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A PINTURA DA VIDA PROSAICA: POBREZA E ESCRAVIDÃO NAS AQUARELAS DE DEBRET
Anderson Ricardo TREVISAN1
RESUMO: O presente artigo analisa duas aquarelas do artista Jean Baptiste Debret (1768-1848) realizadas no Brasil entre os anos de 1816 e 1831, chamadas Família pobre em sua casa e Negra com tatuagens vendendo cajus. A primeira delas figura um dia comum na vida de uma família pobre que sobrevive graças ao trabalho de uma escrava, e a segunda tem uma mulher negra como protagonista, uma vendedora de cajus. Ambos os trabalhos denunciam o peso do trabalho escravo na base da economia e da vida cotidiana do Brasil do século XIX, através de imagens que contrariam as noções de progresso e regeneração que permeiam os textos do próprio artista no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
Palavras-chave: Jean Baptiste Debret (1768-1848), escravidão, Rio de Janeiro (séc. XIX), neoclassicismo, sociologia da arte, pintura (cotidiano).
A obra do artista francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) é um prato cheio para
os sociólogos que se propõem a analisá-la. A extensa coleção de imagens que o artista
produziu sobre o Brasil dos primeiros anos do século XIX oferece ao observador os
mais variados tipos e relações sociais: indígenas em seu “mundo natural”, escravos de
todos os tipos (negros de ganho, forros, amas, etc), pequenos comerciantes, monarcas
sendo coroados e aclamados, casamentos e batizados reais e imperiais, funerais e
esquifes, procissões e festas religiosas em geral, etc. Trata-se de uma obra cuidadosa e
abrangente a respeito do Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, realizada durante a
permanência do artista no país, entre 1816 a 1831. Grande parte desses trabalhos
encontra-se no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, lançado pelo artista na
1 Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, USP.
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França entre 1834 e 1839. No presente artigo, o que se propõe é uma maneira de olhar
para duas aquarelas de Debret sobre o cotidiano mais rudimentar do Brasil oitocentista,
através da descrição das obras, e da sua relação com outras obras e com a estrutura
social de onde elas surgem. As obras, no entanto, não são concebidas como reflexo
imediato das condições impostas pelo meio, mas sim uma dimensão desse meio, onde
determinadas energias sociais podem ser percebidas. A obra de arte “Exprime, portanto,
valores, relações, concepções, que só ali existem e só ali se expressam. Dimensões e não
reflexos de um processo social” (MENEZES, 1997, p.19). Trata-se de uma relação de
troca, ou seja, o meio influencia a criação (um artista acadêmico, por exemplo, deve
realizar trabalhos que obedeçam a determinados critérios), que por sua vez fornece
novos sentidos para esse meio; dessa forma, não se pode ignorar o contexto no qual as
obras são concebidas, sobretudo quando falamos de um pintor como Debret, tão ligado
à história política de seu tempo.2 Por isso, é bom recuperar rapidamente o ambiente
histórico e político que permitiu a contratação de Debret como pintor oficial da nossa
monarquia.
A Família Real Portuguesa chegou ao Brasil em 1808, fugindo das tropas
napoleônicas que ameaçavam invadir Portugal. Em 1815 o país torna-se parte do Reino
Unido de Brasil, Portugal e Algarves, tendo o Rio de Janeiro capital e sede da Coroa.
Foi então que d. João, ouvindo as sugestões de seus conselheiros, contratou um grupo
de artistas franceses cuja função seria fundar uma academia de belas artes em seu
Reino. Isso aconteceu em 1816, com a vinda da Missão Artística Francesa3, que tinha
entre seus membros o pintor de história Debret. Em sua função como pintor da Corte,
Debret seria ainda o responsável pela “documentação” dos eventos importantes que
envolvessem a nobreza, como coroações, batizados, casamentos, etc, bem como pela
decoração do Teatro Real de São João em dias de apresentação para a nobreza. Em
grande parte dos trabalhos realizados como pintor da Corte, percebemos obras bem
2 Debret participou do movimento revolucionário francês do século XVIII (foi jacobino) e mais tarde pintor de Napoleão Bonaparte, tendo dedicado várias telas ao imperador. 3 A história da missão francesa é complexa e repleta de controvérsias. A referida Academia foi efetivamente inaugurada em 1826, dez anos após a chegada dos franceses ao país, o que fez com que muitos deles voltassem para seu país sem ao menos ver os frutos de sua empreitada, o que não foi o caso de Debret. Consultar, a respeito, BANDEIRA, XEXÉO, CONDURU, 2003; TAUNAY, 1983; PEDROSA, 1998 e TREVISAN, 2005, pp. 22-43.
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próximas ao estilo neoclássico, com uma pintura linear4, de contornos definidos, onde
os personagens humanos acabavam sendo suprimidos em detrimento da arquitetura, que
se mostrava sempre imponente e monumental, como podemos notar em Aceitação
provisória da constituição de Lisboa (Figura 1).
1. Jean Baptiste Debret: Aceitação Provisória da Constituição de Lisboa, litografia, in Voyage pittoresque et historique au Brésil..., 1834-39. (Reproduzido do CD-ROM Rio natureza e cidade - Museus Castro Maya/IPHAN).
Nessa obra é não é possível perceber detalhes, pois a opção do artista foi dar uma
visão geral do acontecimento, o que significou destacar a amplitude espacial, sustentada
pela figuração de uma arquitetura local. Prestando atenção, até podemos perceber
diferentes grupos de pessoas, como, por exemplo, os escravos próximos do monumento
presente no primeiro plano, mas é impossível notar, por exemplo, a expressão de seus
rostos ou mesmo pormenores de suas indumentárias. Nessas imagens de caráter oficial
ou histórico é recorrente a opção de Debret pelo hiperdimensionamento do espaço e da
arquitetura, em detrimento dos elementos humanos da imagem. No entanto, o pintor não
foi exclusivamente artista oficial. Ao lado desse compromisso formal, realizou uma
série de trabalhos, em geral aquarelas, com o intuito de criar uma coleção de imagens
sobre o Rio de Janeiro oitocentista. Nessas obras, a arquitetura passa para segundo
4 Em termos estilísticos bastante gerais, trata-se de uma pintura onde os contornos são mais definidos, contrario ao estilo barroco, por exemplo, onde as pinceladas eram mais livres (Cf. WÖFFLIN, 1989, p.21-78).
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plano e os personagens humanos ganham destaque. É o caso das duas obras que serão
analisadas a seguir.
Família pobre em sua casa
2. Jean Baptiste Debret: Família pobre em sua casa, litografia, in Voyage pittoresque et historique au Brésil..., 1834-39. (Reproduzido do CD-ROM Rio natureza e cidade - Museus Castro Maya/IPHAN).
Família pobre em sua casa (Figura 2) apresenta uma cena ocorrida no interior de
um ambiente doméstico, onde os personagens estão todos no primeiro plano, com
destaque suficiente para que suas ações sejam percebidas. Ao dividirmos a obra ao
meio, dois personagens ficam à esquerda da composição, para quem observa, e outro à
direita, o que poderia denotar, em princípio, certo desequilíbrio. A luz é distribuída de
maneira uniforme entre todos os elementos da obra, e as paredes, em tons escuros, não
são vazias. Ao contrário, são carregadas de texturas e objetos que, no final das contas,
contribuem para que a composição obtenha um novo equilíbrio.
Em pé, próxima a entrada da casa, vemos uma mulher negra, que talvez tenha
acabado de entrar no ambiente. Ela é alta, ocupando quase a totalidade do espaço
vertical do lado esquerdo da composição, e torna-se maior ainda em razão do recipiente
que carrega, sem o apoio das mãos, em sua cabeça. Tal objeto é grande, e deve estar
cheio, porque se nota uma penca de bananas em sua abertura; é curioso imaginar como
ela conseguiu entrar no referido ambiente carregando-o, uma vez que a porta que lhe
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garantiu o acesso é pequena em relação ao seu tamanho somado a tal objeto (afinal,
parece absurda a idéia de que ela teria colocado novamente o recipiente na cabeça ao
entrar na casa, a menos que ela pretendesse sair novamente com ele). Suas roupas são
simples: um lenço na cabeça, que lhe dá suporte para carregar o pesado objeto, uma saia
azul, que cobre totalmente os membros inferiores, e uma blusa branca, que cai
suavemente até o cotovelo, deixando à mostra seu colo, não denotando, contudo,
qualquer sensualidade, já que não se destacam as formas do seio, mas sim de costelas
sob a pele, o que lhe dá uma fisionomia esquelética. Com a mão direita ela oferece algo
para uma mulher branca sentada no chão, e com a mão esquerda parece pegar o restante
da oferta que guarda na sua blusa, que, caída até o ombro, funciona como um recipiente
côncavo. Contudo, não é possível ter certeza se ela está pegando realmente algo, se está
apenas se coçando ou ainda se está sentindo alguma dor no local, haja vista o esforço de
carregar um pesado recipiente sobre a cabeça.
A mulher branca que recebe a oferta da mulher negra está sentada no chão, com as
pernas cruzadas, próxima à porta. Seu cabelo está preso mas não forma um coque, e sim
um rabo de cavalo. Suas roupas são brancas, mas pouco se diferem das vestes da mulher
negra, pois também deixam os ombros à mostra, embora pareça estar usando uma outra
peça por baixo, o que esconderia seu colo – contudo, como ela está praticamente de
costas para quem lhe observa, não se percebe até que ponto seu colo está (des)coberto.
Sentada sobre um tapete ou esteira, ela parece trabalhar em algum tipo de tear manual.
Está rodeada de animais: à sua frente, uma galinha com dois pintinhos bicam o chão, o
que sugere que o assoalho é de terra. Na porta de entrada, outra galinha bica o chão, e,
atrás da mulher, um gatinho escuro dorme tranqüilamente.
Existe ainda um outro personagem. Trata-se de uma anciã, que está localizada à
direita da composição, ainda no primeiro plano. Ela também está sentada de pernas
cruzadas, veste roupas muito similares às da escrava, inclusive pelas cores (azul e
branco). Seu cabelo também está preso, na forma de um coque. É extremamente magra,
o que pode ser notado não apenas pelo rosto, mas pelo colo, também descoberto, que
exibe seios flácidos e um crucifixo pendurado no pescoço. Ela está sentada sobre uma
espécie de estrado de madeira, recebendo diretamente sobre si a iluminação que vem da
entrada da casa, à esquerda, tendo por isso certo destaque. Ela tem em suas mãos um
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tipo de cajado, enrolado com uma espécie de tecido ou fios de algodão ou lã, o que
sugere que ela deve estar fiando.
Ao ligarmos os três personagens, veremos que se forma um triângulo retângulo,
com a anciã situada na extremidade direita desta figura geométrica, o que, além de lhe
dar destaque, garante o equilíbrio da cena. Relacionando as imagens dos três
personagens, pode-se dizer que se trata de uma mulher mais velha, provavelmente a
mãe ou avó, uma outra mais jovem, provavelmente sua filha ou neta, e uma mulher
negra, certamente a escrava da casa; e, de forma geral, há a sugestão de um ambiente
rústico e pobre. Resta entender, porque sendo pobre, essa família possui um escravo.
O ambiente é muito rústico. As paredes parecem feitas de barro, e o chão, de terra
batida. Não há móveis, propriamente ditos, mas sim uma esteira, um estrado de
madeira, uma rede suspensa (não na altura normal de sua utilização, mas amarrada
próxima ao teto, para ser utilizada oportunamente. Isso sugere que esse local não é
apenas o cômodo de entrada da casa, mas ainda o quarto de dormir), um pote de água
parcialmente quebrado com uma cuia à sua frente, um tipo de luminária na parede onde
está a anciã e um outro cômodo mais ao fundo, onde se percebe um tipo rústico de
fogão com tacho em cima, sugerindo que se trata da cozinha. A porta de entrada é feita
de ripas entrecruzadas, muitas delas quebradas. Percebe-se uma parte do telhado e não
se vê nenhum tipo de forro entre este e o ambiente. Praticamente no centro do primeiro
plano, nota-se uma espécie de peneira como bolas brancas no seu interior. Levando-se
em consideração o fato da menina estar tecendo e a anciã fiando, trata-se da matéria
prima desse trabalho, o algodão. Sabemos que se trata de uma família brasileira graças
às legendas fornecidas por Debret no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil,
mas um olhar desavisado poderia tomar tal imagem como a representação de uma cena
tipicamente indiana: roupas folgadas e amarradas ao corpo, a forma de se prender o
cabelo, o fato de as mulheres brancas estarem sentadas no chão e, principalmente, a
posição como estão sentadas: à maneira asiática, com diz Debret em várias partes do
livro. Ao descrever uma cena de fazenda, ele explica a maneira de sentar das mulheres:
Quanto à posição, fazendo pouco exercício, passa essa mulher quase o dia inteiro sentada à moda asiática com a parte superior do corpo inclinada para frente e apoiada nos rins; da imobilidade desta posição resulta uma adiposidade que se manifesta pela inchação excessiva das
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partes inferiores do indivíduo, o que é visível principalmente nos tornozelos (DEBRET, tomo I, v. II, 1978, p. 206).
Isso revela, segundo Rafael Cardoso, o peso da influência da cultura asiática no
Brasil da época em razão do comércio que o país realizava com aquele continente.
Segundo o autor, o Rio de Janeiro vivia seus últimos momentos de influência da cultura
asiática, e o que Debret teria feito é mostrar um Brasil asiático que desapareceu (Cf.
CARDOSO, 2003, p.46). De certo modo, esse imaginário fazia parte do repertório de
Debret, quando, por um momento, deixa a Europa em segundo plano como referência
para a “regeneração”5 do país:
[...] Por sua vez, deixando a pátria, o jovem brasileiro visita, hoje em dia, a Europa, anota o que vê acerca das ciências e da indústria e, enriquecido com esses preciosos documentos, torna-se um sustentáculo de sua pátria regenerada. Mas não é só na Europa que ele vai buscar inovações; pede-as também à Ásia e o camelo, esse carregador do árabe, já se reproduz no Brasil desde 1834, um ano após da primeira leva (DEBRET, tomo I, v. II, 1978, p. 140).
Essa declaração explica a atmosfera indiana que permeia a cena de família que
está sendo analisada. De forma geral, as evidências visuais apontam, como o título da
obra sugere, para a figuração de uma família pobre: primeiramente, a existência de
apenas uma escrava, que é magra e se veste de forma simples; depois os personagens
brancos, cuja aparência não revela ostentação nas vestimentas, além de sua fisionomia
ser magra (sobretudo a anciã, que é esquelética) e estarem realizando um trabalho
manual; ademais, o ambiente é humilde e as pessoas dividem espaço com animais, não
apenas de estimação, mas também com galinhas, que aqui nada lembram a sofisticação
do prato, na época uma iguaria exclusiva das mesas da elite6, mas denotam a
5 Debret acreditava que o Brasil mostrava-se regenerado a cada dia, graças à influência européia, mas sobretudo francesa. Entenda-se por regeneração, na concepção de Debret, a mudança do país de colônia para Reino e depois Império, e da progressiva influência européia na cultura local. 6 A galinha era um prato muito caro na época. Além disso, era também comida para dieta de pessoas doentes. Nesse caso, o caldo de galinha, que era por vezes recomendado, só era utilizado em casos raros ou de absoluta necessidade, por ser refeição muito cara (cf. SILVA, 1978, p.11). Adolfo Morales de los Rios Filho diz ainda: “[...] uma vez que as galinhas eram caríssimas, a gente do povo muito apreciava as carnes de lagarto, macaco, gambá, paca, veado e tatu” (RIOS FILHO, 2000, p.338). Portanto, galinha na mesa era signo da alta distinção. Nessa gravura, ao contrário, enfatiza a precariedade da moradia.
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precariedade da habitação e a mistura entre o ambiente externo e o interno. É
interessante observar o que o artista escreve sobre a cena figurada:
Observando-se a decadência de uma família brasileira, caída da opulência à miséria, através de desastres sucessivos, sempre se encontra o velho escravo ainda válido, permanecendo sozinho junto de seus amos, prodigalizando-lhes os últimos recursos de suas forças quase esgotadas. O homem rico, no Brasil, como alhures, ao primeiro revés da fortuna suprime seus criados de luxo; supressão esta tanto mais fácil aqui, e eficiente, quanto os escravos desse tipo, inteligentes e de bom físico, se vendem caríssimo. Esgotado esse recurso, o segundo revés impõe a dura necessidade de restringir o número de escravos úteis; finalmente, perseguido pela desgraça, o senhor se vê constrangido a livrar-se até dos seus mais antigos escravos, concedendo-lhes essa liberdade tardia que os reduz à mendicidade. Mas o negro menos caduco fica para servir seus senhores e este obedece até morrerem. E, dedicado e fiel, lamenta-se ainda quando sente que vai morrer mais cedo (DEBRET, tomo I, v. II, 1978, p. 304).
Agora não há dúvidas: trata-se de uma família brasileira, ainda que o ambiente e
os modos possam lembrar a Ásia. É possível perceber, ainda, que Debret explica o
motivo de uma obra referente à uma família pobre conter um escravo. Tanto é verdade
que ele só aborda esse personagem no final, após ter esclarecido todo o processo de
falência de uma família rica, as etapas de vendas dos escravos e o tipo de escravo que
permanece na casa, que seria o “negro menos caduco”. Na seqüência, o pintor passa a
descrever o ambiente: “O desenho representa o interior da casa de uma viúva pobre que
ficou no mundo unicamente com sua filha e uma negra velha” (DEBRET, tomo I, v. II,
1978, p. 304). Agora também não temos como ter dúvidas quanto às relações familiares
dos demais personagens: trata-se de mãe e filha; com o texto em anexo, Debret evita
que haja qualquer outra interpretação (pois pela diferença marcante entre as suas
fisionomias, poderíamos facilmente imaginar tratar-se de avó e neta). Na seqüência, o
pintor detalha o ambiente, reforçando a noção de pobreza, de que se trata de uma
construção antiga, abaixo do nível da rua, etc. O mais curioso é quando ele diz que “[...]
se reconhecem, no meio da extrema decrepitude, os restos de uma fechadura européia”
(DEBRET, tomo I, v. II, 1978, p. 304). Mesmo em meio à miséria e à “degradação”,
Debret consegue visualizar a influência européia, ainda que seja na fechadura,
imperceptível na imagem, uma vez que a porta está entreaberta. Contudo, o que restaria
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de europeu é o que também restaria de refinamento. Portanto, a fechadura serve para
ilustrar (ainda que não exista na imagem) a decadência de família, um resquício de
outros tempos, assim como o escravo.
Outras partes do texto confirmam as primeiras suspeitas, como o ambiente do
fundo ser a cozinha e a moringa servir efetivamente para armazenar água. Ele ainda
escreve que o estrado onde a anciã está sentada é velho e podre. No entanto, só ficamos
sabendo que esse mesmo “móvel” é a cama da mulher negra durante a noite graças à sua
descrição. E onde dormem as mulheres brancas? Segundo o texto, na rede, que serve
para ambas. Outra vez é apenas no texto de Debret que as dúvidas são dissipadas e as
possibilidades de uma interpretação livre são negadas ao observador. A ambigüidade do
signo plástico, apontada por Francastel, é aniquilada.
[...] Ambigüidade porque jamais o signo coincide com a coisa vista pelo artista, porque jamais o signo coincide com aquilo que o espectador vê e compreende, porque o signo é por definição fixo e único e, também por definição, a interpretação é múltipla e móvel (FRANCASTEL, 1993, p.97).
Afinal, não podemos entender as obras figurativas como retratos de uma verdade
única, mas como uma possibilidade de representação entre outras possíveis. Francastel
propõe que o sentido da imagem não está dado, mas se realiza cada vez que o objeto
figurativo é observado, na relação com o expectador, que não é passivo, mas também
agente nessa realização de sentidos. Porém, quando Debret coloca um texto explicativo
ao lado da gravura, minimiza as possibilidades de interpretação, fala de coisas que não
estão necessariamente na imagem (como a fechadura européia) e, dessa maneira, impõe
ao observador sentidos por ele propostos.7 Nesse sentido, apenas no texto podemos
encontrar respostas para outras dúvidas, como por exemplo: o que as mulheres brancas
realmente fazem? Se estiverem tecendo, qual a razão desse trabalho? Seria a realização
de tecidos para venda? E a escrava, está afinal chegando ou saindo de casa? Porque há
bananas no recipiente que ela carrega sobre a cabeça? O que ela entrega a sua senhora?
Apenas no texto é possível sanar tais dúvidas:
7 A relação entre imagem e texto na obra de Debret é complexa, sobretudo se enquadrarmos sua obra no gênero “viagem pitoresca”, onde a forma em si é exatamente texto + imagem. Analisamos com maior profundidade esse assunto em TREVISAN, 2005, pp. 94-114.
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[...] sobre o chão úmido, um estrado velho e quase podre, sobre o qual está sentada a velha mãe, ocupada em fiar algodão, último recursos compatível com a sua idade. [...] No primeiro plano a moça, ainda na flor da idade, sentada numa esteira, emprega sua atividade na fabricação de rendas, com cujo produto se veste; a negra velha útil companheira de infortúnio, com seu barrilzinho à cabeça, passa o dia empregando-se como carregadora de água, a fim de juntar diariamente de seis a oito vinténs com os quais devem viver essas três pessoas. Escolhi para este desenho o momento de regresso da negra, que está entregando a sua ama o lucro do dia, do qual retirou o necessário para a aquisição de uma penca de bananas destinada à ceia frugal de todos os habitantes da casa (DEBRET, tomo I, v. II, 1978, p. 304-306).
O texto define, portanto, os sentidos do trabalho nessa residência. A anciã é quem
transforma a matéria-prima, o algodão da peneira, que está no centro do primeiro plano,
em fios, que serão posteriormente tecidos pela sua neta para que todos na casa tenham
roupas, inclusive a escrava, que por sua vez carrega água para ganhar dinheiro para o
abastecimento da casa. O triângulo se fecha, a ordem está instaurada: eis um vestígio do
velho Debret neoclássico. Se o tema não é histórico, com “H” maiúsculo, existe algo no
quadro que lembra a pintura de Debret para a coroação de d. Pedro [Figura 3], uma obra
típica do gênero.
3. Jean Baptiste Debret: Coroação de D. Pedro I, 1828, litografia, in Voyage pittoresque et historique au Brésil..., 1834-39. (Reproduzido do CD-ROM Rio natureza e cidade - Museus Castro Maya/IPHAN).
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Assim como na representação da coroação do imperador, a cena da família pobre
também é construída de forma lateral e a perspectiva linear está presente8. O estrado
velho e podre da senhora pode ser visto como um trono, e o cajado que ela segura para
fiar pode ser comparado a um cetro. Os demais personagens estão à frente dessa
senhora. Apesar de tal comparação parecer desproporcional, não se pode negar que
existe uma hierarquia na obra, ainda que seja apresentada sob a forma de uma
decadência, ou de uma “degeneração”, termo não utilizado por Debret nesse caso, mas
recorrente em seus textos sobre o Brasil. É óbvio que não se trata de uma pintura
histórica, o que seria uma afirmação absurda, seja por causa do tema escolhido, pela
técnica empregada na obra original (aquarela) ou pelas suas dimensões (16,0 x 21,9
cm). Uma pintura histórica pressupõe inúmeras regras de elaboração, seja quanto à
técnica (geralmente pintura realizada a óleo e em dimensões maiores) quanto ao tema
(de grande impacto, como batalhas, cerimoniais, histórias bíblicas ou mitológicas, etc).9
Mas é inegável que há aqui um resquício do gênero. Mas, diferentemente das
verdadeiras pinturas históricas realizadas por Debret no Brasil, essa aquarela de tema
prosaico coloca os personagens em primeiro plano, deixando o ambiente como algo
secundário. Nada aqui se assemelha a uma cidade em progresso, como o percebido nas
pinturas históricas do artista. Tudo aqui é decadência, e o que resta é uma hierarquia,
rigidamente estabelecida, e o trabalho, como outro elemento mantenedor da ordem.
Apenas para desenvolver essa idéia, citarei o exemplo fornecido por T. J. Clark em seus
estudos sobre a arte de Manet e seus seguidores. O autor comenta que em Paris, no final
do século XIX, com as reformas urbanas do Barão de Haussmann, as ruas se
esvaziaram, ou seja, todos os pequenos comerciantes e prestadores de serviços sumiram.
Seus críticos diziam que, com isso, deixou de haver qualquer tipo de ordem simbólica, e
as ruas deixaram de existir:
8 Falar em perspectiva linear significa nos remeter ao sistema de representação desenvolvido pelos pintores do Renascimento, sobretudo a partir de Giotto (Cf. GOMBRICH, 1972, p. 150). Essa construção em perspectiva revolucionou a maneira de se realizar pinturas, baseado no esquema do espaço cúbico-cenográfico, termo utilizado por Pierre Francastel (Cf. FRANCASTEL, 1990, pp.287-288). Segundo o autor, esse sistema de representação começou a decair a partir do final do século XIX, no impressionismo. 9 A pintura de história era o gênero mais elevado dentro da tradição acadêmica. Seus temas favoritos eram as grandes cenas de batalha, de coroação, da mitologia ou bíblia (Ler, a respeito, WIND, 1986, pp.88-113). Debret inaugurou oficialmente o gênero no Brasil, e teve como discípulos Araújo Porto-Alegre (1806-1879) e Simplício de Sá Rodrigues (1785-1839), entre outros.
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No tempo em que as ruas eram saudáveis, os guias de viagem eram unânimes em dizer, havia milhares de pessoas a exercer suas atividades nas calçadas. Floristas e vendedores de feixes de lenha; entregadores de água, meninos de recados, comerciantes de roupas usadas, afinadores de órgãos, mascates, almoxarifes, acrobatas, lutadores, sucateiros, coladores de cartazes, acendedores de lampião, carregadores a serviço do mercado e das lojas, carregadores contratados por hora; [...] (CLARK, 2004, p.94).
Clark se alonga na lista das atividades que desapareceram das ruas de Paris com
as reformas de Haussmann, e como isso significou, para muitos, o fim da ordem
simbólica que sustentava aquele espaço social. A meu ver, ainda que Debret esteja em
um contexto totalmente diferente, o trabalho, sobretudo do escravo, é o que sustenta a
ordem e o paradoxo de uma arte neoclássica, nesse meio10. Essa é a saída encontrada
por Debret para dar alguma ordem àquela sociedade, permeada por tantos contrastes.
Por outro lado, uma obra como essa denuncia a enorme falácia que é defender, ao
mesmo tempo, a idéia de uma sociedade na “marcha regeneradora da civilização”, uma
espécie de lema que orientava Debret, percebido, sobretudo, nos textos do livro Viagem
pitoresca e histórica ao Brasil. Na imagem ora analisada, deparamo-nos com uma
sociedade decadente, miserável, onde o escravo é o responsável pelo sustento de toda
uma família de brancos pobres, num “momento em que economicamente cessam, na
prática, as diferenças entre brancos e negros” (NAVES, 2001, p.91, grifos do autor). E
isso está denunciado na imagem, não apenas por sabermos (em grande medida, graças
ao texto de Debret) que se trata de um negro de ganho, mas porque é essa escrava que
sustenta o espaço vertical da composição: ela funciona como um pilar. Em um outro
momento, Debret diria uma frase muito mais coerente com essa “realidade” e com essa
imagem: “Tudo se assenta pois, neste país, no escravo negro [...]” (DEBRET, 1978,
tomo I, v.2, p.139-140). Como escreve Roberto Schwarz: “Toda a ciência tem
princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o
trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão”
10 Há muitas gravuras de Debret sobre os negros de ganho presentes nas ruas do Rio de Janeiro, o que reforça essa idéia.
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(SCHWARZ, 2000, p.11).11 Dessa realidade Debret não conseguiria escapar. E a
aquarela a seguir é ainda mais emblemática a esse respeito.
Negra com tatuagem vendendo cajus
4. Jean Baptiste Debret: Negra com tatuagens vendendo cajus (Nègresse Tattouée vendant des fruits de cajous), 1827, aquarela, 15,7 x 21,6 cm, MEA 0185. Acervo do Museu da Chácara do Céu/Fundação Raymundo Ottoni de Castro Maya/IPHAN, Rio de Janeiro. (Reproduzido de DEBRET, 1989b, prancha 47).
Nas pinturas a óleo, como já foi apontado, Debret coloca o negro como acessório
em cenas cuja monumentalidade histórica, como em Aceitação provisória da
Constituição de Lisboa (Figura 1), não permitiria maior destaque. Em suas aquarelas,
contudo, os personagens humanos ganham evidência, ainda que, em grande parte delas,
ainda vemos o negro como adereço, como personagem secundário de uma trama em que
seu papel muitas vezes é explicitar o grau de riqueza material de seus donos. Contudo,
na aquarela analisada a seguir, algo novo acontece: um personagem negro, além de
ocupar o primeiro plano, é o objeto principal da obra, seu protagonista. Trata-se de
11 Schwarz esclarece que este argumento é o resumo de um panfleto liberal contemporâneo de Machado de Assis, chamado O Futuro, do qual Machado era constante colaborador.
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Negra com tatuagens vendendo cajus (Figura 4). Com essa obra, finalizamos esta
análise, que fala diretamente sobre os contrastes sociais que permeiam algumas obras de
Debret e sobretudo o papel atribuído ao escravo negro nessa trama de relações sócio-
econômicas. Em verdade, mais do que encerrar a discussão, essa imagem visa
justamente problematizar uma questão: como inserir o escravo na representação de uma
sociedade que caminhava rumo ao “progresso” ou à “civilização”, como defendia
Debret através de seus textos? Passemos à análise da obra.
Observa-se três personagens, todos negros, ocupando o espaço plástico da singela
aquarela: duas mulheres no segundo plano, uma delas, com um cesto de melancias sobre
a cabeça, oferece uma galinha à outra, sentada de costas para quem observa a cena. Ao
fundo, quase apagada, vemos uma paisagem marítima. No primeiro plano está a
personagem principal, que é a mulher negra com o cesto de cajus. Na verdade, o cesto
de cajus está exatamente no centro da imagem, na linha inferior da aquarela, mas nem
por isso consegue chamar tanto a atenção a ponto de confundir o observador: a imagem
mais importante é a da negra vendedora, e tudo mais à sua volta efetivamente se torna
secundário, graças à sua expressão e graciosidade, além da “atmosfera límpida [que]
acentua os seus contornos” (NAVES, 2001, p.91, interpolação minha). Sentada sobre as
pernas, veste uma saia azul, blusa branca e turbante amarelo-alaranjado. Ela tem uma
aparência muito saudável, não sendo em nada parecida com a escrava esquelética da
família pobre da gravura anterior. Ao contrário, a sua imagem sugere certa
sensualidade, sobretudo por causa de sua blusa deixar o ombro esquerdo à mostra.
De forma geral, como uma primeira impressão, essa obra lembra a pintura
Portrait d'une femme noire (Retrato de uma mulher negra), de Marie-Guillemine
Benoist (1768-1826) (Figura 5). Nessa obra, exposta no salão de 1800, em Paris, uma
mulher negra é figurada sentada em uma poltrona forrada com tecido azul. Suas roupas
são panos enrolados ao redor do corpo, presos com um laço vermelho vivo sob seus
seios, sendo que um deles fica totalmente à mostra e dá à obra uma atmosfera
sensualíssima. Usa um turbante na cabeça, brincos de argola, e olha fixamente para o
espectador. A obra é de uma higiene neoclássica exemplar, suas linhas são definidas e o
contraste cromático entre a mulher e o fundo não denotam qualquer mistura entre ela e o
ambiente, do qual realmente não parece fazer parte. Seu olhar não revela emoção.
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Assim como Debret, Marie-Guillemine Benoist foi aluna de Jacques Louis David12,
principal representante da pintura neoclássica na França, e valeu-se das lições do mestre
para realizar uma obra tipicamente neoclássica. Aqui cessam as possibilidades
comparativas entre esta obra e a aquarela brasileira de Debret. Ao contrário da mulher
de Benoist, com sua postura rígida, a vendedora de Debret está sentada no chão de
forma mais espontânea, apoiando a cabeça com o braço, que por sua vez se apóia em
suas pernas (seria um resquício do comportamento comum em sua terra natal? Suas
tatuagens e pinturas
faciais sugerem um forte
vínculo com esse passado
tribal, provavelmente
recente).
A mulher de
Benoist parece ter sido
literalmente inserida em
um ambiente alheio ao
seu, enquanto a
protagonista de Debret
parece estar fisicamente
imersa naquele espaço. No entanto, a modelo de Benoist difere da de Debret por ser
sujeito da ação, como alguém que está posando: o seu olhar fixo, a intenção do olhar, a
faz indagar o espectador. Não está ali uma mulher em situação de sujeição, mas de
provável escolha. Ao contrário da mulher de Debret que também parece alheia à função
do retratista e recebe a mesma luz que o conjunto dos elementos distribuídos no quadro
(aliás, o mastro do atracadouro – em cimento atrás dela – tem o mesmo tamanho e
importância na composição da cena, o que, de forma geral, garante certo equilíbrio à
cena, mas lhe tira o destaque merecido). Se pensarmos na questão do movimento
burguês na França neoclássica, diríamos que em Benoist temos a cidadã, a pessoa. Aqui,
o indivíduo reduzido à paisagem, à condição geral, muito próximo do objeto. Seu olhar
não é o de sujeito da pintura e nem da história. Essa hipótese é reforçada pelos títulos
atribuídos as imagens: a obra de Benoist fala em uma “mulher negra” (femme noire), ao
12 Ela também foi aluna de Élisabeth Louise Vigée-Le Brun (1755-1842).
5. Marie-Guillemine Benoist: Retrato de uma negra (Portrait d'une femme noire) C. 1800. Óleo sobre tela, 81 x 65 cm. Louvre, Paris.
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passo que Debret chama sua protagonista apenas de “negra” (nègresse), ou seja, um
adjetivo no lugar de um substantivo, logo, certo desprezo por seu caráter humano.
Na aquarela, Debret oculta os seios de sua protagonista, o que não diminui o grau
de sensualidade da imagem, ao contrário, tal opção pode até torná-la mais sensual, já
que, não mostrando os seus seios, pode atiçar a curiosidade do espectador. Seu rosto é
pintado com alguns símbolos em tinta branca, e seu braço possui desenhos mais
escuros. Certamente tais adornos são as tatuagens citadas no título da aquarela, e
denotam o forte vínculo com sua cultura de origem.
Percebe-se que se trata de uma vendedora de cajus, o que já é anunciado pelo
título. Vemos o cesto logo no primeiro plano, sobre a saia da mulher. Mas ele ainda está
cheio, talvez o dia não esteja sendo bom para as vendas. Seria essa a razão de seu olhar
melancólico e entediado? Sentada no chão, sobre as pernas, e cesto no colo, a vendedora
apóia a cabeça com a mão e seu olhar segue diretamente para quem a observa. Supondo
que ela esteja olhando para um transeunte, porque não lhe oferece um caju? Como
vemos, a outra vendedora, ao fundo, parece muito mais determinada em vender ou
simplesmente exibir seus produtos, sejam eles galinhas ou melancias. Mas não é esse o
caso de nossa protagonista. Seu olhar é desinteressado, perdido, e sugere uma
insatisfação com sua condição. Debret, com essa aquarela, podia almejar simplesmente
representar a rotina dos escravos de ganho das ruas do Rio de Janeiro, e a dinâmica que
lhes permitia vender de tudo, a fim de levar, ao fim do dia, o dinheiro de seu trabalho ao
seu senhor.13 Vimos um exemplo disso na gravura anterior (Família pobre em sua
casa), mas aqui algo diferente é revelado: podemos perceber claramente a expressão de
seu rosto, e sobretudo seu olhar perdido. Como a aquarela não foi selecionada para
compor o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, não há nenhuma descrição
literária do artista sobre essa obra, o que a torna mais intrigante ainda. Resta aos
observadores, exclusivamente, a tarefa de decifrar o significado daquele olhar, de onde
parte toda a expressão da obra. Para Rodrigo Naves, o “alheamento tristonho” dessa
vendedora revela uma “falta de adesão a uma existência servil. [...] Como seus cajus, ela
também parece estar à venda, disponível como uma mercadoria qualquer” (NAVES,
2001, pp. 77-80). Em relação à interpretação de Naves, não penso que a escrava, pelo
13 Para uma discussão mais aprofundada sobre as aquarelas de Debret sobre os escravos de ganho do Rio de Janeiro, consultar NAVES, 2001, pp.41-129.
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ar tristonho, esteja mais à venda do que todos os outros que compõem a obra de Debret.
É por essa razão que concordo em parte com a afirmação do crítico, pois uma leitura
possível dessa aquarela é a da insatisfação do negro com sua condição – é por isso que
afirmei anteriormente que a escrava estava fisicamente imersa naquele espaço, porque
sua alma, a julgar pelo olhar, suas pinturas tribais e sua postura, estava muito distante
dali, em sua terra de origem. Assim, estando materialmente presa ao mundo servil,
ainda que sua alma estivesse almejando outra situação, essa escrava é a materialização
da descrença de Debret quanto a uma mudança nesse sentido, quanto a uma
transformação da condição servil no Brasil. Por outras palavras, denota a estagnação dos
homens e mulheres negros e sua cristalização como mão-de-obra e, ao mesmo tempo,
pilar daquela sociedade. Contudo, por mais que a situação fosse em tudo adversa para o
escravo, não havendo objetivamente nada na ocasião que pudesse mudar sua condição,
o olhar da vendedora de cajus sugere uma reticência – fisicamente, contudo, ela está
estática, ainda que sua inclinação para frente revele o peso que carregava nas costas: a
escravidão. Desse modo, mais do que “progresso”, essa imagem denota “estagnação”.
Talvez isso explique sua ausência no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. De
qualquer forma, a existência da escravidão era um entrave para os planos de Debret em
mostrar para os franceses um país “regenerado” – e seria ele mesmo o primeiro a se
perder nessa falácia, ao realizar uma imagem tão bela e triste como Negra com
tatuagens vendendo cajus. Pois a arte, diria Picasso, não é uma verdade, mas sim
“uma mentira que nos permite perceber a verdade. Ao menos a verdade que nos é dada
a perceber”.14
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14 Picasso, apud Menezes, 1997, p.10.
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