•A tradução da literatura neerlandesa em Portugal

Preview:

Citation preview

| 433

A tradução da literatura neerlandesa em Portugal

Patricia Couto Centro de Estudos Comparatistas Universidade de Lisboa

Abstract: The author offers a survey and list of Dutch books translated into Portuguese, edited in Portugal between 1941 and 2011.

Keywords: Translation – Dutch Literature

Ter nagedachtenis van Luís Crespo Fabião die mijn droom in vervulling liet gaan.

No presente artigo pretendo analisar a evolução da tradução da literatura neerlandesa publicada em Portugal em livros e revistas depois de 1941. Este ano foi escolhido uma vez que só a partir desta data se verifica um fluxo contínuo de livros traduzidos da literatura neerlandesa.1 Não cabe no âmbito deste artigo definir o que se entende por literatura neerlandesa, por isso restringi o corpus às edições publicadas de autores holandeses ou flamengos que figuram na lista da Digitale Bibliotheek voor de Nederlandse Letteren [Biblioteca Digital da Literatura Neerlandesa] (dbnl) ou cujas traduções foram subsidiadas pelas entidades oficiais.2 Da lista da

1 Para os mais de cinquenta títulos traduzidos de H. Conscience entre 1859 e 1926

ver Couto (2002: 11-21). Com excepção de Conscience, encontrei dois outros títulos anteriores a 1940: Elogio da loucura traduzido em 1914 por António Joaquim Anselmo (Lisboa: António Maria Pereira) e O Major Frans publicado em 1875, traduzido do francês no mesmo ano por A. de Castro Neves e publicado pela primeira vez como folhetim em o Jornal do Porto em 1875. O nome da autora holandesa, A. L. G. Bosboom-Toussaint (1812-1886) nunca é mencionado. É provável ter havido outros casos, uma vez que há diversas traduções, geralmente publicadas em jornais, em que o autor não figura.

2 A Digitale Bibliotheek voor de Nederlandse Letteren é uma iniciativa da Stichting dbnl [Fundação dbnl] com o apoio da Taalunie [União Linguística Neerlandesa] e da

Acer
Typewritten Text
De wereld achter het woord / um mundo para além da palavra. Liber Amicorum dr. Luís Crespo Fabião. ed. Celeste Augusto, Jef van Egmond & Patricia Couto, Utreque / Lissabon, 2013, pp. 441-464.
Acer
Typewritten Text
Acer
Underline
Acer
Sticky Note
Marked set by Acer

434 | Liber Amicorum Fabiani

dbnl fazem também parte autores que não nasceram em território neerlandês ou belga mas que lá residiram ou residem (por exemplo Anne Frank, Abdelkader Benali e Moses Isegawa) ou que não escreveram ou escrevem em neerlandês (por exemplo Erasmo, Neel Doff, Robert van Gulik, Jan de Hartog, Janwillem van de Wetering ou Moses Isegawa). Há um autor incluído que não corresponde a nenhum dos dois critérios: Gerardjan Rijnders (1949), dramaturgo neerlandês, o que prova mais uma vez que as bases de dados nunca são completas. Do mesmo modo o quadro em anexo pode não ser exaustivo.

Não incluímos as traduções de Bento Espinosa, Gerard Groote ou

Tomás de Kempis por considerarmos pertencerem ao campo dos estudos filosóficos ou teológicos. A análise das traduções e recepção destas obras merece um artigo aparte. O mesmo é válido para a literatura infanto-juvenil.

Olhando para a produção, podemos distinguir dois períodos: dos

anos quarenta até à entrada de Portugal na União Europeia e de 1987 em diante.

1. 1º Período: de 1941 a 1987

Durante a primeira fase encontramos traduções sobre temas que o público erudito português associava à cultura neerlandesa e que foram inspirados pela obra de Ramalho Ortigão, A Holanda (1883). São eles o (pré-)humanismo, a pintura e o passado colonial.

Erasmo é o autor que mais vezes foi traduzido e publicado. A

tradução de Álvaro Ribeiro de O elogio da loucura já vai na 14ª edição (2005). Além disso, em 1970, figura como representante do humanismo, num ensaio escrito por um historiador de renome mundial, Johan Huizinga, autor de outras obras traduzidas para o português. Em 1944 fora publicado Nas sombras do amanhã e em 1962 a sua obra-prima, O declínio da Idade Média, traduzida por Augusto Abelaira, livro que conhece mais reimpressões em 1985, 1990, 1996 e 2006.

Nederlandse Organisatie voor Wetenschappelijk Onderzoek [Organização Neerlandesa para a Investigação Científica].

Liber Amicorum Fabiani | 435

No que diz respeito à pintura, encontramos uma biografia de Rembrandt e outra de Breughel. Da mesma série faz parte uma biografia romanceada sobre El Greco, da autoria do escritor Simon Vestdijk, na altura no auge da sua fama nos Países Baixos. Trata-se de uma adaptação de uma série de livros editados em França sob o título „La vie passioné de…’ seguido do nome do pintor. A edição revela pouco cuidado em referenciar o texto original, só no caso do romance de Vestdijk vem referido também o título neerlandês.

Outra presença constante é Vincent van Gogh. Além dos quadros,

deixou inúmeras cartas escritas em francês, neerlandês ou inglês, como testemunho de uma vida conturbada. Nomeadamente as últimas, escritas no ano antes da sua morte, serão mais duas vezes vertidas para português em 1990 e em 2002.

O passado colonial está presente na peça de teatro de Tone Brulin

sobre o apartheid (palavra de origem neerlandesa) e em Max Havelaar, de Multatuli (pseudónimo de Eduard Douwes Dekker), obra-prima que é, ainda hoje, considerada número um dos clássicos da literatura neerlandesa (De Nederlandse klassieken anno 2002). A publicação do romance Max Havelaar em época de descolonização é significativa, uma vez que é um libelo contra o domínio holandês nas Índias Orientais.

Tal como em outros países, os livros de Anne Frank conheceram

várias reedições, sobretudo depois da Revolução de Abril, quando fragmentos do seu diário apareceram nos manuais de língua portuguesa nas escolas portuguesas. O seu destino trágico nas mãos dos nazis fez do seu diário um best-seller a nível mundial, tornando a autora numa figura mítica. Pude verificar que o tema da Segunda Guerra Mundial interessa aos estudantes portugueses, tanto no ensino básico e secundário, como depois no leitorado. O interesse recente em Etty Hillesum suscitado pela tradução do diário e das cartas confirma esta tendência.3

Voltando aos anos sessenta e setenta, encontramos ainda uma obra

de Jan de Hartog, residente nos Estados Unidos, onde se tornou um

3 Os livros suscitaram artigos ou análises de autores de diversos quadrantes:

Alexandra Lucas Coelho, Ana Marques Gastão, António Guerreiro, António Marujo, Esther Mucznik, Guilherme de Oliveira Martins, João Bénard da Costa, Maria Filomena Molder e Nélio Pita.

436 | Liber Amicorum Fabiani

escritor de sucesso. Tal como Robert van Gulik e Janwillem van de Wetering, estes últimos autores de livros policiais, De Hartog passou a escrever em inglês, facto que facilitou a escolha destes escritores de bestsellers, uma vez que, até à entrada de Portugal para a União Europeia, parece que só o romance de Boon fora traduzido directamente do neerlandês. Como havia falta de tradutores especializados, a escolha recaía geralmente sobre uma obra já consagrada através da sua tradução francesa, inglesa ou alemã.

No rescaldo da Revolução dos Cravos e da abolição da censura

prévia surgem duas obras associadas à imagem da Holanda como sociedade permissiva. Curioso é que elas estão também de alguma forma ligadas à época áurea do cinema neerlandês, a década de setenta. Dias de fome e de angústia é um romance de Neel Doff, sobre a sua vida de modelo e prostituta em Bruxelas. Originalmente escrito e publicado em francês (1911) é traduzido pela primeira vez para neerlandês em 1915 mas são as traduções de Wim Zaal deste romance e de Keetje (1919) e Keetje trottin (1921), no início dos anos setenta, que serviram de base para o filme Keetje tippel (1975) realizado por Paul Verhoeven, mais tarde conhecido por filmes como Robocop ou Basic Instinct. O outro livro é Delícias turcas de Jan Wolkers que ainda hoje é considerado um dos grandes escritores neerlandeses do século XX, cujos temas estão ligados a uma ruptura relativamente a uma educação calvinista. A capa do livro não deixa margem para dúvidas, em letras garrafais é afirmado que se trata de uma obra „sensacional‟, um „sucesso‟, é „desinibido, erótico e pungente‟. Na contracapa é associado a Henry Miller e ao Último tango em Paris, reduzindo assim um dos mais importantes romances da moderna literatura neerlandesa a um livro meramente erótico, com certeza na expectativa de dar lucro a uma obscura editora que se serviu de uma tradução brasileira. Ainda se informa que a obra de Wolkers „abala a América em versão cinematográfica‟. De facto, novamente a tradução surge na sequência do filme, Turks fruit, outro clássico do cinema holandês, que Verhoeven tinha realizado em 1973.

A ideia de aproveitar a onda de sucesso cinematográfico é

recorrente, já tinha sido usada antes, uma vez que a capa do livro de Jan de Hartog, O inspector, traz a fotografia do filme The inspector.4 Por sua vez,

4 O filme The Inspector (intitulado Lisa nos Estados Unidos, 1962) foi realizado por

Philip Dunne.

Liber Amicorum Fabiani | 437

o romance de Johan Daisne tinha igualmente sido filmado uns anos antes.5 Em 1976, no mesmo ano em que é publicado em Portugal Max Havelaar, Fons Rademakers realiza o filme com o mesmo título. A colagem ao cinema revela como é desconhecida a literatura dos Países Baixos e como os editores portugueses não ousam arriscar. Mostra igualmente a importância que o cinema passou a ter como forma de legitimar a tradução. Em 1988, na sequência da atribuição do Óscar para melhor filme estrangeiro e do Globo de Ouro a The assault, feito a partir de um romance de Harry Mulisch, pelo realizador Fons Rademakers, é publicada a tradução portuguesa. O título do livro foi ditado pelo sucesso do filme; „assalto‟, em vez de „atentado‟, que teria sido a tradução correcta da palavra aanslag, como um dia me explicou o Prof. Fabião. Ainda nos anos noventa, a propósito da edição de Serenata, de Leon de Winter, o autor é associado ao filme Hoffman’s Hunger, baseado num outro livro seu.6 Também As gémeas de Tessa de Loo tinha sido filmado em 2002 por Ben Sombogaart e fora nomeado para um Óscar em 2004 antes de ser traduzido para português.

Podemos dizer que, apesar da boleia dos filmes, a escolha das

poucas obras traduzidas até 1987 foi, em geral, criteriosa, tanto no que diz respeito aos tradutores como aos autores. Se bem que as traduções não tenham sido todas feitas directamente do neerlandês, elas estiveram a cargo de escritores ou intelectuais prestigiados e progressistas como Maria Archer, Ilse e Margarida Losa, Alfredo Margarido, Augusto Abelaira, Manuel Mendes, Fernanda Botelho ou Fernando Guerreiro. Quanto aos autores: Erasmo, Frank, Huizinga, Timmermans, Multatuli, Vestdijk, Wolkers, ou Boon continuam a ser lidos.

A escolha de autores como Erasmo, Anne Frank, Brulin, Wolkers,

Multatuli e Doff com obras sobre temas ligados ao erotismo, à colonização, à guerra, ao racismo, ao fascismo ou à intolerância, mostram que transportar um texto de um sistema cultural para outro não é uma actividade inócua ou neutra. A incorporação desses textos que, de forma directa ou indirecta, abordam temas geralmente interditos ou

5 André Delvaux realizou em 1965 o filme De man die zijn haar kort liet knippen

baseado no romance de Daisne. 6 Hoffman’s honger (1993) foi realizado por Leon de Winter que é também cineasta.

Do mesmo modo Hugo Claus adaptou O desgosto da Bélgica a uma serie televisiva com o mesmo título (1994).

438 | Liber Amicorum Fabiani

censurados na cultura portuguesa na época do Estado Novo, ou publicados como uma consequência directa da revolução de 1974, evidencia o carácter transgressor ou subversivo da tradução (Basnett 2001: 310). Depois de 1979 o interesse pela literatura dos Países Baixos parece esmorecer, durante oito anos apenas encontrei a tradução de Luís Crespo Fabião da História agrária da Europa Ocidental de Slicher van Bath.

2. 2º Período: de 1987 a 2010 O final dos anos oitenta e o início de noventa marcam outra época

charneira. Dois acontecimentos foram muito importantes para o aumento do número das traduções. O primeiro foi a entrada de Portugal na União Europeia em 1986 e o segundo, a adopção de uma política dinâmica da Nederlands Literair Produktie en Vertalingen Fonds, [Fundação para a Produção e Tradução da Literatura Neerlandesa] (NLPVF), fundada em 1991.7 São seguidas estratégias para que a literatura neerlandesa saia do limbo em que se encontrava, uma vez que permanecia desconhecida no estrangeiro em geral.8 A falta de êxito é atribuída a três causas: qualidade duvidosa das traduções; publicação por parte de pequenas editoras, frequentemente marginais; e falta de tradutores (Heilbron 1999: 437). Por conseguinte, a NLPVF passou a contactar editores estrangeiros e a publicar uma newsletter com informações úteis sobre obras, escritores, direitos de autor, contactos e recensões de traduções já editadas e criou um sítio na Internet.9 No mesmo ano ainda foi criado pela Taalunie [União Linguística Neerlandesa] o Steunpunt literair vertalen [Ponto de apoio para a tradução literária] para ajudar tradutores. Uma das suas iniciativas foi a criação do Website literair vertalen [Sítio para a tradução literária]. Existem também duas casas para tradutores, uma em Amesterdão e outra em Antuérpia, esta com apoio da Vlaams Fonds voor de Letteren [Fundação Flamenga para as Letras]. Como se pode verificar no quadro anexo, a atribuição de subsídios por parte das entidades flamengas ou neerlandesas foi outro

7 Desde 1 de Janeiro de 2010 a NLPVF e a Fonds voor de Letteren [Fundação para as

Letras] (FvdL), formam a Nederlands Letterenfonds [Fundação Neerlandesa das Letras]. 8 Harold Bloom não foge à regra ao ignorar por completo a literatura de expressão

neerlandesa (Bloom 1995). 9 O sítio da NLPVF encontra-se em <http://www.nlpvf.nl/> (acedido em

10/12/10). Futuramente encontrar-se-á em <http://www.letterenfonds.nl/>.

Liber Amicorum Fabiani | 439

factor essencial para o aumento de número de traduções. A atribuição é também uma garantia de qualidade. Para a obtenção de um subsídio, tradutor e editor têm que preencher certos requisitos.

Um grande impulso foi dado em 1993, quando a literatura dos Países Baixos esteve em foco na mais importante feira do livro, a Frankfurter Buchmesse. Sobretudo na Alemanha os resultados não se fizeram esperar. Outros dois mercados em que se investiu foram os das línguas francesa e inglesa e, a partir daqui, outros se seguiram. Estudos revelaram que o universo da tradução é altamente hierarquizado, sendo o inglês, actualmente, a língua mais traduzida, seguida pelo francês, alemão e russo. O português, apesar de ser uma língua maior, e o neerlandês ocupam uma posição periférica dentro deste sistema. Se bem que as traduções sejam actualmente feitas em larga parte directamente a partir do texto original, como podemos verificar no quadro, o facto de uma obra ter sido traduzida para uma das línguas centrais legitima a tradução para uma língua periférica (Heilbron 1999: 435). Alguns títulos na nossa lista não seguiram, no entanto, esse percurso. Refiro-me à prosa e poesia de Gerrit Komrij, escritor radicado em Portugal, a O reino proibido, de Jan Jacob Slauerhoff,10 e aos romances históricos de Magda van den Akker e Joris Tulkens, obras directamente ligadas à história e cultura portuguesas.

Em Portugal, destacamos a organização de “Duplo Caminho”, um

encontro entre escritores de língua neerlandesa e portuguesa que decorreu de 22 a 24 de Maio de 1997 na Fundação Gulbenkian e na Casa Fernando Pessoa, onde estiveram presentes grande número dos autores neerlandeses e flamengos traduzidos para a ocasião, e alguns escritores portugueses com obra publicada nos Países Baixos. Além de mesas redondas, houve uma semana de cinema neerlandês, récitas, declamações e uma edição especial da revista A Phala dedicada à poesia. O evento ficou, porém, tragicamente marcado pela morte do poeta flamengo Herman de Coninck. Não há dúvida que com o encontro se iniciou um duplo caminho, se bem que timidamente, que até à data tinha sido percorrido praticamente em sentido único. São inúmeras as traduções da literatura portuguesa para o neerlandês. A literatura de língua portuguesa tornou-se um êxito nos Países Baixos desde o sucesso de Rentes de Carvalho com Waar die andere God woont (Com os holandeses, 1972), uma

10 Em 1986 fora editada a tradução alemã de Albert Vigoleis Thelen de Het verboden

rijk, de Slauerhoff.

440 | Liber Amicorum Fabiani

crítica corrosiva aos holandeses, traduzida por August Willemsen (Venâncio 1997: 104).11 Depois veio a Revolução de Abril que centrou as atenções e, seguidamente, em 1978, surgiram as primeiras traduções de Fernando Pessoa pelo mesmo tradutor, que tiveram um grande êxito e influenciaram diversos poetas neerlandeses.

Mais recentemente, em Outubro de 2003, ao mesmo tempo que o

neerlandês era língua convidada na Expolíngua, decorreu em Lisboa “Novas Vozes”, de novo com a presença de escritores de língua neerlandesa. Mais uma vez, aproveitou-se a ocasião para realizar alguns eventos paralelos, como o espectáculo de Cristina Branco em torno de fados baseados em poemas de Slauerhoff. Constatamos que também outros eventos estimularam o interesse pela literatura neerlandesa. Foi o que aconteceu em 2001, ano em que as cidades do Porto e de Roterdão foram capitais europeias da cultura. A propósito de uma exposição no Museu Serralves foram inseridos vários poemas neerlandeses no catálogo. Em 1999 e 2000, Arjen Duinker e Cees Nooteboom foram dois dos poetas presentes na „Poesia em Lisboa‟, acontecimento da responsabilidade da Casa Fernando Pessoa. Curioso é verificar que tanto no caso da tradução de poesia como na de teatro se verifica frequentemente a intervenção de poetas (Egito Gonçalves, Pedro Tamen, Nuno Júdice, Casimiro de Brito) ou actores portugueses (Rogério Paulo, Jorge de Silva Melo, Filipe Ferrer), o que parece ser uma forma de legitimação. Sobretudo a companhia de teatro Artistas Unidos tem se esforçado por trazer dramaturgos de língua neerlandesa.12

A NLPVF tem igualmente financiado e estado presente nos vários

workshops de tradução literária em Portugal. Em Janeiro de 1999, teve lugar na FLUC um primeiro com a presença de Adriaan van Dis. O resultado foi A terra prometida.13 Em 27 e 28 de Setembro de 2002, e de

11 Só em 2009, o romance de Rentes de Carvalho foi publicado em Portugal. 12 A peça Sexta-feira de Hugo Claus foi várias vezes posta em cena em Portugal.

Huylebrouck menciona uma representação levada a cabo pelo Seiva Trupe (Huylebrouck 1991: 338). Mais recentemente, em 2003, a mesma peça foi representada pelo Teatro dos Aloés. A tradução é de Ana Maria Carvalho.

Nos últimos anos, várias vezes grupos de teatro neerlandeses ou flamengos têm actuado em Portugal, frequentemente trazidos por Mark Deputter, flamengo, director do Teatro Maria Matos e do Festival Alkantara.

13 Praticamente os mesmos participantes frequentaram o 3º curso de Verão de tradução literária durante três semanas nos Países Baixos em Agosto de 1999.

Liber Amicorum Fabiani | 441

novo em Coimbra, preparado por Antoinet Brink, um grupo mais pequeno debruçou-se sobre De zwarte met het witte hart, de Arthur Japin, o que deu origem à tradução do romance. Mais recentemente, Fruto da paixão, de Glastra van Loon, A filha-sombra, de Thomése e O Messias dos Judeus, de Grunberg foram possíveis graças à criação de um tutorado pela Steunpunt literair vertalen para acompanhar jovens tradutores. Em Fevereiro de 2006, houve um terceiro workshop, desta vez na FLUL, em torno de um clássico da literatura do século XX, Kaas, do autor flamengo Willem Elsschot. Não podemos deixar de mencionar o apoio recebido da Embaixada dos Países Baixos, na pessoa de Theda van Royen.

Outro factor importante foi a circunstância de Arie Pos, tradutor de

Mendes Pinto, Sena, Torga e Cardoso Pires, entre outros, se ter estabelecido em Portugal e ter promovido de forma incansável a literatura neerlandesa, junto de tradutores, instituições e editoras. A partir de 1997, poucas foram as traduções que, de uma forma ou de outra, não tiveram a sua colaboração. É dele a tradução do Itinerário, de Jan Huygen van Linschoten, documento de valor histórico e linguístico.

Todos estes apoios tiveram como resultado um aumento de número

de traduções e também não é de admirar o facto de verificarmos que, cada vez mais, se traduz directamente do neerlandês. Sem termos feito um confronto entre texto de partida e texto-alvo, não podemos ignorar que encontramos traduções indirectas que revelam o desconhecimento da realidade ou cultura dos Países Baixos, por exemplo quando deparamos com nomes de ruas de Amesterdão em inglês ou „festival‟ de São Nicolau em vez de „festa‟. Tudo isto prova, mais uma vez, que traduzir não é simplesmente substituir um código linguístico por outro. Ilse Losa, consciente de que a tradução nunca é um acto inocente, preferiu não se basear cegamente na versão alemã ao verter o Diário de Anne Frank, mencionando que a sua tradução nasceu a partir do confronto entre a versão original neerlandesa e a tradução alemã.14

Podemos concluir que nos últimos anos a edição não ficou reduzida

à prosa, houve edições de antologias poéticas e de poesia e também

Lamentamos ter que verificar que, desta primeira leva de futuros tradutores, ninguém parece ter prosseguido de uma forma séria a carreira de tradutor literário de neerlandês.

14 Sobre as várias traduções e reedições do Diário de Anne Frank na Alemanha, ver Lefevere (1992: 59-72).

442 | Liber Amicorum Fabiani

publicações de peças de teatro. Estas últimas correspondem todas a encenações ou leituras dramatizadas levadas a cabo. A literatura traduzida foi um dos instrumentos que levou a que a imagem preconcebida dos Países Baixos se fosse modificando, dando lugar a uma mais complexa e moderna.15 Com a globalização e uma maior mobilidade das comunidades, surgem outros pontos de vista de novos holandeses, como é o caso de Abdelkader Benali, filho de migrantes marroquinos, ou de Moses Isegawa, refugiado do Uganda. Também verificamos cada vez mais a presença de mulheres escritoras e de obras mais modernas, consequência da tendência de diminuir o tempo entre a publicação do original e a sua tradução. Esperemos que se sigam muitos outros autores e autoras.

3. E daqui em diante? Embora menos do que há vinte anos, quando Roza Huylebrouck

publicou um artigo sobre a tradução da literatura neerlandesa em Portugal, esta continua ainda desconhecida (Huylebrouck 1991: 337-347). A maioria dos portugueses é incapaz de nomear um autor, além de Anne Frank. Mas não é fácil definir o que entendemos por „neerlandês‟. Responder que é a língua oficial nos Países Baixos e na Flandres geralmente não ajuda,16 as pessoas estão mais habituadas a usar termos como „flamengo‟ ou „holandês‟. Por sua vez, „Países Baixos‟ é um nome composto por um substantivo e um adjectivo e, por conseguinte, sem derivado para designar a nacionalidade ou a língua. É ainda uma designação que tanto pode ser aplicada a um país como, num contexto histórico, a uma região mais vasta que inclui as províncias meridionais e setentrionais. As línguas estrangeiras não contemplam uma forma no singular e outra no plural, como em Nederland e De Nederlanden.

Actualmente a Holanda é associada aos pólderes, coffeeshops e

casamentos homossexuais, enquanto a Bélgica é conhecida por a sua capital ser sede da União Europeia, e ser um país bilingue com todos os

15 Ver a este respeito dois trabalhos publicados em jornais portugueses de grande

tiragem: uma crónica de Faíza Hayat, sobre Abdelkader Benali; o segundo é da autoria de José Manuel Magalhães sobre Gerard Reve.

16 O neerlandês é igualmente língua oficial no Suriname, Aruba, Curaçao e Sint Maarten.

Liber Amicorum Fabiani | 443

problemas que isto implica.17 Mas a atrapalhação entre „flamengo‟ e „holandês‟ persiste, regularmente somos confrontados com pintores holandeses incluídos em escolas flamengas ou vice-versa. Outro exemplo é o queijo flamengo, um queijo que, na realidade, vem da Holanda. Não raras vezes flamengo e holandês são consideradas línguas diferentes, uma espécie de dialectos do alemão. Até mesmo o catálogo da biblioteca da FLUL não escapa à confusão (Catálogo Colectivo da Universidade de Lisboa). Consultando a base de dados e preenchendo na opção „palavra geral‟ a indicação „belga‟ encontrei nomes de escritores valões e flamengos; em „literatura holandesa‟ fui dar com quatro títulos cujo critério é de difícil compreensão,18 enquanto em „holandesa‟ figuravam mais títulos e que tinham a ver com a Holanda, Países Baixos ou Flandres e, finalmente, em „literatura neerlandesa‟ figuravam a maioria dos escritores flamengos e holandeses. A última opção parece-me de longe a melhor: a Taalunie é uma instituição supranacional de promoção da língua neerlandesa e a Nederlands Letterenfonds [Fundação Neerlandesa das Letras] da literatura de expressão neerlandesa. Mas como já referi os nomes incluídos pela dbnl na sua base de dados de autores revela como é problemático definir o que é literatura neerlandesa.

Não se pode promover uma língua e a sua cultura sem conhecê-la. No passado os leitorados das Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa chegaram a oferecer seis níveis de neerlandês. Um importante passo foi dado com os cursos de especialização em estudos neerlandeses que decorreram de 2003 a 2007 na FLUC e com os já referidos workshops. Porém, em 2006 a Universidade do Porto extinguiu o leitorado de neerlandês, no ano seguinte foi a vez da Universidade de Braga e de Lisboa e a partir de 2012 as universidades portuguesas deixam definitivamente de oferecer a cadeira de língua e cultura neerlandesa. Não há tradução sem tradutores; o futuro não é risonho pois das aulas de língua dos cursos livres ou escolas particulares não saem tradutores e os cursos de especialização só são viáveis depois de os alunos terem adquirido um sólido domínio da língua.

17 Há ainda uma terceira língua oficial em algumas partes da Bélgica, o alemão. 18 Por exemplo uma obra sobre a recepção De Maeterlinck, escritor de expressão

francesa, na Holanda.

444 | Liber Amicorum Fabiani

Não é apenas a tradução que está ameaçada,19 com a emergência da língua inglesa como lingua franca corremos o risco de descurar a aprendizagem de outras línguas. O objectivo fundamental da aprendizagem de línguas estrangeiras é o diálogo entre culturas e civilizações e o desenvolvimento do espírito de tolerância. A aprendizagem de uma lingua franca não é o suficiente para um verdadeiro intercâmbio cultural. Outro argumento a favor do multilinguismo é fornecida por Jonathan Israel, um dos principais historiadores contemporâneos e que tem contribuído muito para o conhecimento da comunidade sefardita no século XVII e mais recentemente recentra o começo do Iluminismo – e por conseguinte da época moderna – na República das Províncias Unidas, numa facção radical e europeia, em torno de Bento de Espinosa (1632-1677). Para as suas investigações foi indispensável a consulta de documentos escritos em neerlandês, português e outras línguas.20 Aliás, em mais do que uma publicação Israel chama a atenção para o problema do domínio do inglês em detrimento de outras línguas e a tendência de privilegiar autores anglo-saxónicos (Israel 2006a: 864; 2006b: 531). Além disso, quando se trata de manuscritos, cartas, panfletos ou jornais, muitas fontes não estão traduzidas. Por estas razões e tendo em consideração que Portugal, Países Baixos e Bélgica são membros da União Europeia21 e as relações históricas havidas entre eles ao longo do tempo, parece-me fundamental o restabelecimento de um leitorado de neerlandês numa universidade portuguesa. Referências bibliográficas Bassnett, Susan (2001). Da Literatura Comparada aos Estudos de Tradução. Em: Helena Buescu et al. (eds.), Floresta encantada. Novos caminhos da tradução, 298-313. Lisboa: Dom Quixote.

19 O texto de Joaquim Cerqueira Gonçalves nesta colectânea ilustra como é

importante o ensino universitário das línguas naturais. 20 Por exemplo: Diasporas within a diaspora: jews, crypto-jews and the world maritime

empires (1540-1740); European Jewry in the age of mercantilism: 1550-1750 ou Radical Enlightenment.

21 Infelizmente ainda não existe uma política acordada entre os diversos estados membro no que diz respeito ao ensino das línguas europeias nas universidades (informação fornecida por Pedro Chaves em nome do comissário europeu Leonard Orban, por correio electrónico em 17/04/07).

Liber Amicorum Fabiani | 445

Bloom, Harold (1995). The Western Canon. London: Macmillan.

Carvalho, J. Rentes de (2009). Com os holandeses. Lisboa: Quetzal.

Couto, Patricia (2002). Hendrik Conscience in de Portugese kranten. Em: Dorothé Beekhuizen et al.(eds.), Nederlandse Taal-, Vertaal- en Letterkunde, 11-21.

Heilbron, Johan (1999). Towards a Sociology of Translation. Book Translations as a Cultural World-System. Em: European Journal of Social Theory 2, 429-444.

Huylebrouck, Roza (1991). Traduções portuguesas de obras literárias neerlandesas. Em: Revista da Faculdade de Letras do Porto 2ª serie VIII, 337-347, em especial p. 338.

Israel, Jonathan (1985). European Jewry in the age of mercantilism: 1550-1750. Oxford: Clarendon Press.

Israel, Jonathan (2001). Radical Enlightenment. Oxford: Oxford University Press.

Israel, Jonathan (2002). Diasporas within a diaspora: Jews, crypto-Jews and the world maritime empires (1540-1740). Leiden: Brill.

Israel, Jonathan (2006). Enlightenment Contested. Oxford: Oxford University Press.

Israel, Jonathan (2006). Enlightenment! Which Enlightenment? Em: Journal of the History of Ideas 67, 523-545.

Lefevere, André (1992). Translation: ideology. On the construction of different Anne Franks. Em: A. Lefevere (ed.), Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame, 59-72. London/New York: Routledge.

Venâncio, Fernando (1997). A conquista dos pólderes. Portugueses na Holanda. Em: Ler, 1997, 104-106.

Venâncio, Fernando & Barel, Catherina (Tr)(2007). Duplo Caminho. A Poesia Neerlandesa. Em: A Phala, 55 (1997).

web:

De Nederlandse klassieken anno 2002: http://www.dbnl.org/letterkunde/enquete/ enquete_dbnlmnl_21062002.php (acedido em 10/12/10).

Digitale Bibliotheek voor de Nederlandse Letteren.: http://www.dbnl.org/ (acedido em 10/12/10).

Vlaams Fonds voor de Letteren.: http://www.fondsvoordeletteren.be/ (acedido em 10/12/10).

Website Literair Vertaler: http://literairvertalen.org/(acedido em 10/12/10).

446 | Liber Amicorum Fabiani

Traduções de obras literárias neerlandeses em português Periodo: 1941-2012

Liber Amicorum Fabiani | 447

448 | Liber Amicorum Fabiani

Liber Amicorum Fabiani | 449

450 | Liber Amicorum Fabiani

Liber Amicorum Fabiani | 451

452 | Liber Amicorum Fabiani

Liber Amicorum Fabiani | 453

454 | Liber Amicorum Fabiani

Legenda de abreviaturas:

c: contos cr: crónicas crt: cartas

d: diário e: ensaio enc: enciclopédia

h: história j: jornal m: memórias

Liber Amicorum Fabiani | 455

p: poesia r: romance s: sátira

t: teatro

456 | Liber Amicorum Fabiani

Notas na tabela

1) 2) 3) 4) 5)

Inclui os seguintes autores: Buysse, Streuvels, van de Woestijne, Tierlinck, Elsschot, E. Claes, Timmermans, Pillecyn, Roelants, Brulez, Ostaijen, Walschap, Gijsen, Gilliams, Duribreux, Demedts, Jonckheere, Boon, Daisne, Rosseels, Kerkhove, D'Haese, Lampo, Aken, Walravens, Michiels, Vandeloo, Claus, Raes, Ruyselinck e de Witte na secção dedicada à prosa e teatro. E ainda: Gezelle, van de Woestijne, Minne, Ostaijen, Burssens, Gilliams, Demedts, Jonckheere, Hensen e Claus na antologia poética. Os oito poetas são: Bert Schierbeek, Gerrit Kouwenaar, Lucebert, Remco Campert, Hans Faverey, Cees Nooteboom, J. Bernlef, Arie van den Berg. Incluídos os seguintes poetas: Gezelle, Kloos, dèr Mouw, Gorter, Leopold, van de Woestijne, de Haan, Elsschot, Doesburg, Gutteling, Kemp, Bloem, Minne, Nijhoff, Ostaijen, de Vries, Slauerhoff, Marsman, Gilliams, Achterberg, Gerhardt, Vasalis, Hanlo, Vroman, Warren, Kouwenaar, Lucebert, Campert, Claus, Leeflang, Faverey, Nooteboom, van Toorn, Schippers, ter Balkt, Tellegen, de Coninck, Komrij, Enquist, Nolens, Gerlach, Van hee, Gruwez, Schouten, Lanoye, Huigen e Verhelst. Inclui novas traduções de poemas de Komrij, Kopland, Vasalis, Blaman, Schippers e Marsman. Reedição de alguns poemas incluidos em Uma migalha na saia do universo. Inclui ainda um ensaio de Jan Wolkers. Inclui os seguintes poetas: Puthaar, Wigman, Pfeijffer, Soepboer, Brassinga, Ohlsen, Gerbrandy, Mandelinck, Duinker, Bruinja, Barnas, Langelaar, Nolens, Manders, Michel, Oosterhoff, Gerlach, Van hee, Boog, van Bastelaere, Loontjes, Godijn, Knibbe, Wieg, Verhelst e Declerq.