i
“O manuscrito da Síndrome Uruguai debaixo da lupa. Olhares sobre os
médicos clínicos geneticistas a partir de um relato de caso publicado”
por
Andrea Margarita Quadrelli Sánchez
Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências
na área de Saúde Pública.
Orientador principal: Prof. Dr. Luis David Castiel
Segunda orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso
Rio de Janeiro, março de 2014
ii
Esta tese, intitulada
“O manuscrito da Síndrome Uruguai debaixo da lupa. Olhares sobre os
médicos clínicos geneticistas a partir de um relato de caso publicado”
apresentada por
Andrea Margarita Quadrelli Sánchez
foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:
Prof. Dr. Octavio Andres Ramon Bonet
Prof. Dr. Francisco Romão Ferreira
Prof. Dr. Paulo Roberto Vasconcellos da Silva
Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta
Prof. Dr. Luis David Castiel – Orientador principal
Tese defendida e aprovada em 17 de março de 2014.
iii
Catalogação na fonte
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
Q1 Quadrelli Sánchez, Andrea Margarita
O manuscrito da Síndrome Uruguai debaixo da lupa.
Olhares sobre os médicos clínicos geneticistas a partir de um
relato de caso publicado. /Andrea Margarita Quadrelli Sánchez
-- 2014.
vii,169 f. : il.
Orientador: Castiel, Luis David
Cardoso, Maria Helena Cabral de Almeida
Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergi
Arouca, Rio de Janeiro, 2014.
1. Genética Médica. 2. Antropologia. 3. Medicina
Clínica. I. Título.
CDD – 22.ed. – 575
iv
Agradecimentos
Gostaria de agradecer muito especialmente a meus professores orientadores Maria
Helena e Luis pela valiosa e indispensável orientação, mas também pela delicadeza,
paciência, tempo, e liberdade que me deram para descobrir os caminhos deste trabalho.
Do mesmo modo, gostaria de agradecer também às suas famílias, Márcia e Carolina,
esposa e filha de Luis, que me receberam com carinho e me ofereceram, junto a Luis,
um lugar de encontro vital. Agradeço também a Oscar, esposo de Maria Helena, sempre
atento a resolver todos os detalhes necessários para melhorar minha comunicação com
Maria Helena e, assim, o meu próprio trabalho.
Agradeço de maneira especial à professora Maria Cristina Rodrigues Guilam, pois foi
graças à sua consideração e à sua resposta ao correio eletrônico de uma inquieta
estudante uruguaia que a possibilidade de estudar na ENSP conseguiu-se concretizar.
Também agradeço à professora Célia Leitão Ramos pelas cálidas e, ao mesmo tempo,
críticas conversas, sempre estimulantes. Do mesmo modo, agradeço ao professor Willer
Baumgarten Marcondes pelo entusiasmo e amabilidade. Ao professor Alberto Lopes
Najar por uma proposta didática provocante e comprometida, mas também integradora e
muito agradável. Agradeço especialmente aos professores Octavio Bonet (IFCS/UFRJ)
e Fermín Roland pela disposição em participar na minha banca de qualificação, e pelos
comentários e recomendações a meu trabalho.
Agradeço ao programa PEC-PG/CAPES para estudantes estrangeiros pela bolsa de
estudo.
Gostaria e preciso agradecer muito à minha querida amiga e colega Claudia Mora,
pela companhia, apoio e carinho. Tudo foi possível e mais grato graças a Claudia. Do
v
mesmo modo, agradeço à minha amiga e colega Rosana Lima Viana, sempre me
surpreendendo com os seus perspicazes e agudos comentários. E à minha amiga
Margareth Elias, pelas tardes de chá na sua casa que acalmaram a minha nostalgia.
Gostaria de lembrar aqui, especialmente, a nossa amiga e colega Ângela Sampaio, que
tristemente perdemos. Uma amiga atenciosa e carinhosa que faz muita falta.
Não posso deixar de agradecer à outra querida amiga, Eloisa Martin, e a seu
companheiro Claudio Pinheiro, que generosamente me ofereceram sua ajuda e sua casa
quando ainda não tinha um lugar onde me abrigar na imensa cidade carioca. Esses
primeiros dias foram importantes demais para o meu espírito saudoso. No mesmo
sentido, muito devo agradecer a uma admirável mulher, Dona Lacy Cruz da Silva, que
me acolheu no seu lar e que, além do apoio e carinho, significou uma outra fonte de
inesperada aprendizagem. Agradeço a oportunidade de viver junto a ela.
Gracias a todo el personal del instituto de genética de Montevideo, amigos, colegas,
médicas y médicos, y especialmente al personal de secretaría. Agradezco a todos por su
participación en esta investigación, por su paciencia y por su tiempo para responder a
mis preguntas y a mis pequeñas impertinencias en momentos de gran trabajo.
Agradezco especialmente a mi familia y a mis padres, por su apoyo incondicional de
muchas formas distintas e imprescindibles.
Le doy gracias a Pablo, mi esposo, por su comprensión, su estímulo y, sobre todo, por
su compañía indispensable.
vi
Resumo
Neste trabalho apresentamos um relato de caso publicado como objeto de reflexão. O
nosso ponto de partida é o reconhecimento do caráter narrativo do conhecimento clínico
e do método clínico como um método indiciário. O manuscrito da síndrome Uruguai
apresenta um padrão narrativo estrito e compacto ajustado às convenções do artigo
científico. Assim, no artigo publicado, o próprio método clínico, fundamento do
julgamento clínico, acaba sendo colocado em segundo plano. Os nossos encontros
metódicos foram diversos envolvendo, sobretudo, entrevistas em profundidade e
observações realizadas no instituto de genética, onde desenvolvem as suas atividades os
autores do manuscrito. A nossa pesquisa apresenta uma reconstrução parcial do
processo de estudo e elaboração diagnóstica da família da síndrome Uruguai mostrando
as circunstâncias do caso, a seleção e interpretação de pistas e sinais, e alguns dos
detalhes que foram relevantes no julgamento clínico. O caso apresentado no manuscrito
pode ser explicado como uma série de narrativas que surgem a partir de interpretações.
A este respeito, situamos o manuscrito no cenário de trabalho do instituto e mostramos
porque os médicos apresentam o manuscrito e o próprio estudo da família como atos de
quixotismo; no entanto, reconhecendo a relevância da narração dos relatos de caso no
processo de aprendizagem do raciocínio clínico e a necessidade de publicar como mais
uma ferramenta na educação do julgamento clínico. O manuscrito descobre um
determinado enfoque com relação à genética e a prática do médico clínico geneticista
enfatizando o conceito de caso individual, a relevância do tempo e do contexto, da
percepção clínica e das complexas interpretações envolvidas no raciocínio clínico,
recuperando uma concepção indiciária da medicina. Deste modo, insistimos na
recuperação de histórias de trabalho, com base no modelo de conhecimento indiciário
ou semiótico, e no reconhecimento deste como essencial à prática médica.
Palavras-chave: antropologia; genética médica; medicina clínica.
vii
Abstract
Here, we present a published case report as an object of reflection. Our point of
departure is the recognition of the narrative nature of clinical knowledge and of the
clinical method as a semiotic or presumptive method. The manuscript of the syndrome
Uruguay presents a strict and compact narrative adjusted to the conventions of a
scientific article. Thus, on the published article, the clinical method, basis of clinical
judgment, ends up being placed in the background. Our methodical meetings were
several involving, in particular, in-depth interviews and observations performed at the
institute of genetics, where the authors of the manuscript develop their activities. Our
research presents a partial reconstruction of the process of study and diagnosis of the
family of the syndrome Uruguay showing the circumstances of the case, the selection
and interpretation of clues and signs, and some of the details that were relevant in the
clinical judgment. The manuscript‟s case can be explained as a series of narratives
which emerge from interpretations. In this respect, we situate the manuscript in the
work context of the institute and we show why the physicians present the manuscript
and the study of the family as acts of quixotismo; however, recognizing the importance
of case reports narratives in the learning process of clinical reasoning and, also, the need
to publish as one more tool in clinical judgment education. The manuscript discovers a
particular focus with regard to genetics and the practice of clinical medical geneticist
emphasizing the concept of individual case, the relevance of time and context and
clinical perception, and the complex interpretations involved in clinical reasoning,
retrieving a circumstantial conception of medicine. Therefore, we insist on the recovery
of presumptive stories of work, based on the evidentiary or semiotic model of
knowledge, and in the recognition of the importance of this model in medical practice.
Key-words: anthropology; clinical medicine; medical genetics.
viii
Sumário
1. Introdução. Razões, fundamentos e composição ........................................................ 1
2. Uma forma de conhecer: o modelo indiciário ou semiótico.
O manuscrito e os médicos como semiotas .................................................................... 27
3. Na cozinha do sentido.
O manuscrito no cenário do instituto de genética e os médicos como narradores ......... 69
4. Genética, biomedicina e o manuscrito da síndrome Uruguai ............................. 123
5. Reflexões finais ........................................................................................................ 138
6. Referências .............................................................................................................. 143
Anexo: O manuscrito ................................................................................................... 151
ix
Lista de Figuras
Figura da Capa. Imagem correspondente a uma microscopia óptica de alta resolução
de cortes transversais e longitudinais de fibras musculares esqueléticas a partir de uma
mostra de biopsia muscular do paciente caso-probante descrito no manuscrito da
síndrome Uruguai.
Figura 1. The doctor (1887). Sir Luke Fildes. Óleo sobre tela 166 x 241 cm. The Tate
Britain, Londres, pp. 91.
Figura 2. (A) Desenho à mão livre de cromossomos metafásicos observados ao
microscópio óptico; (B) Esquema mostrando a classificação dos cromossomos em 7
grupos (A a G) de acordo com o seu comprimento relativo e posição do centrômero; (C)
metáfase com cromossomos corados com Giemsa no microscópio óptico, pp. 101.
Figura 3. Algumas das fotografias e radiografias dos quatro integrantes da família
apresentadas no manuscrito, pp. 110.
Figura 4. Primeira figura do manuscrito apresentada com a legenda “genealogia da
família”, pp. 117.
Figura 5. Três rascunhos da genealogia da família da síndrome Uruguai anexados na
história clínica ou prontuário de Juan, pp. 121.
Figura 6. (A) Capa do periódico American Journal of Medical Genetics correspondente
a um volume do ano 1988; (B) Frente do periódico correspondente ao mês, volume e
ano (2000) do exemplar onde foi publicado o manuscrito; (C) Capa correspondente a
um volume do ano 2009, pp. 128.
1
1. Introdução
Razões, fundamentos e composição
I
1. Este trabalho resume o resolver de uma preocupação que teve a sua origem na
publicação de um artigo em uma revista médica há 14 anos.
Por que seria importante reconhecer aqui, antes de tudo, essa preocupação? Porque
expor as razões desta pesquisa tem a ver com o descobrimento da pessoa do
pesquisador. Os diversos aspectos do “quem você é” mostram que a pesquisa em
ciências sociais é muito mais complicada que coletar dados, e que a “objetividade” é
talvez melhor concebida como um rótulo para esconder dificuldades (Agar, 1996: 91).
De fato, muito poucos podem acreditar em uma “objetividade descarnada” (Haraway,
1995: 315), especialmente depois que os construcionistas sociais1 mostraram que as
ideologias oficiais sobre a objetividade e o método científico são maus conselheiros
sobre a forma em que o conhecimento científico é realmente praticado (Haraway, 1995).
O problema não é o viés do pesquisador, mas o reconhecimento dos tipos de vieses
que podem existir, qual é a sua presença na pesquisa, como podem ser explicitados e
considerados como parte de uma metodologia de trabalho e no processo de análise
(Bourdieu et al., 1998; Agar, 1996).
Assim, o reconhecimento da raiz biográfica da pesquisadora, os seus interesses e os
seus vínculos com o seu objeto de pesquisa devem ser considerados informação
1 Como Knorr Cetina (1999, 2005) ou Latour &Woolgar (1997), entre outros.
2
relevante. Contudo, esta perspectiva não pode limitar-se a uma auto-análise, pelo
contrário, esta informação deve ser explicitada como parte de um processo de
conhecimento e reflexão analítica da pesquisa em seu conjunto (Cardoso, 2004).
Da mesma maneira, conhecer as circunstâncias que promoveram a nossa preocupação
ajuda a entender melhor a perspectiva de análise ou “recorte disciplinar” (Víctora et al.,
2000) escolhido para desenvolver este estudo, isto é, a área de conhecimento e o
referencial teórico selecionado para definir as questões que se pretendem compreender e
explicar.
O recorte disciplinar é um recorte dentro de outros (temático, empírico, metodológico)
no processo de construção do objeto de pesquisa. Sendo a construção do objeto um
trabalho de longa duração, que não se resolve de uma única vez, “através de uma sorte
de ato teórico inaugural” (Bourdieu & Wacquant, 1986: 318: nossa tradução), senão
pouco a pouco, com uma série de retoques sucessivos, correções e retificações, o objeto
de estudo desta pesquisa será apresentado gradativamente nas páginas seguintes.
2. O manuscrito2 que motivou esta pesquisa corresponde a um artigo publicado por
médicos geneticistas no periódico American Journal of Medical Genetics3 (ver Anexo).
No artigo se descreve uma nova doença genética identificada como síndrome Uruguai
Fácio-Cardio-Músculo-Esquelético4. A síndrome é definida como uma doença de
herança recessiva ligada ao cromossoma X que envolve alterações faciais, musculares,
2 Lembramos aqui um curioso dado linguístico, como coloca Castiel et al. (2011). No início de sua
trajetória, logo após a confecção pelos autores, o artigo científico costuma receber o nome original de manuscrito, “mesmo que na atualidade os textos sejam processados com recursos informáticos” (p. 147). Neste trabalho, utilizamos os nomes manuscrito, artigo e publicação como sinônimos. 3 Revista arbitrada publicada por Wiley-Liss (Estados Unidos) desde o ano 1977.
4 A síndrome Uruguai encontra-se indexada na base de dados sobre “Herança Mendeliana no Homem
Online” segundo a referência OMIM 300280: Uruguay Faciocardiomusculoskeletal syndrome; FCMS; FACIOCARDIOMUSCULOSKELETAL SYNDROME, URUGUAY TYPE (http://omim.org/entry/300280).
3
esqueléticas e cardíacas. A publicação descreve, desde o ponto de vista clínico, quatro
integrantes de uma mesma família com manifestações diversas da doença,
particularmente, desenvolvimento desmesurado dos músculos, alterações no músculo
cardíaco, mãos amplas e pés largos com deformações progressivas, luxação variável
congênita do quadril e escoliose.
Esta primeira síntese do manuscrito descobre algumas questões preliminares. Para
começar, o manuscrito refere-se a uma publicação em uma revista especializada em
genética médica5. De modo consequente, o assunto do manuscrito relata o estudo de
uma família e posterior diagnóstico de uma enfermidade genética não reportada
previamente na literatura médica internacional. Assim, a publicação centra-se na
operação de diagnose e caracterização semiológica (Camargo Jr., 1997; Romeiro, 1980)
de uma nova doença.
Frente à especificidade da questão apresentada - uma publicação em uma revista
especializada que define uma doença genética inédita - o leitor poderia perguntar-se:
como se reparou neste manuscrito em particular e, além disso, por que uma preocupação
com esse assunto? Mais uma vez, as respostas a essas perguntas são importantes porque
fazem parte do procedimento de elaboração de nosso objeto de estudo e,
fundamentalmente, contribuem na recuperação de um contexto específico. Quem
escreveu o manuscrito? Onde foi escrito? Como ficou conhecido pela pesquisadora? Por
que o interesse nesta publicação em particular?
5 Desde o ponto de vista médico, a disciplina de genética médica é definida como uma especialidade
médico - sanitária que aplica conhecimentos de genética na prática médica, especialmente dedicada ao estudo das doenças de origem genético (Guillén et al., 2011).
4
3. O manuscrito da síndrome Uruguai chegou até as minhas mãos através de um de
seus autores, meu pai, médico geneticista. Portanto, foi em um contexto familiar que eu
soube não somente do estudo da família, mas também tive a possibilidade de
acompanhar (no sentido de compartilhar informações e vivências diversas) o processo
de pesquisa.
O estudo da família da síndrome Uruguai começou a partir de uma consulta médica de
um jovem, que chamaremos Juan, que desde seus primeiros anos de vida tinha sido
paciente de um serviço de traumatologia e ortopedia por causa de um deslocamento
complexo do quadril. Poucos anos depois, surgiram deformações na coluna e, mais
tarde, nas mãos e nos pés. Nesse momento, por indicação de um cirurgião ortopédico, o
jovem foi enviado a uma consulta com um médico geneticista. Esta consulta foi
realizada em um instituto de genética médica (daqui em diante IGM) de Montevidéu
que desenvolve atividades nas áreas de diagnóstico pré e pós-natal de defeitos
congênitos. Com o objetivo de definir um diagnóstico, a equipe de geneticistas iniciou
um processo de pesquisa, que levou aproximadamente dois anos, e concluiu com a
publicação do manuscrito na revista Am J Med Genet.
Brevemente, esse processo de estudo foi além do âmbito mais tradicional do encontro
clínico em uma instituição médica. Também envolveu a participação de outros médicos
de diversas especialidades, de outras instituições e de outros países. De maneira
especial, a equipe médica do IGM viajou, em mais de uma oportunidade, até a região
(fronteira política uruguaio-brasileira) onde mora a ampla família estudada para visitar
seus diferentes membros e recolher informações ou realizar distintos estudos médicos.
Na época da investigação da família, eu estudava antropologia e fazia trabalho de
campo etnográfico na mesma região visitada pela equipe médica. Assim sendo,
5
acompanhei a equipe em duas oportunidades e conheci parte da família estudada. Além
disso, experimentei uma particular aproximação ao processo de pesquisa através dos
relatos de meu pai: relatos referidos aos diferentes momentos da pesquisa, ao
relacionamento com outros médicos e à sua participação no estudo, às relações com os
diferentes integrantes da família e às dificuldades e os desafios enfrentados no trabalho
junto à família.
Os meus estudos em antropologia estimularam a descoberta de novos pontos de vista,
especialmente para quem tinha sido formada em biologia e a sua única experiência de
trabalho tinha sido em um laboratório de pesquisa básica em imunologia. Apresento este
cenário para introduzir o particular movimento de aprendizagem que vivenciava e que,
certamente, implicava uma transformação no olhar e o surgimento de uma atitude mais
atenta e reflexiva: uma atitude crítica.
A atitude crítica é uma atitude filosófico-antropológica que coloca entre parênteses
nossas crenças para poder interrogar quais são suas causas e qual é seu sentido, e coloca
também uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os
comportamentos, os valores, nós mesmos (Chaui, 2005). As indagações fundamentais
da atitude filosófica compreendem uma interrogação sobre o porquê e o como disso
tudo e de nós próprios. Chaui lembra que para Platão a Filosofia começa com a
admiração ou, como escreveu seu discípulo Aristóteles, com o espanto: “admiração e
espanto significam que reconhecemos nossa ignorância e exatamente por isso podemos
superá-la” (p. 18) 6.
6 Rosana Guber (2001), antropóloga argentina, usa o termo “sabia ignorancia” para se referir ao
necessário reconhecimento de nosso desconhecimento frente a uma situação ou fenômeno social que tentamos compreender. Assim, quanto maior certeza das nossas incertezas, da nossa “sabia ignorancia”, maiores oportunidades de apreender novas formas de conhecer. O professor Luis Castiel (comunicação pessoal) lembra que a ideia de ‘docta ignorantia’ já se encontra em Nicolau de Cusa (1401- 1464), sendo o título de uma de suas obras mais conhecidas (Cusa, 1984). Como nos explica Luis, a douta ignorância consiste em “saber que não se sabe”, quer dizer, alguém possui uma “douta
6
O primeiro estímulo responsável por este trabalho, por nossa preocupação, foi a
surpresa, no seu principal sentido de espanto7. Até aqui tentamos mostrar um contexto
que permitisse entender melhor esse espanto, sendo a importância do contexto uma
mensagem essencial da antropologia (Bohannan, 1992).
Há 14 anos eu lia, pela primeira vez, o artigo publicado na revista Am J Med Genet,
onde a síndrome Uruguai é descrita e apresentada. Eu lia e me surpreendia. No decorrer
das páginas alguma coisa faltava. Não compreendia nem reconhecia a informação
apresentada. A surpresa, o espanto, desatou uma série de questões: por que me
surpreendo? O que estou procurando? Por que acho esse manuscrito tão estranho ou
incômodo? Essas foram as minhas primeiras perguntas, tão insistentemente formuladas,
que souberam esperar um bom tempo para encontrar algumas possíveis respostas.
II
1. Talvez fosse possível dizer que a escolha do objeto de estudo deste trabalho seguiu
um caminho “ingoldiano” em suas origens lembrando assim a Tim Ingold, antropólogo
inglês, que define a disciplina antropológica como uma interrogação incessante e
disciplinada sobre as condições e potencialidades da vida humana (Ingold, 2011).
Para Ingold, o objetivo principal da antropologia consiste na busca de um
entendimento amplo e comparativo, sobretudo, crítico do ser humano e do saber no
mundo que todos nós habitamos8. Deste modo, a antropologia é mais bem
ignorância” quando se sabe “ignorante”. Ou seja, alguém que possui um nível de reflexão que é capaz de reconhecer os limites e a imperfeição do próprio conhecimento. 7 O espanto é uma das reações que podem levar a enxergar mais e apreender algo mais profundo
(Ginzburg, 2001). 8 Ingold (2011) se preocupa particularmente com a distinção entre antropologia e etnografia, pois para
ele a representação da etnografia sob a aparência de método etnográfico tem sido muito prejudicial. Claro que a etnografia tem seus métodos, mas não é um método em si mesmo ou, em outras palavras, não é um conjunto de procedimentos formais desenhados para satisfazer os objetivos da pesquisa
7
compreendida como uma forma interrogadora de habitar o mundo, caracterizada pelo
„olhar de lado‟ da atitude comparativa9. Assim, a antropologia é concebida como uma
filosofia viva inserida em um compromisso de observação com o mundo, e nas
colaborações e correspondências com os seus habitantes (Ingold, 2011).
Portanto, o reconhecimento de um caminho “ingoldiano” na escolha ou na origem do
objeto de nosso trabalho tem a ver com o desenvolvimento de uma atitude crítica a
partir de uma reflexão antropológica como consequência de uma observação
comprometida, no sentido apontado por Ingold. Quer dizer, uma observação que
acontece no transcorrer de um envolvimento cotidiano, por causa de estar no mundo, em
uma conversa participativa com seus habitantes.
Essa ideia não somente é uma ideia sedutora, mas também recupera a inevitável
influência das nossas „marcas‟ de vida, da nossa própria história, as nossas origens e a
nossa querença na eleição das aproximações metodológicas, teorias ou “caixa de
ferramentas” (Foucault, 2010: 71) que usamos para dar conta dos problemas que nos
ocupam (Gil, 2007) 10
.
Aqui, atribuímos a uma instigação antropológica e particulares circunstâncias pessoais
o fato de ser o manuscrito da síndrome Uruguai o cerne deste trabalho, o seu primeiro
antropológica. A etnografia é uma prática em seu próprio direito, uma prática de descrição verbal: “antropologia não é etnografia. Os etnógrafos descrevem, principalmente através da escritura, como as pessoas de certo tempo e lugar percebem o mundo e atuam nele” (p. 243: grifos do autor: nossa tradução). Assim sendo, a etnografia não é um meio para os fins da antropologia, nem é a antropologia uma serva da etnografia. 9 O antropólogo se interessa pelo que as pessoas fazem, mas, particularmente, em porque fazem as
coisas de certa forma aqui e de outra além. A atitude antropológica de ‘olhar de lado’ refere-se ao questionamento: por que se faz desta forma em lugar daquela outra? A preocupação é com o descobrimento das diferenças e com as razões dessas diferenças (Ingold, 2002) ou, como coloca Goldman (2006: 163), a antropologia é um dos lugares para explicar racionalmente a razão ou a desrazão dos outros. 10
Em semelhança com a noção de sujeito posicionado (Rosaldo, 1993) que se refere às diferentes identidades sociais do pesquisador e a sua relevância na investigação antropológica. Ou seja, sujeitos preparados para conhecer certas coisas e não outras. Assim sendo, todas as nossas interpretações são sempre provisórias.
8
motivo. Entretanto, sendo o manuscrito o assunto principal da nossa pesquisa, para
melhor situá-lo, as abordagens desenvolvidas foram várias, assim como também foram
diversos os nossos encontros metódicos11
.
À vista disso, acreditamos que esta tese pode ser mais bem concebida como um livro
que contêm ensaios em torno de um mesmo tema. Entendendo por ensaio um “registro
de escritura” (Larrosa, 2003: 5: nossa tradução) que se apresenta, pelo menos, distinto
das formas mais convencionais de comunicação científica.
Para Larrosa, o ensaio coloca em questão as fronteiras, como divisões de
conhecimento, mostrando uma liberdade temática e formal. Da mesma maneira, o
ensaio é fragmentário, parcial, sem pretensões de sistema ou totalidade, e também não
reclama totalidades como o seu assunto12
. Assim, o ensaísta seleciona fragmentos como
o seu tema (um acontecimento, uma sensação, uma paisagem): “alguma coisa que o
ensaísta acha expressiva e sintomática, para lhe dar uma grande expressividade”
(ibidem, 11). Talvez, por isso, o ensaio também coloca em questão o assunto do método
porque o próprio ensaio é um „caminho‟ de exploração: “o ensaio é também uma figura
do desvio, do rodeio, da divagação ou da extravagância” (idem) 13
.
O ensaísta inicia esse seu caminho, fundamentalmente, a partir das suas paixões, de
seu amor ou de seu ódio pelo que lê (Larrosa, 2003). Assim, neste trabalho, como
pretensos ensaístas, apresentamos como ponto de partida o nosso desconcerto frente à
leitura de um artigo publicado por médicos geneticistas em um periódico especializado
11
Propositadamente, evitamos usar a palavra metodologia que a própria Haraway (2000) reconhece como “muito assustadora” (p. 82: nossa tradução). Em lugar de metodologias, esta autora prefere dizer que encontrou determinados caminhos de trabalho (aliás, recuperando o sentido etimológico do termo) que se tornaram mais conscientes ao longo dos anos. 12
Em todo momento, Larrosa retoma o pensamento de Adorno (1962). 13
Soares (2011) insiste que o bom ensaio, “aquele orientado pelo exercício rigoroso da razão” (p. 12), apresenta uma forma de pensamento capaz de dar conta da exploração multifacetada e pluridirecional do objeto analisado.
9
em medicina. No entanto, a forma do ensaio também necessita mobilizar seus recursos
para criar uma imagem que represente os movimentos de pensamento em sua busca por
apreender a complexidade do objeto (Soares, 2011). Ou seja, na resolução desse nosso
desconcerto ou preocupação é preciso explicitar um caminho de exploração. Desta
forma, sendo o manuscrito o resultado de um estudo desenvolvido por médicos clínicos
geneticistas, vamos a começar pelo reconhecimento da necessidade de entender como os
médicos trabalham.
2. Kathryn Montgomery (1991), professora de literatura que ensinava humanidades
médicas em uma escola de medicina, afirma que „se deparou‟ com a natureza
interpretativa da medicina, precisamente, a partir da sua própria necessidade de
compreender o conhecimento básico para fazer medicina. Esta autora desenvolveu um
projeto de pesquisa de orientação etnográfica14
com o objetivo de analisar o processo de
ensino-aprendizagem. Neste trabalho, Montgomery reconhece que:
“As descrições da doença do paciente, e o diagnóstico e o tratamento do médico eram
assuntos muito semelhantes aos desenvolvidos na minha própria disciplina. Eram
histórias, explicações narrativas das ações e dos motivos de seres humanos individuais,
médicos e pacientes” (p. xiii: nossa tradução).
Deste modo, a medicina clínica é concebida como, fundamentalmente, narrativa15
: “a
narrativa é essencial para pensar e saber em medicina clínica. Adotamos esta
racionalidade como óbvia, pois somos seres narrativos” (Montgomery, 2006: 47). Não
somente a prática diária do médico clínico está repleta de histórias (especialmente das
14
Quer dizer, que faz o esforço de trazer formas de entendimento particulares para a consciência, tornando-as explícitas e públicas, e “construindo um argumento acreditável sobre aquilo que se aprendeu que deve ser acreditado por outros que não estavam presentes” (Agar, 1996: 1: nossa tradução). Muitas vezes, os etnógrafos são acusados de fazer óbvio o que já é obvio (ou de tornar o estranho familiar), pois a sua tarefa, principalmente, é descrever o que todo mundo já sabe (DaMatta 1987; Wolcott, 1993). 15
Sendo a narrativa considerada, de uma forma geral, a organização de eventos no tempo (Cardoso et al., 2002).
10
histórias “inaugurais” que os pacientes relatam aos médicos no momento de apresentar
as suas doenças), mas também o próprio discurso médico sobre a doença assume a
forma de histórias. Neste último sentido, o relato de caso - instância central na educação
e treinamento do estudante de medicina e na prática médica - talvez seja o exemplo
mais ilustrativo de uma narrativa convencional no âmbito médico.
Os médicos escutam, recebem, interrogam e expandem a história do paciente
transformando-a, ao mesmo tempo, em informação médica. Assim sendo, mais tarde ou
mais cedo, a história retorna ao paciente como um diagnóstico que implica uma releitura
interpretativa (Montgomery, 1991). Quer dizer, a história do paciente - como parte do
esforço para determinar o significado dos eventos relatados pelo paciente - é
“recontada” pelo médico clínico como uma história médica. Assim, “o paciente será re-
apresentado numa narrativa, reconstruído no discurso médico, re-contado” (p. 10). A
interpretação médica sobre a história e os eventos da doença relatados pelo paciente são
transformados em uma narrativa médica com o objetivo de compreender, diagnosticar, e
tratar o paciente.
Deste modo, Montgomery reconhece duas narrativas diferentes: a história do paciente,
que apresenta para o médico o seu motivo de consulta, e a história do médico, que
deriva de uma interpretação da história do paciente a partir de fragmentos selecionados
ou aprofundados da primeira e, assim mesmo, dos sinais e sintomas do corpo do
paciente (através do método clínico, apresentado mais adiante). Desta forma, a narrativa
do paciente é reinterpretada pelo médico e transformada em uma narrativa médica, um
diagnóstico. Contudo, a narrativa do médico pode resultar estranha ou incompreensível
para o paciente, já que na sua tradução médica a experiência do paciente com respeito a
sua doença é modificada, comprimida ou “quase eliminada”:
11
“De volta ao paciente nesta forma alienígena, a narrativa médica é tudo, porém uma
versão irreconhecível da história do paciente – é tudo, porém inútil como explicação da
experiência do paciente” (p. 13: nossa tradução).
Montgomery é muito clara no reconhecimento, em primeira instância, da importância
da narrativa, das histórias, na prática do médico clínico. E, em segunda, do lugar da
existência de narrativas diferentes no diálogo médico-paciente.
O manuscrito da síndrome Uruguai apresenta uma narrativa escrita de um relato de
caso, sendo o caso a unidade básica de pensamento e discurso em medicina. Através do
caso, o conhecimento clínico é narrativamente organizado e comunicado (Montgomery,
1991). Ao mesmo tempo, o manuscrito é mais um exemplo de um relato de caso raro,
sendo publicado no ano 2000, até o momento deste trabalho (dezembro 2013), não se
registraram casos similares nas bases de dados analisadas (PubMed, OMIM, The
London Dysmorphology Database).
O manuscrito, escrito de uma forma muito convencional (Medawar, 1964), se esforça
em retratar a condição dos pacientes descritos em toda a sua particularidade. Deste
modo, o caso escrito lembra aos estudantes e profissionais em medicina sobre
manifestações da doença que não conhecem ou podem conhecer somente como uma
possibilidade em um periódico especializado (Montgomery, 1991) 16
.
Aqui nos interessa compreender como se instrumenta esse processo de construção da
narrativa médica, neste caso, no formato escrito de “caso raro publicado” com o
objetivo de definir um diagnóstico. Um processo que envolve não somente uma
interpretação de uma história “inaugural” apresentada pelo paciente ao médico, mas
também uma interpretação de sinais e sintomas no corpo do paciente.
16
Geralmente, os casos raros são escritos para ser publicados em revistas de medicina especializadas com o principal objetivo de que outros médicos possam aprender; questão que será discutida mais adiante.
12
3. Para Montgomery (1991, 2006), o caso médico, a leitura de caso (Camargo Jr.,
1997) ou o relato de caso abrangem uma racionalidade narrativa que é desenvolvida
pelos médicos na sua prática clínica cotidiana no estudo e diagnóstico da doença em
cada paciente individual. Esta racionalidade narrativa pode ser comparada com o
trabalho de um detetive que, frente a um conjunto particular de circunstâncias - o caso -
adota um procedimento racional definido como abdutivo.
A abdução é um termo desenvolvido por Charles Peirce (1931-1966), considerado um
dos fundadores da semiótica moderna. Segundo Peirce, abdução é o processo de
formação de uma hipótese explanatória. Trata-se de uma operação lógica que introduz
uma ideia nova; “a dedução prova que algo deve ser; a indução mostra que alguma coisa
é realmente operativa; a abdução simplesmente sugere que alguma coisa pode ser”
(Peirce, 2010: 220: grifos do autor) 17
.
No caso do médico clínico, o raciocínio é circular se iniciando com a observação de
um fenômeno particular que, usando indícios preliminares, elabora hipóteses sobre as
possíveis causas até atingir uma conclusão viável ou um diagnóstico preliminar que
“deve voltar ao paciente para ser testado contra a evidência” (Montgomery, 2006: 91),
sendo este um procedimento interpretativo, abdutivo, retrospectivo e narrativo:
“Como o detetive Sherlock Holmes, o médico usa a narrativa, primeiro, como um
meio para organizar os detalhes que, com sorte e um pensamento cuidadoso, serão
desenvolvidos em uma generalização testável e, logo, para demonstrar a precisão desta
generalização na cadeia cronológica de seus detalhes” (Montgomery, 1991: 25: nossa
tradução).
17
Para Harrowitz (2008), a abdução, em essência, descreve um processo no qual o sujeito é confrontado com um fato observado que precisa de explicação e que aparenta ser importante: “a abdução é um degrau entre um fato e a sua origem; o salto instintivo, perceptivo, que permite ao sujeito supor uma origem, a qual pode, então, ser testada para provar, ou negar, a hipótese. A abdução é uma teoria desenvolvida para explicar um fato pré-existente” (p. 202).
13
De fato, a visão da medicina como uma “ciência” obscurece a sua compreensão como
um “empreendimento humano que fala principalmente através das narrativas
construídas como hipóteses sobre as doenças” (p. 26). No entanto, a medicina “embora
não sendo uma ciência, tem sido cada vez mais ligada à pesquisa científica”
(Feyerabend, 2007: 333). Como lembra Laín Entralgo (1984), parece óbvio pensar que
o saber médico é um saber científico, dado que muitas das chamadas ciências médicas
(anatomia, fisiologia, patologia, etc.) fazem parte do currículo dos estudos em medicina.
Contudo, para este autor, o saber médico não é um saber científico, nem uma ciência
aplicada, nem uma técnica, mas uma ciência operativa. É ciência porque o ato médico
implica saberes científicos. É ciência operativa, porque o ato médico, como julgamento
diagnóstico modifica, para o bem ou para o mal, a realidade do estado do doente.
Neste último sentido, Montgomery (1991, 2006) insiste na importância do
reconhecimento da medicina como uma prática fundamentada nas habilidades
diagnósticas e nas experiências clínicas dos médicos. A medicina não é uma ciência,
embora dependa de tecnologias ou informações de caráter científico e de pesquisas
clínicas: a medicina é ainda uma prática que envolve a prevenção da doença, o cuidado
da pessoa doente e o alivio do sofrimento presente e, portanto, abarca um corpo de
conhecimentos práticos fundamentados na compreensão e tratamento de casos
particulares (Montgomery, 2006). Frente ao paciente, o médico clínico só pode
conhecer uma doença em forma indireta, dependendo da interpretação dos signos que
observa e da história dos sintomas relatados pelo paciente. Assim sendo, os médicos
trabalham em condições de irremediável incerteza:
“O que caracteriza o atendimento dos pacientes, no entanto, é a contingência. O que
exige um raciocínio prático, ou phronesis, que Aristóteles descreveu como uma
capacidade interpretativa flexível que permite (...) determinar o melhor caminho a
seguir segundo as circunstâncias” (p. 4: nossa tradução).
14
Deste modo, a prática da medicina é uma atividade interpretativa e a capacidade
interpretativa é o julgamento clínico que é diferente da racionalidade da ciência que,
frequentemente, a medicina idealiza. Na medicina, são objetivos principais o
diagnóstico do paciente e a consideração das possíveis terapias em função das
circunstâncias particulares dele. Pela sua natureza, estes objetivos compreendem
situações complexas e potencialmente incertas, apesar dos avanços que a informação
científica possa proporcionar, e que Montgomery (2006) apresenta como a incerteza
radical da prática clínica.
Assim sendo, a medicina é, fundamentalmente, uma capacidade de trabalho para
resolver como determinados princípios científicos ou diretrizes clínicas se podem
aplicar em um paciente em particular, isto é, o exercício de um raciocínio prático ou
phronesis. Além disso, o principal foco da medicina é o paciente individual, portanto,
esta adaptação de princípios gerais a um caso particular, significa que o conhecimento
possuído pelos médicos clínicos é narrativamente construído e transmitido: de que outro
modo o indivíduo poderia ser conhecido? (Montgomery, 1991).
Nas suas reflexões, esta autora reconhece que utiliza a palavra ciência18
num sentido
limitado, conservador ou positivista, visão que prevaleceria no âmbito médico. De fato,
muitos médicos poderiam se incomodar frente à ideia de que a medicina não é uma
ciência:
“Temos dado a nossa fé à ciência, e a importância da medicina para nós e o seu
sucesso no século XX nos levaram a acreditar – a médicos, assim como também a
pacientes – que a medicina é uma ciência em si mesma. A evidência circunstancial é
forte. Durante anos, os médicos apreendem os minúsculos detalhes da biologia humana.
Alguns deles desenvolvem investigações científicas. Eles usam máquinas intrincadas
concebidas de acordo com os princípios científicos para detectar e tratar doenças e
18
Já Paul Feyerabend (2007) em seu trabalho “Contra o método”, publicado no ano 1975, refletia que se bem a palavra “ciência” é uma única palavra, não existe uma entidade única que se corresponda com essa palavra. A ampla divergência entre indivíduos, escolas, períodos históricos e ciências inteiras faz extremamente difícil a identificação de “princípios abrangentes, quer de método, quer de fato” (p. 333).
15
problemas físicos (...) a „ciência‟ serve como sinal de seu conhecimento especial” (p.
xviii: nossa tradução).
Sem deixar de concordar com os estudos desenvolvidos por autores como Feyerabend
(2007), Knorr Cetina (1999, 2005) ou Latour & Woolgar (1997) 19
que mostram que
todo conhecimento é inevitavelmente subjetivo e contextual, o reconhecimento da
natureza subjetiva do conhecimento não altera a nossa experiência de que certos
fenômenos na área da química e na física, e muitos na biologia humana, “são mais
reproduzíveis e governados por certas regras” (Montgomery 1991: 175) do que os
fenômenos estudados pelas ciências sociais, como economia e ciências políticas ou
filosofia e literatura.
No entanto, a educação científica dos médicos e o seu treinamento tecnológico não
alteram a estrutura narrativa do seu conhecimento prático. A metodologia característica
do conhecimento médico consiste na interpretação dos signos físicos de cada paciente
individual para construir uma retrospectiva cronológica da doença:
“Longe de ser objetiva, ou uma questão de fatos concretos, a medicina é baseada em
um conhecimento subjetivo – não o do corpo generalizado nos livros didáticos, o que é
científico suficiente – mas na compreensão do médico sobre um paciente em particular”
(p. xx: nossa tradução).
19
Precisamente, Feyerabend (2007) recomendava o que pouco mais tarde investigadores das ciências sociais, sociólogos e antropólogos, realizariam em laboratórios de investigação científica nos Estados Unidos. Estes estudos se caracterizaram por, ao menos, quatro aspectos em comum: (a) uma concepção do laboratório como um lugar “ordinário” (e não “extraordinário”) dessacralizando a ciência e observando detalhadamente a vida cotidiana destes espaços particulares; (b) uma nova perspectiva metodológica para estudar a ciência “enquanto se faz” de inspiração etnográfica (se bem que o que se entende por etnografia pode ter sentidos bem diferentes para cada um dos autores citados); (c) a ideia de negociação de sentidos e objetos e, por fim, (d) o caráter localmente situado das práticas (Kreimer, 2005). Como assinala Hochman (1994), nos estudos de Latour, Woolgar e Knorr-Cetina, a reflexividade é entendida como o exame da atividade científica com métodos similares aos dos praticantes observados, em um processo no qual o observador é tão construtor de fatos quanto o cientista observado: “não há diferença de status epistemológico entre a construção dos fatos pelo cientista e o relato deste processo, também uma construção, pelos sociólogos” (p. 214: grifos do autor). Uma característica que aglutina estes estudos antropológicos relativos à “ciência em ação” é a concepção da ciência como produto de uma construção social, “marcada pelas contingências situacionais e pelos interesses específicos dos contextos nos quais tais construções são realizadas” (Bonet, 2004: 23).
16
“O diagnóstico, prognóstico e tratamento da doença continuam exigindo uma prática
interpretativa, característica principal do julgamento clínico” (Montgomery, 2006: 38:
nossa tradução).
Deste modo, a semiologia médica, base do raciocínio ou julgamento clínico20
, pode
ser resumida como um conjunto de ações ordenadas realizadas pelo médico com o
objetivo de concluir o diagnóstico do paciente, “oferecer o tratamento devido e
assegurar a adesão a ele” (Aquino et al., 2012: 103). O método de pesquisa da
semiologia médica, isto é, o método clínico (aprofundado no seguinte capítulo) não
pode ser totalmente explicado em bases racionais e científicas, pois a seleção e
interpretação de “pistas” que podem orientar o raciocínio clínico na formulação de
hipóteses diagnósticas vão depender não só do conhecimento técnico ou científico do
médico, mas também da sua experiência pessoal e profissional. De fato, em medicina, a
capacidade interpretativa é o raciocínio clínico e a clínica permanece uma prática
interpretativa, conjetural (Cardoso, 2000; Aquino et al., 2012).
4. Montgomery compara o trabalho do médico clínico com o trabalho de um detetive,
como Sherlock Holmes, para mostrar a racionalidade narrativa, interpretativa e abdutiva
compartida por ambos. Contudo, esta epistemologia prática ou phronesis não é
plenamente reconhecida no exercício cotidiano do médico clínico nem na educação em
medicina (Montgomery, 2006).
No âmbito das ciências humanas, o historiador Carlo Ginzburg (1989) reconhece a
existência de um modelo epistemológico amplamente operante de fato, ainda que não
20
Que compreende a tomada de decisões clínicas ou a solução de problemas clínicos, definido como um componente essencial à competência profissional dos médicos (Aquino et al., 2012).
17
“teorizado explicitamente” (p. 143) 21
. Ginzburg sustenta a ideia de que, “se a realidade
é opaca” (p. 177) existem zonas privilegiadas, sinais ou indícios, que permitem decifrá-
la. Assim, os indícios se apresentam como ferramentas privilegiadas para compreender
realidades de difícil apreensão, através da análise de expressões singulares e específicas
de dimensões mais gerais.
Em um sentido estrito, um indício é uma impressão, traço, elemento ou sinal que,
sendo o resultado involuntário de seu próprio autor, surge como um dado aparentemente
marginal ou irrelevante. No entanto, uma análise mais cuidadosa mostra a importância
desse dado que, justamente, não sendo acessível de forma direta, revela-se através de
dados singulares, os indícios, especialmente para aqueles treinados e educados para
decifrá-los (Ginzburg, 1987, 1989; Rojas, 2007).
Como Montgomery (1991, 2006), Ginzburg (1989) propõe como exemplos deste
modelo o trabalho de três grandes “detetives”: Giovanni Morelli, Sigmund Freud e
Sherlock Holmes.
O italiano Giovanni Morelli, um historiador da arte do século dezenove, propunha
examinar os detalhes e pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas
características da escola a que o pintor pertencia (os lóbulos das orelhas, as unhas, as
formas dos dedos das mãos e dos pés) para reconhecer, por exemplo, a forma de orelha
própria de Botticelli, a de Cosmè Tura e assim por diante: “traços presentes nos
originais, mas não nas cópias” (p. 144).
O método indiciário de Morelli pode aproximar-se também ao que era atribuído a
Sherlock Holmes pelo seu criador Conan Doyle: “o conhecedor de arte é comparável ao
21 O artigo “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário” é considerado o ensaio de metodologia histórica
e social mais relevante dos últimos anos, com o mérito de explicitar e teorizar modos específicos de conhecimento ou “estratégias epistemológicas de apreensão do real” (Rojas, 2007: 13).
18
detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis
para a maioria” (ibidem, 145). E também ao trabalho de Freud, para quem a leitura dos
ensaios de Morelli representou a proposta de um método interpretativo centrado sobre
os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores (ibidem, 149).
Nem mais nem menos, para Ginzburg, na tríade Morelli-Freud-Conan Doyle, entrevê-
se o modelo da semiótica médica, a disciplina que permite diagnosticar as doenças
inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes
aos olhos do leigo: uma atitude orientada para a análise de casos individuais,
reconstruíveis somente através de pistas, sintomas ou indícios.
No caso da medicina hipocrática, que definiu seus métodos refletindo sobre a noção
decisiva de sintoma22
, isto é particularmente evidente: “apenas observando atentamente
e registrando com extrema minúcia todos os sintomas é possível elaborar „histórias‟
precisas de cada doença” (ibidem, 155). Deste modo, Cardoso (2000) articula de fato o
pensamento de Montgomery (1991) e Ginzburg (1989) quando afirma que o modelo
epistemológico indiciário aproxima os campos de saber da história e da medicina, e os
seus atores:
“Foi a partir da observação e do registro atento dos eventos que surgiram as primeiras
histórias; foi também observando e registrando cuidadosamente todos os sintomas,
como afirmavam os hipocráticos, que se fizeram histórias acuradas de cada doença. A
história, tão ligada ao empírico quanto à medicina, não ignora séries de fenômenos
comparáveis, e sua estratégia de conhecimento foi arquitetada através do exame de
22
Eco (1976) lembra uma antiga distinção entre signos artificiais e naturais. Os primeiros são emitidos conscientemente, através de convenções precisas, para comunicar alguma coisa a alguém (palavras, símbolos gráficos, desenhos, etc.). Neste caso, sempre existe um emitente. No caso dos signos naturais, não se observa um emitente intencional, procederiam de uma fonte natural, sendo interpretados como sintomas ou indícios como, por exemplo, manchas na pele que permitem ao médico diagnosticar uma doença hepática. Os signos naturais - como os signos médicos ou sintomas - podem ser considerados signos sempre que alguém assim os interprete com base em um sistema de convenções, no caso, os códigos da semiótica médica (Eco, 1976). Este é um aspecto principal. Os códigos são a condição necessária e suficiente para a existência do signo: um sintoma médico é signo na medida em que existe um código de semiótica médica, com independência da intenção do paciente. Ou seja, o que contribui na definição de um signo é a possibilidade de instituir uma relação entre significante e significado sobre a base de um código, e não o fato de que o significante tenha sido emitido intencionalmente.
19
casos particulares, mesmo que o particular, no seu caso, se refira a um grupo ou a uma
sociedade inteira” (Cardoso, 2000: 553).
Por estes motivos, como afirma o próprio Ginzburg (1989), o historiador é
comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal
específico de cada doente; e, como o do médico, “o conhecimento histórico é indireto,
indiciário, conjetural” (p. 157).
Para Rojas (2007), o modelo indiciário constitui uma “pequena revolução
epistemológica” (p. 31) pelo reconhecimento de novas formas de racionalidade,
especialmente, frente ao modelo da cientificidade ou racionalidade moderna,
essencialmente quantificante e abstrato. Assim sendo, o modelo indiciário legitima e
reivindica outros modos diversos de saber e de conhecer - ou “elementos
imponderáveis” (Ginzburg, 1989: 179), com uma maior capacidade para captar o
qualitativo, o individual, o concreto e o singular (ibidem, 21).
De fato, segundo já dito, Ginzburg (1989) define a medicina como uma disciplina
indiciária que não pode reunir os critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma
galileano:
“Trata-se de disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos,
situações e documentos individuais, enquanto individuais, e justamente por isso
alcançam resultados que têm uma margem ineliminável de causalidade” (p. 156: grifos
do autor).
Precisamente, as razões da incerteza da medicina podem-se encontrar, por um lado, no
conhecimento indireto, indiciário das doenças (o corpo vivo intangível) e no fato de
que, em cada individuo, a doença pode assumir características diferentes. Assim, na
medicina, como disciplina conjetural que compreende múltiplas variáveis mal
controladas, a narrativa é um modo principal de representar a doença e as suas causas
(Montgomery, 2006). Além disso, uma perspectiva narrativa concede à
20
circunstancialidade e deixa espaço para “a contingência, conjuntura e causas múltiplas
que se desenrolam ao longo do tempo” (p. 80).
5. O manuscrito da síndrome Uruguai apresenta uma narrativa escrita de um caso.
Certamente, o caso, o estudo da família, envolveu o processo de escuta, interrogação e
expansão da história dos integrantes da família, junto com o processo de reinterpretação
e transformação destas histórias, sinais e sintomas, em uma narrativa médica para
definir um diagnóstico. Segundo já dito, esse processo de trabalho compreende uma
racionalidade narrativa onde a capacidade interpretativa principal é o julgamento
clínico, que é diferente da racionalidade da ciência, sendo definido como o exercício de
um raciocínio prático ou phronesis. Assim sendo, o método clínico, método de pesquisa
da semiologia médica, pode ser definido como um método indiciário.
No entanto, a descrição narrativa do manuscrito da síndrome Uruguai é realizada
segundo a hipótese de trabalho de que os fenômenos clínicos podem ser explicados de
uma forma linear na sua causalidade e com um objetivo diagnóstico. De fato, o relato de
caso escrito compreende uma “tensão epistemológica” (Montgomery, 1991: 94) sendo,
ao mesmo tempo, uma descrição analítica que pretende apresentar um relato científico
de uma única instância de uma doença humana, mas também uma história narrativa,
“concluída mais ou menos bem e julgada de acordo com as convenções da narrativa
médica” (idem) 23
.
23
Com respeito à publicação em periódicos especializados, o formato do relato de caso envolveria, principalmente, a descrição de síndromes raras não descritas previamente; casos de pacientes com associações pouco frequentes com outras doenças, e casos com evoluções inesperadas devido a um efeito terapêutico ou a uma reação adversa por causa da medicação utilizada (Huth, 1982). Para Montgomery (1991), esta descrição dos conteúdos admissíveis no relato de caso evidenciaria a preocupação de Huth a respeito da subjetividade e contingência implicada na construção do caso. De fato, a partir do ano 1960 os relatos de caso têm sido descartados como antiquados ou não-científicos por um número importante de revistas médicas, especialmente em favor das “Cartas ao Editor” e as
21
A questão que para nós se coloca, partindo das concepções de Montgomery, é que no
relato de caso publicado a construção narrativa assume a sua forma “mais compacta,
refinada e reformulada” (p. 94). E mais, também tal como Montgomery (1991), o relato
de caso aqui enfocado, identifica a narrativa médica como uma “forma alienígena” para
o paciente que pouco pode reconhecer, nesta nova narrativa, a sua própria experiência.
Aqui, a partir da leitura do manuscrito da síndrome Uruguai, também podemos
afirmar que experimentamos a narrativa publicada como uma “forma alienígena”. E
essa “forma alienígena” foi a fonte de nosso desconcerto e espanto. Porém,
Montgomery explica que a forma alienígena da narrativa médica é causada pela
modificação e compressão da experiência do paciente com respeito a sua doença. No
caso do manuscrito, qual seria a experiência perdida? Há uma experiência perdida? Que
questões estariam sendo excluídas?
O ponto de partida, segundo se explicou antes, é o reconhecimento de que a narrativa
médica (tanto o relato de caso escrito e publicado como o apresentado oralmente em
encontros clínicos) apropria e organiza a história do paciente como parte de uma
“travessia diagnóstica” (Bonet, 2004) que envolve reconstruções interpretativas das
informações reunidas pelo médico. As palavras e os corpos dos pacientes são analisados
em busca de pistas ou sinais que irão revelar mais sobre a experiência que representam
(Montgomery, 1991) 24
. Entretanto, o médico deve fazer sentido da história do paciente
nos termos e conceitos geralmente aceitos do “mundo cientificamente orientado” (p.
124) apresentando um relatório ou um manuscrito „objetivo‟, explicativo, com status
“Comunicações de Síndromes” que se continuam publicando de forma regular, e que também envolvem a apresentação de casos únicos (idem). 24
Como aponta a professora Cardoso (comunicação pessoal), hoje em dia esses sinais são procurados nas palavras e nos corpos exteriormente e interiormente (via técnicas de imagem, citogenética, biologia molecular, etc.)
22
científico25
. Assim sendo, o caso publicado em um periódico especializado deve seguir
determinadas convenções ou padrão narrativo (Knorr Cetina, 2005; Montgomery, 1991;
Medawar, 1964) que têm, entre outras funções, controlar aspectos considerados
subjetivos, quer dizer, não somente confinar a experiência do paciente à reconstrução
que os médicos fazem dos eventos, mas também apresentar uma narrativa passiva, e um
narrador padronizado.
Com respeito à pesquisa da família que se descreve no manuscrito, antes
mencionamos que tivemos a oportunidade de acompanhar e conhecer parte da
investigação dos médicos geneticistas, especialmente, através de seus relatos. A
primeira leitura do manuscrito nos estranhou, justamente, por causa de uma ausência. O
„olhar objetivo‟ da narrativa publicada também eclipsou o próprio método clínico,
indiciário, característico da semiologia médica e fundamento do julgamento clínico.
Quer dizer, as circunstâncias do caso, a seleção e interpretação de “pistas”, os detalhes
que foram „operativos‟ no raciocínio clínico e fizeram parte da elaboração de
hipóteses/abduções que, associadas com o raciocínio indutivo-dedutivo dos médicos
clínicos, foram decisivas para o diagnóstico26
.
25
Por esse motivo, entre outros, embora a história do paciente se encontre contida e explicada pelo médico, não é substituída por ela. Assim as duas narrativas, a do médico e a do paciente, são incomensuráveis, nem podem ser compreendidas (ou satisfatoriamente reduzidas) uma nos termos da outra (Montgomery, 1991). 26
Além disso, no caso publicado, a diferença dos casos relatados por Sherlock Holmes, o suspenso e o mistério não tem lugar e, de fato, são evitados: “o narrador do relato de caso adota um tom imparcial que exclui à emoção e centra o problema em seus fundamentos clínicos” (Montgomery, 1991: 97: nossa tradução). Assim, o pensamento, o sentimento, o reconhecimento da subjetividade do médico não são incluídos. Não é possível conhecer qualquer frustração, emoção ou satisfação que possa ter existido na resolução do diagnóstico de uma nova doença. Neste sentido, lembramos aqui o conceito de “tensão estruturante” desenvolvido por Bonet (2004) para se referir à tensão que experimentam os estudantes de medicina no seu processo de aprendizagem. Como explica o autor, esta tensão surge em todos os que, de alguma maneira, fazem algo do que em nossa cultura ocidental moderna considera-se ‘científico’ sendo que, para que assim seja definido, separe o objetivo, o saber, do subjetivo, o sentir: “na diferença entre nós, antropólogos, e eles, médicos, é que estes últimos trabalham, no final das contas, com a vida e a morte; e se tem a idéia de que o ‘sentir’ os perturba para ‘saber’ racionalmente o que fazer, esta oposição converte-se em uma tensão poderosa” (p. 16).
23
Como explica Montgomery, os médicos como narradores do caso no manuscrito
publicado não têm a obrigação de apresentar uma descrição momento a momento dos
fatos acontecidos; na verdade, o relato do caso, geralmente é escrito tempo depois da
elaboração diagnóstica, e demanda algum tipo de processo de todas as questões
circunstanciais referidas à pesquisa para apresentar um resumo ordenado “pronto para
ser assimilado e usado pelo leitor” (p. 101). Assim, no relato de caso escrito somos
chamados a ser menos ativos e imaginativos à medida que o significado da doença é
revelado, pois o tempo passou não somente entre a escrita do relato de caso e a nossa
leitura, mas também entre o desdobramento do curso dos acontecimentos e a escritura;
deste modo, “o relato de caso tem com objetivo principal reivindicar a compreensão
sobre tudo o que aconteceu” (p. 102).
Com respeito ao manuscrito da síndrome Uruguai, muito tempo passou entre a escrita
do relato de caso e a nossa leitura, e ainda mais tempo com relação ao processo de
pesquisa da família e à elaboração diagnóstica. Ainda assim, assumimos o risco de
recuperar o “enredo” do diagnóstico, em termos de Montgomery. Quer dizer, uma
reconstrução narrativa junto com a explicação de uma sequência de eventos
subjetivamente relatados cujos sinais foram analisados e interpretados por médicos
clínicos geneticistas. Ou seja, recuperar histórias de trabalho com base no modelo de
conhecimento indiciário ou semiótico (Ginzburg, 1989).
24
III
O manuscrito da síndrome Uruguai apresenta um relato de caso que compreende uma
pesquisa de médicos clínicos geneticistas com respeito a uma nova síndrome genética.
O capítulo 2 começa com uma análise que mostra algumas das convenções e estratégias
características na escrita de um artigo publicado em um periódico especializado e,
portanto, explica o manuscrito da síndrome Uruguai como uma estrita e formalizada
narrativa médica. Ao mesmo tempo, é introduzida uma série de definições utilizadas em
genética médica e articuladas com respeito às informações exibidas no manuscrito.
Neste capítulo, se introduzem os depoimentos27
de alguns dos autores do manuscrito
com relação à discussão dos conceitos de doença e diagnóstico como parte de uma
discussão mais ampla sobre o método clínico e a semiologia médica. Através desses
depoimentos e da argumentação desenvolvida, o manuscrito encontra uma particular
posição no discurso dos médicos geneticistas. Por fim, este capítulo mostra como, a
partir do manuscrito publicado, o modelo indiciário funciona para o caso do processo
diagnóstico da síndrome Uruguai. De fato, mostramos como o estrito padrão narrativo
do manuscrito coloca em segundo plano um método de trabalho indiciário,
característico da semiologia médica, desvanecendo a contingência e contextualidade28
da pesquisa desenvolvida. Na caracterização dos médicos geneticistas como consultores
semióticos ou detetives clínicos (Montgomery, 1991), além das entrevistas, foram
27
Obtidos por meio de entrevistas em profundidade (Taylor & Bogdan, 1998) realizadas aos médicos geneticistas, autores do manuscrito; quatro deles pertencentes ao IGM de Montevidéu e três a instituições médicas norte-americanas. Neste último caso, a entrevista foi realizada com o médico norte-americano que promoveu o estudo da família e a elaboração do manuscrito. Assim mesmo, foram realizadas mais duas entrevistas; uma delas à secretaria do IGM, e a segunda, a um médico cirurgião ortopédico, diretor de um serviço de traumatologia e ortopedia de um hospital público. 28
Nos termos de Knorr Cetina (2005).
25
utilizadas outras informações coletadas por meio de observações realizadas durante um
período de três meses no IGM29
.
No capítulo 3, em primeiro lugar, situamos o manuscrito no cenário de trabalho do
IGM apresentando uma resumida caracterização do instituto30
. O manuscrito da
síndrome Uruguai foi o primeiro artigo publicado em uma revista internacional, embora
o instituto começasse suas atividades no ano 1975. Assim sendo, aqui mostramos
porque os médicos apresentam o manuscrito e o próprio estudo da família como atos de
quixotismo; no entanto, reconhecendo a importância e a necessidade da publicação
como mais uma ferramenta na educação do julgamento clínico.
Em segundo lugar, apresentamos as situações definidas no IGM como “encontros
clínicos” destacando a relevância da narração dos relatos de caso no processo de
aprendizagem do raciocínio clínico, e como uma forma de experiência adquirida na
prática. Neste ponto, mostramos como o manuscrito recupera uma série de práticas
formativas, quotidianamente exercitadas através do exercício clínico propriamente dito.
Por fim, a partir das considerações de Barthes (1993), Eco (1976, 1986) e Haraway
29
Estas observações poderiam ser caracterizadas no âmbito da observação participante no sentido de um modo de trabalho que se distingue pela generalidade das atividades que compreende, sendo esta ambigüidade mais do que uma deficiência, uma qualidade distintiva (Guber, 2004). Tradicionalmente, o objetivo da observação participante tem sido reconhecer as situações em que se geram e expressam os universos culturais e sociais na sua complexa articulação e variedade, supondo que a presença do pesquisador (a percepção e experiência direta) frente aos fatos da vida cotidiana das pessoas observadas garante a confiabilidade dos dados coletados e a aprendizagem dos sentidos que subjazem ditas atividades (Guber, 2001). As nossas observações permitiram a recuperação de detalhes diversos. Assim, além da observação de algumas das atividades desenvolvidas no IGM, foram reunidos distintos documentos relacionados com o processo de estudo da família e a própria elaboração do manuscrito (detalhados nos correspondentes capítulos). A nossa análise pretende adotar uma intenção etnográfica no sentido de compreender um esforço descritivo para desenvolver uma interpretação cultural (Wolcott, 1993). Contudo, lembrando com Agar (1996) que: “agora sabemos que não existe uma linha mágica que define quando se trata de uma etnografia e quando não. Em vez disso, sabemos que uma pesquisa pode ser etnográfica, mais ou menos. Podemos imaginar situações em que uma única entrevista pode fazer um excelente trabalho; do mesmo modo, também é possível imaginar situações em que cem anos de pesquisa não são suficientes” (p. 42: grifos do autor: nossa tradução).
30 Brevemente, o IGM encontra-se integrado por sete médicos (geneticistas, ginecologistas, obstetras e
pediatras), pelos profissionais atuando na área de laboratório (biólogos e químicos, principalmente, perfazendo um total de cerca de dez pessoas), e pelo pessoal administrativo. No IGM se oferecem os “serviços” de aconselhamento genético, diagnóstico pós-natal e pré-natal, estudos moleculares em câncer e estudos de filiação.
26
(1995, 1997) fundamentalmente, se introduz uma discussão em torno da noção de signo
como parte de um processo de comunicação e significação demarcando uma certa
perspectiva em torno do conceito de cultura. O resto do capítulo é dedicado a nutrir esta
discussão a partir dos conteúdos do manuscrito e das observações realizadas no IGM. O
caso apresentado no manuscrito pode ser explicado como uma série de narrativas que
surgem a partir de interpretações. Os médicos, como narradores (do mesmo modo que
os detetives-narradores), mostram não somente “quem fez isso”, mas também a forma
como “o crime” foi resolvido, ou seja, um método indiciário (Ginzburg, 1989;
Montgomery, 1991).
O capítulo 4 pretende adotar um horizonte mais amplo com respeito à biomedicina
para conseguir, de algum modo, uma leitura também mais ampla do próprio manuscrito.
Com este objetivo se introduzem as modernas concepções dentro do campo da
biomedicina segundo Rose (2007, 2010), Rabinow (2008), Lock (2005), Franklin
(2000) e Haraway (1995, 1997), entre outros. A partir da observação das capas do
periódico onde o manuscrito foi publicado, em um intervalo de vinte anos, ampliamos o
cenário do pensamento biomédico e revelamos um câmbio de perspectiva. Contudo, o
manuscrito descobre um determinado enfoque com relação à genética e a prática do
médico clínico geneticista enfatizando o conceito de caso individual, a relevância do
tempo e do contexto, da percepção clínica e das complexas interpretações envolvidas no
raciocínio clínico. Portanto, aqui mostramos, mais uma vez, como o manuscrito
recupera uma concepção indiciária da medicina.
27
2. Uma forma de conhecer: o modelo indiciário ou semiótico
O manuscrito e os médicos como semiotas
I
1. O manuscrito da síndrome Uruguai apresenta uma história de uma pesquisa de
médicos clínicos geneticistas com respeito a uma doença inesperada. O relato é
realizado dentro de um quadro expositivo que fundamenta a singularidade da
apresentação e a sua importância para a prática da medicina31
. Como uma observação
inevitavelmente pessoal de um evento contingente, as afirmações são realizadas através
de estratégias que incluem cautela e adesão às hipóteses e a metodologia característica
de uma investigação clínica retrospectiva (Montgomery, 1991).
Uma destas estratégias é a utilização de um título que identifica o fenômeno a ser
descrito, especifica a sua importância e o torna factível de uma classificação ou
indexação: “Síndrome Uruguai Facio-Cardio-Músculo-Esquelético: uma nova
desordem recessiva ligada ao X”. Um título como este afasta o relato de caso escrito de
uma apresentação oral menos formal e o aproxima às convenções do artigo científico
(Montgomery, 1991).
31
Assim, a introdução do artigo começa com a seguinte afirmação: “Embora as anormalidades musculares e esqueléticas sejam achados comuns em muitas síndromes, as anormalidades esqueléticas geralmente são atribuídas às alterações musculares ou vice-versa. O envolvimento primário de ambos os músculos e o esqueleto é incomum. Recentemente, nós descobrimos uma família com seis homens afetados com uma desordem ligada ao X aparentemente não reportada antes compreendendo anomalias faciais, cardiopatia, hipertrofia muscular e anormalidades esqueléticas” (Quadrelli et al., 2000: 247; ver Anexo). Quer dizer, a introdução apresenta uma descrição do estado do campo antes da descoberta do caso que está prestes a ser introduzido preparando “o palco” (Montgomery, 1991: 96) para a subseqüente exposição da nova doença e a sua importância para o futuro atendimento de pacientes com uma condição semelhante.
28
Ou seja, os autores são vários, incluindo os diversos médicos envolvidos na atenção
dos pacientes e da família32
. No entanto, apesar de serem vários os autores, por
convenção, o manuscrito apresenta uma única voz, tanto na observação dos pacientes,
como na apresentação e na escritura do caso33
. Deste modo, no manuscrito publicado há
um composto, indiferenciado, autor-narrador-observador34
. Assim, o estilo na escrita
encobre as diferenças não somente no trabalho de atenção dos pacientes, mas também
no trabalho de pesquisa diagnóstica.
Como explica Montgomery (1991), estas convenções são sempre realizadas com o
objetivo de controlar “o drama humano da descoberta”: “aqui, como alhures, a narrativa
médica encobre a sua epistemologia em nome de uma reivindicação a um realismo
objetivo” (p. 101: nossa tradução) 35
.
A primeira página do manuscrito da síndrome Uruguai, logo depois do título e da lista
de autores, apresenta um resumo abreviado sobre o estudo da família. Segue uma seção
introdutória que, usando as convenções estilísticas do ensaio histórico e que, segundo já
dito, destaca a importância do evento testemunhado.
32
Logo, no texto, embora escrito em um estilo científico através de construções impessoais, os médicos como autores não desaparecem completamente; “como um sinal da inevitável natureza pessoal do relato de caso e um reconhecimento da provisória condição com o conhecimento clínico, o texto contem claras representações dos médicos-observadores, que agora são os narradores. Cada médico deverá situar-se com autoridade atrás de um curso de ação escolhido” (Montgomery, 1991: 97: nossa tradução). Esta responsabilidade, implícita em uma apresentação oral de um relato de caso através da presença do médico, deve ser explicitada no relato de caso escrito. Assim, o manuscrito da síndrome Uruguai inclui o uso de vários pronomes em primeira pessoa, especialmente o plural ‘nós’, que sinalizaria a aceitação dos autores da sua responsabilidade com respeito às observações e interpretações sobre a condição dos pacientes apresentados. 33
De fato, a presença de vários autores em um manuscrito reflete a natureza hierárquica do trabalho clínico na medicina acadêmica, onde na “vida real” (Montgomery, 1991: 100) os trabalhos de observação, narração e escrita se encontram divididos, e onde a lista de prioridades na lista de autores é também uma questão complexa (idem). 34 Ou seja, o uso de “nós” é uma convenção narrativa, no entanto, também lembra que no momento do estudo do paciente em questão, os médicos trabalharam de um modo coletivo. 35
Quer dizer, a narrativa médica está constituída e padronizada por convenções rígidas que refleteriam um “positivismo orientado para a ação” (Montgomery, 1991: 102), isto é, as doenças estão lá fora, na natureza, para ser analisadas e explicadas pela medicina.
29
Em seguida, a própria narrativa do caso é apresentada na seção de “relatórios clínicos
e radiológicos” que ocupa o lugar central no conjunto do manuscrito. Nesta seção são
incluídas todas as informações referidas a resultados de estudos diversos36
, figuras,
fotografias e radiografias para apresentar, desta forma, “uma descrição científica da
realidade clínica” (p. 96). De fato, das 19 páginas que compõem o artigo, o texto escrito
ocupa somente quatro. As 15 páginas restantes são utilizadas para mostrar as 44
fotografias (organizadas em oito figuras) e radiografias dos integrantes da família
descritos no artigo37
. Esta seção retrata a experiência vivida na interação médico-
paciente (básica para a prática médica) e pretende ser uma descrição médica a mais
objetiva e detalhada possível (Montgomery, 1991).
A descrição prossegue segundo uma ordem cronológica sem hipóteses ou explicações:
“Estes são os fatos da ciência clínica, e as mesmas estritas convenções governam aqui
como na apresentação oral do caso. É como se houvesse algo de sagrado em torno do
caso individual” (p. 96: nossa tradução) 38
.
O manuscrito finaliza com a seção de “discussão” que recupera a história dos quatro
pacientes descritos e explica o significado da descoberta, particularmente a respeito de
uma taxonomia clínica39
das doenças. Quer dizer, o significado médico é um lugar no
quadro nosológico. Assim, o médico relaciona os signos com uma doença que ocupa um
36
Estes estudos incluíram exames físicos, radiografias esqueléticas, estudos cardiológicos e bioquímicos, eletromiograma, uma biópsia muscular e estudos citogenéticos O estudo citogenético refere-se à análise do cariótipo em nível citológico. O cariótipo refere-se à distribuição ordenada dos cromossomas em metáfase segundo seu tamanho e forma, e representa um primeiro nível de análise no estudo de anomalias cromossômicas numéricas e estruturais (uma discussão mais detalhada a este respeito se apresenta no capítulo 3). 37
Uma análise mais detalhada neste sentido é apresentada no capítulo 3. 38
Em contraste com outras seções do relato de caso escrito, como a seção de introdução e discussão, nesta seção o narrador praticamente desaparece: “é como se a narrativa sobre a doença e os cuidados relativos ao paciente se contaram por si mesmas” (Montgomery, 1991: 98, nossa tradução). Esta observação também é valida para o caso do manuscrito da síndrome Uruguai, onde a diminuição da presença do narrador, segundo já dito, consistiria em mais um esforço por uma apresentação de fatos e eventos de um modo “standard” ou da “forma mais científica possível” (p. 99). 39
Em uma narrativa modelo, diria Montgomery (1991).
30
lugar no quadro nosológico que é “simplesmente um nome, é a doença como nome”
(Barthes, 1993:274) 40
.
2. A definição da síndrome como uma “desordem recessiva ligada ao X” exige uma
breve introdução a uma série de definições utilizadas em genética médica. Estas
definições são necessárias como mais um esforço no caminho de compreender a
racionalidade do médico clínico geneticista em uma tentativa de “entender
entendimentos” (Geertz, 1997) diferentes do nosso. Para isso, será necessário
apresentar “informação científica na linguagem da genética” (Rapp, 2000: 62) referida a
conceitos principais em genética médica.
Desde o ponto de vista da prática clínica da genética médica, um objetivo principal
compreende a identificação das variações genéticas que predispõem a doença
(Nussbaum et al. 2008). Entre os transtornos genéticos causados total ou parcialmente
por fatores genéticos se reconhecem três tipos principais: cromossômicos, monogênicos
e multifatoriais. A síndrome Uruguai é definida como um transtorno monogênico41
.
Os transtornos monogênicos causados por mutações42
são chamados mendelianos
porque, da mesma forma que as ervilhas estudadas por Gregor Mendel43
, aparecem em
40
Foucault (2004) fala do “momento dogmático do nome” quando apresenta à clínica como uma espécie de teatro nosológico onde os estudantes de medicina procuram, perguntam, buscando “nada mais que o que permita pronunciar um nome, o nome da doença” (p. 93). 41
Um transtorno monogênico está determinado pelos alelos (variantes alternativas de um gene) localizados em um único locus (um segmento de ADN que ocupa uma localização concreta em um cromossoma). As doenças monogênicas conhecidas até hoje se encontram registradas na base de dados online OMIM iniciada a partir da referência clássica de Víctor McKusick, Mendelian Inheritance in Man (Nussbaum et al. 2008). 42
O termo mutação é utilizado para indicar o alelo mutante que causa a doença. 43
Monge austríaco que em 1865 publicou o resultado de seus experimentos de cruzamento entre variedades de ervilhas cultivadas que tinham variantes herdáveis e deduziu a existência de “fatores” discretos que continham informação sobre o desenvolvimento de pais e filhos (Griffiths et al., 2008).
31
proporções fixas entre os descendentes de tipos específicos de casamento e mostram
árvores genealógicas44
características.
Na herança denominada mendeliana, as genealogias que mostram os transtornos
monogênicos dependem principalmente de dois fatores: (a) o fato de que o fenótipo45
seja dominante (se expressa sempre que esteja presente o alelo mutante) ou recessivo
(se expressa quando ambos os cromossomas do par são portadores de um par de alelos
mutantes num locus específico); (b) a localização cromossômica do locus do gene, que
pode ser em um autossoma (cromossomas 1 ao 22) ou em um cromossoma sexual
(cromossoma X e Y)46
.
Seguindo a lógica „geneticista‟, dado que os cromossomas X e Y se distribuem de
maneira desigual nos homens e nas mulheres de uma família, os fenótipos determinados
pelos genes localizados no cromossoma X mostram uma distribuição sexual e um
padrão de herança característico. Por outro lado, a herança dos fenótipos recessivos,
ligados ao cromossoma X, segue um padrão definido e reconhecível. Desta forma, os
44
Em genética médica, os padrões genealógicos, árvores genealógicas ou heredogramas referem-se a representações gráficas, por meio de símbolos padronizados, que têm como função simplificar a ocorrência de anomalias similares em varias gerações da família para tentar determinar seu modelo ou padrão de herança. 45
O termo genótipo se utiliza para se referir ao conjunto de alelos que constitui a constituição genética de uma pessoa, enquanto o fenótipo refere-se à expressão observável de um genótipo incluindo características morfológicas, clínicas, celulares e bioquímicas (Nussbaum et al. 2008). 46
Em genética, os seguintes princípios se apresentam como centrais: o genoma contido no núcleo das células somáticas humanas está constituído por 46 cromossomas, dispostos em 23 pares. Destes 23 pares, 22 são semelhantes nos homens e nas mulheres e são denominados autossomos. O par restante está constituído pelos cromossomas sexuais: dois cromossomas X nas mulheres e a combinação de um cromossoma X e um cromossoma Y nos homens. Cada cromossoma tem um conjunto diferente de genes dispostos linearmente ao largo de seu ADN. Os membros de um par de cromossomas (denominados homólogos) possuem os mesmos genes na mesma sequência. No entanto, em um locus específico podem existir formas idênticas ou ligeiramente diferentes do mesmo gene, denominadas alelos. Um dos membros de cada par de cromossomas se herda do pai e outro da mãe. Nas mulheres, os cromossomas sexuais (os dois cromossomas X) são indistinguíveis entre si. Nos homens, os cromossomas sexuais são diferentes um do outro; um deles é um cromossoma X, idêntico aos cromossomas X da mulher. O homem herda este cromossoma X da sua mãe e o transmite a suas filhas. O outro membro do par de cromossomas sexuais no homem é um cromossoma Y, que o homem herda de seu pai e o transmite a seus filhos (Nussbaum et al. 2008).
32
transtornos recessivos ligados ao X, geralmente, só afetam aos indivíduos de sexo
masculino.
A definição da síndrome Uruguai como uma “desordem recessiva ligada ao X” define
a doença como um transtorno genético, monogênico, mendeliano, com um padrão de
herança consistente com uma desordem recessiva ligada ao cromossoma X.
Prestemos atenção ao resumo do manuscrito quando explica:
“Aqui se descrevem três pacientes homens de uma mesma família com crânio
turricéfalo, aspecto facial “pugilístico”, voz abafada, cardiomiopatia, hipertrofia
muscular, mãos amplas e pés largos com deformidades pes cavus progressivas, luxação
dos dedos do pé, luxação variável congênita do quadril, e escoliose. Outros três homens
da família, já falecidos por doença cardíaca, pareceriam ter tido a mesma desordem. A
mãe do paciente caso-probante apresenta sinais leves da síndrome, e todos os homens
afetados estão ligados através da linhagem materna. Estes casos representam uma
aparentemente ainda não descrita síndrome recessiva ligada ao X”.
O resumo ressalta o estudo de vários integrantes da família. Assim, logo após a
descrição das alterações anatômicas, as observações se dirigem a vários membros da
família (“outros três homens da família”; “a mãe”) esclarecendo que os pacientes
afetados pela síndrome são seis homens de uma mesma família, relacionados pela “linha
materna”, enquanto a mãe do “propósito” 47
apresentaria “signos menores” da síndrome.
Estas anotações interessam particularmente, pois se vinculam estreitamente com o
trabalho do médico clínico geneticista.
O geneticista estuda as famílias, além do paciente individual, na pesquisa de uma
determinada “anomalia”. Victor McKusick (1967) afirmava que o melhor método para
47
O propósito refere-se ao paciente, membro da família, através do qual o especialista em genética detecta inicialmente a presença de um transtorno genético. Assim, o propósito é o individuo ponto de partida para o levantamento da genealogia da família, isto é, para conhecer dados familiares de varias gerações da família que permitam detectar transtornos genéticos similares (Nussbaum et al. 2008). Os autores de língua inglesa empregam como sinônimo de propósito (a) o termo proband que tem sido utilizado por muitos geneticistas de língua portuguesa sob a forma de probando. Em português, contudo, se assinala como correto empregar a expressão caso-probante como sinônimo de propósito (a) (Beiguelman, 1981).
33
estudar genética humana consiste na observação dos padrões genealógicos, onde se
detalha a aparição de anomalias características na história de uma família. Desta forma,
a elaboração de uma história familiar detalhada é considerada o passo mais importante
na análise de qualquer doença (Nussbaum et al. 2008).
Para o geneticista, a história familiar é importante porque pode ser chave para o
diagnóstico, para demonstrar que uma determinada doença é hereditária, para oferecer
informação com respeito à “evolução” da doença e as variações nas suas manifestações
e para definir o padrão de herança (idem) 48
. Talvez, por este motivo, a primeira figura
apresentada no manuscrito corresponde a um heredograma ou árvore genealógica
familiar que envolve 178 indivíduos distribuídos em sete gerações (ver Anexo). Além
disso, a identificação e descrição dos “indivíduos afetados” e de todos os integrantes da
família estudada são realizadas segundo uma nomenclatura que responde ao desenho do
heredograma49
.
48
Além do que o reconhecimento do componente familiar de uma doença permite a determinação do “risco” na família. Como assinala Castiel et al. (2010), o conceito do risco é, sobretudo, uma “entidade probabilística”, onde o “risco genético” apresenta-se como mais uma possibilidade de definição de indivíduos ‘sob risco’, ou seja, um olhar médico que não somente deve aprender as variações e anomalias, sempre alerta ao desviante, mas que também, “deve permitir delinear as possibilidades e os riscos” (Foucault, 2004: 97). 49
Uma análise mais detalhada referida à genealogia é apresentada no capítulo 3.
34
II.
1. A doença é uma categoria central do saber médico. No entanto, este e outros
conceitos característicos da racionalidade médica ocidental estão relegados para um
“terreno de implícitos” (Camargo Jr., 1997: 50) e podem ser inferidos apenas a partir do
estudo do seu discurso e de sua prática (Luz, 1988) 50
.
Algumas das características fundamentais da doutrina médica podem ser resumidas
em um pequeno número de proposições que constituiriam a espinha dorsal da “ciência
médica”:
“As doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e
de pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas,
que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago do
organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta” (Camargo Jr., 1997:
55).
No contexto do saber médico, Camargo Jr. não encontra uma conceituação geral do
que seria a doença, mas identifica um “arcabouço genérico de construção discursiva”
(ibidem, 57) dos elementos da categoria doença constituído por três eixos: os eixos
explicativo, morfológico e semiológico.
O eixo explicativo corresponde à caracterização das doenças como processo, sendo
este o eixo da fisiopatologia, onde o saber médico mais se aproxima das “ciências
duras” no domínio do biológico. O eixo morfológico corresponde à descrição de lesões
características, sendo este o espaço da anatomia patológica, onde se inclui todo o
equipamento utilizado para a realização dos chamados exames complementares que se
dirigem a evidenciar lesões (Camargo Jr., 1997). O terceiro e último eixo corresponde
ao eixo semiológico. Este é o eixo da leitura do caso e obedece ao eixo da clínica
50
Para Camargo Jr. (1997), a atividade profissional e o próprio referencial teórico da medicina não dispõem de um “fio condutor” (p. 54) claramente enunciado.
35
propriamente dita, onde as doenças são vistas como “constelações de sinais e sintomas,
formando gestalts semiológicas” (ibidem, 59).
Para Cardoso (2000), a gestalt semiológica - referida a um conhecimento tido como
indutivo, visando à generalização, porém centrado no particular e no específico - se
constitui na essência do exercício clínico propriamente dito: “é ela quem fornece as
etapas do método clínico, ou as bases racionais desse método” (p. 554).
O objetivo geral da diagnose é a caracterização de doenças, “se possível da forma
mais minuciosa, detalhando-se todas as lesões presentes e sua evolução temporal,
idealmente chegando as suas causas originais (etiologia)” 51
(Camargo Jr., 1997: 62).
Deste modo, o diagnóstico surge de um processo por meio do qual os sinais e os
sintomas são traduzidos, “a partir da observação do paciente, num formato declarativo
que remete às categorias diagnósticas de uma especialidade médica” (Bonet, 2004: 88).
Bonet (2004) lembra a definição de Laín Entralgo (1984) para destacar dois
significados centrais do termo diagnóstico: o diagnóstico como resultado e o
diagnóstico como processo: “como expressão do que o médico reconhece no doente, o
julgamento clínico; e o diagnóstico como técnica para chegar a essa expressão, a arte de
diagnosticar” (p. 376).
O médico M., um dos autores do manuscrito, expressa esta distinção do modo
seguinte:
51
Ou seja, a evolução no tempo e espaço geográfico da doença (Cardoso, comunicação pessoal). Para Maria Helena, Camargo (1997) recupera aqui a ideia de espaço, de Foucault (2004), que marca o nascimento da clínica moderna e o surgimento do “olhar médico”. Para Foucault, a formação do método clínico está ligada à emergência do olhar do médico no campo dos signos e dos sintomas, sendo o sintoma a forma como se apresenta a doença, enquanto o signo anuncia, prognostica o que vai se passar; “faz a anamnese do que se passou; diagnostica o que ocorre atualmente” (p. 98). Como explica Foucault, em uma etapa anterior da medicina o signo clínico remetia à própria doença, na experiência anátomo-clínica, o signo anátomo-clínico remete à lesão.
36
“Me acuerdo Rodríguez, un famoso cirujano. Yo era un joven de 21, 22 años en el
hospital universitario…parece que lo estoy viendo…lo llamaron en consulta a la
emergencia, de noche, y Rodríguez dice; „esto es una apendicitis‟. Y el médico interno
de guardia le preguntó: „¿y por qué es un apendicitis? Y él le respondió: „y…tiene olor
a apendicitis‟. Bueno ta, ya está, eso te está diciendo que su basamento diagnóstico está
basado en una serie de asociaciones, acumuladas en sus años de experiencia. Y era un
apendicitis no más, o sea, tiene olor a apendicitis, esa no es una afirmación científica,
pero es una afirmación médica, porque tiene una base científica, el dolor que tenía y
una serie de asociaciones que se dan, el arte médico. Es una práctica basada en
ciencia, pero donde hay mucho de arte”52
.
Para Laín Entralgo, a exploração clínica e a inferência diagnóstica são partes
essenciais da arte de diagnosticar. Ambas envolvem o processo diagnóstico que
compreende duas etapas definidas e interconectadas: a anamnese ou interrogatório, e o
exame físico. Precisamente, será a partir das histórias que compõem as narrativas dos
pacientes (a anamnese) e a observação e anotação de sinais de adoecimento em seus
corpos (o exame físico) que os médicos irão interpretar e criar a própria narrativa
médica. De fato, a construção das narrativas médicas, que inclui os sinais captados e
interpretados no exame físico: “é fundamental para o raciocínio clínico, pois permitirá a
52
Como lembra o professor Castiel (comunicação pessoal), a expressão “olor a apendicitis” pode-se relacionar com um dos aforismos médicos mais conhecidos: “a clínica é soberana”, neste caso referido ao médico que acumulou conhecimento clínico o suficiente para conhecer o “cheiro de apendicite” como metáfora de faro capacidade apurada de sentir odores ou indícios, de caçador experiente. Em outra parte, o próprio Castiel (1999) reconhece, neste sentido, um “olhar” que abrange vários níveis de informações e que mistura tipos de saberes distintos, embora não excludentes, isto é, uma sabedoria prática. De fato, para Montgomery (2006) o paradoxo da “arte” e da “ciência” em descrições da medicina aponta para uma tensão na própria medicina onde, geralmente, a “arte” se refere à habilidade relativamente subjetiva do diagnóstico físico ou, mais precisamente, a um conhecimento tácito, “os palpites que os médicos experientes têm sem saber muito bem como” (p. 30: nossa tradução). Segundo Montgomery (2006), a dualidade ciência-arte obscurece o caráter prático da medicina que envolve tanto a experiência clínica quanto a informação de caráter científico sobre o cuidado das pessoas doentes, onde o julgamento clínico – o raciocínio prático que permite aos médicos adequar os seus conhecimentos e experiências às circunstâncias de cada paciente – se destaca como uma qualidade essencial (idem). Para o professor Castiel (comunicação pessoal), uma das formas de lidar com a tensão inerente na dualidade ciência-arte é recobrindo a afirmação “a medicina é uma arte” a partir de uma perspectiva retórica de caráter metafórico, ou seja, “a medicina é como uma arte” em função do caráter subjetivo ou intuitivo de certas habilidades clínicas, diagnósticas, etc. Assim sendo, não é despropositado considerar que o processo clínico-diagnóstico-terapêutico como um ‘todo’ pode ser uma mescla de raciocínios indutivos, dedutivos, abdutivos (onde estaria a ‘arte’) que são passíveis de variar de caso a caso.
37
contextualização do adoecer e a formalização de hipóteses diagnósticas (Aquino et al.,
2012: 104):
“Porque a compreensão de um caso individual de doença requer uma investigação
sobre as suas circunstâncias, o diagnóstico é uma negociação de interpretação de sinais
e sintomas particulares e seu desenvolvimento ao longo do tempo. O objetivo é a sua
coerência narrativa em um diagnóstico que dê conta de todos os fatos observados”
(Montgomery, 2006: 32: nossa tradução).
Assim sendo, a doença não pode ser compreendida, nem uma terapia efetivamente
prescrita, a menos que a experiência do paciente seja captada com precisão e
reconstruída em uma versão médica correspondente a uma taxonomia das doenças
explicada por leis biomédicas. Esse método de trabalho recebe a denominação de
semiologia médica, sendo à base do raciocínio clínico.
2. Segundo Romeiro (1980), a semiologia médica se define como o tratado dos
métodos de exame clínico, que compreende a semiotécnica (técnica da pesquisa dos
sinais e sintomas), a semiogênese (busca as explicações fisiopatológicas que originaram
os sinais e sintomas), e a clínica propedêutica (que procederá à análise crítica dos dados
recolhidos para a formulação do diagnóstico ou hipóteses diagnósticas). Aquino et al.
(2012), enfatizam a semiologia médica como uma atividade, “essencialmente prática,
agilizada no contanto direto com o paciente, e o ponto de partida da experiência clínica”
(p. 103).
Para Camargo Jr., (1997), em uma divisão esquemática, pode-se dizer que a anamnese
ocupa-se dos sintomas, e o exame físico dos sinais. Ambas as fases representariam a
construção do quadro que corresponde à semiologia e à localização no esquema geral
das doenças que corresponde à clínica (Bonet, 2004).
38
Brevemente, a anamnese consiste no recolhimento da história do paciente, com um
roteiro padronizado onde são registrados alguns dados de identificação e
sociodemográficos, seguidos da identificação da queixa (ou queixas) presentes do
paciente, passando, a seguir, a uma cronologia e contextualização destas: a ordem em
que os sintomas surgem, sua relação entre si e como outros eventos, adoecimentos
anteriores, doenças presentes na família (Camargo Jr., 1997: 60) 53
. Esta primeira
entrevista com o paciente é a fonte de dados primários essenciais para o trabalho
diagnóstico: “o trabalho do raciocínio médico e o processo de inclusão e exclusão de
informações acontece enquanto o médico e o paciente conversam” (Montgomery, 1991:
139: nossa tradução).
O exame físico orienta-se especialmente pela anatomia topográfica do corpo humano,
dividido em regiões (cabeça e pescoço, tórax, abdome, membros superiores e inferiores)
e sistemas (aparelho respiratório e cardiovascular). Para cada área espacial há um
conjunto de procedimentos a serem executados sequencialmente: inspeção, percussão,
palpação e ausculta. Estes exames podem envolver uma semiologia “armada” e uma
semiologia “desarmada” (Camargo Jr. 1997: 60); a primeira, variada e complexa, faz
uso dos exames complementares e remete à noção de “ciência concretizada”, enquanto a
semiologia “desarmada” depende do próprio médico.
53
No ‘colóquio anamnésico’, Laín Entralgo (1984) distingue uma anamnese testemunhal, onde o doente comunica ao médico o que, como doente, tem sentido e acontecido com ele em relação à sua doença no seu entorno social; e, por outro lado, uma anamnese interpretativa, quando o doente oferece ao médico uma interpretação pessoal do que, para ele, significa a doença que padece. Por outro lado, Eco (1986) distingue, de uma parte, o sistema de índices naturais por meio do qual se individualiza o sintoma, e dado que para a comunidade médica determinados sintomas se expressam por meio de determinados indícios, para o grupo médico existe um sistema de convenções; por outro lado, o sistema de expressões linguísticas por meio das quais os pacientes, de origens distintas, costumam denunciar verbal ou fisicamente um sintoma.
39
No exame físico, o olhar médico54
identifica corpos, aqui pacientes, como objeto de
atenção médica. O corpo humano constitui, “por direito de natureza, o espaço de origem
e repartição da doença” (Foucault, 2004: 1). O corpo é um corpo médico, muito
diferente dos corpos com os quais interagimos na vida cotidiana. A familiarização do
médico com o corpo reflete uma perspectiva específica, uma série organizada de
percepções e de respostas emocionais que surgem com a emergência do corpo como um
âmbito de conhecimento médico (Good, 2003) 55,56
.
A evidenciação de lesões pode se realizar segundo vários critérios, se relacionando
habitualmente à ideia de “normalidade”, opondo-se logicamente a esta. Este é outro
traço característico da racionalidade médica: “a perspectiva dual de uma „normalidade‟
caracterizada por sua oposição à patologia” (Camargo Jr., 1997: 50). Esta relação foi
bem caracterizada por Canguilhem (1971, 1976) que reconhecia que sem os conceitos
de normal e patológico o pensamento e a atividade do médico resultam
54
Para Foucault, o olhar médico é fundador do individuo em sua qualidade irredutível sendo possível organizar, em torno dele, uma linguagem racional. Essa reorganização formal e em profundidade foi a que criou a possibilidade de uma experiência clínica que ensejou pronunciar sobre o individuo um discurso de estrutura científica e uma linguagem racional (Foucault, 2004: X). 55
Na sua educação, o estudante de medicina apreende práticas fundamentais que incluem modos especializados de ver, escrever e falar em uma perspectiva médica mais ampla que ordena o corpo humano e a doença de uma forma culturalmente específica (Good, 2003; Helman, 2000). As aulas de anatomia, por exemplo, constituem um aporte significativo para uma reconstrução da pessoa adequada para um olhar médico que identifica a pessoa com um corpo, um caso, um paciente ou um cadáver: “a pessoa é uma construção cultural, um modo de se ver a si mesmo e aos demais complexo e culturalmente moldado, e se requer um ‘trabalho’ cultural para reconstituir a pessoa objeto de atenção médica. Esta reconstrução da pessoa é essencial para que um estudante chegue a ser um médico competente” (Good, 2003: 144: nossa tradução). No entanto, essas outras maneiras de ver também podem ser profundamente ideológicas e desorientadoras sendo que, por exemplo, podem levar a pensar como um ato reflexo que o comportamento reside em nossos genes e as causas da doença no corpo medicalizado individual (Good, 2003). Por outro lado, a educação em medicina também compreende uma educação moral e intelectual (Montgomery, 2006). Assim, os médicos devem aprender não somente qual seria o melhor caminho no beneficio do paciente, mas também o que fazer quando a informação não se encontra disponível ou é confusa. Neste sentido, Montgomery (2006) destaca que se bem a educação médica se dedica especialmente ao estudo dos fatos conhecidos, no entanto, a longa aprendizagem clínica, que é a sua essência, prepara os médicos especialmente para atuar em circunstâncias incertas. 56
Desde uma perspectiva antropológica e feminista existem numerosos estudos sobre a “medicalização do corpo”. Alguns destes estudos, citados neste trabalho, correspondem a Luz (1988), Lock (1993), Hahn (1995), Haraway (1989, 1995, 1997), Víctora et al., (2000), Sacks (2002, 2005), Good (2003), Canesqui (2006), Minayo (2006) e Sontag (2007, 2007b).
40
incompreensíveis (1976: 153). Esta é uma distinção que surge claramente nas
expressões dos médicos geneticistas M., S., L., N., autores do manuscrito:
“Hacer medicina es básicamente intentar curar una enfermedad, o algo que se apartó
de lo normal, eso es hacer medicina”;
“El hecho clínico es el conjunto de características clínicas que tiene ese paciente. En
genética lo llamamos fenotipo clínico, y para casi todas o prácticamente todas las
características normales, o que se apartan de la normalidad, hay parámetros de
evaluación y de medición, ya sea la estatura, el tamaño de las orejas, la longitud de los
dedos, la distancia de las hendiduras palpebrales, o sea, que no es algo subjetivo, sino
que es algo pautado, cuáles son las características normales y los desvíos de esas
características”;
“En el caso de Juan [caso-probante da síndrome Uruguay], bueno, características
están descritas muy claramente, sus facies tosco, las características de los pies,
fenotipo clínico externo. Por extensión, también el fenotipo se traslada a otros niveles,
o sea, que en Juan hay un fenotipo radiológico, un fenotipo bioquímico, un fenotipo
electrocardiográfico, también con las mismas pautas, rasgos normales y rasgos
patológicos, que es una enorme gama de posibilidades”.
“Esos son hechos clínicos, que son síntomas y signos, sin entrar en otra cosa. La
única cosa que se puede hacer en la clínica como instrumento es utilizar un metro, para
tomarle la altura, el peso, que son también definiciones clínicas”.
Desta forma, a identificação de lesões é possível porque cotejadas com uma
“normalidade” ideal e as lesões, como explica Camargo Jr. (1997: 62), poderão ser
distinguidas como anomalias (presença de algo que „não deveria estar lá‟); distorções
(alterações no resultado de algum exame ou no aspecto anatômico de alguma região);
supressões (algum evento deixa de ser observado) ou variações quantitativas
(observadas nos exames complementares que produzem resultados numéricos) 57
. Para
Montgomery (2006), a extraordinária sensibilidade dos médicos frente à „anomalia‟ é
um exemplo mais da impossibilidade de excluir o inesperado na sua prática clínica.
57
Neste contexto ganha relevância o modelo epistemológico de Fleck (1979) que afirma: “Verdade na ciência é uma função do estilo particular de pensamento que tem sido aceito pelo pensamento coletivo” (Fleck, 1979: 156: nossa tradução). Assim, “é o estilo de pensamento, a um tempo organizador e produto da organização de um coletivo de pensamento, que define o que são fatos, artefatos e ‘anomalias’” (Camargo Jr., 1997: 63).
41
3. O manuscrito da síndrome Uruguai se correlaciona, principalmente, com o eixo
semiológico que obedece ao eixo do saber clínico (Laín Entralgo, 1984). Estes
conhecimentos são estritamente empíricos, diretamente procedentes da exploração
médica do doente.
Os médicos geneticistas definem o artigo publicado como uma descrição clínica,
radiológica e genealógica. Assim, o manuscrito apresenta uma gestalt semiológica
característica, onde o olhar médico define uma nova doença através da identificação de
certo conjunto de sinais e sintomas. Como explicam L. e M.:
“A partir de un hecho clínico, absolutamente clínico, porque está basada en un hecho
genealógico, en un hecho semiológico, por la descripción de malformaciones”;
“Y establecimos un diagnóstico nosológico; es un diagnóstico de una entidad nueva,
aún no definida, y con una causa que sabemos que es genética, por los hechos
genealógicos, sobre todo (…) aparte del diagnóstico nosológico, hicimos un
diagnóstico semiológico, a partir de hechos clínicos, de determinadas malformaciones
o deformidades, y de determinados hechos radiológicos”.
Uma segunda estrutura do saber médico corresponde ao saber patológico que se refere
ao conjunto de conhecimentos médicos relativos à doença (Laín Entralgo, 1984). A este
respeito, a caracterização das doenças, como processo, compreende o eixo explicativo
ou da fisiopatologia, sendo onde o saber médico mais se aproximaria das ciências
“básicas”, conforme já foi apontado. Esta distinção também surge na explicação dos
médicos L., S., M., N. acerca do estudo da família da síndrome Uruguai:
“A esta familia la hemos descrito, pero no la hemos estudiado del punto de vista
fisiológico, sobre todo fisiopatológico…nosotros todavía no tenemos un resultado
molecular definitivo, todas las chicas a las que le sacamos sangre fueron informadas de
la importancia de hacer el estudio, no sólo para definir dónde estaba el gen en Juan y
definir la patología, sino si ellas eran o no portadoras…”;
“No ha sido totalmente estudiada”;
42
“Toda la parte básica que eso conlleva no la hemos podido realizar por razones
presupuestales, y ahí ya entra investigación básica, ahí entra ciencia, en la
fisiopatología, en la definición fisiopatológica del síndrome Uruguay es una
investigación básica, no juega la parte de arte, el arte médico está en el diagnóstico
(…) algo no descrito, que es muy importante porque no solamente por el hecho de
describir por primera vez, sino porque a través de eso vas a aprender la fisiología
normal, la fisiopatología te ayuda a entender la fisiología normal, en el caso del
síndrome Uruguay habría que conseguir recursos (…) los afectados por el síndrome
Uruguay se mueren por hipertrofia cardíaca”;
“El diagnóstico que mas interesaría en el síndrome Uruguay para completarlo es
definir la parte nosológica, es decir, que genes están dando vuelta, si es posible
identificarlos…”.
Considerando, mais uma vez, os eixos propostos por Camargo Jr. (1997) na
caracterização da categoria doença, resulta interessante observar a articulação assinalada
pelos médicos geneticistas entre o eixo explicativo e semiológico.
No eixo explicativo, que define a doença como “processo”, a categoria central é a
“causa”. Camargo Jr. (1997) apresenta como disciplina-tipo deste eixo a fisiopatologia,
conforme assinalado. Assim sendo, a genética médica poder-se-ia enquadrar no eixo
explicativo acoplado ao semiológico, fundamentalmente, por causa de que nenhuma
atividade clínica poderia dispensar esta última. Neste sentido, destacamos os
apontamentos de M. com relação à sua aprendizagem da genética:
“Conocí la genética en una disciplina que se llamaba patología médica (…) porque
además genética en aquella época, y tal vez ahora todavía, como que iba a las primeras
causas…o sea, por un lado, tenía los enfermos crónicos que la medicina no los curaba;
por otro lado, surgía la genética que tenía la explicación de la patología…”.
Assim, no discurso habitual da medicina clínica, a etiologia é importante,
principalmente, como uma parte do método para determinar o que está errado com o
paciente (Montgomery, 2006). Os médicos geneticistas vinculam os eixos explicativos e
semiológicos, enquadrando o manuscrito no processo diagnóstico. Neste processo, os
médicos insistem, descobre-se a “arte médica”, isto é, o indivíduo com síndrome
43
Uruguai, o caso, é a categoria central do eixo semiológico, que apresenta como
disciplina-tipo a clínica, por isso a referência à arte ou “a medicina como uma arte”,
porque nesse eixo o método é ainda mais essencialmente indiciário, envolvendo uma
mescla de raciocínios (onde estaria a „arte‟), e onde a definição da doença passa pela
gestalt semiológica.
A interpretação diagnóstica é o ato central do conhecimento clínico. No encontro
clínico entre o médico e o paciente, os mecanismos fisiopatológicos da doença não são
objeto de pesquisa e também a etiologia individual não é uma preocupação para o
médico clínico, além das pistas diagnósticas que podem oferecer com relação à história
do paciente. Como aponta claramente Montgomery (2006), as pessoas visitam o médico
para compreender o significado de seus sintomas e o que devem fazer com eles. Nesse
momento, os detalhes fisiopatológicos são irrelevantes ou não se encontram em questão.
De alguma forma, o manuscrito da síndrome Uruguai reflete esta perspectiva, sendo o
seu objetivo principal definir e justificar o diagnóstico de uma nova doença. Assim, os
aspectos fisiopatológicos da doença ficam relegados para um outro momento, um outro
artigo, outras circunstâncias:
“Como responsáveis da etiologia da doença, na medicina clínica, as causas científicas
têm um lugar esquisito, ao mesmo tempo, poderosamente úteis, porém também
ignoradas” (ibidem, 68: nossa tradução).
Claro que o conhecimento sobre as causas da doença importa na prática clínica
rotineira, mas por razões médicas, principalmente, no cenário do encontro entre médico
e paciente, onde a questão da causa “é necessariamente mais ampla que o assunto
fisiopatológico da etiologia da doença” (idem). Neste contexto, o conhecimento dos
mecanismos de caráter „científico‟ referido à etiologia clínica é adiado. Por quê?
44
Uma resposta possível se relaciona com a concepção da medicina como uma prática e
a ética dessa prática - a necessidade de intervir na doença do paciente - reduz as causas
à menor manifestação possível (Montgomery, 2006) 58
. Entretanto, também no
manuscrito da síndrome Uruguai se confere uma ausência no sentido de expor uma
explicação etiológica da doença. Os médicos geneticistas, autores da publicação,
reconhecem essa ausência. Voltaremos a esta questão no capítulo 3.
III.
1. De acordo com o que viemos discutindo, o eixo semiológico, mais do que qualquer
outro, deixa claro o desenvolvimento na direção da individualização e o caráter
indiciário, tal como descrito por Ginzburg 59
. Foucault (2004) também lembra, com
Sydenham, os pintores que fazendo um retrato têm cuidado de marcar até os sinais e as
menores coisas naturais que se encontram no rosto do personagem que pintam. Neste
sentido, a doença e o doente adquirem traços singulares, sendo a tarefa do médico, que
descreve a doença, a confecção desse retrato singular. Desta forma, a percepção da
doença no doente supõe um olhar qualitativo, uma percepção sutil das qualidades,
percepção das diferenças de um caso a outro, uma percepção das variantes: “e
58
De fato, para Montgomery (2006), o assunto da causa na prática clínica pode ser entendido como uma questão narrativa em lugar de uma questão científica. Assim sendo, a indagação interpretativa do médico é guiada por um sentido mais amplo e menos determinista: o que está acontecendo com este paciente? Onde a medicina pode intervir? Como deve intervir, dadas as circunstâncias de vida deste paciente? O professor Castiel (comunicação pessoal), também lembra que um dos problemas atuais da prática médica é o atravessamento de outras narrativas, como as das corporações farmacêuticas. 59
Ao mesmo tempo, há um movimento de generalização, tal como apontado antes por Cardoso (2000), localizando o caso individual em um inventário ou taxonomia de doenças (Camargo Jr., 1997). Este é o movimento do raciocínio clínico entre a generalização e a particularização (o paciente individual), sendo que a prática cotidiana do médico clínico ocorre nas interseções das abstrações biológicas e as manifestações específicas das doenças em cada paciente (Montgomery, 2006).
45
empreender o infinito trabalho do conhecimento dos frágeis singulares” (p. 15) 60
.
Entretanto, o professor Castiel (comunicação pessoal) lembra uma instigante afinidade
recuperada por Foucault (2004b) como uma grande tradição na cultura grega61
, entre a
medicina e a navegação. Foucault (2004b) afirma que dita comparação é interessante
por duas razões. Em primeira instância, porque em ambos os casos além de um
conhecimento teórico é necessário um treinamento ou uma experiência prática.
Ademais, como acabamos de assinalar com Cardoso (2000), o oficio da medicina e da
navegação demandam não somente o conhecimento de regras e princípios gerais, mas
também de circunstâncias particulares62
. Quer dizer, ofícios que se ocupam de casos
individuais, situações específicas e da eleição de momentos decisivos ou kairós:
“usando o nosso vocabulário moderno, podemos dizer que a navegação, a medicina e a
prática da parresia são todas „técnicas clínicas‟” (Foucault 2004b: 148: nossa tradução).
A segunda razão se relaciona com o fato de que tanto a medicina quanto a navegação
se vinculam com a política, porque em política a eleição da oportunidade, do melhor
momento é crucial, “e se assume que alguém é mais competente do que outros e,
portanto, tem o direito de dar ordenes que o resto deve obedecer” (ibidem, 149: nossa
tradução).
Relembrando, Ginzburg define o conhecimento do médico como um conhecimento
indiciário. Em medicina, a capacidade interpretativa é o raciocínio clínico que, como
60
Laín Entralgo (1984) aponta que a etimologia do termo “diagnóstico” comporta duas condições. A primeira, conhecer distinguindo (dia como “entre”), que poderia ser compreendida dentro do método indiciário ou semiótico. A segunda, conhecer penetrando (diá como “através de”) refere-se, principalmente, ao olhar que penetra “no espaço que ele estabeleceu como objetivo percorrer” e que poderia corresponder à experiência anátomo-clínica (Foucault, 2004: 150). De fato, como aponta a professora Cardoso (comunicação pessoal), Foucault mostra que, com o advento da anatomia patológica, os sinais começaram a se internalizar. 61
Em “Discussão e Verdade” (Foucault, 2004b) que reúne uma série de conferências ditadas em 1983 na Universidade de Califórnia (Berkeley), em torno da discussão do significado da palavra parresia. 62
Que Foucault (2004b) identifica com o momento crítico ou kairós, segundo os gregos. Ou seja, o momento ou oportunidade decisiva ou crucial.
46
mostram Cardoso (2000), Cardoso et al., (2002), Montgomery (1991, 2006), Aquino et
al. (2012) permanece uma prática interpretativa.
Os médicos registram a história do paciente a partir de conjeturas qualificadas e
iluminadas pela formação profissional, baseando-se em uma seleção de inúmeros
eventos e evidências fornecidas por fontes diversas (Cardoso et al., 2002). A anamnese
e o conjunto de informações que compõem a história clínica exigem a produção de uma
explanação diagnóstica que requer funções ou práticas interpretativas.
Para Harrowitz (2008), a importância do modelo indiciário se encontra no fato de que
os sistemas debatidos por Ginzburg são desenvolvidos e investidos de sentido através de
um processo que muito se assemelha ao processo abdutivo, apresentado antes:
“As regras foram postuladas para explicar os fatos observados até que pudesse se
provar uma causalidade, testar uma hipótese. Como na abdução, é preciso um
conhecimento cultural ou experiencial para codificar um sistema. A abdução é,
literalmente, a base necessária que antecede a codificação de um signo. Como nos diz
Peirce, a abdução cria uma ideia nova” (p. 205).
O raciocínio dos médicos é abdutivo, um processo que parte dos efeitos para as
causas, iniciando-se indutivamente pela observação de sinais e sintomas (Montgomery,
1991, 2006). Frente ao paciente, os médicos perguntam acerca do começo da doença,
duração e intensidade dos sintomas, examinam o corpo do paciente em busca dos sinais
e, se necessário, ordenam uma série de estudos. O médico clínico deve comparar signos,
isto é, sintomas com outros signos em um contexto no qual, muitas vezes, a expressão é
47
ambígua e recheada de muitos sentidos. Logo deve escolher um dos sentidos possíveis
realizando um processo interpretativo63
.
Portanto, a significação é similar ao processo de inferência que Peirce denomina
abdução, isto é, uma hipótese construída sobre a base de premissas imprecisas, que
exige uma comprovação por meio de induções sucessivas e controles dedutivos64
. O
saber médico se faz na prática, sem abrir mão da informação de caráter científico,
criando hipóteses/abduções que, articuladas ao raciocínio indutivo/dedutivo, avança na
elaboração de um diagnóstico (Cardoso et al., 2002) 65
.
O olhar clínico responde a uma experiência que implica determinados códigos de
saber e integra uma experiência particular (Foucault, 2004). O eixo semiológico é o
mais próximo à prática do médico clínico e, portanto à visão da medicina “como uma
63
Este processo também corresponde a um mecanismo semiótico através do qual o significado é precedido por um significante, sendo chamado de interpretante qualquer outro signo ou conjunto de signos que traduz o primeiro signo em circunstâncias adequadas (Eco, 1976). Para este autor, o interpretante não é simplesmente um signo que traduz outro signo (embora geralmente seja assim), mas se trata de um desenvolvimento do signo, um “incremento cognoscitivo” estimulado pelo signo inicial. Para Peirce, não existe pensamento sem processo signico e, pelo tanto, a ideia originada pelo signo é um dos interpretantes: “qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente ad infinitum” (Peirce, 2010: 74: grifos do autor). Peirce insiste, dado que o homem só pode pensar por meio de palavras ou de outros símbolos externos, homens e palavras se educam reciprocamente; a palavra ou o signo que o homem usa é o homem mesmo porque o fato de que todo pensamento seja um signo, junto com o fato de que a vida é uma sucessão de pensamentos, prova que o homem é um signo (Peirce apud Eco, 1976: 168: nossa tradução). Para Eco, o pensamento de Peirce fundamenta a ideia que hoje orienta as pesquisas sobre os signos: “o homem é a sua linguagem, porque a cultura se constitui como sistema de sistema de signos. Até quando acredita que fala, o homem é falado pelas regras dos signos que utiliza” (Eco, 1976: 166: grifos do autor: nossa tradução). 64
Segundo a conhecida ilustração de Peirce, sendo um exemplo de dedução: todos os feijões deste saco são brancos; estes feijões provêm deste saco, portanto, estes feijões são brancos. E um exemplo de indução: estes feijões provêm deste saco; estes feijões são brancos, portanto, todos os feijões deste saco são brancos. Um exemplo de abdução seria: todos os feijões deste saco são brancos; estes feijões são brancos, portanto, estes feijões, provavelmente, provêm deste saco (Peirce 1931-1966, 2: 623-625). 65
Lembrando, com Harrowitz (2008), e seguindo o exemplo de Peirce, que a dedução prova algo que deve ser e que a indução determina o valor de uma relação, demonstrando que algo é de fato operativo.
48
arte” (Camargo Jr., 1997) 66
. Porém, cuidado. A arte não como elogio de uma
sensibilidade imediata, à qual faz referência Foucault (2004) quando apresenta como um
mito epistemológico a identificação da experiência clínica com uma bela sensibilidade,
mas reconhecendo o conceito de “sensorialidade do saber” que implica a conjunção de
um domínio hospitalar e um domínio pedagógico, a definição de um campo de
probabilidade e de uma estrutura linguística ou gramatical (p. 133). Ou seja, mais uma
vez, o olhar clínico responde a uma “sensorialidade do saber” que se expressa,
especialmente, na prática do médico, em uma perspectiva semiológica, onde as doenças
são concebidas como um conjunto de sinais e sintomas que deveram ser traduzidos ou
interpretados no processo de diagnose (Montgomery, 2006).
Contudo, como assinala Bonet (2004), o diagnóstico não está exposto ou explícito
para que o médico o „veja‟, mas é produto de uma construção na qual trabalham tanto o
médico quanto o paciente; “é por isso que se encontram, nos relatos, metáforas que se
referem ao „diagnóstico‟ como algo a que se „chega‟” (p. 96). Por este motivo, o autor
apresenta o processo diagnóstico como uma „travessia‟, já mencionada. Nessa travessia,
o médico recorre a um método indiciário, que envolve um modo particular de produção
de conhecimentos. A partir da noção de “travessia” surge aqui, novamente, uma
dimensão metafórica que também sustenta a ideia da medicina “como uma arte”,
especialmente no oficio/arte da navegação que faz menção Foucault (2004b) como
analogia da prática médica67
.
66
O autor introduz esta distinção, particularmente, com relação ao eixo explicativo que considera o mais valorizado, devido à sua inclusão no domínio das ciências experimentais. Assim, o eixo semiológico “é relativamente depreciado como método de produção de conhecimento, ficando o eixo morfológico num patamar intermediário” (Camargo Jr., 1997: 60). Contudo, no momento do exercício concreto do ofício de médico está relação inverte-se predominando o eixo menos valorizado do ponto de vista da legitimação social (idem). 67
Agradecemos ao professor Castiel por esta sugestão.
49
2. Recuperando Ginzburg (1989), de novo, uma abordagem semiótica, como o
modelo da semiótica médica, está baseado na interpretação de sinais ou indícios. Nesse
modelo, se reconhece um determinado método de trabalho. Ginzburg propõe uma
analogia entre o método de classificação de Morelli (caracteres distintivos de pintura), a
identificação de uma patologia criminal (chaves de mistérios para Sherlock Holmes) 68
e
a técnica de psicanálise (sintomas para Freud).
Assim, uma análise do processo de diagnose da síndrome Uruguai segundo o modelo
indiciário implica o reconhecimento de um modo particular de trabalho e de produção
de conhecimento. Com relação ao manuscrito, N. afirma:
“Es un artículo riguroso en su metodología”.
Aqui, tentamos desvendar essa metodologia de trabalho.
Como assinalamos no primeiro capítulo, o estudo da família da síndrome Uruguai se
iniciou a partir da consulta médica de Juan, um jovem de 19 anos, enviado ao IGM por
um cirurgião ortopédico “para diagnóstico”.
O cirurgião ortopédico P., diretor de um serviço de traumatologia e ortopedia de um
hospital público de Montevidéu, conheceu a Juan desde pequeno. Segundo a médica
geneticista L., a história de Juan teve várias “etapas” e, graças a P.:
“Tenían una excelente descripción del profesor donde él, que es una persona de
experiencia, no tenía diagnóstico”69
.
Os médicos reconhecem diferentes etapas na doença de Juan, primeiro um problema
no quadril, logo na coluna e, por fim, nas mãos e nos pés. Segundo explica L.;
68
Segundo já indicado, esta analogia também é proposta por Montgomery (1991). Como lembra Castiel (comunicação pessoal), a origem da expressão “evidência” tem forte conotação de ‘prova’ no sentido criminal e a própria palavra em inglês “evidence” é usada neste sentido – o que não ocorria nos idiomas português e castelhano. 69
Neste depoimento, se destaca o reconhecimento de L. do médico P. como uma “pessoa de experiência” que faz referência direta com o estoque de vivências (Montgomery, 2006), componente essencial da experiência clínica.
50
“Entonces, cuando el médico traumatólogo ve a Juan en la adolescencia con su
historia porque (…) empiezan a tratarlo por su columna, y cuando aparece con esas
manos y esos pies en la adolescencia bueno, ahí piensa, criterio elemental, esto debe
tener una única causa, y ahí es cuando lo deriva al servicio de genética”.
O médico P. lembrava especialmente de Juan pela sua inusitada e complicada luxação
do quadril. Juan tinha sido operado mais de uma vez e a luxação do quadril reaparecia.
Anos mais tarde, surge um novo elemento, a deformação na coluna e, tempo depois, as
deformações nas mãos e nos pés.
Neste ponto é conveniente recuperar a concepção de Montgomery (2006) das doenças
não como objetos estáticos, mas como narrativas que se desenrolam, de forma
contingente, ao longo do tempo. Assim sendo, os médicos devem encontrar sentidos não
somente dos sinais e sintomas, mas também da sua progressão. É necessário mais
tempo, mais pistas, outras interpretações. Mais uma vez, Montgomery (2006) insiste na
importância do tempo e do contexto no trabalho da percepção clínica e as suas
interpretações. Neste mesmo sentido, L. explica:
“No siempre continuamos la búsqueda, así como tantas veces pasaron 10 años de que
vimos un paciente por primera vez y después se estableció el diagnóstico, porque el
diagnóstico lo permitió la evolución del paciente, aparecieron nuevos elementos
fenotípicos, clínicos o paraclínicos que te permiten un diagnóstico”.
Sebeok & Umiker-Sebeok (2008) lembram uma passagem de um dos manuscritos
inéditos de Peirce, “essa maneira de encarar os sintomas como traços distintivos da
identidade de uma doença, que é, então, tratada como uma entidade concreta” (p. 44),
para logo depois afirmar que Sherlock Holmes constrói um diagnóstico ou uma
identificação de uma patologia criminal, através de uma série de percepções diminutas,
reunidas por hipótese.
Como ilustram os autores, testar uma hipótese através de um conjunto de pistas ou
indícios a partir da aparência física do individuo ou coisas semelhantes, envolve certa
dose de adivinhação ou indução abdutiva. Como se indicou antes, a abdução se inicia a
51
partir dos fatos e a consideração dos fatos sugere uma hipótese. As observações de P.,
retomadas por L., podem ser consideradas uma forma de abdução, uma inferência
lógica70
.
Aqui propomos caracterizar os médicos geneticistas como consultores semióticos, no
mesmo sentido que Sherlock Holmes, tal como colocado por Ginzburg (1989, 2008) e
por Sebeok & Umiker-Sebeok (2008). Na travessia diagnóstica da síndrome Uruguai, os
geneticistas podem ser apresentados como pesquisadores/caçadores incansáveis de
indícios, pistas ou sinais: caçadores, médicos e historiadores por ofício, partindo de um
mesmo modelo de conhecimento, de indícios ou sinais, “(re) constroem” casos
particulares, dos quais abstraem generalizações (Cardoso, 2000, p. 553) 71
.
3. A partir da primeira consulta de Juan, L. lembra; “nosotros lo evaluamos y no
teníamos diagnóstico de a qué pertenecían sus malformaciones”. Portanto, os médicos
começaram a estudar o paciente segundo os pressupostos da semiologia médica
(anamnese, exame físico e exames complementares). Assim, uma série de
malformações ou anomalias foi identificada, sem definir um diagnóstico.
Ao mesmo tempo, segundo explica L., “dentro de la metodología del estudio
genético”, uma vez avaliado o paciente é necessário avaliar os seus pais e a família mais
ampla. Assim sendo, segundo apontam L. e M.:
70
Na entrevista com P., este afirmou que no momento que viu o paciente com “esas deformaciones de tamaño” nas mãos e nos pés, pensou: “esto tiene nombre y apellido”, e imediatamente “derivou” o paciente para uma consulta com um médico clínico geneticista. 71
Lembrando, como afirma Maria Helena, que se bem, neste caso, trata-se de médicos geneticistas, o modelo indiciário pode-se descobrir em qualquer especialidade médica, até mesmo na interpretação de um estudo que envolve uma imagem, como uma radiografia.
52
“Para ver si alguno de ellos tenía alguna manifestación menor, a ver si teníamos
alguna orientación, como se hace comúnmente…ya habíamos pedido para evaluar a los
padres y a las dos hermanas”;
“El hecho clínico se refiere al paciente, en el caso de la genética y/o a la familia,
porque el objetivo de la genética es la familia, no el paciente, porque el paciente es en
la medicina común, tú hablas del paciente y cuándo decís el pronóstico es de ese
paciente, el pronóstico de la litiasis biliar de ese paciente, pero en genética médica el
paciente es la familia, el objetivo es la familia, o sea que hay una clínica de familia
también, que es una buena genealogía, y que se ve acá y que se ve acá, y este rasgo,
este carácter, este síntoma y este signo, cómo se está transmitiendo...”.
Contudo, a maior parte da família de Juan morava na cidade de Rivera, a 500 km de
Montevidéu, não sendo acessível ou possível uma viagem até a capital. Desta forma, o
contato pessoal com os médicos demorou em acontecer. Não obstante, Maria, uma tia
materna de Juan, de 25 anos de idade, que trabalhava como empregada doméstica em
Montevidéu, soube através da irmã (mãe de Juan) das avaliações solicitadas pelos
médicos a respeito de sua família. Deste modo, quatro meses após a consulta de Juan,
Maria resolveu realizar uma consulta no IGM.
Segundo explica L., Maria estava próxima de se casar e manifestou o temor de ter
filhos com os problemas da sua família:
“Ella vino diciendo, yo estoy preocupada porque tengo hermanos, primos y tíos que
tienen malformaciones de manos y de pies (…) y ella nos plantea su ansiedad, su
preocupación en cuanto a que ella no deseaba tener chicos con los problemas que
vivió, no tanto por su sobrino, sino lo que ella sabe qué pasó con sus tíos (…) porque ya
sabía de que había habido fallecidos y por memoria familiar; todos decían bueno Juan
es parecido a otros integrantes de la familia que fallecieron jóvenes por problemas
cardíacos, y además las deformaciones son bastante limitantes, sobre todo, en uno de
los tíos, o sea, hermano de María, otro tío de Juan, que tiene grandes deformaciones en
las manos y en los pies, y otro primo de María”.
Maria viajava periodicamente a Rivera convertendo-se, assim, no principal nexo com
a família de Juan. Em várias oportunidades, Maria levou até o IGM diferentes fontes de
informações como, por exemplo, fotografias da infância de Juan onde, segundo L.,
53
“podían apreciarse algunas de sus dificultades motrices”. Foi também por motivo do
casamento de Maria, que os avos maternos e as irmãs de Juan viajaram até Montevidéu
e visitaram o IGM.
Por outro lado, também como parte de uma “metodologia de trabalho”, o IGM realiza
consultas com outros médicos e instituições quando se deparam com pacientes cujo
diagnóstico não se consegue “resolver”. Assim, uma das médicas do IGM consultou um
médico norte-americano, especializado em displasias ósseas, acerca de um paciente que,
na época, não era Juan. Por motivos pessoais, este médico se ofereceu a viajar a
Montevidéu. Então, L. lembra que:
“El contacto surgió porque dentro de la metodología de actividades del instituto
estamos permanentemente escribiendo a un lugar y a otro para hacer interconsultas, o
sea, la genética es tan amplia y tan impresionantemente compleja que no hay un solo
lugar donde (…) manejar toda la patología; entonces va surgiendo y aparecen
contactos (…) y el tema fue que él respondió con algo que nos fue muy útil,
contándonos que él estaba casado con una argentina y tenía previsto venir a Buenos
Aires a dar unas conferencias y que él no tenía ningún inconveniente en visitarnos si
nosotros lo deseábamos (…) fue una situación coyuntural porque se le escribió para
consultarle y él se ofrece a venir y para nosotros fue estupendo”.
Assim sendo, um ano depois da primeira consulta de Juan, o IGM organizou um
encontro no serviço de ortopedia de um hospital público de Montevidéu com o objetivo
de apresentar relatos de caso sem diagnóstico frente ao médico especializado em
displasias ósseas. Nesta instância, o caso de Juan foi apresentado e, como lembra L., o
especialista estrangeiro declarou:
“No sé lo que es. No sé qué problema tiene. Y se mostró muy interesado”.
54
Desta forma, L. escreveu no prontuário ou história clínica72
de Juan: “es algo nuevo”.
Mais tarde, o médico norte-americano realizou uma pesquisa bibliográfica e confirmou
que não existiam registros de casos semelhantes, seguindo um processo que
Montgomery descreve como uma “argumentação narrativa” (1991: 45). Quer dizer, a
história da doença do paciente junto com os resultados do estudo semiológico, à luz dos
conhecimentos clínicos do médico, é interpretada e adaptada a um argumento narrativo,
logo comparado com outros argumentos narrativos de livros de texto ou estandardizados
sobre as doenças mais prováveis, mas também com os argumentos sobre casos
semelhantes referidos à própria experiência do médico (Montgomery, 1991).
A confirmação do médico estrangeiro da ausência de casos semelhantes motivou os
geneticistas do IGM. Assim M. e L. afirmam:
“Entonces, nos impulsó a estudiarlo, para ver si podíamos establecer un
diagnóstico”;
“Nos entusiasmó”.
Com o estímulo do médico geneticista norte-americano, os médicos do IGM
resolveram dar impulso ao estudo da família. Nesta iniciativa, Maria acompanhou os
médicos, mais uma vez. Ela conhecia bem a sua extensa família e foi com a sua ajuda
que se começou a delinear a genealogia familiar. Assim, L comenta:
“Fue María el motor que nos ayudó, María fue el motor que nucleó a la familia, fue
la que coordinó entrevistas con las tías abuelas, o sea, yo recuerdo haber ido a tomar
el té con varias de estas señoras acá en Montevideo [assinalando á árvore genealógica].
Yo tuve varias entrevistas y siempre me acompañó María, para completar los datos
genealógicos, o sea, ella me acompañaba, hacía la parte introductoria y después me
72
No IGM, o prontuário se compõe de uma pasta de quatro folhas que contem um formulário padrão com dados a ser completados durante a anamnese. No prontuário é colocada a soma de todas as informações a respeito do paciente e outros integrantes da família. Assim sendo, é fonte de informação diversa que é trocada entre os médicos de diversas especialidades. De fato, como aponta Maria Helena (comunicação pessoal), o prontuário é a fonte básica da pesquisa clínica e, por isso mesmo, compõe o que se convencionou chamar de arquivo médico, compreendendo também o registro da historia clínica do paciente, sendo em cima das informações nele contidas que se montam os relatos de caso apresentados em reuniões, congressos, etc.
55
dejaba. Recuerdo por lo menos tres tardes de haber ido a tomar el té…además con una
memoria maravillosa, me contaban todos los detalles”.
Por outro lado, a equipe médica resolveu viajar à Rivera para conhecer o resto da
família. Numa primeira viagem, Maria, novamente, acompanhou os médicos e foi quem
coordenou a reunião de uma grande parte de seus familiares numa única casa. Esse
primeiro encontro reuniu cerca de vinte pessoas. Deste modo, L. e M. recordam:
“Ella nos acompañó…para sacar sangre y para examinar clínicamente a todos y
sacar fotos (...) había hecho todas las coordinaciones…cuando llegamos a la casa
estaban todos, era un montón de gente”;
“Estuvimos como tres horas…y les vimos los pies y las manos a todos…y vimos
quienes eran afectados y esos afectados los volvimos a ver después, y a documentar
más tranquilos (…) explicamos que dados los hechos familiares, lo que habíamos visto,
era muy probable que estuviéramos frente a una enfermedad genética y que había que
estudiar, que estábamos ahí para eso, para reconocer a los que estaban enfermos o que
tenían problemas”.
Depois desta primeira casa, a equipe visitou mais duas casas onde, segundo L.,
realizaram visitas “breves y sociales”. Por fim, a equipe visitou uma terceira casa onde
morava um primo irmão de Maria, de 29 anos, um dos homens afetados pela síndrome
que se descreve no manuscrito. Maria, mais uma vez, dirigiu os médicos a esta família
coordenando e intermediando a relação com eles.
Nesta primeira viagem, foram identificados três homens doentes. Com eles, um
encontro posterior foi marcado em um hospital na cidade de Rivera. Assim, pouco
tempo depois, em uma segunda viagem, os médicos se encontraram com os “varões
afetados” e a mãe de Juan no hospital. Desta forma, M. comenta que:
“Más tarde, hicimos otro viaje, pero ya los citamos en el hospital de Rivera. Ahí los
vimos a todos, a los enfermos, que eran tres; los vimos de vuelta, tranquilos; les
sacamos fotos y placas”.
56
Também nesta segunda viagem, mais uma vez acompanhados por Maria,
estabeleceram contato com uma tia dela, que foi quem acompanhou e cuidou de dois de
seus irmãos, já falecidos, aparentemente também doentes. Os médicos a entrevistaram.
Apesar de, poucos meses atrás, esta mulher haver jogado fora as radiografias e outros
estudos médicos de seus irmãos, os médicos recuperaram uma fotografia do rosto de um
deles a partir de uma carteira de identidade que esta senhora ainda conservava. Esta
fotografia faz parte do conjunto de fotografias que compõe o manuscrito publicado.
Do mesmo modo, nesta ocasião os médicos visitaram uma outra casa na cidade de
Santana do Livramento73
onde morava a tataravó de Juan, de 98 anos de idade,
novamente, com a companhia e intermediação de Maria. Assim, L. e M. relatam:
“Después fuimos a visitar a una señora, la más viejita de todas, que nos dio más
datos familiares…una tercera casa que estaba del otro lado de la frontera, que es ésta
[assinalando a figura da genealogia]…que tenía como 90 y pico de años…y ella nos dio
muchos datos de la familia (…) con una claridad estupenda, porque ella recordaba sus
padres, sus abuelos, y nos dio datos precisos de fechas y años…recordaba
perfectamente a los fallecidos, tenía bien presente a todos los afectados de la familia”;
“Tú cuando haces la genealogía siempre estás buscando al más viejo de la familia,
que es él que más sabe, y María sabía que esta señora vivía y allá fuimos (…) la
memoria familiar de esta señora (…) una viejita de 98 años que tenía muy buena
memoria, que ella postulaba que esta era una familia que venía de Brasil…que uno de
los núcleos que existían estaba en Tacuarembó74
”.
Como explicam os médicos, estas visitas foram realizadas com o principal objetivo de
recolher os dados necessários para o desenho da árvore familiar: propósito principal do
médico geneticista na travessia diagnóstica.
73
Fronteira política Uruguai (Rivera)- Brasil (Santana do Livramento). Nestas cidades, o limite político (popularmente conhecido como a linha) entre os estados nacionais, encontra-se fisicamente representado por ruas e escassos sinais, isto é, não existem obstáculos institucionais ou físicos entre as cidades para o livre trânsito e circulação de pessoas e mercadorias. Por isto, em grande medida, Rivera e Livramento se articulam como uma única cidade. 74
Departamento de Uruguai, limítrofe com o departamento de Rivera.
57
4. Antes apresentamos à semiologia médica como o tratado dos métodos de exame
clínico (Romeiro, 1980). Também pode ser caracterizada, como apontam Midão e Ruiz-
Moreno (2010), como “o ramo da ciência médica que ensina a técnica correta para obter
sinais ou sintomas de determinado estado patológico, mediante inspeção, palpação,
percussão e ausculta” (p. 397). O bom clínico, como todo bom médico, sabe fazer bom
uso de sua visão, de sua audição, do seu olfato e de suas mãos, “para observar, ouvir e
auscultar, farejar, palpar e percutir o paciente” (idem). Assim, para ser um bom médico
é necessário ser um bom semiota, ou seja, um bom identificador de sintomas e sinais
(Midão & Ruiz-Moreno, 2010; Surós & Surós, 2001).
No processo de estudo da família da síndrome Uruguai, descobre-se os geneticistas
como consultores semióticos, tanto na busca como na identificação de indícios ou sinais
e sintomas. Vejamos.
Depois da primeira consulta médica de Juan, os médicos identificaram uma série de
anomalias que indicavam a presença de uma doença que, no momento da consulta, não
conseguiram definir ou diagnosticar. Eram necessárias mais pistas ou indícios. De fato,
como já foi apontado, o diagnóstico requer uma reconstrução retrospectiva de eventos, e
até mesmo o paciente que apresenta sintomas aparentemente claros compreende,
também, um conjunto de conhecimentos potencialmente incertos (Montgomery, 1991,
2006). Os médicos como semiotas e “pensadores práticos” (Montgomery, 2006: 52),
reiterando mais uma vez o que já foi dito, dependem dos seus conhecimentos, da sua
experiência e do método racional inerente à construção do caso concreto.
Frente ao paciente Juan, os médicos, que reconhecem uma incerteza radical, “no sé lo
que es”, desenvolveram estratégias múltiplas com o objetivo de definir um diagnóstico,
58
manifestando habilidades para conhecer clinicamente, nos termos colocados por
Montgomery (1991, 2006). De fato, o raciocínio clínico é mais evidente quando o
diagnóstico é incerto, se mostrando multiplicativo e não-linear (Montgomery, 2006).
Recuperando aqui alguns detalhes do estudo da família da síndrome Uruguai, L.
relata:
“Yo me fui allá, a Ortopedia, con un grabador y me senté con el director del servicio,
ortopedista y traumatólogo, para que me hablara y me leyera las placas, y me dijera yo
le veo esto y aquello, que es lo más importante a destacar como patológico, lo que se
aparta más de lo normal, y él fue el que me dio la descripción radiológica, y le grabé
todo, y después lo fui transcribiendo”.
Este depoimento, que descreve parte das estratégias de pesquisa desenvolvida pelos
médicos, não somente recupera o exercício da distinção normal e patológico da
racionalidade médica, mas também ilustra o procedimento da pesquisa: “para que me
leyera las placas”. Ou seja, a leitura de uma radiografia exige uma alfabetização
especializada, também indiciária75
.
Na pesquisa de indícios, os médicos geneticistas também destacam uma “metodologia
de estudo genética”. Segundo esta metodologia, os indícios devem ser procurados na
família, sendo que os geneticistas definem como paciente à família e como objetivo da
genética humana uma “clínica da família” que, neste estudo de caso, foi apresentada
75
“A leitura de radiografias envolve habilidades altamente especializadas que requerem um treinamento e uma prática intensiva” (Dijck, 2005: 7: nossa tradução). No mesmo sentido, Ortega (2006), citando o romance “A montanha mágica” de Thomas Mann, frente às imagens de raios X, enfatiza a necessidade de um olhar decodificador que ajude a ver o que está sendo apresentado, “uma linguagem capaz de nomear o que está sendo olhado, que acompanha as tecnologias de imageamento corporal” (p. 90). O autor apresenta o conceito de um self objetivo, isto é, uma categoria de pessoa desenvolvida mediante conhecimento expert, referido a um corpo fragmentado, a um corpo-objeto da tradição anatomofisiológica privado de sua dimensão subjetiva, “o corpo como algo que temos e não algo que somos” (ibidem, 105).
59
como uma boa genealogia. Desta forma, a genealogia se mostra como mais uma fonte
de indícios na travessia diagnóstica. Por quê?
Como já foi apontado antes neste capítulo, o geneticista interessa-se especialmente na
elaboração de uma história familiar e na observação dos padrões genealógicos,
considerados chaves para o diagnóstico, para demonstrar que uma determinada doença é
hereditária ou para definir o padrão de herança. O que interessa destacar aqui é que a
presença da doença em outros membros da família é fundamental no sentido de levantar
uma hipótese de uma doença em moldes de herança mendeliana, e até provavelmente
ligada ao X, quando o caso estudado e os demais relatados são homens.
Por outro lado, na busca de indícios no estudo da família da síndrome Uruguai devem
se destacar, ao menos, dois sucessos distintos. O primeiro, a ação do médico norte
americano, ele mesmo considerado um semiota experiente. Assim sendo, naquele
encontro de relatos de caso de pacientes sem diagnóstico, L., que participou do evento,
afirma:
“Recuerdo que el primer paciente que vio venía por baja talla; lo desnudó, vio el
escroto en „chal‟ e hizo diagnóstico de síndrome de Aarskog76
…que nunca habíamos
diagnosticado ninguno, y quedó todo el mundo impactado”.
Este relato sintetiza bem as situações experimentadas por Conan Doyle, estudante de
medicina, assistindo à apresentação de pacientes frente a seu professor, o Dr. Joseph
Bell, a partir do qual se inspirou para a construção da personagem de Sherlock Holmes:
“os apresentava, um por um, na ampla sala na qual se encontrava Bell sentado, em
76
A síndrome de Aarskog-Scott é definida como uma doença genética extremamente rara de herança recessiva ligado ao X registrada na base de dados online OMIM (#305400). Os aspectos clínicos característicos da doença incluem: hipertelorismo, incisivos aumentados, nariz pequeno com narinas antevertidas, hipoplasia maxilar, baixa estatura, hiperextensibilidade de dedos, membranas interdigitais, clinodactilia de 5° dedo, escroto em cachecol, criptorquidia, hérnias inguinais e pés planos.
60
grande estilo, cercado por seus assistentes e pupilos” (Sebeok & Umiker-Sebeok, 2008:
39).
Doyle estava impressionado com a excepcional habilidade de Bell quanto a
diagnósticos: “ele ficava sabendo mais sobre o paciente por meio de umas poucas
miradas” (idem, 39). O próprio Bell afirmava:
“Procurem aprender as características de uma doença ou de um ferimento, senhores,
tão precisamente quanto conhecem o aspecto, o modo de andar, as peculiaridades de
comportamento de seu mais íntimo amigo (...) enquanto que para os mestres de sua arte
há miríades de signos eloquentes e instrutivos, os quais, no entanto, exigem olhar
educado para descobrir...a importância do infinitamente pequeno é incalculável” (Bell
apud Sebeok & Umiker-Sebeok, 2008: 43).
A própria personagem de Sherlock Holmes pratica os métodos da medicina,
afirmando: “você conhece meu método. Está baseado na observação de
insignificâncias” (ibidem, 38) 77
.
O médico especialista norte americano, da mesma forma que o Dr. Bell ou Sherlock
Holmes, habilmente construiu um diagnóstico através de uma série de percepções
diminutas, reunidas por hipótese. Assim, mais uma vez:
“Testar uma hipótese, bem como a identidade de uma pessoa, através de um conjunto
de pistas a partir da aparência física do individuo, dos padrões de fala e coisas
semelhantes, sempre envolve uma certa dose de adivinhação, razão pela qual Peirce
chamou isso indução abdutória” (Sebeok & Umiker-Sebeok, 2008: 46: grifos do autor).
A experiência do médico estrangeiro, o seu estímulo, e a confirmação da ausência de
gestalts semióticas similares promoveram a pesquisa de indícios, necessários para a
definição diagnóstica da doença de Juan. Um processo diagnóstico iniciado,
fundamentalmente, a partir de uma “observação” e de uma “suspeita”. Como explica M:
77
Para Sebeok & Umiker-Sebeok (2008), a utilização feita por Doyle de um médico como modelo foi uma tentativa consciente de introduzir um “método científico mais rigoroso” (p. 38) do que até então tinha sido utilizado na investigação criminal.
61
“Hubo, sobre todo, una observación y una sospecha de que esto no estaba descrito,
revisamos la bibliografía, nos ayudaron los médicos norte-americanos, que tienen un
archivo descomunal de displasias óseas, y nadie encontró nada parecido”.
De novo, uma ênfase na observação; “o estudante de medicina precisa aprender a
observar”, insistia o professor Bell; “nós professores reputamos útil mostrar aos
estudantes quanto o uso treinado da observação pode descobrir em matérias
corriqueiras” (Bell apud Sebeok & Umiker-Sebeok, 2008: 53). A “observação” é uma
das noções que, junto com a “anamnese” ou “investigar a história”, sintetizam os
princípios metódicos adotados por Hipócrates e seus discípulos para delinear o conjunto
de sintomas que permita traçar um prognóstico da evolução do paciente, “apoiando-se
na opsis (observação) e na acoë (o que se ouve)” (Aquino et al., 2012: 104).
O segundo sucesso importante na pesquisa de indícios no processo de diagnose foi a
participação de Maria, uma eficiente e comprometida colaboradora não somente na
articulação do relacionamento dos médicos com a família, mas também na própria
recuperação de indícios que constavam em objetos, na narrativa das pessoas, nas
fotografias. O envolvimento de Maria também mostra aspectos metodológicos de
interesse na pesquisa médica, particularmente, uma persistente preocupação pela
recuperação de indícios. Maria foi uma espécie de informante chave, em clave
antropológica, para os geneticistas. Triste e surpreendentemente, Maria morreu por
causa de um tumor cerebral poucos meses depois do início da pesquisa.
É claro que nem a procura do diagnóstico nem os processos que dita procura
motivaram ou organizaram procederam de uma forma linear. Os médicos, captando
sinais e sintomas, formularam hipóteses primárias, testadas por meio da anamnese, do
exame físico e dos exames complementares: “de modo semelhante à abordagem que
62
detetives fazem para solucionar um crime, a hipótese diagnóstica vai sendo construída e
reformulada” (Aquino et al. 2012: 105; Montgomery 1991, 2006).
Circulando entre as pistas disponíveis e as regras gerais que definem as doenças, o
médico propõe um conjunto de possibilidades para definir a melhor hipótese para o caso
em questão. Quer dizer, desenvolvendo um raciocínio prático, interpretativo, abdutivo,
um método compartilhado por historiadores ou detetives, onde as anomalias, as pistas
ou as histórias geradas são de vital importância (Montgomery, 2006). Assim, o
raciocínio desenvolvido por Sherlock Holmes, o método indiciário (Ginzburg, 1989),
tem uma forte semelhança com o raciocínio clínico. Ambos os casos, tanto a
reconstrução do crime de Holmes como a reconstrução narrativa da elaboração
diagnóstica envolvem histórias de trabalho, com base no modelo de conhecimento
indiciário ou semiótico, essenciais para entender o caso.
5. Antes, relatamos uma história. Não é a história de Juan nem dos diferentes
integrantes da família da síndrome Uruguai - os pacientes - apenas se apresenta uma
brevíssima e incompleta história de Maria, uma das tias de Juan78
. Também não é uma
história ou uma narrativa médica. O que apresentamos pretende ser uma reconstrução
parcial de uma travessia diagnóstica ou dos detalhes circunstanciais do caso que fizeram
parte da cadeia indutivo-dedutiva do “detetive clínico” (Montgomery, 1991: 172).
Como explicamos antes, o manuscrito da síndrome Uruguai segue determinadas
convenções ou padrão narrativo que acabam colocando em segundo plano um método
indiciário, característico da semiologia médica, que abrange as circunstâncias do caso, a
seleção e interpretação de pistas, os detalhes operativos decisivos para o diagnóstico.
78
A ausência das histórias dos membros da família da síndrome pode ser assinalada como uma das limitações deste trabalho.
63
O manuscrito apresenta um resultado diagnóstico (Laín Entralgo, 1984) que se refere
a um julgamento clínico: o significado médico ou o que o médico reconhece no doente.
Para Bonet (2004), o processo construtivo inerente à travessia diagnóstica é
frequentemente associado a um procedimento científico: “e esse caráter de científico é
outorgado pela capacidade que os estudos secundários têm de comprovar o „diagnóstico
presumível‟, o que o transforma em „diagnóstico final‟” (p. 97). Entretanto, quando o
diagnóstico afirma-se como verdadeiro, já não depende das condições conjunturais de
sua produção, e o enunciado se transforma em um fato (Bonet, 2004).
Neste sentido, o resultado diagnóstico apresentado no padrão narrativo do manuscrito
não somente deixa de explicitar o método indiciário, mas também desvanece a
contingência e contextualidade da pesquisa desenvolvida, especialmente nos termos
colocados por Knorr Cetina (2005) 79
. De fato, esta autora afirma que os próprios
cientistas descontextualizam os produtos de seu trabalho quando os convertem em
“achados informados” (p. 139) no artigo científico.
Assim, também os produtos escritos da ciência podem ser considerados construções
de laboratório80
que contêm uma argumentação própria que contrasta com a
argumentação desenvolvida no local do laboratório, por exemplo, com respeito às
79
Esta autora desenvolveu a sua pesquisa em um laboratório dedicado à pesquisa referida às proteínas das plantas. O laboratório fazia parte de um centro de investigação financiado pelo governo de Berkeley que, na época (1977), empregava 3.300 científicos e engenheiros. 80
Knorr Cetina (2005) descreve os produtos da ciência como construções que dependem de uma situação e de um contexto particular. Isto significa que o que acontece no seu processo de construção não é irrelevante para os produtos obtidos. No mesmo sentido, Latour & Woolgar (1997) afirmam que os fatos científicos são socialmente construídos, sendo preciso considerar o procedimento, o lugar e a motivação que contribuem para que um determinado fato seja considerado como tal. Como também destacam Tesser & Luz (2002), um dos principais resultados sociocognitivos da construção de verdades e fatos científicos em geral é “o completo apagamento do árduo, polêmico e tortuoso caminho dessa construção, até que tais verdades pareçam pura evidência” (p. 365). No mesmo sentido, Becker (2007) afirma: “sociólogos da ciência mostraram-nos como cientistas naturais trabalham de maneiras nunca mencionadas em suas exposições formais de método, escondendo a ‘prática artesanal’ – o que realmente fazem – sob a maneira formal como falam sobre o que fazem” (p. 22).
64
estratégias literárias utilizadas81
. Em verdade, Knorr Cetina (2005) mostra uma
preocupação antropológica pela recuperação de um cenário de trabalho responsável pela
instrumentação de uma metodologia sensível, de um “olhar forte” (p. 88), capaz de
mostrar práticas de trabalho “impregnadas de contexto” (p. 139) 82
.
Em realidade, a dependência dos produtos da ciência de situações e contextos
particulares também faz referência a detalhes circunstanciais decisivos na investigação
dos médicos clínicos não somente para o diagnóstico, mas também para algumas
definições que fazem parte do julgamento clínico, por exemplo, o nome da doença.
Vejamos.
Em uma das entrevistas realizadas a uma das autoras do manuscrito, L. lembrava as
diferentes instâncias do estudo da família revendo o prontuário ou história clínica do
paciente. Na entrevista, falávamos acerca do manuscrito, porém L. não olhava para o
manuscrito, mas para aquele prontuário que reunia uma história clínica e inúmeros
detalhes83
. L. encontrava no prontuário e os seus componentes um melhor suporte para
81
Os estudos dos textos científicos mostram estratégias literárias comuns na escrita: a utilização de uma linguagem simples, a separação entre informação e interpretação, uma estandardização retórica na organização dos parágrafos, certa eleição de vocabulário e meios gramaticais de expressão, etc. (Medawar, 1964; Knorr Cetina, 2005). Para Knorr Cetina (2005), na transição do trabalho de laboratório ao artigo científico revela-se um complexo processo de recontextualização e reconstrução. 82 Mais uma vez, lembramos aqui a Feyerabend (2007) e sua visionária proposta de promover pesquisas
antropológicas com a certeza de que aportariam resultados inesperados, pois o material a ser usado para lograr uma melhor compreensão do processo de aquisição e aperfeiçoamento do conhecimento se vincula não tanto com regras metodológicas aceitas, mas com as exigências sociais que muitas vezes fazem que as mesmas sejam deixadas de lado; com os instrumentos usados para redefinir uma experiência, em lugar de ser testados por ela; com resultados locais que não são considerados relevantes, apesar de existir razões que demonstram o contrário: “ideias que na atualidade formam a própria base da ciência existem apenas porque houve coisas como preconceito, presunção, paixão; porque essas coisas opuseram-se à razão; e porque se lhes permitiu fazerem o que quisessem” (p. 174, 219-20: grifos do autor). De fato, Knorr Cetina (2005) identifica diferentes modos de raciocínio nos cientistas e não uma única racionalidade sustentada em algumas variantes do ‘método científico’. Assim, descobre que os cientistas podem ser analisados segundo diferentes lógicas em movimento: o cientista com um raciocínio “prático”, “indicial”, “analógico”, “socialmente situado”, “literário” e “simbólico” (Kreimer, 2003, 2005). 83
Nomes, endereços, anotações, desenhos de genealogias, slides, resultados de distintos estudos médicos, fotografias, estudos cromossômicos, rascunhos do manuscrito publicado, correspondência eletrônica, dentre outros.
65
explicar e desenvolver o processo de diagnose. Por quê? Porque, mais uma vez, a
história clínica compreende a narrativa do caso que ordena os eventos no tempo e não
somente reúne a história da doença do paciente, mas também os traços dos julgamentos
realizados, as hipóteses eliminadas ou confirmadas, as ações tomadas ou interrompidas
(Montgomery, 2006).
Assim, durante a entrevista e com esse material entre suas mãos, surgiu um dos tantos
correios eletrônicos enviados aos co-autores do manuscrito, médicos geneticistas norte-
americanos, onde o assunto do e-mail foi definido como “big hands - big feet” ou “the
family big hands – big feet”.
Big hands - big feet (mãos grandes – pés grandes) foi o nome utilizado durante o
processo do estudo da família, antes da definição do nome da doença tal como aparece
no manuscrito publicado. Este é um nome que enfatiza algumas das características
físicas mais visíveis das pessoas afetadas pela doença e que também representa bem um
dos primeiros atos realizados pelos médicos quando se encontraram pela primeira vez
com uma grande parte da família estudada: a observação detalhada das mãos e dos pés.
Antes, indicamos que o título do manuscrito define um nome para uma nova doença,
identifica um fenômeno e o torna factível de uma indexação, quer dizer, apresenta um
diagnóstico final de „caráter científico‟ ou se aproxima às convenções do artigo
publicado em um periódico especializado. Desde um outro lugar, que não é a
formulação escrita publicada do julgamento clínico, o nome big hands big feet, permite
reconhecer outros detalhes relativos ao contexto e à situação da investigação dos
66
médicos geneticistas, em términos semelhantes aos colocados por Knorr Cetina
(2005)84
.
Entretanto, também circunstâncias relativas ao contexto e a situação dos médicos
geneticistas podem ser descobertas no próprio nome da síndrome tal e como definido no
manuscrito. Neste sentido, antes apontamos que a doença envolve alterações faciais,
musculares, esqueléticas e cardíacas com um desenvolvimento desmesurado dos
músculos, mãos amplas e pés largos, com deformações progressivas, luxação variável
congênita do quadril e escoliose. Uma parte do nome da doença, aquela definida como
“Fácio-Cardio-Músculo-Esquelético” representa bem, segundo os geneticistas, as
principais manifestações da síndrome. No entanto, como explicar a incorporação, como
parte do nome da doença, da palavra Uruguai, nome de uma nação?
Segundo McKusick (1998), atribuir um nome é o primeiro passo para definir uma
doença ou uma síndrome; uma enfermidade não é completamente aceita até que não é
associada com um nome. O autor faz uma referência histórica a Platão que, em um de
seus Diálogos, atribui posições opostas a Hermógenes e Sócrates: o primeiro considera
que os nomes são produtos de uma convenção, de um acordo, e que qualquer nome
poderia ser o correto. Pelo contrário, Sócrates afirma que os nomes devem ser atribuídos
segundo o processo natural envolvido, e não por acaso; um nome é um instrumento de
ensino e de natureza distintiva.
Para McKusick (1998), é desejável que o nome da doença esteja relacionado em
forma direta com a etiologia, causa primária ou mecanismo patogênico, o que seria
possível nas doenças de herança mendeliana simples, embora na maioria das doenças a
84
Mais uma limitação deste trabalho se relaciona com a falta de uma análise da comunicação eletrônica, via e-mail, entre os médicos uruguaios e norte-americanos com respeito ao processo de trabalho e elaboração diagnóstica. Aqui, simplesmente, reconhecemos a sua existência.
67
informação sobre etiologia e patogenia é muito incompleta. Para o autor, a forma de
atribuir nomes segundo a concepção de Sócrates é difícil de aplicar. O uso de epônimos,
que consiste em nomear as doenças por nomes próprios (geralmente de médicos, mas
também de pacientes, áreas geográficas ou grupos étnicos), segue o principio de
Hermógenes, porém, não completamente. Os epônimos oferecem alguma informação
acerca da história da doença, contribuição das pessoas envolvidas na sua pesquisa ou,
também, sobre a sua distribuição geográfica ou étnica (idem). Assim, os epônimos
apresentariam uma série de vantagens sobre os nomes que destacam determinados
aspectos de uma doença; não promoveriam juízos apressados sobre os resultados de
uma pesquisa, evitariam denominações semelhantes a trava-línguas, e seriam
recomendáveis sobre outras designações que podem ser ofensivas para o paciente ou as
suas famílias. Outros autores discutem os diversos inconvenientes do uso de epônimos
em medicina reconhecendo, não obstante, que apesar das dificuldades, os epônimos
continuarão sendo utilizados porque “há um sentido histórico na sua utilização”
(Cuthbert, 2007: 23: nossa tradução).
Os médicos geneticistas L. e M. explicam o epônimo “Uruguai” como parte do nome
da doença do modo seguinte:
“Es visto muchas veces en la bibliografía reconocer síndromes como el síndrome de
fulano, de mengano, con nombre y apellido, entonces nos pareció que ponerle un
nombre propio iba a ser el síndrome de un nombre más (…) entonces considerando las
dificultades que habíamos tenido, todo lo que vivimos con esta familia (…) porque
hemos tenido vivencias de que bueno, Uruguay, cuando yo fui a mi beca a Francia, y
me recibió el profesor con el cual me había contactado epistolarmente durante más de
un año, me preguntó: „¿y como está Stroessner‟. O sea que se homologaba el Uruguay
a Paraguay y lo hemos visto…o sea Uruguay es un paisito allá, que no era conocido en
el mundo por avances en esta disciplina; entonces nos pareció que era un hecho
interesante que se llamara síndrome Uruguay, porque al tener el nombre de un país
automáticamente iba a generar en aquel que lo leyera bueno, dónde queda Uruguay
por lo menos”;
68
“Que aparezca el nombre Uruguay nos pone en el mapa científico (…) en Uruguay hay
gente que es capaz de diagnosticar un síndrome”.
Assim, o epônimo Uruguai no nome da síndrome também poderia ser considerado
uma manifestação de detalhes circunstanciais, neste caso, referidos com aspectos
contextuais da experiência de vida e de trabalho dos geneticistas, sendo interessante o
vínculo que os médicos estabelecem com a experiência da nacionalidade85
.
85
A noção de nacionalidade, junto com as noções de nação e nacionalismo, têm se mostrado tão difíceis de definir quanto de analisar (Anderson, 1989). Com relação ao conceito de nacionalidade, lembramos aqui, ao menos, dois sentidos principais; o primeiro relacionado com o fato de pertencer a um território, a este respeito à nacionalidade converte-se num atributo o qualidade natural (Ruben, 1987). O segundo sentido, dogmático, se relaciona com a ideia de pertencimento a um continente sentimental onde se compartem uma série de valores e tradições próprios. Assim, a nação “não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia de nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu ‘poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (Schwarz apud Hall, 2002: 49, grifos do autor). Contudo, o conceito de nacionalidade não tem que ser entendido como um somatório de parcialidades, nem como uma categoria natural, nem como um sentimento, senão como uma relação histórica e política que os homens, vivendo em sociedade, constroem negociando (Ruben, 1987: 59).
69
3. Na cozinha do sentido
O manuscrito no cenário do instituto de genética e os médicos como narradores
I
1. O manuscrito da síndrome Uruguai foi o primeiro artigo publicado em uma revista
internacional pela equipe médica do IGM. Porém, o IGM começou suas atividades em
1975, sendo a instituição mais antiga na área da genética médica no Uruguai. No
entanto, a primeira publicação internacional surgiu 25 anos depois de sua fundação.
Assim sendo, pode se pensar que o objetivo de publicar não foi uma prioridade para a
instituição ou enfrentaram dificuldades e falta de recursos que impossibilitaram a
divulgação de artigos internacionais, incluindo os obstáculos relativos à publicação
deste manuscrito em particular.
Para entender melhor o surgimento do manuscrito é necessário algum conhecimento
sobre o IGM, isto é, algumas das suas características gerais e das atividades ali
desenvolvidas. Por outro lado, o conhecimento da dinâmica de trabalho do IGM pode
contribuir não somente para entender melhor o manuscrito, mas também a lógica de
trabalho dos médicos geneticistas pode se espelhar no manuscrito86
.
O IGM foi fundado há 38 anos, sendo dirigido por dois médicos geneticistas, um
homem e uma mulher, formados em genética na Argentina e na França87
. A equipe do
IGM é composta por mais cinco médicos (geneticistas, ginecologistas, obstetras,
pediatras), pelos profissionais atuando na área de laboratório (fundamentalmente,
biólogos e químicos, perfazendo um total de cerca de dez pessoas), e pelo pessoal
86
Agradecemos esta sugestão a Octavio Bonet (IFCS/UFRJ). 87
Na época, não existia a especialidade em Uruguai.
70
administrativo. A equipe apresenta grande estabilidade, a maioria com mais de vinte
anos de trabalho na instituição88
.
O IGM funciona no âmbito privado da saúde. Não recebe apoio estatal ou subvenção.
No entanto, possui convênios de trabalho com o Banco de Previdência Social (BPS) 89
,
recebendo grande número de pacientes advindos de esta instituição90
. Também tem
convênios de trabalho com mutualistas91
, e outras instituições do sistema de saúde
uruguaio.
O IGM oferece os serviços de aconselhamento genético, diagnóstico pós-natal e pré-
natal de enfermidades genéticas e multifatoriais, estudos moleculares em câncer e
estudos de filiação. Abarca uma área de trabalho que se divide em uma série de espaços
bem definidos. Em um sentido amplo, podem-se distinguir três setores principais. Um
primeiro setor compreende a chamada área de secretaria, onde se realizam tarefas
administrativas, consultas telefônicas e recepção de pacientes, compreendendo também
uma “sala de espera”. Assim mesmo, este primeiro setor inclui dois “consultórios”: um
primeiro consultório, de maior tamanho, onde os médicos recebem os pacientes e onde,
uma vez por semana, se realizam as “reuniões clínicas” (cuja dinâmica explicaremos
adiante), e um segundo consultório, de menor tamanho, que funciona também como
lugar de reunião.
88
Uma situação diferente da descrita por Rapp (1993, 2000) na sua seminal pesquisa etnográfica realizada no “Laboratório de Diagnóstico Pré-natal” (Departamento de Saúde Pública) da cidade de Nova Iorque. Rapp (2000), que aponta para a importância de analisar o que identifica como “vida de laboratório”, na mesma perspectiva adotada por Knorr-Cetina (2005) e por Latour & Woolgar (1997), destaca a grande e permanente mobilidade dos trabalhadores da área de laboratório, “uma força de trabalho multiétnica, estratificada, sendo a maioria dos seus membros mulheres” (Rapp, 2000: 61: nossa tradução). 89
Instituto de seguridade social estatal do Uruguai. 90
Juan, nosso jovem caso-probante, a partir do qual começou o estudo da família, é “paciente de BPS”, segundo uma expressão frequente nos médicos do IGM. 91
Associações de profissionais privadas sem fins de lucro que oferecem atenção integral a 56% dos uruguaios, beneficiários da seguridade social (Aran & Laca, 2011).
71
Um segundo setor envolve a área de laboratório92
que se divide, por sua vez, em áreas
de trabalho específicas: cultivo celular, citogenética, bioquímica metabólica e biologia
molecular93
. Um terceiro e ultimo setor corresponde ao setor de arquivo das mais de
50.000 histórias clínicas de pacientes e famílias recebidas na instituição até o momento
da nossa pesquisa (ano 2013).
2. Desde a perspectiva dos médicos geneticistas, as atividades no IGM são delineadas
no marco do diagnóstico e aconselhamento genético no “nível pré-concepcional, póst-
concepcional pré-natal ou pós-natal a todas as idades”. Segundo esta distinção, L.
reconhece diferentes “áreas” de trabalho: área de dismorfologia clínica94
; área de
diagnóstico pré-natal e área de diagnóstico pós-natal, ao mesmo tempo em que separa
suas atividades segundo os horários e os dias da semana:
“Los lunes son días en los cuales, desde el punto de vista asistencial, vemos pacientes
con dismorfología clínica…pacientes derivados por sus médicos tratantes, en general,
pediatras o neuropediatras, o cualquiera de las especialidades, puede ser un
dermatólogo o un hematólogo, depende del fenotipo del paciente”.
Deste modo, L. explica que, “à tarde dismorfología”, enquanto ao meio-dia, se realiza
a entrega, através de entrevistas, dos informes de diagnóstico pré-natal. No final do dia,
92
“O quê é, depois de tudo, um laboratório?”, se pergunta Knorr-Cetina (2005): “uma acumulação de instrumentos e aparelhos, dentro de um espaço de trabalho conformado por mesas e cadeiras. Gavetas cheias de utensílios menores, prateleiras carregadas de produtos químicos e recipientes de vidro. Geladeiras e congeladores cheios de mostras cuidadosamente etiquetadas e de materiais-fonte” (p. 58: nossa tradução). 93
Aqui não abordamos uma análise particular da área de laboratório, se bem que, mais adiante, surgem elementos que são resultado do trabalho de laboratório e serão discutidos pontualmente. 94
A dismorfologia estuda as malformações congênitas que alteram a configuração ou a forma de uma ou mais partes do corpo ou órgãos de um recém nascido (Nussbaum et al., 2008). Assim, o “objetivo clínico” dos médicos especialistas em dismorfologia se define como o diagnóstico das crianças, “que sofrem uma malformação congênita, a indicação de provas diagnósticas adicionais, oferecerem informação prognóstica respeito das possibilidades de evolução esperada, desenvolver um plano de abordagem das possíveis complicações, proporcionarem à família as informações necessárias para compreender a causa da malformação e realizar estimações de risco da recorrência com relação aos pais e outros familiares” (Nussbaum et al., 2008: 416: nossa tradução).
72
têm lugar a “reunião clínica”, que consiste na apresentação de relatos de caso com a
participação de toda a equipe de médicos e/ou outros médicos convidados de outras
especialidades.
As terças são, principalmente, “dias de técnicas” de diagnóstico pré-natal “invasivo”
(punção de vilosidades coriônicas e punção amniótica) e “não invasivo” (diagnóstico
ultrassonográfico, estudos através do sangue materno, rastreamento bioquímico e
biofísico). As terças à tarde;
“Es como un comodín, o sea, el post-mediodía del martes es un comodín, porque
bueno, a veces precisamos horas y las consultas están saturadas, entonces se le ofrece
al paciente o, por ejemplo, entrega de resultados de estudios de filiación, estudios que
no tienen una regularidad en su ingreso ni una regularidad en la entrega”.
As quartas, por sua vez, são dedicadas às “mulheres grávidas” ou:
“Parejas abortadoras, parejas estériles o patologías de adultos, por ejemplo, historia
de familia cáncer; en general, son pacientes que veo yo, o sea, en general, veo pocos
niños, veo sobre todo los adultos, y sobre todo, lo vinculado a genética y reproducción.
Y pocas embarazadas, sobre todo, son las abortadoras, o que vienen para un
asesoramiento preconcepcional porque falleció un hijo con algún defecto congénito, o
algún defecto en la familia, todo lo que es preconcepcional, en general, se concentra el
miércoles”.
Segundo L., as quintas são também dias “basicamente” de mulheres grávidas e,
finalmente, as sextas, novamente, dias de dismorfologia, podendo receber pacientes por
outros motivos de consulta.
L. esclarece que o “denominador comum” de seus dias é a supervisão dos informes
escritos entregues aos pacientes, explicando conhecer os pacientes através da
apresentação dos mesmos nas reuniões clínicas. Por outro lado, também realiza a
supervisão de uma parte do trabalho de laboratório (cultivo celular e citogenética).
73
Além disso, também supervisa, junto com outros médicos, os informes de outras áreas
de trabalho que, frequentemente, correspondem a mostras de sangue ou tecidos;
“Porque hay áreas que no manejamos, el área de laboratorio molecular propiamente
dicho, o sea, aquí entran muestras para estudios cromosómicos, hematológicos,
médulas óseas, líquido cefalorraquídeo o sangre para estudios moleculares, la parte
infecciosa que hace Susana; estudios de toda naturaleza que entran para lo molecular
directamente, sin verse al paciente, y además tenemos las muestras de pacientes que
vienen o pacientes que vienen a sacarse sangre para estudios al exterior cuyos
resultados después hay que hacer una traducción en términos legibles para el médico
que los mandó”.
Como se indicou antes, esta apresentação da dinâmica de trabalho do IGM é realizada
desde a perspectiva dos médicos e não pretende explicar os sentidos das atividades
mencionadas. A nossa principal intenção é salientar que, para os geneticistas, não há
tempo suficiente para, além das suas práticas cotidianas, escreverem artigos. Em outras
palavras, para esta equipe médica o fato de publicar não faz parte das suas atividades ou
acontece excepcionalmente, como foi o caso do manuscrito da síndrome Uruguai. Neste
sentido, M. L. e S. comentam:
“Con los recursos …de gente que se sentara a escribir un artículo, y que nos ayudara
en la parte de escritura, realmente no disponíamos de tiempo, y por supuesto que
estábamos alerta que si era un síndrome nuevo ameritaba publicarlo”;
“Se escribía en retazos de tiempo de la actividad…más de una vez, sábados de
mañana nos reuníamos…la disponibilidad del consultorio, con el tema de atención, y el
público, y las llamadas no permitía…”;
“No publicamos porque es difícil…yo al menos tengo mucha dificultad para escribir,
por lo cual lleva tiempo, me cuesta mucho…”.
74
Em realidade, os médicos gastam grande parte de seu tempo escrevendo; escrevem
informes, fazem anotações sobre os informes estudados e corrigem aqueles escritos
sobre os seus pacientes95
.
Good (2003) define o informe médico como uma prática formativa, entre outras
(escrever relatórios, fazer anotações gráficas, apresentar relatos de caso), e também
como um meio de construir a pessoa como paciente, documento e projeto. Desta forma,
escrever informes apresenta muitas facetas: “confere autoridade ao estudante de
medicina, justifica a interação com o paciente; organiza a conversação com o paciente”
(p. 151: nossa tradução).
Por outro lado, escrever um artigo para ser apresentado em uma revista especializada,
requer tempo disponível porque os médicos precisam dedicar-se ao aprendizado dos
métodos expositivos, de um padrão narrativo característico, além da apreensão e
discussão dos resultados e a redação propriamente dita dentro das normas aos autores
estabelecidas pela revista escolhida. Além disso, somam-se as inúmeras revisões por
parte de todos os envolvidos, assim como a dos pareceristas ad hoc a quem,
normalmente, os editores das revistas submetem os manuscritos para receberam um
julgamento crítico. O que interessa destacar aqui é que, para os médicos geneticistas do
IGM, a escritura do manuscrito da síndrome Uruguai implicou um grande esforço nestes
sentidos.
De fato, no cenário de trabalho de IGM, M. afirma que a escrita do manuscrito foi um
ato de quixotismo. Como se indicou antes, durante as entrevistas ou anamnesis
realizadas com diferentes integrantes da família surgiu a informação da existência de
95
Aqui nos referimos, particularmente, ao informe ou relatório que os médicos geneticistas escrevem e entregam diretamente ao paciente, médico que assume o caso e/ou instituição que realiza uma consulta. O informe ou relatório médico é um documento a mais, entre muitos outros, dos que integram o prontuário ou arquivo médico de um paciente.
75
outro núcleo da família no departamento de Tacuarembó. Frente a nossa pergunta
acerca das possibilidades de pesquisar esses outros integrantes da família, M. afirmou:
“para eso tenés que dedicarle meses, semanas, ir a Tacuarembó, sentarte a averiguar;
esto lo hicimos de Quijotes”.
Na atividade quotidiana dos médicos, rapidamente delineada antes, a “pressão da
assistência” é uma das principais razões para explicar a falta de tempo para
instrumentalizar uma pesquisa. Neste sentido, M. explica: “estamos inmersos en la
asistencia; la asistencia es un hecho muy distinto a la investigación (…) en la asistencia
hay que dar respuestas concretas, dar un diagnóstico, un asesoramiento genético”.
Para os geneticistas a assistência, isto é, “ver pacientes”, definir diagnósticos e
realizar aconselhamentos genéticos, são atividades principais fundamentadas em uma
concepção dominante de genética clínica, com ênfase em uma perspectiva semiológica.
Por outro lado, as atividades administrativas são apresentadas como mais uma razão
para explicar as limitações com relação à pesquisa no IGM. Assim, com respeito aos
estudos na família da síndrome Uruguai, M. explica:
“La tarea administrativa es bestial…estamos inmersos en otras cosas, estamos
inmersos en la asistencia; la asistencia es un cosa que te exige, la asistencia y la
administración…y conseguir los recursos para que todo siga funcionando”.
Os recursos, principalmente referidos a recursos financeiros, são destacados como
uma preocupação principal não somente com relação ao IGM, mas também com relação
ao processo de estudo da família da síndrome Uruguai em, ao menos, dois sentidos
diferentes. Por um lado, com respeito aos estudos realizados na família, que fazem parte
do manuscrito, os médicos explicam que os exames definidos como cardiológicos e
76
radiológicos efetuados por médicos de outras especialidades foram realizados em forma
gratuita em todos os casos. Assim M. e L. apontam:
“Bueno, vamos a hacer un programa de estudio de los aspectos cardiovasculares de
esta familia…y todo eso tiene costos, y alguien tiene que pagarlos…no podes pedir
prestado, como lo hicimos, si querés seguir haciendo cosas, tenés que pagar”;
“Otro evaluador dijo que faltaba estudiar más a la familia, lo cual es cierto, porque
nunca más la estudiamos, nunca más le dedicamos tiempo, porque bueno, se precisa
tiempo y dinero”.
Como já foi indicado, os médicos fazem referência a estudos que, no caso da família
Uruguai, deveriam se realizar, sobretudo, no sentido de uma pesquisa fisiopatológica,
que não seria possível pela falta de recursos.
Desta forma, os médicos destacam uma particular relação entre assistência,
administração e pesquisa que vinculam através da noção de quixotismo. O estudo da
família da síndrome Uruguai e o próprio manuscrito são apresentados como atos de
quixotismo, especialmente, frente às atividades e às batalhas quotidianas dos médicos
geneticistas, fundamentalmente referidas à administração e à assistência.
Contudo, com o estímulo e apoio do médico especialista norte-americano, os médicos
resolveram apresentar uma narrativa escrita do relato de caso referido à família da
síndrome Uruguai, nos termos de Montgomery (1991), ou seja, um caso raro.
Precisamente, por isso a importância da sua publicação, pois geralmente os casos raros
são escritos para ser publicados em revistas de medicina especializadas com o objetivo
de que outros médicos possam aprender. Neste sentido, o depoimento de S. é
particularmente ilustrativo:
“A mí me parece que tendríamos, te diría sinceramente, que publicar más. En este
centro en especial tenemos la oportunidad de ver tantas afecciones genéticas rarísimas
que tendríamos que publicar más porque siento que tenemos que transmitirlo.
Tendríamos que tener la obligación de transmitir a otras generaciones para que la
77
gente no tenga que batallar tanto, me refiero a los pacientes y su familia, batallar tanto
o andar tanto camino para que se llegue a un diagnóstico. A medida que uno publica
nuestras fotos, de alguna manera, está transmitiendo un conocimiento que después se
hace más fácil porque realmente es así. A mí, sinceramente, la primera vez que vimos
un síndrome de Costello me tocó a mí verlo. ¿Y yo porque lo vi? Porque estaba
buscando en la revista American Journal of Medical Genetics un trabajo y pasé sin
querer vi una publicación y dije: „¡Ah, pero este es mi paciente!‟ Y ahí me detuve a
leerlo y era. Y así llegué, buscando bibliografía, por otro paciente, al diagnóstico de un
Costello. Entonces, la literatura médica enseña, y nosotros, si publicamos, es una
manera de enseñar.”
Este depoimento recupera exemplarmente o ponto de vista de Montgomery (1991)
que reconhece a informação publicada nos periódicos em medicina como um adequado
antídoto contra a incerteza da prática médica. Assim, o problema da ação a seguir com
relação a um paciente em particular, provavelmente, pode ser resolvido - como no caso
apresentado por S. referido a um diagnóstico de síndrome de Costello96
- através de um
artigo publicado que oferece conhecimentos relevantes para o caso em questão.
Esta é uma perspectiva que situa os relatórios escritos sobre casos clínicos como mais
uma ferramenta na educação do julgamento clínico. Mais uma vez, de forma similar a
Sherlock Holmes com o seu acervo de conhecimentos sobre os crimes estranhos ou
cuidadosamente estudados por ele mesmo, os médicos adquirem uma coleção de casos
observados ou tratados por eles diretamente, e aumentam o seu acervo com outros casos
publicados nas revistas ou periódicos de medicina:
“Continuamente refinado e reorganizado à medida que o seu possuidor lê relatos de
pesquisa clínica e se envolve no exercício do julgamento clínico, este conhecimento
prático informa à interpretação de cada novo caso no momento de situá-lo na taxonomia
clínica do diagnóstico e da terapia” (p. 45: nossa tradução).
96
Uma síndrome genética rara, autossômica dominante (OMIM #218040), ligada a diversas anomalias congênitas. Até o momento, acredita-se que foram descritos por volta de 150 casos no mundo desde a sua primeira descrição, no ano de 1977, feita pelo pediatra Jack Costello. Estima-se que a incidência desta síndrome gire em torno de 1 cada 30 milhões de indivíduos nascidos vivos (http://www.omim.org/entry/218040).
78
3. As segundas à tarde se realizam as reuniões clínicas nas quais participam os
médicos do IGM, eventualmente, alguns dos técnicos da área de laboratório e/ou outros
médicos convidados para discutir o caso de algum paciente em particular, podendo
também participar estudantes ou profissionais de saúde de outras instituições que, pelos
mais diversos motivos, se interessem pelos casos clínicos a serem discutidos.
Na reunião clínica são apresentados os pacientes, relatos de casos, que os médicos
conheceram no curso de seu trabalho numa semana de atividade. Para os médicos, um
objetivo principal compreende a discussão acerca do diagnóstico destes pacientes.
Como aponta M.:
“Las reuniones clínicas tienen como objetivo tratar de elaborar un diagnóstico a
partir de la opinión de todos”.
Com respeito à dinâmica das reuniões L. explica:
“Tratamos de optimizar la reunión yendo básicamente a los hechos clínicos que
motivaron la venida (…) ahora optimizamos a los hechos que tienen que ver con la
patología”.
Para L., “optimizar” ou aperfeiçoar a reunião implica “chegar ao ponto”. Aprender a
“chegar ao ponto” de um modo persuasivo é considerado básico na prática médica
(Good, 2003) 97
. Assim, nestes encontros clínicos, por causa da pressão do tempo e da
falta dele, os dados apresentados são aqueles considerados de relevância para conduzir a
uma hipótese diagnóstica, a um diagnóstico fechado e a decisões terapêuticas.
Contudo, o relato de caso segue uma forma estandardizada que, fundamentalmente,
consiste em apresentar os sintomas e a história da doença no paciente em questão, em
seguida, os resultados do estudo semiológico (exame físico, resultados de testes
97
“Exige saber o suficiente sobre o estado do paciente, os processos da doença, as possibilidades diagnósticas (...) e apresentar as questões básicas em poucos minutos. E exige a capacidade de se explicar bem, de organizar cronologicamente a historia, de situar as origens e as consequências do processo da doença e de esboçar um diagnóstico” (Good 2003: 154: nossa tradução).
79
preliminares) para, finalmente, propor um diagnóstico diferencial em ordem de
probabilidade98
. Sem esquecer que os eventos assim organizados têm como objetivo
realçar as particularidades da doença analisada para traduzir “os relatos subjetivos do
paciente na descrição mais objetiva e abstrata do médico”, de forma a montar os
“quebra-cabeças intelectuais colocados pela doença que o médico deve resolver”
(Montgomery, 1991: 56: nossa tradução). De fato, a reunião, compilação e organização
das informações relativas à história da doença, às sinas e sintomas, resultados de
exames, etc., inauguram o processo de pesquisa e interpretação médica sobre o paciente
e a sua doença, isto é, o paciente torna-se um caso.
No IGM, a apresentação de relatos de caso nos encontros clínicos é um momento
relevante, assim como também é relevante na própria prática médica e na formação do
médico (Good, 2003). Dita apresentação expressa o que Montgomery (2006) descreve
como raciocínio baseado em casos, ou seja, a narração dos casos – a discussão dos casos
individuais – apresenta-se como o principal meio de organizar, pensar, lembrar e
“saber” em medicina:
“O raciocínio interpretativo necessário para entender os sinais e sintomas e chegar a
um diagnóstico é representado na narrativa com toda a sua incerteza localizada e
circunstancial” (p. 46: nossa tradução).
Assim, a narrativa dos casos fornece um meio viável para representar um
conhecimento que depende do tempo e do contexto. Como aponta Montgomery, as
doenças não são diagnosticadas e tratadas em tubos de ensaio, mas em seres humanos,
onde se desenvolvem de modo diverso ao longo do tempo; deste modo, “ambas as
doenças e os pacientes são mais bem compreendidos à luz de suas histórias” (p. 117:
98
O interesse da historia clínica reflete o interesse do caso. Assim, os casos que apresentam dificuldades para definir um diagnóstico (como foi o caso da família da síndrome Uruguai), merecem uma atenção adicional, também no espaço das reuniões clínicas.
80
nossa tradução). Estas histórias compreendem não somente a história natural dos sinais
e sintomas envolvidos no “enredo” diagnóstico, mas também a história da doença atual
em um paciente em particular, a sua história social, a história familiar da doença;
narrativas que devem ser reunidas e interpretadas para criar o caso médico que responda
por um episódio de doença individual.
Do mesmo modo, Good (2003) apresenta os relatos de caso como uma série de
narrativas de doença que compõem um gênero, e envolvem formas muito
convencionais, onde as histórias também organizam e apresentam a doença, porém, ao
mesmo tempo, descrevem as pessoas como pacientes e também como problemas
médicos99
.
Aqui interessa destacar que, em medicina, e especialmente nas situações definidas
como “reuniões clínicas”, a narração dos casos é essencial não somente na transferência
de conhecimento clínico, mas também como experiência adquirida na prática:
“A historia do caso clínico não só proporciona um meio para trabalhar e lembrar o que
é melhor fazer para um determinado paciente, mas também captura experiência que é
apresentada para a sua audiência. Como resultado, a narrativa do caso é o principal
caminho para os novos aprendizes e os praticantes experientes para moldar o
julgamento clínico” (Montgomery, 2006: 49: nossa tradução).
Assim sendo, o relato de caso é uma ferramenta principal no processo de
aprendizagem do raciocínio clínico, não somente para organizar as observações clínicas,
mas também para aperfeiçoar o processo analógico pelo qual os “pensadores clínicos”
(ibidem, 51) atingem um diagnóstico reconhecível. Além disso, os encontros clínicos
também podem ser apresentados como mais um modo coletivo (a pesquisa
99
Assim, o relato de casos não é simplesmente um meio para expor a realidade, mas também para construí-la (Good, 2003: 156), dentro de um sentido, em grande parte, recuperado por Law (2004), seguindo as primeiras orientações de Latour & Woolgar (1997).
81
bibliográfica, a consulta com outros médicos especialistas são outros exemplos) através
dos quais o conhecimento clínico é refinado100
.
Nas atividades do IGM, “diagnóstico” é uma palavra chave, como na própria prática
biomédica (Bonet, 2004). O objetivo “fazer diagnóstico” é um objetivo principal,
estreitamente vinculado com um conjunto de práticas formativas através das quais é
definida e apresentada a doença.
O manuscrito da síndrome Uruguai recupera uma série de práticas formativas
quotidianamente exercitadas: assistir e descrever pacientes, discutir com outros médicos
as possibilidades diagnósticas, identificar e definir doenças e diagnósticos. Assim, o
manuscrito reflete, em grande parte, a experiência de trabalho do médico geneticista no
processo de elaboração diagnóstica.
Antes mostramos como L. e M. explicam o diagnóstico da síndrome Uruguai:
“A partir de un hecho clínico, absolutamente clínico, porque está basado en un hecho
genealógico, en un hecho semiológico, por la descripción de malformaciones; la única
paraclínica que utilizamos fue la radiología, que no fue determinante”;
“Y establecimos un diagnóstico nosológico; es un diagnóstico de una entidad nueva,
aún no definida, y con una causa que sabemos que es genética, por los hechos
genealógicos, sobre todo (…) aparte del diagnóstico nosológico, hicimos un
diagnóstico semiológico, a partir de hechos clínicos, de determinadas malformaciones
o deformidades, y de determinados hechos radiológicos”.
Diversos autores destacam o método clínico como o método de pesquisa da
semiologia médica, ponto de partida da experiência clínica (Aquino et al., 2012; Surós
& Surós, 2001; Romeiro, 1980). Previamente, definimos a semiologia médica como um
conjunto de ações ordenadas que envolve a pesquisa de sinais e sintomas, a busca das
100
De fato, o próprio manuscrito da síndrome Uruguai poderia ser considerado um exemplo de trabalho coletivo para aperfeiçoar ou definir um diagnóstico que, por outro lado, segundo já dito, envolve o costume de consultar pares ou apresentar relatos de caso em encontros clínicos e conferências, principalmente, para dar conta da incerteza do conhecimento médico.
82
explicações fisiopatológicas que causaram tais sinais e sintomas, e uma análise
minuciosa dos dados recolhidos para a formulação do diagnóstico ou hipóteses
diagnósticas.
Lembrando, mais uma vez, os eixos propostos por Camargo Jr. (1997) para uma
conceituação geral dos elementos da categoria doença, o terceiro e último eixo, o eixo
semiológico, obedece ao eixo da clínica propriamente dita. No capítulo 2, sugerimos
que o manuscrito da síndrome Uruguai recupera, particularmente, o eixo do saber
clínico, um dos níveis ou momentos na estrutura do saber médico (Laín Entralgo, 1984).
Assim sendo, o manuscrito apresenta uma gestalt semiológica característica, que se
constitui na essência do exercício clínico propriamente dito (Cardoso, 2000).
A este respeito, seria possível propor que, no manuscrito, pode-se encontrar um
espelho da lógica de trabalho desenvolvida no IGM. Assim sendo, os médicos
geneticistas quotidianamente, através do método clínico, desenvolvem pesquisas
indiciárias (Ginzburg, 1989) de gestalts semiológicas através da procura e da
identificação de certo conjunto de sinais e sintomas. O manuscrito seria um bom
exemplo deste procedimento diagnóstico.
83
II.
1. Roland Barthes (1993) utiliza a expressão “a cozinha do sentido” para apresentar à
perspectiva semiológica como uma reflexão sistemática das diferentes leituras que
aplicamos, muitas vezes sem tomar consciência, aos diferentes objetos que encontramos
na nossa vida quotidiana. O homem moderno, afirma Barthes, o homem das cidades,
transcorre a maior parte de seu tempo lendo:
“Lê, em primeiro lugar e acima de tudo, as imagens, os gestos, o comportamento: este
carro comunica o status social de seu proprietário, este vestuário indica exatamente a
dose de conformismo, ou excentricidade, de seu portador (...) até mesmo quando se trata
de um texto escrito, sempre é possível ler uma segunda mensagem entre as linhas do
primeiro” (p. 223: nossa tradução).
Assim, um vestido, um gesto, uma película, uma música ou uma manchete de jornal
são todos signos. O mundo está cheio de signos101
, muito mais complexos que as letras
do alfabeto, os sinais públicos ou os uniformes militares. O semiólogo, da mesma forma
que o antropólogo, deve entrar na “cozinha do sentido” e decifrar os signos do mundo, o
que geralmente quer dizer lutar contra certa inocência dos objetos para descobrir seus
valores sociais, morais, ideológicos (ibidem, 224).
Como indicamos antes, todo signo102
apresenta um elemento comum: é produto de
uma série de relações, onde se pode observar uma correlação entre o plano da expressão
(significante) e o plano do conteúdo (significado) se baseando em um certo código
convencional: “um signo é uma coisa que, além da imagem assimilada através dos
101
As tendências atuais da semiologia se inclinam a incluir entre os signos todos os aspectos da cultura e da vida social, incluindo os objetos (Eco, 1976). 102
Eco (1973), em seu trabalho Signo, desenvolve uma extensa e detalhada classificação dos signos com o objetivo de esboçar uma teoria unificada do signo.
84
sentidos, faz chegar, por si mesma, ao pensamento alguma outra coisa” (ibidem, 36:
nossa tradução).
Para Ginzburg (1989), segundo mostramos quando apresentamos o modelo indiciário
(capítulo 2), o signo na sua assunção de sinal dá sempre a conhecer algo mais através da
atividade de interpretação (Cardoso et al., 2002). Neste sentido; “indícios, pistas,
refugos, detalhes, palavras se abrem para outros sentidos porque comportam
conotações, mesmo que, por vezes, diferenciadas” (p. 559).
Para Barthes (1993), é precisamente em torno da noção de signo que a semiologia
médica e a semiologia de origem linguística compartilham uma identidade de
implicação ideológica, onde a noção de signo surge cada vez mais como uma noção
histórica, vinculada com “certo tipo de cultura, a nossa” (p. 268: nossa tradução).
Contudo, o signo médico remete a um significado que é nosográfico, isto é, a doença
como nome, segundo já indicado. O nome da doença é proporcionado através do signo
ou dos signos:
“No campo médico se trabalha com um signo absolutamente ortodoxo desde o ponto
de vista da competência, isto é, uma espécie de unidade bifacial, uma de cujas caras,
oculta, que tem que ser descoberta e nomeada, é a doença; a outra cara exteriorizada,
materializada, fragmentada eventualmente em muitos significantes, tem que ser
construída, interpretada, sintetizada” (p. 270: nossa tradução).
Assim, na semiologia médica o signo também pode ser considerado o sintoma na
medida em que ocupa um lugar numa descrição, sendo um produto explícito da
linguagem enquanto participa da elaboração do quadro clínico do discurso médico
(idem) 103
. Desta forma, o médico transforma, pela mediação da linguagem, o sintoma
em signo ou sinal. Para Barthes (1993), que lembra os estudos de Foucault (2004), o
103
Para o professor Castiel (comunicação pessoal), resulta interessante que a etimologia de sintoma inclui a ideia de coincidência: “talvez dê até para dizer que se trata de co-incidência da linguagem do paciente que co-incide com o discurso médico”.
85
signo médico apresenta uma tripla função; é anamnésico, diz o que já aconteceu; é
prognóstico, diz o que vai acontecer; e é diagnóstico, diz o que se está desenvolvendo
atualmente. Deste modo, o signo denuncia, define e anuncia, e o médico relaciona os
sinais com uma doença que ocupa certo lugar no quadro nosológico.
2. O signo faz parte de um processo de comunicação e significação104
. Esta é uma
concepção semântica do signo: o signo se considera em relação ao que significa. Donna
Haraway105
reclama a necessidade de reconhecer os signos que adquirem sentido no
mundo “ferozmente físico e semiótico” da tecnociência (idem, 1) 106
. De fato, o seu livro
“Modest_Witness@Second_Millennium. Female ©_Meets_OncoMouse™” (Haraway,
1997) se encontra organizado em correspondência com as áreas de estudo da semiótica
(parte 1: sintática; parte 2: semântica; parte 3: pragmática) recuperando uma distinção
amplamente aceita, embora discutível (segundo Eco, 1976) que considera o signo
conforme três dimensões: semântica, o signo é considerado com relação ao que
significa; sintática, o signo se considera como susceptível de ser inserto numa sequência
de outros signos, e pragmática: o signo se considera com relação às suas próprias
origens, os efeitos nos seus destinatários, a utilização que fazem deles, etc. (Eco,
104
No sentido assinalado por Barthes (1993), e considerado por Eco (1976). 105
Provavelmente, a apresentação que segue sobre as ideias de Haraway seja um tanto precária. Como desculpa (não como justificação), a própria autora reconhece que nos seus ensaios a dificuldade na leitura é uma questão em si mesma. Em primeiro lugar, porque ela reúne, ao mesmo tempo, conhecimentos de campos diversos: estudos literários, biológicos, das ciências da informação, de economia política, histórica e, ainda, “uma educação custosa e privilegiada” (Haraway, 2004: 325: nossa tradução), ainda que muitos de seus leitores compartilhem estes privilégios, como ela mesma o reconhece. Em segundo lugar, porque Haraway não somente gosta das palavras e das “semiologias cyborgs” (Haraway, 1995: 278), mas também dos significados em camadas e, por isso, escreve as frases de tal forma que – no momento em que se está chegando ao final – em algum nível, questionou-se a ideia toda (Haraway, 2004). 106
Para Marcus (1995), Haraway apresenta uma nova modalidade de pesquisa etnográfica multilocal que define seu objeto de estudo segundo diferentes modalidades ou técnicas. Uma etnografia em movimento que “se incorpora conscientemente no sistema mundo” (p. 101), e vai além dos lugares e das situações locais da pesquisa etnográfica convencional estudando a circulação de significados, objetos e identidades culturais num tempo - espaço difuso.
86
1976)107
. Ou seja, além do signo definido teoricamente, existe o ciclo da semiose, a vida
de comunicação, e o uso e a interpretação que se faz dos signos: se encontra a sociedade
que utiliza os signos “para comunicar, para informar, para mentir, para enganar,
dominar e liberar” (p. 20).
Entretanto, Haraway propõe uma provocadora e reflexiva leitura semiológica do
mundo da ciência e da tecnologia, “discutindo os sentidos das palavras, dos
instrumentos e das metáforas” (Haraway, 1997: 15: nossa tradução) nem mais nem
menos que pensando nas práticas no mundo da ciência e da técnica também como
práticas narrativas e âmbitos de luta pelo poder para definir “o existente” (García
Selgas, 1995: 25).
O principio organizador central nas abordagens de Haraway é a biologia, porém a
biologia fortemente entrelaçada com questões de prática política e semiótica, junto com
varias conexões com outras disciplinas, como literatura, antropologia e história108
.
Contudo, segundo a própria autora:
“Não sou naturalista, nem construcionista social. Nenhum - nem. Isto não é
construcionismo social ou determinismo biológico ou tecnocientífico. Não é natureza.
Não é cultura. Verdadeiramente se trata de um sério esforço histórico para chegar a
algum outro lugar” (Haraway, 2004: 330: nossa tradução).
107
De fato, Haraway recupera deste modo as ideias desenvolvidas por Canguilhem (1976) sobre a compreensão da vida assemelhada à gramática, semântica e a teoria da sintaxe. Ou seja, para compreender a vida, a sua mensagem deve ser decodificada para que possa ser lida. Para Franklin (2000), a predição de Canguilhem é muito adequada para descrever as consequências da pesquisa genética do século XXI. O projeto de mapear o genoma humano, isto é, decodificar ou ‘ler’ a sequencia toda do ADN humano é “o exato cumprimento dos imperativos incorporados ao conceito de vida primeiramente descrito por Canguilhem, e posteriormente elaborado por Foucault. O ADN é em si mesmo um significante condensado de ‘sentido inscrito na matéria’, como também o conceito de ‘informação genética’ – ambos os quais representam a vida definida como ‘um objetivo a priori que é inerentemente material’” (Franklin, 2000: 194: grifos da autora: nossa tradução). 108
De fato, as análises de Haraway são simultaneamente historia da ciência, análise cultural, pesquisa feminista e postura política (Arditi, 1995).
87
Haraway apresenta uma leitura da biologia em uma via dupla analisando como
trabalha o mundo biologicamente, mas também metaforicamente, propondo um diálogo
entre as entidades intensamente físicas do fenômeno biológico e as longas narrativas.
Assim sendo, a autora utiliza uma série de metáforas para descrever a complexidade
sobre o que é considerado natureza para explicar não somente formas biológicas, mas
também um conjunto de historicidades, interfaces, processos e práticas de
conhecimentos diferentes109
.
Na procura de uma posição epistemológica e política (Haraway, 1995) surgem os
conhecimentos situados que se apresentam como um instrumento que pode mostrar uma
especificidade histórica “e, portanto, a contestabilidade de todas as construções
científicas e tecnológicas” (p. 319):
“Eu gostaria de ter uma doutrina da objetividade encarnada que compreenda projetos
de ciência feministas críticos e paradoxais: uma objetividade feminista significa,
simplesmente, conhecimentos situados” (ibidem, 324: grifos da autora: nossa tradução) 110
.
“Eu luto por políticas e epistemologias de localização, posicionamento e situação,
onde a parcialidade e não a universalidade é a condição para que possam ser ouvidas as
reivindicações para alcançar um conhecimento racional” (p. 335).
O conceito de conhecimentos situados compreende uma postura central nos trabalhos
de Haraway que se pode resumir com uma ideia, persistente em todos os seus ensaios:
“não podemos ser inocentes”:
109
Para Haraway (1997), a tecnociência implica uma mutação em uma narrativa histórica e “extravagantemente” excede a distinção entre ciência e tecnologia, natureza e sociedade, sujeitos e objetos, e o natural e artefatual, distinções que estruturam o tempo imaginário chamado modernidade (p. 3). De fato, para esta autora o que é ciência, cultura ou natureza, ou seus ‘estudos’ possam significar, não é, para nada, auto-evidente (Haraway, 1999). 110
O feminismo pode ser concebido, em parte, como um projeto de reconstrução da vida e dos significados públicos; ou seja, uma procura de novas histórias e de uma linguagem que ofereça “uma nova visão de possibilidades e de limites; isto é, o feminismo, como a ciência, é um mito, um lugar de luta pelo conhecimento público” (Haraway, 1995: 134: nossa tradução).
88
“Os conhecimentos situados são cordiais com a ciência, porém não facilitam nenhum
fundamento para inversões que fogem da história, nem para a amnésia sobre como são
construídas as articulações, sobre a sua semiótica política” (Haraway, 1999: 139).
“A articulação é uma prática não inocente” (ibidem, 141).
Quer dizer, a parcialidade dos conhecimentos situados, localizáveis, e de objetividades
encarnadas abrange uma epistemologia que reconhece a realidade da experiência das
pessoas e a sua permeabilidade ao poder (Arditi, 1995). Para Haraway, a perspectiva é
parcial, a localização é limitada e o conhecimento é situado. Neste sentido, a
“objetividade” sempre faz referência a situações encarnadas, particulares e específicas.
Como explica a autora:
“Não procuramos a parcialidade porque sim, mas pelas conexões e aberturas
inesperadas que os conhecimentos situados fazem possível. A única forma de encontrar
uma visão mais ampla é a de estar em algum lugar em particular. A questão da ciência
no feminismo trata da objetividade como racionalidade posicionada” (p. 339: nossa
tradução).
Deste modo, os conhecimentos situados são ferramentas poderosas para produzir
mapas de consciência, especialmente para as pessoas que têm sido inscritas dentro das
marcadas categorias de raça e sexo, “tão exuberantemente produzidas dentro das
histórias das dominações masculinas, racistas e colonialistas” (p. 187).
“Os conhecimentos situados são sempre conhecimentos marcados. São as novas
marcas, novas orientações dos grandes mapas que globalizam o corpo heterogêneo do
mundo na história do capitalismo e do colonialismo masculino” (ibidem, 188).
89
3. As observações desenvolvidas por Eco (1976), Barthes (1993) e Haraway (1997)
apresentam o conceito de cultura como sistema de sistema de signos. Em um sentido
semelhante ao desenvolvido por Geertz (1989), que concebe a cultura como um sistema
entrelaçado de signos interpretáveis, onde “a cultura é um contexto, algo dentro do qual
eles podem ser descritos de forma inteligível” (p. 24).
Na introdução ao seu trabalho Signo, Umberto Eco (1976) desenvolve a história do
senhor Sigma que, em uma visita a Paris, começa a sentir moléstias no “ventre”. Desde
os primeiros momentos em que Sigma tenta definir as suas moléstias atribuindo um
nome às mesmas, até o processo de procurar um médico, solicitar um encontro por
telefone, comparecer no endereço do médico e experimentar uma situação de consulta,
Eco mostra que este indivíduo, ante um problema tão espontâneo e natural como uma
“dor no ventre”, “é obrigado a entrar imediatamente num retículo de sistemas de signos”
(p. 10: grifos do autor: nossa tradução).
Estes signos podem estar vinculados com a possibilidade de realizar operações
práticas, outros podem estar implicados em atitudes que se poderiam definir como
“ideológicas”; porém, em qualquer caso, como aponta o autor, todos eles são
fundamentais para os fins da interação social:
“Até o ponto que nos podemos perguntar se são os signos os que permitem a Sigma
viver em sociedade, ou se a sociedade na qual Sigma vive e se constitui como ser
humano não é outra coisa que um complexo sistema de sistemas de signos. Numa
palavra: Sigma poderia ter tido consciência racional da sua própria dor, possibilidade de
pensá-la e classificá-la, se a sociedade e a cultura não o tivessem humanizado como um
animal capaz de elaborar e comunicar signos?” (p. 10: grifos do autor: nossa tradução).
Assim, em uma orientação similar à proposta por Geertz (1989), Eco considera a
cultura como um sistema de sistema de signos numa perspectiva semiótica que se
define, basicamente, por uma preocupação em explicar como se comunica ou significa e
90
que é o que se comunica ou significa (Eco, 1976) 111
. O homem é um animal simbólico
e não somente a linguagem verbal, mas toda a cultura, as instituições, as relações
sociais, etc., são formas simbólicas nas quais o homem envolve a sua experiência para
intercambiar: “se instaura humanidade quando se instaura sociedade, porém se instaura
sociedade quando existe comércio de signos” (ibidem, 107).
Nesta perspectiva, uma hipótese é que estes signos existem em qualquer processo de
comunicação e se fundamentam em uma convenção cultural. Assim sendo, o signo pode
ser compreendido como uma unidade elementar que forma parte de um processo de
comunicação e de significação, e onde há de existir um código comum, isto é, uma série
de regras que atribuam um significado ao signo (Eco, 1976).
O autor segue aqui os estudos desenvolvidos por Charles Peirce que define o signo
como “aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém” (Peirce,
2010: 46) 112
. Ou seja, existe um signo quando, por convenção prévia, qualquer sinal
está instituído por um código como significante de um significado. Como afirma Eco,
segundo já indicado, em qualquer classificação do signo como elemento do processo de
significação, ele sempre aparece como algo que se coloca no lugar de outra coisa, ou
por alguma outra coisa.
111
Preferindo-se o termo semiótica para se referir ao estudo dos sistemas de signos que não depende, necessariamente, da linguística (Eco, 1986). 112
Eco (1976, 1986) reconhece nos estudos de Charles Peirce um dos maiores esforços para classificar e estruturar os possíveis mecanismos de significação. A partir das observações de Peirce, diversos autores têm desenvolvido investigações que explicam como funcionam a comunicação e a significação, sendo Eco um deles.
91
III
1. A imagem da fig. 1 é uma imagem que conheço desde pequena, pois fazia parte dos
quadros da casa da família. Lembro perfeitamente a sua localização sobre um velho
piano, pois eu tinha dificuldades para ficar perto e conseguir observar com atenção
todos os seus numerosos detalhes. Um dia desapareceu. Eu me reencontrei com este
quadro na “sala de espera” do IGM113
.
Fig. 1. Sir Samuel Luke Fildes: The doctor (1887). Óleo sobre tela 166 x 241 cm.
The Tate Britain, Londres.
Esta pintura é considerada um clássico da ilustração médica e tem sido reproduzida
em numerosas ocasiões (Moore, 2008) 114
. Existem diversas análises sobre a pintura,
sobre a sua composição no contexto sociopolítico da época, sobre o próprio Sir Samuel
113
O quadro foi um presente que meu pai ganhou quando recebeu seu diploma em medicina. Contudo, existiu um segundo reencontro com esta imagem quando Maria Helena me recomendou a leitura de Kathryn Montgomery (1991, 2006). O quadro de Fildes, que considero particularmente instigante, já fazia parte deste trabalho quando recebi, através do correio postal, o livro de Montgomery (2006). A minha surpresa foi grande e grata ao desembrulhar o pacote e descobrir a mesma imagem na capa do livro com o título “How doctors think”. 114
Em 1947, foi impressa em um selo postal pelo correio dos Estados Unidos para comemorar o centenário da Associação Médica Americana (Concepción, 2007).
92
Luke Fildes, e sobre as prováveis inspirações ou origens da obra (Concepción, 2007;
Moore, 2008) 115
.
Em uma destas análises, chega-se a conclusão que uma detalhada avaliação da pintura
mostraria que a representação do fazer médico na imagem é uma representação artificial
e improvável, ainda no tempo em que a pintura foi feita. Porém, assim mesmo, “pode
nos ensinar uma importante lição sobre a prática da medicina atual” (Moore, 2008: 213:
nossa tradução). Para Moore, a essência da imagem de Fildes: “é a representação da
qualidade da „centralidade no paciente‟, uma característica essencial da relação
contemporânea médico-paciente e uma questão importante para todos os médicos”
(ibidem, 212: nossa tradução). Desta forma, destaca-se como foco da imagem a relação
entre o paciente e o médico, ressaltando o valor de uma perspectiva centrada no
paciente.
Para os médicos do IGM, a imagem de Fildes é definida como uma apresentação do
ato de diagnosticar; em particular, do momento da exploração clínica do paciente que se
descreve como uma etapa essencial da elaboração diagnóstica, onde a pesquisa de
indícios ou sinais surge como um objetivo relevante. Assim sendo, M. afirma:
115
Sir Luke Fildes foi um reconhecido pintor e ilustrador inglês da época vitoriana. Nasceu em Liverpool em 1844. Estudou na escola de arte South Kensington a princípios de 1860 e depois na Royal Academy. Seus primeiros trabalhos foram no mundo da ilustração como colaborador na tradução inglesa de L’ Homme qui rit, de Victor Hugo, e em publicações britânicas como Graphic, sendo posteriormente contratado por Charles Dickens para ilustrar os seus contos. No fim de 1870, dedicou-se à pintura a óleo. Ingressou na Royal Academy of Art, pouco depois se concentrou no retrato se convertendo num dos pintores do gênero melhor retribuídos em Grã-Bretanha. Possivelmente, o renome alcançado na época na sociedade vitoriana foi o que motivou que Sir Henry Tate, em 1891, lhe encarregasse o óleo “The doctor” para sua coleção da nova National Gallery of Art (Concepción, 2007). A obra devia ter como assunto uma questão social que refletisse “aos olhos da rica sociedade britânica de fins do século XIX, as duras condições de vida que tinham padecido os setores da população mais desfavorecidos que com o seu sofrimento e o seu trabalho extenuante tinham contribuído para que Grã-Bretanha estivesse na cabeça do mundo” (p. 44: nossa tradução). Existem diferentes histórias sobre a origem da pintura. Uma destas versões envolve a morte do filho mais velho de Fildes, acontecida em dezembro do ano 1877, atendido pelo doctor Murray, que impressionou a Fildes pela sua dedicação e cuidado, e poderia ter servido de inspiração para a obra (Concepción, 2007).
93
“Está pensando el diagnóstico. Eso es lo que hace el médico en ese cuadro, está
examinando a partir de los elementos que tiene, y buscando una orientación”.
No quadro de Fildes, os geneticistas reconhecem o momento da diagnose referido ao
julgamento clínico. Para os médicos, a experiência clínica é experimentada no contato
com o paciente e sua doença, e no olhar, associado a uma sensação. Nesse momento os
médicos percebem o desenvolvimento do raciocínio clínico aplicado à evolução do
estado patológico do paciente (Aquino et al., 2012). Neste ponto, vamos a recordar aqui
os encontros clínicos, antes mencionados, para lembrar rapidamente uma situação de
“reunião clínica” 116
que tivemos a oportunidade de observar.
Uma segunda à tarde cinco médicos geneticistas, uma estudante de medicina e uma
bioquímica se reuniram no consultório de maior tamanho do IGM. O pessoal se
distribuiu em torno a uma mesa, de costas à maca, de frente à parede oposta onde se
desdobrou, no momento da reunião, uma tela branca. Desligou-se a luz do consultório.
Um projetor data show começou a mostrar, na tela branca, uma série de fotografias de
pacientes que consultaram aos médicos no transcorrer de uma semana.
Desta forma, em uma sala escura, se observavam sete pessoas de túnicas brancas que
contemplavam detalhadamente as fotografias correspondentes a relatos de caso, que
trocavam e discutiam as particularidades das histórias de cada um dos pacientes
observados/avaliados. A única luz na sala era a luz das fotografias. De algum modo,
esse momento de observação e de análise é o momento espelhado na imagem de Fildes,
ao menos, esse é o momento que estes médicos reconhecem nessa imagem: o que eles
116
Estamos utilizando aqui uma “fala nativa”. O conceito de saber clínico, segundo já mencionado, envolve o método de pesquisa da semiologia médica que compreende um amplo conjunto de ações e contempla não somente a anamnese e o exame físico, mas também exames complementares, tratamento e adesão ao tratamento. Aqui recuperamos a situação de “reunião clínica”, que os próprios médicos destacam como um acontecimento de importância nas suas atividades quotidianas, como um momento exemplar na manifestação do raciocínio clínico que, de algum modo, se refletiria também na obra “O Médico” de Fildes.
94
mesmos fazem quotidianamente nos seus encontros clínicos com os pacientes. Neste
sentido, L., S., e M. explicam:
“Esa es una vieja frase de los maestros, la clínica es soberana (…) y el hecho clínico
justamente consiste en eso, en los elementos que uno encuentra desde la clínica de cada
paciente (…) el hecho clínico a veces es más fuerte que la citogenética (…) uno tiene
que sentarse, pensar, analizar y ver si hay una correlación entre los elementos
bioquímicos, los hallazgos bioquímicos y la clínica”;
“Me gusta mucho la clínica, muchísimo…ver pacientes, tomarse tiempo para verlos,
para examinarlos, para escuchar la historia que, en general, es a través de los padres;
la mayoría son niños, y examinarlos clínicamente, ver qué peso tienen, que talla, si todo
corresponde, el perímetro cefálico, si tienen algún elemento en la piel, algún elemento
en facies, en los miembros, en fin, genitales, un examen clínico completo, la verdad que,
en general, llama la atención a los pacientes, a los papás, como los examinamos acá
pero es así, como debemos hacerlo…a nosotros una consulta no nos lleva menos de una
hora por paciente…cosa rara en la medicina actual”;
“Nosotros manejamos bien la parte clínica (…) yo pienso que hay que darle a la
clínica una importancia enorme porque eso es lo que te permite tomar diferentes
caminos…te doy un ejemplo que me dio la doctora el otro día, la doctora es muy
clínica117
. Llegó una orina y entonces ella analizó la orina y le dieron una serie de
resultados, ¿y esto que será?, ¿una enfermedad mitocondrial o será una enfermedad
metabólica de qué tipo? Una serie de elucubraciones y ella pensó, „no, esto no puede
ser‟. Tenía mes y medio la criatura, „no, esto no puede ser‟. Entonces llama a la madre
y le pregunta, ¿y qué le pasa a la criatura?, ¿cuánto hace que no come? Hacía no sé
cuánto que no comía, o sea le faltaban elementos energéticos…entonces regularizó esa
situación. Nuevo examen de orina, totalmente normal. Ahí tenés…se relacionó con el
hecho clínico, ¿cuál era el hecho clínico? Que no comía, que hacía muchas horas que
no comía”.
Em outro depoimento, M. relata:
“Por ejemplo, el otro día, yo vi una pareja con un embarazo de 29 semanas porque le
habían encontrado a la ecografía un quiste de plexo coroideo unilateral. Y me llamó la
atención que el ecografista había puesto que no distinguía bien la cisterna magna (…)
entonces me llamó la atención que recién hubiera aparecido a la semana 28/29, cuando
en esa semana los quistes de plexo coroideo desaparecen…justo aparece ahí; en la
semana 21, que era la ecografía anterior, no había aparecido nada…el olfato clínico.
Yo le pedí una resonancia nuclear magnética, que es de mucho mejor definición que la
ecografía. No era un quiste de plexo coroideo, era un quiste aracnoideo, de la
117
Esta expressão “muito clínica”, utilizada por M., é análoga a utilizada por Montgomery (2006) quando, ao falar do raciocínio clínico, identifica uma “sabedoria prática” ou phronesis que somente é apreendida pela imersão, pela absorção e pela vivência do encontro médico-paciente, comparando o processo de ensino-aprendizagem na medicina, metaforicamente, ao processo químico de “osmose”, em que a experiência clínica vai se imiscuindo de tal forma que não há como voltar atrás (Montgomery, 2006; Aquino et al., 2012).
95
aracnoides, interhemisférico, uno en la fosa posterior; por eso no veía bien la cisterna
magna y agenesia de cuerpo calloso. La cosa cambió, ya es una malformación
cerebral. Entonces la clínica te hace oler de que ahí hay algo más o te gustaría mejor
definir y yo le pedí la resonancia, acá la tengo, si querés te la enseño…el hecho clínico
te lleva a pedir una definición más... increíblemente en genética médica la clínica sigue
siendo muy importante porque la definición molecular está lejos del hecho clínico”.
Estes depoimentos destacam o exercício da semiologia médica fortemente entrelaçado
com uma experiência clínica sólida, resultante do acúmulo de casos clínicos
vivenciados, onde a experiência clínica aumenta a qualidade das hipóteses geradas
(Aquino et al., 2002; Montgomery, 2006). Contudo, uma experiência clínica que
depende de uma interpretação prévia: uma habilidade para compreender os elementos
particulares da doença em cada paciente individual (os sintomas e os sinais devem ser
interpretados segundo eles se apresentam no paciente), porém tomando em conta regras
clínicas gerais e probabilidades epidemiológicas (Montgomery, 2006). Desta forma, os
médicos destacam a importância de um saber clínico ressaltando a perspectiva clínica
desenvolvida no IGM que vem espelhada na imagem de Fildes. M. insiste:
“Otro ejemplo clínico. Escuchar los ruidos pulmonares, auscultar, clínica pura. Con
el oído escuchas si suena una caverna, si suena a secreciones. La interpretación de los
síntomas y los signos. ¿Eso tenés claro lo que es un síntoma y un signo? (…) Y el
síntoma lo relata el paciente, tengo tos, pero el signo es un hecho clínico que vos
interpretas de otra manera. Eso es un signo. En cambio, un síntoma tengo tos, tengo
fiebre, pero puede haber signos en la piel que la interpretación… suponete cuando P.
se mandó la complicación pos-varicela, que le aparecieron una serie de manchas en la
piel. Eso es la interpretación asociada a un hecho infeccioso y viral, como es la
varicela. Y si aparecen las petequias…eso es la asociación de síntomas como era la
fiebre y signos como es las petequias. Las petequias no te las relata el paciente, te
puede relatar me aparecieron puntitos colorados. La clínica es vital. Fíjate los libros
que están escritos de clínica”.
Ao mesmo tempo, os geneticistas reconhecem, como afirma M., que “ha perdido
terreno la clínica”. Neste sentido, antes indicamos a distinção proposta por Camargo Jr
(1997) entre uma semiologia armada, que compreende um uso variado e complexo de
exames complementares, e uma semiologia desarmada, que dependeria do próprio
96
médico. Precisamente, este autor destaca o crescimento em importância dos exames
complementares ameaçando “tornar a semiologia uma arte perdida” (p. 61) 118
. A este
respeito, até a década de 1970, o valor da subjetividade nos momentos de decisão
médica, ao se interpretar os dados oferecidos pelas estratégias semiológicas de
apreensão do corpo dos pacientes, sempre foi destacada como um elemento fundamental
da técnica, mais uma vez tomada “como uma arte” nos livros semiotécnicos (Triana,
2004: 30). Nas duas últimas décadas, pode-se perceber uma tentativa de desqualificação
e “até mesmo de eliminação de qualquer forma de apreensão que possa ser considerada
como subjetiva por parte do médico” (p. 30). Desta forma, o médico deveria “caminhar”
sempre no sentido da prova, ou seja, da capacidade de julgar apenas sob a luz da
evidência concreta e protocolada, compondo assim o que é entendido como a melhor
decisão, e que faz uso de exames complementares - semiologia armada - dando à
medicina a aparência de ciência concretizada, sendo mais valorizados quanto mais
objetivos (Triana, 2004; Camargo Jr., 1997).
No entanto, como aponta Montgomery (2006), a necessidade humana de certezas
disfarça a natureza circunstancial da medicina clínica recuperada, exemplarmente, no
julgamento clínico: o raciocínio prático ou phronesis necessário em virtude da falta de
seguranças. Assim sendo, nem uma semiologia armada ou o método de uma medicina
baseada em evidências (MBE) ou a informação que oferece (Castiel & Póvoa, 2002;
Castiel & Álvarez-Dardet, 2010), poderia substituir o saber clínico, pois as respostas
118
Montgomery (1991) destaca que a proliferação tecnológica no diagnóstico e tratamento das doenças também tem afastado o médico da presença do paciente. Entretanto, o professor Castiel lembra (comunicação pessoal), que a ideia de relação médico-paciente tem se desgastado e transformado numa ‘ideia fora de lugar’ por causa de maiores elementos separados. Ou seja, não só as tecnologias médicas, mas também a interferência dos laboratórios farmacêuticos, que se tornam aliados do médico, as formas de pagamento do ato médico (via planos e seguros de saúde), e a transformação do paciente como cliente. Deste modo, a lógica do cuidado é prejudicada pela lógica da escolha do consumidor.
97
que oferecem são inúteis sem uma questão clínica claramente definida, sendo este o
trabalho do julgamento clínico:
“A compreensão da condição do paciente necessária para formular o enfoque clínico
requer experiência clínica, um conjunto, bem-classificado, de informações preliminares,
uma observação cuidadosa, ainda cética, um reconhecimento diferenciado de variações
e anomalias, e uma capacidade de colocar tudo isso junto” (Montgomery, 2006: 43:
nossa tradução).
A partir da observação da imagem de Fildes, o manuscrito da síndrome Uruguai ganha
uma nova perspectiva no sentido de oferecer mais elementos para compreender por que
os médicos geneticistas definem o manuscrito, principalmente, como uma observação
clínica. Os médicos começam pela descrição dos sinais. O manuscrito é prova da
“soberania” da clínica, exemplo vivo da semiologia médica em ação onde a condução
da prática clínica passa pelo ouvir e pelo observar. No entanto, como lembramos antes
(Foucault, 2004), o “olhar clínico” não se refere somente ao palpar e ao visualizar, mas
remete também ao escutar e ao ordenar reflexivamente; “esse „olhar‟ ordena no tempo e
no espaço os eventos constituintes do processo da saúde e da doença e o pesquisa
narrativamente” (Aquino et al., 2012: 107).
Por outro lado, resulta interessante recuperar aqui uma outra fonte desde onde os
geneticistas apresentam o manuscrito como uma “descrição clínica” ilustrando a
interligação entre os eixos explicativos e semiológicos sugeridos por Camargo Jr.
(1997).
O manuscrito foi enviado à revista Am J Med Genet no mês de abril do ano 2000. No
mês de julho, os médicos receberam uma carta de aceitação do manuscrito, anexando
recomendações de dois avaliadores. Ambos os avaliadores insistiram na realização de
exames médicos diversos, um deles reconheceu o manuscrito como: “um relatório
98
muito interessante, porém muito preliminar. Há mais trabalho a fazer sobre esta família,
clinicamente, bioquimicamente e molecularmente” (nossa tradução) 119
.
Ambos os avaliadores coincidiram em solicitar um estudo de ligação genética120
:
“deve ser acompanhado de uma análise de ligação”; “uma análise de ligação pode ser
útil na localização regional do gene”. Frente a esta solicitude, os médicos responderam
que o manuscrito correspondia a um relatório clínico e a análise de ligação genética não
era necessária nesta primeira instância.
Com respeito a este ponto, vamos lembrar o que já foi dito no capítulo 2, a
interpretação diagnóstica é o ato central do conhecimento clínico. Assim, os
mecanismos fisiopatológicos da doença não são objeto de pesquisa nem uma
preocupação principal, além das pistas diagnósticas que podem oferecer com relação à
história do paciente. Deste modo, o manuscrito apresentaria como objetivo básico
definir e justificar o diagnóstico de uma nova doença; porém, os seus aspectos
fisiopatológicos ficam relegados para mais adiante.
Contudo, os médicos explicaram aos avaliadores que uma análise sobre a etiologia
molecular da síndrome estava sendo realizada, junto com uma pesquisa dos “genes
candidatos”, e seria publicada em outro artigo. Neste sentido, os médicos responderam:
“Com respeito à inclusão de análises de estudos de ligamento moleculares,
acreditamos que este manuscrito corresponde a uma descrição clínica. A procura de
genes candidatos está sendo realizada e os seus resultados serão publicados em um
artigo posterior” (nossa tradução).
119
Acrescentando um toque de ironia, pois a seguir o avaliador escreveu: “a única coisa que parece abundante é o número de fotografias: 47!” (nossa tradução). 120
O termo ligação é utilizado para descrever a tendência dos alelos em loci próximos de um mesmo cromossomo a se transmitirem juntos durante a meiose, como se fossem uma unidade; a análise de ligação depende da determinação da freqüência de recombinação, como medida de proximidade de dois loci em um cromossomo (Nussbaum et al., 2008). Os estudos de ligação
estão baseados em estudos
genealógicos e se apresentam como um primeiro passo na identificação da localização provável do gene envolvido em uma doença.
99
Em suma, o manuscrito da síndrome Uruguai apresenta um julgamento clínico e o
artigo reflete uma elaboração diagnóstica onde o “caso” - o indivíduo com síndrome
Uruguai - é a categoria central do eixo semiológico que apresenta como disciplina-tipo a
clínica. Entretanto, os avaliadores insistiram na “completude” do estudo. Com o
diagnóstico de uma síndrome genética, se exige o esforço de explicar a etiologia
molecular, buscando as causas, categoria central do eixo explicativo que define a
doença como processo.
100
2. Durante uma das nossas visitas à área do laboratório do IGM, reparamos em uns
desenhos, junto aos microscópios óticos, onde trabalham os técnicos em citogenética121
,
que reproduzimos na fig. 2A.
No IGM, estes desenhos são realizados à mão livre e representam os cromossomos de
uma célula humana em metáfase122
. O técnico tem um olho na lente do microscópio e o
outro sobre uma folha de papel em branco. O olho no microscópio observa uma
superfície coberta por 46 cromossomos espalhados, por vezes, justapostos, semelhantes
aos observados na fig. 2C.
Em um primeiro tempo, o técnico do IGM registra, com um lápis sobre o papel,
pequenos traços que servem para apontar a posição na folha de cada um dos
121
Segundo Nussbaum et al. (2008), o estudo dos cromossomos, a sua estrutura e a sua herança é denominado citogenética. Cada espécie apresenta um número cromossômico característico (definido como cariótipo) com respeito ao número e morfologia de seus cromossomos. A citogenética humana moderna data de 1956, quando foi demonstrado pela primeira vez que “o número normal de cromossomos humanos é 46” (p. 5: nossa tradução). A análise cromossômica apresenta-se como um instrumento importante na medicina clínica, especialmente para a confirmação do diagnóstico clínico. Numerosos “transtornos médicos”, entre eles a síndrome de Down, são associados com mudanças microscopicamente visíveis no número e na estrutura dos cromossomos, por isso requerem de uma análise cromossômica para confirmar o diagnóstico clínico e/ou para o aconselhamento genético. Rapp (2000) descreve o laboratório de citogenética (onde a estrutura dos cromossomas é analisada) como um lugar de trabalho apresentando, também, ao laboratório como uma “fábrica de construção de fatos” (p. 192: nossa tradução). 122
Segundo já apontado, a análise cromossômica está indicada como um procedimento diagnóstico sistemático para a avaliação de uma série de situações clínicas. Um primeiro nível de análise corresponde à análise do cariótipo a nível citológico, sendo esta a análise que apresentamos a seguir. Este nível de análise se define como citogenética convencional. De um modo geral, nos laboratórios de citogenética esta técnica era desenvolvida através de fotomicografia e, atualmente, através de sistemas de microscopia digital e programas informatizados de análise de imagem. No entanto, o IGM não conta com estes sistemas de análise de informação. Portanto, no laboratório, há quatro técnicos dedicados ao desenho dos cromossomos tal e como explicamos aqui. Por outro lado, a análise do cariótipo a nível citológico é complementada pelo que se denomina cariótipo molecular, que envolve técnicas de hibridação in situ fluorescente (FISH). Esta técnica é utilizada para estudar a presença ou ausência de uma determinada sequência de ADN, ou para avaliar o número ou a organização de um cromossomo ou região cromossômica. O estudo do cariótipo molecular também inclui a técnica de hibridação genómica comparativa (CGH) através da qual a análise cromossômica se realiza no nível genômico mediante o uso de métodos baseados em matrizes (Griffiths et al., 2008). No IGM, as técnicas de FISH e CGH (definidas como técnicas de citogenética molecular) são realizadas em um laboratório europeu que trabalha em convênio com o IGM. Por fim, um terceiro nível de análise corresponderia às técnicas moleculares que envolvem seqüenciamento de ADN, estudo de mutações pontuais e a técnica de genética molecular MLPA (amplificação de múltiplas sondas dependentes de ligação) que mostra uma alta sensibilidade e especificidade na detecção de microdeleções, duplicações, etc., que não podem ser analisadas pelas técnicas citogenéticas convencionais ou o FISH. No IGM, estas técnicas também são realizadas no laboratório europeu que trabalha em um regime de colaboração.
101
cromossomos observados no microscópio. Em um segundo tempo, sobre cada um dos
pequenos traços, os cromossomos são desenhados segundo se mostra na fig. 2A. Os
mesmos são identificados segundo o tamanho, a posição do centrômero e a proporção
dos braços curtos e longos123
.
Fig. 2. (A) Desenho à mão livre de cromossomos metafásicos observados ao microscópio óptico;
(B) Esquema mostrando a classificação dos cromossomos em 7 grupos (A a G) de acordo com o
seu comprimento relativo e posição do centrômero; (C) metáfase com cromossomos corados
com Giemsa no microscópio óptico124
.
Os desenhos se realizam sobre os traços feitos com lápis, que se passam por cima com
um lápis de cor segundo um código de cores pré-estabelecido pelo IGM para agrupar os
cromossomos: preto e azul para os semelhantes a um xis grande (cromossomos do
grupo A e B), verde para os semelhantes a uma letra V invertida grande (grupo D),
vermelho para os semelhantes a uma letra V invertida pequena (grupo G), etc. Este
código se mostra na fig. 2B.
123
A maioria dos cromossomos pode-se distinguir pela sua longitude e posição do centrômero, isto é, uma constrição primária ou espécie de estreitamento (Nussbaum et al., 2008). O centrômero divide o cromossomo em dois braços: um braço curto denominado p (do francês petit) e um braço longo, em analogia, por q (idem). 124
Esta metáfase não se corresponde com o desenho da fig. 2A.
102
Por fim, através da observação de uma série de espaços claros e escuros (denominados
bandas) em cada cromossomo (visualizados com técnicas de bandeamento GTG) 125
, o
técnico, no IGM, propõe uma identificação para cada um (um número do 1 ao 22, pelos
22 autossomos, mais o par de cromossomos sexuais X e Y). Com este procedimento,
são analisadas umas 20 células em metáfase para produzir, ao menos, dois cariótipos
representativos126
.
Frente aos desenhos observados na fig. 2A, anexados nas histórias clínicas dos
pacientes, G., secretaria e telefonista no IGM, afirma:
“En los comienzos de mi trabajo en el instituto creía que eran dibujos de niños y
pensaba: „qué bárbaro, los hacen dibujar a los chiquitos para saber cómo están,
porque después debe tener un significado, los colores que ponen…vaya a saber qué
pueden lograr con estos colores y estos dibujos‟. Después me dijeron: „¡Gabriela, eso
son los cromosomas!‟. ¡Ah! bueno, bueno…y me di cuenta que eso eran dibujos de los
técnicos de laboratorio”.
O desenho dos cromossomos metafásicos, conforme adotado no IGM (e mesmo a
antiga cariotipagem por fotomicrografia ou pela atual microscopia digital ou programas
informatizados de análise de imagem) pode ser considerado um signo desde uma
perspectiva semântica127
. Antes lembramos a definição de signo oferecida por Eco
(1976), segundo a perspectiva de Peirce, onde o signo surge como algo que se coloca no
lugar de outra coisa. Definição que também pode ser entendida como “algo que aos
olhos de alguém é posto no lugar de alguma outra coisa, baixo algum aspecto ou por
125
Os cromossomos são submetidos à ação de uma enzima (tripsina), sendo posteriormente corados com o corante Giemsa (G) mostrando um padrão de bandas claras e escuras característico (bandas GTG) (Nussbaum et al., 2008), como se pode observar na fig. 2C. 126
O cariótipo se refere à distribuição ordenada dos cromossomos em metáfase segundo o seu tamanho e a sua forma e representa um primeiro nível de análise no estudo de anomalias cromossômicas numéricas e estruturais. Como já foi dito, na espécie humana as células somáticas possuem 46 cromossomos agrupados em 23 pares, sendo 22 pares autossômicos e um par sexual (Nussbaum et al., 2008). 127
Ou seja, mais uma vez, uma coisa é signo somente porque é interpretado como signo de algo por algum interprete e, por isso, não tem a ver com um tipo particular de objeto, mas com objetos comuns enquanto (e somente enquanto) participam no processo de semiose (Morris, 2004; Eco, 1976).
103
alguma capacidade sua” (p. 27: nossa tradução). Segundo o autor, “baixo algum
aspecto” quer dizer que o signo não representa a totalidade do objeto, mas que – através
de diferentes abstrações – o representa desde algum ponto de vista ou com o fim de
alguma utilização prática.
A interpretação de G. se destaca, por contraste, com a leitura dominante dos médicos
geneticistas, pois a sua leitura não comparte, porque não conhece, um código comum.
Ou seja, a caracterização do signo como tal depende da existência de um código (Eco,
1976). Os geneticistas, especialmente os técnicos em citogenética, compartilham um
código em comum composto por determinadas regras que atribuem certos significados.
Este código em comum se mostra na fig. 2B. Nesta imagem, se observa uma
classificação dos cromossomos segundo determinadas características (referidas ao
tamanho, forma e posição do centrômero), identificando cada cromossomo com uma
grafia, número, letra e cor específicas.
Como explicamos antes, os desenhos são realizados segundo um código de cores pré-
estabelecido para agrupar os cromossomos desenhados, pela sua vez, segundo um
código de grafias pré-estabelecido. Precisamente, a imagem da fig. 2B é a imagem
utilizada no laboratório do IGM para o treinamento de aquele que se inicia na técnica de
desenhar à mão livre os cromossomos no microscópio óptico. Os iniciados devem ser
treinados e aprender a conhecer e utilizar este código em comum. Já Gabriela não
conhecia esse código e, por isso, a sua interpretação destes desenhos como desenhos de
crianças. De qualquer modo, ela infere que há um código que deve ser interpretado
depois e por isso, segundo ela, os médicos faziam as crianças produzirem tais desenhos.
Assim, para os técnicos em citogenética a leitura de Gabriela é tão exótica e
incompreensível como o foram os próprios desenhos para ela mesma.
104
Estes diagramas ou desenhos, como também o próprio cariótipo, remetem para a ideia
de símbolo (Cardoso et al., 2002), isto é, signos que se distinguem com relação ao seu
significado. Neste caso, estes “signos vagos ou símbolos” (Eco, 1976) se diferenciam
por manter uma relação indefinida e relativa com uma série imprecisa de significados.
Trata-se também de signos que apresentem valor semântico (se referem a um
significado) 128
. Eles não são naturais, mas, segundo Peirce, trata-se de signos
“icônicos” (Peirce, 2010). Estes signos resultam de uma segmentação de conteúdo,
segundo a qual são considerados relevantes certos aspectos (e não outros) de objetos
assumidos como signos ostensíveis que se colocam no lugar de todos os membros de
toda a classe a que pertencem (Eco, 1976). Dados estes elementos de forma de conteúdo
(ou rasgo de reconhecimentos dos objetos), o signo icônico opta por transcrevê-los por
meio de certos artifícios gráficos (rasgos de forma da expressão). Quando os artifícios
gráficos não se encontram suficientemente convencionalizados, o signo icônico não
parece similar à coisa representada129
.
O modo simbólico não caracteriza um tipo particular de signo, mas assinala uma
modalidade de produção ou interpretação textual (Cardoso et al., 2002). Desta forma,
particularmente, com relação ao cariótipo que, no IGM, é composto a partir dos
desenhos dos cromossomos, segundo explicamos antes:
128
Aliás, a distinção entre índice, ícone e símbolo de Peirce é traduzida por Eco segundo a especificidade do significante, ou se complicando, como se indicou antes, com uma distinção entre signos naturais, emitidos sem intenção do emissor (tais como os sintomas médicos e os índices, estes últimos compreendendo as impressões e os indícios), e os signos artificiais emitidos intencionalmente por um emissor humano (Eco, 1976). Dentre os signos artificiais, Eco distingue os produtivos e os substitutivos. Nestes últimos se encontrariam os símbolos linguísticos, os índices vetores (como o dedo apontando), os signos visuais abstratos, os emblemas ou signos heráldicos e outros. Como lembra Eco, Peirce já reconhecia como “um problema interessante dizer a que classe pertence um dado signo, visto que precisam ser levadas em consideração todas as circunstâncias do caso” (Peirce, 2010: 59). Assim sendo, os signos podem assumir características diversas, segundo os casos e as circunstâncias da sua utilização. 129
Ainda, no caso dos cromossomos dos desenhos observa-se um detalhe interessante. Dado que os desenhos são feitos a mão livre, cada técnico apresenta uma grafia particular e o desenhista é rapidamente identificado pelos médicos; assim, são reconhecidos “os cromossomos de Susana”, “os cromossomos de Mariela” ou os “cromossomos de Luis”.
105
“Ele envia não só para o emparelhar das características herdadas do pai e mãe, como
para a imagem do acasalamento. Nele está pois presente a „teologia‟ do nascimento, a
necessidade do par homem/mulher para a reprodução da espécie. Na célula os
cromossomos aparecem, tal como os recursos tecnológicos (cultura celular, técnicas de
bandeamento, de hibridização in situ, microscopia eletrônica, fotomicrografia e etc.) os
„revelam‟. Eles compõem um texto onde estão escritos os sinais da hereditariedade e da
individualidade. São partes constitutivas da materialidade dos corpos, expressando-se
via suas superfícies” (Cardoso et al., 2002: 560).
Quer dizer, o texto do cariótipo, o texto dos cromossomos, “onde estão escritos os
sinais da hereditariedade” (p. 560) deve ser interpretado. Como explica Cardoso et al.
(2002), o pensamento da ciência é a autoridade que não somente preside a interpretação,
mas também produz o texto, “nele buscando a legitimidade de suas assunções” (p. 562)
130. Todavia, concebendo a ciência como um exemplo de cultura epistêmica (Knorr
Cetina, 1991) que produz e garante o conhecimento, também é sugestivo considerá-la
como um espaço de teatro ou performance. De fato, Dijck (1998) apresenta uma análise
da genética neste último sentido: “o teatro da genética é definido pelos seus contadores
de histórias” (p. 29: nossa tradução) 131
.
Neste ponto, vamos lembrar o pensamento de Haraway (1995) quando afirma que
nenhuma história pode ser considerada inocente, alheia a determinações por parte de
relações sociais históricas específicas e às práticas quotidianas de produzir e reproduzir
130
Talvez seja conveniente lembrar aqui o conceito de cultura epistêmica referido a aqueles amálgamas de arranjos e mecanismos ligados por afinidade, necessidade e coincidência histórica os que, em um determinado campo, garantem como “nós sabemos o que sabemos” (Knorr Cetina, 1991: 1). A ciência, como primeira instituição de conhecimento no mundo Ocidental, seria um exemplo de cultura epistêmica, ou seja, culturas que criam e asseguram o conhecimento. Através da noção de cultura epistêmica Knorr Cetina pretende conceitualizar as dimensões culturais da ciência se referindo aos padrões e as dinâmicas que podem se observar em práticas especializadas e que variam em diferentes configurações de expertise (ibidem, 10). 131
Esta autora, também lembrada por Franklin (2000), argumenta: “A difusão do conhecimento genético não é exclusivamente dependente do avanço da ciência e da tecnologia, mas igualmente dependente do desenvolvimento de imagens e imaginações. As ‘ferramentas imaginárias’ são ativos cruciais na comunicação do conhecimento genético, tal e como são usados para moldar a face pública dessa ciência” (Dijck, 1998, 2-3: nossa tradução). Haraway também insiste na importância da metáfora, do imaginário visual, além dos modelos conceituais, como parte do núcleo cognitivo de uma disciplina ou paradigma (García Selgas, 1995). De fato, a natureza política da ciência e a sua análise são reafirmadas pelo seu caráter fundamentalmente discursivo ou narrativo, que é explícito nos modelos teórico-conceituais, nas metáforas básicas, nos aspectos narrativos da observação e descrição e nos significados de imagens, corpos, etc. (Haraway, 1995; García Selgas, 1995).
106
a vida todos os dias. A biologia conta histórias sobre as origens, a gênese, a natureza132
.
As “células”, ou “genes”, e poderíamos acrescentar o “cariótipo” ou os “cromossomos”,
são nomes para processos que não têm limites de forma independente da nossa
interação. Os limites são resultado da interação e da nominação. Não é que o mundo
seja “inventado”, que não existem células, mas o termo descritivo célula é um nome
para um tipo particular de interação histórica, e não um nome para uma coisa em si
própria (Haraway, 2000: 25). De fato, o gene é o sujeito dos retratos e mapas da vida
mesma “na tecnologia narrativa própria do fim do segundo milênio” (Haraway, 1997:
133).
As histórias científicas não são inocentes e também não são alheias às regras
narrativas que predominam dentro de um gênero específico, como no discurso da
biologia, exemplificado antes com uma narrativa particular com respeito ao cariótipo
(Cardoso et al., 2002). Haraway, precisamente, se preocupa em desmitificar essas
regras:
“A natureza é algo construído, constituído historicamente, não se descobre nua em um
leito de fósseis ou em uma floresta tropical” (Haraway, 1995: 177: nossa tradução).
Para Haraway, vivemos intimamente “como” um mundo biológico, e “em” um mundo
biológico: viver dentro da biologia trata de viver dentro da naturezacultura (Haraway,
2000: 25). A biologia é um discurso e não o mundo mesmo. Assim, enquanto vivemos
material e semióticamente como um organismo - e isto representa uma identidade
histórica particular -, também fazemos parte da biologia envolvida em sistemas de
trabalho de acumulação e distribuição hierárquica, eficiência e produtividade.
132
Ainda, acrescenta Haraway (1995), as feministas modernas herdaram a nossa história através de uma voz patriarcal. A biologia é a ciência da vida, concebida e escrita com a palavra do pai, “as feministas herdaram o conhecimento através de uma linhagem paterna. A palavra era de Aristóteles, Galileu, Bacon, Newton, Linneu, Darwin; a carne era de mulher, a palavra, naturalmente, se fez carne. Fomos engendradas” (p. 114).
107
“Compreender o mundo envolve viver dentro de histórias (...) e estas histórias se
encontram literalizadas em objetos, ou ainda melhor, os objetos são histórias
congeladas. Nosso próprio corpo é uma metáfora em um sentido literal (...) o meu senso
de metáfora é extraído de exemplos biológicos literais e as minhas teorias não são
abstrações. No caso de ser alguma coisa, trata-se de redescrições. Se alguém quiser
caracterizar a minha forma de teorizar, seria a de redescrever, redescrever alguma coisa
para transformá-la em algo mais denso da sua primeira aparência” (Haraway, 2000:
108: grifos da atura: nossa tradução).
Desta forma, Haraway utiliza uma série de metáforas para descrever a complexidade
sobre o que é considerado natureza para explicar não somente formas biológicas, mas
também um conjunto de historicidades, interfaces, processos e práticas de
conhecimentos diferentes. Assim, as suas entidades materiais-semióticas são “reais” no
sentido corriqueiro e cotidiano do real, mas também são metáforas envolvidas num
“certo tipo de interpelação narrativa acerca dos nossos modos de viver no mundo”
(ibidem, 140) 133
.
Haraway insiste na ideia de semiose materializada explicando que para ela as palavras
são intensamente físicas: “as palavras e a linguagem se encontram muito mais
133
A metáfora do cyborg - de organismo cibernético, termo concebido por Clynes & Kline (1960), embora Haraway afirme ter conhecido este artigo tempo depois da escritura do Manifesto Cyborg (Haraway, 2004) - é uma das metáforas mais conhecidas. Esta metáfora é utilizada por Haraway para indicar que os nossos corpos e as nossas identidades (de gênero, sexualidade, raça) são produtos de complexas tecnologias biopolíticas: “um cyborg é um organismo cibernético, um híbrido de maquina e organismo, uma criatura de realidade social e também de ficção (...) estou argumentando em favor do cyborg como uma ficção que compreende a nossa realidade social e corporal e como um recurso imaginativo sugestivo de acoplamentos muito frutíferos” (Haraway, 1995: 253: nossa tradução). A autora enfatiza que o cyborg não é uma coisa ou um tema definido, mas uma metáfora que convida a pensar acerca dos diferentes aspectos dos sistemas de comunicação construídos pelo homem, acerca da mistura do orgânico e do técnico: “é um caminho para descobrir os múltiplos sentidos em que pensamos em nós mesmos como instrumentos processadores de informação ou máquinas leitoras, ou dispositivos semióticos de um modo que é influenciado pelas teorias de comunicação” (Haraway, 2000: 136: nossa tradução). Como aponta Arditi (1995), o cyborg é uma metáfora irônica, em palavras de Haraway, para pensar no homem/mulher no mundo moderno; porém, esta metáfora se converte, sobretudo, num instrumento de mobilização política para tomar consciência das nossas subjetividades com a “promessa de uma emancipação e de um enriquecimento genuínos” (p. 12). Por outro lado, o cyborg, como mito político e feminista é uma figura profundamente situada: “as suas seduções potenciais estão marcadas pelos traumas e desafios peculiares das mulheres que habitam ‘o umbigo do monstro’, chamado história tecno-científica-militar-corporativa-masculina-branca-imperialista estadunidense” (Orr, 1995: 50: nossa tradução; Haraway, 1991). O cyborg é considerado um construto ou uma visão conceitual muito poderosa, especialmente influente na antropologia (Marcus, 1995), e também um exemplo de conhecimentos situados, nos termos de Haraway.
108
estreitamente relacionadas com a carne do que com as ideias” (ibidem, 85) 134
. Por isso,
a sua necessidade de pensar através das metáforas, porque ela mesma vive “dentro deste
processo físico brusco e constante de semiose” (idem).
Neste sentido, Haraway da mesma forma que Eco (1976), concebe a semiótica como
uma prática contínua, além de uma teoria, porque o sistema semântico muda e a
semiótica pode descrevê-lo só parcialmente e em resposta a acontecimentos
comunicativos concretos e porque a análise semiótica modifica o sistema que descobre:
“porque a mesma prática social se expressa em forma de semioses, por isso, os signos
são uma força social, e não simples instrumentos que refletem as forças sociais” (p.
191).
Haraway apresenta o conceito de ator material-semiótico (Haraway, 1995) para
mostrar aspectos chaves do processo de produção de conhecimento na prática das
ciências ou, em outras palavras, apresentar o objeto de conhecimento como um eixo
ativo, ator, que gera significados do aparelho de produção corporal. O conceito ator
material-semiótico deve situar-se no que Haraway identifica como uma prática crítica
que possa reconhecer as nossas “tecnologias semióticas” para compreender como são
produzidos os significados e os corpos, “não para negar os significados e os corpos, mas
para viver em significados e corpos que possam ter uma oportunidade no futuro” (p.
322: nossa tradução).
O cariótipo e os próprios desenhos dos cromossomos, conforme realizados no IGM,
podem remeter também para a ideia de ator material-semiótico no sentido de produzir
certo tipo de significados. Assim, o cariótipo ou o desenho dos cromossomos, da mesma
134 Assim a carne não é mais do que o gene é. A semiose materializada da carne inclui “os tons da
intimidade, do corpo, do sangramento, do sofrimento, da suculência; a carne é sempre de alguma forma molhada” (Haraway, 2000: 86).
109
forma que o gene, podem ser concebidos como nós em um campo de relações, nos
termos de Haraway. Em todos os casos, trata-se de entidades materiais-semióticas, quer
dizer, concretizações que situam e substancializam a herança (Haraway, 2004).
No manuscrito da síndrome Uruguai, o estudo do cariótipo é identificado pelos
médicos como um estudo citogenético. Este estudo foi o primeiro estudo ou exame
complementar realizado no jovem Juan, a partir do qual se iniciou o estudo da família
da síndrome Uruguai. Este estudo é apresentado na seção de informes clínicos e
radiológicos do artigo e, dentro desta, na seção que corresponde à descrição clínica de
Juan, identificado como o paciente VI-2 (nomenclatura relacionada com o desenho da
genealogia da família que será discutida daqui a pouco). A esse respeito, tudo o que se
afirma no manuscrito é: “o paciente apresenta um cariótipo normal 46, XY” (nossa
tradução).
110
3. No capítulo 2, destacou-se a atenção do olhar médico para com os corpos,
identificados como um domínio valorizado na prática médica. A fig. 3 recupera algumas
das fotografias e radiografias135
(de um total de 44) mostradas no artigo que refletem
uma atenção específica.
Fig. 3. Algumas das fotografias e radiografias dos quatro integrantes da família apresentadas no
manuscrito.
Antes apresentamos os médicos como semiotas, pesquisadores, “caçadores”,
perseverantes de indícios, pois será a partir de certa congregação de indícios que eles
irão formular as suas hipóteses ou inferências diagnósticas.
O corpo se descobre como uma fonte principal de indícios, um lugar de indícios,
sobretudo, para estes médicos geneticistas que apresentam à dismorfologia clínica como
uma das suas especialidades.
135
Sem dúvida, as radiografias, que fazem parte da categoria de imagens médicas do interior do corpo ou das tecnologias de visualização, desempenham um papel importante na medicina contemporânea. Segundo Dijck (2005), as imagens médicas passaram a dominar o conhecimento e a experiência da saúde e da doença, ao mesmo tempo e pelos mesmos meios que promovem a sua própria primazia. Como já foi apontado, a interpretação de uma radiografia envolve um treinamento e uma habilidade especializada, também indiciária.
111
Vamos a recordar aqui que a dismorfologia se define como o estudo das
malformações congênitas que alteram a configuração ou a forma de uma ou mais partes
do corpo (Nussbaum et al., 2008) 136
. Desta forma, a dismorfologia se apresenta com
uma subespecialidade que compreende aspectos clínicos que podem sugerir o
diagnóstico de síndromes:
"A partir de características faciais peculiares associadas a outras malformações
congênitas; com base em uma descrição clínica detalhada, a dismorfologia pode apoiar
o diagnóstico, depois de considerar outras possibilidades diagnósticas. Assim, uma
síndrome dismórfica é definida como o padrão reconhecível de anormalidades físicas
que apresentam uma relação de patogenicidade entre si; uma aparência facial diferente e
peculiar, integrada a várias malformações menores que permitem sugerir ao clínico um
padrão fenotípico característico que dirija ao diagnóstico nosológico" (Aviña Fierro &
Tastekin, 2008: 72: nossa tradução).
Resulta interessante reconhecer, neste apertado resumo, alguns elementos
característicos da prática médica. Destacamos o valor das “características faciais”, das
“anormalidades físicas”, de uma “aparência facial diferente”, de um “padrão fenotípico
característico”, e de uma “descrição clínica detalhada” na travessia diagnóstica que
dirige o “diagnóstico nosológico”.
O periódico Am J Med Genet, onde foi apresentado o manuscrito, é definido pelos
geneticistas como uma “revista de dismorfologia” justificando, por esta razão, a eleição
deste periódico para apresentar o artigo. Segundo assinalam L., M. e S.:
“Es „la‟ revista de dismorfología, es la más importante desde el punto de vista de la
genética clínica”;
136
A dismorfologia não se restringe à superfície do corpo. Os especialistas em dismorfologia classificam as malformações congênitas em três categorias principais: malformação, deformação e disrupção. As malformações são definidas como defeitos na constituição de algum órgão ou conjunto de órgãos que determinam uma anomalia morfológica estrutural e surgem de um transtorno do desenvolvimento durante a vida fetal (Nussbaum et al., 2008). A diferença das malformações, as deformações são consequência de fatores extrínsecos que atuam fisicamente sobre o feto durante o desenvolvimento. Por fim, as disrupções, terceira categoria das malformações congênitas, se devem à destruição de um tecido normal que não pode ser substituído.
112
“Realmente era „el‟ lugar, es la principal referente”;
“Es la principal revista en genética médica”.
Estes depoimentos caracterizam o periódico como uma revista de genética médica
onde a clínica ocupa um lugar de importância e, consequentemente, também a
dismorfologia. Esta questão é particularmente pertinente no caso da genética clínica
onde a dismorfologia é considerada um ponto de partida.
Precisamente, a este respeito, nos perguntamos acerca das 44 fotografias que fazem
parte do manuscrito da síndrome Uruguai, algumas delas ilustradas na fig. 3. O que
mostram estas fotografias? As fotografias do manuscrito se mostram porque nelas é
possível reconhecer uma série de indícios: que indícios?
Lembremos aqui, mais uma vez, as observações de Ginzburg (1989) sobre Morelli, o
arte-historiador, quando cita as anotações de Wind:
“Os livros de Morelli têm um aspecto bastante insólito (...) estão salpicados de
ilustrações de dedos e orelhas, cuidadosos registros das minúcias características que
traem a presença de um determinado artista, como um criminoso é traído pelas suas
impressões digitais (...) qualquer museu e arte estudado por Morelli adquire
imediatamente o aspecto de um museu criminal” (p. 145).
Assim, segundo já dito, o método indiciário de Morelli é comparável ao método do
detetive Sherlock Holmes que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em
indícios imperceptíveis para a maioria (Ginzburg, 1989).
A síndrome Uruguai é caracterizada como uma síndrome dismórfica. Em termos
gerais, uma síndrome se define como um grupo de signos e sintomas que caracterizam
uma doença, onde esse determinado grupo de signos e sintomas tende a ocorrer de
forma simultânea e, de certa forma, reflete a presença de uma condição particular de
causa conhecida, mas cujo mecanismo fisiopatológico frequentemente não se conhece
(Aviña Fierro & Terence Wilson, 2009).
113
Uma síndrome dismórfica apresenta um padrão clínico característico que se reconhece
na exploração física e que corresponde a uma doença congênita particular, “na qual se
observam uma ou mais anormalidades maiores e um número variável de anomalias
menores” (p. 133: nossa tradução).
Com relação à primeira visita à família da síndrome Uruguai, M. afirma:
“Les vimos las manos y los pies a todos. Estábamos ahí para reconocer a los que
estaban enfermos o que tenían problemas”.
Deste modo, naquela visita, o exame físico foi um objetivo principal. As fotografias
do manuscrito refletem uma parte do processo diagnóstico referida ao exame físico que,
no artigo publicado, se circunscreve a quatro integrantes da família.
As fotografias mostram características diversas de diferentes aspectos dos corpos:
pele, cabeça, orelhas, rosto, pescoço, tórax, abdômen, etc. A modo de exemplo, em
diversas imagens, com respeito ao paciente identificado como caso-probante (Juan), se
informa:
“Crânio turricéfalo, occipucio achatado e rosto largo de aspecto „pugilístico‟; pescoço
largo e grande; arcadas superciliares salientes, sobrancelhas grandes e espessas, com
leve sinofre, e fissuras palpebrais oblíquas para baixo; nariz proeminente e amplo;
lábios grossos e evertidos, queixo alto com retrognatia de grau leve; orelhas
aparentemente baixas e posteriormente anguladas”.
Na fig. 3 que aqui se apresenta se observam mãos e pés dos pacientes descritos no
manuscrito. As primeiras três fotografias da figura (no ângulo superior esquerdo)
correspondem, novamente, ao jovem Juan, que os médicos definem como caso-
probante. No manuscrito, nessas três primeiras fotografias, se cita a seguinte
informação:
“Os últimos quatro dedos de ambas as mãos apresentam uma moderada
camptodactilia; as mãos são grandes e amplas com um comprimento total de 22.5 cm
(>97th
percentil) com implantação proximal do polegar; palmas retangulares de 13 cm
de comprimento e 11.2 cm de largura (>97th
percentil); dedos e unhas largas; pés largos
114
e amplos com deformidades pes cavus e um comprimento de 28 cm (90th
percentil);
presença de deformidades bilaterais hallux valgus e camptodactilia do segundo ao
quarto dedo do pé”.
Quer dizer, uma série de dismorfias são apresentadas.
Por outro lado, na fig. 3, também se apresentam um conjunto de radiografias. De igual
forma que na descrição anterior, as primeiras cinco fotografias do ângulo superior
direito correspondem ao jovem Juan. No manuscrito se explica que as radiografias:
“Mostraram um aumento generalizado dos ossos com epífises normais; presença de
escoliose com uma curva de 54 graus para a esquerda; asas do ilíaco altas; quadril
direito deslocado e o esquerdo severamente osteoartrítico; e deslocamentos proximais
dos dedos do pé 1 até o 4 nas articulações metatarso-falangeana”.
Mais uma vez, a modo de exemplo, as cinco radiografias recuperadas na fig. 3,
apresentadas no manuscrito como uma única figura de seis partes com a legenda
“radiografias do caso-probante” explica:
“Observe o maxilar proeminente e ramo mandibular longo vertical”, “escoliose
tóraco-lombar”, “pós- operação, a cabeça femoral direita aparece deslocada; as asas
ilíacas são altas”, “o primeiro metacarpal está sublocado bilateralmente. Observa-se
sublocação lateral da segunda falange proximal até a quinta ao nível da articulação
metacarpofalângica à direita e da segunda à esquerda”, “franca luxação da articulação
metatarsofalângica do dedo grande do pé e segunda falange proximal”.
A mesma dinâmica continua na apresentação do resto das fotografias para mais três
integrantes da família descritos na publicação.
Assim, no manuscrito, os geneticistas escrevem chamando a atenção para as diversas
imagens, citando textualmente: “observe o maxilar”, “observe a sublocação lateral da
segunda falange proximal”, “observe o rosto „pugilístico‟ e o pescoço comprido e
amplo”, “observe as mãos e os pés amplos”, “observe a cifoescoliose e a hipertrofia
muscular”, etc.
115
Os geneticistas insistem, como Morelli ou o próprio Sherlock Holmes, que se
observem os indícios, reconheça-nos nas imagens querem fotográficas ou radiológicas,
para descobrir, neste caso, uma síndrome dismórfica. Os indícios, num sentido estrito,
são esses traços reveladores da realidade oculta, se bem que muitas vezes estão
revestidos de um caráter que, só em aparência, os apresenta como traços marginais,
acidentais e intrascendentes (Rojas, 2007). Porém, só em aparência, pois a habilidade
para descobrir, situar, decifrar e depois interpretar esses indícios não é resultado de uma
qualidade inata nos homens, neste caso os médicos geneticistas, mas uma capacidade
adquirida através de um difícil, longo e complexo treinamento, isto é, no decorrer de
“um claro processo de educação dos sentidos, da razão, da percepção e da associação de
todas estas diversas destrezas humanas” (p. 35: nossa tradução).
Na leitura ou desvendamento destes indícios, a educação e o treinamento não
implicam só o conhecimento teórico ou raciocínio geral sobre os indícios e os seus
traços, mas também e de uma forma essencial e imprescindível, o estoque de vivências,
a experiência prática, clínica, reiterada da sua busca, localização, desmantelamento e
explicação (Rojas, 2007; Montgomery, 1991, 2006).
O corpo, afirma Haraway (1995), como objeto do discurso biológico é um ser muito
atraente: “o corpo é uma página em branco para inscrições sociais; incluídas as
inscrições do discurso biológico” (p. 340: nossa tradução).
Os corpos, como objeto de conhecimento, também se apresentam como nós
generativos materiais e semióticos:
“Os vários corpos biológicos surgem na interseção da pesquisa biológica e da
escritura, das práticas médicas ou de outro tipo, das produções culturais de todo tipo,
incluídas as metáforas e as narrativas disponíveis, e da tecnologia, tais como as
visualizações tecnológicas” (p. 346: nossa tradução).
116
Assim sendo, os corpos recuperados, detalhados e definidos no manuscrito da
síndrome Uruguai podem ser apresentados como mais um objeto do discurso biológico,
quer dizer, os corpos emergem de um processo discursivo, neste caso, com o propósito
de não somente reconhecer indícios, mas também significá-los em um processo de
elaboração diagnóstica que se enquadra em um método de trabalho indiciário que se
centra nas histórias ou narrativas médicas que os médicos clínicos fazem de seus
pacientes (Epstein, 1995), que surgem por determinadas razões, exigem práticas
interpretativas (Montgomery, 1991, 2006) e uma epistemologia narrativa (Epstein,
1995; Cardoso et al., 2002). De fato, essas histórias indiciárias são parte importante do
conhecimento médico na medida em que ele se volta para decifrar pistas ou sinais não
somente na superfície dos corpos, mas também interiorizados nas moléculas ou
expressos como sintomas experimentados pelo doente (Aquino et al., 2002).
117
4. No capítulo 2 destacamos a perspectiva do médico geneticista que afirma estudar
famílias, além do paciente individual. A respeito, lembrou-se a observação de Victor
McKusick (1967) que considerava a análise dos padrões genealógicos como o melhor
método para estudar genética humana.
A fig. 4 mostra a primeira figura do manuscrito que corresponde a um heredograma
ou árvore genealógica familiar. Neste caso, a genealogia apresenta 178 indivíduos
distribuídos por sete gerações.
Fig. 4. Primeira figura do manuscrito apresentada com a legenda “genealogia da família”.
O diagrama da fig. 4 utiliza quatro símbolos básicos: dois quadrados (brancos e
pretos) e dois círculos (branco e branco com um ponto preto no seu interior). Os
círculos representam as mulheres, os quadrados os homens; os quadrados pretos
representam os homens “afetados” ou doentes, diagnosticados com a síndrome Uruguai.
Os círculos com um ponto preto representam as mulheres “portadoras não afetadas ou
afetadas minimamente, ou transmissora confirmada”, segundo se indica no manuscrito.
118
No diagrama também podem se observar números romanos e arábicos. Os números
romanos indicam distintas gerações da família e, neste caso, estão representadas sete
gerações (I, II, III, IV, V, VI, VII). Por outra parte, os membros de cada geração são
assinalados com números arábicos de esquerda à direita137
.
A seção “materiais e métodos” do manuscrito começa com a identificação dos
indivíduos afetados na família, segundo a nomenclatura genealógica indicada antes,
junto com a descrição dos estudos médicos realizados em cada um deles:
“Os indivíduos afetados V-7, V-12, e VI-2 foram examinados se realizando um estudo
radiográfico esquelético em cada um deles. Nos indivíduos VI-2, V-7, e V-2 foram
realizados estudos cardiovasculares incluindo eletrocardiograma, ecocardiograma e
medidas de creatina quinase (CK); no caso-probante, VI-2 foi realizado um
electromiograma, uma biopsia muscular e um estudo citogenético”.
Os primeiros pacientes citados no manuscrito correspondem ao caso-probante (VI-2),
Juan, mãe do caso-probante (V-2); um tio materno do caso-probante (V-7), irmão da
mãe; e um primo irmão da mãe (V-12), tio em segundo grau do caso-probante. Todos
eles identificados através da nomenclatura genealógica assinalada.
Cardoso et al. (2002) destacam como uma das práticas do médico geneticista a
disposição dos dados familiares em um diagrama ou heredograma composto por
símbolos padronizados, onde se utiliza um texto com base em outro; “a história familiar
do paciente, no qual, mais uma vez, é a autoridade do especialista quem dita aquilo que
ele deve conter e como deve ser lido” (p. 560).
Os símbolos do heredograma representam objetos ou relações abstratas, mais uma
vez, operando na “moldura peirciana do signo” assinalando apenas uma modalidade de
produção ou interpretação textual (Eco, 1976). Deste modo, nos heredogramas, é
137
Os números arábicos no interior de algum dos círculos brancos indicam número de filhos. As linhas que cruzam em diagonal em alguns dos quadrados e dos círculos assinalam indivíduos falecidos.
119
possível reconhecer, novamente, uma epistemologia narrativa138
(Epstein, 1995;
Cardoso et al., 2002).
Com respeito ao estudo da família da síndrome Uruguai, M. afirma:
“Desde primera instancia sospechamos que estábamos frente a una enfermedad
genética, con esos datos genealógicos no hay que pensarlo mucho…”.
Assim, ao olhar-se o heredograma na fig. 4, uma possível narrativa se desenrola:
Um homem na sexta geração da família (VI-2) é diagnosticado com a síndrome
Uruguai. Este homem é identificado como o caso-probante (apontado com um pequeno
triangulo preto no diagrama). Suas outras duas irmãs (VI-1, VI-3) são normais. A sua
mãe (V-2), na quinta geração da família, é uma mulher portadora ou heterozigota139
. Ela
tem nove irmãos, sete homens e duas mulheres; um de seus irmãos (V-5), afetado pela
síndrome Uruguai morreu; um outro irmão (V-7), também diagnosticado com a
síndrome Uruguai vive. Na mesma geração, um primo irmão da mãe (V-12) também é
identificado como afetado ou doente. A avó materna do caso-probante (IV-2), uma das
tias avo maternas (IV-6) e a bisavó materna (III-5) são mulheres portadoras ou
heterozigotas, enquanto dois tios avós maternos (IV-4, IV-10) eram homens afetados, já
falecidos.
138
Neste sentido, Foucault (2004) coloca uma interessante observação que relaciona o sentido, para o médico clínico, da árvore genealógica e do quadro nosológico; “da mesma forma que a árvore genealógica, aquém da comparação que comporta e de todos os seus temas imaginários, supõe um espaço em que o parentesco é formalizável, o quadro nosológico implica uma figura das doenças diferente dos efeitos e das causas, da série cronológica dos acontecimentos e de seu trajeto visível no corpo humano” (p. 3). 139
Na linguagem da genética, um transtorno monogênico (como a síndrome Uruguai) está determinado principalmente pelos alelos localizados em um único locus. Quando uma pessoa apresenta um par de alelos idênticos em um locus codificado no ADN nuclear se define como homozigota; quando os alelos são diferentes se define como heterozigota ou portadora (Nussbaum et al., 2008). Na herança recessiva ligada ao X, como é o caso da síndrome Uruguai, as mulheres heterozigotas geralmente não manifestam a doença, porém algumas podem expressar a doença com “manifestações clínicas variáveis” (idem).
120
Como indicam Cardoso et al. (2002), lembrando os estudos de Montgomery (1991), e
como aponta Montgomery (1991), esta é uma narrativa médica construída a partir de
recortes das narrativas dos pacientes escolhendo as partes da história pessoal e familiar
do doente que interessa ao médico e, da mesma forma, a partir dos sinais e sintomas nos
corpos dos doentes.
Para o geneticista, a definição do padrão genealógico é chave para o diagnóstico
porque o padrão funciona, da mesma forma que os corpos, como um lugar privilegiado
de indícios. O padrão permite detalhar a aparição de determinadas anomalias
características na história de uma família. O padrão pode oferecer informação relevante,
desde o ponto de vista médico, com respeito à evolução da doença. O padrão pode,
também, oferecer informação importante sobre as variações e as manifestações clínicas
da doença e, fundamentalmente, o heredograma permite definir o padrão de herança.
Assim sendo, como mostramos no capítulo 2, no estudo da família da síndrome
Uruguai os médicos geneticistas dedicaram especiais esforços para construir a árvore
genealógica que se mostra na fig. 4. Como explicam L. e M.:
“Después fuimos a visitar a una señora, la más viejita de todas, que nos dio más
datos familiares…una tercera casa que estaba del otro lado de la frontera, que es ésta
[assinalando na figura da genealogia] que tenía como 90 y pico de años. Y ella nos dio
muchos datos de la familia”;
“Tú cuando haces la genealogía siempre estás buscando al más viejo de la familia,
que es él que más sabe, y esta chica sabía que esta señora vivía y allá fuimos”.
Desta forma, a narrativa desenrolada com respeito ao heredograma da fig. 4 é
construída a partir dos recortes das narrativas de diferentes integrantes da família,
expressamente procuradas pelos médicos com objetivos claramente definidos.
Entretanto, resulta interessante descobrir diferentes momentos na construção desta
121
árvore genealógica. A fig. 5 mostra três rascunhos diferentes que fizeram parte do
processo de elaboração do heredograma da família da síndrome Uruguai.
Fig. 5. Três rascunhos da genealogia da família da síndrome Uruguai anexados na história
clínica ou prontuário de Juan.
Nestes rascunhos (aliás, “rascunhos” com respeito à fig. 4), outras narrativas são
possíveis, embora sempre desde um ponto de vista médico, quer dizer, trata-se em todos
os casos de narrativas médicas. De fato, por isso mesmo, nas árvores “de rascunho”
aparecem informações diversas (nomes, idade, etc.), logo ausentes no heredograma do
manuscrito, porém necessárias ao encaminhamento do raciocínio clínico.
Da mesma forma que os cromossomos dos desenhos e os corpos das fotografias
publicadas no manuscrito, o desenho da árvore genealógica participa de um nó
generativo material semiótico140
. Assim, a árvore genealógica da fig. 4, primeira figura
do manuscrito, é um exemplo de um modo específico de olhar e significar, da mesma
140 Nos termos de Haraway (1995), o conceito de nó material semiótico faz parte do seu esforço em
desmitificar o surgimento de significados científicos no discurso público: “os significados são criados por pessoas localizadas em sítios históricos particulares. Isso faz parte da natureza dos primatas” (p. 181: nossa tradução).
122
forma que os cromossomos desenhados na fig. 2, e os pés, as mãos e as radiografias da
fig. 3.
O caso apresentado no manuscrito da síndrome Uruguai pode ser explicado como uma
série de narrativas que surgem a partir de interpretações. Porém, também, como em uma
história de detetives, “a trama não somente revela para o público o significado dos
acontecimentos confusos narrados, mas também essa mesma trama envolve a narrativa
da descoberta desses significados” (Montgomery, 1991: 66: nossa tradução). Quer dizer,
em ambos os casos, a narração relaciona e registra as informações disponíveis, mas
também reproduz e ordena o processo através do qual a dita interpretação é realizada.
Os médicos, como narradores (do mesmo modo que os detetives-narradores), mostram
não somente “quem fez isso”, mas também a forma como “o crime” foi resolvido, ou
seja, um método indiciário (Ginzburg, 1989).
Como explica Montgomery (2006), e surge claramente nas histórias antes
apresentadas - a história dos desenhos dos cromossomos, a história das fotografias no
manuscrito e a história da árvore genealógica da família da síndrome Uruguai - os
médicos precisam de “pistas”, mas também conhecimentos teóricos gerais para
relacionar pistas particulares a determinadas conclusões acrescidos de uma mediação ou
interpretação, entre princípios gerais e os sinais e sintomas do caso individual, também
articulada graças ao acervo de “casos índices” adquiridos pelos médicos através da sua
experiência clínica.
123
4. Genética, biomedicina e o manuscrito da síndrome Uruguai
1. Como afirma Haraway (1997), as narrativas, teorias e tecnologias biológicas
parecem relevantes para praticamente todos os aspectos da experiência humana no final
do século XX. Todos os dias nas noticias cotidianas surge alguma nova e inquietante
„condição‟ biotecnológica e somos testemunhas de um processo de redefinição cultural
no qual, como diz Franklin (2000), “entendimentos referentes do ser humano, do corpo,
da reprodução e o futuro estão sendo transformados” (p. 188) 141
. As autoras asseguram
que, na era moderna, a estrutura discursiva é biológica. Para Franklin (2000), a natureza
no sentido de fatos naturais, foi biologizada e, por sua vez, a biologia tem sido cada vez
mais “genetizada”, sendo que o discurso da genética surge como uma linguagem
importante para descrever a condição humana.
Por outro lado, Rose (2010) analisa essas novas perspectivas dentro do campo da
biomedicina142
, assinalando que a mesma gera “esperança”. Assim, muitos têm
esperança de que avanços na biomedicina levarão a um alívio do sofrimento, ao
141
De fato, Haraway (1995) apresenta como um propósito principal de seu trabalho o estudo das formas em que a moderna biologia constrói teorias sobre o corpo e a comunidade como máquinas (para a produção), como mercados capitalistas e patriarcais (para o intercâmbio e a reprodução). A ciência se ocupa do conhecimento e do poder, afirma esta autora. Nestes tempos, a ciência natural define o lugar do ser humano na natureza e na história e fornece os instrumentos de dominação do corpo e da sociedade, “ao construir a categoria natureza, as ciências naturais impõem limites à história e à formação pessoal, pelo tanto, a ciência forma parte de uma luta pela natureza de nossas vidas” (p. 72: nossa tradução). 142
Em particular, no âmbito antropológico, se utiliza o término biomedicina para designar a medicina profissional Ocidental fundamentada nas ciências biológicas (Gaines & Hahn, 1985). Uma perspectiva antropológica reivindica um enfoque da biomedicina como sistema cultural e, assim, como um campo específico de indagação antropológica (Good, 2003; Uchôa e Vidal, 1994; Kleinman 1978, 2006). A descrição da biomedicina como sistema cultural oferece a possibilidade de reconhecer determinados pressupostos e valores culturais, associados com regras de conduta e explicados por contextos históricos e sociais específicos (Chazan, 2007; Nunes, 2007; Minayo, 2006; Sacks, 2002, 2005; Víctora et al., 2000; Lock, 1993; Hahn, 1995). O próprio Canguilhem (1971), nas suas reflexões sobre o normal e o patológico, lembra o pensamento de Sigerist (1974) que afirmava que a medicina é uma das disciplinas mais estreitamente vinculadas com o conjunto da cultura, “os significados comuns” (Williams, 2001: 40), pois todas as transformações das concepções médicas estão condicionadas pelas transformações das ideias da época.
124
desenvolvimento de drogas mais efetivas e seguras, evitarão muitas doenças, permitirão
que inférteis tenham filhos e ainda mais (Rose, 2010). As técnicas biomédicas são
“tecnologias de esperança” (termo criado por Sarah Franklin), embora apenas uma
pequena porção dos recursos da nova era biomédica seja direcionada para os principais
problemas da maioria da população do mundo (Rose, 2010; Franklin, 1995).
No entanto, Rose (2010) reconhece a existência de um olhar pessimista sobre os
avanços na biomedicina no primeiro mundo que, por exemplo, individualiza através da
“medicalização” tirando a atenção das causas e soluções sociais para a falta de saúde. A
“genetização”, uma visão dos implacáveis determinantes genéticos, não apenas de
doenças, também faria parte desta perspectiva pessimista. Porém, Rose insiste em
procurar uma perspectiva diferente. Assim, segundo o autor, com respeito à
individualização, a genética contemporânea não individualiza, mas envolve novas
maneiras de se traçar e de se fazer conexões e, neste sentido, talvez possamos ver novas
coletividades se formando143
.
143
Rose (2010) faz referência ao conceito de “biossocialidade” desenvolvido por Paul Rabinow (2008) que estudou as campanhas de pesquisas genômicas sobre distrofias; “haverá, por exemplo, grupos de neurofibromatose que se reunirão para compartilhar suas experiências, farão lobby em favor da sua doença, educarão os seus filhos, refarão o seu ambiente doméstico e assim por diante – e é isso que eu quero dizer com ‘biossocialidade’” (Rabinow 2008: 244: nossa tradução). Segundo Hacking (2006), Rabinow estava certo ao prever, há quinze anos, a importância do papel da genética na vida e na composição das próprias identidades: “ele estava olhando para o futuro, quando, por exemplo, os marcadores de risco para certas doenças ou causas de morte podem levar as pessoas a se identificarem elas mesmas como desse tipo, aquelas em risco de ter Alzheimer ou uma criança autista, etc.” (p. 84: grifos do autor, nossa tradução). Por outra parte, como lembram Castiel (1999) e Ortega (2004), no conceito de biossocialidade o discurso do risco é um dos elementos estruturantes básicos representando um parâmetro fundamental da vida na modernidade e estruturando o modo pelo qual experts e leigos organizam seus mundos sociais. Assim sendo, a genetização e a individualização da patologia, comportamento e identidade na virada do milênio é exemplar do tipo de avaliação de risco, que pertence “à natureza ao mesmo tempo globalizada e personalizada” (Franklin, 2000: 189: grifos da autora: nossa tradução). Os autores citados estão envolvidos no esforço que Haraway (2004) define como a necessidade de compreender como se desenvolvem e agrupam as doenças genéticas dentro de um contexto geral. Quer dizer, os genes não fazem nada por eles mesmos, não determinam coisas por eles próprios (Haraway, 1997, 2004). Porem, o que defende Haraway (2004) é “uma compreensão multidimensional sobre o que significa viver em um mundo onde o discurso genético é central” (p. 154: nossa tradução).
125
Para Rose, a biomedicina contemporânea não reativa o fatalismo segundo o qual a
capacidade ou potencial de alguém é dado pelos seus genes:
“Biologia não é mais destino, e sim oportunidade. Biologia molecular e genomas são
disciplinas intervencionistas. Entender a natureza da vida em nível molecular é abri-la
para a intervenção” (Rose, 2010: 631: nossa tradução) 144
.
Nessa linha de pensamento, a vida pode ser construída ao inverso, desmontada no
laboratório, tendo seus processos quebrados em seus elementos e depois remontados.
Por esta razão, Rose sugere que estamos envolvidos em “políticas da vida” (Rose,
2007). Uma política porque todos esses avanços são “altamente contestados”, e “da
vida” porque não somente as doenças estão envolvidas ou a maximização da saúde, mas
o gerenciamento da vitalidade humana: “considerar um aspecto da vida humana como
biológico, hoje, é sugerir que ele pode ser transformado através da tecnologia” (p. 631:
nossa tradução).
Assim sendo, e reconhecendo que não há evidencias que indiquem uma mudança
revolucionária na capacidade terapêutica dos profissionais médicos, no espaço
contemporâneo da biopolítica: “something is happening… an emergent form of life”
(Rose, 2001, 2007, 2010) 145
. Deste modo, Rose (2007) reconhece uma forma de vida
emergente que envolve, ao menos, cinco assuntos onde é possível perceber mudanças
importantes.
144
De modo similar, para Hacking (2006), os imperativos biológicos, e logo os genéticos, são fatos da vida moderna. No entanto, longe de promover o determinismo ou limitar oportunidades, as ciências da vida oferecem mais escolhas: “por um lado, temos, em certo sentido, mais biologias para escolher do que prevíamos. Por outro lado, novas sociedades são criadas junto com novas linhas de reconhecimento biológico ou genético, forjando novas alianças e lealdades. Forjando novas identidades” (p. 82). 145
Para Rabinow e Rose (2006), o termo biopolítica compreende todas as estratégias específicas e debates sobre problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, acerca das formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção desejáveis, legítimas e eficazes. Não é um objetivo deste trabalho desenvolver o conceito de biopolítica; no entanto, reconhecemos aqui as imprecisões em torno a dita noção, especialmente nos termos colocados por Rabinow & Rose (2006). Para malhores detalhes ver Castiel (2011), Raman & Tutton (2010), e Ortega (2004).
126
O primeiro é o que denomina molecularização: o “estilo de pensamento” (Fleck,
1979) da biomedicina contemporânea concebe a vida no nível molecular, como um
conjunto de mecanismos inteligíveis vitais entre entidades moleculares que podem ser
identificados, isolados, manipulados, mobilizados, recombinados em novas práticas de
intervenção que não são mais limitadas pela aparente normatividade de uma ordem
natural vital146
.
O segundo assunto refere-se à otimização: muitas das tecnologias da vida
contemporâneas procuram agir no presente a fim de garantir o melhor futuro possível
para aqueles que são seus sujeitos. Certamente, estas tecnologias incorporam visões em
debate do que, desde o ponto de vista individual ou coletivo, pode ser considerado um
estado ótimo ou ideal para a vida humana.
O terceiro assunto, subjetivação, relativo às novas ideias acerca do ser humano, das
suas responsabilidades e esperanças, e também às novas concepções acerca de uma
“cidadania biológica” que compreende os deveres, direitos e expectativas do seres
humanos relacionados com as suas doenças, e a sua vida mesma, reorganizando as
146
Neste ponto é preciso reconhecer o surgimento de críticas diversas às “políticas da vida mesma” nos termos colocados por Rose (2007). Com relação à tese molecular, Raman & Tutton (2010) apontam algumas limitações referidas à marginalização das estruturas e praticas do “corpo coletivo que permanecem das ‘velhas’ formas de biopoder analisadas por Foucault” (p. 724: grifos dos autores: nossa tradução). Ou seja, como aponta Castiel (comunicação pessoal), as críticas a esta perspectiva se dirigem ao fato da molecularização ser assumida como um sinal do fim da biopolítica centrada nas populações e na disciplina dos sujeitos descrita por Foucault. Este enfoque é limitado diante da novidade e dos pressupostos de um poder transformativo das ciências genéticas. A biopolítica consiste em um agrupamento mais complexo de relações entre o molecular e as populações. Quer dizer, é necessário prestar atenção às estruturas e práticas ainda pertinentes na configuração contemporânea de biopoder: “com esta perspectiva, rejeitamos a ideia de uma forma molecularizada de biopoder; em seu lugar, sugerimos que, efetivamente, na linguagem de Foucault, o biopoder é caracterizado pelo molecular e pelas populações como ‘dois pólos de desenvolvimento ligados entre si por um conjunto intermediário de relações’” (Raman & Tutton, 2010: 729: nossa tradução), que deve ser investigado e compreendido. Desta forma, o biopoder não somente abarca a disciplina da biologia, como assinalam Rabinow e Rose, mas também às questões referidas a como a vida de diferentes seres humanos se insere no domínio político através de diversos e concorrentes discursos. Para Raman & Tutton (2010), a vantagem desta abordagem é o registro de não só uma “política de vida” singular, um “olhar bastante molecular” nos termos de Castiel, mas múltiples políticas com desigualdades, oportunidades, complexidades e dilemas individuais e coletivos que exigem uma pesquisa de maiores matizes.
127
relações entre os indivíduos e as suas autoridades biomédicas, e remodelando as
maneiras pelas quais os seres humanos se relacionam com eles mesmos como
“indivíduos somáticos”.
O quarto assunto, competência somática: os desenvolvimentos na biomedicina
contemporânea estão dando origem a novas formas de governar a conduta humana, e a
um aumento de subprofissões múltiples que reclamam competência no assunto e
exercem seus diversos poderes no controle de aspectos particulares da nossa existência
somática147
.
Por fim, o último assunto refere-se à economia da vitalidade relacionada com um
novo espaço econômico, que o autor define como bioeconomia, e uma nova forma de
capital, o biocapital.
Este breve introdução procura recuperar uma perspectiva mais ampla com respeito à
biomedicina para conseguir, de alguma forma, uma leitura também mais ampla do
manuscrito no sentido de incorporar na análise novos elementos. Assim sendo, frente às
observações desenvolvidas por Rose (2007), coloca-se a questão: será possível
descobrir, com base no manuscrito, informações relacionadas com os assuntos
envolvidos no que Rose identifica como uma forma de vida emergente?
147
Como exemplo, Rose (2007) cita os médicos geneticistas especializados em determinadas doenças trabalhando em conjunto com grupos e pacientes e famílias, ou especialistas em medicina reprodutiva e o seu público, ou mesmo os “genetic counselors” ou até os especialistas em bioética que reclamam a capacidade de avaliar e pronunciar-se sobre essas atividades.
128
2. Para o caso do manuscrito da síndrome Uruguai, entendemos que é possível
encontrar alguns elementos interessantes neste sentido, especialmente, com respeito ao
assunto molecularização. Neste sentido, propomos a observação das capas do periódico
AJMG em um intervalo de vinte anos (fig. 6).
Fig. 6. (A) Capa do periódico correspondente a um volume do ano 1988; (B) Frente do
periódico correspondente ao mês, volume e ano (2000) do exemplar onde foi publicado o
manuscrito; (C) Capa correspondente a um volume do ano 2009.
A capa do ano 1988 (fig. 6A) mostra linhas e letras com informação referida,
fundamentalmente, ao nome do periódico, volume, mês e ano da edição. A capa do ano
2000 (fig. 6B), que corresponde à edição onde o manuscrito foi publicado, mostra um
novo visual com dois detalhes a destacar: traços e símbolos referidos a uma árvore
genealógica e o anúncio da publicação online do periódico. Na capa do ano 2009 (fig.
6C), de visual mais uma vez renovado, se destacam as imagens correspondentes às
técnicas de biologia molecular FISH (hibridação in situ fluorescente) e array-CGH
(hibridação genómica comparativa).
A observação das capas do periódico, no transcorrer de vinte anos, oferece a
possibilidade de ampliar o cenário do pensamento biomédico e revelar um câmbio de
perspectiva. Assim, tal e como se observa nas capas, é possível perceber uma mudança
129
no conhecimento da genética clínica que do predomínio da ideia do hereditário passa à
ideia da molecularização.
A capa do ano 2000 (ano de publicação do manuscrito), mostra em segundo plano, o
desenho de um heredograma. Anteriormente, já nos referimos à importância dada à
observação dos padrões genealógicos no estudo da genética humana. De forma
destacada, para o médico geneticista, a elaboração da árvore familiar, onde se detalha a
aparição de anomalias características na história de uma família, é um dos passos mais
importantes na análise de uma doença, especialmente no processo diagnóstico onde o
heredograma funciona como um lugar privilegiado de indícios como parte do raciocínio
clínico. De fato, antes também mostramos os esforços dos geneticistas do IGM na
elaboração da árvore genealógica da família da síndrome Uruguai, apresentada como
primeira figura do manuscrito em um periódico que, na época, na sua capa, uma árvore
genealógica tinha um lugar de destaque.
Nove anos depois, a cobertura do periódico mostra imagens correspondentes às
técnicas de biologia molecular FISH e array-CGH. Estas novas técnicas de visualização,
entre outras, têm sido cruciais para conceber a vida no nível molecular. Em parte, é
graças às novas tecnologias que a vida pode ser compreendida no nível molecular como
um conjunto de mecanismos vitais inteligíveis entre formas moleculares (Rose 2001,
2007).
Para Rabinow (2008), um dos lugares mais lógicos para estudar estas mudanças é a
iniciativa Genoma Humano, promovida pelo National Institutes of Health, que
apresenta como objetivo produzir um mapa do nosso ADN. Este é um projeto
tecnocientífico em, ao menos, dois sentidos: por um lado, estão envolvidos profundos e
diversos avanços tecnológicos; por outro, o objeto a ser conhecido, o genoma humano,
130
será conhecido de tal forma que ele pode ser alterado. Para o autor, esta é uma dimensão
completamente moderna:
“Pode-se até dizer que inicia a definição da racionalidade moderna. Representação e
intervenção, conhecimento e poder, compreensão e reforma, são construídas como,
desde o começo e de forma simultânea, objetivos e meios” (p. 236: nossa tradução).
Haraway (1997) recupera parte desta perspectiva quando afirma que, “a vida mesma é
uma estratégia de acumulação de capital nos domínios simultaneamente maravilhosos e
ordinários da Nova Ordem Mundial, Inc.” (p. 65: nossa tradução). Quer dizer, as
mudanças fundamentais nas ciências biológicas não aconteceram em um vazio
histórico, mas como parte de mudanças na natureza e na tecnologia do poder em uma
dinâmica de reprodução capitalista (Haraway, 1995) 148
.
Franklin (2000) também destaca às definições emergentes de risco genético e as
correspondentes técnicas de detecção e de intervenção como indicativas da
transformação das relações entre saúde e patologia, doença e cura, tecnociência e corpo,
humanos e animais, e a regulação da saúde pública, “por sua vez, estas compreensões
alteradas contextualizam as formas em que a própria vida pode ser possuída,
capitalizada e patenteada” (p. 189: nossa tradução) 149
.
148
Para o professor Castiel (comunicação pessoal), é precisamente esta perspectiva a que Rose pareceria não levar em conta. 149
Franklin (2000) ressalta o trabalho de Canguilhem (1976) como a inauguração da análise cultural da vida como força produtiva. Rabinow (1996) aponta como uma das contribuições de Canguilhem a sua ênfase em uma nova compreensão da vida que já não residiria na estruturação da matéria e na regulação de funções, “mas em uma mudança de escala e localização – da mecânica à informação e teoria da comunicação” (p. 87: nossa tradução). Haraway retoma esta perspectiva quando apresenta a sua proposta como a procura de uma posição epistemológica e política (Haraway, 1995). Precisamente, neste sentido, Franklin (2000) lembra a visão de Canguilhem da história da ciência como um projeto epistemológico que sempre existe em relação com um ambiente histórico e cultural mais amplo. Por outro lado, Franklin (2000) também relembra a importância dos estudos de Foucault (2005) na análise do surgimento de um conceito moderno da vida que faz parte de uma tese mais ampla sobre o surgimento da modernidade e do que o autor chama seu poder/conhecimento. Neste sentido, Rabinow (2008) recupera o conceito de “bio-técnico-poder” onde Foucault (1998) identifica o poder distintivo moderno: “esse bio-poder foi, sem dúvida, um elemento indispensável no desenvolvimento do capitalismo; este não se conseguiu afirmar, mas ao custo da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e através de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (p. 84: nossa tradução).
131
No espaço contemporâneo da biopolítica, a molecularização se apresentaria como uma
mudança significativa. Para Rose (2010), é no nível molecular que a vida se conhece, se
imagina, manipula e recombina em novas práticas de intervenção. O “olhar clínico”,
estudado por Foucault e onde o “corpo mesmo” era uma dimensão chave, tem sido
suplementado por um olhar molecular que implica uma profunda molecularização da
intervenção, julgamento e pensamento biomédico (Rose, 2007) 150
.
Esta perspectiva de análise também encontra relação como a distinção, já citada, entre
uma semiologia “armada” e “desarmada”. Assim, o grande desenvolvimento,
particularmente das técnicas de biologia molecular, acompanha o uso cada vez mais
extensivo dos exames complementares ou secundários. Como já indicamos, Camargo Jr
(1997) coloca esta distinção para alertar sobre uma possível perda da prática da arte
semiológica.
No mesmo sentido, Rose também alerta não somente sobre mudanças cumulativas, em
múltiplas dimensões, referidas a um novo território médico151
, mas também sobre a
própria “medicina” que se teria transformado em tecnomedicina, altamente dependente
de equipamento diagnóstico e terapêutico sofisticado, se fraturando em uma complexa
divisão de trabalho entre especialistas (Rose, 2010).
150
Aqui, insistimos no término “suplementado”. Rose dá grande importância a um “olhar molecular”, sendo que uma grande parte das críticas a seu trabalho se concentra neste ponto, segundo já destacado pelo professor Castiel que, aliás, chama a atenção para o fato de que Rose pareceria fundamentar seu trabalho nos estudos de Foucault; no entanto, acabaria indo contra as ideias foucaultianas. 151
Neste sentido, a jurisdição biomédica se estende além dos acidentes, doenças, enfermidades para as doenças crônicas e a morte, a administração da reprodução, o aconselhamento e cuidado dos “riscos”, e para o cuidado e otimização de um corpo saudável (Castiel & Álvarez-Dardet, 2010; Rose, 2007).
132
3. O periódico Am J Med Genet foi escolhido e caracterizado pelos autores do
manuscrito como uma revista de genética médica onde a clínica ocupa um lugar de
importância. Neste sentido, segundo já indicado, os próprios médicos destacam a
relevância do saber clínico salientando a perspectiva clínica desenvolvida no IGM como
uma prática rotineira que os distingue.
O manuscrito da síndrome Uruguai foi publicado há catorze anos. Já na época, os
avaliadores do artigo reclamaram estudos moleculares com o objetivo de conseguir uma
“localização regional do gene” para assim conseguir uma melhor completude no estudo
da família. A observação das capas do periódico permite perceber que ele próprio já
estava no caminho de vincular uma perspectiva genética biomolecular e uma
perspectiva clínica; agora nem mais é um heredograma na cobertura, é ADN.
Os médicos geneticistas insistem que o manuscrito corresponde a um relatório clínico.
Assim sendo, o artigo manifesta uma determinada perspectiva com relação à genética e
à prática do médico geneticista. Com respeito a este ponto L. e M. explicam:
“Precisamente, yo tomé conciencia de lo complejo de la genética porque estoy en la
parte clínica. Nos empezamos a dar cuenta que cuando empezaron las definiciones
moleculares teníamos un hecho clínico, llámale esquizofrenia. Es una definición
totalmente clínica, y que tenía diversos caminos, que eso se llama patogenia y etiología,
o sea, diversas etiologías que son las causas, pueden ir por diversos caminos,
patogenias, y terminar en un mismo hecho clínico (…) y el hecho clínico justamente
consiste en eso, en los elementos que uno encuentra desde la clínica de cada paciente
(…) el hecho clínico a veces es más fuerte que la citogenética”;
“Los que tenemos que obligadamente ir de la clínica para hacer asesoramiento
genético, te das cuenta lo complejo que es. Cuando en fibrosis quística empezaron a
aparecer cientos de genes, entonces te das cuenta que la cosa… cuando decimos
fibrosis quística estamos definiendo una cosa allá abajo que es todo una definición
clínica y muy válida pero que evidentemente tiene diferentes etiologías…en genética, la
clínica es vital...”.
133
Estes depoimentos destacam o conceito de caso individual como ponto de partida da
clínica, de fundamental importância para o médico pelas pistas que pode fornecer para o
diagnóstico. Por outro lado, os geneticistas também ressaltam “os diversos caminhos”
que a doença pode seguir em cada paciente. A este respeito, Montgomery (2006) lembra
que a cadeia de causalidade de uma doença em um paciente em particular, ou o seu
resultado, é muito mais semelhante “à repetição de um jogo de solitário” (p. 94) do que
o processo linear simples e controlado que os médicos podem associar com um conceito
positivista da ciência. Mais uma vez, esta autora insiste que, no encontro clínico, os
conhecimentos epidemiológicos e biomédicos se reúnem não com uma resposta, mas
como um dado conjunto de informações que devem ser interpretados e aplicados a um
paciente em particular. Deste modo:
“Cada caso sempre deve ser visto comparativamente, historicamente, narrativamente
(...) e enquanto os médicos clínicos sabem muito sobre as doenças que podem afetar os
seus pacientes, uma das coisas que melhor sabem é que cada um deles é diferente”
(ibidem, 99: nossa tradução).
Neste sentido, Montgomery (2006) realça a surpresa potencial da prática clínica, a
diária apresentação do inesperado e ainda desconhecido advertindo, mais uma vez,
sobre a complexidade e contingência da tarefa clínica:
“Se bem que as descobertas científicas continuaram oferecendo informações maiores
(e mais confiáveis), o conhecimento clínico permanecerá inacabado e incerto no
trabalho diário dos médicos clínicos. Não importa quão sofisticada possa ser a
informação biomédica, eles ainda terão que descobrir o que está acontecendo em cada
paciente, um por um” (ibidem, 205: nossa tradução).
Talvez por este motivo, por mais de uma década, um número importante de
geneticistas clínicos argumentaram contra o que percebiam como um exagero, isto é,
que a genética molecular provocaria uma revolução na compreensão e tratamento das
doenças (Lock, 2005). Pelo contrário, à exceção dos transtornos ocasionados por um
134
único gene herdado segundo as regras mendelianas, o sequenciamento do genoma
humano teria pouco impacto na compreensão, tratamento e prevenção de uma grande
maioria das doenças. O depoimento de L. é ilustrativo neste último sentido:
“Yo creo que lo podemos simplificar diciendo que los hechos moleculares deben de
interpretarse en el contexto de las características clínicas y evolutivas del paciente,
porque a nivel molecular hay variantes normales que si estamos mirando el ADN
solamente podemos tener dudas de sí se trata de una variante normal o un rasgo
patológico, o de si esa variante poco frecuente, llamada polimorfismo, cuando está
presente en un conjunto de otras características que individualmente podrían ser
consideradas normales, podrían tener un funcionamiento que se tradujera en patología.
Eso es lo que hace la complejidad de la interpretación de los genomas, y por eso
existen los bancos de datos de los estudios moleculares, entonces, en la medida en que
se va conociendo más del genoma y se va conociendo la correlación entre determinado
hecho molecular y el hecho clínico, es que se puede interpretar una relación causa
efecto entre ambos, para lo cual si no está descrito como una variante patológica es
necesario estudiar ambos padres de ese individuo, por ejemplo, y si los padres son
normales y no presentan esa variación detectada en el hijo, es un elemento a favor de
que es un hecho patológico y que la característica anormal fenotipo clínico, tiene que
ver con esa alteración molecular. Si los padres son clínicamente normales y tienen esa
misma variante, entonces el valor de patológico de esa variante pierde peso y habrá
que hacer otras interpretaciones y a veces no es nada fácil de hacer”.
Desta forma, L. enfatiza o conceito de caso individual, a importância da clínica e de
uma narrativa que se desenrola ao longo do tempo: “a evolução do paciente”. Quer
dizer, a relevância do tempo, do espaço, e do contexto, da percepção clínica e as
complexas interpretações envolvidas no raciocínio clínico. Em verdade, aqui se
recupera a concepção da medicina como uma disciplina indiciária que não pode reunir
os critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano (Ginzburg, 1989). O
próprio Ginzburg apresenta à medicina como uma disciplina eminentemente qualitativa,
segundo já mencionado: “que têm por objeto casos, situações e documentos individuais,
enquanto individuais, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma margem
ineliminável de causalidade (p. 156: grifos do autor”.
135
De fato, Rose (2010) destaca que, fora das condições genéticas raras, o paradigma
“gene para” - que buscou a “causa” de uma doença em uma ou duas mutações em um
ou dois genes - tem sido abandonado em favor de um modelo de complexidade, no qual
ser propenso a uma doença é o resultado da interação de múltiplas variações em
diversos locais do genoma, em certos ambientes e outras circunstâncias, podendo
aumentar o risco de desenvolvimento de uma doença152
.
Por outro lado, Nightingale e Martin (2004) afirmam que os avanços no conhecimento
científico não produzem simplesmente novas tecnologias na prática biomédica,
precisamente, porque a investigação clínica, no mesmo sentido apontado por
Montgomery (1991, 2006), acontece em:
“Sistemas altamente complexos e mal caracterizados (os corpos de sujeitos humanos)
e a prática médica se baseiam em múltiplas fontes de conhecimento, apenas algumas das
quais são, no momento, redutíveis à ciência” (Nightingale & Martin, 2004: 567: nossa
tradução).
Por tal motivo, o conhecimento biológico derivado do laboratório não é facilmente
traduzido em práticas clínicas úteis.
152
Na maioria dos casos, os testes genéticos se bem que podem sugerir um alto risco de se desenvolver uma doença, raramente podem dizer quando, com que intensidade ou com que consequências; no entanto, para Rose (2010), este fato não deve gerar fatalismo ou resignação – pelo contrário, “aumenta nossa obrigação, como ‘cidadãos ativos’ nas avançadas sociedades liberais do ocidente, com relação ao conhecimento, à responsabilidade e à prudência genética” (p. 634). Por outro lado, a ciência em amplo desenvolvimento da epigenética (que faz referência, em um sentido amplo, ao estudo de todos aqueles fatores não genéticos que ocorrem no desenvolvimento de um organismo; e que, ao mesmo tempo, acontecem na regulação herdável da expressão gênica sem câmbios na sequência de nucleotídeos), tem reconhecido a importância do ADN não codificante junto com uma complexidade organizada onde as atividades celulares, além dos genes, se constituem no principal foco de atenção; também desafiando, neste sentido, o dogma central sobre o qual se instituiu a genética molecular: o fluxo unidirecional de informação ADN – ARN – proteína - fenótipo (Lock, 2005). Neste mesmo sentido, quando Haraway (2004) apresenta à genética como uma elaboração narrativa com muitas faces, enfatiza que as moléculas de ADN nunca trabalham isoladas, mas em interação com outras estruturas celulares: “a forma mais comum de dizê-lo é que unidade menor da vida é a célula, e não o gene, porém o gene está sempre em interação com estas histórias celulares. Está sempre em um processo, embora – esta é a questão – sempre se fala como se fosse uma coisa concreta. ‘Gene’ foi simplesmente um nome em 1900, um nome para um processo observado, a segregação independente de certos caracteres como semente lisa ou enrugada, planta alta ou baixa” (p. 95).
136
4. A molecularização (Rose, 2010) trouxe transformações na conceituação do corpo
com consequências sobre os modos em que se concebe o corpo “normal” e se classifica
e trata a doença, trazendo também novas percepções, nos sentidos apontados por
Rabinow e Rose (2006), sobre a própria pessoa e as novas identidades e, do mesmo
modo, sobre novas formas de exclusão e coesão social (Lock, 2005). No entanto, como
enfatiza Lock (2005), estas mesmas tecnologias de molecularização, que permitem uma
manipulação sistemática do ADN, têm provocado o declínio do dogma
genótipo/fenótipo consolidando, ao mesmo tempo, a disciplina de epigenética que
contextualiza o gene em um ambiente celular e o reconhece como um conceito, isto é,
como um “dispositivo heurístico para os fins da investigação” (p. 52) 153
.
A genética, a inmunologia, o ambientalismo são alguns dos veículos lideres para a
infiltração da tecnociência, o capitalismo e a cultura no que os modernos chamam
„natureza‟ (Rabinow, 2008). De fato, Haraway (1995) chega a anunciar “a morte da
clínica” quando fala da biologia como uma ciência antes centrada no organismo com
um modelo de intervenção médico e clínico, porém hoje transformada em uma ciência
que estuda máquinas tecnológicas automatizadas, entendidas em termos de sistemas
cibernéticos:
“Já vai sendo hora de escrever A Morte da Clínica. Os métodos da clínica requeriam
corpos e trabalhos, nós temos textos e superfícies. As nossas denominações já não
funcionam através da medicalização e normalização, mas através de redes, novas
comunicações e gerenciamento do estresse” (p. 259: nossa tradução).
Rabinow concorda só parcialmente com esta ideia, pois a multiplicação e complexa
superposição de racionalidades continuarão existindo (Rabinow, 2008).
153
A este respeito, para Rapp (2005), os novos projetos científicos sugerem um movimento desde uma “compreensão molecularizada da natureza” a uma “compreensão molecularizada da cultura” ou, ao menos, das vias através das quais os efeitos ambientais deixam as suas marcas molecularizadas (p. 66). Assim, os trabalhos de Lock mostram a transição desde a genética à epigenética como um espaço chave para a teoria e a prática das ciências da vida.
137
Neste trabalho, talvez se apresente um argumento a mais a favor dessa superposição
de racionalidades, em particular, no trabalho do médico clínico. O nosso argumento é o
manuscrito da síndrome Uruguai, onde as racionalidades envolvidas no processo de
elaboração diagnóstica foram, fundamentalmente, de caráter narrativo, abdutivo ou
interpretativo.
O manuscrito recupera uma prática clínica de médicos geneticistas que se definem, a
si mesmos, como “aqueles que têm que” trabalhar a partir da clínica. A principal
ferramenta utilizada por eles no processo diagnóstico da síndrome Uruguai, e na
construção do manuscrito, foi a sua experiência clínica, baseada nas suas vivências e
habilidades em reunir, documentar, e interpretar informações diversas com observações
detalhadas, reconhecimento de anomalias e suas variações condensando um saber que é
“ativado pelo encontro entre médico e paciente, através do olhar, do toque e do
questionamento” (Aquino et al., 2012: 106).
O manuscrito poderia ser considerado uma boa expressão de um “olhar clínico”, tal e
como definido por Foucault (2004), que não somente implica determinados códigos de
saber integrados numa experiência particular, mas que também é reflexo de uma forma
de fazer medicina154
. Um olhar que vê, escuta, palpa e se aprofunda em torno das linhas
do tempo, do espaço do corpo, da visibilidade do invisível e da intervenção técnica que
se imbricam em uma;
“Rede cujos fios são complicadas narrativas, contadas em palavras, gestos, silêncio,
indícios, imagens, resultados de testes laboratoriais e mudanças nos corpos, todas
convergindo num sentido que pode até ser provisório, mas é a base do raciocínio clínico
impulsionador da ação médica” (Aquino et al., 2012: 107).
154
Rose (2010) lembra que “O nascimento da clínica”, publicado por primeira vez no ano 1963, foi escrito no final da “idade de ouro” da medicina clínica. Para o autor, a assembléia médica que tomou forma no último quarto do século XX, já era muito diferente da medicina clínica nascido no inicio do século XX.
138
5. Reflexões finais
Samaja (2000) dedica seu livro “A reprodução social e a saúde” à sua irmã ressaltando
o vínculo de ambos ao tema da saúde: “para ela (médica) objeto de prática cotidiana;
para mim (epistemólogo) apenas objeto de reflexão”. Neste trabalho, o manuscrito da
síndrome Uruguai é também apenas nosso objeto de reflexão. A primeira vez que o
examinamos achamos que era necessário recuperar outras histórias, uma versão
diferente do próprio manuscrito155
. Entretanto, o desenvolvimento do trabalho aqui
apresentado deixa compreender o manuscrito e os seus particulares conteúdos. Vejamos.
Como seres narrativos (Montgomery, 2006), as histórias representam o ser humano.
De fato, os produtos do intelecto humano possuem ou estão, em algum momento, como
aponta Vogel (2001), envolvidos com histórias. Para Vogel, as histórias são os apoios
fundamentais em termos de qualidade etnográfica porque os fatos, geralmente, se
apresentam sob a forma de histórias, “histórias para acusar, histórias para defender,
histórias para qualificar” (p. 5). Inevitavelmente, o que as pessoas vivem o que podem
recordar, o que podem relatar, seus dramas, seus fracassos ou êxitos, seus problemas,
tudo isso nos chega sempre sob a forma de narrativa.
Haraway (1995) na introdução a uma de suas conhecidas publicações: “Ciência,
cyborgs e mulheres. A reinvenção da natureza” 156
se apresenta ela mesma como um
“objeto discursivo”, do mesmo modo que os fenômenos que estuda:
“A sua autora foi, anos atrás, durante os setenta, uma bióloga de hominídeos,
estadunidense, de raça branca, dedicada socialista e feminista, que se transformou numa
historiadora da ciência para escrever sobre as modernas considerações ocidentais
relativas aos símios e as mulheres” (p. 61: nossa tradução).
155
Um tipo de “lado B”, como assinalou Octavio Bonet na nossa banca de qualificação. 156
Sendo o título original “Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature”. No entanto, ambas as edições portuguesa e espanhola traduzem “Simians” por “Ciência”. O que teria a dizer Haraway sobre isto?
139
Ou seja, uma historiadora da biologia interessada na naturalização e biologização dos
argumentos, isto é, em como diferentes questões na área da cultura, da história e da
política são narradas como histórias biológicas, e o inverso, em como muitas histórias
biológicas se encontram intimamente relacionadas, por exemplo, com instrumentos de
economia política. Para Haraway, a objetividade é um posicionamento crítico e um
esforço principal neste sentido é o reconhecimento e análise dos argumentos, das
narrações e das histórias dos outros e de nós mesmos.
Em verdade, o ponto de apoio inicial de nosso trabalho foi apresentado como uma
história introduzida logo no começo: o desconcerto experimentado frente à leitura de
um manuscrito publicado em um periódico de medicina por médicos clínicos
geneticistas que descrevem uma nova síndrome. Essa história descobre que um dos
autores do manuscrito foi nosso pai com quem tivemos a oportunidade de compartilhar
parte do processo de trabalho e das vivências com a família estudada. Assim mesmo,
também faz parte da nossa história inaugural o reconhecimento de uma particular e
instigante sensibilidade de caráter antropológico na surpresa, no sentido de espanto, que
apresentamos como o primeiro impulso responsável desta dissertação. De fato, segundo
já dito, o nosso desconcerto se origina, em parte, na forte divergência entre as histórias,
as narrações, referidas aos diferentes momentos da pesquisa, às relações com os
diferentes integrantes da família, etc., que conhecemos em um contexto familiar e, por
outro lado, o estrito e formalizado padrão narrativo do relato de caso publicado.
Entendemos que a compreensão/resolução desse espanto se resolve no conhecimento
das diferentes racionalidades narrativas envolvidas no fenômeno analisado. Assim
sendo, neste trabalho destacamos o caráter narrativo do conhecimento clínico,
especialmente em uma era de medicina científica onde a tenacidade de uma
140
racionalidade narrativa poderia ser vinculada com o compromisso da profissão médica
de fazer sentido dos sinais e sintomas da doença em cada paciente em particular
(Montgomery, 2006).
O médico é, fundamentalmente, uma pessoa que toma a história do paciente e a
transforma em um caso médico. Este ato de construção e percepção narrativa requer a
capacidade de entender o paciente e reformular a sua história de doença em uma
narrativa médica que possa combinar com uma taxonomia diagnóstica (Montgomery,
1991).
Ao mesmo tempo, essa construção narrativa baseia-se em varias habilidades clínicas,
especialmente, a prática de uma semiologia médica. Esta tarefa, que compreende o
julgamento clínico, exige um raciocínio prático, interpretativo. O exercício de
phronesis:
“Os médicos ainda confiam em seus olhos, em seus ouvidos e mãos, e as histórias
ainda são extraídas e recontadas como parte de um cuidadoso processo de observação e
análise. O paciente apresenta uma doença no corpo e na história, com a esperança de
uma reescrita da narrativa da doença em e através da narrativa médica, uma
interpretação que levará a um entendimento dos sintomas e, assim, a seu alívio e cura”
(p. 130: nossa tradução) 157
.
O manuscrito da síndrome Uruguai apresenta uma narrativa médica no formato de
relato de caso publicado em uma revista especializada, ajustado às convenções do artigo
científico. Desta forma, o caso publicado assume a sua forma mais compacta e
reformulada adotando uma “forma alienígena” (Montgomery, 1991) não somente frente
à experiência do paciente, mas também com respeito à própria “travessia diagnóstica”
157
Como aponta o professor Castiel (comunicação pessoal), as observações de Montgomery (1991) que correspondem a uma publicação de mais de 20 anos, provavelmente sejam otimistas demais. A medicina clínica tem sofrido muitas transformações. Luis destaca, entre outros, a medicina baseada em evidências, protocolos, guidelines, sendo que “as narrativas clínicas procuram ajustar os pacientes às narrativas desses dispositivos – que não são assumidas como narrativas, mas como frutos diretos do saber tecnobiocientífico”.
141
(Bonet, 2004) que envolve construções narrativas e reconstruções interpretativas das
informações reunidas pelos médicos.
Aqui, tentamos reconstruir o processo de estudo da família da síndrome Uruguai e
elaboração diagnóstica mostrando as circunstâncias do caso, a seleção e interpretação de
pistas e sinais, e alguns dos detalhes que foram operativos e decisivos para o
diagnóstico no julgamento clínico. Claro que esta é uma reconstrução muito parcial.
Segundo já indicado, muito tempo passou entre a escrita do relato de caso, o processo
de pesquisa da família e a análise que aqui se apresenta. Mesmo assim, insistimos na
recuperação de histórias de trabalho, com base no modelo de conhecimento indiciário
ou semiótico (Ginzburg, 1989) e no reconhecimento deste como essencial à prática
médica.
Como explica Montgomery (2006), embora a medicina clame ser uma ciência, o
reconhecimento dos sintomas nos pacientes ou dos signos físicos e a elaboração de uma
lista de possibilidades (o diagnóstico diferencial) requerem de uma prática,
fundamentalmente, interpretativa e narrativa. Neste sentido, diversos autores (Stein,
1991; Hahn, 1995; Marks, 2001; Montgomery, 1991, 2006) afirmam que a medicina
compartilha a metodologia e a racionalidade das ciências sociais. Assim sendo, no
debate, análise, e orientação dos pacientes, de forma inconsciente, porém, inevitável, os
médicos praticariam uma forma de antropologia em seu trabalho (Hahn, 1995; Stein,
1982). Deste modo, os médicos clínicos compartem com as ciências sociais a sua
dependência de uma racionalidade interpretativa (Montgomery, 2006) 158
:
158
Sem esquecer que uma metodologia interpretativa ou hermenêutica também tem sido utilizada por filósofos e historiadores da ciência para caracterizar as ciências físicas ou químicas. Neste sentido, lembramos aqui, mais uma vez, especialmente os estudos de Feyerabend (2007) e as investigações desenvolvidas por Knorr Cetina (1999, 2005) que não somente destacam a dependência dos produtos da ciência de situações e contextos específicos, mas também identificam a existência de múltiplas racionalidades em jogo.
142
“A medicina clínica comparte a sua situação epistemológica e o seu método racional
com a história, a economia, antropologia, e outras ciências humanas – preocupadas
como o significado. Porém, a diferença destas disciplinas, a medicina não reflexiona159
acerca de seu caráter interpretativo ou das regras intermediárias que utiliza para atingir
as suas conclusões” (p. 121: nossa tradução).
Neste sentido, Ginzburg (1989) aponta que as ciências humanas acabaram por assumir
o modelo indiciário da semiótica. A medicina, como disciplina indiciária, tem como
objeto situações individuais reconstruíveis somente através de pistas ou indícios. Trata-
se de uma disciplina, sobretudo, qualitativa e contingente. De fato, para este autor nas
discussões sobre a incerteza da medicina, se encontram formulados “os futuros nós
epistemológicos das ciências humanas” (p. 166).
Aqui, o manuscrito da síndrome Uruguai foi um recurso principal para descobrir o
caráter indiciário do método clínico para o caso do processo diagnóstico em uma
família, embora o próprio manuscrito não dê conta dos inúmeros detalhes necessários e
imprevisíveis para o julgamento clínico, e por isso o nosso desconcerto primeiro. Este
trabalho foi realizado com a elementar intenção de explicar, de algum modo, esse
desconcerto.
159
Porque não é completamente consciente, como aponta Camargo Jr (1997), Hahn (1995) ou Stein (1982). Contudo, como aponta Ginzburg (1989), o próprio modelo epistemológico indiciário também não é teorizado explicitamente.
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