1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SCIO-ECONMICO
DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL
FABIANA MENDES DE CARVALHO
O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E
PROCESSO DE TRABALHO
Florianpolis 2008/1
2
FABIANA MENDES DE CARVALHO
O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E
PROCESSO DE TRABALHO Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Departamento de Servio Social da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do ttulo de Bacharel em Servio Social sob orientao da Prof. Dr. Simone Sobral Sampaio
Florianpolis 2008/1
3
FABIANA MENDES DE CARVALHO
O EXERCCIO PROFISSIONAL DO SERVIO SOCIAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES HEMOSC DE FLORIANPOLIS: COTIDIANO E
PROCESSO DE TRABALHO
Trabalho de Concluso de Curso aprovado como requisito para obteno do ttulo de Bacharel no Curso de Servio Social, do Departamento de Servio Social, do Centro Scio-Econmico, da Universidade Federal de Santa Catarina.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________ Orientadora
Prof. Dr. Simone Sobral Sampaio
______________________________________________ 1o Examinador
Prof. Dr. Helder Boska M. Sarmento
_________________________________________________ 2 Examinadora: A. S. Rosa Deola
Florianpolis, agosto de 2008
4
Aos que desejam sempre discutir trabalho profissional Tudo est cheio desse algo que falta (M. Aydos, 1991).
5
Agradecimentos Antes de tudo, vida. Agradecimento carinhoso s pessoas que compartilharam comigo as suspenses do cotidiano nestes anos de academia: tais suspenses produziram em mim um retorno cotidianidade de uma pessoa modificada, por possibilitar o que descobri ser o alcance conscincia humano-genrica. Nos momentos de cincia: Aos professores que construram comigo o saber e o fazer profissional, bens preciosos que marcaram traos especiais na minha vida. Com um carinho especial para Prof. Maria Teresa dos Santos, Prof. Claudia Mazzei Nogueira, Prof. Queli Flach Anschau, Prof. Rosana Sarmento e Prof. Vnia Manfroi; s colegas, algumas agora Assistentes Sociais, que compartilharam comigo a descoberta de um outro mundo possvel: Jaqueline Meggiato, Patrcia Gasparetto, Diane Balbinot e Simone Dalbello; Com carinho mais que especial Francielle F. S. Felix, por compartilhar comigo tardes de estudo, regadas a muita psicologia e sono de nenm e admirvel Mailiz G. Lusa, exemplo a ser seguido; Simone Sobral por partilhar comigo o desafio de refletir sobre o cotidiano e o exerccio profissional; ao Prof. Dr. e Assistente Social Helder Sarmento pela disponibilidade em atender ao convite de participar da banca de TCC. Nos momentos de trabalho: s Assistentes Sociais do Setor de Captao de Doadores do Hemosc pelo partilhar e construir um trabalho rico em compromisso e carinho. Minha sempre presente admirao e meu agradecimento por serem parte fundamental desta construo; Leatrice Kowalski por ter cedido, carinhosamente, a imagem da descoberta da realidade expressa no miolo da flor; Rosane Pereima pelo convite, num momento de (in)deciso, para estagiar no Hemosc; Marins Leonel, agora nos vos para mais uma conquista expressa no curso superior de Direito e Rosa Deola, por fazer parte desta minha histria em vrios momentos; Aos profissionais do Setor de Cadastro de Doadores: Marilenes, Juara, Lourdes, Waldir e Pablo, pelo carinho de me receberem com admirao;
6
assistente social Flvia Maria de Oliveira, agora especialista em EaD Denise Bunn e ao meu eterno brao direito, ou esquerdo, Dilton Ferreira Jnior, por compartilharem comigo o prazer de trabalhar com a democratizao da educao. Nos momentos de arte: Aos amigos, prximos e distantes, que fazem parte da minha vida e fazem da amizade uma arte: Harumi, Cristina, Heloisa, Karina, Adriana, Aldo, Preta, Daniel, Cesar, Patrcia, Luciana Santos, Sandra e Patrcia, primas-amigas. Um agradecimento especial para Ana Maria, pela presena carinhosa nos momentos da nossa vida. Nos momentos de moral: Ao meu irmo Cassiano, por fazer parte da minha vida, compartilhar um amor incondicional e marcar com seu sorriso a nossa histria; Aos meus cunhados Elaine, Moiss e Mayara, pelo exemplo de unio, de luta pelos objetivos, superao das dificuldades e alegria de compartilhar conquistas; minha me, Maria do Carmo que, mais do que ningum, soube utilizar destas suspenses para me tirar da cotidianidade. Todos os dias voc consegue um pouco mais. Hoje voc esta pessoa linda. Ao Fernando pela descoberta de que o amor construdo no dia-a-dia e que vale a pena andar lado a lado. Ao Olavo, pequeno grande homem da minha vida, por renovar em mim o prazer da alegria simples, do chamego, da risada pura. Voc a descoberta da luz na minha vida! Vocs sempre estaro presentes no meu corao!
7
Se entendermos que o Servio Social uma especializao do trabalho, demarcamos que h uma estreita relao entre profisso e realidade. Nesta tica, a prtica profissional no algo que se coloca parte dos processos macroscpicos
que atravessam a sociedade contempornea, seja em relao ao mundo do trabalho, a alteraes nas relaes Estado-sociedade-mercado, s novas
expresses no campo da cultura e nas relaes de poder. Essas mediaes permitem compreender a prtica profissional inserida num processo de trabalho,
bem como sua interconexo com a prtica da sociedade. (I. Simionatto, 1998)
8
RESUMO Este Trabalho de Concluso de Curso tem como objetivo refletir, no cotidiano, como se desenvolve o exerccio profissional das Assistentes Sociais no Setor de Captao de Doadores SCD do Hemosc em Florianpolis/SC, no intuito de contribuir para a discusso do processo de trabalho do Servio Social. Para tanto, se faz um breve resgate quanto politizao do sangue na sociedade brasileira e a contextualizao do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina Hemosc, instituio em que as assistentes sociais trabalham com a captao de doadores. Na segunda seo, aborda-se o essencial em relao ao significado do sangue, a moral construda em relao doao e aponta-se, tambm, a idia de cotidiano como espao que possui um duplo sentido. A terceira seo aborda o processo de trabalho das Assistentes Sociais, as narrativas trazidas sob forma de textualizao e as reflexes acerca dos eixos propostos para este Trabalho. Finalizando, apresentam-se as consideraes finais sobre as possibilidades de tratar a doao de sangue como direito sade, pautado num compromisso de conquista da cidadania. Palavras-Chaves: Servio Social, doao de sangue, educao em sade
9
LISTA DE ABREVIAES CEPON Centro de Pesquisas Oncolgicas
CHC Centro Hemoterpico Catarinense
FAHECE Fundao de Apoio ao Hemosc e Cepon
HEMOSC Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina
PE Projeto Escola
PNDVS Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue
POP Procedimento Operacional Padro
Pr-Sangue Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados
RDC Resoluo da Diretoria Colegiada
SBHH Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia
SCD Setor de Captao de Doadores
10
SUMRIO INTRODUO .................................................................................................... 11 SEO 1 1.1 A POLTICA NACIONAL DE SANGUE .......................................................
15
1.2 O CENTRO DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA DE SANTA CATARINA HEMOSC ......................................................................................
23
SEO 2 2.1 O SIGNIFICADO DO SANGUE ....................................................................
29
2.2 MORAL EM RELAO DOAO DE SANGUE ...................................... 31 2.3 A COMPREENSO DO COTIDIANO........................................................... 38 SEO 3 3.1 O PROCESSO DE TRABALHO DAS ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES SCD .............................................
44
3.1.1 Projetos do Servio Social no SCD do Hemosc .............................. 48 3.2 A TEXTUALIZAO COMO TCNICA DE PESQUISA .............................. 51 3.3 NARRATIVA DAS EXPERINCIAS PROFISSIONAIS DAS
ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES DO HEMOSC ...............................................................................................
52
3.4 REFLEXES SOBRE O TRABALHO PROFISSIONAL NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES ......................................................................
74
3.4.1 A compreenso da realidade ............................................................ 74 3.4.2 Reflexo e Planejamento das Aes ................................................ 79 3.4.3 Avaliao dos Servios Prestados ................................................... 83
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 87 REFERNCIAS .................................................................................................. 93 ANEXO ............................................................................................................... 99
11
INTRODUO
O presente Trabalho de Concluso de Curso requisito obrigatrio para o
encerramento do curso de Servio Social, bem como para conferir o grau de
bacharel em Servio Social.
O interesse em trabalhar a temtica do exerccio profissional do Servio
Social no Setor de Captao de Doadores do Hemosc/Florianpolis, neste Trabalho,
surgiu da curiosidade de entender o fazer profissional naquele espao, por ser um
espao verdadeiramente da sade, mas que de educao e para a educao. O
trabalho do assistente social, no SCD tambm cumpre um papel de buscar
estabelecer um elo perdido, quebrado pela burocratizao das aes que podem
desumanizar o doador de sangue, fazendo dele uma bolsa para transfuso. Essa
ao, chama a ateno para o reconhecimento tcnico dessa prtica profissional
pela Instituio, medida que qualificava as aes no processo de trabalho
desenvolvido pelas Assistentes Sociais.
Acompanhando a politizao da sade ocorrida na Dcada de 1980, a
politizao do sangue trouxe conquistas, fruto de lutas e mobilizao dos
profissionais de sade e da sociedade. Vale destacar que tambm nas Dcadas
de 1970 e 1980 que se iniciou o processo de ruptura do Servio Social, em recusa e
crtica ao conservadorismo profissional. Assim, vivenciamos nestas dcadas, a
discusso tanto em relao Poltica Nacional do Sangue, da Poltica Nacional de
Sade, como tambm do novo projeto tico-poltico do Servio Social, cuja
construo pautada no compromisso com a autonomia e na emancipao dos
sujeitos individuais.
As transformaes socioeconmicas e polticas afetaram as relaes sociais
e influenciaram o Servio Social nas suas intervenes, funes e fundamentos
terico-metodolgicos. Assim, novas demandas emergiram e necessitavam de maior
compreenso dos Assistentes Sociais da realidade, postas de forma a responder a
essas novas expresses da questo social.
O grande desafio presente no contexto da doao de sangue conseguir lidar
com as crises advindas do prprio processo de mudana, j que a realidade no
estanque e est sempre se modificando. Desenvolver aes que faam da doao
12
de sangue uma atitude cultural passa necessariamente pela percepo dos usurios
sobre os seus valores enquanto direito sade, num contexto muito mais amplo de
conquistas sociais. Est presente aqui, tambm, a ampliao dos espaos
ocupacionais de atuao do Servio Social, avanando em direo legitimao da
profisso por confirmar a utilidade social dessa especializao de trabalho em um
espao ocupacional no privativo do Servio Social.
Reporta-se a Sarmento (2002), para discutir que medida que a prpria
sociedade sofre alterao no seu modo de organizao, o trabalho profissional do
Assistente Social tambm precisa ser modificado, de forma a atender e responder a
essas diversidades. Assim, a reconstruo tanto do sentido como da direo dadas
prtica profissional implica em retraduzir os valores tico-polticos no
relacionamento que estabelece com os profissionais, instituies/organizaes e
populao. (SARMENTO, 2002, p.117,).
O assistente social constitui-se nas condies sociais em que se d a
materializao do projeto tico-poltico em contextos especficos, articulando um
conjunto de condies que informam o processamento da ao e condicionam a
possibilidade de realizao dos resultados projetados uma vez que estabelecem
metas a atingir e define as relaes de trabalho nas condies para sua
realizao.
Inserido num espao de implementao de polticas pblicas como o
Hemosc, o Assistente Social influencia nas relaes dos usurios do servio,
principalmente atravs de aes scio-educativas que podem tanto assumir um
carter conservador e moralizador destinado a moldar o usurio, seja no espao
institucional, seja na vida social, como pode direcionar sua ao ao fortalecimento
do atual projeto tico-poltico da profisso, revelado na opo terico-tico-poltica
dos profissionais da categoria que contribuem para a divulgao do entendimento
crtico dialtico da realidade social. Vale considerar que a insero do Assistente
Social numa instituio estabelece condies e relaes de trabalho que influenciam
no processamento da ao e nos resultados projetados, sejam eles individuais ou
coletivos.
Nesse sentido, o presente trabalho tem como principal objetivo contribuir para
o debate sobre o exerccio profissional do Servio Social no Setor de Captao de
Doadores do Hemosc, que tem sua ao pautada na busca por doadores
13
conscientes, saudveis e responsveis e que, mesmo por estar inserido numa
instituio que impe limites ao profissional, busca estratgias para superar
estas limitaes.
Vasconcelos (2002) destaca que a realidade social precisa ser apreendida
como uma sntese de mltiplas determinaes uma vez que, como objeto
investigado, depois de um processo de abstrao que a realidade deixa de ser s
o que aparenta para tomar outra forma no pensamento do investigador, pois j no
mais a mesma e o investigador tambm no mais o mesmo.
por compartilharmos a idia de que a questo social objeto da ao
profissional precisa ser entendida e investigada como forma de embasar um
trabalho profissional, garantindo o direito dos usurios, que a primeira seo deste
trabalho traz um breve resgate da histria da hemoterapia que culminou na atual
Poltica Nacional de Sangue e criou o Programa Nacional de Doao Voluntria de
Sangue PNDVS. Nestes caminhos, foram institudos tambm os Centros
Hemoterpicos que materializaram a criao do Centro de Hematologia e
Hemoterapia Hemosc, enfatizando aqui o contexto atual de vinculao deste a
uma Organizao Social e o espao onde se desenvolve o trabalho do Servio
Social no Setor de Captao de Doadores.
A doao de sangue que antes tinha poucas orientaes para acontecer, foi
se estruturando nos ltimos 50 anos, e hoje orientada para ser uma atitude
solidria e de cidadania. Desta forma, na segunda seo, h algumas referncias
sobre o significado do sangue e a moral em relao doao de sangue presente
hoje na cultura brasileira. Por entender que a solidariedade um fator fundamental e
bastante evidenciado no que tange doao de sangue, buscamos justificar nas
referncias encontradas o entendimento sobre ela. Apresenta-se tambm uma breve
compreenso do cotidiano como um espao repleto de atividades rotineiras e por
isso, possvel descobrir nele potencialidades a partir do ordinrio. Essas
possibilidades ocultas, por nem sempre estarem explicitadas, podem apontar novas
formas de ao.
Na terceira seo apresenta-se o Servio Social no Setor de Captao de
Doadores, enfatizando o exerccio profissional desenvolvido pelas assistentes
sociais, suas narrativas, trazidas sob a forma do recurso de textualizao, e as
reflexes dos eixos propostos para este trabalho.
14
Nas Consideraes Finais, procura-se recuperar algumas indicaes centrais
dos resultados das reflexes sobre a prtica profissional do Servio Social no Setor
de Captao de Doadores e pondera-se sobre as possibilidades de ao profissional
na doao de sangue e o aspecto social.
Por fim, atravs deste Trabalho de Concluso de Curso, por entender que
no exerccio profissional a prioridade a ao projetada e realizada a partir da
reflexo sobre o real (Vasconcelos, 2002, p.126), que pretende-se contribuir com a
produo de material, visando agregar valor ao referencial utilizado pelos
profissionais no Setor de Captao de Doadores.
15
SEO 1 1.1 A POLTICA NACIONAL DE SANGUE
Para se chegar formulao da Poltica Nacional do Sangue, faz-se
necessria uma contextualizao sobre os fatos que desencadearam esta
necessidade. A histria da transfuso de sangue pode ser dividida em dois perodos
que aqui apenas sero diferenciados por emprico, que vai at 1900 e cientfico que
de 1900 em diante. No Brasil, durante o perodo cientfico, os pioneiros eram
cirurgies do Rio de Janeiro que nos anos de 1920 j organizavam servios de
hemoterapia, mesmo que de forma bastante simples. (JUNQUEIRA, et al. 2005)
As atividades cientficas eram constantes e na Dcada de 1940 foi promovido
o I Congresso Paulista de Hemoterapia, importante fato que forneceu bases para a
fundao da Sociedade Brasileira de Hematologia1 e Hemoterapia2 SBHH em
1950.
Pimentel (2006) relata que, no Brasil, o surgimento da hemoterapia como
questo de poltica pblica e interesse social foi motivada pela contestao do
sistema de sade vigente em razo do aumento da contaminao sangnea, uma
vez que as doenas transfusionais (na poca a Doena de Chagas) estavam
vinculadas s doaes remuneradas. Sobre isso Junqueira (et al. 2005, p. 205)
comenta que em alguns bancos de sangue, de tica questionvel, indivduos de
camadas mais pobres da populao, que muitas vezes no tinham condies fsicas
e mesmo nutricionais, eram estimulados a doar sangue.
A primeira Lei Federal que trata do sangue data de 1950 (Lei 1.075 de
27/03/1950) e incentivava a doao de sangue medida que determinava que todo
funcionrio pblico, fosse ele civil ou militar, teria o dia de trabalho abonado caso
doasse sangue voluntariamente. Os doadores que no fossem funcionrios pblicos
teriam seu nome includo entre os que prestaram servios relevantes sociedade e
Ptria. Nesta orientao, a idia de comrcio j aparecida na troca da doao
pelo benefcio do abono do dia de trabalho e no a difuso da doao como ato de 1 Hematologia a cincia que estuda a estrutura histolgica, a composio qumica e as propriedades fsicas do sangue (GRANDE DICIONRIO LAROUSSE CULTURAL, 1999, p. 488). 2 Hemoterapia o tratamento de certas enfermidades pela administrao ou emprego de sangue ou de produtos do sangue, como o plasma sanguneo. (GRANDE DICIONRIO LAROUSSE CULTURAL, 1999, p. 489).
16
solidariedade. Mesmo assim, esta foi a nica lei que tratava do sangue at 1964. A
proposta de um incentivo doao pelo benefcio do abono do dia de trabalho
aparece como alternativa ao comrcio, mas ainda a vinculao clara da doao
como ato de solidariedade no o discurso fundamental do estmulo doao de
sangue. (BELLATO, 2001; PEREIMA, 2007).
At o ano de 1964 o governo no mostrava preocupao em disciplinar e
organizar o comrcio de sangue e hemoderivados no Brasil. A baixa qualidade nos
servios de vrios bancos de sangue que se instalaram principalmente no Rio de
Janeiro mostrava mais uma lgica de mercado em atender s necessidades de
produo industrial de hemoderivados, do que de atender s necessidades dos
pacientes com indicaes transfusionais. Sobre esta lgica de mercado, Bellato
(2001, p. 38) aponta que a implantao do grupo multinacional Hoechst acentuou
esta lgica [...] estimulando a cultura da subverso, do contrabando, coletas
excessivas e sangue propositadamente vencidos para ser repassados indstria de
hemoderivados.
O Golpe Militar de 1964 trouxe ao governo a preocupao de manter um
estoque de sangue para uma possvel necessidade, caso houvesse conflito armado.
Assim, o Decreto Lei 53.988 de 30/06/1964 cria a Associao Brasileira de
Doadores Voluntrios de Sangue e institui o dia 25 de novembro como o Dia
Nacional do Doador de Sangue.
Em 1965 o Ministrio da Sade, visando estabelecer normas para a proteo
dos doadores e receptores de sangue, cria, atravs da Lei 4.701 de 28/06/1965, a
Comisso Nacional de Hemoterapia, responsvel por grande parte da legislao do
setor hemoterpico em vigor at hoje e que, por conseqncia, trouxe bases para a
Poltica Nacional de Sangue. Ainda assim, nas Dcadas de 1960 e 1970, apesar da
Hemoterapia ter legislao e normatizao adequadas, era evidente tanto a
desigualdade da qualidade dos servios prestados como tambm a desorganizao
do sistema, devido principalmente falta de fiscalizao das atividades
hemoterpicas. Carecia, portanto, de uma poltica de sangue consistente que
abarcasse estas necessidades. (JUNQUEIRA, et al. 2005)
Entre as Dcadas de 1970 e 1980 importante pontuar que o interesse
mercantil tambm caracterizou a questo do sangue e com isso a segurana
transfusional no era direito da populao. Castro Santos (apud Pimentel, 2006)
17
relata que setores como a indstria de hemoderivados e a Sociedade Brasileira de
Hematologia e Hemoterapia SBHH eram contrrios proibio do comrcio de
sangue.
Neste caso, alguns fatores determinantes que justificavam o posicionamento
contrrio da indstria de Hemoderivados podem ser apontados pelas prticas
hemoterpicas existentes no Brasil, por exemplo, a questo das bolsas utilizadas
para a doao serem importadas devido qualidade que apresentam; sem
regulamentao nacional para sua fabricao, empresas de pequeno porte
passaram a fabricar e comercializar bolsas com qualidade questionvel e, devido ao
baixo preo, substituram as importadas. J a posio contrria da Sociedade
Brasileira de Hematologia e Hemoterapia SBHH era justificada pela dificuldade de
obteno de doadores de sangue e [...] incapacidade da classe mdica em
prescrever tica e tecnicamente a transfuso de sangue. No havia um controle das
prescries devido falta de conhecimento cientfico [por parte da classe mdica]
(PIMENTEL, 2006. p. 67)
Mas a confiabilidade nos servios e o impacto com o surgimento da AIDS
caracterizaram o que Pimentel (2006) chamou de medo do sangue e isso foi
fundamental para uma gradual politizao da opinio pblica e dos movimentos
sociais em torno das propostas desta poltica de sade. Toda a problemtica
envolvendo a questo do sangue aprofundou e contribuiu para esta politizao em
relao ao sangue e discutia-se qual o melhor modelo de sade a ser implantado.
Distante de apresentar novidades em termos de posies e argumentao,
voltaram as discusses referentes estatizao e a privatizao dos servios
hemoterpicos. O sangue representava para os que defendiam a proibio da
comercializao e a estatizao destes servios, a defesa dos ideais da Reforma
Sanitria e dos direitos da cidadania. E aqueles que eram contra a proibio e a
favor da privatizao dos servios hemoterpicos, argumentavam que o governo
seria incapaz de organizar a atividade hemoterpica e garantir bons servios
(SANTOS et al. 1992).
Desencadeou-se o Movimento Sanitrio para a transformao do sistema de
sade e das condies de sade da populao brasileira. A luta pela Reforma
Sanitria partiu das classes trabalhadoras e populares, havendo adeso dos
acadmicos de medicina das universidades, mdicos sanitaristas, profissionais da
18
sade, parlamentares, enfim, lderes polticos e sindicais interessados por um
sistema de sade universal, equnime, acessvel e democrtico, impedindo a sua
mercantilizao. (ESCOREL, 1989).
Em 1980, numa articulao entre rgos dos Ministrios da Sade e
Planejamento, foi criado o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados PR-
SANGUE com o objetivo de planejar um sistema hemoterpico que oferecesse um
produto final, dentro dos mais altos conceitos de segurana e qualidade. Para tanto,
elencava como necessidades: 1) Sistematizar a doao voluntria como uma
legtima finalidade social; 2) Organizar e definir a rede de instituies ligadas a
prticas de hemoterapia; 3) Normalizar a distribuio de sangue e derivados; 4)
Disciplinar a industrializao e a comercializao de hemoderivados; 5) Promover a
pesquisa cientfica e o desenvolvimento tecnolgico; e 6) Instituir o controle de
qualidade e a fiscalizao. Esta poltica pblica representou a primeira ao direta e
coordenada para o setor hemoterpico por parte do governo. Foi a partir do Pr-
Sangue que surgiram as propostas de centralizaes atravs dos Hemocentros e
tambm a definio das normas nas atividades de prestao de servios
hemoterpicos que os Hemocentros eram responsveis. (PIMENTEL, 2006;
BELLATO, 2001).
Muitos avanos tecnolgicos foram trazidos no decorrer da Dcada de 1980 e
isso evidenciava a necessidade de normas tcnicas para disciplinar o funcionamento
dos servios de hemoterapia. Mas, a realidade mostrava que at o perodo de
1985/1987, a questo de sangue e hemoderivados no Brasil era mal gerenciada,
sem normatizao e sem fiscalizao governamental. Foi em decorrncia do
aparecimento da Sndrome da Imunodeficincia Adquirida AIDS, que as questes
relacionadas ao sangue repercutiram e foram determinantes para a politizao do
sangue e presso da sociedade civil para uma reorganizao da poltica nacional
de sade e definio de polticas Nacional e Estadual de sangue. (BELLATO, 2001).
Sobre isso, Bellato (2001) aponta ainda que devido ausncia de medidas do
governo Federal no que refere situao da hemoterapia, estados como Rio de
Janeiro e So Paulo definiram, entre 1985 e 1987, polticas estaduais para esta
rea: proibio da doao remunerada e obrigatoriedade do teste anti-HIV no
sangue utilizado com fins hemoterpicos.
19
A maioria dos bancos de sangue apresentava irregularidades que incluam
desde a no realizao dos exames sorolgicos, ou a triagem inadequada dos
doadores, at mesmo condies consideradas imprprias para o armazenamento do
sangue e funcionamento sem o respectivo alvar. Estas situaes levaram
interdio de vrios servios no decorrer daqueles anos.
Com a politizao do sangue, foi grande a repercusso da problemtica
envolvendo a questo hemoterpica que veio a ocorrer em meio s discusses
prvias sobre a Reforma Sanitria e tambm na VIII Conferncia Nacional de Sade,
realizada em 1986, onde compareceram representantes de diversos segmentos da
sociedade. Nesta ocasio foi debatida a sade em um conceito ampliado e como um
direito universal, sendo resultante das condies de vida, alimentao, lazer, acesso
e posse da terra, transporte, emprego e moradia. (SCHUCH, 2006; PIMENTEL,
2006).
Foram incorporadas pela Constituio Federal de 1988 as propostas da
Reforma Sanitria e as do relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade. No que
se refere poltica na rea de sangue e hemoderivados definiu-se que dever do
Estado prover os meios para atendimento hematolgico e hemoterpico de acesso
universal e de boa qualidade e dever do cidado cooperar com o Estado na
consecuo desta finalidade (BRASIL, apud DEOLA, 2004, p. 14), tendo como
objetivos a doao voluntria de sangue, a formao de recursos humanos, o
desenvolvimento tecnolgico, o controle de qualidade e a vigilncia sanitria.
A Constituio Federal de 1988, no seu artigo 199 inciso 4, rege o seguinte:
A lei dispor sobre as condies e os requisitos que facilitem a remoo de rgos, tecidos e substncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfuso de sangue e seus derivados, sendo vedado qualquer tipo de comercializao (BRASIL,1988).
A Lei 7.649 de 25/01/1988 foi elaborada pela Diviso de Sangue e
Hemoderivados do Ministrio da Sade e criou o Plano Nacional de Sangue e
Hemoderivados PLANASHE, que articulava ao de quatro Ministrios
(Previdncia e Assistncia Social, Trabalho, Educao e Cincia e Tecnologia) e era
associado ao Banco Mundial como forma de garantir fundos. Com a finalidade de
desenvolver um sistema hemoterpico eficiente, este Plano era mais complexo e
20
detalhado que o Pr-Sangue e propunha entre outras aes, a necessidade de
garantir a autonomia ao sistema de sangue e a avaliao peridica do programa por
parte dos coordenadores regionais e diretores dos hemocentros. (PIMENTEL, 2006).
Sobre o PLANASHE, Bellato (2001) destaca que sua elaborao seguia
influncia do modelo de organizao apresentada pelo Sistema nico de Sade
SUS, uma vez que propunha a integrao dos servios oficiais e descentralizao
das decises administrativas e financeiras. Assim, representou uma mudana radical
nos servios de Hemoterapia no Brasil.
Desde 1992 existe a Coordenao da Poltica Nacional de Sangue e
Hemoderivados, ligada ao Ministrio da Sade. Desde ento, coordenaes e
gerncias de sangue tm buscado aes que levem melhoria efetiva da poltica de
sangue visando a segurana transfusional. (PIMENTEL, 2006)
Pereima (2007) relata que a busca constante de qualidade nos servios
hemoterpicos exigiu uma legislao mais rigorosa, trazendo para tanto a Portaria n
1376/93 que determinava normas tcnicas para coleta, processamento e distribuio
de sangue. Posteriormente, a Portaria n 121/95 respondia a necessidade de
cumprir as etapas de controle de qualidade do sangue, introduzindo diversos
exames sorolgicos na anlise de sangue humano para a doao.
Em 1998 o Ministrio da Sade apresentou a Meta Mobilizadora Nacional do
Setor Sade com o objetivo de impulsionar a hemoterapia brasileira em um modelo
j alcanado pelos melhores servios do Pas, garantindo a transfuso de sangue
segura e de indiscutvel padro de qualidade. O slogan era Sangue com garantia de
qualidade em todo o seu processo at 2003 e entre os 12 projetos que compunham
esta meta estava a formulao da Poltica Nacional de Sangue e Hemoderivados e a
implantao do Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue, com objetivo
de envolver a sociedade brasileira, por meio de aes educativas e de mobilizao
social, a participar no processo da doao de sangue de forma consciente e
responsvel, visando a garantia da quantidade adequada demanda do Pas e a
melhoria da qualidade do sangue, componentes e derivados.
Com atraso de 13 anos a Lei 10.205 de 21/03/2001 regulamenta o 4 do art.
199 da Constituio Federal de 1988, relativo coleta, processamento, estocagem,
distribuio e aplicao do sangue, seus componentes e derivados e estabelece o
ordenamento institucional indispensvel execuo adequada dessas atividades.
21
Ainda por necessidades de atualizao da poltica de sangue, publicada em
2003, cumprindo determinaes do Ministrio da Sade, uma Resoluo da Diretoria
Colegiada RDC, e outra, mais recente n 153, de 14 de julho de 2004, que traz
pela primeira vez a regulamentaes sobre o Transplante de Medula ssea (anexo
1). Est em discusso agora o projeto de nova RDC que reorganiza as prticas da
poltica pblica de hemoterapia brasileira (PIMENTEL, 2006).
Sobre a RDC n 153/ 2004, Pereima (2007) explica que todos os profissionais
que atuam na rea da hemoterapia devem ter suas aes norteadas pelas
determinaes desta Resoluo, que traz o regulamento tcnico para os
procedimentos hemoterpicos. Neste regulamento, so previstos procedimentos
para a coleta, processamento, testagem, armazenamento, transporte, controle de
qualidade e uso humano do sangue e seus componentes, obtidos do sangue
venoso, do cordo umbilical, da placenta e da medula ssea.
Ainda sobre a Lei 10.205, que considerada por muitos profissionais como a
Lei do Sangue, dispe sobre o ciclo do sangue, considerando a captao de
doadores, coleta, processamento, estocagem, distribuio e transfuso do sangue,
de seus componentes e derivados e probe a comercializao do sangue e a
remunerao da doao.
Respaldando os princpios da Constituio Federal/88 e da Lei 10.205, foi
elaborado o Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue PNDVS
(BRASIL, 2000), que probe o comrcio de sangue e determina que a doao de
sangue deva ser altrusta, voluntria e no-remunerada, direta ou indiretamente.
Como estratgias para sua viabilizao, foram apresentadas, entre outras:
viabilizar parcerias com entidades governamentais no mbito federal, estadual e municipal, ONGs e organismos internacionais;
levantar dados referentes aos projetos realizados nos setores de captao de doadores dos hemocentros dos diversos estados e
incentivar fruns de captao de doadores com tcnicos e
representantes de diferentes segmentos sociais;
apoiar a realizao de projetos educacionais relacionados doao de sangue;
22
desenvolver pesquisas sobre o perfil dos doadores de sangue com a finalidade de conhecer as percepes, em todas as regies do pas,
dos grupos sociais a respeito da doao; e
elaborar campanhas educativas e publicitrias e estreitar as relaes entre a imprensa e a hemorrede para disseminar informaes sobre a
importncia da doao de forma consciente, habitual e voluntria de
sangue.
Sobre o PDNVS, Pimentel (2006) aponta que as fases em andamento so a
realizao de oficinas anuais de avaliao, reviso e anlise de metas
estabelecidas3, manuteno do oramento para investimento e campanhas e
incentivo de coleta externa.
Outra importncia da Lei 10.205 foi a definio da hemoterapia como
especialidade mdica, estruturada e subsidiria de aes mdico-sanitrias
corretivas e preventivas de agravo ao bem-estar individual e coletivo, integrando,
indissoluvelmente, o processo de assistncia sade. Neste aspecto, aparece a
preocupao em tornar explcita a integrao da poltica de sangue ao social.
(JUNQUEIRA, 2006).
Ao encontro da informao de que a doao de sangue passa a ter contornos
sociais, Pimentel (2006) explicita a repercusso pblica pelo fato do sangue ser um
possvel agente transmissor de doenas como hepatite e AIDS. Assim, a
hemoterapia passa a ser preocupao do governo e se insere no contexto da sade
pblica. O mesmo autor aponta tambm a doao de sangue no-remunerada como
de significado mdico-social devido a necessidade de estmulo da criao de uma
cultura em relao doao de sangue como ato altrusta, voluntrio e habitual.
Segundo Pimentel (2006), o PNDVS est em andamento no que tange
reviso e anlise das metas estabelecidas, oramento para investimento e
campanhas e incentivo coleta externa. A evoluo da Poltica Nacional do Sangue
se consolidou no Brasil e tornam-se necessrias novas discusses acerca da
3 Para a definio das metas a serem propostas pelo Programa, buscou-se a relao do percentual de doao x populao: 1,20% em 1999; 1,67% em 2000; 1,73% em 2001 e 1,68% em 2002. Com base nestes dados, definiu-se a meta de 2% para a implantao do Programa. Para doaes espontneas que variaram de 34,34% em 1999 a 50,39% em 2002, a meta definida foi de 100%. Os doadores de repetio variaram de um percentual de 52,26% em 1999 a 42,32% em 2002. A meta proposta foi de 60%. As doaes femininas variaram de 23,33% em 1999 a 25,30% em 2002. A meta definida foi de 30%. Dados constantes do Programa Nacional de Doao Voluntria de Sangue PDNVS (Brasil, 2002).
23
captao de doadores, da definio de critrio de triagem, do uso das tecnologias,
da auto-suficincia de produo de hemoderivados, da adequao fsica e da
capacitao de recursos humanos.
Constata-se que discutir sobre doao e transfuso de sangue tambm
discutir Sade Pblica, j que o uso do sangue atinge um importante aspecto poltico
da organizao da sociedade que, ao receber informaes, compreende melhor
seus direitos e deveres. Estar corretamente informado fundamental para que as
pessoas possam finalmente posicionar-se sobre determinada questo e, de forma
consciente e autnoma, formar-se como cidados.
Alm disso, a populao em geral, historicamente responsvel por grandes e
importantes conquistas no que tange sade pblica, deve ter acesso garantido s
informaes gerais pertinentes ao sangue, seja na doao, seja na transfuso, nos
meios de comunicao, nos espaos de sade e na educao, enfim, ter garantido
canal para sua participao4.
1.2 O CENTRO DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA DE SANTA CATARINA
HEMOSC
O Centro de Hematologia e Hemoterapia HEMOSC uma instituio
pblica, integrante da Secretaria Estadual da Sade que tem como objetivo prestar
atendimento hemoterpico e assistncia hematolgica de qualidade populao.
Foi criado atravs do decreto Governamental n 272 de 20 de julho de 1987, com
base nas diretrizes do Plano Nacional de Sangue e Hemoderivados PLANASHE.
Com atraso de dois anos em relao instituio do PLANASHE, o Decreto Lei
3.015 de 27 de fevereiro de 1989 oficializa a implantao do Sistema Estadual de
Hematologia e Hemoterapia. (MANUAL DE QUALIDADE DO HEMOSC).
Mas a histria da hemoterapia em Santa Catarina comeou antes disso
quando, no incio da Dcada de 1960, foi instalado o Banco de Sangue da
Maternidade Carmela Dutra, em Florianpolis, que tinha como intuito a coleta e o
armazenamento de sangue. Aps alguns anos, em maro de 1963, foi criado entre
outros servios, o Centro Hemoterpico Catarinense CHC, que veio substituir o
4 Participao, conforme Iamamoto (1998), como partilhamento de decises e de poder.
24
Banco de Sangue existente, com a finalidade de realizar atendimento em todo
Estado, contando com a ajuda dos postos instalados nas principais cidades do
interior (MANUAL DE QUALIDADE DO HEMOSC).
Bellato (2001) aponta que o Centro Hemoterpico Catarinense CHC foi um
projeto piloto bem planejado que serviu de referncia por ser, na poca, o nico
servio de banco de sangue no Brasil a atender todo um Estado. Mas foi com a
criao do PR-SANGUE que o CHC recebeu equipamentos do Ministrio da
Sade e iniciou a transformao em Hemocentro.
Atualmente, os principais servios prestados pelo HEMOSC so: captao de
doadores; coleta, processamento, anlise, distribuio e transfuso de
hemocomponentes; assistncia ambulatorial mdica especializada; servios
laboratoriais especializados e complementares; servio de afrese; capacitao de
recursos humanos, ensino e pesquisa; e campanhas sobre a doao de sangue.
Captao de Doadores: No HEMOSC, o Setor de Captao de Doadores coordenado por profissionais de Servio Social e desenvolve atividades voltadas
educao em sade com projetos que objetivam informar a populao quanto
importncia da doao de sangue. O trabalho volta-se no apenas para assegurar a
quantidade necessria de doadores, mas tambm para aprimorar o perfil das
doaes, garantindo a elevao do padro de qualidade do sangue coletado e
transfundido. Na seo 3 deste trabalho, trataremos mais especificamente do
processo desenvolvido pelos profissionais deste setor.
Coleta: realizada por tcnicos de enfermagem e supervisionado por um mdico ou um enfermeiro. Na doao de sangue, retirado aproximadamente 450
ml de sangue, atravs da insero de uma agulha em um dos braos, utilizando-se
uma bolsa plstica estril para seu armazenamento.
Processamento: setor responsvel pela separao do sangue em seus componentes (plasma, plaquetas e hemcias) para transfuso. Os pacientes com
indicao de transfuso, somente recebem a parte do sangue (hemocomponentes)
que necessitam.
Anlise: so realizados inmeros testes no sangue, podendo ser identificados a compatibilidade sangnea entre doador e paciente e deteco de
doenas, entre elas: sorologia para Hepatite B e C, Doena de Chagas, Sfilis, HIV
(vrus da AIDS), HTLV I e II, Eletroferese de Hemoglobina e TPG/ALT.
25
Distribuio e Transfuso de Hemocomponentes: os hemocomponentes do sangue so distribudos pelo HEMOSC atravs das Agncias
Transfusionais presentes nas unidades hospitalares e/ou ambulatoriais.
Assistncia Mdica Ambulatorial: setor do Hemosc com equipe mdica especializada que presta servios diversos, como consultas mdicas, consultrio
odontolgico especializado para pacientes com distrbios de coagulao, coleta de
sangue para exames de sorologia, imuno-hematologia, hematologia, medula ssea e
hemopatologia.
Servio de Afrese: um processo de doao especial com durao de aproximadamente uma hora e vinte minutos, em que ocorre a separao das
plaquetas do doador pelo processo de afrese e o restante dos hemocomponentes
devolvido veia do doador.
O pblico alvo de atendimento do HEMOSC formado por clientes5 que so
os pacientes com distrbios hematolgicos (considerados usurios) e pelos os
doadores, tambm considerados clientes.
Neste contexto, Silva (2000) destaca que o HEMOSC tem como
responsabilidade o fornecimento de sangue, hemocomponentes e servios
hemoterpicos e hematolgicos de qualidade atravs da hemorrede pblica
estadual, visando assistncia e segurana comunidade. Desta forma, a referida
instituio, atravs da sua equipe multiprofissional, busca garantir a qualidade dos
servios oferecidos populao, fortalecendo a idia da doao voluntria e,
informando a respeito da necessidade e importncia da doao de sangue e,
tambm, ao que se refere segurana que a doao deve oferecer no processo de
transfuso.
O HEMOSC de Florianpolis o Hemocentro Coordenador de Santa Catarina
e tem a responsabilidade de coordenar toda a Hemorrede6 pblica, respondendo
pela normatizao, superviso e formao de recursos humanos para os
hemocentros e servios de Hemoterapia do Estado. Os Hemocentros Regionais,
5 Cliente: Pessoa que recorre aos prstimos ou servios de um homem de negcios, de um banco, de um mdico, etc. Fregus. (LAROUSSE CULTURAL, 1999. p 237). 6 Sobre o sistema de Hemorrede, Pereima (2002) aponta o controle de qualidade pelo estabelecimento de procedimentos padronizados, com atividades desenvolvidas conforme as normas de segurana e supervisionadas pelo programa de gerenciamento da Qualidade Total, implantado no HEMOSC em 1995 e fundamental para a conquista do certificado da ISO 9002.
26
subordinados ao Hemocentro coordenador, esto localizados em municpios plos
de Santa Catarina: Lages, Joaaba, Chapec, Cricima e Joinville. Tambm h uma
Unidade de Coleta localizada na cidade de Tubaro, sendo coordenada pelo
Hemocentro Regional de Cricima e outra em Rio do Sul, coordenada pelo
Hemocentro Regional de Joinville. Atualmente, a Hemorrede atende cerca de 90%
das transfuses que ocorrem no Estado. Faz parte da Poltica Nacional de Sangue,
Componentes e Hemoderivados que os hemocentros estaduais atendam toda a
demanda transfusional, universalizando o atendimento populao.
Ainda sobre o PLANASHE, importante lembrar que o Ministrio da Sade
estimulou a viso de descentralizao administrativa nos Estados e o programa de
interiorizao dos hemocentros (sistema de hemorrede) sofreu com a liberao
parcial e/ou ausncia de recursos financeiros pelo Governo Federal de 1992 -1995.
Assim, tanto a destinao inadequada de recursos, como tambm a falta de retorno
das receitas geradas, trouxe dficit ao Fundo Estadual de Sade. (BELLATO, 2001).
necessrio mostrar as implicaes do artigo n 5 do PLANASHE que
recomenda como modalidade ideal de gesto a de Fundao7. Assim, em meio a
esta realidade poltica e aos entraves burocrticos, em 4 de maro de 1994, o
HEMOSC passou a ser gerenciado pela Fundao de Apoio ao HEMOSC e
CEPON8 FAHECE, que uma entidade privada, sem fins lucrativos, criada para
administrar e investir os recursos atravs da aquisio de equipamentos, remdios,
reforma e construo de novas sedes, alm da capacitao dos funcionrios.
Atravs de um contrato de gesto com a Secretaria de Estado da Sade, a
FAHECE recebe e administra os recursos financeiros do SUS gerados pelas
unidades. O convnio de dez anos e a cedncia de patrimnio e de recursos
humanos j vigora h mais de 14 anos. (CARVALHO, 2007).
Sobre isso, Bellato (2001) aponta que um diferencial do modelo de gesto
administrativa adotada pela FAHECE est no fato de que os recursos obtidos
atravs dos servios prestados pelo HEMOSC e CEPON no vo mais para o Fundo
Estadual de Sade e so, agora, diretamente revertidos para estas unidades.
7 O governo estadual catarinense, atravs do convnio NR 104/94 firmado pela Secretaria de Estado da Sade, estimulou a descentralizao administrativa permitindo Fundao o recebimento e administrao dos recursos financeiros do SUS, gerados pelo HEMOSC e CEPON. 8 Centro de Pesquisas Oncolgicas.
27
Entretanto, a mesma autora faz anlise contundente sobre a relao pblico e
privado na perspectiva do interesse privatista neoliberal, tambm presente na
questo hemoterpica e desta forma, [...] dificultam o controle social e continuam
recebendo recursos, pblico e privado, e gerenciando-os segundo critrios
independentes do SUS. (BELLATO, 2001, p. 60)
Em 2002 o Estado de Santa Catarina aprovou junto Assemblia Legislativa
a Lei n 13.720 trazendo disposies legais que institui o Programa Estadual de
Incentivo s Organizaes Sociais9 (OS), permitindo que atividades pblicas, sem
nenhuma licitao, sejam transferidas e desempenhadas por entidades de direito
privado, que por iniciativa do Poder Executivo, obtm autorizao legal para celebrar
contrato de gesto, com direito dotao oramentria, recursos financeiros
provenientes de convnios, bens pblicos e cedendo funcionrios pblicos.
Diversas discusses foram travadas ao longo destes anos e em vista desta
possibilidade de tornar a FAHECE uma OS, em maro de 2006 foi criado o
Movimento para Manuteno do Servio Pblico de Qualidade do HEMOSC e
CEPON que tem como principal objetivo impedir a privatizao destes rgos.
Este movimento pauta-se: no ferimento da Lei 8.080/90, uma vez que, cabe
apenas iniciativa privada a complementao prestao de servios na sade; na
inevitvel reduo dos atendimentos oferecidos aos usurios do Sistema nico de
Sade; nos cortes de investimentos pblicos e sucateamento do patrimnio pblico;
na queda na qualidade dos servios; na contratao de trabalhadores sem concurso
pblico e aumento da terceirizao, etc. O Movimento entende que o desdobrar
desse processo a privatizao e faz parte de um contexto geral que se vivencia no
Pas.
Foi a necessidade de informar sobre estas discusses que o Movimento criou
um boletim que periodicamente circula entre os colaboradores do HEMOSC e
CEPON e entre a comunidade. Atualmente, as discusses esto acirradas sobre o
novo contrato de gesto entre a Secretaria Estadual de Sade/SES e a FAHECE. O
9 Organizao Social uma qualificao dada s entidades privadas sem fins lucrativos (associaes, fundaes ou sociedades civis) que exercem atividades de interesse pblico dirigidas ao ensino, pesquisa cientfica, ao desenvolvimento tecnolgico, proteo e preservao do meio ambiente, cultura e sade. Este ttulo permite que a organizao privada receba recursos oramentrios, bens pblicos e administre servios, instalaes e equipamentos do Poder pblico, aps ser firmado um Contrato de Gesto com o Governo. LEI 9637 de 15/05/1998.
28
Movimento se mostra atuante e comprometido com o processo democrtico, com a
garantia e a qualidade dos servios oferecidos populao do Estado.
A transio da FAHECE para OS j foi publicada em Dirio Oficial, os
funcionrios aguardam receber o termo de cedncia para decidir se assinam ou no
o referido termo: assinar implica que sero cedidos para a OS e, no assinar, implica
em se apresentarem para a Secretaria Estadual de Sade e serem disponibilizados
para outra instituio.
Percebemos o quo acirrado a questo da privatizao do HEMOSC, tanto
para os funcionrios como tambm para a sade pblica de qualidade, seguindo
uma poltica que oferecida pela instituio. As limitaes aparecem, por exemplo,
na falta de colaboradores nos mais diversos setores, dificultando as aes e
programas desenvolvidos no setor de Captao de Doadores.
Cabe destacar que a ao do Assistente Social no HEMOSC, segue as
orientaes da Poltica Nacional do Sangue e est inserido em um espao de
atuao com condies institucionais postas que determinam orientaes para o
desenvolvimento desta ao profissional. Contudo, necessria para a
apresentao do exerccio profissional do assistente social, a busca do significado
da moral que existe atualmente em relao doao de sangue.
Contudo, antes de analisar o processo de trabalho da equipe de Assistentes
Sociais do Hemosc, vinculado prioritariamente ao institudo no Programa Nacional
de Doao Voluntria, prope-se buscar o significado da moral que existe
atualmente em relao doao de sangue e sua relao como o ato consciente e
responsvel, mas ao mesmo tempo aos preconceitos e medos que rondam esta
ao. Esses aspectos culturais so determinantes, tendo em vista ser a cultura um
sistema de valores e crenas herdadas, por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relao vida e,
desta forma, a cultura contribui para regular e padronizar atitudes e emoes.
(CASTELFRANCHI, 2008).
29
SEO 2 2.1 O SIGNIFICADO DO SANGUE
Em diferentes sociedades o sangue possui diferentes simbologias e
representaes e est associado principalmente ao conceito de vida. Os smbolos
so imaginados e criados pelos homens a partir de suas vivncias individuais e,
quando partilham e usam estes smbolos para se comunicarem, atribuem a eles
determinados significados em relao ao contexto cultural em que vivem (BENETTI;
LENARDT, 2006). Entender estas simbologias ligadas ao sangue representa
fundamentar a ao para uma comunicao em relao doao de sangue.
Pereima (2002) comenta que j na antigidade os povos primitivos untavam-
se, banhavam-se e bebiam o sangue de jovens e corajosos guerreiros, esperando
adquirir suas qualidades. Para eles, o sangue era concebido como fluido vital que
proporcionava vida e juventude. Aponta tambm que na cultura de muitos povos,
eram selados pactos de amizade, de amor, de vida ou mesmo, paradoxalmente, de
morte com sangue e conclui que [...] o sangue expressa sentimentos e sentidos
ambivalentes e at opostos: bem mal; vida morte; amor dio. (PEREIMA,
2002, p. 37).
Benetti e Lenardt (2006), em pesquisa sobre o significado atribudo ao
sangue, levantaram que a vinculao da vida ao sangue foi feita antes mesmo da
descoberta da circulao sangnea em 1628 por William Harvey.
Esta ligao do sangue como fonte de vida foi incorporado culturalmente e, na
referida pesquisa, aparece a compreenso dos entrevistados trazendo o sangue
como origem e manuteno da vida e sua ausncia tem significado de morte. Para o
homem moderno a transfuso tem significado uma das formas de preservar sua
vida. A referncia ao sangue como fora vital faz com que os informantes
incorporem o cuidado com a sade como condio para realizao da doao de
sangue. A liberdade da escolha de ser doador implica no cuidado com a sua prpria
sade, uma vez que ter sade condio para ser doador. (BENETTI; LENARDT,
2006).
Existem tambm os sentimentos de insegurana e incerteza que dizem
respeito s dvidas do que pode vir a acontecer com ele aps o procedimento de
doao de sangue. Na mesma pesquisa, as crenas religiosas conferem um sentido
30
de vnculo com o sagrado (entre o humano e o divino) uma vez que o sangue hoje
leva vida a um desconhecido que est em risco de morte. (BENETTI; LENARDT,
2006).
Algumas representaes trazem articulaes com o saber mdico, pelo
contato com os aparelhos mdicos e determinadas caractersticas, tais como os
exames de sangue que podem mostrar um quadro de anemia ou outras doenas
relacionadas ao sangue. Hoje em dia, as vitaminas possuem um grande valor na
sociedade, pois elas so encaradas como fortificantes, j que contm ferro que
considerado elemento de fortalecimento do sangue e, conseqentemente, do
corpo. (SCHUCH, 2006)
Outras representaes trazem o entendimento de sangue como fonte de
impurezas ou como smbolo de sacrifcio em diversas situaes da vida. Douglas
(apud SCHUCH, 2006) fez estudos antropolgicos e constatou que a maioria dos
grupos humanos v o sangue como uma fonte de impureza, mesmo este sangue
fazendo parte das secrees corporais. Para Leal (apud BENETTI, 2004), os fluidos
corporais so substncias transmissoras daquilo que tanto pode ser poludo, quanto
pode ser vida e emoo.
Dantas (2002) conceitua o sangue como um produto natural indispensvel
vida e que, apesar da evoluo da medicina, ainda no produzido artificialmente.
Ele fonte de energia renovvel que podemos doar at 10% em dado perodo, sem
causar danos para o organismo humano.
Com estas informaes sobre a simbologia do sangue, reflete-se que as
prticas de doao de sangue so orientadas pelo entendimento que cada indivduo
tem da sua experincia cultural. O fato de existir hoje uma Poltica Nacional de
Sangue que regulamente este setor, traz tambm a percepo das pessoas sobre a
prtica da doao de sangue.
A trajetria histrica da hemoterapia no Brasil mostra a busca de qualidade
nos servios prestados populao, seja na satisfao dos receptores, como
tambm em relao aos doadores. Assim, como forma de garantir a qualidade do
sangue est a inteno da eliminao dos riscos de contaminao via transfuso
sangnea. Para tanto, alm dos aspectos tcnicos, a forma como as relaes entre
31
profissionais e usurios so estabelecidas tambm influencia para que a doao de
sangue seja um ato sistemtico e voluntrio, como ato de cidadania10.
2.2 MORAL EM RELAO DOAO DE SANGUE
Historicamente, as experincias de doao de sangue por pessoas que doam
como ato altrusta, espontneo e no-remunerado, trazem menor prevalncia de
infeces transmissveis por transfuso, pois geralmente, os doadores apresentam-
se aptos a doar. E, tambm, os doadores voluntrios de repetio so geralmente
mais seguros do que novos doadores, porque so regularmente informados sobre
comportamentos de risco e sobrea a importncia da auto-excluso11 (JUNQUEIRA,
1979).
Hoje, seguindo determinaes da Poltica Nacional do Sangue, a Resoluo
da Diretoria Colegiada RDC n153 preconiza diversos aspectos em relao ao
doador, sendo que a doao deve ser annima, voluntria12, altrusta e no-
remunerada, direta ou indiretamente.
A explicao que Pereima (2007) faz sobre a doao annima refere-se
garantia de que receptores no saibam o nome do doador do sangue que ele
recebeu e nem doadores saibam o nome do paciente que foi transfundido com os
hemocomponentes obtidos na sua doao, exceto em situao justificada
tecnicamente na RDC n 153.
Anterior a esse processo, doao remunerada marcou a doao de sangue
no Brasil e estas eram provenientes de pessoas que buscavam recompensa em
dinheiro ou mesmo o interesse no lanche oferecido. Neste perodo, os principais
doadores eram mendigos, andarilhos ou portadores de algumas doenas e
10 Para Weisshaupt (1988) cidadania procedente do uso efetivo e adequado dos aparelhos do Estado para a resoluo de problemas emergentes. 11 Esta ao de auto-excluso uma das etapas pela qual passa um doador de sangue. Aps o atendimento no setor de cadastro, o doador recebe um papel, identificado por cdigo de barras, no qual deve assinalar se seu sangue poder ser utilizado ou no para a transfuso. Esta etapa explicada na entrevista individual de triagem e visa garantir ao doador de sangue a possibilidade de auto-excluso caso tenha omitido informaes nas etapas anteriores. 12 Voluntria: Que se faz ou deixa de fazer, sem coao nem imposio de ningum. (LAROUSSE CULTURAL, 1999)
32
colocavam em risco a vida do receptor de sangue. Dessa forma, o rtulo que existe
at hoje que doar sangue coisa de pobre. (DANTAS, 2002)
Os doadores voluntrios entendem a doao como ddiva, altrusmo ou at
mesmo por j terem sido transfundidos, apresenta a necessidade de agradecer e
retribuir a doao recebida. So aqueles que no recebem gratificao em dinheiro,
ou qualquer outra forma de benefcio, nem para si, nem para seus familiares ou para
seus amigos, prestando somente um ato humanitrio de ajuda ao prximo,
desconhecendo sexo, idade, religio, classe social ou estado de sade daquele que
necessita receber sangue. (JUNQUEIRA, 1979; LUDWIG; RODRIGUES, 2005)
Nessa perspectiva, entende-se que se pretende almejar a doao de sangue
como um ato de cidadania13, sempre considerando a subjetividade dos indivduos
em relao aos seus motivos para doar ou no doar sangue. As motivaes que
desencadeiam as doaes so de origem pessoal e particular de cada doador,
sendo necessrio considerar as influncias familiares e sociais.
A doao de sangue considerada como uma ao de cidadania, na qual os
seres humanos tm seus direitos e tambm deveres. Para tanto, precisam receber
informaes sobre a doao de sangue e sensibilizar-se para depois entender-se
como co-responsvel sobre todo esse processo. Segundo Boff (apud Schuch, 2006),
a responsabilidade a capacidade de dar respostas eficazes aos problemas que
nos chegam da realidade complexa atual. [...] expressa o carter tico do indivduo.
importante apontar que existem motivos que levam as pessoas a doar ou
no o sangue. Descobrir e entender os fatores apontados para a doao pode
auxiliar os setores de captao a fidelizar este doador. J conhecer os motivos
alegados para a no doao fundamental para o desenvolvimento de estratgias
que possam mudar o imaginrio e a inteno destas pessoas.
Pereima (2007) explica que mesmo com as atuais facilidades de comunicao
e informao, a doao de sangue tem sua histria acompanhada por folclores, por
mitos, preconceitos e tabus. Desta forma, muito ainda precisa e pode ser feito para
desmistificar as falsas suposies que existem em relao doao para ento
mudar essa cultura.
13 Para ser considerado ato de cidadania, a doao de sangue precisa receber do poder pblico um tratamento diferenciado que estabelea a doao como ato consciente uma vez que est vinculada s polticas de sade e sociais e tem relao estreita tambm com a cultura.
33
Para Bellato (2001), a viso de mundo um fator que pode ser determinante
na adoo ou no de um servio por condicionar os interesses, uma vez que estes
devem ser legitimados pelos valores existentes na sociedade. A mesma autora
aponta que a satisfao de uma coletividade pode ser reduzida a um plano
individual, cujas condies sociais ou financeiras satisfazem as necessidades;
entretanto, a satisfao atravs da implementao de polticas pblicas de sangue,
fortalecem o doador-cidado com prticas de assistncia integral que partem
principalmente da necessidade dos usurios.
Ludwig e Rodrigues (2005) verificaram que as principais razes apontadas
para a no doao de sangue so medo (de agulha, de contrair doenas), reao
inesperada doao, apatia pelo ato, convenincia e falta de confiana na unidade
hemoterpica.
Arajo (1995) enfatiza que a falta de confiana no sistema hemoterpico
deixa transparecer a atitude de receio com a doao, pelo entendimento dos
possveis riscos que este ato pode trazer para a sade.
Ludwig e Rodrigues (2005), em pesquisa sobre a viso de marketing da
doao de sangue, trazem como fator decisivo no ato de doar sangue a confiana
nos servios oferecidos pelas instituies e pelos colaboradores. Neste estudo,
relatam que a necessidade de sangue tem despertado o interesse de pesquisadores
sobre as razes que levam as pessoas a doar sangue. Breckler e Wiggins (apud
LUDWIG; RODRIGUES, 2005) apontaram a contribuio da teoria de atitudes na
compreenso do comportamento e razes para a doao de sangue, tambm
apresentaram a existncia de um grande limite entre a atitude favorvel ou no para
a doao: incluem respostas afetivas (emoes positivas ao ato de doar), cognitivas
(crenas e percepes) e de procedimentos (recrutamento e o ato de doar em si).
Assim, o ato de doar ou no muito complexo e leva em conta diferentes fatores.
Sobre crenas14 e doao de sangue, Arajo (1995) pesquisou que as razes
alegadas pelos entrevistados para doar ou no sangue dependem das experincias
que as pessoas tiveram na vida e entre os fatores que podem influenciar a deciso
14 Crenas colocadas aqui, segundo significado proposto por Arajo (2005), que se refere s percepes do sujeito em relao a algum aspecto existente em seu mundo e que dizem respeito compreenso do sujeito em relao a si e ao meio que o cerca. O processamento de uma crena se d atravs de observao direta, de informaes captadas de fontes externas ou por meio de interferncias feitas pelo sujeito.
34
esto diferentes elementos da vida social (sexo, escolaridade, religio, classe social,
etc.). Desta forma, dividiu as crenas em comportamentais (negativas e/ou positivas)
e normativas (grupos ou pessoas cuja opinio sobre o assunto importante),
verificou quais delas influenciam a inteno de doar sangue e as caractersticas que
apresentam. Entre as crenas comportamentais citadas esto: contaminao por
doena, salvar vidas, ajudar pessoas que necessitam de doao, ter o sangue
renovado, ter solidariedade com os outros e ser obrigado a doar sempre. J entre as
crenas normativas, foram citadas: famlia, amigos (inclusive do trabalho), religio,
entidades educativas. Como resultado, constatou que as crenas no diferem em
relao ao sexo dos entrevistados e sim em relao escolaridade e que o ato de
doar sangue associado a crenas positivas (salvar vidas, ter solidariedade com os
outros, ter boa sade, entre outras) ou negativas (contaminao de doenas, passar
mal ou sentir fraqueza, medo de agulha, entre outros) e influenciadas por instituies
como a famlia e entidades religiosas ou grupo de amigos.
A doao um ato social individual que responde a diversas motivaes
pessoais, se expressa na/pela coletividade e apresentada em diferentes formas,
dependendo do ambiente social em que est inserida. A solidariedade, a
generosidade e o altrusmo podem servir de justificativa ao ato da doao pela falta
de garantias do sujeito sobre o seu existir e o seu futuro. A partir dessa anlise,
Lazaretti (2007) conclui que a ddiva mais importante para aquele que d, ainda
que exista a necessidade por parte daquele que a recebe.
Benetti (2004) aponta que as normas e padres da sociedade determinam
tanto comportamentos como tambm aes do ser humano nas diferentes situaes
do seu cotidiano. Assim, a doao de sangue est articulada a fatores emocionais e
enfatizada como um gesto de solidariedade que se realiza mediante troca de
experincias, exige ao e partilha de conhecimento e sentimento e, principalmente,
requer conciliar objetivo entre os sujeitos envolvidos para aumentar o grau de
satisfao e a valorizao da vida.
Benetti e Lenardt (2006) trazem a interpretao de solidariedade para doao
de sangue como sinal de sensibilidade com a dor e com o sofrimento alheio, num
processo de construo gradual, que fortalece a convivncia e as relaes sociais,
que compreende a reciprocidade e a disponibilidade, bases de sustentao das
relaes de ajuda, de satisfao das necessidades e anseios do ser humano na
35
sociedade. Benetti (2004) destaca que a solidariedade praticada pelos seres
humanos, uma vez que agem de acordo com aquilo que acreditam e so
impulsionados pela forma como sero aceitos pelos membros da sociedade.
Almeida (2007), em pesquisa sobre o conceito de solidariedade encontra
significados de vnculos recprocos e condio de um grupo resultante da
comunho de atitudes e sentimentos. Busca tambm o significado da palavra na
histria e relata a popularizao da expresso a partir da Dcada de 1980 com a
encclica Sollicitudo Rei Socialis, na qual a doutrina social da Igreja Catlica
construda com o conceito de solidariedade como determinao pessoal de
responsabilidade mtua.
A concepo de solidariedade trazida pelo senso comum ligada s
emoes, de sensibilidade com a carncia alheia e neste sentido, a falta de
reciprocidade pode fragilizar esta concepo se colocada apenas no campo dos
resultados, sem entender que para a ao acontecer, necessrio o ser e neste
sentido [...] somente podemos tomar atitudes solidrias porque existe uma
solidariedade essencial em nossa identidade humana. (ALMEIDA, 2007 p. 68).
Este carter ontolgico da solidariedade pode ser explicado assim
Antes de uma atitude desejvel em uma sociedade civilizada, a solidariedade parmetro mais profundo que define a individualidade humana como o resultado criativo da relao com outras individualidades. A realizao desta individualidade estimulada pela prtica da solidariedade. Ou seja, o humano solidrio tende a se realizar como pessoa. (ALMEIDA, 2007, p. 69).
Assim, a solidariedade entendida como um processo que se realiza
mediante a troca de experincias com o outro, que precisa de ao para se efetivar.
Entretanto esta ao resultante de uma escolha moralmente construda, com
normas e padres que a sociedade determina, e compreende um processo de troca,
de receptividade e de aceitao do outro.
Almeida (2007) considera presente no indivduo quatro vnculos de relaes
recprocas, constitutivos do ser humano e responsveis por defini-lo como um ser
solidrio:
36
1) relao com a materialidade: o corpo individual e as relaes com o
coletivo, aliado ao entendimento que somos parte de uma materialidade maior que
inclui pensar tambm a sensibilidade para com a natureza e as outras pessoas;
2) relao com a interioridade: a conscincia, intimidade e interioridade que
exprime desejos, vontades, razo, medo. Conhecer-se a si mesmo;
3) relao com a alteridade: o encontro com o outro fortalece o eu e a
insensibilidade a isso representa uma despersonalizao a este eu
4) relao com a totalidade: a fragmentao fragiliza a constituio humana
que no considera a necessidade de integrar diferentes partes numa identidade
individual plural.
na ligao com estas relaes que se d a formao da solidariedade como
vnculo de responsabilidade mtua. Assim, a importncia do engajamento do
indivduo no processo de socializao tambm constitutiva de sua identidade como
ser humano, tambm com suas fragilidades e inseguranas.
Benetti (2004) aponta que o doador de sangue um ser humano solidrio
uma vez que se sensibiliza com o outro e, nesta relao, encontra sua prpria
realizao. Oliveira (1993) refora esta idia quando apresenta que o engajamento
do ser humano no processo de socializao condio fundamental para que se
desenvolva o processo de formao do indivduo.
Schuch (2007) e Deola (2004) relatam que a motivao para a doao de
sangue pode vir tambm da inteno de receber algum benefcio em troca e est
disposto na RDC n 153, que a doao de sangue deve ser realizada sem
remunerao direta ou indireta. Entretanto, existe em Santa Catarina a Lei Estadual
n 10.567 de 07/11/1997 que isenta do valor da taxa de inscrio dos Concursos
Pblicos Estaduais o doador de sangue que tiver realizado trs doaes no perodo
de 12 meses anterior ao perodo de inscrio expresso no edital do concurso.
A deciso da doao pautada no recebimento de um benefcio pode
representar a omisso de informaes importantes na triagem clnica (aumentando
os riscos de transmisso de enfermidades infecciosas pela transfuso de sangue
e/ou hemocomponentes, caso este doador esteja no perodo chamado de janela
imunolgica15). Pode representar tambm um risco para a sade do doador que
15 Janela Imunolgica perodo que leva para o organismo desenvolver anticorpos para determinada presena viral. Hoje os exames sorolgicos so capazes de detectar apenas o anticorpo e no o vrus
37
realizar a doao de sangue com freqncia e intervalos menores ao estabelecido
na Resoluo n 153 (em diferentes bancos de sangue, cujos sistemas de cadastro
no sejam interligados; neste caso o risco clnico para o doador, que no respeitou
o limite mnimo de intervalo entre as doaes).
Assim, refletimos a partir do exposto pelos trabalhos pesquisados que a
doao de sangue pode representar neste sentido o recebimento de um benefcio.
Deola (2004, p. 55) alerta que a referida lei pe em cheque a Sade Pblica por
trazer no artigo 199 da Constituio Federal de 1988 a proibio de qualquer tipo de
comercializao do sangue e seus derivados.
importante apontar que a RDC n 153 determina critrios para a doao de
sangue, alm dos apontados anteriormente, relativos a fatores que visam tanto a
proteo ao doador (peso, jejum, alimentao, gravidez, uso de medicamentos,
entre outros) como tambm a proteo ao receptor (vacinaes, transfuses, risco
acrescido para AIDS, doena de Chagas, cirurgias recentes, entre outros).
Outro dado importante refere-se aos critrios estabelecidos como
determinantes para a doao de sangue uma vez que no qualquer pessoa que,
mesmo solidria, consciente, responsvel e saudvel pode ser doador de sangue.
Basicamente, o doador deve atender a trs critrios estabelecidos na Poltica
Nacional de Sangue: ser saudvel, ter peso superior a 50 kg e idade entre 18 e 65
anos.
Sobre a exigncia do limite de peso, um critrio determinado na Poltica
Nacional de Sangue que o indivduo pode doar at 8% do total do volume de sangue
que tem, sem prejudicar sua sade. Assim, as bolsas coletoras j so fabricadas
com a quantidade de anticoagulante necessrias para manter as propriedades do
sangue. O volume de sangue coletado em cada bolsa de 400 a 450 ml.
Existe atualmente na proposta da nova RDC a possibilidade de ampliar esta
idade para 67 anos, tendo em vista o aumento da expectativa de vida por entender
que o cuidado com a sade est mais presente na vida das pessoas, assim a
expectativa de vida tambm aumentou. Isso demonstra que os critrios
estabelecidos, mutveis, relacionados aos ganhos civilizatrios e processos polticos
terminam, tambm, por envolver a complexa trama da doao de sangue.
e, desta forma, uma pessoa pode j ter sido contaminada e ser portadora do vrus e os seus exames sero, ainda que por um perodo de alguns dias, negativos.
38
Desta forma fundamental pensar e lidar com o que est determinado e
disposto em lei como algo provisrio e/ou inacabado, uma vez que as conquistas se
processam na realidade. Entende-se aqui a realidade como dinmica e o que d
respostas agora, pode no caber numa realidade futura. Ora, a realidade, por ser
dinmica, processa e conforma mudanas que devem ser verificadas e entendidas
no seu contexto. Cristalizar informaes parar no tempo e assim deixar de
entender o cotidiano em toda a sua dinamicidade.
Paiva (1996) destaca que o Servio Social uma profisso que trabalha
diretamente com as questes sociais e em favor dos direitos humanos, assim
evidente que precisa estar em total sintonia com as transformaes cotidianas tanto
na produo como na reproduo social.
2.3 O COTIDIANO COMO ESPAO
Prope-se aqui a necessidade de entender a vida cotidiana16 como um
espao que vai alm das atividades rotineiras de todos os dias e pensar tambm
nela como um espao de resistncia com possibilidades transformadoras que
podem partir do inesperado, da revolta e, a partir da, buscar transformaes e
retornar para o cotidiano de forma modificada.
Deusdedith Junior (2008) aponta que no cotidiano que se constri a
existncia, devido s percepes que se tem da humanidade e da identidade17. Para
o autor, no cotidiano que se produz modos de ser e de viver pelas interaes com
tempo e espao, relaes sociais, saberes e desejos. Enfim, o cotidiano um
exerccio dirio de realizao e vivncia de atos que formam a identidade e, a
medida que interagimos, negociamos, propomos e impomos, formamos nossa
individualidade e construmos a nossa histria.
Falco (1989) expe que a vida cotidiana carrega em si o estabelecido para
todos os dias, como um ritual mecnico do que deve ser feito e em qual momento.
So caractersticas da vida cotidiana a rotina, o imediato, a funcionalidade e a 16 Heller (apud Falco, 1989. p23) define que A vida cotidiana a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. 17 Identidade aqui com base no entendimento de ... aquilo que concebemos como o modo de ser humano.Deusdedith Junior (p. 4, 2008).
39
sobrevivncia. Nele os atos so automticos e inconscientes e representa tanto a
segurana do dever cumprido, como as insatisfaes e angstias que ficam
esquecidas na cotidianidade.
Para Falco (1989), a vida cotidiana moldada pelo Estado para criar o
homem como uma mquina com eficincia produtiva e capaz de abdicar da sua
condio de cidado. Se se permitir romper com o posto no cotidiano, experimenta-
se a sensao e a conscincia do perceber-se, no tempo histrico, com a relao do
humano e humanidade. Com isso, ultrapassa o singular e a individualidade e chega-
se ao que a autora chama de unidade consciente do particular e do genrico
(FALCO, 1989, p. 26), descrevendo-o como inteiramente homem. desta forma
que o cotidiano sai da rotina como ato que simplesmente se repete e se revela
como hbrido e complexo.
Entretanto, para romper a cotidianidade posta, necessria a mediao entre
coisas que normalmente no se misturam e este processo Falco (1989) define
como homogeneizao, pois s ocorre quando o indivduo chega conscincia por
ter concentrado sua energia numa atividade humana genrica e no mais particular.
essa motivao de mudana de conscincia do homem inteiro para o inteiramente
homem que resulta na suspenso do cotidiano.
assim que se verifica que a vida cotidiana o centro da histria e imprime
ao cotidiano uma essncia particular e fundamental. O cotidiano um espao de
rotinas automticas, mas tambm fundamentalmente territrio onde age o
indivduo, tornando sua vida humana e permitindo construir uma conscincia sobre
ela, sobre si mesmo, sobre o outro e sobre o mundo. essa conscincia da doao
de sangue como ato de responsabilidade e solidariedade que foco das aes
desenvolvidas pelo Servio Social no SCD.
Falco (1989) destaca ainda quatro formas de suspenso da vida cotidiana o
trabalho, a arte, a cincia e a moral. Para Netto (1989), essas suspenses produzem
um retorno cotidianidade de um indivduo mais aprimorado justamente por ter sido
alcanado a conscincia humano-genrica; a vida cotidiana continua com suas
caractersticas, mas o sujeito que regressa da suspenso, est modificado.
Falco (1989) aponta tambm quatro questes determinantes para se pensar
a vida cotidiana hoje, apontadas a seguir:
40
1a) A sociedade capitalista que se formou ps-guerra nos pases
desenvolvidos resultou, dentre outras determinaes, das estratgias da classe
dominante, que para no perder o poder, revoluciona mais uma vez suas prprias
bases materiais e polticas, propondo uma nova perspectiva e formato de dominao
baseado no pensamento Keynesiano. O modelo keynesiano trouxe novas bases
tericas para este processo e introduziu contradies na prtica social e na vida
cotidiana traduzidas no enfraquecimento da classe trabalhadora como sujeito poltico
no no exerccio da cidadania e na perda de referncia para a reflexo e
transformao da sociedade.
Este Estado, chamado de Estado Providncia, marca a individualizao e o
cidado deixa de ter significado uma vez que se torna um usurio. Essa revoluo
passiva est mais evidente nos ltimos anos e a atual apatia e alienao so
explicados pelo individualismo exacerbado, pela massificao, pelo no
reconhecimento dos sujeitos coletivos, pela falta de inovao de modelos
revolucionrios e pela falta de valores sociais fundamentais para a transformao da
humanidade. O cidado foi substitudo pelo usurio no Estado-Providncia e a
cidadania se tornou uma iluso devido s relaes sociais de dominao e o prprio
cidado no se percebe como tal. O exerccio da cidadania foi abalado por estas
transformaes e trouxe controle vida cotidiana
2a) O progresso e o desenvolvimento tecnolgico imprimiram um ritmo vida
cotidiana que nada de antigo se mantm e nada de novo se fortalece. Toda a
complexidade, da informao e da informtica, afeta o comportamento dos
indivduos e cria uma falsa conscincia da vida, que refora a solido e o
isolamento, porque a vida permanece alienada. A modernidade refora uma
esperana nas microdecises e, ao encontro disso, est a mxima de que a prtica
social transformadora no pode ignorar o cotidiano.
3a) A alienao est presente na vida cotidiana e, sob um olhar objetivo, ela
um ingrediente na anulao do trabalho como atividade criadora e vital; na forma
subjetiva, verifica-se a reduo das relaes sociais a instrumento de dominao e
opresso. Ela responsvel por imprimir vida cotidiana uma vulgaridade,
manifestada na padronizao dos desejos e no comportamento acrtico.
4a) A existncia de um grande vazio na vida cotidiana uma vez que no se
realiza atividades criadoras e, acrescentado a isso, est presente a desesperana
41
da vontade coletiva pela transformao do mundo. Esse vazio naturalizou a
insatisfao e separou termos (como existncia e subsistncia, indivduo e cidado,
local e global, parte e todo) que so interdependentes para a busca de sadas
libertadoras.
5) Espao e tempo: dada a separao que cria o vazio da vida cotidiana, o
espao deixa de representar segurana e liberdade para representar confinamento,
transformando o cotidiano em privado e opressor. O tempo, expresso no
quantificvel e homogneo, tambm influencia o cotidiano medida que este se
torna repetitivo e obscurece outras dimenses da vida cotidiana.
6) Quebra do pacto de complementaridade expresso na intolerncia ao
diferentes, na valorizao do singular e particular e no isolamento e solido dos
indivduos.
7) O sagrado e espiritual no cotidiano so vividos como um processo de fuga
j que o comunitrio visto como apoio e no como jornada coletiva no processo de
libertao. Mas o espiritual importante fora e precisa ser entendida como capaz
de motivar o surgimento de valores de expresso social e transformao do
cotidiano
Desta forma, por entender a vida cotidiana como repleta de complexidade,
contraditoriedade e ambigidade, ela no pode ser negada como fonte de
conhecimento e prtica social e, nesta relao, que se pauta a prtica social dos
assistentes sociais. Para Falco (1989), o cotidiano espao e territrio cujas
relaes sociais se transformam, se concretizam e se perpetuam.
Para Suguihiro, (1999), a prtica cotidiana dos profissionais de Servio Social
pode revelar uma importante riqueza que se esconde sob a rotina das aes dirias.
Isso quer dizer que no cotidiano da prtica profissional existem possibilidades que,
se desvendadas, podem significar novas e efetivas formas de ao. Para tanto,
necessrio que os limites encontrados para o desenvolvimento da prtica
profissional no signifiquem apenas os condicionantes da ao. O desafio est em
conhecer e trabalhar com as possibilidades que esto presentes na vida cotidiana
profissional.
No cotidiano, o Servio Social pode utilizar de conquistas singulares para
imprimir uma direo social que se quer enquanto ao a suprimir a opresso e a
desigualdade. Nesse processo de construir a prtica social, necessrio atentar
42
para a relao dialtica entre singular e coletivo e produzir reflexes na e para esta
prtica, com todo o seu dinamismo e fluxo de relaes (FALCO, 1989). Para
Vasconcelos (2002) na complexidade do movimento da realidade em que vivemos
que esto assentadas para o assistente social as possibilidades de realizao do
trabalho profissional. Complementando esta idia, Netto (1989) reflete que a
realidade sempre ontolgica e representa uma totalidade, concreta, estruturada e
dialtica, no qual um fato qualquer pode vir a ser compreendido, seja com maior ou
menor grau de complexidade e se efetiva exatamente pelos processos de mediao.
atravs desse sistema de mediao que o movimento dialtico se realiza e ocorre
a elevao do abstrato ao concreto.
Falco (1989) afirma que a prtica social no Servio Social se alia s outras
prticas, articulada e embasada numa viso de mundo que fornea estratgias de
ao com base num processo reflexivo partilhado, coletivo, consciente e criativo. De
forma mais profunda e global, a prtica social18 figura-se em prxis social que supe
um processo de reflexo/ao em espiral que se ampliou da viso comum da prtica
pontual e utilitria e elevou o nvel de conscincia para uma ao transformadora,
resultando em expresso de sujeito coletivo.
Para Netto (1989), a prxis uma relao necessria na qual o sujeito que
investiga, num processo cclico, pode reproduzir o processo do objeto investigado e
imprimir um movimento constitutivo do ser social. Corroborando com isso, Barbosa
(1990) aponta que a prxis um determinante na produo e autocriao do
homem.
Vale destacar o que para Netto (1989) uma problemtica na vida cotidiana
contempornea, que est presente na coisificao das relaes que o indivduo
desenvolve enquanto tal. medida que a ordem capitalista no ocupa todos os
espaos da existncia individual, este indivduo busca como sada a manobra de
exercitar sua autonomia minimamente e a dominao se escamoteia em
administrao, sem que ele prprio e os outros percebam. Por fim, a vida cotidiana
se torna uma justaposio de objetos, substncia e implementos. Acesso
18 Prtica social aqui situada como possibilidade de compreenso e interveno na realidade, com vistas satisfao mais plena de suas necessidades e motivaes. determinada por jogo de foras, pelo grau de conscincia dos seus atores, pela viso de mundo que os orienta, pelo contexto onde se d, pelas necessidades e possibilidades prprias a seus atores e prprias realidade em que se situam. (FALCO, 1989, p. 58).
43
conscincia s se d quando o indivduo pode superar a singularidade e se
reconhecer como portador de conscincia humano-genrica e neste espao de
mediao entre singular e plural, ele se admite como inteiramente homem.
Finalizando, o foco especfico no cotidiano mostra a compreenso que
propomos fazer para a reflexo de como se desenvolve o processo de trabalho do
Servio Social no SCD.
A cotidianidade carrega em si uma complexidade heterognea pelo fato de
refletir-se nos mais diversos aspectos da vida (as relaes familiares e de trabalho, o
lazer e o descanso, as relaes de gnero, a educao, a sade) e nela, a relao
presente de particularidade. Entretanto, a conscincia como a capacidade que o
homem tem de conhecer valores e mandamentos morais e aplic-los em diferentes
situaes e que se pretende verificar no processo que envolve a doao de sangue,
existe quando rompida a cotidianidade e experimenta-se a suspenso do
cotidiano.
assim que partilhamos a importncia das assistentes Sociais do SCD
entenderem o cotidiano, o significado do sangue e a moral em relao doao de
sangue para fundamentar um trabalho pautado na educao e na informao como
forma de conscientizar a doao de sangue.
44
SEO 3 3.1 O PROCESSO DE TRABALHO DAS ASSISTENTES SOCIAIS NO SETOR DE CAPTAO DE DOADORES SCD O Servio Social se insere na diviso social do trabalho coletivo e tem na sua
trajetria histrica a caracterstica de trabalhador i