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51 Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial Aspectos moleculares da anemia falciforme Molecular aspects for sickle cell anemia Gentil Claudino de Galiza Neto 1 Maria da Silva Pitombeira 2 unitermos key words resumo No presente artigo abordaram-se vários aspectos relacionados à natureza molecular da anemia falciforme, desordem hematológica de caráter hereditário que acomete expressivo número de indivíduos em várias regiões do mundo. As pesquisas realizadas em torno desta patologia da hemácia, ao longo de quase um século, a partir de 1910, cooperaram para a criação de um novo e importante segmento da ciência, denominado biologia molecular. A descoberta dos polimorfismos da mutação (GATGTG) no gene que codifica a cadeia β da hemoglobina, originando diferentes haplótipos da doença, permitiu um melhor e mais amplo conhecimento em torno da heterogeneidade clínica nos pacientes falcêmicos. Analisando a hemoglobina na sua estrutura normal e mutante, sua produção e evolução, pode-se ter um entendimento mais completo da fisiopatologia desta doença e da sua complexidade clínica. Anemia falciforme Hemoglobinopatia Globina β S Haplótipos abstract The present article dealt with various aspects related to molecular nature of sickle cell disease (SCD), a heritable hematology disorder that attacks a great number of people in different regions of the world. Researches done on red cell patology, in approximately half a century, starting since 1910, cooperated to gave origin a new branch of science called molecular biology. The discovery of mutation polymorphism (GAT GTC) in the gene that codifies β globin chain, give origin to different illness haplotypes, permitted a better and great knowledge about the clinic heterogeneity of the patients. Analysing hemoglobin in its normal and mutation structure as well as in its productions and evolution, one can have a complete understanding of the illness phisiopathology and its clinical complexity. Sickle cell anemia Hemoglobinophatie β S globin Haplotypes 1. Médico patologista clínico do Serviço de Hematologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). 2. Professora titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Ceará. Trabalho realizado junto ao Departamento de Clínica Médica da UFC. assintomáticas, a formas incapacitantes ou com alta taxa de mortalidade, têm sido fonte de inúmeras pes- quisas há longo tempo. A substituição da base nitro- genada timina (T) por adenina (A), ocasionando a subs- tituição do aminoácido ácido glutâmico por valina, na posição seis da cadeia β, é a mesma para todo pacien- te. A polimerização da hemoglobina S (HbS) e a falcização das hemácias são extremamente bem conhe- cidas. As variações das condições climáticas, sociais, econômicas e de cuidados médicos contribuem para esta diversidade, mas não explicam todo o seu con- texto (15). Introdução No decorrer dos quase cem anos de estudos relacio- nados à anemia falciforme, grandes progressos foram realizados no conhecimento desta doença. Como re- sultado de todos estes esforços, criou-se um novo cam- po de estudo das ciências, a biologia molecular. De posse desta poderosa ferramenta, passou-se a desven- dar a natureza genética de inúmeras patologias e/ou microorganismos potencialmente patogênicos que acometem a humanidade. As várias formas de apresentação clínica dos pacien- tes portadores de anemia falciforme, em diferentes lo- calidades do mundo, variando de formas leves, quase Recebido em 10/09/02 Aceito para publicação em 23/05/02 Rio de Janeir o, v. 39, n. 1, p. 51-56, 2003 ARTIGO DE REVISÃO REVIEW ARTICLE

Hemoglobina - Anemia Falciforme

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Jornal Brasileiro de P

atologia e Medicina Laboratorial

Aspectos moleculares da anemia falciforme

Molecular aspects for sickle cell anemia

Gentil Claudino de Galiza Neto1

Maria da Silva Pitombeira2

y

unitermos

key words

resumoNo presente artigo abordaram-se vários aspectos relacionados à natureza molecular da

anemia falciforme, desordem hematológica de caráter hereditário que acomete expressivo

número de indivíduos em várias regiões do mundo. As pesquisas realizadas em torno desta

patologia da hemácia, ao longo de quase um século, a partir de 1910, cooperaram para a

criação de um novo e importante segmento da ciência, denominado biologia molecular. A

descoberta dos polimorfismos da mutação (GAT→GTG) no gene que codifica a cadeia β da

hemoglobina, originando diferentes haplótipos da doença, permitiu um melhor e mais amplo

conhecimento em torno da heterogeneidade clínica nos pacientes falcêmicos. Analisando a

hemoglobina na sua estrutura normal e mutante, sua produção e evolução, pode-se ter um

entendimento mais completo da fisiopatologia desta doença e da sua complexidade clínica.

Anemia falciforme

Hemoglobinopatia

Globina βS

Haplótipos

abstractThe present article dealt with various aspects related to molecular nature of sickle cell disease

(SCD), a heritable hematology disorder that attacks a great number of people in different regionsof the world. Researches done on red cell patology, in approximately half a century, starting since1910, cooperated to gave origin a new branch of science called molecular biology. The discovery

of mutation polymorphism (GAT →GTC) in the gene that codifies β globin chain, give origin todifferent illness haplotypes, permitted a better and great knowledge about the clinic heterogeneity

of the patients. Analysing hemoglobin in its normal and mutation structure as well as in itsproductions and evolution, one can have a complete understanding of the illness phisiopathology

and its clinical complexity.

Sickle cell anemia

Hemoglobinophatie

βS globin

Haplotypes

1. Médico patologista clínico doServiço de Hematologia daUniversidade Federal do Ceará(UFC).2. Professora titular doDepartamento de Clínica Médicada Universidade Federal doCeará.Trabalho realizado junto aoDepartamento de Clínica Médicada UFC.

assintomáticas, a formas incapacitantes ou com altataxa de mortalidade, têm sido fonte de inúmeras pes-quisas há longo tempo. A substituição da base nitro-genada timina (T) por adenina (A), ocasionando a subs-tituição do aminoácido ácido glutâmico por valina, naposição seis da cadeia β, é a mesma para todo pacien-te. A polimerização da hemoglobina S (HbS) e afalcização das hemácias são extremamente bem conhe-cidas. As variações das condições climáticas, sociais,econômicas e de cuidados médicos contribuem paraesta diversidade, mas não explicam todo o seu con-texto (15).

Introdução

No decorrer dos quase cem anos de estudos relacio-nados à anemia falciforme, grandes progressos foramrealizados no conhecimento desta doença. Como re-sultado de todos estes esforços, criou-se um novo cam-po de estudo das ciências, a biologia molecular. Deposse desta poderosa ferramenta, passou-se a desven-dar a natureza genética de inúmeras patologias e/oumicroorganismos potencialmente patogênicos queacometem a humanidade.

As várias formas de apresentação clínica dos pacien-tes portadores de anemia falciforme, em diferentes lo-calidades do mundo, variando de formas leves, quase

Recebido em 10/09/02Aceito para publicação em 23/05/02

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Com a primeira descrição da existência de duas mutaçõesdistintas para a HbS, detectadas pela ação da enzima de restri-ção Hpa I no sítio de 5kb a 3’ do gene β, estabeleceu-se oconceito de origem multicêntrica para esta doença (13). Estu-dos subseqüentes definiram os três principais haplótipos paraa anemia falciforme: República Centro-Africana (CAR), Benine Senegal, originados de regiões distintas do continente afri-cano (19), e um outro haplótipo, também de origem inde-pendente, foi descrito em populações provenientes da penín-sula arábica e da Índia (14). A variabilidade genética em tornoda mutação permitiu uma melhor compreensão daheterogeneidade clínica da doença, além de ter importânciapara o estudo antropológico (23). O presente estudo revisa osprincipais aspectos moleculares relacionados à anemia falci-forme, esperando contribuir para um melhor e mais amploentendimento de alguns aspectos desta doença.

Hemoglobina

A hemoglobina é a proteína respiratória presente no in-terior dos eritrócitos dos mamíferos que tem como principalfunção o transporte de oxigênio (O2) por todo o organismo.A sua estrutura (Figura 1) é de uma proteína esferóide,globular, formada por quatro subunidades, compostas dedois pares de cadeias globínicas, polipeptídicas, sendo umpar denominado de cadeias do tipo alfa (alfa-α e zeta-ξ) e ooutro de cadeias do tipo não-alfa (beta-β, delta-δ, gama-γ eepsílon-ε). Sua estrutura é quimicamente unida a um núcleoprostético de ferro, a ferroprotoporfirina IX (heme), que de-tém a propriedade de receber, ligar e/ou liberar o oxigênionos tecidos (5, 8). Cada cadeia polipeptídica da globina écomposta por uma seqüência de aminoácidos, tendo as ca-deias alfa 141 aminoácidos e as cadeias não-alfa, 146. Ascombinações entre as diversas cadeias de proteínas dão ori-gem às diferentes hemoglobinas presentes nos eritrócitosdesde o período embrionário (intra-uterino) até a fase adul-ta, produzidas no decorrer das distintas etapas do desenvol-vimento humano (3).

A gênese das cadeias globínicas é regulada por agrupa-mentos (clusters) de genes nos cromossomos 11 e 16 (Figu-ra 2), na ordem cronológica em que são expressos (sentido5’ → 3’), nos períodos embrionário, fetal e adulto, quandodiferentes grupos de genes são ativados ou suprimidos e di-ferentes cadeias globínicas são sintetizadas independente-mente. As diferentes combinações das cadeias globínicaspossibilitam o surgimento de hemoglobinas distintas, e paraque o tetrâmero funcional seja formado é necessário umperfeito equilíbrio na produção destas cadeias (12, 21).

No braço curto do cromossomo 16, em um segmentode DNA de 35kb, localizam-se o gene zeta (ξ), que codifi-ca a cadeia ξ globínica, dois pseudogenes, (ψξ) e (ψα), eos genes alfa 1 (α1) e alfa 2 (α2), que, no ser humano,estão duplicados, devendo-se este fato provavelmente àduplicação gênica no decorrer do processo evolutivo. Es-tes genes duplos são responsáveis pela codificação das ca-deias globínicas alfa (11).

No cromossomo 11 localiza-se o complexo dos genesbeta, com uma extensão superior a 60kb, onde se obser-vam, no sentido 5’ → 3’, os genes epsílon-ε, gama glici-na-γG, gama adenina-γA, um pseudogene (ψβ) e os genesdelta-δ e beta-β (12).

No período embrionário (Quadro), os genes ativos pre-sentes nos eritroblastos, localizados no saco vitelino, pro-movem a produção da cadeia zeta (ξ), que, combinada àcadeia epsílon (ε), forma a hemoglobina Gower-1 (ξ2ε2);esta mesma cadeia zeta, combinada com a cadeia gama(γ), forma a hemoglobina Portland (ξ2γ2); quando ocorrea produção das cadeias alfa (α), estas se combinam com acadeia epsílon e formam a hemoglobina Gower-2 (α2ε2).

A produção das hemoglobinas embrionárias ocorre porum período de até três meses do início da evoluçãogestacional (18). Por grande parte da vida intra-uterinaprepondera a produção da hemoglobina fetal (HbF), de-vido ao incremento da produção das cadeias alfa e gamae à sua combinação (α2γ2), decaindo logo após os pri-

Figura 1 – Representação esquemática da cadeia β da hemoglobinaFigura 2 – Complexo do gene α no cromossomo 16 e complexo do gene β nocromossomo 11

Cromossomo 16

5’ ξ ψξ ψα α2 α1 3’

Cromossomo 11

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ção dos mais diferentes países. Esta doença surgiu nos paísesdo centro-oeste africano, da Índia e do leste da Ásia, há cercade 50 a 100 mil anos, entre os períodos paleolítico e mesolítico(17, 22). O fato que motivou a mutação do gene dahemoglobina normal (HbA) para o gene da hemoglobina S(HbS) ainda permanece desconhecido.

A primeira descrição na literatura médica (10) de um casoclínico de anemia falciforme deveu-se à observação dehemácias alongadas e em forma de foice no esfregaçosangüíneo de Walter Clement Noel, jovem negro, origináriode Granada (Índias Ocidentais), estudante do primeiro anodo Chicago College of Dental Surgery, admitido noPresbyteriam Hospital com anemia. Em 1917, Emmel obser-vou a transformação da hemácia na sua forma original,bicôncava, para a forma de foice, in vitro, e em 1922, o ter-mo anemia falciforme foi utilizado por Manson. Em 1927,Hanh e Gillepsie descobriram que a falcização dos eritrócitosocorria como conseqüência da exposição das células a umabaixa tensão de O2. Em 1947, Accioly, no Brasil, pela primei-ra vez havia sugerido que a falciformação ocorria como con-seqüência de uma herança autossômica dominante, mas sóem 1949, através dos trabalhos de Neel e Beet, é que sedefiniu a doença somente em estado de homozigose, sendoos heterozigotos portadores assintomáticos (9).

Ainda em 1949, Linus Pauling et al. demonstraram quehavia uma diferente migração eletroforética da hemoglobinade pacientes com anemia falciforme quando em compara-ção com a hemoglobina de indivíduos normais. Posterior-mente coube a Ingram (1956) elucidar a natureza bioquími-ca desta doença, quando, através de um processo defingerprint (eletroforese bidimensional associada comcromatografia), fracionou a hemoglobina e estudou os seuspeptídeos. Ficou caracterizado que a anemia falciforme eraocasionada pela substituição do ácido glutâmico por valinana cadeia β da hemoglobina, dando origem ao conceito dedoença molecular. Em 1978, com os estudos de Kan e Dozy,novo impulso foi dado ao estudo da HbS, para introduçãode técnicas de biologia molecular (17).

A simples substituição pontual de uma base nitro-genada, timina por adenina (GAT → GTT), no sexto códondo éxon 1 no DNA do cromossomo 11 (Figura 3), ocasionao surgimento de uma hemoglobina patológica (4). A tro-ca de bases nitrogenadas no DNA, ao invés de codificar aprodução (transcrição) do aminoácido ácido glutâmico,irá, a partir daí, determinar a produção do aminoácidovalina, que entrará na posição 6 da seqüência de aminoá-cidos que compõem a cadeia β da hemoglobina, modifi-cando sua estrutura molecular (3).

Galiza Neto & Pitombeira Aspectos moleculares da anemia falciforme

Tipo de Período preponderante Cadeiashemoglobina de síntese globínicas

Gower-1 Embrião/até 3º mês ξ2ε2de gestação

Portland Embrião/até 3º mês ξ2γ2de gestação

Gower-2 Embrião/até 3º mês α2ε2de gestação

Hb Fetal Feto/até 6º mês de vida α2γ2HbA2 Feto/vida adulta α2δ2

HbA Vida adulta α2β2

Representação dos diferentes tiposde hemoglobina de acordo com seuprincipal período de produção ecomposição de cadeia globínicaQuadro

meiros seis meses de vida. O gene da cadeia beta (β)globínica é expresso, com pouca intensidade, nas primei-ras seis semanas de vida fetal, mas a partir deste períodoocorre uma mudança (switch), quando a síntese de ca-deia γ é largamente substituída pela síntese de cadeia β,dando origem à produção da hemoglobina A (α2/β2). Omecanismo pelo qual esta mudança ocorre ainda é des-conhecido, parecendo dever-se ao estado de metilaçãodo gene, ou, ainda, ao acondicionamento cromossômicoou a outras condições que podem afetar ou influir na trans-crição genética (12).

A produção das cadeias delta (δ) tem seu início porvolta da 25ª semana da gestação, em concentrações re-duzidas, e nestes níveis permanece até o nascimento, au-mentando lentamente, estabilizando-se por volta do sex-to mês de vida em diante. Estas cadeias, quando ligadasàs cadeias alfa (α), darão origem à hemoglobina A2(α2/δ2) (15). A hemoglobina A está presente nos eritrócitosapós os seis meses iniciais de vida e por toda a fase adulta,sendo composta por dois pares de cadeias polipeptídicas:α2/β2. A distribuição proporcional das diferentes hemo-globinas nas hemácias do indivíduo a partir deste períodoficam assim definidas: HbA = 96%-98%; HbA2 = 2,5%-3%; eHbF = 0%-1% (8).

Anemia falciforme

É uma das doenças hematológicas herdadas mais comunsem todo o mundo, atingindo expressiva parcela da popula-

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A aparentemente simples troca de um único amino-ácido na composição da cadeia beta globínica ocasiona osurgimento de uma estrutura hemoglobínica nova, deno-minada hemoglobina S (onde a letra S deriva da palavrainglesa sickle, que em português traduz-se comofoice). A hemoglobina mutante (α2/βS

2) possui proprie-dades físico-químicas bastante diferentes da hemoglobinanormal devido à perda de duas cargas elétricas por molé-cula de hemoglobina (por causa da perda do ácidoglutâmico). Exibe ainda diferente estabilidade e solubili-dade, demonstrando uma forte tendência à formação depolímeros (Figura 4) quando na sua forma de desoxiemo-globina (3). Decorre daí uma série de alterações físico-químicas na estrutura da hemácia, ocasionando a defor-mação e o enrijecimento de sua membrana celular, concor-rendo para o surgimento do epifenômeno patológico queé a vasoclusão. Este fenômeno é responsável por toda aseqüência de alterações estruturais e funcionais nos maisdiversos órgãos e sistemas do paciente acometido (6).

A hemoglobina S no estado de baixa tensão do oxigêniosofre uma modificação na sua conformação molecular devi-do à presença do aminoácido valina, que interage com oreceptor fenilalanina (β-85) e leucina (β-88) na molécula ad-jacente de hemoglobina S (4). Esta interação de naturezahidrofóbica desencadeia a formação de polímeros (Figura4), compostos por 14 fibras de desoxiemoglobinas, enovela-das entre si, num processo denominado nucleação, que pro-gride com o alongamento e alinhamento de mais fibras, cri-ando uma estrutura multipolimérica, na forma de um eixoaxial no interior da célula. Está criado assim o mecanismo detransformação da clássica forma do eritrócito em uma novaestrutura celular no formato de foice (2).

A velocidade e a extensão da formação de polímerosno interior das hemácias depende primariamente de trêsvariáveis independentes: grau de desoxigenação, concen-tração intracelular de hemoglobina S e presença ou au-sência de hemoglobina F (2). Uma das conseqüências dapolimerização da HbS é a desidratação celular devida àsperdas de íons potássio (K+) e de água. Os principais me-canismos destas perdas ocorrem pela ativação excessivado canal de transporte dos íons potássio e cloro (K+Cl-),

estimulados pela acidificação, pelo edema celular (estecanal está muito ativo nos reticulócitos, onde a desidrata-ção desempenha papel importante na formação das célu-las densas) e pelo canal de Gardos, devido ao aumento daconcentração dos íons cálcio (Ca++) (4).

Outra importante alteração da hemácia na anemiafalciforme se deve à perda do seu poder deformatório, fatoque lhe impossibilita transpor o menor diâmetro dos capila-res da microcirculação. A perda da elasticidade da célula deve-se ao incremento da concentração de HbS intracelular, resul-tando no aumento da viscosidade no citosol, à polimerizaçãoda HbS e à rigidez da membrana (7). Estes fatores, associa-dos a uma maior adesão do eritrócito falcizado ao endotélio,mediada pelo complexo de integrina α4β1, trombospondina,fator de von Willebrand e fibronectina, favorecem a forma-ção de trombos na micro e na macrocirculação.

A ocorrência de vasoclusões, principalmente em pe-quenos vasos, representa o evento fisiopatológico deter-minante na origem da grande maioria dos sinais e sinto-mas presentes no quadro clínico dos pacientes com anemiafalciforme, tais como crises álgicas; crises hemolíticas; úl-ceras de membros inferiores; síndrome torácica aguda;seqüestro esplênico; priapismo; necrose asséptica defêmur; retinopatia; insuficiência renal crônica; auto-esplenectomia; acidente vascular cerebral, entre outros (4).

Haplótipos da mutação βββββs

É do conhecimento geral que os indivíduos são gene-ticamente diferentes e que algumas das diferenças entre

Figura 3 – Representação esquemática da mutação gênica responsável pelosurgimento da HbS

CROMOSSOMO 11 NORMAL

6º códon cadeia β → GAG → Ác. GLU

CROMOSSOMO 11 MUTANTE

6º códon cadeia βS → GTG → VAL

Figura 4 – Representação esquemática do processo de indução à falcização dashemácias pela polimerização da desoxiemoglobina diante da baixa concentração deoxigênio

O2

hipoxia

hemácia em forma de foice

polimerização

hemácia bicôncava

α

α

α

α

α

α

α

α

α

α

α

α

α

α

βs

βs

βs

βs

βs

βs

βs

βs

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βs

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βs

βs

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as pessoas representam mudanças genéticas patológicas.Entretanto, muito provavelmente, podem representar va-riações silenciosas no DNA. Tais variações, também desig-nadas como comuns ou neutras, são denominadas depolimorfismos do DNA (1).

O tipo de variabilidade mais comum no complexogênico das globinas alfa ou beta é aquele produzido porvariações de seqüências que alteram o sítio de reconhe-cimento de uma enzima de restrição. Estas alteraçõesocorrem aproximadamente a cada cem bases ao longodo genoma. O padrão de combinação dos sítiospolimórficos para qualquer cromossomo é chamado dehaplótipo (1). O primeiro polimorfismo associado ao geneβS foi descrito por Kan e Dozy, em 1978, no sítio para aenzima de restrição Hpa I localizado na posição 3’ dogene, seguindo-se novas descrições de outros sítios (Fi-gura 5) de polimorfismos de restrição (Mears et al., 1981;Antonarakis, 1982). Dezessete sítios polimórficos foramdescritos no complexo dos genes da globina alfa e maisde duas dezenas no complexo da globina beta (1). Adescoberta dos haplótipos do gene βS apresentou-secomo importante elemento de análise antropológica paraestudo das composições populacionais, bem como ele-mentos de estudo clínico, os quais podem fornecer da-dos preditivos acerca da evolução da doença e seu nívelde gravidade (20).

Cinco principais haplótipos têm sido relatados em di-ferentes regiões do mundo e são relacionados com países

ou áreas do continente africano ou próximo a este, estan-do ligados a grupos populacionais específicos, recebendoas denominações de acordo com os locais de sua origem:Benin, República Centro-Africana, Senegal, Camarões,Arábia Saudita e Índia (16). Inicialmente acreditava-se quea mutação do gene βS teria uma única origem, mas estu-dos posteriores evidenciaram origens independentes emultifocais para a doença (19, 23).

Estudos populacionais realizados por Lehmann eHuntsman (1974) no continente africano demonstraramimportantes diferenças na intensidade e na evolução clí-nica da doença acometendo pessoas da mesma regiãoafricana. Análises mais aprofundadas definiram que mu-danças em seqüências de bases nitrogenadas nos sítios,tais como a perda de (–) 158 bases em 5’ do gene γG,levavam ao incremento da produção de cadeia γG, resul-tando no aumento da concentração de Hb fetal, eisto determinava uma mudança da morbidade dospacientes (20).

Os haplótipos do gene βS têm papel importante naregulação variável da síntese da Hb Fetal, na relação finalentre as concentrações de HbS e HbF no adulto e na taxade redução da HbF durante a infância. A concentração deHbF está aumentada nos haplótipos Senegal e asiático (ára-be) e decresce nos haplótipos CAR e Benin, devido a umataxa de translação no sentido 5’ → 3’ e à substituição daHbF por HbS mais lenta nos dois primeiros do que nosdois últimos haplótipos (20).

Figura 5 – Principais haplótipos do complexo do gene βS, definidos pela ação de 13 enzimas de restrição (os Haplótipos)

Galiza Neto & Pitombeira Aspectos moleculares da anemia falciforme

Cromossomo 11

5,3,

ε

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Sítio

Haplótipo

CAR

Benin

Senegal

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Asiático

Hinc II Hind III Pvu II Hinc II Taq I Hinf I Ava II Hpa I Hind III Bam HIXmn I1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

γ γG A ψβ δ β

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Conclusão

O estudo dos haplótipos pode ser utilizado com dife-rentes objetivos: para a determinação da origem unicên-trica ou multicêntrica de uma mutação, para discriminareventos epistáticos (quando outros genes interferem naexpressão fenotípica do gene mutante) e para definir ocaminho de fluxo de um gene específico mutante. Quan-do os dados e informações estão suficientemente consoli-dados como no caso do cluster do gene β mutante, entãoos haplótipos podem ser úteis no estudo da origem e naevolução da raça humana (16). A importância dos hapló-tipos da mutação βS na evolução clínica dos pacientes comanemia falciforme foi determinada através das observa-ções quanto ao surgimento e à intensidade das complica-

ções de natureza orgânica e da curva de sobrevida dospacientes, sugerindo melhores prognósticos para os por-tadores dos haplótipos Senegal e árabe-indiano (Ásia) epior evolução clínica para os pacientes portadores doshaplótipos CAR e Benin (20).

Rever os aspectos moleculares da hemoglobinopatia SSpossibilita, portanto, uma melhor compreensão do surgi-mento da mutação do gene βS no mundo, as alteraçõesestruturais e funcionais na hemácia dela decorrentes, bemcomo um entendimento mais profundo dos aspectos clíni-cos envolvidos no curso da evolução heterogênea da do-ença, tornando mais claro o entendimento da existênciade diferentes intensidades de sinais e sintomas que se apre-sentam nos pacientes acometidos pela, aparentemente,mesma mutação gênica da anemia falciforme.

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Endereço para correspondênciaGentil Claudino de Galiza NetoHemoceAv. José Bastos 3.390CEP 60435-160 – Fortaleza-CETel.: (85) 433-4400e-mail: [email protected]

Aspectos moleculares da anemia falciforme Galiza Neto & Pitombeira