A VIDA QUE EU PEDI, ADEUS
(Uma história com sinal fechado)
Personagens:
Eurides
Armando
Mariana
Autor:
Sérgio Roveri
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CENA 1
Sala de uma família classe média baixa. De um lado, uma mesa de madeira com quatro
cadeiras. Do lado oposto, um sofá de três lugares. Telefone em um canto. Outros objetos
de cena a cargo da direção. Uma porta do lado direito, usada para entrar na casa por
quem chega da rua. Do lado esquerdo, outra porta, que liga a sala à cozinha e aos outros
cômodos. Uma janela com cortinas.
Armando está sentado em uma das cadeiras. Tem nas mãos uma série de folhas de papel
sulfite, xerocadas, que vai recortando em tiras, no formato de filipetas. Quando já tem
uma pequena quantidade destas filipetas, olha para o relógio. Levanta-se e sai de cena
pela porta da cozinha. Ouve-se o barulho de uma torneira sendo aberta. Volta para a
mesa e recomeça a recortar as folhas. A porta da rua se abre. Entra Eurides, trazendo
nas mãos uma bolsa e uma faixa enrolada.
EURIDES (ar cansado, atira a bolsa e a faixa sobre o sofá, tira os sapatos, esfrega os pés
e caminha até Armando. Apanha o monte de filipetas e as conta rapidamente) – Acho
que já dá, Armando. Sobrou muito entre ontem e hoje. (Suspira) - Cada dia mais
fraco que o outro. Antes os meninos ainda punham a culpa na chuva. Agora, nem isso.
Eu acho que a gente precisa ter umas idéias mais espertas. Vindo pra casa, eu pensei
em uma coisa: será que custa muito caro contratar alguém que mexe com
publicidade? De repente, este pessoal pode vir com alguma saída boa, não é?
Eurides coloca as filipetas de novo na mesa. Armando prossegue em seu trabalho. Mal
ergueu os olhos para a mulher. Eurides dirige-se à cozinha. Depois de alguns segundos,
aponta somente a cabeça na sala e pergunta:
EURIDES – Esta água aqui no fogão é pra mim?
ARMANDO – Pra quem mais?
EURIDES – Que milagre! Aí tem coisa. Vai me pedir o quê?
Armando não responde.
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Eurides volta da cozinha com uma bacia de plástico. Coloca a bacia na frente do sofá.
Vai à cozinha novamente, de onde retorna com uma chaleira de água quente, que usa
para encher a bacia. Senta-se no sofá e mergulha os pés na água, de leve, para sentir a
temperatura. Atira a cabeça para trás e solta um longo suspiro.
EURIDES – Se eu ganhasse um real para cada cara feia que eu vi hoje...
ARMANDO – Eu mexi um pouco no papelzinho da embalagem.
EURIDES – Nem reparei, deixa eu ver.
Armando apanha uma das filipetas e a leva até Eurides.
EURIDES (lendo) – “Estou desempregado. É com estas balas que eu sustento a minha
família. Aceito vale-transporte e tíquete-refeição. Deus o abençõe. Isso não é um
assalto”... Armando, assalto não é com dois ‘esses’?
ARMANDO – É.
EURIDES – Aqui você escreveu com um só.
ARMANDO – Você acha que quem vende bala no farol é bom de português? A gente
tem de pensar com a cabeça de quem está no volante. Se o sujeito pega um bilhetinho
desses de bala e não encontra nenhum erro, o que ele vai pensar?
EURIDES – E eu sei lá. E é para pensar em alguma coisa? Se ele comprar a bala, para
mim já está bom demais.
ARMANDO – Aí é que você se engana. O motorista vai pensar o seguinte: este sujeito
está aqui na esquina porque é vagabundo. Olha só como ele escreve bem. Por que não
vai procurar emprego? Agora, se ele encontra um bilhete cheio de erros, vai dizer:
coitado, não teve estudo. Tinha mesmo de terminar aqui. E acaba comprando a bala
pra ajudar.
EURIDES (devolvendo a filipeta) – De onde você tira tanta besteira? Além de tudo, a
gente vai acabar passando por burro, isso é o que eu acho. Já não chega tudo o que
falam da gente, agora a gente ainda vai levar fama de analfabeto? Por mim, eu
corrigia isso. A gente precisa impor um pouco de respeito, não é, Armando? Faz bem
para os negócios. Outro dia eu ouvi um corretor falando lá na esquina que hoje em dia
só ganha dinheiro quem sabe vender bem a imagem, quem sabe impressionar...
ARMANDO – Mas precisa ter uma medida, Eurides. Impressionar demais afasta
cliente. Você não vive dizendo que morreria de vergonha se tivesse de entrar numa
loja chique? Dessas em que a vendedora se veste muito melhor que a cliente? Pois
então, quem trabalha no semáforo não pode escrever melhor do que quem está no
volante.
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Armando, ar de vitorioso, volta para a mesa. Senta-se e fica calado por uns segundos.
ARMANDO – Que pano é este que você trouxe?
EURIDES – É uma faixa.
ARMANDO – Que é uma faixa eu estou vendo, mas pra quê?
EURIDES – Estão anunciando uma cachorrinha que sumiu. Dão recompensa. A faixa
estava lá na pracinha.
ARMANDO (abrindo a faixa e lendo) – Nossa, tem criança doente.
EURIDES – Tem nada, eu já fui me informar. Liguei do orelhão. É um casal de
velhinhos. Me deram a ficha toda, coitados. Eles botaram que tem criança doente
porque parece que dá mais resultado.
ARMANDO (dobrando a faixa e colocando de volta no sofá) – Quanto eles dão de
recompensa?
EURIDES – Trezentos.
ARMANDO – Dinheirão, hein... Mas por que você roubou a faixa?
EURIDES – Eu não roubei, Armando. Que coisa, parece que não me conhece. Fica aí,
enchendo a boca para falar em roubo. A gente tá junto há 23 anos e alguma vez você
me viu roubando alguma coisa, viu? Faça me o favor, né? Acho que você devia pensar
duas vezes antes de fazer essas perguntas bestas para mim.
ARMANDO – De uns tempos pra cá, você anda muito cheia de nove horas, Eurides.
Toda pergunta que eu faço é pergunta besta.
EURIDES – Você falou em roubo. Se tem uma coisa nesta vida que ainda me dá um
pouco de orgulho é saber que roubar eu nunca roubei.
ARMANDO – Tá bom, tá bom, desculpas. Como esta faixa veio parar nas suas mãos?
Tá bom assim?
EURIDES - Eu retirei, ouviu bem, retirei a faixa da árvore, com muito cuidado, pra
mexer numa coisinha, e depois você vai colocar lá de volta...
ARMANDO – Por que eu??
EURIDES – Ué, porque eu já tirei, depois você vai lá na praça e coloca no lugar...
ARMANDO – Depois do quê?
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EURIDES – Depois que eu mudar este número de telefone aqui.
Armando não diz nada, fica encarando Eurides, com ar de interrogação.
EURIDES – Você já foi bem mais esperto, Armando. Eu vou apagar o número do
telefone deles e colocar o nosso. Se alguém achar a cachorra, vai ligar aqui, certo?
Então a gente paga R$ 150 de recompensa, e depois vai devolver a coitada pros
velhinhos e embolsa os R$ 300.
ARMANDO (boquiaberto) – Mas e se...
EURIDES – E se, e se, e se... Se eu fosse parar para pensar nos seus ‘e se...’ a gente já
tinha morrido de fome. Não tem ‘e se’ coisa nenhuma. Desde que a gente se casou que
eu ouço você falando “e se isso”, “e se aquilo”, “e se a gente esperasse”, “e se a gente
deixasse isso de lado...” Quando vai chegar o dia em que você vai me dizer “e se a
gente fosse passar o domingo na praia?”...”e se a gente dormisse até o meio-dia?”...
Nem isso você é capaz de me dizer. Agora chega, tá bom? Eu não disse que já fui me
informar? Os velhinhos nunca saem de casa, estão num bagaço de dar pena. Eles não
vão saber que a gente trocou o número.
ARMANDO – A gente, não...você!
EURIDES – Quando eu tiver com os 300 paus no bolso você vai mudar de opinião, já
estou vendo. (Pausa) – Alguém ligou?
ARMANDO – Acho que nossa filha.
EURIDES – Como assim, acho? Era ou não era?
ARMANDO – Acho que era. Quando eu vi que era chamada a cobrar, eu desliguei na
hora.
EURIDES – Desligou, na cara dela? Coitada. Ah... mas fez bem... Ligar a cobrar de
novo, onde já se viu? Não faz nem um mês que ela ligou a cobrar...
ARMANDO – Era seu aniversário.
EURIDES – Eu sei, e no mês que vem é o seu. E aposto que ela vai ligar a cobrar de
novo.
ARMANDO – Pode ficar tranqüila, pra mim é que ela não liga.
EURIDES – No ano passado você falou a mesma coisa.
ARMANDO – E ela ligou?
EURIDES – Agora não lembro direito. Mas teve um ano que ela ligou.
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ARMANDO (irônico) – Teve um ano que ela ligou, ora bolas! Nem você mais se
lembra quando foi a última vez que ela me telefonou.
EURIDES – Queria o quê? Se eu soubesse que o meu pai só esperou eu virar a esquina
pra vender todos os meus móveis no mesmo dia, eu também não ia ficar ligando pra
ele a torto e a direito.
ARMANDO – Você que foi chamar o caminhão pra levar as coisas da menina
embora, Eurides, faça-me o favor.
EURIDES – O caminhão já tava no bairro, Armando, a gente economizou um carreto.
Mais cedo ou mais tarde você ia acabar vendendo as coisas dela mesmo.
ARMANDO – Você já reparou que você fala de um jeito que parece que o filhodaputa
sempre sou eu?
EURIDES – Não, nunca reparei. E se eu falo é porque alguma razão deve ter. Agora
não adianta ficar remoendo isso. Quando chegar o dia do seu aniversário a gente vai
saber se ela vai ligar ou não. (Pausa) – Será que era alguma coisa urgente, pra ela
ligar assim, no meio da semana? Vai ver que morreu alguém....
ARMANDO – Eurides, eu estava aqui pensando: e se a gente desse só cem pra quem
achar a cachorra?
EURIDES – Não é pouco?
ARMANDO – Pouco? Você acha pouco cem paus para pegar uma vira-lata na rua e
depois dar um telefonema avisando? Tem gente que precisa trabalhar um mês inteiro
para ganhar cem paus.
EURIDES – Parece que é de raça. E tá com coleira.
ARMANDO – Cento e trinta, então.
EURIDES – Quer saber de uma coisa? Cem e tá muito bom.
Armando sai de cena e volta com uma toalha. Começa a enxugar os pés de Eurides.
EURIDES – O que é isso agora, Armando? Tanto mimo pro meu lado... Você
arrumou uma amante e não sabe como me contar, é?
ARMANDO – E se eu tivesse arrumado?
EURIDES – Bom, desde que você não gaste nada com ela, por mim você pode ser
feliz...
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Armando solta os pés de Eurides e volta para a mesa. Eurides termina de enxugar os pés
e coloca um chinelo.
EURIDES – Armando, não dá mais, viu? Eu vou precisar dispensar a Doralice
mesmo.
ARMANDO (contrariado) – De novo esta história? A gente não combinou que ia
esperar um pouco? Faz mais de um ano que ela está com a gente, e neste tempão ela
ficou doente só dois dias. Tem tanto pilantra no mercado e você resolve demitir
funcionária honesta?
EURIDES – Eu sei, Armando. Você acha que eu fico contente de tomar esta decisão,
acha? A Doralice sempre foi um das minhas preferidas, você sabe disso. É a única
daquela trempa toda que a gente consegue passar pra trás na hora de pagar a
comissão e ela nunca percebe. O problema é que a Doralice chegou naquela idade
difícil. Está pequena demais para limpar o vidro dos carros e grande demais para dar
pena nos motoristas. Desse jeito, não entra dinheiro de lado nenhum. Não dá para
manter ninguém assim. (Retira vários caderninhos da bolsa) – Olha aqui a
contabilidade dela: já faz uns dois meses que o dia termina e a Doralice está de bolso
vazio. A gente está precisando tirar um pouco de dinheiro dos outros para pagar a
parte dela. É uma operação muito arriscada, viu, Armando? E se eles descobrirem
isso? Aquela esquina vai pegar fogo. Quando ela ficar maiorzinha, se a situação
melhorar, como andam dizendo aí que vai melhorar, a gente pega de novo.
ARMANDO (cedendo, a contragosto) – É, eu também já tinha percebido isso, ela não
anda faturando mais nada. É que é tão duro pra gente mandar ela embora,
coitadinha. E nem tô falando por causa da comissão, não. É que a gente se apega em
quem é bobo, não sei... Parece que eles nunca vão passar a gente pra trás. Ainda mais
neste mundo competitivo, em que a gente precisa ter um olho nas costas... Mas você
tem razão. Nisso você tem razão: ela chegou numa idade difícil para o mercado... Seis
anos...
EURIDES – É a pior idade pra trabalhar na esquina. Já tem um monte de motorista
perguntando se ela não vai pra escola. Ficam enchendo a cabeça da menina com isso.
Hoje a mãe dela veio me falar que quer cobrar mais comissão.
ARMANDO – Que menininha lazarenta. Será que ela foi falar alguma coisa da
comissão pra mãe dela? Olha, quando chega neste ponto, o jeito é dispensar mesmo.
EURIDES – Sem falar que aquele entojo da Leonor apareceu no outro farol com uma
menininha deste tamanho, ó (mostra a altura da criança com a mão). Um pouquinho
maior que uma garrafa de Coca litro. E você não sabe o que é pior.
ARMANDO – O quê?
EURIDES – A menina é loirinha.
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ARMANDO – Loira??? Loira natural, jura?
EURIDES – Feito uma espiga. A menininha é uma máquina de fazer dinheiro. Nunca
vi coisa igual. Até quem passa a pé abre a carteira para dar um trocado pra ela. E às
vezes ela nem precisa pedir. Ela fica parada, encostadinha ali no poste, com aquela
carinha de abandono, que pumba!, tem motorista que fala assim: vem cá, anjinho. E
dá dois, até três reais para ela, você acredita? O que mais me incomoda é ver eles
chamando a menina de anjinho, nunca ninguém chamou a Doralice de anjinho.
ARMANDO – E se em vez de mandar a Doralice embora, a gente pintasse o cabelo
dela de loiro, hein, Eurides? Uma última chance, só para fazer um teste.
EURIDES - Uma pretinha de cabelo loiro? Você quer transformar a nossa esquina no
quê? Em baile de carnaval? Em show de circo? Isso nunca. A gente sempre teve tanta
preocupação com a imagem, onde já se viu começar a pintar o cabelo das crianças?
Além de não darem um tostão,os motoristas vão acabar rindo da cara da menina. E eu
não quero criança traumatizada trabalhando comigo, não rende nada.
ARMANDO – Tá certo. E onde será que a Leonor arrumou esta loirinha?
EURIDES – E ela fala? Desde quando a Leonor joga limpo? Você acha que eu não fui
lá perguntar se a menina não tinha uma irmãzinha pra emprestar pra gente por uns
tempos? Ela desconversa, desconversa...e sabe o que eu ainda tive de ouvir dela? Que
o mundo é dos espertos. Como se a gente não soubesse disso. Minha vontade era de ter
dado uma piuvada na cara da Leonor. Só não dei porque o clima no pedaço ia
esquentar muito.
ARMANDO – Eu já falei pra você não brigar com ela, Eurides, a Leonor anda
cercada de gente muito baixa. Deixa quieto, cada um toca o negócio do jeito que sabe.
(Pausa) – Mas, caramba, a Leonor deve ter ajuda de olheiro, não é possível. Lembra
daquela vez que ela apareceu com um menino que conseguia chorar quando começava
a anoitecer?
EURIDES (irritada) – Ah, nem me fale. Tanto que eu implorava pra Doralice chorar
também. Mas aquela lá é uma cabeça-de-vento. Se a gente deixar, ela fica rindo o dia
inteiro. Não sei do que tanto ela acha graça nesta vida. Uma boba-alegre, isso sim é o
que ela é. Se ela não tomar jeito, vão fazer ela de gato e sapato a vida inteira.
Eurides levanta-se do sofá e estende a faixa no chão da sala.
EURIDES – Armando, vai ver se o seu Juca tem um pouco de tinta pra emprestar pra
gente. Uma latinha da branca e um pouquinho de azul.
ARMANDO (olhando para o relógio) – Daqui a pouco eu vou, a esta hora o Juca não
chegou ainda.
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EURIDES – Chegou que eu já vi. Ele veio mais cedo hoje. Quando eu estava entrando
em casa, ele tava guardando a perua.
ARMANDO – Ué, por que será que o Juca veio mais cedo hoje?
EURIDES – Não sei, eu ia até perguntar. Mas ele tava com uma cara...
ARMANDO – Será que a polícia desceu a lenha nos camelôs hoje de novo? Você viu
se a perua estava cheia ou vazia? Se estava vazia, tô até vendo: na confusão, o Juca
deixou as muambas na calçada pra sair correndo...
EURIDES – E eu ia lá xeretar a perua do homem? Vai pegar a tinta, Armando.
Armando sai pela porta da rua, enquanto Eurides fica estudando o formato dos números
que vai apagar. Toca o telefone.
EURIDES – Alô..........É, é da casa do Armando, sim, mas ele acabou de sair. Foi no
vizinho, volta em dois minutinhos.......Quem quer falar com ele?.............O Vasquez? O
que começou a trabalhar ontem à noite?............Sei, mas o Armando me disse que você
era argentino. Cadê o sotaque? ..............Ah, só usa o sotaque à noite, certo, certo. É só
com ele ou serve eu? ................Sei.................O quê?....................(Nervosa) Como assim,
com tosse?.........................Mas você começou ontem, meu filho...............................Uma
noite só e já..........................vai ver que foi o sereno........................ Não, não acredito.
Como foi isso? ....................... Sei, sei...e como ele está? ...........................Isso é o que nós
vamos ver, não é? E quanto você fez ontem à noite? Você precisa pagar a comissão do
Armando...........................Nada? Como assim, nada? Uma noite inteira e você não fez
nada??? .....................................Ah, mas assim não dá, assim fica difícil trabalhar, ô,
Vasquez! A situação está difícil para todo mundo, meu querido............ Sei, eu sei, mas
o Armando confiou em você, rapaz, como é que você apronta uma dessas com ele?
Tinha mais gente querendo o emprego................ O material é seu ou é dele?
......................É dele??? Então você precisa passar aqui para devolver. O Armando já
tem que arrumar alguém pro seu lugar, não pode perder tempo indo até aí para
buscar o material. Quanto você gastou de querosene? ............Nadinha! Nadinha uma
ova. Se ele te deu uma lata cheia, vai querer uma lata cheia de volta......................Bom,
eu não vou discutir isso com você. O seu trato é com o Armando. Ou você passa aqui
mais tarde ou liga pra ele. Mas tem que devolver este material logo, logo, viu?
Eurides desliga o telefone. Senta-se novamente no sofá, com a expressão indignada.
EURIDES – Parece que eles estão todos mancomunados. A gente não pode mais
confiar em ninguém hoje em dia. Depois reclamam que não tem serviço.
Armando volta, trazendo dois galões de tinta e um pincel nas mãos.
ARMANDO – Que cara é essa! O que foi?
EURIDES – O engolidor de fogo que você arrumou. Aquele argentino de araque.
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ARMANDO – O Vasquez?
EURIDES – Ele ligou pra dizer que não vai ficar com o emprego. Ele sofre de asma.
ARMANDO – Ah, essa é boa! E por que ele não me disse antes? Eu entreguei uma
lata de querosene fechada na mão daquele desgraçado.
EURIDES – Assim você aprende a não ser trouxa e ficar confiando em qualquer um,
ainda mais em argentino. O que a gente ouve falar de rolo com argentino e você
resolve dar emprego logo pra um deles. Eu tinha cer-te-za de que você tinha dado
uma lata fechada pra ele.
ARMANDO – Ele não é argentino, ele só imita argentino.
EURIDES – Eu percebi isso, não sou burra, né, Armando? Mas os motoristas vão
achar que ele é argentino. De onde ele é?
ARMANDO – Não sei direito, acho que é do Maranhão.
EURIDES – A gente não tinha combinado que não ia mais pegar nordestino,
Armando? Eu fiquei sabendo que o Clóvis contratou dois gaúchos para a esquina dele
lá na Zona Sul. E parece que anda bem feliz da vida com eles, viu? Ele falou que
gaúcho trabalha além do horário e não pede extra...
ARMANDO – Não dá para acreditar em tudo que o Clóvis diz. Aquele lá só tem lábia.
Vivia dizendo que tinha costa quente na polícia. Ta bom...costa quente. Lembra
aquela vez que ele atrasou a caixinha dos guardas? Passou a perua lá e levou todas as
crianças dele embora.
EURIDES – Mas que contratar gaúcho é novidade, isso você não pode negar.
ARMANDO – Mas que saco este negócio do Vasquez, hein? Por que ele não me falou
antes que tinha asma?
EURIDES – Ele disse que achava que dava para controlar. Mas foi só colocar a tocha
na boca, que arrebentou um acesso de tosse. Voou chama pra tudo que é lado.
Chamuscou todo o cabelo do Piranha, que tava trabalhando ali do lado.
ARMANDO – Coitado do Piranha! Bom, o cabelo dele nunca foi grande coisa
mesmo... A gente não vai precisar pagar curativo pro Piranha, só me faltava essa.
EURIDES – Claro que não, ele que se arranje com aquela carapina. Mas o que
aconteceu também não tá certo, Armando. O Piranha tava lá quieto, ganhando o
dinheirinho dele, fazendo malabarismo com as bolinhas de tênis, chega um argentino
fajuto e quase que queima toda a cabeça do coitado. Se o moleque precisar ficar dois
ou três dias sem trabalhar, sabe no bolso de quem vai estourar isso, não é? No nosso.
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ARMANDO – Só me faltava essa. Perder o engolidor de fogo e ainda queimar a
cabeça do malabarista.
EURIDES – Agora que me caiu uma ficha. Onde é que estava o Adalberto naquela
hora? Ele não tinha que estar ali, lavando o vidro dos carros? Por que ele não jogou
água para apagar o fogo no cabelo do Piranha? Faz tempo que eu estou te falando,
Armando, abre o olho: o Adalberto anda dando o cano na gente.
ARMANDO – Ô, Eurides, cada uma... Você acha que ia dar tempo do Adalberto
largar tudo e apagar o fogo na cabeça do Piranha? A gente sempre teve orgulho de
que no nosso ponto cada um tem uma função definida. Se o Adalberto foi contratado
para lavar vidro de carro, é isso que ele tem de fazer. Não tem de apagar incêndio na
cabeça de ninguém. Você quer o quê? Que um dia eles procurem a gente pra dizer que
acumula função, é isso? Você quer acabar com um processo nas costas? E depois tem
outra coisa do Adalberto que eu já percebi...
EURIDES – O quê?
ARMANDO – Esta bronca que você tem dele... Tudo porque um dia ele falou que
gostaria de trabalhar dando nota fiscal.
EURIDES – E você foi tão tonto que quase caiu no papo-furado dele. Se eu não tivesse
descoberto que era tudo nota roubada... Eu não tenho bronca dele nem de ninguém,
eu só acho que você deve prestar mais atenção em quem você contrata, só isso. Vamos
ver se este caso do Vasquez te serve de lição...
ARMANDO – Filhodaputa do Vasquez, sabia imitar argentino que era uma beleza.
Onde já se viu? Ter asma!!!
EURIDES – Bem feito pra você, tanta raça para aquele Vasquez imitar e ele foi
escolher logo argentino... Bom, abre esta tinta aí. A gente tem de trocar o número do
telefone depressa pra você ir lá na praça pendurar a faixa esta noite ainda...
Assim que começam a trabalhar na faixa, Armando interrompe.
ARMANDO – Eurides, eu tava pensando naquilo que você falou da Doralice...
EURIDES (sem parar o trabalho) – Naquilo o quê?
ARMANDO – Que ela dá muita risada...E dá mesmo, é verdade. Mas você já
percebeu como os olhos dela são tristes?
EURIDES – Que história é essa?
ARMANDO – É, eu nunca tinha falado. Mas eu sempre reparei nos olhos daquela
menina. Eles são muito tristes, Eurides. Você nunca notou? Repara bem: mesmo
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quando ela dá as gargalhadas dela lá no semáforo, quando algum motorista dá um
dinheirinho extra pra ela, não sei...os olhos dela sempre estão assim...tristes...
EURIDES (parando, com o pincel suspenso no ar) – Em que época você está vivendo,
hein, Armando? Os tempos são outros, meu caro. Ou a gente ganha algum dinheiro,
ou fica reparando nos olhos de criança. Não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo
tempo... Agora vamos logo com isso, vai.
Enquanto o casal, ajoelhado no palco, apaga o número de telefone da faixa, as luzes vão
baixando.
CENA DOIS
Manhã seguinte. Batidas na porta da rua.
EURIDES – Abre a porta pra mim, Armando.
Volta a bater.
EURIDES – Sai dessa cama, Armando. Vem abrir a porta que eu tô com as mãos
ocupadas... Até que horas você ficou na frente da televisão, ô, desgraçado?
Armando entra na sala. Veste o calção e a camiseta que usou para dormir. Ainda está
despertando. Abre a porta. Eurides entra com uma caixa de papelão fechada, de
tamanho médio.
EURIDES – Pronto, encontraram.
Armando afasta a tampa da caixa com as mãos e olha em seu interior.
ARMANDO – A vira-latinha!
EURIDES – Vira-latinha é o seu nariz. Aqui tá o supermercado do mês inteiro...
Ligaram às sete e meia da manhã, acredita? Você ainda tava roncando. Por falar
nisso, já viu que horas são? Tá pensando que hoje é o quê, Natal? Quem está tomando
conta lá do farol?
ARMANDO – Eu vou mais tarde hoje. Ontem estava uma boataria lá que agora de
manhã ia baixar assistente social na esquina. Eu não tava a fim de ouvir aquela
ladainha logo cedo.
EURIDES – De novo assistente social? Escuta aqui: essas moças não aprenderam na
faculdade que elas têm de ajudar quem tá na pior? Então, por que é que no nosso caso
elas só aparecem pra encher o saco? E elas têm uma lábia pra iludir aquelas crianças,
dá até pena.
13
ARMANDO (olhando para a caixa) – Que raça é essa?
EURIDES – E eu lá sei?
ARMANDO – Quanta pinta... Eu sempre ouvi dizer que cachorro assim pintado é
tudo vira-lata.
EURIDES – Que vira-lata o quê? Alguém ia oferecer 300 reais por uma vira-lata?
Ficou doido?
ARMANDO – Vai ver que tem valor afetivo. (Ainda olhando o interior da caixa) – Ela
não late?
EURIDES – Acho que tá assustada. Quem sabe não é a primeira vez que ela fica um
tempão fora de casa.
Eurides coloca a caixa com a cachorra em cima do sofá. Armando volta a olhar para o
animal.
ARMANDO – Olha só, Eurides, que olhinho preto...
EURIDES – Vai começar de novo com esta história de olho, Armando? Por que você
não foi ser oculista? Só deu de falar nisso agora. Ontem era o olho da Doralice, agora
o olho da cachorra...
ARMANDO – Será que é a cachorra dos velhos mesmo?
EURIDES – Claro que é. Olha só a coleira. Do jeitinho que a velha falou no telefone:
com florzinha de plástico debaixo do pescoço.
ARMANDO – Onde acharam ela?
EURIDES – Sabe aqueles predinhos baixinhos passando o posto? Tava lá, um moço
tinha achado...(Procurando as palavras) – Armando...
ARMANDO (com os dedos dentro da caixa, brincando com a cachorra) – Fala...
EURIDES – Quer tirar a mão daí e prestar atenção?
Armando obedece.
EURIDES – O moço pediu R$ 150.
ARMANDO – Tá louca? E você pagou? A gente não tinha combinado que ia dar só
cem.
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EURIDES – Não teve negócio. Era R$ 150 ou nada. Ele falou que na faixa estava
escrito recompensa-se bem.
ARMANDO – Por que você não apagou isso da faixa também?
EURIDES – E por que “você” não apagou? Eu tenho de ver tudo sozinha, é? Agora já
foi. Eu preciso pensar num jeito de tirar um pouco mais daqueles velhos.
ARMANDO – Liga lá e dá uma chorada. Fala que o bicho teve cólica à noite e você
levou na farmácia.
EURIDES – É você que vai ligar. Eu já falei com eles ontem, e se eles lembrarem da
minha voz?
ARMANDO – Você falou com o velho ou com a velha?
EURIDES – Com os dois. Primeiro com a velha, mas daí ela começou a chorar e
passou o telefone pro marido.
ARMANDO – Bom, então eu falo.
Vai até o telefone.
ARMANDO – Me dá o número.
EURIDES – Eu não tenho o número, ficou com você.
ARMANDO – Como, ficou comigo? Eu nem vi o número.
EURIDES – O número tava na faixa, Armando.
ARMANDO – Mas a gente pintou por cima.
EURIDES - Você não anotou o número antes de pintar?
ARMANDO – Claro que não. Acha que eu ia pensar nisso? O plano era seu, eu só fiz
o que você mandou: fui emprestar a tinta do Juca e depois pintei por cima do número
dos velhos...
EURIDES (alterada) – Nem fale uma coisa dessas, Armando. E agora, como é que a
gente vai devolver o bicho?
ARMANDO – Sei lá...
EURIDES – É só a gente começar a diversificar os negócios que você já me faz uma
cagada no primeiro dia? Iam ser os 150 reais mais tranqüilos que a gente já ganhou
na vida. Mais fácil que tirar doce de criança.
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ARMANDO – Que comparação boba, Eurides.
Latidos da cachorra.
EURIDES (em direção à caixa) – Cala a boca, desgraçada.
ARMANDO – Não grita com ela. Ela já tá assustada, coitada.
EURIDES – Coitada de mim. Eu fui dar R$ 150 por esse bicho...e agora? Como é que
a gente vai achar aqueles dois velhos pra recuperar o dinheiro?
ARMANDO – A gente vai dar um jeito, sossega. Essa coitadinha aqui é que não vai
poder ficar dentro da caixa o dia inteiro. (Pegando a caixa nos braços) – Vou soltar ela
lá na cozinha. A gente vai precisar comprar ração.
EURIDES – Com o seu dinheiro.
Armando dirige-se à cozinha carregando a caixa.
EURIDES (levando a mão à cabeça) – Como é que eu fui esquecer de anotar o número
do telefone dos velhos, meu Deus? É tanta coisa pra pensar, tanta coisa...Mandar
embora a Doralice, arrumar outro engolidor de fogo, pegar de volta a lata de
querosene, ver como é que o Piranha vai se virar com aquela carapina chamuscada...
Maldita hora em que a gente precisou virar autônomo. Vai ver se quem tem carteira
assinada passa por isso...
Ouve-se Armando brincando com a cachorra na cozinha. Ele dá latidos finos, imitando o
animal, e solta algumas gargalhadas.
ARMANDO (da cozinha) – Como chama a filhinha do papai, como chama??? Au-au-
au...
Eurides olha desconsolada para a cozinha.
EURIDES – Não me faltava mais nada...
Armando coloca apenas o rosto para fora da cozinha.
ARMANDO – Eurides...a coitadinha fez coco debaixo da mesa. Você tem um paninho
aí?
Luzes diminuem.
CENA TRÊS
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Eurides está sentada no sofá, folheando um álbum. Ouve-se, em off, a voz de Armando
chegando em casa.
ARMANDO – Fica aí, quietinha, hein... Não, não, não é pra entrar...fica aí.
Armando entra em casa e deixa a porta entreaberta.
EURIDES – E então?
ARMANDO – Nada. Acho que ela nem é daqui do bairro. Fiquei a manhã inteira
passeando e ela não reconheceu nadinha. Ela só ficava cheirando os outros cachorros,
mas nada de seguir o caminho de casa.
EURIDES – O que é isso na sua mão? Você pegou a faixa de volta?
ARMANDO – Peguei. Eu quis ver se olhando por trás dava pra gente descobrir o
número do telefone dos velhos. Mas acho que não dá, tá tudo muito borrado.
EURIDES – Estende a faixa aí no chão, Armando. Pega o abajur. Quem sabe se a
gente iluminar um pouco, o número não aparece.
Armando vai buscar o abajur.
ARMANDO – O fio não alcança...
EURIDES – Deixa este troço aí, vem cá... Olha aqui, é um três. Anota aí no papel:
três...
ARMANDO – É um oito, Eurides.
EURIDES – O do lado que é um oito.
ARMANDO – Tá cega? Isto é um zero.
EURIDES – Precisava ter passado tanta tinta, precisava? Isso porque a tinta não era
sua, se fosse...
ARMANDO – Bom, a gente já tem dois números: um oito e um zero. Agora falta
descobrir só os outros seis. Vamos ter paciência.
EURIDES – Deixa isso aí, Armando. Nem com milagre a gente vai descobrir este
número agora.
Eurides volta a se sentar no sofá. Armando vai guardar a faixa dentro da casa e retorna
com um copo de água nas mãos. Senta-se ao lado da mulher, que está com o álbum no
colo.
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ARMANDO – Ih, o que foi? Bateu saudade, é?
EURIDES – Tava aqui só olhando, e pensando...Já vai fazer bem uns cinco anos que a
gente não coloca mais nada aqui dentro.
Armando senta-se ao lado de Eurides e pega o álbum de suas mãos. Começa a virar as
folhas.
ARMANDO – Olha aqui, lembra? Nessa época a gente comprou nosso primeiro
carro...
EURIDES – O golzinho branco... Você parecia um bobo, passava o sábado inteiro
limpando aquele carro. E quando ele tava limpo, você guardava na garagem. Sabe
que tem umas coisas em você que eu não entendo até hoje?
ARMANDO – E aqui, então... o ano em que a gente foi passar quatro dias no Rio de
Janeiro.
EURIDES – Nossa menina estava fazendo 12 anos, lembra?
ARMANDO – Claro. A gente comemorou naquela churrascaria.
EURIDES – Vira mais uma folha... mais uma. Ah, este aí é o meu predileto. Viagem
para Salvador com o décimo-terceiro.
ARMANDO – Nunca mais a gente viajou de avião depois.
EURIDES – Antes a gente também nunca tinha viajado...
ARMANDO – Verdade. Ah, Eurides, sabe o que eu tô lembrando agora?
EURIDES – O quê?
ARMANDO – Você não faz nem idéia?
EURIDES – Eu não.
ARMANDO – Eu tô lembrando como a gente trepava naquela época, lembra?
Qualquer brechinha que a gente tinha e a gente já se agarrava, hein? Você não sente
saudades daquele tempo, Eurides?
Provoca a mulher, beslicando sua cintura, mas Eurides toma o álbum de suas mãos e o
fecha bruscamente.
EURIDES – Não adianta nada a gente ficar aqui, Armando, olhando o nosso álbum de
holerite antigo. A gente acaba de perder R$ 150 com esta cachorra e ainda tem de
arrumar até amanhã mais R$ 400 pra caixinha da polícia.
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ARMANDO – A polícia não me preocupa.
EURIDES – Como assim, não te preocupa? Experimenta não dar a caixinha deles que
você vai ver o tamanho da encrenca. Ontem mesmo você falou do que aconteceu com
o Clóvis. Atrasar conta de água e luz é uma coisa, eles dão até três meses de prazo. A
polícia dá um dia só, e olha lá.
ARMANDO – É bem por isso que você é boa de lábia...
EURIDES – Olha aqui, seu desgraçado. Se você pensa que eu vou ficar inventando
tragédia pros soldados toda vez que a gente ficar sem dinheiro pra caixinha, você ta
muito enganado. Por que que não vai você lá negociar com eles, pra ver como é
gostoso?
ARMANDO (cínico) – Porque não é pra minha bunda que eles ficam olhando quando
passam lá no farol.
EURIDES – Eu sou sua mulher, cacete. Isso é jeito de falar comigo?
ARMANDO – É, Eurides, como você mesma diz, os tempos são outros, minha nega.
Ou a gente ganha dinheiro ou fica pensando no que a mulher da gente anda fazendo.
Não dá pra controlar as duas coisas.
EURIDES – Vá à merda, Armando.
ARMANDO – Calma, galega, eu não disse que de uns tempos pra cá a gente não pode
nem brincar com você?
EURIDES – Brincadeira é uma coisa, o que você faz é grosseria.
ARMANDO - Eu ainda vou passar lá na esquina ver o que rendeu hoje. Quem sabe a
Doralice conseguiu alguma coisa, não é?
EURIDES – A Doralice? Justo quem...
ARMANDO – Também tem o menino novo das balas, que é rápido feito o diabo.
Sabia que o outro que a gente dispensou punha os pacotinhos de bala só em oito
carros quando fechava o sinal? O de agora consegue colocar em 11...até em 12 quando
ele tá mais disposto...Êta, Ezequiel, já viu as perninhas dele? Esse menino promete,
viu. É melhor a gente não mexer na comissão dele por enquanto, tô pensando em
investir no garoto.
EURIDES – O Clóvis disse que...
ARMANDO – De novo o Clóvis...caralho! (Pausa) – Vai, fala. O que foi que ele disse?
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EURIDES – Que ele conseguiu um que coloca os pacotinhos de bala em 13 carros. E
não deixa cair nenhum.
ARMANDO – Ah, grande coisa, de 12 para 13, puta diferença! Mais uns dias e o
Ezequiel bate esta marca.
EURIDES – Não sei, não...
ARMANDO – Como não sabe? Só um carro a mais. Amanhã eu dou uma dura no
Ezequiel e digo que a meta dele agora são 13 carros.
EURIDES – Mas esse menino que o Clóvis arrumou...esse que coloca em 13
carros...bom...ele usa muleta.
ARMANDO – Mas o que é isso? O que que tá acontecendo com a concorrência,
Eurides? Onde eles estão conseguindo esses profissionais? Menininha loira, gaúcho,
menino com muleta...
EURIDEs – A gente sabe que a muleta é truque, Armando.
ARMANDO – Eu sei, eu sei, mas os motoristas não sabem.
EURIDES – Eu sempre acho que tem uns que sabem... Se não sabem, desconfiam de
alguma coisa. Eles olham pra gente com cada cara...
ARMANDO - Mas o que que a gente tá ganhando por ser honesto, hein? Será que a
gente vai precisar trapacear pra se dar bem nos negócios? Quando você encontrar o
Clóvis de novo, pergunta assim, com jeito de quem não quer nada, se este menino que
ele arranjou usa muleta dos dois lados... Se ele usar de um lado só, a gente arranja
duas pro Ezequiel no dia seguinte. Se a gente precisa se reciclar, vamos começar logo.
EURIDES – Eu tô ficando um pouco cansada desta vida, Armando...Faz um tempão
que a gente não sabe como vai ser o dia seguinte. Eu tenho medo de ficar doente, de
não conseguir ir mais para o farol...A gente tá vivendo do lado de um povo que
consegue ser ainda mais desgraçado que nós. Aqueles R$ 150 que eu paguei pela
cachorra era o nosso último dinheiro, a gente nem tem como fazer supermercado.
ARMANDO – A gente devia comemorar que tem gente ainda mais desgraçada que
nós. Enquanto continuar assim, a gente vai levando.
EURIDES – Mas cansa, Armando.
ARMANDO – Que é isso, Eurides? Não pode desanimar. Não está fácil pra ninguém.
Se todo mundo que toca o próprio negócio fica assim desanimado, caramba, o país
pára. Você acha que eu não andei conversando por aí, não? A gente cercou de todos os
lados. Quer ver só? Pega aí os caderninhos, acompanha comigo: tem a Doralice com
as canetas. Bom, se bem que com ela a gente quase não conta, né? Tem o Ezequiel com
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os pacotinhos de bala... vou aproveitar e anotar aqui no prontuário dele o negócio das
muletas... O Piranha com as bolinhas de tênis, a dona Odete com o nenê no colo e a
receita na mão pedindo dinheiro para comprar remédio...
EURIDES – Ah, foi bom você falar nisso. Sabia que tinha uma coisa pra te contar.
ARMANDO – O que foi?
EURIDES – A mãe do nenê veio falar comigo hoje. Ofereceram mais dinheiro pra ela
numa esquina no Itaim e amanhã ela já vai levar a criança pra lá.
ARMANDO – Amanhã, já? E você não conseguiu cobrir a oferta?
EURIDES – Ofereceram quase o dobro, Armando. E os donos da esquina ainda têm
uma van para buscar o nenê em casa.
ARMANDO – E eles vão levar a Odete junto?
EURIDES – Parece que não. Acho que o emprego era só pro nenê. A mãe me falou
que o casal que cuida daquela esquina veio com um papo de que eles querem formar
mão-de-obra especializada desde cedo. Sei lá, só sei que engambelaram ela direitinho.
ARMANDO – E o que é que a gente vai fazer com a Odete agora? Acho que ela não
sabe fazer mais nada, sabe? Dá para transferir a Odete para uma outra função?
EURIDES – Ela me pediu uns dias, coitada. É só o tempo de ela arrumar outra
criança lá onde ela mora que ela já volta pra esquina.
ARMANDO – Se é assim, menos mau. Você falou alguma coisa de descontar os dias
que ela vai ficar parada?
EURIDES – Meu Deus, Armando. Você está pensando que eu sou o quê? Claro que eu
falei, não. (Pausa) Armando, fecha aquela porta, por favor, vai...
ARMANDO – Deixa aberta, a cachorrinha tá brincando lá fora.
Eurides levanta-se e caminha até a porta entreaberta. Fica parada, olhando para fora.
Vê alguém na rua, tenta se esconder mas percebe que também foi vista. Suspira entre os
dentes:
EURIDES – Merda!
Acena para a pessoa que está na rua. Começa a responder em voz alta.
EURIDES – Comigo tudo bem, graças a Deus... Ah, é... Não, não sabia...
ARMANDO – Quem é?
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EURIDES – A dona Aurora.
ARMANDO – Nossa, tinha sumido...
EURIDES (falando para Aurora) – Quando ele falou isso? ..................Ah, no culto de
ontem, que interessante.......... A senhora faz um favor pra mim, dona Aurora? Diz pro
pastor que eu não tô nem um pouco com saudades dele, viu? Aliás, a senhora pode
aproveitar e dizer que eu tô com saudade é do meu dinheirinho que eu deixei na igreja
dele e nunca mais vi nem o cheiro.................. Claro que ele não tem culpa, dona
Aurora, imagina. Tão sério que ele é, né? A culpa é minha, que fui uma tonta de dar
trela pras promessas que ele fazia lá no altar. Agora eu fico dando um duro
desgraçado lá no farol enquanto ele passeia de carro. Se ele tá com saudades de mim,
fala pra ele baixar o vidro do carro que ele vai me ver na esquina. Até logo, dona
Aurora.
Eurides bate a porta com força.
ARMANDO – Precisava falar com ela desse jeito, Eurides? A dona Aurora é a única
amiga que você tem aqui no bairro.
EURIDES – Eu quero que essa beata se dane. Só porque ela tem um filho com
emprego fixo ela fica se exibindo lá na igreja, perguntando se os outros estão sem
trocado na hora do dízimo. E aquele jacu do filho dela ainda fica dando bandeira aqui
na rua, com jaqueta, relógio no pulso. A hora que encontrarem ele no córrego, todo
inchado, ele vai parar de ser tonto.
Armando volta a abrir a porta para olhar a cachorra. Eurides avança e a fecha
novamente.
EURIDES – Deixa essa porta fechada, saco. Você não sente, Armando? O cheiro deste
maldito córrego que vive entupido. Pra mim, este é o cheiro da pobreza. E parece que
ele está ficando cada dia mais forte.
ARMANDO – Eu já falei para você ter um pouco de paciência. Uma hora dessas a
gente muda daqui.
EURIDES – Eu sei que muda... pra mais longe. Igual da última vez. Outro dia
apareceu um moço vendendo mapa lá no farol e eu dei uma boa olhada. Se a gente for
mais três ou quatro ruas pra diante, a gente vai cair fora do mapa. É verdade, nem vai
ser mais São Paulo. (Pausa)
ARMANDO – Eu tô te falando, um dia desses a gente muda daqui.
EURIDES – Pára de me fazer promessa.
ARMANDO – Pior é que não é promessa, é ameaça.
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EURIDES – Como assim, ameaça?
ARMANDO – Quando eu tava vindo pra cá, eu topei com o dono da casa. Sabe o que
o desgraçado me disse? Pra pagar o aluguel vocês não têm dinheiro, não é? Mas pra
sustentar cachorro têm.
EURIDES – Você não explicou que a peste desta cachorra...
ARMANDO – Acha que eu ia contar a verdade pra ele? Eu disse que a cachorra era
do vizinho, que eu só estava levando pra passear. Mas daí ela começou a pular, me
lambia tanto que o homem não acreditou na história, não. Sabe aqueles dias em que
ele vem dar barraco aqui na porta, chamando a gente de caloteiro? Pois então, hoje
ele estava muito pior. Disse que a ordem de despejo já saiu, que vai botar polícia na
história. Ele falou que vai tirar a gente daqui na marra. Eu tenho medo que aquele
filhodaputa pague alguém pra dar um susto na gente se a gente não sair da casa, isso
sim. O dono da barbearia me disse que uma vez ele contratou uns bandoleiros pra dar
uns tiros na janela da outra família que não pagava o aluguel pra ele.
EURIDES (indignada) – O que você tá me dizendo, Armando? Você foi cortar o
cabelo na barbearia, desgraçado? Faz quatro anos que eu não entro num salão.
ARMANDO – Só entrei pra dar uma olhada nas revistas. Fazia tanto tempo que eu
não lia nada que tava com medo de ter virado analfabeto.
EURIDES – Se eu tivesse um pouco de dinheiro, era eu que ia pagar alguém pra dar
um susto nele. Armando, e se a gente fosse falar com o seu irmão? Ele anda bem de
vida, não anda? A última vez que eu vi a sua cunhada ela me contou que eles estavam
comprando apartamento na praia, acredita?
ARMANDO – Quando que você andou falando com eles?
EURIDES – No finados, quando eu levei a Doralice para vender flor lá no Araçá, não
lembra?
ARMANDO – Quantas vezes eu já pedi pra você não falar no nome do meu irmão
aqui nesta casa?
EURIDES – Quem mais pode ajudar a gente, homem de Deus? Eu vou falar com ele,
Armando. Se ele emprestar um dinheiro, nem precisa ser muito, pra gente abrir um
outro tipo de negócio, não sei...uma lanchonete, uma lojinha...
ARMANDO – Se você sair desta casa para ir falar com ele, eu prefiro que você não
volte mais. O dia em que eu mais precisei da ajuda dele...
EURIDES (sarcástica) - ...ele virou as costas e foi embora. (Imitando Armando) – Meu
pai ainda tava quente no túmulo e ele caiu no mundo. E me largou sozinho cuidando
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da nossa mãe, a velha doente... (Provocativa) – Ah, Armando, ninguém agüenta mais
escutar esta história. Você não morreu, morreu? E sua mãe também não. Não naquela
época, pelo menos. Foi morrer bem depois, e tava bem gorda no caixão, se você quer
saber. Esquece esta história, seu irmão foi cuidar da vida dele. O que que custa você
procurar ele, Armando? Ele tá bem de vida, pode ajudar a gente. Vai ficar
alimentando este ódio até quando? Sua cunhada me falou que se ele soubesse que você
ia tratar ele bem, ele vinha te procurar.
ARMANDO – Até com aquela tonta da minha cunhada você resolveu se dar bem
agora? Você não vivia dizendo que ela era uma ensebada que apanhava do marido e
ficava quieta? Que que é, ficaram amiguinhas agora, é?
EURIDES – Eu ainda acho que ela é uma grande tonta que apanha do marido, sim.
Mas e daí? Se o marido tá bem de vida e uma hora ou outra resolve dar umas
bufunfas nela, paciência. A gente ouve falar de tanta mulher rica que amanhece de
olho roxo. E sabe em quem elas descontam depois? No cartão de crédito... É verdade,
elas levam na cara e descontam no bolso. Se você quer saber, eu acho isso lindo, lindo
mesmo. Acho que é um novo jeito de amar, viu. Quem me dera.
ARMANDO – Eu só torço para que você não fale tanta barbaridade fora de casa.
Aqui eu já estou acostumado, mas não vá abrir sua boca lá na esquina pra falar essas
coisas, viu, Eurides?
EURIDES – E então, eu posso?
ARMANDO – O quê?
EURIDES – Ir falar com o seu irmão?
ARMANDO – Eurides, não me tira do sério, senão você vai ver o que é levar porrada
sem ter cartão de crédito depois... Eu já disse que cheguei até aqui sem precisar do
meu irmão. E não é agora que isso vai mudar.
EURIDES – Até aqui aonde, posso saber?
ARMANDO – Eu trabalhei a vida inteira, sem nunca pedir nada pra ele. Aliás, passei
anos sem nem lembrar que ele existia.
EURIDES – E o que é que você ganhou com isso? Trabalhou, trabalhou....até chegar
perto dos 50 anos e levar um pé na bunda. E depois nunca mais conseguiu nada na
vida. Você acha que a gente está em condições de ficar alimentando orgulho besta?
Ouvem-se batidas no portão
EURIDES – Você está esperando alguém?
ARMANDO – Será que é o Vasquez?
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Eurides vai até a janela. Afasta a cortina e observa.
EURIDES – É uma moça. Bonitinha, até. Vem ver.
ARMANDO – Será que é outra assistente social?
EURIDES – Mas até na casa da gente elas vêm encher o saco agora? Não basta o que
elas já atormentam a gente lá no trabalho?
Novas batidas
ARMANDO – A gente vai ter de atender. Ela não está com cara de quem vai embora.
EURIDES – Será que ela está procurando emprego?
ARMANDO – E se for pesquisa?
EURIDES – Se for pesquisa, eu não vou responder. Já estou calejada. Eles querem
saber quantas televisões a gente tem em casa, quantos rádios... E quando a gente diz
que não tem máquina de lavar, eles dizem que a gente não serve pra pesquisa. Onde já
se viu? Não servir nem pra pesquisa? Vai lá fora você e diz pra ela que a gente não
tem mais máquina de lavar.
As batidas prosseguem.
EURIDES (indo atender) – Ô, saco!
Depois de alguns segundos, Eurides volta, em companhia da jovem.
EURIDES – Armando, esta aqui é a Mariana. Ela veio falar com você.
ARMANDO – Comigo? Pois não! Não sei se a Eurides já te falou, mas a gente não
trabalha com imobiliária.
MARIANA – Como?
EURIDES – Armando, deixa a moça falar...
ARMANDO – Claro, eu só quis adiantar um pouco. (Para Mariana) – Você não veio
aqui pedir emprego de sacudir bandeira com nome de prédio lá no semáforo? É que
neste ramo a gente não atua.
MARIANA – Não, seu Armando, eu vim falar sobre a faixa.
ARMANDO – Que faixa?
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MARIANA – A faixa que estava lá na praça, falando da cachorrinha que sumiu. A
cachorra era da minha avó.
EURIDES – Ah, judiação. E acharam?
MARIANA – Ainda não.
EURIDES – Ô, coitadinha. Mas o que é que o Armando tem com isso?
MARIANA – É que desde que minha avó colocou a faixa lá, não teve nenhum
telefonema. Hoje eu fui fazer uma visita para ela, eu nem sabia que a cachorra tinha
sumido. Então ela me pediu para dar uma passada na praça, só para ver se a faixa
continuava lá.
ARMANDO – Sei, sei...
MARIANA – Como eu não encontrei faixa nenhuma, eu perguntei para umas pessoas
que estavam lá sentadas se elas tinham visto alguma coisa. E um homem me disse que
tinha visto o senhor retirando uma faixa de lá hoje cedo, enfim...o senhor me desculpe
ter vindo até aqui. Ele me ensinou onde o senhor morava. Eu só queria saber se, assim
por engano, o senhor não teria retirado a faixa da minha avó.
EURIDES – Claro que não. Aquela faixa era nossa, não é Armando?
ARMANDO – Claro, aquela que eu tirei de lá era nossa. Tanto era nossa que eu até já
joguei fora, não é, Eurides? Eu prefiro até esquecer este episódio...
MARIANA – Vocês perderam alguma coisa também?
ARMANDO – Nesta vida, quem não perde, não é?
EURIDES – Nem me fale... Você quer um copo de água, Mariana?
MARIANA – Não, obrigada. Desculpas por eu estar fazendo assim tantas perguntas,
ter vindo até aqui... É que minha avó anda tão abatida, coitada. Ela tinha certeza que
ia ter alguma notícia da cachorrinha depois de colocar a faixa. Mas até agora, nada.
E quando eu soube que o senhor tinha retirado uma faixa de lá, bom, claro que passou
pela minha cabeça que podia ser a mesma... Por engano, é claro. O senhor me
desculpe mais uma vez, seu Armando, que bobagem. Ter vindo até aqui...às vezes a
gente quer ajudar uma pessoa e acaba metendo os pés pelas mãos...
ARMANDO – Claro, Mariana, nem se preocupe. No seu lugar, eu teria feito a
mesmíssima coisa... Quem tem coragem de recusar um pedido feito pela avó, não é
mesmo?
MARIANA – Eu vou voltar lá na minha avó e conversar com ela. Quem sabe a
cachorrinha não apareceu...
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EURIDES – Você não quer deixar o número do telefone da sua avó aqui com a gente?
Vai que a gente fica sabendo de alguma coisa, não é, Armando? A gente anda tanto
pelo bairro... Não custa ajudar, não é?
ARMANDO (correndo para pegar papel e lápis) – Pode falar, Mariana. Se a gente
souber de alguma coisa, liga na hora, fala pra sua avó que ela pode ficar tranqüila...
MARIANA – Eu acho que ela está mais preocupada com os filhotinhos, pra falar a
verdade.
EURIDES – Filhotinhos? A cachorrinha tinha filhotinhos?
MARIANA – Vai ter, acho que agora no fim do mês. Na última cria ela teve oito, a
senhora acredita?
ARMANDO – Oito???
MARIANA – E sobreviveram todos. Minha vó comprava três litros de leite por dia
pra alimentar aquela ninhada, porque a cachorrinha, sozinha, não dava conta. E ela
foi sumir justo agora, que está grávida de novo. Bom, vamos torcer para que ela
apareça, não é? Eu já vou indo...
EURIDES – Armando...
ARMANDO – Hã?
EURIDES – O telefone, anota o número do telefone da avó da moça... (Para si mesma)
-Três litros de leite por dia...meu Deus.
Latidos da cachorra.
MARIANA – Ah, vocês também têm cachorro?
ARMANDO – É, temos, temos... Eles trazem uma alegria pra casa, não trazem?
MARIANA – Era ele que tinha sumido? Posso dar uma olhadinha? Coitado, ficou
fora quantos dias?
EURIDES – Ah, o nosso é melhor nem ver. É uma fera, já mordeu tanta criança aqui
na vizinhança. O que já trouxe de dor de cabeça pra gente... Quando ele sumiu, eu até
disse pro Armando: vai ver que foi melhor assim. Mas o Armando é muito apegado
em bicho, ficou com pena, mandou até colocar anúncio na faixa. E agora o bicho
voltou pior, tá estressado que é uma coisa. Ta estranhando até a gente...
ARMANDO – É, Mariana, a Eurides tem razão. Outra hora você vê. Você dá uma
passadinha aqui, não precisa nem avisar...
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MARIANA – Ah, seu Armando, por favor. Só uma olhadinha.
ARMANDO – Claro, numa outra hora...
MARIANA - Seu Armando, o senhor não me leve a mal. Mas eu gostaria muito, como
dizer, gostaria imensamente de dar uma olhada no cachorrinho, se o senhor não se
incomodar.
EURIDES – Cachorro é tudo igual, Mariana. Só muda o tamanho do rabo e a cor do
pêlo. Quem viu um, viu todos. E o nosso nem é lá grande coisa.
MARIANA – Ainda assim, dona Eurides. Uma olhadinha só não vai fazer mal algum,
vai? Ele está lá no quintal?
ARMANDO – Se é que já não fugiu de novo... Porque ele é assim. A gente ouve uma
latida, vai ver e pronto: o bicho já se mandou. Às vezes volta só no dia seguinte...
EURIDES – Parece até gato... Independente que é uma coisa...
MARIANA – Vamos lá dar uma olhadinha, então?
ARMANDO – Não, quer dizer, aquilo lá está um barro só. Ontem eu passei o dia
inteiro lá, cavoucando para plantar grama...A Eurides foi depois com a mangueira,
encharcou tudo. É capaz de você perder o sapato naquele lamaçal que virou o nosso
quintal.
MARIANA – Não faz mal, a gente olha de longe...
EURIDES – Ah, se ele estiver dentro da casinha, nem dá para ver.
MARIANA – O senhor me dá licença de ir lá dar uma olhada?
ARMANDO – Bom, se você insiste tanto... Vamos fazer o seguinte, então: eu vou lá
buscar o bichinho e trago ele até aqui, tá bom assim?
MARIANA – Por mim, está ótimo.
EURIDES – Armando, vê bem se o portão não está aberto, viu... Se a gente deixar o
portão aberto ele pode fugir, entendeu, Armando... Depois ninguém mais pega...
Armando dirige-se ao quintal
EURIDES – Eu não sabia que você gostava tanto assim de cachorro...
MARIANA – Minha avó gosta muito mais, a senhora precisa ver.
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EURIDES – É, gente idosa é mais apegada mesmo...
MARIANA – A senhora mora aqui só com o seu Armando?
EURIDES – Isso, quer dizer, nós e ele...o cachorro.
MARIANA – Vocês não têm filhos?
EURIDES – Uma moça, mas já saiu fora.
MARIANA – Pra fora? É intercâmbio?
EURIDES (nervosa, olhando para o quintal) – Oi?
MARIANA – Ela foi para fora fazer intercâmbio?
EURIDES – Intercâmbio? Ah, Deus queira que sim, quem é que vai saber, não é?
MARIANA – O seu Armando está demorando, hein?
EURIDES – Aquele lá sai pra fazer uma coisa e se enrosca tanto. Vai ver que
encontrou um conhecido no caminho.
MARIANA – Um conhecido? Daqui até o quintal?
EURIDES – É modo de dizer... E você faz o quê, Mariana?
MARIANA – Eu sou arquiteta, trabalho na Prefeitura.
EURIDES – Não me diga. Emprego fixo, com carteira assinada? Como é que eles
pagam lá? É tudo no dia 30 ou vem metade no dia 15?
MARIANA (estranhando) – É integral no dia 30... E vocês?
EURIDES – Nós o quê?
MARIANA – No que vocês trabalham?
EURIDES – Eu e o Armando? Autônomo, a gente é autônomo. A gente lida com o
público.
MARIANA – Deve ser movimentado, não?
EURIDES – E põe movimento nisso.
MARIANA – É em alguma área específica?
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EURIDES – Ah, é um pouco de tudo, né... Um pouco de lazer, tem atividade pra
criança, guloseima, cada dia é uma coisa... O que não tem é rotina...
MARIANA – Sabe que quando eu estava vindo aqui pra casa da senhora eu vi uma
coisa e pensei: olha só que coincidência...
EURIDES – Coincidência, aqui, na minha casa? Nossa, há quanto tempo a gente não
tinha disso por aqui... Intercâmbio, coincidência...quando a gente vai ficando pobre,
usa até palavra mais curta pra economizar...
MARIANA – É. Eu estou falando desse córrego aí na frente. A senhora sabia que ele
vai ser canalizado? O projeto está prontinho lá na Prefeitura. Foi meu departamento
que aprovou.
EURIDES – Não acredito. E esse cheiro vai desaparecer?
MARIANA – Completamente. Eles vão aprofundar o leito, canalizar, fazer um desvio.
Vai ser uma obra bem grande.
EURIDES – Que maravilha, a gente vai poder dormir sem sentir esse cheiro?
MARIANA – E é pra logo, viu? Acho que daqui umas três ou quatro semanas eles já
vão interditar aquela avenidona lá atrás para começar as obras.
EURIDES (assustada) – Que avenidona?
MARIANA – Aquela grandona, que passa depois da praça.
EURIDES – Uma que é cheia de semáforos?
MARIANA – Esta mesma.
EURIDES – Uma que de vez em quando tem umas pessoas vendendo umas coisinhas
assim... quando o farol fecha?
MARIANA – De vez em quando é bondade da senhora. É o dia inteiro. Acredita que
eu nem gosto de vir até a casa da minha vó só para não ver tanta exploração? Bom, a
cidade inteira está assim. Mas parece que ali é uma concentração.... (Pausa) – Mas
cadê o seu Armando?
EURIDES – Deixa o Armando pra lá. Como assim, exploração?
MARIANA – Tanta gente vendendo tranqueira. E aquele monte de criança...
EURIDES – Ah, e você acha que eles não ganham? Tão lá pra quê? Pra se bronzear?
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MARIANA – Não sei, devem ganhar. Mas que aquilo deixa a gente irritada, a senhora
vai me desculpar, mas deixa, viu. Às vezes a senhora não perde a paciência no
semáforo?
EURIDES – Perco, ah, se perco. Mas me explica esta história direito. A Prefeitura vai
fechar a avenida inteira, é isso?
MARIANA – Eu nem devia ter falado isso. A senhora ficou preocupada com o
trânsito na região, não é? Mas, dona Eurides, eles vão interditar só por alguns meses,
depois a senhora vai ver como vai melhorar. Vai até valorizar o bairro. Eles têm idéia
de fazer uma espécie de via expressa, com bem menos semáforos...
EURIDES – Vai fechar por vários meses e, quando reabrir, quase não vai ter mais
semáforo? É isso mesmo que eu entendi?
MARIANA – Não é uma maravilha? Olha, dá licença, eu vou lá fora chamar o seu
Armando.
EURIDES – O Armando sabe o caminho, que coisa. Me explica direito esta história
das obras.
MARIANA – O que eu sei é isso. A prefeitura vai canalizar este córrego, mas antes ele
vai ser desviado. E vão fechar a avenida para as obras.
EURIDES – E o que vai acontecer com aquelas pessoas, aquelas lá, que trabalham nos
faróis? É que eu conheço uma ou outra...
MARIANA – Até onde eu sei, a prefeitura não tem planos para elas. Pelo menos no
meu departamento nunca ninguém falou sobre isso. Provavelmente elas vão se
arranjar em outros faróis, a senhora não acha? O que mais que elas vão fazer?
EURIDES – É isso que eu gostaria de saber...
MARIANA – Sabe, dona Eurides, eu senti que a senhora ficou um pouco preocupada
com elas. Mas eu vou confessar uma coisa: sabe que essas pessoas me incomodam um
pouco?
EURIDES – Incomodam? Como assim, incomodam?
MARIANA – Não sei, é uma sensação esquisita. Às vezes eu sinto um pouco de pena
delas, às vezes eu sinto um pouco de raiva. Vai entender, não é? É que... quando eu
paro o carro no farol, eu fico pensando: só tem um vidro me separando deles. E, cá,
entre nós, eu não gosto desta sensação, não... Eu fico insegura, sei lá.
EURIDES – É, eu também nunca tinha pensado deste jeito. Só um vidro e a gente
pode mudar de lado...
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MARIANA – Pois eu sempre penso. E vou ser bem franca: e é por isso que eu prefiro
não cruzar com eles. Não me leve a mal, mas é assim mesmo que eu penso. Outro dia
eu vi uma criança tão pequena no semáforo, com tão pouca roupa, que eu fiquei com
raiva de mim mesma por estar tão bem vestida. A senhora acha isso justo? Eu não
acho, na boa. Eu não quero sair de casa para me sentir culpada pela desgraça dos
outros. Caramba, em cada esquina a gente é obrigada a dar de cara com isso...
EURIDES – É... e o que será que passa na cabeça deles, não?
MARIANA – Outro dia eu fiquei pensando nisso. Tinha um moço tão bonito
vendendo amendoim torrado. Jovem, loiro...
EURIDES – Loiro? Eu não tô falando que os loiros...
MARIANA - ...um tipão. Podia estar trabalhando numa loja, num escritório, um baita
sorriso, e estava ali, com uma latinha e um fogareiro vendendo amendoim. Aquilo foi
demais. Parei e comprei dois pacotinhos dele. Senti que a gente precisa ajudar os
iguais.
EURIDES (irônica) – Ah, nossa...que coisa bonita...
MARIANA – E o seu Armando, hein? Eu preciso ir embora. Vou lá dar uma olhada.
Quando Mariana se levanta para ir ao quintal, Armando retorna.
ARMANDO – Olha aí de longe... Eu fiquei um tempão para acalmar o bicho. O
danado quase me mordeu...
EURIDES – Armando???
MARIANA – Que gracinha, que coisinha mais branca... Como é que o senhor mantém
o bichinho assim limpinho? Olha só...
ARMANDO – Fica aí, fica aí que ele tá muito assustado.
MARIANA – Acho que é da mesma raça que a cachorrinha da minha avó. Mas a dela
tem umas pintonas pretas... Olha isso, parece um bolo de noiva, tão branquinho...
EURIDES – É... a gente brinca que até parece neve, não é, Armando?
ARMANDO – Bom, dá licença, viu, Mariana. Eu vou guardar ele lá na casinha. Esta é
a hora em que ele tira aquele cochilão...
MARIANA – Claro, claro... Prazer em conhecê-lo, seu Armando... Dona Eurides, eu
também estou indo. Muito obrigada pela atenção, hein. Eu vou dizer pra minha avó
que o cachorro de vocês foi encontrado. Quem sabe isso dê alguma esperança para
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ela, não é? E vou falar para ela colocar outra faixa na praça. Se deu certo com vocês,
quem sabe...
EURIDES – Isso... fala mesmo isso para ela...
MARIANA – E se daqui a três ou quatro semanas eles não começarem as obras, pode
ir cobrar lá na Prefeitura.
EURIDES – Nossa se vou, no mesmo dia...
Mariana sai de cena. Armando retorna.
ARMANDO – Ela já foi?
EURIDES – Já. O que que você fez com a cachorra, meu Deus?
ARMANDO – Vou ter de comprar outra lata de tinta branca pro Juca. Usei quase
metade pra pintar a cachorra. A pestinha tem um pêlo que chupa tinta que é uma
desgraça. Esta tal de Mariana me atrasou o dia. Já pensou se ela reconhece cachorra e
me resolve chamar a polícia? Agora eu vou dar uma corrida lá no farol ver o que a
gente faturou hoje. Eurides, limpa a cachorra e depois você liga para a vó da
Mariana. A gente vai poder devolver o bicho amanhã mesmo. Depois de um banho ela
volta a ser o que era.
EURIDES – Cacete, ela foi embora e eu não peguei o número.
CENA QUATRO
Palco dividido para abrigar duas ações simultâneas. Enquanto Eurides continua na sala,
Armando está no farol. Luzes e trilha sonora com ruídos de automóvel devem ser
utilizadas para demarcar a paisagem urbana onde está Armando. Os dois personagens
devem ser vistos e ouvidos pelo público.
EURIDES (com uma bacia de água e pedaços de pano, limpando a cachorra que está no
interior da caixa) – E não é que você tem mesmo um olhinho preto...
ARMANDO (gesticulando para seus empregados, que devem estar um pouco longe) –
Pára de rir, Doralice. Tá pensando que isso aqui é festa? A gente vai acabar pintando
o seu cabelo de loiro, viu? Vai lá pedir dinheiro naquele carro da ponta...Não nesse,
sua sonsa, no outro, aquele que tem a mulher sozinha no volante...
EURIDES – Como é que eu vou dizer para o Armando que vão fechar a avenida e a
gente vai ficar sem emprego?
ARMANDO – Ela não deu nada? Quando você vai aprender a fazer cara de choro,
menina? Eu já te ensinei: quando eles não dão um trocado, faz cara de choro. Olha
que emprego lá fora está difícil, hein?
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EURIDES – Quando a gente acha que já está na merda, vem alguém e puxa a
descarga. Como é que eles podem fechar uma avenida assim, sem mais nem menos?
Tirar o emprego de um monte de gente. O que vai ser daquela criançada agora? Sem
uma atividade, sem uma ocupação. Elas vão acabar na rua...
ARMANDO – Elias, pode ir embora. Quem é que vai comprar pano de prato de
noite? Nem dá mais para enxergar os bordados. Ô, folgado, tá pensando o quê? Deixa
os panos aqui comigo. Da última vez que você ficou com eles, vieram faltando dois.
Vai ver se nos outros pontos o pessoal leva material de trabalho pra casa, vai...
EURIDES – Mas o Armando precisava ter passado tanta tinta em você? Vou ficar a
noite inteira aqui te limpando. Via expressa, via expressa. Quem é que precisa de via
expressa neste fim de mundo? E se eu fosse lá na Prefeitura falar que o córrego nem é
assim tão fedido? Que o povo daqui é que é cu doce, isso sim.
ARMANDO – Não é pra mim que você tem de vir choramingando, Doralice. É lá no
vidro dos carros. Aqui ninguém tá te vendo. Ô, menina, vem cá: você tem alguma
amiga loirinha bem novinha que está precisando de emprego?
EURIDES – Imagine como vai ficar a cabeça dessas crianças. Com cinco ou seis anos
e já enfrentando a primeira demissão em massa na vida delas...
ARMANDO – Piranha, vem cá, menino. Tira o boné. Deixa eu ver se queimou muito.
EURIDES – E aquela outra ainda vem aqui, com a maior cara de pau, e diz na minha
frente que fica irritada quando passa no farol e vê tanta gente circulando. Por que não
fica em casa, então? Quer dizer que ver os outros trabalhando agora irrita? Mas bem
que do moço do amendoim ela gosta, né? Daí pode, sé é bonito, gostosão, aí não irrita,
né...
ARMANDO – Só deu uma chamuscadinha de nada, Piranha. Do jeito que a Eurides
falou, pensei que tinha queimado feio. Vai lá, agora corre que fechou o sinal. Olha aí,
deixou cair uma bolinha...
EURIDES – Se a gente estivesse trabalhando com amador, ainda vá lá. Porque daí
irrita mesmo. Quantas vezes eu já não vi gente no farol que não sabe fazer nada?
Umas crianças sem graça, sem carisma, que não conseguem equilibrar três bolinhas
na mão. Tá chegando um monte de gente despreparada no mercado, isso é verdade. A
gente que é do ramo percebe. Mas no nosso farol, não. Olha, a gente ouve umas coisas
que não tem como não ficar magoada, viu... Mas aquilo que ela falou do vidro é uma
história bem pensada, hein? Só um vidro de carro separando a gente deles. Um
vidrozinho de nada. Credo. Vai que um dia alguém começa a quebrar os vidros dos
carros. Ia ser um Deus nos acuda...
ARMANDO – Que confusão é aquela lá na frente, Doralice? Parece que é polícia. Vai
dar uma olhadinha.
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EURIDES – Ah, pára de me lamber, sua boba. Não tá vendo que minha mão tá suja
de tinta? Nossa, há quanto tempo que eu não dou banho em alguém aqui nesta casa.
Desde que a Arlete era menina. Arlete é o nome da minha filha com o Armando, mas
a gente sempre chamou ela de Leleca. Um dia, ela ficou cansada desta vida que a
gente leva e foi embora. Mas antes ela teve um arranca-rabo dos bravos com o
Armando. Eu nunca vi aquele homem chorar do jeito que ele chorou depois da briga
com ela. Ela chamou ele de perdedor, de desgraçado. Disse que ele estava levando a
gente pro esgoto. Você sabe que eu até entendo a Leleca. Eu não dou razão pra ela,
não é isso. Mas ela é moça, tem sonhos, coitada. Não podia ficar vivendo do jeito que a
gente vive, mudando de um lugar pra outro, feito palhaço de circo. O dia que o
Armando quis colocar ela para trabalhar no semáforo foi a gota d’água. Ela jurou
que preferia passar fome, mas que não ia pra esquina com a gente. Este orgulho todo
ela herdou do Armando, eu não ligo pra isso. Se a gente precisa trabalhar, vamos
trabalhar. Não tô nem aí se as outras pessoas vão falar. Nem sei se a Leleca está
melhor que a gente. Ela nunca fala direito o que anda fazendo. Por isso que eu achei
bonito o que aquela moça falou. Intercâmbio. Nem sei direito o que é isso. Mas de hoje
em diante, eu vou pensar que a Leleca anda fazendo intercâmbio.
ARMANDO (olhando ao longe) – Caramba, tão levando a mulher.
EURIDES – Mais um pouquinho e você já vai ficar branca e preta de novo... Esta do
Armando foi boa, não foi? Eu jurava que ele ia fugir pelos fundos com você. Pensou se
aquela moça inventa mesmo de chamar a polícia? Justo no dia em que a gente tem de
pagar a caixinha...
ARMANDO – A Eurides vai dar risada quando eu contar.
Luzes de Armando se apagam. O foco fica em Eurides.
EURIDES – Agora que eu tô aqui te limpando, eu lembrei de uma coisa que aconteceu
semana passada lá no farol. Eu não contei pra ninguém, claro. Pra quem que eu ia
falar uma coisa dessas? Uma hora em que o sinal fechou, parou um carrão com um
médico. Acho que era médico, todo de branco. Sabe esses médicos meio coroas, mas
bem apanhados? Ele era assim, cabelo um pouco grisalho, cortado curtinho, olho
claro, aquele queixão quadrado. Uma barba tão bem-feita, o rosto até brilhava. O
carro dele era o primeiro no farol e eu tava ali, bem do lado do vidro dele. Eu encarei
ele mesmo, que se foda. Ele também me olhou, coitado, ficou assim meio sem jeito e
deu um sorrisinho. Acho que ele pensava assim: o que que essa louca tá querendo?
Será que vai me assaltar? Quando eu percebi que ele tava me olhando, sabe o que eu
fiz? Ai, meu Deus, que vergonha... Eu passei a língua nos lábios, assim (repete o
movimento) igual aquelas moças das capas de revista. Ele levou um susto, deu até
pena. Desmanchou o sorriso, subiu o vidro e, quando o sinal abriu, acelerou feito um
doido. Sabe o que eu senti naquele minutinho que fiquei ali, olhando pra ele? Tesão.
Um tesão danado, desses que eu não sentia fazia mais de anos. Eu fiquei pensando
como seria gostoso ir pra cama com um médico, tudo tão limpo, cheiroso, tão
diferente desta vida que a gente leva... Se eu fosse pra cama com aquele médico, sabe o
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que eu ia pedir? Pra ele não tirar a roupa... pra ele me comer inteirinho de branco,
com os sapatos, com a camisa abotoada, com a aliança, com a caneta no bolso, só
abrindo o zíper da calça. Sabe o que mais eu ia pedir? Pra ele me comer de luvas,
aquelas luvas fininhas que eles usam pra operar a gente. Ele podia fazer o que
quisesse comigo, qualquer coisa, mas inteirinho vestido de branco, e com as luvas.
Numa cama branca, se fosse numa maca melhor ainda, com cheiro de éter, de
desinfetante. Naquela hora eu acho que ia me sentir tão limpa de novo. Eu tenho
certeza que o Armando, pelo menos desta vez, ia ficar com ciúmes de mim...
Põe a caixa no chão.
CENA CINCO
Eurides está deitada no sofá. Colocou uma roupa de dormir. Armando entra e acende a
luz. Ao ver a mulher deitada, começa a se mover em silêncio. Tenta voltar para apagar a
luz.
EURIDES – Eu não tô dormindo...
ARMANDO – Ainda não? Já tá tarde.
EURIDES (sentando-se) – Nem olhei a hora. Tava só aqui, descansando um pouco.
ARMANDO – A cachorrinha...
EURIDES – Eu já limpei. Deu um trabalho danado, viu. Vê se não faz mais isso com a
coitada. Agora ela tá dormindo lá na caixinha.
ARMANDO – Tá certo.
EURIDES – Armando, eu preciso conversar sério com você...
Armando tira do bolso um pacotinho de bala desses vendidos nos semáforos.
ARMANDO – Eu trouxe pra você. Eu vi que aí tem uma de hortelã e uma de
caramelo.
EURIDES – Caramelo eu não pego mais. Da outra vez caiu minha obturação.
ARMANDO – Não é pra mastigar...
Eurides escolhe a bala de hortelã e a coloca na boca.
EURIDES – O Vasquez teve aqui. Ele veio trazer a lata de querosene e as duas tochas.
Eu peguei a lata com ele lá no portão mesmo, não vi direito. Mas parece que ela tá
cheia. Ele é bem feinho, hein, coitado... Quase careca aqui em cima e um rabinho de
cavalo tão miúdo. Você devia dar uns conselhos pra ele, sobre aparência.
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ARMANDO – Ele falou alguma coisa?
EURIDES – Perguntou se a gente sabia do Piranha. Ele tava preocupado com a
cabeça do menino.
ARMANDO – Eu vi o Piranha agora de pouco. Não foi nada, só chamuscou aquelas
trancinhas.
EURIDES – Ele falou que se aparecer alguma outra coisa pra ele, que não precise
engolir fogo, ele pega.
ARMANDO – Ah, não sei... a gente perde a confiança, né?
EURIDES – Eu pedi pra ele imitar um pouco argentino. Mas ele não quis.
ARMANDO – Ah, que fresco.
EURIDES – Ele falou que sotaque argentino não está dando sorte pra ele. Agora ele
só quer fazer espanhol. Daí eu pedi pra ele ensinar uma palavrinha de espanhol
mesmo.
ARMANDO – E ele ensinou?
EURIDES – Ah, ensinou, mas eu tenho vergonha de falar, porque ele disse que tem de
colocar a língua assim, no meio dos dentes.
ARMANDO – E você colocou?
EURIDES – O quê?
ARMANDO – A língua no meio dos dentes?
EURIDES – Coloquei, né. Ele disse que era pra colocar.
ARMANDO – No meio dos seus dentes ou no meio dos dele?
EURIDES – Ah, já vai começar com as suas gracinhas...
ARMANDO – Eu tô brincando, Eurides, deixa de ser boba. Fala para eu ver.
EURIDES – Não tem graça nenhuma, não vou falar nada.
ARMANDO – Fala logo, vai...
EURIDES (pondo a língua entre os dentes) – Entonces.
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ARMANDO (rindo) – O quê? Repete, vai...
EURIDES (envergonhada) – Ah, Armando, pára com isso.
ARMANDO – Só mais uma vez, vai...
EURIDES – Entonces.
ARMANDO – Ah, o Vasquez... ia dar um dinheirão, se não fosse a asma dele.
EURIDES – Ô, se ia... Armando, aquela hora que eu fiquei aqui, conversando com a
Mariana, ela falou que...
ARMANDO – Graças a Deus que você ficou enrolando a moça. Ela tava bem
desconfiada de alguma coisa, não estava?
EURIDES – Acho que estava. Ela trabalha na Prefeitura e...
ARMANDO – Ah, você não sabe o que acaba de acontecer lá na esquina.
EURIDES – Que foi?
ARMANDO – Levaram a Leonor.
EURIDES – Como assim, levaram? Bandido?
ARMANDO – A polícia.
EURIDES – Você tá brincando! Ela não pagou a caixinha? Desgraçada, aquele mês
que eu não paguei ela disse que eu era a vergonha da categoria.
ARMANDO – Muito pior, descobriram que ela andava vendendo crack.
EURIDES – Filhadaputa, mas eu sempre desconfiei que ali não era trabalho honesto.
Quantas vezes eu não falei que ali com a Leonor tinha coisa? A gente tem experiência
no ramo, Armando. Ninguém sobe assim depressa.
ARMANDO – Dois carros de polícia, um camburão, um monte de soldado. Parecia
guerra.
EURIDES – Tudo isso por causa da Leonor? Aquela gosta de aparecer até na hora de
ser presa! Por que tudo isso, como é que ela ia correr? Com aquele saltão que ela usa?
Sem falar no tamanho daquela bunda...
ARMANDO – Acho que eles pensavam que o traficante estava ali por perto. A
Doralice e o Elias foram lá ver e me contaram tudo. Parece que pegaram ela de jeito
mesmo. Ela tava com uma bolsinha cheia das pedras. Flagrante. Não teve perdão.
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EURIDES – Nossa Senhora! Tô até vendo o barraco que aquela lá vai arrumar na
cadeia. Quero só ver se amanhã ela vai olhar pra mim com aquele nariz empinado...
Ah, meu Deus, por que que eu não estava lá?
ARMANDO – Acho que a gente não vai ver a Leonor tão cedo, não. Se pegaram elas
com as pedras, não vão soltar fácil.
EURIDES – Assim ela aprende... Você sabe quando é o dia de visita? Eu vou ver ela
na cadeia, juro por Deus. Não quero perder isso por nada. Ver aquela pentelha atrás
das grades, de sapato baixo. (Pausa) - Ah, é melhor, não. Do jeito que a maré tá brava,
é bem capaz de eu chegar lá e estourar rebelião. E eu acabar de refém do lado daquela
gorda.
ARMANDO – É...
EURIDES (Pensando) - Armando, se ela foi presa, a esquina dela ficou descoberta?
ARMANDO – Demorou pra cair a ficha, hein? Acredita nisso? Aquele ponto nobre da
Leonor agora está sem comando. Ao deus dará...
EURIDES – Nossa, quem diria que a gente ia ver isso...
ARMANDO – Aquele ponto não vai ficar livre muito tempo não viu? Quando
descobrirem que a Leonor tá presa...
EURIDES – É... aquilo ali não vai durar muito tempo, não. Aliás, Armando...
ARMANDO – Era isso que eu queria te falar. A gente tem que ser rápido. O nosso
destino tá mudando... Eurides, e se você voltasse a engolir fogo? Lembra o sucesso que
era quando você começou? Saiu até aquela foto sua no jornal: a primeira engolidora
de fogo da cidade. Você foi falar na rádio, Eurides...
EURIDES – Ih, tanto tempo que faz isso. Hoje ninguém mais dá bola pra mulher
engolindo fogo. Tudo já virou tão carne de vaca nesta vida.
ARMANDO – Foi bobagem sua ter parado, eu falo isso até hoje. Tá certo que depois
vieram outras, mas você foi a primeira. Por mim, não teria parado nunca.
EURIDES – Armando...(Pausa)... quando eu comecei a engolir fogo, você parou de me
beijar...
Armando fica envergonhado. Acaricia o rosto da mulher.
EURIDES – Eu não te culpo, não. Aquele gosto de querosene que ficava na minha
boca era duro de agüentar, né?
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ARMANDO – E se você voltasse a engolir fogo só hoje? É uma emergência, você
entende? Só pra gente assumir o ponto da Leonor e marcar território. Amanhã a
gente pensa em como vai tocar aquilo.
EURIDES – Amanhã a gente vai ter de pensar em tanta coisa...
ARMANDO – Eu sei que vai. Afinal, de uma hora pra outra a gente vai ter dois
pontos. Aumentar o número de funcionários, comprar mais material para o estoque.
Eu já vim para cá pensando: a gente precisa contratar alguém de confiança para ficar
um tempinho no nosso farol enquanto a gente põe ordem na casa lá na esquina da
Leonor. Depois que ela foi presa, o pessoal dela debandou. E o medo que eles ficaram
da polícia? Ali eles não voltam mais. No começo eu sei que vai ser difícil controlar as
duas esquinas, mas em um mês a gente vai transformar aquilo numa mina de ouro,
você vai ver. Estou vendo as vacas magras indo embora, Eurides...
EURIDES – Armando, é que... daqui a um mês... A Mariana, aquela moça, ela disse...
ARMANDO – Fica aí, fica aí... Não sai daí...
Armando corre até a cozinha e volta com a lata de querosene e as tochas.
ARMANDO – Quer dar uma treinadinha?
EURIDES – Tá louco? Dentro de casa? Vai que pega fogo no telhado.
ARMANDO – Vamos logo, Eurides. Você vai ver, hoje a gente já vai voltar pra casa
com uns trocados, se Deus quiser. Corre mulher, vai trocar de roupa. Se a gente for
rápido, ainda dá para pegar umas saídas de escola.
Eurides sai. Armando está eufórico. Cantarola pela sala enquanto ajeita as tochas e a
lata de querosene. Eurides volta, com roupa de trabalho.
EURIDES – Dei uma olhada na cachorrinha. Tá dormindo que parece uma criança.
ARMANDO – Será que ela sabe fazer alguma coisinha pra ajudar a gente no farol?
EURIDES – Eu também tava pensando nisso, mas ela tá grávida, Armando, coitada.
Eurides pega a lata de querosene e as duas tochas.
EURIDES – Vamos, Armando?
ARMANDO – Vamos. Ah, Eurides, naquela hora que eu cheguei... você ia me falar
alguma coisa?
EURIDES – É que...
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ARMANDO – Fala logo, o ponto da Leonor tá lá, esperando a gente.
EURIDES – É que...de hoje em diante, se alguém perguntar o que a nossa filha anda
fazendo, você diz que ela está fazendo intercâmbio.
ARMANDO – Intercâmbio. Que raio é isso?
EURIDES – Eu também não sei direito. Mas acho que ninguém que a gente conhece
também sabe. Então, fica por isso mesmo.
ARMANDO – Tá bom, eu digo. Intercâmbio. Mas era isso que você queria me contar?
EURIDES – Era, por hoje era. Vamos ganhar uns trocadinhos agora. Amanhã a gente
conversa de outras coisas.
Armando caminha até Eurides, segura seu rosto com as duas mãos e lhe dá um
demorado beijo na boca. Armando sai de cena. Eurides o acompanha. Antes de fechar a
porta, dá uma olhada em direção à cozinha, onde a cachorra está dormindo:
EURIDES (num suspiro) – Três litros de leite por dia... Que Deus nos ajude.
Eurides sai de cena e fecha a porta.
FIM
Setembro de 2004