Debret, Viajante

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    UNIVERSIDADE

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    DEBRET, VIAJANTE

    Thiago CostaIFMT – campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda

    Mestre em História (UFMT)

     [email protected]  [email protected]

    RESUMO

    As caracterizações de Jean-Baptiste Debret enquan-to artista-viajante são bastante controversas. Mesmo comoum passante-cante – na expressão de Sandra Pesavento –,

    não há dúvidas que em muitas de suas imagens brasileiraso artista de Paris manifestou um alheamento no olhar típicodo visitante estrangeiro. Nas gravuras do Voyage pittoresque nota-se o interesse do autor por aqueles motivos caros aosartistas-viajantes – como a representação da paisagem e apintura costumbrista  –, bem como as dívidas para com osrelatos de naturalistas que percorreram o Brasil na primeirametade do século XIX. Assim, ao tomar algumas das repre-sentações legadas pelos diversos viajantes em trânsito pelo

    interior do país, o pintor de história também assumiu feiçõesque permitem associá-lo à gura do viajante.

    Palavras-chave: Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresqueet historique au Brèsil, viajantes.

     ABSTRACT

    The characterizations of Jean-Baptiste Debret as a tra-

    veler-artist are a quite controversial subject. Although he livesmany years in Brazil (between 1816 and 1831), in his Brazilianimages the artist has expressed in a point of view typical froma foreign visitor. In the Voyage pittoresque engravings notesthe author’s interest in themes such as the representation ofthe landscape and the costumbrista painting, as well as thedebts to naturalists reports that came to Brazil in the earlier19th century. Thus, to take some of these representations for-mulated by many travelers in transit through the country, the

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    history painter also assumed features that allow associates him with Trave-ler gure.

     Keywords: Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brè-sil, travelers.

    INTRODUÇÃO

    Dean-Baptiste Debret chegou ao Brasil em março de 1816 apósconstruir carreira prossional na Paris de nais dos Setecentos.Discípulo de Jacques-Louis David, o mais inuente artista do ne-

    oclassicismo francês à época, e pintor de Napoleão Bonaparte, Debretparticipou ativamente nos Salões parisienses cujas premiações contribuí-ram para um relativo reconhecimento do seu nome naquele espaço. Já

    no país americano, atuou como pintor da corte e professor de pinturahistórica, e entre as suas principais realizações conta-se a fundação daAcademia Imperial de Belas-Artes (A.I.B.A.), em 1826, e a organizaçãodas duas primeiras exposições de artes plásticas do país, em 1829 e 1830.

    Em meados do ano de 1831, após estadia de quase 16 anos no Riode Janeiro, Debret nalmente deixou o Brasil. Mas o país americano ja -mais deixou os pensamentos do artista. Novamente na França, o pintorde história deu continuidade ao projeto que de fato iniciara anos antes –ao executar centenas de aquarelas pelas ruas da então capital do impé-rio brasileiro –, preparando o material visual que formaria a grande obrade sua vida: o monumental Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, ou“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”.

     VOYAGE AO BRASIL

    O “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” de Jean-Baptiste Debret foi edi-tado originalmente em vinte e sete fascículos, de acordo com o prospec-to publicitário da obra que circulou em Paris em 1839, vale dizer, quandoo livro-álbum já havia sido publicado integralmente. Valéria Lima armaque os folhetos foram encaminhados à Academia Real de Belas-Artes daFrança a partir de janeiro de 1834 e que as entregas terminaram em junhode 1839.

    [...] em janeiro de 1834, Debret encaminha o primeiro fascículode sua Viagem à Academia Real de Belas-Artes. Em 16 de agostodesse mesmo ano, o secretário da academia registra o envio doúltimo fascículo do primeiro tomo da obra [...]. Os próximos regis-tros datam de novembro de 1835 e 18 de junho de 1836, sendo

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    que nesta última data que Debret envia à academia o quinto eo sexto fascículos do segundo tomo de sua Viagem. Em maio de1837, Debret dá início ao envio dos fascículos referentes ao ter-ceiro tomo, volume que só iria concluir entre abril e junho de 1839(LIMA, 2007, p. 141).

      Encontramos outra referência para o formato da obra em fascícu-los em Rubens Borba de Moraes. Segundo Borba de Moraes, “o trabalhode Debret aparece em 26 fascículos, no período que vai de 1834 a 1839.Foram vendidos a 208 francos, com pranchas em preto e branco, e 416francos, com pranchas coloridas. Havia muito poucas cópias coloridasna época” (MORAES apud LIMA, 2007, p. 171). Contudo, a carta de pro-paganda do álbum adverte que os trabalhos estavam concluídos já emdezembro de 1838 e que seu conjunto formava três volumes. “A obraforma três volumes e compõem vinte e sete entregas [...] Cada entrega,

    em formato in-fólio, é composta de seis pranchas e um texto explicativo”(DIDOT apud BANDEIRA e CORRÊA DO LAGO, 2008, p. 58). Além de discri-minar os preços e os assuntos de cada folheto, o paneto destacava averacidade das informações e a riqueza temática da obra.

    Senhor Debret [...] passou dezesseis anos vivendo no Império brasi-leiro para realizar a mais completa coleção de documentos sobrea situação física e moral deste país. Ao mesmo tempo naturalistae historiador, engenheiro de estruturas e moralista, além de pintorsempre el, ele traçou um imenso quadro onde assistimos a cada

    passo da civilização do homem selvagem no meio da mata vir-gem do Brasil.Vasto como um todo e completo em seus detalhes, esta obra in-teressa tanto ao naturalista, como ao jornalista e ao historiador.O primeiro volume é dedicado à população brasileira ainda sel-vagem e às orestas virgens.O segundo volume compreende a indústria em geral.O terceiro volume contém tudo o que se refere à instrução públi-ca, culto religioso, eventos políticos e, nalmente, às festas e ceri-mônias, e retratos dos principais personagens que aí têm gurado.O livro é completado pelo estado das belas artes no Rio de Janei-

    ro (idem, ibidem)¹.

    A versão integral da primeira parte da obra brasileira de Debret saiuem 1834. Contou com 48 pranchas litográcas e o mesmo número deimagens, incluindo dois cadernos anexos: Florestas virgens do Brasil e Es-tatística vegetal, cada qual com seis gravuras de temas da ora brasilei-ra. O artista dedicou esta parte inicial da sua obra à natureza, a estudosbotânicos e ao universo indígena. No segundo volume, de 1835, o artistareuniu 74 imagens em 49 pranchas. Ou seja, aqui o artista incluiu em uma

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    única folha duas e até três estampas. Nas gravuras 41, Negociante de ta-baco em sua loja, e 42, O colar de ferro, castigo dos negros fugitivos (DE-BRET, s/d, p. 304 e 311), o artista representou em cada lâmina três cenasdistintas, todas voltadas para o emprego do escravo africano. Sem dúvi-da, as ilustrações das atividades laborais do negro e do mestiço, escravo

    ou livre, constituem seu principal motivo. Mas também percebemos nestaparte da obra a incorporação de outros assuntos, como cenas da intimi-dade cortesã, por exemplo, em Um funcionário a passeio com sua famíliae Uma senhora brasileira em seu lar  (idem, p. 160 e 166). Já o último vo-lume, publicado em dezembro de 1838 e comumente creditado a 1839,compreendeu 96 imagens distribuídas em 54 folhas. Quase a totalidadedas pranchas contou com duas, três e até quatro ilustrações. A litograa13, Arquiduquesa Leopoldina, I Imperatriz do Brasil, contém cinco estam-pas! São três retratos,  Arquiduquesa Leopoldina, Rainha  [sic] Carlota, e

    Princesa Amélia de Leuchtenberg,II Imperatriz do Brasil

    , e dois registrosde corpo inteiro, Vestido de gala (retrato de corpo inteiro de D. Carlota Joaquina) e Vestido de gala (idem, p. 520). Verica-se, com efeito, nestaterceira parte, uma variedade temática maior que nos conjuntos anterio-res: peças da cultura material cortesã, moedas e insígnias reais, manifes-tações da religiosidade da população, batismos, casamentos, cortejosfúnebres, ao lado de episódios da história política do país.

    Em seu conjunto, o álbum de Debret sustenta um discurso sobre oBrasil vinculado ao desejo do artista em expor “a marcha regeneradorada civilização” (DEBRET, s/d, p. 659). Os motivos escolhidos que compõem

    cada um dos três volumes, a seleção das aquarelas dentro do conjuntomaior do seu trabalho brasileiro e que, uma vez gravadas, formariam ocorpus imagético do Viagem pitoresca, assim como a própria organiza-ção – das estampas e dos textos – no interior do álbum, satisfazem a umsentido cronológico de ordem narrativa. Deste modo, as opções temá-ticas de Debret em seu álbum não foram arbitrárias: o mundo naturale indígena, no primeiro volume, se apresenta enquanto o universo dasorigens, que na sua compreensão, é anterior à cultura e a “civilização”(idem, ibidem). No entanto, ao longo de suas folhas nota-se uma mudan-

    ça gradual na representação do índio do Brasil, cada vez mais integradoa sociedade ocidental instalada nos trópicos. Na segunda parte do Via-gem, Debret enfatizou a gura do escravo negro e mestiço, cujo laborcompulsório submetia-se aos devires da indústria, os primeiros reexos dacolonização portuguesa, i.e., europeia. E, enm, na última parte, dedi-cada à história política e religiosa, vê-se o estabelecimento do aparelhopolítico do império, independente de Portugal, moderno e civilizado, emgrande medida pela interferência do engenho europeu. Essa represen-

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    tação visual do devir histórico do Brasil, concebida por Debret, foi inter-pretada pela historiadora italiana Chiara Vangelista como um trabalho“organizado em uma cronologia por assim dizer sincrônica” (VANGELISTA,2008, p. 218); é a visualização que permite uma apreensão imediata devários séculos de história.

      A brevidade com que Debret organizou e publicou os dois primeirosvolumes demonstra que o artista francês tinha planos para o álbum aindano Rio de Janeiro. Não há, porém, registros sobre o instante preciso emque o pintor decidiu compor uma obra ilustrada sobre o país americano.Valéria Lima argumenta que na correspondência que Debret mantevedurante sua morada no Brasil apreende-se a ideia do Viagem já no co-meço de sua residência, em 1816, e que a partir de então executou umasérie de aquarelas de tema brasileiro. É dessa época também o Carnetdes costumes du Brésil, a caderneta particular de desenhos de Jean-Bap-tiste Debret, publicado em versão fac-similar em 2006. Nesses croquis De-bret antecipa motivos recorrentes em seu álbum, sobretudo a profundaimpressão causada pela gura do negro. Já em 1820, Debret elaborouuma página de rosto com a legenda Voyage au Brésil. Par Jean B...te [sic]Debret. Peintre d’histoire (Viagem ao Brasil. Por João B...te Debret. Pintorde história). Na folha, percebemos no campo superior o brasão do ReinoUnido de Portugal, Brasil e Algarves, o que demonstra sua feitura posteriorao ano da elevação da antiga colônia a reino unido (1817) e anterior àindependência (1822). Na parte inferior do desenho, os algarismos arábi-cos são inscritos com uma omissão proposital, “1816 au 18...”. As reticên-

    cias indicam que autor ignorava o tempo de sua permanência no país. Ea ausência dos termos pitoresca e histórica, é reveladora! Logo, supõe-se

    que a publicação do álbum em forma deliteratura de viagem seja resultado das su-gestões dos irmãos Didot, com a anuên-cia ou, quiçá, por iniciativa do próprio ar-tista, com o que se atendia aos interessesdo mercado consumidor, dado a granderepercussão deste gênero na Europa.

    A casa editorial pela qual foi publi-cado o álbum brasileiro de Jean-BaptisteDebret pertencia ao prestigiado tipógra-fo e editor francês François Ambroise Fir-min Didot (1764-1836). Ao longo do séculoXVIII a rma tornou-se um grande impérionos negócios da impressão literária, massomente a partir do nal da década de1820 que se transformaria na mais presti-

    Figura 01: Debret, J.B. “Tipos demáscaras indígenas”. Detalhe.Em: Viagem pitoresca e históricaao Brasil. Paris, 1835; prancha 27.

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    giada e rica casa de edição e tipograa da França (BANDEIRA e COR-RÊA DO LAGO, 2008, p. 123). No tempo de Debret, o negócio da família

     já era uma sólida e bem-sucedida empresa editorial, de tipograa e li-vraire, responsável por importantes trabalhos, de traduções de autoresclássicos, como Virgílio, e de populares romancistas europeus do século

    XVIII. No âmbito da literatura de viagem, desde meados dos setecentosos Didot eram editores da conhecidíssima Histoire générale des Voyage(1746-1789), do Abade Prévost, uma preciosa coleção de literatura deviajante bastante difundida na França da época. Deste modo, supõe-seque para Didot o álbum de Debret consistia em uma boa oportunidadede apresentar o exótico e distante país americano, o Brasil, ao curiosopúblico europeu.

    O vínculo entre Didot e Debret é um tanto nebuloso, como quasetodas as relações pessoais do artista francês. Outra dessas cooperaçõesà obra de Debret que permanece um mistério aparentemente insolúvelé o papel da obscura gura da Viscondessa Pauline de Portes. Não hánas fontes consultadas material suciente que nos permita traçar o perldesta personagem, sem dúvida, muito importante para a compreensãomais abrangente do trabalho do pintor. No Viagem pitoresca, a supostaViscondessa recebeu os créditos enquanto co-autora em 41 imagens dis-tribuídas em 27 pranchas litográcas ao longo do álbum, um número ex-pressivo. Na primeira parte da obra, observamos o maior número de folhasque incluem seu nome, ao todo dez. No segundo e no terceiro volumesvericamos sua participação em nove e oito litograas, respectivamente.

    É difícil, no entanto, identicar traços de identidade nos registros em queDebret deixou constância do seu auxílio. Quase a totalidade das gravu-ras do primeiro volume nas quais gura o nome da Viscondessa refere-sea estudos botânicos, como nas Plantas do Brasil e Coqueiro Barrigudo. Hásomente duas ilustrações com outros assuntos: uma estampa voltada paraa ilustração de “índios civilizados”, Caboclas lavadeiras do Rio de Janeiro,na prancha 22, e a prancha 26, sobre a habitação indígena, Conjunto dediferentes formas de choças e cabanas. No segundo volume do álbum,a participação desta misteriosa colaboradora abrange desde cenas detipos da população, na prancha Armazém de carne seca, até atividadeslaborais de escravos em Pequena moenda portátil. Vale lembrar que amaioria das aquarelas que serviram de modelo para as litograas foramelaboradas no Brasil, ou seja, já estavam prontas quando Debret retornoua França. Logo, é possível que seu auxílio tenha se dado no processo degravação das imagens, ainda que o artista tenha sido o autor da maioriadas gravuras embutidas no álbum.

    De qualquer modo, ao defender a co-autoria, admitindo a interven-ção em seu trabalho de uma suposta lha da nobreza, Debret podia es-

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    tar agindo tanto por gentileza comopor reconhecimento por um auxílioefetivo. Claro está que as representa-ções visuais incorporadas ao Viagem são de autoria de Jean-Baptiste De-

    bret, porém, nota-se o destaque queo pintor dedicou à participação damisteriosa Pauline de Portes.  Com efeito, tanto no Rio de Ja-neiro quanto em Paris nosso pintorcontou com um círculo de colabora-dores que direta ou indiretamente oauxiliaram na confecção do álbum.O artista admite tal condição já nostextos introdutórios do Viagem pito-

     resca, quando arma que em função da atividade professoral que de-sempenhava na Academia de Belas-Artes pôde colher informações “emabundância” a respeito do país (DEBRET, s/d, p. 13). E uma das principaisfontes do artista para a sua interpretação particular do Brasil foi o grandelegado de narrativas – imagéticas e textuais – de viajantes europeus quecircularam pelo interior brasileiro.

    DEBRET E OS VIAJANTES

      Na segunda metade do século XVIII a literatura de viajantes haviase tornado um fenômeno editorial de grandes proporções, sobretudo emfunção da marcada curiosidade cientíca e do interesse taxonômicopelo mundo natural, próprios do período. E Debret conhecia esse tipo depublicação quando chegou ao Brasil. O pai de Jean-Baptiste, JacquesDebret, era um curioso diletante das ciências naturais e dos relatos deviagem (LIMA, 2007, p. 69). Como funcionário da burocracia real – escri-vão do parlamento parisiense –, pertencente à próspera classe médiaburguesa, Jacques Debret era consciente dos temas e assuntos correntes

    naquele momento. Assim, pensamos que não foi no país americano queo artista francês tomou contato com as obras de viajantes, mesmo que,quiçá, tenha lhes dado maior atenção ao perceber sua utilidade para aconfecção do próprio álbum.

    Ao longo da década de 1820, obras de diversos naturalistas que es-tiveram em trânsito pelo interior brasileiro chegam ao país, em particulara publicação Viagem ao Brasil do príncipe Maximilano de Wied-Neuwied(Munique, 1820-1821), e o Atlas ilustrado da narrativa de viagem dos cien-tistas bávaros Spix e Martius (Munique, 1823-1831).

    Figura 02: SPIX e MARTIUS. “Festlicher zug der Tecunas”. Litograa. 46 x 59cm. Em: Atlas zur Reise in Brasilien. Mu-nique, 1823-1831. Prancha 28.

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      O zoólogo Johann Baptist von Spix (1781-1826) e o botânico CarlFriedrich Philipp von Martius (1794-1868) aportaram no Brasil em 1817 juntoà missão áustro-bávara que acompanhava a princesa austríaca Leopol-dina. Nos três anos que permaneceram no país os naturalistas percorre-ram cerca de 10 mil quilômetros, colhendo numerosas peças e fazendo

    valiosas observações a respeito da fauna, ora, clima, geograa, econo-mia, etnologia, e linguística indígena (OBERACKER, 1976, p. 125-27). A pu-blicação dessa empresa, e em especial das pranchas ilustradas do Atlas,foram largamente aproveitadas por Debret.

    Este é caso, por exemplo, da prancha 27, Tipos de máscaras indí-genas (Figura 01) embutidas no primeiro volume do álbum. A estampaapresenta dois desenhos dividindo uma única folha: na parte superiorestá representada uma série de máscaras e na parte inferior, uma cenade um préstito de indígenas. Composta a partir de estudos à aquarela,a imagem principal, que ocupa a maior parte da lâmina e dá nome àprancha, representa oito máscaras usadas pelos indígenas em dias defestas. Debret avaliou as máscaras com uma forte carga negativa:

    Só faltava, em verdade, ao homem selvagem industrioso, depoisde ter esgotado todos os recursos da tatuagem, a m de se tornarhorrível, fabricar máscaras com forma de cabeças de animais detoda espécie, único meio de reproduzir sicamente a aparênciade uma monstruosidade mais pavorosa, e por isso mesmo dignade toda a admiração dos espectadores nos dias de festa (DEBRET,s/d, p. 90).

    À continuação, o artista revelou tê-las copiado entre as peças en-contradas no acervo do Museu Imperial de História Natural, nas quais

    identicou semelhanças com asapresentadas por Spix e Martius.Segundo o autor, “Essas más-caras pertencem à coleção doMuseu Imperial de História Na-tural do Rio de Janeiro, onde

    as desenhei”, e “apresentam omesmo caráter que as aprecia-das por Spix e Martius entre osselvagens tacunás” (idem, ibi-

    dem). Conclui-se então que foram as consultas ao Atlas de viagem dospesquisadores bávaros e o livre acesso ao Museu Imperial que lhe servi-ram de inspiração para a estampa.  Já a imagem menor, que ocupa a parte inferior da prancha litográ-ca, apresenta um cortejo indígena, ocasião na qual as máscaras eram

    Figura 03: Debret, J.B. “Caça ao tigre da o- resta virgem”. Detalhe. Em: Viagem pitorescae histórica ao Brasil. Paris, 1835; prancha 43.

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    usadas. “Pensei que seria interessante mos-trar uma cena completa dessa espécie dedivertimento selvagem, para que se tivesseuma ideia do uso das máscaras em seme-lhantes ocasiões” (DEBRET, s/d, p. 90). É, de

    fato, a reprodução de uma cena embutidana obra de Spix e Martius, litografada porPhilipp Schmitd em Munique, a partir dosregistros textuais de Spix sobre um ritual dasociedade Tikuna (HELBIG, 2012, p. 71/72)(Figura 02). Segundo Thekla Hartmann, an-tes do bávaro apenas o naturalista baianoAlexandre Rodrigues Ferreira havia presen-ciado a cena, também fazendo anota-

    ções a respeito (HARTMANN, 1975, p. 31 e 51). Debret então copiou umaimagem de indígenas brasileiros feita na Europa, de um episódio que oartista francês não viu, mas a autoridade associada às suas referências,vale dizer, ao Atlas de Spix e Martius, permitiu a apropriação.  Observamos procedimentos similares na construção de outras ima-gens das nações indígenas do Brasil. Nos textos do Viagem, o artista nosconta que no segundo dia de perma-nência no Rio de Janeiro encontroucom viajantes que traziam “indígenasbotocudos” à Corte, e que então pôde

    “desenhá-los com cuidado, acrescen-tando a essa amabilidade informaçõestão dedignas quão interessantes acer -ca dos costumes desses índios entre osquais vivera” (DEBRET, s/d, p. 13). Não sesabe ao certo quem foi tal “viajante”,contudo, vale lembrar que as principaisreferências para a apreciação dos po-vos índios do território americano à épo-ca eram justamente as publicações dosnaturalistas bávaros e, de igual modo, oViagem ao Brasil de Wied-Neuwied. Onobre alemão percorreu o litoral do Es-pírito Santo até o sul da Bahia entre os anos de 1815 e 1817, recolhendoe sistematizando “plantas, animais, insetos, objetos etnológicos e voca-bulários de tribos indígenas”. Sua Viagem ao Brasil foi publicada em doisformatos simultâneos, um pequeno e outro grande, e teve traduções emdiversas línguas (OBERACKER, 1976, p. 123).

    Figura 05: Debret, J.B. “Família deum chefe camacã preparando-se

    para uma festa”. 32,0 X 20,0 cm.Em: Viagem pitoresca e históricaao Brasil. Paris, 1834; prancha 03.

    Figura 04: Wied-Newied, M.“Cães cercam uma onça”. Re-produção: LÖSCHNER e KIRSCH-TEIN-GAMBER, 2001.

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      Com independência de terem sido profundamente alteradas pe-los muitos gravadores que as rezeram, as estampas de Wied-Neuwiedserviram de protótipo para algumas das ilustrações de Debret. ConformeHartmann,

    Publicada em 1820-21, a Viagem ao Brasil certamente foi lida por

    Debret, oferecendo-lhe subsídios para a própria obra. E Debretrecorreu não apenas às ilustrações do príncipe, sem mencionarsequer seu nome; para informações sobre os Botocudos utilizou-seextensamente do material publicado por Wied (HARTMANN, 1975,p. 68/69).

    Em Caça ao tigre da oresta virgem (Figura 03), litograa 43 do se-gundo volume do Viagem pitoresca de Debret e que ilustra o episódio dacaptura de onças pelas forças militares, ao menos uma das três imagensque compõem a prancha foi tirada em detalhes de um motivo de Wied,nomeadamente de Cães cercam uma onça (Figura 04). Porém, os prés-timos mais impressionantes do naturalista para com as representaçõesdo nosso pintor sem dúvida são relativos ao universo indígena. As inves-tigações do estudioso com respeito especialmente aos Botocudo e aosCamacã inuenciaram as formulações que o artista francês dedicou aestas sociedades. Na prancha de número 28 no primeiro volume, Cabe-ças de diferentes tribos selvagens, Debret compôs um quadro com tipossionômicos de diversos índios e em suas linhas explicativas o artista escla-receu que “desejoso de simplicar esta obra, reuni numa mesma pranchavárias cabeças de índios de diferentes tribos, a m de tornar a coleção

    mais ampla e completa” (DEBRET, s/d, p. 68). Para as cabeças mumica-das encontramos um modelo aquarelado com três desenhos e uma ins-crição datada do ano de 1828. Thekla Hartmann arma que a aquarelade Wied-Newied, Troféu de cabeça dos Munducuru (1820), foi de fato oarquétipo do qual Debret teria se inspirado (HARTMANN, 1975, 68/69). E acontribuição do príncipe para a gravura de Debret se verica tambémnas cabeças de Botocudo de número 8, Botocudo, e a de número 10,Cabeça de Botocudo mumicada, pois, ainda conforma Hartmann, fo-ram tiradas “ambas as cópias com ligeiras modicações, da prancha pu-blicada de Wied-Neuwied, como um relance de olhar pode comprovar”

    (DEBRET, s/d, p. 68).As ilustrações na prancha 29, Toucados de plumas e continuaçãodas cabeças de índios, foram igualmente inspiradas nas observações re-gistradas pelo príncipe. A prancha complementa a anterior e apresentatrês “toucados engenhosos, cuja forma é nobre e a combinação dos de-talhes variada com a arte, [que] patenteia o luxo dos selvagens ameri-canos”. À continuação, o artista citou novamente os dois naturalistas daBaviera, Spix e Martius: “Os números 4, 6, 7 e 9 foram vistos por Spix e Mar-tius” (DEBRET, s/d, p. 96).

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      Contudo, a mais evidente correspondência de uma imagem de De-bret para com as notas e esboços feitos por Maximiliano de Wied-Neuwiedestá na gravura Família de um chefe camacã preparando-se para umafesta (Figura 05), lâmina número 3 do primeiro volume. A prancha mostrauma cena de costumes elaborada a partir das notas do príncipe de Wie-

    d-Neuwied. Na imagem, há dois espaços distintos que articulados permi-tem uma visão geral do motivo: no primeiro plano um ambiente interno,um espaço fechado À direita, com índios em posições e afazeres emble-máticos das suas condições dentro da hierarquia da sua sociedade. Naparte central, o chefe com o braço direito sustenta na vertical uma lança.Tem um adorno plumário sobre a cabeça e um chocalho preso à cintura.Abaixo de si, uma gura feminina pinta o seu pé e a sua perna, e atrás,em uma rede – objeto indígena por excelência –, outra mulher amamen-ta uma criança; à direita, mais crianças e um índio adulto que suspendeno ar instrumento sonoro. Debret sitou o “Chefe camacã” rodeado por -guras que se posicionam abaixo da sua autoridade, sobretudo as mulhe-res. No segundo plano, à esquerda da imagem, abre-se um espaço emprofundidade em que “vê-se uma grande habitação de madeira e taipa

    e os habitantes da aldeia indígena, ocupa-dos em várias atividades” (DEBRET, s/d, p. 97).  De fato, este segundo ambiente corres-ponde aos apontamentos do estudioso ale-mão, como vemos nas imagens Índio Ca-macã e Festa dançante dos índios camacãs 

    (Figura 06 e 07). Na gravura de Debret, ob-serva-se quatro personagens ao redor de umtronco, e no fundo, um grupo indígena emum cortejo ou procissão. Também palmeiras,bananeiras e o detalhe de uma habitação.Assim, pois, no que diz respeito a Família deum chefe camacã preparando-se para umafesta e às demais representações das socie-dades indígenas brasileiras, uma das fontesfundamentais de Debret foi o trabalho dopríncipe Maximilano de Wied-Neuwied.  A utilização de variadas fontes, desde

    consultas a álbuns de viagem aos empréstimos de esboços de seus alunos,assim como a coleta de informações no Museu Imperial e outros recursosconuíram no trabalho do artista. Em verdade, Debret teve poucos con-tatos com a população indígena, e os empréstimos ou citações de obrasde viajantes naturalistas tinham o sentido de suprir as carências do au-tor, oferecendo representações e notas pontuais que atendiam ao gosto

    Figura 06: Wied-Newied, M.“Índio camacã”. Reprodu-

    ção: LÖSCHNER e KIRSCH-TEIN-GAMBER, 2001.

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    europeu. Deste modo, percebe-se oprocesso de composição do Viagempitoresca pautado pela observaçãode múltiplos canais de conhecimen-to, prática partilhada pelos explora-

    dores estrangeiros, artistas e/ou cien-tistas na América, denunciando assimo caráter coletivo na confecção desuas narrativas literárias ou visuais.  É evidente que uma vez no Brasilo artista francês teve contato mais es-treito com o universo cientíco dos via-

     jantes que percorreram o continenteem busca dos povos e das paisagens.Assim, em Acampamento Noturno deviajantes, motivo vericável em Maximiliano de Wied-Neuwied, Vange-lista reconheceu “uma pequena homenagem ao viajante”, sobretudoquando o pintor ressalta o valor dos esforços que esses estudiosos empre-enderam “pelo amor à ciência”.

    Mas como não admirar mais ainda o naturalista europeu, levadopelo amor à ciência a compartilhar das diculdades do nômade,abandonando voluntariamente as doçuras do bem-estar sedutordo centro da civilização para enriquecer um dia com seus acha-dos os museus de história natural e as bibliotecas das grandes po-

    tências europeias? É preciso aqui convirmos, juntamente com obrasileiro que o admira, em que se trata de uma coragem he-róica, doravante ligada aos nomes venerados de Maximiliano deNeuwied, Augusto de Saint-Hilaire, Spix e Martius, Langsdorff e Fre-derico Celaw [sic], que eu conheci no Brasil (DEBRET, s/d, p. 240).

    Nesta breve passagem, o artista denuncia a rede de informaçõesà qual recorreu para compor seu álbum. Residente no centro do Impé-rio, o Rio de Janeiro, Debret travou relações pessoais com alguns dessesviajantes. É o caso, por exemplo, do desenhista bávaro Johann Moritz Ru-

    gendas (1802-1858), que esteve no Brasil entre 1822 e 1824 junto a expe-dição cheada pelo barão russo-alemão, Georg Heinrich von Langsdorff(1774-1852). O pintor francês também conheceu o barão Langsdorff. Istose constata pela imitação da estampa Dança dos índios da Missão deSão José na Nova Califórnia, embutida no relato que o barão fez publicarem 1811 sobre a viagem de circunavegação ao redor do mundo querealizou com A. J. von Krusenstern sob patrocínio do governo russo entre1803 e 1804. Na versão debretiana, a estampa ganhou o título de Dançados selvagens da Missão de São José.

    Figura 07: Wied-Newied, M. “Festa dan-çante dos índios camacãs”. Reprodu-ção: LÖSCHNER e KIRSCHTEIN-GAMBER,

     2001.

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      Mas a relação de Debret com os viajantes vai além do empréstimode imagens.  A literatura especializada em Jean-Baptiste Debret, nomeadamen-te os trabalhos biográcos de Ian de Almeida Prado e as publicações deJúlio Bandeira, armam que em março de 1827 nosso artista acompa-

    nhou Dom Pedro I em campanha até as regiões de São Paulo, Santa Ca-tarina, Paraná e Rio Grande do Sul, e que durante a marcha o autor teriaproduzido farto material iconográco relativo aos sítios por onde passou.Contudo, não há maiores informações ou registros sobre a viagem, alémdas numerosas aquarelas executadas, supostamente, no percurso. É alta-mente improvável que o artista tenha tomado parte nesta viagem, já queao nal do ano anterior, em 5 de novembro de1826, enm inaugura-se aAcademia Imperial de Belas-Artes, com Debret na cadeira de pintura his-tórica. Como um dos seus principais idealizadores e mestres, o pintor nãoteria deixado a escola tão logo.

    O pesquisador Jaelson Trindade em artigo de 1997 defende que De-bret jamais esteve fora das cercanias do Rio de Janeiro e que suas ima-gens sobre o Sul são elaborações baseadas em registros deixados porSellow e outros artistas-viajantes (TRINDADE, 1997, p. 98). Para Sandra Pe-savento, o autor inspirou-se nas notas dos também franceses FerdinandDenis e Auguste de Saint-Hilaire.

    Se observarmos as imagens de Debret que acompanham o livrode Denis, no que diz respeito ao Rio Grande do Sul, encontramosalguns dos relatos de Saint-Hilaire e de outros autores, agora ilus-trados! A viagem lida, contada e ouvida pelo relato de outros pas-santes é refeita pelo pintor, que xa, pelo desenho e pintura, re-presentações que iriam transformar-se em padrões de referênciaspara identicação do Brasil (PESAVENTO, 2008, p. 108/09).

    De fato, Auguste de Saint-Hilaire já era um reconhecido botânicono meio erudito francês ainda antes da publicação dos resultados de suaempresa americana. E Debret não apenas conhecia Saint-Hilaire comoo citou em dois momentos do Viagem pitoresca: em nota na introdução

    ao primeiro volume, em que menciona Jean de Lèry, Mack Graf e a Es-chwege, e na prancha de número 20, Vendedores de milho, na segundaparte do álbum, ao inserir uma “descrição feita por Augusto de Saint--Hilaire” (DEBRET, s/d, p. 27/29 e 218). Com respeito a Ferdinand Denis, oartista cita-o também em duas oportunidades dentro do álbum: quandoapresenta informações acerca da população brasileira de acordo com“dados autênticos transmitidos pelo Sr. Ferdinand Denis”, e, mais uma vez,ao defender “Denis, cujas pesquisas [sobre o Brasil] são dignas de acata-mento” (DEBRET, s/d, p. 123 e 128/29).

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      As frequentes citações e empréstimos tomados da obra de diver-sos viajantes europeus que palmilharam o interior brasileiro evidenciam aclara intenção de Jean-Baptiste Debret em alinhar-se ao amplo universodas viagens. O autor, pois, era consciente dos assuntos correntes na re-presentação do Brasil e do continente americano na Europa à época

    e, deste modo, recorreu a um conjunto variado de fontes e informaçõespara construir sua maior obra. E ao nomeá-la com o título de “Viagempitoresca e histórica ao Brasil”, o autor quis destacar um conjunto de ce-nários e motivos que, de acordo com a sua compreensão, marcavam opaís com um perl tipicamente pitoresco. Um Brasil pitoresco, portanto,para um Debret viajante.

    DEBRET, VIAJANTE

      Os viajantes guram na obra brasileira de Jean-Baptiste Debret nãoapenas nos empréstimos e nas citações, mas também como persona-gens importantes em representações nas quais que o autor querer pare-ceu incluir a si próprio enquanto gura dramática. Para Chiara Vangelista,“o viajante europeu [no original] em Debret é sobretudo o Autor mesmo,que comunica em terceira pessoa seus roteiros, seus encontros, suas sen-sações, suas emoções” (VANGELISTA, 2008, p. 205).  Com efeito, no Viagem pitoresca de Debret nota-se o perl do via-

     jante desde o primeiro volume: já na página de agradecimento o artistafaz referência à Alexander von Humboldt e, depois, na introdução, quan-do nomeia o grupo parisiense de “expedição pitoresca” e atribui a si e aseus companheiros “o entusiasmo dos sábios viajantes”. Até a última ima-gem, na gravura que fecha o terceiro volume, o “Panorama do interiorda baía do Rio de Janeiro”, que representa a paisagem da cidade do Riovista de cima do morro do Corcovado, onde, de acordo com Debret, “oviajante atinge facilmente [e] pode admirar o imenso quadro do interiore do exterior da baía” (DEBRET, s/d, p. 654).

    Ao longo do álbum, outras gravuras retratam as diferentes relaçõesestabelecidas pelo viajante europeu com a realidade americana. A te-

    mática do encontro do viajante estrangeiro com a população indígena,por exemplo, constitui o motivo central da prancha seis ainda no primeirovolume,  Aldeia de caboclos em Cantagalo. Segundo Debret, “A cenarepresenta a chegada de dois viajantes europeus, introduzidos numa al-deia de caboclos por um caçador da família visitada” (DEBRET, s/d, p. 42).Na prancha 13, Índios Guaianases, ainda nesta parte inicial do álbum, oautor registrou “o embarque de um viajante europeu acompanhado deseu escravo negro”, escoltado por guias índios, em meio à oresta monu-mental e escura (idem, p. 60).

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      Assim, no trajeto dessa longa viagem pelo Brasil pitoresco de Debret,o ator-viajante incorpora vários personagens: Debret, ele próprio, autordas representações embutidas ao álbum; o sábio naturalista, quem efeti-vamente percorreu as trilhas pelo interior do país e colheu as informaçõesque orientaram a cção do artista; e o leitor, americano e europeu, de

    então e de agora, que se deixa perder nos caminhos traçados pela ima-ginação. Uma obra, diversas viagens, muitos protagonistas.No entanto, as caracterizações de Jean-Baptista Debret enquan-

    to viajante são bastante controversas². Para Sandra Pesavento, a condi-ção de passagem dene o sujeito viajante, marcando sua percepção domundo com um pronunciado distanciamento no olhar. É bem verdadeque o autor francês transladou-se para o Brasil com expectativas difíceisde serem avaliadas, mas cuja atividade de pintor de história associou-o àfundação da Academia de Belas Artes e ao ensino artístico. Para PabloDiener, um “artista acadêmico dicilmente corresponde ao estereótipo

    do viajante [pois] os temas de seu interesse estão denidos em função deuma rigorosa escala valorativa”, enquanto que os motivos notáveis parao artista-viajante estão além do “horizonte do que a seus olhos é dignodas belas artes” (DIENER, 1996, p. 64/66). Contudo, no conjunto geral dotrabalho brasileiro de Debret, percebe-se que seus interesses transcen-diam a posição de artista do Império e/ou a de um professor de pinturahistórica. Sua prolongada estadia no país não anulou sua situação deestrangeiro, mas, ao contrário, pareceu acentuá-la, transformando-o emobservador privilegiado dos costumes e das gentes brasileiras.

    Em realidade, o longo tempo que permaneceu no Rio de Janeirogarantiu ao pintor uma signicativa autoridade – em função da maior fa-miliaridade e penetração – com respeito aos motivos e assuntos do paísamericano. Viajante-residente ou passante-cante, na feliz expressão deSandra Pesavento, o artista manifestou em suas imagens um alheamen-to no olhar típico do visitante, que “sem raízes na terra, vindo de outrasparagens, têm outros marcos de referência para apreciação, com o quese apresentam como portadores de um certo estranhamento no olhar”(PESAVENTO, 2008, p. 79). E se entre a França e o Brasil Debret percor-reu territórios circunscritos³, enquanto esteve no país americano o pintor

    circulou por fronteiras culturais diversas, deste modo pôde apreender aheterogeneidade da sociedade brasileira em representações múltiplasde uma sociedade predominantemente negra, índia, mestiça, de aspi-rações européias. Para Pablo Diener, “Esta consciência de encontrar-seentre dois mundos é característica do artista-viajante” (DIENER, 1996, p.67). E, Debret, o artista da Ilustração, revestiu-se com o olhar do peregrinoromântico em muitos momentos de sua obra, recorrendo constantemen-te às representações desses personagens em trânsito para compor seuálbum pitoresco e histórico sobre o Brasil.

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    NOTAS

    ¹ No original: “M. Debret, [...] a consacré un séjour de seize ans dans l’em-pire brésilien à la collection la plus complete de documents sur la situationphysique et morale de ce pays. Tour à tour naturaliste et historien, staticien

    et moraliste, mais peintre toujours et peintre dèle, il a tracé un immensetableau ou nousassistons à chaquepas de la civilisation de l’homme sau-vage au milieu dês forêts vierges du Brésil. Vaste dans son ensemble etcomplete dans son détails, cet ouvrage intéressetout à la fois le naturalis-te, le publiciste et l’historien. Le premier volumen est consacré à la popula-tion brésilien ne encore sauvage et aux forêts vierges. Le second volumencomprend l’industrie en general. Le troisième volumen contient tout cequi concerne l’instruccion publique, le culte religieux, les événements po-litiques, enn jusqu’aux fêtes et ceremonies, et les portraits des principaux

    personajes qui y ont guré. L’ouvrage est terminé par l’état dês beux-artsà Rio de Janeiro”. Tradução livre.

    ² Entre outros, consultar: LIMA, Heloisa Pires. “A polêmica identidade deviajante para Jean Baptiste Debret”. Em: VALLE, Arthur e DAZZI, Camila(orgs). Oitocentos – Arte Brasileira do Império à República. Tomo 2. Rio deJaneiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010; p. 278-289.

    ³ Não se sabe de nenhuma outra viagem sua além da que realizou à Itália junto com o mestre David em 1784, tampouco existem referências con-

    cretas de que o artista tenha alguma vez deixado os arredores do Rio deJaneiro.

    REFERÊNCIAS 

    BANDEIRA, Júlio e CORRÊA DO LAGO, Pedro. Debret e o Brasil: obra com-pleta 1816-1831. Rio de Janeiro: Capivara Ed., 2008.

    DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Fir-

    min Didot Frères, 1834, 1835, 1839.

    DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução.São Paulo: Círculo do livro, [s/d].

    DIENER, Pablo. “El perl del artista viajero en el siglo XIX”. In: Fomento Cul-tural Banamex (org.). Viajeros europeos del siglo XIX en México. Catálogoda exposição. Cidade do México: Fomento Cultural Banamex, 1996; pp.63-85.

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    HARTMANN, Thekla. A contribuição da iconograa para o conhecimentode índios brasileiros do século XIX. São Paulo: Edição do Fundo de Pesqui-sas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, (Série de Etnologia,vol. 1), 1975.

    HELBIG, Jörg. “Observações sobre o legado da expedição bávara aoBrasil”. Em: DIENER, Pablo e COSTA, Maria de Fátima (orgs.). Um Brasil para Martius. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2012; pp: 34-81.

    LIMA, Valéria Alves Esteves. J.B. Debret, historiador e pintor: a viagem pito- resca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP,2007.

    LÖSCHNER, Renate e KIRSCHTEIN-GAMBER, Birgit (orgs.) Viagem ao Brasildo Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied: Legado do Príncipe Maximilia-no de Wied-Neuwied. Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch, GmbH, Volu-me II. Petrópolis: Kapa, 2001.

    OBERACKER, Carlos. “Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros”. Em:Holanda, Sérgio Buarque de (org.). História geral da Civilização brasileira:O Brasil Monárquico. O processo de emancipação. 4 ed. São Paulo: DI-FEL, 1976, vol I, tomo II, cap. V, p. 119-131.

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Imagens francesas do Brasil no século XIX:

    paisagens e panoramas”. Em: LEENHARDT, Jacques (org.).  A construçãofrancesa do Brasil. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008; p. 25-77.

    SPIX, Johann Baptist von e MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Atlas zur Rei- se in Brasilien. Munique, 1823, 1828, 1831. Disponível em: http://bndigital.bn.br/scripts/odwp032k.dll?t=bs&pr=fbn_dig_pr&db=fbn_dig&use=ti&dis-p=list&sort=off&ss=NEW&arg=atlas|zur|reise|in|brasilien

    TRINDADE, Jaelson Britan. “Debret Pitoresco ou o Roteiro do Sul”. Em: 180 Anos de Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro,UFRJ, 1997; p. 99-108.

    VANGELISTA, Chiara. “Civilização, Botânica e tapeçaria: a oresta brasilei-ra em Jean-Baptiste Debret”. In: LEENHARDT, Jacques (org). A construçãofrancesa do Brasil. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008; pp. 159-220.