desgnio 15 jul/dez 2015
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resenhas
Andr Laks*
LAKS, A. (2015). Resenha. STEEL, C. ED. (2012). Aristotles Metaphysics Alpha: Symposium Aristotelicum. Oxford, Oxford University Press. Archai, n. 15, jul. dez., p. 157-163
DOI: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_15_16
Esta obra procede do 18 Symposium Aris-totelicum ocorrido em 2008 em Louvain, no qual as
primeiras verses de todos os ensaios, exceo de
um, foram apresentadas e discutidas. Certamente
o primeiro livro da Metafsica de Aristteles , no
mnimo, to famoso quanto os demais, embora talvez
seja o menos lido, se por lido se entende lido por
si mesmo, em vez de ser utilizado pelas informaes
exclusivas que dispe da aurora da filosofia grega e
de Plato. Uma clara indicao disso que, salvo
a edio e comentrio ainda indispensveis de toda
a Metafsica por Ross, no dispomos (tanto quanto
eu saiba) de nenhuma obra especfica dedicada ao
Livro A compare-se com o Gamma, os assim cha-
mados livros centrais, Lambda, e mesmo o Beta. O
presente volume que o resultado de muita organi-
zao, muito trabalho e muitas discusses vem agora
suprir esta falta de maneira significativa. Ele no
constitui propriamente um comentrio contnuo
do Livro A. Primeiro, por haver onze comentadores
(aproximadamente um para cada um dos dez cap-
tulos, exceto o A9, que tem dois1); segundo, porque
nem todos os pormenores do texto aristotlico so
discutidos (embora grande parte deles de fato o
seja); e terceiro porque, como se espera de uma com-
pilao, cada captulo assume a feio de um ensaio
e assim se mantm guiado por questes definidas ou
* Universit Paris-Sorbonne,
Paris, Frana - Universidad
Panamericana, Mxico; D.F.
ARISTOTLES METAPHYSICS ALPHA: SYMPOSIUM
ARISTOTELICUM
1 H uma outra exceo
ao esquema um captulo/
um ensaio: S. Menn aborda
o captulo 7 e o incio do
8 at 989a18; O. Primavei,
o restante do captulo 8.
Em termos de tamanho, a
exemplo da ciso do captulo
9 em duas partes, pode-se
aqui oferecer melhor diviso
entre os dois comentadores.
No entanto, no existe
justificativa interna
verdadeira para esta diviso.
Na realidade, a primeira
parte do captulo 8 (crtica
dos monistas) tambm
retomada no trabalho de
Primavesi (p. 225-229).
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por um conjunto de questes. No entanto, mesmo
com essas particularidades, o volume transmite
uma impresso de notvel homogeneidade, espe-
cialmente por que (quase) todas as contribuies
seguem a progresso do texto de Aristteles seo
a seo, com marcaes adequadas e interttulos.
Uma traduo pessoal das passagens comentadas
frequentemente apresentada antes dos comentrios
propriamente ditos. Assim, o volume como um todo
funciona efetivamente maneira de um comentrio
polifnico (multi-voiced) e pode ser assim utilizado.
O captulo 9 (sobre a concepo platni-
ca de causa formal) revela um aspecto peculiar,
seja do ponto de vista formal, seja em termos
de contedos, e tem sido constantemente objeto
de ateno especfica pois, tomado em conjunto
com o comentrio de Alexandre, encerra o material
bsico para a reconstruo da crtica aristotlica
teoria das Formas de Plato. Neste caso, espe-
cialmente til e agradvel, dado o grau elevado
de tecnicidade e especulao que se tm posto ao
servio da reconstruo de argumentos completa
ou parcialmente perdidos dispormos de duas con-
tribuies (de Dorothea Frede e Michel Crubellier)
que apresentam panorama claro e atualizado de
todo o desenvolvimento, acompanhado de avaliao
breve, mas razovel, de cada argumento. Visto que
no se pode tratar deste captulo desvinculado da
sua retractatio e repetio parcial no livro M, M4-5
tambm merece alguma ateno.
Uma nova edio, por Oliver Primavesi, do
texto da Metafsica A segue-se aos onze ensaios.
Esta insero, se comparada aos volumes anteriores
da mesma srie, representa uma inovao formal.
Contribui para a unidade do volume, pois as decises
acerca do tratamento de problemas textuais no inte-
rior de cada trabalho refere-se sistematicamente ao
texto e sigla de Primavesi, seja para indicar acordo
ou discordncia. No obstante, pode-se avanar dois
pontos de vista muito diferentes sobre semelhante
incluso. Por um lado, esta edio representa o pri-
meiro passo rumo a uma nova edio da totalidade
da Metafsica de Aristteles, destinada a substituir a
de Ross e a de Jaeger (cf. as stemmas de Primavesi
para as diferentes partes da Metafsica p. 392ff.;
para o Livro A- 2, em que J desaparece, cf. p. 397).
Por outro lado, constitui-se em uma contribuio
especfica ao volume, que textualmente orientada,
mas implica um nmero importante de problemas
interpretativos. O tratamento apropriado do primeiro
aspecto exigiria discusso extensa e tcnica que no
estou em condies de oferecer mais por razes de
competncia, do que pela natureza desta resenha.
Mas no que se refere ao segundo aspecto eu diria
que, embora a edio seja til e estruturada com
clareza (com uma introduo de 80 pginas, con-
tendo a anlise mais proveitosa das 23 passagens
da Metafsica A), sua consulta no propriamente
fcil. O texto grego de Aristteles est dividido
em pequenas sees imediatamente seguidas pelo
aparato crtico correspondente, interrompido pela
numerao das linhas uma a uma e pela referncia,
antes de cada seo (de 987a6 em diante) ao assim
chamado Textus de Averris em seu Comentrio
Metafsica de Aristteles (cf. p. 400). E isso sem
mencionar o aparato rico demasiado rico, eu
penso, para a finalidade do volume em questo e
talvez at mesmo para uma edio da Metafsica em
geral. Felizmente, a informao mais significativa a
que os ensaios se referem sistematicamente, a saber,
a questo de se uma determinada leitura pertence
assim chamada tradio-alfa ou tradio-beta,
pode ser facilmente compreendida graas ao uso das
letras e em negrito, as quais o leitor tambm
encontra em todas as contribuies.
O primeiro livro da Metafsica contm duas
sees principais. A primeira (A1 e 2) esboa o
quadro geral de determinada investigao, dedica-
da a uma rea de pesquisa cujo objeto definido
posteriormente. Tal ser a tarefa dos livros sub-
sequentes, iniciando-se com as aporias do Livro
Beta, claramente anunciadas nas ltimas linhas
do captulo 10 e que emerge, em certo sentido,
do que Aristteles estava desenvolvendo na Me-
tafsica A (esta uma compreenso importante
que claramente apresentada por John Cooper
em seu Retrospecto, p. 351-53). Na Metafsica
A, a investigao em anlise caracteriza-se como
sabedoria (sophia) e lida com as primeiras causas,
o que significa, neste caso concreto, as primeiras
causas do ser e dos entes enquanto tais (Sarah Bro-
adi, Uma cincia dos primeiros princpios, sobre
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A2, p. 65; Rachel Barney, Histria e dialtica,
sobre A3, p. 73; Cooper, que, mais uma vez, insiste
corretamente neste ponto, p. 358-361). Tal sugere
de imediato que at mesmo a razo de Aristteles
para se empenhar em uma exposio (e crtica) da
concepo dos seus predecessores de A3 a A10,
no pode limitar-se apenas a confirmar a exatido
da doutrina das quatro causas conforme exposta
na Fsica, embora componha certamente parte do
projeto (cf. A3, 983a24-983b6, com os comentrios
de Barney, p. 74; A7, 988a21-23, com os comen-
trios de Primavesi em seu Reconsideraes sobre
alguns pr-socrticos, p. 226; e as linhas iniciais
do captulo conclusivo, 10, com Cooper, p. 336ff.).
Teria a sequncia seguida por Aristteles carter
teleolgico? Esta a opinio corrente, mas que
rejeitada, ou no mnimo fortemente matizada, em
duas contribuies. Stephen Menn, em seu Crtica
dos primeiros filsofos sobre o bem e as causas
(sobre A7 a 8, 989a18), sustenta que pelo menos
em A7 Aristteles
no diz que assim como algumas pessoas li-
daram de modo obscuro com a causa formal, tambm
outras lidaram de algum modo obscuro com a causa
final mas ele diz que os primeiros pensadores
compreenderam imperfeitamente o bem, ao no utiliz-
lo como causa final
e interpreta isso luz (e no o inverso) da
sentena em A10, 993a14, a qual sustenta que de
certa maneira todos [os tipos de causas] j foram
referidos anteriormente (cf. p. 210, com o n. 18;
e, para a retomada geral de Menn sobre o assun-
to, p. 202 e 216); e Gbor Betegh, ao comentar
O prximo princpio (sobre A4) acerca da famosa
metfora de Aristteles em 4.985a5 (cf. 10.993a13),
segundo a qual seus predecessores mostravam-se
titubeantes (tottering), sugere que uma forma
de titubear aquela em que h incerteza sobre o
modo de conduzir uma sentena ao seu desfecho.
Consequentemente, mais de uma linha de desenvol-
vimento [scil. na histria da filosofia] foi possvel
(p. 106). Pergunto-me se isto assaz consistente
com a traduo de psellizesthai por expressar-se de
maneira inarticulada (p. 125 com o n. 46), pois a
maneira peculiar como falam as crianas representa,
seguramente, certo estgio de um desenvolvimento
teleolgico. Certamente, a teleologia de Aristteles
no de tipo panglossiano (Menn, p. 216); e pode-
se caracterizar a histria de Aristteles mais como
progressivista do que determinstica (Betegh, p.
106, com uma anlise interessante das complexidades
que cercam a antecipao da causa eficiente, p. 110).
No entanto, se a observao de Aristteles sobre os
filsofos se verem impulsionados pela coisa em
si mesma (984a1), ou pela verdade em si mesma
(984b9f.), aplica-se no apenas aos primeiros filso-
fos, mas tambm aos filsofos em geral, talvez seja
difcil negar que no mnimo certo teor de teleologia
exerce o seu papel no construto aristotlico.
De todo modo, de A3 em diante Aristteles
empenha-se em vis desenvolvimentista do passado
filosfico, um tipo inteiramente novo de abordagem.
Trata-se de um dos aspectos mais fascinantes do Li-
vro A, pois implica todas as questes bsicas acerca
do que significa escrever histria, sobretudo escrever
a histria da filosofia, e ainda mais especificamente,
escrever a histria da filosofia a partir de determi-
nado ponto de vista. Como compreensvel, este
um tema recorrente ao longo do volume. Ressalta-se
a novidade da abordagem aristotlica mediante a
comparao com os procedimentos anteriores e em
que se lidava com a histria das ideias, tais como
o trabalho homonotico de Hpias, a biografia
intelectual de Scrates no Fdon de Plato, e a
Gigantomachia em seu Sofista, todos eles textos
que exerceram papel implcito, mas importante, no
entendimento que Aristteles tinha da sua prpria
teorizao (Barney, p. 90 e 101 sobre o Hpias e o
Sofista de Plato; Menn sobre o Fdon platnico, que
sublinha corretamente na p. 211f. a centralidade,
para o projeto pessoal de Aristteles, da identifica-
o do bem como primeiro princpio).
A segunda seo da Metafsica A encontra-se
subdividida em suas sees: enquanto A3-A6 consis-
te essencialmente na exposio meticulosa de como
as quatro causas e no mais que quatro grada-
tivamente emergem ao longo do desenvolvimento
de Tales at, pelo menos, Plato, A7-A9 empenha-
se na reviso crtica do que os predecessores de
Aristteles tinham a dizer sobre o que as primeiras
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causas do ser como um todo so. Barney e Cooper
empreendem discusso sobre se esta seo liga-se
ao mesmo desenvolvimento histrico que A3-6,
ou se pertence a outro nvel, com nfase clara na
crtica, no questionamento aportico, e na dial-
tica. Barney apresenta resposta positiva (p. 103),
enquanto Cooper distingue a empresa histrica
da crtica (p. 359). A descrio que Primaveri
oferece do desenvolvimento em duas etapas em
seu Reconsideraes sobre alguns pr-socrticos
(em A8, 989a18-990a32) neutra a esse respeito:
Os captulos 3-5 fazem to somente uma pergunta
acerca dos primeiros pensadores: se os seus relatos
acerca das causas ltimas podem ser reduzidos, sem
restos, a um ou mais elementos da lista aristotlica
de causas. O captulo 8, por outro lado, analisar os
primeiros pensadores em todos os aspectos que podem
ser teis busca da sabedoria (p. 227).
Com efeito, se algum escolhe vincular a seo
crtica ao trabalho histrico ou no, isso depende do
quo amplamente interpreta a histria ou, mais
especificamente, a histria filosfica da filosofia.
O importante que os captulos A3-A9 constituem
um todo admiravelmente bem-articulado. Tal no
significa que inexistam problemas estruturais ou
dificuldades pontuais, a mais interessante das quais
se liga efetiva complexidade da empresa histrica
de Aristteles. Um aspecto disso que, segundo
penso, a linha filosfica aristotlica de reconstruo
da histria da filosofia, certamente predominante na
Metafsica Alfa acompanha e em certa medida entra
em conflito com, a tendncia exaustividade tenso
que poderia ler-se como antecipando a diferena entre
dois modos de se conceber a histria da filosofia que
paradigmaticamente representada por Hegel e Zeller.
Uma das grandes virtudes deste livro que
ele sublinha seja o cuidado com o qual Aristteles
desenvolve seu projeto especfico, sejam as tenses
da resultantes para ele e para ns a partir da
sua prpria complexidade: qual exatamente o
intuito da seo sobre Leucipo e Demcrito em
4.985b4-20 do ponto de vista do argumento de
Aristteles (Betegh, p. 136ff.)? E que relevncia
tem isso para o projeto aristotlico na Metafsica
A?, pergunta Malcolm Schofield em sua anlise da
seo sobre os eleatas em 5.986b8-987b (p. 159 do
seu Pitagorismo: surgindo da nvoa pr-socrtica,
sobre A5). Alm disso, como a misteriosa ausncia
do nome de Anaximandro explicada em todo o
livro (cf. Barney, p. 78, que menciona o problema,
mas no lida propriamente com ele, nem o faz
qualquer outra contribuio)?2 Ademais, bastante
claro que a histria relatada nos captulos 3 e 4,
em que Aristteles resume as concepes de Tales,
Anaxgoras, Empdocles, Demcrito e dos eleatas, e
brevemente menciona mais alguns nomes (tais como
os de Anaxmenes, Hipaso, Digenes de Apolnia e
Herclito), conduz ao captulo 5, o qual, ao ocupar
o centro de todo o livro, representa um ponto de
inflexo em todo o desenvolvimento.
Como fica claro pelo ttulo da contribuio
de Schofield (conferir acima), os pitagricos re-
presentam, na construo aristotlica, o momento
decisivo na histria da filosofia, espcie de ponte
entre a filosofia pr-socrtica (ou melhor, pr-
platnica) tpica e Plato. Schofield discute o
carter intersticial do pitagorismo e importante
que, na apresentao aristotlica, a cronologia
encontra-se com o desenvolvimento conceitual (p.
142f.). Com efeito, pode-se afirmar que a partir de
A6, apresentada por Carlos Steel (Plato visto por
Aristteles), Plato ocupar o centro do interesse
e refutao de Aristteles (em A7b-A9), embora a
seo dedicada crtica aos predecessores se inicie
com a crtica aos representantes do pensamento
pr-platnico que apresentam potencialmente algum
contributo prpria investigao de Aristteles
(cf. a explicao de Primavesi acerca do motivo
de Aristteles se concentrar aqui exclusivamente
em Empdocles, Anaxgoras e nos pitagricos: as
concepes de Filolau, Parmnides e Demcrito
encontram-se simplesmente muito distantes do
caminho certo, p. 227).
A centralidade que Aristteles atribui aos
pitagricos e Plato na histria da busca pelos
primeiros princpios traduz-se materialmente na ex-
tensa crtica teoria das Formas em A9. Esta crtica
divide-se facilmente em duas partes, correspondendo
s duas verses ou etapas da teoria das Formas de
Plato. A primeira corresponde s exposies clssicas
2 H um debate em andamento
sobre se Aristteles refere-se
implicitamente a Anaximandro em
7.988a29-32; cf. Menn, p. 207,
com n. 14.
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nos dilogos, a segunda, tese de que as Formas
so nmeros. No entanto, embora a diviso entre
A9a e A9
b se justifique perfeitamente e se confirme
externamente pelo fato notrio de que A9a repetida
quase palavra a palavra em M 4-5, Crubellier salienta
curiosamente em sua contribuio a continuidade
entre as duas sees de A9, lidas a partir do ponto
de vista especfico do projeto aristotlico no Livro
A continuidade refletida na numerao contnua
dos argumentos nas contribuies de Frede e Cru-
bellier (de I a VII para A9a, de VIII a XXIII para
A9b; ver p. 300 e o proveitoso Apndice I p. 332,
que oferece o plano geral de A9). Formalmente, a
conciso e aridez de A9b no to diferente de
A9a (Crubellier, p. 300); substancialmente, e o que
mais importante, enquanto a crtica aristotlica
em M revela basicamente natureza ontolgica, A9
dirige-se s concepes metafsicas de Plato,
no sentido de uma busca pelos princpios mais
fundamentais e universais dos entes naturais e dos
fenmenos (p. 300).
Entretanto, o peso especfico do captulo 9
manifesto no apenas por sua extenso. O prprio
fato de que a refutao assume forma sistemtica (a
ponto de parecer exceder o verdadeiro objetivo do
livro A) justifica-se se Plato, na esteira dos pita-
gricos, alcanou um ponto decisivo: a descoberta
da causa formal que foi ou esquecida, ou apenas
ligeiramente esboada por seus antecessores. ver-
dade que, de acordo com Aristteles, Plato fala de
forma imprecisa; mas, como observa Cooper, h uma
diferena importante entre referir imprecisamente
e faz-lo apenas com hesitao. Plato permanece
impreciso, de acordo com a sugesto de Cooper,
porque a filosofia necessita falar com base em uma
relato plenamente articulado no apenas de algo tal
como a causa de determinada espcie mas que
a compreenso deve ser constituda em um pensa-
mento sistemtico, plenamente articulado sobre as
causas em geral (p. 350). Plato, no entanto, de
modo algum hesita, mas oferece uma teoria explcita
da causa formal. Isto suficiente para explicar o
carter sistemtico da crtica de Aristteles em A9.
Seria a sua crtica hostil? A questo abor-
dada por Frede, que nos convida a examin-la no
enquanto um longo ressentimento reprimido contra
a teoria das Formas de Plato, e sim como um
longo catlogo de aporiai compartilhadas por alguns
platonistas, maneira de um desafio para discusso
posterior (p. 295). Esta viso est intimamente
ligada famosa questo do grau de fidelidade de
Aristteles Academia de Plato poca em que ele
escreveu a Metafsica A e o famoso ns (ns, os
discpulos de Plato), que, como observa Primavesi,
p. 412, surge nada menos que em treze passagens
do captulo nove em nossa [de Primavesi] edio,
e contrasta fortemente com o uso da terceira pessoa
(eles) nas passagens paralelas do Livro M. Pode-se
divergir quanto s concluses que se pode ou deve
extrair desta mudana tornada famosa por Jaeger
(ver Frede, p. 269ff. e Crubellier, p. 299). Mas Aris-
tteles alguma vez escreveu tal como ns dissemos
no Fdon (hos en Phaidoni legomen)? Este o texto
que Primavesi publica em 991b3f. (cf. p. 414f.), na
esteira das ltimas reflexes de Jaeger sobre este
assunto.3 A leitura, que obviamente representa lectio
difficilior, se no mesmo uma lectio impossibilis, no
transmitida nem em ou (e ambas tm legetai,
ele diz), mas narrada por Alexandre na p.106 do
seu comentrio (cf. tambm Asclpio, p. 90, 19).4
Trata-se de um caso interessante no apenas para
a histria da transmisso do texto, mas tambm
pela ousadia intrnseca da frmula inexiste algo
comparvel nas outras formas da primeira pessoa do
plural no Livro A, apesar do que Alexandre afirma.
Primavesi o explica: Aristteles no diz que ele
comps o Fdon; ele to somente diz que algumas
opinies expressas no dilogo platnico representam
a posio de um grupo de filsofos a que o prprio
Aristteles, de certa maneira, julga pertencer (p.
414). Bem, parece-me que a frase diz algo mais do
que isso; em sendo assim, o problema permanece.
A retomada crtica das opinies dos seus
predecessores bastante comum nas obras de Aris-
tteles e representa um aspecto importante da sua
abordagem filosfica em geral. Mas a reviso que
encontramos na Metafsica A nica no gnero,
especialmente porque a estrutura da apresentao
e discusso das diversas doutrinas possui acentuado
componente cronolgico. Certamente um aspecto
importante do interesse de Aristteles na Metafsica
A a dvida acerca do grau de preciso com que
3 JAEGER, W. Ns dissemos
no Fdon, em S. Lieberman,
Sh. Spiegel, L. Strauss, A.
Hyman (edd.), Harry Austryn
Wolfson Jubilee Volume, vol. I.
Jerusalem,American Academy for
Jewish Research, p. 407-21.
4 Na nota de rodap 93, p. 414,
Primavesi corrige a opinio dada
por Jaeger, na p. 408 do seu artigo
(e previamente pelo aparato de
Michael Hayduk em sua edio do
comentrio de Alexandre), de que
os dois manuscritos de Aristteles
tambm se leem como legomen.
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a filosofia se desenvolveu ao longo do tempo, e
muitas observaes cronolgicas feitas de passagem
atestam esta preocupao. Aristteles interessa-se
por antecedentes: Homero e Hesodo vs. Tales, Her-
mtimo vs. Anaxgoras, Hesodo e Parmnides vs.
Anaxgoras e Empdocles, Anaxgoras vs. Empdo-
cles (para a interpretao da controversa sentena
em 984a11f., ver Barney, p. 93, n. 61), assim como
as palavras notoriamente obscuras de abertura do
captulo 5 (Schofield, p. 142): Esses pensadores
e, antes deles, os pitagricos, como eram chamados,
inclinaram-se s matemticas (Schofield sugere que
Aristteles intenta inserir os pitagricos tardios
entre os pr-socrticos pluralistas). E se a sentena
sobre a relao cronolgica entre Alcmeo e Pit-
goras em 986a28-31 , de fato, um acrscimo no
pertencente ao texto original de Aristteles, como
foi sustentado por grande nmero de estudiosos
(incluindo Primavesi, que pensa ser tal suplemento
de origem neopitagrica, p. 447), um motivo para
o acrscimo seria o de prosseguir nesta linha de
investigao mas eu penso que Schofield na p.
150 est correto em consider-la como sendo uma
observao original de Aristteles).
Algum poderia perguntar por que este inte-
resse especial de Aristteles se manifesta precisa-
mente no caso da primeira filosofia (compare as
observaes esboadas acerca da histria da dial-
tica no captulo final das Refutaes sofsticas). Gos-
taria de sugerir que este zelo cronolgico dialoga,
e, na verdade, o aprofunda em nvel ontogentico,
por assim dizer, com a perspectiva que indicada
em A1 em nvel quase-filogentico: o homem por
natureza uma criatura cognitiva. O liame entre o
desenvolvimento da faculdade cognitiva humana
e as opinies e teorias acerca da causalidade, que
articula as sees do Livro A (A1-2, A3-10), no
indicado por nenhum dos autores, salvo engano.
Porm, Giuseppe Cambiano (O desejo de conhecer,
sobre A1) e Broadie mostram bem o quanto os ca-
ptulos A1-A2, em que pesem as similaridades que
revelam com o Protrptico e a tica, lanam desde
o incio um projeto inteiramente distinto, a saber,
delinear e justificar um programa de pesquisa acerca
dos princpios e primeiras causas (Cambiano, p. 41;
cf. Broadie, p. 48), embora ambos tambm deixem
claro, nos termos de Broadie, que A1-2 , entre
outras coisas, espcie de manifesto cultural, reivin-
dicando o termo filosofia para estudos tais como
os que temos na Metafsica, face reivindicao de
Iscrates para o seu tipo de atividade (p. 50, com
referncia a Cambiano, p. 36 e 41).
Como foi indicado acima, o foco desse volume
atm-se ao propsito e estratgia de Aristteles ao
lidar com os seus antecessores, e no ao intuito
de utiliz-lo enquanto fonte para a reconstruo
do pensamento dos pr-socrticos (ou mesmo de
Plato). Assim procede Betegh, ao referir-se
seo dedicada aos atomistas em A4: Aquilo em
que estou interessado sua posio e funo no
contexto do nosso captulo (p. 137); ou Schofield,
falando sobre A5:
O meu principal objetivo [no ] discutir em si
mesmo o pitagorismo a que Aristteles est se re-
portando. O foco principal repousa antes nos benefcios
que ele tenta auferir destes pensadores na medida em
que se relacionam com a sua investigao acerca dos
princpios e causas.
Mesmo assim, concentrar-se no projeto aris-
totlico no apenas no impede de consider-lo
uma fonte, mas s vezes chega mesmo a exigi-lo.
O captulo de Schofield um bom exemplo disso,
pois parte essencial dele consiste na reivindicao
da interpretao aristotlica de Filolau (cuja obra
reconhecidamente a principal fonte da doutrina
que Aristteles atribui ao primeiro grupo de pitag-
ricos annimos) contra aquela de Carl Huffman em
seu livro clssico. Enquanto o ltimo deseja salvar
Filolau de haver concebido os nmeros literalmente
enquanto constitutivos do cosmos (imagem que
se toma a Aristteles) e pensa que Filolau apenas
estabeleceu um paralelo entre teoria dos nmeros
e cosmologia (cf. p. 155), Schofield argumenta, ao
invs, que a viso de mundo fantstica que emerge
da apresentao de Aristteles (e que confirmada
por outros relatos) deve refletir a doutrina original.
Reside precisamente nesta fantasia, que a perspi-
ccia filosfica de Aristteles capaz de reconhecer,
a emergncia de uma reflexo autoconsciente sobre
a explicao (p. 164; cf. tambm suas observaes
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sobre a relao entre a sntese inicial em 985b23-
986a21 e o comentrio de Aristteles em 987a15-
19, p. 163-5). E impulsiona a contribuio de Steel
especialmente o pressuposto de ser Aristteles uma
fonte neste caso, fonte para o nosso conhecimento
e para o seu prprio conhecimento da doutrina
de Plato. Sua perspectiva fundamental, reagindo
claramente contra a insistncia de Cherniss nas
distores de Aristteles e na caa sistemtica por
doutrinas no-escritas e a pitagorizao de Plato,
que, alm da doutrina do Grande e Pequenoque
parece representar clara evidncia de uma doutri-
na no-escrita (p. 194), os relatos aristotlicos de
Plato em A6 ou procedem dos dilogos platnicos,
ou so rastreveis at eles (cf. p. 184, p. 188). Em
todo caso, as doutrinas no-escritas existiram e A9b
lida extensamente com um dos seus aspectos mais
enigmticos: a tese que as Formas so nmeros,
sobre a qual Crubellier apresenta exposio e exegese
lcidas (p. 303f.).
O livro inicia-se um tanto abruptamente, aps
o breve prefcio formal do editor, com a anlise de
Cambiano de A1, orientada para uma comparao en-
tre o material presente em A1 e os desenvolvimentos
paralelos dentro e fora do corpus aristotlico (para
os paralelos internos, cf. em particular comparao
esperada entre A1 e An. Post. II, 19, p. 15ff.; e para
as comparaes externas, cf. especialmente a 5a.
seo Sobre o contexto intelectual de A1, p. 26ff.).
Eis por que eu recomendaria que os leitores mesmo
aqueles j familiarizados com o Livro A comecem
com a Concluso e retrospecto de Cooper, o qual
se dedica explicitamente a cobrir a estrutura geral
do empreendimento aristotlico. Os leitores talvez
queiram ento passar primeira seo do captulo
de Barney (p. 71-76) com as suas lcidas reflexes
sobre o mtodo histrico de Aristteles e, em segui-
da, para Uma cincia dos primeiros princpios que
preenche bem o esboo oferecido por Cooper em seu
Retrospecto sobre o projeto geral de Aristteles
de redefinio da sophia.
O livro extraordinariamente rico, e o leitor
encontrar em cada captulo bastante material para
alimentar a reflexo acerca de um grande nmero
de tpicos e problemas que a presente resenha no
poderia sequer comear a mencionar. Eu gostaria,
entretanto, de chamar a ateno para o fato de
que, alm da contribuio editorial extremamente
importante de Primavesi, que deveria por si s ser es-
tudada por seus prprios mritos, o leitor descobrir
nos vrios ensaios muitas discusses proveitosas e
compreenso dos problemas textuais; por exemplo,
a lcida exposio de Steel do intricado problema
suscitado pela presena de homonuma em 987b9f.
(p. 177-180); a convincente preferncia de Broadie
por pensar que aquilo que Aristteles escreveu em
982b18 foi o amante da sabedoria de certa forma
tambm um amante do mito (com a tradio )
em vez de o amante do mito de certa forma um
amante da sabedoria, conforme a edio de Ross
e Jaeger e traduzido por muitos intrpretes (cf. por
exemplo Ross-Barnes na Oxford Revised Translation);
ou as razes de Cambiano (p. 12, n. 25) para seguir
em 980b1 a tradio contra a correo sugerida por
Primavesi (com base no comentrio de Alexandre).
Identifiquei alguns poucos erros tipogrficos,
nenhum dos quais verdadeiramente preocupante.
Os ndices (Nomes, Passagens, e o ndice Geral,
incluindo importantes palavras gregas transcritas)
so um auxlio complementar, fazendo deste livro
uma ferramenta indispensvel5.5 Frente importncia da
obra, a revista Archai, com
autorizao do autor e da revista,
publica excepcionalmente verso
portuguesa desta resenha,
publicada originalmente na Notre
Dame Philosophical Reviews An
Electronic Journal, no ano de
2013. Tradutor do ingls: Gilmrio
Guerreiro da Costa.