciado na audiência e

ao recordar a imagem dele, com aquele olhar absolutamente implacável.

- David… - comecei eu. Eu tinha bastante dificuldade em mencionar o assunto. Era-me

muito difícil explicar o quão inferiorizada me sentia face às suas cruéis afirmações. - Tu

não entenderias… - desabafei eu, afastando o meu olhar do dele.

- Maria…

- Não importa. A sério.

- Para mim, importa.

Agora, sentia-me a hesitar. Valeria a pena confessar-lhe as minhas reservas? As razões

pelas quais sentia aquela mágoa imensa?

- É que… ouvir-te a chamar-me humana útil e espécime vantajoso é… cruel. Entristece-

me… - declarei eu, sem coragem para o olhar directamente. - Mas eu entendo que tu não

compreendas as minhas razões, porque afinal tu és…

- Um vampiro - interrompeu ele, com um tom de voz consternado.

- Sim, - respondii eu, apesar de não concordar totalmente com a sua afirmação – para

mim, ele não era apenas um vampiro. E continuei. - E eu, sou simplesmente…

Uma humana. Patética e ridícula. Um ser que, definitivamente, não compreende a sua

posição na cadeia alimentar. Doía-me pensar nesta cruel realidade, ainda que não tivesse

hipótese a não ser aceitá-la.

- Maria… – ouvi-o dizer, subitamente, quando o senti aproximar-se novamente de mim,

de tal forma que senti a sua gélida respiração atingir-me, sinal de que ele estava –

excessivamente – perto. Eu já sabia o que ele queria. Ele queria que eu o olhasse – nos

olhos – e isso fazia-me recear… as consequências. A essência dele preenchia-me os

sentidos de uma forma incontrolável. Ele era… asfixiante.

- …Tu não és menos do que eu por seres humana – declarou ele, com um tom

desconsolado. - E a minha espécie não é superior à tua. Muito pelo contrário, até temos

bastantes limitações – adicionou ele.

162

- Mas também muitas vantagens… – sussurrei eu, com um tom amargo.

- Não há espécies perfeitas – certificou ele, firmemente. - O que me ouviste dizer e

afirmar na audiência está longe de ser a minha verdadeira opinião. Pensava que já sabias

disso.

- Na audiência foste muito… seguro nas tuas palavras e eu… acreditei – balbuciei eu, em

tom de justificação.

- Mesmo depois da nossa conversa na noite anterior? - O olhar dele reflectia, agora,

tristeza e desapontamento. - Maria, eu tinha que ser muito convincente naquela audiência,

para o bem de ambos. Era necessário.

- Eu sei...

Era impressionante o quão idiota eu me estava a sentir naquele momento. O olhar dele

encontrava-me com alguma indignação, embora não me julgasse por eu me ter sentido

daquela maneira na audiência. E era verdade. Apesar de, no fundo, eu conhecer as

intrincadas implicações na nossa situação, era-me difícil ouvir aquelas palavras.

- Maria… - chamou ele, agora com enternecimento na voz. Limitei-me a olhá-lo, surpresa

e curiosa com o que ele me queria dizer. - …se essa fosse a minha verdadeira opinião,

achas que eu teria passado por cima de todas as leis e regras para te poupar?

Não tinha palavras para lhe responder. Aliás, não conseguia pensar em nada em

concreto. Estava demasiado surpreendida com as suas últimas palavras para conseguir

verbalizar mais do que simples monossílabos. Era um elogio? Se fosse, seria muito subtil

aliás, como tudo em David, imperceptível e misterioso.

Sentia agora uma enorme vontade de o abraçar, ao recordar as compassivas palavras que

ele havia proferido. Afinal, ele respeitava-me. A mim, à minha espécie, aquela que se

comove com o mínimo comentário desagradável, aquela que não consegue manter-se

emocionalmente estável quando a ocasião o pede, aquela que, estranhamente, se afeiçoa à

espécie que os preda e aquela que não tem a mínima noção da situação (grave) em que

está, insistindo em relacionar-se com as míticas criaturas da noite.

Ouvi-o rir-se suavemente, enquanto me olhava com atenção. Era um som que eu nunca

tinha ouvido, mas contagiava-me, fazendo-me também esboçar um leve sorriso.

- O que foi? - Perguntei eu.

- É… – David hesitou, claramente à procura das palavras correctas para empregar. – Estás

a sentir-te melhor.

Não pude evitar semicerrar os olhos, em sinal de consternação relativamente à facilidade

com que eu expunha os meus sentimentos e o meu estado de espírito.

- A minha transparência consegue ser muito inconveniente, a maior parte das vezes.

163

- Não tem mal nenhum – respondeu ele, quase de imediato.

- Na audiência teve… – disparei eu, relembrando-me do episódio infeliz durante a

audiência, que quase deitava tudo a perder se não fosse a súbita intervenção de David.

- Não te culpo.

- Mas é verdade.

- Não te culpes assim – certificou ele, admitindo um semblante sério. - Tu já te reprimes

demasiado. Constantemente.

Olhei-o, boquiaberta. Eu, reprimo-me? Em que se baseava ele para afirmar algo assim, e

de uma forma tão segura?

- Porque é que dizes isso?

- Tu és muito…perceptível, na maior parte das vezes. Embora faças um grande esforço

para dissimular o que sentes – afirmou ele, olhando-me de uma forma séria mas, ao

mesmo tempo, graciosa com a sua última asseveração.

Sentia-me novamente sem palavras. Como tantas outras vezes. Era vergonhoso para mim

que ele me conhecesse assim, desta forma tão aberta e óbvia, quando eu conhecia tão

pouco dele.

E dizia ele que a sua espécie tinha muitas limitações! Ainda que ser capaz de discriminar

os sentimentos de outrem seja uma pequena grande vantagem, pensei eu, com ironia.

Olhei-o. Estava completamente desarmada, frente às suas verídicas palavras. Verdades

incontestáveis. E agora, dizia-lhe o quê? Não que eu conseguisse proferir uma frase com

sentido, neste momento. A sua proximidade afectava-me, tinha que admiti-lo, apesar de

ser o olhar dele que mais me prendia, pois os seus olhos esmeralda pareciam, literalmente,

falar. Era estranha esta forma de comunicar, que consistia mais numa linguagem

alienígena que eu não compreendia, mas conseguia sentir o que significava. Dele emanava

algo que eu não sabia como descrever, apesar de estar envolto em intensidade,

despoletando uma série de reacções estranhas em mim. Seria um efeito característico da

espécie dele, ou era algo que ele fazia propositadamente? Fosse o que fosse, não era algo

novo, pois eu relembrava-me da ocasião em que o mesmo tinha ocorrido, numa noite

distante em que ele me tinha visitado, à porta do meu prédio, em Paris, onde eu tinha

percebido, pelo seu olhar, a despedida.

- Bem, eu… – começou ele, afastando-se de mim lentamente. - …tenho que ir.

Ora, eu não queria que ele se fosse embora. Não agora, que conseguíamos falar, não

agora, que nos tínhamos aproximado novamente. Tinha que o impedir.

- Não, espera! - Disparei eu, captando-lhe a atenção. Ele, agora, olhava-me com

curiosidade. - Tens alguma coisa… urgente para fazer?

164

- Não propriamente – respondeu ele, com a sua face curiosa.

- Então, podes ficar. Podemos…falar, – justifiquei eu, apercebendo-me da urgência que se

reflectia na minha voz. Talvez eu estivesse a exagerar. Mesmo. - A menos que tenhas

mesmo que ir.

- Falar?

O tom dele era de uma profunda surpresa. Seria assim um pedido tão invulgar?

- Se… não te importares… – respondi eu, com alguma reserva. Não haveria problema

nenhum em falar, pois não? O olhar dele prendia-se no meu atenciosamente e foi então

que eu percebi que ele estava a certificar-se de que o que eu dizia era mesmo autêntico.

Sempre desconfiado.

- Não, não me importo – declarou ele, aproximando-se novamente e encostando-se ao

pequeno móvel que decorava o quarto em que me encontrava. - Então, diz-me, o que

queres saber?

Eu sentei-me à beira da cama, de forma a que estava frente a ele, ainda que desnivelados.

A sua face estava séria, enquanto me observava, expectante.

- Honestamente, como é que correu a audiência?

- Tal como eu te disse, não correu mal. Apesar da desconfiança de Philippe.

- Desconfiança?

- Ele viu-me… hesitar e sentiu-te... tu sabes como – A sua face era, agora, um semblante

de amargura. Senti-me instantaneamente invadida por um enorme sentimento de culpa. Só

me restava tentar justificar-me, mais uma vez.

- Pois. Desculpa por não ter conseguido… controlar-me, mas foi mais forte do que eu.

- Já te disse que não te culpo. Eu também não estive no meu melhor.

- Eu sei, mas... podia ter-me esforçado mais…

- Fizeste o melhor que podias. E eu também não tinha o direito de te pressionar tanto –

declarou ele. - Já me tinha esquecido de como lidar com humanos.

O seu tom era, agora, de desolação. Claro que ele não se lembrava de como lidar

connosco. Quarenta anos de existência em que as únicas situações em que contactava com

humanos eram com o intuito de se alimentar – e isso não incluía obrigatoriamente diálogo.

E muito menos algo que se parecesse com amizade.

- Mas estás a conseguir… – retorqui eu. Ainda que do seu modo estranho e alienígena,

muito à sua maneira, éramos capazes de comunicar.

- Não devia. Não é permitido. Legalmente, sabes? - Confessou ele, com um tom sério. -

Vou pagar bem cara esta minha pequena rebeldia.

165

Mais uma vez, sentia-me culpada por saber que ele ia ser castigado pelas altas

instâncias do seu mundo, essencialmente por minha causa, por não ser capaz de me tratar

como mais um humano bisbilhoteiro, por teimar em manter-me viva, por alguma razão

desconhecida. No fundo, não o compreendia, mas agradecia-lhe.

- Na audiência falaste em mensageiros. O que são?

- São humanos que fazem serviços para vampiros.

- Ah…

E o que quereria isso dizer, concretamente?

- É a tua alternativa, - reafirmou ele, mais uma vez, com segurança na voz, olhando-me de

forma séria. - Só espero que Philippe ta conceda.

A voz dele, apesar de triste, era esperançosa, o que me fez sentir automaticamente

mais confiante. Não queria pensar na outra alternativa. Aliás, não queria falar mais sobre

o assunto da audiência.

- E agora, vais voltar para Paris - era uma constatação em forma de pergunta.

- Amanhã, sim, - respondeu ele. - E tu também devias regressar, o mais depressa possível.

Tens muitas aulas para recuperar - afirmou ele, com um sorriso nos lábios.

- É verdade… - constatei eu, relembrando-me da faculdade. Uma semana de aulas

perdidas, para recuperar. Esperava-me, certamente, muito trabalho pela frente. - Então e

tu? Também estás a faltar a aulas.

- O meu método é diferente do teu. Em Belas Artes não temos horário fixo - sorriu ele,

olhando-me, divertido.

- Afinal, sempre és artista - sorri eu, em resposta, relembrando-me das palavras curiosas

de Shiva. - Porque é que te matriculas na universidade? Não tens obrigatoriamente que o

fazer, pois não?

- Desde que estou em França, sim. Lothaire insiste em que nos actualizemos.

A minha face reflectia, sem sombra de dúvida, um enorme espanto.

- Actualizar? Quer isso dizer… que já te inscreveste várias vezes?

- Quatro - respondeu ele, com um sorriso mais aberto. E continuou, - História, Filologia

Germânica, Filologia Românica e, agora, Belas Artes.

Estava atónita, boquiaberta. Sentia-me absolutamente banal. Eu ainda não tinha

terminado a minha e ele… quatro licenciaturas? Ele tinha que ser muito culto. E

inteligente.

- Gosto de ler. Bastante. Era um hábito de família, - afirmou ele, com alguma nostalgia. -

Mas agora, senti necessidade de mudar - declarou ele, em tom de justificação.

- Impressionante… - sussurrei.

166

- Devias descansar - anunciou ele, mudando claramente o assunto. - Já é tarde.

Os olhos dele reflectiam, agora, preocupação e afecto. Genuinamente. Mas ele queria ir-se

embora e eu sentia-o. Pela urgência em dar por terminada a conversa, pelo incómodo que

ele sentia em relacionar-se com uma humana, pois era algo proibido, algo interdito por lei.

Mas, ainda assim, só esperava poder vê-lo outra vez. Não resisti a perguntar-lhe

directamente se seria possível o tão ousado desejo que sentia.

- Vou voltar a ver-te em Paris?

Ao ouvir as minhas palavras, o semblante dele mudava completamente e David mostrava-

se, agora, visivelmente incomodado. E eu calculava porquê. Como sempre, a minha

inconveniente transparência que não sabia controlar-se, que não era capaz de ser mais

discreta. E ainda dizia ele que eu me reprimia? Pois agora, o modo como me sentia era a

mais pura antítese de repressão.

- Eventualmente… terei que informar-te do resultado da audiência - afirmou ele, com a

postura tensa. O modo subtil com que me informava de que só contactaria comigo nas

ocasiões absolutamente necessárias era-me involuntariamente doloroso. Não o conseguia

evitar. A sua recente frieza não me surpreendia, apesar de me afectar de uma forma que eu

só podia classificar de idiota e…desproporcionada. Eu não podia ser amiga dele, eu não

podia relacionar-me com ele, indirectamente ele já mo tinha dito e o porquê. Mas eu

insistia. Só podia concluir mais uma vez que, de facto, eu era um ser humano patético.

Não lhe consegui responder. O que é que lhe ia dizer?

Encontra-te comigo todas as sextas-feiras, da uma às cinco da manhã, para pormos a

conversa em dia?

Era ridículo.

Subitamente vi-o mover-se, na direcção da janela. Ele ia-se embora. Levantei-me

rapidamente, como se, com este gesto, fosse evitar o inevitável. A agilidade dele era algo

incomparável, visivelmente sobrenatural para os movimentos humanos a que estava

habituada. Encaminhei-me na direcção dele, para o encontrar já em posição de retirada, na

janela, fitando-me secamente, com o olhar vazio.

- Encontro-te em Paris - foram as suas últimas palavras, antes de eu o ver desaparecer

veloz, numa direcção incerta, mergulhando na escuridão da noite. Nem sequer pude

despedir-me, nem dizer fosse o que fosse. Ele não me dava hipótese. Talvez fosse essa a

estratégia dele, evitar as ocasiões onde eu poderia dizer algo que nos aproximasse, evitar

criar laços. Seria assim tão mau? Seria assim tão inevitável, para ele desaparecer desta

forma?

167

Ele lá teria as suas razões, certamente seriam várias, – as que eu conhecia, as que ele me

ocultava e aquelas que nenhum de nós sabia. Ou, pelo menos, ele assim o afirmava.

Fiquei ali alguns momentos, parada, olhando a janela semi-aberta que deixava passar uma

leve brisa, que me arrefecia a face e afastava dela os meus caóticos caracóis. Fechei a

janela, puxando novamente a cortina. Procurei o telemóvel, para constatar que eram

exactamente quatro e trinta da manhã. - Talvez fosse melhor ir dormir.

Rapidamente, retirei as minhas roupas enrugadas da longa noite que tinha passado, para

entrar no conforto que o pijama me oferecia. Rapidamente mergulhei num sono profundo

e calmo, envolta em aconchego.

Tinha que regressar a Paris, rapidamente. Não só pela imensa quantidade de aulas

que teria que recuperar, nem pela saudade que tinha dos meus colegas, de Shiva, de Adèle,

– que não era de todo significativa, - mas porque sentia uma vontade imensa de regressar à

cidade onde tudo havia começado e desencadeado o turbilhão que invadiu a minha vida,

que impulsionou aqueles estranhos seres na minha direcção, absorvendo a minha

existência de uma forma incontrolável. Uma absorção que era, de todo, interdita. E talvez

por isso fosse tão… irresistível.

Às vezes sentia-me impelida a partilhar com alguém tudo o que sabia, tudo o que conhecia

daquele mundo paralelo ao meu. Era uma vontade quase imperiosa, mas logo de imediato,

bloqueada pela dura realidade dos acontecimentos. Ainda assim, era um grande fardo,

difícil de suportar, de controlar. Agora sim eu entendia porque é que as relações entre

humanos e vampiros eram tão complexas de manter e, consequentemente, proibidas, para

o bem de ambas as espécies. Era possível a coexistência, mas interdita a amizade – tal

como outras espécies na Natureza, o predador e o predado coabitam na mesma área, mas

não se relacionam. Nunca havia visto um leão conviver com a zebra, nem uma raposa com

o coelho, – salvo quando o predador está satisfeito, nutricionalmente. Nessa situação, a

presa é implacavelmente ignorada – porque não é necessária. No final de contas, tudo se

resumia a uma questão de instinto, de auto-preservação, em suma, as leis da Natureza. E

assim também o era nesta distorcida realidade, onde humanos e vampiros existiam, uns

entre os outros, silenciosamente.

Hoje sentia-me especialmente alheada de tudo o que me rodeava. Após enviar uma

mensagem de texto a Shiva informando-a que iria chegar à noitinha, tentei concentrar-me

na arrumação das bagagens, afastando as inevitáveis recordações das noites anteriores,

que ameaçavam, como de costume, ocupar grande parte da minha mente de uma forma

168

irritantemente persistente. Tentei, por outro lado, pensar na quantidade de matéria que

teria que estudar, os apontamentos para organizar e a marcação de exames finais que,

como sempre, consistia no grande acontecimento do semestre – em termos académicos,

obviamente.

Assim que terminei a minha monótona missão, saí do quarto e dirigi-me à recepção com o

objectivo de pedir informações de como chegar ao terminal de comboios, assim como as

horas de partida e chegada a Paris. Encostei-me preguiçosamente ao espelho que forrava

toda a parte superior do elevador do hotel e fechei os olhos, deixando-me embalar com o

movimento que me levaria ao rés-do-chão. Mal as portas se abriram, qualquer resquício de

preguiça que eu pudesse sentir desapareceu no momento em que os meus olhos

encontraram os de Sarah, que destilava espanto e surpresa de uma forma massiva.

Era só o que me faltava.

- Maria! - Exclamou ela.

- Olá, Sarah… - respondi eu, com uma falsa alegria que se reflectia de forma demasiado

óbvia. Ao recordar o seu semblante sedutor da noite anterior, constatei que, seguramente,

não tardaria dois segundos a perguntar-me por David. Paralelamente, o meu aspecto

ensonado e cansado também era um factor que não ajudava a dissipar as fantasias que

muito provavelmente já teria concebido na sua mente imaginativa, a julgar pelo olhar que

me lançava neste preciso momento.

- Tiveste uma noite animada, estou a ver… - declarou ela, com um sorriso malandro.

Pois claro. Já era de esperar. Respirei fundo enquanto tentava não lhe responder com um

apropriado mas inadequado “Não tens nada a ver com isso.”, à medida que saía do

elevador.

- Por acaso até tive uma noite bastante calma - respondi eu, no mesmo tom de Sarah.

- A sério? - Perguntou ela, genuinamente surpreendida. - Então, onde está o teu amigo?

Não pude evitar sorrir face à urgência que Sarah demonstrava em perguntar por David.

- Não está, como podes constatar - respondi eu, surpresa com a descontracção e rapidez

com que acabava de formular uma resposta extraordinariamente evasiva. Tal como David.

- Ah…

O seu rosto evidenciava, agora, derrota, certamente por não conseguir saber tudo o que

queria. Por outro lado, percebia que estava imersa em pensamento, provavelmente a tentar

encontrar uma forma de me fazer mais perguntas sobre ele.

- E o resto do espectáculo, como foi? - Interrompi eu, propositadamente, aproveitando

para desviar o assunto anterior.

- Bem… - respondeu ela, com um tom seco.

169

- Óptimo. - declarei eu. Era altura de evitar mais perguntas desconfortáveis. - Desculpa,

Sarah, tenho que ir tratar de uns assuntos na recepção. Até já.

- Até já…

O tom dela era, mais uma vez, de surpresa.

Na recepção, onde se encontrava agora uma pequena multidão, senti-me a salvo da

curiosidade de Sarah. Ela conseguia ser muito insistente, quando queria. Era uma

característica dela que saltava à vista, apesar de eu a conhecer há menos de vinte e quatro

horas. Aquela pequena investida a David na noite anterior tinha-me feito sentir claramente

sobressalente, apesar de ser visível o desprezo dele face a ela. Tinha que admitir que senti

um certo regozijo ao vê-lo a afastar-se do sorriso malicioso e das curvas lascivas de Sarah,

como se ela fosse um móvel enfadonho que não lhe suscitava nenhum interesse, em

nenhum aspecto. Recordar aquele momento fazia-me rir, mas, por outro lado, fazia-me

pensar no que lhe suscitaria interesse, para além do gosto pela leitura, não em termos

materiais, mas em termos pessoais. Como seria sua noiva, aquela que superou, quase à

velocidade da luz, a tristeza e o luto do seu desaparecimento, como ele referia nas suas

pesarosas palavras? Nem um ano tinha passado e ele já havia sido substituído, como um

mero acessório, como um brinquedo desaparecido que as crianças esquecem. Sentir-se-ia

ele triste, amargurado? Lembrar-se-ia dela? Já a havia esquecido?

Uns minutos depois, dei por mim a pensar como consolá-lo. Era um pensamento audaz, no

mínimo, que até a mim me surpreendia, no silêncio da minha mente. O que teria eu para

lhe oferecer como consolação, eu que não poderia competir com a sua sabedoria, com a

sua vivência, com o seu sofrimento, ao longo de quarenta penosos anos. Rapidamente o

meu audaz pensamento se desvanecia, face às minhas óbvias limitações, como ser humano

que era.

Estava imersa em pensamentos, naquela recepção onde, finalmente, aquela pequena

multidão começava agora a dispersar, dando-me hipótese de questionar a simpática

recepcionista sobre as minhas dúvidas. Foi com alegria que fiquei a saber que, no hotel,

tinham disponível os horários dos comboios para toda a França, para conforto dos clientes.

Informou-me então que o próximo comboio para Paris partia às catorze horas em ponto.

Olhei para o relógio que se encontrava na recepção. Era meio-dia. Pedi gentilmente à

recepcionista para chamar um táxi que me levasse à estação de comboios, enquanto

regressava rapidamente ao meu quarto, para ir buscar a reduzida bagagem que possuía. Saí

do hotel com alguma nostalgia, recordando todos os momentos que lá tinha passado – os

bons e os… menos bons.

170

O táxi demorou dez minutos a aparecer e rapidamente chegámos à estação dos comboios.

Ainda tinha comigo bastante dinheiro que David me tinha dado naquela fatídica noite,

pelo que era mais que suficiente para comprar o bilhete de volta para Paris e comer

alguma coisa, entretanto.

Sentei-me num banco cinzento e monótono, na plataforma onde esperava a hora do

comboio. Mordiscava sem apetite uma baguete mista que tinha comprado havia dez

minutos atrás, perdida numa imensidão de pensamentos que me invadiam a mente, onde o

protagonista era claramente aquele vampiro que, agora, fazia parte da minha existência.

Inquestionavelmente.

Só o ruído do comboio, cuja chegada se avizinhava, me despertou do aparente transe em

que me encontrava.

Dormi de forma intermitente a maior parte da viagem até Paris.

O comboio estava repleto, o que se revelava algo incomodativo ao fim de uma hora de

viagem, especialmente quando estava rodeada de pessoas que tagarelavam sem piedade,

sem uma única pausa. Era impressionante como o assunto nunca se esgotava e conseguia

envolver bordados em linho e produção vinícola de uma forma constante. Eu conhecia-me

o suficiente para saber que era uma pessoa introspectiva e tímida, mas tinha que admitir

que aquele típico par de senhoras que se sentara exactamente à minha esquerda, era

excessivamente comunicativo. Sentia-me aborrecida e, mais uma vez, lamentava

profundamente não ter trazido o meu leitor de Mp4 para me salvar daquela tagarelice

estrangeira. Claro que as razões para o esquecimento do leitor de IPod se deviam, como

seria de esperar, à presença de um certo… ser, que aparecera, a horas menos próprias, à

janela do meu apartamento em Paris, a exigir a minha partida. Se não fosse pelas

circunstâncias, atrever-me-ia a afirmar que toda a situação era extremamente arrebatadora.

Acenei a cabeça negativamente, ao pensar – novamente – naquele cenário, nele… Era

inevitável.

Argh.

Tinha que parar com isto e controlar-me, porque de todos os improváveis caminhos que os

acontecimentos pudessem tomar, este não era, certamente, uma opção viável. A realidade

era bem diferente. Ele ofuscava-me (sem sombra de dúvida), mas eu não tinha esse efeito

nele… e nem nunca teria. Afinal, eu era só uma simples humana que tinha, por alguma

razão cósmica, levado um vampiro admirável a rebelar-se. Quão estranha poderia ser esta

realidade?

171

Acenei novamente a cabeça, tentando sacudir os pensamentos que teimavam em levar-me

(constantemente) para as recordações da imagem dele, as suas compassivas palavras e…

para aquele magnífico olhar esmeralda.

Quando finalmente cheguei a Paris, já o sol começava a desaparecer no horizonte.

Por um lado, estava contente por me sentir – finalmente – liberta do esconderijo que a

cidade de Estrasburgo me tinha proporcionado, ainda que não me sentisse totalmente em

segurança. Tentei lembrar-me das palavras de David: “Esperar o resultado da audiência.”

Para mim, o “entretanto” significava imunidade, pelo menos enquanto o resultado não

fosse oficial. Por isso, talvez não houvesse problema em circular por Paris à noite, mesmo

que fosse de táxi, ou nos circuitos que habitualmente fazia da universidade para os

hospitais e destes para casa. Respirei fundo, compenetrando-me que tinha que ser

optimista e tentar fazer a minha vida de estudante como se nada se tivesse passado. Como

se eu tivesse uma vida monotonamente normal, envolta em livros e desejos de progressão

na carreira, como tantos colegas meus. O comboio parava, agora, lentamente, enquanto os

passageiros – onde eu me incluía – retiravam as bagagens, preparando-se para sair.

Recordava a estação de comboios, tal como naquela madrugada, enquanto percorria

aqueles longos corredores que não me eram totalmente desconhecidos, mas que,

felizmente, estavam bem sinalizados. Rapidamente encontrei a saída e procurei um táxi,

para me levar ao meu pequeno apartamento, do qual já tinha saudades.

Demorei cerca de vinte minutos a chegar à frontaria do cinzento prédio onde residia. Já

era noite cerrada e mal podia esperar por entrar em casa e falar com Shiva - a animosidade

dela fazia-me falta, tinha que confessar. Mal entrei em casa, senti imediatamente o

alvoroço da cozinha correr na minha direcção, animado por uma face e uns olhos

extremamente expressivos.

- Maria! Que saudades! - Exclamou Shiva, abraçando-me com força. - Então, que tal as

tuas pequenas férias?

- Boas, - afirmei, enquanto lhe piscava o olho. - Os meus tios foram… incansáveis -

menti eu, descaradamente. Pela reacção de Shiva, pude deduzir que ela não desconfiava

de nada. Aparentemente eu não era assim tão péssima a mentir… com outrem que

não…ele.

- Tens fome? Estava a preparar o jantar para nós - sorriu ela, encaminhando-se na direcção

da cozinha.

Olhei para as horas, eram oito e meia da noite. Mais do que horas para jantar e colocar a

conversa em dia.

172

- Vou pôr a bagagem no quarto e já venho ajudar-te - informei eu, enquanto me dirigia ao

meu pequeno espaço parisiense.

Ao entrar, liguei a luz e senti-me obrigada a parar, contemplando aquele pequeno vórtice

de recordações que era o meu próprio quarto. Meu Deus. Assim, ia ser muito difícil.

Complicado, no mínimo. Tentei, mais uma vez, concentrar-me, inspirando fundo um par

de vezes, onde até me parecia conseguir discernir a essência dele no ar que ali permanecia,

desde a última vez que ali estive… com ele. Avancei, determinada, abrindo a janela e

deixando o ar de fora invadir o meu quarto e – esperava eu – renovar rapidamente o

ambiente que ali se encontrava. Deixei as bagagens à beira da cama e olhei para a

secretária, onde se encontrava uma massa consistente de papéis minuciosamente

arrumados.

Hum! Eu não deixei aquilo ali.

Sobre aquele molho encontrava-se um post-it preenchido por uma caligrafia que eu

conseguia reconhecer até de olhos fechados: Adèle.

Naquela pequena porção de papel, Adèle informava-me que tinha tomado a liberdade de

fotocopiar todas as suas aulas durante a semana para eu não perder tempo durante o fim-

de-semana e começar a pôr a matéria em dia. Despedia-se com um caloroso “Bisous”,

seguido da sua ilegível assinatura. Sorri para mim própria, concluindo que, sem dúvida,

Adèle era uma amiga. Uma verdadeira amiga.

Voltei rapidamente para a cozinha, onde encontrei a enérgica face de Shiva, que me

olhava com interesse. No mínimo. E isso era sinal de que iam começar as perguntas.

- Aquela tua colega veio cá a casa deixar-te uns apontamentos, acho eu - informou ela,

enquanto mergulhava vigorosamente a alface que se encontrava no lava-loiças.

- Já vi. Obrigado.

- Ah! De nada. Tive uma semana bastante solitária, sabes? - Brincou ela, olhando-me de

soslaio.

- Desculpa, mas tive mesmo que ir, os meus tios insistiram tanto…não podia recusar… -

menti eu, mais uma vez, mantendo a compostura sem nenhuma dificuldade.

- Não te preocupes, mantive-me entretida. Saí quase todas as noites com o Thomas e com

a Vera. Eles perguntaram por ti.

Limitei-me a acenar, em sinal de confirmação.

- Esta semana foi extraordinária, especialmente em Montmartre. Vi imensos colegas… até

os de Arte, vê bem. Eles, que nunca se deixam ver! - Brincou ela, olhando-me com um ar

indignado, enquanto cortava a alface.

173

Não pude evitar ficar séria. Mas ela não os conhecia, como eu. Ela só tinha visto Nevio e

David. Teria acontecido alguma coisa que eu não sabia?

- Viste-os? Mas… foram sair? O que faziam?

A urgência com que proferia as palavras denunciava o meu interesse e a curiosidade,

ainda que não pelas razões que Shiva certamente pensaria. Pelo menos não… totalmente.

- Calma, Maria… - afirmava ela, com um tom malandro e um olhar ainda mais sugestivo,

antes de continuar. - Não vi o teu “amigo”, só o antipático do italiano com mais dois que

eu nunca tinha visto. Mas pelo aspecto eram, de certeza, colegas - informou ela,

alegremente.

Eram Pierre e Gustave com Nevio, tinha a certeza absoluta. E David não estava com eles,

porque… estava comigo. Em Estrasburgo.

- E eles estavam em Montmartre? - O meu tom era, agora, mais casual.

- Sim, nas noites que lá estive - Informou ela. - Mas também os vi aqui nas redondezas no

domingo à noite, depois de teres ido ter com os teus tios.

Quase que senti o coração parar ao ouvi-la referir-se à presença deles perto do

apartamento onde eu estava, exactamente um dia depois de eu ter sido praticamente

“raptada” para Estrasburgo. Mais uma vez tinha a confirmação da gravidade da situação,

tal como David me havia referido, inúmeras vezes. E eu… que não tinha a mínima noção

do perigo que corria naqueles momentos, se não tivesse a presença dele para me proteger

do fim cruel que, sem dúvida, me esperaria. Afinal, eles iam fazer justiça com as próprias

mãos, tal como David me tinha alertado. Uma questão de cumprir a lei, cegamente… sem

dó nem piedade… nem escrúpulos.

- Maria, o que foi? - Shiva olhava-me, com a sua face preocupada.

- Nada… só estou um bocadinho cansada - menti eu, tentando dissimular o terror que

seguramente inundava a minha face, após ter ouvido as fatídicas palavras de Shiva. Algo

me dizia que, desta vez, não tinha conseguido ser tão convincente com a pequena mentira

que havia proferido.

- De certeza? - Perguntava Shiva, limpando as mãos ao avental, enquanto me observava,

com um semblante curioso.

- Sim, - afirmei eu. Tinha que mudar de assunto rapidamente. - Precisas de ajuda?

- Não.

Shiva acabou de preparar o jantar em menos de dez minutos. Não houve mais menção aos

esquisitos alunos de arte que estiveram estranhamente omnipresentes na semana anterior e

Shiva não me perguntou nada acerca de David, embora eu sentisse a vontade dela de se

referir ao assunto, enquanto jantávamos. Em vez disso, deixei-a falar sobre as suas noites

174

de divertimento, nomeadamente as pessoas que havia conhecido, os novos bares que havia

experimentado e, para meu espanto, o novo clima de cumplicidade que havia surgido entre

ela e Thomas. Shiva informava-me, bastante entusiasmada, que havia alimentado o

interesse de Thomas com as suas extraordinárias armas de sedução (que eu não conseguia

imaginar quais eram, mas também não estava interessada em descobrir a sua natureza…) e

que, inclusivamente, Vera tinha exibido um pouquinho de ciúme face ao clima que Shiva

havia organizado. Não podia evitar comentar a atitude de Shiva.

- Shiva! Foste terrível… - brinquei eu, dando um tom de exagero à situação.

- Ora! Thomas agrada-me. Ele é interessante - referia ela, com um sorriso aberto,

enquanto olhava para o prato, misturando os alimentos de forma caótica. Definitivamente,

parecia nervosa.

-A sério?

Era algo difícil de imaginar. Shiva verdadeiramente interessada por alguém. Pelo menos

por mais de uma semana.

- Sim, mas sejamos realistas. Somos do programa de intercâmbio, ele é alemão, eu sou

indiana, não há futuro - retorquiu ela, sem aparentar tristeza nem remorso. - Mas…

digamos que eu também não procuro algo definitivo. Pelo menos, por enquanto -

adicionou ela, sorrindo.

- Pois… - respondi eu, espantada com a descontracção dela, ao referir-se a alguém como

uma simples forma de distracção. Eu não conseguia ser assim. E talvez fosse por isso que

estava sozinha.

- Então e tu, Maria? - perguntou ela, repentinamente, apanhando-me de surpresa.

- Eu, o quê?

- Novidades do foro emocional… - esclareceu Shiva, olhando-me como se a constatação

dela fosse algo muito óbvio.

- Ah, não. Nada… de novo - menti eu, embora não fosse completamente errada a minha

última asseveração.

- Tens que fazer alguma coisa para mudar isso, Maria! - Shiva olhava-me com uma

preocupação genuína no olhar. - É demasiado entediante, sem a adrenalina, sem a emoção

do romance.

Oh! Se ela soubesse só uma mínima parte das ocorrências na minha monótona e

desinteressante vidinha que, aparentemente, só envolvia livros e carreira; Se ela soubesse

que a minha vida tinha estado em jogo praticamente desde a minha primeira semana em

Paris; Se ela soubesse que, na verdade, os bizarros alunos de arte me vigiavam de longe,

175

que existia um mundo à parte do nosso mesmo ali ao lado. Semelhante à quinta dimensão,

mas real.

- Pois, é verdade… - afirmava eu, com um tom aborrecido, na direcção dela, enquanto

olhava para o prato, desejando que aquele assunto terminasse ali e que, a ela, não lhe

ocorresse perguntar por…

- Então e o David?

Claro. Já se estava mesmo a ver. Era bom demais para ser verdade.

- Não sei, - respondi eu, esforçando-me para manter um tom de desinteresse. Subitamente,

olhei para ela, para encontrar um intenso olhar de reprovação. - É verdade! - Reforcei eu,

embora já soubesse que de nada serviria a minha insistência em reforçar algo que ela

simplesmente não aceitava como resposta.

- Maria, tens que arriscar. É óbvio que existe algo entre vocês.

Olhei-a, indignada. Sim, de facto era óbvio que existia algo. Algo terrível, que nos unia.

Uma ligação extremamente perigosa, proibida pelas altas instâncias. Algo que ameaçava a

minha integridade física e emocional e, em suma, a minha existência. E agora, como é que

eu lhe ia explicar que a realidade que ela conhece não é mais do que uma trégua entre

duas espécies, cujo equilíbrio delicado estava comprometido e que eu tinha contribuído

para arruinar esse equilíbrio, ainda que de uma forma totalmente involuntária. Como

explicar-lhe que David nem sequer era humano e estava a arriscar-se de uma forma

estupidamente heróica, por mim.

Meu Deus. Afinal, em que mundo irracional vivo eu?

- Shiva… - comecei eu, pensando cuidadosamente nas palavras que iria utilizar. – Eu e

ele… Nós somos muito diferentes. - Inclusivamente ao nível da espécie. - Do pouco que

conheço dele, já percebi que ele… - Pertence a outra categoria. A todos os níveis. -

…vive num mundo distinto do meu, de tal forma que é, simplesmente… incompatível.

Shiva olhou-me, perplexa. Ela não fazia ideia da veracidade das minhas palavras, apesar

de ela as interpretar de uma forma totalmente paralela à real. Só esperava que ela pudesse

compreender e deixar de insistir nele como uma opção viável para mim.

- Ora. Melhores tempos virão - afirmou Shiva, com um sorriso aberto. - Tens que ter

esperança.

Acenei, como se concordasse com o que havia proferido, enquanto olhava para o prato

ainda parcialmente coberto de alimentos, considerando as suas palavras. Esperança.

Se havia algo onde eu me pudesse agarrar seria, definitivamente, à esperança... Esperança

de conseguir sair de tudo isto… viva. Esperava, com muita força, que assim fosse.

176

CAPÍTULO 12 – ÓPERA GARNIER

AS SEMANAS QUE SE SEGUIRAM FORAM PARTICULARMENTE TRABALHOSAS.

Após a minha chegada de Estrasburgo, nem tinha tido tempo para respirar, considerando a

quantidade extraordinária de temas para estudar, para além das aulas que tinha perdido

pelas razões que eu tão adequadamente classificava de força maior. Adèle ajudou-me

durante a primeira semana a lidar com a bibliografia que envolvia como língua

predominante o francês, enquanto aproveitávamos para estudar a matéria. Era uma boa

forma de me abstrair das imagens da semana anterior em Estrasburgo, da presença

constante de David na minha mente, da saudade que sentia – tinha que admitir. Apesar de

não o referir a ninguém, por vezes o meu semblante denunciava-me e, face às questões

que Adèle ou Shiva me colocavam, eu acabava por mentir, referindo a saudade de casa e

do meu país. Não que não fosse verdade, mas não era essa a verdadeira razão pela qual

ocasionalmente, eu expirava ruidosamente, ou mantinha um olhar vazio, revelando a

minha clara ausência do local onde me encontrava. Mentalmente, pelo menos.

A Primavera estava a chegar a Paris e, com ela, um extraordinário preenchimento

da cidade com a mais frondosa vegetação que havia visto. Das nuas árvores que

povoavam a Cité Universitaire já conseguia ver como brotavam as pequenas folhas dos

ramos que mantinham, ainda, uma aparência grosseira e gasta do rigor do Inverno. Do

meu quarto podia contemplar como a Primavera, a pouco e pouco, discretamente, ia

ocupando os mais inóspitos recantos da cidade.

Com esta estação do ano, não surgiam somente as flores e o regresso das andorinhas, mas

também se observava a tão característica elevação dos níveis hormonais da maior parte

dos seres humanos em meu redor. Shiva estava perto do que eu considerava insuportável;

a sua pequena fixação por Thomas havia terminado rapidamente para dar lugar a uma

paixoneta desproporcionada por um colega de turma, segundo ela, um francês de aspecto

admirável com uns olhos hipnotizantes. Se não fosse pelo facto de ele ser claramente um

ser diurno, com hábitos característicos de seres humanos, atrever-me-ia a suspeitar que se

tratasse de um vampiro. Mas, como não era o caso, deixei a minha suspeita claramente

infundada dissipar-se na minha mente. Agora Thomas relacionava-se abertamente com

Vera, mas somente porque já não se encontrava debaixo do feitiço que era o mundo de

Shiva e as suas irresistíveis armas de sedução. Pelo menos, era esta a versão dela – que

conseguia ser tudo, excepto imparcial. E realista. E… modesta, na minha opinião. Mas

177

Shiva era mesmo assim, muito centrada nela própria e, pelo menos, já tinha desistido de

me questionar acerca de David e das imensas alternativas masculinas que existiam na

cidade, às quais eu tinha obrigação de me agarrar, segundo ela, com unhas e dentes. Após

algum tempo a ignorar as suas repetidas tentativas de bisbilhotar a minha vida pessoal,

Shiva optava então por me informar das suas fugazes conquistas e do quão previsíveis

eram os milhentos rapazes que já conhecia, razão pela qual continuava a procurar -

avidamente – o seu príncipe encantado. Eu ouvia-a atentamente, pelo menos durante os

primeiros cinco minutos, para depois me limitar a acenar, enquanto ela falava e eu me

transportava mentalmente para os mais variados locais longe dali.

Como estava muito ocupada, para mim as semanas passavam sem eu me aperceber da

velocidade estrondosa a que se aproximava a fatídica época de exames. O mês de Abril

chegava e, com ele, as férias da Páscoa, que consistiram numa miserável semana em que

eu nem sequer pude viajar para Portugal matar saudades dos meus pais e da minha irmã.

Como compensação, fui brindada pela presença deles durante um fim-de-semana que

envolveu também os meus tios, aqueles que eu tinha – supostamente – visitado durante

uma semaninha de férias. Para além disso, simplesmente aproveitei para dormir um pouco

mais do que o dia-a-dia académico me permitia, pois grande parte dos meus dias estavam

ocupados por estudo e mais estudo, alternados com momentos ocasionais de convívio com

Shiva.

Maio chegou veloz e com ele o infalível stress que precedia as avaliações, exames

escritos e orais. Até Shiva estava mais calma, mais concentrada nos seus afazeres e o

tempo que reservávamos para confraternizar estava claramente reduzido a um par de

vezes durante o dia, que normalmente coincidia com a hora das refeições.

Foram dois meses de árduo trabalho e pouco divertimento, que me ocuparam a mente e o

corpo de uma forma absolutamente absorvente, não me deixando tempo para pensar na

ausência de David desde que tinha regressado de Estrasburgo. Ele, sim, parecia que se

tinha evaporado, literalmente. Nas escassas ocasiões em que a faculdade não me permitia

chegar a casa mais cedo, ou quando estudava com Adèle até mais tarde e regressava de

metro ou de eléctrico para casa, não fui surpreendida com a presença de nenhum dos

vampiros cujas feições já conhecia. Ainda que a inexistência deles fosse só aparente, – eu

bem sabia que eles continuavam a circular por ali, pois era o dever deles – o facto de os

dias se estarem a tornar progressivamente mais longos corroborava a meu favor. Cada vez

anoitecia mais tarde e, consequentemente, mais segura me sentia ao percorrer a cidade nas

horas vespertinas mais tardias.

178

O calor começava a sentir-se cada vez mais explicitamente, dando lugar às roupas leves,

ténis coloridos e aos acessórios alusivos às estações mais quentes, ainda que o calor em

Paris não se parecesse – nem de longe – com o calor a que eu estava habituada na minha

cidade natal, pelo que, para mim, Maio em Paris não era mais do que uma amostra de uma

primavera fresca, acabada de chegar, quando os meus colegas consideravam que vinte

graus centígrados já era, caracteristicamente, temperatura de Verão.

Era inevitável relembrar-me do encurtamento obrigatório que os hábitos nocturnos de

David teriam sofrido. Seria penoso passar agora mais tempo escondido da luminosidade,

fosse lá onde fosse que ele – e os seus “amigos” – se resguardavam? Far-lhes-ia diferença

menos duas ou três horas de escuridão? Não fazia a mínima ideia. O máximo que poderia

fazer era especular. Deduzir, ou supor. Nunca o poderia confirmar. Porque – eu já sabia, -

ele nunca mo diria. Para minha segurança.

Tal como referia o famoso provérbio “Longe da vista, longe do coração”, o facto de eu

não o ver – fisicamente – ajudava-me a abstrair-me, mas era de todo impossível, esquecer

que ele existia. Era simplesmente impraticável, por muito que eu quisesse, que eu

desejasse que assim fosse. Por muito que eu tentasse.

Por isso, o provérbio estava parcialmente errado. Era essa a única conclusão óbvia a que

poderia chegar. A menos que o provérbio se referisse somente a situações que

envolvessem seres da mesma espécie. E não podia fazer nada para modificar a minha

realidade, por muito incomodativa que fosse. Como tantas outras vezes, já tinha chegado a

esta miserável conclusão, mas continuava a insistir em pensar no assunto, em questionar a

sua ausência, a indagar o que estaria ele a fazer, em variadas horas do dia… e da noite.

Sentia-me estúpida, por me deixar influenciar pela presença de um vampiro ausente. Se

bem que ele era um vampiro e fosse, de certo modo, “natural” que ele tivesse um efeito…

envolvente na maior parte dos humanos – onde eu (claramente!) me incluía -, nada

justificava a sensação de vazio que eu sentia há mais de dois meses, sem ter notícias dele.

Nem uma mensagem, nem uma visita. Nada.

Nas primeiras semanas após regressar de Estrasburgo ainda observei discretamente pela

janela do meu quarto, ou de soslaio pela janela da cozinha, logo após anoitecer,

esperançosa que aquela estátua viva aparecesse, mas sem sucesso. À medida que os dias

passavam, apercebia-me de quão fiel ele era à sua palavra e percebi que ele só viria

quando soubesse o resultado da audiência. Ponto final. E, por muito que me custasse,

tinha que me conformar com esta realidade, tinha que aceitá-la, porque eu sentia que ela

não ia mudar.

179

A Época de Exames chegava no final de Maio, um mês de implacáveis avaliações

que ameaçavam destruir toda a nossa capacidade de encaixe.

Shiva estava destemida, insuportavelmente impaciente, sinal de que se sentia stressada;

Adèle, como minha companheira de estudo, com quem desabafava a minha aparente

incapacidade de pronunciar correctamente uma frase complexa em francês, mostrava-se

extremamente compreensiva com a minha elevada irritabilidade quando se aproximavam

os exames orais. Só nestas alturas me arrependia amargamente de ter escolhido um país

com língua oficial francesa como destino do programa de Intercâmbio. Ainda assim,

éramos das poucas alunas que podiam afirmar que os exames estavam a correr bem, sem

percalços relevantes, sinal de que todo o trabalho desenvolvido nos últimos meses estava,

sem dúvida, a dar frutos.

O final de Junho aproximou-se, assim como o meu último exame - o último,

finalmente. Nos quatro dias que antecediam a data do último exame, eu encontrava-me

francamente ansiosa. Não pela expectativa de ir realizar o último exame, nem por me

encontrar com um cansaço extremo, mas porque ainda não tinha tido notícias de David,

relativamente à audiência. Não saber de nada em relação à audiência começava, agora, a

preocupar-me, pois assim que os exames acabassem, eu tinha uma viagem marcada para

Portugal… Era o regresso definitivo, ainda que, com toda a segurança, conseguisse adiar o

meu regresso um par de dias, sem evitar perguntas desconfortáveis dos meus pais. Mais

do que isso, seria impensável.

Todos dias, ao anoitecer, a minha figura fixava-se na janela do quarto, esperando,

confiante que ele pudesse aparecer para me dizer algo, fosse o que fosse. Mas as horas

passavam e tudo à minha volta permanecia igual, com a ausência dele a assombrar-me as

noites…e os dias. Pela minha mente já tinham passado as mais variadas justificações, os

mais elaborados cenários, do mais realista ao mais ridículo.

Nas vésperas do último exame, a minha mente não tinha espaço livre para relembrar a

dura realidade da ausência de David, pois estava demasiado ocupada com o conteúdo

académico que ia ser avaliado no dia seguinte, pelo que nessas horas, essa foi

exclusivamente a minha única preocupação.

No dia seguinte o exame realizava-se nas primeiras horas da manhã e, nervosamente,

encaminhei-me para o local, onde já se encontrava Adèle. Só desejava terminar o exame

rapidamente. Sentia-me cansada e a precisar de férias.

Mas antes disso ainda tinha um pequeno – grande – problema para resolver.

180

O exame não me correu da melhor maneira mas, sinceramente, pouco me

importava. Só queria que chegasse o anoitecer e que David aparecesse, para que eu

pudesse saber o que fazer. O restante da manhã e a tarde que se avizinhava enorme –

demasiado longa – enervavam-me. Eu estava demasiado impaciente.

Almocei com Adèle que se mostrava excessivamente desgostosa por ter chegado a hora de

eu me ir embora. Apesar de ser algo inevitável, como eu lhe referi. O almoço prolongou-

se por toda a tarde e foi com promessas de e-mails semanais obrigatórios e telefonemas

nas datas mais relevantes que consegui convencer Adèle a deixar-me voltar para Portugal

sem uma data concreta para regressar a Paris, para a visitar.

Cheguei a casa pouco antes da hora do jantar, ainda era dia. Um nervoso miudinho parecia

apoderar-se de mim de uma forma incontrolável, como que alertando-me que algo se iria

passar. Seria hoje que David apareceria? Lá em baixo, na rua, ou talvez à janela? E a que

horas? Expirei ruidosamente, enquanto entrava em casa, esperando encontrar Shiva, muito

provavelmente extasiada por já estar de férias. Contudo, o que encontrei foi um silêncio

massivo. E, alguns metros mais adiante, decorando a porta do quarto de Shiva, um post-it

cor-de-rosa, em forma de flor, onde me informava que ia jantar fora e que voltava (muito)

tarde. O modo como terminava a mensagem, rodeada de pequenos coraçõezinhos pintados

a vermelho, revelava o teor romântico do jantar, assim como a companhia. Não pude

evitar sentir-me desamparada, pois naquele momento sentia-me seriamente necessitada da

boa disposição de Shiva, para me retirar do nervosismo em que me encontrava.

Assim sendo, não tinha hipótese, a não ser… esperar. Esperar que ele, hoje, aparecesse.

Entretive-me durante cerca de duas horas: arrumei uma quantidade considerável de livros

e material académico, organizei toda a roupa que tinha, preparando-a para a colocar na

mala de viagem, enquanto observava discretamente o sol a descer no horizonte, a

esconder-se por detrás das nuvens, a desaparecer lentamente, enquanto Paris mergulhava

na sombra da noite.

Já era noite quando decidi ir preparar o jantar, que consistiria certamente em algo rápido e

leve, pois não sentia muita fome.

Olhava, estática, para a janela, observando como a noite estava hoje particularmente

escura. Como não estava especialmente esfomeada, optei por fazer uma sanduíche

simples, com o sumo que ainda restava do dia anterior. Comi encostada ao balcão da

cozinha, sem paciência para me sentar, pois as minhas pernas não me deixavam relaxar,

estava demasiado agitada. Definitivamente, ia-se passar qualquer coisa. Eu sentia algo em

meu redor, mas não sabia o que era, nem no que consistia… mas seguramente envolvia-o,

a ele.

181

O barulho da campainha sobressaltou-me, fazendo-me olhar no sentido da porta.

Mas eu não estou à espera de ninguém.

Mantive-me a olhar na direcção da porta, à espera de… nada em concreto. Até que ouvi,

novamente, o ruído da campainha. Avancei, em bicos de pés, sem fazer barulho, até à

porta, preparando-me para olhar pelo visor. Ainda o meu pensamento terminava de ser

verbalizado na minha mente, quando ouvi uma voz firme do outro lado da porta.

- Sou eu, David.

Senti imediatamente o meu batimento cardíaco disparar, ao ouvir a sua voz.

Instintivamente, abri a porta, para encontrar o olhar aquele extraordinário vampiro,

ligeiramente encostado à ombreira da porta. O semblante dele estava envolto em

misticismo, o cabelo descobria parcialmente a sua face e as roupas que vestia eram as

habituais – uma t-shirt e calças de ganga – escuras, como de costume, mas agora sem a

etiqueta que relembrava a audiência em Estrasburgo.

David, por outro lado, observava-me com curiosidade e expectativa.

- Entra - afirmei eu, enquanto abria completamente a porta, permitindo-lhe a entrada. Ele

moveu-se rapidamente, entrando no meu apartamento e mantendo-se, estático, no hall de

entrada, olhando-me discretamente.

- Estás sozinha - afirmou ele, secamente, como se estivesse a constatar algo.

- Sim, - respondi eu, de imediato. - E ainda bem, porque se Shiva te encontrasse aqui,

nunca mais ia ter descanso - informei eu, esperançosa que, desta forma, o ambiente entre

nós se tornasse mais leve.

- Sim, ela tem uma mente muito imaginativa - afirmou ele.

- Como é que sabes isso?

- Ela é muito óbvia. Especialmente no que toca às suas intenções - informou ele, com um

ligeiro sorriso nos lábios. Definitivamente, quando sorria, ele era… enfim.

Não pude evitar sorrir face à sua última afirmação, que estava, como seria de esperar,

correctíssima. Ele era, sem sombra de dúvida, bastante capaz no capítulo da perspicácia. E

ainda era um vampiro jovem. Mais uma centena de anos e ele seria um verdadeiro perigo

para qualquer humana em seu redor. Absolutamente insuperável.

- Já sabes o resultado da audiência?

Era uma pergunta idiota, mas ainda assim não encontrava melhor forma de o questionar.

- Sim - respondeu ele, automaticamente.

- E?

182

A minha expectativa estava a aumentar de uma forma incontrolável, à medida que

ponderava as minhas possibilidades e as poucas alternativas que tinha. A face dele

mantinha-se ilegível, dificultando a minha procura de respostas no seu semblante.

- Foi aceite - afirmou ele, emanando alívio nas suas palavras.

Não consegui controlar a minha respiração, a agitação, a expectativa que sentia ao ouvir e

processar as suas palavras na minha mente. Estava tão contente e feliz que tinha

dificuldade em verbalizar os mais simples pensamentos, em controlar os meus impulsos

de alegria.

Dei por mim a caminhar na direcção dele, sem pensar no que iria fazer, até que o meu

rosto encontrou o frio que inundava o algodão da t-shirt que ele trazia. Depois, os meus

braços, as minhas mãos, descansaram na fria fibra que o rodeava. Só agora me apercebia

que ele era mais alto do que parecia. Dele emanava uma brisa fresca que parecia quase

perfumada, que me arrefecia automaticamente, quase a um nível anestésico, que

contrastava bastante com a minha temperatura corporal. Apercebi-me então que o estava a

envolver num abraço, pela rigidez que ele manifestava, semelhante a uma verdadeira

figura de mármore, tal como as que existiam no museu do Louvre. A sensação de o

abraçar era algo completamente diferente… fora do natural. Extraordinário. Era capaz de

me habituar a isto.

- Obrigado… - sussurrei eu, enquanto me mantinha apoiada nele, sentindo o quão tenso

ele se encontrava por estar tão próximo de mim, quase seguramente. Ele não se movia e,

pela ausência de movimentos, seguramente não respirava e quase se certeza que se sentia

desconfortável, pela forma como NÃO se manifestava. O que era uma pena, porque eu

sentia-me bastante confortável. Até demais.

Olhei discretamente para os seus pálidos braços, que pendiam, imóveis, como se eu não

estivesse ali. Eu conseguia sentir a sua indiferença. Dei por mim a desejar que ele

retribuísse o abraço, mas ao mesmo tempo tinha a perfeita noção de que estava a querer

algo que já tocava o limite da fronteira entre espécies. Acabei por ser eu a dar por

terminado aquele momento, afastando-me rapidamente dele uns sólidos dois metros.

Quando voltei a olhar para ele, o olhar surpreso dele reflectia, para meu espanto, choque.

Era algo absolutamente novo, que eu nunca tinha visto nele, o que só poderia significar

que tinha feito asneira…ou, na melhor das hipóteses, que o tinha surpreendido.

- Não devias fazer isso - declarou ele, com um tom de voz seco.

Claro que não. Abraçar um vampiro é mais do que perigoso. É, claramente, estupidez. Só

me restava desculpar-me, ainda que não estivesse minimamente arrependida do que tinha

feito. Muito pelo contrário.

183

- Desculpa. Só te queria agradecer por…

- Eu sei, - interrompeu ele, observando-me curiosamente. - Mas deves evitar a…

proximidade. Podemos ser bastante imprevisíveis.

Pelo tom que ele admitia, começava a compreender o que ele queria fazer. Ele

queria assustar-me, queria relembrar-me do quão perigoso era aproximar-me da sua

espécie, aproximar-me dele. Pois bem, eu não era assim tão inconsciente, não ia abraçar

qualquer vampiro que me aparecesse à frente. Ele era diferente e eu já sabia que ele não

me ia fazer mal. Era algo que eu não conseguia explicar, mas eu sentia que ele não me

faria mal. Em nenhuma circunstância.

- Muito bem, - afirmei eu, olhando-o, determinada. - Não voltará a acontecer.

Era uma das maiores mentiras que eu estava a afirmar naquele preciso momento, pois o

que eu sentia era exactamente o oposto. Tinha uma enorme vontade de repetir a proeza,

como uma criança birrenta que faz exactamente o que os pais não querem, apenas para os

contrariar, ainda que as minhas razões não fossem propriamente a vontade de o contrariar,

mas sim a necessidade viciante de lhe tocar, de estar perto dele. Ainda havia menos de um

minuto estava abraçada a ele e já desejava abraçá-lo novamente.

Pára de pensar em abraçá-lo.

O olhar dele mantinha-se no meu, enquanto o via semicerrar ligeiramente os olhos,

claramente sentindo a minha contenda interna, tentando compreendê-la, tentando

descobrir no que consistia. Ora, eu não poderia deixar isso acontecer e, como tal, comecei

rapidamente a ponderar que talvez fosse melhor eu criar alguma manobra de distracção…

e depressa. Com a máxima agilidade que consegui reunir, desviei o meu olhar do dele e

dirigi-me na direcção da cozinha.

- Então e agora? Estou fora de perigo? - Perguntei eu, enquanto procurava em meu redor

por algo que me distraísse o olhar e me ocupasse o pensamento.

- Sim, mas ainda há que formalizar o resultado - declarou ele, claramente por detrás de

mim, o que me sobressaltou. Não o havia ouvido mover-se na minha direcção, não o

esperava tão perto de mim. Olhei-o, surpresa.

- Formalizar?

- Sim - afirmou ele, olhando-me fixamente.

- E consiste em quê? - Perguntei eu, genuinamente curiosa.

David desviava o olhar de mim, como que incomodado com a minha pergunta. A sua

hesitação sempre me suscitava suspeitas.

- É uma… cerimónia. Conduzida por Läis e testemunhada por vários…vampiros.

184

O olhar dele fixava-se novamente em mim, emanando, agora, receio. Ao olhá-lo, percebi

que a cerimónia de que falava não deveria ser algo muito agradável, pelo menos para

mim. Mas eu sabia que não podia evitar esse momento. Estava encurralada. Ainda assim,

com toda a incerteza e pânico que aquela desconhecida cerimónia me suscitava, havia

algo que eu desejava muito: a presença dele.

- Vais lá estar? - Perguntei eu, sentindo a voz a falhar-me. Era algo que me acontecia

(quase sempre) quando estava assustada.

A minha pergunta pareceu confundi-lo. A sua face, mais uma vez, reflectia surpresa e

espanto, enquanto se aproximava lentamente, mantendo o seu intenso olhar fixo em mim.

- A minha presença é assim tão importante para ti?

A sua pergunta evidenciava um genuíno tom curioso.

- Sem dúvida… - retorqui eu, sem pensar. A sua proximidade fazia-me comportar de uma

forma mais emotiva, o que não era, de todo apropriado, sabendo eu que ele sentia a minha

agitação. Apesar de tudo, por vezes, as atitudes dele confundiam-me. Tão rapidamente se

aproximava de mim de forma envolvente, como se desejasse compreender-me, como

repentinamente se afastava e me alertava dos supostos perigos da proximidade física entre

humanos e vampiros. Claro que o predador e a presa não podiam conviver… – Leis da

Natureza. E dos vampiros. E eu… teimava em circundá-las. Só poderia estar louca,

definitivamente.

Ainda assim, continuava com uma enorme vontade de o abraçar, de lhe dizer que tinha

sentido a sua falta. Muito. Durante cerca de dois penosos meses. Mas, desta vez,

compenetrei-me o suficiente para não o fazer. Subitamente ouvi-o falar.

- Sim, eu vou lá estar. Juntamente com todos os outros.

- Outros?

- Nevio, Pierre, Gustave, assim como Lothaire e… a corte de Läis.

- A corte de Läis? - Questionei eu, com curiosidade. - Não me parece… amigável.

- São os seus apoiantes, - elucidou David, com um tom mordaz. - Um conjunto

absolutamente adorável de lambe-botas - sorriu ele, claramente divertido com a sua

última asseveração.

- É seguro? - Desabafei eu.

- Sim - respondeu ele, sem hesitar, mantendo o seu olhar em mim.

Sentia-me incapacitada de o deixar, de prescindir daquele olhar que me prendia. Por

momentos desejei que não tivesse que regressar a Portugal, desejei ficar para sempre presa

naquele momento, naquele olhar…

185

Após alguns segundos, vi-o reagir de uma forma tão repentina quanto estranha.

David praticamente materializava-se na outra ponta da cozinha, agindo como se eu fosse

uma leprosa. Claro que não se tratava de uma verdadeira materialização – porque isso

seria impossível –, eram simplesmente as suas extraordinárias capacidades de se mover a

uma velocidade que os meus olhos não conseguiam acompanhar. A postura dele era tensa,

enquanto se mantinha de perfil, concentrado em algo ao nível do solo. Alguns momentos

foram suficientes para eu deduzir que ele estava aborrecido.

- Tens que aprender a controlar-te - disparou ele, olhando-me de soslaio, condenando-me

com um breve olhar. - Se te mostras tão óbvia com Läis, ela não vai ser complacente.

A sua última asseveração assustava-me verdadeiramente até que o ouvi, então, expirar

ruidosamente. E, tal como da última vez, só me restava desculpar-me por ser tão

transparente.

- Desc-

- Não te desculpes! Age! - Interrompeu ele, enquanto me fitava de uma forma quase

ameaçadora. - Läis não é como Philippe. A cerimónia não é como a audiência.

O modo como ele me informava era, no mínimo intimidante, enquanto se encaminhava na

minha direcção, lentamente. E continuou, - Este é o território dela, as regras são aplicadas

por ela. Se Läis sente a tua… empatia, garanto-te que ela vai esforçar-se para te fazer

sofrer.

O modo como ele hesitava ao tentar descrever o que eu sentia quanto estava com ele

fazia-me sentir vergonha de mim própria. Em definitivo, eu não devia nem podia ser tão

óbvia, para meu próprio bem. Estava a sentir-me irresponsável, imprudente. Mas era tão

difícil reprimir o que sentia, ou evitar manifestar-me mentalmente, quando a situação o

sugeria! Agora, nem sequer na minha mente eu tinha paz. Tinha que transformar-me numa

pedra, um ser insensível com braços e pernas. Pelo menos hoje, tinha que conseguir, para

não dar ideias à vampira “soberana”.

- Vamos.

Ouvi-o dizer, com a voz firme.

- J-Já?

- Sim. Quanto mais depressa formos, mais depressa voltas, sã e salva.

A passagem subtil da referência inicial ao “nós” para o “tu” não me passou despercebida.

Ainda que “sã e salva”, como ele garantia, eu não queria regressar daquela maldita

cerimónia sozinha. Nem pensar. Mas controlei-me e não lhe mencionei a minha

expectativa. Só esperava que eventualmente ele mudasse de ideias.

186

Olhei rapidamente para o que eu tinha vestido: uma t-shirt, calças de ganga e ténis.

Completamente desadequado para uma cerimónia, fosse ela de que natureza fosse…

Discretamente, observei-o. As vestimentas dele eram bastante elementares e ele não tinha

feito referência à etiqueta, nem directa nem indirectamente (como eu relembrava de

Estrasburgo), pelo que me senti mais descansada.

Certamente seria só uma simples cerimónia e somente teria que me concentrar a anular a

minha excepcional capacidade emotiva.

“Tarefa fácil!”, pensei eu, ironicamente, enquanto me dirigia no sentido da porta, pronta

para sair de casa, a caminho do desconhecido que me aguardava. David já se encontrava

perto dos elevadores.

Não sabia onde a cerimónia ia ter lugar, mas também não lhe perguntei. Talvez o

local onde estas formalidades se realizassem fosse confidencial, razão pela qual pairava

todo aquele secretismo. Ao chegar à porta do meu prédio, concluí que o meio de

transporte ia ser, novamente, um táxi. Mais uma vez, observei David a sussurrar ao

motorista o destino da corrida.

A viagem demorou cerca de quinze minutos, até que o táxi abrandou junto à frontaria de

um magnífico edifício que eu conhecia, não por frequentá-lo, mas por fazer parte do

património cultural da cidade: a Ópera de Palais Garnier. Estávamos agora numa das

zonas mais movimentadas da cidade. Surpresa, procurei o olhar de David, para o

encontrar a dar-me sinal para sair.

O exterior do edifício que consistia na Ópera Garnier, como era mais comummente

conhecida, mas parecia um bolo de noiva talhado à mão. O design era exuberante e, pelo

aspecto, a extravagância que ostentava por fora certamente se prolongava para o interior.

Perto da entrada encontravam-se uma quantidade absurda de pessoas, vestidas a rigor,

muito provavelmente prontas para assistir ao espectáculo que ia ter lugar naquele edifício.

Olhei em meu redor e senti-me alvo dos maiores olhares de desdém, seguramente por

estar vestida de uma forma tão ocasional. Mas, eu não estava ali para assistir ao

espectáculo. E aquelas pessoas não sabiam disso.

Eu estava ali para ser o espectáculo.

Senti a mão fria de David no meu braço, alertando-me para onde teríamos que nos dirigir.

Para meu alívio, não era para a zona de entrada do Edifício, mas sim para uma área bem

mais recatada numa das ruelas perpendiculares que ali se encontravam. Não andámos mais

de vinte metros, até que David parou ao encontrar uma porta que, apesar de discreta, era

finamente ornamentada. Não havia números, nem placas, nem nada que identificasse onde

187

nos encontrávamos. David abriu a porta e fez-me sinal para entrar, seguindo-me

imediatamente.

Mal a porta se fechou atrás de nós, fui invadida por um mar de escuridão. Não havia luz,

de nenhum tipo. Mas estava ali mais alguém para além de mim e David. Eu sentia a

presença de mais… vampiros. Eu sabia-o, pelo aroma sobrenatural que ali se encontrava,

pelo brilho fugaz que ocasionalmente encontrava em pontos incertos na escuridão.

- Nevio, as luzes - disparou David, com um tom rígido.

Ouviu-se um pequeno rugido, que admitia um tom de consternação óbvio, para segundos

depois surgirem – finalmente - as luzes. Nevio encontrava-se ainda com a mão por cima

do interruptor, olhando David com ar de reprovação, certamente por lhe ter arruinado o

seu momento de diversão. Os outros dois, reconhecia-os da fatídica noite na Cité

Universitaire. Eram Pierre e Gustave, que mantinham um semblante de diversão, como

que divertidos por verem Nevio e David discordarem tão efusivamente. Pelo olhar que nos

lançavam, conseguia presumir que os momentos de discórdia entre eles eram habituais.

Não consegui concluir se isso era bom ou mau, dadas as circunstâncias actuais em que nos

encontrávamos.

Só agora conseguia observar Pierre e Gustave com algum detalhe, graças à luminosidade

que nos rodeava. Eram tipicamente franceses, com umas feições finas, muito

características, ainda que Gustave apresentasse, no geral, um aspecto mais grosseiro,

vulgar, até. Ambos tinham cabelo curto, claro e tinham olhos igualmente claros -

provavelmente azuis -, e a forma como se vestiam era um pouco mais cuidada, menos

elementar que a de David, mas sempre fiéis às cores escuras. Era evidente que eles se

consideravam outra estirpe, diferente da de David e de Nevio. Superior, até. Mas eu já

sabia as razões por detrás daquele comportamento, pois David já me as havia explicado

naquela noite em Estrasburgo.

Mas, ainda assim, o olhar deles, assim como a sua postura, aproximavam-se da

neutralidade. Contrariamente, Nevio olhava-me com uma força absolutamente hostil.

Calculei qual fosse o problema dele, ainda que não tivesse a coragem de o verbalizar – ele

estava com fome. O modo como ele se colocava a uns meros três metros de mim fazia-me

querer fugir daquele local, para longe do seu apetite voraz. Dos seus frios olhos,

parcialmente descobertos por melenas de cabelo negro desalinhado, emanava uma

crueldade que me fazia tremer de medo, que me fazia temê-lo. Instintivamente, olhei para

David, procurando apoio no seu olhar, nas suas atitudes que já me tinham salvo noutras

ocasiões semelhantes.

Nele, só encontrei a forma fixa como fitava Nevio.

188

- Nevio… agora não - declarou David, entredentes.

O semblante de Nevio reflectia desilusão. Conformado, movia-se agora no sentido oposto

ao meu, seguido por Pierre e Gustave, desaparecendo na escuridão. Só agora conseguia

reparar que estávamos num corredor de longas paredes brancas. Aquela ornamentada

porta por onde tinha entrado dava acesso a um longo corredor, do qual eu não conseguia

ver o fim, mesmo que me esforçasse. Subitamente, ouvi David falar, mais semelhante a

um sussurro firme.

- Nevio…

Foi instantâneo. Todo o corredor se iluminou, exibindo a sua enorme extensão. Olhei

discretamente para David, que pareceu sentir a minha apreensão.

- Ele é muito teimoso… - informou David, na minha direcção, à medida que

avançávamos. - Mas é controlável - elucidou, por fim.

Sem dúvida, era uma asseveração que me acalmava, pelo menos momentaneamente. E a

presença dele era, sem dúvida, fundamental para que me sentisse minimamente segura

num verdadeiro antro de vampiros.

Andámos até encontrar um elevador, localizado no fim do corredor. Já não vi nenhum dos

outros nas redondezas. Certamente, já estariam no local onde a cerimónia iria decorrer.

David carregou no único botão, que reluzia, agora, vermelho, passando rapidamente a

verde à medida que a porta se abria, revelando o vazio que lá se encontrava.

- Entra - disparou David, avançando imediatamente por detrás de mim.

No interior do elevador, pude observar que não existiam botões, nem nada que pudesse ser

indicativo de nos levar a algum sítio. Era, simplesmente, uma caixa de aço vazia,

desprovida de designações, com uma simples porta de saída ou entrada e uma ténue luz

que ameaçava desvanecer-se a qualquer momento.

- Sub-cave - ouvi David proferir, como se estivesse a informar alguém do destino que

desejava. E, de facto, assim era.

De imediato, o elevador começou a mover-se no sentido descendente, durante uns longos

e penosos segundos. Estava a começar a ficar assustada. O que iria ser de mim? Não. Não

podia começar a assustar-me agora, não agora. Com calma, tentei compenetrar-me em

esvaziar a minha mente.

Uma rocha. Uma pedra, sem sentimentos.

O movimento cessou e a porta abriu-se, revelando, mais uma vez, uma ampla extensão de

espaço onde conseguia discernir algumas figuras que deambulavam em pequenos

agrupamentos, tão rapidamente que mais pareciam correr de um lado para outro.

189

- David, finalmente… - proferiu uma voz masculina que rapidamente nos atingiu com a

sua presença. Pela forma carinhosa como observava David, deduzi que só poderia ser

Lothaire.

Lothaire era um vampiro com uma aparência adulta, mas revelava uma enorme sabedoria

em cada traço que formava a sua elegante face. Ele olhava para David como um pai olha

para um filho, preocupado com o que lhe vai suceder, temendo as suas atitudes

inconscientes. Lothaire evidenciava uns expressivos olhos castanhos e um cabelo também

castanho rigorosamente alinhado, estava vestido a rigor, de tal forma que se assemelhava a

um empresário.

- Está tudo bem, - afirmou David. - Como podes constatar.

Lothaire olhava, agora, na minha direcção, estudando-me. Analisando-me. O olhar dele

era bastante cativante, sem réstia de hostilidade, sem manifestar crueldade ou desprezo

por mim. Pela minha espécie. Relembrava-me agora das palavras de David ao referirem a

elevada idade, assim como as extraordinárias capacidades de Lothaire. Agora, podia

constatar, sem dúvida absolutamente nenhuma, que Lothaire era um vampiro subtil,

delicado e que, sem muito esforço, seria capaz de conseguir tudo o que queria. Com um

simples olhar.

- David, deixaste a situação arrastar-se a níveis… arriscados - informou Lothaire, com um

semblante apreensivo, na direcção de David, que não lhe respondeu. E continuou, - Sê

cuidadoso.

Lothaire afastava-se agora para se juntar a Nevio, Pierre e Gustave, que se

mantinham claramente à parte dos restantes vampiros que ali se encontravam e que

suspeitei ser a tão aclamada corte de Läis, pela forma como rodeavam um dos elementos

que ali estava. Comportavam-se como fanáticos, em redor de uma peça de arte valiosa,

protegendo-a do olhar curioso dos restantes mortais. Só podia ser ela, a vampira

“soberana”, como eu tão adequadamente a considerava.

Aquele enorme salão, que certamente fazia parte das fundações da Ópera Garnier, pela

arquitectura que apresentava, estava completamente desprovido de peças de mobiliário, à

excepção de uma sumptuosa poltrona, que mais parecia um trono, adornado com quatro

degraus que pareciam esculpidos na estrutura em si. Foi com rapidez que vi aquele

aninhado conjunto dirigir-se à poltrona, sem nunca deixar entrever um único vestígio de

Läis, assemelhando-se a uma colmeia, onde a abelha rainha é protegida pelas obreiras.

Subitamente, toda a corte de Läis se afastou, permitindo-nos olhá-la. Ela fitou-nos e fez-

nos sinal para avançarmos - todos nós -, acenando com a mão.

190

À medida que avançava podia observar que as paredes daquele salão tinham uma cor

morta, esbatida, sem adornos de qualquer tipo. Somente os cristalinos candelabros que

decoravam o tecto e de onde emanava uma ténue luminosidade, revelavam a utilização

ocasional daqueles salões, que estariam certamente reservados para… cerimónias.

Conseguia agora observar também que os vampiros que formavam a corte não tinham a

cara exposta, mas sim escondida por detrás de máscaras, também elas finamente

ornamentadas com as mais diversas peças, assemelhando-se ao pormenor das máscaras

venezianas, cobrindo-lhes metade da face. Todos eles vestiam roupas negras, cobertos por

capas negras, forradas a azul celeste, cor que sobressaía do conjunto que traziam. Não

conseguia discernir se eram homens ou mulheres, só conseguia perceber que estavam

todos em sintonia uns com os outros, pelas atitudes que mantinham em redor da rainha da

colmeia.

Ao sinal de David, parámos a cerca de cinco metros de Läis, distância que compreendi ser

“a distância de segurança”. À nossa esquerda, ligeiramente para trás, mantinham-se

Lothaire e os restantes colegas de David. O silêncio que nos preenchia conseguia ser

absolutamente devastador. Finalmente, Läis falou.

- David.

A voz dela era melodiosa, ligeiramente sedutora. Olhei-a discretamente, enquanto ela

fitava David, que agora mantinha um semblante algo desconfortável.

- Parece-me que tens algo para me dizer.

O tom dela era, agora, marcadamente irónico, enquanto exibia um ligeiro sorriso. Era bem

visível que ela não estava, de todo, contente.

Por momentos, temi por David, ao aperceber-me que ela era bastante poderosa, pois eu

quase conseguia sentir o poder emanar dela, atingindo David de forma implacável. Ele

não tinha hipótese. Ambos o sabíamos.

Olhei-a momentaneamente, procurando vestígios de complacência na face dela. Foi então

que reparei que ela era, sem dúvida, uma vampira bastante graciosa, com um cabelo liso

de tons arruivados que lhe caía muito abaixo dos ombros, adornando a face mais bela que

eu já tinha alguma vez observado. As linhas que compunham o seu rosto pareciam ter sido

desenhadas por seres angelicais, dando-lhe um aspecto quase de divindade. Os olhos dela

eram castanho-claro e neles havia um brilho tão ameaçador quanto hipnotizante,

claramente persuasivo. Ela vestia um extraordinário vestido azul celeste, de um tecido que

me parecia ser veludo e que lhe deixava adivinhar todas as suas formas, mesmo estando

sentada na poltrona. Até os movimentos que fazia eram de uma graciosidade prodigiosa,

191

desde o mais simples aceno à mais complexa expressão facial. A sua tez,

maravilhosamente pálida, seria certamente a perdição de muitos homens. Muitas vítimas.

- Peço desculpa pela minha irreverência, senhora - declarou David, fitando-a.

- Pedes desculpa? - Repetiu Läis, surrurrando. - Criança insolente! - Grunhiu ela, na

direcção de David, visivelmente irritada. - Como te atreves a sobrepor-te à minha

autoridade? Tu respondes a mim. A MIM! - Rugiu ela mais uma vez, com um brilho

absolutamente feroz no olhar. Por momentos, pensei que tudo descambasse em alguns

segundos.

- Lothaire, - continuou ela, mudando de direcção. - Desiludiste-me. Pensei que tinhas

rédeas nos teus pupilos, mas aparentemente enganei-me redondamente.

- Eu não consultei Lothaire - informou David, interrompendo o momento em que Läis se

dirigia a Lothaire.

Todos fitaram David, com uma gravidade intensa no olhar. Ele estava claramente a pisar o

risco, atrevendo-se a interromper Läis, a meio do seu discurso enfurecido.

- David…

- Não, eu somente informei Lothaire do que pretendia fazer. - David interrompia, agora,

Lothaire e dirigia-se novamente a Läis, com uma postura de subjugação. - E como a

senhora se encontrava de viagem, actuei sozinho. Ninguém mais esteve envolvido nas

minhas actividades.

Läis fitava-o, agora, com curiosidade.

- E porquê, meu caro David?

- Agi segundo o meu instinto, - retorquiu David, quase instantaneamente. - Bem sei que

não foi o mais correcto, mas…

- Não foi o mais correcto? - Interrompeu ela, surpresa, citando-o com um tom sarcástico. -

Eu diria mais desobediência clara às leis. Insubordinação manifesta. Desrespeito pelos

teus semelhantes. E o que é absolutamente degradante… essa tua compaixão por…

humanos.

O olhar dela fixava-se, agora, em mim, finalizando a frase com um tom enojado. Evitei o

seu intenso olhar, relembrando-me constantemente da necessidade de não me tornar

emotiva.

- É esta a humana? - Perguntou ela, como se já soubesse a resposta à sua própria pergunta.

- A humana por detrás de toda esta irregularidade?

David não lhe respondeu e manteve-se estático, enquanto Läis me observava. Eu sentia o

peso do olhar dela, de tal forma que quase me retirava as forças, o que me dificultava a

respiração.

192

- Francamente, David! - Exclamou ela, com ironia. - Ela é tão… simples. E podias ter sido

bem mais criativo, divertir-te um pouco com a tua vítima, tal como é costume de Nevio -

concluiu ela, mantendo um ligeiro sorriso nos lábios, enquanto mantinha o olhar dela em

mim.

- Ela não era minha vítima - Disparou David, com um tom firme e seco, o que pareceu

enfurecê-la ligeiramente.

- Porque tu não quiseste. Seria bem mais fácil e cómodo. Para todos - afirmou Läis,

enquanto o fitava novamente. – Ter-nos-ia poupado este incidente desproporcionado.

Läis pausava agora, momentaneamente, enquanto dirigia o olhar a todos os presentes.

- Como é do vosso conhecimento, decidi viajar por questões logísticas e estratégicas, a

tempo de me reunir com os meus semelhantes na longínqua Smolensk. Julguei manter a

cidade controlada e a salvo nas mãos dos meus fiéis.

O modo como ela falava reflectia um claro desapontamento, enquanto os

elementos da sua corte, localizados em ambos os lados, acenavam discretamente em sinal

de confirmação. Subitamente, uma voz serena fez-se ouvir.

- Mas, minha senhora, nunca algo assim tinha sucedido, em duas centenas de anos de

domínio e posse na cidade de Paris - informou Lothaire, com um tom neutro e respeitoso,

que lhe valeu a atenção de Läis. - Mesmo das restantes vezes que vossa senhoria decidiu

retirar-se, sempre foi garantida a ordem e a harmonia entre nós e os humanos. Certamente,

esta foi uma vez sem exemplo, minha senhora.

- Veremos, meu caro Lothaire, mas espero que assim seja - afirmava Läis, acenando

positivamente na direcção de Lothaire e concordando com a sua última asseveração de

uma forma que eu considerei excessivamente fácil e imediata.

- Garanto-lhe que sim, minha senhora - elucidou Lothaire, olhando David de soslaio, que

se mantinha impávido e sereno, fitando o intenso olhar de Läis.

- Ainda assim haverá consequências, Lothaire. Como podes compreender, não posso

permitir que me desautorizem desta forma - Läis olhava David, avidamente. - Mas… de ti,

David, trato eu mais tarde. Agora, temos assuntos mais pertinentes para tratar.

Dito isto, Läis olhou-me de uma forma que me fez tremer de medo. Não conseguia evitar.

Vi-a levantar-se da sua sumptuosa poltrona, como se de um trono se tratasse, do qual

desceu lenta e graciosamente, como se estivesse a exibir toda a sua magnificência a todos

os que ali se encontravam. Definitivamente, ela gostava de se fazer notar.

Läis dirigiu-se a mim, o que me surpreendeu, pois manteve-se perto, a cerca de um metro,

enquanto me analisava com aqueles olhos cor de mel que mais pareciam trespassar-me.

193

Ela saboreava o medo que eu sentia, intimidada pela presença dela. O que teria ela

reservado para mim?

- Vamos? - Sussurrou ela, subitamente, ao alternar o olhar entre mim e David.

Limitei-me a acenar e segui-a, enquanto David caminhava ligeiramente atrás de mim,

assim como toda a corte de Läis e Lothaire, Nevio, Pierre e Gustave. Dirigíamo-nos agora

para uma pequena sala que se localizava exactamente ao lado do enorme salão de onde

tínhamos acabado de sair. Essa pequena sala tinha uma discreta porta de madeira, por

onde entrou Läis, seguida por mim e, logo após, por David. Subitamente, vi Läis rodopiar

e dirigir a palavra aos que estavam mais atrás.

- Nicolas, Sabine. É suficiente - ordenou Läis, olhando de soslaio todos os outros

elementos da sua corte, que se mantiveram estáticos, embora eu conseguisse sentir a

desilusão que experimentavam por não terem sido os escolhidos.

- Lothaire, não é necessária a tua presença - adicionou ela, enquanto olhava na direcção

dos restantes, fazendo-lhes sinal para se afastarem. Olhei para David e fiquei ligeiramente

surpreendida por lhe encontrar neutralidade no olhar. Os olhos dele estavam praticamente

vazios, a sua face ilegível e não proferia nem uma palavra. Era estranho vê-lo tão…

extinto. Tinha quase a certeza que aquela apatia que ele mantinha era efeito de Läis.

Repentinamente a porta fechou-se e aqueles que eu identificava como Nicolas e Sabine

começaram a preparar algo que eu não conseguia perceber no que consistia. Mexiam em

peças de mobiliário que eu não conseguia identificar o que eram, pois estavam cobertas

por peças de tecido esbranquiçado. Foi Läis que interrompeu a minha observação,

dirigindo-me as suas palavras.

- Parabéns. A mais alta instância considerou-te merecedora de vários privilégios. Vais

ficar sob a minha tutela, é a mim que vais obedecer. Compreendes? - Informou Läis,

enquanto me fixava intensamente. Limitei-me a acenar. - Terás tarefas para cumprir.

Quando fores necessária, os teus serviços serão convocados, estejas onde estiveres. Não

há recusa. Não tentes fugir ou desaparecer, pois garanto-te que te encontraremos.

Após uma ligeira pausa, continuou.

- Este estatuto dá-te imunidade à nossa espécie, desde que te mantenhas fiel às nossas

regras e às tuas obrigações. Alguma dúvida?

- Não… - afirmei eu, quase de imediato, apesar de não ser, de todo, verdade. Eu não sabia

em que consistiam as minhas “novas” obrigações, nem que tarefas eram aquelas que me

esperavam, mas não tive coragem para lhe perguntar fosse o que fosse. A presença dela

era simplesmente intimidante.

194

- Que adorável! - disparou Läis, enquanto me fitava. - Consigo cheirar o medo que a

consome, ainda assim mantém-se sóbria.

A aspereza das suas palavras revelava uma crueldade enorme. Senti-a dar um

passo na minha direcção, aproximando-se de mim o suficiente para eu sentir o meu ritmo

cardíaco alterar-se. Ainda que com os avisos de David, eu não conseguia esconder tudo o

que sentia agora que me enfrentava uma vampira secular. Era inevitável.

- Não compreendo porquê. Tu és fastidiosamente normal. Uma humana como tantas

outras. Porque é que o instinto dele não o deixou… - Läis interrompeu o seu próprio

discurso com ligeiros traços de espanto na sua face, enquanto semicerrava os olhos,

continuando a observar-me. O olhar dela viajava dentro de mim de uma forma

avassaladora, captando a forma, a intensidade, a natureza de cada instante, cada

sentimento, cada momento vivido por mim. Sentia-me exposta, ao aperceber-me que nada

podia fazer para evitar que Läis continuasse a invadir as minhas emoções desta forma.

Subitamente o olhar dela mudou, para fitar David, que se mantinha tão apagado como um

brinquedo sem pilhas. A penetrância do olhar dela fê-lo mover-se um pouco, como que

lutando para sair daquele transe, mas ele estava longe de ser o David que eu conhecia,

pois deixava-se claramente manipular por ela. Talvez porque ele quisesse e deixasse… ou

porque, muito simplesmente, não tinha hipótese senão deixá-la invadi-lo.

Subitamente, ouviu-se um grunhido de uma exuberância bizarra, seguido de um ruído

agudo que me sobressaltou, ao qual se seguiu um silêncio terrível que inundava agora,

aquele pequeno espaço. Foram necessários alguns segundos para eu perceber que Läis

tinha aplicado uma aparatosa bofetada em David, que se mantinha agora observando um

ponto imaginário no solo. Subtilmente, Läis afastava-se de David e fitava-nos agora,

alternadamente, com raiva expressa no olhar. David, chocado com a atitude de Läis,

respirava com dificuldade, como se estivesse estado em esforço há algum tempo e eu…

não sabia o que pensar, pois não compreendia o que se estava a passar. Vê-la admitir uma

atitude tão extrema era algo que me assustava.

- Idiota! Não sei qual dos dois é o mais patético - grunhiu ela, enquanto nos observava

com um óbvio desdém no olhar e no tom de voz. E continuou, - Mais tarde conversamos,

Sr. Henshaw.

Abruptamente senti o olhar de Läis outra vez em mim, a observar-me, claramente.

- Então, já está tudo pronto?

Foi então que percebi que a pergunta não era para mim, mas sim para os dois elementos

da corte que pareciam agora ter terminado a sua tarefa. Ao olhar na direcção deles, vi que

se encontravam os dois lateralmente a uma pesada mesa de madeira ornamentada com

195

várias peças que pareciam sobressair do tampo. Não percebi o que era, até que senti a

gélida mão de Läis no meu antebraço, como uma algema humana, firme mas ao mesmo

tempo delicada - como se isso fosse possível. A pele dela assemelhava-se ao toque da seda

e dela exalava um aroma desconhecido que eu classificava de atordoante, no mínimo.

Senti-a puxar-me, até atingir a beira da mesa, onde Läis me ordenou para eu me sentar.

Ainda hesitei, enquanto olhava de soslaio para David, que parecia ainda não estar

recomposto.

- Não olhes para ele. Ele não te vai salvar.

A severidade do tom dela assustou-me por momentos, quando observei que Läis exibia

agora os seus magníficos caninos que, apesar de sinistros, conseguiam ser tão elegantes

quanto ela.

Olhei em meu redor. Nicolas e Sabine também expunham a sua dentição extra de forma

orgulhosa, retribuindo-me o olhar de uma forma ameaçadora. O que me iriam fazer?

Velozes como antílopes, agarraram-me os braços e as pernas, obrigando-me a estirar-me

em cima da mesa, com os pulsos e os tornozelos encostados às saliências que a mesma

oferecia. Como reflexo, tentei resistir, mas sem sucesso. Neste momento, já estava

apavorada, enquanto sentia aquelas mãos frias e robustas a acorrentarem-me à mesa.

Comecei a respirar de uma forma mais ofegante, enquanto tentava encontrar o olhar de

David, procurando nele resposta ao que iria ocorrer. Saberia ele o que se iria passar a

seguir? Com dificuldade, devido à posição em que me encontrava, consegui encontrar o

olhar dele, que se mantinha praticamente escondido pelo cabelo que lhe caía na face. Nele

encontrei um enorme vazio. Absolutamente nada.

Seria possível?

- O que me vão fazer? - Inquiri eu, sentindo a voz a falhar-me e imaginando que, no

mínimo, iriam esventrar-me. Ou retalhar-me viva.

Läis encontrava-se à minha esquerda, enquanto os dois elementos da sua corte se haviam

agora retirado, após confirmarem que eu não tinha hipótese de escapatória. Não consegui

perceber nem onde estavam nem para onde iam. Foi a voz de Läis que me desviou a

atenção.

- Uma pequena marca, para que os outros saibam a quem pertences - sorriu Läis, enquanto

me observava, visivelmente deleitada pelo terror que eu sentia naquele momento.

- Marca? - Retorqui eu, sem compreender ao que se referia ela e a razão pela qual estava

eu presa a uma mesa, como se fosse uma criminosa.

Subitamente vi um dos elementos da corte de Läis aproximar-se de mim, pelo meu lado

direito, empunhando algo que me fez quase chorar de pânico e de medo. Era um ferro em

196

brasa, com uma forma que se aproximava da triangular, apesar de não a conseguir

discernir em concreto, pois a cor alaranjada, o calor que emanava, a expectativa do que

me iam fazer, eram demasiado paralisantes para eu conseguir juntar forças para gritar,

para falar, para fazer fosse o que fosse.

- Não, por favor… - sussurrei eu, enquanto olhava em meu redor, olhando para aqueles

três vampiros que pareciam alimentar-se do medo e do terror de outrem, sedentos.

- Pretende atordoá-la? - Sugeriu um deles, na direcção de Läis. Apesar do terror que

sentia, ainda tinha o discernimento para perceber que se referiam a utilizar as capacidades

para que eu não sofresse tanto. Só desejava que ela respondesse que sim, para meu bem,

para que eu não sentisse a horrível dor que certamente seria ser marcada com um ferro em

brasa. Como gado.

- Não, - respondeu ela, sorrindo. - A esta, não.

Só tive tempo para fechar os olhos, com força, de contrair todos os músculos existentes

em mim e desejar que fosse rápido, que conseguisse suportar a dor do fogo quando

atingisse a minha pele. Senti umas mãos frias e velozes desapertarem-me as calças,

afastarem a t-shirt que tinha vestida, enquanto eu me agarrava com força às correntes que

me prendiam os pulsos. Cada segundo parecia uma verdadeira eternidade, enquanto

esperava, com um desespero atroz a apoderar-se de mim, que aquele ferro em brasa me

atingisse.

197

CAPÍTULO 13 – MARCA

ACORDEI DEITADA NA MINHA CAMA, NO MEU APARTAMENTO, EM PARIS.

Algo gelado inundava a base das minhas costas, sensivelmente do lado direito. Não sabia

o que era, mas era confortável. Estava deitada de lado, virada para a janela do meu quarto

e estava escuro. E eu não estava sozinha. Até de olhos fechados eu reconhecia aquela

presença que estava sentada junto a mim, mantendo-me naquela posição. Aquela postura

rígida, aquela temperatura fria, aquela respiração irregular, aquela essência única… só

podia ser David.

Tive dificuldade em relembrar o que se tinha passado. Ainda mantinha os olhos fechados,

era-me difícil abri-los, embora eu não percebesse porquê. O que se teria passado? Porque

estaria eu aqui, com ele, no meu quarto?

Subitamente, lembrei-me da razão e do porquê de estar aqui, desta maneira. As

imagens e a memória da dor que senti quando aquele ferro se aproximou da minha pele e

como o calor em brasa se introduzia na minha pele, cravando-se em mim sem dó nem

piedade pairavam na minha mente. Relembrava-me também que tinha gritado. Senti de

imediato vergonha por o ter feito, apesar de não ter conseguido suportar aquela dor que

era, de longe, a pior que já tinha sofrido. As recordações que me surgiam eram terríveis, a

face irónica e satisfeita de Läis, a obediência cega dos elementos da sua corte e a…

indiferença de David. Era esta última a que mais me magoava, em particular. Não a dor,

não a invasão de privacidade mental, não os insultos à minha espécie, mas sim uma

simples atitude que, muito provavelmente, ele não tinha podido evitar porque certamente

estaria sob a influência dela. Todos estavam, assim como eu. Excepto para me poupar às

dores de me marcar como um ruminante, aparentemente. Ela era cruel, sem sombra de

dúvidas, tal como David me tinha alertado.

Todas estas lembranças e a elevada carga emotiva que carregavam repercutiam-se, mais

uma vez, na minha frequência respiratória e no meu batimento cardíaco, que se tornaram

irregulares. Lentamente, consegui abrir os olhos e encontrar a face de David, olhando-me

com um semblante de preocupação e… pena. O pior sentimento que se pode nutrir por

alguém.

À medida que pestanejava, tudo à minha volta se tornava mais nítido, mais brilhante, sob

a luz do luar que banhava o meu quarto, pois a persiana estava totalmente elevada,

permitindo a entrada da límpida luz que parecia tornar todos os elementos à minha volta

absolutamente etéreos. David estava sentado perto de mim, contactando ligeiramente com

198

o meu abdómen, o que me fez estranhar de imediato a sua reacção. Ele estava sempre a

alertar-me para o facto de evitar a proximidade, porque ele podia não se controlar – e…

atacar-me? Pois claro… – e agora era ele que estava, propositadamente, a aproximar-se de

mim, sabendo ele que eu estava acordada e que tinha conhecimento de todos estes avisos

que ele nunca se cansava de afirmar.

Subitamente, uma dor aguda e forte, ainda que de uma intensidade moderada – suportável,

sem dúvida, - despertou-me do adormecimento nauseante que me aprisionava e levou-me,

instintivamente, a explorar a zona de onde parecia irradiar a dor. Provinha da zona da base

das costas, onde havia sentido o frio, há pouco, ligeiramente para o meu lado direito. Ao

colocar aí a mão, percebi que tinha um penso no local e… encontrei a fonte de frio que

sentia desde que tinha acordado: a mão dele. Toquei-lhe, sem pensar duas vezes,

agarrando-a com força. Não queria que ele retirasse de lá a mão. Não queria que ele me

deixasse.

- Não mexas. É pior - ouvi-o sussurrar, na minha direcção.

- Mas…não me lembro de… - comecei eu.

- Perdeste os sentidos. É normal, dadas as circunstâncias - explicou ele, com um tom de

voz censurante. – Marcar-te a sangue frio foi perfeitamente desnecessário - adicionou ele,

com firmeza.

Não fui capaz de dizer nada, enquanto tentava mexer-me, mas infelizmente constatei que

me doía o corpo todo, provavelmente reflexo do esforço que tinha feito e da fonte de dor

que possuía. A sensação que tinha era que fora espancada por um grupo de delinquentes e

abandonada no local. Com alguma dificuldade, tentei sentar-me enquanto David

procurava ajudar-me a posicionar-me na cama. De imediato, senti falta do confortável frio

que emanava da sua mão, na minha ferida.

- Cuidado… - avisou ele, enquanto me fitava com um olhar absolutamente extraordinário.

Era incrível como eu gostava tanto da presença dele ao pé de mim, como ele era alguém

tão importante para mim.

Olhei inadvertidamente para a zona onde tinha a marca escondida pelo vulto de um

espesso penso, elaboradamente confeccionado de forma manual.

- Fui eu que fiz o penso. E dei-te analgésicos, pelas razões óbvias.

- Está muito… bom - afirmei eu, olhando novamente para ele. - Obrigado. Por tudo…

Os meus agradecimentos eram genuínos, embora não houvesse palavras nem acções que

pudessem explicar o quão agradecida eu estava por tudo o que ele tinha feito por mim,

independentemente das consequências. Afinal, ele tinha-me salvo a vida. De uma forma

estranhamente bizarra, mas tinha.

199

- Era o mínimo que podia fazer - informou ele, com um tom de voz seco e a sua face séria.

Olhei novamente para o penso e reparei que tinha as calças desapertadas e a t-shirt

ligeiramente subida, tal como relembrava dos últimos momentos antes de me marcarem.

Tentei, em vão, abotoar todos os botões das calças, mas só consegui abotoar um, pois o

volume do penso e a pressão das calças apertava-me a ferida, e as dores que me

provocavam eram mais do que eu conseguia suportar.

Voltei a procurar o olhar dele, que me olhava de forma séria, como se estivesse

preparando um discurso desagradável. Pela primeira vez em algum tempo, o olhar dele

perturbou-me e eu senti receio de ouvir o que ele teria para me dizer. Por alguma razão

que eu desconhecia, conseguia pressentir que as palavras dele seriam impiedosas.

- O que aconteceu depois de…

- Eu trouxe-te para casa. Não te ia deixar desmaiada nas fundações da Ópera. Ou

abandonada na rua… - informou ele, enquanto desviava o olhar do meu, visivelmente

incomodado ao enumerar as alternativas que, a meu ver, eram as de prática comum.

Engoli em seco, só de imaginar o quão terrível seria acordar na rua após ter sido marcada

com um ferro em brasa.

- Então e… agora? - Perguntei eu. A minha curiosidade era genuína.

- Agora, é simples: voltas para casa e esperas que Läis te contacte e que te informe das

tarefas que tens que levar a cabo.

A frieza e a simplicidade com que acabava de proferir as últimas palavras afectavam-me

de uma forma horrível e tive que fazer um esforço considerável para não chorar. Não

estava a perceber o porquê de tanta amargura, de tanta indiferença. Não obstante, consegui

juntar discernimento para elaborar uma frase com nexo.

- As tarefas…consistem no quê, concretamente?

- Depende. Normalmente são entregas de documentação, ou de determinados artefactos -

elucidou ele, enquanto se levantava da sua posição prévia, já que estava sentado junto de

mim, à beira da cama. Quase instantaneamente, tentei sentar-me à beira da cama,

movimento que via enormemente dificultado pela ferida da marca. Os pequenos

movimentos que tentava fazer repuxavam-me a pele que estava extremamente dorida,

fazendo-me gemer de dor. Ainda assim, consegui sentar-me, de tal forma que o conseguia

observar, enquanto ele se mantinha de pé, observando algo para lá da janela, no exterior.

Algo se passava. Ele estava a evitar-me, estava a ser demasiado amargo comigo, mesmo

para o que eu conhecia dele. Repentinamente, ouvi-o falar, outra vez.

200

- Seja como for, só terás que garantir que o destinatário receba o que é suposto tu

entregares. É para isso que os mensageiros servem, para garantir a entrega a tempo e

horas.

- E as entregas são feitas a quem?

- Normalmente a outros vampiros. Mas, ocasionalmente, também podem ser a humanos.

A referência dele a “outros vampiros” assustava-me particularmente. E se alguns desses

vampiros não fossem civilizados, ou se estivessem simplesmente com fome? A alusão à

nutrição relembrava-me Nevio e a forma hostil como me tinha observado naquele

corredor, há algumas horas atrás. E do que provavelmente aconteceria se David não

estivesse próximo de mim.

- Mas e se…

- Isso não vai acontecer - interrompeu-me ele, firmemente, sem olhar na minha direcção. -

Tu estás imune, ninguém te pode fazer mal. Läis garante a tua integridade física.

- Garante? - Perguntei eu, em tom de dúvida. Pelo que tinha observado de Läis, ela era

bastante cruel e, sem dúvida nenhuma, não simpatizava comigo. Mas mesmo nada.

- Claro que sim, - declarou ele, olhando-me de forma céptica, como se eu estivesse a

duvidar de algo muito evidente. - Tu tens a marca dela. Se algum de nós tentar fazer-te

mal, responderá a ela. Maltratar um mensageiro tem consequências bastante sérias e,

como já pudeste constatar, os métodos de Läis são bastante requintados.

Sim, eu já sabia desse facto, em primeira-mão. Ainda que fosse humana, já tinha

sofrido a ira da vampira soberana, sem dó, sem piedade. Sem escrúpulos.

Relembrava com mágoa e terror a particular opção dela de não me atordoar, assim como

os seus grunhidos enraivecidos ao persuadir-me a mim e a David.

- Ela… está zangada contigo… - arrisquei eu, enquanto tentava encontrar o seu olhar,

que, por várias vezes, se afastava do meu. Decididamente, esta era uma atitude de David

que eu desconhecia e que não estava a compreender.

- Sim - declarou ele, sem adiantar as razões da ira de Läis para com ele. Eu sabia que ele

escondia algo, pela forma como expirava profundamente e olhava para o vazio que nos

rodeava, como se estivesse relembrando algo que lhe fosse extremamente doloroso. A sua

face era, na verdade, um espelho de impaciência.

- Mas, David…

- Ouve, esquece. Não interessa - interrompeu ele, olhando agora na minha direcção com

uma agressividade marcada nas palavras que acabava de proferir. - Tu vais para Portugal e

eu vou ficar cá.

- Sim, mas…

201

- Não há mas. Tu vais para Portugal, continuar com a tua vida e vais pôr este ano atrás das

costas, entendes?

Olhei-o, incrédula. Como se isso fosse possível. Esquecer que existe um mundo para além

do meu? Esquecer que há uma outra espécie por aí que nos preda? Esquecer o vampiro

que me salvou a vida? Esquecer que ele mudou a minha vida para sempre? Como é que se

esquece algo assim? Ele só poderia estar a brincar!

- Eu não consigo fazer isso! Não posso simplesmente esquecer que…

- Podes. Podes e vais fazer - declarou ele, aproximando-se de mim, como se me estivesse

a ameaçar. A face dele exibia um semblante absolutamente irredutível, com uma seriedade

na voz que me entristecia a um ponto estupidamente insuportável.

Eu sentia-me chocada, ao ouvi-lo falar assim. Das imensas facetas dele, esta era uma que

eu nunca tinha visto. Podia agora constatar que era uma das piores, bastante pior do que

todas as outras que ele exibia. Neste momento, tinha a sensação que não o conhecia.

- Sinceramente, não pensavas que íamos ficar amigos? - O tom de voz que a sua pergunta

continha era um misto de ironia e de desdém, combinado com uma face de todo

inexpressiva. E continuou. - Já sabias que isto ia acontecer. Vampiro ou não, já sabias que

chegaria este momento. Não percebo porque é que estás tão surpreendida.

Subitamente, levantei-me, ignorando a dor que sentia enquanto tentava manter-me de pé,

frente a frente ao vampiro que eu pensava que conhecia.

- Não é isso, eu… não queria deixar de contactar contigo - informei eu, enquanto o olhava,

tentando explicar-me da forma mais elucidativa que conseguia.

- Contactar?

- Sim…quero dizer…

- Queres sugerir que combinemos conversar alegremente por telefone? Ou quem sabe,

pela internet? - O tom dele era absolutamente irónico e cruel. Só desejava que ele parasse

de me fazer sentir uma verdadeira idiota. Mas ele estava longe de terminar. – E…

conversamos sobre o quê? Tu, o que estudaste durante o dia e eu, o que comi durante a

noite? É isso?

- Não, eu só… - Estava com dificuldade em proferir as palavras que tinha para dizer, face

ao desprezo que ele revelava por mim e pelos meus sentimentos, naquele momento. Após

inspirar profundamente um par de vezes, evitando o seu olhar cruel, lá consegui formular

a frase que pretendia. - Eu só queria que me ajudasses a lidar com a minha nova vida. Não

te peço mais nada.

- Sozinha lidas perfeitamente com a tua nova vida. Não precisas de mim para nada -

assegurou ele, na minha direcção. Oh, como ele se enganava em relação ao que eu

202

precisava. Eu precisava mais dele do que ele imaginava, mesmo revelando-se um vampiro

temperamental e cruel. Ainda assim, não conseguia deixar de sentir afecto por ele, mesmo

quando ele me feria, sem eu perceber porquê. E eu… já não conseguia proferir nem mais

uma palavra, sob pena das lágrimas começarem a cair.

- Por favor, não sejas ridícula - afirmou ele, mais uma vez, enquanto me observava. - Não

posso acreditar que pensavas que toda esta situação ia continuar, como se eu me quisesse

continuar a misturar com humanos. Contigo. Vocês são absolutamente patéticos. Sem

razão para tal, começam imediatamente a criar cenários de amizade eterna e afectos

infundados. Francamente!

A sua face exibia, agora, uma expressão de espanto, como se ele se sentisse

insultado simplesmente por partilhar o mesmo espaço físico que eu. Ainda fiz uma

pequena tentativa de lhe tentar perguntar o que é que realmente se passava para ele estar a

ser tão desagradável comigo.

- David, o que…

- Nem sequer profiras o meu nome. Não quero que o faças, nunca mais - disparou ele,

elevando o tom de voz, na minha direcção, enquanto se afastava no sentido oposto ao

meu, para o canto mais recatado do meu quarto onde eu, praticamente, nem o via. - Eu sou

um vampiro. Não me misturo com vocês, contigo. Vocês, humanos, são seres repulsivos,

degradantes. Só servem para comer.

Não conseguia acreditar naquilo que ele estava a dizer. Era tão triste e tão cruel

que eu já não era capaz de suster as lágrimas que, inadvertidamente, tinham começado a

correr pela minha face.

- És patética - declarou ele, observando a minha reacção e reforçando o que tinha dito há

pouco.

Eu sei que sou.

- Olha para ti, não és digna de nada que o meu mundo te possa oferecer. És fraca e

cobarde. Só servirias para alimento, nada mais. Nem sequer para divertimento.

A tristeza que se apoderava de mim estava, agora, a admitir traços de raiva e fúria,

ao ouvir as palavras dele que, na minha opinião, eram injustas e infundadas.

- Se sou assim um ser tão deplorável, porque te sujeitaste a tanto por mim?

Sentia a voz falhar-me, ao tentar localizar o ponto onde sabia que ele estava,

naquele recanto escuro do meu quarto. Neste momento, só recordava as ternas palavras

que ele me havia dirigido naquela madrugada em Estrasburgo, no quarto de hotel. As

lágrimas que continuavam a cair impediam-me a correcta focagem e a dor que sentia

emanar da recente ferida que tinha, teimava em dificultar-me a coerência de discurso.

203

- Porque é que não trataste logo de mim como um verdadeiro vampiro?

A minha última frase não teve o impacto que eu esperava, pelo menos nos dois primeiros

segundos em que, daquele sombrio recanto onde eu sabia que ele se encontrava, não

obtive reacção, nem resposta. Somente silêncio. Até que, subitamente, algo mudou. Senti

uma leve brisa a circular no quarto, dirigindo-se a mim, sob a forma de alguém que eu

desconhecia, quase completamente. David parou a escassos centímetros de mim, com

aquele brilho hostil no olhar e, podia agora observar, os seus imponentes caninos, afilados

e ameaçadores, tão perto de mim, como se desejasse atacar-me, aniquilar-me, tal como um

animal a abater. Pela expressão que ostentava, parecia-me genuinamente enraivecido e,

desta forma, limitei-me a olhá-lo, como quem nada teme, como quem já não tem nada a

perder, pois tudo em que acreditava acabava de se desmoronar. E era verdade.

- Não… me provoques. Sais sempre a perder. Já sabes disso - sussurrou ele,

assemelhando-se a um grunhido. A hesitação que ouvi no seu discurso foi suficiente para

reunir coragem para contra-atacar.

- Não me respondeste - proferi eu, desafiando-o, apesar de não ter a mínima noção do

perigo que estava a correr ao admitir esta atitude.

- Eu não tenho que te responder a nada! Não tenho que me justificar perante um ser

insalubre como tu!

Olhei-o, incrédula, pensando para mim mesma como era possível ele dizer-me o que

estava, de facto, a dizer. Falaria ele a sério? Acreditaria ele no que acabava de referir? Era

essa a sua verdadeira opinião sobre mim? Instantaneamente remontei aos momentos da

audiência em Estrasburgo, em que o ouvira referir-se a mim como a humana vantajosa e o

espécime útil, relembrando-me o quanto essas palavras me haviam ferido. Pois agora

podia constatar que essas palavras mais pareciam elogios, face ao que ele me havia dito,

em comparação com os nomes e os adjectivos que ele tinha recentemente utilizado de uma

forma tão precisa e mesquinha. As ofensas que havia proferido doíam-me mais do que a

maldita ferida que remoía constantemente na base das minhas costas, da qual eu já nem

sequer me lembrava, pois a minha mágoa sobrepunha-se à dor física, que eu já não sentia.

Emocionalmente, estava completamente destruída, graças a ele.

Maldito vampiro, maldita a hora em que surgiste na minha vida. Odeio-te.

- É essa a tua verdadeira opinião? - A minha curiosidade era autêntica. E esta seria a

primeira e a última vez que eu lhe faria esta pergunta.

- Parece-te que eu esteja a brincar?

Só o tom dele revelava a natureza depreciativa da sua opinião. Já não precisava de mais

confirmações, nem de mais palavras. Já tinha, finalmente a confirmação de que

204

necessitava. Afinal, ele era um vampiro falso e manipulador. Em quantas mentiras terei eu

acreditado? Quão crédula tinha eu sido, caindo ingenuamente nos seus suaves engodos,

interiorizando as suas melodiosas palavras, que me toldavam a mente e me seduziam o

espírito.

- Sai - declarei eu, na sua direcção, mantendo o meu olhar desafiador no dele, tentando

mostrar-lhe que não tinha medo.

Pareceu-me ver algum espanto na sua face, enquanto ele mantinha o seu olhar dele preso

no meu, como que tentando captar se a minha afirmação tinha um fundo genuíno. Mas,

agora, eu não lhe permitiria o acesso ao caos emocional que ele tinha provocado dentro de

mim. Não agora, que as suas palavras me tinham enfurecido de tal forma que eu desejava

– mesmo – que ele saísse da minha frente, do meu quarto, sob pena de me descontrolar.

- Não ouviste? - Questionei eu, na direcção dele, sentindo os olhos encherem-se de

lágrimas, novamente. Ah, como eu desejava conseguir controlar-me mais. – Desaparece!

A última palavra saiu-me quase como um sussurro, pois tive que reprimir um soluço que

ameaçava surgir, destruindo a minha já frágil compostura.

Pela primeira vez, fui eu quem se afastou dele, retrocedi dois passos enquanto colocava,

trémula, os dedos da minha mão direita junto da boca, como que evitando a saída de

alguma asneira, ou de algum desabafo menos próprio. Mantinha o meu olhar no dele, com

esperança de poder encontrar aí algo, algum resquício que reflectisse arrependimento ou

alguma razão oculta que justificasse todas as atrocidades que ele me havia dirigido. Mas

lá, só encontrei, momentaneamente, uma pitada de tristeza, o que eu não consegui

compreender. Tristeza? Como é que ele se pode sentir triste, se fui eu a que foi insultada,

se fui eu que fui maltratada por ele?

Não, ele não tem o direito de se sentir triste.

Em contrapartida, eu…eu tinha mais do que razões para me sentir arruinada.

- Sai. De uma vez. Desaparece e nunca mais me surjas à frente. És… - sentia dificuldade

em verbalizar o que sentia, principalmente porque neste momento, não encontrava

palavras para o descrever. Monstro? Cruel? Desumano? Nenhuma delas era

suficientemente forte, suficientemente correcta para o qualificar.

- Continua… - sussurrou ele, enquanto se aproximava de mim, novamente, como se

estivesse a sentir o meu conflito interno, no fundo a minha dificuldade em aceitar no que

ele se tinha tornado e concluir que este era o verdadeiro David que tinha estado escondido,

todo este tempo. A postura dele era ligeiramente provocatória, desafiadora, incitando-me a

terminar a frase, a dizer o que queria dizer, de uma vez por todas.

Se eu tivesse coragem para isso.

205

Não era capaz de o olhar directamente quando ele se posicionava assim tão perto. Ele

estava já a escassos centímetros de mim, pois já conseguia cheirar a essência que dele

emanava, que me toldava parcialmente os sentidos, atenuando quase instantaneamente a

minha raiva, a minha fúria.

Não vás.

Sentia-me perdida, confusa. Eu não podia estar bem. Estaria eu sob o efeito da persuasão

dele? Quem é que ele se julgava? E eu, porque é que eu não conseguia manter-me firme às

minhas decisões? Ainda há pouco sentia-me capaz de o esbofetear e agora, nem sequer

conseguia odiá-lo devidamente. Ele tinha razão, eu era fraca e patética.

E ele continuava, aproximava-se cada vez mais. Parecia que me ia abraçar, mas sem nunca

o fazer completamente. Eu limitava-me a tentar olhar para algum local que me permitisse

abstrair do efeito que a proximidade dele tinha em mim. Mas era totalmente em vão. Já

conseguia sentir o efeito anestesiante da respiração dele na minha testa, na minha fonte.

Fica.

Esbugalhei os olhos de espanto, ao ouvir a voz da minha mente a proferir tamanha

barbaridade. Como é que era possível eu desejar isto? Depois de tudo o que ele me disse?

Tinha que fazer alguma coisa. Tinha que me afastar. Não podia deixar que ele me fosse

fazer… sabe-se lá o quê. Ele era tão imprevisível. Se fosse um rapaz normal, eu já sabia o

que ele queria. Mas ele, não. Nunca. Talvez fosse por isso que ele era tão desejável.

Consegui reagir, ainda que com pouca firmeza, movendo a minha cabeça na direcção

oposta à dele, tentando afastar-me da sua atordoante presença. Contudo, a reacção dele

ainda foi mais surpreendente. Foi com o maior espanto que alguma vez senti na minha

vida – inteira – que o senti colocar a sua mão esquerda no penso que cobria a minha ferida

física, na base das costas, experimentando de imediato o alívio que a sua temperatura

gélida conferia, enquanto que a sua mão direita se posicionava discretamente na base

posterior do meu pescoço, despoletando de imediato um arrepio que me percorreu desde a

fonte até à ponta dos pés.

Que sensação extraordinária.

Presumia eu que esta elaborada atitude era o mais parecido com um abraço, no mundo dos

vampiros. Não obstante, não compreendia as atitudes dele. Não sabia o que fazer.

Não me deixes.

Definitivamente, a minha mente não me estava a ajudar. Pensar que há um minuto atrás eu

sentia uma raiva quase visceral por ele e agora… estava completamente rendida. Estúpida.

Ele movia-se lentamente, com movimentos estranhos, pelo menos para a maior parte dos

humanos. Não se assemelhava a nada do que eu já conhecia, – do pouco que conhecia. Até

206

que, inesperadamente, me pareceu identificar aqueles movimentos com algo que já

conhecia do reino animal: ele estava a farejar-me. A cheirar-me o cabelo, a face, a testa, o

pescoço. Conseguia sentir, ocasionalmente, o contacto da sua gélida respiração, a

extremidade do seu nariz, a frieza dos seus lábios. Mas porquê? Para quê? Ir-me ia

morder? Finalizar, assim, este infeliz episódio?

Não conseguia concentrar-me em mais nada a não ser ele e eu, ali, naquele momento. Já

não existiam tristezas, nem ofensas, nem insultos – pelo menos por agora. E ele sabia

disso. Ele sabia o efeito que tinha em mim. Sempre o havia sabido. Por isso ele se

aproveitava dessa minha fraqueza, para me… farejar? Isto era ridículo, no mínimo. Eu

tinha que fazer alguma coisa.

- David…- balbuciei eu, com notória dificuldade.

Senti-o parar ao nível do meu ouvido, como se eu tivesse quebrado o feitiço em que –

ambos – nos encontrávamos. Ele mantinha-se estático, nem sequer respirava. Eu sentia-

me literalmente presa a uma estátua de mármore, daquelas que existem nas caves dos

museus mais famosos e que não se encontram em exposição. Uma estátua só minha. Uma

obra de arte privada.

Subitamente ouvi-o respirar e pressenti também que tentava dizer algo, apesar de ainda

não o ter verbalizado.

- Desculpa… - ouvi-o suspirar, com o tom de voz mais suave que alguma vez tinha

ouvido.

Fiquei boquiaberta, atónita. Ele só podia estar a brincar comigo, com os meus

sentimentos. Senti a minha respiração acelerar, expectante. Embora toda a minha vontade

estivesse empenhada em desculpá-lo sem sequer pensar duas vezes. Não, não o podia

fazer. Estava na hora de reagir, de eu ser forte, apesar de todas as células que faziam parte

do meu corpo o desejarem, ansiarem avidamente pelo seu toque.

- Não, David… - afirmei eu, com um tom de voz seco.

Sim, eu desculpo.

Ele olhou-me surpreendido, enquanto eu me afastava do seu extraordinário toque,

deixando-o sem palavras. Eu própria não sabia onde tinha recolhido forças, não só para

afirmar aquelas secas palavras, mas também para me afastar dele, sentindo eu o que

sentia… por ele.

- …O que foi dito não tem desculpa - acrescentei eu, enquanto observava atentamente a

sua reacção, desejando por um lado que ele se fosse embora e, por outro, que ele não me

deixasse.

Eu desculpo-te.

207

- Eu sei… - declarou ele, como se estivesse a concordar com algo incontestável, do qual

ele já tinha conhecimento. Como se ele conseguisse ouvir a voz da minha mente, que tinha

acabado de contradizer a minha amarga declaração. Por momentos, fiquei confusa, sem

perceber a qual das afirmações ele tinha concretamente respondido.

- Eu sei - murmurou ele, novamente, enquanto se afastava e se movia na direcção da

janela, sem hesitar uma única vez, um único passo.

Não.

Vi-o empoleirar-se agilmente, a preparar-se para se ir embora, quando senti pânico. O

meu batimento cardíaco aumentou a um nível que me pareceu claramente audível,

enquanto eu desejava vê-lo, encontrar o seu olhar mais uma vez, só mais uma vez, porque

já sabia que ia ser a última.

Não, por favor, não vás.

David parou, por momentos, virando-se de modo a encontrar o meu olhar, como se tivesse

ouvido o meu pedido. O olhar esmeralda que dele emanava estava marcado por uma

intensidade desconhecida, ainda assim tão… única. Senti uma vontade enorme de me

dirigir a ele, pedir-lhe para me explicar o porquê das palavras tão amargas e a razão das

suas atitudes incoerentes e incompreensíveis que me confundiam e me faziam perguntar-

me o que era, afinal, aquilo que ele sentia. Aquilo que tinha rasteirado o seu instinto e o

tinha levado a rebelar-se contra as leis e regras do seu mundo. Desejava ouvi-lo dizer que

todas aquelas palavras tinham sido encomendadas por alguém que pretendia separá-lo de

mim e que as suas verdadeiras emoções eram, na realidade, outras, bem diferentes das

barbaridades que havia proferido. Mas algo me dizia que isso não ia acontecer, porque,

afinal, ele tinha um dever para cumprir, uma vida na qual eu não tinha lugar, nem espaço

para existir. Ele… ia-se embora.

E, num piscar de olhos, ele desvaneceu-se. Desapareceu da ombreira da janela como se de

uma miragem se tratasse. Involuntariamente, avancei na direcção da janela, olhei para

baixo, para a rua, para cima, na direcção do telhado. Nada, ninguém. Ele tinha-se ido

embora. Eu sabia-o. Eu sentia-o.

Olhava para o vazio, sentada perto da janela, contemplando a noite luminosa,

acompanhada por uma leve brisa que passava, lentamente, refrescando as noites de verão

em Paris. Sentia-me inerte, incapaz de me movimentar, fosse em que direcção fosse.

Por um lado, porque me sentia dorida. A dor da ferida física parecia estar mais aguçada

agora, muito provavelmente devido aos analgésicos, cujo efeito já deveria estar a terminar.

A outra dor… não tinha palavras. Já as tinha utilizado todas. Limitava-me a deixar as

208

lágrimas correrem, até já não ter mais e o corpo fabricar novas lágrimas. De vez em

quando deixava sair um soluço, para não acumular tanta tensão no meu corpo e na minha

mente. Já havia recordado inúmeras vezes os acontecimentos que tinham decorrido e já

tinha chegado à conclusão que nada era lógico, nada tinha nexo. Não sabia o que mais me

magoava: as palavras desproporcionadas dele, ou aquela aproximação alienígena de

abraço. Talvez não fosse suposto eu compreender o mundo deles, talvez eu tivesse

somente que aceitar que é assim. Ponto final.

Ainda assim, não conseguia conformar-me. Não conseguia pensar em avançar, esquecer

este dia e viver a minha vida como se nada tivesse acontecido. Como é que eu podia fazer

isso, se este dia tinha mudado a minha vida para sempre? Uma vida onde eu estava

obrigatoriamente conectada a um mundo que permanecia desconhecido para grande parte

da humanidade. Um mundo aonde pertence aquele que prende todo o meu afecto, aquele

que eu não vou ver nunca mais.

Sentia, também, saudade misturada com tristeza. Era uma combinação quase insuportável.

Não conseguia evitar pensar sempre no mesmo, ainda que eu me esforçasse para não o

fazer. Tinha que parar com isto, ser forte. Mas como?

Levantei-me de rompante, ainda com dificuldade, tentando saber que horas eram.

Com os movimentos entorpecidos, procurei lentamente por algum aparelho electrónico

que me pudesse informar das horas. Encontrei um relógio algures na mala de viagem, que

se encontrava no chão do quarto, mas não conseguia ver que horas eram, porque estava

escuro. Eu mantinha-me no escuro, deambulando como uma lunática paranóica. Respirei

fundo, enquanto me dirigia à parede onde se encontrava o interruptor, cliquei acendendo a

luz e iluminando o quarto com uma luminosidade que quase me cegava, obrigando-me a

semicerrar os olhos. Voltei à mala de viagem, onde já conseguia ver que afinal, eram duas

da manhã. Avizinhava-se uma longa noite.

Não era capaz de dormir, embora o corpo acusasse um cansaço devastador. Só conseguia

chorar, surpreendida com a minha capacidade de fabricar tantas lágrimas. Eu própria não

sabia que o ser humano era capaz de chorar tantas horas seguidas, desta forma tão

contínua. Aparentemente, o ser humano era capaz de muitas coisas que eu desconhecia.

Decidi-me a arrumar tudo o que tinha que levar para casa, para Portugal, enquanto

tentava não pensar na minha situação. Nele. Uma hora depois já tinha tudo preparado.

Duas malas com bagagem resumiam o conteúdo de um ano da minha vida em Paris. Um

ano que eu havia projectado de maravilhoso e extraordinário, revelava-se agora

insuportavelmente horrífico, terrível.

209

Tinha que sair daqui, antes que a minha dor se tornasse ainda mais intolerável. Sem

pensar, peguei no telefone e contactei a linha de apoio a clientes da companhia aérea que

costumava utilizar. Felizmente, uma senhora atendeu-me, apesar da hora tardia a que os

contactava. Com o melhor francês que consegui elaborar no lamentável estado em que me

encontrava, perguntei quais eram os voos directos para Portugal, concretamente para Faro

e a que horas eram. Enquanto a senhora confirmava as horas dos voos, só rezava para que

houvesse, pelo menos um voo ainda durante a madrugada, para que eu pudesse ir-me

embora, definitivamente. Alguns minutos de espera foram suficientes para me informarem

que efectivamente existia um voo às cinco e quarenta e cinco da manhã, directo Paris-

Faro. Amavelmente pedi à senhora que me reservasse o bilhete de avião, pois iria de

imediato para o Aeroporto d’ Orly.

Desliguei o telefone e voltei a fazer uma chamada, desta vez para a central de táxis. Olhei,

mais uma vez, para o meu quarto. Era altura de me despedir.

Subitamente lembrei-me de Shiva. Ela não estava em casa. Ainda tinha os meus post-it em

cima da secretária, pelo que resolvi escrever-lhe um breve comentário, desculpando-me

exageradamente pela minha apressada ida para casa. Acabei por escrever três, que colei na

porta do quarto dela.

Retirei as malas do quarto e coloquei-as no hall de entrada, olhando mais uma vez para o

meu quarto. Ainda fui à casa-de-banho, confirmar se tinha recolhido todos os meus

produtos e se não me tinha esquecido de nada. Mal o fiz, arrependi-me amargamente.

Ao entrar na casa-de-banho, vi o meu reflexo no espelho. Era uma imagem deplorável,

com o semblante mais infeliz que eu já tinha visto em mim própria. Os olhos estavam

inchados e, na face, tinha as marcas de rios de lágrimas que já tinham secado. Nem

quando a minha querida avó materna havia falecido eu tinha admitido uma aparência tão

miserável.

Saí rapidamente da casa-de-banho, fechando a porta ruidosamente e deixando escapar

mais umas lágrimas, não de tristeza mas de raiva, por me sentir tão frágil e destruída por

alguém – algo – que me tinha deixado desamparada. Nunca alguém me tinha deixado

assim, como um farrapo humano.

Maldito sejas, David. Odeio-te.

Agora sim, era mais fácil odiá-lo, sem a presença dele, sem o efeito dele, ainda que isso

não me impedisse de sentir afecto por ele. Definitivamente, eu só podia ser muito

estúpida. Como é que eu me deixei levar pelos seus encantos? Ele, que aparentemente era

tão desinteressante, se tornou tão… desejável.

210

Saí de casa, sem pensar duas vezes, esperando que o táxi já estivesse à porta do prédio,

para que eu pudesse estar em movimento. Ficar parada em algum sítio era sinal de pensar

em quem não devia. E isso significava mais lágrimas, pelo que era de evitar.

Mal saí do elevador, encontrei o táxi já à minha espera, que rapidamente se pôs a caminho

do Aeroporto de Orly, tal como eu havia pedido. Passear por Paris, num táxi à noite, não

ajudava à minha paz de espírito. Cada rua, cada esquina, cada candeeiro traziam à tona

recordações dolorosas, que me faziam um nó na garganta. Era inevitável deixar escapar

uma lágrima, de vez em quando, debaixo do olhar curioso do motorista que, amiúde, me

observava pelo espelho retrovisor. Certamente perguntar-se-ia qual era o meu problema,

ou se estava a fugir de alguém, por serem três e trinta da manhã e eu pedir com a maior

das urgências um táxi, com destino ao Aeroporto.

A corrida durou cerca de vinte penosos minutos, rodeados de edifícios e monumentos que

sussurravam o nome dele ao meu ouvido. Felizmente a chegada ao Aeroporto fazia-se

acompanhar de um burburinho característico, personificado pelo movimento que existia

sempre num Aeroporto de cariz internacional, o que atenuava os constantes murmúrios

que se faziam audíveis na minha mente, no movimentado silêncio da noite.

Com uma rapidez invulgar para alguém que se sentia esgotada e sem forças quase

para respirar e manter-me em pé, atravessei o aeroporto até à zona onde levantei o bilhete

que tinha requisitado, debaixo do olhar surpreendido das escassas pessoas que passavam

por mim e que me olhavam com espanto e curiosidade, observando de soslaio o vulto que

sobressaía da parte inferior traseira da minha t-shirt, que ocasionalmente revelava o

volumoso penso que aí tinha. Calculava eu que a minha aparência não ajudasse a dar uma

imagem decente, de alguém sério e saudável. Provavelmente pensariam que eu teria saído

de um buraco qualquer em Paris, que praticaria drogas duras e que estaria com uma

potente ressaca, fugida do traficante que tinha deixado com uma dívida suficientemente

grande para justificar um aviso em forma de pancada.

Não queria saber qual era a opinião deles, nem o que pensavam de mim. Só queria fazer o

check-in e meter-me no avião que me levaria à calma e à paz da minha casa. Lar, doce lar.

Para meu júbilo, as duas horas que passei no aeroporto revelaram-se bastante

movimentadas, entre confirmações das horas de voo, o check-in e breves passeios pelas

lojas do aeroporto, onde me decidi a comprar algumas recordações para a minha mãe e

para a minha irmã.

A minha família. Eles iam ficar assustados, confusos, preocupados com a minha abrupta

decisão de regresso, sem os avisar. Eventualmente teria que lhes telefonar, informá-los de

211

que iria chegar a Faro pouco depois do amanhecer. E teria que pensar que desculpa iria

inventar para justificar o meu aspecto, a minha decisão. Ainda tinha alguns minutos para

fazer o telefonema, antes de embarcar.

Olhei em meu redor, confirmando pela enésima vez a porta do embarque e o voo que lhe

correspondia, se era mesmo aquele, se se mantinha, se eu estava no local correcto. Sim,

estava, e agora podia fazer o telefonema. Para isso, sentei-me vagarosamente nas malas

que tinha ao pé de mim. Ao retirar o telefone, comecei a pensar em quem deveria

telefonar: se à minha mãe ou se ao meu pai? A qual deles daria eu um menor susto, por

telefonar de madrugada, a informar que me ia embora? Não precisei de pensar muito para

concluir que seria melhor telefonar ao meu pai.

Estabeleci a chamada, conseguia ouvir como o som de “chamar” se mantinha com a sua

intermitência tão característica. Pelo menos o telemóvel está ligado. Após alguns

segundos, ouvi uma voz que parecia claramente confusa e ensonada.

- Maria…?

Quase que perco a compostura ao ouvir a voz do meu pai do outro lado da linha.

- Sim, pai, sou eu. Está tudo bem - adiantei eu, evitando perguntas que eu já sabia que ia

ouvir várias vezes. Engoli em seco várias vezes, tentando aclarar a garganta, para que o

meu pai não percebesse que eu estava à beira das lágrimas. - Vou para casa, pai. Vou

agora apanhar o avião para Faro.

- Mas, a estas horas? O que é que se passou?

Tudo.

Perguntas difíceis e não as mais adequadas para o momento. Senti escapar uma lágrima,

enquanto pensava numa forma evasiva de me justificar rapidamente, sem adiantar nada

em concreto.

- Eh… nada, pai. Está tudo bem, eu só quero ir para casa. Já estou em Paris há muito

tempo, tenho saudades de casa…

- De certeza? Não pareces muito contente…

Era nestas alturas que o sexto sentido paternal era extremamente inconveniente, se bem

que era provável que fosse a minha voz que denunciava o meu infeliz estado de espírito.

Já estava a prever que ia ser difícil esconder fosse o que fosse da minha família e, em

especial da minha obstinada irmã, que parecia farejar as razões por detrás das minhas

variações de humor.

- Está tudo óptimo! - Afirmei eu, fingindo um tom exageradamente feliz, demasiado

esforçado para ser real.

- A que horas chegas?

212

- Por volta das sete da manhã. Mais coisa menos coisa… - informei eu, tentando manter

uma voz íntegra.

- Está bem, então telefona-me quando chegares.

- Sim.

- Até já, filha.

- Até já, pai.

A ligação terminava e eu mantinha o meu olhar fixo no placard que agora parecia

vivo, com a palavra “EMBARQUE” a piscar rapidamente na linha que correspondia ao meu

voo. Estava na hora de me ir embora, de me despedir definitivamente de Paris.

Para sempre.

Sem saber de onde apareciam as forças que me inundavam de energia, levantei-me de

rompante e caminhei a uma velocidade que eu não sabia conseguir, na direcção que me

levaria para longe desta cidade, para longe dele, para locais onde – esperava eu que - a

presença dele se atenuaria com o tempo, onde a ausência dele já não seria incomodativa,

onde as recordações de Estrasburgo se tornariam esbatidas, como uma pintura vívida que

sofre as intempéries inevitáveis do tempo e se torna baça, apagada, desvanecida, até

desaparecer completamente, onde as memórias vividas em Paris se atenuariam, mas onde

a lembrança do seu olhar esmeralda, a disposição das suas feições, a frieza da sua pele e a

incoerência das suas atitudes iriam sempre permanecer, assombrando-me enquanto eu

vivesse. Como uma sombra escura que, com toda a convicção, me acompanharia,

relembrando-me da sua existência, do seu efeito em mim.

Conseguia senti-la, a certeza de que eu seria para sempre perseguida por essa sombra,

durante toda a minha existência. E eu… nada poderia fazer para a combater, pois ela era a

essência que me prendia a um mundo desconhecido.