Hendrik van Loon¡ i ] ¡ t ■ ¡ n u n i i R « m B
Históriadas
INVENÇÕES0 Homem, o fazedor de milagres
¿ p
m
rMTf lDA DDAQIIICKIQC I T h A - C D A I I i n
Neste livro van Loon conta-nos a história das invenções e da íntima relação que existe entre estas e o progresso da humanidade. O homem seria ainda hoje uma criatura primitiva se não tivesse aprendido a aumentar mecánicamente as limitadas forças de seu corpo.
Foi a descoberta e a invenção de instrumentos mecânicos, tais como ferramentas para as mãos, rodas para os pes, microscópios e telescópios para os olhos, telefones e rádios para os ouvidos etc., que transformaram o homem contemporâneo num fazedor de milagres, capaz de dominar a natureza. A história dramática que acompanhou a concepção e execução dessas invenções e a importância do papel desempenhado por tôdas elas no desenvolvimento do progresso humano constituem o tema principal desta narrativa feita por van Loon com tanta simplicidade e clareza.
A HISTÓRIA DAS INVENÇÕES, de van Loon, cobre todoo assunto, desde os tempos primitivos até os dias presentes. E o autor desenvolve o seu tema tão atraente e original com o profundo sense of humour e com o brilho de exposição que já o tomaram mundialmente famoso. Êle, além disso, ilustrou o volume com 167 desenhos em branco e preto, moldados todos no seu inimitável estilo.
Edição da
E D I T Ô R A B R A S I L I E N S ES Ã O P A U L O
L IV R A R IA B R A S IL IE N S E R. Barão de Itapetininga, 99 Telefone 36-0671 - S. Paulo
*
h i s t ó r i aDAS
I N V E N Ç Õ E S
O homem múHiplo
H E N D R I K V A N L O O N
HISTORIADAS
I N V E N Ç Õ E SO HOMEM, O FAZEDOR DE MILAGRES
4 ° EDI ÇÃO
E D I T Ô R A B R A S I L I E N S E S Ã O P A U L O
19 5 9
Do original norte-americano T H E S T O R Y O F I N V E N T I O N
MAN, THE MIRACLE MAKER
T r a d u ç ã o d e
H E M E N G A R D A L E M E
M C M L I X
Direitos reservadas E D I T Ô R A B R A S I L I E N S E
Rua Barão de Itapetininga, 83 - São Paulo
Impresso nos ESTADOS UNID 3S DO BRASIL
Í N D I C E
P r e f á c io ................................................................................ 11
I — O homem, o bicho inventor .................................. 21II — Da pele ao arranha-céu ...................................... 47
III — A mão domesticada .............................................. 85IV — Do pé à máquina de voar .................................. 157V — As várias bôcas de mil sabedorias ...................... 197
VI — O nariz .................................................................. 253VII — O ouvido ................................................................. 255
VIII — O ôlho ..................................................................... 261
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
0 homem múltiplo Progresso ...............
210
CAPITULO I O HOMEM, 0 BICHO INVENTOR
O Espaço ..................... 20Nosso cárcere flutuante 23Solidifica-se a crosta da Terra 24O mundo dos peixes 25O mundo dos répteis 26O mamute agonizante 27Uma peça de museu que domi-
nou o mundo .......... 29O Homem ................... 31
A Terra coberta de vegetaçãoAs águas retrocedem ..............Os primeiros e dolorosos esfor
ços ..........................................A ameaça .................................O espírito inventivo dos animais A chegada das geleiras . . . .O gêlo ......................................
3334
3536 39 41 43
CAPÍTULO II DA PELE AO ARRANHA-CÉU
O primeiro casaco ....................... .....49O curtimento ......................................54A cultura do linho ...........................56O bicho-da-sêda ................................58Os teares ............................................ 59O casaco com acumuladores .. 63O abrigo nos rochedos ...................65A casa de gêlo ......................... .....66A casa lacustre ........................... 67Casa de verão ....................... ...........69
Casa de inverno ........................... ..... 70A cidade moderna ....................... ..... 72Aquecimento central ................... ..... 73Braseiro de carvão vegetal . . . . 75O fogo aberto ...................................76O aquecedor elétrico ..................... ..... 77A arte sagrada de fazer fogo . ...... 78 Da pedra de fogo ao moderno is
queiro ................................................ 79
CAPÍTULO III A MÃO DOMESTICADA
A acha e a pedra ..................... 87As pedras tomam formas ------- 89As pedras começam a cortar . . 90A guilhotina ................................. 92Dos dedos à pá ........................... 94O arado a vapor ......................... 95A máquina de cavar ................. 96A draga ........................................ 97Escafandrista em ação ................ 98A alavanca ................................... 100A corda .......................................... 101Difícil levantamento de uma pe
sada pedra ................................. 102A roldana ....................................... 103
A primeira vasilha ..................... ...104Depósitos de cereais ................. ...105Cêstos ................................................106Cêsto coberto de argila ............. 108Parede de concreto ................... ... 109A roda de oleiro ......................... ...111A invenção do vidro ................. ... 113A mesa de jantar ..................... ... 114Irrigando a terra ....................... ...116Aqueduto ............................................117A fechadura .................................... 118O castelo ..........................................119O pescador pré-histórico ............. 121O barco de pesca ..................... ... 122
8 HENDRIK VAN LOON
A fôrca ........................................ 123 A energia pré-histórica conden-125 137
O canhão fixo ............................. 126 Aproveitamento da energia pré-127 1?8
Canhão camuflado ....................... 128 A máquina a vapor ................. 140O exército ..................................... 129 O dínamo ...................................... 143O torpedo ..................................... 130 Formação dos poços de petróleo 145O pilão .......................................... 131 Um poço de petróleo ................. 146O moinho a mão ......................... 132 Operários com seus instrumenO moinho de água ..................... 134 tos ................................................ 149O moinho de vento ..................... 135 A máquina na casa do artesão 150A formação da energia pré-his A fábrica ....................................... 152
tórica .......................................... 136 Nossos escravos desconhecidos .. 153
CAPÍTULO IV DO PÉ À MÁQUINA DE VOAR
A bêsta humana de carga O trenó O trenóO carro egípcio ..........A roda ...........................A primeira carruagem O carro a vela O pé a vapor A locomotiva .O automóvel .Os patins . . . .A primeira ponte ..............Ponte romana .....................Túnel sob um rio ................O primeiro barco ................O primeiro barco atravessa o
Canal ........................................... 175O barco a vela ............................. 176
Velejando através do Canal . . 177A âncora .......................................... 178O leme ............................................ ....180O navio a vapor ......................... ... 181De Calais a Dover a vapor . . . . 182Invejando os pássaros ..................... 183O papagaio ...................................... 184A máquina de voar mais pesada
que o ar ........................................ 185O primeiro balão ......................... ... 186De balão até Londres ................. 188O planador ........................................ 189A máquina de voar ..................... 190Voando sôbre o mar ................. ... 191O dirigível ........................................ 192A lei da gravidade ..................... ... 193Em direção ao planêta vizinho 194
158159160 162163164165166167168169170172173174
CAPÍTULO V AS VÁRIAS BÔCAS DE MU SABEDORIAS
O valor relativo das palavras . .A arte de traduzir .....................O tantã ...........................................O sino ............................................A invocação à prece ..................O antigo farol .............................O farol moderno .........................A buzina para nevoeiro ............O megafone ............Sinais com fumaça Sinais com tambor O pombo-correio Sinais com bandeira As torres sinaleiras O telégrafo O cabo telegráfico O telégrafo sem fio Brinquedo chinês .O rádio ..................Conserva de frutas e de idéias 223
Os seixos misteriosos ..................... 224Secando peixes e pensamentos . 225Necromancia ................................. ...227O sinal de aviso de perigo . . . . 229A primeira carta ....................... ...230Linguagem por cordel .................231A escrita sagrada do Egito . . . . ...232 Os caracteres práticos dos fení
cios .............................................. ...233A escrita rúnica ......................... ...234O papiro ............................................236Penas de escrever ..................... ...237A máquina de escrever .................238A prensa ..........................................241O jornal primitivo ..................... ...243O jornal ............................................244Meios de fixar a palavra falada 246A íotografia ................................. ...248O cinema ..........................................250
200202203204205206207208 209 211 212213214215216 218219220 222
CAPÍTULO VI O NARIZ
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES
CAPÍTULO VII
O OUVIDO
Antigos sinais debaixo da água ..................................................................Avisos modernos debaixo da água ..............................................................O estetoscópio ....................................................................................................
CAPÍTULO VIIIO ÔLHO
263 O astrônomo grego -----264 o telescópio .....................2 gg Observatório astronômico2 g9 O micróbio invisível270 A lente de aumento271 O microscópio .................
A tocha do troglodita .Lâmpada a óleo ............A vela ...............................O acendedor de lampiãoO comutador ...................Os óculos .........................O holofote .......................
10 HENDRIK VAN LOON
Vrosresso
P R E F Á C I O
A princípio tudo era muito simples. A terra era o centro do universo e o céu uma grande abolada de um cristal belo e azul.
À noite, os anjinhos faziam buracos nessa abóbada e espiavam por ali. E assim surgiam as estréias.
Mas, certo clia, um homem corajoso, munido de um telescópio de três vinténs, subiu ao alto de uma tôrre e perscrutou longamente o céu.
Desse momento em diante começaram as complicações.
Em primeiro lugar o sol foi convidado a mudar-se para o centro do universo. Depois, se descobriu que o nosso famoso sistema solar não era absolutamente um “ universo” mas um mero e insignificante detalhe de um vasto e misterioso plano, que por sua vez não passava de um detalhe ainda mais insignificante de um outro plano bem mais vasto e misterioso, o qual vagamente se supunha ser uma partícula completamente insignificante que se desviara da Via-Láctea.
Essas revelações causaram grandes perturbações não só entre os .teólogos, como também entre
12 HENDRIK VAN LOON
os matemáticos e os astrônomos. Até então eles só eram capazes de medir a distância da terra à lua e mesmo da terra aos planetas mais próximos, com a ajuda de quilômetros e milhas.
Agora, porém, que o velho e famoso “ cosmos” inesperadamente se transformou em algo mais importante do que o cenário teatral do capítulo de algum livro sagrado do Oriente; agora que aos poucos se foi demonstrando que existiam estrelas tão grandes que poderiam fácilmente tragar a maior parte do nosso sistema solar; agora que os zeros, que antigamente bastavam para os cálculos dos nossos bisavós, se estavam multiplicando em trilhões e quatrilhões, percebeu-se que chegara o tempo de idealizar uma nova geometria, a qual preservasse os astrônomos de gastarem os seus cotovelos no manejo das réguas de calcular.
Para esse fim, estabeleceu-se a pseudo “ unidade astronômica” , de 92.900.000 milhas, que representava os raios medianos de órbita terrestre, medida essa bem fácil e cômoda para se usar, desde que não se afastasse muito de casa.
Mas, uma vez entre as estrelas (as grandes e não as nossas pequenas companheiras vizinhas') tais “ unidades astronômicas’ ' se tornaram meras insignificâncias, e foi necessário pensar-se em algo um pouco mais substancial do que essas míseras92.900.000 milhas.
Foi então que Alberto Michelson, que fazia experiências com a luz, descobriu que o raio de luz
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 13
(naturalmente é bobagem falar-se de “ raios de luz” , mas estou usando o termo porque infelizmente ainda estamos ligados à nomenclatura poética do Período Romántico, e ainda se passarão muitos séculos antes que possamos pensar numa terminología da Idade da Ciencia) — mas, como ia dizendo, foi então que Michélson descobriu ser a luz uma substancia que corre à velocidade de 299.820 kms. por segundo. Essa descoberta lhe sugeriu uma idéia luminosa. Multiplicando 60 segundos por 60 minutos, este resultado por 24 horas e este por 365 dias, chegou ele à grata conclusão de que a luz percorre uma distancia de 10.418.623.400.000 kms. por ano. Chamou então a essa distancia “ ano-luz” , o qual se tornou a medida adotada para os modernos céus.
A princípio, pareceu que isso satisfaria a todos. Antes da apresentação do “ ano-luz” , Centauro, a nossa estrela vizinha mais próxima, distava de nós 25.000.000.000.000 milhas. Agora, porém, se podia dizer: “ Centauro? Ora, dista daqui apenas uns míseros 435 anos-luz. É um pulo.”
Mas, ai! A sede de distâncias dos astrônomos era insaciável, e eles descobriram astros pequeninos que distavam vinte ou trinta mil “ anos-luz.” E fizeram descobertas ainda mais audaciosas. Descobriram que as nebulosas, essas manchazinhas luminosas que nos lembram micróbios vistos através de um microscópio, estavam situadas a distâncias que variavam entre dois e três milhões de anos-luz.
14 HENDRIK VAN LOON
Então, até mesmo o “ ano-luz” se tornou de urna insignificancia ridicula.
Mas, quem nos poderia dar cousa melhor?
Não estou apresentando isto aos olhos admirados do leitor com o simples propósito de fazê-lo ver que sou um homem profundamente erudito, ou algum felizardo que pôde adquirir a Enciclopédia Britânica a prestações. Estou tocando alguns acordes no instrumento da eternidade, a fim de fazer soar uma nota de advertência para o resto dêste livro.
Quando a terra foi rudemente destituída da sua posição privilegiada de “ centro do universo” , muita gente pensou que também o homem seria derribado do alto pedestal em que arrogantemente se julgara com o direito de colocar-se, desde o momento em que deixara de andar com os quatro pés. Certamente que, dentro de um universo composto de dezenas de milhares de manchas nebulosas, cada qual maior que dois milhões de anos-luz quadrados, o homem se sentiria reduzido a proporções infinitesimais tão insignificantes, que cessaria de vangloriar-se da sua origem divina e começaria a se ver tal como era — um animal razoavelmente inteligente e nada mais.
Mas, logo se tornou evidente que era impossível tal mudança na sua atitude mental. Para êle, um fogo no seu quintal sempre haveria de ser
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 15
muito mais importante do que uma desastrosa erupção vulcânica no Antares avermellnado (que tem um diâmetro de 640.000.000 k m s e uma pancada suspeita no cilindro do seu carro significar-lhe-ia muito mais do que a notícia de que Betelgeuse (ia única estrela fixa que logrou introduzir-se nos suplementos domingueiros pelo seu peso ligeiro e grandeza), estava ameaçada de extinção. Não convém esquecer que uma forte dor no seu dente de siso o abalaria muito mais do que a notícia de que a velha e fiel lua se ia juntar às suas cinco irmãs anteriores para jazer no esquecimento.
E talvoz isso esteja certo.Enquanto os astrônomos ampliavam e alarga
vam o universo até ameaçar torná-lo grotescamente infinito, outros cientistas atacavam os átomos e, reduzindo aquele desditoso bocadinho a proporções cada vez menores, descobriram finalmente um mundo de partículas infinitamente pequenas, asquais, numa escala de 7õõM M mõJoõ de um mi- límetro, se divertiam com a regularidade e precisão de inúmeros e perfeitos sistemas solares ultrami- croscópicos, e realizavam tais maravilhas de equilíbrio, que o cérebro humano, tomado de vertigem, foi forçado a recusar crer serem possíveis tais cousas, pois do contrário ficaria completamente louco.
Sim, é melhor que o homem continue a ser centro do universo. Pelo menos até o dia em que ele possuir um cérebro verdadeiro.
16 HENDRIK VAN LOON
Contudo, revelações de tal natureza deviam exercar alguma influência, embora ligeira, sobre a raça humana, em face dos problemas da vida. E o herói que o leitor irá encontrar nas páginas deste livro, mostrará ser bem diferente do patriarca de outrora, o qual se considerava indicado para rei de toda a criação e, como tal, podia matar, assassinar e mutilar todos os seus vizinhos do reino animal, julgando que o universo nãc tinha outro fim senão fornecer-lhe alimento para a sua subsistência e suprir-lhe as múltiplas necessidades.
Pode êle ser o principio e o fim de todas as cousas (como lhe vem sendo dito há milhares de anos), mas, no intimo do sen coração, está começando a duvidar disso e gradualmente vai suspeitando de que não há comêço nem fim e que o “ aqui e agora” de há milhões de anos era exatamente o mesmo “ aqui e agora” de hoje e o “ ‘ aqui e agora” de daqui a bilhões de anos.
Êle pode ser o ponto culminante de perfeição entre todos os sêres vivos, mas prefere adiar o sm julgamento até que tenha descoberto a natureza da vida que se desenvolve em alguns dos bilhões de astros que lhe fazem companhia na sua viagem através dos espaços.
Em resumo, após uma volta de vários milênios, êle ousa uma vez mais cientificar-se daquele nobre e clássico ideal, que resume a filosofia de uma vida invejável nestas palavras magníficas:
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 17
“ Somos apenas insignificantes seres humanos e nada que pertença ao universo devemos considerar estranho para nós ou indigno da nossa atenção.”
Baseando o seu direito de investigação sobre a patente real de uma quase sublime curiosidade {que lhe foi legada no dia do seu nascimento), o herói deste livro pretende vasculhar cada canto, explorar cada região, investigar a significação oculta de cada fenômeno ao alcance da sua razão humana, sem respeitar nada além dos limites estabelecidos por aquela verdade demonstrável, que será a pedra angular do nosso desenvolvimento futuro.
Se êle for bem sucedido na sua busca, apregoa- la-á despretensiosamente. E, se for vencido pelas dificuldades que defrontar, confessará sem pejo a sua derrota, deixando o caminho para os outros mais bem preparados do que êle.
Acima de tudo, êle dirá “ sim” à Vida e, armado de paciência, indulgência e boa vontade, será inexoràvelmente impelido ao reino do desconhecido, até que a pequenina gota de energia, da qual se apossou por um curto espaço de tempo, seja necessária a um outro fim e êle abandone a tarefa sem uma única palavra de pesar, pois aprendeu que vida e morte são apenas expressões de uma mesma idéia e que nada neste mundo realmente vale a não ser a coragem com que se ousa atacar o tínico problema para o qual não há solução — o problema da existência.
18 HENDRIK VAN LOON
Bem sei que tudo isto parece um tanto complicado.
Mas, se o leitor o ler vagarosamente e repetidas vezes, não encontrará metade da dificiddade que pensa.
Os que acharem isso tarefa muito árdua, é melhor deixar o livro neste ponto. Êles cedo se aborreceriam e ficariam a imaginar o que seria tudo isso, por que teria sido escrito, e talvez julgassem aproveitar melhor o seu tempo indo a algum cinema.
Quanto aos outros, porém, os que já adivinharam o ponto a que quero chegar, esses não necessitam de uma nova introdução. Compreenderão que, embora eu não tenha solucionado definitivamente nenhum problema, trabalhei muito para demonstrar como e por que determinadas cousas atualmente acontecem de um certo modo, pois era essa a única maneira como poderiam ter acontecido. E nessas linhas podemos esperar que a humanidade se liberte da cruel tirania que por centenas de milhares de anos transformou a terra em matadouro, e que é o resultado direto e inevitável da covardia do homem, quando colocada junto à sua ignorância e a seus preconceitos.
E agora uma palavra final.A grande obra da libertação da humanidade
nunca será completada sem o trabalho constante e
IIISTÓRIA DAS INVENÇÕES 19
desinteressado da parte de um pequeno grupo de pioneiros escolhidos.
Alguns dos meus leitores talvez suspeitem que eu os deseje colocar entre esses líderes, cujos louvores canto nas páginas deste volume.
E têm razão se o suspeitam.Afinal de contas, foi por isso mesmo que es
crevi êste livro.
H. v. L.
Veere — 31 de agôsto de 1928.
20 HENDRIK VAN LOON
O Espaço
C A P I T U L O I
O HOMEM, O BICHO INVENTOR
Um belo dia, um grãozinho de poeira (pesando somente 6. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000. 000 toneladas, pequeníssimo como em geral são os meteoros) afastou-se da sua velha mãe, o sol, e resolveu estabelecer-se por conta própria.
Êsse acontecimento não causou grande agitação no Céu, pois o novo candidato às dignidades astrais era tão insignificante, que nenhuma das estrelas mais antigas e importantes, que moravam numa parte remota e respeitável do universo deu pela chegada do irmãozinho. Só se os seus habitantes (o que parece impossível) o tivessem notado por meio de telescópios bem mais possantes que os que atualmente se encontram em nossos observatórios.
Mas talvez seja melhor não nos aprofundarmos muito nos aspectos mais humilhantes do caso, porque, afinal de contas, não somos mais que prisioneiros desta pequenina bola redonda. E, queiramos ou não, este pequeno planeta é o nosso lar, e provàvelmente continuará a sê-lo por muitos e longos anos.
Não quero, porém, dizer com isso que nunca seremos capazes de nos aventurar pelo espaço,
22 HENDRIK VAN LOON
visitando casualmente outros mundos. Mas é meio duvidoso que os outros planêtas se prestem ao fim de acolher permanentemente os habitantes da terra, pois, ou são todos inabitáveis (como parece ser a maior parte dos planêtas do nosso sistema solar), ou são muito mais adiantados, pois devem ser bem mais velhos que êste nosso cárcere flutuante, e nós ficaríamos bem deslocados, num lugar que começou a aprender os rudimentos da civilização um ou dois milhões de anos antes de nós.
Isto me faz lembrar alguma cousa que me impressionou durante muito tempo.
Por que muitas pessoas tanto se interessam por contos policiais1?
“ É o mistério que as atrai ” , é o que geralmente se responde. Ou então: “ É a fascinação de observarem um simples e indefinido fio transformar-se numa cadeia de ferro de incontestável evidência.”
A meu ver, talvez seja esta a razão verdadeira. Mas, nesse caso, por que eu tão mais pessoas não estudam geologia, uma vez que a história do nosso planêta é uma série interminável de enigmas magníficos, sendo que até agora só poucos foram decifrados? Os outros obstinadamente se recusam a divulgar os seus segredos. Não se pode negar, porém, que entre todos estes enigmas não exista sequer um só que não possua a sua chave.
Os antigos povos sabiam disso, e forçaram os rochedos e planícies onde habitavam a contar-lhes muitas cousas acêrca de sua origem e passado próximo, os quais tinham uma tremenda importância. Seus sucessores, porém, os povos simples da Idade
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 23
Nosso cárcere flutuante
24 HENDRIK VAN LOON
Média, embora grandes heróis nos campos de batalha, pouco avançaram no Reino da Razão. Aceitaram sem discutir, sem saber por que, os ensina-
Solidifica-se a crosta da terra
mentos dos velhos livros. Era um sacrilégio manifestarem curiosidade acêrca do planeta em que viviam.
A Idade Média foi hoje relegada ao museu de curiosidades históricas. Mais uns dez ou vinte mil anos, e esta crostazinha onde nos movemos febrilmente terá tanto mistério como uma cápsula de aspirina ou um pastel de abóbora.
Talvez eu pareça um pouco exagerado demais com os meus milhares e centenas de milhares de
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 25
anos e muito me engane com os séculos. Não podia, entretanto, deixar de sê-lo, visto que as novas descobertas pré-históricas quase quadruplicaram o período que chamamos “ história” , o qual, no sentido exato da palavra, é o “ registro contínuo e metódico dos acontecimentos passados” . Além dis-
O mundo dos peixes
so, o sentimento da imensa duração da existência de todas as cousas que nos são familiares tonifica a alma, ensinando-nos a humildade e a paciência. Quando começamos a imaginar que os nossos antepassados levaram mais ou menos 500.000 anos para aprender a andar com as pernas traseiras, senti-
26 HENDRIK VAN LOON
mo-nos um pouco mais tolerantes com os nossos contemporâneos quando falham na solução de um importante problema em menos tempo que achamos necessário, e adquirimos por isso melhor juízo sobre nós mesmos. Não devemos, pois, julgarmo- -nos muito importantes. Nós — criaturas que só aparecemos na terra milhões de anos depois dos outros animais — tornamo-nos abruptamente soberanos do mundo, no qual só há bem pouco tempo tivemos permissão de entrar pela porta principal.
Ignoramos os diferentes passos tomados pela natureza até nos dar a forma elegante de bípedes. Desconhecemos os detalhes, mas, de um modo ge-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 27
ral, temos pelo menos uma suspeita de como isso aconteceu.
Tudo começou quando a crosta externa do nosso planeta esfriou suficientemente para suportar alguma espécie de vida. Foi então ràpidamente coberta por infinitas variedades de plantas e por multidões de sêres cobertos de carapuças, entes cegos que viviam exclusivamente dentro dágua e que foram incontestàvelmente os soberanos da terra.
O mamute agonizante
Sabemos que alguns dêles permaneceram fiéis ao mar e tornaram-se os ancestrais dos peixes de que hoje nos alimentamos; os outros adquiriram asas e foram os ascendentes dos nossos pássaros.
28 HENDRIK VAN LOON
Descobrimos também que outros, pertencentes à mesma família dos atuais lagartos e serpentes, se multiplicaram de tal forma que, durante longo tempo, pareceu que a terra iria ser permanentemente dominada pelos répteis. Por ser o clima daquela época (pensemos nos milhões de anos, e esqueçamos todas as datas gravadas na história, que não passam afinal de alguns segundos no calendário da eternidade), úmido e nevoento, foi muito favorável ao desenvolvimento de gigantescos monstros que povoaram tanto as águas como a terra, parecendo grandes couraçados animados de vida.
Sabemos também que êsse período, durante o qual o ar, a água e a terra estiveram sob o domínio exclusivo desses animais, os quais atingiram o tamanho de quarenta, cinqüenta e sessenta pés e possuíam estômagos tão grandes, como a cabina de um iate regular, repentinamente desapareceu, surgindo então uma nova era, que extinguiu completamente todos êsses monstros.
Como e de que modo êsses primitivos soberanos do mundo desapareceram da terra e por que hoje sobrevivem somente em edições pequeninas, é uma cousa de que até há bem poucos anos nada sabíamos. Agora, finalmente, estamos começando a compreender que o seu desaparecimento não foi devido a uma só causa mas a uma série de razões complexas, e à lei inevitável da natureza que controla o excesso de pêso de todos os sêres vivos.
É o que está acontecendo atualmente com os armamentos: as máquinas da guerra moderna tornaram-se de tal forma um embaraço à segurança mundial, que vieram a ser uma força duas vêzes
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 29
da que logo, por meio de seu próprio peso e da boas intenções do mundo para manter a paz. E â indústria bélica tornou-se tão incrivelmente pesa- mais forte que todas as Ligas das Nações e todas as
Uma peça de museu que dominou o mundo
os seres, cujos ridículos esqueletos se ostentam rindo para nós nos salões dos museus, espaçosos bas- sua grande quantidade chegará a ficar impossibilitada de locomover-se quer na terra, quer no mar ou no ar . . . E, como um carro na lama, vacilará, rangendo e gemendo.
Vítimas de semelhante desenvolvimento foram tante para tal exibição.
Aumentaram tanto de volume e a tal ponto fortificaram seus meios de defesa, até não mais po-
30 HENDRIK VAN LOON
derem andar ou nadar, sendo condenados a se arrastarem com dificuldade pela lama e pelo lodo dos pantanais intermináveis que cobriam o globo naquele período histórico, os quais não ofereciam outro alimento senão juncos e algas marinhas.
E quando ocorreram as mudanças de clima (e mudanças repentinas e violentas ocorriam muito mais naquele tempo do que hoje, em virtude da divisão mais equitativa dos oceanos e continentes), os estúpidos monstros não podiam voltar-se para a água ou para a terra em busca de novos meios de subsistência. E assim foram condenados a um desaparecimento completo, e os bilhões de sáurios que, durante milhões de anos, foram os dominadores exclusivos do nosso planêta, não sobreviveram para ver a chegada dos grandes mamíferos, e finalmente a aparição do homem.
É esta a história geralmente contada, mas eu duvido que esteja completa. Talvez exista uma outra fonte que não descobrimos, tão importante como qualquer das explicações dadas sobre tão imprevisto desaparecimento.
Naturalmente as mudanças climatéricas exercem uma influência muito importante sobre o bem- estar e a felicidade de todas as criaturas vivas, desde o micróbio até os aniimis.
Contudo, se não forem demasiado terrificantes que possam causar absolutas catástrofes (como aquelas acarretadas pela extinção das primeiras luas), nem sempre são assim fatais. Na verdade, elas têm muito em comum com as crises financeiras. Em uma como na outra, os que não estão preparados sucumbem.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 31
O Homem
32 HENDRIK VAN LOON
Aqueles, porém, que tomaram as medidas necessárias contra toda e qualquer eventualidade, podem resistir e sobreviver.
Esta observação me dá excelente oportunidade para apresentar o verdadeiro herói da nossa história e abster-me de filosofias, o que me é agradável, porém, maçante ao leitor.
Mas, ai! A grande aparição não se assemelhava em nada com um herói, mas sim com um bugio, um chipanzé ou um orangotango, dêsses que nos olham tristemente através das grades de ferro nos Jardins Zoológicos.
Não pretendo dizer com isso que a raça humana descenda de um dêsses macacos de aparência humana, nem tampouco que os homens são meramente gorilas civilizados e que têm razão por se sentirem envergonhados diante dos seus infelizes avós. Se assim fosse, seria uma explicação bem simples da nossa descendência.
Mas, de acordo com as nossas melhores informações, há milhões de anos, chipanzés, orangotangos, bugios e nós mesmos possuíamos um ancestral comum. Um ramo da família, porém, desenvolveu- -se mais e adquiriu nobreza e distinção, enquanto que os outros se contentaram em ficar exatamente como eram nos dias dos mamutes e dos ursos nas cavernas, isto é, criaturas gigantescas e desengonçadas que habitam os lugares sombrios das florestas incultas, ou que são apanhados, postos em jaulas e exibidos aos seus primos boquiabertos nas grandes cidades, como uma terrível advertência do destino que aguarda aquêles que são preguiçosos, in-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 33
competentes e tolos, incapazes de aproveitar as oportunidades que se lhes apresentam.
Acerca do processo que levou o homem da sua indigna posição de quadrúpede de longa cauda à
A Terra coberta de vegetação
mercê dos seus vizinhos mais fortes e bem armados até se tornar o rei da criação sem cauda e com duas pernas, nada sabiamos. Há muito pouco tempo gozamos a liberdade de estudar tal assunto científico, sem o risco de sermos queimados pela nossa curiosidade importuna e ainda ignoramos muitos dos mais importantes detalhes desta maravilhosa metamorfose.
Ainda assim, tivemos um grande trabalho para ao menos ter uma idéia geral dos acontecimen-
34 HENDRIK VAN LOON
tos desde a época em que os nossos tataravós animosamente resolveram sair dos hábitos estúpidos de mera existência animal e. com as mãos recentemente adquiridas, puseram-se a trabalhar.
Êsses nossos antepassados, tão semelhantes aos macacos, chegaram pela primeira vez à preeminência internacional, em um período de clima quente e estável, em que as águas dominavam mais do que hoje, e quando pequenas extensões de terra sêca, totalmente cobertas de florestas, tomaram o
lugar dos nossos atuais continentes. Essas florestas foram habitadas por diversas tribos, todas de origem simiesca. Viviam sobre as árvores e eram acrobatas maravilhosos, pois a sua segu-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 35
rança dependia exclusivamente de suas habilidades em saltar grandes distâncias, sem sequer vacilar. Embora não necessitassem de grande inteligência, êles foram obrigados a desenvolver maior
Os primeiros e dolorosos esforços
sagacidade que seus inimigos mais fortes, pois do contrário seriam comidos por êles.
Se tudo corresse bem e a terra tivesse ficado como estava (para horror de muitas pessoas honestas isso não acontece), não havia razão para que a raça simiesca não deixasse de tomar conta do mundo, tornando-se a soberana deste planêta, co-
36 HENDRIK VAN LOON
mo os répteis gigantes e os mamíferos colossais o haviam sido antes dela.
Mas, há mais ou menos dez milhões de anos, a terra pareceu sofrer outra mudança. E, como resultado, as águas diminuiram e a terra cresceu, tornando-se mais baixa a temperatura geral do globo, e menos úmido o ar. Em conseqüência disso, as condições tornaram-se menos favoráveis à vida vegetal e logo (isto é, depois de inevitáveis centenas de milhares de anos) as vastas extensões de
A ameaça
terra que, desde épocas imemoriais se conservavam cobertas de florestas, começaram a apresentar algumas brechas. E finalmente as florestas se foram encolhendo até se tornarem pequenas ilhotas
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 37
de árvores, circundadas pelas planícies cobertas de gramas e pelas montanhas nevadas.
Foi aí então que os nossos ancestrais tiveram a sua oportunidade.
Até aquêle momento eles levavam uma vida fácil e cômoda, passando rápidamente de um a outro lugar pelas intermináveis florestas. Despojados dos seus antigos e simples meios de locomoção, acharam-se desamparados como trens sem trilhos.
As montanhas, que cresciam levantando uma série de barreiras, dividindo o globo em compartimentos terrestres definidos, vieram agravar ainda mais a situação. Dali podiam fugir somente os pássaros e algumas variedades de insetos e borboletas.
Nessas condições, a lei da sobrevivência dos mais bem adaptados começou a se fazer sentir com resultados notáveis. A maior parte das criaturas semelhantes ao macaco submeteu-se ao inevitável; as tribos mais inteligentes, porém, bateram em retirada.
Levavam consigo apenas a coragem e o cérebro.Foi então que a nossa raça passou por uma
crise mais sensível, a qual determinou o futuro e o destino da humanidade.
Assim foi que o nosso antepassado primitivo se tornou inventor.
A palavra “ invenção” , em sentido moderno, sugere logo a idéia de aeroplanos, rádios e aparelhos elétricos complicados. Mas o de que pretendo falar agora é uma espécie bem diferente de inven-
38 HENDRIK VAN LOON
ção. Quero falar sobre as invenções fundamentais e elementares que, muito curiosamente, apenas uma espécie de mamífero parece ter podido inventar, a qual lhe deu oportunidade não só de -continuar vivendo enquanto a maior parte dos outros morriam, como conseguiu paia ele e seus descendentes uma posição preeminente e absoluta que força alguma será capaz de destruir, a não ser o próprio homem com a sua loucura e insaciável ambição, continuando até hoje a sua política de violência e de guerra, deixando-se matar fora de seu lar por infinidade de armas destruidoras, e famílias prolíferas de insetos, enquanto êle próprio se acha empenhado no seu habitual passatempo de matar o próximo.
Justamente neste ponto, alguém pode me interromper, perguntando: “ Que acha do poder inventivo dos animais? Não inventaram o ninho os pássaros, as vespas, as formigas e alguns peixes? Não fazem os castores genuínos e engenhosos arquitetos, reprêsas tão perfeitas como as feitas pelas mãos humanas? Não constrói a aranha toda a espécie de aparatos para caçadas, que são um terror para suas prêsas? E tantas outras armadilhas que muitos insetos arranjam para apanhar suas prêsas?” E outras perguntas mais.
A todas elas poderia dar a mesma resposta — é verdade. Sabemos, pois, que a invenção não é um privilégio dos homens. ^Uguns animais também inventaram cousas. Existe, porém, grande diferença entre êles e o homem. Os animais irracionais nunca deram origem a mais que uma sim-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 39
pies idéia nova. Somente um único esforço parece ter sido o bastante para esgotar o seu poder de imaginação. Depois, eles repetem o que aprenderam, de maneira absolutamente monótona e mecânica.
Os ninhos, teias e diques do ano da graça de 1928 não são diferentes dos que eles fizeram no ano 192.800.000 A. C. E, se admitirmos a sua sobrevivência, o que é duvidoso, êles ainda continuarão com os mesmos ninhos, teias e diques daqui a192.800.000 anos. Porque as suas invenções são simplesmente a busca do alimento quotidiano. Os mesmos animais, quando prisioneiros, cessam qua-
40 HENDRIK VAN LOON
se imediatamente de construir, e de bom grado, vivem com o que lhes é fornecido pelo dono. O homem, no entanto, embora primitivo, parece ter compreendido que havia alguma cousa mais na vida que o simples comer e beber; que só poderia dedicar-se aos problemas espirituais, se tivesse bastante repouso; que este descanso só poderia ser conseguido se se livrasse da fadiga e dos trabalhos penosos, e que esta libertação poderia ser acompanhada somente por uma variedade sem fim de “ invenções ” , que deviam ser baseadas na multiplicação e extensão ilimitada desses insignificantes e frágeis poderes com que a natureza o dotou desde o seu nascimento.
Esta frase é muito extensa; mas será a última de tal natureza neste livro. Não se podem discutir os problemas do amanhecer da existência do mesmo modo como hoje se fala do tempo ou das eleições a se realizarem. Precisariamos de palavras imponentes para expressar as grandes idéias. Se o leitor compreender o que tento explicar nesta página, entenderá qualquer outro ponto dêste livro. Por isso, nada perderá em reler repetidas vezes estas últimas cem palavras.
A raça humana, como a conhecemos atualmente, começou com uma enorme vantagem. Seus antepassados, em virtude do seu modo de viver entre os galhos das árvores, foram obrigados a desenvolver em grande escala a atividade mental e a sutileza nas decisões, muito antes que qualquer outro animal se achasse em semelhante e desesperada situação. Com êstes, a força bruta se opunha à força bruta. Entre os macacos foi apenas questão de
3
A chegada das geleiras
/
/
dedos ligeiros e sagacidade para se assegurarem contra as garras e os bicos que lascavam e dilaceravam as árvores.
Desaparecendo as antigas moradias, essas criaturas foram obrigadas a modificar seus modos de existência. Suas mãos e pés adquiriram tão impressionante agilidade, que foi relativamente fácil se firmarem nas pernas traseiras, enquanto que com as dianteiras se seguravam nos arbustos e juncos ao seu alcance, entre os quais caminhavam em busca de alimento.
Quando finalmente se acharam quase completamente despojados dos seus bangalôs verdejantes e foram obrigados a morar nas planícies, não eram mais simples tribos de animais trepadores, mas uma nova criatura estranha, que exercitava a arte terrivelmente difícil de andar com as pernas traseiras sem apoio de cousa alguma, libertando assim as patas dianteiras dos encargos de máquina auxiliar de locomoção. Puderam então usá-las para vários fins, como “ segurar” , “ carregar” e “ despedaçar” , o que até então fôra feito de maneira tosca e desajeitada, com o auxílio das fortes mandíbulas.
Foi o primeiro passo ao longo do caminho do progresso, e o responsável pelo segundo, ao qual se dedica êste livro, o qual consiste num processo gradual de multiplicação de poderes de nossas pernas, mãos, olhos, orelhas e boca, e no fortalecimento da resistência da pele através do que alcançamos a nossa presente posição de superioridade no reino animal, tornando-nos os indiscutíveis dominadores dêste planêta que é para nós tanto lar como cárcere.
/ 42 HENDRIK VAN LOON/
Mas isso não foi tudo. No momento exato em que os nossos antepassados foram rudemente colocados diante do dilema de permanecerem como es-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 43
O gelo
tavam e sucumbir ou tornarem-se alguma cousa melhor e sobreviver, a natureza veio auxiliá-los. O clima não somente se modificou o suficiente para reduzir as florestas, como também a diminuição das águas e a elevação das cadeias de montanhas (ou talvez algumas outras razões de nós desconhecidas ainda) deram causa a uma brusca baixa de temperatura geral na terra, surgindo então um ou-
44 HENDRIK VAN LOON
tro desses “ pseudoperíodos glaciais” , que até então com intervalos regulares haviam coberto a maior parte de ambos os hemisférios, norte e sul, com espessos lençóis de gelo e neve, obrigando todas as plantas e animais a se retirarem para uma faixa relativamente estreita da terra, que se estendia ao longo de ambos os lados do equador.
É um fato freqüentemente esquecido nos nossos tempos modernos (em que o trabalho se tornou quase que o único alívio para o tédio produzido por uma civilização puramente mecânica), que todas as cousas existentes são por natureza in~ dolentes. Como, porém, o problema da vida continua, todos lutam pela sobrevivência. No entanto, uma vez esta questão primordial resolvida, não haveria nem uma planta, nem um animal, nem sequer um pedacinho de coral que não preferisse a paz e o sossêgo à atividade e à agitação. Nem o leão, nem a árvore nem o camarão trabalhariam, se pudessem desfrutar o prazer do “ doce fazer nada” . E assim o homem não teria alcançado as suas gloriosas vitórias presentes, se não fosse impelido à ação pelas necessidades brutais, inevitavelmente associadas àquele fatal e longo período em que apenas uma oitava parte da terra era habitável.
Nem antes nem depois, jamais o homem deu passos tão largos no campo do desenvolvimento, como naqueles horríveis períodos em que as geleiras o cercavam de todos os 'ados, os verões se reduziam a poucos dias e toda a terra, desde o pólo norte até os Alpes, era um vasto lençol de gêlo
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 45
Ouvimos muitas referências acerca da proverbial “ escola do chicote” que se supõe ser a melhor instituição de aprendizagem. A julgar, porém, pelos resultados da “ escola das geleiras” , esta foi a escola de treinamento mais eficaz que a raça humana já freqüentou.
O artigo 1 do currículo glacial reza: “ Se não usares o teu cérebro até à extrema possibilidade de desenvolvimento, perecerás” .
Os nossos ascendentes daqueles longos e remotos dias eram ignorantes, selvagens e mal cheirosos, que pouco se diferenciavam dos animais seus vizinhos.
Mas muito lhes perdoamos, quando nos lembramos da coragem que os fazia enfrentar os tremendos combates contra a natureza e lutar contra uma força superior, que a nosso ver seria uma luta sem esperança.
E, como êles conseguiram isso pelo processo muito simples de multiplicarem até um grau quase ilimitado as forças que jaziam inativas em suas mãos, pés e olhos, é o que eu agora tentarei contar ao leitor.
C A P I T U L O II
DA PELE AO ARRANHA-CÉU
Todas as invenções já idealizadas têm por objetivo principal auxiliar o homem na sua louvável luta de passar pela vida com o máximo de prazer em troca do mínimo de esforço.
Algumas delas, porém, são meras multiplicações (extensões, intensificações ou aumentos) de certos atributos físicos, tais como “ falar” , “ andar” , “ atirar” , “ ouvir” , ou “ ver” , enquanto que outras são o resultado do desejo do homem de poupar dignamente suas faculdades físicas e mentais.
A divisão que aqui proponho é um tanto vaga. Muitas das invenções ficam ocultas. Assim também se dá com todas as tentativas de classificação científica. A própria natureza é extremamente complicada e o homem o mais complicado de todas as suas realizações. E, como conseqüência, todas as cousas ligadas ao homem, seus desejos e suas
48 HENDRIK VAN LOON
realizações são uma longa série de contradições das mais extravagantes.
É meu dever dizer que. se por acaso o leitor fôr um apreciador de classificações completas, encontrará muitas cousas neste livro que o irritarão terrivelmente e melhor seria então trocá-lo por um manual de botânica ou alguns guias, os quais não terão certamente exageros ou erros.
Tomemos, por exemplo, as invenções ligadas com a pele do homem. Pertencem elas à primeira divisão — as invenções ligadas às necessidades vitais — ou à segunda divisão (a qual explicarei mais adiante) — as ligadas à manutenção e à conservação? Realmente não sei, mas resolvi incluí- -las neste volume. Hoje em dia nós as aceitamos tão absolutamente que até parecem pertencer à segunda divisão, não tendo outro fim a não ser o da manutenção” . No começo, porém, as invenções tinham por objetivo evitar que os homens morressem. Por isso, vou incluí-las aqui.
Ei-las.A princípio, os animais viviam em estado de
completa nudez. Embora sentissem frio, não pensavam em abrigar-se da neve, das rajadas do vento gelado, protegendo a sua pele com calor artificial, fornecido pela pele de seus irmãos mortos. Às vezes, procuravam o abrigo de um rochedo durante uma saraivada ou uma tempestade de neve. Foi isto, porém, o máximo a que chegaram.
A idéia de vestir um casaco quando faz frio é tão simples, que quase não podemos crer na possibilidade de uma época em que o homem ainda não havia aprendido que podia resguardar o seu corpo contra
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 49
as mudanças repentinas de temperatura, cobrindo- se com uma pele ou com um tecido vegetal; peles tiradas dos animais mortos, casacos de lã e de linho e mantas tecidas de capins ou folhas de árvore.
(A PELE)O primeiro casaco
O leitor, porém, notará através destas páginas que muitas vêzes as inovações mais simples foram as últimas a serem idealizadas e que custou uma grande soma de perseverança e habilidade a centenas de milhares de povos inteligentes o desenvolvimento das mais simples e práticas invenções, até chegarem a uma solução prática.
50 HENDRIK VAN LOON
Na verdade, nunca soubemos os nomes desses reais pioneiros do progresso. E, contudo, deve ter havido um “ primeiro” a vestir-se do couro de uma vaca ou da pele de um urso, assim como em nossa época houve um “ primeiro” a falar pelo telefone e um “ primeiro” a ouvir os débeis sons de um telegrama. Creio que o primeiro homem que vestiu um agasalho causou maior sensação que o primeiro a atravessar a Quinta Avenida num carro sem cavalos.
Provavelmente ele foi vaiado e perseguido.É até provável que tivesse sido assassinado
como um feiticeiro perigoso, por ter tentado interferir nos desígnios dos deuses, os quais, no começo da criação haviam decidido que o homem sofresse frio no inverno e calor no verão.
As peles, contudo, multiplicaram-se abundantemente, o que era natural mm mundo que vivia da caça, e ainda hoje são usadas, como se pode observar se olharmos pelas nossas janelas.
No entanto, as peles de animais mortos tinham muitas desvantagens. Em p:.'imeiro lugar, exalavam um cheiro terrível, pois o homem pré-histórico não possuía outros meios de prepará-las a não ser secando-as ao sol. O mau cheiro, porém, nada devia significar para pessoas habituadas a passar os dias e as noites entre os resíduos apodrecidos dos seus alimentos. As peles, porém, rachavam-se facilmente e não se adaptavem bem ao corpo em conseqüência do que ficavam cheias de furos, não servindo para ser usadas durante os aguaceiros e as tempestades de neves.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 51
Então os “ Curiosos” (as únicas pessoas que fizeram alguma cousa que valesse a pena ser lembrada pela raça humana), disseram para si mesmos: “ Não poderemos nós descobrir uma cousa mais confortável que possa substituir a pele?” Pu- seram-se, pois, a trabalhar e produziram artigos convenientes, que representaram um papel importantíssimo na história da civilização. São esses produtos que hoje conhecemos pelos nomes de algodão, lã, linho e seda. Parece que todas essas descobertas foram conhecidas na Ásia antes que chegassem até nós.
O leitor talvez objete que a palavra “ parece” surge freqüentemente nestas paginas, dando-lhe a impressão de que tenho pouquíssima confiança nas minhas narrações científicas. Pois não está muito errado. Sou como uma pessoa que quer decifrar um intrincado enigma dentro de um quarto escuro. Há cinqüenta ou sessenta anos, era ainda desconhecida a pré-história. Diziamos: “ A civilização começou quando Abraão deixou a terra de Ur” ; porém, se eramos ainda mais ousados, voltavamos há 2.000 anos atrás, proclamando audaciosamente: “ A civilização começou com os egípcios e os babilônios” .
E, no entanto, sabemos que a história chinesa foi muito mais antiga que a da Ásia Ocidental e a da África do Norte, mas os chineses eram pagãos e viviam distantes, e por isso raramente nos preocupamos com eles. Somente por uma casualidade escrevemos sobre a “ Guerra do Ópio” ou o “ Saque de Pequim pelos aliados” , quando lhes dedicamos então um pequeno trecho de meia página.
52 HENDRIK VAN LOON
Gradualmente, porém, algumas pessoas chegaram à conclusão de que a idéia de fazer a história começar numa data definida — 4.000 anos A. C. ou2.000 anos A. C. — era um tanto absurda e mesmo infantil. Começaram então a fazer escavações nas ruínas da Dinamarca, acenderam uma vela ocasional nas cavernas da França Meridional e do Norte da Espanha, tomando precauções para que as estátuas curiosas e os crânios quebrados encontrados no solo da Alemanha e da Áustria, não fossem mais vendidos aos antiquários. Acharam-se por fim possuidores de material tão interessante, que foram obrigados a confessar que os antepassados desprezados da era glacial não haviam sido ignorantes e brutos como julgavam, e que a afamada civilização dos egípcios e babilônios fora simplesmente a continuação de certa cultura de outras gerações, cujos vestígios já haviam desaparecido milhares de anos antes das construções das pirâmides.
Se é verdade o que afirmam hoje alguns sábios professores, que foi encontrada a chave das misteriosas inscrições das cavernas da França Meridional, poderemos estender o período da história registrada pelo menos até 10.000 anos atrás. Diremos então cento e cinqüenta séculos de progresso do homem, em vez de cinqüenta, como o diziamos.
Uma vez mais, porém, devo advertir o leitor que todo êsse campo de contecimento é pràtica- mente inexplorado e que sabemos tão pouco acerca do estado da Europa ou Ásia no ano 15.000 A. C. como sobre o fundo do oceano. Tôda pessoa sensata, contudo, vê que um perfeito conhecimento da profundeza do oceano é mera questão de tempo.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 53
O mesmo se dá também com o período pré-histórico. Dêem-nos bons e sérios investigadores e alguns anos de paz (pois bombas e granadas não são as melhores cousas do mundo para se entesourar ocultamente, como jarras e potes), e certamente obteremos tantas informações do último período glacial, como as que hoje possuimos sobre o Rei Ti- glath.
Sabemos por certos desenhos pré-históricos (e alguns dos nossos remotos ancestrais foram artistas notáveis), que o homem se cobria com as peles sêcas de animais mortos. Mas, em que período exatamente transformou suas peles mal preparadas em couro comum, é uma cousa de que não temos informações definidas. Fàcilmente, porém, podemos descobrir, usando um pouco do nosso bom senso, e investigando as evidências detalhadas que estão à nossa disposição.
As peles se transformam em couro por um processo que chamamos “ curtimento” , que, segundo o dicionário, é “ um processo pelo qual as peles cruas mergulhadas em um líquido contendo ácido tânico ou pelo uso de sais minerais, se transformam em couro.”
A questão seguinte é: “ Qual foi o povo da antiguidade que mais sabia da arte de curtir peles com sais minerais?” A resposta é: “ Os egípcios, cujas convicções religiosas os obrigavam a conservar os seus mortos o mais longo tempo possível, naturalmente foram os que aperfeiçoaram a arte de embalsamar, muito antes que qualquer dos povos vizinhos pensasse em tal possibilidade.”
54 HENDRIK VAN LOON
Se visitarmos o Yale do Nilo, constataremos que os egípcios foram habilíssimos na arte de curtir, muitos séculos antes que outra nação qualquer do antigo mundo, e que a oficina do sapateiro
(A p e l e )O curtimento
(que para o mundo inteiro parecia ser um daqueles estabelecimentos de conserto rápido, tão populares nas nossas modernas cidades' foi um dos primitivos desenhos encontrados nos túmulos dos reis tebanos.
Do Egito a arte de curtir passou à Grécia. Os gregos, porém, tinham um gosto mais apurado; eram filósofos, e queriam discutir os sérios problemas da vida mais à vontade, preferindo, pois, uma confortável túnica de lã a um gibão de couro. Por isso, na Grécia, a indústria do couro não pro-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 55
grediu muito. Foi então rapidamente introduzida em Roma, onde quase todos os homens eram soldados e necessitavam de sandálias reforçadas, correias de elmos e couraças, as quais tinham de ser fabricadas de couro de vacas e carneiros, de tal modo preparado que pudesse resistir ao calor do Saara e à umidade da Escócia.
Durante esse tempo, no Egito mesmo, surgiram vários substitutos de peles, que alcançaram alto grau de perfeição. No Vale do Nilo como nos vales do Tigre e do Eufrates, era maior a neces-
(A PELE)A cultura do linho
sidade de proteção contra o calor que contra o frio. Por isso tentaram, em época ainda remota, descobrir uma vestimenta mais fresca que a pele de um burro ou a de uma cabra. Depois de milhares de
56 HENDRIK VAN IOON
anos de experiencias com diferentes espécies de arbustos, folhas de árvores e outros vegetais, tecidos de todos os modos, chegaram à conclusão de que o talo do Linum usitatissimum, que chamamos “ fibra de linho” , era o mais próprio para as experiências da futura indústria têxtil.
Parece ser opinião geral que uma metade do mundo vivia na completa ignorância do que a outra metade fazia, isso antes de existirem o telégrafo e os jornais. Mas ambos, tanto o telégrafo como os jornais, servem não só para transmitir informações errôneas, como para espalhar as notícias verdadeiras e seguras.
Centenas de séculos atrás, notícias tão interessantes, como a que os chefes dos habitantes das cavernas do Dordogne haviam comido ao jantar ou o que os povos dos lagos da Suíça estavam usando como traje de outono, talvez nem chegassem às tendas dos caçadores de mamute na Baixa Sibéria. Sempre, porém, que sucedia alguma cousa de real importância, tôdas as vêzes que surgia uma nova invenção, a qual aumentava o poder do homem sobre as forças da natureza, parece que os chineses sabiam disso ao mesmo tempo que a gente de Creta e os povos do litoral do Atlântico. Não pretendo dizer com isto que todos aquêles que ouviam as boas novas igualmente as aproveitaram bem. Não faziam mais do que o fazemos hoje. A indiferença e a ignorância, e sobretudo o médo do desconhecido, sempre foram os inimigos de im progresso regular. Dissiparam-se entretanto as sombras das dúvidas pelas descobertas feitas nas cavernas e sepulturas, que provam que as invenções (que con-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 57
correram para o interesse comum) foram espalhadas com rapidez surpreendente.
Se assim não fosse, não teríamos descoberto as provas da cultura da fibra do linho ao longo das costas das lagoas suecas, ao mesmo tempo que estava sendo também desenvolvida no Yale do Nilo, pois estes dois lugares se situavam nos extremos da terra habitável. Mas, quando e onde esta planta foi cultivada pela primeira vez, é mais uma das muitas cousas que nunca poderemos saber, assim como também ignoramos a origem do algodão, que vimos primeiro na Pérsia e alguns anos depois na Mesopotâmia.
Segundo Heródoto, o algodão veio da índia, porém, as plantações e colheitas foram tão complicadas, que êle não pôde alcançar a popularidade do linho e da lã, como material adequado na manufatura de substituição em grande quantidade das peles. Êste fato nos é familiar, mas o problema é tão velho como as montanhas, e data da última metade da Idade da Pedra.
A princípio, não era quase necessário “ a produção em massa” , pois nos períodos glaciais os povos viviam errantes. Os regimes e as condições, sob as quais viveram, foram piores que os dos mais humildes moradores dos bairros pobres do ano de 1928. A maioria dos ossos achados nas cavernas e nos leitos dos rios assinalam essas terríveis moléstias, inevitáveis dos homens que dormem em quartos úmidos, as quais levam suas vítimas à sepultura, muito antes de alcançarem os quarenta anos.
A mortalidade infantil parece ter atingido
58 HENDRIK VAN LOON
uma proporção tão elevada como a da Rússia durante o reinado dos Czares — pouco mais de cinqüenta por cento. Um longo e frio inverno teria despovoado regiões inteiras, como é comum hoje entre os esquimós e alguns índios da zona norte do
(A p e l e )O bicho da sêda
Canadá. Os sobreviventes foram muito poucos; mas com a exploração das grandes regiões do Nilo e do Eufrates, produtivas de cereais, a situação mudou. O homem pôde finalmente multiplicar-se à vontade, e grandes populações habitavam o mesmo lugar. As cidades começaram a se desenvolver, e era preciso que os seus habitantes estivessem providos de roupas, que ao mesmo tempo fossem abundantes e baratas.
A indústria de lã foi a solução. Surgiu, sem dúvida, do lavrador que primeiro achou possível
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 59
domesticar os animais, os quais os romanos denominaram “ ovis” e que nós chamamos “ carneiro” . Êste primeiro pastor deveria ter morado em algum lugar entre as montanhas da Ásia Central, pois foi do Turquestão que a indústria da lã se estendeu para o oeste, atravessou a Grécia e Roma, chegando até às Ilhas Britânicas, as quais continuaram esta indústria durante mais de mil anos, conservando-se o maior centro de produção de lã do mundo, usando êste artigo de exportação como monopólio econômico, ao qual faziam todas as nações vizinhas se submeterem.
(A PELE) Os teares
Todas as outras nações (e durante muito tempo depois da sua descoberta, até o povo da América) dependiam da Inglaterra para o suprimento
60 HENDRIK VAN LOON
de lãs brutas. Os ingleses astuciosamente monopolizavam esse comércio, como o faria qualquer outro país que tivesse sob sua dependência as nações vizinhas no mercado de algum produto de consumo.
As baladas e sagas medievais referem-se sentimentalmente à fiação e à tecelagem, mas não podem encobrir das nossas vistas o fato de que as mansas ovelhinhas lanígeras tivessem causado tanto derramamento de sangue como umas cinqüenta minas de diamantes ou poços de petróleo.
Neste particular, a lã foi bem diferente de um outro substituto da pele, o qual foi de origem bem mais modesta. Refiro-me à sêda, a qual é fiada por uma miserável larva, com o nome pomposo de Bornbyx mori.
Era inevitável a aparição de algum outro tecido semelhante à sêda, nos mercados do mundo que se dedicam à Feira da Vaidade, pois o homem não é somente uma criatura indolente como também excessivamente vaidosa. De que valeria o dinheiro no bolso, se êle não pudesse provocar a inveja dos seus vizinhos com exibições de trajes raros e custosos? Quando o mundo caminha ves- tindo-se de linhos e de lãs, não há prazer nenhum em se pertencer à caravana da lã. Os pobres ricos foram então tristemente obrigados a fazer a sua escolha entre, ou descobrir ums novidade dispendiosa para seus agasalhos, ou não usar vestimenta alguma.
Nesse momento veio salvar a situação um inseto chinês, cujo produto valia naqueles tempos o seu pêso em ouro.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 61
0 Bombyx mori surgiu lá de um recanto remoto da Ásia Oriental, e foi recebido com aclamações entusiásticas. Coube aos chineses a glória de descobri-lo, reconhecendo a sua utilidade à causa da beleza e da civilização. Tornaram-se tão orgulhosos da descoberta, que a declararam de origem divina. E, segundo a tradição, foi a bela Si-lung, esposa do famoso Imperador Huang-ti, (que viveu mais de mil anos antes de Moisés) a primeira a estudar cientificamente os importantes seresinhos rastejantes, cujas pequeninas glândulas expelem quase mil jardas de fio sedoso, ao chegar o tempo de êles se recolherem aos seus casulos.
E tão encantados ficaram os filhos de Han com os resultados obtidos pela sua querida imperatriz, que resolveram guardar a manufatura da seda como um segrêdo, o que perdurou durante mais de vinte séculos. Foi então que os japoneses enviaram uma delegação de comerciantes coreanos ao Sagrado Império, os quais induziram algumas jovens chinesas a irem ao Japão ensinar a seus primos a nobre arte do tecido da sêda.
Algum tempo depois, uma princesa chinesa, escondendo sementes de amoreira e ovos do Bombyx mori no seu penteado, levou assim de contrabando até à índia o precioso tesouro. Daí começou então a sua vitoriosa viagem rumo ao ocidente.
Alexandre, o Grande, parece ter ouvido falar sobre o fato, durante a sua afamada campanha no Oriente. Também Aristóteles menciona a larva. Alguns séculos mais tarde, as elegantes patrícias de Roma, cujos esposos podiam sustentar-lhes o luxo, passaram a usar sempre a sêda.
62 HENDRIK VAN LOON
Mas, a seda permaneceu quase tão rara como a platina o é lioje em dia, até o fim do Século X V I da nossa era, quando dois monges persas, escondendo cuidadosamente no gomo de um bambu uma pequena colônia de bichos de seda, passaram a fronteira chinesa, levando triunfantes o contrabando ao Império Eomano Oriental, em Constantinopla. Tornou-se assim aquela cidade o centro comercial da seda na Europa.
Quando os cavaleiros das Cruzadas saquearam aquelas regiões sagradas, levaram suas malas recheadas de fardos de sedas roubadas. Foi assim que, quase trinta séculos após a invenção dos chineses, a indústria da seda foi introduzida na Europa ocidental. Continuou ela, contudo, a ser um grande luxo. Era um motivo de orgulho para um príncipe borgundio o poder juntar ao enxoval de sua filha “ um par de meias de seda” . Seiscentos anos mais tarde, a Imperatriz Josefina, frívola e vaidosa, quase que pràticamente arruinou o seu marido com as numerosas meias de sêda que encomendara, aproveitando-se da ausência dêle, o qual havia partido em conquista da Europa.
Esta situação não podia continuar, pois todas as mulheres se achavam com direito de se vestir como a imperatriz da França. Desde então não houve mais bichos de sêda suficientes no mundo inteiro para satisfazer as exigências da nova indústria democrática. Os químicos prontamente foram chamados a preencher a lacuna. Puseram êles mãos à obra e conseguiram logo uma forma de sêda artificial, feita da mesma substância do nosso papel moderno. Era um tecido ordinário e pou-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 63
co durável. Mas estamos atualmente numa época de rápidas mudanças, que preocupam bem poucas pessoas, e hoje em dia as mulheres saem à rua ostentando a sua roupa de tecidos tirados da madeira.
Assim foi também com os diferentes materiais usados como substitutos do couro de vaca dos nossos ancestrais mais primitivos. Variaram muito em preço, contextura e arte, mas o fato curioso é
(A PELE)O casaco com acumuladores
que a idéia fundamental sobre o vestuário continuou a mesma, desde que o homem primitivo tirou a pele de um cavalo para com ela cobrir-se.
64 HENDRIK VAN LOON
Recentemente, o frio extremo e terrível a que se expõem os aviadores em elevadas altitudes determinou a invenção de “ roupas de vôo” , capazes de conservar a temperatura constante com o auxílio de um pequeno acumulador elétrico.
A invenção de acumuladores ainda menores, os quais podem ser conduzidos nos bolsos do colete, provavelmente revolucionará a indústria de confecções de roupa dentro de uns cinqüenta anos. E, então, em vez de pedirmos emprestado o casaco de uma a outra pessoa, pedir-lhe-emos apenas que carregue novamente o nosso acumulador, enquanto fumamos um cigarro diante do seu aquecedor elétrico.
Atualmente isso parece um tanto absurdo; eu, porém, não sou um homem muito velho, e, no entanto, quando jovem, daria boas risadas se alguém dissesse que no ano do Senhor de 1928, todos os cidadãos andariam em seus carros particulares. Por que não esperar, pois, uma época sem agasalho, que nos livrará de carregar uma carga extra de couro e pele, e evitará o insuportável incômodo de exploradores de vestuários?
É um desejo piedoso.Oxalá que logo se realize.
E agora uma outra invenção, que está intimamente ligada ao desejo do homem de aumentar o poder de resistência da sua pele: é, porém, uma invenção inteiramente diferente.
Seria fácil dizer que ela foi o resultado de um esforço para a proteção do corpo humano contra o
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 65
calor e o frio, mas isso não seria completamente verdadeiro. Outros elementos contribuiram para se fazer um novo substituto da pele, o qual chamamos “ casa.” O principal deles foi a necessidade que ti-
(A p e l e )O abrigo nos rochedos
nham os mamíferos de abrigarem os seus filhos por mais tempo que outro animal qualquer. Necessitavam para isso de um sítio seguro, onde a família inteira pudesse permanecer reunida por dois ou três meses, a fim de aprender os rudimentos da profissão dos pais, até que crescessem o suficiente para poderem viver por si.
66 HENDRIK VAN LOON
Acharam a princípio bons alojamentos nas cavidades das árvores ou no interior das cavernas, formados pela ação das águas. Eram próprias para serem ocupadas, quando livres dos oceanos que recuaram, ou dos rios, cujos leitos foram limitados a trinta ou quarenta pés abaixo de seus antigos níveis.
Mas essas primitivas casas não eram muito atrativas. Milhões de morcegos aí viviam, porque a claridade do dia raramente penetrava naquelas
(A PELE)A casa de g ílo
grutas escuras. Pior ainda, tigres de dentes afiados e ursos gigantes, de uma espécie hoje extinta, também se consideravam com o direito de inquilinos. Misturas de esqueletos humanos e de ossos
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 67
de animais, achados no fundo dessas cavidades, cobertos de uma poeira acinzentada, contam a empolgante história das lutas desesperadas travadas por causa de uma habitação, na qual hoje nós nem poderíamos abrigar porcos.
(A PELE)A casa lacustre
As cavernas, no entanto, não foram habitadas por muito tempo. Algumas foram conservadas como sagradas, mas a maioria foi abandonada e deixou de ser habitação, logo que descobriram como fazer um substituto para elas, ou melhor, como dizemos hoje, logo que .construíram uma “ casa.”
Na pesquisas consecutivas para se proteger contra o frio e o calor, o homem arquitetou cons-
68 HENDRIK VAN LOON
trações bastante singulares. Em alguns lugares do globo, ele construiu casas com blocos quadrados de gêlo. Em outros, teceu seus abrigos com ramos de árvores, cobrindo-os de capins e folhas.
A casa mais primitiva entre todas foi a inclinada. Sobrevive hoje apenas como abrigo para os caçadores surpreendidos pela noite, e como residência de certos nativos menos civilizados da América do Sul e da Austrália.
Em seguida apareceram as casas feitas de barro cozido e cobertas de palha. Depois, a casa de madeira tosca. Esta se transformou na chamada casa lacustre, feita sobre estacas, de que encontramos hoje vestígios em diversos lugares, sendo ainda muito comum em certas regiões tropicais banhadas por rios e lagos.
Pensam alguns que essas casas construídas sobre estacas eram feitas com o fim principal de segurança. Outros, porém, julgam que eram feitas assim pela conveniência da proximidade da água. O início do senso de decência no homem (o que realmente significa um início de civilização) foi o seu desejo do asseio pessoal, de vestuários e de ambiente. A Europa se ri da América pela sua insistência em banheiros e esgotos, o que talvez seja um pouco de exagêro da nossa parte. Atenas não foi cidade desprezível, no entanto os porcos andavam pelas ruas colhendo os refugos. Paris medieval fêz contribuições importantes às letras e às artes sem perder muito tempo e dinheiro com o problema de higiene. Sem dúvida, se pudéssemos escolher onde viver, seria mais agradável num lugar que se orgulhasse dos seus quintais limpos, do
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 69
que em uma região onde a família e o adubo estivessem aglomerados sob o mesmo teto.
Há 20.000 anos já se sabia disso como hoje o sabemos, e aqueles mais desejosos de asseio começaram a fazer suas casas a cinqüenta ou cem pés da praia. Para se abrigarem do sol e da chuva, cobriam-nas com telhados, enquanto as águas embaixo faziam as vezes de esgoto e os peixinhos de saneadores, o que na verdade era uma combinação ideal.
Isso foi um grande progresso relativamente ao que houvera antes, mas as pessoas eram ainda obri-
(A PELE) Casa de verão
gadas a compartilhar da mesma barraca, por motivo de maior segurança. No entanto, ao tornar-se um pouco menos urgente o problema da sobrevi-
70 HENDRIK VAN LOON
vencia, o homem deu um segundo passo à frente, descobrindo o encanto e as vantagens espirituais de uma propriedade privada.
(A PELE) Casa de inverno
Pois o retiro é um dos maiores de todos os tesouros humanos: infelizmente, porém, custa caro. É um luxo que somente os muito ricos se podem dar. Atualmente, porém, uma família, ou mesmo uma nação que tenha alcançado certo ponto de bem- -estar, logo reclama o direito de isolar-se. E foi por isso que a casa individual foi construída.
Durante os períodos de abundância, os homens pensavam menos em compartilhar as suas casas com os outros, do que pensaríamos hoje em usar os casacos e as escovas de dentes de outras pessoas.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 71
Às vezes, porém, como na antiga Roma, sempre que muitos escravos se reuniam em um local demasiado pequeno, surgiam as inevitáveis casas de habitação coletiva. As pessoas que se alojavam nesses calabouços escuros, que os romanos julgavam convenientes aos pobres agricultores que iam à grande cidade na esperança de que aí seriam menos miseráveis que em suas terras assaltadas pela guerra, nunca poderiam acostumar-se àquelas sufocantes barracas e nem se adaptar aos bairros pobres e imundos. Logo que podiam, voltavam à sua “ casa de uma família só” .
Durante a Idade Média, em certos lugares da Europa, o respeito pela habitação do homem tornou-se tão grande, que dizer-se “ minha casa é meu castelo” era mais que uma simples frase. Era um programa político, sendo necessário a escritura, a qual valia mais que um grande título.
Nos tempos modernos, porém, as grandes fábricas, que por conveniência são construídas junto às minas de carvão ou ao longo de prósperos portos, obrigaram o homem a voltar ao modo de vida dos habitantes das cavernas, o qual fora abandonado como indigno de sêres humanos decentes. Como resultado, as grandes cidades do Oeste tornaram-se uma gigantesca acumulação de abrigos amontoados uns sobre os outros, sem a mínima consideração ao sagrado direito de propriedade individual, oferecendo aos cidadãos tanto espaço quanto gozam as sardinhas numa lata.
Felizmente uma grande mudança está-se aproximando. Em todo o mundo, o povo se revolta contra o absurdo dêsses formigueiros humanos. A
72 HENDRIK VAN LOON
maioria das famílias é ainda muito pobre para pagar mais que uns dois quartos em prédios de cinco andares de pedras ou de madeira, cujos dormitórios e salas são repartidos com centenas de vizinhos, uns sobre os outros. Os que podem, porém, desenvolvem um novo plano de vida muito superior à dos seus antepassados. Fazem como certos
(A PELE)A cidade moderna
pássaros: emigram. Têm êes duas residências: uma localizada nas regiões semitropicais onde passam o inverno, livres assim dos rigores do vento frio do norte; outra no meio das florestas do Nor-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 73
te, escapando ao sufocante calor dos meses de verão que tornam as ruas dos arranha-céus enfileirados, verdadeiras vias públicas do inferno.
(A PELE) Aquecimento central
Parece um sonho que algum dia a humanidade possa mudar-se de um clima para outro, segundo as estações. Na América, este sonho está-se tornando realidade para grande número dos seus habitantes.
Daqui a 10.000 anos, os nossos descendentes pensarão que nós, que vivemos no século vinte, pelo menos em questão de moradia, fomos contemporâ-
74 HENDRIK VAN LOON
neos dos habitantes das cavernas e dos lagos, e as ruinas de Nova Iorque e Chicago os convencerão, pelos amontoados de pedras e aços, de que foram construidas durante a última metade da Idade da Pedra.
Uma cousa era achar abrigos contra a neve e a chuva, e outra, bem menos fácil, era conservá- -los aquecidos.
Por esse motivo, a invenção da casa foi seguida de perto pela descoberta do fogo, como meio de aquecimento. O fogo aberto, a primitiva forma de aquecimento, sobreviveu até os nossos dias, mas somente para fins ornamentais, pois é tão incômodo no ano de 1928, como nos dias em que servia para fritar diàriamente um bom bife de mamute, queimando os dedos dos pés do homem, enquanto as suas costas ficavam geladas como se não houvesse absolutamente fogo.
Os fornos grosseiros de algumas tribos primitivas da Escandinávia atestara a procura de alguma cousa mais prática que uma simples fogueira.
Infelizmente os egípcios e os babilônios, os mais inteligentes entre os inventores da antiguidade, viviam em clima tão ameno, que não precisavam preocupar-se com os fogões. Mas os gregos, como todas as pessoas sensatas, sabiam que os pensamentos elevados são incompatíveis com a vida sem conforto, e seriamente se dedicaram à tarefa de descobrir um meio mais conveniente de produzir calor. Descobriram então que o ar quente era
um ótimo substituto para a pele, no intuito de conservar a temperatura sempre igual.
O palácio de Cnossos (a capital de Creta que dominou a parte oriental do Mediterrâneo há mil
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 75
(A PELE)Braseiro de carvão vegetal
anos A. C.) era guarnecido com radiadores. E os romanos que, como verdadeiros povos do Mediterrâneo, detestavam o frio, construiam suas casas de tal maneira que todos os compartimentos pudessem ser aquecidos por uma fornalha colocada do lado externo da habitação, cujo fogo era conservado sempre aceso por alguns escravos forneiros,
76 HENDRIK VAN LOON
que vigiavam para que a temperatura fosse sempre igual e o ar quente penetrasse constantemente através de toda a casa.
Mas, durante o terceiro, o quarto e o quinto séculos, quando a Europa foi invadida pelos bárbaros do interior da Ásia, os quais tinham um profundo desprezo pelo que êles chamavam de “ brandura” (a mesma “ brandura ’ que, durante mais
(A p e l e )O fogo aberto
de seiscentos anos, impediu cue êles entrassem em Roma), o conforto — no sentido grego e romano da palavra — desapareceu da face da terra. Quase
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 77
todas as casas romanas foram destruídas. Os templos foram transformados em estábulos. As propriedades de verão pertencentes aos nobres roma-
(A PELE)O aquecedor elétrico
nos foram transformadas em fortificações. Os antigos teatros foram usados para abrigar os animais. E os sistemas de radiador das vilas senatoriais foram completamente destruídos.
Com o restabelecimento da ordem e da lei, os romanos puderam voltar às suas próprias casas. Durante mais de mil anos, porém, ou gelavam completamente de frio, ou aqueciam suas moradas com braseiros de carvão vegetal, os quais eram um método de aquecimento que servira unicamente para acentuar o frio, forçando-os a conservarem os chapéus e os casacos, mesmo quando iam para a cama.
78 HENDRIK VAN LOON
As condições não mudaram muito nos séculos X V e X V I. É muito interessante ler-se a respeito das glórias do Rei Sol. Teríamos, porém,
(A p e l e )A arte sagrada de f izer fogo
um pouco menos de inveja de Sua Majestade, se soubessemos que, embora ele fôsse considerado o homem mais rico e poderoso do seu tempo, o bom rei passava os seus dias num palácio onde o calor não penetrava; que as frutas tiradas das estufas se congelavam ao chegar à mesa, e que os seus cortesãos, quando decidiam lavar-se (o que era muito raro), eram obrigados a quebrar a água nas vasilhas, pois estava gelada.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 79
Finalmente, como um suposto melhoramento do braseiro de carvão vegetal, voltou-se ao fogão, já utilizado na época glacial. Mas, dessa vez equipado com uma chaminé, a qual era um cano convenientemente construído a fim de levar a fumaça da grade ao ar exterior através do telhado.
A princípio, a chaminé foi um simples buraco na parede; mas, no princípio do Século X V I (depois de trezentos anos de experiências e fracassos), ouvimos falar enfim das chaminés regulares semelhantes às que são usadas hoje capazes de aspirar toda a fumaça de qualquer fogo.
(A PELE)Da pedra de fogo ao moderno isqueiro
Até mesmo êste método de conservar a pele quente estava longe de satisfazer. E durante as dez gerações seguidas os pobres e os príncipes con-
80 HENDRIK VAN LOON
tinuavam a gelar-se nos quartos que hoje podem ser confortàvelmente aquecidos por um ou dois radiadores de bom tamanho.
Por fim, durante o último quarto do Século X IX , voltamos ao costume romano e aprendemos de novo a aquecer nossas casas com auxílio de vapor e ar quente.
Não sei até quando vai perdurar o método de aquecermo-nos por meio de lareiras, mas provàvel- mente não o será por muito tempo.
O moderno método de aquecimento por meio de eletricidade é muito mais simples e menos incômodo que o sistema atual de aparelhos de ar quente mais ou menos complicados, colocados nos porões, os quais precisam de uma porção de empregados domésticos e até de carvoeiros para conservá-los.
Presentemente, o problema é uma mera questão de preço. Logo que fôr inventado um meio de se produzir maior quantidade de força elétrica e menos dispendiosa do que é hoje, não precisaremos mais do carvoeiro, do forn ilheiro, dos ruidosos aquecedores a óleo, dos fogões a petróleo de mau cheiro e do perigoso fogão a gás. Pois por um simples girar de um comutador, deixaremos as nossas casas, igrejas ou edifícios públicos numa temperatura sempre igual, tanto no verão como no inverno.
Antes, porém, de terminar este capítulo, quero dizer algumas palavras sobre outra invenção,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 81
intimamente ligada à idéia de conservar o calor. É a arte sagrada de fazer fogo.
Os primeiros fogos que o homem usou para se aquecer foram sem dúvida roubados de uma árvore abatida por um raio. Mas os incêndios das florestas não duram eternamente, e raramente acontecem no inverno, quando mais é necessária a proteção do calor.
Foi então que algum gênio notável (toda a honra à sua memória! provavelmente foi um sacerdote a quem era confiada a guarda do fogo sagrado do qual dependia a vida da comunidade) descobriu que a fricção produzia calor. Isto deve ter acontecido há muito tempo, porque, quando o homem apareceu enfim no cenário da história, já sabia fazer fogo, rodando com rapidez um pau através de uma cavidade estreita aberta em outra peça de madeira.
Pouco mais tarde, quando apareceram os primeiros utensílios de pedra, o homem notou que, ao se chocarem violentamente duas pedras, produziam faíscas e estas eram fàcilmente apanhadas com um punhado de musgo sêco, produzindo uma pequena chama.
Êste simples instrumento, composto de uma pedra de fogo e um pedaço de metal, teve uma longa vida. Daí surgiram a espingarda de pederneira e finalmente os nossos fósforos.
Os isqueiros, com os quais nossos avós acendiam os seus cachimbos, eram complicados e nada cômodos em caso urgente. Era necessário inven-
82 HENDRIK VAN LOON
tar-se alguma cousa um pouco mais prática. E em todas as cidades do Velho e Novo Mundo, eram feitas experiências químicas a fim de poder substituir-se o incômodo isqueiro.
Durante a última metade do Século X V II surgiram os primeiros “ luzeiros” ou portadores de luz. Consistiam em pequenos pedaços de fósforos que eram batidos com uma pedra, até inflamar os pedaços de madeira, previamente mergulhados no enxofre, os quais serviam para acender os fogões. Exalavam, porém, muito mau cheiro e eram um pouco perigosos; por esse motivo não se tornaram populares.
Em 1827, um farmacêutico inglês chamado John Walker inventou um “ fósforo de fricção” , que era utilizado sem prévio preparo. Chamou-se “ congreves” em honra a Sir William Congreve que, durante as guerras napoleônicas, ganhara grande popularidade como introdutor do famoso “ foguete de guerra” , o pioneiro dos fogos de artifício.
Vinte anos depois, um sueco de nome Lunds- troem, de Joenkoeping, descobriu o meio de diminuir o tamanho do fósforo de fricção para os “ fósforos de bôlso” — êsses pedacinhos de madeira vermelha com cabeça amarela que nos são muito familiares.
Os povos conservadores, como era natural, lutaram violentamente contra a novidade, alegando que ela iria facilitar os trabalhos de uma segunda era na história do homem. Mas por fim, foram os fósforos vencedores e continuaram triunfantes
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 83
até a primeira Grande Guerra, quando as pederneiras e as iscas pré-históricas (em combinação nova e hábil) surgiram outra vez para beneficiar os heróis fumantes de cigarros.
Uma curiosa volta na famosa roda do progresso.
E uma saudação indireta aos nossos antepassados, esquecidos por tanto tempo.
C A P I T U L O I I I
A MÃO DOMESTICADA
A mão humana seria na verdade uma pata dianteira comum, como a de qualquer quadrúpede, se não fosse o desenvolvimento de um dedo oposto aos outros, o polegar, o qual tornou a mão um instrumento de apreensão capaz de fazer grande número de cousas impossíveis aos outros animais, que não possuem tal dedo e, por isso, são obrigados a executar seus trabalhos com garras, bicos e dentes.
Se a minha explicação é complicada e o leitor não pode entender o que quero dizer, observe o seu gato ou o seu cachorro junto a um osso. Utilizam primeiro as patas, depois a boca e o nariz para agarrar e empurrar o osso, a fim de levá-lo a um outro canto do jardim. Notará, então, como são incompletas suas maneiras, esforçando-se para pôr em ação as patas dianteiras.
Pobres dêles! Não têm o dedo polegar!
86 HENDRIK VAN LOON
0 gato e o cachorro podem usar as patas dianteiras com o fim de segurar um osso no chão para roê-lo, ou podem cavar um buraco com elas, no qual enterram os seus tesouros. Mas não vão além de movimentos desajeitados, pois. embora tenham um polegar êste não é oposto aos outros quatro dedos e, por isso, não podem usá-los como nós. E, como resultado, não conseguem segurar um objeto, podendo apenas usá-lo para reduzidos fins, os quais são todos para satisfazer-lhes o apetite.
A mão é, portanto, o instrumento natural mais importante que o homem adquiriu e foi através de milhões de multiplicações e extensões da sua força que êle se tornou o soberano da terra.
Mas aqui deparamos com uma outra dificuldade, de que êste livro está cheio. Como, quando e por que foi o homem capaz de utilizar-se das possibilidades das suas patas dianteiras, enquanto que seu primo, o macaco (que foi muito inteligente a seu modo) nunca aumentou o campo de atividade de qualquer uma das suas quatro mãos apreende- doras?
Tome-se por exemplo, o uso de uma pedra para aumentar o poder e a força da mão. “ É uma idéia tão simples, que não é preciso ser ensinada” , dirá o leitor. Mas nenhuma cousa neste mundo é assim tão simples que se evidencie por si mesma. Primeiro é preciso que alguém pense, depois a experimente e a execute, mesmo que se torne pálido e meio morto de fadiga e sucumba sob a crítica dos seus semelhantes.
Durante milhares de anos, o homem somente utilizou suas mãos para segurar os alimentos e as
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 87
prêsas, e despedaçar pequenos animais e passarinhos, sem nunca pensar que elas tivesssm melhor utilidade.
Até que finalmente um corajoso disse: “ Posso tornar as minhas ações muito mais simples, intensificando minhas forças, se bater com um pau ou uma pedra.” Daí a origem do primeiro martelo.
Até aí, podemos explicar, mas, se o primeiro martelo foi feito de madeira ou de granito, não sabemos, e não o saberemos nunca, porque a madeira é uma substância frágil, enquanto que as pe-
(A MÃO)A acha e a pedra
dras duram eternamente, a não ser que sejam esmagadas por um vagão de vinte toneladas ou por dinamite.
88 HENDRIK VAN LOON
As pedras, por isso, foram as únicas sobreviventes que puderam contar a Mstória da paciência e da inteligência dos verdadeiros pioneiros do progresso humano. A madeira, porém, desapareceu sem nada revelar.
Naturalmente, um leigo, ao visitar um museu pré-histórico, não ficará muito impressionado. 0- lhará a coleção de instrumentos pré-históricos que se estendem à sua vista, cheio de espanto e desaponto, como se êstes fossem uma porção de seixos trazidos da margem da estrada por seu filho caçula.
0 contrário se dá com o perito. Êsses primitivos apetrechos, martelos, machados e serrotes, são-lhe de grande importância e tão interessantes como uma exibição de automóveis, desde um simples carrinho primitivo até o último tipo Rolls- -Royce. Representam êles ura trabalho tão árduo da parte de numerosas pessoas como o das máquinas modernas de combustão interna.
Quando o homem pela primeira vez descobriu que poderia multiplicar as forças da sua mão por meio de uma pedra, a qual, contudo, não fosse muito pequena, segurando-a firmemente com os cinco dedos, pôde fácilmente quebrar uma noz, um crânio, ou um osso cheio de tutano, que, naquela época antediluviana, era um verdadeiro quitute.
Pouco a pouco descobriu que, aplainando um pouco os lados do martelo, êste se transformaria em alguma cousa que pudesse cortar tão bem como esmagar. Depois de procurar, achou pedras que podiam ser lascadas sem se quebrarem. Notou, depois, que friccionando os lados do martelo contra
outras pedras mais duras, os cortes se tornavam polidos, e do martelo surgiu a faca.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 89
(A MÃO)As pedras tomam formas
Poucos séculos depois, utilizou tiras de couro para amarrar e juntar as cousas. Daí a idéia de amarrar a faca de pedra a um cabo de madeira, o que deu origem ao machado como arma de combate, muito mais eficaz que o original “ martelo de punho ’ ’, e um instrumento de guerra muito mais perigoso.
Quanto aos pedacinhos de pedras, de bordas cortantes e afiadas, foram os avós das facas modernas, dos nossos canivetes de bolso e das serras e serrotes. A serra foi uma invenção muito engenhosa
90 HENDRIK VAN LOON
para aumentar a fôrça da mfio no ato de cortar. Teve primeiro a forma oblonga, tornando-se, depois, um disco circular, o qual serra as madeiras como se estas fossem manteiga e corta o ferro e o aço com tanta indiferença como se passasse através de papel de seda.
O martelo é, sem dúvida, uma ferramenta de muita utilidade, porém, todo o nosso desenvolvi-
(A MÃO)As pedras começai i a cortar
mento industrial moderno seria impossível sem a serra.
Outra netinha da faca de sílex é a tesoura, de origem bem mais recente, pois, apesar da sua apa-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 91
rente simplicidade, é realmente um tanto complicada.
Os mumificadores egípcios, que possuíam inúmeros instrumentos para seu trabalho, não tinham tesouras. Mais tarde, os gregos e os romanos inventaram uma cousa semelhante, com a qual cortavam as sebes dos jardins e tosquiavam os carneiros. Assim, desde tempos remotos, a lã era tirada dos infelizes animais. Das tesouras romanas surgiram as nossas mais aperfeiçoadas. São elas duas facas com alças em vez de cabos, unidas por um parafuso, como o leitor mesmo pode constatar da próxima vez que suas mãos necessitarem de uma ajuda para cortar um pedaço de cartolina.
Mas, a i! A história do engenho do homem em multiplicar as suas forças orgânicas não é somente uma crônica de progressos.
Os deuses que governam este planeta sem dúvida nos deram a faculdade de distinguir claramente o bem do mal, ficando a nosso cargo a escolha. Concederam-nos, pois, uma faculdade espiritual, a qual os nossos bisavós, que se interessavam mais seriamente pelos problemas teológicos, chamavam de “ livre arbítrio.” É este o terrível “ livre arbítrio” que nos faz utilizar a nossa força inventiva tanto para o mal como para o bem. E sendo uma mistura estranha de contradições, o homem pode empregar sua inteligência tanto para inventar uma bomba, como para compor uma balada.
A faca, que nasceu da mais primitiva de todas as necessidades, a de defesa própria contra milhares de forças hostis, pouco depois se tornou um instrumento inútil para a luta. Transformou-se
92 HENDRIK VAN LOON
em espadas, sabres, baionetas, lanças, flechas, cutelos, punhais, alfanjes e cimitarras, que formaram um cortejo triunfante ao redor do mundo, matando, destruindo, cortando em pedaços a humanidade, pela única razão de uns possuírem cousas cobiçadas por outros, ou por contradições de idéias.
Tudo isso é uma grande lástima. As invenções humanas, porém, são cousas sem alma, como os símbolos da nossa tabela de multiplicação. As pe-
(A m ã o )A guilhotina
queninas cruzes não se importam com o que multiplicam. Tanto faz multiplicarem — 100.000 por — 10.000, como + 100.000 por + 10.000. Somente
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 93
lhes importa multiplicarem as cousas entre si. A fora isso, não se importam com mais nada. Multiplicam tudo que lhes é dado, não ligando se o resultado for bom ou ruim.
É muito simples falar do progresso como se isso fosse uma cousa automática, a qual veio sempre caminhando do pior para o melhor, do baixo para o alto, do pobre para o rico. Oxalá fosse assim! Mas o caminho do progresso é escarpado e íngreme, e cheio de sinuosidades. Encontramos nessa estrada real não só o bisturi com o qual o médico-operador salva a vida dos seus semelhantes, como também a terrível lâmina que o bom Dr. Guillotin empregava para destruir a vida dos seus compatriotas, de uma maneira rápida e econômica.
Êste capítulo se está assemelhando a um tratado. Sinto que assim seja, mas é bom relembrarmos atualmente essas cousas, pois um dilúvio repentino de aperfeiçoamentos mecânicos despertou em muita gente um sentimento perigoso de comodidade e segurança sobre o futuro da raça humana. Que tudo corra como julgamos é o que nos importa. Convém lembrar, no entanto, que, a cada dólar que uma nação emprega nas suas escolas, correspondem cem que ela gasta com os seus navios de guerra. E, tendo lançado uma semente de dúvida e inquietação na mente do leitor, continuarei com a próxima invenção ligada à mão humana, a qual não é nada mais nada menos que um instrumento agrícola, chamado pá.
Provavelmente a invenção da pá coube à mulher. Nas comunidades agrícolas mais primitivas
94 HENDRIK VAN LOON
de que já ouvimos falar, os homens não se ocupavam com os trabalhos agrícolas; deixavam-nos ao inteiro encargo das mulheres, dos filhos, e dos
(A MÃO) Dos dedos à pá
seus burros. Certamente, pois, foi uma pobre mulher que, cansada de cavar a terra com as unhas, teve a idéia luminosa de botar cabo numa pedra cortante, e deixá-la fazer o trabalho dos seus dedos.
Ao serem conhecidos o bronze, o ferro, o cobre e o aço, foram estes metais utilizados para reforçar a ponta do pau, que era muito frágil. Alon-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 95
gando-se e achatando-se esses pedaços de metal, surgiu finalmente a pá, numa forma rudimentar.
Para os primeiros agricultores, o trabalho foi pesado e exaustivo. Podem ter uma idéia mais clara do que era, os que tiveram ocasião de contemplar os camponeses do Egito, da Rússia ou do Norte da África, presos ao arado. O arado árabe (que nada é senão uma pá ligeiramente ampliada) deve ser bem interessante em algum museu. Mas, o moderno arado a vapor, que faz o trabalho
(A MÃO)O arado a vapor
de mil mãos de uma só vez, é muito mais agradável aos olhos modernos, os quais prefeririam, se fosse possível, ver somente cousas agradáveis e ro-
96 HENDRIK VAN LOON
mânticas, a contemplar os seus semelhantes transformados em burros de carga.
Talvez o termo “ olhos modernos” não seja muito apropriado. “ Olhos himanos” seria melhor expressão, pois o mais humano e inteligente dos homens sempre considerou um instrumento inútil um incômodo aborrecimento. Através de todos os tempos, surgiram invenções com o fim de aliviar os
(A MÃO)A máquina de cavar
trabalhadores de parte dos seus pesados encargos. Mas, muitas vezes, eles mesmos, acostumados ao trabalho exaustivo de muitos séculos, se rebelavam contra essas inovações, como os pássaros nascidos no cativeiro lutam contra aqueles que pretendem dar-lhes a liberdade. Assim teria acontecido com
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 97
as invenções que acabariam com as intermináveis horas de um trabalho penoso e estúpido. Por isso, muitos melhoramentos ficaram somente como pla-
(A m ã o ) A draga
nos na gaveta da escrivaninha de algum gênio esquecido.
O cérebro fértil do grande Leonardo da Yinci, é um exemplo do caso. Leonardo estava sempre se preocupando com problemas de tal natureza, e, a mão múltipla que êle propôs com o fim de abrir canais no Vale do Pó, nunca foi posta em prática. A invenção teria, sem dúvida, deixado algumas
98 HENDRIK VAN LOON
pessoas sem trabalho, mas tornaria a vida de milhares de outras infinitamente mais agradável. Mas, mesmo os que iriam ser beneficiados não viram isso, e Leonardo fracassou. Teria sido mais bem sucedido com suas “ mãos múltiplas” , se tentasse sua experiência nos Países Baixos, quando os negociantes começaram a pedir mãos que tra-
(A AÍÁO)Escafandrista err, ação
balhassem sob as águas, dando inicio às experiências com dragas. Mas êle vivia na Itália, onde esse problema não era tão importante. Os navios an-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 99
tigos tinham tão pouca profundidade, que podiam ser deixados em qualquer lugar. Durante a última metade da Idade Média, porém, especialmente ao longo das costas do Mar do Norte, onde as marés e as embocaduras dos rios estragavam os portos, tomou-se necessário pensar em algum método, pelo qual as areias ali amontoadas pudessem ser removidas do fundo dos rios e das baías. Engenheiros holandeses e ingleses aperfeiçoaram a draga do colega italiano, fornecendo as barcas de fundo chato, providas de pás, as quais pudessem cavar embaixo das águas. Hoje, 90% de todo o comércio internacional estaria paralisado, se esses dedos de ferro, que cavam o fundo dos nossos portos (às vezes a 60 pés de profundidade), suspendessem o trabalho durante apenas uma semana.
A draga, porém, podia somente fazer uma espécie de trabalho sob as águas. E a crescente e rápida importância de exportação e importação exigiu um novo método, pelo qual uma oficina completa de carpinteiro e ferreiro pudesse mudar- -se para dentro dágua. Mas, tanto os carpinteiros como os ferreiros precisariam de um regular suprimento do ar para fazer um bom trabalho.
Era possível, naturalmente, para um bom nadador, mergulhar em busca de algumas ostras (como os gregos fizeram durante o cerco de Tróia) e ficar embaixo dágua durante 60 ou 80 segundos.
Mas, quando se era obrigado a consertar um buraco de um navio ou a levantar uma pesada caixa de ouro caída no mar durante alguma tempestade, de nada valiam esses breves mergulhos. Os pulmões, que auxiliam as mãos, deveriam ser refor-
çados por um aparelho que os garantisse com uma corrente ininterrupta de ar puro.
Os primeiros esforços para esse fim consistiram num tubo de cobre que se ligava da bôca do
100 HENDRIK VAN LOON
(A MÃO)A alavanca
mergulhador à superfície da água. Isso, porém, era eficiente sòmente em águas não muito profundas. Gradualmente, esse tubo de cobre foi substituído por um de couro, cuja bôca ficava à tona da água por meio de uma bexiga de porco. Êste tubo de couro foi o único aparelho usado pelos mergulhadores durante mais de 2.000 anos. Ao findar o
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 101
Século X V II, um italiano teve a brilhante idéia de forçar o ar através desse tubo de couro, com o auxílio de foles comuns. As primeiras experiências foram felizes. Desde então, a mão sob as águas ou a máquina mergulhadora têm sido constantemente aperfeiçoadas e hoje podemos consertar navios, e pescar esponjas à terrível profundidade de 180 pés, como avaliarão todos aquêles que já tentaram catar uma pedra do fundo de uma piscina.
(A MÃO)A corda
Estou, porém, correndo um pouco além do que me propus, e talvez seja melhor voltarmos aos instrumentos primitivos que foram inventados há de-
102 HENDRIK VAN LOON
zenas de milhares de anos, os quais também tiveram enorme influência no desenrolar da história humana.
(A MÃO)Difícil levantamento de uma pesada pedra
Um exemplo é a alavanca. É ela um dêsses aparelhos simples, que se consideram tão velhos como as montanhas. Certamente ela contribuiu muito mais para a mudança de aspecto de nossas paisagens, que qualquer outro instrumento inventado pela mão humana. Na verdade, é muito simples, mas sem ela não teriam sido construídos as pirâmides e os dólmens, nem os templos e túmulos
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 103
pré-históricos feitos de gigantescas colunas e peças de granito. Pois a alavanca representa a multiplicação indefinida da força combinada da mão e do braço e com a sua forma moderna, levantará qualquer cousa, desde uma locomotiva até uma casa, fazendo o trabalho de mil mãos pelo custo de poucos dólares.
Uma outra descoberta intimamente ligada à alavanca, foi uma enorme mão alongada, que chamamos “ corda” , a qual pode puxar uma carga muito mais pesada do que se poderia carregar.
(A MÃO) A roldana
Não sei se a primeira corda foi feita de cânhamo ou de couro. Mas, como o algodão e o cânhamo não existiam ainda no Vale do Nilo e na
104 HENDRIK VAN LOON
Mesopotamia até uma data relativamente recente, a corda de couro deve ter sido a mais antiga. Mesmo com a ajuda de cordas de fibras retorcidas, o trabalho de se levantarem materiais pesados até o alto de um andaime era muito penoso para as centenas de escravos que o executavam. Mas essa dificuldade se tornou muito reduzida quando os babilônios, depois de anos de experiência (podemos constatar estas experiências pelos seus dese-
(A MÃO)A primeira vasilha
nhos), auxiliaram finalmente a mão humana com uma roldana, a qual tornou possível um ou dois homens fazerem o trabalho de cem.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 105
As construções gregas parecem ter sido feitas com o simples auxílio de alavancas, cordas e planos inclinados; os romanos, porém, os arquitetos da an-
*
(A MÃO)Depósitos de cereais
tigüidade, apaixonados por construções de estradas, pontes, fortalezas, portos e aquedutos, melhoraram muito a roldana, dando-lhe a forma atual. Escreveram até livros sobre os melhores modos de se fazerem pranchas e vigas, tendo legado aos povos da Idade Média uma herança preciosa. Sem uma variedade de roldanas, os grandes navios a vela do Século X V não poderiam navegar, e sem
106 HENDRIK VAN LOON
eles não haveria a expansão (ia Europa, a qual se teria limitado ao seu pequeno continente.
Falemos agora de uma outra mão humana, cujas forças multiplicadas representam importante papel na sociedade moderna.
A mão pode fazer muitas outras cousas além de segurar, levantar, puxar e bater. Serve também de recipiente, como o leitor deve saber, se já bebeu em algum regato, por meio da mão transformada em copo. As duas mãos bem juntas são usa-
(A MÃO)Cêstos
das como um receptáculo, pai a carregar uma grande quantidade de nozes ou de amoras. É claro, porém, que as mãos mantidas unidas assim, pres-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 107
tam apenas pequenos serviços. Depois de alguns minutos elas se cansam, e insistem em voltar à sua posição normal, ao lado do corpo.
Os homens sabiam disso havia 50.000 anos tão bem como hoje. Por isso procuraram arranjar uma forma mais permanente de recipientes, nos quais pudessem guardar cereais e, se possível, água. E acharam isso nos crânios dos inimigos mortos. Os ossos de crânio intimamente ligados assemelhavam-se às mãos juntas em conchas. Êstes crânios eram achados em grande quantidade, pois a idéia de enterrar os mortos é relativamente de origem recente. Como prato, eram um tanto disformes, mas os descendentes dos habitantes das cavernas não se incomodavam com isso. E tornou-se tão popular o uso do crânio humano, que até chegou a fazer parte da religião dos povos do Norte. Os seus deuses usavam os crânios dos inimigos como taças. E seria feita também essa concessão aos fiéis, se eles se dispusessem a morrer na guerra.
Seria fácil saltarmos logo do crânio ao depósito de cereais, pois tanto um como outro são somente substitutos da concha das mãos. Antes, porém, que o homem começasse a construir armazéns, tanques para águas e depósitos, a mão como vasilha tinha que passar por muitas formas intermediárias de desenvolvimento, algumas das quais foram muitíssimo interessantes.
Se não estamos completamente errados, o primeiro substituto artificial do crânio (ou a mão, como o dirá o leitor depois de ter lido este livro) foi o cêsto. A arte de tecer cestos é uma das mais antigas. Os salgueiros cresciam abundantemente
108 HENDRIK VAN LOON
junto às beiras dos lagos e às margens dos rios, perto dos quais os povos da Idade da Pedra gostavam de viver. Os juncos eram encontrados em
(A MÃO)Cêsto coberto de argila
quase todos os lugares. O cêsto adquiriu tão grande importância na sociedade primitiva, que as formas de hastes e varinhas de junco, primorosamente entrelaçadas, sobreviveram até a Idade Média, sendo o modêlo favorito dos escultores, que as esculpiam em colunas das grandes catedrais.
Naturalmente todas as cousas feitas de madeira são frágeis e perecíveis, e nós temos apenas
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 109
ligeiras provas sobre a habilidade do fabricante de cestos antediluviano. Este parece ter sido considerado um importante membro da sociedade primitiva, consideração essa que aumentou quando ele aprendeu a cobrir seus trabalhos de vime com couro e argila, dando ao seu povo numerosas e úteis invenções.
Uma delas foi o barco feito de uma armação como cêsto, coberto de peles de animais. Em se-
(A MÃO) Parede de concreto
guida, um leve escudo portátil, que ganhou enorme popularidade, quando os soldados se aventuravam por toda a face da terra.
110 HENDRIK VAN LOON
O processo de cobrir as armações de argila deu origem às construções das casas de vime cobertas de barro, método este que reviveu há poucos anos, quando os arquitetos começaram a fazer as suas construções de armações de aço e concreto. Mas o desenvolvimento mais interessante da arte de fazer cestos e o mais útil para a civilização humana foi a fabricação de uma tigela por um fabricante de vasos. Essa tigela consistia em uma concha exterior não porosa, tendo por dentro uma grossa camada de argila.
A nova invenção absolutamente não foi perfeita. A argila conservava-se mole e untuosa durante muito tempo. Ainda assim era muito melhor que as então existentes no mercado e teve pronta saída.
O seguinte passo, a transformação do cesto em jarro de barro, provàvelmenl e foi devido a um acidente. Os acidentes representaram sempre um papel importante na história das invenções e bem mereciam uma estátua no Vestíbulo da Fama. Talvez um cêsto tenha caído dentro do fogo por descuido, ou tenha pegado fogo uma cabana, ou ainda saqueadores hajam incendiado uma vila inteira. De qualquer modo, quando os escombros foram removidos e o fogo extinto, notou-se que a cobertura de vime e de juncos fora destruída pelas chamas, enquanto que a argila interior ficara transformada em uma substância tão dura como a pedra.
Foi esse o início da fabricação da cerâmica.Pouco a pouco o cêsto foi banido completamen
te (era usado apenas para substâncias sólidas como azeitonas, melões, batatas e cereais) e os utensílios
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 111
de argila cozida, que muito se assemelhavam à cavidade da mão humana, substituíram os antigos recipientes tecidos de varas ou folhas vegetais.
(A MÃO)A roda de oleiro
A princípio, a argila necessária para este fim era tirada do leito dos rios, e toscamente modelada com o auxílio dos dedos. Era um método vagaroso e insuficiente, mas não havia outro, até que um egípcio inventou o que chamamos de roda de oleiro. Esta era movida pelo oleiro com a mão esquerda, enquanto que com a direita trabalhava com o material. Gradualmente esta roda foi descendo até
112 HENDRIK VAN LOON
chegar ao chão, tornando-se um disco capaz de ser movido com os pés. Ao mesmo tempo aperfeiçoava-se também a arte de cozer os objetos acabados.
Ao que parece, foram os chineses os primeiros que tiveram a idéia de construir um forno para aquêle fim. O forno era fechado de todos os lados, para que o conteúdo se conservasse em igual temperatura, graças a um fogo de lenha. E, por intermédio da Babilônia (que havia quarenta séculos atuava como intermediária eritre a Ásia e a Europa) o novo método estendeu-se por todo o ocidente. Gregos e romanos tornaram-se hábeis oleiros e executavam maravilhas de cerâinica, aplicando uma forma perfeita de envernizamento, o qual dava a seus vasos e mesmo a seus potes e panelas de uso doméstico a aparência delicada de um polido brilhante. Êsse envernizamento foi primeiramente usado pelos egípcios, os quais haviam aprendido a arte dos fenícios.
É a primeira vez que tenho oportunidade de referir-me aos fenícios. Eram entre os povos antigos os comerciantes ambulantes nas costas do Mediterrâneo. Nada fabricavam, mas vendiam tudo. Literatura e arte não os interessavam, e pouquíssimo contribuíram para os melhoramentos técnicos que os povos do mundo clássico nos legaram. Foi, pois, bastante curioso que aquêles francos materialistas, que juntaram enormes fortunas com o comércio de escravos, e que eram odiados em todos os lugares em que se apresentavam, em virtude da exploração de seus negócios, contribuíssem com duas das mais importantes invenções de que já tivemos registro.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 113
Uma delas, o vidro, preservava os líquidos. A outra, o alfabeto, preservava as idéias.
Até hoje divergem as opiniões acerca de quem fabricou o primeiro vidro. Segundo os romanos e os gregos, foi um negociante fenício que, ao atravessar o deserto da Síria, deixou por casualidade os seus potes, onde ia cozinhar o jantar, sobre uns blocos de potassa ou soda. Na manhã seguinte,
(A m à o )A invenção do vidro
percebeu que a potassa se havia derretido com a areia, formando pedacinhos de uma substância transparente, que pareciam oferecer grandes pos-
114 HENDRIK VAN LOON
sibilidades como substitutos das contas de rosários e das pérolas.
A Fenícia e o Egito eram vizinlios. Hoje são ligados por estradas de ferro, cujos trens fazem o
(A MÃO)A mesa de jai tar
percurso em menos de dez horas de viagem. Logo os joalheiros de Mênfis e Tebas estavam vendendo colares de vidros aos seus fregueses. Após terem aproveitado esse novo material durante algum tempo, descobriram que ele poderia amoldar-se a qualquer forma, quando exposto ao calor de um fogo regular. Existem um ou dois desenhos egípcios datados de época muito remeta, que parecem provar que os egípcios também usavam o maçarico,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 115
podendo assim fabricar garrafas e vasos. Os desenhos, contudo, são confusos e duvida-se que representem fabricantes de vidros ou membros de um outro grupo qualquer.
Os romanos, porém, foram os antigos mestres na arte de dar forma ao vidro. E, no império romano, o vidro tornou-se um sério rival da cerâmica como substituto da mão, e todas as formas e variedades de vasilhas feitas anteriormente de vime ou de argila eram agora fabricadas de vidro.
A mão adquirira mais eficácia, mas ao mesmo tempo se tornava mais frágil.
Como já disse, a casualidade representou importante papel na história das invenções. Também o trabalho dos escravos deve receber menção honrosa como um aperfeiçoador dos instrumentos de uso diário.
A princípio, as peças comuns de olarias satisfaziam os romanos da melhor classe. Mas quando os fornos da Bretanha e do Yale do Reno começaram a abastecer os mercados romanos com louças de barro baratas, os patrícios acharam que não poderiam mais usar em suas mesas os mesmos pratos e copos que agora se encontravam em todos os lares proletários. Daí o gosto de pagarem generosamente vasos, garrafas e cangirões de vidros raros. Hoje, tôdas as vezes que algum membro da sociedade está disposto a pagar bem algum artigo de luxo, invariavelmente surge uma classe de artistas, os quais não somente estão ansiosos como são capazes de satisfazer completamente o que êle deseja.
116 HENDRIK VAN LOON
Os romanos eram maus pintores, escritores e escultores comuns, mas eram sábios no modo de viver. Foram êles os primeiros a reconhecer, entre outras muitas cousas, que as refeições devem ser solenes, e não uma luta pelos pedaços maiores e mais gordos do carneiro e pelos tutanos mais gordurosos. Não foram êles que nos deram êsse substituto utilíssimo dos dedos das mãos, conheci-
(A MÃO) Irrigando a terra
do como garfo (o qual é de muito recente data) mas nos ensinaram a preparar a mesa com decência e elegância, o que foi o primeiro passo para
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 117
transformar o processo desagradável de comer no agradável hábito de jantar.
Uma vez inventados os recipientes artificiais, tornaram-se possíveis inúmeras cousas, das quais nem se cogitavam quando o homem era obrigado a fazer tudo só com a concha das mãos.
(A MÃO)Aqueduto
Entre outras cousas, vastas áreas de terras sobre os leitos dos rios e lagoas tornaram-se férteis, com o auxílio de uma simples máquina de irrigação, composta de alavancas, baldes e cordas.
118 HENDRIK VAN LOON
Como resultado, tornaram-se mais abundantes as produções, duplicando e triplicando assim em poucos séculos as populações de diversos países.
(A MÃO) A fechadura
Por outro lado, a mão, atuando como meio de transporte, contribuiu sèriamente para a felicidade geral da raça humana. Refiro-me aos aquedutos e às obras hidráulicas. Os povos antigos eram pouco dados à medicina. Os médicos sabiam alguns princípios elementares de fisiologia, mas ignoravam completamente muitas cousas que são hoje ensinadas nos ginásios. Sabiam, entretanto, que, sempre que há muita gente ;unta, é absolutamente necessário água pura para se beber.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 119
As águas dos rios e regatos purificam-se dos micróbios, quando livres de qualquer contacto e expostas aos raios de sol. Mas, quando as cidades começaram a crescer e os seus bairros pobres ficaram acumulados, os rios mais próximos transfor- maram-se rapidamente em cloacas férteis, contaminadas por miríades de micróbios perigosos. Po- der-se-ia naturalmente ter trazido água das montanhas mais próximas na concha da mão, numa vasilha ou num balde, mas teria sido um sistema
(A MÃO) O castelo
vagaroso e de pouco resultado. E assim a mão (no seu papel de recipiente) transformou-se pouco a pouco em aqueduto.
120 HENDRIK VAN LOON
Aqueles que tiveram ocasião de ver as obras hidráulicas feitas pelos povos antigos e as ruinas das suas cidades cheias de fontes e poços, compreenderão que foram verdadeiros benfeitores da humanidade os seus engenheiros, que tentaram este método de abastecimento de água potável, trazida das montanhas.
Vamos despedir-nos aqui da mão como “ recipiente” e passar a falar dela como um instrumento de agarrar e segurar.
Temos, em primeiro lugar, a fechadura. Pois logo que o homem construiu uma casa para si, precisou enchê-la com grande mimero de cousas que contribuíssem para o seu bem-estar e felicidade e que provocassem a inveja dos seus vizinhos.
A fim de proteger seus tesouros contra a cobiça dos seus amigos e inimigos, era preciso fechar as portas de tal maneira, que ninguém pudesse entrar, exceto êle. Parece fácil, mas era bem difícil. Um simples ferrolho bastava, mas êste só poderia fechar por dentro, prendendo os habitantes em casa com suas cousas. Então alguém descobriu um meio pelo qual era possível uma pessoa do lado de fora fazer saltar o ferrolho com uma espécie de prego de ferro.
Desta combinação de ferrolho e prego nasceram as fechaduras modernas que, embora bem mais seguras, não diferem muito daquelas que vemos nos desenhos egípcios de treze séculos antes de Cristo.
Todas as trancas, sejam quais forem os seus nomes, são realmente substitutas das mãos humanas.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 121
Tanto aqueles castelos pitorescos que, durante a Idade Média, dominavam as estradas montanhosas que ligavam um país a outro como as forta-
(A MÃO)O pescador pré-histárico
lezas que defendem nossas fronteiras contra a agressão estrangeira, não são mais que portas aferrolhadas ou, nos termos deste livro, são mãos sublimadas, aumentadas com forças extraordinárias, capazes de fazer em enorme proporção, o que a nossa porta faz de um modo muito mais modesto.
Isso me leva a outro ponto que deve ser discutido com particular atenção.
Como já observei antes, a mão não tem alma, consciência ou sentimentos. Ela abençoa do mes-
122 HENDRIK VAN LOON
mo modo que despedaça com um estilete. Desde que o mundo foi criado de tal modo que todos os seres vivos devem destruir outros para a sua subsistência (seja a vítima uma margarida ou uma vaca), não nos podemos revo’ tar contra o homem que se utiliza da força grandemente multiplicada da sua mão para obter um suprimento abundante de alimento.
Conseguiu o homem essa força, primeiro substituindo a mão por uma pedra.
(A MÃO)O barco de pet ca
Em seguida, êle afiou a pedra.Depois a transformou em um machado, em
uma faca e em um arpão.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 123
Durante os longos períodos de frio, quando era obrigado a lutar de manha à noite para matar a fome, o arpão foi seu auxiliar em feitos verda-
(A MÃO)A fôrca
deiramente notáveis. Mas o seu apetite não estava satisfeito. Imaginou, então, que a mão transformada em uma colher enorme seria capaz de fornecer-lhe de uma vez muito mais peixe que a mesma mão usada como arpão. Como resultado apareceu a rêde que, como uma grande draga, mergulha nas águas, trazendo milhares de peixes de uma só vez.
Pelo que estou dizendo, os barcos de pesca não são instituições muito agradáveis. Mas, que quer
124 HENDRIK VAN LOON
o leitor? Nós precisamos deles. Para o homem viver, os peixes precisam morrer. É pena que tenham de morrer lentamente sufocados, mas felizmente não dão sequer um gemido, pois a natureza os privou das cordas vocais. Mas desde tempos imemoriais, o homem se acostumou a ver outros morrerem estrangulados. Achava este o modo mais fácil de liquidar seus inimigos, e os prisioneiros de guerra que haviam sido recusados nos mercados de escravo.
Não se sabe quem aperfeiçoou a força estran- guladora da mão, tornando-a uma força moderna de grande prática. Os egípcios (povo dócil e pacífico, igualmente pobres para ser desonestos e igualmente bem alimentados para invejar as propriedades dos vizinhos) não conheciam esta forma de castigo. Os gregos eram grandes guerreiros, mas, como carrascos, não valiam nada. Além disso, eram dotados de fino senso artístico, e preferiam deixar seus criminosos morrer agradàvelmente em um quarto confortável, absorvendo lentamente uma mistura peculiar de vinho e veneno e conversando com seus amigos até o último momento. Mas, os romanos apreciaram aquele sistema de força muito eficiente para exterminar os elementos indesejáveis na sociedade. Os povos da Idade Média, que possuíam uma coleção de instrumentos torturantes, conservavam o nó corrediço como um castigo mais suave, reservado somente para os merecedores de especial consideração.
E, já que tocamos neste assunto da desumanidade do homem, bem podemos encerrar este pequeno capítulo, apresentando a mão como um instru-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 125
mento de violência. Quanto mais depressa acabarmos com êste estudo tanto melhor será para a nossa dignidade.
Ao chegarmos a êste ponto, deve estar claro ao leitor que o machado de guerra não passa de um punho desenvolvido. Muito usado pelos antigos em combates, não era mais que um punho atuando ao longe. Mas os machados guerreiros, as lanças e as pedras, quando atirados com a mão, não iam muito longe. O mundo procurava um modo de
(A MÃO) Arco e flecha
atirar projéteis mortais (por outras palavras, mãos guarnecidas de pontas agudas e lâminas como navalhas) bem longe. Era uma precaução que per-
126 HENDRIK VAN LOON
mitia ao atirador ficar na luta, fora de alcance da espada do inimigo. Sem exagero, milhões de pessoas durante dezenas de milhares de anos dedica-
(A m ã o )O canhão fixe
ram quase todo o seu tempo tentando resolver o problema, que finalmente seria solucionado com a invenção da funda de atirar, do arco e da flecha.
Por serem muitíssimo mais certeiros, o arco e a flecha sobreviveram, enquanto que a funda caiu logo em desuso.
Aumentando cada vez mais, variando em forma e tamanho e se aperfeiçoando, o arco e a flecha chegaram até quase o fim da ^dade Média, quando um velho amigo nosso, Leonardo, ofereceu aos seus
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 127
contemporâneos os planos de um arco e flecha estacionários, quase tão poderosos como um pequeno canhão, e que atiravam dardos pesados, capazes de penetrar qualquer das armaduras então usadas.
Na arte da guerra, o homem tornou-se extraordinariamente astucioso. Cada novo método de ataque era respondido com novos meios de defesa, o que fazia dele uma perda de tempo e energia. Com a primeira lança, surgiu o escudo. Foram, então, mais aguçadas as lanças, de modo que pu-
(A MÃO)O canhão de rodas
dessem penetrar nos escudos de vime comumente usados, e os fabricantes de escudos trataram novamente de torná-los invulneráveis, cobrindo-os de
128 HENDRIK VAN LOON
couro. E assim foi até os nossos dias, em que os especialistas em armas e munições primam em novas descobertas.
Durante o Século X IV , entretanto, pareceu por um momento que os polidores de lanças sobrepujaram definitivamente, e com bastante astúcia, os fabricantes de escudos. Surgiu uma mistura química de salitre, enxofre e carvão vegetal, trin-
(A MÃO) Canhão camuflado
dade perigosa de forças malévolas, que só fora usada então para fins incendiários. Descobriu-se que essa trindade adquiria uma grande força explosiva,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 129
projetada por um cano de bronze, construído para arremessar enormes pedras a grandes distâncias.
A nova invenção chegou um pouco tarde para servir os cavaleiros das Cruzadas, que com essas armas poderiam ter conquistado a Palestina. Mas, pouco depois da metade do Século XIV , esta nova arma, chamada “ pólvora” , passou a tomar parte em todos os combates.
É incerta a origem desta palavra esquisita, e sugerem alguns que seja a abreviação do nome (*)
(A m ã o )O exército
Gunnilde, dado a um dos canudos de bronze construídos para atirar pedras contra os inimigos. É bem possível, pois todos aqueles antigos monstros
(*) N. T. Pólvora. Em inglês, “gunpowder”
foram batizados com nomes de damas da época, do mesmo modo como também o produto de 42 cm., da famosa fábrica da Sra. Krupp, foi afetuosamente conhecido como “ Dicke Bertha.”
130 HENDRIK VAN LOON
(A MÃO) O torpêdo
Seja qual fôr, porém, o seu nome esse maçarico barulhento chegou a ser o punho de longa distância mais poderoso que aparecera até então no mercado de guerra. Trazia enormes vantagens para a infantaria ligeira, que até então estivera à mercê da cavalaria armada. Os nobres cavaleiros logo promulgaram leis drásticas, acusando a novidade de ser “ ‘ contrária a todos os princípios da guerra civilizada” , e ameaçando todos que utilizassem a catapulta ou a serpentina de serem conde-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 131
nados imediatamente à forca, como qualquer salteador vulgar ou um inimigo da humanidade.
A nobreza nada lucrou com essa proibição, pois a pólvora provou ser um valioso aliado dos burgueses e camponeses, que por longo tempo haviam sofrido, e essa tosca descoberta havia aparecido para ficar, em detrimento eterno das muralhas feudais e das fortalezas reais. Deram-lhe um par de rodas, tornando-se assim uma espécie de mão portátil e passando, então, a ser o alvo de constantes melhoramentos e de tôda a atenção.
(A MÃO) O pilão
Este arranjo talvez não fosse ideal sob o ponto de vista espiritual, porém, sob o ponto de vista prático, o seu valor era incalculável. Os habitantes das cidades que cresciam rápidamente passa-
132 HENDRIK VAN LOON
ram a receber mais dinheiro a vista, que seus estimados senhores, os quais habitavam sob os telhados esburacados dos velhos e rústicos castelos feu-
(A MÃO)O moinho a mão
dais. Assim fortificados, os burgueses e os proletários puderam despojar os nobres da posição de dirigentes na sociedade, e subirem às cadeiras dos poderosos. O uso que fizeram da invenção do lendário Berthold Schwarz (moage alemão que parece ter inventado a primeira arma de fogo de alguma utilidade prática) é infelizmente tão conhecido, que não preciso repeti-lo.
Nem gastarei mais tempo com aquela forma complicada da mão com a máxima capacidade mortífera — o exército. A história está cheia das façanhas dos gentis-homens que se especializaram
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 133
nessa especie de “ trabalho manual” , e, por alguma razão misteriosa da mente humana, aqueles que “ manejaram” a vida de milhões dos seus semelhantes, pouco ligando a vida humana, que é sagrada, foram os que se imortalizaram e ganharam o maior número de estátuas.
Falamos já da mão como instrumento de esmagar. O inventor do martelo era naturalmente um apreciador de nozes, lagostas e ostras. Gradualmente, porém, ao tornar-se a raça humana um pouco mais mansa e domesticada, o homem não quis mais alimentar-se só de carne, e começou a adicionar um pouco de cereais às suas refeições tão irregulares (o homem pré-histórico ou comia demais ou vivia faminto, e por esse motivo raramente chegava à velhice, como o prova a maioria dos esqueletos encontrados). Cansadas de andar errantes e famintas, algumas tribos procuraram lugares agradáveis onde pudessem viver, e se estabeleceram nos campos, junto aos morros. Às vezes, uma mulher mais inteligente entre as bestas de carga descobria um novo cereal que pudesse ser cultivado em terra fértil, penosamente revolvida por um pau ponteagudo. Ao acontecerem essas cousas (o que levava dezenas de mil anos), surgia a necessidade de um método mais prático que a mão ou o martelo, para esmagar certos produtos alimentícios.
Essa exigência, em termos de invenção, significou a mudança gradual das duas mãos humanas em um pilão. Quando o homem se cansou de socar e bater sem descanso para produzir pequeníssima quantidade de substância alimentícia, o pilão, co-
134 HENDRIK VAN LOON
mo era natural e inevitável, transformou-se no moinho.
A princípio a mó era movida com o esforço do homem. Dois homens, ou algumas vêzes um cavalo ou mula, andando em círculo, puxavam o pesado aparelho com a regularidade do escravo, e produziam muito pouco. Isso durou até que os romanos tivessem inventado um método de transmitir a força, e daí em diante então um simples regato ou um rio iriam fazer o trabalho da mão.
A roda hidráulica foi de grande sucesso nos lugares montanhosos, mas de pouca utilidade nas
(A MÃO)O moinho de á^ua
planícies. Estas, porém, possuíam uma outra espécie de força motriz, não muito comum nas costas do Mediterrâneo: o vento, E, logo em todo o
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES
Norte da Europa, surgiram pequenas construções de madeira, contendo no pavimento inferior a pedra de moagem, e levantando suas quatro mãos
(A MÃO)O moinho de vento
aos céus, como a implorar-lhes que livrassem os homens dos seus penosos trabalhos. A princípio (isto é, mais ou menos no Século X II, quando os moinhos passaram a ser de uso comum nos Países Baixos) essas mãos artificiais foram colocadas sobre jangadas, de modo que tôda a máquina podia ser movida sempre que o vento mudava. Mais tarde, o topo do moinho foi construído de tal modo que as asas, movendo-se, exerciam diferentes misteres, antes confiados às mãos humanas, tais como serrar madeira, fabricar papel, preparar rapé e especiarias, irrigar a terra substituindo a velha
136 HENDRIK VAN LOON
máquina de movimento lento, descascar arroz para o mercado e muitas cousas mais.
Mas, ao desempenharem todas essas atividades, os moinhos precisavam de um suprimento constante de vento. E, naqueles países longe do mar, os moinhos de vento não eram constantes, e se não tivessem também a fôrça dágua, as máquinas teriam de ser ou movidas pelos homens (trabalho sempre ineficaz e lento) ou por cavalos (trabalho mais rápido, mas superior às posses, pois o cavalo tinha que ser comprado com dinheiro a vista, en-
(A m ã o )A formação da energia pré-histórica
quanto que mulheres e crianças poderiam ser empregadas por apenas alguns pennies por dia.) Era preciso inventar-se uma nova forma de fôrça mo-
HISTÓRIA Da S INVENÇÕES 137
triz, absolutamente independente dos elementos e que fosse de preço razoável.
Quase desde o início da história, sabia-se que certa substância preta extraída do interior do solo
(A MÃO)A energia pré-histórica condensada
(algumas vezes aparece quase na superfície) era excelente combustível, bem melhor que a madeira, a turfa e as algas marinhas. Era chamada pelos romanos “ carbo” (donde a nossa palavra carbono.) Os gregos chamavam-na “ anthrax” (daí a nossa “ antracite” .) Foi conhecida por “ Kol” pelos nos
138 HENDRIK VAN LOON
sos mais próximos antepassados que surgiram das florestas da Europa Central, ensaiando os pri-
(A MÃO)Aproveitamento da energia pré-histórica
meiros rudimentos de civilização. Nós cliamamos “ carvão” a esta substância, que não é mais que
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 139
uma energia solidificada, depositada liá bilhões de anos quando o sol era ainda bem quente e a terra muito úmida, e quando grande parte do globo se cobria de árvores gigantescas.
Os gregos e os romanos tentaram adquirir grande quantidade desta energia solidificada, mas foram péssimos mineiros. Não achavam um meio mais eficaz de extrair carvão que a mão dos escravos, auxiliada às vezes por martelos feitos de pedra, e isto sem grandes resultados.
Durante o Século X V II, contudo com o restabelecimento do comércio e do intercâmbio internacional, houve uma crescente necessidade de carvão, e a Inglaterra, que era a principal fabricante daquela época, pôs-se a explorar suas minas com todo o interesse. Os poços de minas daqueles tempos eram simples. Não eram muito profundos, mas, mesmo assim, os mineiros foram obrigados, para livrar-se da água, a usar constantemente um substituto da mão, conhecido como “ bomba.”
Essas bombas, porém, eram muito caras. A princípio, foram movidas a mão; depois, cavalos e mulas substituíram homens e mulheres. Ainda assim era difícil conservarem secos os poços, e as bombas absorviam todo o lucro proveniente da venda do carvão. Os mineiros do mundo todo clamavam por um instrumento que substituísse o homem e os cavalos, com melhores resultados e menos despesas. Então, algumas pessoas, que tinham um certo conhecimento científico, começaram a lembrar-se de algo que haviam lido sobre um escravo artificial feito de ferro e fogo, que trabalhava em Alexandria
140 HENDRIK VAN LOON
há mais de quinze séculos, obtendo completo sucesso.
Infelizmente, essas lendárias “ máquinas de fogo” haviam desaparecido com o Império Romano, e os detalhes sobre a sua construção eram um tanto vagos. Não obstante, um número de homens corajosos, alemães, franceses e ingleses, puseram-se a trabalhar, a fim de reconstruir a “ máquina de fogo” e, em curto espaço de tempo, anunciaram que o segrêdo fora descoberto e que a máquina, ressuscitada, estava pronta para entrar em ação.
Mas, como tantas vêzes aconteceu na história das invenções, uma cousa era idealizar-se uma cousa
(A m ã o )A máquina a vapor
e fazê-la funcionar, e outra, completamente diversa, era vencer a inércia do público em geral. Isso não nos espanta. A maioria dos habitantes do nos-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 141
so planeta não é de heróis. Como as árvores, os peixes e os animais dos campos, querem sentir-se a salvo, assegurar-se contra as repentinas mudanças da vida, as quais significariam um desajustamento em seus velhos hábitos familiares. Os pioneiros deste mundo foram aqueles que possuíram o espírito aventureiro mais que o desejo de estabilidade e segurança, razão pela qual eram invariavelmente detestados pelos seus vizinhos, e raramente (salvo se vivessem cem anos) recebiam gratidão do resto da comunidade pelos serviços prestados.
Foi esta a razão por que Dênis Papin, Delia Porta, Giovanni Branca e o Marquês de Worcester experimentaram tão grandes dificuldades, quando tentaram fazer com que algumas gotas de água realizassem o trabalho da mão humana. E foi também por isso que Fiske, na América, se suicidou.
Suas rodas e alavancas, que batiam, roncavam e gemiam, foram olhadas com desconfiança por todos os bons cidadãos. Aquêles monstros barulhentos de pedra, aço e ferro, vomitando fogo e fumaça, certamente causariam as mais terríveis mudanças nas condições de vida de milhões de pessoas. Êsses milhões, que desde tempos imemoriais se habituaram a ser explorados como burros de carga, havia muito se tinham resignado ao seu destino. Eram somente mãos animadas, destinadas a puxar, carregar e levantar, desde o nascimento, ou pelo menos desde cinco ou seis anos de idade, até à morte. Era uma fatalidade, mas não os surpreendia. Era uma situação segura. E isso realmente, era tudo o que o homem comum desejava.
142 HENDRIK VAN LOON
Quando os inventores contaram a esses desgraçados escravos que bilhões e trilhões de forças humanas e forças de cavalos jaziam sepultadas no interior da terra e podiam ser tiradas para fazer agora os penosos trabalhos efetuados pelas mãos humanas, êles perguntavam apenas uma cousa: “ Terei que mudar meus hábitos, e aprender a fazer alguma outra cousa?” Ao terem resposta afirmativa, não quiseram mais outras explicações sobre os enormes benefícios que os livrariam de um árduo e horrível labor, proporcionando-lhes mais riqueza, menos trabalho e menos perigo físico. Essas particularidades não os interessavam. Tinham que interromper hábitos arraigados e iniciar uma vida que seus avós desconheceram. Era o bastante para condenarem a nova mão artificial como blasfêmia e orgulho que desafiavam o poder de Deus. Era o bastante para que todos os ministros da terra censurassem impiedosamente a descarada iniqüidade daqueles que, no seu orgulho, haviam ousado querer melhorar a obra do Todo- -Poderoso.
James Watt alcançou sucesso não somente porque aperfeiçoou a bomba de incêndio de tal maneira que ela podia funcionar sem o auxílio constante da mão humana, mas principalmente por ter sido o último dentre os entusiastas da bomba de incêndio a aparecer em cena. Quando êle obteve patente, a propaganda do vapor como substituto das mãos já vinha sendo feita fazia cento e cinqüenta anos e as oposições haviam esmorecido con- sideràvelmente.
Foi o começo de um novo e interessante capítulo na história da raça humana.
HISTÓRIA Dao INVENÇÕES 143
(A MÃO)O dínamo
A máquina a vapor substituiu os cavalos que, por sua vez, tinham substituído a mão humana na manobra das bombas das minas. Gradualmente se foi descobrindo que essa máquina poderia ser utilizada para inúmeros fins. O mundo todo, então, começou a usá-la. E, para sustentá-la, era preciso explorar mais e mais as minas de carvão, porque o estômago insaciável do monstro de fogo devorava por dia milhões de toneladas desse combustível. Precisavam-se, então, escavar novas minas, e cada vez mais a energia pré-histórica tinha que ser arrancada da terra para o funcionamen-
144 HENDRIK VAN LOON
to constante da máquina. Tornou-se, então, necessário construir mais máquinas para o trabalho das minas. O carvão tornou-se o governador do mundo e a nação que possuísse maior número de minas de carvão, impunha-se às outras.
Não foi isso exatamente um progresso feliz, como o haviam sonhado os descobridores desse auxiliar das mãos. Em oposição a todas as nobres expectativas, os mesmos povos que, anos antes, se haviam libertado da forma mais humilhante de trabalhos manuais, estavam novamente sendo escravizados por uma criatura inanimada, menos piedosa que os feitores dos trabalhos de vinte anos atrás.
Há, porém, um consolo. O período das máquinas alimentadas pelo carvão parece estar destinado somente a um tempo intermediário de desenvolvimento. Mesmo hoje em. dia, já está mostrando sinais de chegar a um fim. Não porque as reservas subterrâneas da energia pré-histórica condensada estão em perigo de esgotar-se (ainda estamos bem longe dêsse dia), mas pelas muitas desvantagens ligadas ao uso do carvão. Há muita dificuldade em este ser obtido. É sujo. A extração do carvão, desde o seu início, foi um trabalho que estêve a cargo de homens da classe social mais oprimida. É um trabalho perigoso. O homem detesta trabalhar a milhares dei pés dentro das entranhas da terra, quando a luz do sol brilha tão alegremente sobre a face da terra. Outra desvantagem é que as minas e os depósitos de carvão deformam qualquer paisagem várias milhas ao redor.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 145
E ainda há as despesas de transporte do carvão das minas até onde ele deve ser utilizado.
(A m ã o )Formação dos poços de petróleo
Sendo a máquina a vapor a única substituta para a mão capaz de desenvolver a força necessária para fazer milhões das rodas das nossas modernas máquinas girarem, não nos devemos queixar, e aquêles que se lembram das greves dos mineiros há uma geração atrás mais ou menos, sabem muito bem por que.
Hoje em muitos lugares, toda vez que os mineiros param de trabalhar, a mão da comunidade fica paralisada, e a conseqüência é a fome e o frio. Mas, a nossa dependência do carvão não é mais tão absoluta como antigamente. Porque a máquina a vapor não é mais a principal fonte de forças.
146 HENDRIK VAN LOON
Quando esta contava sessenta anos de idade, teve um irmãozinho que foi batizado por Dínamo, nome escolhido por causa de um seu avô grego, há
(A MÃO)Um poço de pet-óleo
muito esquecido, o qual pertencera à família da Força. Durante os primeiros anos de sua existência, a criança era muito fraquinha. Por muito tempo pareceu que não sobreviveria para atingir o brilhante futuro que para ele sonhara o seu padrinho, Michael Faraday.
Mas, com a exigência crescente de força e mais força, foi reconhecido o seu valor de transformar energia mecânica em energia elétrica, e assim êle não foi relegado ao museu de curiosidades mecânicas. Hoje, o dínamo é tão precioso para a socie-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 147
dade como a máquina a vapor para substituir a mão humana. E, com o seu harmonioso som, tornou-se muito mais popular do que o seu ofegante e bufante irmão mais velho.
Mas, meio século atrás, quando parecia que a mão a vapor e a mão elétrica iriam dividir entre si todo o trabalho do mundo, estes dois bons amigos foram surpreendidos com a chegada de um outro irmãozinho, o qual crescia tão rápida e furiosamente, que, por algum tempo, deu a impressão de que iria acabar com a vida dos seus parentes mais velhos e mais respeitáveis. Chamava-se Motor. Alimentava-se esse novo ser de matérias corrompidas de animais, assim como a máquina a vapor se movia à custa de substância vegetal.
O seu alimento diário deriva-se de grandes depósitos de substância oleosa que jazem ocultos no seio da terra, e de cuja existência já se suspeitava fazia quarenta séculos. Naquele tempo, o petróleo, que por acaso se destilava através dos poros da terra rochosa, era usado unicamente para iluminação. De que provinha aquêle óleo da terra, ninguém sabia dizer, e até hoje, com tôda a nossa sabedoria química, podemos apenas fazer suposições acêrca da origem dêsse indispensável combustível. Pois, embora pareça que tenhamos razão para supor que o petróleo seja produto animal e não vegetal e que se compõe de restos mortais liquefeitos de bilhões e quatrilhões de criaturinhas microscópicas que viveram nos mares dêste mundo há milhões de anos antes que o nosso planêta assumisse a sua forma atual, não podemos saber ao certo. E, embora essas gotazinhas de gasolina (uma subs-
148 HENDRIK VAN LOON
tâneia refinada do óleo bruto tirado da térra) se tenham tornado tão importantes que delas dependam os destinos das nações, continuam a ser tão misteriosas como o foram nos dias em que os habitantes de Ecbatana e Babilonia incendiaram uns a cidade dos outros com auxílio de alguns barris de petróleo.
O motor, porém, nunca mostrou o mínimo inte- rêsse pelas composições científicas do seu alimento. Continuou a desenvolver-se com furiosa velocidade, adquirindo rápidamente uma formidável popularidade como jamais conseguiu nenhum outro substituto da mão. É uma criatura voraz e, a fim de satisfazer o seu apetite, fomos forçados a extrair com mais rapidez a substância liquefeita pré-his- tórica. Muitos cientistas estão realmente alarmados e predizem uma extinção definitiva da máquina de combustão interna, por falta de alimento adequado.
Isso, ao que me parece, r ão nos deve preocupar tanto. O homem, depois de ter experimentado os prazeres de uma comparativa liberdade, livre dos penosos trabalhos, não se submeterá novamente à escravidão dos tempos dos seus avós, sem uma séria e terrível luta. Por toda parte, êle está experimentando novos substitutos para a mão humana. Está construindo novos moinhos capazes de aproveitar as correntes de ar. Está obrigando quedas dágua, rios e cachoeiras a moverem dínamos para êle. Lançou uma vista perscrutadora aos raios solares até agora desperdiçados. Está tentando (mas ainda sem sucesso) liquefazer o carvão ou inventar uma nova espécie de álcool que possa
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 149
substituir o óleo, a fim de alimentar a família grande e voraz do Motor que, sem alimento, paralisará as rodas, recusando-se positivamente ao trabalho.
As predições sobre um próximo futuro dos desenvolvimentos técnicos muito contribuíram para aumentar os disparates literários deste mundo. Gênios inventivos querem aproveitar as vibrações produzidas pelas asas das vêspas e dos beija-flôres, transformando-as em energias necessárias para mover nossas máquinas. Estou certo de que muito antes de se esgotarem nossas minas de petróleo,
(A MÃO)Operários com, seus instrumentos
a inteligência do homem terá descoberto um novo meio para que essas máquinas continuem a funcionar.
150 HENDRIK VAN LOON
Cousa alguma é tão contagiosa como o amor ao conforto. E as pessoas já acostumadas ao automóvel não voltarão jamais à diligência, mesmo que cheguem a gastar o seu último centavo na procura de um novo substituto para esta matéria de cheiro ruim que emana das entranhas da terra.
Não sou exatamente um entusiasta ardoroso de todas as realizações da espécie de mamífero a que pertenço. Parece-me muitas vêzes que o humilde cão desfruta mais felicidade ria sua existência que a maioria dos meus amigos. Mas isso, afinal de
ÂiSIlíL.HS'
(A MÃO)A máquina na casa do artesão
contas, é só aparência. Porque o amável cão de raça vive em um mundo “ todo descoberto” . Tem uma cama decente, alimento suficiente e um banho oca-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 151
sional em troca de nada mais que aquela fiel devoção de que parece possuir uma reserva sem limites.
Quem sabe se eu ficasse livre de todos os cuidados e preocupações, uma vez que fosse obediente, desistisse de caçar os gatos da vizinhança e atendesse prontamente quando me chamassem, talvez eu pudesse olhar a vida com serena alegria! Mas não teria a grande satisfação de ser superior a todos os animais — não poderia compreender que este mundo gira, como Galileu Galilei observou. Não me refiro no sentido de ele girar em volta do sol, mas sim no sentido de crescer em inteligência, bondade e tolerância para com a maioria dos homens, muito mais do que o tem sido até então.
É uma triste verdade que, enquanto a mão está avançando aos saltos e trambolhões, as faculdades do espírito se vão desenvolvendo com uma lentidão exasperadora — que mecánicamente vivemos neste ano de 1928, enquanto que espiritualmente pouco nos temos afastado dos nossos ancestrais primitivos — que, em resumo, não somos mais que os habitantes das cavernas passeando alegremente em nosso Chevrolet. Tudo isto eu compreendo muito bem, mas recuso-me a ouvir as insinuações dos derrotistas, que insistem para que eu não mais averigúe os mistérios insolúveis, porque não adianta; porque somos predestinados para o fracasso; porque toda a sabedoria de que tanto nos envaidecemos parece somente conduzir-nos à ruína e à infelicidade.
152 HENDRIK VAN LOON
A causa da Grande Guerra não foi o nosso muito saber. Apenas provou, de um modo desastroso, que não sabemos ainda bastante.
(A MÃO) A fábrica
Assim também essa inquietação social que nos ameaça de todos os lados. É tolice, no entanto, dizer que êste descontentamento geral é o resultado da revolução mecânica e industrial causada pelo aparecimento dos substitutos das mãos, chamados máquina a vapor, dínamo e motor. Não quero negar a existência de uma grande miséria, nem desprezar o fato de que muitas das pessoas, cujo trabalho é pôr êsses monstros inanimados em movimento, detestam seus cargos, no que têm boa razão para assim agir.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 153
Mas esse não é o ponto principal. São apenas detalhes, que nada têm a ver com o caso. Pode-se argumentar contra o uso dos entorpecentes na medicina, insistindo-se para que os doentes nos hospitais devam ficar sem o alívio que a cocaína ou a morfina produzem, só porque alguns fracos se tornam viciados, e estas devem ser apreendidas pela polícia? Deve-se porventura condenar os automóveis, só porque uma criança imprudente de doze anos põe a correr o carro do pai, atirando-se com êle em um lago da vila?
(A MÃO)Nossos escravos desconhecidos
Não, o Homem do Ferro veio para ficar e todas as belas palavras do mundo nada lhe tirarão do poder.
154 HENDRIK VAN LOON
0 tempo em que o trabalhador fazia tudo com suas próprias mãos já se foi de uma vez. O tempo em que o trabalhador carregava o seu modesto saco de instrumentos (suas mãos reforçadas) nas costas, também já se foi, exceto nas artes delicadas que exigem destreza. O dia em que o trabalhador se sentava em sua casa a suar sobre algum miserável aparelho mecânico que lhe fora emprestado por alguém bastante rico, pois só estes podiam comprar instrumentos tão caros, f ora do alcance do artesão comum — esse dia também está próximo do seu fim. Chegou o dia da mão comum centralizada e superior, conhecida como fábrica. Seria tolice combater esta útil instituição, como seria crime fechar os nossos olhos para as tremendas dificuldades que surgem, quando nações inteiras são repentinamente forçadas a adotar novos métodos de pensamento ou de vida, muito antes que a sua mentalidade esteja preparada para essa mudança.
A época da máquina caiu sôbre nós quase tão inesperadamente como a época do gelo. No pânico que se seguiu a muitas dessas grandes cousas, aconteceu o que geralmente acontece durante os pânicos, tão raramente agradáveis de se contemplar. Mas, assim como a raça humana foi capaz de sobreviver à infinitamente maior revolução econômica e social causada pela aparição das geleiras, achará de certo um meio para vencer as presentes dificuldades.
Hoje, na América, até o mais pobre entre os pobres tem onze escravos silenciosos que fazem o seu trabalho, enquanto sua atenção está voltada para outras cousas — criaturas caladas, mas bem dispostas, que carregam, buscam, levantam, fazem uma
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 155
multidão de cousas, que eram feitas liá um século pelas mãos e costas humanas.
Em nossos dias, ao mais pobre morador dos bairros miseráveis é dado gozar certos luxos com os quais Carlos Magno, com toda a sua glória (foi ele o mais poderoso dos soberanos), não ousou sequer sonhar de medo de ser considerado louco.
Isto está parecendo algum discurso de depois do almoço, feito por um propagandista profissional, empregado por alguma sociedade de beneficência pública, a fim de convencer a Câmara Comercial de alguma cidade de sétima categoria sobre a necessidade de uma instalação elétrica suplementar.
Deus me livre de tal!A gigantesca mão substituta da época moder
na, mal dirigida e mal inspirada, deixada à mercê de patrões gananciosos, é ainda capaz de causar numerosos prejuízos.
Mas a mesma mão manejada com escrúpulo e sabedoria é capaz de uma série infinita de bens.
A escolha, meus amigos, está conosco.
C A P Í T U L O IV
DO PÉ À MÁQUINA DE VOAR
O poeta pode achar inspiração no “ ligeiro pé alado” (Shakespeare refere-se a isso em “ Romeu e Julieta” ) mas, para os quadrúpedes e bípedes, os pés têm tido sempre uma dolorosa missão. Dolorosamente exposto às afiadas pedras e aos aguçados espinhos dos caminhos, sob o pêso de toda espécie de carga, caminhando, trotando e galopando a levar o seu dono com segurança, o pé sempre foi uma das partes mais vulneráveis do corpo. Por este motivo, o homem, logo que, conscienciosamente deixou de ser um animal, começou a multiplicar ou aumentar as fôrças de suas patas traseiras. Tratou, então, de arranjar um substituto agradável para algumas das milhares de tarefas que, por tanto tempo, haviam desempenhado as solas dos seus pés doloridos.
A princípio, é evidente, ninguém tinha pressa. A idéia de “ tempo” é de origem bem recente. Os
homens primitivos conheciam, apenas alguns fatos importantes. Sabiam que ao dia se segue a noite e vice-versa, e que, após um período quente e úmido, sucede um período frio e seco.
158 HENDRIK VAN LOON
(O PÉ)A bêsta humana ile carga
Mas a moderna noção do tempo, como uma substância quase tangível, a qual pode ser convertida em quantidades definidas de trabalho e pode ser transformada em lucros e perdas, teria feito o povo de 15.000 anos passados dar boas gargalhadas. Um aborígene da África, ouvindo as teorias de Alberto Einstein, não ficaria mais aturdido e desnorteado que um cidadão da Idade da Pedra recebendo instruções sobre o uso de um relógio ou de um roteiro marítimo.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 159
A velocidade, portanto, não entrava nos cálculos dos nossos ancestrais primitivos, se não fosse o caso de serem perseguidos por um inimigo. Mas até o Pithecanthropus erectus tinha um dorso, e este tinha de ser suportado pelos dois pés.
Não lhe importavam as horas, dias ou semanas que gastava para ir de um lugar a outro, mas faziam-lhe diferença (e bem considerável) o quanto tinha de esforçar-se, as bolhas que lhe apareciam nas solas dos pés, os inúmeros rios que vadeava, e como as suas pernas ficavam dilaceradas pelos espinhos dos matos.
(O PÊ)O trenó
E a procura do pé multiplicado começou quase tão cedo como a procura da mão multiplicada, e parece que com mais sucesso; porque, mesmo os
160 HENDRIK VAN LOON
mais humildes animais aprenderam que era possível obrigar outros a executa]* aquilo que eles próprios não desejavam fazer. Seguindo esse exem-
(O PÊ) O trenó
plo inteligente, o homem, no primeiro degrau do seu progresso, escravizou numerosos mamíferos, companheiros seus, usando os pés deles como substitutos dos seus.
O cavalo foi o primeiro a render-se. Uma vez montado nas suas costas largas, o homem podia cobrir grandes distâncias com o mínimo de esforço e o máximo de conforto. Era preciso, entretanto, extraordinária habilidade para manejar um desses animais e muitos preferiam caminhar a pé a correr o risco de quebrar o pescoço.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 161
Mas andar não era castigo tão terrível quando os povos viviam como animais do campo e não tinham ainda acumulado algumas possessões particulares. Logo, porém, que o homem se tornou suficientemente civilizado para aumentar alguns bens domésticos, ele ficou escravo das suas riquezas e, onde ia, tinha que conduzi-las às costas. Bem cedo descobriu que podia mover com muito mais facilidade pesadas cargas puxando-as, do que se as carregasse às costas. Quando este fato ficou definitivamente estabelecido, o problema da tração sofreu completa modificação. Muito antes que todo o planeta pudesse orgulhar-se de uma estrada, o período glacial, com seus campos de neves sem fim, oferecia excelente oportunidade para experiências em trencs, peças chatas de madeira puxadas por sêres humanos ou gamos.
Com o passar do tempo, essa peça foi guarnecida de correias. A princípio eram feitas de osso. Quando surgiu o metal, tornando-se de uso geral, o osso foi substituído pelo ferro e finalmente pelo aço. O trenó, porém, conservou sua forma original pré-histórica mais tempo que qualquer outra máquina humana. Muito depois da invenção da roda, o trenó conservou-se em uso, e, durante os séculos X V II e X V III, todos os transportes dos grandes centros comerciais eram feitos por êle. As rodas eram muito caras e ficava mais barato perder alguns cavalos do que comprar de um carpinteiro um carro de tamanho regular.
Onde está a estátua dedicada à memória do homem que inventou a roda?
162 HENDRIK VAN LOON
Foi ele um dos maiores benfeitores da humanidade e nunca foi lembrado.
(O PÉ)O carro egípcio
Para nós, naturalmente, o que êle fez parece muito simples. Poderia ter havido um tempo em que o homem nem sequer pensasse em pôr em prática o disco de madeira?
Na verdade, não somente existiu esse tempo, mas ainda existiram muitos seres humanos que nunca descobriram roda durante milhares de anos que viveram sobre a terra. Nossos índios ignoravam a existência da roda. E os carros dos seus conquistadores espanhóis vieram surpreendê-los tanto como os bacamartes que êstes usavam. Contudo, os índios americanos não eram tolos; eram tão inteligentes como os seus contemporâneos europeus. Faziam cousas maravilhosas no campo da
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 163
matemática. Foram melhores astrônomos que os egípcios e os gregos. Mas êles nunca pensaram na possibilidade de construir uma roda, e foi isso uma das causas da sua decadência e queda, vítimas dos colonizadores do Este.
Em nossos museus encontramos as mais antigas formas de rodas, que foram achadas nos túmulos dos antigos soberanos do Egito. Esculturas babilónicas mostram-nos soberanos barbados, caçando ferozes leões, dentro de vantajosas e seguras carriolas. Homero zomba dos carros, quando alude aos reis. Os carros dos quais fala a Bíblia não se
(O PÉ)A roda
referem às estradas aqui da terra, mas são aquêles que ousadamente avançam para as nuvens, e tomam de assalto os pináculos do Paraíso. Toda a
164 HENDRIK VAN LOON
história da antigüidade, na verdade, está entremeada de lendas acerca de carros chamejantes e carruagens celestes. Quando os povos queriam render
(O P Ê )A primeira carruagem
uma particular homenagem a um dos seus deuses, pintavam-no conduzindo diabolicamente um carro dourado, desafiando uma corrida contra o sol, roubando a lua, ou fazendo qualquer outra cousa que demonstrasse grande perícia em conduzir cavalos e rodas.
Duvida-se, no entanto, de que aqueles carros primitivos servissem como meio ideal de locomoção. As pessoas raramente o usavam, a não ser em caso de doença ou de velhice. Sempre que possível, montavam cavalos ou mulas Houve, em seguida, um período de abandono que se seguiu ao desper-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 165
tar da desagregação de Roma, em que os carros ficaram privados das suas estradas, sem as quais eles não poderiam andar. Então, as cousas com rodas tornaram-se muito raras e curiosas — um grande luxo como os iates particulares ou trens especiais. Finalmente, desapareceram por completo de muitos lugares da Europa até o Século XVI, quando a restauração do comércio por terra exigiu métodos mais eficazes de transportes. Reapareceram, então, os antigos carros romanos nas estradas da Europa, e o burro de carga, o meio mais comum de transportes da Idade Média, não mais fez tilintar
(O PÉ)O carro a vela
suas campainhas através das ruas estreitas das vilas suíças. Mas, assim que as velhas carroças de madeira começaram a transportar especiarias e te-
166 HENDRIK VAN LOON
eidos de Este a Oeste, já principiaram os esforços para torná-la mais independente da boa vontade e paciência dos bnrros e mulas. Foi na época em que
(O PÉ)O pé a vapor
os navios a vela começavam a substituir as naus movidas a remo pelos escravos das galés. O vento bonançoso fazia cousas marav lhosas sobre as águas. Por que não o aproveitar em terra firmei
Um inteligente flamengo tentou combinar a idéia de barco e carruagem, e colocou uma vela no seu veículo de quatro rodas. Funcionou perfeitamente, porém, seguia somente uma direção, recusando-se a mudar de rumo. E, depois de outras tentativas vãs, em que procuravam fazer o carro virar pela força humana, a cousa fracassou.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 167
Durante centenas de anos não alcançaram sucesso. Até que, finalmente, alguém pensou em mover o pé multiplicado por meio da mão multiplicada. Não é agradável relembrar que a primeira combinação dos dois foi construída para favorecer aquela outra forma da mão fortificada, conhecida com o nome de canhão. Mas foi isso o que aconteceu.
No ano de 1769, um francês por nome Cugnot atravessou com dificuldade a estrada de Versalhes num veículo a vapor, construído para o Departa-
(O PÉ)A locomotiva
mento da Guerra francês, a fim de ver se o vapor poderia ou não substituir os cavalos nas manobras dos pesados canhões. O carro a fogo de Cugnot
168 HENDRIK VAN LOON
fugia do modelo geral, o qual insistia que as carruagens deviam ser construídas à imagem dos bípedes ou quadrúpedes. Não tinha duas nem qua-
(O PÊ)O automóvel
tro rodas o carro de Cugnot, tinha três, e corria ao longo das ruas mal calçadas, com a velocidade média de quatro quilômetros por hora. Teria sido um sucesso, se o inventor conseguisse parar na estrada. Mas o veículo insistia em correr através de campos, provando que os freios estavam longe de ter firmeza. E assim falhou a sua experiência. Desistiu-se, então, da idéia, que logo ficou no esquecimento.
Êsse fracasso foi, talvez, devido aos planos imperfeitos do engenheiro que construiu a máquina. Ou quem sabe o resultado daquela hostilidade ab-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 169
surda para com todas as idéias novas, a qual caracteriza a mentalidade militar em geral. Os peritos da artilharia francesa declararam-se contra a nova máquina, assim como cinqüenta anos mais tarde um dirigente italiano, chamado Bonaparte, ridicularizou a idéia de se poder atravessar o canal em navio a vapor, do mesmo modo também como o nosso Departamento da Guerra, setenta e cinco anos depois, rejeitou o uso de anestésicos nos hospitais de campo, porque o clorofórmio era tido como inútil e perigoso.
(O PÊ)Os patins
Não é preciso dizer que os Sam Weller daqueles tempos, logo que ouviram falar em carro sem cavalo, fizeram um terrível barulho e, do alto poleiro dos seus majestosos coches, acusavam a idéia
170 HENDRIK VAN LOON
de viajar a vapor como um desafio profano à vontade de Deus, a _gual destruiria as colheitas, acabaria com a criação de cavalos e dêsse modo destruiria também o Império.
(O PÊ)A primeira ponte
Mas os inventores já nascem inventores, assim como os pintores e os compositores têm a sua arte inata. Essas boas pessoas não compõem, não pintam, não inventam nem organizam monopólios só porque o querem. Desempenham essas inúmeras tarefas, porque não podem evitar isso. Está no seu sangue. São impulsionadas por alguma forma incurável de curiosidade divina. Para êles, não é necessário viver. Precisam apenas de inventar, compor ou pintar, se não morrem de puro descontentamento e impaciência.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 171
Toda vez que surge urna nova idéia, noventa e oito por cento das pessoas zombam, criticam pelos jornais e incitam os editores a usar a sua influencia persuadindo os aviadores, exploradores do ártico, musicistas de saxofones e outros tais a não corromper a juventude com seus maus exemplos.
Felizmente os outros dois por cento raramente ouvem falar dessa nobre campanha, porque, quando acontece possuírem um jornal, acendem com ele o fogo para que a sua família não morra de frio. E, se acaso são visitados por lacrimosas damas de alguma instituição patriótica para solicitar-lhes que desistam, eles são obrigados a desapontar as queridas irmãs. Pois a maioria deles parece um tanto maluca. E assim é. Poderia acaso uma pessoa sensata enfrentar as dificuldades dos nossos pioneiros intelectuais? Naturalmente que não. E se todo este mundo fôsse composto de gente normal, viveríamos ainda no meio das árvores, balançando-nos alegremente de ramo em ramo, com o auxílio das caudas compridas.
Não cabe aqui esta divagação, pois estou quase a falar da invenção de um outro pé multiplicado, que foi combatida com mais severidade do que qualquer outra. É o trem.
Atribui-se a Richard Trevithick, William Hed- ley e George Stephenson a responsabilidade da invenção do Cavalo de Ferro. Viviam eles numa época de responsabilidade, de rapé e de meios vagarosos de transporte, e sentiam que o seu entusiasmo era completamente inútil num país de puritanismo cristão.
172 HENDRIK VAN LOON
Hoje, todos os três têm uma estátua erigida. Mas, enquanto viveram, a admiração da comunidade se manifestou de modo bem diverso: festejavam-nos com vaias, folhas de couves murchas e Atos Parlamentares interferindo com os seus desígnios nefastos sobre a tranqüilidade do país. Quando até os Atos Parlamentares de nada adiantaram, organizaram-se comissões de sábios professores, os quais, tendo à mão inúmeros dados e estatísticas, predisseram que a idéia de tração a vapor seria um fracasso e que era atirar dinheiro ao Tamisa, custear-se tal experiência. E quando a primeira
(O PÊ)Ponte romara
estrada de ferro ficou pronta, outros doze anos de controvérsias e argumentos teve Stephenson de sustentar a fim de convencer os diretores a colocarem
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 173
a máquina sobre rodas, uma vez que a sua função era locomover-se e não conservar-se estacionada, como antes, em uma extremidade da estrada; pre-
(O PÉ) Tunél sob um rio
pararam um sistema complicado de cordas, a fim de que os carros fossem puxados para frente e para trás.
Isso foi em 1825.A idéia de máquina a explosão é muito antiga.
Os gregos já haviam pensado na possibilidade dês- se substituto para as mãos, mas jamais conseguiram construir uma. A dificuldade estava em não terem êles conhecimento suficiente. Tinham uma inteligência brilhante, mas os seus conhecimentos científicos eram pequenos e, assim, foram
174 HENDRIK VAN LOON
sempre os grandes “ adivinhadores” do Velho Mundo, que tudo adivinhavam, desde a política até os automóveis, e, muitas vezes, quase que adivinhavam certo.
Seus sucessores foram os piedosos burgueses da Idade Média, indiferentes ao “ conhecimento” e à “ adivinhação” , enquanto pudessem “ crer.” Quando, após anos de dolorosas experiências, acima de qualquer dúvida, compreenderam que uma inteira confiança nas alegrias do futuro trazia mais preocupação no presente em vez de um conforto completo, o trabalho dos antigos helenos continuou
(O PÉ)O primeiro bcrco
donde havia parado, e a máquina de combustão interna mais uma vez saiu do seu ático escondido, tornando-se objeto de um sério estudo.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 175
Huygens, físico holandês, teve a idéia de uma máquina que se movesse por explosão de uma pequena quantidade de pólvora. Enquanto êle ten-
(O PÉ)O primeiro barco atravessa o canal
tava suas experiências com uma variedade de pólvora, a casa real da Suécia comprou um carro, “ conduzido por um aparelho mecânico” (pormenores desconhecidos), que fora fabricado por um relojoeiro de Nuremberga. Êste, porém, se mostrou rápido demais para as estradas, pois muitas vêzes chegava a fazer um quilômetro e meio por hora, podendo continuar assim a correr para sempre. Poucos anos depois, o grande Isaac Newton, descobridor da lei da gravidade, ocupou-se de um carro que devia ser movido sob o mesmo princípio do foguete.
176 HENDRIK VAN LOON
Mas não foi senão nos meados do século passado, quando as qualidades explosivas do petróleo destilado ficaram definitivamente estabelecidas, que o automóvel (na sua forma moderna) fez a sua primeira aparição. Tanto a França como a Alemanha estavam ocupadas com experiências, quando rebentou a guerra de 1870, demorando os resultados. Quinze anos depois dessa louca e desastrosa luta, os carros sem cavalos, movidos não a vapor, mas por “ motores explosivos” , começaram a circular nas estradas reais da Europa, sendo logo atacados. As companhias de estradas de ferro, esque-
(O PÉ)O barco a oela
cendo por completo o que lhes havia sucedido pouco tempo antes, condenavam êsses toscos corredores das estradas reais como “ inimigos da seguran
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 177
ça pública.” Os particulares clamavam em altas vozes os direitos dos pedestres, e o Parlamento, como sempre, fez valer seus direitos, instituindo
( o PÊ)Velejando através do canal
leis que obrigavam os proprietários dos carros a fazer os seus veículos serem precedidos por guardas com lanternas acesas ou bandeiras vermelhas.
Todas estas invenções, que serviram para multiplicar a fôrça do pé, contribuíram para a grande revolução na fabricação social, que teve início quando James Watt obteve a patente para a sua máquina a vapor aperfeiçoada. Esta modificou por completo a velha idéia de distância. Reduziu o tamanho do globo no mínimo de sessen-
178 HENDRIK VAN LOON
ta por cento, dando à humanidade uma nova concepção da palavra “ velocidade” , a qual transformou o pé em um instrumento deficiente de transporte, fazendo da criatura uma espécie de lesma com cérebro, trabalhadora, mas vagarosa. Até à invenção da locomotiva e do automóvel, o pé, quando muito aumentado por um par de patins (a princípio de correias de osso e mais tarde de aço), havia sido o nosso único padrão de velocidade, e o que ele realizava não era absolutamente para vangloriar-se. Mas agora, menos de cem anos depois, conseguimos uma velocidade formidável. Podemos
(O PÉ) A âncora
não saber, às vezes, para que andamos com tanta velocidade, mas, de qualquer forma, não estamos mais parados.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 179
E o que acontecia na terra, foi logo duplicado na água. O homem é essencialmente um animal terrestre, mas, obrigado pelo apetite e pela ambição (às vezes pela curiosidade) passava bastante do seu tempo sobre as águas.
E os diferentes substitutos dos pés já descritos não serviam quando os caminhos para um determinado lugar eram mais curtos por meio de um rio ou de um regato. Se o rio não fosse muito fundo, poderia ser atravessado a pé ou a cavalo. Mas a travessia tornava-se difícil por causa das cargas que geralmente acompanhavam o viajante, o qual perdia muito tempo em transportá-las. Algum meio devia ser inventado para que o homem pudesse ir de uma a outra margem sem molhar os pés.
Foi assim que se inventaram as pontes.A primeira ponte foi uma árvore caída, es
tendida entre dois barrancos, tornando-se transitável pelo aplainamento da parte superior. O comprimento dos troncos, porém, é limitado, enquanto que os rios não o são em largura. Além disso, cavalos e carros não podiam arriscar-se por essas vacilantes e estreitas passagens. Muitas vezes os viajantes escorregavam e caíam, afogando-se na correnteza.
Os romanos resolveram finalmente as dificuldades. Os engenheiros egípcios e babilônios foram tão inteligentes como os seus sucessores romanos, mas viviam nas margens de rios que realmente eram pequenos oceanos, e tão largos, que não se arriscavam atravessá-los. Além disso, essas nações não dominavam a maior parte do mundo ha-
180 HENDRIK VAN LOON
bitado, e por isso não tinham necessidade de meios rápidos e contínuos de condução entre um lugar e outro dos seus impérios.
(O PÉ)O leme
Os romanos, pelo contrário, administravam centenas de milhares de milhas quadradas de território, tendo apenas à disposição um número limitado de soldados. Dependiam, por isso, de estradas e pontes para conduzi-los, com presteza, de um extremo a outro dos seus domírios. As pontes construidas eram, na sua maioria, para fins militares e não comerciais.
Na última metade da Idade Média, os arquitetos e engenheiros começaram a dedicar-se às ruínas das construções romanas, a fim de restaurá-las, conforme as necessidades.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 181
Hoje, com a urgência crescente do comércio, a mais bem feita destas estradas suspensas não pode sempre controlar o tráfico crescente de uma a outra cidade. Assim, a ponte (o pé) se tornou um túnel que, passando por leito do rio, reaparece do outro lado sem interrupção do acúmulo de trânsito.
Foram assim facilmente desfeitos os pequenos obstáculos das águas.
Mas havia o mar, e êste se recusava a render- -se tão fácilmente, oferecendo muito maior resistência. Pode-se, naturalmente, imitar os peixes e
(O PÊ)O navio a vapor
as focas e nadar; mas o corpo humano tem um tempo limitado para permanecer dentro dágua. Tornou-se preciso inventar uma cousa completamente
182 HENDRIK VAN LOON
diferente para agir como pé na água. Animais sobreviventes de uma enchente, montados ou agarrados a um tronco de árvore arrancada, talvez tenham
(O PÉ)De Calais a Dover a vapor
sugerido a idéia do primeiro barco. Mas um tronco era uma embarcação impossível de manejar, e virava com a maior facilidade. Então escavaram um buraco no centro do tronco por meio do fogo ou raspando com instrumentos de pedra, e fizeram, assim, uma canoa regular, a qual impulsionavam por meio de um pau comprido. E um dia, depois de anos de experiência, c mundo pré-histórico foi surpreendido com a notícia de que um homem atravessara o Canal da Mancha em um bote. Naturalmente foi êle considerado um grande herói,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 183
maior que Lindberg, e até certo ponto tão importante quanto êste.
Então chegou um momento (um dos maiores momentos da nossa história) em que um intrépido marujo esticou a pele de um animal em um pedaço de madeira, levantou um poste em cruz à guisa de mastro, colocando-o na proa do seu barco, e orgulhosamente se deixou conduzir pelo vento ao seu destino. Quando ele finalmente atravessou o Canal da Mancha naquele barquinho rápido, estou certo de que os habitantes dos dois lados daquela
(O PÉ)Invejando os pássaros
larga faixa de água se convenceram de que o infinito estava agora perto e que seria difícil levar a capacidade do homem mais além.
184 HENDRIK VAN LOON
Foi, porém, somente em começo. Pois a mão vinha agora em socorro do pé. O remo foi inventado, causando profunda impressão. Olhando-o,
( o PÊ)O papagaio
dizia-se que o barco estava abrindo a sua estrada através dos mares. Assim, a navegação se tornou mais garantida, do que até então, diminuindo a preocupação dos marujos sobre a direção do vento. Se alguém possuísse grande número de escravos, podia afirmar com segurança quando se chegaria a um determinado lugar.
Alguns milênios depois da invenção do primeiro barco, surgiu o leme que melhorou o remo. Quando o leme foi introduzido, as embarcações conservavam ainda aquelas formas de caixas quadradas flutuantes, sendo iguais tanto a proa como
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 185
a. popa. Por isso, o leme devia ser colocado em ambas. Êsses lemes não passavam de remos ampliados, os quais eram usados do mesmo modo que os remos das canoas. Ao se tornarem mais velozes, os barcos mudaram completamente de forma, o remo dianteiro foi abolido e o leme foi removido para a extremidade da popa, onde permanece até boje.
Quase ao mesmo tempo, houve uma outra mudança na técnica da navegação, a qual era um pequeno invento, que passou a ser conhecido com o nome de âncora (palavra derivada do grego.)
(O PÊ)A máquina de voar mais pesada que o ar
Os gregos e os romanos receavam o mar alto, assim como temiam os cimos nevados dos Alpes e as montanhas da Trácia. Êles eram marujos de
186 HENDRIK VAN LOON
terra. Ao escurecer, puxavam seus barcos para a praia e passavam a noite em terra. Adotavam êste método lento e complicado de navegação por
(O FÉ)O primeiro ba Ião
não poderem orientar-se quando no céu não havia estrelas. Ficarem parados os barcos na água, sem mover-se, era impossível; se navegassem, ninguém poderia dizer onde iriam parar.
A âncora, uma pedra pesada atada a uma corda, era realmente a mão que segurava o navio no fundo do mar, resolvendo esta dificuldade. Conservava a embarcação onde devia ficar, de modo a tornar possível fazerem-se viagens mais longas. Foi a âncora uma das mãos multiplicadas consideradas mais úteis, tornando-se o símbolo de segurança em algumas crenças religiosas.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 187
As simples exigências dos marujos estavam agora satisfeitas, pois tinliam tudo de que mais precisavam. Mas, em caso de cerração, eram capazes de perder o caminho, pois não podiam guiar- -se sem estréias. A bússola resolveu a dificuldade. Apareceu durante a primeira metade do Século X III (não se sabe donde.) Com ela, os navios podiam arriscar-se através dos sete mares. Com bons capitães, proprietários escrupulosos nas construções, tempo relativamente bom e os roteiros exatos, essas primitivas embarcações chegariam ao seu destino. Os veleiros ou galeras, embora dirigidos por marujos peritos, não inspiravam confiança.
Um vento contrário significava complicação e uma tempestade causava perda de cinqüenta por cento de todos os remos.
Todos os problemas de navegação foram reduzidos a um único: como tornar o pé flutuante livre do vento e da mão humana.
Tentaram, sem resultado, rodas remadoras, colocadas em ambos os lados do barco, movidas por pés humanos. Logo, porém, que James Watt conseguiu aperfeiçoar a mão multiplicada, uma máquina a vapor foi colocada no porão do navio, fazendo as rodas funcionarem. Atribui-se a Robert Fulton a descoberta desta máquina. Muitos tinham tentado antes de Fulton a experiência do “ barco a fogo” , e êsse jovem pintor entusiasta foi o mais bem sucedido dirigente da navegação a vapor. Doze anos depois, ao findarem as grandes guerras napoleônicas, linhas regulares de navegação estabeleceram-se entre a Inglaterra e o continente europeu, e, no ano de 1823, a América
188 HENDRIK VAN LOON
e a Europa foram ligadas por vapores que gastavam duas semanas de viagem, o que antes era feito de três semanas a três meses.
(O PÊ)De balão até Londres
Quando, há trinta anos, navios velozes foram introduzidos, o pé multiplicado aniquilou as distâncias nos mares, como havia feito em terra. Ficou faltando somente um domínio para ser conquistado — o ar.
Desde o princípio, o homem invejava os pássaros. Sua liberdade de movimentos, despertava- -lhe uma justificável inveja. Os pássaros eram livres de estradas e de pontes. Rios e mares nada lhes significavam. Haviam solucionado o problema. do calor e do frio com suas migrações, mudando-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 189
-se do norte para o sul e do sul para o norte, de acordo com as mudanças das estações. As diversas tentativas para imitar os pássaros de urna ou de outra forma são tão velhas como a raça humana, e nós encontramos papagaios mencionados na historia chinesa há quarenta séculos.
Mas nada demonstra tão claramente o grande desejo que o homem tinha de voar como a mito- logia, pois os seus deuses eram abençoados com o dom de voar através dos espaços.
Nada, porém, foi pràticamente feito até o fim da Idade Média, quando surgiu o problema de subs-
(O PÊ)O planador
tituir os pés por asas, sobre o qual o nosso velho amigo Leonardo da Vinci íez sérios estudos. Chegou até a construir diversas máquinas voadoras,
190 HENDRIK VAN LOON
que funcionavam esplendidamente no papel, mas se recusavam na prática a deixar a terra.
— 4
(O PÉ)A máquina de voar
Hoje, nós sabemos por que Leonardo falhou. A questão não estava na organização dos seus pássaros artificiais. Mas a mão humana não era bastante forte para levantar da terra êsses pesados papagaios. E nada era possível fazer enquanto a mão não tivesse adquirido m l vezes mais força do que tivera no Século XVI.
O problema, contudo, continuava a ocupar a atenção dos povos. Durante c fim da última metade do Século X V III, uma firma francesa de fabricação de papel costurou uma porção de folhas de papel de seda, fez delas um balão, encheu-o de ar aquecido, fazendo-o subir ao céu diante da multi-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 191
dão boquiaberta, que atacou o monstro ao descer, liquidando-o com seus forcados. Embora o homem tivesse encontrado agora o caminho dos ares, não podia controlar a direção.
Com o vento favorável, podia, às vezes, viajar de balão de um lugar para outro. Chegou até, a atravessar o Canal Inglês. Uma vez, porém, na França ou Grã-Bretanha, não podia voltar ao lugar de partida.
O mesmo se deu com as máquinas voadoras, quase tão velhas como os papagaios chineses, mas
(O PÊ)Voando sôbre o mar
que não foram objeto de estudo científico até há cinqüenta anos mais ou menos. Foi quando a navegação a vapor e os trens de estrada de ferro pa-
192 HENDRIK VAN LOON
reciam ter chegado ao auge do seu desenvolvimento, que tentaram novamente o domínio do céu.
Os pássaros simulados com que os homens começaram a voar através dos espaços durante a sétima ou oitava década do século passado, podiam conservar-se flutuantes durante muito temjDO, mas aqueles estariam sujeitos a quebrar o pescoço na queda causada por um golpe repentino de vento. Além disso, era difícil a partida e mais difícil a descida, quando chegavam ao seu destino. E o homem com asas continuou sendo um sonho vago, até que os fabricantes daquelas mãos multiplicadas,
(O PÊ)O dirigível
conhecidas como motores, construiram-nos em tamanhos menores, porém tão resistentes, que podiam ser usados sem o perigo de uma queda ines-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 193
(O PÉ)A lei da gravidade
194 HENDRIK VAN LOON
perada, nem de uma repentina descida em qualquer campo.
Os irmãos Wright parece que foram os primeiros a voar. O primeiro voo durou apenas cin-
(O PÉ)Em direção ao planêia vizinho
qüenta e nove segundos, mas a possibilidade de voar havia sido provada. O resto era relativamente fácil.
A inevitável travessia do Canal da Mancha seguiu-se logo após. Quando Bleriot voou de Calais a Dover, o mundo todo ficou convencido de que, espaço e distância, velhos inimigos da raça humana, estavam vencidos, e que agora todos os povos da terra, unidos numa f raterni iade gloriosa, viveriam eternamente em paz e amor.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 195
As hélices dos Zepelins zumbindo, atravessando repetidas vezes o Canal da Mancha com cargas mortíferas de dinamites e gases asfixiantes, mais uma vez confirmaram que o pé humano, assim como a mão, é um instrumento tão eficiente para o mal como para o bem, e que o Caminho do Progresso dá voltas estranhas, muitas das quais conduzem aos cemitérios.
Quanto ao futuro do pé multiplicado, se ele, em alguma forma modificada ainda não descoberta, nos permitirá algum dia escapar da nossa prisão planetária, isso na verdade não sei. Mas, não parece estar fora dos limites das possibilidades próximas. Deveríamos é saber um pouco mais sobre as leis da gravidade, e talvez descobríssemos muito mais cousas sobre os outros planêtas vizinhos do que o sabemos hoje.
Mas, quando vemos por que caminhos milagrosos as mãos e os pés humanos multiplicaram o seu poder durante um curto século apenas, não há razão para nos desesperarmos e sentir que estamos condenados a passar o resto dos nossos dias neste mesmo átomo de poeira.
Lembremo-nos de uma cousa: parece que temos viajado muito longe nas últimas cinco décadas, mas somos muito inexperientes ainda no uso das nossas inteligências. E poucas pessoas alcançaram o ponto conjeturado pelas suas convicções matemáticas.
É só questão de tempo.
----- “ “ ------------------------------------------- --------------------------------- r ra .
C A P Í T U L O V
AS VÁRIAS BOCAS DE MIL SABEDORIAS
Um navio, que ruma para um porto estrangeiro, em cada vinte e quatro horas consulta a sua bússola pelo menos uma vez, a fim de saber se está seguindo rumo certo. Do mesmo modo, um escritor que procura atravessar um mar intelectual cujo roteiro ainda não está bem conhecido, deve, às vezes, consultar também a sua bússola a fim de não ser atirado sobre os rochedos do contra-senso retórico, e perecer miseràvelmente no naufrágio da sua eloqüência. A bússola, no meu caso, é a enciclopédia. Esta bússola literária não é tão segura como a sua irmã náutica, mas, assim como alguns guias, é melhor do que nada. Vejamos o que a “ Britânica” diz da boca com o seu modo brilhante e alegre:
“ Boca, em anatomia, é uma cavidade oval no comêço do tubo digestivo, na qual os alimentos são
198 HENDRIK VAN LOON
mastigados. Essa cavidade está situada entre os lábios, indo a sua largura mais ou menos de um primeiro premolar a outro.
“ Os lábios são dobras carnudas circundando a abertura da boca, cobertos de pele, faixa superficial, músculo orbicular oris e tecido submucoso, contendo numerosas glândulas labiais, do tamanho de um grãozinho de ervilha, e a membrana mucosa. No fundo de cada lábio está a artéria coronária, enquanto na linha média fica uma dobra da membrana mucosa sobre as gengivas formando fraenum labii.”
Em vista disso, deveria ser intitulado êste capitulo “ cordas vocais” e não boca.
Mas, as cordas vocais são uma parte da anatomia que raramente entra na conversação elegante. Vagamente associamos a idéia de cordas vocais com amigdalites e resfriados. E para o povo em geral (como mostram numerosos provérbios e a Escritura Sagrada) a boca é mais um instrumento para falar do que “ uma cavidade no começo do tubo digestivo, onde são mastigados os alimentos” , como explica a enciclopédia.
Por isso, ao usar a palavra boca, estou me referindo à “ fala” , e, ao dizer que a maior parte da civilização da raça humana se baseia nas múltiplas funções da boca, refiro-me ao dom da fala do homem e à sua habilidade paia expressar as suas idéias aos seus vizinhos, por meio da sua maior invenção múltipla — por meio de um sistema perfeitamente desenvolvido e seguro, composto de diferentes sons, o qual chamamos linguagem.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 199
Não quero afoitamente sugerir que os animais não possuam uma linguagem própria. Tem havido tantos cachorrinhos e gatinhos nesta casa e tantas andorinhas nos beirais deste telhado que não me atrevo a uma tal afirmativa arrogante e perigosa. Gatos, cães, cavalos, vacas, pássaros e focas (e suponho também que baleias, embora seja muito difícil estudá-las por não se poder criá-las em tanques) estão constantemente conversando sobre uma ou outra cousa, e, quando estão criando os filhos, tornam-se particularmente loquazes.
Mas a sua linguagem (tanto quanto o sabemos, e apresso-me a acrescentar que as nossas informações a êste respeito são desesperadamente limitadas) parece restrita a um código resumido de sinais de aviso, todos eles intimamente ligados aos dois caracteres dominantes de suas vidas: instinto de conservação da espécie e necessidade do alimento. As idéias abstratas, que representam papel tão importante na sociedade humana, estão completamente fôra do seu alcance e até Hans, o cavalo matemático, e Cônsul III, o macaco sábio, ficariam embaraçados se lhes pedissem opinião sobre a Sociedade das Nações ou sobre o valor relativo do cristianismo e do budismo.
Terei a prudência de não entrar no assunto da origem da linguagem. Nada sei sobre ela. Não por falta de material, pois existem numerosos livros sobre o assunto, cheios de sábios pormenores, mas porque, quando chegam ao ponto principal da discussão, mostram de um modo doloroso que o mistério está ainda muito longe de ser desvendado.
200 HENDRIK VAN LOON
Sabemos muito sobre o desenvolvimento e o crescimento da linguagem.
A dificuldade surge quando tentamos discutir o momento exato em que o homem começou a falar.
Problemas como esses fazem que eu sinta vontade de voltar a esta terra daqui a uns dois mil anos. Temos adquirido tal soma de conhecimentos sobre nós mesmos, em poucos anos de estudos que, dentro de alguns séculos, surgirá o dia em que poderemos dizer: “ Eis o momento exato ern que o homem deixou de grunhir como um ani-
(A BÔCA)O valor relativo das palavras
mal e começou a falar como um ser humano.” Enquanto isso, na antecipação do grande momento, afirmo que a boca (leiam-se cordas vocais) fêz
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 201
mais para o desenvolvimento humano que qualquer dos outros órgãos, não se excluindo a mão e o pé, de tão grande utilidade. Porque, é por meio da boca que manifestamos toda a nossa sabedoria acumulada, fazendo-a perdurar, o que significa que cada nova geração se torna herdeira de todo o saber dos seus ancestrais.
A circunstância de que a raça humana descendia de diversos seres que não possuíram uma forma comum de expressão (como aquêles animais que pertenciam ao mesmo grupo básico), teria dado motivo ao lento progresso inicial. Tudo isso foi mudado logo que se descobriu que cada combinação de gemidos e assobios num dialeto correspondia em parte aos gemidos e assobios de todas as outras línguas, e por isso era possível traduzir-se uma linguagem para a outra sem perder-se o sentido das idéias e das palavras.
Graças à arte do tradutor, a humanidade tornou-se uma grande irmandade intelectual. Não pretendo dizer com isso que todas as pessoas dês- te mundo aproveitam essa maravilhosa oportunidade para enriquecer sua inteligência, pedindo emprestada a sabedoria dos seus vizinhos. A maioria não se incomoda com isso. Contentam-se muitos em alimentar-se, ter um telhado sobre a sua cabeça, educar seus filhos e ir algumas vêzes ao cinema, e isso é quase tudo.
Mas, os que fazem o trabalho verdadeiro dês- te mundo, quer vivam na China, na Groenlândia, na Austrália ou até na Polônia, não baseiam as suas conclusões somente sobre as suas observações. Se acaso não tivessem aprendido a ler e escrever,
202 HENDRIK VAN LOON
se não fosse inventado o alfabeto, poderiam ainda assim aprender o que os outros povos haviam pensado sobre diversos assuntos, por meio de um bom
(A BÔCA)A arte de traduzir
intérprete. E o pobre selvagem, que a princípio julgava que as palavras podiam ser pesadas como sabão, cimento e feno, revela como o homem fez uma unidade da raça humana pela luta gigantesca contra a ignorância e o mêdo
A sabedoria, contudo, é um luxo, enquanto que a subsistência diária é uma necessidade. E o fim original da voz era ser um instrumento de aviso mais que de instrução, não somente contra os perigos visíveis como também contra os invisíveis, e por isso mesmo infinitamente mais perigosos, pois
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 203
não podia ser tomada qualquer precaução contra eles.
Devemos notar que as pessoas, quanto menos civilizadas, mais acreditam nas influências dos poderes ocultos. Gastam a vida em luta contra inimigos invisíveis que se escondem nas matas, por entre as árvores, ou nos fundos dos poços, cujo fim único é amedrontar os pobres camponeses, devorar- -lhes os filhos e enfeitiçar o gado.
Seria um caso desesperador, se os fantasmas não fossem muito medrosos. Para espantá-los, é
(A b õ c a )O tantã
bastante fazer barulho. Grite o mais alto que puder, e nenhum espírito maligno se arriscará a molestá-lo.
204 HENDRIK VAN LOON
O grito, porém, é enfadonho e prejudicial às cordas vocais. E por isso, em data muito remota, a voz humana foi substituída por uma peça de ma-
(A BÔCA)O sino
deira oca, que atuava como substituta da boca, a qual, por meio dos seus fortes sons, advertia todos os espectros malignos que se fôssem embora.
Em circunstâncias comuns, um curto toque de tambor fazia os diabinhos desaparecerem com medo do castigo divino; se fôssem, porém, muito teimosos (o que acontecia na primavera ou no verão) era necessário bater o tantã dias e semanas, sem cessar, para afugentá-los.
Êsse hábito de espantar os fantasmas por meio de barulho se enraizou no sistema social da humanidade de tal forma, como podemos ver com
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 205
a enorme popularidade que na Idade Média alcançou o bimbalhar do sino. O sino da igreja, uma boca de metal, ressoava da manhã até à noite. Pouco a pouco, a idéia original se foi desvanecendo, e o sino foi usado para outros fins. Anunciava as horas do dia, e dizia ao escravo a hora de levantar-se e recolher-se. Mas, nunca perdeu por completo o seu caráter original e, nos domingos e dias santos, os sinos, num bater prolongado, chamam os fiéis às igrejas e vão casualmente purificando a atmos-
(A BÕCA)A invocação à prece
fera das influências malévolas que prejudicariam as missões divinas.
Os maometanos, por alguma estranha razão, nunca adotaram o sino. Permaneceram fiéis à
206 HENDRIK VAN LOON
voz humana. Os seus muezins sobem ao alto dos minaretes especialmente construídos, e de lá iluminam o mundo com as grandes virtudes de Alá,
(A BÔCA)O antigo farol
e com os méritos não menos notáveis do seu profeta Maomé. Não sei se a voz dêsses muezins podia alcançar a mesma distância que o som dos gongos e das sereias. Por felicidade, porém, os súditos da “ meia lua” não cogitam muito disto.
Na Europa, no entanto, onde os governos mais se ocupavam com o bem-estar comum (problema que para os dirigentes maometanos era indiferente) a boca foi usada para inúmeros e variados fins, todos servindo ou para dizer às pessoas o que elas
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 207
deviam fazer, ou para preveni-las do que deviam evitar.
Não me refiro apenas à buzina de chifre, com a qual os guardas das cidades medievais tocavam a fim de avisar os bons burgueses que tudo corria bem, ou então para preveni-los de que acautelassem com o fogo. Estou pensando nas inúmeras finalidades bem mais audaciosas, para as quais a voz aumentada foi usada nos dias passados.
Vejamos o problema de navegação à noite. Quanto mais longe da costa, mais livre era a navegação. Havia pouca oportunidade de colisões e
(A BÔCA)O farol moderno
os navios de pequena profundidade daqueles tempos não temiam um baixio. Mas, quando o navio se aproximava da terra depois do pôr do sol, aí sur-
208 HENDRIK VAN LOON
giam as dificuldades. É verdade que teria sido possível para os romanos e gregos colocar um escravo de voz possante em cada promontório e fazê-lo berrar, a fim de prevenir do perigo os marinheiros que se aproximavam. Duvida-se, contudo, que tenham existido bastantes escravos com boas vozes para prevenir as embarcações do caminho da destruição. Alguma outra cousa deveria ser inventada para substituir a voz. A dificuldade foi resolvida com a fogueira de lenha, colocada no cume dos mais perigosos recifes. Daí surgiu o farol como uma variação da voz.
______________ _____________________________ J(A BÔCA)
A buzina para n woeiro
Sabemos da veneração geral dos antigos por essas torres de aviso, pela honra que tributavam ao farol de Alexandria (construído 300 anos antes
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 209
de Cristo), o qual foi considerado uma das sete maravilhas do mundo. Incidentalmente, o arquiteto que o construiu entendia da sua arte, pois o
(A BÔCA) O megafone
famoso farol derramou seus raios sobre o mar durante mais de dezesseis séculos, e somente um terremoto o pôde destruir.
Os romanos (quase não é preciso dizer) eram grandes construtores de faróis. Construindo estradas, portos e caminhos, gastavam milhões, mas os tornavam quase perfeitos. Em toda a costa da Europa construíram seus sinais de aviso. Dover e Calais tiveram seus faróis muito antes que os nossos antepassados ouvissem falar de uma lâmpada.
210 HENDRIK VAN LOON
Durante a Idade Média, o sistema de faróis chegou a um fim temporário. As construções que não foram destruídas, foram transformadas em capelas, e as praias ficaram às escuras. Mas, com a volta do comércio, as torres sinaleiras tornaram- -se mais uma vez de indispensável necessidade. Primeiro, o carvão substituiu a madeira como meio de iluminação. Depois, o gás e o petróleo. Hoje, a eletricidade é a boca que silenciosamente grita, espalhando sua voz luminosa a trinta milhas de distância.
Os faróis, infelizmente, só podiam funcionar em noites claras; com o nevoeiro, eram inúteis. Em tais ocasiões, a luz precisava ser substituída pelo som. A princípio, bastava tocar um sino. Mas o som do sino não levava muito longe o aviso e não atingia a marinha moderna. O vapor, como voz, veio substituí-lo, e a buzina para nevoeiro, uma voz formidàvelmente ampliada, teve a oportunidade de servir, até à invenção do telégrafo sem fio.
Desde então, uma voz baixinha segreda ao marujo o perigo que corre. Dentro de poucos anos, tanto o farol como a buzina tornar-se-ão cousas obsoletas, como o gongo de fogo. Pois a boca moderna gosta de trabalhar discretamente. Quer ser eficiente, mas de um modo silencioso e digno. Como todas as invenções humaras, ela pode ser terrivelmente abusada, como o sabemos todos aqueles que temos vizinhos possuidores de vitrolas portáteis. No entanto, se soubermos utilizá-la em ocasião oportuna, portar-se-à com grande dignidade como o sabem todos os que já ouviram falar da-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 211
quelas outras multiplicações da boca, conhecidas como telefone e telégrafo.
A princípio, quando o homem queria comunicar uma cousa importante a outra pessoa, fazia-o
(A BÔCA)Sinais com fumaça
i
por meio da voz ou das mãos. Mas a linguagem por sinais foi logo substituída pela linguagem falada. Hoje, é usada somente pelos surdos-mudos. Para outros efeitos caiu em desuso, exceto para dar mais ênfase às palavras. O método de comunicação por meio do som, ao contrário, tem-se desenvolvido grandemente, e é muito interessante a sua história.
Já nas esculturas mais antigas da Babilônia encontramos figuras do “ porta-voz” rudimentar.
212 HENDRIK VAN LOON
Vemos engenlieiros dirigindo algum trabalho de levantamento. Milhares de escravos estão puxando as cordas. O engenheiro, de pé numa pequena plataforma, tem na mão um megafone. O megafone é sem dúvida, uma boca ampliada. Por meio dele, o engenheiro grita: “ levantar!” e todos os escravos puxam ao mesmo tempo. Sem essa bôca aumentada, a voz do engenheiro não chegaria aos ouvidos de tantas pessoas ao mesmo tempo. Foi essa a primeira tentativa para aumentar o poder da voz um mimero ilimitado de vêzes. Foi esse o
(A BÔCA) Sinais com tarr bor
início daquelas infinitas experiências futuras, as quais finalmente conduziram ao telégrafo, ao telefone, ao telégrafo sem fio e ac» rádio.
Existem algumas invenções que despertaram no público pouca atenção quando surgiram. A razão é que elas não entraram na vida diária de mui-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 213
(A BÔCA)O pombo-correio
tas pessoas. Mas, todo mundo já teve um momento em sua vida em que sentiu a desvantagem de a voz não poder alcançar mais que uns 60 metros de distância, e por isso houve geral interesse pelas experiências feitas no sentido de vencer-se aquela dificuldade. Como resultado, podemos acompanhar o progresso do “ porta-voz” através dos tempos, muito melhor que as multiplicações dos outros órgãos.
Se a tradição está certa (muitas vêzes ela merece muito mais crédito que a história baseada em documentos) a notícia da rendição de Tróia foi
214 HENDRIK VAN LOON
“ telegrafada” à Grécia por meio de sinais de fumaça. Na África, desde tempos imemoriais, as diferentes tribos comunicavam—se uma com a outra por meio de gigantescos tambores que eram batidos com um pau e transmitiam assim as mensagens, tão inteligíveis e claras aos nativos do Congo, como o Código Morse é para os encarregados do Western Union Office.
Durante a Idade Média, quando a parte mais civilizada da humanidade vivia nas pequenas cidades cercadas de muralhas, como animais ferozes presos na jaula, eram os pombos os mensageiros en-
(A BÔCA)Sinais com bandeiras
carregados de levar o aviso, toda vez que a cidade estava sendo bloqueada pelo nimigo. No oceano, quando o tempo estava suficientemente claro, as
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 215
informações enviadas aos navios que passavam eram transmitidas por meio de bandeiras.
Êsses métodos toscos de aumentar a voz eram suficientes somente às necessidades das pequenas
(A b ô c a )As tônes sinaleiras
comunidades. Mas, quando os Estados começaram a crescer e a centralizar-se, nenhum governo poderia permanecer por muito tempo, senão fizesse com que sua voz fosse ouvida em todas as partes dos seus domínios, num único e mesmo instante. Mensageiros, tambores e pombos-correio eram pouco úteis nos períodos de crises, e a vida de todas as grandes nações modernas não passa de uma sucessão de crises. E conseqüência disso, o Século X V III, época da consolidação das raças e das di-
216 HENDRIK VAN LOON
nastias, tornou-se também a era das experiencias telegráficas.
Desde que os franceses foram os primeiros a centralizar o seu governo, muito naturalmente se tornaram os pioneiros no campo de transmissões, a longa distância, da voz humara.
Na primavera do ano de 1792, um engenheiro chamado Chappe apresentou-se à Convenção Nacional com um plano perfeitamente elaborado para o telégrafo ótico — uma espécie de máquina, que devia ser colocada no alto da torre de urna igreja, convenientemente localizada, ou no alto
(A BÔCA) O telégrafo
dos morros. Compunha-se de um par de braços de madeira, amarrado a urna barra transversal. A posição dos braços, que podia ser mudada por meio
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 217
de cordas e roldanas, transmitia as letras e, com os óculos de alcance, os oficiais liam as mensagens e, em seguida, punham os mesmos sinais na torre próxima, até que as palavras fossem transmitidas de uma cidade a outra.
A cousa funcionou admiràvelmente bem e, durante a era napoleónica, a maior parte da Europa ouviu a terrível voz imperial por meio dos sinais semafóricos de M. Chappe.
Tinha, no entanto, uma grande desvantagem. Não era possível deixar em segredo as mensagens. Os vadios das cidades reuniam-se ao redor das torres tentando adivinhar os diferentes sinais, até que puderam decifrar claramente o alfabeto, e ler as mensagens tão rápida e fácilmente como os próprios encarregados. Isso tornou necessário procurarl e um outro meio para transmitir as informações que não deviam ser conhecidas pelo público.
No momento, porém, em que os sinais semafóricos agonizavam, o mundo divertia-se com um novo brinquedo encantador — a eletricidade. Em tôdas as cidades, vilas e lugarejos obscuros, gênios tentavam sua sorte com esta corrente misteriosa, na esperança de enriquecer, descobrindo algum meio, com o qual pudessem fazer transmitir comunicações de um lugar para outro. Em cada laboratório alemão, um solene professor estava gastando os últimos vinténs da mulher em baterias e peças de fios de cobre, para que ele pudesse ser o primeiro a dar ao mundo a sua voz universal.
Um pintor americano, chamado Samuel Morse, ganhou a corrida. Em 1837, transformou seu cavalete em aparelho telegráfico. Essa primeira má-
218 HENDRIK VAN LOON
quina podia falar à distância de uns 500 metros. Um ano depois, convenceu-se de que a sua máquina estava bastante melhorada, levou-a ao conhe-
(A BÔCA)O cabo telegráfico
cimento do Congresso. Êste, porém, ocupado com outros assuntos, não lhe deu importância, senão seis anos mais tarde. Finalmente, em 1844, Washington e Baltimore conversaram por meio de uma corrente elétrica.
Então os governos europeus, que haviam ficado completamente indiferentes aos planos de Morse enquanto estavam em experiências, tornaram- -se interessados, e hoje, a voz humana, reduzida a pontos e traços, penetrou em toda parte do mundo civilizado. E os fios telegráficos logo deixaram a terra e seguiram sob as águas. Assim que os na-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 219
(A BÕCA)O telégrafo sem fio
220 HENDRIK VAN LOON
vios foram construídos bem grandes com a capacidade necessária de navegação para colocar 3.000 milhas de cabo submarino, os fios foram estendidos no fundo do oceano, e o povo de Nova Iorque achou- -se morando em um subúrbio de Londres e vice- -versa.
Durante longo tempo, o telégrafo elétrico foi capaz de satisfazer todas as necessidades de relação verbal internacional. Mas, enquanto o nosso planêta continuava diminuindo mais e mais sob a influência dos pés e das mãos multiplicados, exigia-
(A BOCA) Brinquedo chinês
-se alguma cousa que não dependesse tanto de cabos tão custosos — ponto capital da invenção de Samuel Morse.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 221
A idéia de falar de um lugar para outro sem a intervenção de qualquer fio, era velha. Em 1795, um físico espanhol chamado Salva havia explicado a possibilidade de tal empreendimento à Academia de Ciências de Barcelona. A Academia escutara pacientemente — todas as academias eruditas estão sempre prontas a escutar — e depois não mais se lembrou.
Passou-se uma geração inteira, quando um alemão, completamente ignorante da descoberta do seu colega espanhol, tentou estabelecer comunicação sem fio, forçando a sua corrente elétrica a passar através da água. A dificuldade estava em que, naqueles tempos, ninguém conhecia a natureza exata do material com que lidava. Isso foi deixado para Heinrich Hertz, um dos mais brilhantes detetives da ciência de todos os tempos (tão ardente investigador, que findou sua vida muito cedo para investigar o Além), que nos abriu o caminho. Não chegou ao ponto de nos poder explicar o que eram as ondas elétricas, mas descobriu as leis que regulavam os seus fundamentos, e esta descoberta por si já era grande passo. Depois da publicação do trabalho de Hertz, o problema do telégrafo sem fio foi tomado a peito, e tôdas as nações pretenderam ser as primeiras em alcançar o sucesso.
Um jovem italiano, Marconi, conseguiu transmitir através do oceano uma única letra sem fio. Os outros membros do alfabeto logo a seguiram em rápida sucessão. E agora até mesmo o capitão do navio, que por milhares de anos foi o mais independente dos cidadãos, é obrigado a ouvir a voz do seu chefe, embora esteja êle bem longe da terra.
222 HENDRIK VAN LOON
E um avião, perdido no meio das nuvens, está ainda em contacto com a terra, podendo ser avisado de uma tempestade próxima, com tanta facilidade como se estivesse ao alcance da voz humana.
Mas, como diz um provérbio francês, o apetite vem com o comer. Logo que a arte da “ escrita a longa distância” se tornou um fato estabelecido, o povo não mais se contentou com o seu joguinho, e quis um aparelho que lhes proporcionasse o prazer desconhecido de “ falar ao longe.”
Há milhares de anos, o chinês havia inventado um brinquedo, que se compunha de dois canudos
(A BÔCA) O rádio
de bambu, ligados por um fio fino, com o qual era possível conversar-se à distância de algumas centenas de jardas. Era uma daquelas bagatelas per-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 223
manentes que voltam periodicamente, depois de duas ou três gerações, e são anunciadas em todos os lugares como a “ última novidade” , apregoadas em
(A BÔCA)Conserva de frutas e de idéias
todos os recantos de todas as ruas, e desaparecendo tão inesperadamente como apareceram. Os povos da Idade Média brincaram com isso; também fizeram o mesmo os do Século X V III. Justamente, quando se falava sobre a grande possibilidade das correntes elétricas, o antigo brinquedo chinês, pela quinqüagésima ou centésima vez, apareceu, e estava sendo largamente vendido em todos os mercados.
Parece que êle sugeriu a muita gente a idéia de que a voz humana poderia ser transmitida de um lugar para outro.
224 HENDRIK VAN LOON
Um alemão, Philipp Reiss, foi o primeiro a aperfeiçoar o instrumento de “ transmissão de som.” Funcionou tão bem, que ele ousou dar-lhe o nome ambicionado de “ telefone” — aparelho que leva a voz através do espaço.
Quinze anos depois, um nnigrante escocês chamado Alexander Graham Bell, que vivia em Boston como professor de uma escola de surdos-mudos, resolveu o problema da transmissão do som, dando-nos o moderno telefone, o qual nos é tão familiar.
(A BOCA)Os seixos místerosos
Como a voz, que dependia de um fio para a sua transmissão, se desenvolveu na voz que podia projetar-se sozinha, sem fio nenhum, é uma história tão recente (e de um mistério incompreensível
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 225
para o autor) vou apenas mencioná-la, sem mais explicações.
Com o uso dessa boca multiplicada, poder-se- -ia destruir todos os livros até hoje escritos, ainda
(A b ô c a )Secando peixes e pensamentos
assim deixar a humanidade ciente de todas as cousas que estão sendo feitas, pensadas ou ditas por todo o mundo. E até os habitantes, que por longo tempo levaram uma existência sofredora em Marte e Saturno, poderiam ouvir os reclames dos fabricantes de conservas de framboesa da nossa grande República, que ensinam à boa gente do hemisfério norte o modo de fazer as conservas sem queimar o açúcar.
Chegamos agora ao ponto mais importante dês- te livro, o qual reservei para o fim, em parte por-
226 HENDRIK VAN LOON
que é o mais importante do que tudo que já falei, e também porque é muito difícil de explicar em uma sentença de menos de cinqüenta palavras.
Admitindo-se ser quase impossível determinar o momento exato da história em que os nossos antepassados adquiriram a habilidade de falar, é ainda mais difícil seguir o processo pelo qual eles chegaram à conclusão de que a palavra falada podia ser conservada, e de que os sons emitidos pelos lábios podiam ser apanhados e guardados eternamente, em benefício da posteridade.
A época em que vivemos será conhecida como “ Época do Papel.” Yivemos atolados no meio de palavras impressas. Sem livros, guias de horários, fórmulas de pedidos, fórmulas de telegramas, listas de telefone, jornais, revistas, sem miríades de tabuletas de todas as formas e diversos dizeres, nossa civilização moderna logo chegaria ao fim.
É praticamente impossível a um cidadão de 1928 imaginar-se de volta a uma época sem papel. Calculando-se o tempo que o homem viveu sobre a Terra em um período de doze horas (da meia-noite ao meio-dia), a arte de concretizar as idéias em palavras escritas foi inventada nada menos que há uns nove ou dez minutos.
Mas, quem a inventou, como, onde e em que circunstâncias, tudo isso é ainda um mistério e continuará a sê-lo, até que tenhamos aprendido muito mais sobre a civilização dos nossos primitivos ancestrais. Sabiam êles escrever ou não? E, se sabiam, qual seria a significação daqueles seixos estranhamente coloridos, encontrados entre os ossos dos seus cemitérios e nas suas cavernas?
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 227
Nada podemos responder, pois nada sabemos. Quase todos os anos ouvimos dizer que finalmente um Professor Fulano de tal encontrou a chave
(A BÔCÁ)Necromancia
dêste exasperante mistério. O meio erudito então se regozija, pois a história da civilização remontou a 10.000 ou 15.000 anos atrás. Mas surge logo uma dúvida. E, depois de minucioso e cuidadoso exame de todos os prós e contras, afirmam que a hipótese não era razoável, e as pesquisas começam então novamente.
Naturalmente os povos da Idade Média se sentiam como nós diante dos hieróglifos e das tabui- nhas de argila dos babilónios. Foi então que apareceram Thomas Young, Champollion e Rawlison, e hoje os que aprenderam o segredo podem ler os
228 HENDRIK VAN LOON
caracteres cuneiformes e os hieróglifos como lêem os seus jornais diários.
Não duvido, pois, que algum dia todo o enigma seja decifrado. Talvez seja no próximo ano. Ou, quem sabe, daqui a um século. Não o sabemos. No momento só poderemos imaginar e nada afirmar.
Pelas pesquisas feitas nas cavernas antigas da Espanha e da França, sabemos que o homem começou a desenhar ao mesmo tempo em que começou a fabricar os seus instrumentos. Alguns dêsses desenhos revelam uma tão graude perfeição técni- na, que os arqueólogos que anunciaram a sua descoberta foram acusados de falsificar os desenhos de mastodontes, peixes e gamos, a fim de alcançar popularidade. Hoje em dia sabemos que aquêles desenhos eram verdadeiros, e que poderemos esperar mais e mais descobertas com o passar do tempo.
Mas que significariam êles aos povos que os desenharam? Estariam ligados a uma tentativa consciente de se fixarem idéias abstratas de uma forma concreta e imperecível?
Muito provavelmente não.Estavam relacionados à magia e à necroman-
cia. Os homens desenhavam figuras de javalis e elefantes antes de partir para caçá-los, crentes de que os enfeitiçariam de modo a se tornarem prêsas fáceis, assim como os soberanos da Idade Média faziam figuras de cêra à semelhança dos inimigos, espetando-as depois com alfinetes.
Êsses desenhos pré-históricos, por conseguinte, não representam uma forma primitiva da linguagem desenhada. São expressões do espírito re-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 229
ligioso daqueles tempos. Contam-nos uma história (como o fazem todos os retratos) mas não estão ligados ao desejo do homem de conservar as suas idéias de uma forma concreta.
(A BÒCA)O sinal de aviso de perigo
Isto nos coloca face a face com a questão seguinte: Quando deixaram os desenhos de ser simplesmente desenhos e quando começaram a fazer parte de um sistema definido de conservação de idéias!
Um exemplo moderno mostra-nos como é difícil traçar o limite exato entre estas duas formas de expressão da pintura. Na Europa, ao lado dos caminhos montanhosos, encontramos sinaizinhos pintados, cujo fim é dar aos caminhantes uma abreviada informação. Um desses sinais mostra-nos o
230 HENDRIK VAN LOON
retrato de um santo. Um caminhante (morto e enterrrado há quinhentos anos) fora surpreendido naquele lugar por um furacão, e o bom santo o salvara. Cheio de gratidão, e considerando o fato muito importante, ele mando a pintar o retrato do santo, querendo assim contar aos viandantes o que acontecera no momento supremo da sua vida. O segundo sinal é apenas um S invertido que foi colocado pelo Automóvel Clube local. A significação é bem clara para todos aquêles que guiam carros. Essa letra grita alto e claramente: “ Acautelem-se! Aí vem uma curva perigosa/’
(A BÔCA)A primeira cirta
Ambas as figuras contam uma história. Mas uma pertence à espécie de imagem da qual se desenvolveu finalmente uma linguagem escrita.
i
Como isso aconteceu, tentarei contar-lhes com o auxílio de outro desenho.
Veja-se esta mensagem de um caçador do período glacial, rabiscada na saliência de uma rocha.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 231
(A BÔCA) Linguagem por cordel
Perdeu-se dos seus companheiros e, de repente, avista dois gamos a distância. Quer perseguir sua prêsa, mas está muito longe dos outros para comunicar-lhes sua intenção. A voz não pode alcançá-los para dizer-lhes: “ Ouçam, eu vou atrás de dois gamos.” Procura, então, outro meio. E desenha um retrato rústico na pedra, à guisa de uma carta, onde se lê: “ Avistei dois gamos perto da lagoa e vou persegui-los. Não me esperem. Voltarei.”
232 HENDRIK VAN LOON
Se os aborígenes (que eram esplêndidos artistas e deixaram muitos retratos dessa espécie) tivessem de mandar freqüentemente mensagens como aquelas, teriam desenvolvido a linguagem de desenho, na qual cada sinal correspondesse a uma palavra, que, até então, só existira na forma falada. Notem, porém, as palavras da última sentença: “ Se tivessem de mandar freqüentemente mensagens como aquelas.”
Era preciso que os mesmos desenhos fossem repetidos uma porção de vêz<3S, antes que alguém tivesse a idéia de que tais imagens pudessem ser
(A BÔCA)A escrita sagrada do Egito
usadas com o fim de representar a palavra em uma forma concreta pelo desenho, e entre povos muito simples, isso era cousa difícil de acontecer.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 233
E assim muitas tribos primitivas, que chegaram a iniciar uma linguagem escrita, fracassaram pela falta de suficiente oportunidade para estudar o
(A BÔCA)Os caracteres práticos dos fenícios
problema. Experimentaram ansiosamente muitos planos. No continente americano, os índios do Peru, para os seus negócios públicos, desenvolveram um sistema de cordel colorido, no qual davam nós que tinham determinada significação. Os chineses, mais pacientes e com mais tempo disponível, conseguiram um método complicado com dezenas de milhares de figurinhas, cada uma das quais representava uma palavra ou uma idéia completa. Foi um passo para um método mais eficiente, mas isso obrigou os intelectuais daquela interessante
234 HENDRIK VAN LOON
nação a aprender trinta ou quarenta mil figuras para poder dizer: “ Sei ler e escrever um pouco.”
Em resumo, em todo o universo procurava-se ansiosamente um método capaz de registrar a palavra falada, e ninguém o conseguiu, até que os egípcios apareceram em cena. Não podemos, no entanto, afirmar se os egípcios tiveram a primeira sugestão de tal possibilidade de outro povo, cujo vestígio se desfizera na poeira do tempo.
Até que tenhamos reunido informações um pouco mais concretas acêrca do continente místico do Atlântico, o qual é mencionado em tantos livros
(A BÔCA)A escrita rúnica
antigos, acredita-se que o primeiro sistema praticável de escrita desenhada devia, indubitàvelmente, estar ligado aos interêsses dos faraós. Com eles,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 235
porém, a escrita continuou como era no começo, uma coisa sagrada, praticada somente pelos iniciados e pelos sacerdotes. Com o passar do tempo, surgiu uma forma mais simples de desenhos, os hieróglifos, que foram oficialmente reconhecidos. Para o comércio e uso diário, porém, até esta forma popular de escrita de imagens era complicada. Não era fácil decorá-la. E teriam que esperar, sabe Deus até quando, para possuirmos um alfabeto, se não fossem os fenícios.
É interessante que aqueles salteadores, que pouco se incomodavam com artes, nos tivessem proporcionado uma das mais úteis invenções de todos os tempos. Foi uma dessas extravagantes ironias, com as quais a história nos surpreende.
Mas houve uma boa razão para serem eles e não os egípcios ou os babilônios os primeiros a pensar na solução prática desse problema. Os fenícios eram negociantes e, como tal, precisavam de um sistema resumido e cômodo para acordos e contratos. Eram forçados a mandar cartas comerciais aos seus representantes nos outros estabelecimentos ao longo das costas do Mediterrâneo, e não podiam perder tempo em desenhar lindas miniaturas para se referir ao óleo de azeite e peles de cabritos de Samotrácia. E, como ladrões profissionais que eram, apropriaram-se de algumas figurinhas sagradas dos seus fregueses egípcios, simplificaram-nas, transformando-as em símbolos estenográficos, adicionaram alguns sinais da sua própria imaginação e apoderam-se de outros sinais de povos vizinhos, que trabalhavam no mesmo problema. E, com todas essas linhas, pontos e garatu-
236 HENDRIK VAN LOON
jas, organizaram um sistema de fixar as palavras, o que os habilitou a gravar pràticamente todos os sons emitidos pela boca, e dar-lhes uma forma clara e concreta, para futuro benefício deles e de seus descendentes.
(A BÔCA) O papiro
Como esse alfabeto viajou da Fenícia para a Grécia; como os romanos remodelaram essas letras de modo a poderem ser gravadas sobre os portais dos templos e ao redor dos arcos triunfais; como as tribos alemãs as modificaram de tal maneira que podiam ser entalhadas em madeira em forma de letras rúnicas, tudo isso daria uma fascinante literatura. Eu, porém, não tenho espaço suficiente para descrever estes interessantes pormenores. Basta dizer que hoje, com o auxílio do nosso alfa
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 237
beto europeu-ocidental, podemos reproduzir quase todos os sons de todas as línguas faladas em nosso planêta. O sistema não é de forma alguma perfeito. Nosso alfabeto poderia convenientemente pedir emprestado algumas letras do seu vizinho russo. Mas hoje, tudo o que a boca fala a mão pode fixar para sempre.
Assim, o conhecimento se tornou útil e imperecível. E dia a dia nós aprendemos mais, chegando até a ter esperança de que possamos chegar a ser sábios.
(A BÔCA)Penas de escrever
A linguagem escrita, sendo essencialmente uma forma de pintura, dependia muito, para seu sucesso, dos objetos que adotava.
Os egípcios cobriam de hieróglifos as paredes dos seus templos e túmulos. Mas, as fôlhas du-
238 HENDRIK VAN LOON
pias para as passas de Corinto e loureiro da Ática, vendidos por um negociante de Tiro a um intermediário de Cartago, reclamavam uma substância menos volumosa para a conservação — alguma cousa que pudesse ser colocada em um saco de viagem, levada a bordo de um navio ou empacotada às costas de um burro.
Mais uma vez, foi provalo que a necessidade é a mãe da invenção. Os chineses, sempre um pouco mais adiantados que o resto do mundo, foram os inventores do papel. Foram os primeiros a notar que era possível fazer uma substância adequa-
(A b ô c a )A máquina de escrever
da à pintura e à escrita de matéria fibrosa de diversas plantas. No Século X X X , antes de Cristo, os egípcios, seguindo seu exemplo, começaram a fa-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 239
bricar um substituto para as paredes dos templos e as cobertas de esquifes. Era uma substância tirada do papiro, planta que existia em todo o delta do Nilo. Os fenícios, porém, de acordo com seu hábito favorito, apoderaram-se daquela indústria. E a fabricação de papiros concentrou-se na cidade fenícia de Gebal, que os gregos chamavam de “ By- blos.” Tornou-se esse nome marca registrada. Essa cidade de Byblos há muito tempo que desapareceu, como a maioria das cidades do Mediterrâneo Oriental, mas o nome em seu principal artigo de exportação sobreviveu. E os livros sagrados dos povos europeus têm ainda o nome da cidade que, há muitos séculos, fabricara as melhores fôlhas de papiro, as melhores cordas e as melhores esteiras de navio.
E o papel, que nós usamos, só apareceu na Europa muito depois. É também de origem chinesa, e chegou à Europa através da Samarcande, da Arábia e da Grécia. Dali se espalhou para todo o mundo. Durante o último século, piorou a qualidade de papel, resultando daí que os nossos livros modernos têm a décima parte da durabilidade daqueles que foram impressos há dois séculos.
O papel, porém, não foi suficiente para conservar a idéia em forma concreta. Era preciso um meio para gravar os sinais que representam os diversos sons. Os romanos haviam-se contentado com uma pequena ardósia de cêra e uma espécie de buril de bronze. Quando César convidava alguém para jantar, enviava-lhe uma ardósia
240 HENDRIK VAN LOON
pela criada. Mas para fins oficiais, usavam os papiros egípcios e uma certa qualidade de tinta. Era uma espécie de tinta para pintura, a qual provinha do Egito. Os chineses fizeram cousa ainda melhor, inventando uma mistura de goma e carvão vegetal, com a qual faziam belas letras pretas. Mas os nossos pobres amigos da Idade Média (período em que a multiplicação artificial das nossas fôrças naturais se tornou um tanto suspeita) foram forçados a fazer misturas o melhor que pudessem, fabricando líquidos esquisitos, de fel, de ferro e de pigmentos extraídos de peixe, até que a grande restauração intelectual do Século X V lhes forneceu não apenas tinta decente, como também o lápis.
Durante êsse tempo a escrita cessou de ser privilégio dos eruditos, e tornou-se um dos mais populares divertimentos domésticos para todo o mundo. Todos começaram a ter idéias, e desejavam transmiti-las à posteridade. E tão rápida e frenéticamente começaram a escrever, que surgiu até a indispensável caneta-tinteiro. Procuravam então substituir a frágil pena de ganso. Não alcançaram sucesso nessa empresa até o começo do Século XIX. Nesse tempo, porém, a febre de escrever havia contaminado o mundo inteiro, e até a ligeira pena de escrever foi considerada muito vagarosa para registrar todos os milhões de cousas que os homens queriam dizer uns aos outros. Foi aí que a máquina começou a substituir a mão, e achou-se que o trabalho de escrever devia ser confiado a uma pequena máquina apropriada, assim podendo descansar os dedos doloridos da humi-
lhante tarefa de puxar a pena. A máquina de escrever veio responder ao apelo desesperado de toda aquela multidão de colarinho branco. Se escrevi-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 241
(A b ô c a )A prensa
am antes dez páginas, podiam agora bater trinta. E além disso tantas cópias extras quantas quisessem.
Um mau maestro pode estragar uma boa composição de muitos modos. Mas nenhum tão fatal como o hábito de acentuar erradamente uma nota errada.
Os historiadores estão sujeitos aos mesmos erros. Não porque tenham más intenções, mas porque, desde os tempos imemoriais, se habituaram a repetir o que os outros disseram e raramente se
242 HENDRIK VAN LOON
dão ao trabalho de submeter as velhas partituras a uma nova interpretação.
Aí está o motivo da invenção da imprensa. Causou profunda impressão às pessoas do Século XV, e foi para elas uma dádiva caída do céu inesperadamente. Justamente quando mais entusiásticamente se desejava comprar livros baratos, apareceu um tal Gensfleisch, que lhes proporcionou um método de multiplicar os textos escritos, o qual pôs o livro ao alcance de quase todos. Desde então, os fiéis historiadores têm glorificado Herr Gutenberg como um dos maiores benfeitores da humanidade. Mas êste tirou bem pouco lucro do seu trabalho extenuante.
A arte da imprensa, porém, pertenceu a uma categoria que podemos chamar de invenções inevitáveis. Era uma daquelas multiplicações dos nossos poderes naturais, a qual forçosamente tinha de aparecer, no momento em que a sua presença fosse exigida. Por isso, o primeiro homem que, muito antes dos outros, se ocupou com êste problema complicado de conservar as idéias como se fossem sardinhas em lata, é o herói merecedor de estátuas e de glória. Enquanto que o homem, que apenas transferiu o trabalho fastidioso de copiar da mão humana à mão mecânica, merece uma menção honrosa, porém muito pouca cousa mais.
Como não sabemos o nome do primeiro, não o mencionamos.
Que diferença faz sabermos quem era, onde vivia e onde morreu?
Não poderíamos ter um monumento ao Cientista Desconhecido?
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 243
Yisto que este capítulo não está sendo escrito em louvor do joalheiro de Mainz, nem do sacristão de Haalem (seu rival mais perigoso na glória de
(A BÔCA)O jornal primitivo
ter sido o primeiro a imprimir livros com os tipos móveis) posso explicar brevemente que o ato de imprimir era muito mais velho do que julgamos.
Os chineses foram os primeiros a imprimir retratos por meio de blocos de madeira. Mas, não sabemos se as suas invenções chegaram à Europa nem quando (se é que chegaram.) Nos séculos X III e X IV , retratos de santos foram regularmente feitos de pequenos blocos de madeira sobre os quais eram previamente esculpidos por algum artista, o qual descobrira que pintar a mão milhares deles tomava muito tempo.
244 HENDRIK VAN LOON
Com o crescimento da instrução e o ainda mais importante restabelecimento do comércio geral durante o Século XV, houve uma exigência não somente de um método rápido de reprodução literária, como também de um mais barato. Foi isso o que Gutenberg e seus ajudantes nos deram: um modo barato de multiplicar a palavra escrita. Quero chamar-lhes a atenção para a primeira publicação de prensa. Foi um documento comercial, uma peça de papel feita como um pedido para serviço telefônico, algo que necessitava de milhões de có-
(A BÔCA) O jornal
pias e que teria custado uma fortuna, se fosse escrito a mão.
A prensa de mão tem desmentido a sua origem. É uma espécie de boca de tinta, vomitando infor-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 245
mações, instruções e distrações e, com a mesma facilidade da boca humana, pronuncia palavras sábias e tolas.
É uma dessas invenções que nunca será completamente abandonada, mas que pode esquivar-se de muitas das suas utilidades, pela invenção da verdadeira boca artificial — o Rádio.
É tão novo o rádio que não nos é possível predizer o que ele poderá fazer ou o que nos fará. Mas ele devolveu à boca humana a sua glória primitiva. A boca, sendo um agente livre (como a mão e o pé) pode falar tolices, se quiser. Mas isso não vem ao caso. O importante é que, depois de quarenta séculos de invenções, parece que voltamos ao ponto donde partimos.
A princípio, o homem comunicava as suas idéias aos seus vizinhos por meio das cordas vocais.
Depois, por meio de palavras escritas.Agora novamente ele fala.Antigamente, porém, podia dirigir-se somen
te a poucos companheiros da tribo, reunidos ao pé do fogo da vila. Hoje em dia êle fala a milhões — é possível a êle falar ao mesmo tempo a todos os homens, mulheres e crianças dêste pla- nêta.
Não quero dizer que é uma realização, mas sim uma esperança.
Agora que, cada vez mais, todos estão “ ouvindo” , é bem possível que o jornal, uma outra for-
246 HENDRIK VAN LOON
ma de boca aumentada, desapareça por completo, em alguma data futura.
A princípio, o jornal significava apenas um papel de novidades. Algumas informações de ca-
(A BÔCA)Meios de fixar a palavra falada
pitai importância, que não podiam ser confiadas aos arautos da cidade, eram impressas sobre um pedaço de papel, o qual era colocado na vitrina de uma loja, onde a multidão podia lê-lo e talvez comprar uma libra de fumo para poder discutir os acontecimentos com o dono da loja. Como o preço de diversos gêneros dependia mais e mais de progressos políticos nas diferentes partes do mundo, certos jornais puseram correspondentes autorizados nos principais centros comerciais, os quais, duas ou três vêzes por semana, juntavam todo ma-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 247
terial que parecia ser importante, e o mandavam aos seus chefes, que, por sua vez, auxiliados por uma pequena caixa de tipos móveis, tinta e prensa, publicavam as informações, mandando seus jornais a alguns milhares de leitores que podiam pagá-los.
Êsses milhares passaram a milhões. E como nunca há muitos casos importantes num só dia que dêem para encher sessenta ou setenta páginas enormes só com novidades verdadeiras, o resto do espaço é tomado com diversas tentativas para divertir a multidão, cujo prazer é o mesmo dos dias antigos de ignorância: um enforcamento público ou o afogamento de uma feiticeira.
Estou-me estendendo muito neste capítulo, mas, antes que eu o termine, é preciso falar sobre uma outra invenção intimamente ligada à nossa ânsia de guardar as informações de uma forma permanente.
Um retrato, como disse, é somente uma história expressa pelos traços e pelas cores. Se eu mergulhar no fundo do mar e encontrar uma espécie nova de peixe, posso explicar a minha descoberta ou emitindo algumas palavras, que os meus ouvintes por longa prática compreendem claramente, ou transmitindo-lhes a idéia transformando aquelas palavras em símbolos brancos e pretos engenhosamente desenhados sobre um pedaço de papel, que serão compreendidos por todos que aprenderam o significado daqueles desenhos, ou enfim tomando um lápis ou um pincel, e desenhando a figura do monstro escamado, de tal maneira
248 HENDRIK VAN LOON
que os outros terão a impressão exata da criatura pelo desenho feito.
O homem sabia que isto podia ser feito, antes
(A BÕCA)A fotografia
de descobrir que as informações podiam ser transmitidas aos ouvidos, assim como à vista.
É verdade que a maioria das crianças (as crianças são simplesmente uns selvagenzinhos até que recebem alguma educação) se contenta com histórias ilustradas durante os primeiros anos, até chegar ao ponto de poder exprimir alguma cousa pela leitura ou pela escrita. Tôda a humanidade, nos seus primeiros dias de juventude, era como se estivesse numa vasta sala de brinquedos, cujas paredes estivessem cobertas de figuras.
O mundo antigo reconheceu o extremo valor da
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 249
informação por meio de desenhos. Entre os gregos e os romanos, a arte de ler e escrever era somente para aquêles qne tivessem necessidade dela e soubessem usar a sua sabedoria de um modo inteligente. Obrigar um camponês, que em toda sua vida nunca tivesse escrito ou recebido uma carta, a gastar cinco anos da sua infância numa sala de aula abafada a fim de poder escrever o seu nome, isso pareceria àqueles racionalistas de cabeça dura uma tolice rematada. Êles teriam de bom grado preferido explicar os princípios de composição musical a um surdo-mudo.
A Idade Média pensava do mesmo modo e aos que não conseguissem compreender as palavras escritas, indicavam-se estas por meio de desenhos.
Como, porém, aumentava o número dos que queriam aprender e havia uma exigência cada vez maior sobre a vida dos santos e os feitos valorosos dos antepassados, foram feitos esforços no sentido de se produzirem as imagens sagradas por meio de aplicação mecânica. Isso conduziu, como já disse antes, à descoberta da imprensa de madeira — método pelo qual duzentas ou trezentas figuras podiam ser tiradas de uma única peça de madeira.
Embora êste método servisse bem em se tratando de representações imaginárias, de acontecimentos também mais ou menos imaginários, não era nada satisfatório quando aplicado a problemas científicos. Ninguém pode objetar — pois não se pode saber — que uma gravura em madeira da Torre de Babel esteja perfeita ou não. Mas, uma urtiga do mar numa garrafa ou um músculo do braço deviam ser executados tal qual são, pois,
do contrário, não poderiam ser estudados pelos estudantes de Ctenophora e anatomia.
250 HENDRIK VAN LOON
(A BÒCA)O cinema
Isto levou o homem a uma variedade de experiências, todas as quais se esforçavam para reproduzir os sêres animados e inanimados em desenhos permanentes, com mais precisão do que se fossem descritos pela voz oral ou escrita.
Durante longo tempo, essas experiências foram mal sucedidas. Com auxílio de espelhos, lentes e quartos escuros, puderam refletir temporariamente uma paisagem sobre uma peça de vidro, mas entre o “ refletir” e o “ conservar” a paisagem havia uma diferença dolorosa. Ao apagar-se a luz, o retrato desaparecia.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 251
Mas há pouco mais de um século, a sorte resolveu tomar parte no jogo, e mostrou a nós, pobres e pacientes mortais, como sair da dificuldade. Bois franceses, Louis Daguerre e Nicéphore Niepce (o último, um gênio universal, que nos apresentou o motor) estavam trabalhando fazia longo tempo com uma variedade de soluções químicas, com algumas das quais conseguiram apanhar as imagens sobre chapas de vidro, não as podendo, porém, fixar. Um dia, por um simples acaso, Daguerre deixou algumas das chapas sensitivas, que já tinham sido expostas aos raios solares, dentro de um armário onde estava uma garrafa de mercúrio. Para sua surprêsa, êle descobriu que algo, que antes nunca sucedera, havia acontecido a essas lâminas. Foi êsse o passo inicial da maravilhosa pesquisa química que atingiu a invenção da arte fotográfica — “ a arte de desenhar por meio de luz.”
Desde então se tornou possível adicionar descrições gráficas precisas na história, que até então haviam dependido para sua exatidão do testemunho não muito seguro da palavra falada e escrita.
Esta nova arte se espalhou amplamente. E foi aclamada em todos os lugares como um grande passo de progresso. A indústria química, que justamente se estava formando com distinção nos laboratórios dos antigos alquimistas, veio nobremente em socorro aos “ escritores de luz.”
Outras inventaram uma máquina que podia apanhar os objetos a ser “ descritos” , parados, correndo, atirados de um canhão, enfim, de qualquer forma. Aperfeiçoaram a câmara-movente até reproduzir a cena fotografada com muito mais pre-
252 HENDRIK VAN LOON
cisão que expressadas por palavras faladas e escritas.
Quando Edison, depois de infinitas experiências com aparelhos mecânicos que pudessem apanhar e devolver a voz humana, finalmente apresentou o seu “ fonógrafo” ou “ gravador de som” , tornou-se possível combinar a “ narração” e “ fotografia” de tal maneira que, de ora avante, tudo que uma pessoa dissesse ou fizesse, poderia ser conservado de uma forma pomanente e por tempo ilimitado.
Temos ainda que aprender muitas cousas para alcançarmos o ponto culminante da ciência.
A boca humana, porém, se me permitem usar metáfora, pode repousar sobre a sua glória.
Multiplicou suas forças de tal modo e tão inteligentemente que, para nos dar informações honestas e falsas, a raça humana não encontra rival.
C A P I T U L O VI
O NARIZ
Êste capítulo é curto. O nariz é a origem do sentido do olfato, e êste sentido parece não admitir nenhum aumento ou intensificação. Quando êste livro estiver publicado, lembrar-me-ei, talvez, de um punhado de invenções relativas ao desejo do homem em multiplicar as forças nasais, mas por minha vida que agora não me recordo de nenhuma. E confesso que estou um tanto perplexo por ver assim negligenciado um órgão tremendamente útil. A razão disto, talvez, provenha de ser o olfato uma das heranças do nosso jDassado biológico, que menos se submeteu ao processo remodelador da civilização.
Suspeito de que, até hoje, o nariz, nas relações diárias com os nossos semelhantes, tenha sido um guia mais fiel e seguro do que desejamos confessar. Há, para muita gente, alguma cousa grosseira com referência ao nariz. Êle lhes traz ao pensamento os resfriados e também a triste recordação de uma afinidade com aquêles animais inferiores, que farejam seus caminhos, através da vida de maneira visível (demasiadamente visível mesmo.) Qualquer homem se ressentiria indignado se lhe afirmassem que o seu nariz tinha alguma cousa que ver com a sua conduta pública. Como tam-
254 HENDRIK VAN LOON
bém se horrorizaría se lhe dissessem abertamente que ele é um mamífero. É melhor ficarmos por aqui. Daqui a mil anos teremos, talvez, bastante inteligencia para desenvolvei* as nossas possibilidades olfativas.
Por agora não podemos, e, nos museus dedicados às realizações do “ Homem Multiplicado” , o nariz não se encontra. E a pobre tromba fica de lado fungando, Cinderela entre os órgãos, fazendo mil serviços difíceis, sem receber nenhum outro reconhecimento senão um toque ocasional de um lenço perfumado.
C A P Í T U L O V I I
O OUVIDO
0 ouvido também nãotem aparecido muito sob o ponto da vista da multiplicação artificial. Mesmo assim sua história é mais interessante que a do nariz, porque existem várias invenções, cujo único fim é a multiplicação ilimitada da audição. A maioria destas é de origem recente e se compõe de ouvidos artificialmente construídos, que podem apanhar o barulho produzido pela hélice de um avião muito antes que o ouvido humano tenha pressentido alguma cousa de anormal. Naturalmente o desenvolvimento do aeroplano nos obrigará a prestar cada vez mais atenção à arte de ouvir a longa distância. Mas uns dez anos atrás, tentávamos ouvir intensivamente mais que extensivamente, e as poucas invenções originais ligadas ao ouvido, todas elas mostram a mesma origem e mesmo fim.
É claro que seria possível argumentar-se que o telefone e o rádio deveriam ser classificados sob
256 HENDRIK VAN LOON
o título deste capítulo. Podemos também dizer que o alto-falante é uma orelha ampliada. Creio, porém, que, pensando bem, todos êstes instrumentos pertencem à boca. O seu fim principal é falar a distância. A voz, então, é que é enormemente aumentada, ao passo que o ouvido, como órgão da audição, se conserva pràticamente como era. Antes que me convença de que estou errado, eu os deixarei como estão, e mencionarei somente as invenções que são o resultado direto da nossa necessidade de ouvir com mais precisão.
(O OUVIDO)Antigos sinais debaho dágua
A água, sendo um excelente condutor de som, era muito natural que o valor do ouvido multiplicado fosse primeiro imaginado pelos homens do mar. Pareee que os noruegueses já sabiam que,
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 257
ao se bater no casco de um navio de madeira a alguns metros sob as águas, o som poderia ser ouvido pelos marujos de outro navio a uma grande distância, cujo casco estivesse também mergulhado alguns metros sob as águas; bastava para isso juntarem êles os ouvidos às paredes do mesmo. Ainda hoje, em certos lugares do Atlântico do Norte, quando o nevoeiro é intenso e os veleiros se conservam parados por causa das calmarias, estes se comunicam por meio de pancadas nos lados submergidos dos navios.
(O o u v i d o )Avisos modernos debaixo dágua
Êste método, no entanto, é um tanto primitivo para os grandes vapores, os quais aumentaram a sua acústica com diferentes invenções elétricas, que
258 HENDRIK VAN LOON
desempenham inúmeros trabalhos, antes feitos pelas mãos e pela vista, tais como descobrir a profundidade da água, perceber rochedos ocultos ou saber se o navio está-se aproximando da terra.
Em terra, não há necessidade de tais instrumentos. Se houvesse, seria duvidoso que pudessem ser ouvidos, no meio movimentado e barulhento das nossas modernas cidades. Mas, na tranqüilidade de seu consultório, o médico, reforçando o seu ouvido pelo estetoscópio, é agora capaz de ouvir inúmeros sons que estavam antes completamen-
(O OUVIDO)O estetoscópio
te fora do alcance da sua vista e das suas mãos e nesse andar poderemos esperar provavelmente mais desenvolvimentos de valores inestimáveis.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 259
É possível que existam outros instrumentos para ampliar a audição; mas eu não os conheço.
Espero, porém, que não seja o ditafone um destes, porque, seja como fôr, êsse útil instrumento de alta classe não se ajusta muito bem a este livro. Sei que existe e que representa um grande papel na vida de todos os detectives de cinema, dando-lhes uma oportunidade de frustrar conspirações e descobrir falsários. Mas, seja como fôr, não parece bem inclui-lo em um livro dedicado à crônica do progresso humano.
C A P Í T U L O V I I I
O OLHO
Passamos nossa vida nas profundezas de um vasto oceano de ar, tão profundo que não é possível alguém chegar à superfície. Durante certas horas do dia, êste oceano de ar está inteiramente exposto aos raios solares. Quando assim acontece, dizemos que tudo é luz e que podemos ver. Pois nós pertencemos à espécie de sê- res vivos, providos de visão, e na nossa fronte dois instrumentos curiosamente formados que nos permitem “ ver.” Não sei exatamente o que é “ ver.” E, no momento isso me interessa menos que o fato de a cor vermelha ser produzida por 392.000.000.000 vibrações por segundo na retina, enquanto que avioleta precisa o dobro desta soma, isto é, de >..........757.000.000.000 vibrações por segundo.
Não quero discutir a opinião de certos médicos famosos, que dizem serem os olhos humanos um dos mais desajeitados entre os toscos projetos da natu-
262 HENDRIK VAN LOON
reza, e que qualquer fabricarte perito em instrumentos óticos teria sido capaz de proporcionar-nos cousa bem melhor e mais útil.
Tais fragmentos de tagarelice científica seriam interessantes (se verdadeiros), mas estão fora do domínio deste livro, e por isso não lhes darei mais atenção.
Voltemos, pois, ao nosso antepassado mais primitivo e vejamo-lo contemplando o espaço, e, de um modo vago e indefinido, pensando o que, afinal, é êle.
Êle compreendia naturalmente a utilidade dos seus olhos. Permitiam-lhe observar aqueles que estavam a uma distância da sua vista relativamente curta.
Deve ter compreendido que o “ poder de observação e de discernimento” estava localizado nas duas bolas que estavam situadas em ambos os lados das aberturas, por meio das quais êle era capaz de cheirar os rastros dos animais ferozes, e estas, por sua vez, ficavam acima da outra abertura, por onde êle introduzia seus alimentos e que, em caso de perigo, servia para comunicar o seu medo aos companheiros.
O que êste poder de observação era, provàvel- mente êle sabia menos que nós, que vivemos meio milhão de anos depois. Contudo, sabia que devia estar situado nas duas bolas da fronte, pelo fato de que, ao fechar as pálpebras, escurecia temporà- riamente toda a vista; e notava ainda que, aquêles que eram feridos nas faces pe'as garras de um tigre ou de um urso, não tinham mais salvação, e precisa
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES
vam morrer, para não ficar cegos e prejudicar a segurança do resto da tribo.
Uma outra cousa deve ter chegado ao seu conhecimento: aquelas duas bolinhas acima da sua boca e do seu nariz perdiam toda a sua utilidade logo que o sol desaparecia no horizonte distante.
Parece que certos animais foram capazes de enxergar mesmo no escuro; mas, a espécie a que o homem pertence não gozava desse privilégio. Ao finar o dia, os sêres humanos eram obrigados a recolherem-se aos seus ninhos, cavernas ou qual-
(os o l h o s )A tocha do troglodita
quer outro lugar onde costumavam dormir, e esperar aí o raiar do dia seguinte.
Logo, porém, que descobriram que não somente podiam conservar um fogo tirado de um mato
264 HENDRIK VAN LOON
queimando, como também podiam fazer fogo por meios artificiais, a noite deixou de os aterrorizar. Depois disso, a vista humana se fortificou por meio
(OS OLHOS) Lâmpada a óho
de uma tocha, a qual substituía a luz do dia. Mas a tocha não era um instrumento ideal de iluminação. Era uma invenção muito importante, mas que se achava no seu início. Diversos materiais inflamáveis foram experimentados para iluminação, uns atrás dos outros; mas pouco se progrediu, até que descobriram que, se pusessem um certo material fibroso numa vasilha contendo óleo ou gordura, o fogo se conservaria aceso enquanto o óleo ou a gordura durassem.
Dessa maneira a “ lâmpada” ou “ tocha” dos gregos chegou a transformar-se 3ia lâmpada moderna.
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 265
Os heróis de Homero ainda fizeram seus festins sob a luz vacilante das tochas. Mas quatrocentos anos depois, os templos dos deuses se tornaram resplandecentes com a luz suave de inumeráveis lâmpadazinhas de óleo, e um século mais tarde a lâmpada a óleo passou a ser indispensável para todas as famílias conceituadas e, lá no seio da terra, escravos miseráveis acorrentados às paredes das minas extraíam carvão e cobre sob a luz bruxoleante de lanternas portáteis feitas de chumbo ou de ferro.
Durante quase mil anos, as lâmpadas de óleo, fumacentas e mal cheirosas, eram tudo que possuíamos para a iluminação. Depois, foi vagarosamente mudando de forma, até transformar-se na vela, e o óleo foi substituído pelo sebo, conservando, porém, o pavio.
Durante o Século X II, os “ resplendores” artificiais caminharam através dos Alpes, e, em meados do Século X III , passaram a ser de uso geral. Tornaram-se depois os auxiliares exclusivos dos olhos nas trevas por alguns séculos.
Durante esse tempo, muitas experiências foram feitas para substituir o sêbo, mas o único material prestável era a cêra virgem, muito cara, e as velas desta matéria só podiam ser usadas nas igrejas e nos palácios.
Ainda assim elas iluminavam somente poucas jardas quadradas. Quando as condições de vida das massas melhoraram, e o povo desejou ficar acordado mais tempo que seus cavalos e suas vacas, impôs-se encontrar alguma cousa melhor, que pudesse espantar as trevas enfadonhas. O proble-
266 HENDRIK VAN LOON
ma foi finalmente resolvido com a extração daquele mesmo depósito de energia pré-histórica, a qual já estava começando a servir para movimentar as
(OS OLHOS)A vela
rodas de milhões de máquinas, mas de um modo um pouco diferente. A existência de certas substâncias invisíveis, que não possuíam volume nem forma, fora perfeitamente conhecida pelos físicos gregos que viveram há vinte e cinco séculos. Mas êstes desconfiavam de que esta substância era dotada de força misteriosa, capaz de causar muito dano e pouco benefício, e não investigaram se podia ser utilizada para algum fim prático.
Aos alquimistas da Idade Média, êste pneuma, aura, espírito, ou como qualquer que a chamassem, era uma verdadeira bênção. As chamas esquisi-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 267
tas produzidas por ela os auxiliavam muito a ganhar dinheiro dos seus fregueses atrasados. Um velho pecador especializou-se tão bem no aproveitamento da “ emanação” , que por acaso descobriu a substância, hoje conhecida por carbono dióxido; mas isso o impressionou tão profundamente, que ele a batizou com o imponente nome de “ gás” , cuja origem era nada mais que a palavra grega chaos.
O nome ficou, embora o van Helmont há muito esteja esquecido. Hoje, quando dizemos gás, geralmente nos referimos àquele gás especial retificado de carvão e usado para fins de iluminação. O caráter combustível do gás de carvão fora observado há muito, no Século X V II. Mas o homem responsável por sua invenção estava adiante da sua época. Bexigas de porco cheias de gás eram usadas para iluminação das feiras rurais, mas o homem em geral continuava ter terrível mêdo deste eflúvio perigoso que supôs emanar da abertura dos Infernos, e não o quis usar em sua casa, temendo ser sufocado em sua própria cama.
Durante a Revolução Francesa, quando os balões se tornaram importantes para fins militares, um físico belga tentou a experiência de encher grandes sacos de papel com gás em vez de ar quente e, tendo fabricado mais material do que necessitava para fins aeronáuticos, êle usou a sobra para iluminar a sua casa. O seu esforço em querer transformar a noite em dia foi acolhido com ostensiva desaprovação, e só depois das guerras napoleónicas, o gás de iluminação começou a ser usado de um modo geral nas casas e vias públicas.
268 HENDRIK VAN LOON
Milhares de pessoas foram contra esta inovação e para isso acharam apoio enire autoridades eclesiásticas.
Êstes dignos sacerdotes apresentaram inúmeras razões para condenar o novo sistema de iluminação. Baseavam-se naquele capítulo do Gênesis, que explica como Deus fêz o dia e a noite. E concluíram daí que todos os esforços para melhorar a obra divina, dando aos olhos a oportunidade de enxergar claramente iepois do pôr do sol, eram manifestações blasfemas e arrogantes.
(OS OLHOS)O acendedor de lampião
A mais interessante acusação contra a iluminação das ruas foi dada por um governador da cidade de Colônia; declarou ele que o uso de gás não era somente ação anticristã, como também
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 269
antipatriótica. Porque, argumentava ele, os povos que vivem em cidades iluminadas pelo gás não apreciariam mais as iluminações festivas, que eram
(OS OLHOS j O comutador
a fonte de inspiração para a exaltação do patriotismo e da veneração à dinastia reinante.
Hoje, tudo isso parece absurdo. O gás foi adotado por todo o mundo como substituto da luz do dia. Reinou como soberano supremo em todo o mundo, até ser inventado o método de converter o carvão em eletricidade. Desde então, cidades inteiras podem ser iluminadas só pelo torcer de alguns comutadores.
Finalmente, o olho humano se tornou livre da maldição das trevas. E, como sempre que é concedida uma grande liberdade, os homens começa-
270 HENDRIK VAN LOON
ram a abusar dela. Abusaram de um modo escandaloso. Os olhos que lhes foram dados para serem usados sete ou oito horas durante o dia, foram forçados a ler por toda a noite. As pobres criaturas não podiam resistir ao esforço, e logo se fatigavam e começavam a lacrimejar. Era preciso reforçar aquêles que eram obrigados a ler e escrever maior parte do dia e da noite. A dificuldade foi resolvida com a introdução dos “ óculos.”
A Roger Bacon foi dado o título de inventor. Não podemos saber ao certo se foi ou não. Bacon foi um dos poucos que possuíam uma idéia indepen-
(OS OLHOS)Os óculos
dente no Século X III , e sua invenção deve ter sido censurada como todas as outras novidades que surgiram entre os anos de 1214 e 1294. Seja como
S 7?R J
fôr, durante longo tempo os óeulos eram de muito pouco uso prático, considerados como um luxo e não como uma necessidade. Por isso, muitas vezes pre-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 271
(OS OLHOS) O holofote
judicavam em lugar de auxiliar. Ainda assim, foram usados por milhares de pessoas, pois em todos nós há um pouco de vaidade. Num tempo em que noventa e cinco por cento da humanidade era analfabeta, tornava-se petulante tal enfeite de vidro no nariz. Os que os usavam desafiavam os pobres que não podiam comprá-los, proclamando: “ Olhem! Tenho gasto tanto tempo em estudos, que a minha vista sofreu os efeitos dêsse excesso de saber.” Essa exibição tola e ridícula, tão largamente espalhada, até recente data, prejudicou o uso dos ócu-
272 HENDRIK VAN LOON
los. Os ollios multiplicados pelo cristal polido, foram considerados indignos aos homens sérios. Quando Heinrich Heine visitou o oráculo de Wei- mar, este lhe disse que não poderia apresentar-se diante do grande e glorioso Goethe sem primeiro tirar os seus óculos.
Tratemos agora de uma cousa mais séria. Não foram ainda mencionados os importantes esforços feitos pelo homem para multiplicar a sua visão de tal maneira, que fosse capaz de alcançar os segredos obscuros e inacessíveis da natureza.
(OS OLHOS)O astrônomo grego
A eletricidade deu-lhe oportunidade de inventar um olho de longo alcance, o holofote, que iluminou o mar e o ar, permitindo-lhe observá-los durante a noite assim como já o fazia de dia. Os
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 273
holofotes, porém, estão intimamente ligados à guerra e não são comumente usados em tempo de paz. Existem duas outras variedades de olhos multiplicados de maior utilidade.
Com uma, olhamos os céus. O homem, humilde prisioneiro num pequeno planeta, sempre te-
(OS OLHOS) O telescópio
ve profunda curiosidade acerca de tudo que rodeia, o seu domicílio.
A princípio, porém, os olhos eram tudo o que possuía para estudar as estréias. A julgar j)elo
274 HENDRIK VAN LOON
(OS OLHOS) Observatorio astrcnomico
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 275
que realizaram como astrônomos, os babilônios, os egípcios e os gregos possuíam excelentes vistas, ou um sentido de percepção altamente desenvolvido. O que viam, observavam com precisão, mas o alcance da sua vista era limitado. Pois eram obrigados a contar apenas com os seus olhos, sem o auxílio das multiplicações artificiais da vista, que hoje estão à nossa disposição.
O sábio Roger Bacon não somente parece ter inventado os nossos óculos, como também descreveu um plano para construir “ óculos de grande alcan-
(o s OLHOS)O micróbio invisível
ce” ou telescópio. Não se sabe se êle fabricou êsse instrumento como um passa-tempo. Era tão ocupado, (durante muitos anos não achava tempo nem
276 HENDRIK VAN LOON
para escrever) e tão pobre que não podia comprazer-se em experiências óticas tão dispendiosas.
E nada foi feito a respeito do telescópio, senão quatrocentos anos depois da sua morte. Então, o furor da Reforma se liavia esgotado, e por algum tempo o povo queria satisfazer o seu desejo de especulações científicas. Nessa mesma época, os na- viozinhos estavam começando a velejar através de todos os portos e baías dos sete mares, e os marujos necessitavam de um instrumento que os auxiliassem a enxergar a distância. Não é de admirar, pois, que o telescópio tivesse sido inventado pelos habitantes dos Países Baixos, onde a navegação fora elevada à categoria de fina arte.
Da Holanda, os telescópios foram exportados para toda a Europa. Um dêles caiu nas mãos de Ga- lileu, e o fim para o qual êle o usou justifica o decreto do chefe dos Franciscanos, quando proibira a Roger Bacon de continuar seus estudos perigosos de física aplicada. Pois Galileu, com um óculo de longo alcance feito por êle mesmo (um instrumento infantil comparado aos nossos modernos telescópios) alargou a cúpula do céu de muitos milhares de milhas, até que as antigas noções sobre a importância da terra, dos seus irmãos planê- tas e do seu pequeno sol brilhante decaíram completamente e o universo inteiro foi totalmente vasculhado.
A maioria das pessoas, porém, em vez de corrigir as suas opiniões errôneas e cômodas que os haviam sustentado desde a infância, preferiu acusar Galileu e seus companheiros astrônomos de pérfi
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 277
dos perigosos, dizendo qne deviam ser proibidos de ensinar doutrinas violentas à juventude.
Finalmente, como sempre acontece, a curiosidade divina do homem triunfou. Êle continuou
(OS OLHOS)A lente de aumento
a aumentar o seu campo visual, e hoje, com o auxílio de gigantescos telescópios, êle finalmente está começando a ter uma leve idéia, não de onde se acha, mas para onde caminha.
Enquanto umas pessoas se dedicavam ao problema de ver extensivamente, outras tentavam descobrir um método de ver intensivamente. Logo que ficou provado existir um mundo, muito além do nosso alcance de observação, tão longe que não
278 HENDRIK VAN LOON
podia ser percebido a olho nu, suspeitou-se de que também podia existir um mundo composto de sêres tão infinitamente pequenos, que não podiam ser
(OS OLHOS) O microscópio
notados sem o auxílio de um poder visual multiplicado de modo diferente.
Foram os gregos os primeiros a suspeitar dessa existência. Sem lentes apropriadas, essas suspeitas não podiam ser revalidadas no atual conhecimento.
O máximo que os antigos podiam fazer para aumentar o olho humano era olhar um objeto através de uma esfera côncava cheia dágua. E isso era muito pouco.
Logo que a lente foi inventada, puseram-se na pista certa. Quatrocentos anos foram gastos em
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 279
experiências. E, durante a primeira metade do Século X V II, um holandês, chamado van Leeuwenhoek, combinou algumas lentes de tal maneira, que finalmente o olho humano pôde descobrir os pequenos corpos, cuja existência havia sido predita milhares de anos antes.
O novo instrumento foi chamado microscópio ou “ vista curta.” Os primeiros microscópios eram muito rudimentares, mas foram rapidamente aperfeiçoados, e há meio século travamos conhecimento com os nossos piores inimigos — os micróbios. Não todos eles, alguns dos grupos nefastos conseguiram ocultar-se da nossa vista, apesar da introdução do microscópio mais possante.
Num mundo no qual aprendemos ver através das pessoas com o auxílio da invenção extraordinária do Professor Roentgen, quase tôdas as cousas parecem possíveis e a maioria dos problemas da existência se reduz a duas simples palavras: “ Coragem ! ” e “ Paciência.’ ’
E é tudo no momento.Pois as minhas ilustrações terminaram e, co
mo Alice, disse muito acertadamente: “ Qual é a utilidade de um livro sem gravuras?”
Se eu tivesse tempo e a impressão não fosse tão cara, seria fácil multiplicar os meus exemplos sobre a multiplicação dos órgãos humanos, de modo que êste livro tivesse três mil páginas em vez de menos de trezentas. Pois eu apenas toquei em alguns assuntos elevados. Os detalhes nem foram mencionados.
Mesmo agora, o leitor que teve a paciência de ler cuidadosamente êste volume até o fim, dirá
280 HENDRIK VAN LOON
provàvelmente de si para si: “ Por que esse camarada ignorante se esqueceu disso? Por que não falou na escada como extensão das forças do pé, quando estava falando das estradas? E a armadura como reforço da pele? E o câo de caça como um substituto para o nariz?”
E teria razão. Centenas de outros objetos podiam ter sido mencionados, p:>rém, este livro não pretende ser uma “ História das Invenções” ou uma coleção de ensaios sobre as vidas infelizes da maioria dos pioneiros da inteligência humana.
Pelo contrário, é apenas um abridor intelectual de olhos.
Êle tem por fim dar ao leitor em geral um novo ponto de vista, fornecendo um esboço que o habilitará daqui por diante a fazer por si mesmo suas classificações e a ter um passa-tempo (e talvez instrução) pelo esporte perfeitamente inofensivo de dividir e subdividir todas as invenções existentes.
Mas há uma cousa mais que eu quis tentar.Como foi dito no meu prefácio, êste livro é,
realmente, uma profissão de fé. Os martelos, serrotes, balões e telescópios foram somente uma desculpa para dizer algumas cousas que estão prestes a ser descuidadas nesta época de pessimismo e descrença.
A filosofia fundamental dêste livro é implantar esperança e otimismo.
Ela nos apresenta o Homem, não como uma vítima do destino, mas como uma criatura dotada pràticamente de poderes ilimitados para o desenvolvimento da sua inteligência. Apresenta o Ho-
HISTÓRIA DAS INVENÇÕES 281
mem no início da sua vida como um ser racional, procurando rapidamente o caminho por onde possa escapar finalmente das dificuldades que tornam a sua existência presente uma tortura.
Bem sei que muitos protestarão, dizendo que a salvação deve ser pelo espírito. É bem verdade! Mas o espírito tem pouco tempo para si, quando o corpo precisa pegar da enxada para plantar batatas a fim de viver.
Até agora, o homem tem gasto muito do seu tempo plantando batatas.
O meu desejo é que êle pare de cavar e descanse, a fim de ter tempo de desenvolver suas faculdades mais elevadas.
Não podemos profetizar o uso que êle fará dessas faculdades elevadas, nós que ainda pertencemos à última época da pedra. Mas a evidência do passado nos encoraja a esperar que vá sempre melhorando, para que se liberte cada vez mais dês- se trabalho penoso, que muitas vêzes o ameaçou de degradá-lo à classe das abelhas e das formigas.
O presente momento, sob muitos pontos, é bem infeliz. Não somos nem escravos, nem patrões. Multiplicamos as forças dos nossos pés, mãos, olhos e orelhas para que pudéssemos alcançar a liberdade, e subitamente nos achamos dependendo daquelas cousas inanimadas que foram criadas para servir- -nos.
Isto, porém, não significa que nunca devêssemos ter tentado multiplicar as nossas faculdades.
Significa, somente, que não multiplicamos suficientemente.
É esta a tarefa que nos espera.
Êste livro foi composto e impressc na G R Á F I C A U R U P Ê S S. A.
Rua Pires do Rio, 338 S ã o P a u l o
19 5 9
Historia das ínveAçièlIlen c U van Loon
A Grande ConspiraçãoMichael Sayers e Albert E. Kahn
Um Ianque na Corte do Rei Artur Mark Tvvain
O Príncipe e o Pobre Mark Twain
Aventuras de Tom Savvyer Mark Twain
Aventuras de Huck Mark Twain
Marujos Intrépidos Rudyard Kipling
A Ilusão Americana Eduardo Prado
Narrativas da Alhambra Washington Irving
Viagem aos Mundos Longínquos K. Guilzine
Deuses e Heróis George Baker
Shakespeare em Contos
A coleção “A Marcha do Tempo”, encadernada em percalina, é vendida num plano suave de prestações a longo prazo, pelo Departamento de Crédito da
E D I T Ô R A B R A S I L I E N S ERua Barão de Itapetininga, 93 - 12.° Andar
Telefone: 36-2423 - São Paulo