DISPUTAS EM DIFERENTES TEMPOS NA CONSTRUÇÃO DA ARENA
PERNAMBUCANA PARA A COPA DO MUNDO: PLANEJANDO, EXECUTANDO,
MITIGANDO1
Parry Scott, Dayse Amâncio dos Santos, Eduardo Araripe Souza, Alice Mello
Programa de Pós-Graduação em Antropologia-UFPE/FAGES.
Grandes projetos de investimento para megaeventos são tão ambiciosos que parecem
abranger todos os projetos de melhoria que já existiam antes. A hora de anunciar a decisão de
realizar o evento é precedida por muito tempo de planejamento e negociação, distantes dos
holofotes da divulgação, com pompa, feita por quem está assumindo a responsabilidade de tocar
o projeto adiante! Todo megaevento tem pelo menos dois inícios antes do anúncio. O primeiro
início compete aos promotores. Este início é semi-explícito e consiste de informações, mais
informais que formais, dos organizadores potenciais de quem são e dos que continuarão sendo
os principais articuladores das atividades relacionadas diretamente com a proposta pública do
evento, e que comandarão as ações necessárias para que se possa captar e realizar o evento.
Tanto os que pertencem às organizações perenes promotoras (FIFA, Comitê Olímpico,
Organizadores de feiras internacionais, etc.), quanto os pretendentes a colaboração direta,
elaboram planos, atividades e campanhas próprias, para definir qual será a próxima “sede” em
que haverá concentração de atenção e investimentos para o megaevento. O segundo início é dos
potenciais aliados, e é implícito, multifacetado, e com muitas datas diferentes, tanto muito
antigas, quanto bem recentes, pois este início se redefine de acordo com projetos existentes,
independentes do megaevento. Os organizadores destes projetos consideram os seus planos
contempláveis e querem aproveitar a oportunidade para levar a frente algum(ns) projeto(s) pré-
existente(s), cuja realização é oportunizada pela situação de exceção e intensidade de atividades
e investimentos que o megaevento representa. Dessa forma, estes projetos “implícitos” precisam
encontrar os pontos de articulação que têm com as idéias dos promotores do megaevento para
poderem adaptar-se aos desenhos dos organizadores principais. Ideias sempre presentes, como a
melhora do sistema de mobilidade urbana, o estímulo ao turismo, a modernização de espaços
residenciais, programas de promoção à saúde/prevenção de doenças, construção de
equipamentos para a realização de competições esportivas (ginásios, arenas, vilas olímpicas,
etc.), ad infintum, terão uma oportunidade para se realizarem com mais desenvoltura. A
confluência dos planos dos promotores e dos aliados escolhidos rotula a realização dos seus
planos de “legados”. Trabalham no convencimento público que estão respondendo a alguma
1 Trabalho apresentado no II Conferencia Internacional Megaeventos e a Cidade, Rio de Janeiro, UFRJ-IPPUR, 27-30 de abril, 2014, na sessão temática AT2, Conflitos e Resistências.
vontade da sociedade de ver estes planos realizados.
É importante ressaltar que sempre há ainda outros projetos existentes que, ou não conseguem
ser contemplados, ou nem almejam ser, pelo que um megaevento representa, seja por puro
desinteresse por não se sentirem envolvidos, seja numa direção abertamente contrária às metas
dos seus organizadores. Alguns destes projetos embasarão possíveis resistências, negociações e
conflitos que serão ocasionados pelos grandes projetos. Muitos outros, ainda não organizados,
ou organizados num nível de poder inferior ao exigido para inclusão no megaevento,
enfrentarão uma tarefa urgente de se defenderem ao descobrir que a existência deles é percebida
pelos organizadores do evento como empecilho ou barreira que precisa ser removida para
realizar o megaevento.
No afã de participar da intensificação de atividades que envolvem a circulação de capital, em
nome do crescimento e do desenvolvimento, megaeventos se apresentam como capazes de
ressuscitar e soprar ânimo em projetos moribundos, esquecidos e parados. Um megaevento tem
a capacidade de injetar uma movimentação em projetos tão morosos que ninguém nem lembra
direito quem primeiro falou neles! Na visão dos que se envolvem no projeto que pode ser
inserido na agenda do megaevento, “Sempre se queria fazer uma coisa dessas, mas agora
apareceu a oportunidade!” De fato, as oportunidades circulam de uma maneira desigual, e os
bastidores dos projetos envolvem diálogos técnicos entre planejadores que podem ser vistos
como visionários do futuro, por assim dizer, pelo menos, do futuro nas suas áreas específicas de
atuação. O planejador vende um futuro projetado, e o seu sonho é que apareçam as condições
objetivas de colocar os seus planos em ação, de tirá-los do papel, da maquete virar uma obra
admirada, dos cálculos se confirmarem em alguma coisa viável, segura e muito valorizada. Que
os projetos se revistam de uma aura de desenvolvimento, modernidade, progresso e avanço
tecnológico é uma combinação sine qua non para a inclusão dos projetos na agenda mais ampla.
Esta “aura obrigatória” não exime os idealizadores dos projetos de tentarem se apropriar (às
vezes, com sucesso) de outros valores que possam ser opostos ao que os reais planos objetivam,
sugerindo a inclusão social de grandes contingentes da população e a defesa dos interesses de
integração de todos.
O controle do tempo é absolutamente imprescindível na administração do alcance dos
objetivos dos planos de megaeventos. O tempo tem sido amplamente estudado como construção
social e exemplificações de como a percepção do tempo se relaciona com o cotidiano de grupos
sociais diversos – jovens, trabalhadores, executivos, mulheres, indígenas (FRANCH 2004,
ADAM 1990, ARAÚJO 2011, e a revista TIME & SOCIETY). Os estudos de David Harvey
(1989) marcaram uma especificidade de compressão de tempo e espaço no mundo globalizado,
e Norbert Elias (1997, ELIAS e DUNNING, 1996) realça o progressivo aumento do controle do
tempo como um elemento fundamental na convivência entre grupos sociais. Ele argumenta que
isto exige medição cada vez mais precisa, ao mesmo tempo em que evidencia e constrói
mecanismos de diferenciação e desigualdade. Como diz Franch, ao discutir as abordagens de
Elias e Bourdieu:
Historicamente, a possibilidade de controle do espaço e do tempo é privilégio das classes dominantes, mas isso não quer dizer que os grupos populares não
desenvolvam suas estratégias e temporalidades próprias (2004: 27).
Um megaevento se dispõe a impor um quadro temporal para realização que reúne os planos de
grupos hegemônicos, e que se divulga de tal forma que interage com uma diversidade de grupos
e demandas que precisam se articular, seja para conformar-se com este quadro temporal, seja
para contestá-lo.
A busca de uma imposição simbólica das novas referências de tempo (BOURDIEU, 1989)
pelos promotores de megaeventos leva à procura de incorporação de imagens de temporalidades
mais naturalizadas, sugerindo menor força da temporalidade do que, efetivamente, os
empreendimentos estão exigindo. Dois campos onde isso ocorre com muita clareza são,
primeiro, o da sustentabilidade e relação com o ambiente, e, segundo, a ideia de humanização e
higienização da sociedade. Estes campos são invocados para legitimar simbolicamente os novos
espaços criados, mas, são, efetivamente freqüentemente muito deturpadores do conjunto mais
amplo e da própria dimensão temporal dos impactos que os projetos trazem. Voltaremos a essas
idéias.
A primeira questão refletida em torno do megaevento quase sempre é a sua dimensão em
termos de cifras contábeis. É interessante perceber que tanto os que são a favor ou contra o
megaevento, ao utilizarem os números de investimentos e perdas, finalizam a argumentação
com um saldo positivo ou negativo dependendo da seu posicionamento em relação à Copa do
Mundo, como nos mostra Martin Curi (2013) e afirma que os números sugerem uma
credibilidade e objetividade que não têm. As cifras que os promotores designam de
“investimentos” (quem se opõe os chama simplesmente de “gastos”) do evento, compondo a
contrapartida esperada para a nação, além de serem impressionantes nas suas próprias altas
dimensões, mostram que, por mais que se anuncie redução de custos para o governo através de
parcerias públicas e privadas (PPPs), são investimentos, sobretudo de dinheiro federal, estadual,
e, mesmo, municipal. No caso da Copa do Mundo no Brasil é impossível chegar a quaisquer
cifras conclusivas em virtude dos acréscimos e modificações que ocorrem quase diariamente
(nada excepcional na lógica do funcionamento destes projetos), mas vale a pena ver uma divisão
com base em dados veiculados no próprio portal dos organizadores deste megaevento em 2014.
Fonte: http://www.portal2014.org.br/noticias/12719/CUSTO+DAS+OBRAS+DA+COPA
+TEM+AUMENTO+DE+ATE+166+CONFIRA+A+LISTA.html, Acesso em: 10 abr. 2014.
Diante deste cenário de altos investimentos, intensa participação do Estado, e uma agenda de
planejamento complexa que envolve disputas para inclusão e articulação, é importante
reconhecer que todo megaevento que se realiza, mesmo promovido por organizações globais
supra-nacionais como a - Fédération Internationale de Football Association (FIFA), contem três
tempos: um tempo técnico, pré-anúncio; um tempo corrido, na execução pós-anúncio; e um
tempo de fuga, depois da realização do evento. Neste trabalho, descreve-se a movimentação e as
conseqüências para diferentes atores em cada um desses tempos, sempre com referência à Copa
do Mundo FIFA 2014, e com ênfase ilustrativa no caso particular do Recife2, uma das doze sub-
sedes do evento.
O primeiro tempo a examinar, o técnico, é fundamental para compreender as articulações que
definem as inclusões e exclusões que vão se exacerbar no desenrolar de todo o processo de
planejamento, execução e desenvolvimento/mitigação. Cria-se uma imagem generalizada de que
“Tudo vai melhorar nesses projetos!” Aquilo que não melhorar, que não seja visto! Grandes
obras nascem de grandes alianças. É um jogo de ganhos e perdas com uma força publicitária
grande que exalta o lado dos ganhos e ofusca o lado das perdas. Os próximos tempos a
examinar focam, primeiro, nas conseqüências para o tempo corrido, na fase da execução,
quando se observam explicitamente os muitos impactos da implantação das obras e se
mobilizam todos em defesa dos seus interesses. Há disputas sobre a compreensão destes
impactos. Esta mobilização no tempo corrido da execução se descreve na segunda parte. Na
2 Realizamos uma pesquisa UMA ARENA PARA PERNAMBUCO: IMPACTOS E AVALIAÇÕES DE
PROMOTORES, VIZINHOS, BENEFICIADOS, ATINGIDOS, como um de seis sub-projetos desenvolvidos na UFPE-Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação , realizado a partir de um convite-concorrência à UFPE realizado pelo CNPQ e o Ministério do Esporte.
14,02; 55% 7,85; 31%
3,75; 14%
Gráfico 1 Divisão Nacional de Investimentos na
Copa (Bilhões de reais)
esfera federal
governos locais
esfera privada
penúltima parte, fazemos uma previsão breve sobre o tempo de fuga. O trabalho é concluído
retornando ao assunto do tempo como instrumento disciplinador na articulação de benefícios e
custos em megaeventos.
PLANEJANDO: O TEMPO TÉCNICO
A construção da Arena Pernambuco, estádio de futebol e de multieventos, para a Copa do
Mundo FIFA no município de São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife,
deflagrou uma seqüencia de ações articuladas de planejamento, execução e
desenvolvimento/mitigação, característica geral de grandes obras. A designação de uma porção
do espaço urbano como destino de um Grande Projeto de Investimento (nos termos de Vainer e
Araújo, 1992) opera uma ressignificação do tempo vivido, pelos seus planejadores e executores,
e pelos que aí residem historicamente. Observação in loco, diálogos com agentes em situações
diferentes, acompanhamento de negociações e manifestações mostram a multiplicidade de
stakeholders na operação. A discussão aqui foca nas disputas e negociações sobre futuros
idealizados.
Identifica-se uma hegemonia das lógicas temporais da implantação de grandes obras,
iniciadas com um tempo técnico, de intensa preparação dos idealizadores e de esparsa
comunicação com os residentes, que prosseguem com a vivência cotidiana do espaço habitado.
Neste tempo, os conflitos e resistências estão pouco evidentes, pois os planejadores realizam o
seu trabalho com uma equipe de especialistas locais e, sobretudo, em nome da globalização e
certificação de qualidade, extra-locais, que projetam o espaço urbano de acordo com a sua visão
e expectativas de um futuro percebido como melhor e de renovação para quem eles acreditam
que possa aproveitá-lo. Residentes e pessoas que estão nas áreas a serem atingidas apenas
ocasionalmente sabem alguma coisa sobre os planos, geralmente por via de pessoas informadas
sobre os processos de planejamento, mas para eles estes planos costumam não parecer ser nem
reais, nem próximos.
Cada plano mobiliza uma multiplicidade de grupos de interesse que especulam sobre os
potenciais benefícios que podem resultar de uma intensificação de investimentos e de uma
criação de um tempo “sagrado” definido por um cronograma que, no caso da realização da Copa
de Mundo, tem a capacidade de suspender direitos estabelecidos tanto na constituição quanto
nas leis comuns, como ocorreu em 05 de junho de 2012, quando o governo decretou e
sancionou a Lei nº 12.663, conhecida como a Lei Geral da Copa.
Longe de ser o ponto de partida para o planejamento, essa lei representa uma de várias
culminações de projetos trabalhados há um bom tempo. Retrocedendo, pode-se destacar o
momento do anúncio do Brasil como sede da Copa (em 30 de outubro de 2007, analisado em
Oliven e Damo, (2013) como um momento precedente que marca a consagração de um
cronograma pré-estabelecido que orientará os caminhos dos planejadores das mais diversas
ações. Seria um exercício fútil tentar estabelecer quando se começou a almejar a realização da
Copa do Mundo no Brasil (de novo, sessenta e quatro anos depois da primeira Copa no país!). O
poder simbólico do estádio do Maracanã projeta uma imagem do Brasil para o mundo desde um
tempo quando as redes de interconexão eram infinitamente mais frágeis. Quais são alguns dos
grupos mais notórios que se atiçaram para planejar para que este plano novo se tornasse
realidade? Em termos financeiros, pode-se dizer que são os governos, como mostra o Gráfico 1,
acima, sobre investimentos na Copa ao nível nacional. Mas pensando em agentes, vamos dividi-
los, ressaltando quatro que se diferenciam entre si:
1) Os grandes consórcios de construtores: Com doze cidades contempladas para fazer
reformas e novas construções desde estádios até grandes sistemas de transporte com
datas imutáveis para a sua conclusão (seria mais realista dizer a conclusão parcial de
algumas partes delas), a possibilidade de ganho (tanto pelas licitações específicas,
quanto pelos aditivos corretores dos grandes contratos ganhos), a Copa do Mundo FIFA
2014 é uma oportunidade em que a Odebrecht S. A. foi a grande vencedora em
Pernambuco. Foi elaborado um PPP – Projeto de Investimentos Públicos e Privados,
que permitia longos períodos (30 anos) de aproveitamento de construções feitas em
colaboração entre o Estado e as companhias construtoras e administradoras, com uma
doação de centenas de hectares para o Consórcio. . Tudo é associado a um detalhado,
mas muito nebuloso, projeto, idealizado de uma Cidade da Copa, tecnologicamente
avançada, sustentável e extraordinariamente limpa. Além de construir a Arena, um
consórcio liderado pela Odebrecht, através de um setor administrativo de gerenciamento
de eventos, diferente do setor de construção, terá trinta anos para se beneficiar (poderia
dizer desenvolver) da Arena Pernambuco. Depois será devolvido aos poderes públicos
nas condições permitidas naquela distante época. A Arena Pernambuco e a Cidade de
Copa é uma das quatro obras da construtora Odebrecht na sua participação no
megaevento da Copa. As outras são: a Fonte Nova na Bahia, a Itaquerão em São Paulo,
e o Maracanã no Rio, totalizando 2,9 bilhões de reais em obras projetadas segundo o
próprio site da companhia3
A Arena Pernambuco, uma das mais baratas projetadas (Oliven; Damo, 2013)
(R$ 529,5 milhões) é feita com base inicial num projeto do International Stadia Group
(ISG) e da AEG Facilities, com arquitetura de Fernandes Arquitetos Associados –
arquitetos Daniel Hopf Fernandes, Luis Henrique de Lima, e Paulo Eduardo Jr., e com
complementação da ENERCONSULT. O custo reportado do projeto (não da sua
3 PORTAL 2014. Odebrecht lança site para divulgar estádios. Disponível em: http://www.portal2013.org.br/noticias/7772/ODEBRECHT+LANCA+SITE+PARA+DIVULGAR+ESTADIOS+DA+COPA.html.
execução) foi de 9,35 milhões de reais, que, com mais projetos e mais execução se
ramificam para a Cidade da Copa e para múltiplos outros projetos de melhorias de
aeroportos, portos, mobilidade urbana, estímulo ao turismo, etc. Os construtores e
consórcios se organizam durante o tempo técnico, justamente para angariar os contratos
e ganhar as licitações para tomar as rédeas nos tempos de execução.
2) Os construtores e administradores do setor imobiliário, que, além de incluir alguns dos
mesmos atores do setor de grandes consórcios de construtores (evidentemente duas das
quais são As Organizações Imobiliárias Odebrecht, e Norberto Odebrecht
Construtora), se diversificam para uma multiplicidade de empreendedores que
embarcam num projeto de tornar o Oeste da Região Metropolitana do Recife (RMR) um
lugar com identidade e características de uma nova, ou “emergente”, cidade, cuja
simbologia, com fortes investimentos dos administradores do espaço urbano
(especialmente através da Agencia Estadual de Planejamento e Pesquisa de
Pernambuco, CONDEPE/FIDEM 4
) aposta no avanço tecnológico e na correção
ecológica. A Cidade da Copa, que brota ao lado da Arena Itaipava5,se materializa em
planos arquitetônicos e exortações vagas sobre a importância que este projeto terá para a
nova área da Região Metropolitana do Recife (RMR), realçando que será a primeira
smart city (cidade inteligente) do Brasil e que seu planejamento inclui empresários
internacionais envolvidos em projetos multiuso, tendo shopping centers, uma
universidade, áreas residenciais, coleta seletiva de lixo com tratamento avançado e
sustentável, hotéis e um centro de convenções, parques, estação de metrô, e muitas
outras atrações. Desde pelo menos três anos antes do término da Arena se registravam
valorizações de condomínios locais e apartamentos existentes em São Lourenço da
Mata e Camaragibe, respondendo muito às necessidades de residentes locais e de
trabalhadores na construção. Quem morava em muitas áreas da cidade e na cidade de
Camaragibe sentia uma valorização da sua casa, quem procurava uma moradia
dificilmente a encontrava num preço accessível. Mas os investimentos principais são de
Acesso em: 10 abr. 2014 4 O estudo “Oeste Metropolitano: realidades e desafios para o desenvolvimento regional sustentável”, da referida agência de planejamento, lançado em novembro de 2011 é emblemático destes esforços continuados, e o seu carro chefe, a Cidade da Copa, enfatiza a etapa pós-Arena. É descrito no setor de programas da referida agência:
O projeto “Cidade da Copa” prevê a construção de um estádio, um conjunto habitacional, um centro comercial, hotéis e outros investimentos privados que somados chegam a um R$ 1,6 bilhão. O Governo do Estado entra com o terreno e as demais obras junto à iniciativa privada.
5 Há uma disputa de uso em materiais que referem à Itaipava Arena Pernambuco sobre se ela deve ser denominada de Pernambuco, ou de Itaipava (companhia que detém os direitos de propaganda e nomeação).
áreas novas cujo acesso foi liberado pela nova territorialização da área. Estes projetos se
orientam pelo menos parcialmente, no projeto da Cidade da Copa e seu entorno. Não
fazem referência a moradores locais, e estimam que haverá 50 mil novos moradores.
Mais do que uma simples substituição de moradores, é uma invisibilização dos espaços
ocupados por moradores atuais e um deslumbramento com a possível chegada de novos
consumidores mais abastados. As áreas diferenciadas em construção no entorno
incluem, entre outros, Alphaville, o Residencial Parque Capibaribe, a Reserva São
Lourenço, sem falar no que se imagina dentro dos contornos da Cidade da Copa. Não
faltam referências a áreas verdes e a caminhos de capivaras para atrair os compradores
urbanos desejosos de simbolizar a sua adesão às causas ecológicas. A relação com a
tecnologia avançada se constrói na citação da inspiração no Porto Digital (organização
com base no centro do Recife, descrita como parque tecnológico, implantado pelo
Governo em 2000 que realça territorialidade, software e inovação na economia criativa,
abriga mais de 200 empresas nacional e globalmente. Esta organização trabalha com a
idéia de Smart Cities para renovar o centro histórico da Cidade do Recife e leva a idéia
para o Oeste Metropolitano). Na sua versão oficial, a idéia de smart cities se inspira
num equilíbrio entre desenvolvimento urbano e sustentabilidade ambiental, um lugar
que proporcionará oportunidades de lazer e entretenimento distantes da comoção do
Recife, congestionado, e, construído no que, segundo um artigo que muito bem
representa uma das imagens mais repetidas do tempo antes da Arena e da cidade da
Copa: “O local era um espaço virgem.”6 Para que o local pudesse ser declarado
“virgem” foi necessário remover agricultores familiares e desobstruir os obstáculos
legais da definição das fronteiras de uma já declarada Área de Preservação Ambiental
(APA).
6 BALIEIRO, Silvia. Com a Copa, Recife ganhará cidade inteligente . Disponível em:
http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,ERT243370-16382,00.html. Acesso em: 08 abr. 2013.
Quadro 1: Cidade da Copa
Fonte:
https://www.google.com.br/search?q=imagens+cidade+da+copa+sao+louren%C3%A7o
&es_sm=122&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ei=kTKGU6ChKI748QXyrILIB
g&ved=0CEIQ7Ak&biw=1280&bih=675
3) Governantes, em diversos níveis (estadual, metropolitano e municipal, especialmente),
ora articulados, ora em conflito, cuidam de uma reterritorialização das áreas geográficas
(entendemos que isto se constitui não somente de áreas residenciais, mas também se
estende para áreas comerciais e culturais) que estão no caminho da Copa. Com os
acordos com a FIFA, cada cidade sede se comprometeu em assegurar segurança e
acesso à arena, realizando a desobstrução física e legal de espaços a serem usados
durante a Copa. Isto implica em muito mais do que monitorar a construção da arena, e
este problema se acirra no caso do Recife. A decisão de colocar a Arena a 19 km do
centro do Recife, em outro município da RMR, criou necessidades de melhorar o acesso
a ela, possibilitando investimento na mobilidade urbana via um moderno transporte
rodoviário (BRT) que exigiu a construção de múltiplos terminais integrados de ônibus
(em Camaragibe e no Recife, mas não em São Lourenço da Mata!) e de ônibus e metrô,
e isto acarretou desapropriações e expulsões forçadas, sem nenhuma construção de
casas e gerou uma enorme insatisfação em, calcula-se diante da falta de dados precisos
do Estado, quase 2.000 pessoas7, principalmente no loteamento São Francisco em
Camaragibe, no Coque, no Recife, e em Cosme e Damião, no Recife-limítrofe com
Camaragibe. Todas estas comunidades batalham para preservar os seus direitos à
moradia, ou pelo menos uma indenização digna diante do fato consumado da retirada
das suas casas. O governo é um operador chave para articular os planos dos consórcios
e do setor imobiliário em obediência ao cronograma explícito do planejamento do
megaevento e se re-estrutura em nome do cumprimento eficiente, senão do
aproveitamento individual eventual, do que vem se planejando com a formação de
secretarias especiais e de divisões designadas para acompanhar o projeto. Entre estes
setores, além da Secretaria da Copa associada proximamente à Secretaria de Cidades e a
Secretaria de Esportes, as áreas de segurança e de organização de desapropriação dentro
da Procuradoria Geral do Estado recebem estímulos grandes para crescerem e se
organizarem.
4) Os residentes nas áreas a serem impactadas. Estes, independentes do seu grau de
organização, são precariamente incluídos na fase técnica. Não são consultados, não são
contemplados como potenciais beneficiados dos projetos elaborados para articular
setores novos e consumidores mais abastados a um projeto de desenvolvimento
idealizado para poucos, mas que precisa se moldar em cima dos espaços ocupados pelos
que residem próximos ao projeto. Quando, no tempo técnico, o rumo do planejamento
se torna mais provável de ter a sua execução assegurada, promovem-se as remoções de
populações relativamente pequenas e sem organizações coletivas para se protegerem,
como os moradores dos sítios na área rural, ambiguamente definida como APA, mas
vulnerável a desmembramento para as finalidades de um megaprojeto. A ampliação da
estrada de acesso, BR408, visando o estádio, mas justificável em nome de mobilidade
urbana, já atinge alguns, como algumas dezenas de residentes e comerciantes mais
próximos à pista na comunidade Guadalajara, na beira da estrada ampliada, mas, na
primeira fase, a técnica, ainda não há obras em locais com populações mais densas, mas
capazes de se defender.
Ao estudar a remoção de populações atingidas por barragens, usa-se a idéia de descaso
planejado (SCOTT 2009, 2012) para descrever um procedimento de favorecimento de objetivos
de primeira ordem e negligenciar objetivos de segunda ordem, que são compreendidos como
“mitigações” dos efeitos da busca do alcance desses primeiros, mas que se misturam com a idéia
do avanço de “desenvolvimento” que realça investidores e empreendedores mais que
7 Não é claro se este número inclui os moradores que foram expulsos dos seus sítios de produção
agrícola no terreno da construção da arena, e moradores do distrito na beira da estrada ampliada de BR408, que atingiu a comunidade de Guadalajara, em Paudalho. O que é claro é que estes foram os primeiros a serem deslocados.
impactados. É evidente que é neste tempo técnico, de pouca comunicação com a população e de
articulação de estratégias entre potenciais interessados e beneficiados que se apontam trilhas que
serão seguidas posteriormente, e que fornecerão campos para a elaboração de confrontações.
Boa parte do que ocorre na próxima etapa, de execução, é germinado nesta fase técnica,
prolongada e seletiva.
EXECUTANDO: O TEMPO CORRIDO
A execução da obra ocorre num tempo corrido, obedecendo as metas dos promotores do
megaprojeto. Evidenciam-se as zonas de atrito onde a multiplicidade de processos em operação
fricciona diferentes espaços. Mais do que na construção de uma barragem, o tempo de execução
de um megaevento requer uma resolução rápida de conflitos porque inexiste qualquer
viabilidade de modificar o cronograma. Uma barragem que atrasa não comove muita gente.
Uma Copa do Mundo que não obedece ao cronograma anunciado arrasa a nação e envergonha a
sua população. Isto endurece o posicionamento dos negociadores que representam os grupos
interessados e beneficiados diante das populações atingidas, sempre invocando a pressa.
Inclusive podem fazer referencia à plena visibilidade da contagem regressiva colocada
monumentalmente na Avenida Agamenon Magalhães que entrecorta os bairros mais
movimentados da cidade do Recife, e que informa o número de dias até a Copa do Mundo
FIFA. Para os navegadores da internet, o mesmo cronômetro encabeça a página da “Arena de
Pernambuco” da CONDEPE/FIDEM. Em precárias condições de diálogo8, a atenção dos
idealizadores/executores se volta para um futuro muito próximo ditado por um cronograma
muito público de um evento que é divulgado amplamente e festejado como uma grande
ocorrência por toda a população. Como o evento é uma vitrine para a nação se mostrar e
competir pelo reconhecimento das suas qualidades (não somente do altamente simbólico
sucesso no campo de futebol, mas de organização, de segurança, de paz, de lazer, de capacidade
de recepção, etc.), e o tempo é curto, abafam-se os conflitos e procuram-se soluções incompletas
que possam aquietar os atingidos até que passe o evento.
Na ocasião da Copa das Confederações FIFA em junho de 2013 o Brasil experimentou uma
renovação de uma prática adormecida de protestos públicos contra a administração do bem
público. Batizadas das jornadas de junho, as manifestações públicas com a presença da
população nas ruas comunicaram uma indignação sobre o que se percebia como a inversão das
prioridades do governo. O governo investiu muito numa realização esportiva, e não manifestou
preocupações semelhantes como setores como educação e saúde no país. Nestas ocorrências, o
chavão “padrão FIFA” sintetizava a indignação contra essa inversão!
8 Ressalta-se que é uma precariedade favorável à realização dos primeiros objetivos, pois os construtores não se responsabilizam diretamente pela “limpeza” do território no qual vão interferir, o que favorece a sua atuação “independente” em associação com o Estado desapropriador.
Então, na execução, a presença da vitrine oportuniza tornar visível não somente os casos
concretos de populações que se descobrem cada vez mais prejudicadas por serem atingidas
diretamente pelas obras promovidas para realizar o evento, mas também para acrescentar
integrantes de movimentos sociais que têm trabalhos sistemáticos de apoio à melhoria de
educação, de saúde, de ambiente, de equidade, de habitação, de combate à exploração sexual
infantil, etc. Eles se agregam às populações atingidas. A organização nacional dos Comitês
Populares da Copa, cada um que siga uma agenda de acordo com o que está ocorrendo na sua
Cidade Sede, se articula na medida do possível, criando agendas concatenadas e promovendo
reuniões nacionais e regionais periodicamente. Entre outras coisas, eles se ocupam com o apoio
aos atingidos para poderem ampliar as discussões para os seus temas prediletos.
No Recife, o Comitê, para citar apenas algumas iniciativas: a) acompanhou e guiou a
comissão presidencial de Secretaria de Controle Interno da Presidência da República para
realizar uma auditoria participativa da Copa em abril de 2013. O Comité foi fundamental na
elaboração do relatório final que encontrou muitas violações de direitos e inconsistências na
aplicação de políticas governamentais; b) provocou, em conjunto com os moradores locais, uma
série de reuniões com os representantes do governo (assistentes sociais e advogados)
encarregados de remover a população que estava morando em locais onde os terminais
integrados eram programados para facilitar mobilidade e acesso à Arena para apoiar a
negociação de direitos; 3) realizou um encontro dos quatro comitês do Nordeste (Natal,
Fortaleza, Recife e Brasília) que chamaram “Legados e Relegados da Copa do Mundo: quando
o direito à cidade é violado” no período de 29 de novembro ao 01 de dezembro de 2013,
reservado, num hotel, e sem que a imprensa percebesse qualquer relevância, noticias apenas
aparecendo em blogs de pessoas próximas ao evento; 4) conseguiu apoio internacional para
publicizar o descaso com os atingidos, usando a imagem de uma etiqueta de compras com o
dizer “Nós valemos mais” e realizar outras ações a favor da população; 5) divulgou a produção
fílmica de seus integrantes9 ; 6) provocou a vinda da relatora especial da Organização das
Nações Unidas para o direito à Moradia Digna, Raquel Rolnik, para chamar atenção à violação
de direitos aos que estavam perdendo as suas casas, e, neste caso, receber maior cobertura
jornalística, e, apenas para encerrar esta lista incompleta, 7) acompanhou o dia a dia, e
especialmente as reuniões semanais, dos atingidos no loteamento São Francisco, os quais
continuam numa intensa negociação para a ampliação do valor estabelecido para a sua
indenização, já que não houve contemplação de novos espaços de moradia para eles.
9 Filme Despejo #5 Loteamento São Francisco, realizado por várias organizações – Coque(R)existe,
Comitê, FAGES, Direitos Urbanos, Najup, etc. (https://www.youtube.com/watch?v=-JXSrkHifrI), Filme Gol Contra, realizado pelo coletivo Copa Favela, (https://www.youtube.com/watch?v=NPLlcK0XpXM).
Mas no tempo corrido quase todo este novo “barulho” dos residentes locais e dos que os
apóiam é ensurdecido pelas expectativas públicas cada vez mais intensivamente divulgadas na
mídia, sobre as qualidades dos times de futebol e o desempenho dos jogadores, sobre os
acidentes nas construções atrasadas (Maracanã, Itaquera, Manaus, Curitiba), sobre os problemas
de mobilidade urbana que parecem que serão ainda insolúveis, apesar da intensificação das
obras da Copa que possam contribuir para intensificar os seus ritmos de implantação. O próprio
Portal da Copa desenha cartões verdes e cartões vermelhos para que todos saibam que alguns
objetivos não estão conseguindo ser alcançados, o que cria um clima de atenção às obras mais
do que às pessoas que estão sendo atingidas por elas. As falhas nas construções provocam
comentários sobre a credibilidade dos construtores e de qualidade do seu trabalho (muitas vezes
dizendo que o cronograma apertado é uma desculpa, pois elas não se interessam mesma na
qualidade, por estarem visando o lucro). Esta atenção à obra, por mais que provoque uma
satisfação nos que sentem que têm consciência crítica e falam contra os “aproveitadores” dos
grandes orçamentos das grandes obras, também cria um desvio do olhar no qual os diretamente
atingidos continuam pouco percebidos.
Neste interregno, no Recife, os governantes perceberam uma necessidade de melhor
responder aos que estavam sendo removidos pelos planos não somente da Copa do Mundo
FIFA, mas da renovação urbana e remoções populares em geral (Ver SCOTT, 1996). A
Secretaria de Defesa Social (SDS) é um dos setores mais beneficiados pelas exigências de
segurança, e a Copa é uma oportunidade para a aquisição de enormes quantidades de materiais e
realização de qualificações para poder construir Centros de “surveillance” moderníssimos,
designados de Centros de Comando e Controle, que são capazes de acompanhar a população em
todos os espaços de maior movimentação, aparelhados com câmeras e intercomunicativos. Não
somente isso, mas também o funcionamento precário de um grupo de arquitetos, assistentes
sociais na Secretaria de Cidades e advogados da Procuradoria Geral do Estado, que
terceirizavam toda a notificação individualizada sobre desapropriações de casas (uma medida
que não se chamaria de improvisada e sim de taticamente distanciadora), formaram uma nova
Secretaria Executiva de Desapropriações na Procuradoria e elaboraram um manual de
procedimentos para desapropriações10
. Ou seja, no tempo corrido, se não está sendo possível
10 A JusBrasil, que divulga informações sobre o setor jurídico no internet, reportou no dia da criação e posse em 2012 que as palavras da Secretaria empossada, Analúcia Cabral, tiveram o seguinte conteúdo naquela ocasião:
As unidades de trabalho vão cuidar dos laudos de avaliação dos imóveis, das negociações com os proprietários e do acompanhamento dos processos de desapropriação no Judiciário. “Há um esforço concentrado para resolvermos de 80% a 90% das desapropriações relacionadas às obras em curso neste ano, deixando as áreas liberadas para execução e
conclusão dos projetos nos próximos dois anos”, pontuou Analúcia. Disponível em: http://pge-pe.jusbrasil.com.br/noticias/3122163/secretaria-de-desapropriacoes-toma-posse. Acesso em: 05 abr. 2014.
resolver os problemas dos atingidos, pelo menos está sendo possível aparelhar o Estado com
uma organização mais eficiente para lidar com os problemas (estes e outros problemas). Resta
ver se isso vai possibilitar soluções mais justas ou soluções mais sistematizadamente injustas
para atingidos de grandes obras!
No tempo corrido, então, o governo entra em peso para continuar negociando uma
reterritorialização que favorece os consórcios. Os consórcios insistem na intensificação das suas
obras sob o olhar de observadores técnicos internacionais que os criticam e os ordenam para
obedecer ao planejado e sob o olhar de uma população reforçado por uma mídia, afinada com os
promotores do megaevento, preocupada com a imagem do país e seu desempenho em atingir os
objetivos de primeira ordem, os objetivos do megaevento, e não os de segunda ordem, da
população atingida por ele.
As construtoras do setor imobiliário e os planejadores da Cidade da Copa operam bastante,
mas num relativo silêncio neste período. As primeiras trabalham visivelmente com a venda das
unidades residenciais em lugares com nomes simbolicamente bucólicos e ecológicos para
reforçar o processo que alguns chamam da “gentrificação” do Oeste da Região Metropolitana,
consagrada como nova área de expansão pelos planejadores governamentais. É mais difícil
perceber as etapas e o andamento da realização da Cidade da Copa, talvez num processo de
reservar à etapa das novas construções ao mesmo consorcio que construiu a Arena (afinal, são
trinta anos, contratualmente), talvez num processo precário de aplicar políticas de renovação
digital, eletrônica, sanitária e inteligente (numa palavra; smart) com uma equipe que ainda
encontra dificuldades na grande tarefa de renovação do centro, dificultando a virada da atenção
para o Oeste da RMR.
Alguns residentes atingidos despertam tardiamente para a urgência de ampliar a visibilidade
das suas perdas e negociar um futuro, que está sendo moldado intensivamente pelo presente.
Clamam por alguma solução e encontram quem apóia entre os movimentos sociais, mas mesmo
assim vão se dispersando quase aleatoriamente enquanto os seus pleitos jurídicos se resolvem
lenta e desfavoravelmente. Muitos dos mais velhos adoeceram por verem as casas que
construíram junto com os seus pais e outros familiares serem destruídas pelas máquinas e
levadas pelas caçambas do governo. Descobriram que no caminho de virar “mitigados” o
processo de desenvolvimento pós-evento não os inclui. Ainda parece inevitável uma enorme
perda de patrimônio, de solidariedade, de vizinhança e de saúde, enquanto a nação aposta numa
hora de fama momentânea e de orgulho fabricado pela mídia e pelas construtoras de obras
admiráveis.
Encontra-se o manual no seguinte endereço: http://www.unuhospedagem.com.br/pge/documento/imagens/130925142246_p_MANUAL_DE_PROCEDIMENTOS_25.09.13.pdf
O tempo corrido da execução das obras é um período quando os conflitos e resistência são
muito marcados, pois os cronogramas de realização estão sob monitoramento oficial e a
população atingida recebe pressão direta, sendo forçada a se deslocar, a receber indenizações, a
simplesmente sair, a depender do que foi planejado (ou não planejado) no período anterior.
Conflitos são abertos e tenta-se forçar negociações e mudanças, mesmo em condições de
desvantagem. Acusações mútuas ocorrem, e operam mais intensivamente as táticas de desmonte
da moralidade e legitimidade da população mitigada que são comuns a grandes obras:
desmoraliza-se a população atingida pelos esforços de se defenderem; alcançados os objetivos
de primeira ordem e sendo parabenizados pelo fato, procede-se a um abandono planejado e à
utilização de materiais e procedimentos inferiores no atendimento às necessidades deles; e
enfrentam uma metamorfose institucional que resulta numa troca constante dos interlocutores
com os quais os inadequadamente mitigados possam lidar.
CELEBRAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO/EVITANDO A MITIGAÇÃO: O TEMPO DA
FUGA
A Copa do Mundo FIFA 2014 não se realizou ainda, então lidar com este terceiro tempo da
celebração do alcance dos objetivos de primeira ordem não pode se embasar mais na observação
do processo no Recife. Certamente muita coisa, mesmo de primeira ordem, vai ficar para ser
feita – mobilidade urbana, acabamentos em muitas obras, obras precariamente inauguradas que
possuem grandes setores ainda a serem construídos, etc. Assim, esta parte final somente pode
ser especulativa, e o parágrafo anterior já sinalizou as expectativas. Basta repetir, que ao
alcançar os objetivos delineados no planejamento, os idealizadores operam um processo de
instalar um tempo de fuga dos compromissos negociados durante o período de execução,
percebidos como custos desnecessários da obra completada, ao mesmo tempo em que
estabelecem a continuidade dos seus projetos de desenvolvimento, associando-os ao evento
realizado. Ou seja, simultaneamente investem em terminar detalhes das suas obras, e, ainda
mais, partir para novas obras. No caso do Recife, paira a grande dúvida sobre a capacidade do
setor imobiliário promover uma ocupação significativa dos territórios garantidos para ele pelo
processo da Copa, e se os investimentos na Cidade da Copa realmente ocorrerão quando o
período de investimentos excepcionalmente intensivos acaba; e se a própria Arena “multiuso”
terá uma funcionalidade nas esferas de futebol e de entretenimento e espetáculos em geral.
Ao mesmo tempo é mais fácil imaginar algumas coisas. Deve ocorrer o prolongamento cada
vez maior da resolução dos casos de indenização que ainda restaram na justiça depois da Copa.
Deve ocorrer uma continuada troca de setores do governo e da justiça com os quais interagir
para receber essas indenizações e outraa recompensas. Como ficará o apoio do Comitê Popular
da Copa quando não houver mais Copa? Depois da Copa há novos atores, detentores do
desenrolar do traçado do novo futuro dos territórios reforçados e recriados pela Copa e pelas
outras obras em andamento, e a precariedade da situação dos mitigados - vistos como “quem já
recebeu o deles”-pode os remeter a uma condição ainda mais inferior àquela que essa população
sofreu durante o processo de execução de tempo corrido, ou que já teve antes de aparecer o
megaevento na sua vida. Serão claros exemplos da importância política do lema do comité para
uma moradia digna da ONU para atingidos que perdem sua moradia por alguma ação
governamental: “que os atingidos sempre tenham pelo menos as mesmas condições, senão
melhores, de moradia que tinham antes”. É um dos princípios mais desrespeitados
internacionalmente em ações de desenvolvimento que atingem moradores locais. O período da
fuga (divulgado como período de desenvolvimento de novos projetos relacionados com o que
atingiu os seus objetivos de primeira ordem) é um período ou de desmerecer o pleito dos
mitigados, ou de invisibilizar totalmente este pleito. Investe-se em respostas que levam à
qualidade inferior ao que foi acordado nas suas novas moradias e trajetórias de vida, mudando
os interlocutores institucionais de modo que fique difícil de entender com quem se deve
dialogar para cobrar o que foi (ou devia ter sido) prometido. Os mais loquazes dos que
reivindicam podem simplesmente ser incorporados em tarefas burocráticas que desviam a sua
atenção de questões mais prementes para a mitigação de danos. A accountability prevista nas
ações mitigadoras (desde o início muito fracas no caso da Copa no Recife) para a população
atingida se torna ainda mais imprecisa. O tempo de fuga ofusca a possibilidade de ter um tempo
para eles, e o seu futuro é inextricavelmente associado ao fato de terem estado no caminho do
projeto cujo planejamento nunca os contemplava adequadamente.
TEMPO E CONTROLE
Voltando às questões postas no início do trabalho, percebe-se que no controle do uso do
tempo se constrói um poderoso mecanismo de manutenção e aprofundamento de desigualdades
em projetos de megaeventos. Silencia-se para trabalhar com os mais próximos no tempo técnico
do planejamento. O trabalhar ocorre nos bastidores de um planejamento que reifica alianças
entre operadores acostumados a organizar os seus esforços em torno de projetos que são
financiáveis ou que são catalizados por grandes projetos de investimento com determinados
parceiros, e que raramente respeitam direitos adquiridos dos que estejam no caminho do alcance
de metas definidos como prioritários pelos planejadores. O tempo técnico é um tempo longe dos
holofotes, e um tempo quando não se inclui populações cujos meios de vida e histórias de
construção de patrimônio material e imaterial não são considerados como relevantes para o
alcance das metas. Bem ou mal planejado, quando se entra no período de execução pós-anuncio
formal, o esquema de exclusão da população se torna mais presente e mais visível e a população
se organiza de acordo com as suas possibilidades de organização e a qualidade dos que a
apoiam, mas sempre no contexto onde o tempo corrido em obediência a um cronograma
anunciado será invocado para tratar de uma forma bastante leviana as demandas da população
atingida. O barulho desta população, que antes nem fazia barulho, agora é sistematicamente
silenciado com precárias coberturas jornalísticas, com o esvaziamento de espaços de
interlocução através do não comparecimento a estes espaços, ou ao uso destes espaços para
acrescentar detalhes necessários para resolver problemas, deliberadamente, ou não, prolongando
o período de não resposta às demandas da população que precisa ser mitigada, bem como
apresentando justificativas para o cálculo dos baixos valores através de uma manipulação de
índices cujo controle está nas mãos do governo. Quando chega no tempo de fuga, a população
atingida enfrenta dois processos de desmoralização: o primeiro é a veiculação parcial de
informações declarando que ela foi mitigada como se fosse um beneficio recebido por ela, e o
segundo, uma evitação de diálogo porque a questão não está mais num tempo premente de
resolução, já que o megaevento se realizou, e agora as pendências passaram para outro setor, e
depois para outro, e depois para outro.
Relembrando os autores discutidos no início deste trabalho, especialmente Elias (1997)
Bourdieu (1989) e Franch (2004), o controle do tempo e da sua percepção é um mecanismo
seguro de exclusão de uma parcela da população atingida por megaeventos. Este é o caso dos
moradores agricultores das proximidades da APA onde a Arena foi construída, de comerciantes
e residentes de Guadalajara na estrada duplicada que leva à arena, do Loteamento São
Francisco, de comerciantes na Avenida Belmiro Correia cujos estabelecimentos foram
modificados, da comunidade de Cosme e Damião e da comunidade do Coque, estes últimos
tendo sido expulsos em nome da ampliação de terminais integrados que facilitam a mobilidade
de quem quer chegar na Arena. Tudo em tempo recorde para uma Copa fazer bonito para
construtores, donos de imobiliárias, agentes de turismo, funcionários públicos em setores de
vigilância e controle da população, enfim, a cidade e o país visíveis!
REFERÊNCIAS CITADAS
ADAM, Barbara. Time and social theory. Cambridge, UK: Polity Press, 1990.
ARAÚJO, Emília A Política de Tempos: Elementos para uma Abordagem
Sociológica, Revista Política e Trabalho, 2011, no. 34, 19-40.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, 1989.
CURI, Martin. A disputa pelo legado em megaeventos esportivos no Brasil. In: Megaeventos, Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, jul/dez, 2013, ano 19, n. 40.
ELIAS, Norbert. Du temps. Lisboa: Difel, 1997.
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric Deporte y ocio en el proceso de la civilización. (2a. edição, 1a. reimpressão) México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
FRANCH, Mónica. Tempos, contratempos e passatempos. Tese (Doutorado em Antropologia),
UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
HARVEY, David. The condition of postmodernity. Oxford: Blackwell, 1989.
OLIVEN, Ruben; DAMO, Arlei. O Brasil no horizonte dos megaeventos esportivos de 2014 e
2016: sua cara, seus sócios e seus negócios, Megaeventos, Revista Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, jul/dez, 2013, ano 19, n. 40.
SCOTT, Parry. Remoção Populacional e Projetos de Desenvolvimento Urbano. In: Julio Cézar
dos Santos; Wellington Alves de Castro. (Org.). Encontro Nacional de Estudos Populacionais X
Vinte Anos da Abep, 10. Anais. 1ed.Caxambú: ABEP, 1996, v. 2, p. 813-834.
______. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de Descaso Planejado. Recife: Editora Universitária, UFPE, 2009.
______. Descaso planejado: uma interpretação de projetos de barragem a partir da experiência
da UHE Itaparica no rio São Francisco. In: Andrea Zhouri. (Org.). Desenvolvimento, reconhecimento de direitos e conflitos territoriais. 1ed.Brasília: ABA, 2012, v. 1, p. 122-146.
TIME & SOCIETY, journal, Sage publication, (tas.sagepub.com)
VAINER, Carlos; ARAUJO, Frederico. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento
regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992.
Resumo
DISPUTAS EM DIFERENTES TEMPOS NA CONSTRUÇÃO DA ARENA
PERNAMBUCANA PARA A COPA DO MUNDO: PLANEJANDO, EXECUTANDO, E
MITIGANDO
A construção da arena pernambucana, estádio de futebol e de multieventos, para a Copa do
Mundo no município de São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife, deflagrou uma
seqüencia de ações articuladas de planejamento, execução e mitigação, característica geral de
grandes obras. A designação de uma porção do espaço urbano como destino de um Grande
Projeto de Investimento opera uma ressignificação do tempo vivido, pelos seus planejadores e
executores, e pelos que aí residem historicamente. Observação in loco, diálogos com agentes
em situações diferentes, acompanhamento de negociações e manifestações mostram a
multiplicidade de stakeholders na operação. Foca nas disputas e negociações sobre futuras
idealizadas. Identifica-se uma hegemonia das lógicas temporais da implantação de grandes
obras, iniciadas com um tempo técnico, de intensa preparação dos idealizadores e de esparsa
comunicação com os residentes, que prosseguem com a vivência cotidiana do espaço habitado.
Neste tempo os conflitos e resistências estão pouco evidentes, pois os planejadores realizam o
seu trabalho com uma equipe de especialistas extra-locais que projetam o espaço urbano de
acordo com a sua visão e expectativas de um futuro percebido como melhor e de renovação para
quem eles acreditam que possa aproveitá-lo. Residentes e pessoas que estão nas áreas a serem
atingidas apenas ocasionalmente sabem alguma coisa sobre os planos, por via de pessoas
informadas sobre os processos de planejamento, mas não parecem ser reais e próximos. A
execução da obra ocorre num tempo corrido em precárias condições de diálogo, a atenção dos
idealizadores/executores voltando para um futuro muito próximo. Desperta os residentes
atingidos para a urgência de ampliar a visibilidade das suas perdas e negociar um futuro, que
está sendo moldado intensivamente pelo presente. Os conflitos e resistência são muito marcados
neste período, pois os cronogramas de realização estão sob monitoramento oficial e a população
atingida recebe pressão direta, sendo forçada a se deslocar, a receber indenizações, a
simplesmente sair, a depender do que foi planejado (ou não planejado) no período anterior.
Conflitos são abertos e tenta-se forçar negociações e mudanças, mesmo em condições de
desvantagem. Acusações mútuas ocorrem. Ao alcançar os objetivos delineados no
planejamento, os idealizadores operam um processo duplo de instalar um tempo de fuga dos
compromissos negociados durante o período de execução, percebidos como custos
desnecessários da obra completada, que também implica em uma troca dos atores relevantes na
administração cotidiana do espaço para enquadrar novos atores, detentores do desenrolar do
traçado do novo futuro dele, aparentemente diferentes que os atores que planejaram e
executaram a obra. Neste período acirram-se as práticas desenhadas a desmerecer o pleito dos
mitigados, questionando a sua inteligência, investindo quantias menores em trabalhos de
qualidade inferior ao que foi acordado, mudando os interlocutores institucionais de modo que
fique difícil de entender com quem se deve dialogar para cobrar o que foi (ou devia ter sido)
prometido, ou simplesmente incorporando algumas pessoas em tarefas burocráticas que desviam
a sua atenção de questões mais prementes para a mitigação de danos. A accountability prevista
nas ações mitigadoras para a população atingida se torna mais imprecisa e a fuga da
possibilidade de ter um tempo para eles, cujo futuro é inextricavelmente associado ao fato de
terem estado no caminho do projeto.
Palavras Chaves: Grandes obras, Copa do Mundo, atingidos, planejamento, tempo social
DISPUTES AND DIFFERENT TIMES OF CONSTRUCTION OF THE PERNAMBUCO
ARENA FOR THE WORLD CUP: PLANNING, EXECUTING, MITIGATING
Thematic Session- AT2. Conflicts and resistance
Authors: Parry Scott, Dayse Amâncio dos Santos, Eduardo Araripe Souza, Alice Mello
Programa de Pós-Graduação em Antropologia- UFPE/FAGES.
The construction of the Pernambuco arena, a soccer and multievent stadium for the world
cup in the municipality of São Lourenço da Mata, Recife Metropolitan Area, brought on a
sequence of articulated acts of planning, execution and mitigation, characteristic of large
projects. Designating a portion of urban space as a destination for a large investment
project changes meanings of lived time, both for planners and executors, and for historical
residents. In loco observation, dialogues with diverse agents, accompanying negotiations
and protests show that there are many stakeholders. Disputes and negotiations about
idealized futures are the focus of the work. There is a hegemony of temporal logic of the
implantation of large projects, begun as a technical time, of preparation by those who
work out the ideas, with sparse communication with residents. The residents carry on
their daily life in the communities in which they live. During this time conflicts and
resistance are not very evident since planners do their Jobs with groups of extra-local
specialists who project for an urban space in accord with their views and expectations of a
future seen as better, as a renovation for those whom they believe will be able to take
proper advantage of the future they foresee. Residents and other people around the
impacted areas only occasionally learn something about these plans by way of a few people
who are well informed about planning processes, but such plans seem very unreal and
distant. This time is followed by an accelerated time of execution, in precarious conditions
of dialogue since the administrators and executors are looking at a very near future.
Impacted residents become aware of the urgent need to increase the visibility of their
plight and losses, needing to negotiate a future that is being molded by the present.
Conflicts and resistance are much more marked in this period since the timetables are
being officially monitored. Impacted populations suffer direct pressure, being forced to
dislocate, to receive indemnifications, or simply to abandon the space, depending on how
these actions were planned (or not planned) in the previous period. Conflicts are open,
attempts to force negotiations are made, even in disadvantaged conditions. Mutual
accusations abound. The final time is a time of flight from the promises negotiated earlier,
which now are seen as unnecessary costs of a finished Project. During this time relevant
actors are changed in daily administration of space, opening slots for new actors who
control the unraveling of a new way to the future, at least in appearance different actors
form those who planned and built the project. In this period there is an intensification of
practices that have the intention of denying the importance or value of the demands of the
mitigated population. Their intelligence is questioned, lower investments are made
resulting in poorer quality services for that population than was agreed upon, institutional
actors are changed in a way which makes it hard to understand with whom you should
talk to present demands for what was (or should have been) promised, or simply some
people are incorporated into carrying out beaurocratic tasks that distract their attention
from the principal demands of mitigation of losses. The accountability foreseen in
mitigating actions for impacted population becomes more imprecise and the flight from a
time for the impacted population becomes more impossible. There future is inextricably
associated to their having been in the way of a large project.
Key Word: Large Projects, World Cup, Megaevents, development, Social Time,