1.
— Prepara… Vai!
Vic achava que aquela seria uma sexta-feira
normal. Ou seja, horrível. Como toda a sua
vida. Primeiro aquele inferno de aula de educa-
ção física. Quem precisava saber dar camba-
lhota no plinto? Para que servia virar estrela? E
a coreografia com bolas, meu Deus? Qual era o
papel social da coreografia com bolas para
alguém que nunca seria ginasta? Será que uma
pobre menina da quinta série não podia ter a
coordenação motora de uma múmia entre-
vada? E de que adiantava ter bronquite, esco-
liose e pé chato, se nada disso a dispensava da
maldita educação física?
Primeiro, a humilhação da quadra, como
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sempre. Na hora da cambalhota, foi aquilo. A
professora lá:
— Prepara… Vai!
Eita, frase mais aterrorizante. Conforme che-
gava à ponta da fila, o coração ia acelerando,
acelerando, parecia que estava batendo no pes-
coço. Vic deu com a canela no plinto e caiu de
cara no colchão. Gargalhada geral, cara vermelha
cuspindo fiapos, mais gargalhada geral.
A estrela, então, nem se fala.
— Prepara… Vai!
Vic foi. As pernas, não. Estrela cadente. Gar-
galhada geral, joelho lanhado, mais gargalhada
geral. Faltava só a coreografia com bolas. Foram
os três minutos mais longos da vida de Vic: ela
tropeçou nos próprios pés, lançou de mau jeito
e a bola foi parar no ventiladorzão da quadra.
Chuva de retalho de bola. E gargalhada geral.
As malditas gargalhadas que ficavam horas
ecoando dentro da cabeça. Por que é que todo
mundo conseguia fazer essas idiotices, menos
ela? Vic olhou a turma chorando de tanto rir
dela e pensou: “Eu devia cobrar ingresso”.
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Depois da humilhação da quadra, a humi-
lhação do vestiário, como sempre. Ficar pelada
na frente das meninas, sem nada de peito nem de
bunda, com a pele esverdeada de tão branca,
quilômetros de pernas, umbigo para fora que
nem um repolho. Sempre tinha alguém que des-
cobria um defeito novo no corpo de Vic. Naquela
sexta, foi a Duda:
— Que perna cabeluda, argh! Não tem cera
em casa, não?
Nojentinha, essa Duda. A mais popular da
quinta série. E daí? E depois Vic ainda tinha que
ouvir aquela conversinha de menina: quem ficou
com quem na saída, como foi maneira aquela
cena do seriado, que máximo era o blog daquele
gato da novela, o que deu no teste da revista,
quem já tinha a sandália da moda, quem ia na-
quele festão imperdível. Vic não tinha nada para
falar. Não tinha nem vontade de falar.
Bom… Para dizer a verdade verdadeira, lá
no fundo, bem lá no fundo mesmo, às vezes,
muito às vezes, Vic tinha uma vontadezinha de
ter o que falar com as meninas, de ser ouvida,
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nem que fosse uma vezinha só na vida de alguém
virar para ela e perguntar: “Jura? E aí? Conta!”.
Mas essa vontade era tão fraquinha que passava
rápido e, para economizar tempo e energia, Vic
acabava achando as meninas todas umas idiotas.
Tudo porque Vic não ligava
para televisão nem para cinema,
nunca teve curiosidade nem de
folhear uma revista teen, não
saía à noite, e quem compra-
va suas roupas era a gover-
nanta — mesmo assim, só
quando sua mãe esbarrava
com ela no corredor de
casa, tipo uma ou duas
vezes por ano, e notava
suas camisetas furadas, es-
beiçadas e desbotadas. Ou
seja, sem saber nada sobre
moda e modismos, ela era
uma excluída. E o pior de
tudo: Vic ainda era “boca-
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virgem”, a única BV
da turma. Provavel-
mente, a única BV
da escola inteira —
incluindo o pré-es-
colar. Excluída era
pouco. Vic era a ex-
cluída das excluí-
das de todas as ex-
cluídas do universo.
Depois da humi-
lhação da quadra e da hu-
milhação do vestiário, a
humilhação da sala de aula, co-
mo sempre. Essa até que era mais fácil
de aturar: enquanto os professores falavam, era
só ficar quieta num canto, coisa muito simples, já
que ninguém puxava conversa com ela, mesmo. E
fazer cara de paisagem, enquanto alguém falava
de história ou de matemática, era uma moleza.
Duro eram as provas: não dormir em cima do
caderno na hora de estudar, guardar tudo aquilo
na cabeça durante uma noite inteirinha, lembrar
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no dia seguinte todas aquelas coisas que ela nun-
ca mais usaria na vida, adivinhar qual era a res-
posta certa… Que mania de inventar quatro res-
postas tão parecidas para uma pergunta só, e daí
se fosse a letra A ou a letra C? Para desespero de
sua mãe toda-poderosa, que torrava fortunas
com colégio e psicólogas, o diário de classe da
Vic estava sempre no vermelho.
Depois da humilhação da quadra, da humi-
lhação do vestiário e da humilhação da sala de
aula, tinha também a humilhação do Simplício,
como sempre. Tudo por causa do sábado e do
domingo, quando não havia aula. Vic até que
tentou ser legal com ele; afinal, não devia ser fá-
cil ter onze anos e um nome desses, o mesmo do
pai, do avô e do bisavô. Ela desconfiava que
esse nome era uma piada particular da família
dele, uma vingança que vinha passando de pai
para filho havia quatro gerações. E poderia até
ser amiga do garoto, se o tal do Simplício não ti-
vesse cismado com a cara dela. Sabe-se lá por
quê, ele enfiou na cabeça que Vic era o seu pri-
meiro e — ele tinha certeza absoluta — único
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amor. Com uma autoconfiança inabalável, ele
fazia tudo que diziam que as mulheres gosta-
vam: deixava flores, bombons e bichinhos de
pelúcia pelo menos uma vez por semana na car-
teira dela, entupia a caixa dela de e-mails e já
tinha até pintado “Vic eu te amo” no asfalto em
frente ao prédio da menina. Nada disso fez Vic
ficar com ele; para falar a verdade, Vic nem lhe
dizia oi, nem mesmo olhava para ele, e fugia de
Simplício como o vampiro do sol. Sempre que
falava com seus botões ou com as paredes, que
era só com quem Vic conversava, ela o chamava
de Simplício Suplício.
Naquela sexta, na saída da escola, Vic en-
controu um rolo de papel de onze metros e trinta
e sete centímetros coberto de “liga pra mim”,
estendido como um tapete do portão da escola
até o carro. E ainda teve que aturar o sorrisinho
besta do motorista: “Eita namoradim exage-
rado!”. Parecia mesmo uma sexta-feira normal.
Ou seja, horrível. Como toda a sua vida.
A única coisa que Vic gostava de fazer nos
seus dias horríveis era ler clássicos góticos. Para
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ela, o dia só começava à tarde, quando se tran-
cava no quarto e se jogava na cama com um li-
vro bem grosso cheio de criaturas sombrias e
um pratão coberto com fatias de manga e rode-
las de cebola — apesar de ela mesma achar ridí-
culo uma menina de quase doze anos, que mo-
rava de frente para a praia, gostar de se trancar no
quarto e se jogar na cama com um livro bem
grosso cheio de criaturas sombrias e um pratão
com fatias de manga e rodelas de cebola.
Mal começara a ler, bateram na porta. Co-
mo sempre.
— Vitória? — aquela vozinha de taquara
rachada.
— Eu, vó… — resmungou de má vontade,
sem a menor vontade de olhar na cara de dona
Mirtes.
— Já cheguei!
Como se fosse novidade. Todo dia, era só
Vic chegar da escola que dona Mirtes chegava
em seguida, para se meter na sua vida. Era sem-
pre a mesma conversa: que filho de pais separa-
dos é traumatizado, que com uma mãe desnatu-
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rada e um pai vagabundo ela estava estragada
para o resto da vida, que ela definharia tranca-
da no quarto lendo aquelas porcarias, que ela já
estava fedendo azedo de tanto comer cebola,
blablablá.
Está certo que alguém tinha que se meter na
sua vida; afinal, era para isso que servia família.
Se Vic fosse depender do distraído do pai, para
quem tudo sempre estava bem e a vida era bela…
Ou da superocupada da mãe, que só falava com
ela para reclamar da sua postura, criticar sua
roupa ou cobrar notas acima de quatro… Ou da
maluquete da mulher do pai, que usava um
monte de palavras compridas para tentar con-
vencê-la de que aquela vontade de se matar ou
de matar a família inteira era um jeito normal de
administrar a dor do crescimento e encontrar
seu espaço…
Dona Mirtes martelou a porta do quarto de
novo. Dessa vez, mais forte:
— Abre pra dar um beijo na vó, Vitória!
Que beijo, que nada. Vic sabia que dona
Mirtes queria era ver o que ela estava fazendo.
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E sabia também que a avó não a deixaria em paz
enquanto não vomitasse o seu discurso do dia.
Rendida, Vic levantou, se arrastou até a porta,
respirou fundo, virou a chave… E dona Mirtes
invadiu o quarto.
— Cebola com manga de novo, Vitória? Vo-
cê só come isso?
— Não. Também gosto de laranja com pi-
menta. E banana com molho inglês — respon-
deu Vic, tentando fazer a cara mais sem saco
que conseguiu.
Mas dona Mirtes não se abalava nunca e fez
que não reparou na grosseria.
— Assim você estraga o estômago, menina!
Já está fedendo de tanta porcaria que come!
Também, ninguém cuida! Se não fosse eu pra
tomar conta desta casa…
— Tem três empregadas tomando conta da
casa, mais o motorista.
— Empregada não é mãe, Vitória! Porque a
Cláudia gosta de esfregar na cara de todo mun-
do que tem uma carreira brilhante, que subiu na
vida, que manda e desmanda na siderúrgica, mas
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eu digo mesmo, pra quem quiser ouvir: ela é um
fracasso como esposa e mãe!
— Você já disse isso, vó…
— Digo e repito! A Cláudia só casou com o
vagabundo do Marcelo porque podia mandar
nele! Deu no que deu: um ano e meio de casa-
mento! Não sabe fazer um bife de panela! Não
prega um botão!
— Ela não come carne. E, se cair um botão,
ela joga a roupa fora e compra outra.
— Pare de defender sua mãe! Ela não mere-
ce! Nunca trocou uma fralda sua! Amamentar
então, nem pensar! Sabia que você nunca ma-
mou na vida, Vitória?
— Sabia, vó…
— Um crime! E por vaidade! Pro peito não
cair, vê se pode! Mãe desnaturada… É minha
filha, e por isso mesmo eu falo: mãe desnatura-
da! É por culpa dela que você ficou assim, trau-
matizada!
— Eu não sou traumatizada, vó… — boce-
jou Vic.
— Como não, Vitória? Essa sua mania de
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ficar o dia todo trancada no quarto, não faz um
exercício, não tem uma amiguinha! Vive lendo
porcarias de gente se matando!
— Não é porcaria de gente se matando. É
literatura gótica.
— É porcaria de gente se matando. Mas eu
entendo você, Vitória. Filhos de pais separados
são problemáticos. Eu vi no programa da Elisi-
nha Miranda.
Dona Mirtes não saía de casa sem assistir o
“Bom-dia com Elisinha”, toda manhã. Para ela,
era o melhor programa de televisão do mundo,
porque a Elisinha tratava de tudo que era impor-
tante na vida: dizia umas mensagens lindas de
morrer, dava receita, ensinava artesanato, falava
dessas doenças modernas, entrevistava artista,
mostrava como cuidar de marido e de filho. Bem
verdade que dona Mirtes não tinha marido;
ficara viúva havia mais de trinta anos e nunca
mais nem sequer tinha olhado para outro ho-
mem em respeito ao finado. Bem verdade tam-
bém que, em matéria de filho, ela estava muito
mal servida; só tinha a Cláudia, que era aquilo:
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moravam em bairros vizinhos, mas a filha nunca
ia à casa da mãe, e sempre que falavam ao tele-
fone era quando dona Mirtes ligava.
— Eu não sou problemática, vó! Que saco!
— É, sim! E, se não fosse eu vir aqui todo
dia botar ordem nessa bagunça, a essa altura
você já tinha feito uma besteira! Essa sua gera-
ção tá toda perdida, é tóxico, é gravidez pre-
coce, é filho matando pai… Ainda mais quando
a mãe é ausente que nem a Cláudia!
— Minha mãe é workaholic, vó… — provo-
cou Vic.
— Não adianta vir com palavrório! Eu sei
das coisas, Vitória! Uórcarrólique, nada! Isso
que a Cláudia tem, de passar doze horas enfiada
naquela siderúrgica, sem sábado, domingo nem
feriado, é doença! Coisa de gente ruim da cabe-
ça! Chama compulsão! A Elisinha que falou!
— Tá, vó. Eu sou traumatizada e minha mãe
é desnaturada e compulsiva. Agora eu posso vol-
tar pro meu livro de gente se matando?
— Vocês só vão me dar razão quando eu
morrer! — disse dona Mirtes. E saindo finalmente
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do quarto: — Vou ver se a porcalhona da faxi-
neira tá limpando o lustre do jeito que eu mandei.
Aquela parecia mesmo uma sexta-feira nor-
mal. Foi só à tardinha, na hora de arrumar a
mochila para passar o fim de semana com o pai,
como fazia sexta-feira sim, sexta-feira não, que
Vic descobriu que aquela não era uma sexta-
feira como as outras.
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