DANIEL ITURVIDES DUTRA
INTERTEXTUALIDADE, LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDO: OS JOGOS E AS DOBRAS ENTRE LITERATURA E CINEMA A PARTIR DO FILME ELES VIVEM E
DO CONTO “EIGHT O´CLOCK IN THE MORNING”
Trabalho de conclusão do curso, apresentado à Universidade Federal de Pelotas como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Literatura Comparada, sob a orientação da prof. dra. Renata Azevedo Requião.
PELOTAS
2008
Banca examinadora:
Prof. Dr. Aulus Mandagará MartinsProf. Dra. Renata Azevedo RequiãoProf. Dra. Maristela Gonçalves Souza Machado
Se uma árvore cai numa floresta e não há ninguém para ouvir, ela produz um som?
koan budista
FICHA CATALOGRÁFICA
Instituição: Universidade Federal de Pelotas
Faculdade / Instituto: Faculdade de Letras
Tipo de trabalho: Monografia( ) TESE ( ) DISSERTAÇÃO (x) TRABALHO ACADÊMICO
Nome do Programa ou Curso: Programa de Pós-Graduação em Letras
Área de concentração: Literatura Comparada
Nome do aluno: Daniel Iturvides Dutra
Título do trabalho: Intertextualidade, Leitura e Produção de Sentido: Os jogos e as dobras entre literatura e cinema a partir do filme Eles Vivem e do conto “Eight O'Clock in the Morning” Nome do orientador: Prof. Dra. Renata Azevedo Requião. Local: Pelotas Ano: 2008
Total de folhas: 64
Palavras-chave: leitura, intertextualidade, ideologia, ficção-científica.
BIBLIOTECÁRIO RESPONSÁVEL:
RESUMO
O presente estudo visa a analisar o conto “Eight O'Clock in the Morning” (1963) de Ray Nelson e a leitura feita pelo cineasta John Carpenter que resultou no filme Eles Vivem (1989). O filme é uma leitura que o cineasta fez do conto. Assim, apropriando-se, como leitor, de diversos elementos do conto, e os reinventando na composição de seu filme, dentro de uma visão autoral, o cineasta dá à obra cinematográfica um sentido diferente do texto literário. Tal diferença produz um filme que abre novos caminhos de leitura para o conto, ou seja, “Eight O'Clock in the Morning” lido através de Eles Vivem adquire um novo significado.
Através dessa premissa, analisaremos os desdobramentos do jogo de leitura, entendendo a leitura como um processo de intertextualidade, e o contexto histórico-cultural em que se produziu tanto o texto literário quanto o texto fílmico, dado importante pela especificidade do gênero ficção-científica e filme tipo B. O filme Eles Vivem é uma crítica ao neoliberalismo, gerada a partir de um texto literário, escrito em época bastante anterior. O conto pertence ao gênero denominado “pulp”, termo usado para designar uma literatura de qualidade menor e cuja única intenção é o puro entretenimento.
Compreender os mecanismos de apropriação do texto literário utilizados por John Carpenter para a construção de sentido do texto fílmico é fundamental para desvendar os processos de leitura e papel do leitor no texto.
Palavras-chave: leitura, intertextualidade, ideologia, ficção-científica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................7
1 GENEALOGIA DA FICÇÃO-CIENTÍFICA
1.1 OS PRIMÓRDIOS DO GÊNERO................................................................ 10
1.2 1920-1940 A ERA DA SPACE-OPERA...................................................... 12
1.3 FICÇÃO-CIENTÍFICA NOS ANOS 50: NACIONALISMO X
COMUNISMO...................................................................................................16
2 A INTERTEXTUALIDADE NO PROCESSO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE
SENTIDO
2.1 A PARÓDIA DO “FORA DO TEXTO”........................................................21
2.2 CINEMA, LITERATURA E IDEOLOGIA. .................................................31
3 POSSIBILIDADES DE LEITURA OFERECIDAS PELO DESLOCAMENTO NO
TEMPO E NO ESPAÇO
3.1 A LEITURA CRIATIVA...............................................................................38
3.2 UMA NOVA LEITURA DE “EIGHT O´CLOCK IN THE MORNING”....45
CONCLUSÃO.....................................................................................................55
REFERÊNCIAS.................................................................................................58
INTRODUÇÃO
A literatura comparada é o estudo da relação da literatura com diferentes áreas do
conhecimento humano (filosofia, história, psicologia, etc.) e demais manifestações artísticas
(pintura, música, cinema, etc.). No que se refere a textos literários e demais formas de expressão
artística a literatura comparada se dedica a investigar a relação intertextual que a literatura
estabelece com outros códigos estéticos, vistos como textos igualmente legíveis.
O comparatista, ao analisar as relações intertextuais entre diferentes objetos estéticos,
pode, portanto, se dedicar ao estudo do processo de leitura e de produção de sentido. O
pesquisador estuda esse novo objeto estético a partir do seu ato de leitura. Analisando as escolhas
realizadas no ato de leitura e os objetos estéticos novos que estas produzem. O comparatista
observa que toda relação intertextual é acima de tudo o resultado de um processo de leitura e
produção de sentido.
A presente monografia visa apresentar uma análise da intertextualidade no processo de
leitura e produção de sentido de textos a partir do estudo do filme Eles Vivem (1988), de John
Carpenter, entendido como a leitura feita pelo cineasta do conto “Eight O'Clock in the Morning”
(1963), de Ray Nelson. No caso deste estudo em específico, que envolve a relação cinema e
literatura, constatamos que dentre as teorias que discutem a relação entre cinema e literatura
existe um consenso de que a versão fílmica de uma obra literária é um objeto estético novo e
autônomo. Portanto, o autor fílmico que se dispõe a traduzir um texto literário para o cinema
realiza uma leitura única e pessoal de uma obra literária pelo viés do código estético
cinematográfico.
Tomemos como primeiro exemplo ilustrativo dessa questão o livro No Coração das
Trevas (1904), de Joseph Conrad e sua adaptação fílmica Apocalipse Now (Apocalipse Now,
1979), de Francis Ford Copolla. No Coração das Trevas lida em essência com o tema do
colonialismo britânico do século XIX, Copolla por sua vez viu na novela de Conrad o veiculo
ideal para retratar a guerra do Vietnã. Apesar de livro e filme retratarem períodos e lugares
históricos diferentes, ambos caminham na mesma direção: a denúncia ao imperialismo e à
selvageria humana. Copolla, em sua leitura da obra de Conrad, fez o que Vincent Jouve define
7
como “identificar o mais precisamente possível as coordenadas do autor” 1. Isto é, Copolla
encontrou no texto literário certos elementos que permitiam a possibilidade de uma releitura a
partir de um código estético diferente.
A Máquina do Tempo (The Time Machine, 1960), de George Pal, baseado na obra
homônima de H.G Wells, é outro bom exemplo desse tipo de apropriação. O livro A Máquina do
Tempo (1896) relata a fascinante aventura de um cientista que constrói uma máquina do tempo e
viaja para ano 12203, ou seja, cerca de 10 mil anos no futuro. Lá, ele descobre que a humanidade
se dividiu em duas espécies diferentes: os Morlocks e os Elois. Os primeiros são criaturas
grotescas que vivem no subsolo e são responsáveis pela manutenção da cidade onde vivem os
Elois, estes por sua vez são criaturas angelicais que habitam a superfície e levam uma existência
de prazeres fúteis. Wells não está falando apenas de uma sociedade futurista em A Máquina do
Tempo, ele também está falando de sua época. A relação entre Morlocks e Elois nada mais é que
uma crítica a relação entre proletariado e burguesia da Inglaterra vitoriana. Tantos os primeiros
quanto os segundos são retratados de forma negativa pelo autor, os Elois são retratados como
indolentes e os Morlocks, por sua vez, como bárbaros. George Pal, assim como Copolla, fez sua
leitura da obra de H.G Wells levando em consideração os problemas de seu tempo, no caso a
guerra fria e o eminente risco de um possível holocausto nuclear. Na leitura fílmica de George
Pal, os Morlocks são descendentes dos primeiros habitantes de abrigos nucleares de um mundo
pós-guerra atômica, enquanto os Elois representam os humanos que permaneceram na superfície.
O rearranjo da estória de H. G Wells, realizado por George Pal, considera os perigos e
conseqüências de uma guerra nuclear para humanidade. Em ambos os exemplos citados, as
circunstâncias de suas respectivas épocas influenciaram o processo de leitura fílmica. Dudley
Andrew observa que toda adaptação cinematográfica é o produto de uma época e lugar
específico. Sobre o processo de tradução cinematográfica o autor escreve que “a produção
cinematográfica, em outras palavras, é sempre um fenômeno onde o sistema [literário] é utilizado
e modificado pelo discurso” 2. Isto é, um texto novo é criado a partir da leitura e transformação de
um texto pré-existente.
1 JOUVE, Vincent. A Leitura. São Paulo: Ed. UNESP, 2002, p. 26.2 No original “Filmmaking, in other words, is always an event in which a system is used and altered in discourse”(tradução minha) ANDREW, Dudley. From Concepts in Film Theory. In: MAST, Gerald. COHEN, Marshall. BRAUDY, Leo. Film Theory And Criticism: Introductory Readings, Fourth Edition. Oxford University Press,1992, p. 428.
8
O contexto histórico, portanto, exerce forte influência no processo de transcriação
literário-fílmico. Apocalipse Now e A Máquina do Tempo são exemplos suficientes para que se
possa fazer a seguinte constatação: toda adaptação cinematográfica de um texto literário antes de
ser um processo de tradução intersemiótica é em primeiro lugar um processo de leitura e
produção de sentido da obra literária por parte do interessado em levá-la para as telas de cinema,
pois “toda adaptação é leitura. Adaptar um texto literário para o cinema é, antes de mais nada,
interpretar esse texto.”3
O papel da intertextualidade é discutido como elemento fundamental na construção de
sentido do texto. Através da análise do filme Eles Vivem e do conto “Eight O'Clock in the
Morning” estudaremos a forma como o sentido se dá não apenas a partir da leitura do texto
literário em si, e sim pela leitura do mesmo dentro do sistema intertextual que o originou e como
estes elementos alteram a relação entre os signos e os significados do texto. Também
discutiremos o papel do leitor na construção de sentido do texto, visto aqui como um agente
criador e transformador do texto.
John Carpenter se apropriou dos elementos do conto que o interessavam e os recriou
dentro tanto da perspectiva de sua época e como de sua perspectiva pessoal gerando um texto
fílmico de cunho político. Para melhor compreendermos como as circunstâncias históricas, em
torno de John Carpenter, influenciaram a leitura do cineasta uma breve análise do gênero ficção-
científica e de sua evolução se faz necessário.
CAPÍTULO I
3 CUNHA, J. M. S. Literatura e cinema: uma história de relações complexas. In: MARTINS, A.M.. (Org.). Itinerários de leituras: ensaios sobre literatura. Pelotas RS: EDUFPel, 2003, v. , p. 62.
9
GENEALOGIA DA FICÇÃO-CIENTÍFICA
1.1. OS PRIMÓRDIOS DO GÊNERO
Para compreendermos melhor o verdadeiro sentido da ficção-científica é necessário
conhecer quais as circunstâncias responsáveis pelo nascimento do gênero.
O século XIX experimentou uma revolução técnica sem precedentes na história da
humanidade. A produção artesanal cedia espaço para a produção manufaturada, as fábricas
começam a surgir, as profissões se tornam cada vez mais especializadas e as máquinas, cada vez
mais sofisticadas, e ininteligíveis para maior parte da população que não conseguia acompanhar
tantas inovações.
Como conseqüência, “as primeiras tecnologias indústrias substituíram a força física do
trabalho humano, trocando a força muscular por máquinas” 4. O avanço tecnológico mudou
radicalmente as condições de trabalho. Esse mesmo avanço mudou também as relações sociais,
estas se modificaram radicalmente com o surgimento da burguesia (proprietária do maquinário) e
proletariado (que nada possuía para negociar a não ser sua mão de obra). Nada mais natural que
esse novo paradigma influenciasse o trabalho de diversos escritores. Afinal, “a literatura também
é um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre.” 5
De todos os escritores dessa época vamos nos ater a dois em particular: H.G Wells (1866
– 1946) e Julio Verne(1828 –1905).
A ficção-científica “nasce” no momento histórico onde a tecnologia e seus eventuais
impactos se tornam uma constante na sociedade e os escritores H.G Wells e Julio Verne, graças
ao contexto histórico propício, no caso a revolução industrial, consolidaram o gênero, dando-lhe
“corpo e alma”.
Tanto o francês Julio Verne quanto o britânico H. G Wells aproveitam da ciência o seu
discurso, apenas extrapolando os seus limites e incorporando-a em suas narrativas e visando um
objetivo: entender melhor seu tempo e as possíveis conseqüências da revolução industrial, ou
seja, Wells e Verne discutem não só a tecnologia, mas o seu impacto em diversas áreas da
4 RIFKIN. Jeremy. O Fim dos Empregos. MAKRON BOOKS, 1999, p.15.5 CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade. Cia. Editora Nacional, 1965, p. 24.
10
sociedade humana.
Em Vinte Mil Léguas Submarinas (1870), Julio Verne nos conta a saga do capitão Nemo,
a bordo de seu submarino Nautilus, Nemo ataca navios de guerra e portos, seu objetivo é acabar
com as guerras que assolavam o mundo naquela época. A crítica ao colonialismo e ao uso das
novas tecnologias bélicas é mais que evidente em sua obra. Já A Ilha do Dr. Moreau (1897), de
H.G Wells, narra a trajetória de Paul Moreau, cientista que realiza experimentos com diversos
animais de uma ilha, transformando-os em criaturas semi-humanas numa tentativa de “humanizá-
las”. Mas o experimento falha e os instintos animais das criaturas voltam à tona com
conseqüências terríveis. Wells cria em seu romance uma bela metáfora à bestialidade reprimida
do ser humano. A capacidade do gênero em criar universos fantásticos o torna não só um
excelente estudo sobre o imaginário do ser humano como também o objeto de análise das
aspirações, desejos, medos e temores do ser humano não apenas em relação ao futuro, mas a
situação presente da humanidade.
Na prática a ficção-científica é uma literatura como outra qualquer que visa discutir a
essência do ser humano e seus problemas tendo o impacto da ciência sobre a humanidade como
ponto de partida. Esta ciência pode ter fundamentação científica ou ser apenas um pano de fundo
pseudocientífico para o autor abordar os temas que lhe carecem. Por exemplo, em estórias de
invasões ou visitas de extraterrestres, há autores mais preocupados com o didatismo, que tentam
conceber da forma mais realista possível, como seria o primeiro contato da humanidade com
seres de outro planeta (Carl Sagan e seu livro Contato é um bom exemplo), enquanto outros se
utilizam dos extraterrestres como um recurso alegórico. H.G Wells usou a figura do alienígena
dessa forma em Guerra dos Mundos. A invasão alienígena funciona como um recurso alegórico
ao imperialismo praticado pelas potências da época.
Longe de tentar dar uma definição completa e absoluta do gênero ficção-científica
podemos constatar duas características básicas do gênero. A primeira é que a ficção-científica
discute caminhos possíveis no avanço tecnológico e científico da humanidade, refletindo sobre
suas causas e conseqüências. Alvin Toffler, citado em A ameaça da Terra de Robert A. Heinlein
coloca a questão da seguinte forma:
Se a tomarmos como uma espécie de sociologia do futuro, de preferência a um ramo da literatura, a ficção científica apresentará um valor imenso como uma força de ampliação da antecipação.6
6 HEINLEIN, Robert A. A Ameaça da Terra . Ed. Circulo do livro. 1989, p.239.
11
A segunda consiste em estórias de ficção-científica que não se preocupam em discutir
ciência e tecnologia em si, mas em aproveitar o discurso para construir discursos alegóricos ou
simplesmente narrar um evento ficcional, sem nenhum compromisso com a plausibilidade
científica.
È claro que a primeira consideração não exclui a segunda e vice-versa. Há estórias de
ficção-científica que são discursos alegóricos e ao mesmo tempo discutem ciência e tecnologia.
Mas concluindo, a ficção - cientifica não se restringe apenas a discutir ciência (embora muitas
vezes o faça), ela é uma construção em cima de um problema observado por um autor e
transportado para um outro tempo ou outro mundo.
1.2. 1920-1940 A ERA DA SPACE-OPERA
Apesar da ficção-científica ter seus percussores em autores do século XIX como H. G
Wells, Julio Verne, Guy de Maupassant, entre outros, o termo ficção-científica só foi cunhado
nos anos 20, pelo americano Hugo Gernsback, editor da revista Amazing Stories, para denominar
a literatura que ele publicava em sua revista. Assim nascia a ficção-científica “pulp”. “Pulp” é o
nome dado a revistas feitas com papel de baixa qualidade (a polpa), a partir do início da década
de 20. O termo “pulp” se tornou sinônimo de histórias de qualidade menor ou absurda,
independente do gênero(terror, western, policial). Enfim, a ficção-científica norte-americana
tomou um rumo diferente da literatura mais sofisticada elaborada pelos escritores do velho
mundo. O público alvo desse tipo de publicação eram jovens e adultos, geralmente do sexo
masculino, à procura de entretenimento leve e sem compromisso. John L. Flynn comenta sobre a
ficção-científica produzida entre as décadas de 1930 e 1940 nos E.U.A:
As primeiras revistas "pulp" apresentaram mais do que sua cota média de mulheres seminuas que precisavam ser resgatadas das garras de cientistas loucos, alienígenas predadores e robôs descontrolados; de fato, as edições mais bem sucedidas eram geralmente aquelas com ilustrações sensacionalistas de mulheres peitudas em perigo, criadas por Earle Bergey e outros, porque apelavam para os interesses lúbricos das audiências juvenis.7
Essas publicações instigavam a libido do público para atraí-lo em um primeiro momento,
e depois transmitiam valores conservadores. Bráulio Tavares observa que
a moralidade dos personagens é totalmente provinciana: sexo não existe, embora todos os heróis tenham uma noiva. Astronautas do século 22 ficam “enrubescidos” quando, ao saírem de uma câmara de hibernação, se vêem sem
7 http://br.geocities.com/worgtal/2004/pulpsf.htm acessado 27 de abril de 2007.8TAVARES, Bráulio. O que é Ficção-Científica? Ed. Brasiliense, 1989, p.75.
12
roupas na frente de outros. E não deixa de ser esquisito ler uma aventura no planeta Vênus, descritas com riqueza de informações científicas, no fim da qual o explorador salva a mocinha e diz: “Agora, querida, vamos procurar uma igreja e nos casar”. 8
Enfim, a mocinha seminua ameaçada por monstros na capa da revista se casava com o
herói no final. Este era o perfil básico das estórias de ficção-científica publicadas na Amazing
Stories e demais revistas genéricas da época. Este tipo de ficção-científica ficou conhecida como
space-opera e era uma espécie de aventura medieval situado em um cenário futurista ou uma
galáxia distante. O sucesso do gênero nos E.U.A se deve às mudanças enfrentadas pela sociedade
norte-americana na época. Na alvorada do século XX, os E.U.A rural havia dado lugar aos
E.U.A urbano, a população se aglomerava nas grandes metrópoles em busca de oportunidades e
todo um novo estilo de vida surgia. Dentro deste novo paradigma nascia uma nova safra de
escritores. Influenciados pelo naturalismo do francês Émile Zola, autores como Jack London,
Theodore Dreiser, Frank Norris escreviam obras que segundo Paul Goodman e Frank O. Gatell
visavam escrever sobre a realidade americana e suas instituições, sobre o sistema que massacrava o indivíduo e ignorava o miserável proletariado.9
Nas décadas seguintes autores como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald davam
continuidade à tradição realista com obras que deixavam claro o desgosto com a sociedade
contemporânea. Se ao realismo literário ficou o encargo de examinar a sociedade americana e
suas inquietações, à literatura “pulp” restou o encargo de entretenimento das massas. A
popularidade do gênero ficção-científica entre as massas não foi casual. Goodman e Gatell
comentam:
Nesse novo mundo, mais do que nunca, a ciência e tecnologia de grandes empresas passaram a ditar as regras. A revolução social foi sem precedentes. Os Estados Unidos se tornaram uma nação de consumidores que trabalhavam para comprar uma infinita variedade de bens de consumos além da imaginação. O automóvel [...] e outros bens de consumos, incluindo toda a gama de aparelhos domésticos como telefones e máquinas de lavar roupas, prometiam revolucionar os lares americanos.10(grifos meus)
8
9No original “strove to write objective yet searing accounts of American men and institutions, of a system crushing individuality, of affluent society ignoring a hungry proletariat”(tradução minha). GOODMAN, Paul. GATELL, Frank O. America In The Twenties. The Beginnnings of Contemporary America. Holt, Rinehart and Winston, Inc. 1972. pp. 81 & 82.10 No original “In this new world, more than ever before, science and tecnology, applied by large organizations, became the masters. They produced unprecedented affluence and revolutionized older modes of living. America became a nation of consumers working to buy am endless variety off goods undreamed of by previous generations.The automobile […]and other consumer durables, including the array of electric appliances from telephones to washing machines, promised to transform the american home.” Ibid., pp. 81 & 82.11 Fantasia Espacial da Conquista. SCIENTIFIC AMERICAN n° 3, Brasil, p.32. ene/Janeiro. 2005.
13
Ou seja, havia no imaginário popular a idéia de que o progresso científico levaria a nação
à utopia e, como o gênero ficção-científica tem seu discurso intimamente ligado a elementos
científicos, nada mais natural que a space-opera tanto refletisse como ratificasse o clima de
euforia causado pelas promessas da nova sociedade industrial norte-americana. A sociedade
americana estava “otimista, tecnológica e pronta para manter seu modo de vida apenas
acrescentando a ele máquinas novas.” 11
A grande depressão da década de 30, apesar de causar um grande revés na economia
norte-americana, terminou também por contribuir para o gênero, pois a população sofrida dos
anos 30 precisava de um escapismo para os problemas de seu dia-a-dia e a space-opera se tornou
o meio ideal para esse objetivo.
Essa situação só mudou em 1937, quando John W. Campbell Jr. assumiu o cargo de
editor da revista Astounding Science Fiction e foi o responsável por dar ao gênero um tratamento
mais sério ao privilegiar obras de conteúdo mais intelectual e menos apelativo. Sob sua tutela
foram publicados os primeiros contos e novelas de escritores como Isaac Asimov, Arthur C.
Clarke e Robert A. Heinlein. Autores que tiveram (e ainda têm) grande influência na história e
desenvolvimento do gênero a uma direção mais culta. Apesar de Campbell ter tido o mérito de
(re)aproximar o gênero a um tipo de literatura mais sofisticada, o discurso ideológico da época
anterior, de uma certa forma, ainda permeava o gênero. Bráulio Tavares comenta:
Campbell era um WASP (branco, anglo-saxão e protestante) e partia do princípio de que os leitores de ficção-científica também o eram, com o dado adicional de serem adolescentes. Frederick Pohl, que considera Campbell “o maior editor de ficção-científica de todos os tempos”, reconhece que ele tinha recebido a típica formação americana que leva a achar os judeus “um tanto ridículos” e os negros “sem talento”. Campbell se preocupava em não desagradar o público e em não se afastar muito dos valores estabelecidos.12
O cinema de ficção-científica seguiu nas telas o mesmo caminho do gênero em sua
vertente literária. Na década de 30 as aventuras space-opera de Flash Gordon e Buck Rogers
tiveram o seu auge de público. Eram produções de segunda categoria, os chamados filmes B
(filmes pobres em recursos e que muitas vezes chegavam a se aproveitar de sobras de cenários e
figurinos de outros filmes, só para se ter uma idéia da precariedade dessas produções). Esses
filmes eram destinados a uma platéia pouco exigente, geralmente mais interessada em namorar
11
12
? TAVARES, Bráulio. O que é Ficção-Científica? Ed. Brasiliense, 1989, pp.77&78.
14
no escuro do cinema do que prestar atenção à ação que se desenrolava na tela, e seguiam a
mesma cartilha da space-opera literária: aventuras rocambolescas cheias de ação e finais felizes.
Um ponto importante, e que será analisado mais detalhadamente adiante, é o papel do
protagonista de ficção-científica (tanto literária como fílmica). Sempre retratados como bons
moços, personagens como Flash Gordon e Buck Rogers se tornaram arquétipos do gênero,
representando todos os valores da sociedade que defendiam. A produção de ficção-científica
desse período ficou conhecida como “Golden Age” (a era dourada). Uma breve análise do
contexto histórico daquela época ajudará a entender esse sucesso.
1.3. FICÇÃO-CIENTIFICA NOS ANOS 50 E COMUNISMO
O fim da segunda guerra mundial mudou radicalmente o cenário geopolítico do planeta.
Estados Unidos e União Soviética emergiam como as duas novas superpotências em blocos
ideologicamente opostos que defendiam respectivamente o regime democrático e o regime
comunista. O primeiro pregava a total liberdade do mercado e o segundo apostava em uma forte
intervenção do estado na economia. Nada mais natural que dois grupos com idéias tão distintas
entrassem em atrito iniciando um conflito que ficaria conhecido como guerra fria, que foi uma
espécie de confronto não-armado entre as duas nações.
A paranóia de um eminente conflito armado entre as duas potências se tornava cada vez
maior, à medida que eventos como a criação do Pacto de Varsóvia e a explosão da primeira
bomba atômica soviética transcorriam. Foi nesse clima de histeria que o governo americano
tomou as primeiras atitudes para coibir supostas atividades de grupos comunistas dentro do país.
A mais conhecida de todas foi o Macartismo. O termo vem do nome do senador republicano
Joseph McCarthy, que liderou o Comitê para as Atividades Anti-Americanas da Câmara, vulgo
HUAC, um comitê dedicado à repressão política dos supostos comunistas dos EUA. William J.
Mann descreve a atividade da HUAC como uma caçada que “passou a ter o objetivo de erradicar
quaisquer subversivos que atentassem contra o modo de vida americano” 13 e cujo objetivo era
“proteger o status quo, salvaguardar os valores tradicionais, esmagar idéias novas e sufocar a
mudança social.” 14
A HUAC foi uma verdadeira inquisição moderna. Estrangeiros, políticos de esquerda e
13 MANN, William J. Bastidores de Hollywood. São Paulo: Editora Landscape, 2002, p. 359. 14 Ibid., p.360.
15
até celebridades como o ator Charles Chaplin, todos foram perseguidos pelo Macartismo
acusados de “subversivos” infiltrados na sociedade americana. Quem era acusado de comunista
pelo comitê automaticamente se via desempregado no dia seguinte. Muitos profissionais do
cinema (roteiristas, atores, diretores) passaram por essa situação, dando origem às famosas listas
negras de Hollywood. A HUAC concentrou boa parte de sua atenção na indústria
cinematográfica dada à influência que esta exercia nas massas. William J. Mann relata um caso
exemplar de paranóia anticomunista envolvendo a atriz Ginger Rogers:
A afrontosa Lela Rogers, mãe de Ginger, disse que a filha dela havia se recusado a atender à exigência dos comunistas, de dizer em uma cena de Tender Surrender a fala “Dividir, e dividir igualmente-a democracia é isso”. 15
Todo esse contexto político não podia deixar de ter seus reflexos na ficção-científica. No
campo literário autores como Robert A. Heinlein e Ray Bradbury escreviam respectivamente
obras como o romance Puppetmaster (1951) e o conto “Sound of Thunder” (1952) que
exploravam, de formas diferentes, os efeitos da histeria anticomunista. Mas foi no fronte
cinematográfico que os efeitos da guerra ideológica EUA versus a antiga URSS foram mais
visíveis. A paranóia anticomunista gerou uma leva de vários filmes B de ficção-científica que
refletiam de diversas maneiras o contexto da guerra fria. Filmes como Guerra dos Mundos (War
of the Worlds,1953) de Byron Haskin, O Monstro do Ártico (The Thing from Another World,
1951) de Howard Hawks, O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still, 1951) de
Robert Wise, são apenas alguns dos exemplos mais famosos dos milhares de filmes produzidos
na época. Um filme símbolo desse período é Vampiros de Almas (Invasion of the Body
Snatchers, 1956), de Don Siegel. A trama mostra a invasão de uma típica cidadezinha norte-
americana por vagens alienígenas que raptam seus habitantes e os substituem por clones idênticos
em todos os aspectos, menos nas emoções. O filme é lido como uma alegoria
onde estudiosos vêem na obra uma grande metáfora de inspiração ideológica: as vagens
seriam comunistas infiltrados na sociedade americana [paranóia típica da época em que
o filme foi realizado, em pleno macartismo]16.
Reforçando esse ponto de vista, Orivaldo Leme Biagi, Doutor em História pela
UNICAMP, comenta sobre Vampiros de Almas:
Do ponto de vista norte-americano, os soviéticos procuravam impor sua dominação através da infiltração de seus agentes e, conseqüentemente, dos seus ideais políticos dentro do país, destruindo a individualidade e os valores sociais da democracia -
15 Ibid., p.359.16 Guia de Vídeo Nova Cultural 1993. São Paulo: Editora Abril., p.548. Janeiro. 1993.
16
temáticas recorrentes dos filmes de ficção-científica do momento. [...] o "inimigo comunista" era invariavelmente apresentado como um ente traiçoeiro, ardiloso e sempre agindo nas sombras e na escuridão. Qualquer um poderia ser um agente "comunista", aumentando ainda mais o medo e o isolamento entre as pessoas - ninguém confiava em ninguém. [...] a associação entre a "infiltração" comunista e a vida norte-americana que, ainda hoje, é feita sobre outro clássico da época, Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), de Don Siegel, onde as vagens seriam comunistas infiltrados na sociedade norte-americana, vagens estas que copiam as pessoas, surgindo, assim, seres sem sentimentos e sem alma.17
O comunismo, personificando na maioria dos casos a figura do invasor alienígena,
simbolizava a ameaça dos ideais de democracia e liberdade norte-americano. Estes filmes fizeram
grande sucesso na época. Antonio Costa explica que o cinema se baseia “nos jogos de
identificação e nos complexos mecanismos que regulam [...] nosso inconsciente.” 18, ou seja,
existe uma relação de identificação entre o público e o cinema. O cinema, na relação de
identificação que estabelece com o espectador, é um excelente instrumento de manutenção e
perpetuação de uma ideologia. Christian Metz, citado por Antonio Costa, comenta:
Os espectadores têm a mesma ideologia dos filmes que lhe são oferecidos [...] o filme tradicional é proposto como estória e não como discurso. Contudo, ele é um discurso se nos referimos às intenções do cineasta, ás influências que exerce sobre o público etc.; mas o específico deste discurso, e o próprio princípio de sua eficácia como discurso é justamente cancelar as marcas de enunciação e de mascarar-se como estória. 19
Apesar de pequenas variações e algumas exceções, como O Planeta Proibido (The
Forbidden Planet,1956), de Fred Wilcox, os filmes da época seguiam mais ou menos o mesmo
mote: a terra era invadida por alienígenas e cabia ao herói impedi-los, em alguns casos os
invasores pousavam em seus discos voadores e iniciavam uma onda de destruição pelo planeta,
em outros casos a invasão era furtiva, os invasores atacavam em silêncio se infiltrando em vários
setores da sociedade americana, corroendo-a aos poucos, bem ao estilo dos supostos comunistas
perseguidos pela HUAC.
Os alienígenas, portanto, eram quase sempre retratados da forma mais maniqueísta
possível na maioria dos filmes dos anos 50. Eles eram a personificação do mal. O herói, por outro
lado, era quase sempre um sujeito de classe média, bonito e simpático. E ao seu lado contra os
alienígenas estava sempre uma bela heroína, de preferência loira. È interessante notar que em
momento algum estes filmes questionavam os valores defendidos pelos protagonistas ou
analisavam mais a fundo as razões dos alienígenas. E nem o espectador desejava isso. Não existia
17 http://bocadoinferno.com/romepeige/artigos/comunismo.html acessado dia 25 de agosto de 2007.18 COSTA, Antonio. Para Compreender o Cinema. Ed.Globo, 1989, p. 2519 Ibid., p. 24.
17
diálogo entre os antagonistas. Os alienígenas/comunistas eram maus e deviam ser eliminados
para o bem do sistema capitalista.
Sobre a questão da figura do alienígena na ficção-científica a escritora Ursula K. Le Guin
escreve:
A questão envolvida aqui é a questão do Outro - o ser que é diferente de você mesmo. Este ser pode ser diferente de você no sexo; ou em sua renda anual; ou em seu modo de falar e vestir e fazer coisas; ou na cor da sua pele, ou no número de pernas e cabeças. Em outras palavras, há o Alienígena sexual, o Alienígena social, o Alienígena cultural e finalmente o Alienígena racial. [...]O único alienígena bom é o alienígena morto - seja ele um homem-louva-deus aldebaraniano ou um dentista alemão [...] Esta tendência tem sido notavelmente forte na ficção-científica americana [...] O socialismo nunca é considerado como uma alternativa, e a democracia é completamente esquecida. Virtudes militares são tomadas como éticas. A riqueza é assumida como um objetivo justo e uma virtude pessoal. O capitalismo de mercado é o destino econômico da Galáxia inteira.20(grifos meus)
O texto de Ursula K. Le Guin mostra como a atitude genérica oriunda da guerra fria se
expressa de forma multifacetada. Fabiana da Câmara Gonçalves Pereira nota “a xenofobia
sempre foi um artifício retórico para a manutenção de certos grupos no poder” 21 e também
observa, citando Muniz Sodré, que alguns pensadores mais radicais vêem a ficção-científica
como um
produto de ideologia reacionária, resultado de artimanha política que visa, de um lado, distrair as populações revoltadas, e, de outro, preparar o espírito dos povos para a aceitação de doutrina imperialista e escravizadora.22
Mas a ficção-científica tomou rumos diferentes ao longo dos anos. A contracultura dos
anos 60 revelou autores mais contestadores como a supracitada Ursula K. Le Guin e Philip K.
Dick, só para citar alguns nomes, que se dedicaram a temas antes considerados tabus do gênero
como sexualidade e drogas, por exemplo. Mas neste primeiro momento o importante é analisar
apenas os primórdios da história do gênero. Os rumos da ficção-científica a partir dos anos 60
serão retomados no capítulo IV. È necessário, antes, frisar que mesmo com o surgimento de uma
ficção-científica de vanguarda, mais voltada para reflexões filosóficas e experimentalismo
literário, a imagem dos tempos da revistas pulp dos anos 20/30 e filmes da década de 50
permanecem fortes até hoje no imaginário popular. Bráulio Tavares reconhece isso ao afirmar
que
as imagens típicas da ficção- científica são claras até mesmo para o não-aficionado:
20 http://geocities.yahoo.com.br/worgtal/download.htm acessado 25 de agosto de 200721 PEREIRA, Fabiana Câmara Gonçalves. Fantástica Margem.A Ficção-Científica e o Cânone Brasileiro.2004. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 71.22 Ibid., p. 67.
18
espaçonaves, mutantes, cidades submarinas, pistolas desintegradoras, impérios galácticos, viagens no tempo, supercomputadores...23
Em resumo, existe todo um imaginário coletivo de ficção-científica calçado em imagens
carregadas de significados que vêm se perpetuando ao longo dos anos. È este imaginário coletivo
que John Carpenter utiliza para construir seu filme parodiando-o, como será visto a seguir.
CAPÍTULO II
A INTERTEXTUALIDADE NO PROCESSO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE
23 TAVARES, Bráulio. O que é Ficção-Científica? Ed. Brasiliense, 1989, p.8.? AGUIAR, Vera Teixeira. BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p.63.
19
SENTIDO
2.1 A PARÓDIA DO “FORA DO TEXTO”
Agora que conhecemos o discurso ideológico que se esconde atrás da ficção-científica
vamos analisar como este conhecimento se relaciona com o processo de leitura e produção de
sentido. Em primeiro lugar, o cineasta John Carpenter é antes de tudo um leitor, o leitor John
Carpenter antecede o cineasta John Carpenter porque sem o primeiro o segundo não existiria. Em
segundo lugar, ler é acima de tudo uma atividade criativa. O leitor cria um sentido para o texto a
partir de seu conhecimento de mundo e de sua experiência de vida. Bordini & e Aguiar
comentam:
O trabalho criativo [...] é orientado por tudo que já se fez e pelos valores cultivados pela sociedade e de outro pelo inconsciente, cujos impulsos o criador não conhece, embora os perceba operando em suas ações. 24
Em outras palavras, o leitor quando lê um texto não o lê como um objeto isolado em um
vácuo. A leitura vem acompanhada de uma intertextualidade no sentido lato sensu, ou seja, não
se trata apenas de um diálogo entre textos, se trata da forma como leitor observa esse diálogo e
como isto, somado a sua própria experiência de vida, influencia no processo de construção de
sentido do texto. È dessa dialética que nasce o sentido da obra. Partindo desse pressuposto é
seguro afirmar que a intertextualidade é um fator importante para a construção de sentido do
texto. Frequentemente a intertextualidade é entendida “quando, em um texto, está inserido outro
texto anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade25”, Izidoro
Blikstein define bem a questão da intertextualidade ao afirmar que
o discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo. Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço. 26
É importante analisar mais a fundo a relação entre texto literário, texto fílmico e suas
respectivas intertextualidades para compreendermos melhor esse processo. O conto “Eight
24 AGUIAR, Vera Teixeira. BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p.63. 25 BENTES, Anna Christina. CAVALCANTE, Mônica Magalhães. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Intertextualidade Diálogos Possíveis. Ed. Cortez, 2007, p. 17.26 BLIKSTEIN. Izidoro. Intertextualidade e polifonia. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de. FIORIN, José Luiz. (org) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo: Ed Univ São Paulo, 2003, p. 45.
20
O'Clock in the Morning” narra a trajetória de George Nada, um cidadão comum que se oferece
como voluntário durante um espetáculo de hipnose. Nada acorda da hipnose e descobre que toda
a raça humana é controlada por extraterrestres e que ele é o único que consegue vê-los. É através
de várias passagens do texto que tomamos conhecimentos sobre o perfil do personagem. Nada é o
típico cidadão de classe média, solteiro, de meia-idade e que vive sozinho, como o texto informa
em frases como “George vivia sozinho em um apartamento” e “você é um homem velho, George
Nada”. Nada então inicia uma corrida contra o tempo para libertar o resto da humanidade. O
filme Eles Vivem, por sua vez, é uma crítica à política neoliberal da era Reagan. O protagonista
Nada é um trabalhador braçal – ao contrário do Nada literário, o personagem fílmico é um sujeito
de classe baixa e vida sofrida – que encontra óculos escuros aparentemente comuns. Ao usá-los
consegue enxergar coisas que o resto do mundo não enxerga: alienígenas disfarçados de seres
humanos, e mensagens subliminares em outdoors e comerciais de TV. As mensagens que Nada
vê nas ruas são de cunho fortemente consumista e conformista. Um ponto crucial do texto
literário e do texto fílmico é o momento em que o protagonista Nada descobre a existência dos
extraterrestres.
Na seqüência literária o texto inicia com um hipnotizador em uma casa de espetáculo.
Depois de hipnotizar a platéia, como parte integrante do espetáculo, grita “acordem”, a narrativa
não informa o que ocorreu durante a hipnose da platéia. Na saída do teatro, George Nada, um dos
espectadores, percebe uma série de criaturas não-humanas caminhando por entre os humanos nas
ruas. Nada compreende imediatamente que a humanidade, de alguma forma, fora toda
hipnotizada por alienígenas e o hipnotizador, inadvertidamente, havia quebrado o efeito da
hipnose em Nada. Nada caminha pelas ruas e, nos outdoors dos prédios, enxerga a imagem dos
alienígenas e frases abaixo onde lê “Trabalhe 8 horas por dia, Durma 8 horas por noite”, “Case-se
e tenha filhos”. George Nada olha para a TV na vitrine de uma loja e enxerga na tela um dos
alienígenas dizer constantemente as frases “Obedeçam ao governo”, “Nós somos o governo”,
“Nós somos seus amigos”, “Obedeçam!”.
Na seqüência fílmica o protagonista Nada está escondido em um beco com uma caixa em
suas mãos. Na noite anterior, o acampamento de sem-tetos onde Nada vivia fora invadido pela
polícia. Nada conseguiu escapar e, durante a fuga, roubara uma caixa – acreditando ter algo de
valor – de uma igreja local que prestava caridade aos necessitados do acampamento. Nada se
refugia em beco no centro da cidade e abre a caixa. Nada se frustra ao encontrar apenas um
21
punhado de óculos escuros. Nada esconde a caixa em uma lata de lixo e sai às ruas com um dos
óculos nas mãos. È dia claro, Nada coloca os óculos e enxerga o chão em preto-e-branco. Ele tira
os óculos, enxerga novamente o mundo a cores, olha para um outdoor de uma propaganda de
computadores, coloca os óculos novamente e enxerga no lugar da propaganda uma tela branca
com a frase “Obedeça” em letras pretas. Em outro outdoor, há uma foto de uma bela mulher de
biquini em uma praia com os dizeres “Vá ao caribe”, Nada coloca os óculos e enxerga a frase
“Case-se e tenha filhos”, no lugar da propaganda da praia. O mesmo ocorre com um cartaz de
“liquidação de estoque” em uma loja de roupas, Nada coloca os óculos e enxerga as frases
“Consuma”. Na placa onde se encontra o nome da loja ele lê a frase “É proibido pensar
diferente”. Nada olha para o horizonte e enxerga nos outdoors de toda a cidade frases como “Veja
TV, conforme-se, compre, trabalhe 8 horas, durma 8 horas”. Ao passar em frente a uma banca de
revistas, Nada enxerga capas em branco com as frases “Não pense”, “Submeta-se”, “Assista TV”,
entre outras. Nada pega uma revista e abre, em todas só há páginas brancas com frases como
“Não questione a autoridade” e “Não use a imaginação”.
Um homem de terno e gravata, aparentando riqueza, se aproxima da banca para comprar
um jornal. Nada olha para ele e enxerga uma criatura monstruosa, enquanto este paga o jornaleiro
e se dirige ao seu carro de luxo. O jornaleiro pergunta rudemente a Nada se ele vai comprar algo,
Nada tira os óculos, olha para o dinheiro na mão do homem, coloca os óculos novamente e
enxerga a frase “Este é seu Deus” escrito nos dólares.
Tanto no texto literário como no fílmico, o protagonista toma consciência de uma outra
realidade. Seja ao despertar de uma hipnose ou ao usar óculos escuros, em ambos os textos o
protagonista enxerga em outdoors mensagens conformistas do tipo “Case-se e tenha filhos”,
“Obedeça”, “Não questione a autoridade”, “Consuma”. O texto literário, em momento algum, faz
menção a qual seria o conteúdo dos outdoors para os humanos que estão sob o efeito da hipnose,
o leitor só enxerga aquilo que o protagonista vê, ao contrário do filme onde o protagonista
enxerga tanto a propaganda de produtos de consumo quanto as mensagens subliminares.
Já dissemos antes que em ambos os textos que as mensagens subliminares contidas em
cartazes e outdoors nas ruas são utilizadas os extraterrestres para exercer o seu domínio sobre a
raça humana, sem que esta perceba. A diferença está no fato de que enquanto no texto de Ray
Nelson os alienígenas são apenas alienígenas – ou melhor dizendo, o conto é uma variação do
tema do invasor alienígena infiltrado na sociedade, arquitetando sorrateiramente a dominação da
22
mesma – ou seja, o texto de Nelson segue a risca a cartilha inaugurada pela ficção-científica dos
anos 50 em filmes como Vampiros de Almas, sendo quase uma paráfrase deste, no filme de
Carpenter, os alienígenas são uma alegoria aos neoliberais da era Reagan. No texto literário, os
alienígenas estão em todas as camadas da sociedade (de mendigos a policiais) enquanto que os
alienígenas do texto fílmico são retratados como membros da elite burguesa americana. Nesse
caso, os alienígenas não representam a ameaça à sociedade e seus valores, como ocorre no conto
de Nelson e nos filmes da década de 50. Em Eles Vivem os alienígenas são a sociedade e seus
valores. O alvo da leitura de Carpenter não é o conto de Nelson em si, mas a intertextualidade
que deu origem a este, ou seja, a ficção-científica xenofóbica e maniqueísta que atribui à figura
do alienígena tudo que vá contra os valores da sociedade.
Portanto, a diferença básica entre os textos está no tratamento dado à motivação das
criaturas, que muda drasticamente do primeiro para o segundo. Por exemplo, em determinado
momento do conto o protagonista George Nada descobre a intenção dos alienígenas. Vejamos:
George foi ao apartamento vizinho. Ao bater a porta, uma das criaturas perguntou: "Quem é?” [...] Ele a degolou por trás e começou a vasculhar o apartamento. George encontrou esqueletos e caveiras humanas, e uma mão humana semi-comida27 (grifos meus)
George descobre que os extraterrestres são uma espécie predadora da raça humana, que se
encontra um degrau abaixo da cadeia alimentar em relação aos alienígenas, em um plot típico de
uma aventura escapista do gênero. Vejamos as motivações dos extraterrestres do texto fílmico no
diálogo abaixo entre os personagens Frank e Gilbert, extraído do filme:
Frank: O que eles [os alienígenas] querem?Gilbert: Eles são empreendedores. Para eles a terra é apenas um planeta em desenvolvimento. O terceiro mundo deles. (grifos meus)
Aqui as intenções dos extraterrestres ganham um contorno mais elaborado em relação ao
texto original. Voltando um pouco à questão das mensagens subliminares vamos analisar uma em
específico: “Trabalhe 8 horas por dia, Durma 8 horas por noite”. Isolada de seu contexto, a frase
pode ser entendida de várias formas. Aproveitando a temática do filme vamos dar o seguinte
exemplo no que se refere à frase “Trabalhe 8 horas por dia, Durma 8 horas por noite”. Um
protestante a veria de forma positiva enquanto que um marxista a veria de forma negativa. O
primeiro a veria como representante dos valores da ética protestante e o segundo provavelmente a
27No original “George went next door.When he knocked, one of the snake-things answered, "Who is it?"[..]He slit its throat from behind, then searched the apartment.He found human bones and skulls, a half-eaten hand.” http://www.geocities.com/Hollywood/Academy/9412/8oclock.html acessado dia 24 de agosto de 2007(tradução minha)
23
interpretaria como um exemplo da exploração da mais-valia do proletário. Como Paulo Rogério
Stella observa
a palavra é produto ideológico vivo, funcionando em qualquer situação social, tornando-se signo ideológico porque acumula as entonações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais.28
No texto literário as frases são um mecanismo de controle dos alienígenas para seus
devidos fins gastronômicos, enquanto que no texto fílmico as mesmas frases adquirem um
sentido de crítica social. Aqui já encontramos a “mudança de tom” realizada pelo leitor-cineasta
John Carpenter. Este fenômeno ocorre porque o sentido de um enunciado depende do contexto
em que é produzido. Beth Brait e Rosineide de Melo escrevem:
Uma mesma frase realiza-se em um numero infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que esses são únicos, ganhará sentido diferente nessas diferentes realizações “enunciativas”. 29
Os trechos citados acima fazem parte de um estudo sobre Mikhail Bakhtin e seus
conceitos de enunciado/enunciação. As autoras comentam:
Bakhtin e seu círculo, à medida que elaboram uma teoria enunciativo-discursiva da linguagem, propõem, em diferentes momentos, reflexões acerca de enunciado/enunciação, de sua estreita vinculação com signo ideológico, palavra, comunicação, interação, gêneros discursivos, texto, tema e significação, discurso, discurso verbal, polifonia, dialogismo, ato/atividade/evento e demais elementos constitutivos do processo enunciativo-discursivo. 30
Para compreendermos melhor os conceitos de Bakhtin as autoras utilizam o seguinte
exemplo: apresentam ao leitor a frase “por que (não) ensinar gramática na escola?” e iniciam um
processo de construção de sentido da frase. As autoras primeiramente apontam para a
ambigüidade que o parênteses na palavra “não” provoca, em seguida revelam que a frase é na
verdade o título de um livro e que seu autor é o renomado lingüista Sírio Possenti, ou seja, o
sentido da frase do livro vai sendo modificado conforme as circunstâncias em sua volta, Bakhtin
chama este fenômeno de “horizonte espacial comum dos interlocutores”. É por esta razão que
pode se dizer que as mensagens subliminares (“case-se e tenha filhos”, “obedeça”, “trabalhe”,
etc.) no filme adquirem um significado político que o conto – mesmo apresentando frases iguais
as do filme – não possui. A frase é a mesma, mas o local de enunciação é diferente. Isto ocorre
“porque toda a palavra possui traços mais ou menos estáveis de significação, dando-lhe a
2828 STELLA, Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth (org.) Bakhtin Conceitos – Chave. Ed. Contexto. 2005. P. 178.29 BRAIT, Beth. MELO Rosineide de. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In: BRAIT, Beth (org.) Bakhtin Conceitos – Chave. Ed. Contexto. 2005. P. 63.30 Ibid., p. 65.
24
possibilidade de ser utilizada e entendida em diferentes contextos”. 31 Ao mesmo tempo, o
contexto atribui sentidos diferentes para as palavras.
As reflexões de Bakhtin são de grande utilidade para este estudo. O sentido do enunciado
resulta fortemente de seu momento de produção e a transformação de sentido do mesmo depende
do diálogo que este estabelece com momentos anteriores se projetando para o futuro. Alargando
tal reflexão vamos então situar as circunstâncias históricas envolvendo a criação das obras
literária e fílmica.
O conto “Eight O'Clock in the Morning” foi publicado pela primeira vez na revista The
Magazine of Fantasy and Science Fiction em novembro do ano de 1963. A revista era dedicada a
narrativas de gênero como ficção-científica, aventura e suspense visando atingir o consumidor
médio em busca de um entretenimento rápido e sem grandes pretensões artísticas. “Eight O’clock
in the Morning” é o típico produto de literatura de massa. O conto
adequa-se muito bem às formas de romance de ação cuja característica principal é a linearidade. A narrativa mantém uma dinâmica onde os aspectos sociais e psicológicos das personagens são deixados de lado ou relegados a um plano secundário. 32
Portanto, a “ausência da tensão verbal, a redundância temática, a linearidade do discurso,” 33 colocam o conto de Nelson na tradição escapista das publicações “pulp”.
Por outro lado, o filme Eles Vivem foi lançado nos cinemas norte-americanos em
novembro do ano de 1988. Como já dissemos, na época os Estados Unidos vivia o auge de uma
crise de inflação e desemprego elevados que se iniciara no começo da década. Para reverter à
situação econômica o presidente Ronald Reagan – que exerceu dois mandatos consecutivos de
1981 a 1989 – anunciou seu plano político. Entre as ações do novo governo Reagan “reduziu os
impostos em favor dos ricos, elevou as taxas de juros e aplastou a única greve séria de sua
gestão” 34. A política de Reagan, também conhecida como Reaganomics, era de cunho
assumidamente neoliberal e teve efeitos nefastos na vida da população, principalmente nas
camadas pobres da sociedade estadunidense. A Reaganomics é lembrada hoje pelo desprezo aos
pobres e pelo favorecimento aos ricos. Foi durante esse momento sócio-econômico da história
norte-americana que o cineasta John Carpenter realizou sua leitura do conto de Ray Nelson.
31 STELLA, Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth (org.) Bakhtin Conceitos – Chave. Ed. Contexto. 2005, p. 186.32 CALDAS, Waldenyr, A literatura da cultura de massa: uma análise sociológica. São Paulo: Musa Editora, 2000, p.40.33 Ibid., p.40.34 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 09.
25
Um aspecto que chama a atenção no filme Eles Vivem são seus efeitos especiais mal-
feitos. Os espectadores não familiarizados com a ficção-científica cinematográfica irão considerar
isso um desleixo da produção. Já os espectadores a par com o gênero irão fazer a seguinte
constatação: John Carpenter reproduz em Eles Vivem a estética dos filmes B de ficção-científica
nos anos 50. Alienígenas de borracha, aparelhos futuristas cheios de luzinhas, discos voadores em
formato de calotas de automóveis, toda a parafernália visual dos filmes dos anos 50 está presente.
Em um toque de mestre do cineasta, as cenas onde o personagem Nada enxerga os alienígenas
com os óculos especiais foram filmadas em preto e branco, completando o clima saudosista de
Eles Vivem, uma vez que a maioria dos filmes dessa época eram feitos em preto e branco.
Não se trata, portanto, de uma mera referência vazia e sim de um jogo intertextual. O que
ocorre em Eles Vivem é um jogo com o sentido dos filmes da década de 50. O jornalista José
Geraldo Couto, citado por Bruno C. Martino em seu artigo sobre o filme sintetiza bem essa
questão:
Se naqueles clássicos B de ficção científica os invasores eram perigosos porque vinham destruir o american way of life [termo usado para designar o ideal de vida capitalista norte- americano] neste filme são eles que patrocinam e sustentam o mesmo american way of life, apresentado como o verdadeiro mal a ser combatido. 35
E conclui: “Enquanto os velhos filmes de marcianos ostentavam um viés nitidamente
anticomunista, em Eles Vivem são aqueles que combatem os invasores que são perseguidos como
comunistas.” 36 Ao subverter o discurso ideológico por trás da estética dos filmes da década de
50, e ao criticar o papel do cinema dessa época como agente ideológico e formador de opinião,
John Carpenter acaba fazendo assim uma espécie de metalinguagem, pois seu filme, de certa
forma, fala sobre todo um gênero cinematográfico. O alienígena na ficção-científica
tradicionalmente é visto como uma ameaça à sociedade, mas em Eles Vivem o alienígena é a
sociedade e tudo aquilo que ela representa. È claro que, para perceber esses detalhes, o filme
“confia no saber extratextual do espectador” 37, ou seja, um conhecimento de textos anteriores do
gênero narrativo em questão se faz necessário para compreensão do discurso crítico que o filme
apresenta.
Portanto temos em Eles Vivem uma subversão do discurso original. A paródia comumente
35 http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/elesvivem.html acessado 20 de agosto de 200736 Ibid.37 Ibid., p. 132.3638SANT`ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase e Cia.1987, p. 41.37
26
é associada ao deboche e ao humor. Mas antes de tudo a paródia é uma subversão, é uma forma
de mostrar as contradições de um determinado discurso exagerando pontos específicos do mesmo
e subvertendo o seu sentido. A paródia é uma
re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. È um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica. 38
O que diferencia Eles Vivem das paródias corriqueiras, ou seja, aquelas em que um texto
parodia outro, é que o alvo de Carpenter não é o texto de Ray Nelson em si, mas o conjunto de
filmes de época nos quais o alienígena é visto como a personificação de tudo que a sociedade
condena. Explicando melhor, uma simples comparação do texto literário com o texto fílmico não
revelaria nenhuma intenção paródica do segundo texto em relação ao primeiro. Eles Vivem é uma
paródia do “fora do texto” do conto de Ray Nelson, é uma espécie de paródia não do texto
literário em si, mas da intertextualidade, da “carga genética” do mesmo, ou seja, dos textos, tanto
literários quanto fílmicos, que deram origem ao texto de Ray Nelson e ao sistema a qual o texto
pertence. Um texto deve ser pensado tanto como sistema como parte de um subsistema. Eduardo
de Assis Duarte afirma que
um texto é um sistema formado por vários subsistemas - seus componentes internos. Entretanto este texto integra sistemas maiores e passa a ser ele próprio um subsistema dentro do sistema formado pelas obras de um autor ou de uma determinada tendência estética. Dessa forma, os textos se aproximam e se comunicam numa solidariedade sincrônica, orgânica e organizacional. 39
Considerando que todo texto faz parte de um sistema, o conto de Ray Nelson nada mais é
que um subsistema, uma parte de um sistema maior com a qual mantém um diálogo. É esse
diálogo que o cineasta John Carpenter “escuta” e incorpora a sua leitura fílmica. Eles Vivem é não
a simples leitura de um conto e sim a complexa leitura de todo um sistema textual onde este
conto está inserido. Enfim, a leitura de Carpenter diferencia-se por introduzir elementos políticos
inexistentes no conto.
Para compreendermos melhor o papel da paródia em Eles Vivem, é preciso salientar a
diferença entre a paródia popular e a paródia arte:
A paródia popular geralmente é feita por apreço pelos textos-alvos, em vez de uma atitude de autoconsciência estética ou auto-reflexão. A paródia popular, diferente da paródia arte, não é basicamente crítica de seus alvos - pelos menos, não no sentido de
38
39 DUARTE, Eduardo de Assis. Percurso da Intertextualidade. In: Associação Brasileira de Literatura Comparada. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Anais do... Porto Alegre, ABRALIC. 1988, p.683. 40 Ibid., p. 105.
27
“interrogar” seus precedentes. 40
Em suma, temos dois tipos de paródia, aquela que estima o texto-alvo e aquela que o
critica. Eles Vivem, portanto, se encaixa na categoria de paródia arte, ou seja, aquela que visa
ridicularizar e criticar seu texto-alvo, ou nesse caso, sistema-alvo, visto que o filme subverte as
convenções do gênero ficção-científica.
Deborah Knight cunhou o termo referências extrínsecas para definir a referência que “se
origina e aponta para algo fora da narrativa” 41. A autora também afirma que um texto parodístico
“não precisa parodiar obra de arte alguma: ele pode facilmente parodiar as convenções
reconhecíveis de um gênero narrativo”. 42 Foi exatamente isso o que John Carpenter fez. Pode-se
até parafrasear a autora e dizer que o que o cineasta fez com Eles Vivem foi uma paródia
extrínseca, ou seja, Carpenter se apropriou de elementos externos da narrativa literária e os trouxe
a narrativa fílmica, parodiando o sistema textual da qual estes elementos fazem parte.
3.2 CINEMA, LITERATURA E IDEOLOGIA
O discurso crítico de Eles Vivem começa nos protagonistas do filme, praticamente uma
antítese do típico herói do gênero ficção-científica. Bruno C. Martino, comenta que ao contrário
dos filmes clássicos do gênero onde “os heróis sempre eram cidadãos de classe média
politicamente corretos” 43, em Eles Vivem os heróis
são trabalhadores braçais que convivem com a falta de moradia e de emprego. E os heróis interpretados por Roddy Piper e Keith David nem são bonitos ou elegantes, o que os faz parecer ainda mais com pessoas “normais” do dia-a-dia. 44
Ao contrário do típico herói do gênero que luta para defender o sistema, em Eles Vivem o
herói luta para destruí-lo, uma vez que este sistema prejudica tanto a ele quanto a seus
semelhantes. Se a ficção-científica tradicional tinha um discurso claramente conservador,
40
41 KNIGHT, Deborah. Paródia Popular: Os Simpsons e o filme policial. In: SKOBLE, Aeon J. CONRAD, Mark T. IRWIN, William. (org.) Os Simpsons e a Filosofia São Paulo: Ed. Madras. 2002, p. 97.42 Ibid., p.100.43 http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/elesvivem.html acessado 20 de agosto de 2007.44 Ibid.44
28
Carpenter, por sua vez não cai no discurso esquerdista e evita assim cair no mero panfletarismo.
Eles Vivem foge desse erro primário justamente dando à voz do outro a chance de se
expressar. As motivações dos alienígenas são expressas em várias passagens do filme. Quando
Nada descobre a presença alienígena ele é abordado por dois policiais e encurralado em um beco.
Os policiais são alienígenas e oferecem a Nada a oportunidade de se juntar à causa deles em troca
de vantagens materiais. Um dos policiais diz: “você descobriu algo que não devia, talvez possa
tirar proveito disso”. Aqui está uma importante diferença entre os alienígenas da década de 50 e
os alienígenas de Eles Vivem: no primeiro caso os humanos que tivessem o azar de cruzar com
alienígenas ou eram mortos ou tinham suas personalidades apagadas/substituídas, em Eles Vivem
os humanos têm uma opção. Os alienígenas de Eles Vivem não matam ou “substituem” pessoas
por um simples desejo maquialévico, eles utilizam a retórica da ideologia para seduzir os
humanos para que esses se identifiquem com o sistema dominante – que é o dos alienígenas.
Os personagens de Drifter e Holly são outro exemplo. O primeiro é um mendigo
recrutado pelos alienígenas para trabalhar para eles em troca de riquezas materiais e a segunda é
o par romântico do protagonista Nada, capaz de traí-lo motivada pela sedução alienígena. Em
uma cena onde Drifter é interrogado sobre os motivos que o levaram a se unir aos extraterrestres,
o personagem dá uma resposta sintomática: “Se ajudarmos eles [os alienígenas], eles nos ajudam
a ganhar dinheiro. Todo mundo quer levar uma vida boa [...] Nós nos vendemos todos os dias!”
Drifter fala em nome de todos aqueles que partilham de sua visão ideológica, alienígenas ou não,
ao contrário da ficção-científica tradicional onde os valores do sistema eram ratificados, a
estratégia em Eles Vivem é colocar o espectador em conflito com seus valores. O senso-comum é
questionado, o público experimenta uma sensação de estranhamento kafkiana, onde verdades
absolutas desaparecem, dando lugar a incertezas e inseguranças.
O filme, ao invés de agraciar o público com um final feliz onde os alienígenas/capitalistas
são derrotados e a revolução se dará, encerra sua narrativa bruscamente. O protagonista Nada
destrói a antena que mantém a humanidade sob efeito de hipnose revelando a existência dos
extraterrestres opressores das massas. Todos os humanos agora vêem os seus opressores
desmascarados perante eles. O que acontecerá a partir disso o cineasta não nos revela. O close do
rosto de uma mulher humana na cama com um alienígena, seu espanto ao descobrir a verdadeira
identidade de seu amante e a face confusa deste, alheio ao fato de que sua identidade foi revelada,
é uma das últimas imagens do filme. O filme não mostra uma revolução de classes, solução fácil
29
que levaria o filme à armadilha do discurso panfletarista. Discurso que seria análogo àquele da
ficção-científica conservadora dos anos 50 que o filme critica. Eles Vivem se encerra com uma
dúvida no ar, não se sabe o que acontecerá com aquele mundo a partir das cenas finais. Esse
destino incerto é simbolizado pela figura dos amantes na cama, ambos perplexos e paralisados
pela nova situação que se apresenta perante eles. A análise de Bruno Andrade sobre a obra de
Carpenter descreve bem a questão estético-filosófica que interessa ao cineasta:
Existe uma certa imagem que persiste na obra de John Carpenter: a do indivíduo fitando o horizonte, esperando um futuro que não se revela; um futuro que, envolto nas sombras, traz apenas a incerteza de algo que está por vir... e não se sabe exatamente o que é.45
John Carpenter nega ao espectador uma conclusão. Sabemos que os eventos daquele
mundo continuarão a se desenrolar, mas Carpenter nos recusa o acesso, deixando o que se
sucederá para imaginação de cada espectador. Não sabemos se as coisas no universo fílmico de
Eles Vivem irão melhorar ou piorar. A negação das imagens por vir revela toda a complexidade
da realidade, complexidade que está acima da simplicidade dualista direita versus esquerda. Pois
nem
a trivialidade de direita nem a de esquerda conseguem apreender natureza contraditória da realidade. Mas tanto uma quanto a outra fazem parte das contradições entre os interesses de classe. 46
Voltando ao conto de Ray Nelson, esse por sua vez poderia, a princípio, ser classificado
como puro entretenimento, mas entretanto
arte e ideologia não são elementos excludentes. Não há arte sem ideologia nem ideologia sem arte; não há obra de arte que não seja ideológica e não há ideologia que não possa ser usada na produção artística. 47
“Eight O'Clock in the Morning” tampouco é um texto simplesmente lúdico, cuja única
intenção fosse entretenimento do leitor. O autor que se propõe a apenas entreter seu leitor sempre
faz parte de um sistema. Walter Benjamin, em seu ensaio “O Autor como Produtor”, trata do
papel do escritor na sociedade e afirma que
a situação social o força [ao escritor] a decidir a favor de que causa colocará sua
45 http://www.contracampo.com.br/35/frames.htm acessado 27 de agosto de 200746 KOTHE, Flavio R. O herói, São Paulo : Ed. Àtica,1987, p.19.
4747 Ibid., p.1848 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 60.49 ZILBERMAN, Regina. Literatura e o Apelo das Massas. In: AVERBUCK, Ligia (org). Literatura em Tempo de Cultura de Massa. Livraria Nobel S.A.1984, p. 12.
30
atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à diversão, não reconhece essa alternativa. [...] ele trabalha a serviço de certos interesses de classe. O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. 48
A partir da assertiva de Benjamin constatamos que uma conseqüência da industrialização
da cultura foi o submetimento da criação artística ao interesses do capitalismo de mercado. A
cultura de mercado leva à criação literária
a necessidade de obedecer a normas socialmente aceitas que facultem a decifração e o consumo de cada texto, qualquer que seja o grau de criatividade ambicionado”49
Ray Nelson se vê obrigado a fazer diversas concessões para satisfazer não só as
convenções de leitura do gênero ficção-científica, ou seja, tudo aquilo que o público já viu antes,
mas quer ver de novo, mas também as exigências mercadológicas de consumo provocadas por
essas próprias convenções. Tais circunstâncias produzem na literatura contemporânea o que Jean-
Marie Goulemont definiu como textos monossêmicos. Embora uma questão interessante a ser
tratada fosse entender como o conto de Ray Nelson foi interpretado pelo público da época, e qual
sentido produziu-se para o texto, é difícil determinar se o público leitor daquele momento teria
lido o conto através de uma leitura de cunho político e crítica social. Mesmo com todo um
contexto histórico de revoluções de costumes e tensões sociais, no início dos anos 60, apoiando
essa hipótese. Para nosso trabalho, vamos considerar que, se Ray Nelson teve de fato intenções
de crítica social em seu texto, estas foram, no mínimo, potencializadas pela leitura fílmica de
Carpenter.
Mas voltando a questão dos textos monossêmicos, esse é um tipo específico de texto que
gera pouco ou até mesmo nenhum espaço para outras possibilidades de interpretação, ou seja,
o texto contemporâneo articula sua produção a partir de seu consumo [...], sua escrita a partir de sua leitura, por meio de uma comunidade de códigos narrativos e pelo emprego no processo da estrita de fatores que intervêm na construção do sentido da leitura50
Jean-Marie Goulemont cita como exemplo os textos pornográficos e os define como
textos onde “um [único] tipo de leitura é imposto” 51 nos quais o leitor está presente em posição
de observador passivo. O texto monossêmico “possui uma estratégia eficaz e que é utilizada em
um único sentido” 52. No texto monossêmico a leitura rege a escrita, o que ocorre é “o arranjo de
48
49
50 GOULEMONT, Jean Marie. Da leitura como Produção de Sentido. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade. 1996, p. 1151 Ibid., p.116.52 Ibid., p.116.
31
uma posição de leitura a partir da qual organiza-se a produção de sentido”53. É interessante
analisar a linearidade de leitura de Eight O´Clock in the Morning, aproximando-o da discussão
feita por Umberto Eco em Apocalípticos & Integrados. Eco cita O Leopardo da Malásia do
escritor italiano Emílio Salgari. O trecho do livro de Salgari escolhido por Eco para sua análise
sobre o kitsch descreve a heroína como “uma fronte de incomparável pureza, sob a qual
ressaltavam duas sobrancelhas levemente arqueadas que quase se tocavam.” 54. De forma bem-
humorada Eco replica que a heroína de Salgari é “tão genéricamente apetecível e destituída de
personalidade que suas características adaptar-se-iam a qualquer menina.” 55 Ou seja, a descrição
da heroína de Salgari é a mais batida possível, é uma personagem que cai no lugar comum.
Movimento análogo segue o texto de Ray Nelson onde, a exemplo de O Leopardo da
Malásia, também confecciona um efeito estético pré-estabelecido, diz ao leitor o que sentir e
como sentir, visando conduzir o gozo estético de forma unilateral e genérica. Em determinado
trecho o narrador descreve o horror do protagonista Nada ao enxergar os alienígenas, com a frase
“o aspecto réptil esverdeado[...] os olhos múltiplos dos governantes do planeta”. Aqui vemos o
apelo kitsch do conto, a descrição usada pelo autor serve tanto para os alienígenas de seu texto
como para os alienígenas de qualquer texto (literário ou fílmico) de ficção-científica. Nelson se
apropria do recurso estilístico do “bug-eye monster” surgido nas páginas das revistas “pulp” das
décadas de 20/30 e consagrado nos filmes B da década de 50. O “bug-eye monster” (ou big bug)
é nome dado às estórias de ficção-científica onde humanos enfrentam criaturas extraterrestres de
aparência pestilenta, geralmente remetendo a insetos, lagartos ou outro animal peçonhento. Tais
criaturas provocam uma sensação de repulsa no leitor reatualizando-os como o mal, em um efeito
confeccionado de antemão pelas convenções do gênero.
John Carpenter se apropriou do elemento kistch de narrativas de ficção-científica de baixa
qualidade e os utilizou de forma paródica em seu filme. Mesmo um texto monossêmico como
“Eight O'Clock in the Morning” faz parte de uma intertextualidade e produz uma leitura
complexa. Para compreendermos melhor esse movimento de leitura, trazemos aqui as palavras de
Marilena Chauí. A autora escreve que
a indústria cultural vende cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor.
53 Ibid., p.116.54 ECO, Umberto. Apocalípticos & Integrados. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1976, p.119.55 Ibid., p. 119.
55
32
Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, fazê-lo ter informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova. 56
Se a indústria cultural, movida por interesses econômicos, devolve ao espectador aquilo
que ele já sabe, ou seja, o senso-comum, acaba criando os mecanismos que permitem que suas
intenções sejam expostas. Segundo Karl Marx a infra-estrutura é o modo como a base econômica
da sociedade e a relação dos meios de produção se organizam, a infra-estrutura determina a
superestrutura, constituídas por idéias políticas, religiosas, morais, filosóficas, política e artísticas
de uma sociedade. Portanto a visão que temos do mundo seriam reflexos da base econômica de
nossa sociedade. Marx também afirmava que o capitalismo é um sistema cheio de contradições
econômicas internas e que estas contradições são responsáveis pelos conflitos de classe. Pois
bem, se a infra-estrutura é a base econômica da sociedade e esta, no capitalismo, é contraditória
então nada mais natural que essas contradições se reflitam em diversos níveis da superestrutura.
Especificamente naquilo que nos interessa, nas manifestações artísticas. A indústria cultural aqui,
no final das contas, é uma via de duas mãos, pois o jogo intertextual de Eles Vivem é um jogo que
extrapola a mera relação entre os códigos estéticos do texto literário e do texto fílmico, entrando
em terrenos políticos, sociais e ideológicos. A construção da leitura de um texto se dá na
“articulação entre elementos e passagens do texto e esferas fora do âmbito de sua escrita.” 57
CAPÍTULO III
POSSIBILIDADES DE LEITURA OFERECIDAS PELO DESLOCAMENTO NO TEMPO E NO ESPAÇO.
3.1 A LEITURA CRIATIVA
A alegoria é a exposição de um pensamento sob forma figurada. É uma narrativa ficcional
onde há uma representação figurativa que transmite um segundo significado em adição ao literal.
Sobre a definição de alegoria Carlos Ceia comenta:
56 CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000, p. 426.57 BARROS, Diana Luz Pessoa de. FIORIN, José Luiz. (org) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade:Em torno de bakhtin. Sao paulo : Ed Univ São Paulo,2003, p. 89.
33
Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem afinidades com a parábola (v.) e a fábula (v.). Seja o exemplo seguinte de uma fábula de Esopo: “O leão e a rã”: Certa vez, um leão, ao passar perto de um pântano, ouviu uma rã coxear muito alto e com muita força. Dirigiu-se então na direcção do som, supondo que ia encontrar um animal grande e possante, correspondente ao barulho que fazia. Por isso, ao avançar, nem reparou na pequena rã e pôs-lhe a pata em cima. “Vê lá onde pões os pés!”, gritou a rã. O leão olhou, admirado, e disse: “Se és assim tão pequena, porque é que fazes tanto barulho?” Se substituirmos a rã por “o Orgulho” e o leão por “o Poder”, transformamos a fábula numa alegoria.58
Em Introdução a Literatura Fantástica Tzvetan Todorov afirma que “a fábula é o gênero
que mais se aproxima da alegoria pura” 59 pelo motivo da verossimilhança, ou seja, quando lemos
uma estória com leões e sapos falantes sabemos que existe um segundo significado além do
primeiro e que o que estamos lendo não deve ser entendido literalmente, pois o leitor sabe que no
mundo real leões e sapos não falam. Por outro lado existem textos em que a situação não é tão
simples. Vamos pegar alguns exemplos para explorar essa questão.
“Um Som de Trovão” (1952), de Ray Bradbury, começa no ano 2055, nesse mundo a
tecnologia de viagem no tempo é uma realidade. Eckels, um dos protagonistas, procura uma
companhia que organiza safáris ao passado para caçar dinossauros. O público-alvo da empresa
são cidadãos comuns dispostos a pagar por emoções fortes. Durante os preparativos do safári,
somos informados de que uma eleição para presidente dos Estados Unidos acabara de ocorrer e
que candidato democrata, o favorito Keith, ganhou. Seu oponente era o candidato reacionário de
baixa popularidade Deutscher.
Eckels é apresentado ao guia do Safári, Travis, e colocado a par das regras de viagem no
tempo. Os viajantes do tempo só podem atirar no dinossauro marcado com tinta vermelha – pois
este morrerá alguns minutos depois da chegada dos viajantes, vítima da queda de uma árvore – e
sob hipótese alguma devem sair da trilha antigravitacional que flutua sobre a floresta e os separa
de qualquer contato físico com aquele mundo pré-histórico. Essas precauções visam evitar
alterações no passado. Travis explica que a menor alteração no passado pode provocar uma
reação em cadeia que poderá alterar toda a história da humanidade.
Ao chegar ao seu destino, o período cretáceo, e encontrar o dinossauro marcado, um
5858 http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/alegoria.htm acessado dia 27 de agosto de 200759 TODODOV, Tzevetan, Introdução a Literatura Fantástica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1975, p. 71.
59
34
Tyrannosaurus Rex, Eckels entra em pânico ao ver a criatura e foge, de perto dos outros. O
dinossauro é morto por Travis e em seguida cai a árvore que teria matado o animal na ordem
natural dos acontecimentos. Dentro da máquina do tempo Travis indaga Eckels sobre onde ele
estava durante o tiroteio. Eckels responde que correu de volta para a máquina do tempo,
conforme havia sido instruído caso entrasse em pânico. Travis não acredita em Eckels e ameaça
matá-lo caso ele tenha feito algo que venha a comprometer o futuro. De volta a 2055, Eckels
percebe que há algo de diferente.
Eckels estava farejando o ar, e havia algo nele, [...] E havia uma sensação. [...] Havia um mundo inteiro de ruas e pessoas. E não havia modo de saber em que espécie de mundo ele se tinha transformado. 60
Travis logo após a chegada descobre o que mudou. O candidato fascista Deutscher não só
ganhara do democrata Keith como se transformara no favorito da população, cuja mentalidade
tomara rumos reacionários. Eckels havia sim saído da trilha antigravitacional e corrido em
direção à floresta, e ao fazê-lo pisara numa borboleta – que encontra esmagada em sua bota –
alterando toda a história da humanidade. Travis, ao compreender o que ocorrera, mata Eckels
com seu rifle.
Sobre “Um Som de Trovão” Ciro Flamarion Cardoso afirma que
não somente a política é tema muito freqüentado em ficção científica – que, como cultura popular ou de massa que é, está sempre atenta aos medos e às aspirações predominantes em cada época e trata de projetá-los num futuro que é metafórico de certos aspectos do presente – [...] O senador McCarthy, cujo auge durou de 1952 a 1954 [...], foi o seu elemento mais famoso e visível. [...] liberais como Bradbury temiam ver o senador candidatar-se com sucesso à Presidência da República (medo que, na década seguinte, se transferiu para outro ultra conservador, Barry Goldwater, que se tornara senador em 1952). 61
Temos, portanto, em “Um Som de Trovão” uma alegoria aos perigos da ascensão política
do senador Joseph McCarthy. Entretanto, apesar de seu viés alegórico, “Um Som de Trovão”
preserva seu sentido literal. Tzvetan Todorov observa que o leitor “tem perfeitamente o direito de
não se preocupar com o sentido alegórico indicado pelo autor e de ler o texto nele descobrindo
outro completamente diferente.” 62. Todorov cita como exemplo o conto “William Wilson”
(1839) de Edgar Alan Poe. Na estória, o protagonista de nome homônimo ao título, um homem
sem moral ou caráter algum, é constantemente perseguido por um duplo que o impede de lograr
êxito em suas vilanices. O desfecho ocorre com a morte do duplo pelas mãos do protagonista.
60 BRADBURY, Ray, Os Frutos Dourados do Sol, São Paulo:Ed. Círculo do Livro. 1987, p. 101.61 www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg17-7.pdf acessado em 25 de agosto de 200762 TODODOV, Tzevetan, Introdução a Literatura Fantástica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1975, p.73.
35
Todorov comenta:
O fim da história nos impele ao sentido alegórico (no caso o duplo seria uma personificação da consciência do protagonista). William Wilson desafia seu duplo e o fere mortalmente, então o outro cambaleando, dirige-lhe a palavra: ”Tu venceste, e eu sucumbo. Mas de hoje em diante estás também morto, – morto para o mundo, para o céu e para a esperança! Em mim tu existias –, e vê em minha morte, vê por esta imagem que é a tua, como assassinaste radicalmente a ti próprio!” (p.60). Essas palavras parecem explicitar plenamente a alegoria; contudo, permanecem significativas e pertinentes ao nível literal.63
Seguindo um caminho de leitura análogo ao de “William Wilson”, o conto de Bradbury
pode também ser lido de forma literal, pois trata a idéia de viagem no tempo como uma
possibilidade científica, ou seja, é possível que em um futuro próximo viajar no tempo seja uma
realidade e que conseqüências, tanto boas quanto ruins, advenham disso. Especular sobre “as
linhas de tendências do mundo real” 64 é uma das características da ficção-científica, pois o
gênero “assume sempre a forma de uma antecipação, e a antecipação assume a forma de uma
conjectura formulada a partir de linhas de tendências do mundo real” 65. Em outras palavras, o
escritor de ficção-científica escreve a partir de possibilidades científicas factíveis. Por esta razão
o conto de Bradbury pode ter um sentido alegórico, mas ao contrário do que ocorre na fábula, isto
não anula seu sentido literal.
Concluindo, temos dois fatores que permitem identificar um texto como alegórico. A
verossimilhança do texto, no caso da fábula e de “William Wilson”, onde no primeiro duvidamos
da existência literal de bichos falantes e no segundo duvidamos da existência literal de um duplo.
O que diferencia William Wilson da fábula é o fato de que por mais que o leitor duvide da
possibilidade da existência de um duplo, uma vez que a estória é narrada em primeira pessoa pelo
próprio William Wilson e este se mostra uma pessoa pouco confiável, ainda assim a ambigüidade
do narrador não permite que a hipótese da existência de um duplo seja descartada.
A posse de um saber extratextual que permita encontrar um outro sentido além do sentido
literal é o segundo fator envolvido pela leitura alegórica. Como foi demonstrado em “Um Som de
Trovão” o conhecimento do contexto político no momento da produção do conto gera a leitura
alegórica do mesmo. O leitor deve possuir um conhecimento “que permita identificar um sentido
abstracto, um sentido mais profundo” 66. Poderá “Um Som de Trovão” ser lido como uma alegoria
63 Ibid., p. 79.64 ECO, Umberto. Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 1989, p. 169.65 Ibid., p.169.66 http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/alegoria.htm acessado dia 27 de agosto de 2007
36
ao macartismo pelo leitor que não possui informações sobre a situação política referida?
Provavelmente não. Um leitor médio dos dias atuais pode perfeitamente ler o conto de Bradbury
como uma alegoria às conturbadas eleições presidenciais de 2000, onde o democrata Al Gore foi
derrotado pelo conservador George W. Bush. Outras leituras alegóricas e não-políticas podem ser
feitas a partir do conto. Pode-se também ler o conto como um alerta ao perigo do mau uso da
tecnologia. O conto ainda pode ser lido como uma crítica a ganância de multinacionais,
representada no conto pela empresa Safári do Tempo, que não hesita em utilizar uma tecnologia
perigosa para fins lucrativos. Ou também pode ser lido como um texto de cunho filosófico sobre
a Teoria do Caos, hipótese criada por físicos e matemáticos que explica o funcionamento de
sistemas complexos e dinâmicos, cuja máxima é: "algo simples como o vôo de uma borboleta
pode causar um tufão do outro lado do mundo”.
O leitor, ao optar por ler determinada obra, conta com uma série de informações
extratextuais que condicionam sua leitura. Portanto ao ler “A Máscara da Morte Rubra” (1842),
também de Edgar Alan Poe, o leitor sabe que se trata de um conto de horror e sua leitura do texto
é direcionada nesse sentido. Mas como o texto literário é “uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante” 67, “A Máscara da
Morte Rubra” representa outro caso interessante de desdobramento de significados que uma
leitura criativa pode gerar. O conto inicia com o narrador falando de um país não especificado
assolado por uma praga conhecida como “Morte Rubra”. A doença tem esse nome por deixar
manchas escarlates em suas vítimas, além de provocar sangramentos por todos os orifícios do
corpo no seu estágio avançado. Em meio a esse caos o príncipe Próspero decide se isolar com os
membros de sua corte em um castelo devidamente protegido por uma muralha alta e forte. O
príncipe trata de providenciar entretenimento e diversão aos seus convidados, com direito a
bailarinos, músicos, atores e bufões. Além de bebidas e provisões alimentícias.
O príncipe e seus convidados passam meses a fio isolados em seu palácio de prazeres
completamente alheios ao que ocorre do lado de fora do castelo. O príncipe então promove um
baile de máscara para seus convidados. O baile corria bem até a presença de um estranho
convidado irromper a paz. O estranho usava uma máscara que imitava “detalhadamente os
sintomas externos da Morte Rubra. Sua vestimenta estava manchada de sangue, [...] estava
6767 ECO, Umberto, A Obra Aberta. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p. 22.
37
coberta pelas assustadoras manchas que caracterizavam o horror escarlate.” 68. O príncipe e seus
convidados se sentem ultrajados com a ousadia da vestimenta do estranho. Em um acesso de fúria
o príncipe avança com uma adaga em direção ao estranho, que o mata. Os demais convidados
ouvem os gritos do príncipe, chegam ao local onde este se encontra e agarram o estranho apenas
para constatarem que não havia ninguém por trás das vestimentas. No mesmo instante os
convidados começam a padecer apresentando os sintomas da “Morte Rubra”.
O conto de Poe é um conto fantástico. Todorov afirma que a hesitação do leitor, e dos
personagens, perante o texto é uma condição fundamental da narrativa fantástica. Hesitação onde
o leitor não sabe se aceita os eventos narrados como verdadeiros, mesmo sendo esses
inexplicáveis, não sabe se procura uma explicação racional para os mesmos. Isto seria o ideal de
texto que o autor define como fantástico “puro”, o texto literário fantástico por excelência. O
conto fantástico visa surpreender o leitor provocando o efeito da hesitação do mesmo perante o
narrado. Novamente, levando-se em conta a ambigüidade da mensagem estética, onde, como já
dissemos, vários significados podem conviver dentro de um mesmo significante, podemos pensar
em Poe de diferentes formas. Uma leitura marxista de Poe revelaria uma crítica à diferença de
classes sociais, pois temos no príncipe Próspero e seus convidados um típico exemplar de
burguesa alienada na relação ao meio e à natureza, e indiferente aos problemas dos menos
privilegiados. Já uma leitura cristã poderia ver no conto uma releitura da passagem bíblica de
Sodoma e Gomorra, cidades de luxúria e prazer destruídas pela ira divina. Uma alegoria aos
perigos de uma vida de prazeres hedonistas. Portanto chegamos à seguinte conclusão, em “A
Máscara da Morte Rubra”: temos um texto que apesar de não explicitar nenhum sentido alegórico
em sua diegese, pode ser lido como tal. O leitor, em última instância, determinará o sentido do
texto.
Um outro exemplo: o romance A Festa de Ivan Ângelo foi lido como uma alegoria a
ditadura militar brasileira por muitos críticos como Flora Sussekind até Renato Franco
demonstrar – a partir dos ensaios de Walter Benjamin – que a estrutura narrativa fragmentada do
livro não visava “driblar” a censura da época e sim desvincular o texto da tradição literária
dominante, há na estrutura narrativa de A Festa um “embate entre a pressão pelo permanente,
pela mudança imperceptível e lenta, e a natureza inapelável da mudança rápida e violenta.” 69 .
68 POE, Edgar Alan. A Carta Roubada e Outras Histórias de Crime e Mistério. Ed. L&M POCKET BOOK, 2003, p. 159.6969 FRANCO, Renato. Itinerário Político do Romance pos-64: a festa. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 148.
38
Franco comenta que “a alegoria não pode ser tomada como mero artifício literário para superar os
impedimentos e proibições da censura” 70 e que A Festa tematiza
as mais variadas questões, como a violência urbana, crises conjugais, adultérios, a vida na redação de jornal ou em cidade provinciana, a miséria, a repressão política, a formação do intelectual ou mesmo das camadas dirigentes da burguesia71
A definição de um texto como um texto alegorico ou não depende muito mais de seus
leitores e do contexto em que estes estão inseridos do que uma “intenção explícita” do texto ou de
seu autor. Mikel Dufrenne elucida a questão ao escrever que a leitura é fortemente criativa por
natureza e o leitor não deve pensar que
o sentido que habita as coisas e as palavras esteja acabado e só espere por um registro passivo; ele nasce no ponto de encontro do homem e do mundo, pois o mundo só se aclara à luz natural do olhar humano ou da práxis humana”72
Mas isso não significa que a leitura seja um ato arbitrário. Como Sandra Nitrini bem
observou as diferentes leituras são validadas pelo contexto histórico-social onde são lidas e que a
“história, na sua transformação incessante, modifica todas as formas de expressão artísticas.” 73
Portanto, se é possível fazer diferentes leituras, independentemente da intenção de seus criadores,
é porque os textos fornecem ao leitor elementos que permitem uma construção/desconstrução de
sentido.
O leitor se apropria de elementos do texto que permitam a ele reorganizar o texto “de
acordo com uma diferente organização de sistemas (entendido aqui como o contexto) “ 74. Trata-
se, no final, de encontrar no texto um novo sentido, “não o sentido, mas apenas uma maneira de
ser desse que nos provocou determinada reação, um modo especial de vê-lo, enxergá-lo, percebê-
lo enfim.” 75
3.2 UMA NOVA LEITURA DE “EIGHT O´CLOCK IN THE MORNING”
Randall Johnson, ao analisar a questão da ideologia na tradução literária-fílmica, recorre a
Umberto Eco para demonstrar como as circunstâncias influem na recepção de um texto. O autor
7070 Ibid., p.149.71 Ibid., p.160.72 DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo. Ed. Perspectiva, 1998, p.175.73 NITRINI, Sandra M. Literatura Comparada. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 54.74 BASSNETT, Susan. Estudos de Tradução. Porto Alegre: EDUFRGS, 2005, p.10.75 MARTINS, Maria Helena. O que é leitura? Ed. Brasiliense. 2004, p. 9.
39
escreve:
Umberto Eco, em A estrutura ausente, escreve que a circunstância, ou o contexto, da transmissão de uma mensagem pode alterar a mensagem de pelo menos três maneiras: 1) pode modificar o sentido da mensagem; 2) pode modificar a função da mensagem; e 3) pode modificar a “quota informativa” da mensagem. Embora a circunstância de uma mensagem seja extra-semiótica, ela é relevante para o estudo semiótico devido ao valor polissêmico da maioria das mensagens. Eco dá o exemplo da palavra “porco” (o exemplo foi um pouco alterado, aqui, para adequar-se ao propósito deste estudo). Esta palavra pode ter sentidos completamente diferentes se empregada numa fazenda em Iowa ou dirigida a um policial por um manifestante numa em Washington contra a guerra do Vietnã. O exemplo é simplificado, mas direto. O destinatário da mensagem é orientado pela circunstância de sua transmissão na escolha de códigos pelos quais ele a interpreta. A circunstância é, pois, uma espécie de fator condicionante que ajuda na seleção de certos significados entre outros significados possíveis. 76
As mensagens subliminares produzidas pelos alienígenas ganham um sentido diferente
nas mãos de John Carpenter. Ao ler o conto dentro de sua visão autoral John Carpenter abriu
novos caminhos de leitura para o texto de Ray Nelson, ou seja, “Eight O'Clock in the Morning”
lido em Eles Vivem adquire um novo sentido. Mas é um equívoco creditar apenas ao filme o
fenômeno de uma nova leitura. Embora Eles Vivem seja o agente catalisador desse processo de
produção de sentido, há uma série de elementos paralelos que contribuem tanto quanto a própria
obra de Carpenter. A história, a evolução do gênero ficção–científica (tanto no cinema como na
literatura) e o próprio filme Eles Vivem, são os principais agentes transformadores do sentido do
texto literário. Vamos discutir brevemente cada um.
Com a mudança de cenário político a partir do fim da guerra fria e com a ascensão do
neoliberalismo. Perry Anderson observa que
a vitória do Ocidente na guerra fria, com o colapso de seu adversário comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específico liderado e simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80.77
Anderson conclui sua reflexão afirmando que
o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.78
Considerando a influência da história na leitura, o Jean- Marie Goulemont relata uma 76 JOHNSON, Randall. Literatura e Cinema. São Paulo: T&Q, 1993, p.34.77 ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 9 & 23.7878 Ibid., pp. 9 & 23.
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curiosa experiência que ocorreu com ele na universidade de Sorbonne. O texto abaixo refere-se
ao romance Educação Sentimental e ilustra bem essa questão:
Em 1967 [...] pedi aos meus estudantes que determinassem as seqüências a partir das quais, eles, rapazes e moças desses anos, ricos em alguma cultura, compunham o sentido do romance. Suas análises orientavam o romance [...] em direção a um único e mesmo efeito: os amores de um adolescente e de uma mulher madura. [...] Em março de 1969, a mesma experiência. Tudo havia mudado depois dos acordos de Grenelle,exceto os programas de licenciatura. Os estudantes compunham o sentido do romance a partir das seqüências políticas. Frederico era denunciado como burguês reacionário e fraco que preferia os charmes da floresta de Fontainebleau em galante companhia a ação revolucionária.79
Goulemont afirma que ler “não é encontrar o sentido desejado pelo autor”80 e que a
produção de sentido é “a revelação de uma das virtualidades significantes do texto”. Goulemont
afirma que “a história [...] orienta mais nossas leituras do que nossas opções políticas”81. Sendo
assim, a história, “na sua transformação incessante, modifica todas as formas de expressão
artísticas”82 e “cada período recria, a seu modo, a unidade dialética entre o antigo e o novo”83.
Sidney Molina demonstra bem essa questão ao discutir as idéias do musicologista Carl Dahlhaus:
Ao analisar e fruir as obras em si, o adepto da “estética total” pode nem querer saber o nome do autor, da obra ou dos músicos: ele ouve a música apenas em busca de uma “experiência sonora”. Segundo essa postura qualquer informações extramusicais fariam o ouvinte “perder” o sentido maior da obra em questão. [...] Dahlhaus mostra, entretanto, que – por mais que alguém se isole do mundo para “experimentar” uma música – a dedicação a uma obra necessariamente acabará por fazer uso do contexto externo. Tal “necessidade de história” ocorre no exato momento de “originalidade” nas obras: aspectos harmônicos, melódicos, rítmicos e timbrísticos interessantes, novos e originais sugerem que – mesmo que o ouvinte não tenha consciência disso – obras diferentes estão sendo comparadas umas com as outras. Ao perceber que uma música explora algo que outra não explora, o ouvinte leva em consideração o contexto histórico.[...] o que significa que quando ouvimos música, não escutamos apenas o “som presente”: estamos comparando esta música específica com outras já ouvidas.84 (grifos meus)
Transpondo as idéias de Dahlhaus para a literatura podemos dizer que da mesma forma
que um ouvinte compara a música que ele escuta no momento com todas que ele escutou
anteriormente, o leitor de um texto literário faz o mesmo em relação ao texto que lê: compara-os
79 GOULEMONT, Jean Marie. Da Leitura como Produção de Sentido. In: CHARTIER, Roger (org). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade. 1996, p. 10880 Ibid., pp. 110&11181 Ibid., pp. 110&11182 NITRINI, Sandra M. Literatura Comparada. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 54.83 Ibid, p. 54.
84 MOLINA, Sidnei. Música e Estética: Critérios Estéticos - Parte II. Guitar Class. São Paulo: Editora Talismã, p. 82. Maio. 2002.
84
41
com os textos que lera antes. As palavras de Frederico Barbosa são apropriadas para esse
momento:
Cada nova leitura ilumina cada leitura anterior. Se faz sentido, joga para trás, se faz sentir, caminho de volta a outra que já foi.
Cada nova leitura abre um caminho vago ao passado. Pede o fluxo a outra atrás, dificulta a que viria depois, demanda mais da que ficou.
Cada nova leitura modifica toda anterior, impossibilita seguir em paz enquanto se processa de todas as outras a releitura anterior.
Cada nova leitura
é t o d a a l e i t u r a
q u e se renovando
a l t e r a n a o u t r a
o que se acumulou85
Estas constatações são de suma importância para discutirmos como “Eight O'Clock in the
Morning” é lido pelo viés da produção literária de ficção-científica atual. O que nos leva à
evolução do gênero a partir de meados dos anos 60. Adriana Amaral comenta que
em meio ao turbilhão de lutas pelos direitos das minorias, pelos direitos civis, pela paz mundial, do meio da efervescência cultural dos 60 com sua experimentação de drogas e o rock n’roll tomando conta das rádios e TVs do mundo surgem novos escritores de FC influenciados por essa atmosfera. [...] O grupo ganhou o rótulo de New Wave of Science Fiction e promoveu uma profunda experimentação de estilo, incorporando as gírias das ruas na linguagem, além de uma profunda impregnação de descrições de sexo e violência. [...] O pessimismo e a paranóia em relação às fronteiras do que é realidade, assim como as relações de poder e os elementos tidos como constitutivos do ser humano reaparecem em forma de estórias violentas e sexualizadas, integradas à tecnologia, não como máquinas para viagens às estrelas, mas inseridos no cotidiano do indivíduo. A máquina e/ou os elementos não-humanos entram novamente em cena, reincorporados como os fantasmas de nosso imaginário. 86
85 Frederico Barbosa. "II, de Certa Biblioteca Pessoal 1991". In: Nada feito nada. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1993, p. 61.8686 AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk. Comunicação e cibercultura . Ed. Porto Alegre: Sulina, 2006, pp.88&90.
42
Mas a New Wave foi apenas o começo de uma nova era para a ficção-científica. A década
de 80 conheceu o nascimento do movimento conhecido como Cyberpunk. Seguindo na mesma
direção da New Wave, o Cyberpunk inovou tanto ao expandir a visão sombria inaugurada pela
New Wave quanto ao incorporar as narrativas do gênero elementos pós-modernos como a cultura
da informática, mais conhecida como cibercultura. Patrícia Austen comenta:
Nos anos 80, alguma coisa de novo aconteceu na ficção-científica. Certamente cansados da ficção clean, asséptica, despolitizada e incapaz de dar conta da complexidade da vida humana em seus diversos aspectos, um grupo de jovens escritores – William Gibson, Bruce Sterling, John Shirley, Lewis Shiner, Rudy Rucker - introduziu, principalmente, uma série de novidades num gênero que parecia, paradoxalmente, preso ao passado. De forma geral, a ficção-científica era esperançosa de que o avanço da tecnologia fosse à chave dos problemas da humanidade. Uma vez descoberto o caminho racional, e se os cálculos estivessem certos, a equação estava resolvida. Não que antes dos cyberpunks não houvesse vozes menos otimistas. Ray Bradbury, J.G Ballard e Philip K. Dick são escritores menos esperançosos do que esses “profetas da ciência”. [...] O exercício cyberpunk por excelência consiste em imaginar o homem, esse elemento que muito pouco tem de científico e racional, e muito de cruel, violento, egoísta e irracional, [...] Em vez de laboratórios de pesquisas, são as ruas, os comportamentos juvenis que servem de referências para construção desse universo. 87
Influenciado tanto pela literatura do gênero como pela turbulência dos anos 60 e 70, o
cinema de ficção-científica terminou embarcando na mesma direção. Assim, “ao passo que os
conflitos mundiais se tornavam menos maniqueístas, filmes tecnofóbicos deram lugar a obras
mais consistentes que mostravam os dois lados do progresso”, 88 abandonando as velhas invasões
extraterrestres (leia-se comunistas) por temáticas mais profundas. O Planeta dos Macacos (Planet
of the Apes, 1968) e 2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Odissey, 1968) estão
entre os primeiros dessa nova safra. O primeiro inclusive é lido por muitos como uma alegoria
aos conflitos raciais dos anos 60, enquanto o segundo é uma obra aberta por excelência. Os anos
70 trouxeram filmes como Corrida Silenciosa (Silent Running, 1972) – uma tragédia ecológica
futurista – e No Mundo de 2020 (Soylent Green, 1973) – uma reflexão sobre os perigos do
crescimento populacional – acompanhados de filmes como Laranja Mecânica (A Clockwork
Orange, 1971), Solaris (Solaris,1972), Rollerball – Os Gladiadores do Futuro(Rollerball, 1975),
Mad Max (Mad Max, 1979) Blade Runner – O Caçador de Andróides (Blade Runner, 1982) ,
Matrix (Matrix,,1999), entre outros que aos poucos mudaram a face do gênero no cinema com
seu enfoque soturno. O próprio John Carpenter contribuiu com essa nova visão da ficção-
87 AUSTEN, Patrícia. Cyberpunk. SET ESPECIAL TERROR&FICÇÃO. Ed. Azul pp.49&50. Março. 1991.88 SALLUM, Érika. A Saga de um Gênero Fascinante. O Super Livro dos Filmes de Ficção-Científica.Ed. Abril. São Paulo, p.13. Jan.2005.
88
43
científica no cinema com filmes violentos e sombrios como Fuga de Nova Iorque (Escape from
New York, 1981) e Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), ambos anteriores a Eles Vivem.
Arlindo Machado afirma que
o que agora vemos na tela mosaicada é a paisagem da própria mídia, ou seja, imagens que têm por referências outras imagens, ou então imagens que remetem continuamente ao seu próprio processo interno de fabricação e produção de sentidos. Mas as paisagens da mídia não se tornam, cada vez mais, as paisagens de nosso mundo? Não é justamente em função das mídias de massa e no interior delas que aquilo que chamamos de realidade agora se constrói?89
Ou seja, o cinema, junto com a televisão, internet, revistas, e demais mídias visuais, é o
grande moldador de leituras de nossa época. Sejam as imagens de filmes, noticiários de televisão
ou internet, o fato é que a sociedade atual tem grande parte seu imaginário coletivo, e aquilo que
ela determina como “realidade”, determinado por imagens da mídia. E os filmes de ficção-
científica citados fazem parte desse imaginário e, junto com a literatura, influenciam a produção e
a leitura do gênero. Umberto Eco, que em outra ocasião já havia observado que o texto “é uma
máquina preguiçosa que pede ao leitor para fazer parte de seu trabalho” 90, afirma sobre o
processo de criação artística que
uma poética serve para entendermos o que um artista pretendia fazer, e não necessariamente o que ele fez; quer dizer que, além da poética explicita pela qual o artista nos comunica como gostaria de construir sua obra, existe uma poética implícita, que se manifesta através do modo como a obra foi efetivamente construída; e talvez esse modo possa ser definido em termos que não coincidam de todo com os apresentados pelo autor.91
Ou seja, uma obra possui dentro de si significados latentes que podem ser despertados por
inúmeras circunstâncias. Nossa época se notabilizou pela explosão dos meios de comunicação de
massa, tendo a televisão como o veículo de comunicação de maior influência dos últimos tempos.
E o papel da televisão na sociedade é um desses elementos latentes do conto de Ray Nelson que
foi despertado. Devemos ter em mente que o papel e as concepções sobre a mídia mudaram
bastante desde o seu surgimento. Muito já foi escrito sobre o assunto e a própria visão da
sociedade sobre o veículo também mudou, assumindo uma postura mais crítica. È importante
frisar que
apesar de ser conhecido como um veículo de cultura de massa, a televisão começou como artigo de luxo, assim, os programas eram considerados culturais; a NBC[emissora norte-americana] chegou a criar uma orquestra sinfônica a qual foi regida pelo renomado
89 MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 56.90 ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras. 1994, p. 70.91 ECO, Umberto. A Obra Aberta. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p. 22.
44
maestro Arturo Toscanini. Consequentemente , as famílias economizavam durante meses para comprar um aparelho de televisão, o novo símbolo de status. 92
A partir da afirmação acima não é difícil constatar que as mudanças dos últimos anos
provocadas pela enxurrada de reality shows, programas sensacionalistas e escândalos mudaram
radicalmente o horizonte televisivo. Não foi por nada que a televisão
perdeu a credilidade junto às classes consideradas cultas, pois todas essas mudanças fizeram a televisão se propagar como um veículo de massa[...] e o surgimento de críticos que, de início, visualizavam um grande potencial de comunicação, e agora, assumiam uma postura severa contra o veículo.93
A televisão hoje é um dos principais instrumentos de manipulação das massas e
propagação do pensamento da ideologia dominante. A função televisão como agente regulador da
ordem estabelecida já foi discutida por diversos autores, entre eles Octávio Ianni e Pierre
Bourdieu, e trabalhada em filmes como Cidadão Kane (Citizen Kane,1941) de Orson Welles e
documentários como Muito Além de Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane,1993) de Simon
Hartog. Octávio Ianni escreve que
desde que a civilização ocidental passou a predominar nos quatro cantos do mundo, a idéia de modernização passou a ser o emblema do desenvolvimento, crescimento, evolução ou progresso. As mais diversas formas de sociedade, compreendendo tribos e nações, culturas e civilizações, passaram a ser influenciadas ou desafiadas pelos padrões e valores sócio-culturais característicos da ocidentalidade, principalmente sob suas formas européias e norte-americana.[...] É claro que a mídia impressa e eletrônica, organizada em redes internacionais, transnacionais ou planetárias, exerce papéis decisivos na formulação, difusão, alteração e legitimização de padrões, valores e instituições modernas, modernizadas, modernizáveis e modernizantes.94(grifos meus)
Pierre Bourdieu vai na direção análoga de Ianni. O autor comenta:
È verdade que, em última instância, pode-se dizer que o que se exerce sobre a televisão é a pressão econômica.[...]È importante saber que a NBC é propriedade da General Eletric( o que significa dizer que, caso ela se aventure a fazer entrevistas com os vizinhos de uma usina nuclear, é provável que...aliás, isso não passaria pela cabeça de ninguém), que a CBS é propriedade da Westinhouse, que a ABC é propriedade de Bouygues, o que tem consequências, através de toda uma série de mediações.[...]Essas são coisas tão grossas e grosseiras que a crítica mais elementar as percebe, mas ocultam os mecanismos anônimos, invisíveis, através dos quais se exercem as censuras de toda ordem que fazem da televisão um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica.95
No trecho abaixo extraído do conto, a ação ocorre momentos depois da descoberta da
presença dos extraterrestres por parte do protagonista.
Uma TV na vitrine de uma loja chamou a atenção de George, mas ele desviou os olhos
92 FURQUIM, Fernanda. Sitcoms: definição e história. Porto Alegre: FCF Ed. 1999, p. 80.93 Ibid., p. 80.94 IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 76.95 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.80.
45
rapidamente. Com os olhos longe da TV, ele podia resistir à ordem do alienígena na tela, "Assista TV”. George vivia sozinho em um pequeno quarto, e ao chegar em casa, sua primeira ação foi desligar a TV. Apesar disso, ele podia escutar o som dos televisores nos apartamentos vizinhos. A maioria das vozes que ele escutava eram humanas, mas de vez em quando ele ouvia a voz arrogante dos alienígenas, que se assemelhavam ao corcorar de pássaros, dizerem: “Obedeçam ao governo”, “Nós somos o governo”, “Nós somos seus amigos”. “Obedeçam!” “Trabalhem!”96. (tradução minha)
No conto, a televisão exerce um papel fundamental no esquema de dominação dos
extraterrestres, embora no filme esse aspecto seja explorado apenas an passant. Vejamos a
situação de George Nada, ele é o único ser humano que pode ver os alienígenas em sua
verdadeira aparência enquanto o resto da humanidade está sob o efeito da hipnose coletiva. A
alienação social do resto do mundo é bem exemplificada no momento em que George Nada
chega em sua residência: todos os apartamentos estão com os televisores ligados e com seus
moradores recebendo constantes ordens de submissão. È uma perfeita representação simbólica da
relação de dominação e influência que a televisão exerce no dia a dia das pessoas. Através de
programas aparentemente inofensivos, a televisão vende aos espectadores todo um modo de vida,
seja através de novelas, seriados, noticiários e programas derivados, seja pela opinião dos
profissionais do meio. Sobre esse último aspecto o comentário de Bourdieu é pertinente:
Nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos animadores de debates, nossos comentaristas esportivos tornaram-se pequenos diretores de consciência que se fazem, sem ter que de forçar muito, os porta-vozes de uma moral pequeno burguesa, que dizem “o que se deve pensar” sobre o que chamam de “problemas da sociedade” 97[...]
Não poderíamos como leitores construir, a partir da figura dos alienígenas e suas
constantes mensagens de obediência, uma crítica ao poder de manipulação televisivo? Sentados
no conforto de suas casas os humanos acreditam estar vendo simples programas de televisão
quando na verdade, em um nível subconsciente, recebem constantes mensagens de conformismo.
Tendo em vista as questões levantadas por Bourdieu e Ianni, mais a atitude anti-sistema
da literatura de ficção-científica New Wave/Cyberpunk, somado ao sentido político do filme Eles
Vivem, podemos ler em “Eight O'Clock in the Morning” uma crítica ao poder de dominação da
96 No original “A TV set in the window of a store caught George's eye, but he looked away in the nick of time. When he didn't look at the Fascinator in the screen, he could resist the command, "Stay tuned to this station." George lived alone in a little sleeping room, and as soon as he got home, the first thing he did was to disconnect the TV set. In other rooms he could hear the TV sets of his neighbors, though. Most of the time the voices were human, but now and then he heard the arrogant, strangely bird-like croaks of the aliens. "Obey the government," said one croak. "We are the government ," said another. "We are your friends, you'd do anything for a friend,wouldn't you?"http://www.geocities.com/Hollywood/Academy/9412/8oclock.html acessado 12 de março de 2008. (tradução minha)97 Ibid., p. 90.
46
televisão. Essa relação de poder é muito bem traduzida simbólicamente pela figura dos
alienígenas na televisão com suas frases de obediência. Um outro detalhe do conto que reforça
essa leitura é a figura do chefe de polícia Robinson, um dos alienígenas. Nada se comunica via
telefone com o personagem em duas passagens distintas do conto sendo que na primeira
Robinson, utilizando-se de seu poder de persuasão hipnótica, “programa” um ataque cardíaco em
Nada para o horário das oito da manhã (daí o título do conto). Pois bem, Robinson é um policial,
uma figura de autoridade, e assim como a televisão, ele também representa uma instituição
legimitizadora do poder. O próprio Nada, lido hoje, se encaixa no perfil do herói niilista da
ficção-científica New Wave/Cyberpunk, ele não hesita em amarrar a própria namorada e roubar
seu carro, além de matar a sangue frio.
Além da conotação política dessa leitura a posteriori de “Eight O'Clock in the Morning”,
também encontramos no conto elementos da estética New Wave/Cyberpunk: o protagonista como
um homem comum lutando solitariamente contra o sistema, sendo este representado pela
televisão e pela polícia. Enfim, uma “obra não pode mais ser vista como algo acabado a deslocar-
se intocável no tempo e no espaço, mas como um objeto mutável por efeito das leituras que a
transformam.” 98
98 CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ed. Ática, 1998, p.70.
47
CONCLUSÃO
Ao longo da pesquisa constatou-se que “a escrita é um jogo ordenado de signos que se
deve menos ao seu conteúdo do que à própria natureza do significante” 99. O texto produzido
“desdobra-se como um jogo que vai para além das suas regras” 100. O texto se assemelharia a um
jogo onde os elementos do texto possuem infinitas possibilidades de arranjos e rearranjos.
A partir do estudo do conto “Eight O'Clock in the Morning” e sua tradução fílmica,
somada à nova leitura do mesmo, analisamos algumas possibilidades de arranjo das peças do jogo
de leitura. Mas uma questão ainda não revelada diz respeito justamente a quem organiza essas
peças, mais precisamente quais os fatores que levam diferentes leitores a produzirem significados
tão díspares para um mesmo texto.
Vamos seguir com nossa análise do conto “Eight O'Clock in the Morning”. Podemos
supor, com certa segurança, que a grande maioria dos leitores do conto de Ray Nelson não
enxergou neste nada além de um divertido conto de ficção-científica. A afirmação refere-se tanto
a leitores da época em que o conto foi primeiramente publicado quanto a leitores que
desconhecem a existência da tradução fílmica, ou seja, trata-se de leitores não contaminados pelo
99 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Rio de Janeiro: Ed. Passagens, 1992, p. 35.100 Ibid., p. 70.101 FOKKEMA, Douwe. IBSCH, Elrud. Conhecimento e Compromisso. Porto Alegre: UFRGS, 2006, p. 33.
48
texto fílmico (mesmo que haja leitores que tenham lido de forma política “Eight O'Clock in the
Morning”, independente de terem assistido o filme ou de outras circunstâncias de leitura, isso não
invalida o argumento apresentado a seguir). Basicamente a leitura, além de um ato de produção
de sentidos e da busca por significados de signos inseridos em um sistema textual, é hoje,
contemporaneamente, um ato político, pois o leitor, como agente criador de sentido do texto,
projeta seu modo de estar no mundo, no lugar em que vive, e na época em que vive, no texto.
Douwe e Ibsch afirmam que
dar sentido a um texto literário consiste em adaptar o texto a uma estrutura de referência pré-existente e, de forma reversa, permitir que essa estrutura de referência seja qualificada pela assimilação do texto.101
Portanto resta a seguinte questão: por que o filme Eles Vivem, entendido como a leitura de
John Carpenter do conto, se diferencia das leituras monossêmicas? O que leva um leitor a
enxergar mero entretenimento em um texto, enquanto outro constrói uma leitura crítica?
Vamos nos utilizar do ensaio “Pensar por si mesmo” de Arthur Schopenhauer para
responder essa questão. Para o filósofo alemão, quando nos entregamos ao ato da leitura
deixamos de produzir pensamentos próprios para nos entregarmos aos pensamentos de outra
pessoa. Nas palavras do filósofo “a leitura não passa de um substituto do pensamento próprio.
Trata-se de um modo de deixar que seus pensamentos sejam conduzidos em andadeiras por outra
pessoa” 102. Enfim, para Schopenhauer “ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de
pensar com a própria”. 103
Schopenhauer aponta esse tipo de leitura como comum às grandes massas que aceitam
pensamentos alheios, geralmente provenientes dos formadores de opinião, sem produzir os seus
próprios. Um segundo grupo de leitores, mais raro, é composto por aqueles que Schopenhauer
chama de “espíritos de primeiro nível”. Para estes a leitura é a matéria-prima para os
pensamentos próprios e autônomos. Schopenhauer afirma que as idéias de terceiros provêm de
sistemas de pensamento diferentes do leitor e que o “espírito de primeiro nível” é um tipo de
leitor que consegue organizar diferentes idéias de sistemas de pensamentos diversos dentro de seu
próprio sistema de pensamento, subordinando-as a si, diferenciando assim do leitor que apenas
absorve os pensamentos do texto. Pessoas desse tipo possuem uma mente
suficientemente forte para dominar tudo isso [os pensamentos de terceiros], assimilá-lo,
101
102 SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Porto Alegre: Ed. L&M POCKET BOOK,2007, p. 42.103 Ibid., p. 44.
104Ibid., p. 45.
49
incorporá-lo ao sistema de seus pensamentos subordinando o que lê ao conjunto orgânico e coeso de sua compreensão abrangente, em continuo desenvolvimento104 .
È esse tipo de leitura que encontramos na tradução fílmica de John Carpenter. Uma leitura
ativa, onde o leitor Carpenter subordinou as idéias contidas no texto literário às suas próprias
idéias e convicções, a partir de recursos estilísticos como a paródia e a relação de
intertextualidade envolvendo o texto literário. Trata-se de um leitor que vai além do sentido
imposto pela leitura de época, pela leitura do senso comum, e constrói seu próprio sentido.
Seguindo as considerações de Schopenhauer podemos afirmar que John Carpenter realizou uma
leitura de “espírito de primeiro nível”.
Apesar de escrito há acerca de duzentos anos atrás Schopenhauer em seu ensaio “Pensar
por si mesmo” preconiza um modo de leitura que privilegiaria o papel do leitor na criação de
sentido do texto. Um ponto interessante levantado pelo texto de Schopenhauer, e que ainda não
foi devidamente estudado, diz respeito justamente aos diferentes tipos de leitores. Os estudos
literários ainda deixam uma brecha no que refere aos estudos do papel do leitor no texto.
Portanto, seria de um avanço considerável pensar o leitor de forma heterogênea, ou seja,
identificar os diferentes tipos de leitores – que possivelmente se desdobrem em muitas outras
categorias além das duas propostas por Schopenhauer – e suas respectivas formas de ler, para
melhor compreender o fenômeno da leitura e produção de sentido. Talvez aproximando mais
ainda a produção de sentido pela daquela já compreendida quando se trata de escritura.
104
50
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