Quando todos estão mentindo em quem voce confia? Quando a adolescente problemática Allie Sheridan vai presa de novo, seus pais decidem que já estão fartos. Assim, ela é despachada para a Academia Cimmeria, um colégio interno bem distante dos seus amigos londrinos. A academia é uma bela construção, cheia de adolescentes lindos e milionários do tipo que viaja de jatinho, foi criado pela babá e só faz compras nos endereços mais exclusivos. Em Escola Noturna, primeiro volume de uma trilogia, Allie faz novas amizades e conhece Carter, um rapaz solitário com quem ela sente uma conexão imediata.
–D
UM
epressa!—Querficarcalma?Játôquaseacabando.
Com a mandíbula cerrada, Allie se agachava no escuro, pintando o último AenquantoMarkseajoelhavaaoladosegurandoumalanterna.Asvozesecoavampelocorredorvazio.Ofachodeluz,queiluminavaotrabalhodeAllie,tremeuquandoorapazriu.
Umruídoestaladorepentinofezosdoispularem.Luzespiscaramacimadeleselogoinundaramocorredordaescola.Doisuniformesencontravam-senaporta.Allieabaixoualatadespraydevagar,semtirarodedodobotão,fazendoaletra
seesticarbizarramentepelaportadasaladodiretoratéopisodelinóleosujo.—Corre.Quando as palavras deixaram seus lábios, ela já estava voando pelo amplo
corredor, as solas de borracha dos tênis chiando ocamente no vazio do colégioBrixtonHill.NãoolhouparatrásparaverseMarkestavavindo.
Nãosabiaondeestavamosoutros,masseHarry fossepegooutravez,opaiomataria.Dobrandoaesquinaàspressas,elavirouemumcorredorescuro.No nalviuobrilhoverdedeumasaídadeemergência.
Uma sensação de poder passou por ela ao correr em direção à liberdade. Iaescapar.Iasesafar.
Trombandocontraasportasduplas,empurroucomforçaabarraquedeveriatê-lalibertado.
Elanemsemoveu.Nãoacreditando,empurrounovamente,masaportaestavatrancada.Diabos.Seeunãoestivessevandalizandoocolégio,pensou,alertariaojornallocal.Febrilmente, examinou o corredor. A polícia estava entre ela e a entrada
principal.Aúnicasaídanesteladoestavatrancada.Tinhaquehaveroutrasaída.Prendeuarespiraçãoparaescutar.Vozesepassosvindoemsuadireção.
Apoiandoasmãosnos joelhos,deixouacabeçacair.Nãopodia carassim.Ospais acabariam com ela. Uma terceira prisão em um ano? Já tinha sido ruim osu ciente terem feito com que ela fosse para este colégio miserável. Para onde amandariamagora?
Correuparaaportaseguinte.Um,dois,trêspassos.Tentouamaçaneta.Trancada.Atravessouocorredoratéoutraporta.Um,dois,três,quatropassos.Trancada.Agoraestavacorrendoemdireçãoàpolícia.Istoeraloucura.Masaterceiraportaabriu.Umarmáriodesuprimentos.Deixamoarmáriodesuprimentosaberto,mastrancamassalasdeaulavazias?Essa
escolaécomandadaporidiotas.Esgueirando-secautelosamenteentreasprateleirasdepapel,baldesde limpezae
equipamentoselétricosquenãoconseguiaidenti carnoescuro,deixouaportafecharatrásdesiecontrolouarespiração.
Estavatotalmenteescuro.Allieergueuamãonafrentedorosto—bemnafrentedorosto—enãoconseguiuenxergá-la.Sabiaqueestava lá;podia sentir.Masnãoconseguir vê-la foi algo que a desorientou instantaneamente. Esticando-se para seacomodar, engasgou quandoumapilha pesada de papéis começou a escorregar doalto.Lutouparareequilibrá-la,mesmosemconseguirvê-la.
Do lado de fora da porta, ouvia vozes fracas; pareciamdistantes. Só precisariaesperarmaisalgunsminutosedesapareceriam.Sómaisalgunsminutos.
Estavaquente,abafado.Ficacalma.Contouasrespiraçõespesadas...doze,treze,catorze...Masestavaacontecendo.Aquelasensaçãodeestarpresaemconcreto,incapazde
respirar.Ocoraçãoestavaacelerado,opânicocrescentequeimandonagarganta.Porfavor, cacalma,Allie , imploroua simesma.Maiscincominutosevocêvai
estarsegura.Osmeninosnuncavãocontar.Masnãoestavafuncionando.Sentia-setonta;sufocada.Tinhaquesair.Enquanto escorria suor pelo seu rosto e o chãoparecia balançar embaixodela,
Alliealcançouamaçaneta.Não,não,não...Nãopodeser.
Aquelapartedaportaeracompletamentelisa.Perturbada, apalpou toda a porta impassível, em seguida a parede em volta.
Nada.Nãotinhacomoabrirpordentro.Empurrou a porta, arranhou as bordas com as unhas, mas ela não cedeu. A
respiraçãoveiomaispesadaagora.Estavatãoescuro.Cerrandoasmãosempunhos,bateunaportalisaeinflexível.—Socorro!Nãotôconseguindorespirar.Abramaporta!Nãoobteveresposta.—Meajudem!Porfavor?Detestavao tomde súplicanaprópriavoz.Soluçando, colocouabochechana
portaearfouaobaternamadeiracomasmãos.—Porfavor.Quandoaportaabriu,foitãoderepentequeelacaiuparaafrentedesamparada,
diretonosbraçosdeumpolicial.Eleaseguroucomosbraçosestendidos,apontandoumalanternaemseusolhos,
assimilandoocabelodesgrenhadoeasbochechasmarcadasporlágrimas.Elesorriuporcimadacabeçadelaparaooutropolicial.FoientãoqueAllieviu
Mark,comacabeçaabaixadaesemoboné.Estavapresoàsgarrasdeoutropolicial,queretribuíaosorriso.
P
DOIS
orcimadoconstanteroncodeumadelegaciadepolíciaemumanoitedesexta-feiradeverão,Allieescutouavozdopai,tãoclaramentequantoseeleestivessediantedela.Paroudeenrolarocabeloeolhouansiosamenteparaa
porta.—Nemconsigoexpressarquantoestouagradecido.Sintomuitopeloincômodo
—ouviu.Otomdavozdoseupaieraumqueelaconheciamuitobem:humilhado.Porela.Escutououtravozmasculinaquenãoconseguiuidenti car,eemseguidaopai denovo:—Sim, estamos tomandoprovidências, e eu agradeço seu conselho.Nósvamosdiscutirissoetomarumadecisãoamanhã.
Decisão?Quetipodedecisão?Em seguida a porta se abriu, e seus olhos de cor cinza encontraram os azuis
cansadosdopai.Sentiuocoraçãoapertarumpouconopeito.Amarrotadoecomabarbaporfazer,pareciamaisvelho.Emuitocansado.
Eleentregoualgunspapéisàpolicial,quemalosolhouantesdeacrescentá-losàpilha. Elamexeu numa gaveta e retirou de lá um envelope contendo as coisas deAllie,eoempurrousobreamesaparaopaidela.Semolharparanenhumdosdois,dissemecanicamente:
—Vocêestásolta,aoscuidadosdoseupai.Podeir.Allieselevantou,dura,eseguiuopaipeloscorredoresestreitoseiluminadosatéa
portadafrente.Quandoestavamlá fora, soboar frescodeverão,elarespiroufundo.Oalívio
por estar fora da delegacia semisturou à ansiedade por causa da expressão do pai.Caminharamemsilêncioparaocarro.
Dooutroladodarua,eledestrancouaportadoFordpreto,quedeuoseuapitodeboas-vindasincongruentementealegre.Quandoligouomotor,Allievirou-separaeleansiosa,comosolhoscheiosdeexplicações.
—Pai...Eleolhouparaafrente,comamandíbulatensa.—Alyson.Não.
—Nãooquê?—Nãofala.Só...sentaaí.Depoisdissoocaminhofoisilencioso.Eaochegarememcasa,seupaisaltoudo
carrosemumapalavra.Alliefoidesajeitadaatrásdele,asensaçãodenervosonabocadoestômagoaumentando.
Elenãopareciairritado.Parecia...vazio.Alliesubiuasescadaseatravessouocorredor,passoupeloquartovaziodoirmão.
Nasegurançadopróprioaposento,examinou-senoespelho.Oscabelostingidosderuivonaalturadosombrosestavamemaranhados, tintapretamanchavaa têmporaesquerda,orímelseacumulavasobosolhos.Cheiravaasuorrançosoemedo.
—Bom—disseparaopróprioreflexo—,talvezpudessetersidopior.
Quando acordou na manhã seguinte, já era quase meio-dia. Saindo de baixo dacoberta amarrotada, vestiu jeans e uma camiseta branca. Em seguida, abriucuidadosamenteaporta.
Silêncio.Desceunapontadospéspara a cozinha, onde a luzdo sol entrava atravésdas
janelasgrandes,iluminandoasbancadasdemadeira.Tinhamdeixadoparaelapãoemanteiga,quederretianocalor.Haviaumaxícarapertodobule,comumsachêdechádentro.
Apesardetudo,estavacommuitafome.Cortouumpedaçodepãoeocolocounatorradeira.Ligouorádioparapreencherosilêncio,mas,passadouminstante,odesligou.
Comeu rapidamente, folheando as páginas do jornal da véspera, sem prestarmuitaatenção.Sóquandoacaboufoiquenotouobilhetepertodaportadacozinha.
A–
Voltoàtarde.NÃOsaiadecasa.
–M
Instintivamente, alcançouo telefonepara ligarparaMark,maso aparelhonãoestavanolugardesempre,pertodageladeira.
Apoiando-se contra a bancada de madeira, tamborilou os dedos, ouvindo oconstantetique-taquedorelógioacimadofogão.
Noventaeseistiques.Ouseriamtaques?Comosesabeadif...?—Certo—disse.Endireitou-seebateuamãonabancada.—Dane-se.
Correuparaoquartoeabriuagavetadaescrivaninhaparapegarolaptop.Agavetaestavavazia.Ficouparada, contemplandoo signi cado inerente à ausência do computador.
Seusombrosmurcharamumpouco.
Seus pais não voltaram até o m da tarde. Ela estava esperando ansiosamente—levantava para espiar pela janela cada vez que uma porta de carro batia — masquando nalmentechegaram,adotouumardedesinteresse,mantendo-seencolhidanosofá,assistindoàTVcomosomdesligado.
Amãelargouabolsanolugardesempre,namesadocorredor,eseguiuopaiatéacozinhaparaajudá-loaprepararchá.Atravésdaportaaberta,Allieaviurepousaramão reconfortantemente no ombro do pai só por um segundo antes de ir até ageladeirabuscarleite.
Acoisanãoestáparecendoboa.Algunsminutosdepoisestavamempoleiradosladoaladonosofáazul-marinho
diantedela.Ocabelodopaiestavacuidadosamentepenteado,maseletinhacírculossob os olhos. A expressão damãe era calma,mas seus lábios estavam rijos numalinha.
—Alyson...—opaicomeçouehesitou.Esfregouosolhos,cansado.Amãeassumiuasrédeas.—Nósandamosconversandosobreoquepodemosfazerprateajudar.Ihhhhh...—Vocêobviamentenãoestáfeliznoseucolégioatual—diziamuitoprecisae
lentamente.OsolhosdeAlliedesviaramdeumdospaisparaooutro.—Eagoraquevocêinvadiu,pôsfogonasua chaepichou“Rosséumbabaca”naportadasalado diretor Ross, não é nenhuma surpresa que eles também não estejam muitosatisfeitoscomvocê.
Alliemordeuacutículadodedomindinhoe lutoucontrao impulsode soltarumrisinhonervoso.Riragoranãoajudariaemnada.
—Essa é a segunda escola a nos pedir,muito educadamente, pramandarmosvocêestudaremoutrolugar.Estamoscansadosderecebercartaseducadasdeescolas.
Seu pai se inclinou para a frente e olhou nos olhos deAllie pela primeira vezdesdequeabuscaranadelegacia.
—Nósentendemosquevocêestáseexpressando,Alyson—eledisse.—Nósentendemos que foi assim que você escolheu lidar com tudo que aconteceu,maschega.Pichações,vadiagem,vandalismo...Basta.Vocêjádeixoubemclaro.
Allieabriuabocaparasedefender,masamãelhelançouumolharameaçador.A
meninalevantouospéseabraçouosjoelhos.Agoraeraavezdamãenovamente.—Ontem à noite, o prestativo representante da polícia, que, por sinal, sabia
tudoaseurespeito,sugeriuquetemandássemospraumcolégiodiferente.ForadeLondres.Longedosseusamigos.
Eladisseaúltimapalavracomdesprezo.—Fizemosalgumasligaçõeshojedemanhãe...—amãeparou,olhandoparao
pai, quase incerta, antes de prosseguir— encontramos um lugar especializado emadolescentescomovocê.
Allieseencolheu.—...ehojenósfomosvisitá-lo.Conversamoscomadiretora...—Quefoiabsolutamentegentil—interveioopai.Amãeoignorou.—...eelaconcordouemteaceitaressasemana.—Espera aí...Essa semana?—AvozdeAllie se elevou incrédula.—Mas as
fériasdeverãosócomeçaramháduassemanas!—Vocêvaiserinterna—disseopai,comoseelanãotivessesepronunciado.Allieoencarou,boquiaberta.Interna?Apalavrareverberouemsuamente.Elessópodemestarbrincando,disseasimesma.—...oquevaiserdifícilparaagentepagar,masnósachamosquevaleapena
tentar teprotegerde vocêmesma, antes que jogue sua vida toda fora.Legalmentevocêémenordeidade,masnãovaiserpormuitotempo.—Elebateunobraçodosofá,eAllieoencarou.—Vocêtem16anos,Alyson.Issotemqueparar.
Allieescutouocoraçãobaterforte.Trezebatidas,catorze,quinze...Elanãoconseguiaacreditarnoquãoruimistoera.Erainacreditavelmenteruim.
Níveisrecordesdemaldadeaconteciamnesteexatomomentonorecinto.Inclinou-separaafrentenacadeira.
—Olhasó,euseiqueerrei.Estoumesentindomuito,muitomalporisso—desculpou-seAllie,incorporandoomáximopossíveldesinceridadenavoz.Suamãenão pareceu nada comovida, então ela se voltou para o pai, implorando.—Masvocêsnãoachamqueestãoexagerando?Pai,issoéloucura!
AmãedeAllieolhounovamenteparaopai;destavezcomoolharimponente.Eleolhouparaafilhaentristecidoebalançouacabeça.
—Tarde demais — disse ele. — A decisão já foi tomada. Você começa na
quarta-feira.Eatélánadadecomputador,telefonenemiPod.Enadadesairdecasa.Quandoospaisselevantaram,pareciaqueojuizestavadeixandootribunal.No
vazioquedeixaram,Alliesoltouarespiração,trêmula.
Osdiasseguintessepassaramnumanévoadeconfusãoeisolamento.Eraparaelaterfeitoasmalasesepreparado,masemvezdisso coutentandodemoverospaisdoplanomaluco.
Nãoconseguiunada.Malfalavamcomela.Terçaàtardesuamãelheentregouumenvelope nocordemar m,dominado
porumelaboradoemblemadetintapretaespessaeaspalavras:AcademiaCimmeria.Abaixo daquilo, estava escrito “Informações para os novos alunos” numa belacaligrafiacurvilínea.
As duas folhas no envelope pareciam ter sido digitadas em uma máquina deescrever.Não tinha certeza—nunca tinhavistopapeldemáquinade escrever—,mascadaumadasletraspequenasequadradastinhadeixadoumentalheperceptívelno papel cor de creme espesso. Cada página continha apenas alguns parágrafos; aprimeiraeraumacartadadiretoradaescola,umataldeIsabelleleFanult.DiziaqueestavaansiosaporreceberAllienocolégio.
Ótimo, pensouAllie. A segunda página não tinhamuitomais utilidade que aprimeira.Diziaqueoslápis,canetasepapéisseriamprovidenciadospelaescola.Queo uniforme também lhe seria oferecido.Que deveria escrever as iniciais comumacanetaàprovad’águaou“bordá-las”emtodasasroupasquefosselevarconsigo.Quepoderia levar galochas e uma capa de chuva, pois “o campus da escola é grande erural”.
Passouosolhospelorestodacarta,procurandoahabitualmençãoameaçadoraa“regrasdaescola”,e,comonãopodiadeixardeser,láestava,destacadaemnegrito.
As regras completas sobre o comportamento dos alunos serão entregues na
chegada.Porfavor,leia-asesiga-ascomrigor.Violaçõesaqualquernormaescolar
serãoseveramentepunidas.
Elogoabaixo,maisnotíciasruins:
Apósachegada,alunosnãopodemdeixaraáreaescolarsemautorizaçãodospais
oudadiretora.Permissõesraramentesãoconcedidas.
AsmãosdeAllie tremeramaopegaraprimeirapáginadochão,dobraracartanovamentenoenvelopeecolocá-losobreamesa.
Oqueéisso,umcolégioouumpresídio?
Emseguidadesceuparaacozinha,ondeamãepreparavaoalmoço.—VouligarproMark—anuncioudemaneiradesa adora,aopegarotelefone,
quereapareciamagicamentesemprequeospaisestavamporperto.—Ah,vai?—Amãerepousouafacanabancada.—Seeuvousermandadapracadeia,tenhodireitoaumtelefonema,nãotenho?
—disseAlliecomtomdeindignaçãojustificada.Aquilojátinhaidolongedemais.Amãeaexaminouporuminstante.Emseguidadeudeombros,pegouafacae
voltouacortarumtomateemfatiasfinas.—Ligapraeleentão.Allietevequepensarumsegundoantesdediscar.TinhaotelefonedeMarkna
agendadocelular,entãoraramenteprecisavaselembrardonúmero.Otelefonetocoudiversasvezes.—Fala.—Avozdeleeratãoreconfortantementefamiliarenormalqueporum
instanteAllieachouquefossechorar.—Oi.ÉaAllie.— Allie! Caramba. Por onde você andou? — perguntou. Sua voz soou tão
aliviadaquantoadela.—Trancada—respondeu.Fixouosolhosnascostasdamãe.—Tirarammeu
telefoneemeucomputador.Nãomedeixamsairdecasa.Comoestãoascoisasporaí?
— Ah, o de sempre — disse, rindo. — Os pais estão irritados, a escola estámuitoirritada,masvaipassar.
—Vãoteexpulsar?—Oquê?Docolégio?Não.Vãoteexpulsar?—Parecequesim.Meuspaisestãomemandandopraumpresídioqueinsistem
emchamardeescola.EmalgumlugarnaMongóliaExterior.— Sério?— Ele pareceu sinceramente chateado.—Que droga! Por que eles
estão sendo tão idiotas?Ninguém semachucou.ORoss vai superar.Euvou fazeralgumaespéciedeserviçocomunitário,pedirdesculpaspratodomundoetudovaivoltaraseroinfernodesemprenaescola.Nãoacreditoqueseuspaisestãosendotãomedievais.
—Nemeu.Escuta,osMedievaisdisseramqueeunãovoupoderfalarcomvocêdepois que chegar ao colégio-presídio, mas se quiser me encontrar, o nome éCimmer...
Alinha coumuda.Allie levantouoolharparaveramãesegurandoatomadaquetinhatiradodaparede.Seurostoestavasemexpressão.
—Jáchega—disseela,eretiroutranquilamenteofonedamãodeAllie.
AmãevoltouafatiarotomateenquantoAllie,congelada,olhava xamenteparaela.Numespaçode30segundoselasentiuorostoprimeiroempalidecer,depoisficarvermelho, enquanto ela tentava segurar as lágrimas. Finalmente, deu meia-volta esaiufuriosadali.
—Vocêssãoloucos !—exclamou.Aspalavrascomeçaramemtombaixo,masseelevaramaumberroenquantoAlliesubiaasescadas.Bateuaportadoquarto,eumavezládentroficouparadabemnomeio,olhandoemvolta,aturdida.
Nãoreconheciamaisaquelelocalcomosuacasa.
Quandoamanhãdequarta-feirachegouquenteecomcéuclaro, cousurpresaporconstatarqueestavaaliviada.Aomenosestafasedocastigoestavaencerrada.
Olhouparaoarmárioabertodurantemeiahora tentandodecidiroquevestir.Finalmenteoptouporumacalçajeanspretaejustaeumcoletepretocomapalavra“Encrenca”escritaempratacintilante.Penteouoscabelosruivoseosdeixousoltos.
Estudandooreflexonoespelho,seachoupálida.Assustada.Possofazermelhorqueisso.Pegou o delineador, aplicou um traço espesso nas pálpebras e em seguida
acentuouoscílios comrímel.DepoisolhouembaixodacamaepegouumpardebotasvermelhasDocMartenqueiamatéojoelhoecalçou-assobreojeans.Quandodesceu, alguns minutos depois, ela achou que parecia uma estrela do rock. Suaexpressãoeraamotinada.
A mãe olhou para o modelito e suspirou de forma dramática, mas não dissenada.O café damanhã se passou em um silêncio gelado, e em seguida os pais adeixaram sozinhapara acabarde fazer asmalas.Ela empilhou as roupasna cama esentou entre elas, com a cabeça apoiada nos joelhos dobrados, contando asrespiraçõesatésesentircalma.
Quando foram para o carro naquela tarde, Allie parou e olhou para a casacomumcomumterraço,tentandomemorizá-la.Nãoeragrandecoisa,massempreforasuacasa,comtodaabelezaemocionalqueapalavrarepresentava.
Agorapareciaigualatodasasoutrasdarua.
A
TRÊS
viagemdecarrofoiumatortura.NormalmenteAllie cariafelizemsairdacidade em um dia ensolarado de verão,mas enquanto as ruas lotadas deLondres davam lugar a campos verdes marcados por ovelhas brancas
cochilando no calor, ela sentiu uma onda de solidão. A atmosfera no carro nãoajudou.Ospaismaltomaramconhecimentodesuapresença.Amãeestavacomomapaeocasionalmenteapontavaocaminho.
Encolhidanobancodetrás,Allieencarourancorosaascabeçasdeles.PorquenãopodiamcomprarumGPScomotodomundo?
Já tinha feito essa pergunta a eles diversas vezes,mas o pai só dizia que eramfelizessendo“luditas”eque“todomundodeveriasaberlerummapa”.
Quesedane.Semacessoaomapa,Allie coutentandoentenderexatamenteparaondeestava
indo.Não tinham dito onde era a escola, e os nomes das cidades passavam por ela
(Guilford,Camberley, Farnham...). Em seguida deixaram as estradas principais emdireção ao norte e começaram a percorrer caminhos curvos subindo e descendocolinasempistasminúsculasladeadasporcercasvivasaltasquebloqueavamqualquervisibilidade. Atravessaram vilas (Crondall, Dippenhall, Frensham...). Finalmente,apósduashoras,viraramemumapistadeterraestreita.Opaidiminuiubastanteavelocidade.Aestradapassavaporuma oresta espessaondeeramais frio equieto.Após alguns minutos de impactos e solavancos enquanto ele desviava para evitarburacosfundosnaestrada,chegaramaumportãoaltodeferro.
Pararam.Oroncodomotordocarroeraoúnicoruído.Porumlongominutonadaaconteceu.—Precisa buzinar, apertar uma campainha ou algo assim?— sussurrouAllie,
tomandociênciadagradepretaameaçadora,queseestendiapelasárvores,atéondeelapodiaenxergar.
—Não—disseopai,suavoztambémsoavasussurrante.—Devemtercircuitofechado de TV ou algo assim. Sabem quando alguém chega. Da última vez
esperamossó...Os portões estremeceram e em seguida, com um ruído metálico estalado, se
abriram.Lá dentro a oresta continuava, e o solmal penetrava através dos galhosespessos.
Allieolhoufixamenteparaassombrasàfrente.Bem-vindaaoseunovocolégio,Allie.Bem-vindaàsuanovavida.Enquanto os portões se abriam, ela contou as batidas do coração.Boom-boom-
boom...Trezebatidasepôdeveraestradadiantedela.Agoraseucoraçãoestavatãoalto que Allie veri cou furtivamente se os pais tinham notado. Eles estavamaguardandopacientemente.Opaitamborilavaosdedosnovolante.
Vinteecincobatidaseosportõessefecharamcomumtremor.Opaipassouaprimeiramarcha.Estavamavançando.Sentindo a garganta fechando,Allie se concentrou em respirar.Não queria ter
outro ataque de pânico agora de jeito nenhum. Mas não conseguia afastar umasensaçãoopressoradepavor.
Paradepirar,disseasimesma.Ésómaisumaescola,Allie.Mantenhaofoco.Funcionou;arespiraçãoacalmouumpouco.Opai conduziu o carropor uma estradade cascalhoquepassavapelas árvores
espessas.Depoisdaestradaesburacadadeterraatéchegaraoportão,estaeratãolisaebemconservadaqueocarropareciaflutuar.
Allie continuou contando as batidas do coração; ao longo de 123 delas, nadaalém de árvores e sombras; e então um rufar de tambores coronário quando elessaíramparaaluzeelaviuumaconstruçãoàfrente.
Perdeuaconta.Erapiordoqueelatemia.Parecendoforade lugarà luzfortedosol,aopéde
umacolinaíngremecobertaporárvoresestendia-seumaenormemansãogóticafeitadetijolosvermelho-escuros.Aestruturadetrêsandarestinhasidoarrancadadeoutraépocaecolocadaaquiem...ondequerqueelesestivessem.Otelhadoendentadoseprojetava a adamente em pontas e torres, coberto com o que pareciam adagas deferroforjadoapunhalandoocéu.
Putaquepariu.—Éumaconstruçãotãoimpressionante—observouopai.Amãebufou.—Impressionantementehorrível.Assustadora.Apalavraqueelesestãoprocurandoé“assustadora”.Em contraste com a estrutura intimidante, a estrada de cascalho à frente foi
transformada pelo sol em um pedaço de mar m, curvando-se em direção a umaporta grande de madeira na parede de tijolos escuros. Ao penetrarem a sombraprojetadapelaescola,opaidesacelerou.
Nosegundoemqueocarroparoudesemover,aportaseabriueumamulhermagraesorridentesaiuedesceuasescadas,correndoligeiramente.Oscabeloslourose espessos estavam presos para trás sem muita rmeza com um pregador, e securvavamnaspontascomoseestivessemfelizesemestarali.Alliesentiualívioaovercomoelaparecianormal:osóculosestavampuxadosparacimadacabeça,eelavestiaumcasacodecorcreme,dealgodão,sobreovestidoazul-claro.
Os pais de Allie saltaram do carro e foram falar com ela. Ficando para trásdespercebida,Allie abriu a porta relutantemente e saiudobanco traseirodoFord,quesubitamentepareciabastanteamigávelefamiliar.Nãofechouaporta.
Emvezdesejuntaraogrupo,elaseapoiounocarroeobservoufatigadaacenaquesedesenrolavaàsuafrente.Esperou.Vinteesetebatidasdocoração.
Vinteeoito.Vinteenove.—Senhor e senhora Sheridan, é um prazer revê-los.—A voz damulher era
calorosaealegre;sorriasemesforço.—Esperoqueaviagemnãotenhasidomuitotediosaparavocês.OtrânsitodeLondresparacáàsvezeséterrível.Maspelomenosotempoestáótimohoje,nãoé?
Alliepercebeuqueelatinhaumligeirosotaque,masnãoconseguiaidenti cá-lo.Seria escocês? Acrescentava delicadeza e complexidade às palavras, como se fossemfiligranadas.
Depois que mais gentilezas foram trocadas e a conversa morreu, os três sevoltaramparaAllie.Ossorrisoseducadosdospaisdesapareceram,substituídospelovaziocultivadoaoqualelajáestavadesconfortavelmenteacostumada.Masadiretorasorriucalorosamenteparaela.
— E você deve ser a Allie — pontuou. Escocesa, de nitivamente. Mas quesotaque estranho, muito sutil. — Allie, eu sou Isabelle le Fanult, a diretora daAcademiaCimmeria.PodemechamardeIsabelle.Sejabem-vinda.
Allie couumpoucosurpresaemouviroapelido,emvezde“Alyson”,queeracomoospaissempreachamavam.Eserorientadaachamaradiretorapeloprimeironometambémpareciaestranho.
Masbemlegal.Isabelle estendeu uma mão magra e pálida. Tinha olhos castanhos dourados
estranhamentebonitos,edepertopareciamaisjovemdoqueaparentaraserdelonge.Allienãoquerianadacomaquelelugar—nãoquerianadacomaquelamulher
—,masseviuretribuindoogesto.Quandosuamãofoiapertadanumcumprimento
surpreendentementeforteefrio,esoltadagentilmente,elarelaxouumpouco.Isabellesustentouoolharpormaisumsegundo,eAllieteveaimpressãodeter
detectadosolidariedadenaexpressãodadiretora,antesqueelasevoltassenovamenteparaospaiscomumsorrisoeumdardeombrosemtomdedesculpas.
—Sintomuito,masaregraéqueospaissedespeçamdos lhosaqui.Quandoos alunos atravessam a entrada, dão início às suas novas vidas na Cimmeria, egostamosqueelesofaçamdeformaindependente.
Voltando-senovamenteparaAllie:— Você trouxe muitas malas? Espero que a gente consiga carregar tudo. A
maioria dos funcionários está ocupada nomomento, então acho que teremos quenosvirarsozinhas.
PelaprimeiravezAlliesepronunciou.—Eunãotrouxemuitacoisa.Eraverdade.Ocolégioofereciaquasetudoepermitiatãopoucoqueno mdas
contaselasótinhaduasmalasdetamanhomédio,basicamentepreenchidasporlivrose cadernos. O pai as retirou do porta-malas. Isabelle levantou a maior comsurpreendente facilidade.Trocou algumas gentilezas nais com os pais de Allie eentãoseafastoudeles.
—Estudabastante emandanotícias de vez emquando—disse o pai.Aindaestavadistante,maspareciatriste,edeuumrápidoabraçonafilha.
Amãe retirouumchumaçode cabelodo rostodeAllie, evitandoosolhosdamenina.
—Porfavor,dáumachanceaesselugar.Eligapragenteseprecisar—orientou.PorummerosegundodeuumabraçoforteemAllie,eentãoasoltouevoltouparaocarrosemolharparatrás.
Allie couparada,comasmãosaoladodocorpo,vendoocarrofazeravoltaeretornarpelocaminhodecascalho.Sentiu lágrimasardendonofundodosolhos,ebalançou a cabeça ferozmente para espantá-las. Pegando a mala preta que restava,virounadireçãodeIsabelle,queaobservava.
—É sempre difícil da primeira vez— disse Isabelle, com a voz delicada.—Depoisficamaisfácil.
Dirigiu-seanimadamenteparaosdegraus,falandoporcimadosombros:—Temos uma pequena distância a percorrer. Você vai ver que este prédio
simplesmentenãotemfim.Avozenfraqueceuàmedidaquefoiavançando.Apósuminstantedehesitação,
Alliefoiatrás.—Vouteofereceravisitaguiadanocaminho...—diziaIsabelle,masAlliemal
escutouaoficarboquiabertacomoenormesaguãodeentrada.Ládentroestavapoucoiluminadoefrio,aluzfortedosolentravaemumtom
colorido, ltrado por um vitral no alto.O teto tinha nomínimo seismetros dealturaeerasustentadoporarcosespessosdepedra.Ochãodepedrasforapolidopormilharesdepésaolongodecentenasdeanos,até carliso.Castiçaisdeummetroemeio de altura erguiam-se como sentinelas em cada canto. Algumas paredes eramcobertasporvelhas tapeçarias,apesardeAllienãotê-lasvistomuitobemenquantoapressavaopassoatrásdadiretora.
Do saguão de entrada foram para um corredor amplo com piso de madeiraescura. Isabelle foipara aprimeira sala àdireita.Nelahaviamaisdeumadúziademesasgrandeseredondasdemadeira,cadaqualcomoitocadeirasaoredor.Emumadasparedesficavaumalareiraenorme,bemmaisaltaqueela.
—Estaéasaladerefeições.Vocêvaifazertodaselasaqui—informou,parandouminstanteparaqueAllietomasseciênciaantesdeprosseguirpelocorredor.
A curta distância e do lado oposto do corredor, ela passou por outra entradaarqueada.Estevastosalãotinhapisopolidodemadeira,tetoquasetãoaltoquantoodaentrada,e,demaneirageral,estavavazio.AlareirafaziaIsabelleparecerumaanã,eumenormecandelabrodemetalsependuravanotetoporcorrentes.
—Aquiéosalãoprincipal.Fazemoseventos,bailes,reuniõesecoisasdotipo—disse Isabelle. — Essa é a parte mais antiga da casa. Muito mais velha do que afachada.Maisvelhaatédoqueparece.
Eladeumeia-voltaeretornouparaocorredor.Alliecorreuparaacompanhá-la,arfando ligeiramente por causa do esforço. Isabelle era surpreendentemente rápida.Virandoàesquerda,gesticulouparaoutraporta,explicandoqueeraasalacomum.Em seguida começaram a subir uma escadaria larga de madeira com umimpressionantecorrimãodemogno.Os sapatosde Isabelle faziamumruído suaveenquanto ela subia, o tempo todo contando fatos e números sobre a construção.Allieestavaumpoucoatordoadaportudoaquilo—aescadariaeraeduardiana,ouela tinhadito vitoriana?A salade refeições erada épocadaReforma... ou seriadaépocadosTudor?Amaioriadassalasdeaulaseencontravanaalaleste,masoqueeladissequetinhanaoeste?
Subindodoisandares,Isabellevirouàesquerdaeatravessouumamplocorredor,depois subiu um andar com uma escadaria mais na que conduzia a um longocorredorescuroalinhadocomportasdemadeirapintadasdebranco.
— Aqui é o dormitório das meninas. Vejamos, você está no 329... — Elaapressouopassocorredorabaixoatéonúmerocertoaparecereabriuaporta.
Oquartoeramuitoescuroepequeno,comumaúnicacamademadeira,uma
escrivaninhaeumarmário,todospintadosdebranco.Isabelleatravessouoquartoeabriu uma tranca que Allie não conseguiu enxergar, afastando uma persiana demadeira que cobria uma pequena janela arqueada. Instantaneamente o quarto seacendeucomaluzdouradadatarde.
—Sóprecisadeumpoucodearfresco—dissealegrementeenquantosedirigiaà porta.—Seusuniformes estãono armário, seus pais nos deram seus tamanhos,masaviseagentesealgumacoisanãocouber.Devetertudoquevocêprecisa.Possotedeixaraquipradesfazerasmalas?Ojantaréàssete,vocêsabeondeéasala.Ah,porsinal...
Elavirou.—Eupercebi que você anda tendoproblemasna aula de inglês ultimamente,
então te pus na minha turma. É um seminário especial com uma turma menor;esperoquevocêacheinteressante.
Sobrecarregada com tantas informações, Allie assentiu silenciosamente; então,percebendoanecessidadedepalavras,falouhesitante:
—Eu...euvouficarbem.Isabelleinclinouacabeçaparaolado,observando-aporumsegundo,eassentiu.— Tem muitas informações sobre a escola e as suas aulas no envelope na
escrivaninha—disseela.Allienãotinhanotadooenvelopegrandecomseunomeàprimeiravista,masagoraficouimaginandocomopodianãoterpercebido.
—Algumaperguntaantesdeeuir?Alliecomeçouabalançaracabeçaeparou.Olhouparaospés,emseguidaparaa
frenteoutravez.Puxouabarradacamisahesitantemente.—Vocêéadiretora,certo?Isabellefezquesimcomacabeça,parecendoligeiramenteconfusa.—Entãoporqueestáfazendoissotudo?—Alliefezumgestodevarredura.—Nãoentendi—respondeuIsabelle,claramenteperplexa.—Porqueeuestou
fazendooquê?Allietentouexplicar.— Por que está me recebendo na porta, me levando até o meu quarto, me
mostrandoacasa...Isabellehesitou,cruzandoosbraçosdiscretamente.Avozeragentil.—Allie,seuspaismecontarammuitoaseurespeito.Euseioqueaconteceu,e
sintomuitopeloseuirmão.Seicomoéperderalguémpróximo,eseicomoéfácilsedeixar levar por todo esse... horror, e nuncamais se libertar.Mas você não podepermitir que o que aconteceu destrua a sua vida. Você temmuito a oferecer, e aminhafunçãoéfazercomquevocêpercebaisso.Teajudaraserecuperar.
Isabellefoiatéaportaeapoiouamão.Inspirartrêsvezes,expirarduas.— Vou mandar uma monitora passar aqui pra se apresentar e responder a
quaisquerperguntasquevocêpossater—disseIsabelle.—Elavaiviràsseis,oquedeve te dar tempo de arrumar tudo antes do jantar.Os horários das refeições sãorígidos,porfavornãoseatrase.
Elasaiusemcorrer,masaportasefechoulevementecomumcliquequieto.Allieexpirou.Com o quarto para si, teve tempo para pensar. Por que os pais contaram a
IsabellesobreChristopher?Issosemprehaviasidoassuntoparticulardafamília.Eaestranheza dessa escola? Por que não haviam passado por um único aluno nocorredornocaminhoatéali?Olugarpareciavazio.
Eraesquisito.Ela levantouumamalaparaacama.Abrindo-a,começoua retirarascoisasea
encontrar lugarespara guardá-las.Livros forampara aprateleira estreita ao ladodaescrivaninha.Asroupasforamparaacômoda,masaoabrirasgavetasviuquemuitasjá estavam preenchidas por camisetas, shorts e casacos brancos ou azul-marinhos,comobrasãodaCimmeriaacimadocoração.
Curiosa, abriu o armário e achou saias, camisas e blazers, todos ao estilo douniforme. Revirou o fundo do armário até os dedos tocarem algo leve e no.Retirando os cabides, viu que sustentavam vestidos de várias cores. Isabelle tinhamencionado festas,mas não falou nada sobre a escola providenciar trajes formais.Pegouumvestidoazul-escurodeveludo—pareciaantigo,comumasaiavolumosaqueiaatéojoelhoeumagolaemVsofisticadaebordada.
Ficouolhando,perplexa.Oqueaquilofaziaali?Nuncatinhaidoaumbailedeverdade—nãoeraotipodecoisapromovidapor
suasescolasanteriores.Aideiadecolocarumvestidocaroeiraumafestadegalafezumcalafriodenervosismopercorrerseucorpo.Oqueelafaria?Nãosabiadançar.
Acariciando o tecido suave, tentou se imaginar petiscando canapés e jogandoconversafora.Soltouumarisadaamarga.
Nãoéomeumundo.Allie devolveu as roupas ao armário, fechou a porta de madeira e sentou na
escrivaninha demadeira diante da janela.Da cadeira a vista era do céu azul e dostoposverdesdasárvores.Atardeestavaesfriando,oarcheiravaapinheiroseverão.Ela abriu o envelope e retirou um maço de papéis. Isabelle não estava brincandoquandofalouem“muitas”informações.
Dentro havia um mapa da casa, mostrando onde cavam os dormitórios em
relaçãoàssalasdeaula,dejantareaosalojamentosdosprofessores.Asegundafolhatinhaoshoráriosdasaulas:inglês,história,biologia,álgebra,francês—odesempre.
Nasequênciadapilha,umapastapretanaqualestavaescrito:
Regras
Dentro,folhasemaisfolhas,escritasàmãocomumacaligra aantiquadaadorável.Masantesquepudesseler,alguémbateuàporta.
Aporta seabriueumameninabonitacomuniformedaCimmeria—camisabranca de manga curta com o brasão, saia quadriculada azul-escura que batia nojoelho — entrou.Tinha o rosto sério, pensou Allie. Cabelos lisos, louros quasebrancosnaalturadosombros,eusavasandáliasBirkenstockcor-de-rosa.Allienotouqueoesmaltenasunhasdospésdameninacombinavaperfeitamentecomasandáliaeimediatamentesesentiudesajeitadaemoleca.
Quandofoiaúltimavezqueeupinteiasunhas?Teveasensaçãodequeameninaestavatentandonãoolhar.—Allie?—Elatinhaumavozásperaquenãopareciacombinarcomaaparência.Allieconfirmoucomumacenodecabeçaeselevantoudacadeira.—SouaJules,amonitoradasuaturma.AIsabellemepediuprameapresentar.— Hmm, obrigada. — Allie puxou ansiosamente a bainha da camisa,
imaginandosedeveriatertrocadoderoupa.Fez-seumapausa.Julesergueuumasobrancelhacuriosaetentououtravez.—Elaachouquevocêteriadúvidasqueeupudesseajudararesolver.Allielutouparapensaremperguntasinteressantes.Enãoconseguiu.—Agentetemqueusaruniformetododia?Julesassentiu.—Semprequeagenteestiveremqualquerlugarnoterrenodaescola,usamoso
uniforme.TemumaseçãotodasobreissonospapéisqueaIsabelledeixoupravocê.—Eu estava lendomais oumenos.—Allie gostaria de parar de tropeçar nas
palavras.Julespareciatãoconfiante.—Mastemmuitacoisa.—Émuitacoisapraabsorvernoprimeirodia—concedeuJules.—Achoqueo
meu primeiro dia teria sido péssimo, mas o meu irmão já estava aqui, então eleajudou.Muitosalunostêmparentesqueestudaramaqui,vocêtem?
Alliebalançouacabeça.—Nuncatinhaouvidofalardesselugaratépoucosdiasatrás.Julespareceusurpresacomisso,masdisseapenas:—Bem,entãoémelhoreutemostrarodormitório,embora,prafalaraverdade,
nãotenhamuitacoisalá.Alliedeuumpassoemdireçãoàporta,masJulesolhousigni cativamenteparaa
roupadela.—Porquevocênãocolocaouniformeantes?Corando,Alliecruzouosbraçossobreopeito,masJulesnãopareceunotar.—Euesperoláfora—disseJules.Semesperarresposta,saiu.Assimqueaporta fechouatrásdela,Allie abriuo armário e tirouumacamisa
brancaeumasaiaazulcomoasqueJulesestavavestindoejogouaroupanacama.SeráqueJulesestavatirandosarrodassuasroupas?Nãotinhacerteza,maselaera
tão...perfeita.Claroqueelaestavatirandosarrodemim,Alliepensouamargamente.Éissoque
fazemmeninascomoela.Meninascompedicureperfeita...Desamarrouasbotasviolentamenteeaschutou
parabaixodacama.Meninascomcabeloperfeito...Foiatéoarmáriobuscar sapatosaceitáveis,mas sódesenterrou sapatosOxford
pretoscomsolasdeborrachaemeiasbrancasdecolegial.Fezcarafeiaaocalçá-los.Essasporcariasdemeninasperfeitas.Olhando-senoespelhoatrásdaporta,sesentiudesconfortávelcomamaquiagem
carregada.Julesusavasóbrilholabial.Masagoranãopodiafazernada.Ajeitandooscabeloscomasmãos,saiu.Julesestavaapoiadanaparede.—Agoravocêpareceumadenós—disseemtomdeaprovaçãoaosaírempelo
corredorestreito.Allienãosoubeoquepensararespeito.— Essa área era o alojamento dos serventes — explicou Jules, ignorando a
indignação fervente deAllie.—Mas o prédio foi aumentado ao longo dos anos,entãoébemmaiordoqueantes.Obanheiroéaqui...—Apontouparaaúnicaportanãonumeradapelaqualpassaram.—Éumsópratodomundo,entãovábemcedo,bemtardeousaibaquevaiterfila.
Fizeramacurvanadireçãodaescada.Acasapareciamaischeiaagora,comalunosuniformizadosconversandoerindoportodososcantos.
—EuimaginoqueaIsabelletenhatemostradoasaladerefeições—perguntouJules.—Elatelevouatéasalacomum?
Alliefezquenão.—Éamaisimportantedocolégio—disseJules,guiando-aescadariaabaixo.—
A maioria de nós ca aqui depois das aulas quando não estamos fazendo nossosexames.
—Exames?—perguntouAllie.Julesaolhoucomoquemnãoacreditavaqueelaprecisasseperguntarisso.—Deverdecasa—explicou,abrindoaportaaopédaescada.Entraram em um espaço confortável com sofás de couro.Tapetes orientais se
espalhavampelochão,haviaumpianoemumcantoeprateleirasqueiamdochãoaoteto, abarrotadas de livros e jogos. Várias mesas tinham tabuleiros de xadrezpintados. A sala estava vazia, exceto por uma poltrona no lado oposto, onde ummeninoestavasentado,observando-asporcimadeumlivrodeaparênciaantiga.Eletinha cabelospretos e lisos,boca rme,olhos enormes e escuros emolduradosporcíliosespessos;estavacomospésapoiadoscasualmentesobreumtabuleirodexadrez.SeusolharesseencontrarameAllieteveaestranhasensaçãodequeelesabiaquemelaera. O menino não sorriu, nem disse nada, mas continuou olhando. Após uminstantequepareceumaislongoqueuminstante,eladesviouosolhosedirecionou-osnovamenteparaJules,queaobservavacomexpectativa.
Dizalgumacoisa.—Ééé...Não temtelevisão?Ou... som...—Elaachou terouvidoumarisada
abafadadooutroladodasala,masserecusouaolharnovamenteparaomenino.MaisumavezviuespantonaexpressãodeJules,comoseelativesseperguntadoo
queeraaqueleglobodouradoebrilhantenocéu.—Não,certamentequenão.—AvozdeJulessooudura.—NãotemTV,não
temiPod,nãotemlaptop,nãotemcelular...NãotemséculoXXI,naverdade.Osseuspaisnãotefalaramisso?
EnquantoJuleslistavaascoisasqueosalunosnãopodiamter,ocoraçãodeAllieafundavaacadaequipamentoproibido.Emrespostaàpergunta,balançouacabeçaemsilêncio.
Julespareceuespantada,masserecompôsosuficienteparaexplicar.—Espera-sequeagenteaprendaasedistrairdeformasmaistradicionais.Como
conversaouleitura.Podeacreditar,vãoteocupartantocomtarefasescolaresquenãovaitertempopraTV.—Julessevirouparasairdasala:
—Estátudonoenvelope...Aquela porcaria de envelope.Vou levar a desgraça da noite inteira lendo para
aprendermaissobrequedrogaqueéesselugar.Semvoltaroolharparaomeninonacadeira,seguiuamonitorapelocorredor.
Julestocoulevementeumaportaaopassaremporela.—Essaéabiblioteca:vocêvaificarconhecendo-amuitobem.Atravessaramosalãoprincipaleelaabriuumaportapesadaquelevavaàalaleste
dacasa.
—Asaulas são aqui.Praquemestá começando, émais fácil acharo caminhopelo número.Na folha de horários, cada aula tem o número da sala.Nós todossabemospelonomedosprofessores,masde início issonãovai teajudarmuito, jáqueelesnãopõemosnomesnasportas.Assalasde1a20 camnotérreo,de100a120noprimeiroandar,equalquercoisaacimadissoéterritórioproibidopravocê.
AllielançouumolharsurpresoaJules,masantesquepudesseperguntarporque,Julesfalou:
—Bom,vocêtemmaisoumenos20minutosantesdojantar,eeusugiroqueleiaoqueestánoenvelopeenquantodá tempo.Aquiloémuito importante.Semissoeuachoquevocêvai carmeioperdidaamanhã.Seusprofessoresvãotedaroscadernosemcadaaula,apropósito,entãosóprecisalevarpapelecaneta,deveterosuficientenasuaescrivaninha.
Aessaalturajáestavamsubindoasescadas,voltandoparaodormitório.—Sevocêprecisardemim,omeuquartoéo335,masqualquerpessoaajudase
vocêseperder,tábem?Acenouevoltoupelocorredor,enquantoAllieiaparaoquarto.Deixando aquelasRegrasde aparência esquisitaparadepois, folheou apilhade
papéissobreamesaetentouseconcentrarnasdiretrizesdesaladeaula(“osalunosjádevemestarsentadosemseuslugaresquandooinstrutorforcomeçaraaula...”),masseus pensamentos voltaram para o menino na cadeira de couro. Vasculhou amemóriabuscandoqualquerencontropassado,masnãoachounadaarquivadonaslembranças.Elecertamentepareceureconhecê-la,ou,nomínimo,saberquemelaera.Allierodouolápisentreosdedos,lembrandodecomoosolhosescurosdomeninoaestudaram.
Aoviraroutrapáginaolhouparaorelógio.Porra.Faltavaumminutoparaassete.Ondetinhamidoparar20minutos?Ojantar
estavacomeçando.Saiupelaportaeporpouconãotromboucontraumameninalouradecabelos
curtosquevinhaemdisparadapelocorredor.—Cuidado!—gritouamenina,semdiminuiroritmo.Alliefoiatrás.—Desculpa!Nãotevi.Ameninanãoolhouparatráseasduascorreramescadaabaixoefrearamjuntas
naentradadasaladerefeições.Semtrocarumapalavra,entraramcomomesmojeitoarti cialdedespreocupação,comosetivessemdescidoconversandocasualmentepelocaminho. A menina loura olhou para ela e deu uma piscadela antes de se sentarnaquelaquepareciasuamesahabitual,ajulgarpelaformacomotodosareceberam.
AsalapareciamuitodiferentedaprimeiraimpressãoquetiveraaopassarporelacomIsabelle.Velasacesasbrilhavamnasmesascobertaspor toalhasbrancas.Pratosnascoresdaescolaecoposdecristalcintilavamdiantedecadaassento.Aoacharumacadeiravazia,Alliesesentou.Comosealguémtivesseacionadoobotão“mute”deumcontroleremoto,aconversaàmesaparouinstantaneamente.Seteparesdeolhosaencararamcheiosdecuriosidade.
—Ééé...tudobemseeusentaraqui?—Olhouaoredornervosa.Antes que alguém pudesse responder, a porta da cozinha se abriu e garçons
vestidos de preto surgiram carregando travessas de comida. Alguém colocou umajarradevidrocomáguaàalturadocotovelodela.AtéentãoAllienãotinhasedadocontadoquantoestavacomsedeequisencherocopo,masesperouparaveroqueosoutrosiriamfazer.Ninguémsemexeu.
—Porfavor.Elaprocurouavoz,quetinhasotaquefrancês,eachou-aàsuaesquerda,ondeum
meninodepelemorena,cabelosescurosegrossosebelosolhosazuisaobservava.—Como?—Sentaaqui.Porfavor.Elasorriuagradecida.—Obrigada.Eleretribuiuosorrisoeelaachouquefossederreterevirarumapoçanochão.
Eleeralindo.—Denada.Podemepassaraágua,porfavor?Allieentregouajarrae,paraseualívio,eleencheuocopodelaantes.Elatomou
metade do copo muito depressa, e em seguida se serviu da travessa de bife combatatasqueeleentregou.Osilêncioseabateusobreamesaoutravez,eelaolhouparaele.
Limpouagarganta.—EusouaAllie—disse.Algumacoisalhedissequeelejásabiadisso.—EusouoSylvain.Bem-vindaaCimmeria.—Obrigada—agradeceu,momentaneamentefelizporestarlá.A comida estava deliciosa. Ela não comia nada desde aquele café da manhã
terrível, desconfortável, e agora comia com voracidade. No que punha o últimopedaço de batata na boca, porém, levantou o olhar e reparou que estavam todosolhandoparaela.Opedaçodebatatapareciaenormeeelamastigoucomdi culdadeeaíestendeuamãoatéocopodeágua,quepercebeutardedemaisestarvazio.
Suavemente,Sylvainpegouocopoeencheu-oparaela.Aexpressãodomenino
erasolidáriaeseusolhosclarosbrilhavamàluzdavela.MasenquantoAllietentavapensaremalgointeressanteparadizer,seuspensamentosforaminterrompidos.
—Você é deLondres—disse uma voz, vinda subitamente de uma ruiva dooutroladodamesa.
—Sou.Comovocê...?—Avisaramqueiachegarumaalunanova.VocêéaAllieSheridan.—Aruiva
declaroucompropriedade,comoseestivesserelatandoasnotíciasdodia.ArespostadeAlliefoireservada.—Atéondeeusaiba.Quemsãovocês?—Katie.Nenhumaoutrapessoarevelouonome.Alliesecontorceuumpoucocomosolharesesentiuqueprecisavapreencheros
vaziosdesconfortáveisnaconversa.Maspapofuradonuncaforasuaespecialidade.—Essecolégioé...enorme.—Atrapalhou-se.—Oprédioémeioassustador.— É? — perguntou Katie, soando um pouco espantada. — Eu acho lindo.
Minhafamíliainteiraestudouaqui.Seuspaistambém?Allie fez que não com a cabeça.Katie arqueou uma das sobrancelhas perfeitas
enquantoasduasmeninasquealadeavamcochicharamumaparaaoutra.—Queestranho.—Porqueéestranho?—perguntouAllie.—Amaioriadosalunosaquitemlegado.Eutenho,oSylvaineaJotambém.Allieficouconfusa.—QueméJo?Katiepareceuespantada.—Ameninaqueentroucomvocê.—Srta.Sheridan.—Avoztrovejantevindalogodetrásdacadeirainterrompeu
Katie.Allieviroudeladoparaveroseudono,umhomemcalvoqueaparentavateraidadedoseupai.Eramuitoalto—maisde1,80m—eapesardeestarusandoumternogasto, tinhaposturaquasemilitar.Allie se ajeitouna cadeira.A sala caiu emsilêncio.
—AlguémjálheexplicouasregrassobreasrefeiçõesnaCimmeria?—Oolharqueelelançouaelapareciadedesprezo.
—Já.—AvozdeAllietremeuligeiramente,eelaficoucomódiodisso.—Todososalunosdevemestarnestasalaantesdoiníciodecadarefeição.Você
chegou emcimadahorahoje.Assim comovocê, srta.Arringford.—Ele virou eapontouparaJo,queoolhousemmedo.Voltou-senovamenteparaAllie.—Nãodeixequeissoserepita.Novaounão,dapróximavezqueseatrasar,teráquepassar
peladetenção.Ohomemseafastou,ossapatosemitindoumruídoestaladonasalasilenciosa.
Allie olhou xamente para o prato vazio, sentindo os olhos da sala nela. Suasbochechas coraramde raiva.Tinha chegadodois segundosatrasada.Elenão tinhaodireitodehumilhá-ladaquelaformanafrentedaescolatoda.
Allienãoconseguiaacreditar—tinhaacabadodechegarejáestavaencrencada.Olhandoparaumamesapróxima,viuqueJoolhavaparaela.Brevementeseus
olhares se encontrarame Jo sorriudeum jeitoatrevidoedeumaisumapiscadela,como se nada tivesse acontecido.Allie observou enquanto ummenino esfregou obraço de Jo e ela apoiou a cabeça no ombro dele por um instante, sorrindo poralgumacoisaqueeledisse.
Alliesesentiuaomesmotempomelhorepior.Os outros à suamesa estavam conversando entre si, ignorando-a visivelmente.
TodosmenosSylvain,quepareciapreocupado.—Queméele?—perguntouAllie,abrindoefechandooguardanapodepano,
fingindoqueoquetinhaacontecidonãotinhatantaimportânciaassim.—Osr.Zelazny—respondeu.—ProfessordeHistória.Bastanteintrometido,
comodápraver.Elesejulgaofiscalderegrasdaescola.Eugostariadedizerquevocênãoprecisasepreocupar,masnaverdadeémelhornãoarrumarproblemascomele.Elepodetornarasuavida... infeliz.Seeufossevocê,chegariacedoàsrefeiçõesnospróximosdias.Elevaiestardeolho.
—Ótimo—disseAllieresignada.Quesortedesgraçadaqueeutenho.Emvoltadeles,alunoscomeçaramaselevantaresair.Allieviuquedeixaramos
pratosecoposnasmesas.—Agentenãoajudaatiraramesa?—perguntou,surpresa.AsmeninasemvoltadeKatieriram.Katiepareceuconfusa.—Claroquenão.Osempregadosfazemisso.Allie sevoltouparaSylvain,masacadeiradomeninoestavavazia.Ele já tinha
saído. Ela ouviumais risadinhas e sussurros em volta damesa, e já tinha aturadomuito daquilo por hoje. Então, sem mais uma palavra, se juntou àqueles queestavamindoemdireçãoàporta.
Sentia-secansadaederrotada.OqueelanãodariaparairparaoquartoouvirseuMP3 enquantomandavamensagens paraMark eHarry sobre as pessoas estranhasque tinha conhecido hoje. Mas aquele mundo parecia tão distante do universoabafado e antiquado daCimmeria, onde não existia tecnologia, e as pessoas eram
mimadasdemaisparatirarosprópriospratoselevá-losparaacozinha.Nocorredor,viuqueosalunoscaminhavamemváriasdireções.Algunsestavam
indo para fora, enquanto outros se dirigiam para a sala comum ou a biblioteca.Todospareciamestaremgruposdeamigos,conversandoerindo.
Sozinha,Alliesubiuasescadasemdireçãoaodormitóriofeminino.Vinte equatrodegraus até oprimeiro andar, emais 20 até o segundo,depois
mais17passospelocorredoratéoquarto.Umavezládentro,percebeuquealguémhaviaentradoenquantoelajantava.A
janelaestavafechada,apesardeapersianacontinuaraberta.Acamaestavacobertaporlençóisbrancoseumacolchabrancaafofada,comumcobertorazul-escurodobradocuidadosamente ao pé da cama. As roupas que ela havia jogado no chão tinhamdesaparecido, substituídasporumpardechinelosbrancosmacios.Encontrouduastoalhasbrancasdobradasnacadeira,comumabarradesabãoemcima.Ospapéisnaescrivaninhatinhamsidoajeitadosemumapilhaorganizada.
Alguémporaquiémaníacopororganização.Tirando os sapatos, Allie pegou os papéis e se jogou na cama. Mas só tinha
acabadodelermetadequandoaluzdofimdetardecomeçouadesaparecerdocéu.Bocejousobreafolhadehorários.En ando os pés nos chinelos, pegou a escova de dentes e foi até o banheiro.
Abriuaporta comcerto receio,mas estavavazio.Enquantoescovavaosdentes, seexaminou no espelho. Parecia mais velha agora do que uma semana atrás? Ela sesentiamaisvelha.
Devoltaaoquartofechouapersianasobreajanelaedeitou.Masquandoapagouo abajur o quarto cou inteiramente escuro. Escuro demais. Tateou a mesaprocurando a lâmpada, derrubando o despertador enquanto acendia a luzapressadamente.
Saltando da cama, abriu a persiana. A última luz do dia de verão banhou oquartocomumbrilhosuave.
Assimeramelhor.Apagoua luz eobservouosúltimos re exosdo soldesaparecereme as estrelas
surgirem.Tinhacontado147respiraçõesquandocaiunosono.
—Allie,corre!Ogritoveiodafrentedelanaescuridão.Allienãosabiaporquealguém
achavanecessáriodizeraquilo—jáestavacorrendoomaisrápidopossível.Oscabelosvoavamatrás,eapesardenãoconseguirenxergarasárvorescomclareza—identificavaapenasasformas—sentiaosgalhosagarrandosuasroupas;os
gravetosarranhandoapele.Ochãodaflorestaeradesigualeelasabiaqueiriaacabarperdendooequilíbrio.Nãosepodecorrersemenxergarnadanumbosqueescuro.Éimpossível.
Derepente,logoatrásdesielaouviupassosesentiuoarsemovercomosehouvessealguémbem...
Dedosfirmescortaramapeledoseuombroesquerdoeelaberrou,golpeandoquemquerquefossecomasmãos,afastando-odesi.
Emseguidaescutouumarisadadesdenhosaatrásdesi,e,gritando,foisuspensanoarpormãosquenãoconseguiaenxergar.
Alliesentou-serepentinamente.Porumcurtoinstantenãoteveideiadeondeestava,esearrastouparaocantodacama,costasnaparedeebraçosenvolvendoosjoelhosprotetoramente.
Entãoselembrou.Cimmeria.Colégio.Aquelesonhooutravez.Elaovinhatendoregularmentehásemanas.Todavez
acordavasuando.O quarto ainda estava escuro.O relógio indicava que passava demeia-noite e
meia.Sentia-setotalmentedesperta,ansiosaemeiogrogue,comosenadafossereal.Desceudacamae se apoiounaescrivaninhaparaolhar lá fora.A luaprojetava
umaluzirrealmenteazul.Subiunamesaeabriuajanela,sentindoabrisafrescaaoapoiaroqueixonosbraçosecontemplaraescuridão.Escutouospássarosnoturnoserespirouprofundamente o ar fresco.Adorava aquele cheiro.Agulhas de pinheiro esolobarrento.Erareconfortante.
Derepenteescutoupassos...acimadela?Seriapossível?Esticou-separatentarenxergaroquehaviaacimadajanela,epodiajurarqueviu
umasombrafracasemovendonotelhado.Ficousentadaimóvelporuminstante,escutando,eachouqueestivesseouvindo,
fracamente,umsussurrodevozes.Fechoua janela, testouotrincoparasecerti cardequeestavaseguroevoltou
paraacama.Empoucosminutosestavainconsciente.
A
QUATRO
llieabriuosolhoseviuoquarto inundadopela luz.Noespaçonebulosoentre o dormir e o acordar, ela achou que, com paredes inteiramentebrancaseacolchabrancaantiga,pareciaocéu.
Olhouparaodespertadornaescrivaninha—seisemeia.Algumdianavidajátinhaacordadotãocedoassim?Talvezparaaquelaviagemà
Françacomafamíliaháalgunsanos,masnuncaporvontadeprópria.Nuncasóparairàescola.
Enquantoela se espreguiçava ebocejava,davaparaouvir vozesnocorredor.Oquartoestavafriocomoarfrescodamanhã.
Sentou-seeretaeolhou xamenteparaa janelaaberta.Elanãoa tinha fechadoontemànoite?Lembrava-sedetê-lofeito,masagoraajanelaestavatãoescancaradaquantoestiveraquandoAlliesesentoudiantedeladuranteanoite.
Talvezeusótenhasonhadoquefechei.Desceudacamamurmurandoparasimesma:—Anda logo,Allie.—Puxandoacamisolaecalçandooschinelos, enrolouo
xampueaescovadedentesemumatoalhaeseapressoupelocorredor,ansiosacomasituaçãodebanheirocompartilhadoqueaaguardava.
Emcontrastecomovazioqueecoavananoiteanterior,oamplobanheiroestavaagoratomadoporvaporecheio,mashaviaumchuveiro livre.Aliviadapornãosetratardeumdaqueleslugarescomunitáriosaoestilotodo-mundo-pelado-num-cubo-de-concreto-hostil, Allie entrou, fechou a cortina e se deparou com um vestiárioprivado na frente do cubículo branco espaçoso onde cava o chuveiro. Ambosbrilhandodetãolimpos.
Nãoeratãoruim,naverdade.Tinhabastanteespaço,umganchonoqualpodiapenduraroroupãoeatéumbancolisodemadeiraondepoderiadeixaroschinelossecos.Debaixodojatoquente,elasesentiumelhorquaseimediatamente.Maistarde,comocabelomolhadoenroladonatoalha,encontrouumapialivreparaescovarosdentes e não se importou com quão cheio estava o banheiro. Enrolada em umroupãobrancogrossocomotodomundo,ninguémsabiaqueelaeraaalunanova.
Devoltaaoquarto,vestiurapidamenteouniforme,penteouocabelomolhadoeaplicou uma camada na de rímel. Amão pairou sobre o delineador... e então odeixounabolsa.EstelugarpareciaterumestilodiferentedaescoladelaemLondres.
Elajuntouospapéisecanetasparaodiaeosguardounabolsaqueencontrounoarmário. Pendurando-a no ombro, desceu às sete emponto, bem antes do prazo-limitedeseteemeia.
Quandocruzouaportadeentradadasaladerefeições,parouporuminstante—o lugar tinha se transformado outra vez. Janelas imensas em uma das paredespermitiamaentradada luzdosol,difusaatravésdecortinasbrancas.Asvelascombrilho trêmulo e copos cintilantes tinham desaparecido. Quase todas as mesasestavamvaziasecobertasapenasportoalhasbrancaslisas.Haviacomidaamontoadaemmesas de bufê: dez tipos de cereais, uma panela de mingau exalando vapor epilhasdepãoprontoparasertorrado.Travessasdeprataaquecidascontinhamovos,baconelinguiça.
Aosentirocheirodacomida,descobriuqueestavamorrendodefomeoutravez.Fazendoumpratocomtorrada,queijoeovosmexidos, serviu-sede sucodemaçãantesdesentaraumamesavazia.Nãoreconhecianinguémnasala,oque,decertaforma,erabom.Passoumanteigaegeleiadegroselhanatorradaedeuumamordidagrande.
—Esselugarestáocupado?Tentandonãomastigardebocaaberta,AllieseviroueviuSylvainaoseulado.
Fezquenãocomacabeçaemsilêncioelutouparaengolircomgraça,masfracassou,franzindoorostoenquantoacomidadescia.Pelaprimeiravezachouqueumsorrisohaviaalcançadoosincríveisolhosdomenino.
—Não...querdizer,podesentar.Porfavor.Senta...Sentando-seao ladodelasemqualquer indíciodedesconforto,elemordeuum
pedaçodebacon.—Oquevocêachouda suaprimeiranoite?Teprocureina salacomum,mas
nãoencontrei.OcoraçãodeAlliesaltou,eelaolhoudeterminadaparaoqueijo,demodoque
Sylvainnãovisseoquantotinhaficadofeliz.—Tinhamuitacoisapralerontem.Acheimelhoraprenderomáximopossível
antesdehoje,sabe?Pramepreparar.Diaimportanteetudomais.Eleassentiuedeuumamordidarazoávelnatorrada.—Eulembrodissodomeuprimeirodia.Parecequequeremquevocêaprenda
tudo sobre aCimmeria de uma vez.Acho que a informação que dão pra gente émaiorque...—Adoravelmente,elepareceulutarparaencontraraspalavras—...o
tamanhodaescola,seissofazalgumsentido?Encantada,elanãopôdedeixardesorrir.—Entendiexatamenteoquevocêquisdizer.Édesproporcional.—É.Desproporcional.—Retribuiu o sorriso e o coração de Allie saltou de
novo.Paracomisso,dissecomfirmezaasimesma.Elesóestásendoeducado.Comeramnumsilêncioamigávelduranteumtempo.—Então—eladissedepoisdeumtempo—,todomundo camuitonasala
comum?Parecelegal.Ótimopapofurado,Allie.Sutilpracaramba.Eletomavaumgoledecafécomleiteenãopareceunotar.—Asalacomumeabibliotecasãooslugaresondetodomundo caquasetodas
as noites.Mas no verão, quando tá quente, a gente prefere car lá fora, jogandocroquet noturno. Foi por isso que eu te procurei. Achei que você pudesse quererjogarcomagente.
OgarfodeAllieparounomeiodotrajetoparaaboca.—Vocêsestavamjogandocroquetànoite?Noescuro?—Émaislegalassim.Sabe,aprendiquemuitosjogossãomaisexóticosquando
jogadosànoite.—Seusolhosencararamosdelaporumsegundoamaisdoqueonecessário.
E,simplesassim,Allieperdeuoapetite.Desgrudouoolhardodele, fazendo-opassearpelasala.
Cadeira,mesa,meninacomrabodecavalo,janela,cadeiradenovo...Sentiuocalorsubiràsbochechas.QuandoencarouSylvaindenovo,umligeiro
sorriso se formavanoscantosdos lábiosdele enquantoquebravaabeiradadeumatorradacomseuslongosdedos,observandoorostodela.
Eleestáflertandocomigo.Comcerteza.—Beisebol,porexemplo—continuoupensativamente.—Efutebolnoescuro,
apesardeissopoderserumpouco...pesado.Eleequilibravaumpedaçodebaconnaspontasdosdedosenquantoconsiderava
aspossibilidades.—Têniscomraquetes fosforescentesnumanoitesemluaé incrível.Achoque
vocêiaadorar.Prometoqueeuteencontronapróximavezqueagentejogar.Ondequerquevocêesteja.
Elaobservavacomoseestivessehipnotizadaenquantoelemordiaumpedaço.—Allie.Quebomteverdenovo.—Katiepuxouumacadeiradooutroladoda
mesaesesentou.Seupratoestavaelaboradamentedecoradocomfatiasdefruta.—
ESylvain.Quesurpresa.Seu cabelo longo, ruivo eondulado contrastava comapele clara e translúcida.
Sob a luz suave, parecia iluminada. Estava cercada por um pequeno grupo demeninasimpecavelmentevestidasquepareciamsedivertirobservandoAllie.
Sylvainaolhoufriamente.—Eujáestavadesaída,naverdade.ElesevoltouparaAllie,sustentandooolhardamenina.—Agentetemauladeinglêsjuntos,euacho.VamosestudarRobertBrowning
essasemana,casovocêqueiralerantes.Tevejolá.ElefoiemboraantesqueAlliepudesseperguntarcomosabiaqueaulaselafaria,
masolhoupara trásporum segundoao chegar aobatentedaporta.Quando seusolhosseencontraram,Alliesentiucomosealguémtivessepostoumcobertormornoemseusombros.Quandoelesaiu,elasorriuparaosucodemaçã.
—OSylvainéumamor,nãoé?—OsotaqueelegantedooestedeLondresdeKatie interrompeu o devaneio.Allie levantou o olhar e a viu, observando-a comoquementendeutudo.—Aquelesolhos lindoseosotaqueirresistível.Anamoradadeletambéméumamor,nãoé?—Katievoltou-separaamorenaaoseulado,queassentiueriu.
—OuvidizerqueelamoraemParisagora—KatiecomiadelicadamenteumpedaçodepomeloenquantoAlliesentiaseubalãoemocionalestourar.
Ah.Namorada.Claro.Jáera,então.Não se surpreendeucomogolpe inevitáveldadecepção amorosaprecoce logo
apósoacenderdaesperança.Naverdade,eraassimquenormalmenteaconteciacomela.LogoqueconheceuMark,rolouumclimaentreosdois.Duranteduassemanascouclaroparatodomundoqueeles iriamacabar cando.Atéumanoiteemque
elesurgiucomumalourabaixinhaedesenvoltachamadaCharlotte,quetinhaumatendênciaaminissaiaseesmalterosavibrante.
Depoisdisso,elevirouapenasumamigo.—Quebompra ele—comentouAllie, resignada.—Bom... também tenho
queir.Levantou-seesaiudepressa,contendonoúltimominutooimpulsodeprocurar
umlugarparaondelevaropratoeocopo.Ouvindorisadinhasatrásdesi,endireitouascostasenãoolhouparatrás.
Saindo da sala de refeições, Allie se juntou a outros alunos que cruzavam oamplocorredorcomlambrisdecarvalhoemdireçãoàssalasdeaulanaalaleste.Asparedeserampreenchidasporpinturasaóleo—emsuamaioriaenormesquadrosdehomens e mulheres do século XIX trajando roupas formais e encarando-a
altivamente. Alguns retratavam o prédio da Cimmeria por ângulos diferentes, amaioriaapartirdacolinado ladode foracomuma orestaespessaao fundo.Emumadelas, oprédio eramuitomenordoque agora—anterior à expansão àqualIsabellesereferira.
Suaprimeiraaulaeradebiologia,nasala112.Alliesubiuaescadaatéoprimeiroandareencontrouolocalpróximoàescadaria.
Ospoucosalunosquehaviamchegadomais cedoestavamsentados emduplasemcarteirasorganizadasemlongas leiras,enquantoumhomemalto,deaparênciadistraída,comóculosdearmaçãodemetalecabelocastanhodesgrenhadofolheavapapéisnaentradadasala.
Alliefoiatéele.—Oi.EusouaAlysonSheridan.Sounova.Ele olhou para ela por cima dos óculos e remexeu novamente os papéis,
finalmenteretirandoum,quebalançoutriunfante.— Claro. Uma aluna transferida, que ótimo. Mas está registrada aqui como
“Allie”.Comovocêprefere?—Allie—respondeu,surpresa.EscolassempresereferiramaelacomoAlyson.
MastodosnaCimmeriaaconheciamcomoAllieantesmesmodeencontrá-la.—Então casendoAllie.—Estavaremexendodistraidamenteospapéisoutra
vez.—EusouJeremiahCole.OsalunosnormalmentemechamamdeJerry.Porfavor,sentealiàdireita,emduplacomaJo.
Allieolhounadireçãoemqueeleapontouparaverameninalouradojantardeontemacenandovigorosamente.
—Quebomqueévocê.Esperoquesejaboaembiologia—disseelaassimqueAllieseaproximou.—Euachotodaciênciadiabólica.Filhotesdeanimaismortoseparasitas, oque eles estão tentandonosdizer?Putz, a gente se encrencouontemànoite,nãofoi?Issosempreteacontece?
Ela tinha um sorriso contagiante—dentes brancos e retos, covinhas fundas eadoráveis e rugas em volta do pequeno nariz — e um sotaque cristalino. Allieretribuiuosorrisoantesmesmoqueseucérebropercebessequequeriafazeristo.
—Sempreacontece.Sevocêcomeçaraandarcomigo,certamentevaiaconteceroutravez—respondeuAllie,comumsorrisoperverso.
Josorriuparaela.—Maravilha!Vaiserincrível.EnquantoAllieretiravaocaderno,Josussurrou:—OJerrynãoépegávelpraumvelho?Tiveumaquedinhaporeledurantetodo
omeuprimeiroanoaqui.
Allieexaminouoprofessor.Elepareciaopaidealguém.Umpailegal.Masumpai,aindaassim.
—Acholegalpoderchamarosprofessorespeloprimeironomeaqui—disseela,despreocupadamente.—Meuúltimocolégioeratãorígidoqueagentepraticamentetinhaquechamarosprofessoresde“comandante”.
Rindo,Jopareciaincertaquantoaacreditarnelaounão.—Vocêvaiterquemecontarmaissobreasuavida—disseela.—Pareceser
bemmelhorqueaminha.Nãocontecomisso,pensouAllie.Masapenassorriu.Jomostrouatéondeaturmajátinhachegadonolivro.—Énojento—faloualegremente.—Achoquehojenósvamosdissecar.Comosetivessesidoensaiado,Jerrypediusilêncio.—Hojenósvamosexaminaraconstrução internageraldosanfíbios,graçasao
sacrifíciodesserapazinho.Debaixodacarteira,oprofessorretirouumabandejadedissecaçãocontendoum
sapo morto, arreganhado e preso com a barriga clara curvada para cima,vulneravelmente.
—Ai,porra.—Jofezumacareta.—Quemsabemeresponderporquenósvamosdissecarumsapoenãoalguma
outrapobrecriatura?—perguntouJerry,olhandoparaaturmaporcimadosóculos.—Porqueatormentamosestes inocenteshabitantesdobrejo?Quetalvocê,Allie?Sabe?
Alliesentiuacordesaparecerdasbochechas.—Eu...euacho...—Porqueaanatomiadosapoémuitoparecidacomadohomem.—Avoz,
graveeagradável,veiodetrás.—Osr.Westestácerto,comosempre—disseJerry,olhandofriamenteparao
donodavoz.—Emborapudesseteresperadoaprópriavez.Aanatomiadosapoéalgosemelhanteàhumana...
Allievirouparaverquematinhasalvado,ereconheceuimediatamenteomeninodasalacomum,ontem.Eleolhavaparaelacomaquelesolhosgrandeseescuros,massuaexpressãoaassustou—elepareciaquaserancoroso.
Comumacaretaconfusa,Alliesevoltounovamenteparaafrente.Ciência não era sua especialidade.Tentou não pensar no “sr.West” e, em vez
disso,seconcentrounaauladeJerrysobresapos.Nãovoltouaolharparatrás.
—Vocêanotouummontedecoisa.—Joobservouenquanto saíam.—Acheiomáximo você gostar tanto assimde ciências. Precisodeuma amiga que sejaCDFnisso.
—Nãogostotantoassim—disseAllie,honestamente.—Sóachoquevouterque ralar pra acompanhar. Essa aula é bemmais adiantada que a domeu colégioantigo.
—Essecolégioémuitodifícil—disseJo.—Mastambémélegal.Apesardetermuitasregrasesquisitas.
—Total—concordouAllie.Fingindoajeitaraalçadabolsa,perguntoucasualmente:— Quem é aquele garoto que me salvou da pergunta do sapo? O Jerry o
chamoude“sr.West”.Comumolharconhecedor,Jodiminuiuavozemtomdesigilo.—CarterWest—sussurrou.—Eleéumgato.Masétodoerrado.Entãoacho
queémelhornãoinvestir.Allieficoutãointrigadaquenemsedeuaotrabalhodenegarointeresse.—Todoerradocomo?—Viveemdetenção.Achaquesabetudoequetodososoutrossãosuper ciais.
Eleéirritante.Metadedosprofessoresodeiaessegarotoeosoutrostratamcomoseele fosse, sei lá, lho deles ou coisa do tipo. E é um tremendo mulherengo.Consegueoquequereaíperdeointeresse.ÉmelhorinvestirnesseseuroloaícomoSylvain.
Allieficouvermelha.—EunãotenhorolonenhumcomoSylvain.—Bom,euachoqueele temalgumacoisa rolandocomvocê.—Jocutucou
Alliecomocotovelo.—Naverdade,euouvidizerqueeletemumanamoradaemParis.— Nunca soube disso — Jo parecia verdadeiramente surpresa. — Quem te
contou?—Aruiva.Comoelasechama...Katie?—Ah,aKatie.—AvozdeJotransbordoudesprezo.—MeuDeus,elaéuma
vaca.Nãoescutanadadoqueeladisser.ElasempreteveumaquedapeloSylvaineelenuncaseinteressou.Eladevedetestaromodocomoelesimplesmentegostoudevocê.
Allieconservouaexpressãovazia,maspordentroestavaespumando.EntãoKatietinhamentido.Poisbem.
Távalendo.
Odiafoideesquentarocérebro,comnovasaulas,novosprofessores,novoscolegasde turma e a descoberta da verdade sobre quanto trabalho escolar precisaria fazer.TinhacaídonaturmadeHistóriadeZelazny,oqueachavaqueseriaumpesadelo,mas,paraseualívio,excetoporumbreveolharquandoelaentrounasaladeaula,oprofessoratratoucomotodomundo.
A aula seguinte foi o seminário de inglês de Isabelle, e, assim que entrou, aprimeirapessoaqueviu foiSylvain,esparramadonumacarteira, suaspernas longasesticadasgraciosamente.Eleestavaconversandocomomeninoao ladoquandoelaentrou,masAlliepercebeuqueparouquase imediatamente evirouparaobservá-laenquantoelasedirigiaatéIsabelle.
—Oi,Allie.—Adiretorasorriu.—Comoestásendooseuprimeirodia?—Atéaqui,tudobem—respondeuAllie,mentindoapenasumpouquinho.—Ótimo.—EntregouaAllieumcronogramadocurso.—VamoslerRobert
Browninghoje.Conhecealgumacoisadotrabalhodele?Nahoradoalmoço,AllieleraoquehaviadeBrowningnolivro-texto.—EuliLifeinaLove—respondeu.—Eoquevocêachou?Allieinquietou-se.—Acheilegal.Isabelleinclinouacabeçaparaumdoslados,nãoparecendoimpressionada.—Essaéasuaresenhacompleta?Alliedetestavapoesia,masagoranãopareciaumbommomentoparadizerisso.
Apoiou-senabeiradeumamesaenquantoprocuravaaspalavrascertas.—Prasersincera...pareceu...sabe?,meiopsicopata.Por um segundo, a diretora pareceu prestes a discutir,mas então se conteve e
entregouaAllieoprogramadaaula.—Muitobem.Senteondequiser.Ascarteirasestavamdispostasemumcírculo,oquedealgumaformadi cultava
aescolha.Apósuminstantede incerteza,Allieescolheuumaaesmo.Aosesentar,viuqueSylvainaindaolhavaparaela.Ameninalevantouamãohesitantemente,eelesorriuantesdesevoltarnovamenteparaomeninoaolado.
Isabelleentrounocírculoeseapoiouemumacarteiravazia.—EsperoquetodostenhamlidoumpoucodeBrowningontemànoite.Estou
curiosa para ouvir o que acharam. Ele tinha um estilo único e se rebelava contramuitasdasregrasdapoesiadaépoca,entãopenseiquemuitosdevocêspudessemseidenti carcomaabordagemdele.Imaginoquetodosjátenhamtidoaoportunidadedeconheceranossanovaaluna,Allie.Allie,nãoqueroconstrangê-la,mas,porfavor,
vocêpoderialerasprimeiraslinhas?Ai,quesaco.Levantando-sedesconfortavelmente,segurouolivropróximoaorostoelimpou
agarganta.
“Escapardemim?NuncaAmada!Enquantoeuforeuevocêforvocê,Desdequeomundocontenhanósdois,EuoamorosoevocêadversaEnquantoumseesquivar,ooutrodeveperseguir.”
QuandoIsabelleassentiu,Alliesentou-segraciosamenteàcarteira.— Então, o que Browning está dizendo aqui? — A turma olhou para a
professoraemsilêncio.Allietinhaquasecertezadequesabia,masnãoiadizernadaagora.
—Ésobreobsessão.Allie não tinha visto Carter West entrar, mas ele estava sentado a algumas
carteirasdedistânciadela.Isabellefezquesimcomacabeça.—Podefalarmaisumpouco?—Desdequeelesexistamnomesmoplaneta,eletemqueestarcomela—disse
Carter.—Estáapaixonadoporela,masémaisdoqueamor.Étudo.Eleachaqueelestêmqueficarjuntos,maselanão.Entãoelepassaavidatentandoconvencê-la.
—Umateoriainteressante.—IsabelleolhouparaAllie.—Maisalguém?Allieseencolheunoassento.—Ismay—disseadiretora,voltando-separaumamorenaquepareciafamiliar.
—Podeleraspróximaslinhas?AlliearriscouumaolhadadeladonadireçãodavozdeCarterelogodesviouo
olhar.Eleestavaolhandodiretamenteparaela.
—Qualéadosgarotosdessaescola?—AllieeJocaminhavamatéabiblioteca.Asaulasdodiatinhamterminado,eJoainterceptaranocaminhodevoltaaoquartoesugeriraqueestudassemjuntas.
—Comoassim?—perguntouJo.—Elesficamencarando—respondeuAllie.—Muito.Josorriu.
—Vocêébonita.Enova.Garotosencarammeninasnovasebonitas.—Eunãosoutãobonitaassim.OsgarotosnãomeencaravamemLondres.—Eu te acho bonita— disse Jo.—Talvez eles só...— deu de ombros—
queiramquevocêrepareneles.Asduasriram.Alliefingiusedesequilibrarcomopesodabolsadelivros.—Nãoacreditonaquantidadedetrabalhoqueeuprecisofazer.Joconcordoucomacabeça.—Elesacabammesmocomagentenoverão,porqueseestáaquinessaépoca,é
porquevocê,tipoassim,éumapromessa.—Promessa?—Allieergueuassobrancelhas.—É,sabe,tempotencial?—Jodeudeombros.—En m.Ocolégioémeio,
sei lá, dividido, eu acho.Temgente que estudanele porque temmuito dinheiro.Outros porque os pais são ex-alunos. Mas tem uns que estão aqui porque sãosuperinteligentes. Ficam quase o ano todo estudando, enquanto os outros tiramfériasnoverão.Achoqueagenteestásendopreparadapradominaromundooualgoassim.
Allieficouespantadadeelaconseguirdizercoisasassimsemsoarpretensiosa.—Épor issoqueeunãome incomododepassaroverãoaqui.—Joabriua
portadabibliotecaediminuiuavozaumsussurro.—Acasa casópranós,easpessoasqueficamaquinessaépocadoanosãoasmaislegais.
AvoznacabeçadeAllieareprimia:eunãovimpracáporsersuperinteligente.Ao entrarem no silêncio da biblioteca, ela respirou amistura de couro, livros
velhosevernizdemadeiracítrico.Asalaseexpandiaalémdoqueconseguiaenxergar,através de uma oresta de prateleiras escuras demadeira que chegavam ao teto, aquatrometros emeio das suas cabeças. Cada leira tinha sua própria escada comtrilhos, que dava acesso às prateleiras mais altas. O chão era coberto por tapetesorientais espessos que amorteciam o ruído dos passos. Estruturas de ferro forjadoanciãs,quecertamentejádeviamtersustentadovelas,dependuravam-sedotetoemcorrentes grossas, demodo que os livros nas prateleiras superiores se perdiam nassombras.Mesaspesadasdemadeiracomabajuresdecúpulasverdeseramcercadasporcadeirasdecouro;muitasjáestavamocupadasporalunos,diminuídospormontesdelivrosempilhadosaoredor.
Intimidada pelo aparato de aplicação e ferramentas para estudos, Allie tentavaconter uma onda de insegurança. Já estava tão atrasada: como iria acompanhar oritmo? Pela primeira vez em muito tempo se importava com a possibilidade derepetirdeano.
Ela seguiu Jo, que abriu caminho com destreza até uma mesa muito bem
situada,queofereciaumaboavisãodaáreaprincipaldeestudoaomesmotempoquecavaligeiramenteforadoalcancevisualdabibliotecária.Empilharamoslivrossobre
amesa e se ajeitaramnas cadeiras de couro.Estavam imersas emHistória quandodois braços magros, mas musculosos, envolveram Jo por trás, prendendo-a aoassento.Elaarfou,eemseguidariuquandoummeninolourobonitoapareceupertodoseuombro,beijando-alevementenopescoço.
—Gabe,para com isso!Você aindanão conheceu aAllie.Eprecisa conhecer,porque ela éumadeusa.—Orostode JobrilhoueAllie sentiuumapontadadeinvejaseguidadeumabreveondadeculpaportertidoinveja.
Gabesorriucalorosamente,osolhosâmbarbrilhandoàluzdoabajur.PassandoobraçoaoredordeJo,estendeuumamãofortecomunhasquadradaseclaras.
—Oi,Allie.Nuncaconheciumadeusaantes.Elaretribuiuosorrisoeapertouamãodele.—Pratudotemumaprimeiravez.DeuumbeijinhonacabeçadeJoesesentouàmesa,emfrenteaela,puxandoo
cadernodamenina,paraquepudessevê-lo.—Oquevocêsestãofazendo?Ah,História.Bomteverestudandotãoaplicada.JorolouosolhosparaAllie.—OGabeestáumanonanossafrente.Àsvezesissodeixaelemetido.Eleriuepassouapontadacanetanobraçodela.—Metidonão.Sóexperiente.JosorriunovamentequandoGabesevoltouparaAllie.—EntãovocêéafamosaAllieSheridandequemtodomundotantofala.Allieseespantou.—Todomundotáfalandodemim?Porquefalariamdemim?Elesorriu.—Relaxa.Ésóporquevocêénova.Carnefresca.Nósquepassamosoanotodo
aqui camos um pouco isolados do resto domundo. Então uma aluna nova noverãoéacoisamaislegalquepodeacontecer.Alémdisso,temtodaahistóriacomoSylvain...
AvozdeGabedeixoua frasepairar, carregadade sugestão, e ele e Jo sorriramparaAllie,comoseelativessefeitoalgomaravilhoso.
—Ah,peloamordeDeus.—Alliejáestavafartada“históriacomoSylvain”.—Sintodecepcionar,masnãotemnenhumahistóriacomoSylvain.
JoseinclinouemdireçãoaGabe.—AAllieestáemnegação.Achoqueelestêmtudoaver.Allieolhoufuriosa.
—Nãoestouemnegação.—Dequalquerjeito—disseGabesuavemente—,todomundojápercebeuque
eletáinteressadoemvocê.Enósestamostodosconfusos.—Porqueissodeixavocêsconfusos?GabeolhouparaJo.Elafezquesimdiscretamentecomacabeça.—OSylvainémeio...especial.Ospaisdelesãopessoasimportantíssimas,eleé
de uma família muito tradicional. Ele próprio meio que é interessante também.Muitasgarotasaolongodosanostentaramchamaraatençãodeleeninguémnuncaconseguiu.
Jointerrompeu.—Aívocêapareceuederepenteécomoseeleestivessetodobobo.Alliesesentiapressionada,sensaçãoqueelasempredetestara.—Bom,sintodecepcionartodomundo,maseunãoseiseestouinteressada.Jopareceuexasperada.—Euachoqueelagostadeoutrapessoa.Gabeergueuassobrancelhasparaela,quelançou-lheumolharsignificativo.—OCarter—disseJo,franzindoonariz.—Ah,não.—Gabese inclinou,decidido,nadireçãodeAllie.—Sério.Não
pode.NãooWest.Eleéopiorcaraemquemvocêpodeinvestiraqui.—Obrigado,Gabe.Nãosabiaquevocêseimportava.Allie reconheceuavozgravee ricanoatoe congelouno lugar, tentandoachar
umjeitodesedissolvernocouroenuncamaisservista.Gabenãoseabalou.—Ah,semessa,Carter.Vocêsabequeéverdade.Suareputaçãoporaquinãoé
exatamenteadeumnamoradobomeconfiável.OlhandoparaAlliecomoquempededesculpas,Jojuntourapidamenteoslivros.—Euestavaindoprasalacomumdarumtempoantesdojantar.Vamostodos?ElaeGabeselevantaram,masAllieestavaimobilizadadevergonha.Alémdisso,
sairagorapareceriacovardia.Elaergueudiscretamenteoqueixo.—Não,obrigada.Vouestudarumpouquinhomaisantesdedarumtempo.SobreoombrodeCarter, Jomexeuos lábios emsilênciodizendo“Desculpa”
antesdesairemdireçãoàportacomGabe.Cartersesentoudiantedela,enquantoAllie ngiaescreverumaanotaçãoparasi
mesmanocadernodeHistória.Massuamenteestavagirando.Entãoagoraeleachaqueeutoucaidinhaporele.Edaí?Deixaachar.Elacontouduasinspiraçõeseduasexpirações.
—Oi—disseele.Levantandooolhardocaderno,viuqueeleseinclinavaparaafrente.Seurosto
estavapróximo—osolhosescurosolhandobemdentrodosdela.Divagando,Alliereparouqueoscíliosdeleerambemlongos,eassobrancelhasretasebonitas.
Ela deu um jeito demanter o rosto sem expressão,mas as bochechas coradascertamenteatraíram.
—Achoqueagentenãofoiapresentadooficialmente.EusouCarterWest.—EusouAllieSheridan.—Elafezumesforçoparaquesuavozsaísse rmee
sem constrangimento, e, uma vez na vida, deu certo. Sustentou o olhar dele semmedo.Ouaomenostorceuparaqueestivesseaparentandonãotermedo.
—Eusei—eledisse,ajeitando-secon antenacadeira.Sorriudeformacínicaeeladecaranãoconfiounele.—Agentetemqueconversar.
—Tem?—respondeufriamente.—Sobreoquê?—Você.— Legal — disse Allie. — Bom, minha cor favorita é azul, eu adoro
cachorrinhos.Suavezagora.—Superengraçado—disseele,nãoparecendoachargraça.— Ah, sim — prosseguiu —, eu sou superengraçada. Esqueci de mencionar
antes.Eleestavacomeçandoaparecerirritado.—Bastanteútil,obrigado.Masoqueeuqueriasaberéoquevocêestáfazendo
naCimmeria.Nãoénadacomumentraremnovosalunosnomeiodoverão.Incomodadapelotomdeinvestigação,Allieseinclinouparalongedeleecruzou
os braços. Ele tinha pedido a verdade, mas era muita munição para dar a umestranho.
Alliegirouacanetaentreosdedos.—Ganheiumconcurso?—Engraçada—repetiu,apesardeseurostodizerquenãoera.—Sério.Nunca
tenhamedodeserhonesta;oqueéquetrouxevocêpracá,afinal?Entãoelenãoiadeixaroassuntopralá.Tábom,então.Ergueuoqueixoeolhounosolhosdele.—Eufuipresa.Eledeudeombros.—Edaí?—Trêsvezes.—Ah.—Emumano.
Eleassobioubaixo.— Certo. Mas ser presa não te coloca na Cimmeria. Aqui não é um
reformatório.Porquevocêtáaqui?Alfinetada,Alliepôdesentirairritaçãoaumentar,maslutoucontra.—Prasersincera,nãofaçoideia.Meuspaismedisseramqueeuvinhapracá,e
algunsdiasdepois,aquiestavaeu.Disseramqueesselugaréespecializadoemalunoscomoeu.Sejaláoqueissosignifique.
—Interessante.—Carteraexaminoucomcuriosidade,comoseelafosseumapeçaintrigantenumaestantedemuseu.
Alliefuzilouomeninocomoolhar.—Porqueétãointeressante?—Alunosproblemáticosatévêmpracá,masnãonoverão.Todososalunosdo
verãosãoavançados.UmaondaderancorpercorreuocorpodeAllie,queoencarou.Poracasoeutenho“burrademaispraestaraqui”tatuadonatesta?Arrumouoslivrosempilhas,irritada.—Pelo jeito, é impossível cogitar apossibilidadedeque eu seja inteligente.E
problemática.—Essaúltimapalavraelacuspiu.—Bom,entãoémelhoreuvoltarprosmeusestudos,não?Tenhoquelutarmuitopraacompanhargênioscomovocês.
—Ô!—Pareciaespantado.—Nãosejatãosensível.Sótôtentandoentendervocê.
Issofoioquebastou.DepoisdeKatie,JuleseZelazny,seuspaiseapolícia, jáestavacheia.Enfiouoslivrosnabolsaedeumeia-voltaparaencará-lo.
— Não tenta. Ok? Não tenta me entender. Não tenta me analisar. E,aproveitandooembalo,parademeofender.Vocêmevênaaula,ouveumaconversaeachaquemeconhece.Mas,podeacreditar,vocênãosabenadaameurespeito.
Saiuirritadadabibliotecaesubiuasescadascorrendo....32,33,34degraus...Sódeutempodeelachegaraoquartoantesdea tempestadeexplodir.Abolsa
escapuliudosseusdedosfracose,apoiando-senaporta,Alliedeslizouparaochão.Com o rosto enterrado nas mãos, chorou em silêncio. Por que ela estava aqui?Todosatratavamcomoaidiotadeplantãoqueentrouquandoosegurançaestavadecostas.Podiasentirarespiraçãoenfraquecendoelutoucontraumataquedepânico,masoscontornosdesuavisãocomeçaramaescurecer.
Contouasrespirações,ostacosnochãodemadeira,oslivrosnasprateleiraseospainéis de vidro na janela até sentir que retomava o controle e a vista voltava aonormal.
Quando se sentiu melhor, levantou. Abrindo a porta, veri cou se o corredorestava vazio antes de correr para o banheiro e jogar água no rosto. Ao ajeitar oscabelosparatrás,aportaseabriueJulesentrou.SeusolhosregistraramasbochechasdeAlliemarcadasporlágrimaseumolharpreocupadopassoupeloseurosto.
—Oi,Allie.Comovocêestáseadaptando?Allienãoestavacomvontadede ngir.Mastambémnãoqueriaconversarsobre
oassunto.Sóqueriaestaremoutrolugar.—Tátudoótimo,Jules.—Suaspalavrasestavamcarregadasdesarcasmo,mas
nãoconseguiuevitar.—Todomundoestásendotãogentil.Tátudo...ótimo.AntesqueJulespudessereagir,Allieabriuaportaedisparoucorredorabaixo.Nuncatinhasesentidotãosozinhanavida.
Allie acordou com um susto e se sentou ereta na cadeira demadeira. Estava comdoresnacolunaeoabajurdaescrivaninhacontinuavaaceso.
Quehorassão?Comacabeçanebulosa,virouodespertadorparasi.Duasdamanhã.Devotercaídonosonoemcimadaescrivaninha.Estavasentadadiantedajanelaabertacomumapilhadepapéisespalhadosàsua
frente. Depois do ataque de nervos, ela acabara cando sem fome. Decidiu nãodescerparaojantareficarnoquartoparabotarasleiturasemdia.
AúltimacoisadequeselembravaeradeterlidoAsRegras.Apósterminarodever,lheocorreuquenuncaastinhalidoparavalereretiroua
pilhaespessadepapéisdagavetadaescrivaninha.Eramtãoestranhasedeterminantesqueinicialmenteelanãoacreditounoqueestavalendo.
Bem-vinda,Allie.
AAcademiaCimmeriaéumlocalúnicoparaseaprender,eestamosmuitofelizesemtê-laconosco.Aescolaoperadeacordocomasregrasestabelecidashámuitotempopelosfundadores.
Sigaestasregrasàriscaesuapassagempelaescolaserámemoráveleagradável.Desobedeça-asesuapassagempelaCimmeriapodesermuitobreve.
RegrasdaAcademiaCimmeria.
1.Odiacomeçaàs7damanhãeterminanomáximoàs11danoite.Emhoráriosdiferentesdestes,vocêdevepermaneceremseudormitório.
2.Aflorestaquecercaaescolapodeserperigosa;osalunossãoproibidosdeentrarnelasozinhosapósescurecer.
3.Nenhumalunopodedeixaroterrenodaescolasemautorização.
4.Oacessoàaladosprofessoreséproibido.
5.AlunosdecertasáreasavançadasdeestudoscursamaEscolaNoturna.Apenasalgunspoucoseseletostêmestaoportunidade;quemnãoestiverentreelesnãodeveinterferirnaEscolaNoturna,tampoucoobservá-la.Qualquerumquetentarseráexpulso.
6.AsidentidadesdosenvolvidosnaEscolaNoturnapermanecemsecretas.Qualquerumquetentardesvendá-lassofrerápunição.
7.TODASasatividadesdaEscolaNoturnasãosecretas.Qualquerintegrantequefordescobertodivulgandodetalhesdestasatividadesseráseveramentepunido.
De repente ela voltou a ouvir o barulho que provavelmente a acordara. Era umaespéciede arranhadurano telhado.Allie apagouo abajur e empurrouospapéis deladoparaquepudessesubirnamesaeolhar.
Aprincípionãoouviunada.Então,aolonge,umberro.Algunssegundosdepois,umgritofraco.Allieseinclinouparaespiaraescuridão.Hojeanoiteestavasemluare as nuvens obscureciam as estrelas. Só enxergava a escuridão. De repente, muitoperto,umbarulho—umchiado,comopassossobremadeiravelha.
Queporraéessa?Oquequerquetenhasido,foinotelhado.Láembaixo,teveaimpressãodeveralgumacoisaemdisparadapelogramadoaté
obosque.Prendeuarespiraçãoparaescutar.Aquiloera...umarisada?Apósalgunsminutos,elaouviuumavozsussurrartãobaixoquenãotevecerteza
senãoerasóasuaimaginação:Tátudobem,Allie.Vaidormir.
Ela olhou ao redor do quarto. Estava sozinha. Balançou a cabeça com força,tentandodescobrirseestavaacordadaoudormindo.
—Tô candomaluca—murmurou,efechouajanela,trancando-a rmementeantesdedeitarnacama.
Aocairnosonodenovo,podiajurarterouvidoamesmavozriraolonge.
O
CINCO
toqueagressivodoalarmedespertouAlliedosonoàssetedamanhãdodiaseguinte. Grogue, golpeou-o diversas vezes até encontrar o botão dedesligar.
Sentando-senacama,espreguiçou-sedevagar.Maisumsonhoestranho.Quevozeraaquela?Pareceratãoreal.ElapôsaculpanasRegras.
Essecolégioestámeenlouquecendo.Após um rápido café da manhã, chegou para a aula com alguns minutos de
antecedência. Jo jáestava sentada.Carter,elapercebeu,nãoestava. Jo tinhamuitasperguntas.MalesperouatéqueAlliechegasseàcarteira.
—Oqueaconteceuontemànoitedepoisqueagentesaiude lá?Queazarelechegar quando a gente estava falando dele. O Gabe se sentiu péssimo de ter tecolocadonaquelasituação.
Allie couimaginandoquantodeveriacontar.Lembrou-sedamáximadeCarter:“nuncatenhamedodeserhonesta”.
Mas,pensandobem,oCarteréumbabaca.—Agenteconversouumpouco,maselesópareciainteressadoemsaberoque
euestoufazendonaCimmeria.—Deudeombros.—Eumeirriteiesaí.Jopareceusurpresa.—Porquevocêseirritou?Allietentounãosoaramuadaeinfantil.—Sei lá.Pareceuqueeleachavaqueeunãodeviaestaraqui.Comoseeunão
fosseboaosuficienteparaisso.Joseinclinounadireçãodelaebaixouotomdevozaoníveldeumsussurro.—Allie,vocêsabequeeunãosoufãdoCarter,masissonãoénemumpoucoo
estilodele.Eleémeioqueaúltimapessoaaseresnobecomrelaçãoaqualquercoisa.Eleachaquetodomundoaquiéarrogante.Vivefalandodisso.Éumdosmotivosporqueaspessoasnãogostamdele.
Jerrymandouaturmafazersilêncio.Relutantemente,asduasseviraramparaafrente.Jopegouumpedaçodepapeleescreveufuriosamente.Quandoelecomeçou
adesenharpulmõesnoquadro-negro,aportaseabriueCarterentrou.JodeslizouopapelsobreamesaparaAllie.Dizia:“Vocêdeveterentendidomal.
Aposto.”Allie levantou os olhos do papel e viu Carter observando-a ao passar por ela.
Abaixouosolhosinstantaneamenteecobriuopapelcomamão.Ela suspirou e balançou a cabeça, como se tentasse sicamente livrá-la de
pensamentosloucos,egirouacanetaentreosdedos.Uma,duas,trêsvezes.Emseguida,nabasedobilhete,rabiscou:“Ok.Euacredito”,eopassouparaJo,
quepareceusatisfeita.AllietentoufocarnaauladeJerry.Nãodavaparapassartodasasaulasdistraída
pelapresençadeCarterWest.
—Éque eleme lançaos olharesmais estranhoso tempo todo—disseAllie.—Vivemeencarando.
Ela e Jo estavam na sala de refeições, que já começava a esvaziar depois doalmoço, remexendo folhas de salada nos respectivos pratos e conversando sobreCarter.
Jofranziuonariz.—Eledevesóquererquevocêgostedele.Elequerquetodomundogostedele.—Bem, se for isso, não está funcionandomuito não—disseAllie.—Meu
Deus,éinacreditávelaenergiaqueagentedesperdiçafalandodeumcaradequemagentenemgosta.MecontasobreoGabe.Háquantotempovocêsestãojuntos?
Josealegrou.—Deixaeuver...Agentetájuntohámaisdeumano.Quandovimpracá,eu
tava saindo com um cara chamado Lucas, mas aí eu conheci o Gabe e foi tipoassim...esquece.Eleéocaramaislegalqueeujáconheci.Omaisengraçado.Omaisgostoso.Omais...tudo.—Riudaprópriabobeira.
— Não acredito que vocês estão juntos há um ano — disse Allie. — Nãoconheçoninguémquenamorehátantotempo.
Jopousouogarfo.—AquinaCimmeriaéengraçado.Quem cajuntotendeacontinuarjunto.É
porissoquetodomundofalatantodoCarter.Aquinãotemmuitoissodefoi-só-uma-noite.Nãoseiporquê.Talvezporqueagente queaquidentrotantotempo.Porque,tipoassim,algunsalunosnuncavãopracasa.Ficamaquidireto.Comosefosseacasadeles.Eagenteéafamília.
—Quemfazisso?—perguntouAllie,curiosa.
—Bom,oCarter.EoGabe.Eeu,pelojeito.Allienãoconseguiuconterasurpresa.—Vocênuncavaipracasa?—Éumalongahistória—Jorespondeu,dandodeombros.Elaolhouemvoltadasala,quejáestavaquasevazia.—Ai,porra!Quehorassão?Ambaspegaramasbolsasdelivrosecorreramparaaporta,pelocorredorepelas
escadas.Aoseaproximaremdoprimeiroandarestavamrindohistericamente.—Atrasadasdenovo!—exclamouAllieaodobraremocorredoràspressasese
separarem,cadaumaparaasuaaula.—Comoéqueagentetá?—perguntouJo,rindosemfôlego.AllieparoudiantedaportafechadadaauladeHistóriapararecobraroar,eentão
abriu a porta silenciosamente.No terrível silêncio repentino, os alunos se viraramparaolharparaela.
—Srta.Sheridan—chamouosr.Zelazny,queinsistiaemmanterumquadro-negrodegizàmodaantiganasalaeestavaagoraemfrenteaele,encarando-a.—Aaulacomeçouhádoisminutos.Euseiquevocêénova,massuponhoquejáconheçanossasregrasquantoaatrasos.
Allieassentiumuda.—Sim?Muitobem.Entãomeencontradepoisdaaula.Alliesearrastouatéoassento,olhandoparabaixo.Nãoconsigofazernadadireito.Independentemente do quanto tentasse mudar sua vida, ela não conseguia.
PareciaqueconfusãoestavaemseuDNA.
Ao mdaaula,elaesperouosoutrosalunossaírem, ngindoorganizaroslivrosatéqueasalaestivessepraticamentevazia.Entãofoiatéamesadosr.Zelazny.Eleestavaescrevendoenãoergueuoolharde imediato.Ela limpouagarganta timidamente.Apósuminstante,elelevantouacabeçaeaencaroucomumolhargelado.
—Lamentomuito ter que conversar comvocê sobre atrasoduas vezesna suaprimeirasemana.ÉumpéssimosinalparaoseufuturonaAcademiaCimmeria.Eusei queos outrosprofessoresdizemque você émuitopromissora,masdevodizerqueeunãoestouvendonenhumsinaldisso.
AraivafezosanguesubiratéasbochechasdeAllie,maselamordeuolábioenãodissenada.Eleestendeuumpedaçodepapelescritoàmão.
—Esteéoseuavisodedetenção.Amanhã,àsseisemeiadamanhã,encontreogrupodoladodeforadacapelaeentregueissoaoprofessor.
Allienãopodiaacreditar.—Seisemeiadamanhã?Masamanhãésábado!Afriaexpressãodedesinteressedoprofessornãosealterou.—Eusótedeiumdiadedetenção,srta.Sheridan.Seissoserepetir,apróxima
vaiterumasemana.Allieentrounaauladeinglêscobertaporummantodefrustraçãoquasevisível.
Isabellelhedirecionouumolharquestionador,masAlliebaixouosolhosparaolivroe, quando a diretora começou a aula, se rendeu aliviada aomundo confortável daautopiedadeatéCarterentrarnasalacincominutosdepois.
Isabelleinterrompeuaaula.—Carter,vocêgeralmentechegaumpoucotardeeeuestoudispostaadeixarpra
láumpequenoatraso,masissoéridículo.Vocêtemalgumadesculpa?—Sómeatrasei,Isabelle.—Carterdeudeombros.—Acontece.Adiretorasuspirouefezumaanotaçãonumafolhadepapelquetinhanamão.—Vocêconheceasregras,Carter.Porfavor, queaquidepoisdaaulaprafalar
comigo.QuandocomeçouumadiscussãosobreT.S.Eliot,Alliesedesligou,imaginando
em que consistiria a detenção, e pensando (secretamente torcendo) se Jo tambémteria recebido detenção, para que ela não casse sozinha. Sentiu uma pontinha deculpapordesejarquealgoruimacontecesseàsuaúnicaamiganaCimmeria.
Derepenteseligounovamente,hipnotizadapelacombinaçãodepalavraseavozfamiliarqueaslia.Sempredetestarapoesia,masnuncatinhaouvidopoesiaassim.
“Etemostrareialgodiferentedeambas;Tuasombrapelamanhãarrastando-seatrásdeti,Outuasombraànoiteseerguendoparaencontrar-te.Mostrar-te-eiomedoemumpunhadodepoeira.”
ElaolhouparaooutroladodocírculoeviuCartersentado.Elenãoestavaolhandoparaela,maslhedavaasensaçãodequetinhaconsciênciadoseuolhar.
—Entãooqueeleestádizendoaqui?Oqueelequerdizercom“medoemumpunhado de poeira”? — indagou Isabelle, correndo os olhos pela turma.Impetuosamente,Allie começoua falar e imediatamentedesejouquenãoo tivessefeito.
Isabelleacenouparaelacomacabeça.—Pareceque...—hesitou,masoolhardaprofessoraera rmeepaciente.Allie
pensou e recomeçou.—Quer dizer, pramim parece um alerta. Ele está dizendo
“Tenhamedodemim.Vocêvaisemachucarcomigo”.Isabellefezquesimdenovo.— Acho uma boa observação. Há claramente um aviso ou uma ameaça ali.
Alguémmaistemalgoadizer?—Ésobreamorte.—Carternãoesperousuavez.OcoraçãodeAlliebateumaisdepressa.—Tudosobreoqueeleescreveé impossívelde serparado,é inevitável.Edo
queaspessoasmaistêmmedo?Damorte.Allie xouoolharnacarteira,massabiasemerguê-loqueCarterestavaolhando
paraela.
—OZelaznyétãobabaca!—exclamouJo,furiosa.—Vocêsóchegou,tipo,doisminutosatrasada.Nãoseicomoelepôdefazerissoquandoésósuaprimeirasemana.
No mdascontas,oprofessordefrancêsdeJonempercebeuqueelaseatrasara,poisestavadiscutindoumaviagemaPariscomalgunsalunosavançadosenãotinhanotadoqueaaulajádeveriatercomeçado.EntãoAllie cariasozinhanadetenção.Jotinhapoucaspalavrasdeconfortoparaoferecer.
—Já quei emdetenção tantasvezesqueatéperdi a conta.Éumadroga issoaqui,porqueasregrassãotãodurasesevocêdesviarumpassodelas...—Montouumapistola comos dedos e deuum tirono ar.—Tem semprenomínimodezalunos.Masotrabalhoépesado,seprepara.
Allieestavaconfusa.—Nãoésólerouestudar?OtomdeJofoiseco.—Ah,não.NãonaCimmeria.Aquiétrabalhobraçal.Vocêvaipintaralguma
coisaouapararagrama,plantar,limpar...SóDeussabe.Ésemprealgumacoisaquetefazsuar.Durasóumashorinhas,maspodesersuperchatosederemalgumatarefahorrível.Maspelomenosvocêvaiconheceroutragaleradabagunça.
Allierevirouosolhos.—Ah,ótimo.Quesorteaminha.Comoseeujánãoconhecesseencrenqueiros
obastante.Estavamsentadasàmesadepoisdojantarnasaladerefeiçõessilenciosa;amaioria
dosalunosjátinhaseretirado.Joolhouaoredor.—Vamossairdaqui.Vocêjáconheceuoespaço?Ousó coupresaaquidentro
comesseslivrosempoeiradoseeu?DeuobraçoparaAlliequandosaíramdasala.Àfrentedelas,o uxodealunosse
dividiaemváriasdireções;asduasseguiramafilaparaaporta.
Vagarampelaentrada,quesobaluznoturnanãopareciaoesplendordemar mqueAllierecordavadedoisdiasatrás.Agoraerasóumatrilhacinzadecascalhocomooutra qualquer. O gramado verde da escola se estendia em todas as direções e assombras compridas das árvores se esticavam sobre as duas. Jo seguia à frente pelagrama.
—CadêoGabehoje?—Trabalhandoemumprojetoespecial,achoquevai carocupadoatéotoque
de recolher. — Jo sorriu complacentemente. — Ok, pra você car sabendo.Távendoaquelatrilhaentreasárvoresali?—Apontouparauma leiradepinheirosemfrenteaogramadodaalaleste.Allieconseguiaidenti carumatrilhaconduzindoaobosque.—Éocaminhodacapela.Épraondevocêtemqueiramanhã.
Emseguida,Joapontouparaadireçãooposta,paraumcaminhoque iadaalaoestedocolégioatéasárvores.
—Ali—informouela—, temumacasadeveraneio logodepoisda saídadamata.Àsvezesagentefazpiqueniquelá.
—Eoquetemnamata?Joaolhouconfusa.—Árvores?Allieriu.—Não,querodizer,temmaisprédios?Oucoisasprafazer...?—Achoquetemumascasasafastadasondemoramfuncionáriosouprofessores.
Maseunãotenhocerteza.Naverdade,agentenão fazmuitacoisana oresta,eaescolameioquedesaconselha,porque,seilá,segurança,saúde,essascoisas.Masvocêvaigostardacapela.Ébemantiga.
Caminharam ao redor do lado oeste da casa e seguiram para trás dela, ondedegrausdepedralevavamaterraçosdegramasucessivoscom orescoloridas.Alémdoúltimo tapetede grama, o solo se elevavamarcadamentenuma colinademataesparsa.
— Tem uma torre no alto do morro. — Jo apontou e Allie conseguiuidenti carcomdi culdadeumaestrutura.—Parecequetinhaumcasteloalioualgoassim,masagoraésóruína.Atorreatéqueélegal.Vocêpodesubirlánoaltoevertudo.TemgentequedizqueenxergaatéLondres,maseusóvejoárvoresecampos.
Margeandoosopédomorro,chegaramaumlongomurodepedra.—Oqueéisso?—perguntouAllie.—Vocêvaiver.Algunsminutosdepois, chegaramaumaporta antigademadeira fechadacom
umcadeadodecombinaçãoincompativelmentemoderno.Comavelocidadequesó
seobtémcomaprática,Jogirouastrêsrodasnumeradaseocadeadoabriu.Elaabriuaportaeentrou,desviandoparanãobaternamoldurabaixadaentrada.
Alliefoiatrás,eJofechoucuidadosamenteaporta,guardandoocadeado.—Uau.—Alliearfou,assimilandoojardiminternoenormeebemcultivado.
Havialegumesem leirasdeprecisãomilitar,retascomoocanodeumaespingarda.Árvores frutíferas se acumulavam no fundo, projetando-se acima do muro, aoencontrodosoldatarde.Pelasbordas, oresentornavamemvívidostonsderosa,brancoeroxo.
Umatrilhadepedracercavaojardim,eJosaiuandandoporela.—Bem-vindaaomeulocalpreferidodaCimmeria.—Incrível!Comovocêencontrouissoaqui?Ecomovocêsabeacombinação?—Hmm...foimeioqueporacaso.Nomeuprimeiroano,eutivequetrabalhar
aquinadetenção.Nocomeçoeudetestava,terqueacordaràsseistodososdiaspravirpracá,masno naldasemanaeupercebiaqueiasentirsaudade.Nãoseiporquê.Eumandomuitobemnessenegóciodejardinagem,eesselugaré...tranquilo.
Allie couimaginandooqueelateriafeitoparapegarumasemanadedetenção,mas como Jo não providenciou a informação voluntariamente, resolveu nãoperguntar.Alémdisso,pareciamuitofácilficaremdetençãonesselugar.
Jovirouàesquerdanumcaminhoquecortavaomeiodosjardins,passandoporum chafariz onde uma bela menina de vestido esvoaçante e nariz levementedani cadoviravaumaurnadeáguaeternamentesobreaspedras.Passouaolargodeumcanteirodemirtilosesaiunatrilhadegranitodooutrolado.
—Agoraeuajudodepoisdaaulaenos nsdesemana.Àsvezes,quandoqueroprivacidade,euvenhoaqui.
Emmeioàexuberânciadeglicínias roxascobrindoasparedes,haviaumbancoaltodemadeira. Jo se empoleirounele, assinalandoparaamenina fazeromesmo.Allielevantouospéseabraçouosjoelhos,respirandooaromafrescodasflores.
—Aquiagentepodeconversar—disseJo.—Aliás,essedeveseroúnicolugarnaCimmeriaondeninguémvaiescutar.Comovocêjápercebeu,essaescolaémuitointrometida.Maseaí,comovocêtá?Devesermuitoestranhopravocêestaraqui.Eulembrodosmeusprimeirosdias;esselugarmedavaarrepios.
—Vaiparecerloucura.Maseuodeioissoaqui.Emeioqueadorotambém.Josorriuserenamente.—Naverdadeeuteentendototalmente.—Émuitodiferentedequalquerescolaemqueeu já tenhaestudado, sabe?E
temmuitotrabalho,mas...—Alliepensouporuminstante.—Nãoéaminhavida.Eédissoqueeugosto.Nãoéaminhavidadojeitoqueelatemsidonosúltimos
doisanosequalquercoisaémelhordoqueaquilo.Jorefletiuarespeito.—Quandoeuvimpracá—disseela,aspalavrassaindohesitantes.—Eutinha
sido expulsa da minha última escola depois que me encontraram desmaiada notelhadoaoladodomeuex-namorado.Agentetinhabebidoumpoucodevodcae...Bom.En m,meuspais caramloucosdavida.Masonegócioéqueerapraserumcolégioexcelentemasnaverdadeera...idiota.Asaulaseramfáceisdemais,nãotinhanada pra fazer e era cheio de alunos ricos matando tempo até irem pra algumafaculdadefodona.
Elaabaixouumadaspernaseficoubalançandoopéparaafrenteeparatrás.—Depoisdisso,meuspaismemandarampracá.Achoqueelespensaramqueeu
ia odiar,mas depois queme acostumei às coisas esquisitas, adorei.Adoro como édifícilecomoéestranho.Comoalgunsprofessoressãobizarros.Meioquetemaver.Desdeentãoeu queibem.Ótima,naverdade.Écomoseeuestivesseondetenhoqueestar.
Allieapoiouoqueixonosjoelhosepensouporuminstante.—Minhavidatemsido...meioloucaultimamente.—Elasecaloueaídecidiu
continuar.—Atéumanoemeioatráseratudoperfeito,euacho.Eraafilhaperfeita,tinhanotasperfeitas,meuspaismeamavam.Eumdia...tudoacabou.
ElaparoueolhouparaJo.—Sabe,eunãoconteiessahistóriapraninguém.Nunca.Joassentiueesperou.Allierespiroufundo;suaspalavrasseguintessaíramtodasdeumavez.—Umdiaeuchegueidocolégio,apolíciatavaláemcasa,minhamãechorando
emeupaigritandocomopolicialeeuviaqueelequeriachorartambém.Umcaos.Meuirmãotinhadesaparecido.Enuncaencontraramele.
JopegounobraçodeAllie.—Allie,Jesus!Quehorror.Oqueaconteceu?Ele...—Morreu?Seilá.Agentenuncamaistevenotícias.—Nãotôentendendo.Oqueaconteceu?AvozdeAllieagoraestavamaiscalmaefirme.—Olha,eueoChristopheréramosmuitounidos.Elefoimeumelhoramigoa
vidainteira.Temirmãosquebrigam,agentenuncabrigou.Eagente cavajuntootempotodo.Eleédoisanosmaisvelhodoqueeu,massemprefoimuitopacientecomigo.Não cansava demim como alguns irmãosmais velhos cansamdas irmãsmenores.Quandoeuerapequena,elemeencontravatododiadepoisdaaulaemelevava pra casa. Me ajudava com o dever de casa, via TV comigo. Meus pais
trabalhammuito,maseununcameimporteiporqueoChristophersempretavalá.Eatédepoisqueeucresci,elesemprecuidavademim.Tipo,apareciadepoisdaaula,comosefossecoincidênciaoucoisadotipo.Efaziaodevernamesmahoraemqueeufaziaomeuprapodermeajudarseeuempacasseemalgumapergunta.Mas,maisoumenosunsseismesesantesdeelesumir,elecomeçoua carestranho.Ficavanaruaatémuitotarde,seestressavacomaminhamãeeomeupai.Nuncaestavaporperto, e quando estava, não falava muito. Eu tinha a sensação de que eu tavaperdendo ele umpouco.Quando eu tentava conversar com ele sobre isso, se tavatudobem,eleseafastava.Literalmente,selevantavaesaíadecasaporhoras.Asnotasdelepassaramde excelentes apéssimas.Meuspais estavam totalmente loucos,masnãoconseguiamfazernadapraajudar.Elenãodeixava.
Elaparou, lembrando-sedasdiscussões intermináveis edasportasbatidas.Umpássaronoturnoentoavaumamelodiacomplexa.
Quandoelafalououtravez,otomsaiusememoção.—Eledeixouumbilhete.Meuspaisnãomecontaramoquedizia,masumavez
euouvi aminhamãe falando comalguémno telefone.Ela tinhadecorado.Foi acoisamais cruel que eu já ouvi.Dizia “tô indo embora, não tômagoado, não tôusando drogas. Só não quero mais fazer parte dessa família. Não amo vocês.Nenhumdevocês.Nãomesigam.Nãotentemmeachar.Eunãoprecisodeajuda.Vocêsnuncamaisvãomever”.
—Ai,meuDeus—sussurrouJo.QuandoAllielevantouosolhos,viuqueelesestavamcheiosdelágrimas,quelimpoucomapartedetrásdamão.—Ai,Allie.
Allie se esforçou para se manter distante da história que estava contando,fingindo,comofaziaàsvezes,quetudoaquilotinhaacontecidocomoutrapessoa.
—Eaí tudodesmoronou.Achoque eu tiveumcolapsonervoso.Assim... eunãoconseguiafalar.PasseidiasediassentadanoquartodoChristopher.Nãofuiàescola pormeses.Memandaram pra umpsicólogo, que eu odiava.Minhamãe emeupaibrigavam,eeuera sóuma... chateaçãoqueeles tinhamqueaguentar.Foicomo se ele tivesse tiradoa tampadasnossas vidasquando foi embora, e tudodebomescoou.Elesnãomeamavammais,eeunãosentiamaisnada.
Suspiroutrêmula.—Sentiralgumacoisa coumuitoimportantepramim.Entãoeubebiamuito;
masnaverdadeissoémeioqueoopostodesentiralgumacoisa,sabe?Jofezquesim.—Passeiaandarcomgentequemachucavaunsaosoutros.Memetiemmuita
encrenca.Serpresafoibemassustador,entãofizissoalgumasvezes.Eu...—estendeuo braço esquerdo, mostrando três cicatrizes brancas nas entre o pulso e a parte
interna do cotovelo. — Me cortei por um tempo. E doía, o que era bom. Mastambémera totalmente imbecil.Eparecia falso.Tipo, seévocêque fazcomvocêmesma,nãoédordeverdade.Porissoeunãofaçomais.
Acelerouofinaldahistória,comoseestivesseansiosaparaacabar.—En m,daúltimavezqueeufuipresa,meuspais caramdesacocheio.Eé
issoaí.Elestêmumacasavaziaagora.Eeunãotenhonemisso.Espontaneamente, Joaabraçoucomforça.Entãochegoupara trás ea segurou
pelosombros,olhandoemseusolhos.—Ok. Isso éumamerda.Mas você tá aqui agora.E tá viva.Eu acabeide te
conhecer,Allie,masjáseiquevocêéincrível.Easuafamíliapodeserhorrível,masasuavidaapartirdeagoradependedevocê.Euqueroquevocêprometaquevaidarumachanceaesse lugar.ACimmeriameconsertou.Agoraéaminhacasa, e essaspessoassãoaminhafamília.Podeserigualpravocê.
Allieretribuiuoabraçoesegurouaslágrimas.—Ok—sussurroucomavoztrêmula.—Prometo.JopuxouAlliedemodoqueacabeçadelaseapoiassenoseuombro,e caram
sentadas quietas no banco por um instante, cada uma perdida nos própriospensamentos.Alliesesentiuestranha;deressaca.Cansada.
—Esselugaréengraçado—resmungou.—Otempoparececomprimidoaqui.Nãoacreditoqueeusóchegueihádoisdias.Essavaiseraminhaterceiranoite.Masparecequeeujáestouaquihásemanas.
Joassentiu.—Écomoumavidaconcentrada.Aquiacontecemaisemumasemanadoquelá
foraemummês.Encolhidas no banco, conversaram preguiçosamente enquanto a luz do dia
desbotavaeassombraspreenchiamojardim.—Dápra entenderporquevocê gostadaqui—Alliedisse ao se esticar.—É
meiomágico.Tipoaquele livroqueagente lêquandoé criança,O jardim secreto.Vocêoleu?
Jofezquesimcomacabeça.—Eusempre...AspalavrasdeJoforaminterrompidasporalgumacoisabatendoruidosamente
dooutroladodojardim.Asduassaltaram.—Quediabosfoiaquilo?—perguntouAllie,olhandoemvoltaenotandopela
primeiravezcomojáestavaescuro.—Nãosei—Josussurrou.Olhouparaorelógio.—Saco!Jáestáquasenahora
dotoquederecolher.Nóstemosquevoltar.
Elaselevantou,dandoobraçoparaAllie,eentãoouviramobarulhonovamente.Eemseguidapassos.
—Que...—Josussurrou,eentãolevantouavozegritou:—Quemtáaí?Ospassoscessaram.Asduasficarampetrificadas,ouvindoasbatidasdospróprioscorações.—Jo—Alliesussurrou.—Seráqueé...Asduasescutaramorosnadoaomesmotempo.JoagarrouobraçodeAllie.—Jo,quediaboséisso?—sussurrouAllie.—Nãosei.—Seráqueagente...?—Corre?—É.—Quandoeudissertrês.Um.Dois...O silêncio foi quebradopor um estilhaço que agora parecia vir das sombras a
centímetrosdelas.Asduasgritaramesaíramcorrendopelatrilha.JosegurouamãodeAlliecomfirmeza.
— Fica comigo — disse arfando, e correu para o pomar. No escuroziguezaguearamentreasárvores,eAlliesentiualgumasfrutascaídassendoesmagadassob seus pés.Tentou prestar atenção se ouvia passos além dos dela e de Jo, masestavamindorápidodemais,eraimpossíveldeterminar.
Entãoalgumacoisatocousuacabeçaeelagritou,batendonoaraoredor.Joaarrastou para a esquerda, perto do emaranhado de canteiros de mirtilo, para umjardimderosas.Espinhosrasgavamsuasmãoseroupas.Galhosestalavamsobseuspés.
De repente algumacoisa agarrou Jo e a levantou, arrastando-aparaumquartoconstruídodentrodaparede.Allieaouviatentandogritar,masumamãocobriasuaboca,abafandoosom.
—Shhhh.—GabelevantouumdedoparaoslábioseolhounosolhosdeJo.Jooabraçoueenterrouorostonopescoçodomenino.
Gabe esticouobraçoparaAllie,mas agora alguém estava segurandoos braçosdela também.LevantouosolhosatabalhoadamenteeviuosolhosazuisdeSylvainobservando-afirmementenaescuridãoenquantoapuxavaparaoquartoescuro.
Emsilêncio,elemexeuabocadizendo:—Quieta.
A
SEIS
llie,imóvel,tentavanãorespirar.GabeenvolviaJonumabraçoprotetoreSylvainpuxavaAllieparatrásdesi.Ambosencaravamaportaaberta,comosolhosemalerta.
Alguma coisa fezum ruídode estilhaço aopassarpelo jardim eAllie teveumsobressalto, mas o som agora parecia mais distante. E após alguns segundos...silêncio.
Quandomaisalgumtemposepassousemquenadaacontecesse,GabeeSylvaintrocaramumolhare, comose tivessemrecebidoumsinal, começaramacaminharrapidamenteemdireçãoàporta.Gabeexaminouaáreaaoredor,olhouparatrás,fezumsinalcomacabeçaetodoscorreramemsilêncioparaojardim,dalipelatrilhaatéa porta, chegando ao gramado. Semuma palavra, Jo deu aGabe o cadeado e elefechouaporta.
Pelaprimeiravez,AlliesedeucontadequeosbraçosdeSylvainaindaestavamemvoltadela.Ele tinhaumcheiromarcantedepinheiroouzimbroeela respiroufundo, relaxando nos seus braços. Imediatamente o abraço dele tornou-se maisapertado.
FracosraiosdeluzaindabrilhavamnocéuenquantoGabeosguiavaatravésdeumaportadefundosquedavadiretamentenocorredorcentral.Sobaluz,Allieviuque Jo parecia pálida e se agarrava aGabe com lágrimas nos olhos.Um lete desanguecorriapelabochechadameninaeGabeatocoulevementecomodedo.
—Vocêtámachucada—disseele.—Émelhoragentetelevarpraenfermeira.Ela fez que sim coma cabeça, ele a abraçou e a conduziupelo corredor.Allie
sentiudenovoacuriosaardênciadainveja.Comosetivessepercebido,Sylvaindeuumpassoemdireçãoaelaeexaminouseurosto,ajeitandoseucabeloparatrás.
—Vocêsemachucou?—perguntou.Apreocupaçãonosolhosdelefezcomqueseu coraçãobatessemaisdepressa.AgoraqueSylvainnão estavamais a segurando,sentiu um impulso quase irresistível de se jogar de novo em seus braços e sentiraquelecheiro.Cadapartedoseucorpoqueeletocaraformigava.
Allierespirou,trêmula.
—Sylvain,oqueeraaquilolá?—Nãosei.Algo no tom dele não soava verdadeiro e ela o olhou atentamente.Tinha a
sensaçãodequeestavaescondendoalgumacoisa.Algumacoisaimportante.—AgentetemquecontarpraIsabelleoqueaconteceu—anunciouAllie.Seus
olhosfaiscavamdedeterminação.—Achoquevocêtácerta—eledisse.—Masvamosesperaratéamanhã.Ela
deveestardormindo.Tátodomundobemagoraevocênãoquerparecerhistérica,né?
Aindaqueelaquisessediscordar,entendiaa lógica—a naldecontas,elesnãotinhamvistonada.Masdepoisdaadrenalinanojardimedacorreriadoresgate,elaqueriafazeralgumacoisa.Voltarláparaforaeprocurarpeloquequerquefosse.Ouao menos sentar e conversar sobre o ocorrido. Não ia conseguir dormir de jeitonenhum.
—NãoémelhornósvermoscomoestáaJo?—sugeriuesperançosa.—Elatáok.OGabeestácomela.—Sylvainsecaloueentãocontinuoucom
algumarelutância,comosesoubessequalseriaarespostadeAllie.—Olha,jápassoudotoquederecolher.Émelhorvocêirdeitareamanhãagentecuidadisso.
Allienãoconseguiaacreditarnoqueestavaouvindo.—Fala sério!Não,Sylvain!Euquero falardoque aconteceu.Sejahonesto:o
quevocêviulá?ArespostadeSylvainfoicuidadosamenteconstruída.—Eusintomuito,masnãovinada.Talvez tenhasidoalgumtipodeanimal.
Talvezvocêstenhamincomodadoumaraposaouumtexugo.—Quandoelaabriuabocaparaprotestar,elelevantouamãoparacontê-la.—Vocêtácansada,Allie.Eutambém.Émelhormesmovocêirdormir.
Alliequeria car acordada,masdiscutir se estavaounão cansadanãoparecia amelhordasrazõesparadesrespeitarotoquederecolherepegarumadetenção.
Relutantemente,concordou.—Tábom,então.Boanoite,Sylvain.Seu tomfoibrusco,masquandoela seviroupara irembora,eleapegoupelo
pulsoesegurousuavemente.—Comoassim?Sembeijodeboa-noite?—disse, comuma risadabaixa.—
Sem“obrigadapormesalvar,Sylvain”?Nem“vocêémeuherói,Sylvain”?Nuncasedeveirdormircomraiva,mabelleAllie.
Os olhos azuis dele giraram divertidamente e ele a puxou para perto,envolvendo-anoabraçoqueelatantoqueriaalgunsminutosatrás.
Inicialmente,porpurateimosia,elaresistiu,masquandoelesussurroubrincandoao seu ouvido, “émais legal se você ajudar”, ela se pegou rindo.O sotaque dele,afinal,eratotalmenteirresistíveleaquelesolhoseramincríveis.
Quandoeleabeijounabochecha,deixouoslábiospermaneceremaliumpouco.Arespiraçãodeleeragostosaebem-vindaemsuapele.Allieseapoiounele,torcendoparaqueaquilodurasse.
—Agora—sussurrou-lheaopédoouvido—,vaipracamasozinhaoueutearrastoatélá.
Allieseesforçouparamanteracalma,maspordentroestavaderretendo.—Tá,tábom—respondeu,virando-seantesqueelepudesseperceberoefeito
quetinhaprovocadonela.Maséclaroqueelesabia.—Bonssonhos—eledisseatrásdela,comumarisadasuave.Elacorreuescadaacimasemolharpratrás.
Namanhãseguinte,Allieestavadepéàsseissentindo-seestranhamenteenergizada,comoseaadrenalinadanoiteanterioraindacorresseporsuasveias.Paradadiantedoguarda-roupa, couimaginandooquevestirparaexecutartrabalhosbraçais,optandonalmente por uma calça esportiva, tênis e uma camiseta branca comobrasãoda
escolanopeito.Prendeuocabeloparatráse,pegandoobilhetededetenção,desceurapidamente.
Seu estômago roncava,mas ainda era cedo para o café damanhã. Arriscando,espiou a sala de refeições e viu que estava vazia, só que uma das mesas tinhasanduíches de bacon em uma travessa aquecida ao lado de um balde de pratacontendogelo,cheiodegarrafasdeágua.Entrounasalacomalgumahesitação.
Devemserparaagente,casocontrárioestariamaquiporquê?Pegandoumsanduícheeumagarrafa,olhouemvolta,paraoespaçovazio.—Obrigada—sussurrou,levantandoagarrafadeáguaemsaudação.Mastigouruidosamenteosanduícheenquantoatravessavaosaguãodeentradae
desciaosdegrausda frente.Oarmatutinoestava frioeocéu,nublado.Folhasdegramaesfregavamorvalhogeladoemseuscalcanhares.
Allieachouqueeraatébemagradávelestarsozinhaalifora.Maseunãoiriaquererfazerissotododia.Repassouna cabeça as experiênciasdanoite anterior e ensaioudescrevê-laspara
Isabelledeumjeitoquenãosoassehistéricoouemotivo.Nãoerafácil.Deixandoparatrása linhadasárvoresepenetrandonassombras,ela tremia—
estavamuitosgrausmaisfrioforadoalcancedosol.Ocaminhoerareto,passando
sobpinheirosedesviandodeespinheiros.Folhasvolumosasde samambaias faziamcócegas na batata de suas pernas delicadamente, mas ela mal percebia enquantocontinuavacomadissecaçãomentaldanoiteanterior.
Após cerca de dez minutos, a trilha alcançou um muro baixo de pedra, queseguiaporcercadequinzemetrosatéchegaraumportãoquelevavaaumpátiocomumgramado ligeiramente alto.Umacapela anciãdepedras se situavanocentro, ehavia um pequeno grupo de alunos aglomerados perto da porta, parecendoentediados.Alliesuspiroualiviadaaoperceberqueestavamvestidosmaisoumenoscomo ela. Não vendo ninguém que reconhecesse, cou na beirada do grupo,apoiando-senotronconodosodeumteixo.
Maltinhaseajeitadoquandoaportadacapelaseabriueumamulherapareceunaentrada.Casualmentevestidacomcalçasescurasdelinhoeumacamisabrancadebotão,oscabeloslongoseescurospresossemmuita rmeza.Tinhaumapranchetaemumadasmãos.
—Podemmeentregarasnotificações,porfavor?Na medida em que os alunos foram subindo, ela recebeu os papéis sem
comentários,masquandoAllieentregouodela,amoçaareteve.—VocêdeveseraAllie.—Soavacontentecomoseestivessemseconhecendo
tomando chá na sala de refeições.—A Isabelleme faloumuito de você. Eu souEloise Derleth, a bibliotecária. Você precisa passar lá pra dar um alô. A Isabelledeixoualgunslivrospravocênaminhamesa.
DeuumsorrisoluminosoparaAllieecontinuoureunindoorestantedospapéis.Quando tudo estava em ordem, levantou a voz para que todo o grupo pudesseescutá-la.
— Sei que todomundo está ansioso para saber qual vai ser a tarefa de hoje.Portanto,nãovoufazercomqueesperem.Porfavor,sigam-me.
Alguns alunos reviraram os olhos e riram ao irem atrás. Allie continuou nabeiradadogrupo,travadapelacautela.
Eloiseosguioudandoavoltanacapelaparaumbarracãonosfundosdopátiodaigreja.Eraum local adorável, com lápides envelhecidas se inclinandoembaralhadassobárvorescarregadasdefolhasemmeioaumagramaaltaemacia.Umvelhobancode jardim apodrecia lentamente contra a parede emumapiscinade luz solar.Umhomem com o uniforme de trabalho preto utilizado pelos funcionários da escolaesperavanosfundosdaconstrução.
—Hojevocêsvãolimparopátiodaigreja—explicouEloise.—Osr.Ellisonvaiprovidenciartudodequeprecisameatribuirtarefasparaamanhã.Boasorte!
Comumsorrisoalegre,caminhoubruscamentepelatrilhaeatravessouoportão.
AlliefoiparapertodogrupoquefaziafilaparareceberferramentasdoSr.Ellison.— Vou dividir vocês em equipes. — Ele tinha uma voz de barítono rica e
ressonante,eaoentregarasferramentas,Allie couimpressionadacomseutamanho.Devia ter dois metros de altura; os braços eram grossos e fortes; provavelmente,especulou, por ter passado a vida trabalhando ao ar livre. Sua pele era cor de caféexpresso,eeletinhaumjeitoincrivelmentetranquilizante.
—Essessãoosmeuspodadoresdeervasdaninhas—disse,gesticulandoparaumgrupodemeninosquejátinhaequipadocomferramentasbarulhentas.—Elesvãocortaraoredordaslápidesenquantoestegrupoaqui—apontouparadoismeninoseuma menina que empurravam cortadores de grama em várias direções — faz alimpezageral.
Allie era a última da la. Ao se aproximar, o sr. Ellison cumprimentou-aeducadamentecomacabeça.
—Vocêsdoisvãocuidardosancinhos.Dois?ElaseviroueviuCarteraoseulado,olhandoinocentementeparaojardineiro,
que entregava os ancinhos. Enquanto ela o encarava, atônita, Carter agradeceueducadamente,eentãoviroueseafastou,carregandoosdoisancinhosemumamão.
Elaseapressouatrásdele,saltandocautelosamentepelaslápidesetropeçandonosolodesigualenquantooruídofuriosodeferramentasdejardinagempreenchiaoar.
— O que você tá fazendo aqui?Tá indo pra onde? — perguntou, direta. Equando ele a ignorou: — Ei! Não era pra gente estar trabalhando em vez decorrendo?
CarternãopareceuincomodadocomaatitudedeAllie.—Eupegueidetenção.Porquevocêtáaqui?Equerfazerofavordeseacalmar?
A gente tem que esperar algunsminutos pros cortadores de grama darem algumacoisapragenterecolher.Portanto,estousaindodocaminho.
Ele não parou até chegar à árvore na frente da igreja. Apoiou os ancinhos notroncoeemseguida,pisandoemumaraizprotuberante,subiuemumgalhobaixoondesesentouconfortavelmentecomaspernasparabaixo.Estendendoamãoparaela,ergueuumasobrancelhaemtominterrogativo.
Após hesitar (e se imaginar respondendo “não, obrigada, estou bem em pé”),Allieaceitourelutantemente.NoqueCarterpegouamãodelae levantou-aparaoseulado,apareceualgoemseuolharqueAllienãoconseguiuinterpretareelasentiuacorlhesubirrapidamenteàsbochechas.
Alliedeslizousobreotronconodosoparaseafastardele,eemseguidasesentoucomumapernapenduradaeaoutradobrada,opéapoiadonogalho.Eleviroupara
encará-laesuascostas caramapoiadasnotronco.Girandoumgalhoentreosdedos,examinou-a curioso. Allie observou os cortadores fazendo a grama desaparecer engiunãonotaroolhardeCarter.Dalidecimaconseguiaescutaroruídodaágua
correndo.—Olha—disseCarter—,eutavaquerendofalarcomvocêsozinhaprapedir
desculpas.Ela olhou para ele, surpresa, com a sensação de que ele parecia estranhamente
desconfortável.—Tepasseiaideiaerradanaqueledianabiblioteca—continuou.—Euseique
vocêachouqueeutavadizendoumacoisaqueeunãotava.Achoquevocêtemtantodireitodeestaraquiquantoqualqueroutrapessoa.Ok?Porfavor,acreditanisso.
Apesar de fazer que sim, a expressão dela continuava reservada. Ele suspiroufrustrado.
—Tômesentindopéssimocomisso.Vocêdevemeacharumidiotacompleto.Elafezquesimdenovo,comumquasesorrisoirônico,eeleriu.Elatentounão
sorrirenãoconseguiu.—Sabia...Allie,euesperoquevocêacrediteemmim.Eunãoquisdizeroque
você achou que eu tava dizendo. De jeito nenhum. Detesto os metidinhos dessecolégio.Nãovouserumdeles.Agentepodecomeçaroutravez?
Algumacoisanelanãocon avanele.Mas,pensandobem,algumacoisanelanãoconfiavaemninguém.Edequeadiantavaarrastaresseassunto?
—Claro—respondeuafinal.—Ótimo.Agoranósestamosnocomeçooutravez.—Olhandoparaojardim,
ele disse:—Certo.Bem, isso foi rápido e fofo. Parece que eles estão chegando aalgumlugar.Émelhoragentecomeçar.
Elesaltoudaárvore,aterrissandosuavemente,evirouparaajudá-laadescer.Aodeslizarparaabeiradotronco, foialémdamãoesticadadameninaecomasduasmãosapegoupelacintura,levantando-adaárvorecomfacilidade.Ela cousurpresacomaforçadorapaz.
—Evamostrabalhar—falouele,virandoparapegarosancinhos.AssistindoaoritmogalopantedeCarter,elaoseguiuparaopátio.
As lápides pouco revelavam (Emma Littlejohn, amada esposa de FrederickLittlejohnemãedeFrancesLittlejohn—1803-1849—QueDeuslhedêdescanso),mas ela se descobriu incapaz de passar por qualquer uma sem ler e pensar em seuocupante,imaginandoseteriamtidovidasfelizeseoqueostrouxeraaestelugar.
Quarentaeseis.Nemeramuitovelha,pensou.Suaprópriamãejádeviaternomínimoestaidade.
Oscortadoresjáhaviamseadiantadobastantenagramalonga,eCarterentregoua Allie um ancinho e começou a varrer com habilidade as folhas e reuni-las emgrandesmontes.Elacomeçouavarrerdamelhormaneirapossível,sussurrandoumpedidodedesculpasparacadatúmulo.
Desculpaporincomodar,sra.Coxon(1784-1827).Ésóumminutinho.Masseumonteestavaumcaoseelaperdiametadedagramanocaminhoparaa
pilha.—Vocêémuitoboanisso—falouCarterdemaneirasarcástica.—Calaaboca!—disseela,rindo.—Dáumtempo.Nuncafizissoantes.—Nunca fezoquê?Varreu folhas?—perguntou,parecendoverdadeiramente
surpreso.—É,nuncavarrifolhas—confirmouAllie,dandodeombros.— Como nunca varreu folhas? Seus pais não te mandam fazer nada? —
exclamouemtomdereprovação.—EumoroemLondres,Carter.Agentenãotemjardim,tem,tipo,umpátio
comváriosvasosealgumas oresaoredor.Jálimpeieleváriasvezes,masnuncavarrifolhascomumancinho.
Eletrabalhouemsilêncioporalgunsminutoseemseguidabalançouacabeça.—Londresdevesercheiadegarotosquenunca zeramnadadessetipo.Issoé
tão estranho para mim. Não consigo me imaginar não trabalhando a céu aberto,sujandoasmãos.
Apoiadanoancinho,elaseadmiroucomaeficiênciacomqueeletrabalhava.—Deondevocêé?—perguntouAllie.Carterfezumgestodevarreduraindicandoaterraaoredor.—Vocêestávendo.—Comoassim?Vocêmoraaquiporperto?—Moroaqui.Minhacasaéaqui.Confusa,Allievarreuporalgunsinstanteseemseguidaparououtravez,tirando
umamechadecabelodosolhos.—Masondevocêmoravaantesdevirpracá?Ogarototambémparou.—Lugar nenhum. Foi aqui que eu cresci.Meus pais trabalhavam aqui, eram
funcionários.Eutenhobolsadeestudos.Nuncamoreiemnenhumoutrolugar.—Seuspaissãoprofessores?Aindatrabalhando,elerespondeusemlevantarosolhos.— Não. Meus pais eram funcionários — disse Carter, enfatizando eram e
funcionários.
—Entãoelesnão trabalhammaisaqui?—perguntouAllieaomoveragramacomoancinho.
—Não—negou, a voz soando fria.—Não deixam trabalhar aqui quem jámorreu.
Alliecongelou.Eletrabalhavafuriosamente;elaviaosmúsculossemovendosobacamisa.
Aquijazemosr.easra.West.Empaz.—Ai,meuDeus,Carter.Desculpa.Eunãosabia.Elecontinuouvarrendo.—Claroquenão.Comovocêiasaber?Deixapralá.Largandooancinho,aproximou-sedeleetocou-lheobraço.—Desculpa.Mesmo.Puxandoobraçoparalonge,eleaencarou.—Deixadisso.Evamosfalarsério?Eunãoquero caraquiodiainteiro,então
dáprameajudar?Magoada, ela pegou o ancinho e foi para algumas lápides adiante. Por vinte
minutos trabalharam em silêncio. As costas e os braços de Allie doíam, mas elaacumulouváriaspilhasrespeitáveisdefolhasegrama.OlhouváriasvezesparaCarter,maselenãoparouemnenhummomento.
Gradualmente, o ruído terrível dos equipamentos de jardinagem diminuiu e,após mais ou menos dez minutos, parou de vez quando o último aparador foidesligadoedevolvidoaosr.Ellison,queorganizavacuidadosamenteasferramentas.
—Achoqueacabamosaqui.Allie estava tão perdida no próprio trabalho que as palavras de Carter a
assustarameeladerrubouoancinho.Ao levantá-lonovamente, amechadecabeloescapuliuoutravez,eelaajogouparatrás,distraída.
—Vemcá—disse—,viradecostas.Allie o olhou incerta,mas após um instante de hesitação fez como ele pediu.
Atrásdela,Carterajeitouamecharebelde, xando-agentilmentecomoprendedor.Amenina couimóvel.Olevetoquedorapazemsuanucalhedeuarrepios.Apósalgunssegundosotoqueparou,maselenãodissenada.
QuandoAllie se virououtra vez, ele estava a caminhoda capela carregandoosdoisancinhos.Elacorreuatrásdele,tropeçandoemumtufodegrama.
—Aqui,Bob—disseCarter,entregandoosancinhosaosr.Ellison.—Obrigado.Seencrencououtravez,Carter?—Sempre.O sr. Ellison tinha uma risada grave da qual Allie gostou imediatamente. Ela
sorriuparaeleeenfiouasmãosnosbolsos.—Esperoqueagentetenhafeitoumtrabalhorazoável,sr.Ellison.Elesorriugentilmenteparaamenina.—Pareceótimo,srta.Sheridan.Obrigadopelaajuda.Enquantocaminhavampelatrilha,osr.Ellisongritouatrásdeles:—NãodeixaoCartertecolocaremmaisencrencas.Semesperarporela,Carterseguiupelopátioeemseguidacruzouoportão.Allieconsiderourapidamente sedevia tentaralcançá-lo,masacaboudesistindo.
Emvezdisso,caminhoucalmamentetorcendoparaqueeleseadiantassemuitoemrelaçãoaela.
Algunsminutosdepois,noentanto,aodobrarumacurva,eleestavaparadonocaminho, chutando uma pedra. Evitando seus olhos, ela passou rapidamente, semdizerumapalavra.
—Allie,espera!—chamou.Davaparaouvi-locorrendoparaalcançá-la,masagarotanãosevirou.Quandoelechegou,passouaandaraoladodela,decostasparapoderolharparaoseurosto.—Éoseguinte.Parecequeeumecomporteifeitoumbabacaoutravez.
—Semproblemas—elarespondeufriamente.—Pelomenosvocêsecomportasempredomesmojeito.
Surpreendeu-seaovê-lorir.—Ok,eumereço.Desculpaporeutertedadoumcoice.Ésóqueeusoumuito
sensível em relação a... algumas coisas. — Os olhos de Carter escureceram e elechutouumapedradocaminho.
AlliepensouemChristopherenoquantoelaprópriaerasensívelemrelaçãoaodesaparecimentodoirmão.
—Tudobem—falou.—Jápassou.—Temcerteza?—perguntouCarter.—Absoluta.Claramentesatisfeito,omeninovirouecaminhouaoladodela.—Entãovocêjáserecuperoudeontemànoite?—indagouCarter.Elaolhouparaele,surpresa.—Comovocêsabedeontemànoite?—NinguémtemsegredosnaCimmeria—respondeu.—Euouvidizerquea
Josemachucoucorrendonoescuro.Allie cou pensando quão honesta deveria ser. Queria conversar sobre aquilo
comalguém,mastemiaqueCarterfosseimplicar.—Foiassustador—admitiu.
—Oquevocêviu,exatamente?—Nada—respondeu.—Querdizer,tavaescurodemais.Agentesóouviu...Nãosabiacomoexplicar.—Ouviramoquê?—Osolhosescurosdorapazeramdifíceisdeserlidos.— Eu ouvi alguma coisa rosnar — reconheceu —, feito um cachorro. Mas
tambémouvipassos.Humanos.Oquevocêachaquepodetersido?Querdizer,aspessoasaquitêmcachorro?Tipoosprofessoresou...osfuncionários?
—Ninguémtemcachorro.—Foiarespostacurta.—Bom,alguémtemumcachorro—murmurou.—Oualguémrosna.Eleparoutãoderepentequeelaquasetropeçounele.—Sinceramente?—disseCarter.—Euachoqueeramalgunsdosmeninoste
provocando.Tentandoteassustar.Poralgummotivoelanãoestavaesperandoporisso.—Porquê?—questionou.—Quecoisaidiota.—Porqueelessãoinfantis—declarou.—Eentediados.Evocêénova.Fizeram
pordiversão.Aideiadeumaturminhademeninossedivertindoàscustasdeladefatosoava
plausível. E magoava, apesar de ela ter tentado não demonstrá-lo. Enquantocaminhavampelatrilha,elaolhavaparaochãoengolindoemseco.Masalgumacoisanaexplicaçãodelenãopareciaverdadeira.OqueaconteceucomaJo?Ela tambémestavalá.
Ao pensarmelhor, concluiu que só havia duas possibilidades.Ou o incidentetinhasidoumafarsaelaborada,daqualGabeeSylvainteriamparticipado,ouCarterestavamentindoparaela.
Allieolhouparaelediscretamente.Eleolhavaparaafrente.—Sabe,oGabeeoSylvain salvaramagente—disseela, emtomcasual.—
Elesestavamsabendo?OhumordeCarterescureceu.—Ah,eles salvaramvocês?Quecoisamaisheroica—debochou.Emseguida,
virou-separaencará-la.—OqueéquetárolandoentrevocêeoSylvain,aliás?Vocêchegouaquihápoucosdias,maspelojeitoelejáachaquevocêépropriedadedele.
Elanãoresistiuamorderaisca.— Isso é ridículo.Ninguém é propriedade de ninguém aqui.OSylvain só tá
sendobomcomigo.Elepareceumcaralegal.—Sylvain?Legal?—zombouCarter.—Duvidoseriamentedisso.Allieoencarou.— Quer saber? O Sylvain não foi nada além de legal comigo desde que eu
cheguei.Aocontráriodepraticamentetodomundo.Agarrando-apelobraço,elevirouameninaparaficarcaraacaracomela.—Só...tomacuidado,Allie.Ascoisasnãosãotãonacaraaquiquantoláfora.A expressão deCarter era intensa e ele parecia sincero,mas ela puxou o braço
furiosamente.Antesquepudesseresponder,escutouavozdesedadeSylvain.—Allie.Vocêtáaí.Tavaindoteprocurar.Ele surgiu das sombras, vindo da direção da escola. Carter lançou a Allie um
olhardeaviso,eelaoencarou.—Carter.Claro.Eudeviasaberquevocêestavadedetençãohoje.Vocêsempre
tá — falou Sylvain, em um tom leve e brincalhão, mas havia algo sério nasentrelinhas.
—Evocê,Sylvain,nuncaestá—disseCarter,comavozenvoltaemdesprezoaopassarporSylvaineseguirnadireçãodocolégio.
Compreocupaçãonosolhos,SylvainsevoltouparaAllie.—Aconteceualgumacoisa?Vocêparecechateada.—Nãofoinada—disfarçouAllie,enquantoCarterdesaparecianumacurva.—
Elesóéumpoucobabaca,nãoé?—Acho que essa é a de nição perfeita— concluiu Sylvain.Quando o rapaz
sorria,seusolhospareciamosdeumgato.—Então,comofoiadetenção?Horrível?—Não foi tão ruim assim. Só umabolha— esclareceuAllie. Ela estendeu a
mão direita, onde um inchaço branco havia se formado na palma, embaixo doanular.
—Quehorror!—exclamou.Sylvainergueuamãodelaatéoslábioseabeijousuavemente.Allietremeu.Arrepiosdenovo.—Eudecidiquevocênuncadevefazertrabalho manual — disse. — Não faz seu tipo. Você devia ter empregados teservindo,todavestidadeseda...
OabsurdodaideiafezAllierir.—É,elespodiammeserviruvasenquantoeucontoosmeusdiamantes...—Vocêtábrincando,maspodiaacontecer—disseSylvain.Eleaindaseguravaa
mão da menina e agora a puxava pelo caminho. — Infelizmente, esse não é umencontrosocial.EuvimatévocêporqueaIsabellepediu.Elaqueriatever.
Osmúsculos do estômago deAllie enrijeceram.Não cou realmente surpresaporadiretoraquererencontrá-la,considerandoquejátinharecebidodetenção.Mastorceumuitoparaquenãoestivesseseriamenteencrencada,sóparavariar.
—Ok—falou.—Achoqueissonãoénenhumasurpresa.Enquantocaminhavam,elasevirouparaolharparaele.—Sobreontemànoite...
—Ah,sim—eledisse.—Oataquebrutalnojardim.OtomdeSylvaineradeprovocação,masAllieestavafalandosério.—Quemera?Euescuteipassos,e,tipo,umcachorrooucoisaparecida.—AchoqueospassosquevocêouviuprovavelmenteforammeusedoGabe—
respondeu Sylvain.—E o que você achou que fosse um cachorro devia ser umaraposa.
—Umaraposaquerosna?—perguntouAllie,descrente.—Podiaestarpresaemalgumdosgalpõesenervosa—comentouSylvainedeu
deombros.—Nãoétãoraro.Allieestudouorostodelecomatenção.—OCarterdissequeachavaqueeramunsmeninosmezoando.Sylvainfranziuorosto.— Isso é ridículo. Eu ia saber se isso acontecesse. Acho bizarro ele dizer uma
coisadessas.Poralgummotivo,Alliesentiualíviodeouvi-loresponderassim.—É—disseela.—Foioqueeupenseitambém.Quandoatrilhachegouaogramadodaescola,umpensamentoocorreuaAllie.—Porquea Isabellemandouvocêmebuscaremvezdeumdosalunosmais
novos?—perguntou.—Ah,eutavanumareuniãodemonitoreseagentetavaconversando—disse
ele.—Nãoétãoraro.Elasabequenóssomos...amigos.Alliesevoltouparaele,surpresa.—Eunãosabiaquevocêeramonitor.—Não?—respondeuele,puxando-amaisparaperto.—Bom,agoraquevocê
jásabe,temquefazertudoqueeudisser.Porqueeusouochefe.Rindo,elasesoltoudele.—Ah,éassimquefunciona?Bom,vamosversevaiserassim.Elasaiucorrendonafrente,comSylvainlogoatrás,equandoeleaalcançouna
porta,elanãoconseguiuconterasrisadas.Masaoseesticarparaalcançaramaçaneta,aportaseabriueZelaznysaiu.
OsrisosdeAllieseevaporaram.—Srta.Sheridan—exclamou.Podiasersábado,masmesmoassimoprofessor
deHistóriaestavadeternoegravataesuavoztransbordavareprovação.—Ficofelizemverqueestálevandoamanhãdedetençãotãoasério.
Jáfuipresaporhomensmenosrabugentos,pensouAllie.Masantesquepudessefalar,Sylvainsepôsàfrentedela.—Éminhaculpa, sr.Zelazny.EuencontreiaAlliena trilhaeestava tentando
alegrar ela,queestavamuito tristedepoisdamanhãdifícilnadetenção.Por favor,nãojulgaaAlliepeloqueeufiz.
Zelaznypassouporeles.—Umadetençãoqueelamereceumuito—murmurou.— Claro — concordou Sylvain, conduzindo-a calmamente pelo saguão de
entradaenquantoelalutavaparanãoriralto.Quando estavam longe do alcance dos ouvidos dele, Allie caiu na gargalhada,
masSylvainamandousecalar.—Aquinão,mabelleAllie—sussurrou.—Eleescutabemdemais.Elacobriuabocacomasmãos,abafandoasprópriasrisadinhas.—Nãoqueroteverpresanadetençãoporumasemanainteira—disseSylvain.
—OAugustémuito...sensível.—August?—perguntou.—Osr.Zelazny.Éoprimeironomedele.—Ah.—E agora—disse ele—,preciso te abandonar.A Isabelle está esperandona
primeirasalaàdireita.Boasorte.Curvando-se,beijouamãodela.Allienãosabiaaocertocomoreagir.—Tchau!—disseela,excessivamenteanimada,antesdesairàspressaspelaala
vaziaesilenciosadassalasdeaula.AprimeiraportaàdireitaestavafechadaeAlliebateudeleve.—Podeentrar—respondeuimediatamenteavozcaracterísticadadiretora.Dentro da sala, Allie viu Isabelle sentada àmesa, cercada por pilhas de papel.
Haviaumlaptopabertoaoseulado,queIsabellefechouantesqueAlliepudesseveralgumacoisanatela,masameninaolhoudesejosaparaatampa.
Avidamodernaaindaexiste.—Porfavor,sente-seaí—sugeriuIsabelle,apontandoparaacadeirapróximaa
ela.—Medesculpe,estoufazendoacontabilidade,eissosempreenvolvepreencherumamontanhadepapéis,porissoeuescolhofazerissonumasaladeaula,quetemmaisespaço.
Retirandoosóculos,levantou-seeseesticouantesdesentaraoladodeAllie.—Comofoiadetençãohojedemanhã?— É, acho que foi tudo bem. — Allie deu de ombros. — Quer dizer, deu
trabalho,masfoitudobem.Isabellesorriugentilmenteparaela.—AchoqueoAugustfoimuitoseverocomvocê,eeudisseissopraele.Queria
quevocêsoubesse.Nãoquisdesautorizá-loretirandoapunição,masnãoacheique
foijusta.AspalavrasforamtãoinesperadasqueAllienãoconseguiupensaremnadapara
dizer—ninguémnuncalhepediradesculpasporalgumainjustiçaantes.Nemsabiaqueissoerapossível.
—Obrigada—disseamelhorcoisaqueconseguiupensar,masIsabellepôdeveremseurostooquantoaquilorepresentou.
—OAugustéconhecidopelaseveridade,deformaqueeunãoqueroquevocêsesintaperseguida—prosseguiu.—Elegarantequenenhumasemanasepassesemqueaomenosalgunsalunostrabalhemnosjardinsoubotemordemnassalasvelhasdodepósito.Maseujápediaelequedêmaistempopraquevocêseajusteantesdevoltarateincluirnarotadepunição.
IsabelleexaminavaAlliecomcuriosidade.—Eoincidenteontemànoite;agentetemqueconversarsobreisso.OSylvain
mecontouquealgumtipodeanimalselvagemteassustounojardim?—Bom,agentenãosabeoquefoi—a rmouAllie.—Veiopelojardime...
nosperseguiu,euacho.Agenteachaqueouviuumrosnadooualgoassim.Oquevocêachaquepodetersido?
—Sylvainsugeriuquepodiamserraposas.Defatotemmuitasporaqui—disseIsabelle.
Fazendoumacareta,Allieinclinouacabeçaparaolado.—TemraposasemLondres,maseununcaescuteielasrosnaremouperseguirem
alguém.—Bem,aquiéocampo—disseIsabelle.—Asraposassãomaisselvagensaqui,
asdeLondressãopraticamentedomesticadas.Umafêmeapodesermuitoprotetorados lhotes. Eu pedi aos funcionários do jardim que procurassem por qualqueroutro tipodeanimal,masnãoconsigopensar emmaisnadaquepudesse ter feitoisso.Ficofelizquevocêsestejambem.
Elapareciasincera,eAlliesesentiugratapornãotê-lafeitoparecerumaidiota.MasIsabelleagoraestavamudandodeassunto.
—Comovocêestá,deverdade?Está fazendoamigos?OSylvainmedissequevocêtemsesaídobemequevocêsdois caramamigos, cofelizemsaberdisso.Eleéumdosnossosmelhoresalunos.
Allie couvermelha.EraestranhopensarqueSylvain,quevivia ertandocomela,falaraaseurespeitocomadiretora.
—Tôbem—respondeu,seencolhendoumpouconacadeira.—FiqueiamigadoSylvain,daJo,econhecimaisalgumaspessoas.Todomundoémaisoumenoslegal,menos...
Elamordeuolábio,eIsabelleaolhouencorajadoramente.—Menosquem?Podemecontar.—Ah,sabe?—disseAllie,depoiscruzouedescruzouostornozelos.—AKatie
Gilmore?Elaémeionojentinha.Isabellesuspirou.—Vou ser sincera comvocê,Allie.Àsvezes euachoqueaKatie foiumadas
provas que eu nasci pra enfrentar. Ela foi mimada a vida inteira; temo não estarsendonadapro ssional te contando isso,masachoqueeupossocon aremvocê.Porcausadainfânciaqueteve,elatemdi culdadesdeinteraçãocomalunosquenãosão tão privilegiados quanto ela; foi protegida demais pela riqueza da família.Noentanto,elanãoéimuneapunições,independentementedequãopoderosossejamospais dela. Então, se for longe demais, conta pra Jules ou pra mim — orientouIsabelle.Elapoliuosóculoscomumpanolimpo.—Eunãomeimportariaemvê-latrabalharnojardimporumasemana.Sujarasmãosfariamuitobemaela.
Empolgadaporadiretoraestarsendotãosinceracomela,Allieriuaoimaginaracenaelogoseconteve.MasIsabelletambémestavaachandograçaeelaviuquenãohaviaproblema.
—Algumacoisaalémdisso?—questionouIsabelle,sériaoutravez.—Emsaladeaulaseurendimentoébom.Comcertezatemsesaídomuitobemnaminhaaula.Algumproblemaacadêmico?
Allie fezquenão.Eraverdadequeacargaerapesada,masmais interessantedoquenassuasduasúltimasescolas,eelaperceberaque,naverdade,estavagostando.
—Eavidafamiliar?—perguntouIsabelle.—Eunoteiquevocênãopediupraligarprosseuspaisdesdequechegou.Vocêquerligar?Eufalocomelescomomaiorprazer.
MaisumavezAlliefezquenão.Maisvigorosamentedestavez.—Não quero falar com eles agora— disse, evitando o olhar de Isabelle.—
Queroumtemposemeles.Quandoelalevantouoolhar,Isabelletinhaumaexpressãodifícildeinterpretar,
masalgumacoisadiziaaAlliequehaviacompreendido.—Claro—disse,acrescentando—,massemudardeideiaqualquerdia,ésóme
procurar.Aconversaagoratinhacomeçadoa cardelicadaparaAllie,queseinquietouna
cadeira,torcendoparaserliberadalogo.Nadaescapavaàatençãodadiretora,quese levantou,esticandoocorpo,como
quemespantaocansaço.—Bem,achoqueéhoradeeuteliberarpraalmoçareaproveitarorestodo m
desemana.Sem precisar de outro convite, Allie saltou e se dirigiu à porta,mas a voz de
Isabelleainterrompeuexatamentequandoestavaprestesaabri-la.—Porfavor,Allie—disse—,nãotenhamedodemeprocurarcomnenhum
problema,pormaioroumenorqueseja.Estouaquiprateajudarenãopraarrumarconfusão.Vocêestáseguracomigo.
AspalavraspareceramsinceraseAlliesorriutimidamente.—Podedeixar—falouantesdesairapressada.PôdesentirosolhosastutosdeIsabelleseguindo-apelocorredor.
—Ai,Deus.Porfavor, fazessatorturaacabar—implorouJo,en andoacaranolivrodebiologia.
Sentadaemfrenteàamigaàmesadabiblioteca,Alliejogouumacanetanela.— É — disse Gabe, fechando o próprio livro —, a gente precisa de um
intervalo.Aindatenhoalgumascoisasprafazer,masninguémdissequeeunãopossofazermaistarde.Ésábadodetardeeodiatálindo:quemquerirláprafora?
Semlevantaracabeçadolivro,Jolevantouobraço.—Eu—respondeu,avozabafadapelabiologia.—Allie?—perguntouele,empilhandooslivros.Elafezquenão.—Valeu,masjápasseitempodemaisláforahoje.Achoqueeuvouexploraro
prédiodaescola.AcabeçadeJolevantoueseucabeloseeriçou.—Oprédio é legal. Pede praEloise temostrar as salas de estudo.Elas são o
máximo.Ela parecia bem recuperada da noite anterior; os cortes na bochecha estavam
fechadoscomdoispontosdacordapele,enãohaviamaishematomasvisíveis.Allieaindanãotiverachancedeconversarcomelasobreoqueacontecera—estavaloucaparaquetivessemalgunsminutosasós,masGabequasenãosaíradepertodeJoodiatodo.AgoraeleestavaempilhandooslivrosdeJojuntocomosdele,eosdoisselevantavamparasair.
—Seeunãotevirmais,teencontronojantar?—Allieperguntou,esperançosa.—Fechado—respondeuJo,sorrindo.Quando os dois saíram, Allie se espreguiçou e olhou em volta. A sala estava
basicamentedeserta.ElafoiemdireçãoàmesadeEloise.Atrásdabancadaaltademadeirapolida,ela
preenchiaumafichaantiquadadebiblioteca.
—Hmm...oi?—perguntouAllie,hesitante.— Ah, Allie. Que ótimo ver você de novo — disse Eloise, ajeitando-se. —
Comovaivocê?Ocabelopretodabibliotecáriaestavapresoparatrásnumestilodespojado,com
mechasescapando;óculosdearmaçãoroxaempoleiravam-senapontadonarizfino.— Bem, obrigada. Eu estou estudando ali — informou Allie, apontando na
direçãodasuamesa—eresolvidarumoi.—Veioatrásdoslivrosdequeeutefalei?—Eloiserepousoua cha.—Separei
elespravocê.Elaesticouobraçoparabaixodabancadaepuxouumapilhadelivroscomum
cartãoemcimaquedizia“ParaAllie”.—Achoquesãoleiturasextrasprasuaauladeinglês—explicouEloise.Alliejátinhaseesquecidodoslivrosqueabibliotecáriamencionarademanhã,e,
honestamente,achavaquejátinhaosuficienteparaler.Aindaassim...—Ah,ótimo—falouela,educadamente,colocandooslivrosnabolsa.—Mas,
naverdade,euiasóexploraroprédioeaJodissequeporaquitinhaumassalaslegaisdeestudo,algoassim.
Eloisepareceuconfusaporuminstante,maslogosorriu.—Você deve estar falando dos cubículos lá no fundo. São ótimos.Deixa eu
buscaraschaves.Elaretirouumchaveirodeumganchoatrásdobalcão.Alliea seguiupeloque
pareciam centenas de anos de tapetes orientais e por leiras intermináveis deprateleiras.
—Esselugaréimenso—observou,olhandoparaoteto.— Agradeça por não ter que limpá-lo — respondeu a bibliotecária, em tom
semicantado.—Aliás,sevocêreceberdetençãodenovo,podeteressachance.Allienãopôdedeixarderir.—Porfavor,não.— Não se preocupe — tranquilizou Eloise com um sorriso. — Se for
comportada,nuncavaiacontecer.Elas zeram uma curva e a salamudou ligeiramente.Haviamenos prateleiras
nestaparteemaismesasecadeirasdecouro.—Essa área é reservada para alunos avançados— explicou Eloise, escolhendo
umachavedomolho.—Vamoslá.—Asparedestinhampainéisdemadeiraescura,esculpidos elaboradamente. Eloise inseriu a chave numa fechadura tão habilmenteescondida namadeira que Allie sequer a viu, e uma porta até então virtualmente
invisívelseabriuemsilêncio.—Uau—disseAllie.—Umaportasecreta.—Uaumesmo.—Eloiseolhouparaelaporcimadosóculos.—Essassalasde
estudo camnapartemais antigadaestrutura.Não sabemosqual eraopropósitooriginaldelas.Mas,bem,dáumaolhada.
Ela apertou um interruptor e recuou. Allie entrou em uma sala iluminada demaisoumenos2,5metrosdelargurae1,80metrodecomprimento.Nointeriordoespaço sem janelas havia umamesa comum abajur, uma cadeira de couro e umapequenaestantedelivros.Dominandooespaçohaviaummuralelaboradocobrindoasparedes.Indoatéocentrodasala,Alliedeuumgiroparaassimilartudo.Apinturapareciacontarumahistória:homensemulheresarmadosatéosdentes,lutandoemumcampo,observadosporquerubinsenfurecidossobumcéutempestuoso.
Acenaerafria,pensouAllie.—Comoéquealguémestudaaqui?—indagou.—Eupassariaotempotodo
desviandoprameproteger.— Não parece incomodar ninguém. — Eloise olhou para as espadas
empunhadas,seusolhosilegíveis.—Masnãopossodizerqueeudiscordedevocê.Saiudasala.Apósumaúltimaolhadaemvolta,Allieaseguiu,eEloisetrancoua
porta.—Sãotodasassim?Abibliotecáriaassentiu.—Sãomuitoparecidas.Aspinturasdecadasalacontamumapartediferenteda
mesmahistória.Esteéoretratodabatalhaprincipal.Pareceseraúltimadasérie.Ela foiatéo naldaparedeedestrancououtraportaoculta.Acendendoa luz,
assinalou paraAllie segui-la e entraramna pequena câmara de estudo. As pinturasdestaretratavamasmesmaspessoas,oshomensusandochapéusevestesformais,easmulheres com vestidos longos e trabalhados. Pareciam conversar em um círculo,diantedoquepareciaumaversãomenordoprédioemqueelaestavaagora.
—Nósacreditamosqueestesejaoprimeirodasérie—relatouEloise.—ÉaCimmeria?—perguntouAllie.—Antesdaexpansão—disseEloise.—Apinturaédaquelaépoca, iníciodo
séculoXVIII.—Ésobreoquê?—perguntouAllie.—Umaespéciedeguerra?Eloiseestavaestudandoumdosrostos.— Ninguém mais sabe. A história da escola conta que a casa foi construída
originalmente por uma única família. Alguma espécie de desentendimento osdividiu, e eles essencialmente entraram em guerra entre si.O lado vencedor cou
com a escola.Mas nãohá registro de nada disso nos nossos arquivos, e te digo oseguinte:sehouvesseeusaberia.Souahistoriadoradaescola.
Quandosaíramdasala,Allieestavaperdidanosprópriospensamentos.—Estranho—observou.—Querdizer,comoumacoisatãoimportantepode
simplesmenteseperder?—Coisasseperdem—respondeuEloise.—Principalmenteseninguémquiser
lembrar.—Nãoqueroestudarnessassalasdejeitonenhum—declarouAllie,firme.—Porsortevocêaindatemumanoantesdesetornaravançadaosu cientepra
sentaraqui—comentouEloise, sorrindo luminosamenteparaAllie.—Entãoporenquantoestásegura.
J
SETE
áforadabiblioteca,caminhandopelocorredorrumoàaladassalasdeaula,Allie aindapensavanaspinturas esquisitasque acabarade ver. Semaulas, assalas estavam vazias e silenciosas, notou ela ao subir preguiçosamente a
escadariaepassarpelassalasfamiliaresdoprimeiroandar,rumoaosegundo.Alisóaconteciam aulas avançadas e ela esperava que houvesse um ar de mistério, masdecepcionou-seaoverqueeraigualzinhoaosandaresdebaixo—umcorredoramplocomumpisopolidodemadeiraesalasemambososlados.Comasluzesapagadas,estavacompletamenteiluminadopelaluzdodia,queentravapelasjanelasdassalas.
Ossapatosdesoladeborrachatornavamseuspassosquasesilenciososenquantoelaespiavaasportasabertasdesalasvazias,ondeescrivaninhasaguardavamem leiraspacientesefantasmagóricas.
Nãosoubedizeraocertoquandoouviuasvozes.Talveznametadedocorredor.O murmúrio era baixo e só lhe chamou a atenção quando aumentou por uminstante.
Elaparoudeandar.Alguém gritou e ouviu-se um ruído de batida, seguido por uma onda
preocupadadevozesquepareciamtentaracalmarascoisas.Alliesepreparavaparavoltarquandoumaportano naldocorredorseabriue
umafigurasaiudassombras.Instintivamente,elaseesgueirouparatrásdaportamaispróximaeseescondeu,
escutando. Inicialmente não conseguiu ouvir nada além do som da própriarespiração,mas,passadouminstante,escutouoruídofracodepassosvindoemsuadireção.Contouasrespirações.
...dez,onze,doze...Ospassospararam.Elaparouderespirar.—Allie?—sussurrouCarter,comavozáspera.—Quediabos?Orapaz esticouamãoe agarrouobraçodeAllie,puxando-abruscamente em
direçãoàescada.Ela cousurpresademaisparaprotestarefoitropeçandoaoladode
Carter.Elealevouparaoprimeiroandar,ondevirouagarotaparaencará-la.— O que você tava fazendo no segundo andar? — perguntou, seus dedos
estavamenterradosnobraçodela.— Explorando — respondeu ela, tentando se libertar.Tentou parecer calma,
massabiaquesoavanadefensiva.—Explorandooquê?Assalasdeaula?Fingindoindiferença,eladeudeombros.—É.Tipoisso.Nãoéproibidonemnada,é?—Allie,poracasovocêleuasinformaçõesquetederamquandovocêcomeçou
aqui?Achaqueasregrassãoopcionaispravocê?—indagou.AvozdeletransbordavasarcasmoeagoraAlliesentiaumaraivacrescentenabocadoestômago.
Qualéoproblemadetodomundonessaporcariadeescola?—Liosu cienteprasaberqueeramchatas—rebateu,irritada.—Agoraquer
parardeserpsicopataemedeixarir?—O segundoandar é sópra alunos avançados epraEscolaNoturna—disse
Carter, como se estivesse falando com uma criança. — Você pode arranjar umproblemasériosetepegarem.Nãopodeirlánunca.
Elaconseguiusesoltardamãodele.—Infernodocacete—disse,esfregandooombro.—Queexagero.Pareceaté
queeumateialguém.AexpressãodeCarterpermaneceuinalterada.— Sério, Sheridan. Tô começando a achar que você gosta de se meter em
encrenca.Elavirou-sedecostasparaeleedesceufuriosamenteasescadas,disparandopor
sobreoombro:—Bom,peloqueeuouçoaseurespeito,West,olhaquemfala.Elenãorespondeu.
Allieesperoudoladodeforadasaladerefeiçõesnaquelanoite,inquietaaoobservaros alunos entrando.Katie passou por ela, etereamente radiante. Ela sussurrou algoparaogrupodepuxa-sacosque sempreacercava,e todas riram.AllieviuJulesnomeiodogrupo,semsorrir.
Semconseguirseconter,Allierevirouosolhoseesticoualínguaparaeles,masissosófezcomquerissemmaisalto.
—Queidiota—ouviuKatiedizer,eficouvermelha.Poucosminutos depois, Jo eGabe apareceram, estrelas cintilantes emmeio a
umaconstelaçãodeamigos.Joestavarindodealgumapiadaquenãohaviadadopara
ouvir.Allieesperouquereparassemnela,tentandonãoseimportarseatinhamvistoounão.Mas,segundosdepois,Jolevantouoolharelançou-lheumamplosorriso.Elaavançoupelocorredoreapegoupelamão,arrastando-aparaogrupo.
—Allie!Vocêtáaí.Vemcomigo.Vocêprecisaconhecertodomundo.Àmesa,AlliesesentouàesquerdadeJo,eGabeassumiuolugaràdireita.Em
meioaobarulhoestridentedaconversapré-jantar,Joelevouavozosu cienteparaserouvida.
—Galera,essaéaAllie.Allie,essaéagalera.—Qualé,Jo,sejamaisespecí ca.—Omeninoqueainterrompeueramaisou
menosda idadedeGabe, e estava sentado em frente aAllie. Seu cabelo castanho-clarobrilhanteeralongoosu cienteparacairdeformaatraentesobreoolhodireito.Elesorriuflertando.
—Eunãosouagalera.SouoLucas.Osoutros vaiaram fazendograça,maso sorrisodele era contagiante, e elanão
podedeixarderetribuir.Umporum,osoutrosàmesadisseramseusnomes,rindo.Haviaumamenina
magra chamada Lisa, de cabelo longo, liso e claro, e sorriso hesitante. Ruth eraatléticaeséria,comcabelolouro-escurodesgrenhado,naalturadosombros.EstavasentadaaoladodePhil,quepareciadescoladocomseucabelopretomuitocurtoeóculosdamoda.AllieteveaimpressãodequeRuthePhilsegostavam.
Noinício,houveumzum-zum-zumanimado(“agentetemouvidofalarmuitodevocê...”,“oquevocêtáachandodaCimmeria?”,“OZelaznynãoéum...”,“Shhh!Cuidado, ele tá bem ali...”, “Tá gostando daqui?”) antes de todos mudarem deassunto.
Distraídapeloseventosdodia,Alliebrincoudesinteressadacomacomida,quenestanoitenãoestavamuitoboa.Davaparadistinguirlevementeoruídodechuvabatendo contra as janelas. A tarde toda tinha sido cinza, e agora estava chovendoforte. Estava tão profundamente imersa numa complexa rede dos própriospensamentosquepartesdaconversapassaramporelacomodestroços.
—Vintepáginasatéterça!—Osorrisomaislindo...—Quecarneéessa,aliás?—Carnemisteriosa.Risadas.—Ouviumprofessordizendoquevaichovernospróximostrêsdias.Umcoroderesmungos.Allielevantouosolhos.
—Étãochatoaquiquandochove—Joexplicou.—Asalacomumvaiestarlotada.Émelhoragentechegarlácedo.
Assimqueterminaram,saíramapressadospelocorredor.Joseapoderoudeumsofánomeiodasala,tirandoossapatosesentandoemcimadospés.Allieafundounumapoltronadecouronafrentedela.EstavamseajeitandoquandoGabechegou.
Ele,assimcomoAllie,pareciadistraídonaquelanoite.—Nãoposso car—disse,olhandoparaJocomoquempededesculpas.—É
essadrogadeprojeto.Eleabeijou,sussurroualgonoouvidodelaqueafezsorriresaiuapressado.Finalmente,pelaprimeiravezdesdeanoiteanterior,AllieeJoestavamasós.—Oqueagentefazagora?—perguntouJo.—QuerjogarMaster?—Agoranão—respondeuamenina.Alliechegouparaafrentenacadeiraese
inclinou emdireção a Jo, reduzindo a voz a um sussurro.— Jo, o que foi aquiloontem?OqueoGabeacha?
—Bom,tinhaalgumtipoderaposamalucaoualgoassim...nãosei—disseJo.—Foitudotãorápido.
Desapontada,Allieseinclinouparatrásoutravez.—FoioqueoSylvaindisse,masnãomepareceuumaraposa.—Pareceuoquê?—perguntouJo.Alliebalançouacabeça.—Nãosei.Algumacoisacomdentes.—Umurso?—Josugeriu,atrevida.—Umdragão?Umwookie?—Jo,sério!—Allieestavafrustrada.—Oqueaconteceuontemànoitefoireal.
OGabeeoSylvainlevaramasério.Nãopareceramacharquenósestávamossendobobas.Eles caram...bom,nãoassustados,mastipo,muitonervosos.Agoratenhoaimpressãodequetodomundoquerfazerparecerquenósestávamoshistéricas.Oucomosetivessesidoumagrandepiada.Maseuachoquetinhaalgumacoisalá.
Jofezumgestotranquilizantecomasmãos.—Olha,Allie,comcertezaaconteceualgumacoisa,mastavaescuro,eachoque
ninguémsabesefoiperigosoounão,masnãoacharamnada.—Sorriu.—Possotedizer que foi bem incomum. Não é como se nós sempre fôssemos atacados porcoisasselvagensquerosnam.Nãoseassustatanto.
Allienãoseconvenceu,masnãoqueriaparecerobcecada,entãofezquesimcomacabeçarelutantemente.
—Vocêtemrazão.Tenhocertezaquesim.—Certo,então.Voltandoaoquenósvamosfazerhoje—disseJo.—Senão
forMaster...gamão?Outracoisa?BancoImobiliário?Jogodavelha?
Allie tentou ngir interesse em jogos de tabuleiro para agradar Jo, mas, namelhordashipóteses,osachavachatos.
—Jájogouxadrez?—perguntouJo,afinal.AexpressãodeAlliedevetê-ladenunciado,poisorostodeJoassumiuumfoco
determinado.—Sério?Issoéumescândalo.Bom,voucuidardissoagoramesmo.Saltandodosofá,ajoelhou-sediantedamesanafrentedelasepuxouumestojo
demadeiradotamanhodeumacaixadesapatos.Dedentrodelacomeçouaretirarpeçasacetinadas.Ajeitandoaspretasnoseulado,entregouaAllieocavalobranco.
Allieoergueueemitiuumsomderelincho.Jolhelançouumolharminguante.—Pônei—Alliedissefracamente.—Sério,Allie.Entãovocêodeiajogosdetabuleiro.Tábom.Xadreznãoéum
jogo de tabuleiro. Xadrez na verdade só é mais ou menos um jogo, porque naverdadeéguerra.
QuandoAlliefezumacareta,Joacrescentoufirmemente:—Portanto, xadrez é emocionante— a rmou, apontando em seguida para a
peça queAllie ainda estava segurando.— Isso não é umpônei. É um cavalo quemata.—Indicandoumquadrado,falou:—Põeaqui.
Tentandoparecerséria,AlliecolocouocavaloondeJomandou,mas,lançandoumolharderebeldiaparaaamiga,murmuroubaixinho:
—Cavalinhobonzinho.Joaignorouepegouumpeão.—Estessãoosseussoldados.Sãoosquetêmmenosliberdadeemenospoder,
mascomosedispõemasesacrificarpelosmaispoderosos,vocênãoganhasemeles.Repousou a pecinhade cabeça redonda e retirouumapeça como formatode
umatorredecastelo.—Esta é a sua torre, a fortalezado rei.É aúnicapeçado tabuleiroquepode
assumirlegalmenteolugardoreiaqualquermomento.Opapeldelaéconfundiroinimigo.Olugardelaéaqui.
Ajeitando-a,pegoumaisduaspeças.Namãodireitatinhaumapeçavagamenteparecidacomumminarete.
—Obispo.Habilidosoeperigoso.Temmuitopoder.Eupensonelecomoumgigolôda rainha.—Agora acenou a peça alta e régia namão esquerda.—O rei.Quase sempremais fracodoque vocêpensa, todas aspeçasprotegemele,mas elequasenuncaajudamaisninguém,porque,seajudar,podemorrer.
Allieapoiouoqueixonamão.—IssopareceShakespeare,sóqueémaisidiota.
Jopegouumapeçabrancaesguiaecoroada,eaentregouaAllie.—Arainha.Éumaescrota.Massequiserganhar,vocêtemqueseentendercom
ela.—Ótimo—disseAllie.—Eoqueacontecedepois?Aquehoraseucomeçoa
tedarumasurra?Joentregouaspeçasbrancas.—Sevocêtreinare trabalharduro?Talveznoseu27 o aniversário. Jogoxadrez
desde os cinco anos de idade.Ajeita as suas, igual z com asminhas, e aí eu vouganhardevocêpelaprimeiravez.
AllieorganizouaspeçasespelhandoasdeJo.—Então,mefalaumpoucodosseusamigos—disse,pegandoarainha.—A
LisaeoLucasparecemlegais,maseunãoseidaRuthedoPhil...Joassentiu.—Acho que você vai gostarmuito da Lisa, ela foiminha primeira amiga na
Cimmeria.ARuthélegal,masémeio,nãosei,intensa,euacho.Entãoprecisaestarcom humor pra lidar com ela. O Phil é tranquilo, conta umas piadas péssimasquandosesolta.Maséumpoucotímidocompessoasnovas.
Naqueleinstante,Ruthentroucorrendonasala,arfando,asroupasensopadaseocabelopingando.
—Jo.Paroudiantedelas,comasmãossegurandoaslateraisdocorpo,comosetivesse
corridomuitorápido.Tinhaumapoçad’águanospés.Alliecongelou,aindasegurandoarainha.Jopareciaterperdidoafala,masRuth
nãoesperouqueperguntassenada.—ÉoGabe.
J
OITO
oselevantouemumpulo,espalhandopeçasdexadrezpelochão.—Oque...?—pareciaconfusa,assustada.—Elesemachucou.OPhiltambém.Deuerrado.
AllieselevantouefoiparaoladodeJo.—Oqueaconteceu?Cadêeles?Ruthaestudoucomoolhar;AllieteveaimpressãodeverJofazerumsinalde
positivocomacabeça.—Nocaramanchão—respondeuRuth.—Vamos— chamouAllie, pegando Jo pelamão e puxando-a em direção à
portadasalacomum.Ruthnãofoiatrás.Asduascruzaramcorrendoosaguãodeentrada,deslizaramatépararemnochão
depedraeabriramapesadaportademadeira.Láforaachuvacaíapesada.Alliesaiusemhesitar,masnopédaescadaparouesevirouparaJo.
— Pra que lado? — gritou para ser ouvida sob o barulho da tempestade,enquantoumtrovãorugiasobreelas.
Jo apontoupara alémda ala oeste.Correram em frente à entrada, depois pelagramamolhadaemdireçãoàmata.Alliepodiaouviraprópria respiraçãoapitandonosouvidos,oruídodachuva...emaisnada.
Algunsminutossepassarame,porentreasárvores,elaviuumelaboradogazebovitoriano. Estava vazio. Subiram as escadas e olharam em volta, arfando. Allie securvoucomasmãosnosjoelhos,tentandorecuperarofôlego.
Joapontouparaobosque.—Ali.Allieolhouparaaescuridãochuvosa,masnãoenxergouninguém.Entãoouviuumgritoquepareceuvirdelonge,domeiodomato.Allieolhou
para Jo para ver se ela tambémouvira.A amiga olhava xamente para as árvores,comoslábiosligeiramenteabertosenquantoescutava.
—Vocêtambémouviuisso?—sussurrouAllie.Jocon rmoucomumacenodecabeça,comosolhosaindafixosnafloresta.
—ÉoGabe—sussurroudevolta.Ficaramimóveis,olhando.Maisgritos,masnãoenxergavamnada.Então,após
alguns minutos, vultos entraram em foco, saindo do meio das árvores. AlliereconheceuCartereGabe.Pareciamestarsegurandoalguém.Elanãoconseguiuverquemera.
—MeuDeus.—Jocontinuavasussurrando.Elasselevantaram.Enquantoosmeninos subiamosdegraus até omirante,Allie viuque estavam
feridos.Carter tinhaumcortena testaque sangravamuito.Gabe tinha sanguenasmãosenacamisa.EleolhoufixamenteparaAllie.
—Quediabosvocêstãofazendoaqui?CartervirouparaGabe.—Agoranão,cara.Agentejátemproblemasosuficiente.Delicadamente, eles deitaram a pessoa que estavam carregando. Allie não o
reconheceu,masJosuspirou.—Phil.Ah,não.Gabeolhouparaela,comosolhospreocupados.—Achoqueelevaificarbem.OSylvainfoibuscarajuda.Allie puxou o braço de Gabe, virando-o e revelando um corte no pulso que
sangravaabertamente.—Gabe—arfouJo,empalidecendo.Quediabosestáacontecendo?,Alliepensou,olhandoparaacenadecatástrofeque
sedesenrolavaàsuafrente.Eporquemaisninguémestáperguntandoisso?Ajoelhado ao lado de Phil, Carter arrancou uma tira damanga da camisa e a
amarrou rmemente em torno da perna do menino inconsciente. Em seguidaarrancoumaisumaeaentregouaJo.
—AmarraissoemvoltadopulsodoGabe.Masagarotapareciaincapazdesemover.Segurouotecidobrancocomosenão
soubesseexatamentedoquesetratava.AoperceberomedodeJo,Allieseapresentou.—Deixacomigo.QuandoAllietentoualcançarotecido,Joodeixoucairdamão.Comaataduraartesanalesvoaçando,AlliesevoltouparaGabe.—Esticaamão.GabelevantouobraçoeAllieenrolouatirahabilidosamentenopulsoenamão,
tecendoumaatadurafirme,depoisprendendoapontaparaoajusteficarconfortável.—Mantém amão em cimado coração até o sangramentoparar—disse ela,
automaticamente.
VirandoparaPhil,ameninapercebeuqueCarteraobservava.—Vocêtambémtásangrando—alertouAllie.—Eutôbem.—Dápraver.Alguémdeviaolharessecorte.Ouvindopassosapressadospelagrama,Allielevantouosolhoseviuumgrupo
depessoascorrendoemdireçãoaeles.Aoseaproximarem,notouqueSylvainvinhaàfrente,comZelaznyeJerrylogoatrás.ZelaznyolhouirritadoparaAllie.
—Oqueelaestáfazendoaqui?—perguntouZelazny,emtomacusador.OsolhosdeSylvainencontraramosdeAllieporumsegundoelogoelevoltoua
atençãoparaZelazny.Suavozeratranquilizante.—Maistardeagentedescobre;primeirotemosquecuidardisso.—Qualagravidade?—perguntouJerry,verificandootorniquete.Carterpareciapreocupado.—Nãoestánadabem.Eleprecisadeummédico.Estásangrandomuito.—Evocê?—perguntouJerry.SanguepingavadorostodeCarterparaacamisabrancaensopada,maselenão
levantouoolhar.—Vouficarbem.Sóprecisodealgunspontos.—Tudo bem, você e oGabe podem buscar a enfermeira. Sylvain,me ajuda
comoPhil.Oresto,voltapradentro.Agora.Otomfoifirmeenaúltimapalavratodossemoveramdeumavez.EleeSylvain
carregaramPhil,apoiandoosbraçosdorapaznosrespectivosombroseZelaznyfoiapressado, à frentedeles.Como se tivesse sido sacudida atédespertar, Jo voltou-separaGabeeoabraçou.
AlliefoiatéCarterepôsobraçoemvoltadasuacintura,maselerecusou.—Eutôbem—insistiuele,grosseiramente.Ruborizando,Allieseafastou.—Seéassimquevocêficaquandotábem,nãoqueronemtevermal.Eleriucomdeboche,mascaminhouaoladodela,aumbraçodedistância.—Quediabofoiaquilo,Carter?—perguntouela,assimqueestavamforado
alcance auditivo dos outros.—Por que todomundo virouninja de repente? Foiesquisito.
—Nãofoinada—respondeu.—Umacidente.Acontece.—Acontece?—perguntouela,comavozincrédula.—Umacidentenomato
debaixodetemporal,metadedosalunossaisangrandoatéamorte...acontece?Oolharsombrioqueeledirigiuaelapareceuaindamaisassassinocomosangue
escorrendopeloseurosto.
—Alguémjátedissequevocêémuitoexagerada?—perguntou.—Não—respondeuAllie.—Alguémjátedissequevocêémuitobabaca?Depoisdisso,nãosefalarammais.Enquantoachuvadesabava,elaolhoude ladoparaele,porbaixodecílios tão
cobertos de gotas de chuva que era como enxergar através de uma cachoeira. Eleestavaolhandodiretoparaafrente,comamandíbularija.
Quando chegaram aos degraus da escola, Isabelle estava no alto trajando umacapadechuvabrancaelonga.Achuvaemitiaumruídoplásticoaobaternocapuz.
—Carter.Allie.Vocêsestãobem?Carter,vocêparecepéssimo.—Eutôbem—insistiuCarter.—Sóprecisodealgunspontos.IsabelleoexaminouminuciosamenteeentãosevoltouparaAllie.—Evocê?Semachucou?Alliebalançouacabeça,fazendopingaráguaemcimadoseunariz.—Ótimo.Carter,vaipraenfermaria.Allie,podevircomigo,porfavor?Semesperarporumaresposta,elavoltouparadentroenergicamente.EnquantoAllieseviravaparasegui-la,Carteraagarroupelocotovelo.Elaachou
queelepareciaumavítimadefilmedeterror.—Vemmeencontrarantesdotoquederecolher—eledisse.—Euvouestar
no salão.—Eentão correuparadentroda escola,deixandoumrastrode água aopassar.
Franzindoorosto,Allieoseguiucomosolhospelocorredor.—Atéparece—murmurou,antesdeapressaropassoatrásdeIsabelle.Passarampelasalacomumeentãoporumaportatãoescondidanamadeiraque
Allienãoahavianotadoantes.Ládentrohaviaumescritórioespaçososemjanelas,comlareira.Acornijaesculpidasustentavavelasqueestavamapagadas.Umaparedeera inteiramentecobertapor tapeçaria—umcavaleiroempunhandoumaespadaeumadonzelapertodeumcavalobranco.Isabelle lheentregouumatoalhabrancaemacia, e Allie esfregou a água dos cabelos, em seguida enrolou-a nos ombros,tremendo.Agoraqueestavadentrodacasasentiafrio.
—Senta,por favor—pediuIsabelle,gesticulandoparaduascadeirasdecourodiantedamesa.Sentou-senabeiradamesa,observando-a.Alliepercebeuotimbregravedamúsicaclássicaemitidaporalto-falantesescondidos.—Temcertezadequevocêestábem?—perguntou.QuandoAlliecon rmoucomumgestodecabeça,adiretora prosseguiu.—Ótimo. Só quero conversar com você umminuto e aí teliberopravestirumaroupaseca.Issonãovaidarqualquerproblemapravocê,maseuprecisosaberoqueaconteceuhojeànoite.
Allieolhouparaela,confusa.
—Eunão...?—Querodizer,oquevocêeaJoestavamfazendonocaramanchão?Mecontao
queaconteceudesdeocomeço.Allieenrolouatoalhacommais rmezanosombrosepensourápido.Iriaaquilo
darproblemasparaalguém?Memetiemconfusão?—Agentesótava...procurandooGabe—respondeu,cautelosa.—AJoqueria
fazer uma surpresa se aproximando sem ele perceber, mas a gente não conseguiuencontrar.Aínós fomosatéo caramanchãopra sairda chuva e vimososmeninossaindodobosque.
Sentiadesconfortoemmentirpara Isabelle,mas todaa situaçãoparecia errada.Quando Ruth veio chamá-las, parecia assustada. Estava branca como papel. OinstintodeAllieamandaradarcoberturaaRuth,apesardenãoconhecê-latãobem.
ARuthnãotinhaquenoscontarnada.Isabelleaobservoudeperto.—Edepoisdisso,oqueaconteceu?—Agentepercebeunahoraquetinhaalgumacoisaerrada,masninguémdisseo
quehouve—contou.Aúltimapartepareciaqueixosa,mas sinceramente,porquetodomundoestavatãomisterioso?
—Sóisso?—perguntouadiretora,semdarqualquerindíciodequenãotinhaacreditado,eentãoAllieresolveuqueerahoradeelamesmafazeralgumasperguntas.
— Você sabe o que aconteceu? — perguntou. — O Carter se recusou a mecontar,etodomundotáagindocomoseeutivessefeitoalgumacoisamuitoerrada.
Isabelleseinclinouparaafrente.— Sintomuito, Allie. Eles não tinham que se comportar desse jeito. Você é
novaaquienãotemcomosaber.Nãoseiexatamenteoqueaconteceu,nemcomoosmeninossemachucaram,maspretendodescobrir.
—Ésóqueelesparecerammuitomachucados—disseAllie.Isabelleselevantou.—Achoquepareceupiordoquefoi.Peloquemecontaram,ninguémseferiu
gravemente.Àsvezes, jogos camumpoucoviolentos.Nãoénadacomquevocêdevasepreocupar.Euvouconversarcomosenvolvidos.
IsabellebaixouamãoatéoombrodeAllie eo apertougentilmente enquantocaminhavaaoseuladoatéaporta,quesegurouparaelapassar.
—Obrigada,Allie.Quebomquevocêestábem.NãoprecisasepreocuparcomoPhil;aequipemédicajáestácuidandodele.E couclaroparamimqueasferidasdoGabeedoCartersãosuperficiais.
Ainda que Allie sentisse que devia ter exigido mais respostas, a explicação deIsabellefaziasentido.Garotosestavamsempresemetendoemconfusões—elaviraMark e Harry se machucarem montes de vezes. Ambos já tinham ido parar nopronto-socorro em mais de uma ocasião depois que brincadeiras de piqueterminarammal.
Masoquepoderiateracontecidoatodoseles lánamata?Eporqueninguémmeconta?
De volta ao quarto, ela vestiu saia e suéter secos, deixando largada no chão aroupamolhada.Queriavoltar logo láparabaixo, antesdo toquede recolher,parasabercomoestavatodomundo.
Noqueaplicavabrilho rosa-claroaos lábios em frente aoespelho,noentanto,suamãoparou.SeráqueeuvouatrásdoCarter?
Não que ela quisesse de fato vê-lo; ele fora completamente babaca. Só estavacuriosa.Porqueelequeriaqueseencontrassemasós?Eporquenosalãoprincipal?ElanuncamaisestiveraalidesdequeIsabelleomostrara,nodiadasuachegada.
Elachecouorelógio.Eramsódezhoras.Aindatinhabastantetempoatéotoquederecolher.
Desceu correndo as escadas e então cruzou o corredor nas pontas dos pés emdireçãoaosalão.
—Allie—disseSylvain,seusotaquesedosoacariciou-lheonomeeameninasevirou, encontrando-o logo atrás dela.—Estava torcendo pra te encontrar. Fiqueipreocupado;vocêtábem?
Eleapuxoueabraçoue,depoisdehesitar,Allieretribuiuoabraço.Seusdedosdelicadamentetraçaramumalinhapelascostasdela,descendoatéacintura.
Arrepios.Elechegouparatrásparaolharparaela.—Vocêaindatámolhada.Quebomquenãosemachucou.—Eutôbem.Allie tentou pensar numa desculpa para o que estava fazendo. Sylvain não ia
gostar de saber que ela estava indo encontrar Carter. Mas o que ele não sabia,concluiu,nãoamachucaria.
—EutavaprocurandoaJo...—explicou.—Achoqueela tá comoGabe—disse.OsdedosdeSylvainestavamsobo
queixodeAllieagora,inclinandoacabeçadelademodoqueelaolhasseparaele.Amenina sentia a respiração do rapaz em sua bochecha. Sylvain cheirava a zimbrofresco.—Oque você e a Jo tavam fazendono caramanchão?—perguntou. Seutomeracasual,masalgonaposturadeleemitiasinaisdealerta.—OZelazny cou
bemirritadodeteverlá.Seráqueeletámeinvestigando?—Foiantesdo toquede recolher—discutiuAllie.—Nãoentendoporque
todomundo se importa tantoqueagenteestava lá fora.Agente sóqueria sair.Esaiu.
—Nomeiodeumtemporal.Allieestavacansadadeserinterrogada.—Agenteachouqueseria legal—disse.—Equersaber?Eupodiatefazera
mesmapergunta.Oquevocêtavafazendoláforanomeiodeumtemporal?Eleaexaminoucurioso,comosevissealgodenovo,quenãotinhanotadoantes.—Tácerto, mabelle—disse.PelaprimeiravezAlliesentiuumafriezadistante
navozdeSylvain.Tinhatocadoemumpontofraco.—Como táoPhil?—perguntou ela, tentandomudarparaum terrenomais
seguro.—Ele vai car bem,mas perdeu um pouco de sangue, vai levar uns dias. A
quedafoifeia.QuandoAllieabriuabocaparaperguntaroqueaconteceralá,Sylvainvoltoua
falar.— Melhor você beber alguma coisa quente — disse. — Vem comigo.Tem
chocolatequentenacozinha.—Não—negouAllie,maishistéricadoquea situaçãopedia.Sylvainergueu
uma sobrancelha, surpreso, enquanto ela procurava um motivo. — Eu... precisofazerumacoisa.Vamosconversaramanhã?Eupreciso...
Allie passou correndo pelo rapaz em direção à biblioteca enquanto suasexplicações se esvaneciam. Estava deserta; até a mesa da bibliotecária estava vazia.Correndopor sobreos tapetesmacios, ameninadesapareceuentreasduasestantesmaisaltas.
Elaouviuaportaabrirefechardenovoatrásdesi.Elechamouseunomeduasvezes, suavemente. Após um instante, a porta abriu e fechou outra vez. Só paragarantir,Allie couondeestavapormaisalgunsminutos.Quandonãoouviamaisnadadepoisdecontarlentamenteatéduzentos,saiudeondeestava,abrindoaportadabibliotecaparaespiarocorredor.Sylvainnãoestavaàvista.Suspiroualiviada.
Aporta do salão abriu sem emitir qualquer ruídoquando ela a empurrou.Asluzesestavamapagadas,masAllieenxergouumbrilhofracono naldovastosalãovazio.Caminhouhesitantenaqueladireção.
—Carter?—sussurrou.Umavozsoltouum“uuuuuu”fantasmagóricoqueecoouaoseuredor.
—Paracomisso,West.Eleriu.Aoseaproximarda luz,AllieviuqueCarterestavaesparramadonumacadeira,
comopéapoiadonumamesaentrealgumasvelasacesas.Suatestatinhaumcurativobem-feito.Seguravaumlivro,quederruboudelicadamentenochão.
Tinhaoutracadeirapróximaàdele,paraaqualapontou.—Senta.—Nãomedizoqueeutenhoquefazer—murmurouAllieaosentar.Orapazsorriutristemente.—Desculpa,acheiqueestavasendoeducado.Allieignorouocomentário.—Comotáasuacabeça?Carterdispensouaperguntacomumaceno.—Eutôbem.Fez-seummomentodesilêncio.—Eaí?—perguntouAllie,paraquebrarosilêncio.—Porquevocêquisme
encontraraqui?Eunãodanço,casosejaessaasuaesperança.Ogarotodeudeombros.—Eugostodaqui.Vivoaqui.Nuncadãoumaolhadanessesalão,nãoseipor
quê.Tirandoopédamesa,elevirouparaobservarAllie.—Eusóquerosabercomovocêealourinhaforampararnocaramanchãohoje,
bem na hora que tudo aconteceu. O Gabe largou vocês duas direitinho na salacomum,comjeitodequeiacomeçarumpapodemulhersobre...sapatos,batom,sei ládoquevocês falam.Quinzeminutosdepois,vocêsestãonocaramanchãonomeiodotemporal,amarrandocurativos.Comoissoaconteceu,Allie?
Ameninadesviouoolhar.—AJosóqueriaprocurar...Carterainterrompeu.—Ah,dáumtempo,Allie.EunãosouaIsabelle.SurpreendidapelaveemênciadeCarter,ameninaprocurouporalgoparadizer.—Eu...ahn...Bom...Orapazficouimóvel,estudando-a.AmesmapreocupaçãoinstintivaqueaimpediradecontarparaIsabellelhedizia
quenãodeviacontarparaCartertambém.Maselaprecisavadescobriroqueestavaacontecendoali,esealguémiriasaber,seriaele.
—ARuth.Elaveioebuscouagente.
À luz da vela, os olhos de Carter eram insondáveis. Allie os encarou por umlongoesilenciosoinstante,procurandoumareação,masnãoviunada.
Quandoelefalou,avozsooufria.—OqueaRuthdisse?Allie cruzou os braços sobre o peito, visualizando Ruth à sua frente, com os
cabelosencharcadosepingandonochão.Medonorosto.—EladissequeoPhileoGabetavammachucados.Eumacoisaestranha.Acho
queeladisse“deuerrado”.Carter levantou da cadeira tão depressa que mais tarde ela nem conseguia se
lembrar de ter visto o movimento. Segurando-a pelos ombros, ele parecia umgigante.Allieseencolheu.
Comoslábiosapoucoscentímetrosdosdela,elesussurrouasperamente:—VocênuncapodecontarpraninguémoqueaRuthfez.Jura.Allieoencarou,seuslábiossemovendoumsegundoantesdequalquersomsair.—Tábom,claro.Ok,nãovoucontarpraninguém.Jesus,Carter.Comosesóagorapercebesseoqueestavafazendo,eleasoltou.—Vocêtámeassustando—disseAllie,esfregandooombro.—Qualéoteu
problema?Tentandoparecercasual,eleseapoiounumpilar.—Desculpa.MasaRuthnãodeviaterfeitoissoetemgentequepodeseirritar
sesouber.Eunãoqueroqueelasedêmal,entãovocênãopodemesmofalarnada.—Ei—disseela,friamente.—Ficatranquilo,cara.Ejáqueagentetásendo
honesto,quemsabevocêmecontaoque foiaquilo?Comoéquevocêsacabaramcortadosaospedaçosnomeiodafloresta.
Cruzandoosbraços,Carteraolhoufriamente.Umlongosilêncioseabateu.—Bom,valeupelointerrogatório,pelasameaçasetudomais.Foiótimo.Mas
acho que émelhor eu ir— constatou Allie, armando-se com sua expressãomaisentediada.
Carteraencarou,comosetivessemaisalgoquequisessedizer.Naverdade,deuquaseparaelaapontaroinstanteexatoemqueeleresolveunãofalar.
— Você é boa fazendo curativo — foi o que ele acabou dizendo. — Ondeaprendeuafazeraquilo?NaCrimeia?
Alliepensouemapenasselevantaresair.Mas cou.Nãosabiaaocertoporquê.Talvezcuriosidade.
—EmLondres—respondeu.—Auladeprimeirossocorros.Bandeirantes.Sarcástico,eleergueuumasobrancelha.—Vocêfoibandeirante?Ah,para.
Agarotanãoconseguiaentenderporqueestavamtendoestaconversa informallogo depois de ele partir para cima dela feitoHannibal Lecter,mas decidiu ir naonda.
—Paronada.Euerapequena,masessascoisas cam.Amarrarataduras.Caçarborboletas.Fazergeleia.Seifazerissotudo.
Elegrunhiuumarisadinha,masAllienãoretribuiu.—Carter,deverdade,oqueéquetáacontecendoaqui?Querdizer,oquehouve
comvocêshoje?Vocêsbrigaram?Pareciamuitofeio.Seeletivessebatidoumaportanacaradela,nãoteriasidotãoclaro.Seusolhos
ficaramsemexpressão.—Deixapralá—disparou.—Enãoperguntapramaisninguém.Ninguémvai
tecontarnadaeaspessoasvãoseirritarsesouberemquevocêandaperguntando.—Olhouparaorelógio.—Sãoquase11horas.Agentetemqueir.
Carterapagouasvelaseasalaficouescura.Enquanto caminhava na direção em que achava que a porta estaria, Allie
tropeçouemalgumacoisanaescuridão.Eleasegurou.Porumsegundo caramcaraacara.ApesardeCarterestarencobertopelassombras,Allieachouquepareciaquaseestarsedesculpando.
Masdevoestarenganadaquantoaisso.—Poraqui—indicouo rapaz,conduzindo-apelamãoatravésda salaescura,
comacon ançadealguémquejá zeraissoantesváriasvezes.Asensaçãodosdedosdeleeramornae forte,maselanãooqueria tocando-aagora;andavaduraao ladodele.
Quandochegaramàentradavazia,piscandoosolhosporcausadasluzes,orostodeleestavapropositalmentesemexpressão.
— São onze da noite, Sheridan. Melhor se apressar. Você não quer car emdetençãooutravez.
—É,claro—respondeu,sarcástica.—Sangueetripastudobem.MasaAllieporaídepoisdotoquederecolher?Issoseriaumatragédia.
—Boanoite,Sheridan—cumprimentouele,semhesitar.Elasevirounadireçãodasescadas.—Tábomentão,Carter.
—Vocêtemqueconfiaremmim,Allie.OsolhosdelaencontraramosdeCarter,masameninaresistiu.—Porqueconfiaria?Vocênãoconfiaemmim.Osdoisestavamnosalão,decoradopordiversasvelasacesas—que
cintilavamsobreparapeitos,mesasenumcandelabromuitoalto.Ocalorqueemitiameraintenso.
OsolhosdeCarterbrilhavamcomaluz.—Maseupossoteajudar...Alguémbateuàportacomforça,demaneiraameaçadora.Alliesentiuo
coraçãobaterforte.—Estãoaqui—disseele.Abatidasoounovamente,maisinsistentedestavez.Obarulhoeraquase
ensurdecedoreAlliecobriuosouvidos.—Quemé?Quemtáaqui,Carter?Avozdorapazeraautoritária.—Vocêprecisaconfiaremmim.Confia?Porcimadoombrodele,Alliepôdeverqueaportaestavarachandocoma
violênciadasbatidas.—Confio!—gritouamenina,seatirandonosseusbraços.—Confio!Confio
emvocê.
Engasgando-se,Alliesesentounacama,agarrandoacobertacompulsosfirmes.Umbarulhodealgobatendoa fezsaltar,maseraapenasapersianademadeira
contraaparede,porcausadoventoqueentravapelajanelaaberta.Subindona escrivaninha para olhar pela janela, viu que uma tempestade havia
caído durante a noite — as árvores balançavam, e folhas arrancadas dos galhosvoavamaoventobemacimadela.
Oarestavafresconomomentoqueelatrancouajanelaevoltouparaacama.Cobrindo-se,murmurouemvozalta:—Saidaminhacabeça,CarterWest.
Q
NOVE
uandoasaulasforamretomadasnasegunda-feira,Allieteveadesagradávelsensaçãodequenenhumdoseventosdo mdesemanatinhaocorridodefato.Todossesentaramnascadeirasdesempre,nahoradesempre.EJerry
eZelaznyatrataramexatamentecomosenuncaativessemvistofazerumcurativonomeiodeumtemporal.
Sylvainnãofoiàauladeinglês,masCarterchegouatrasado,comodecostume,eapenas sorriu quando Isabelle o olhou exasperada. Se ele ainda não estivesse decurativonatesta,Alliepoderiaacharquetudoforafrutodasuaimaginação.
No intervalo, encontrou Jo na biblioteca e as duas conversaram aos sussurrossobreoque tinhahavidodepoisque se separaram. JodissequeGabeacabounemprecisandodepontosequeaenfermeira zeracomentárioselogiososaocurativodeAllie.
—Agora, oGabe tá loucopra saber como a gente foi pararno caramanchão,mas... comovocê faloupranãocontarnada sobreaRuth,eunãocontei.Porquevocênãoquerqueeufalepraele?
Allieseinclinoumaisparaperto.—Eunãoposso...Ésó....éimportantequevocênãofalenada.Naverdade,elahaviapassadometadedanoiteemclarotentandoresolveroque
falarpara Jo.Não iriamentir para suaúnica amigade verdadenaCimmeria,mastinhaprometidoaCarterquenãocontaria.
—Eunãoseicomoexplicar.SóouviqueaRuthpodesedarmaloualgoassim.AllieobservouorostodeJoenquantoestaconsideravaaexplicação.—Tudobem,masseeunãocontaraverdadepraele,quemotivoeudoupra
genteestarlá?Allierodavaumacanetaansiosamenteentreosdedos,deformaqueestaacabou
girandosemparardededoemdedodesuamãodireitaatéchegaraomindinho.—AgentepodedizerquetavabrincandodeVerdadeouConsequênciaemeio
queespionandoeles.Ouqueeuquisircorrernachuvaevocêtentoumeimpedir.Joinclinouacabeçaparaolado.
—Dessasduaspéssimasopções,aprimeiraéumpouquinhomelhor.Alliesorriu.—Valeu,Jo.Nosdiasseguintes,muitosboatoscorreramarespeitodoquetinhaacontecido
namatanaquelanoite.Todossabiamqueváriaspessoastinhamsemachucado,mashaviaumaconfusãogeneralizadaquantoaoquetinhasepassado.Osalunosestavamproibidos de circular pelo terreno da escola, o que só piorava a fofoca.NinguémpareciasaberqueAllieeJotinhamestadoláeoboatomaisrepetidoeradequeosmeninosencontraramamesmaraposaqueelas,apesardetodospareceremacharessateoriamuitoimprovável.
Philnãovoltouàsaladeaulanaquelasemana,masRuthdissequeeleestavasesentindomelhor,equelogovoltaria.
Considerandoqueestavamtodos,aosolhosdeAllie,emprisãodomiciliar,pelomenosotempoestavapéssimo.Aolongodasemanaachuvafoiimplacável.Nãofoitãopesadaquantonodomingo,masfoiconstanteeosdiaspermaneceramcinzentos.
Os professores pareciam ter tomado uma injeção de adrenalina educacional, oque logo virou o tema central das refeições e intervalos. Alunos debatiam,horrorizados,aquantidadedetrabalhosdistribuídos.AllieeJo caramnabibliotecatodasasnoitesatéotoquederecolher,tentandoacompanharasaulas.
QuandoAllieencontrouSylvainnaquinta-feiraànoite,aosairdabibliotecaembuscadeumaxícaradechá,estavaexausta.Eleaacompanhounocaminhoatéasaladerefeições.
—Olhasó...Oi,mabelleAllie.Comovai?Nãotevejodesdeofimdesemana.Allie sentiuo coraçãobatermais rápido,mas tentou soar como se encontrá-lo
não fosse nada de mais.Torceu para que não perguntasse em que buraco ela seenfiaraquandofugiudele.
—Voubem.Sótôtentandonãomeenterraremtantasfolhasdedeverdecasaaténinguémconseguirmeencontrarembaixodelas.
Elefezquesimcomacabeça.—Eusei.Derepenteosprofessoresparecemquesósabempassarummontede
trabalhospragente.Allievirou-separaSylvain.—Qualéadeles?Sãosempretãocruéisassim?Elesorriueseusolhosbrilharam.—Não,issoéanormalaténaCimmeria.Provavelmenteelesestãodeixandoos
alunosocupadosdemaispratentaremseaventurarláfora.Allietentouesconderasurpresa.
—Porcausadaquelanoite?—perguntou.—Talvez.Ameninalançouumolharcheiodedesejoparaaportadafrente.—Queriatantoirláfora...—Táentediada, mabelle?—perguntou.Movendo-setãodepressaqueelanão
tevetempodereagir,elepegouamãodelaeapuxouparapertodesi.—Possolerasuamão.Talvezissotedivertisse.Eeuenxergariaasuaalma.
—Vocêsabelermãos?—perguntou,duvidosa,masAlliegostavadasensaçãodamãodelenasua.
—Claro—respondeuSylvaincomumsorriso.—Vocênãosabe?Éfácil.VirandoamãodeAllie,elepassouodedopelaslinhasrasascomumtoquetão
suavequantoobigodedeumgato.—Vocêtemumalinhadavidamuitolonga—murmurou,traçandoumalinha
dopulsoaomeiodapalma.—Ealinhadoseucoraçãoéforte.Távendoessalinhaaqui?—perguntou.Elepassouaspontasdosdedosnumalinhaqueacabavaentreopolegareo indicador.Allietremeucomadelicadezadotoque.—Sabeoqueissomediz?
Muda,Alliebalançouacabeça.—Dizquevocêtáapaixonadaporalguém.Outalvezváseapaixonarembreve.Como corpo formigandopelo toquedele,Allie tentoupensar numa resposta
espirituosa,masantesquepudessefalar,aportadabibliotecaseabriu.Jodisse:— Ei, Allie, não esquece o... — começou, mas quando viu Sylvain, sua voz
desbotou.—Hmm,aicaramba,achoqueeuesquecimeu...Improvisandomuitomal,Jovoltouparadentro.Uminstantemaistardeaporta
reabriueumgrupodealunossaiuconversando.AllieouviuJosussurrandoparaeles:—Não,esperaumsegundo...SylvainsoltouamãodeAlliecomumsorrisocontrariado.—Euqueriaexplorarmelhoresseassuntocomvocêalgumahora—disse.—Tá—disseela,vermelha.—Agente...explora.—Talvezagentepossaseencontrarsábadodepoisdojantarpra...conversar?—Claro—respondeuela,tentandonãoparecerqueestavasemar.Sylvainsorriu.—Ótimo.Teencontronasaladerefeições.Atélá.—Atélá—repetiuelaautomaticamente.
Ao longo da semana, o ritmo de trabalhos escolares não diminuiu emmomento
algum. Para piorar as coisas, na sexta-feira todos os alunos receberam tarefas depesquisaparao mde semana.Quando folhasde exercícios foramdistribuídasnaauladehistória,acaligrafiaimpecáveldeZelaznynapáginaencaravaAllie.
3.000toquessobreoimpactosocioeconômicodaguerracivilnasociedadeagráriadaépoca.
Parasegunda-feira.Semexceções.Semdesculpas.
Abiblioteca coutãocheianatardedesextaquedepoisquetodososassentosforamocupadososalunoscomeçaramaseespalharpelocorredor,ondesentaramnochãoempequenosgrupos,comoslivrosepapéisespalhadosaoredor.
—Estamosparecendorefugiados—sussurrouJo,enquantoelaeAllielevavammontesdelivrosparaumlugarlivrepertodaportadafrentedaescola.
—Éuma loucura.Porquanto tempovãomanter isso?—perguntouAllieaomesmotempoqueequilibravaumaxícaradecháemcimadeumlivrodehistóriacentenárioeseabaixavaparasentar.
—Boapergunta—disseJo,tirandoaxícaradeseupoleiroprecárioantesqueseespatifassenochãodepedra.
—Valeu—agradeceuAllie,ajeitando-secomascostasparaaparede.JotomouumgoledochádeAllie.—Eudeviaterpegadoumdessespramim.Agoravouacabartomandooseu.—Eagentedeviamesmotertrazidobiscoitos.—Somosidiotas.Allieembaralhouoslivros,umarugadeconcentraçãomarcandosuatesta.—CadêoGabehoje?MalvieleeoSylvainessasemana.Joestavaescolhendoumcaderno.—Seilá.Eledissequetinhaumacoisaprafazerequefariaodevermaistarde.— Estranho — disse Allie. — Os professores estão sendo tão duros, mas o
SylvaineoGabenãoparecemseimportar.Jodeudeombros.—Ninguémtámecontandomuitosobreoquetáacontecendo.EueoGabe
tivemosumadiscussãosobreisso,eagentenuncadiscute.—Homemécheiodehistória—filosofouAllie,abrindoolivro.Tendo nalmenteachadoocadernocerto,Joagoraseconcentravaemencontrar
algumacoisanele,efalavadistraídaenquantoviravaaspáginas:—EusóseiqueosmeninosdaEscolaNoturnasaemtodanoiteetenhocerteza
dequetemalgumacoisaavercomaquelanoite.Maséomaiorsegredo.
Allieparoueaencaroucomumapáginafrágileamareladadolivroaindaentreosdedos.
—Peraí.VocêsabequemédaEscolaNoturna?Jogelou,aculpaseespalhandoporsuaexpressão.—Não.Nãoéisso.Querdizer,eumeioque...chutei.Também,temunsque
sãobemdescarados.—Tipoquem?—Naverdadeeunãosei—respondeuJo,cautelosa.—Querdizer,chutando,
podem ser o Sylvain, o Phil, talvez o Lucas, talvez oGabe e oCarter,mas, querdizer,sabelá.
JomentiatãomalqueAllieteriaridosenãoestivessetãosurpresa.—Querdizer,vocêachaqueo seupróprionamorado fazparte,masnão tem
certeza?—perguntou.A amiga olhou em volta para se certi car de que ninguém estava prestando
atenção,entãoseinclinounadireçãodeAllieereduziuavozaumsussurro.—Olha,ésupersecreto,tá?Sealguémfalaalgumacoisasobreissoeoutrapessoa
descobre,arranjamuitoproblema.Tôfalandodeproblemasério.—Entãoagentenãodeviafalarsobreissoagora?—sussurrouAllie.—Não—sussurrouJoemresposta.Allie voltou ao livro, virando uma página após a outra, lentamente, mas sua
mentecontinuavagirandoemtornodoqueJohavialhecontado.Agarotaseinclinouparaafrenteoutravez.—Nenhumamenina?Jolançou-lheumolharexpressivo.—TalvezaJules—moveuabocaemsilêncio.—EaRuth.OsolhosdeAlliesearregalaram.—Nãoépossível—disse,incrédula.Joergueuamãodireita.—JuroporDeus.Elasestudaramemsilênciopormeiahoradepoisdisso,anãoserpelosruídosde
anotaçõessendofeitasepáginassendoviradas.Então,semqualqueraviso,acabeçadeAllielevantou.
—IssoexplicaareaçãodoCarternosábado—disse,comoseaconversanuncativesseparado.
Jopareceuintrigada.—Porquê?Oquê?E...quando?AllieexplicousobreCartertê-latiradodosegundoandar.
—Interessante—falouJoquandoaoutraterminou.—Masnãosabiaqueelesseencontravamaquinoprédio.Eduranteodia?Meioestranho.
Alliegirouacanetadenovo,sujandoamãodetinta.Esfregou-ainutilmente.—Oqueéqueelesfazem,exatamente?Jonãodesgrudouosolhosdolivro.—Nãofaçoideia.Alliecontinuavaesfregandoatintadamão.—SempretiveimpressãodequeoCartersabiamuitobemoquetavarolando.
Issoexplicariaomotivo.Aamigalançou-lheumolhar.—Oquê?—perguntouAllie,inclinandoacabeça.—Nada.Alliepegouacaneta,masJocontinuavaolhandoparaela.—Oquê?—repetiuAllie,empurrando-adeleve.Asduasriram.—Bom,éque..vocêsabe.VocêeoCarter.Allieparouderir.—OquequetemeueoCarter?—Seilá.Elesempreimplicacomvocê.—É,eunotei—respondeuAllie,seca.—Éporqueeleéumpsicopata.—Não.Quer dizer... sei lá.Tem alguma coisa namaneira como ele implica
comvocêquemeinteressa.Alliefranziuorosto.—Jo,dequediabosvocêtáfalando?—Ah,nãoénada.Équeporumtempoeuacheiqueelegostassedevocê,eeu
seiquevocêgostavadele,eagoraécomosevocêsdoisseodiassem.Alliedeudeombros.—Acontece.—Hmmm...—AvozdeJoestavaduvidosa.—Nãotemnadadehmmm—disseAllie.—Tudoqueelefazémedarordens
edizeroquefazereoquenãofazer.Eleébonitoetal,maseunãogostodele.Jodesenhouumaminhocanocadernoecontinuoutraçandoporcimaatéestar
bemescura.Acrescentouumalínguaaforquilhada.—SabetudoaquiloqueeueoGabedissemossobreoCarter?Allieassentiu.—Bom,eraverdade.Sóqueeletádiferentedesdequevocêchegou.Nãovejo
elecomnenhumameninadesdeentão.Allieabriuumsorriso.
—Oquê?Duassemanas inteiras?Assim,falasério.Quantocontrole!Eledeveestarcompletamenteapaixonadopormim.
Tiveramataquesderiso.—Então,falandodecoisasnormaisagora,oSylvainmepediupraencontrarele
amanhãànoitedepoisdojantar—disseAllie.—Achoqueétipoumencontro.—Uuuh,umencontrodeverdade—exclamouJo,sorrindo.—Sério,esquece
tudoqueeudissesobreoCarter.Sótôdebabaquice.MuitomaneiroqueévocêquevaipegaroSylvain.Todasasmeninasvãomorrerdeinveja.
—Tenhocertezadequeissovaifazertodaselasseremmuitolegaiscomigo—rebateuAllie,sarcasticamente,masJoergueuasobrancelhacomoquemsabedoquefala.
—SeoSylvainforseunamorado,elasnãovãoousarsernadaalémdegentis.AntesqueAlliepudesseperguntaroquequeriadizercomisso,elafalou:—Tá,chegadebrincadeira.Agenteprecisade1.500toquesantesdojantar,que
éem...—checouodelicadorelógiodeouronopulso—poucomaisdetrêshoras.—Fascista—disseAllie.Maselajáestavaescrevendo.
Nojantardaquelanoite,todaadiscussãoseconcentrounosboatosdequeoterrenodocolégioagoraestavaabertoaosalunos“noslimitesdoaceitável”.Oproblemaeraqueninguémsabiaoqueissosignificava.
—Querdizer que a gente pode voltar a ir lá fora semmorrer?—perguntouLisa,jogandooslongoscabelossobreumombro.
—Ninguémmorreu,Lisa.Allie achou o tom de Gabe desnecessariamente a ado. Lisa deu de ombros e
mastigouasalada.— Aposto que é totalmente seguro — disse Phil, em tom de voz
intencionalmentecalculado—,maseutavapensandoemirprasalacomum.—Eutambém—emendouGabe,rapidamente.—Eunão.Vousair.Jácanseideficaraquidentro.Avozde Jo foi enfática,mas seusolhosnãocruzaramcomosdeGabe.Ele a
encarava,maselasimplesmenteolhouaoredordamesa,fingindonãonotar.—Jo...—começouele.Otomdeleerasinistro,maselasólhelançouumolhar
dealerta.—Oquê?Jogandooguardanaponamesa,Gabechegouacadeirapara tráse se levantou,
murmurando:
—Perdiafome.Saiufuriososemolharparatrás.Fez-seumbrevesilênciodesconfortávelenquantotodomundo ngianãonotar
oquetinhaacontecidobemdiantedeles.AllieviuPhileLucastrocaremumolhar.Ruth tentou distrair todo mundo com uma história sobre um trabalho de
ciências,massuavozenfraqueciagradualmente.—Tábom,jáacabei.Jo?—disseAllie,leal.Jo sorriu agradecida e a seguiu para fora. Allie esperou até que estivessem
suficientementelongedamesaparatercertezadequenãoseriamouvidas.—Oquefoiaquilo?Joandavaapressadapelocorredoreporumsegundonãorespondeu;quandoo
fez,seutomeraamargo.— Bom, obviamente o Gabe não quer que eu saia porque não é seguro. E
obviamenteelequeragircomoseeufosseumacriançaeeleopai,quepodemedizeroquefazer.Oqueeuodeio.Játenhodoispais inúteis,valeu.Nãoprecisodemaisum.
Elapassoutãodepressapeloelaboradosaguãodeentradaque,quandochegaramà porta da frente, Allie já estava praticamente correndo para alcançá-la. Jo abriu aporta,impaciente,easduaspararamladoaladonoaltodaescada.
—Ok—disseAllie,olhandoparaoinocentecéuazulnoturno.—Mepareceperfeitamenteseguro.
—Esperoquenão—disseJo.—Aúltimaamorrerperde.Rindo,desceuvelozmenteaescadacomAllie logoatrás,ecorrerampelagrama
vazia.Poralgunsminutosdançaramnogramado,rodandoemcírculosnaliberdadedoarfresco.
—Espera—interrompeuAllie,arfando,alcançandoobraçodeJo.—Praondeagentetáindo?
Diminuíramoritmoparaumpassomaisvagaroso.— Boa pergunta. Pra algum lugar onde o Gabe não vá me encontrar e me
arrastarpradentrofeitoumhomemdascavernas—falou.Pensouporuminstante.—Jáfoiàcapela?
Alliefezumacareta.—Não,masjávarriagrama.—Ah,é.Esquecidadetenção.Naverdadeébemlegal.Tempoesiaantiganas
paredesem,tipo,ummilhãodelínguas.Ésupervelha.A capela cava no meio da mata. Allie olhou incerta naquela direção — o
comportamentomaníacodeJoestavacomeçandoapreocupá-la.
—Éseguroiragora?—perguntou.—Querdizer,comtudoissoacontecendo?—Nãodeveser—respondeuJo,comumsorrisoperverso.—Vocêvemou
nãovem?Semolharparatrás,elasaiupelagramaemdireçãoàsárvores.
O
DEZ
sol re etia no cabelo louro e brilhante de Jo enquanto ela corria pelogramado,eAlliehesitouummerosegundoantesdeiratrásdela.Enquantoseus pés a levavam rapidamente pela grama, ela sentia uma onda de
empolgaçãotãopoderosaqueriualtoaoalcançarJoalgunssegundosdepois.—Anda!—gritouaopassarporela.Contudo,assimqueentraramnamata,océuazuldesapareceuecomelea luz.
Nassombras,desaceleraramparaumritmodecaminhadaepartedacoragemdeAllieaabandonou.
—Ésempretãoescuroaqui—observou.Jonãopareciapreocupada.—Florestassãoassim.Vocêsgarotasdacidadenãoentendemocampo.Sótem
uma coisa a se fazer numa oresta assustadora—disse.Deuum empurrão leve ebrincalhãoemAllie.—Correr.
JocorriaàfrentepelatrilhacomAllielogoatrás.Assamambaiasquealinhavamocaminhoesbarravamsuavementecontraoscalcanharesdelas.Suasrisadasecoavamdas árvores, comum somoco.MasAllie ainda estava inquieta.Todosos sonsdaoresta — vento soprando por entre as árvores, o pio de um pássaro, um galho
estalandoembaixodoseupé—faziamseusnervosfraquejarem.Pensandomelhoragora,aquelanãopareciaumaboaideia.—Talvezagentedevessevoltar—disseela,depoisdeumtempo.—Agente
podesójogaralgumjogo,algumacoisaassim.Veroqueosoutrosestãofazendo.Jonãoolhouparatrásaoresponderdeformareconfortante.—Agentejátáquasechegando.Entãoporqueestoutãopreocupada?Algunsminutosdepois,noentanto,Josevirouparaelaesorriu.—Viu?Jáchegamos.Omurodaigrejaestavabemàfrente,enopátiohaviamenosárvoresemaisluz.
Assimqueentrounaclareira,Alliesesentiumelhor,masJojáestavanaporta,pondoasduasmãosnoaneldeferroparalevantaratranca,eemseguidaempurrando-acom
o ombro. A porta abriu com um rugido, e elas entraram. Na capela, o brilhodesbotado do sol era ltrado por vitrais amarelos e vermelhos em cacos de luzcolorida. Apesar do frio natural do piso de pedra e das paredes, o local pareciaaquecido.
Paradanaentrada,Allienãoconseguiaacreditarnoqueestavavendo.—Cacete—sussurrou.Joaestudoucomumolharexperiente.—Legal,nãoé?Alliefoinapontadospésatéomeiodacapelaegiroulentamenteemcírculo.As
paredes estavam cobertas de pinturas. Algumas eram palavras — a maioria,obviamente poemas –, outras eram imagens. A tinta tinha desbotado para umvermelho-ferrugem, amarelo-mar m e preto acinzentado,mas era clara, e era fácilimaginarquãobrilhantetinhasidoumdia.
—Essaaquimedáarrepios—confessouJo,indoatéofundodacapela,ondeumapinturade traços simples retratavaumdiabocomo tridenteespetandoalmasnuasesofredorasemumasériedesinasterríveis,comaajudadealegresdemôniosdeaparênciatroglodita.
Alliefranziuonariz.—Eeeca.—Exatamente.Essaémelhor—falouJoaoapontarparaumapinturapróxima
deumaárvorenodosacheiadefrutosepássaros.Asraízesseenrolavamformandoaspalavras“árvoredavida”.
Aoredordasimagenspintadas,haviapalavrasemlínguasarcaicas.Allieexaminouasletrascirílicasdeumadelas.
—Vocêentendealgumacoisa?—perguntouelaaJo.—Umpouco.Partedissoégrego—explicouJo,apontandoparaabasílica,e
entãovirouparaaparedeaolado.—Ealiéalgumaformadegaélico.Masamaioriaélatim.
Naparedeacimadaporta,haviaumafrasepintadaemelegantesletrasvermelhas.Acorerabrilhanteosu cienteparaqueAllieimaginasseseteriasidorestaurada.Deuumpassoparatrásparaenxergarcomclareza.
—Exitusactaprobat?—pronunciouaspalavraselogoolhoucomdúvidaparaJo.—Sabeoqueissosignifica?
—Oresultadovalidaaação—respondeuJo,semhesitar.Allieolhouparaaspalavras.—Oque isso quer dizer?—devaneou.—Prauma frase do tipo “Oi, bem-
vindoàigreja!”,essaémeioestranha.
—Nãofaçoideia.—Jorodavapelanavecentralnumadançavertiginosa.Allie a observoupor ummomento com cara confusa e logo voltou a atenção
para a pintura elaborada de um dragão, cuja cauda enrolava quase até o chãoenquantoumapombavoavaparaforadoalcancedassuasgarras.
—Issoéincrível—disse,arfante.—E agora que você já viu, a gente pode ir embora?—perguntou uma voz.
Carter estava apoiado no umbral da porta, os braços cruzados preguiçosamente, oolharatento.
Alliedeuumsalto.—Carter!Jesus.Vocêmeassustou.Masela cousurpreendentementealiviadaemvê-lo.Joestavaestranha,eagora
elestodospoderiamvoltarjuntos.Quantomaisgente,maisseguro.Aindaassim,nãoqueriaqueelesoubessedisso.—Vocênãodeviaficarespionandoosoutros—disse,acidamente.Oolhardeleeratranquilo.—Nãotavaespionando.Tavacaminhando.Nãofoiassimquevocêschegaram
aqui?—perguntou.QuandosevoltouparaJo,suavozsetornoumaiscalorosa.—Comovai,Jo?
Ameninaestavanoladoopostodacapela,fingindoexaminarumapintura.—Estamosbemaqui,obrigada,Carter.PodedizerproGabequenãoprecisoda
ajuda dele — atestou. Sua voz era rme, mas Jo não o olhou nos olhos e suamandíbulaestavatravada.
Cartergesticulou,tentandoacalmá-la.—Ei,nãosoucapachodoGabe.Jávaiescurecerláforaeeupenseiemoferecer
escoltaprassenhoritas.Porquê?OGabetáteprocurando?JoolhouparaCartercomexpressãodetédio.—Desiste,Carter.Euseiqueeletemandou.Sempremandaalguémmeseguir.— Sério, Jo, o Gabe não sabe que eu tô aqui — disse. — Vocês brigaram,
algumacoisaassim?OrostodeCarterestavatãosérioqueAllietendiaaacreditarnele,masJosaiude
pertoefoiatéoaltar,omaislongepossíveldele.—Algumacoisaassim—respondeu,friamente.Fingindoexaminaraspinturasdaparede,AlliefoiseaproximandodeCarter,que
aindaestavaparadonaporta.Olhandodepropósitoparaumapinturadelicadadeumarosabranca,sussurrou:—Comovocêachouagente?Tãodiscretamentequantoela,orapazrespondeu:
—Euseguivocês.Seusolhosseencontrarameambososdesviaram.ApeledeAllieformigou.—Oquehouve?—perguntou.OslábiosdeCartermalsemexeramquandoele
falou,masacabeçaseinclinounadireçãodeJo.—Nãosei—respondeu.—Écomoseelafosse...outrapessoa.— Segredo segredo segredo! — interrompeu a voz irritada de Jo, e, ao se
virarem,osdoisaviramnoaltar,comasmãosapoiadasnopúlpito,encarando-os.—Porquevocêsdoisnãotransamdeumavezeacabamcomisso?
AllieencarouJo,boquiaberta.Teveasensaçãodeterlevadoumsoco.Quediabosestáhavendocomela?Mastentoumanterotomofendidodistantedavoz.—Ei,issonãoélegal,Jo.Olha,táescurecendoeeuquerovoltar.Vemcomigo?Allieestendeuamão.Joaexaminouporumsegundoecruzouanaveatéela.—Tábom.Quesedane.Vamos—concordou.Seutomdevozerarazoávele,
aopegarasuamão,Joapertou-a,masAllieteveaestranhasensaçãodequealgoaindanãoestavabem.Quandosaíram,aluzestavacaindoea orestapareciamaisescuraeameaçadoradoqueantes.
Joseequilibrounapontadospésnodegraudafrente.—Ei,Allie,lembraoqueeudissesobreaúnicamaneiradepassarpela oresta
assustadora?Allieaolhouconfusa.—Oque?Correr?Com isso, Jo partiu pela trilha com uma velocidade surpreendente enquanto
CartereAllieficaramnafrentedaigrejaolhando-a.— Que diabo foi isso? — perguntou Carter, olhando para o céu como se
torcesseparareceberalgumaespéciederesposta.—Nãofaçoamenorideiadoquetáacontecendo—disseAllie.—Achoque
elabrigoucomoGabeeagoratá,seilá,muitoperdida.—Ah,queótimo—suspirou.—Acheiqueelajátinhaparadocomisso.AllieolhouconfusaparaCarter.—Oquê?Elajáfezissoantes?—Elacostumavabancara loucasemprequealgumacoisadavaerrado,mashá
muitotemponãofaziaisso—explicou.Elepareciairritado.—Agoratenhoquemecerti carqueelavoltepraescolaouoGabememata.Vocêvai carbem?Voltoetebusco,sequiser.
—Nãoprecisavoltar—respondeu.—Euconsigoteacompanhar.Cruzaramoportãoe,deinício,elaoacompanhoupassoapasso.Masenquanto
corriampeloprimeirotrechoescurodefloresta,algoocorreuaela.—Agentedeixouaportaaberta—disseela,diminuindooritmo.—Oquê?Naigreja?—indagouCarter,parandodecorreremseguida.Primeiro
pareceuincerto,masemseguidadeuumtapanaprópriatesta.—Droga.Temrazão.Émelhoreuvoltarefechar.
Maselenãosemoveu.Olhouparaafrente,nadireçãodaescola,enovamenteparaaigreja,comosenãoconseguissedecidiroquefazer.
VendoaindecisãodeCarter,Alliesoubeoquetinhaquefazer.—Euvolto—disseela.—Eufecho.VocêvaialcançaraJo.—Temcerteza?—perguntou incerto.—Tá escurecendo, e é quase hora do
toquederecolher.Mas Jonãoestava sendo racional e estava sozinhanoescuro.EapesardeAllie
nãoseanimarcomapossibilidadedecruzara orestasozinha,sabiaqueeraocerto.Mastinhaasensaçãodequeelenãoadeixaria,entãoviuqueprecisariaconvencê-lo.
—Nósvamosarrumarproblemase caraberta—observou.—EeurealmentenãoachoqueseriabompraJoserinterrogadapeloZelaznyagora.Alémdisso,eseumaraposaentrarecomerJesus?
Elecaiunagargalhadaeporumsegundotodooestressedeixouseurosto.—Ok—eleconcordou.—Maseuvoltopratepegarassimqueelaentrar.—Nãosepreocupacomigo,nãotenhomedodeescuro—mentiu.—Tátudo
bem.—Valeu,Sheridan—agradeceu.AlliepercebeuoalívionavozdeCarter.Ao
dispararparaaescola,suaspalavrasfinaisflutuaramnabrisa.—Euvolto.—Não!—gritouela.Elenãodeuqualquerindicaçãodeterescutado.AssimqueCartersumiudevista,acoragemabandonouAllie.Eupodiadeixara
portaabertaepronto,pensouaoolharparaatrilha.Talvezninguémsoubessequefoiagente.
Aípensou emcomo seriahorrível se acontecesse alguma coisa comessa capelaincrível.Esechovesseanoitetoda,aÁrvoredaVidafossearruinada,tudoculpasua?
Alliedeumeia-volta,cruzandoapenumbra,devoltaparaacapela.Apiscinadeluzdouradaqueiluminaraojardimjánãoestavamaisláe,quando
Allieatravessouoportão,aportadacapelaseerguiaescancaradacomoumaboca.Respirandofundo,Allieseapressouejogoutodooseupesocontraaporta.Ela
nem semoveu atéque ameninapercebeuque eramantida abertaporumganchopreto demetal.Masmesmodepois de soltá-la da trava, a porta era incrivelmentepesada.Deu-lheumbomempurrãoeestavafechando-acomumrangidorelutantequando, por apenas uma fração de segundo, ela viu alguma coisa se mover nas
sombrasládentro.Alliegelou,olhando xoparaaescuridão.Então,noqueaportacontinuavaa
fechar, ela se mexeu, agarrando-a e ncando os pés no chão para tentar segurá-laaberta. Mas a velha porta tinha vontade própria e nada que ela zesse a pararia.Fechou-secomumabatidaretumbantequepareceuecoaratravésdasárvores.
OcoraçãodeAlliebatiaviolentamenteenquantoelaencaravaaportafechada.Putamerda,oquefoiaquilo?Umagitorepentinodeasasbatendosobresuacabeçafezcomqueeladesseum
salto,maseramsópássarosvoandodeumaárvorepróximaparaocéuescuro.Comamãonoanelpesadodeferroqueserviademaçaneta,Allieconsiderouas
opções.Alguémcertamenteestavaládentro—elatinhavisto.Anãoserquetivessesidoumtruquedoescuro.Melhoreuir.Voltarpraescola,pensou.Sóestouassustada.Então imaginou o queCarter faria se estivesse aqui.Teria aberto a porta sem
hesitareexigidosaberquemestavalá.—Maseleéumpsicopata—sussurrousemconvicção.Nãotinhaimportância,
éclaro.Elajásabiaoqueiriafazer.Girouoanel.Puxando-o com esforço, esgueirou o corpo para dentro sem chegar a cruzar
totalmenteaportaaberta.— Oi? — chamou. O local estava tão escuro agora que ela mal conseguia
distinguirosdesenhosnaparede.—Temalguémaí?Oúnicoruídoqueouviufoioecodaprópriavoz.Masosilêncioqueseseguiu
tinha um peso, como sempre ocorre com silêncios em construções antigas, e elasentiuarrepiosnosombros.Estavaprestesaentrarquandoescutoupassosvelozesnopátiodaigrejaatrásdela.
Rodopiando,Allieseabaixoucomosefossesedesviardeumgolpe...nãohavianinguémlá.
Nãohaviaqualquersomalémdoventosoprandonasárvores.Cerrandoosolhos,espiouomatagalaoredordaigreja.Cadaruídoafaziapular.Quersaber?Foda-se.Usando toda a sua força, empurrou a porta. Enquanto a tranca ainda estava
fazendo barulho ao fechar, ela correu para o portão do pátio da igreja, batendo-oatrásdesidescuidadamente.Semolharparaoslados,correupelatrilha,acelerandoàmedidaqueosmúsculosseesticavam,atéestaremplenadisparadapela oresta.Masao fazer uma curva em alta velocidade no escuro, tropeçou em uma pedra e caiuesparramadanochão,comtantaforçaqueperdeuofôlegoeseengasgoutentando
recuperaroar,apoiandoasmãosnaslateraisdoprópriocorpo.Quandosuarespiraçãonormalizou,retiroucascalhodeumarranhãonapalmada
mãoenquanto reunia coragemparaolharo joelho.Sangue saíadeummachucadosuper cial e escorria pela perna.Torceu para que a aparência fosse pior do que aferida.
Arfandoentredentes,ela se levantoue testouseapernaaguentavasustentarseupeso.Doía,masdavaparaandar.Elasaiumancandopelatrilha,xingandobaixinho.
Ocaminhoagorapareciainterminável.Pareciaquejátinhacaminhadoporhorasquando parou para descansar a perna. Não tinha levado aquele tempo todo parachegaràcapela,tinha?Seráqueelaerraraocaminho?
Umfarfalharvindodasárvoresconteveseuspensamentosinquietos.Elaprendeuarespiraçãoeficououvindo.
—Carter?—elaexperimentouperguntar.Passadoumsegundo,escutoudenovo,masagorapareciavirdooutro ladoda
trilha.Alliesevirou,cerrandoosolhosaotentarenxergaratravésdasárvores.—Oi?—Suavoztremialigeiramente;elatentousoarfirme.—Quemtáaí?Silêncio.—Seissoébrincadeira,nãotemgraça—gritouparaoescuro.Maisuminstanteeelacorreupelatrilha,mancandoomaisrápidoquepodia....25passos,26,27...Osoma adodeumgravetoquebrandoatrásdelaafezpular.Elageloueparou.
Aquelefarfalhardenovo.Sóquemaisperto.Muitomaisperto.Agora,ignorandoador,correupelatrilha,saltandoporcimaderaízes,sentindo
pedras rolando sobospés,masmantendooequilíbrio.Seuspunhos socavamoarnosladosdocorpo.
Maisumminutoeelasevirouparaolharporcimadoombro—atrilhaestavavazia.MasquandoAlliesevirouparaafrentenovamente,alguémestavabemdiantedela.
Ela gritou e escorregou,mas asmãosdeSylvain apegaramepuxaram-naparaperto.
—Ei...ei!—Eleolhoupreocupadoparaela.—Vocêtábem?Tásangrando.Oqueaconteceu?
Suaspalavrassaíramemfrasesquebradasenquantoofegava.—Tinha...alguém...acapela...namata.—Avozestavasemfôlegoeassustada.AsmãosdeSylvainapertaramosbraçosdeAllie.—Alguémtemachucou?Alliebalançouacabeça.
—Não... eu caí.Mas eu ouvi... alguém... perto.Acho que tavame olhando.Ouvirespirar.
—Você tá tremendo.—Sylvain a abraçou.—Vamos, vamos sair daqui.—Comobraçodelelheapoiando,elamancouemdireçãoaocolégio.
Osdoisescutaramospassosaomesmotempo.—Ouviuisso?—Alliesussurrou.Sylvainfezquesimeolhounadireçãodosom,empurrandoAllieparatrásdesi.
Ela espiou por cima do ombro dele enquanto Carter saía da mata. Seu rosto sefechouaoverSylvain.
—Nãosabiaquevocêtavaaqui.—AvozdeCartersooufriaeeleolhouparaAllie.—Oquehouve?Vocêtábem?
SaindodetrásdeSylvain,elafezquesim,sesentindoumaidiota.—Eucaí.Eouvialgumacoisasemexendonafloresta.—Devetersidoeu.Pegueiumatalho.OupodetersidoaRuth,eumandeiela
te buscar.—Virando para Sylvain, Carter falou: — Melhor a gente levar ela devolta.Querqueeufaçaisso?
Sylvainconsiderou,maslogobalançouacabeça.—Não,semproblema.Eua levo.Vocêtemtrabalhoprafazer.Secerti cade
quenãotemnadaporlá.AlliepôdesentirarelutânciadeCarter,masentãoSylvainpuxouseubraçoeela
foicomele.Apernadoíamuitomaisagora,ecaminharestavacadavezmaisdifícil.Elanão
dissenada,masquandoumalágrimaescorreupelasuabochecha,Sylvainnotou.—Éasuaperna?—perguntou,limpandoalágrima.—Desculpa—respondeu.—Touparecendoumbebê.—Nãosejaridícula—ralhouele,esemmaisumapalavraalevantoudochão,
carregando-apelocaminho.—Nãodápravocêmecarregar,eusoumuitopesada—protestou.—Vocêpesatantoquantoumameninapesa—disseele.—Põeosbraçosno
meupescoço.Alliefezcomoelemandou.Agoraquenãoestavamaisapoiadanaperna,ador
diminuiu.Eleé forte,pensou,percebendoqueSylvainnãoestava coma respiraçãomaispesadaemfunçãodoesforço.Maisuminstanteeelaapoiouacabeçanoombrodele, aproveitando a estranha sensação de ser carregada pela primeira vez desde ainfância.
Estavammaispertodaescoladoqueelahaviaimaginado,entãosepassaramsóalgunsminutosatéelecomeçarasubiraescada.Alguémabriuaportaparaosdoise
AllielevantouacabeçaeviuZelaznyàluzdaentrada.—Oqueaconteceu?—grunhiuoprofessorparaela.—Elacaiunoescuro—respondeuSylvain.—Claroqueestavaescuro.Otoquederecolherjápassou—fuzilouZelazny.—Elacaiuantesdotoquederecolher—disseSylvain,protegendo-a,eAlliese
penduroucommaisforçanopescoçodele.—Levaelaatéaenfermeira—disseZelazny,comclaramávontade.—Outra
pessoacaiumaiscedo,elaestánasaladerefeiçõesagora.Entranafila.Enquantooprofessorseafastava,elapôdeouvi-loresmungando:—Purafaltadejeito,sequerminhaopinião...—Nãoprecisodeenfermeira—disseAllie,masSylvaina ignorou, levando-a
diretoparaasaladerefeições.NoqueSylvainapôsnumacadeira,Allieviuaenfermeira,deuniformebranco
comobrasãodaCimmeria,enfaixandoopulsotorcidodeumameninaqueelanãoreconhecia.(“Fuijogartênisànoiteemeferrei”,ameninasuspirouaosair,comobraçoemumatala.)
EstalandoalínguaaoverojoelhodeAllie,aenfermeiralimpouaferidacomumlíquido antisséptico que ardeu tanto que Allie tentou levantar e sair (Sylvain nãodeixou),aplicoupomadaefezocurativotãogentilmentequeelaquasenãosentiu.
SylvainficouaoladodeAllieotempotodo,umamãoapoiadaemseuombro.— Não corra nenhuma maratona nos próximos dias, querida — disse a
enfermeiraenquantoAllieeSylvainsaíampelaporta—,elogovocêvaiestarbem.Allieachavaquedeviaterpassadomuitodotoquederecolheraessaaltura—os
corredoresestavamsilenciososeSylvainaajudouasubiratéodormitóriofeminino.—Querqueeuteleveatéaporta?—perguntouelequandochegaramaotopo,
seusorrisosexytransformandoaofertaemalgoligeiramentemaissafado.—Achoquedaquieuconsigoirsozinha—Allieriu.—Masobrigadaporme
salvar.Outravez.Issotácomeçandoavirarhábitonosso.Quandoelasevirouparaentrar,eleapegoupelamão,puxando-adevolta.Antes
queAllie tivesse tempode reagir, ele se inclinoue abeijou.Foiumbeijo longoeprofundo.Quandoterminou,Allieoencarou,ofegando.
—Denada—sussurrouele.Surpresa,Alliedeuumpassopara trás rápidodemais, tropeçandonospróprios
pés e trombando com a parede atrás de si. Suas bochechas caram vermelhasenquantoelaseajeitava.
—Eu...então...obrigada...Bom,boanoite.Aoviraremancarpelocorredor,viuqueSylvainestavatentandonãorir.
–E
ONZE
ntão...Oqueaconteceuontemànoite?Erasábadodemanhã;asalacomumestavatranquilaeAllieeJosesentavam
em cantos opostos de um sofá de couro. As duas vestiam shorts azul-escuros quebatiam no joelho e camisetas brancas de mangas curtas, e cada uma seguravadistraidamenteumaxícarabrancadechá.
Tinham vindo juntas depois do café da manhã, no qual Gabe não havia sesentadocomelas.
Osolhosazul-clarosdeJoevitavamosdeAllie,percorrendoansiosamenteasalaantesdefinalmenterepousaremnaamiga.
—OGabeàsvezesémeio...controlador.—NaúltimapalavraavozsooutãobaixaqueAllieseinclinouparaouvir.Josecalouporummomentoedepoisacenou,afastandoopensamento.—Eeuodeioisso.Àsvezes.
JofeznovapausaeAllieesperou.—Então—suspirouJo.—Ontemelerealmentetavaagindoumpoucodemais
comosefossemeupai.“Nãofazisso,nãofazaquilo.Nãomequestiona.”Eseeleachaqueeuvoudeixarporissomesmo,támuitoenganado.E...bom,agoraagentenãotásefalando.EletavanasalacomumquandoeueoCarterentramos...—Elainterrompeuasiprópria,olhandopreocupadaparaAllie.—Apropósito,oCartervoltoupratebuscar,né?
Alliefezquesim.—Temessahistóriatambém,masvamosacabardefalardissoprimeiro.Jobebericouochá.—OGabetavalá,etavatãocheiodesi.Étodoo“eudissepranãosair...você
deviatermeouvido”quemedeixa...—Jocerrouopunhodireitoebalançou.—Entãoeudisseoqueeledeviafazercomosprópriosconselhosefuidormir.Desdeentãonãoo vimais.Esperoque vocênão tenha cadomuito apavoradaontemànoite.EurealmentenãoacheiqueoCarterfossetedeixarsozinha.Devetersidoumpoucoassustador,vocênuncatinhaficadoláforaso zinhanoescuro.
AlliesentiuumbrevedesejodeculparJopelapernaferida,masseconteve.
—Tudobem.Agentetavapreocupadocomvocê.Eu...quisqueelefosse.Jopôsaxícaradevoltanamesaelevantouaspernas,abraçandoosjoelhos.—Entãooqueaconteceudepoisqueeusaí?Você coubem?OCarterestava
muitopreocupadocomvocêemuitoirritadocomigoporterfeitoeletelargar.—Tava?—Allie cousurpresa,elepareceramuito irritadoaoencontrá-la.—
Elevoltou.MasàquelaalturaeujátinhaencontradooSylvainnatrilha.Eaconteceuacoisamaisestranha,Jo.
Alliesevirounosofádemodoque cassedefrenteparaJoecruzouaspernas.Reduziuavozquaseaumsussurro.
— O Sylvain meio que mandou o Carter embora. Foi todo “volta protrabalho”.Oqueéisso?DeupraperceberqueoCarternãoqueriair,masfoiassimmesmo.
Jorevirouosolhos.—ÉsóalgumababaquicedaEscolaNoturna.AchoqueoSylvaintáacimadele
nahierarquia.Allie deslizou sobre o sofá, apoiando a cabeça no encosto, e suas pernas se
esticaramnadireçãodamesa,revelandoocurativobrancoelimpo.—Ai,gata,oqueaconteceucomoseujoelho?Alliesorriucomcaradepesar.— Eu caí na trilha ontem à noite. Feito uma idiota. — Levantou a mão
esquerdaparamostraroarranhãonaspalmas.—Vouficarcomcicatrizprasempre.—AimeuDeus,étudoculpaminha.Desculpaporeutertidoumataque,Allie.
AgoraoGabetáirritadoevocêtámachucada.Jesus.Eusouumdesastre.—Pareciaverdadeiramentearrependida.
—Nãosejaboba—disseAllie.—Nãoénada.Quasenemdói.—Eentãoelaarfouelevouasmãosaorosto.—MeuDeus.Nãoacreditoqueaindanãotecontei.OSylvainmebeijou.
—Beijou?—Josesentoureta.—Quando?Eonde,como,porquê?Comasmãosaindanorosto,avozdeAlliesaiuabafada.—Eelemecarregouquandoaminhapernadoeu.—MeuDeus,eletámuitoa mdevocê—Josuspirou.—Essaéacoisamais
heroicadomundo.Mecontadobeijo.Allieespiouporentreosdedosenquantorelatavaoqueacontecera.—Enãofoidaquelesdeamigo,nabochecha,não—concluiu.—Foiumbeijo
deverdade.Delíngua.Joaempurroudebrincadeira.—Então?Foibom?
— É, acho que foi. — Allie se afundou ainda mais nas almofadas, com asbochechasmuitovermelhas.—Ok.Foi.Comcertezafoimuitobom.
—Evocênão temalgum tipode encontrohoje ànoite?— Jo a cutucoudenovoquandoAllieassentiu.—Vaipromeuquartodepoisemeconta tudo—disseJo.
Emseguidasesentouaindamaisreta.—Ei, issome lembraqueobailede verão édaqui a três semanas.OSylvain
deveteconvidarhoje!Oquevocêvaivestir?Contapramim.ElaeratãodesprovidadeautocensuraqueAllietevequerir.—MeuDeus,vocêparececriança.Nãoseinadasobreessebaile.Oquevocêvai
vestir?—Eu comprei o vestido naminha última viagem pra casa.— Jo se alegrou
visivelmenteaodescreverovestidinho justoprateadoede lantejoulaseas sandáliasquehaviaencontradoemumalojanaBondStreet.
ElalançouaAllieumolhardeavaliação.—Vocêtemumvestido?Allieseencolheuumpouco.—Bom...nãoexatamente.Temalgunsnomeuarmário,eum vintagequeeu
adoro.Maseunãoseioquefazercomrelaçãoasapat...—Vempromeuquarto!—Joainterrompeualegremente.—Eutenho,seilá,
ummilhãodeparesdesapatos.Problemaresolvido.—ElaagarrouamãodeAllie.—Agentepodefazeraquilodemeninas-se-vestindo-pra-festa.Penteamosocabeloumadaoutraefazemosamaquiagem.Vamosficarlindas.
Alliehesitoueentãoconfessou:—Olha,eununcafuiaumbaileantes.Nãoumbailedeverdade.Querdizer,os
meuscolégiosmeioquenãofaziamessetipodecoisa.Joafastousuaspreocupaçõescomumaceno.— Você vai amar. É antiquado, mas não é... chato, sabe?Todo mundo ca
lindo.Atéosprofessores.Vocênãovaiacreditarcomoalgunsdeles searrumam.Émuitolegal.QuandooSylvainteconvidar,vocêvaiterquedizersim.
Allieagoraestavaquasedeitadanosofá.—Masoqueeufaçoseelenãoconvidar?Asduas caramsentadasemsilêncioporuminstante,imaginandooverdadeiro
terrorqueserianãoterumpar.—SempredápraircomoZelazny—disseAllie,afinal.—Eleparecelegal.Asduascaíramnagargalhada.
Naquelanoite,quandoaceiaacabou,Allie counasaladerefeiçõescomRuth,Lisae Lucas. Gabe tinha vindo até a mesa buscar Jo alguns minutos antes e todostrocaramolharessigni cativosquandoosdoisseretiraram(“megassessãodeamassosdereconciliaçãoàvista”,previuLisa).
—Achoqueagentedevia ir lápra fora—disseRuth.—Táquenteaquieanoite está tão bonita. Ficamos perto da escola. Podemos só sentar na grama econversar.
Lucaspareciaincerto.Eleabriuaboca,masavozdetrásdeAlliesaiuprimeiro.—Concordo.Éumaboanoiteprajogarcroquet,nãoacham?—Allieseviroue
viuSylvainatrásdela.Lucas olhou para ele e ergueu uma sobrancelha; Sylvain acenou com a cabeça
muitodiscretamente.Lucasdeudeombros.—Okentão.Vamoslá.QuandoAllieselevantou,Sylvainestendeu-lheamãoeelessaíramladoalado.
Eleseaproximoudela.—Achoquevocêvaigostar.Croquetparecechatoduranteodia,masànoiteé
muitomelhor.OhálitodeSylvainfezcócegasnaorelhadeAllieeelatremeudeliciada.Sorriu
paraeleeentãocorreualegremente,puxando-lheamão.—Entãovamos.Semperdertempo.Sylvain riu e correu com ela. Lá fora, os outros pegavam material de um
pequeno galpão de armazenamento perto da entrada principal.Todos ajudaram acolocarastravesnarelva.
—Precisamosdeumsextojogador—observouLucas.—VoubuscaroPhil—disseRuth,apressando-sedevoltaparadentro.AllieviuqueLisaestava candovermelha—elaclaramente cariafelizemser
parceira de Lucas, mas ele ainda não tinha notado. Sylvain interrompeu-lhe odevaneio.
—EnquantoagenteesperaoPhil,temumacoisaqueeuprecisofazer.—Seutomeraprofissional,eelesevoltouparaAllie.—Vocêmeajuda?
—Claro.Ogarotoolhouparaosoutrosdois.—Agentejávolta.Pegando-apelamão,Sylvainapuxouparaalateraldacasatãodepressaqueela
tevequecorrerparaacompanhar.Quandodobraramaesquina,eleparou.Allieolhouemvolta,confusa.—Ondeagente...
Semaviso,eleaempurroucontraaparededepedraeabeijoucomforça.Numinstante,asurpresasetransformouemdesejoeelajogouosbraçosentusiasticamenteao redor do pescoço dele, retribuindo o beijo. Sylvain era, concluiu Allie, muitobomnisso—ameninanuncatinhabeijadoninguémassimantesenãoqueriaqueacabasse.
Quandoeleparou,osdoisestavamofegandoeolhandonosolhosumdooutro.—Desculpa.Nãopodia esperarnemmaisumminuto—disse, arfando, seus
olhosazuissustentandoosdela.—Fazdenovo—pediuAllie,puxandoinsistentementeosombrosdele.Elesorriu.—Jáquevocêinsiste...Osegundobeijofoimaislongo,e,sepossível,maisapaixonado,poisoslábios
dorapazsedirigiramparaopescoçodela,easmãosapertaramseusquadris.—Émelhoragentevoltarprapertodosoutros—sussurrouSylvain,comcara
depena,depoisdealgunsminutos,seuhálitoquentenagargantadela.EleroçounoslábiosinchadosdeAlliecomopolegar.—Apesardedetestardizerisso,elesdevemestarimaginandoondeagenteestá.
—Sãounsbobos—murmurouAllie.Elesorriuedeuumpassoparatrás,apesardeaindaestarsegurandoamãodela.—Agoravamoslájogarcroquet.—U-hu—disseAllie,semânimo.—Croquet.Quandodobraramaesquinadevolta,elaviuquetodosestavamesperandopelos
dois, inclusiveCarter, que conversava comLucas. Seus olhos diziamque ele sabiaexatamenteoqueestavamfazendo.
—Allie! Sylvain.—O tomerade zoação.—Queótimo.Tavam fazendooquê?
Surpresa pela agressividade dele, Allie cou roxa de raiva. Pensou que tiveramummomentonaflorestaemquehaviamseentendidoetalvezpudessemseramigos.
MasagoraCarterpareciapiordoquenunca.Sylvainapuxoumaisparaperto.—Infelizmente,Carter,nossostimesjáestãoorganizados.Agentenãoprecisade
outrojogador.—Eunãovimprajogar—disseCarter,enfatizandoaúltimapalavra.—Vim
sabercomoaAllieestavadepoisdaquedadeontemànoite.Alliepôdesentirosolhosdetodomundoemcimadela.—Eu...tôbem,Carter.Obrigada.—Vacilousoboolhardorapaz,queparecia
desafiá-la,comoseelativessefeitoalgumabobagem.
— Que ótimo. Você parece mesmomuito recuperada. — Suas palavrastransbordavamsarcasmo.—Machucouabocatambém?Ouissoéoutracoisa?
AmãodeAllievoouparacobriraboca,enquantoSylvaindeuváriospassosparaafrente.
—Porquevocêcontinuaaqui,Carter?—perguntoucomfrieza.Carteroencarou,semsemover.—Sóqueriaverseoqueeususpeitavaeraverdade.—Jáviutudoqueprecisavaver?—AvozdeSylvainerabaixaeameaçadora.—Ei,gente—Ruthsecolocouentreosdois.—Peraí.Fiquemcalmos.Não
vamosarrumarumproblemaaqui.Carteraignorou.—Ah,jáviosuficiente,Sylvain.Vocêsabeoqueeuvoudizer,nãosabe?Ruth suspirou e saiu do caminho. Eles agora estavam a menos de trinta
centímetrosdedistânciaumdooutro.Alliefechouosbraçossobreoprópriocorpo.—Nãofaçoideiadoquevocêvádizer,Carter—disseSylvain.—DeixaaAllieempaz.—Carterdeumaisumpasso,oqueodeixouapoucos
centímetrosdeSylvain.—Vocêsabequeissoéerrado.Sylvainsorriucomsatisfação.—Valeupeloconselho,Carter.Agorasugiroquenosdeixejogaronossojogo.FicaramseencarandopormaisuminstanteeentãoCartersevoltouparaAllie.—Nãoacreditaemnadaqueeletedisser.Eleéummentiroso.Apesardeestarbastanteconfusa,Allieempinouoqueixodesafiadoramente.—Nãoprecisodosseusconselhos,Carter.Eutomominhasprópriasdecisões.A menina viu raiva nos olhos dele, que, sem dizer mais nada, saiu rumo à
floresta.AsmãosdeAllieestavamtremendo.Qualéoproblemadele?—Bom,issofoidesagradável—disseSylvain,balançandoumtacocasualmente.
—Vamosjogar?Allie,vamosserdotimeazul?—Allieassentiu,muda,suacabeçaaindazumbindocomoavisodeCarter.
Noqueteveumtempoparaisso,agarrouobraçodeSylvain.—DoqueoCartertavafalando?—sussurrouAllie.Eleafastouocabelodatestadela.—Achoqueelegostadevocê,mabelle.Talvezestejacomciúme.Enquanto ele se afastou para dar sua tacada, Allie franziu o rosto.Talvez ele
estivesse tentandomeafastardoSylvain.Mas,a julgarpela formacomofalaracomela,eradifícilacreditarqueCarterestivesseafimdealgumacoisa.
Allienãoconseguiaimaginarque,depoisdisso,anoiteacabassesendoqualquer
coisa alémde terrível,masno mdas contas atéque foidivertida.As traves erampintadas com tinta fosforescente, o que signi cava que quantomais escuro cava,mais brilhavam.Os tacos tinham luzes ativadas por um botão no cabo. As bolascintilavamnascoresquetinhamsidopintadas.Istotornouogramadogradualmentemaiscoloridoàmedidaqueanoitecaiu.No nal,malenxergavamumaooutro,masconseguiamseguirosmovimentospormeiodos tacos iluminadosedasbolascoloridas.
Ruth eramuito boa emostrou aAllie algumas técnicas sobre comomanter abolarolandoemlinhareta.QuandoAllieconseguiujogarumadasbolasdePhilparaforadaáreadejogo,Ruthriu.
—Teensineibemdemais!Quandoojogoacaboueelescomeçaramaguardaroequipamento,Alliereparou
queestavarindocomRutheseapoiandoconfortavelmenteemSylvain,quepassaraobraçocasualmenteemtornodosseusombros.Osolharesdosdoisseencontrarameelasentiuumformigardeansiedade.
—Vocêtemolhoslindos—disseele.—Sãotransparentes,comoasuaalma.Virando-se,eledesejouboa-noiteaosoutrosesussurrounoouvidodeAllie:—Vemcomigo?Elaassentiuansiosa,suagargantaapertando.Caminharampelasombrapelapartedetrásdaescola.Pertodaportadosfundos,
eleparoueapuxouparaseusbraços,sussurrandodocemente:—Tiveumanoiteótima,Allie.QuebomqueoCarternãoteencheumuitoo
saco.Eletequersópraele.ApesardeAllieduvidardestaúltimadeclaração,nãodemonstrou.Sorriu.—Eutambémmediverti.Eeraverdade,apesardetudo.Emseguidaeleapuxouparapertoeencostouonariznoseupescoçoantesde
levarabocaàdela,eAlliesentiutodasassuaspreocupaçõessedesfazerem.Elefaziaascoisasmaisincríveiscomaqueles lábios.OcoraçãodeAlliedisparavaearespiraçãorateavanoqueelebeijavasuasorelhas,lambendosuavementeoslóbulos.Levantandoosbraços,elagirouospulsosportrásdacabeçadele.
Quando Zelazny gritou “toque de recolher!” pela porta dos fundos algunsminutosmaistarde,Sylvainlevantouacabeçacomardepesar.
Allienãoqueriaqueeleparasse.—Fazdenovo—insistiuela.Elesorriu,comasmãoscalorosasnacinturadamenina.—Toquederecolher.Agentetemqueentrar.
—Maisumavez?Tentadoramente,eleseinclinouparaperto.Elalevantouacabeçaeabriuaboca
ansiosa,maselelhedeuumrápidobeijinhonabochecha.—Pradentro,mocinha,antesquevocêarrumeumadetenção.—Toquederecolher!—gritouZelaznynovamente.—Últimachamada!Sylvainpassouobraçoportrásdosombrosdela,comoquemclamaposse.Aose
juntaremaorestodosalunosnaporta,elespassaramporKatieeJules.QuandoAllieviuovenenonorostodeKatie,sorriucomexpressãocândidaparaela.
Allie:um,Katie:zero.
Q
DOZE
uandoAlliedesceuparaocafénamanhãseguinte,Joaesperavaimpacientedoladodeforadasaladerefeições.
— Como foi? — perguntou sem preâmbulos, seguindo Allie paradentrodosalão.—Mecontatudo.
Enquantoempilhavaovosmexidosetorradanoprato,Allieriudela.—Vocêétãointrometida.—Ele tebeijoudenovo,nãobeijou?—perguntouJo.QuandoAllie fezque
sim,elasoltouumgritinho.—Eletálouquinhoporvocê.Teconvidouprobaile?—Não—respondeuAllie.—Talvezelesógostedemebeijar.— Elevai convidar — a rmou Jo con ante, enquanto se dirigiam à mesa
habitual.—OCarteréqueestavatotalmenteestranhoontem—disseAllie,contandoo
queaconteceu,eJofranziuorosto.—Issoé...bizarro—disseJo.—Achaqueeletácomciúme?—Nunca—con rmouAllie.—Eleme odeia.O jeito como agiu ontem à
noite...foicomoseeurepelisseele.Eeunãoseioquetavarolandoentreeles,masfoimuitopesado.Porumsegundopenseiquefossempartirprabriga.
—OCarternãoousaria—disseJo.—Eleiaarrumarmilhõesdeproblemassezesse isso.Mas edaí?OSylvain gostade você!E comcerteza vai te chamarpro
baile.
Durante a semana, só se falavanobaile—quem iria comquem,oque iriamvestirecomotodospodiambeberchampanheenãohaveriatoquederecolher.
Sylvainestavaenvolvidonumprojetoenorme,porissoelaquasenãooviu.Masamaneiracomoeleaolhavaquandoseviamdeixavaclaroqueanoitedesábadonãotinhasidoumaaberração.Elenãoconseguiamanterasmãoslongedela.Quandoseencontravamnocorredoreleaabraçavaouacariciavaseubraço.Etodasasvezesosencontrosadeixavamligeiramentesemfôlegoecomfomedemais.
Maseleaindanãoatinhaconvidadoparaobaile.
Aomesmotempo,Cartera ignoravaporcompleto.Semprequeoencontrava,eleolhavacomosenãoavisse.Naaula,seusolharesnuncasecruzavam.Eleatratavacomo se ela não existisse.Quando a sexta-feira chegou,Allie estavadeterminada adescobriroqueestavaacontecendo.Sónãosabiaaocertocomofazerisso.
Depois da aula naquela tarde, ela correu para a biblioteca na esperança deencontrarumlivroobscurodepoesiaparaaauladeinglêsdeIsabelle.Quandoabriuaporta,bateuemalguémquevinhanosentidooposto.
—Desculpa—disse,eentãoparou.Doumbral,Carterolhavafuriosoparaela.QuandoelepassouporAlliesemdizernada,ameninadeuumbasta.—Ei!—sussurrourispidamente.—Qualéoseuproblema?—Nenhum.—Suavozestavadistante.— Ah, é? — disse ela. — Então por que você cou tão perturbado? — Se
en andonafrentedele,elaentrounabiblioteca.Ouviuaportasefechandoatrás.EentãoCarterapegoupelobraço,virando-aparaficardefrenteparaele.
—Vocênãopodemechamardeperturbado—sibilounumsussurrodramático.Alliepôdeverquãoirritadoeleestava,masnãodeuamínima.—Possotechamardoquequiser,Carter—falou,sacudindoamãodelepara
longedoseuombro.—Eojeitocomovocêtemagidoultimamentenãoénormal.Ébabacademais.
—Oqueénormal,Allie?—sussurrouirritado.—De nenormalpramim.OSylvainénormal,porexemplo?
Elasentiuumcalafrionaespinha.—Queperguntaéessa?Oqueeletemavercomaformacomovocêmetrata?—Nada— respondeu,mas seus olhos diziam outra coisa. Suas sobrancelhas
estavamabaixadaseAlliesentiaatensãoantesmesmodeelefalarmaisalgumacoisa.—Tudo.Comovocêpodesertãoburra?Penseiquefosseinteligente,masésómaisumameninaburra.Nãosabenadasobreeleousobreessecolégioemesmoassimsepegacomocarapratodomundover.
Osolhosdameninasearregalaram.—Eunão...—Não o quê?— interrompeuCarter.—Não tá caindo nas frases ensaiadas
dele?Porquepramimpareceuqueestava.O menino estava tão furioso que Allie sentiu um pânico crescente ao tentar
argumentar.—Carter,nãotôentendendo!Entãoeutô candocomoSylvain...edaí?Por
quevocêseimporta?Vocêmeodeia.EleestavatãopertoqueAlliesentiaarespiraçãodelenabochecha.Tinhacheiro
deespeciariasecafé.—Achaqueeu teodeio?—Aquelesolhosnegros eprofundos sustentaramo
olhardela.—Nãoaodeio.Sópenseiquefosseinteligente.QuandoAllieabriuabocaparadiscutir,elecolocouodedodelicadamenteem
seuslábios.SeusolhosencararamosdeCarterporumlongosegundo.Sentiaogostodesaldapeledeleemsualíngua.Entãoelepraguejoubaixinho,sevirouesaiu.
—Aperguntadodia,Allie,é:vocêdeveusarocabelopresoousolto?—indagouJo.Elaestavasegurandoumpentededenteslargoseexaminavaatentamenteacabeçada amiga. Era sábado de manhã e elas estavam no quarto de Jo. Allie sentava-sediante do espelho e, por toda a volta, vestidos do armário de Allie e sapatos doestoqueilimitadodeJoascercavam.Joinsistiraqueelasprecisavam“treinar”.
Allieenrolouumamechadecabelonodedoeemseguidaasoltou.—Eissoimporta?ObaileédentrodeduassemanaseoSylvainaindanãome
convidou.Possopintarmeucabelodeverdeefazerummoicano.Josegurouumsapatopertodeumvestido,considerou,entãotestououtropar.—OSylvainvaiteconvidar—afirmouela.—Seidefontesegura.Allieaolhouesperançosa.—Sério?—Sério—Joapontouumsaltoparaelaemtomdeacusação.—Entãovamos
falarsério.Cabelopresoousolto?—Hmm...nãosei.—Pegouumaescovaepassounocabelo.—Então...com
quemoLucasvai?—ComaLisa,éclaro.—AvozdeJosaiuabafadaenquantoelapegavaoutro
pardesapatosdelicados.—EoCarter?—Soubeque ele convidou aClare.— Jo repousouos sapatos.—Achoque
presoficamelhor.—Podeserpreso.QueméClare?—Pequenininha,loura,bonita.Édanossaauladebiologia.Terceira la.Acho
queelafazinglêscomvocêtambém.Elessaíramanopassadoeaíeledeuumforanamenina.Todomundo coucomraivadeleporqueelaéumamor.Parecequeestãovoltando.
Allieseolhounoespelho.PorqueeudariabolapracomquemoCartervai?Elalevantouocabelocomasmãos.—Quebabaca.É,achoquevocêtemrazão.Presoficabom.Josorriu.
—Excelente.Depoisqueagenteescolherumvestidoeuvousaberoquefazer.— Dispôs os três vestidos na cama, avaliando-os criticamente. — Certo.Tira aroupaeexperimentaessesdaí.Hojeagentedecide.
O primeiro vestido que Allie experimentou era preto e justo. Encostava noscalcanhares,tinhagolaaltaedeixavaascostasnuas.Eraincrivelmentesofisticado.
—Adorável—disseJo,estudandoocortedovestido.—Masparapessoasumpoucomaisvelhasquevocê.
—Total.Eupareçoter,tipo,trintaanos.—Allieoretirouporcimadacabeça,jogando-odevoltanacama.Ovestido seguinteerabranco,comumasaia longaelisa,edealcinha.
—Lindo!—declarouJo.—Comcaradeverão.Virginal.AlliefranziuonarizeentãorodopiounafrentedoespelhodeJo.— É meio colado — disse, incerta. O vestido abraçava cada curva, deixando
poucoparaaimaginação.—Masvocêsegarante—a rmouJo.—Ficalindocomseutomdepele,eeu
tenhoumsapatoperfeitopraele.Oúltimo vestido era o favorito deAllie. Seda azul-escura, até o joelho, tinha
umasaiavolumosacomumforrodeorganza.OdecoteemVdecoradocomcontastinha o comprimento ideal na frente e as costas altas. As mangas eram justas eterminavamlogoabaixodocotovelo.Caíacomoumaluva.
Quando Allie puxou o zíper lateral e se virou, Jo exclamou dramaticamente,comamãonocoração:
—Você estámaravilhosa.Esse éumvestidoquevocê tinhaqueusar todososdiasdasuavida.Menosnobailedeverão.
—Porquenão?—Éumvestidodeinverno.Todomundovaiestarusandoroupaslevesdeverão
evocêvai suarnessa sedapesada.Guardaprobailede inverno.Queémuitomaisimportantequeodeverão,aliás.Masescondeessevestidoatélá.Vaiseroquevocêvaiusarnanoiteemqueforchocartodomundo.
Jo parecia tão certa que Allie não viu razão para discutir. Entendia pouco deroupa, pois sempre fora do tipo calça jeans e tênis.Nas raras ocasiões em que searrumara para casamentos, fora suamãe quem escolhera as roupas.Mas tinha queadmitirqueovestidobrancoficavabom.
Jolevantouumpardesandáliasprateadascomsaltobaixo.—Quetal?Perfeitasouperfeitas?—perguntou,radiantedeorgulho.Erguendoasmãoscomoquemserende,Allieriu.—Sãoperfeitas.
—Agora,oseucabelo...Joa fez se sentardenovonacadeira.Passouumpentepelasondasespessasdo
cabelodelaeoprendeuemumrabofrouxo.Semahennaqueusavaemcasaparapintá-lo em tons vibrantes de vermelho, o cabelo de Allie estava desbotando aospoucosparaocastanhonatural.
Jo trabalhou em silêncio por um tempo, mas Allie via que estava pensando.Depoisdeumtempo,elafalou:
—Então,porquevocêseimportacomquemoCartervailevarprobaile?Alliesecontorceu,sentindo-sedesconfortável.—Naverdade,eunãome importo... sóestavacuriosa.Comovocê temtanta
certezadequeoSylvainvaimechamar?Joenrolouumamechadecabelonumcoquelustrosoeoprendeunolugar.—Umpassarinhomecontou.Umpassarinhomuitosábio.—Queriaqueelemeconvidassedeumavez—murmurouAllie,vendooseu
cabeloganharumaaparênciaestilosa.—Todomundojátemcomquemir.— Pronto — exclamou Jo. Ela recuou e sorriu pelo espelho, obviamente
satisfeita.—AsorteédoSylvaindeircomvocê.OscabelosnormalmenterebeldesdeAllieestavamlisosebrilhantes,presosem
um penteado leve com um laço branco de seda, formando um coque. Algumasmechasonduladasemolduravamseurostooval,ressaltandoosolhosdecorcinza.
—Táincrível—suspirouAllie,olhando-seespantada.—Éassimquevocêvaiusarocabelo—disseJo,acrescentando—,segostar.Allieabraçouaamiga.—Amei.Ondevocêaprendeuafazeressascoisas?—Escolademenina—respondeuJoalegremente,enquantorecolhiaossapatos
dochão.—Naqualachoquevocêtambémestámatriculadaagora.Allie cou quieta por tanto tempo que Jo, que estava ocupada guardando os
sapatos,paroueaolhoupreocupada.—Tátudobem?Nãoquisinsinuarnadacomisso.Alliesorriuparaela.—Tudobem,nãosepreocupa.Équeeutiveopensamentomaisestranho.—Qual?—Jovoltouaorganizaroscalçados.— Mesmo com tudo que anda acontecendo, mesmo com o Carter sendo
babaca,oSylvainnãomeconvidandoeasaulassendosuperdifíceis,comtudoisso,achoqueeuestoumeio...feliz.
—Issoéporquevocêélouca.—Joriu.—Não,ésério.Felizmesmo.Pelaprimeiravezemmuitotempo.Sabe,achei
queeuiaodiaresselugar.Estavaprontapraisso.Eminhaantigaversãoteriaodiadopensaremvestidos,bailes,sapatos,cabeloepreocupaçãocomaparência.Maseunãoodeio.Eu...atéquegosto.
Ajoelhadaarrumandotudonoarmário,Joolhouparaela.—Eissoébom,nãoé?—É—respondeuAllie,pensativa.—Achoqueé.
Cerca de uma hora depois, Allie levou os vestidos de volta para o quarto e osguardou no armário. Ajeitou o cabelo num rabo de cavalo, guardandocuidadosamenteoslaçosnagavetasuperiordaescrivaninha.Olhandoparaorelógio,correu — só faltavam 20 minutos para fecharem a sala de refeições depois doalmoço.
—Oi,Allie.—Aoouviravozatrásdesi,virou-seeviuJulescaminhandonamesmadireção.
Ótimo.Exatamenteoqueeuprecisavaagora.—Ah.Oi,Jules.Comosempre,ocabelolourocortadoretodeJulesestavaabsolutamentemacio,
e ela estava com as sandálias Birkenstock cor-de-rosa. Allie pensou novamente noquãoinjustoeraterqueusarosseusprópriossapatos.
—Eutavapensando—disseJules—,vocêvainobaile?Deviair.Seiquevocêénova,maséumaexperiênciaquenãovaiquererperder.Nãoprecisaterumpar.
Alliesearrepiouumpoucocomaúltimafrase.—Sim,eutôplanejandoir—respondeu.—Ah,queótimo!Sabecomoé,talvezvocênuncamaiscurseaescoladeverão
aqui,aíseriapéssimonãoiraobaile.Alliefranziuorosto.—Porqueeununcamaiscursariaaescoladeverão?Julespareceuconfusa.—Ah,nãoquisdizernadacomisso.Ésóque,vocêsabe,normalmenteésópros
melhoresalunos.Euentendoquevocêestáaquipor...outrosmotivos.Alliesesentiucomosetivesselevadoumsoco.—Comoassim?Quemotivos?— Ah, você não sabia? — Jules parecia cada vez mais desconfortável. — A
Isabelle fez um esquema especial pra essa temporada. Depois disso, presumo quevocêvásejuntaraosoutros...aosalunosnormais,sabe?
Allieajeitouosombrosedeuumpassoparaafrente.—Oquevocêtátentandodizer,Jules?Quemeulugarnãoéaqui?
—Não,claroquenão!—Julesdeuumpassoprecipitadoparatrás.—Esperoqueeunãotenhateofe...
—Meofendido?Sim,Jules,vocêmeofendeu.—Virou-seecorreu,ospunhoscerradoscomtantaforçaqueasunhasformaramluascrescentesnaspalmasdasmãos.
Aopédaescada,elasevirounumsolavancoequasetromboucomSylvain,queaseguroucomfacilidade.
—Vocênuncacaminhanormalmentepralugarnenhum?—Eleriu,segurando-a.
—Sóquandoaocasiãoexige—respondeu,avozmaisbruscadoquepretendia.Elarespiroufundoetentouseacalmar.
—Oquehouve?—examinou-acomolhospreocupados.—Tudobem?Alliedeudeombros.—AcabeidetoparcomaJules.É...Ah,nãovaleapena.Elaéumaescrota.Elepareceusedivertir.—Ah,elaàsvezesébem...difícil.Maseunãoalevariatãoasério.Elaédobem.EletinhaumjeitodesorrircomoolharaqueAlliesimplesmentenãoconseguia
resistire,uminstantedepois,elaretribuiuosorriso.—Temrazão.Eunãodevodeixarelameafetar.—Eutavatorcendoprateencontrar,prafalaraverdade.—Sylvainseapoiouna
parede, pegando amão dela, e a puxoumais para perto, para uma conversamaisíntima.
Eleéomáximo.Comoelefazisso?—Queriateperguntarsevocêjátemcompanhiaprobaile.Allie sentiu as bochechas carem vermelhas e o coração acelerar.Tenho que
pareceromaistranquilapossível.Balançouacabeça;—Não,aindanão.Sylvaincontinuavaolhandofixoparaela.—Estavatorcendopravocêaceitarircomigo.Ir pro baile?Querome apaixonar eme casar com você.Ter lhos, comprar uma
casa,morarnaFrança...—Adoraria—respondeucalmamente.—Ótimo.Malpossoesperar.—Elesorriudeformasexyesonolenta.Ficaram parados por um instante, como se relutassem em se separar um do
outro,eentãoelelevantouamãodela,deuumbeijosingeloeasoltou.—Melhoriralmoçarantesquefechem.Elaconcordou.
—Atémaistarde.—Àbientôt.Allie utuouatéasaladerefeiçõesnumanuvemdefelicidadeequasenãoviuJo
namesa de sempre acenando para ela. Estava comendo uma salada verde quandoAllieseaproximou.
—Nãocomonadaalémdesaladaatéobaileounãoentronovestido...oquehouve? — Jo foi tão rápido da declaração para a pergunta, e Allie estava tãoembriagadadeamor,queporumsegundo cousóencarandoaamiga.—Vocêtácomcaradequeaconteceualgumacoisa.Conta,oquefoi?—exigiuJo.
Alliesorriucomcaradesonhadora.—OSylvainmeconvidou.Josaltoudacadeira,gritouedançouaoredordamesa,abraçouAllie.—Eusabia!Nãofalei?Eusou,tipo,onisciente.—Vocêéumgênio—a rmouAllie,rindo.—Achoqueémelhoreutambém
sócomersaladaseforusaraquelevestidobranco.Devoltaaopróprioassento,Jopassouatigeladesalada.—Essevaiseromelhorbailedeverãodetodosostempos.Mas enquanto Allie servia folhas no prato, ergueu os olhos e viu Carter
encarando-afuriosamentenumamesapróxima.Quandoelepercebeuqueelaotinhavisto,selevantouesaiucontrariado.
A
TREZE
sduassemanasatéobailepareceramdurarmeses,eAlliesentiaqueaescolainteiraestavaemestadodeanimação suspensa.Asaulas searrastavam.Osprofessoresserecusavamacederàapatiaeàdistraçãodosalunos,deforma
que os trabalhos se acumulavam, mas, pela primeira vez, a biblioteca estava bemvaziaànoite.
—Se eunão conseguir acompanhar essa semana... que seja—declarou Jo.Adramaticidadedaa rmaçãofoirelativamenteprejudicadapelofatodequeelaestavasentadanacamaebalançandoumatiara.—Semanaquevemeurecupero.
—Eutambém!—Allieestavadeitadanochão,debarrigaparabaixo,folheandouma revista de beleza e contemplando penteados. — Será que eu devia cortar ocabelocurto?—perguntou,levantandoumafotodeumamodeloquepareciaumafada.
JoinclinouatiaranadireçãodeAllie.—Um novo corte de cabelo eleva o espírito, jovemAllie.Nunca se esqueça
disso.Masesseécurtodemaisproformatodoseurosto,sópravocêsaber.Allievirouapágina.—Sábiaspalavras,Josephine.Sábiaspalavras.Noseuquarto,ovestidobrancoestavaconvidativamentependuradonaportado
armário,comossapatosdeJonochãologoabaixo.Todamanhã,aoacordar,eraaprimeiracoisaqueelavia,etodanoiteriscavaumadataemseucalendáriomental.
Ao mesmo tempo que Allie tentava deixar o trabalho escolar em dia, achavaquase impossível seconcentrar.Então,algunsdiasantesdobaile,quandosepegoulendo o mesmo parágrafo do livro de História pela quinta vez, desistiu de vez.Levantando-sedaescrivaninha,seespreguiçoueentão couparadaolhandoopôrdosolpelajanela.
Precisomemexer.Elapegouaroupadecorridaeprendeuocabelonumrabodecavalo.Aodescer
as escadas só passou por outra aluna e, quando se inclinou de forma que fossepossívelolharparabaixoeavistaroandarprincipal,nãoviuninguém.Láfora,osol
batianagramaverdeemacia.Daescadariadaentradadavaparasevervárioscorposcozinhando sobre toalhas e cobertas espalhadas pelo gramado, mas ela nuncaconseguiraentenderoatrativodesedeitaraosol.Emvezdisso,partiuemdireçãoaocaramanchão, correndo em ritmo veloz. Movimentar-se sempre a ajudara a seacalmar,eelamergulhoudecabeçanaatividade.Correndomaisdepressapelatrilha.Contoucadapassosilenciosamente.
—Duzentosenoventaeseis.Duzentosenoventa...—Porquevocêfazisso?AvozpareciatervindodonadaeespantouAlliedetalmaneiraqueelatropeçou
equasecaiu,tendoqueagarrarumgalhoparaservirdeapoio.Carter estava na beira da trilha, com as mãos nos quadris. Ofegando, ela se
curvouparaapoiarasmãosnosjoelhosenquantorecuperavaofôlego.Aoselevantar,jogouorabodecavalosobreoombro.—Queéisso?Vocêestáfalandocomigoagora,Carter?Quehonra.Desdeadiscussãonabiblioteca,Cartervinhaevitando-aeelanãoseincomodara
nemumpoucoempermitirqueeleofizesse.CarteragiucomoseAllienãotivesseditonada.—Essacoisadecontar.Játeouvifazendoissoantes.Porquevocêfazisso?—Nãoédasuaconta,seumaníaco.Agorasaifora.Voltandoparaa trilha,elacomeçouacorreroutravez,maseleacompanhouo
ritmocomgrandefacilidade.—Foiumasimplespergunta.Alliesoltouumganidofrustradoeacelerou,estimuladapelaraiva.Maselenão
ficavaparatrás,eelafinalmentegritouemondascurtas.—Você não. Ignora alguém. Por semanas. E depois. Faz perguntas. Pessoais.
Seu.Babaca.—Temperamental.—Queseja.Osilêncioseabateuenquantoelaseconcentravaemnãofalarcomele.—Allie,nãoconfianoSylvain.—Euestouteignorando.—Nãopossoexplicaromotivo.Maselenãoéquemvocêpensa.Alliediminuiuoritmoeoencarou.—Eoqueissosignifica?Elecomeçouafalareparou.Balançandoacabeça,enojada,elacorreupelatrilha
—apósumtempo,nãoouviamaisospassosdele.Quandootelhadodocaramanchãoapareceusobreasárvores,mesmocomtoda
aquelaraiva,Alliesuspirou.Nãotinhaconseguidovê-lodefatonanoitedachuva.Era lindo — uma construção fantástica, com um telhado estreito e pontudo seerguendo a sete metros e meio, coberto por telhas mouras coloridas e de designelaborado.
Seispilaresdelicadamenteesculpidossustentavamovívidotelhado.Elasubiuosdegraus até o interior a céu aberto, encobertopor sombras, ondeumcorrimãodepedraebancoscirculavamasbordas.Acomodando-senoassentogelado,Allieapoiouoqueixonobraçoeolhouparaafloresta.Carternãoestavaemlugarnenhum.
Doqueeleestavafalando?Seriasóciúme?Ouerasério?Pareciasério.Tentoupensar em algo que Sylvain tivesse feito para deixá-la descon ada.Ele
sempre estavapresentequando ela arranjavaproblema.Ele aprotegeradeZelazny.Sim,Sylvaineramalandro,esim,pareciaserriquíssimo,masnãobancavaoesnobe.Pareciagentil.Carter,poroutrolado,semprefoidifícil,insistente,donodaverdade,ameaçador.
Erabastanteóbvioemquemeladeveriaconfiar.SónãoentendoporqueoCarterseimportatanto.
Naquela noite no jantar, quando Allie chegou à mesa, Jo, Lisa e Ruth estavamconversandoanimadamenteemvozbaixa.
—Temquefazer,Lisa—disseJo.—Éatradição.—Euvoufazer,evocêsabequeeuodeioessetipodecoisa—disseRuth.Claramente relutante,Lisamexeua comidanoprato,os cabelos longos e lisos
caindoparaafrenteaoredordorosto.—Nãosei.Éumpoucoestranho.—Oqueéestranho?—perguntouAllie,puxandoumacadeira.—Oquetem
prajantarhoje?Esperoquesejalasanha.—OMergulho deVerão!—Os olhos de Jo reluziam de entusiasmo.—É
sempre na noite anterior ao baile de verão, e a Lisa não quer fazer.Mas tem quefazer.Eeupenseiquevocêsófossecomersalada.
—Ah,droga—disseAllie.—Tinhameesquecidodacoisada salada.EquediaboéumMergulhodeVerão?
Elaseserviudeumcopod’águadajarranamesa.—Caramba.Esquecicompletamentedetecontar.—JosoltouobraçodeLisae
sevoltouparaAllie.—Étradição.Osalunosdasúltimassériessaemescondidosàmeia-noitenanoiteanterioraobaileprairnadarnolago.
Confusa,AllieolhouparaLisa.
—Qualéoproblema?Vocênãosabenadar?Erguendooqueixo,LisalançouumolharacusatórioaJo.—Nãoésónadar.Contaaverdade.Jorevirouosolhos.—Ok,tábom.Ésemroupa.Precisasertãopudica,Lisa?Vaisersensacional!Allieengasgoucomaágua.—Oquê?Todomundo?Meninosemeninas?Pelados?Ruthaafagounascostas.—Énoescuro,Allie.—Joestavacomeçandoasoarirritada.—Enãoénadade
mais.Vocêsómergulha,saiesevestedenovo.Nãoé lmepornô.Édiversãolegal,semproblema,éumatradição,evocêtemquefazer,porqueeunãoqueroirsozinha.
Allieseinclinouemdireçãoaela.—Deixaeuversetôentendendo:você,eu,aRuth,aLisa,nossosparesdesexta
à noite e um monte de estranhos vamos car pelados num lago. Juntos. Pordiversão.
—Exatamente!—respondeuJoalegremente.—Etodasnósvamos,certo?Lisaparecianauseada.—Com certeza a Allie não está convidada.—Katie estava ao lado damesa,
linda como sempre.— Ela é nova demais na escola. Isso é só para os alunos daCimmeria.
—Ah,nãoenche,Katie.Sério.—Joaencarou,furiosa.Katieficouondeestava.—Ésério,Jo.Nãoachojusto.VoufalarcomaJulessobreisso.—NãopodefalarcomaJules,suaidiota—argumentouJo.—Éextrao cial.
Elanãopodefazernada.—Jo—disseAllie,comosdentestrincados—,quandovocêdissequerolaesse
mergulho?—Quintaàmeia-noite—respondeuamenina,comumbrilhoendiabradonos
olhos.—Ótimo.Euvouestarlá.Katieaolhoufriamente.— Se zer isso, Allie, depois não vai chorando pra Isabelle se alguma coisa
acontecer.Sólembraqueeuavisei.EnquantoKatieseafastava,Alliemurmuroubaixinho:—É,evocêseimportaporqueéminhamelhoramiga,Katie.Jodeuumrisinho.—Esqueceela.Quebomquevocêvai.Touansiosaporissodesdequeentreina
Cimmeria.SeaLisaeaRuthtambémvierem,nóspodemosfazertodasjuntas,evaisermelhorainda.
Parecendo infeliz, Lisa encarava o prato vazio. Allie sorriu para Jo, mas seucoraçãoafundou.Jáestavaarrependidadeterconcordadotãorápido.Mesmoassim,oquepoderiaacontecer?
—Mascomoagente saidaescola semninguémver?—perguntou.—Querdizer,osprofessoressimplesmentedeixamvocêmergulharnuanolagonoescuro?
OolhardeJolherespondeuantesmesmoqueeladissesseumapalavra.—Eles fazem o possível pra impedir.Quer dizer, imagina a fúria dos pais se
alguémsemachucasse?—Sorriualegremente.—Escaparémetadedagraça.Quandoasportasdacozinha seabrirameos funcionários surgiramcarregando
travessasdelasanha,Allieresmungou.—Nãoseioqueépior,serforçadaadeixarpassaralasanhaounadarpeladacom
aKatieGilmore.—EueoGabetemosumplanopraescapar—disseJo.—Vamosconversar
sobre ele depois do jantar. Vem pro meu quarto às oito e a gente monta nossoesquema.—Começouaencheropratodesalada.—Adoroisso.
Àsdezparaasoitodaquelanoite,Allieestavanocorredor,doladodeforadaportadoquartodeJo.Ouvindovozesládentro,levantouamãoparabater...eabaixou-anovamente.Uminstantedepois,serecompôsebateuàporta,girandoamaçanetaeentrandoemseguida.
Jo,Lisa,Ruth,GabeeLucasestavamsentadosemumcírculo.Allieassumiuumlugar no chão entreRuth eLucas, e, levantando os pés, abraçou os joelhos.Gabeestavaapontandoparaumapequenaáreanummapa.
—...então,considerandotudoisso,achoqueaúnicaformaseguraépelaaladassalasdeaula.
Lucaspareciacético.—Espera,tudoqueagentesabeéqueasoutrasportasvãoservigiadas.Porque
nãovigiariamessatambém?—Doismotivos—disseGabe.—PrimeiroporqueAsRegrasa rmamquea
gente não pode ir pra essa ala fora do horário de aula de jeito nenhum, então, aencrenca que a gente ia se meter se zesse isso seria enorme. Segundo, porque émarcadacomoumaportadeincêndiocomalarme.
—Oqueagentevaifazeremrelaçãoaoalarme?—perguntouAllie.ArespostadeGabefoisimples.—Nãotemalarme.
HouveumacomoçãoeGabe,quepareceusedivertircomoespanto,levantouasmãospedindosilêncio.
—Nãotemalarmeemlugarnenhumnesseprédio.Todasasplacasde“alarme”sãofalsas.
AvozquietadeLisainterrompeuosilênciodeespanto.—Porquê?—Nãosei—respondeuGabe.Observando-odeperto,Allieteveaimpressão
dequeestavamentindo.Elesabiaexatamenteomotivo.Sónãoqueriarevelar.Nãotemalarmedeincêndio.Nemalarmecontraroubo.Nadapraalertarninguém
sobrecoisaalguma.—Então—Joafastouaconversasobreoalarme—,comoagenteentranaala
dassalasdeaulasematrairatenção?—Essaeusei—disseLucas.—Agentefazoseguinte...
–A
CATORZE
i!—Pulandoparacimaeparabaixonoescuro,Joagarrouodedodopé.—Shhhh.—ApesardeJonãoconseguirvê-la,Allielevantouumdedopara
oslábioseambascongelaram.Eramonzeemeiadanoitedequinta,eelasestavamnaescada,noescuro,ochão
lustroso demadeira frio contra seus pés descalços.Haviam elaborado o plano atétarde da noite na véspera e conversado sobre ele por metade do dia. Allie tinhaconcluídoquesairdoprédiodocolégiocertamenteseriaamelhorparte.
Agoraestavamatentasaquaisquersons,qualquersinaldequehaviamnotadoapresença delas, mas a velha escola estava em silêncio. Passado um instante,começaramdenovoatatearescadaabaixo,ambaslevandoossapatosnumamãoesesegurandoaocorrimãocomaoutra.Lucasaslembraraqueoantepenúltimodegraurangiaeelasosaltaramcuidadosamente.Quandochegaramláembaixo,AllieolhounadireçãodasaladeIsabelle—nãoseviaqualquerluzporbaixodaporta.
Osolhosdelaestavamseajustandoàescuridão:jáenxergavaumpoucomelhor.Enquantocaminhavamnaspontasdospéspeloamplocorredoratéaentradada
aladassalasdeaula,Allieparou.—Ouviuisso?—sussurrou,malmovendooslábios.Jobalançouacabeça,masentãoambasouviramoruído.Passos.Perto.Alliegirouemcírculos,procurandoumlugarparaseesconder.Pensandorápido,
correu para trás de uma coluna de pedra, puxando Jo consigo. Alguns segundosdepois,umasombraágilesvoaçoupelocorredor.Allieseencolheucontraaparede,mas Jo se inclinou para a frente, cerrando os olhos na escuridão. Antes que Alliepudessecontê-la,elacorreuatrásdasombra.
— Jo! — sussurrou Allie, mas não houve resposta. Ela hesitou por ummomento,pensandonoquefazer,eentãofoiatrásdela.Aprincípionãoconseguiuvernada,masentãoesbarrouemJo,queestavanofinaldosaguãocomLisa.
—Acheiela!—sussurrouJo,claramentecontente.Lisapareciamenos animada, eAllie cou imaginandoporque ela teria vindo.
Fora tão relutanteemtodasasconversas sobreoassunto.Agoraparecia incapazde
car de pé, saltandonervosa de umpé para o outro comoumadançarina ansiosaantesdeumaapresentação,osolhosenormesnorostodelicado.Allieaolhoucomsolidariedade,emseguidaapontouparaaentradadaaladassalasdeaula.
Joassentiu.—EaRuth?—Alliesussurrou.—Táatrasada;nãodápraesperar.Alliegirouamaçaneta.Seaportarangesse,estariammortas.AportaabriusilenciosamentenasdobradiçasqueGabelubrificaranaquelatarde.Entrarameentãocorreramomaisrápidopossívelpelolongocorredor.Aúltima
portaeramarcadacomplacasameaçadorasdeaparênciao cialquealertavamsobrealarmese segurança;havianúmerosparaosquais telefonaremcasodeemergência.Allieimaginouquemiriaatenderseelaosdiscasse.
Paradasporum rápido instante, trocaramumolharnas sombras, e então cadaumacolocouumadasmãosnaporta.QuandoJosinalizou,aem purraram.
Aportaabriusemqualquerruído.Apressadas, tropeçaramporumatrilhacobertadecascalhoquecortavaseuspés
descalços. Saltitavam comicamente, calçando os sapatos e tentando não gritar.Pensandoemquãoridículaspareceriamaqualquerpessoaolhando,Allieabafouumarisada.
—Vaivaivai!—sussurrouJo,ecorreramdescuidadamentepelanoite,esticandoosbraçosumasparaasoutras,atéqueastrêsestivessemdemãosdadas.
Quando chegaram às árvores, Jo e Lisa estavam sem fôlego e pararam uminstante para recuperá-lo. Allie estava ansiosa — ainda estavam perto demais daescola.
—Qualéocaminho?—sibilou.Joapontouparaadireitacomacabeça,eAlliedeusinalparaquesemovessem.Continuaramemumritmomenosacelerado.
Deinício,obosqueestavaquasequeinteiramentesilencioso,masgradualmenteAlliecomeçouaperceberruídossussurradoseosomdegravetosestalando.Esticandoo braço para Jo, apertou a mão dela e apontou com a cabeça para a direção dobarulho.PôdeverosdentesbrancosdeJonaescuridãoquandoaamigasorriu.
—Osoutros—sussurrou.Àmedidaquesedistanciavamdaescola,aspessoas cavammaisdescuidadas,e
logoconseguiramescutaroutrosruídos:risadinhasabafadas,xingamentossussurradosocasionalmentequandoalguémtropeçava, chamados falsosdepássaros seguidosdemaisrisadassufocadas.Alliesentiuatensãoentreasomoplatascomeçaradiminuir.
JoparoutãorepentinamentequeAllieeLisaquasetropeçaramnela.—Chegamos— sussurrou, e desapareceu atrás de um arbusto.Espiandopela
escuridão,Allienão conseguiu vernenhum lago, só árvores e vegetação.Mas ela eLisaseguiramJoparaumcantoafastado.
—Porqueagentetáseescondendo?—sussurrouLisa.— Ninguém pode saber quem está aqui até meia-noite — disse Jo. — É
tradição.—Comovocêsabedetudoisso?—perguntouAllie.—Meuirmãomecontouquandoeleestudavaaqui—explicouJo.Jo tinha um relógio commostrador que brilhava no escuro, e as três caram
olhandoenquantooponteirodosminutossemoviainexoravelmenterumoàmeia-noite.
—CadêaRuth?—perguntouAllie.Joestendeuasmãosvazias.—Erapraelaternosencontradonaescolaounocaminho,entãoimaginoquejá
estejaaquiemalgumlugar.—Veri couorelógio.—Quase—sussurrou,abrindoumsorrisolargo.—Sepreparem.
Allie sentia Lisa tremer. Queria confortá-la, mas ela própria estava muitoassustada.Respiroufundoeolhounadireçãoemqueimaginouqueolagoestivesse.
Euvoumesmofazerisso?Querdizer,queméquenadapelado?Nãoéumacoisaquesóacontecenosfilmes?
Naqueleinstante,umavozgravemasculinarompeuosilênciofazendo-apular.—Tánahora,galera.Abaixemascalças.EnquantoAllieeLisahesitavam,Jocomeçouadesabotoaroshort,masquando
viuqueasduasaindanãotinhamsemexido,parouelançou-lhesumolhardealerta.—Melhorentrarnaonda—falou.—Aessaalturaseriapiorvoltarsemfazer.LisaeAllietrocaramumolhardepavor.—Sevocêfor,euvou—disseLisa,afinal.Allieouviaagoragentecaindonaáguaàsgargalhadas.Suspiroupesadamente.—Ah,dane-se.—Noqueelaabaixouacalça,Jovibrouearrancouoshort.Em
segundosestavamtodasnuas.LisaeAlliecruzaramosbraçosprotetoramentesobreospeitos,masJoagarrouasmãosdeambas.
—Sevãofazer,quesejacomorgulho—declarou,puxando-aspelocaminho.Noescuro,Alliesóviacorposderelancenoqueaspessoaspulavamparadentroe
paraforadeumlagoqueelanãoconseguiaenxergardireitonobreu.—Notrês—disseJo,rindo.—Um.Dois...Saltaramnoescuro,espirrandoáguagelada.Alliemalconseguiaenxergarolago.
O ruído claro das risadas ao seu redor foi abafado e se transformou em silêncioquandoelamergulhou.Surpreendeu-secomaprofundidade;elanuncaforagrande
nadadora.Debatendo-seacaminhodasuperfície,veioaelaamemóriarepentinadeumdiaquentedesol.Tinha7anosdeidade,eChristopheraestavaprovocandoporafundarcomoumapedranapiscina.
—Vocêcorreigualaumcoelho,mastambémnadaigualaumcoelho...—riaele,enquantoelabatiaosbraçosdesgovernadamente.
Agora,aoemergirembuscadear,espalhandoáguaetremendo,nãoviaJonemLisaemlugarnenhum.
—Jo?Comoelaseperderadasduasemsegundos?Masolagoestavalotadodealunos
rindo — nenhum dos quais parecia familiar. Ao se debater na água geladaprocurandoumrostoconhecido,Alliefoi candocadavezmaisempânico.Estavasozinha e nua em um lago repleto de estranhos. Lágrimas quentes de medo evergonha queimaram seus olhos. De repente percebeu que estava lutando pararespirar.Hásemanasnão tinhaumataquedepânico,masagoraestavaencadeandotrêsrespiraçõessofridasenquantolutavaparapermanecerboiando.
Nãoconsigo...respirar...Submergiuporumsegundoe sacudiuaspernas com força tentandochegarde
novoàsuperfície.Embaixodaáguaopédealguématingiusuacanela,eelasentiuumadormuitofortenaperna.Nãogritou—nãotinhaarsuficienteparaisso.
Maisumavezaáguafriasefechousobresuacabeça,emaisumavezelatentousubir.Masdestavezduasmãosfortesaagarrarampelosombros,puxando-aparaasuperfície.Sentiuumaondadegratidão,masaoverquemaestavaajudando,lutouparasesoltaraomesmotempoquetentavacobrirospeitoscomasmãos.
— Tá tudo bem, Allie. Olha pra mim. — A voz de Carter era calma eimperativa e seus olhos estavamgrudadosnos dela.—Respira devagar pelonariz.Nãoolhaprolado.Respiradevagar.
Elatentouexplicarparaelequeestavamorrendo,masnenhumapalavrasaiu.—Inspira—disseele,demonstrando,comolhosqueaencorajavamatentar.—
Eexpira.—Elesopravaarcomforça.Quandoelatentoufazeroqueelepedia,arespiraçãosaiufracaeumaondade
medotomoucontadela.Nãoiriaconseguir.Mastudobem,deverdade.Seeupudersódescansarumsegundo...Seusolhossefecharameaescuridãopareceucobri-la.QuandoCarterlhedeuumtapanorosto,elaseespantoutantoquerespiroupor
reflexo.Aquelaondadeoxigêniorenovousuasesperanças.—Vocêconsegue,Allie.Respiracomigo.—Elasentiuqueeleestavatentando
manteravozfirmeelheocorreuquerealmentepoderiamorrer.
Carter respirou fundo e ela tentou fazer omesmo.Desta vezumpoucode arentrounospulmões.
—Ótimo!—disseele.—Outravez.Ela respiroumais fundo e sentiu a rigidez do peito começar a se soltar. Ele a
encorajava,masAllietremiatãoforteagoraquenaquartarespiraçãobem-sucedidasedebulhouemlágrimas.
—Tátudobem,Allie—disseCarter,colocandoosbraçosgentilmenteaoredordoseupescoço.—Continuarespirando.
Protegendoocorpodela comopróprio, ele a retiroudaágua, levando-aaté amargem. Allie ouvia as pessoas rindo e jogando água ao redor, mas não sabia,tampoucoseimportava,seestavamrindodela.
AvozdeCartersoousuave.—Cadêsuaroupa,Allie?—Nãosei—sussurrou,rouca.Elesorriuummeiosorriso.—Porqueeunãomesurpreendoemouvirisso?—Eleaajudouasairdatrilha
e conseguir relativa privacidade atrás de uma grande árvore.—Fica aqui. Eu vouacharalgumacoisapravocêvestir.
CartercaminhouparadentrodassombraseAllieviuosmúsculossemovendoemseusquadrisecostas,eseforçouacontinuarrespirando.
Eleélindo,pensou.QuandoCarter reapareceu, algunsminutos depois, já tinha vestido um short.
Nasmãostraziaumacamisadehomemeumshortfeminino.—Foiomelhorqueeuconsegui—disse,sedesculpando.Comoeleestavasemcamisa,Allieteveasensaçãodequearoupadehomemque
trouxerafossedelepróprio.Elasevirouenquantovestiaoshorteentãovoltou-separaele,estendendoamão
parapegaracamisa.Carteraentregousemdizernada.Allienãoconseguiaverorostodelenoescuro,masaoseajeitarnacamisa larga sentiuocoraçãobater tãoaltonopeitoqueachouqueelecertamenteestariaouvindo.
—Pronta?—Allienotouqueavozdeletremeu.—Sim.Esticandoamãoparapegaradela,ajudou-aasairdoesconderijodevoltaparaa
trilha.OcalordamãodeCarteraconfortava—seusdedoseramfortes,eAllieosagarrou.
—Nãoconseguiacharnenhumsapatopravocê—explicouorapaz,ansioso.—Vocêpodemachucarospés.Querusarosmeus?Oupossotecarregar?
Apesardepedrasafiadasestaremcortandoseuspés,Alliebalançouacabeça.—Eutôbem—afirmou.Aoseafastaremdolago,osbarulhoserisadasforamsecalandoatrásdeles.Mais
algunsminutoseoúnicoruídoqueescutavameraodasprópriasrespirações.CartercontinuavasegurandoamãodeAllie.
Quandotevecertezadequeestavamsozinhos,Allieparoueoolhou.—Carter...obrigada.Soltando-lheamão,eleolhouparabaixo.—Nãofoinada.—Não,Carter.—Allie pegou amão dele de novo.Quando se olharam, os
olhosdeleestavamtãovulneráveisqueelanãoconseguiudesgrudarosdela.—Foimuito.
Ficaramseencarandoporumlongoinstante,maslogoqueelecomeçouafalar...—Allie!Carter!—AvozdeJo,correndopelatrilhaemdireçãoaelescomGabe
eLisalogoatrás,quebrouoencanto.AgarrandoAlliepelosombros,Joasacudiu,preocupada.—Ondevocêtava?Tátudobem?Teprocureiportodososcantos.Mesmoaofazerquesimcomacabeça,Alliesentiuochoroindesejadovoltar.—Nãoconseguiacharvocês.OCarterme...—virou-separaencará-lo,masele
nãoestavamaislá—...ajudou—sussurrou.
Ocafédamanhãnodiaseguintetranscorreuemsilêncioabsoluto—osalunosquehaviampassado boa parte da noite na oresta eram facilmente identi cáveis peloscabelosdesalinhadoseoscírculossobosolhos.JoeAlliesentaram-sepraticamenteem silêncio, comLisa bocejando ao lado.Nenhumadelas estava com fome.Alliesegurava uma xícara de chá quente, como se fosse a única coisa que lhemantinhaviva,enquantoJoquebravaumpedaçodetorradaempartículasminúsculas.
AlliepassaraanoitenochãodoquartodeJodepoisdevoltaremdespercebidasparaaescola,usandoamesmaportapelaqualhaviamsaídoumahoraantes.
HaviamconversadoatéquatrodamanhãeAllieentãodisseraaJoquesesentiamelhor,masnãoeraverdade.
Querdizer, como superarumataquedepânico, pelada,na frentedametadedaescola?
Aomenos agora ela sabia o que tinha acontecido depois de pularem todas nolago.Duranteanoite,Jocontoutodaahistória.ComoGabeeLucasjáestavamnaágua e tinham visto as meninas se jogando. Que Gabe agarrara Jo assim que elavoltaraàsuperfícieeapuxaraparaondeelesestavamnadando,pertodeumaárvore.
Como ela tinha conseguido agarrar Lisa e arrastá-lamesmo comLisa tentando seesconderdeLucas.EcomoemtodaacomoçãoseperderamdeAllie.
—Olagoencheudegentetãorápidoetavatãoescuroquequandoeuvolteipraondeagentetinhaentradonaágua,ouondeeuacheiqueagentetinhaentrado,nãoteacheiemlugarnenhum—disseraJo.ForamJuleseRuthqueacabaramcontandoaelaquetinhamvistoAlliecomCarter,equeAlliepareciamal.—ARuthacabouindocomaJulesno mdascontas,porqueaJulesnãoqueriairsozinha.Eelaachouque a gente tinha bebido, e que por isso você tava passando mal, e cou meenchendoosaco,porissodemoreiséculosprateachar.
—NãovioSylvainlá,masaverdadeéqueeunãovininguém—disseAllie.—Achoqueelenãofoi—disseJo.—Masbasicamentetodoorestodagalera
foi.Allie,que tinhapreparadoumacamade casacos e suéteresnochão, enterroua
caranotravesseirosobressalentedeJo.—Ficopensando...quantagentemeviutendoumataque?Nacama,Joseespreguiçouebocejou.—Quaseninguém, comcerteza.Achoque, fora a Jules,ninguém te viuhora
nenhuma.—Maselavaicontarpratodomundo.—Nãovai.Elaémonitora.Sabe,elatemodeverdeteapoiaroualgoassim—
disseJo.—Masentão,oqueaconteceuexatamente?AllieexplicousobreoataquedepânicoecomoCarteraresgatara.Nãofaloude
comose sentiraquandoelea retiroudaáguaeaajudoua respirar.Ousobre tê-loolhado se afastando ao luar. Em vez disso, focou em quão calmo ele foi e atranquilidadecomquelidaracomacrise.
Jo pensou por um instante e, quando falou, foi escolhendo palavras comcuidado.
—AspessoasdaquitêmumpéatráscomoCarterporqueeleagecomosefossemelhorquetodomundoeporquejámagooudeverdademuitasmeninasessetempotodo.Fingequegostadelasederepentenãogostamais.E,sabe,eleénadele.Eutôatéumpoucosurpresadeeleteraparecidonolagohojeànoiteouontemànoite—olhouparaorelógio—...essamadrugada.En m.ÉotipodecoisaqueoCartercostumaevitar.Aíaspessoasachamqueele édistante.Maseleàsvezes é legal,deverdade.
Bocejoulongamente.—Muitagentesabequeelenãogostadelasouachaelasfúteis.Eledeixaclaro.— É isso que eu gosto — balbuciou Allie, fechando os olhos. — Ele é tão
honesto.—Honestidadepodeserumacoisaboa—respondeuJo,apagandoaluz.Suas
últimas palavras utuaram da escuridão, desencarnadas.—Mas também pode serruim.
Agora,enquantoelassesentavammexendoocerealnospotes,ninguémpareciaternadaadizer.Lisaeraamaisalegredetodas—sobreviveraaomergulho,eLucasaacompanharaatéaescoladepois.Achavaqueeleestavacomeçandoagostardela.MasatéLisaestavacansada.
— Meu Deus, vou precisar de um cochilo antes de hoje à noite — disse,apoiandoacabeçanamão.—Tôacabada.
—Eutôumcaco—resumiuJo,pegandooaçúcar.—Quemdiriaquedormirservepraalgumacoisa?
—Cacoresumebemaminhasituaçãotambém—disseAllie,bebericandoocháescaldante e bocejando. Ninguém falara nada com ela sobre a noite anterior e,quandoameninaentrounasaladerefeições,nãohouvecochichos.TalvezJotivesserazão e, de tão escuro e lotado, ninguém a tivesse visto car histérica na noiteanterior.
Portradição,asaulasacabavamaomeio-dianodiadobailedeverão.Duranteasaulasdamanhã,Allielutouparasemanteracordada,anotandocoisasquemaistardenãofariamomenorsentido.
Carteraignoroupropositalmentenaauladebiologiae,nadeinglês,elacochilouenquantoesperavaaaulacomeçarenãooviuentrar.Quandolevantouacabeça,eleestava lá,masnãoestavaolhandoparaela.Tudobem.EmoitohorasAllie iriaaobaile comSylvain.Nãoeraomomentodepensar emestarna águanosbraçosdeCarter.Nua.
Elaajeitouospapéissobreamesaetirouolivrodamochila.Não—nãoéomomento.Isabellejáassumiraoseulugarnabeiradocírculodecarteiras.Elaolhouaoredordasala,entendendotudo.—Nossa,algunsdevocêsparecemmuitocansados.Nãodormirambem?Elessemexeramdesconfortavelmentenasrespectivascadeiras.Alguémriu.—Ouvifalarquehouveumaagitaçãonolagoontemànoite.Esperoquevocês
nãotenhamsidoincomodados.Maisrisosnervosos.Aexpressãodadiretoraaobotarosóculoseraenigmática.—Tenho certeza de que a maioria de vocês está sonhando acordada com as
dançasnosbraçosdosrespectivospares,masnósprecisamosteraauladehojeaindaassim — declarou, abrindo o livro. — Pensei em falar de romance hoje. Vamos
começarcomumbelopoema sobreamor secreto.Silentiumamoris foi escrito porOscarWilde, que vocês provavelmente associammais ao humor,mas esta é umahistóriadeamordiretaesimplesmentelinda.
Isabelle leu as duas primeiras estrofes com sua voz rica e poderosa.Perdidanaprosa oral,Alliesedesligouquasequedeimediato,desenhandoumaborboletanocaderno.Estavadecorandoelaboradamenteasasasquandoouviuseunome.
Confusa,seendireitounacadeira.Todosestavamolhandoparaela.—Desculpa?—disse,ficandovermelha.—Bomdia—Isabelledissesarcasticamenteenquantoaturmariabaixinho.—
Eudisse,vocêseimportariadeleraterceiraestrofepramim?Levantando,Alliepegouolivro,limpouagargantaecomeçoualer—começou
rapidamente, mas desacelerou na medida em que as palavras começaram a tomarforma.
MascertamenteparatimeusolhosdemonstraramPorqueestouemsilêncioemeualaúdesemcordas;Seriamelhornossepararmos,eires,TualábiosdemaisdocemelodiaEeuacuidardalembrançaestérilDebeijosnãodadosecançõesnãoentoadas.
Umaondaincontroláveldetristezaseabateusobreela.Porumsegundoachouquepudessechorar,maslutoucontraoimpulso.
Quediaboshádeerradocomigo?—Oqueopoematediz,Allie?HorrorizadadeverqueIsabelleaindafocavanela,tentoupensarnoquedizer.Suavozfoiquaseumsussurro.—Eletemmedodecontarpraalguémcomosesente,mas catristeporaoutra
pessoanãosaberoqueelesente.—Eporqueomedoderevelarossentimentosàpessoa?—perguntouIsabelle.—Porquepodeserqueelanãosintaomesmo.—Nãochegoua ser surpresa
paraAllieque tivesse sidoCartera responder.Elaabaixouosolhosparaocadernoenquanto sua caneta desenhava círculos pequenos e interligados em volta daborboleta.—Entãoeleachamelhornuncachegaradescobrirseforesseocaso.
—Valeapontarqueessepoemapodemuitobemserum“ele”escrevendosobreoutro “ele”,mas, para não desviar a conversa, nós podemos discuti-lo em termosmais convencionais. Então, por que ele achariamelhor assim?— re etiu Isabelle,
cruzandoasalaparaseapoiarnumacarteiravazia.—Elapodesentiramesmacoisa,mas,seelenãoperguntar,nuncavaisaber.
—Eletemmedodesemachucar—sussurrouAllie,acrescentandomaisumeloàcorrentequecriara.
IsabelleolhoudelaparaCarter,curiosa.—Issoexplicaria—disse.—Agora,porfalaremsemachucar,tenhoumpoema
deumtipodiferentepravocês,escritopelaamericanaDorothyParker...Orestodaaulapareceudurarumaeternidade.Quandoacabou,Allieselevantou
rumoàportadecabeçabaixa,decididaanãofazercontatovisualcomninguém.MuitomenosCarter.Foiaprimeiraachegaràescada.Eseuspésbateramcomforçanosdegrausao
subirapressada,contandonacabeça....31,32,33...Nosantuáriodopróprioquarto,fechouaportaeseapoiounela,olhandoparao
espaçoimpecáveletãofamiliar.Oquefoiqueacaboudeacontecer?OCarterestavatentandomedizerquegostade
mim?Oueuestouimaginandocoisas?OSylvaintemrazão?Estava tão cansadaquenão con ava em simesmaparapensar emcoisas sérias
agora.Eacamanaqualnãodormirananoiteanteriorpareciachamá-la.Derrubandoamochilanochão,ajustouodespertadorparaas seisda tardee fechouapersiana,bloqueando a luminosidade. Parou apenas para tirar os sapatos e deitarcompletamente vestida.Era ótimo estar sozinha, e no frescor da escuridão pensoumaisumavezemCarter,antesdeseesquecerdetudoecairnosono.
Q
QUINZE
uandoAllie chegou aoquartode Jo, às seis emeia, ela eLisa já tinhamenchido o cômodo de vestidos e sapatos. Allie estava se sentindomuitomelhor — mais normal. De alguma forma, o sono a tranquilizara.
Independentemente do que acontecesse amanhã, hoje iria se divertir. Aproveitar obaile.Entãoanoitedeontemaconteceu.Edaí?Já tinhapassadoporcoisaspiores.Não se importava com o que ninguém pensava a seu respeito antes de vir para aCimmeria,eissonãoiacomeçaragora.
Lisa,queiaaobailecomLucas(“sócomoamigos,sabe?”),estavacoradadetantaempolgação.
—Euachoessevestidosimplesmenteperfeito.Sua animação era contagiante eAllie imediatamente passou a pensar de forma
maispositivaemrelaçãoatudo.—Vaificarlindo,eutenhocerteza.—Sinceramente,sódepoderpassarumtempocomoGabejávaiserótimo.—
Josuspirou.—Hádiasqueagentemalsevê.—Algumapista do que está acontecendo?—perguntouAllie, pendurando o
vestidobrancosedosonaportadoarmário.Jobalançouacabeça.—Nemumpio.Só“tôtrabalhandonumprojeto...”.—Elaengrossouavoze
utilizou um tom ligeiramente defensivo. Ficou tão parecido comoGabe originalqueLisaeAllieriram.
—É,oSylvainjáémais“éimporrrTANToqueestamosfazENDÔ”—disseAllie,ecaíramnarisadaoutravez.
Uma bandeja prateada de sanduíches cortados em triângulos dominava aescrivaninha de Jo, junto com jarras de suco. Jo insistiu que precisavam comeralguma coisa antes de sair (“ano passado quase desmaiei no baile porque estavaanimadademaispracomerduranteodia”).Magrafeitoumcauledemargarida,Lisamordiscoudelicadamente a bordadeum sanduíchedepepino antes de repousá-loemumguardanapo.Jolhelançoumaisumolhardeaviso.
—Come,Lisa.—Maseunãoestoucomfome...—disseLisa,afastandoosanduíche.Allie,quenãotinhacomidoantesdedormir,pegouumsanduíchedequeijoe
deuumamordidagrande.—MeuDeus,comovocêpodenãoestarcomvontadedecomer?Eutôfaminta.
Mortadefome.Lisa,ainda indecisaquantoacomoprenderocabeloecomeçandoaentrarem
pânico,semdizernadalevantouumarevista,queestavaabertanafotodeumaestrelalouracomumpenteadoelaborado.
—Eu queria que você sóme deixasse fazer amagia acontecer e parasse de sepreocupar com isso—disse Jo.—Eu façomelhor doque isso.Aliás,Allie, voufazerseucabeloagora.TenhoasensaçãoqueodaLisavaidemorarumaeternidade.
Allieenfiouorestodosanduíchenaboca.—Mmhp—respondeu,concordandoenquantosentavanacadeira.— Exatamente. — Jo penteou o cabelo da amiga e começou a girá-lo
suavementecomolaço.—Adorofazerocabelo—revelouAllie,fechandoosolhos.—Écomoreceber
umamassagemnacabeça.—Se esse colégio caro não der certo pramim, de nitivamente vou abrir um
salãoemMayfairemLondres.—Jofezumcoquehabilmenteeoprendeunolugar.—VoubotaronomedeMayHair.
Allieriu.—Vocêpensoumesmonoassunto.Tudobem,então.Seseucolégiocaronão
funcionar,euvousersuaprimeiracliente.ConformeJoprevira,searrumardemorouumaeternidade.SóocabelodeLisa
levouséculos.No m,eapósmuitadiscordância,fezumcoquesimplesquerealçouseupescoçolongoeesbelto.
—Está perfeito.—Lisa sorriu para simesma no espelho.— Jo, você é umgênio.
—Eusei—respondeuJo,alisandooprópriocabeloemumbeloestilogamine.—Masadivinhaquehorassão.
Allieolhouparaorelógioegrunhiu.—Depressa,meninas,agentesótemmaisdezminutos.Pegaramosrespectivosvestidos.—Eusabiaque isso iaacontecer—disseJo,colocandoovestidinhoprateado
porcimadacabeça.Alliepuxouozíperdascostasparaela.—Sabiamesmo.Enosfezumbemdanado.
EnquantoAllieajeitavaolongovestidobranco,Jocalçavaassandáliasdetiraeseviravaparaajudar.
Allieaolhoucomadmiração.—Vocêpareceumaestreladecinema.—Querida,podeatéser,masvocêpareceumaprincesadeumcontodefadas.Lisaestavacomumvestidodesedaazuleprateadocomtirasdelicadas,eumxale
de seda combinando nas costas.Quando nalmente calçou os sapatos, Jo e Allie,irônicas,aplaudiram.
—Vocêtálinda,mas,meuDeus,comodemorapra carpronta—comentouJo.
Lisapegouabolsacarteiraesorriusemrancor.—Todomundodizisso.—Espera!Ninguémsaidoquartoatéeutirarumafoto.—Josacudiunafrente
delasumapequenacâmera.PuxouAlliee Joparaoespelhodecorpo inteiroeelas seespremeramumaao
ladodaoutra, rindo.Quando todas estavamaparecendono re exo, Jo levantou acâmeraebateuafoto.
—Perfeita—disse,verificandoaimagem.—Estamoslindas.—Provavelmenteagentenuncamaisvai carlindaassimdenovo—disseLisa,
sombriamente.AllieeJoaencararamporumsegundoeentãocaíramnagargalhada.—Vocêéimpossível,DonaMelancolia—disseJo,abraçando-a.—Nãomefaz
bagunçaroseucabelo.Saíramjuntaspelaportaàsoitoemponto.Quandochegaramaotopodaescada,
um grupo barulhento demeninos tinha se reunido na base, todos usando gravatabranca.
As meninas caram paradas por um segundo enquanto o grupo levantava osolhosparaelase cavaemsilêncio.ParaAllieoinstantepareceusurreal—comoumsonho.Tinha tido um ataque e quase se afogado no lago ontem à noite, e, noentanto, cá estava apenas algumas horas depois, comum vestido lindo, comboasamigas.Pareciaqueestavavivendoavidadeoutrapessoa.
Sylvain,LucaseGabeestavamnogrupo,masnãohaviasinaldeCarter.Elaseajeitoueencolheuabarriga.Joaencarou,deuumapiscadaeestendeu-lhe
amão.AllieaceitoueseesticouparadaraoutramãoparaLisa.Desceramasescadasjuntas,comosefossemborboletasdesedanumflanarconjunto.
Concentrada em não perder o equilíbrio nos saltos emprestados de Jo, Alliemanteve os olhos nos degraus à frente. Quando levantou o olhar, Sylvain estavadiantedela,sorrindo.ElasoltouamãodeJo.
Sylvain a admirou abertamente ao levantar sua mão, beijá-la e tomá-la nosbraços.
—Vocêtálinda—disseele.Elaviucaloredesejonosolhosdele.Seuestômagotremeu.Levantandooqueixo,elasorriuparaele.—Você também tá.—E estava. Sylvain tinha tudo a ver com aquele terno
escurosobmedida.Ocorterealçavaosombroseotóraxmusculoso.Elesorriuseusorrisoperfeito.
Allie sentiu uma onda repentina de dúvida.Será que eu estou fazendo a coisacerta?SeráqueoCarterestáfalandoaverdade?
Comoseorostodelativessetraídoopensamento,Sylvainpassoulevementeosdedosemsuatesta,alisandoumcabeloinvisível.
—Malposso esperarpradançar comvocê.Vamos entrar.—Suavoz era tãotranquilizadora e osmovimentosmuito seguros.Allie esticouos ombros e entroucomele.
Ao se juntarem ao uxo de alunos lindamente vestidos no salão, viramfuncionáriosde smokingque seposicionavampertodasportas segurandobandejascomtaçasaltasdechampanhe.Cadaumpegouumaaoentrar.
Ládentro,Allieesperavaencontrarumadiscoteca.Emvezdisso,viuumacenaelegantemente anacrônica se desenrolando na sua frente. Havia uma pequenaorquestra emumdos cantos, tocando valsa.Em todos os lugares velas brilhavam:sobreasmesas,noscandelabros,emarandelasnasparedes,nalareira.Vasosde oresbrancascobriamtodasassuperfícies.Asmesasestavamcobertasdelinhobranco;ascadeiras, envolvidas com laços brancos de seda.O cheiro de jasmim utuava pelabrisa.
Isabelle apareceu emumvestidobranco esvoaçante de seda cilhadona cintura,comumcintode cordadourada.Allieolhouparaopróprio vestido e achouque,comparadaaIsabelle,pareciaumamenininha.EsticouobraçoepuxouamãodeJoparachamarsuaatençãoeapontoucomacabeçaparaadireçãodadiretora.
Josorriucomoquementendia.—Oqueagentepodefazer?Nossadiretoraégata.Gabeoslevouatéumamesadecanto.Porummomento, caramtodosparados
aoredordela,deformaalgodesconfortável.—Oquenósestamosesperando?—sussurrouAllieparaJo.—Vocêvaiver.Depois de um momento, Isabelle bateu levemente com uma colher de prata
numataçadechampanhe,easalaficouemsilêncio.
—Bem-vindosao223oBailedeVerãodaCimmeria.Todosaplaudiramanimadamente,eelaesperouqueaspalmasterminassem.—Todoanoestaéumaocasiãomuitoespecial.Nósnosreunimosparacelebrar
a escola, sua história e todos vocês; vocês são o futuro da Cimmeria.Os pais demuitosdevocêsvieramaestebaileanosatrás,eosavósebisavósdeboapartedosalunos antesdisso.Vocês estão agoraonde eles já estiveram. Jovens e esperançososcomoelesforam.Agorafazempartedociclo.Inquebrável.
Isabelleergueuataça.—Aobailedeverão.EàAcademiaCimmeria.—Aobailedeverão—ecoaram.—EàAcademiaCimmeria.—Divirtam-se!—gritouela,rindocomosaplausosruidosos.Quando Sylvain puxou uma cadeira para Allie, ela se surpreendeu com a
formalidade,mas entãonotouqueGabe eLucas tinham feito omesmopor Jo eLisa.
Tradição,pelojeito.Allie, que só tinha tomado golinhos de champanhe no Natal, achou o gosto
parecido comoda cidraque costumava tomar comMark eHarry.Parou e couolhandoparaataça.QuantotempofaziaqueeunãopensavanoMarkenoHarry?
Ficouimaginandocomoelesestariam.Secontinuavamarranjandoproblemas.Oquequerqueestejamfazendo,pensou,correndoosolhospelosalão,nãoénadanemparecidocomisto.
Ergueuataçaoutravez.Osegundogoledechampanhefoimelhor.Foi então que a orquestra começou a tocar umamúsica extraordinária. Soava
exótica,masAllienãoconseguia situá-la.Húngara?Turca?Malcomeçoue jádavaparasentirnoaroentusiasmo,aeletricidade.Algunscasaiscomeçaramadançarumacoreografiacomplexaquepareciaenvolvercírculosdentrodecírculos.Eravertiginosoassistir,eelalogovirouascostas,sentindo-setonta.
—ÉumacançãotradicionaldaCimmeria.—Sylvainavinhaobservando.—Foi escrita pra própria escola há muito tempo por um compositor egípcio queestudouaqui.
—Nuncaouvinadaparecido—disseAllie.Ameninateriapedidomaisinformações,masnaqueleinstantepassaramgarçons
comaperitivoseGabe,SylvaineLucasseserviramdevários.JoeAlliepegaramumcadauma,masLisadispensouabandejacomumaceno.Jofranziuorostoparaela,eLisadeudeombrosinocentemente.
—Étudotãobonito—comentouAllie,mordendoumcamarãofrito.—Começaramapreparar tudoontemdemanhã—disse Jo.—Euouvieles
aquimartelandohojetambém.—Tudoperfeito—declarouSylvain,sorrindoparaAllie.—Achoqueagente
deviadançar.Masvocêtemqueacabarseuchampanheprimeiro.Obediente, Allie tomou mais um gole, franzindo o nariz com a agradável
sensaçãodasbolhasnonariz.—Comotempoagentevaigostandodechampanhe—murmurouela,meio
queparasimesma.Osoutrosriram.—É—disseGabealegremente.—Vaigostandomesmo.—Nãobeberápidodemais—alertouJo,lançandoumolhardeavisoaSylvain.Allieadispensoucomumsorriso.—Lembra,mamãe,eubebiabastante.Jonãopareceusetranquilizar.—OchampanhedaCimmeriaébemforte,Allie.—Elavai carbem—respondeuSylvain.Levantando-se,eleestendeuamão.
—Medáoprazerdessadança?Elasentiuformigamentoscomotoquedele.—Nãofaçoideiadecomodançaressamúsica,Sylvain.Tôprevendoquevaiser
umahumilhaçãoseagentedançar.—Ah,nãoachoquevaichegaraisso.O rosto dele era tão con ante que ela quase acreditou. Foram até a borda da
pistadedançaondeoscasaisaindagiravamemcírculoselaborados.Moviam-secomuma velocidade impressionante e a perfeição derivada da prática, e Allie assistiumaravilhada. Viu Isabelle se movendo graciosamente nos braços de um homembonitoedecabelosescurosqueelanuncaviraantes.ElaeraincrivelmenteeleganteeAlliesuspiroucominveja.
—Comoéquetodoselessabemdançarassim?—Quasetodosnósfizemosaulasdedançadesdecrianças.—Queestranhoaspessoasaindafazeremisso.—É?—ElepuxouAllieparaosseusbraçoselevantouoqueixodela,demodo
queelaolhasseparaseusolhosmaisazuisqueoazul.Emseguidaasegurou rme,comamãodireitana lombardamenina,colocando-amaispertodopeito,amãodireitadelanasuaesquerda.—Parecemuitoestranhopramimquealguémnãofaçaisso. Essa noite eu vou te ensinar uma dança, uma simples. Me segue. Vamoscomeçarbemdevagar.Éesquerda,direita,esquerda,esquerda,direita.Assim.
Eledemonstroueelao seguiucuidadosamente. Inicialmenteolhouparabaixo,para os próprios pés, e pisou nos dedos dele, mas em seguida ele levantou-lhe oqueixocomoindicador,paraqueseusolhosencontrassemosdele.
—Nãoolhaprabaixo.Olhasóprosmeusolhos,elesvãodizerpraondevocêvaiaseguir.Eéesquerda,direita,esquerda,esquerda,direita,semparar.Estápronta?
—Não.Sylvainriu,egirou-aparaapistadedança.— Esquerda, direita, esquerda, esquerda, direita... Esquerda, direita, esquerda,
esquerda,direita...—Alliemurmurouasinstruçõesparasienquantosemovia,masmanteve os olhos no rosto de Sylvain.Rodaram três círculos lentos sem nenhumerro.Eentãoquatro.Cinco!
Allienãoacreditava.—Comoéquevocêtáfazendoisso?—riuincrédula.—Sério,Sylvain,eunão
seidançar.Elemanteveosolhosfixosnela,subindoedescendocomospassos.—Nósestamosconseguindoporquevocêestácon andoemmim.Euconduzo.
Vocêsegue.Émuitosimples—explicoucomumsorriso.—Alémdisso,agenteestáindomuito,muitodevagar...
Na medida em que rodaram e Allie ganhou con ança, Sylvain aumentougradualmenteavelocidade,atéqueestivessemsemovimentandosemproblemaspelapista.
Quando ela estava semovendo com con ança, Sylvain a beijou levemente nopescoço, logo abaixo da orelha. Todos os sentidos de Allie formigaram. Elesussurrou:
—Vocêestátãolindaessanoite,Allie.Obrigadoportervindocomigo.AlliesentiuosanguecorrerparaorostoeseucorporespondeuquandoSylvaina
puxouparaperto.Rodaramdurantetodootempoemsériessuaveseconstantesdecírculos.Allieestavacomeçandoa cartonta—orestodosalãoeraumborrãoemaquarela.Sylvaineelaestavamcompletamentesozinhos.
—Issoéincrível—sussurrouAllie.Apósoquepareceramapenasalgunsminutos,oscírculososconduziramàborda
da pista de dança e ele a levou de novo para amesa, com o braço rme em suacintura.
AcabeçadeAllieestavagirandoeelaseapoiouneleparaterumsuporte.—Tômesentindotonta.—Éadança.Vocênãotáacostumada.Ela voltou a olhar para a pista e observou os dançarinos girarem. Alguns dos
casaisnãoeramexatamenteperfeitosnosseusmovimentoseosoutrospassavamporelesrodopiando,comoáguafluindoemtornodepedras.
Comumamão,Sylvainergueuduastaçasdeumabandejaquepassava.
—Oquevocêprecisaédemaischampanhe.Allieaceitouataçaqueelelhepassoucomumsorrisograto.—Obrigada.Tôcommuitasede.—Abebidaestavageladaerefrescante,eela
engoliurapidamente.—Sabe,estoucomeçandoagostarmuitodechampanhe.ArisadadeSylvaineracalorosaeeleestavatãopertodeAlliequeelaconseguia
senti-lanoprópriocorpo.—Vocêéquetádizendo.AllieprocurouJonamultidãodedançarinos.Seuvestidomuitocurto tornava
fácil vê-la — era certamente o menor do salão. Ela e Gabe rodopiavam comsegurançanapistadedança.AllieviuovestidodeLisaesvoaçandonãomuitolongedeles,enquantoelaeLucasrodavamemcírculosfáceis.
MalnotouSylvaintirarataçavaziadesuamãoeatrocarporumacheia.Observandoosalão,viuRuthePhilindoparaapistadedança,demãosdadas
—Ruthusavaumvestidodesedarosa-claroqueexibiasua guraatlética.AlipertoJerry estava sentado, conversando confortavelmente com Eloise, da biblioteca; elausavaumvestidinhopretosexycomdecotenascostaseoscabelos longosestavamsoltos.
—Elanãoénadavelha—disseAllie,surpresa.—Quem?—AEloise.Sempreacheiquefossevelha.Ouaomenos,assim,maisvelha.Sylvainsorriu.— É, acho que ela quer que as pessoas pensem que ela é mais velha. Se
soubessemqueétãonova,ninguémialevá-laasério.Elaestudavaaquiháseisanos.—Olhouparaabibliotecária,analisando-a.—Muitosexy,Eloise.
Alliesocoulevementeoseubraço.—Ei!Prestaatenção.Lembraqueméoseupar.OsorrisodeSylvaineraendiabrado.—Nuncameesqueceria.E,aliás,achoqueéhoradeomeupardançarcomigo
denovo.Vai,acabadebeber.—Eleterminouaprópriabebidaeesperouatéqueelativesseesvaziadoataçaantesdeestender-lheamão.
Aovoltaremparaapista,elasesentiuumpoucosem rmezaetentousegurarobraçodeSylvainpara se equilibrar.Nessemomento,Carter surgiuna frentedeles.Seus olhares se encontraram e, lembrando da aula de inglês daquelamanhã, Alliesentiuumafaíscadeeletricidade.Notouentãoqueeleestavacomobraçoaoredordeumagarotabaixinhadevestidode tafetá azul.Erabonita, tinha cabelos louros,longoseondulados.AntesqueAlliepudesselhedizerqualquercoisa,eleseviroudeforma bem deliberada e sorriu para a menina, sussurrando alguma coisa ao seu
ouvidoqueafezrir.Alliecorouedevetertensionadoosmúsculos,poisSylvainolhouparaveroque
tinha lhe chamado a atenção. Quando viu Carter, seus olhos se enevoaram e seubraçoseguroucommaisforçaacinturadela.
—Tátudobem?—perguntouSylvaincalmamenteaAllie.Forçandoumsorriso,elaopuxouparaapistadedança.—Tudoperfeito.—Maselanotouquearrastaraaúltimapalavrae franziuo
rostoseconcentrando,tentandoentenderoporquê.Putaquepariu—eutôbêbada?Já?—Vocêparece—disseeleaodaremosprimeirospassosnapista—umanjo.Carterestavabemalinabeiradapista,Allietinhacerteza.Provavelmenteestava
deolhoneles.Comoseupar.Tudobementão.Elalhedariaalgumacoisaparaolhar.PuxouSylvainmaisparaperto.—Masnãomesintocomoumanjo.Elejogouacabeçaparatráseriu,ecomeçaramadançarmaisrápido.Destavez
ospassosdedançaerammaisfáceise,aprincípio,Allierelaxoucomomovimentoeamúsica, e deixou Sylvain escolher a direção que tomavam na pista. Ela sentia acabeça leve e agradavelmente tonta. Sucumbiu à sensação com um suspiro suave,apoiando-se de novo no braço de Sylvain e deixando totalmente por conta delesegurá-la.Sentiuaslufadasdoaraoredordeles.
Sylvain a puxou mais para perto até seus lábios encostarem na orelha dela;quando mordeu o lóbulo, Allie engasgou e teria tropeçado se ele não a estivessesegurandocomtantafirmeza.
DepoisdissoeleficoutantotempocaladoqueAllieolhoupreocupada.—Tátudobem?—Desculpa—disse,comavoztensa.—Vocêéirresistível.—Aexpressãode
Sylvaineratãointensaqueadeixounervosa.Rodopiando,eleos levouparaabeiradapistadedançaedali,apressadamente,
paraforadasala.Sentindo-semeioalta,Alliesegurou-lheamãoenquantoelecorrianoite escura afora, passando por um pequeno grupo reunido perto da porta dosfundos,edalidobrandoaesquinaparaumcantosilencioso,longedasvistasalheias.
Allietentoufalarsemenrolaralíngua.—Ondeagente...?EleaempurroucomforçacontraaparedeeAlliegritoucomoimpacto,ainda
queotenhasentidocomosetivessesidoamortecidoporumaalmofadadelã.—Para!Sylvain,vocêtámemachucando.
Osolhosdelereluziamaoluareelaviualgocomoferocidadeneles.— Nem mais um segundo. — Sylvain a beijou com tanta violência que ela
bateucomacabeçanaparedeemordeualíngua.Lágrimasencheramseusolhoscomogolpe.Elalutouparaescapar,socandoopeitodele,mastudolhepareciaumpouconebuloso e, em mais um segundo, ela não conseguia se lembrar por que estavalutando.
Uma vaga lembrança do alerta de Carter passou pela cabeça dela em meio àconfusão:nãoconfianoSylvain.Eleéummentiroso.
EntãoSylvainlevantouoqueixodeAllieeabeijounopescoço.Porumsegundoelagostou,masentãoorapazmordeuapeledelacomtantaforçaqueamachucouea menina arfou, seu corpo se movimentando involuntariamente contra o dele aotentarescapar.Masnãoconseguiasemover:Sylvainfaziapressãocontraela.AsmãosforamdosquadrisparaosseiosdeAllie,quecomeçouaentrarempânicodeverdade.Uma lágrima correupor suabochecha ao empurrá-lo com força,masnãopareceuprovocarqualquerefeitonele.
—Vocêmequer—sussurrouele.LevouamãoaopescoçodeAllie,segurandocomtantaforçaqueameninatevedificuldadepararespirar.
—Para!—Suavoznãopassavadeumsussurro.ElaarranhouospulsosdeSylvain,maseleerafortedemais.—Fala—disse,pressionandocommaisforça.—Dizquemequer.—Perguntaavocêmesmo,Sylvain.Sevocêforçaalguématequerer,apessoate
querdeverdade?—AvozdeCarterveiologodetrásdeSylvain.SylvainafrouxouapegadaobastanteparaqueAllieconseguisserespirar,masnão
asoltouaosevirarparaencararCarter.Enquantoelarecuperavaofôlego,osorrisodeSylvaineraselvagem.
—Ah,vaiemboradaqui,Carter.Carterpermaneceuondeestava.—Oquevocêestá tentandoforçarelaadizer,Sylvain?Meexplicadireitinho.
Comoseeufosseburro.—Issonãoédasuaconta,Carter.Seuciúmeépatético.—FalaissopraIsabelle.Eaproveitaecontaoquevocêtavaprestesafazercoma
Allie.AívocêspodemterumaconversalongasobreasRegras.Tonta e aturdida, Allie lutou para se libertar enquanto olhava de ummenino
paraooutro.Lambeuoslábiosetentoufalarclaramente.—Carter,oquetáacontecendo?Eunãoestouentendendo...CartermanteveaatençãoemSylvain.—Não,masoSylvainestá,nãoé,Sylvain?
Os olhares dos dois se encontraram num gélido confronto. Por um segundoAllieachouqueSylvainnãofosserecuareimaginouoqueCarterfaria.Masentão,semqualqueraviso,Sylvainasoltoueseafastoudela.
—Tudobem,Carter.Sejaoherói.Salveamenina.Masnósdoissabemosquevocêépatético.Eéamimqueelaquer.
Contraindoosombrosecerrandoospunhos,Carterdeuumpassoenfurecidoàfrente,masantesquepudessesocar,gritoscortaramanoite.CartereSylvaingelaram.
CartersevoltouparaAllie,araivajádistantedoseurosto.Agoraestavaalerta;deguarda.
—Allie,ficaaqui.Nãosaidaqui.Sylvainnemsevoltouparaelaeosdoisjásaíramcorrendonadireçãodooutro
ladodoprédio.Tremendo,Allie couexatamenteondeadeixaram.Quandoesticouamãopara
tocarapartedetrásdacabeçasentiuumgalosobaspontasdosdedos.Comoéqueeufiqueitãobêbada?Equeporcariaéessaqueacaboudeacontecer?Ela cruzouosbraços com força sobreopeito.Estava todadolorida; sabiaque
teria hematomas nos braços ao acordar e sua cabeça doía muito. Sylvain estiveralouco,masAllienãohavialutadodireito.Nãohaviasedefendidodireito.
Bêbadademais,pensou,enojada.Ou...suaexpressãomudou,elepôsalgumacoisanaminhabebida?
Ela não era inexperiente com bebida alcoólica e também nunca tinha cadobêbada com uma lata de cidra. E só havia tomado três taças de champanhe.Enquantoaideiatomavaforma,umolharhorrorizadopassoupeloseurosto.
OSylvainfariaumacoisadessas?Gritosestridentes,antesqueelapudessecompletaropensamento.Osomvinha
deperto;logodaesquina.Elasaltoudevoltaparaassombras,pressionandoacolunacontraaparede.
Ouviuruídosdealgoquebrando;sonsdeluta.Eentão,silêncio.Prendeuarespiração.Maisuminstante,epassosnaescuridão.Correndonasuadireção.Depressa.—Carter?—arriscouperguntar.Ospassospararam.Arfando, Allie se deu conta do erro. A onda de adrenalina lavou o torpor do
álcool e ela se encostou na parede novamente, os tijolos frios contra sua pele. Seencolheuomáximopossível.Apesardenãoconseguirenxergarnada,haviaalguémali;podiasentirapessoaolhandoparaela.Congelada,semrespirar,contouasbatidasdocoração.
...10,11,12...Passosvieramemsuadireçãooutravez.Maisdevagaragora.Jogando-separalongedaparede,Alliecorreupelaesquinaemdireçãoàentrada
daescola.Ospassosaseguiram.Depressa.Elaacelerouopassoparaescapardeleseentãotropeçouemalgumacoisamacia
nochão.Gritando,perdeuoequilíbrioecaiurodopiandonochão.Sobreagramafriaeúmida,elaseencolheutodaecobriuacabeçaesperandoo
ataque.Quenãoveio.Emvezdisso,ouviuospassosseafastaremdepressa,sumindogradualmentenoiteadentro.
Allieficouparadaporuminstanteatétercertezadequeestavasozinha.Sentou-secomcuidado,então,eolhouemvolta.
Suasmãosestavamcobertasporalgumacoisamolhadaegrudenta.Enquantoosolhosseajustavam,viuquetinhatropeçadonumameninadevestidoclaro,deitadadebruçosnochão.Tocouameninacomcuidado,maselanãosemoveu.Comasmãosnosombrosdagarota,virou-adefrente.
—Ei,tátudobem?Entãoelaviu.Eengoliuarespiração.Omundopareceuficaremsilênciototal.Allie se afastou da garota aos tropeços, olhando xamente para o vulto no
escuro.Entorpecida,levantoucambaleandoecaminhouapassoslentosparaaportados
fundos.Ládentroas luzeshaviamseapagadoeocorredorestavaescuroecaótico.Cheiravaafumaça.Aspessoasgritavamepassavamcorrendoporela.Alliesesentiudesencarnada—distanciadadetudoaoseuredor.Olhoudiretoparaafrente,comasmãosensanguentadasabertas,cadaumadeumladodocorpo.
Semparar,pensouasmesmaspalavras:nadadissoéreal.Nãopodeserreal.Nadadissoéreal.Nãopodeserreal...
Ao voltar na direção do salão, a fumaça se tornou mais espessa, fazendo-alacrimejar.Osalão,tãolindomaiscedo,comvelaspiscandoe oresbrancas,estavapegando fogo. As únicas luzes vinham de algumas lanternas carregadas porprofessores, e do próprio incêndio. À meia-luz, meninos de smoking batiam naschamas com toalhas de mesa molhadas enquanto meninas com vestidos de galacarregavamáguausandoqualquercoisaqueconseguissemencontrar:baldesdegelo,vasilhas de ponche, vasos de ores. O chão estava cheio de sapatos de salto altoabandonadosetaçasdechampanhequebradas.
As chamas eram baixas e começavam a apagar; claramente os alunos estavamvencendo a batalha. Mas a fumaça intensa era o principal problema. Era difícil
respirar.—Abreumajanela!—gritoualguém.—Não!— veio uma resposta rme.—Vai piorar os focos de incêndio. Se
precisardarumtempo,vailáprafora.Dealgumamaneira,areconhecívelvozseveradeZelaznytrouxeconfortoaAllie,
queestavanomeiodasala,chocada,semconseguirassimilartudo.—Allie,vocêtábem?—Josurgiuaoseulado,comorostocobertodefuligem,
eumjarrovazionamão.—MeuDeus.Deondeveioosangue?Vocêtámachucada?Derrubandoojarro,pegouamãoensanguentadadeAllie,virando-a,procurando
machucadosaparentes.Alliebalançouacabeça,masporumsegundonãoconseguiuencontrarsuavoz.Seuslábiossemoveram,masnenhumsomsaiu.
—Allie,vocêtámeassustando.—LágrimassurgiramnosolhosdeJo.—Porfavor,porfavor,porfavor,medizquevocêtábem.
Suas palavras incomodaram Allie e, subitamente, a verdade jorrou dela, queagarravaasmãosdeJocomtantaforçaquedeviaestarmachucando-a.
—Ai,meuDeus,Jo.Tevegritose...temsangue...emtodolugar.OsolhosazuisdeJoestavamarregaladosdemedo—asmãosapertaramasde
Alliecomtantaforçaquedoeu.—Allie,porfavor,tentaexplicar,deondeéessesangue?Allieolhoufixamenteparaasmãos.—Jo,essesangueédaRuth.Elatálánosfundos.Agargantadelatá...cortada.
Feio.Euachoqueelatámorta.Engolindoemseco,Jogirougritandodesesperada:—Jerry!AllieviuJocorrer,emmeioaoescuroeàfumaça,nadireçãodoprofessorque
batia em brasas incandescentes com uma toalha de mesa ensopada. O rosto deleestavanegrodefuligem.Eloiseestavaporperto,oscabeloslongosemaranhadosnascostas.Elahaviatiradoossapatoseesguichavaespumadeumextintordeincêndio.
Jofalourapidamente,seurostoempânico.Allienãoentendiaaspalavras.JerryeEloisetrocaramumolhar.Eloiseentregouoextintoraumaprofessorae
osdoissaíramcorrendodosalão.QuandoJovoltouparaoseulado,Allieolhouemvolta.—CadêaLisa?Jomordeuolábio.—Nãoconseguiacharnenhumadevocêsemlugarnenhum.—Entãovocênãoviuelahoranenhuma?—Allieouviuahisterianaprópria
voz,masnãoconseguiaevitar.—Jo,elapodetersemachucado!Podeestar...igualà
Ruth.LágrimasencheramseusolhoseJoagarrou-lheasmãosensanguentadas.—Ficacalma,Allie.Eunãotivecomoprocurarporela.—Olhouaoredor.—
Parecequequasetodoofogojáapagou.Vamosprocurarjuntas.Movendo-se rapidamente, Jo cruzou o salão puxando Allie consigo. Passaram
pelafumaçaqueresistia,verificandotodasaspessoasqueconseguiamencontrar.Nada.—Lánafrente.—Jocorriaàtodaagora,eAllievinhalogoaolado.Mirarama
portadafrenteeentãofrearam.Nohalldeentrada,umcorpofrágilcomumvestidoazuleprateadoestavadeitadoimóvelnochãodepedra,umembrulhocompridoenoesticadodecada ladodela, comoque sopradoemumabrisaque somenteela
podia sentir. Um suporte de vela comprido demadeira estava caído em cima docorpo.
— Ah, não. — As palavras de Jo saíram num sussurro enquanto as meninascorriamparapertodeLisa.
AllieseabaixouepegouamãodeLisa.—Elatáviva—declarou.Jotirouosuportedeveladecimadelaejogou-oparaolado.OcabelodeLisa
tinhacaídona cara eAllieo retirougentilmente, revelandoumcorteprofundonabochecha. Jo soltou um gritinho e sua mão cobriu a boca, os olhos cheios delágrimas.
—Lisa?Lisa,acorda.Támeouvindo?Agenteprecisaquevocêacorde.—Alliepronunciouaúltimapalavracomtantaforçaquepareceureverberar.
Viugotículas caindonovestidodeLisae levouum instanteparaperceberqueestava chorando. Enterrando o rosto nas mãos, soluçou, enquanto Jo chorava aolado.
—Acorda.
N
DEZESSEIS
as horas caóticas que sucederam o ataque, os professores conduziram osalunos à sala de refeições, então de luzes apagadas, e tentaram acalmar opânico.Funcionáriostraziamcaixasdelanternaseasentregavam,enquanto
asenfermeirasmontavamumpostonumcanto.Osferidos zeram lapararecebercurativos nos machucados, veri car queimaduras e colocar talas em tornozelostorcidosouquebrados.
Asala,demaneirageral,estava livreda fumaçaquepermanecianoscorredores,mas, em vez disso, o ar estava tomadopor choros abafados de alunos e conversasbrutalmenteeficientesdaequipemédica.
—Mepassaessescurativos.—Essetornozeloprecisadeumbaldedegelo,temalgumsobrando?—Injeçãodeantibiótico.Lisapermaneciainconscienteefoilevadapordoisfuncionáriosparaopostode
enfermagem.Deinício,JoeAllieinsistiramemircomela,circulandoamacacomopássarosestridentes.MasEloiseasconvenceuaficar.
Eloisetinhaumamanchadefuligememumadasbochechaseaindaestavacomovestidinhopreto.Apesardeossapatosjáteremdesaparecidohámuitotempo,seusolhosestavamacesoseincansáveis.
—Prometoqueelavai carbem.Elaprecisadescansar.Agenteprecisamuitodaajudadevocêsaqui.Porfavor,medigamqueeupossocontarcomvocês.
Aindaquerelutantes,elas zeramquesimeEloiseasmandousubiremparaselimparemdosangueetrocaremderoupa.
Enquantosubiamasescadas,oruídomedonhodasconsequênciasdatragédiaiasumindoaospoucosnosilêncioescurodaaladosdormitórios.JoseguravaamãodeAllie.AcabeçadeAllielatejavaeoestômagorevirava.Achavaquepodiavomitar.
Quandosesepararamnotopo,Jofalou:—Aquiéseguro,né?—Elanãoteriamandadoagentepracásenãofosse—respondeuAllie,massua
vozestavaincerta.
—Tudobem.Sejamuito,muitorápida.Euteencontronobanheiro.Allie abriu a porta doquarto lentamente e correu a lanternapara veri car que
estavavazio.Noescuro,elepareciaestranho—comosenãotivessequalquerligaçãocom ela, e seus pertences tivessem sido colocados ali a esmo. Ela correu até oarmário,agarrandoaroupaqueapareceuprimeiro.
Mais tarde, num banho frio e escuro, iluminado apenas por uma lanternaapoiadanossapatosemprestadosdeJo,elaesfregoufuriosamenteosanguedocorpo.O frio e a água desanuviaram sua cabeça, como se estivesse lavando todos osacontecimentosdanoite.Joesperoupelaamigapertodeumapia,balançandoaluzaoredordorecinto.Ocasionalmenteumachamavaaoutrasóporsegurança.
—Aindatáviva?—Sim.Evocê?—Achoquesim.Quandoacabou,Alliedeixouovestidobrancoestragadoeossapatosprateados
cintilantesnochuveiro.Ela e Jo correrampara o andar de baixo, onde a atmosfera depânicohavia se
transformadonumadesinistraeficiência.Fachos de lanterna esvoaçavam pelos corredores enquanto alunos carregavam
móveis queimados para fora do salão.Do lado de fora da porta dos fundos, umgeradorroncava rmementeecabospretosespessos seesticavamcomocobraspelocorredoratéosalão,ondeholofotesproduziamumbrilhoalienígenanoespaçoaindaemcombustãolatente.
Professores armados de pranchetas orquestravam o trabalho. Alguns secolocavam de pé sobre cadeiras e gritavam instruções, enquanto outros estavamrecolhidosaoscantosempequenosgrupossussurrantes.
JoeAllieestavamladoalado,examinandoorecinto.—Bom,achomelhoragenteacharaEloise—disseAllie,comavoztrêmula.Mas em vez da bibliotecária encontraram Isabelle empoleirada perigosamente
numa cadeira frágil de madeira, emitindo ordens calmamente para professores ealunosquetrabalhavamaoredor.Seuvestidobrancoestavamanchadode fuligem,masforaissoperfeito,apesardeocabeloterescapadodosprendedoreseestarcaídoemondassobreosombros.Pareceualiviadaemvê-las—principalmenteAllie.
Abaixouparapegarasmãosdamenina,eapuxoumaisparaperto.FalandotãobaixoquesóAllieconseguiaouvir,disse:
—Sintomuitoquevocêtenhatidoqueveraquilo.Vocêestábem?AoolharnosolhospreocupadosdeIsabelle,Alliefoivarridaporumatorrentede
emoçõescon itantes.QuischorarporRutheporsimesma.Quisabraçaradiretora
porseimportar.Emvezdisso,combateuaslágrimasefezquesimcomacabeçaparamostrar que estava bem. Dando um aperto nal nas mãos de Allie, Isabelle selevantoudenovo.
— Ok, vocês duas — disse a diretora, totalmente pro ssional outra vez.Entregando-lhesumapranchetacomumlápispenduradoporumacorda,continuou:—Precisotercertezadequenóssabemosondeestátodomundo.Aotodo,tem52alunosaquinessesemestre.Identifiquemtodosquepuderemencontrar.Procuremnaáreacentraldotérreo;nãoprocuremnasalasenemláemcima.Nãosaiamdoprédioemhipótesealguma.
UmgrupodeprofessoresseaproximoueIsabelleviroudecostasparalidarcomeles.
Inicialmente,Allie e Jo caramestressadas—estavamuito escuro e aspessoaspassavam por elas feito borrões. Mas depois bolaram um sistema, marcando osnomes de todos que já tinham visto, e então partindo para os alunos que nãoreconheciam.
Otrabalhoacalmouosnervosdasduas.Foramdesalaemsalariscandonomesda lista enquantoonúmerode alunosdesaparecidosdiminuía.Depoisdemaisoumenosumahora a eletricidade foi restabelecida, o que facilitou a tarefa.O cheiroamargodequeimadopermaneceu,masoarclareougradualmente.
Duranteaquilotudo,Allieteveumaestranhasensaçãodedistância—deestarseassistindonatelevisãoenquantoandavapelaescolafazendooquetinhaqueserfeito.Nãoconseguianemsentiraprópriaexaustão.Seucorposemovia,maselasesentiadesconectadadasações.
Quando o sol surgiu, cerca de 21 alunos da lista ainda não tinham sidoencontrados.EntreelesGabe,Carter,Sylvain,JuleseLucas.
—Ondevocêachaqueelesestão?—perguntouAllie.—NaEscolaNoturna.—Joesfregavaatestaesuavozsoavafatigada.—Eles
são todosdaEscolaNoturna.Procuramosemtodocanto, issoéomáximoqueagentevaiconseguir.Vamosláentregar.
Depoisdeprocuraremnasaladerefeiçõesenabiblioteca,acharamIsabellecomJerry e Eloise no salão vazio. O fedor de madeira e gesso queimados era forte eenjoativo.Aluzaindaestavaapagadaeogeradortinhasidodesligado.Estavaescuro,difícildeenxergar.Umaluzambientedesbotada,oriundadocorredor,brilhavasobreas partículas de fumaça que ainda dançavam pelo ar. Pareciam, Allie pensou,pequenos cristais negros. Dava para ver que uma parede estava completamenteescurecidaatéoteto.Pequenaspilhasdecascalhosaindaardiamsemchamasaquieali.Masforaisso,asalaestavamenosdanificadadoqueelaesperava.
IsabelleexaminoualistarapidamenteeaentregouaJerry,quearevisoueacenouafirmativamentecomacabeça.
—Obrigada,vocêsduas—disseIsabelle.—Fizeramumótimotrabalho.—Masaindatemmuitagentesumida!—protestouAllie.Isabelletinhaolheirassobosolhosavermelhados.PareciatãocansadaqueAlliese
sentiuculpadaporincomodá-la.—Nóssabemosondeelesestão,eestãobem—revelouela,colocandoobraço
emvoltadeAllie.—Nãosepreocupacomeles.—SãooscarasdaEscolaNoturna,né?—OsbraçosdeJoestavam rmemente
cruzadossobreopeito.—VocêsabequeagentenãopodeconversarsobreaEscolaNoturnacomvocê,
Jo.Mas imagino que também saiba a resposta da própria pergunta.—A voz deEloiseestavaaguda.
Josemantevefirme.—Desculpa, Eloise. Só acho que seria bom se nós fôssemos umpoucomais
honestosagoradoquenormalmentesomos.IsabelleapertougentilmenteoombrodeAllieeosoltouantesdesevirarparaJo.—Emuitosprofessoresconcordariamcomvocê—disse,parasurpresadeAllie.
—Masagoranóstemosquesobreviveràspróximas24horas.—Quantaspessoasforam...mortas?—AvozdeAllieestavapequena.—Uma,Allie.—AvozdeIsabelleestavacarregadade solidariedade.—Eeu
sintomuitoquevocêtenhatidoqueveraquilo.Sequiserconversarsobreoassuntocomalgumdenós...estamosaquiaqualquerhora.
Allie, que achava que não pudesse sentir nada, cou surpresa ao sentir umalágrimaescorrendoporsuabochecha.
Deondeveioisso?,imaginou,limpando-a.Desaída,JerryapertouseubraçoeEloiseaenvolveunumabraçocaloroso.—Aguentafirme,querida—sussurrouabibliotecária.Quandoosdoisseretiraram,JosevoltounovamenteparaIsabelle.—ComoestáaLisa?Agentepodeverela?— Ela ainda não acordou. O médico disse que precisa descansar. — Isabelle
olhou preocupada para elas. — Gostaria muito que vocês dessem um tempo efossemcomeralgumacoisa.Euachovocêsláseagenteprecisardevocês.
Apesar de ser difícil sequer imaginar comer, a insistência dela fez Jo e Alliedesceremocorredorescuro.Asensaçãonasaladerefeiçõeseradesilêncioeexaustão.Amanhecia e a luz entrava pelas janelas com uma alegria inadequada. Cansados,alunos sujos se sentavam ou dormiam na maioria das mesas — com pratos
semidevoradosnafrentedeles.Numdoscantosdasala,haviaumamesadebufêcompilhasaltasdesanduíches,egrandesjarrosmetálicosconservavamcaféechá.
Ficaramnafrentedamesa,olhandoparaacomida.Pareciaestranhoseimportaremcomeragora,masdepoisdefazeremosrespectivospratosencontraramumamesadesocupada; empurraram as xícaras e pires usados para terem espaço. Por algumtempo comeram num silêncio de exaustão. Jo sentou com as pernas cruzadas naposição de lótus, os cabelos louro-platinados afofados numa auréola desalinhada.Alliedobrouapernaparapôrumdospésnoassentoeapoiouocotovelonojoelho.Em repouso, seu rosto estava pálido e preocupado. Ela terminou o sanduíche eempurrouoprato.
—Oquevocêviu?—fezaperguntasemqualqueravisoprévio.Jopareceuconfusaporuminstanteeentãoarregalouosolhos.—Ontemànoite?Alliefezquesimcomacabeça.Jorepousouaxícaradechá,esuaexpressãosetornousombria.—Ai,Allie,foiumaloucura.Ondevocêtava?Primeirotavatudolindo,sabe?
Eu e o Gabe estávamos dançando, de repente fez um barulho, que nem umaexplosão, e as luzes se apagaram. Aí cou tudo muito confuso, porque tavatotalmente escuro, todomundo correndo pra onde achava que cava a porta e aspessoascomeçaramagritarquenãoconseguiamsaireaíderrubaramumamesaeofogo começou, e a fumaça foi... horrível. Horrível mesmo. Eu e o Gabe nosabaixamosprapoderrespirare zemostipoumasmáscarasdearcomguardanapos.Nós fomos pra longe do fogo, e aí ele disse que tinha que ir e ver o que tavaacontecendo,tipo,porqueaspessoasnãotavamsaindodosalão.Eaíele...sumiu.
Allieesperoupormais,masJoparou,quebrandoacascadopãoempedacinhos.—Eoqueaconteceu?—cutucouAllie.—Tavaescuro.Eusó...ouviagritoseafumaçaeraumhorror.Achoqueaporta
tavatrancada,algumacoisaassim,porquederepenteeuouviumabatidaeaíveiooar fresco,mas isso piorou o fogo.As pessoas começaram a apagar as chamas comáguaeextintores,aícomeçouadarprasairefoiquandovocêentrou.
Josuspirouedeumaisumamordidanosanduíche,masAllieviuqueelaagoraestavaseforçandoacomer.
—VocêviuoGabedepoisdisso?Jobalançouacabeçaeumalágrimacorreupelasuabochecha.—Eutôtentandonãoserboba.AEloisedissequetodosestãobem,entãoeletá
bem.Ésóqueele...melargouali.Numincêndio.ElaescondeuorostonasmãoseAlliepercebeuqueaamigaestavachorando.
—Ai,amiga...—Allieesticouamãoparaapertarobraçodelaetentoupensaremalgumacoisaparadizer.—Elesecerti couquevocêtavaseguraantes,nãofoi?Foiaprimeiracoisaqueelefez.Esabeoquemais?Elebotaféquevocêéforte,quesabetomarcontadesimesma.Eissoatéqueélegal.
Joconcordoucomacabeça,apesardeclaramentenãoestarconvencida,eentãofechouosolhoseinclinou-sesobrecotovelo.
—Estoutãocansada.AlliepuxouacadeiramaisparapertoeapoiouacabeçadeJoemseuombro.—Eutambém.Emmaisalgunsinstantes,asduasestavamdormindoabraçadas.
O barulho de movimento as acordou pouco tempo depois. O grupo da EscolaNoturnahaviavoltado.
Gabefoioprimeiroaatravessaraporta.Assimqueoviu,Jovooupelasalaeseatirounosbraçosdele.Desaparecerampelaportaconversandoaossussurros.
SylvainvinhalogoatrásdeGabe.Allie,quesentiaquenãotinhatidotempodeprocessaroquesepassaraentreelesnanoiteanterior,aindanãoestavaprontaparavê-lo. Abaixou-se no assento e encarou a xícara vazia, torcendo para que ele não anotasse.
Não tinha tido um segundo para pensar no que se passara entre eles na noiteanterior.Ousobrecomotinhaficadobêbadatãodepressa.
Aopensarnanoiteanterior,passouosdedosdistraidamentesobreocalombonacabeça.Estavamenor,masaindadoía.
QuandoCartereLucasentraram,algunsminutosdepois,Alliesentiuumaondadealívio.Ambospareciamcansadoseimundos—seusrostosmanchadosdesujeiraeoscabelosmolhadosdesuor.
EnquantoCarter fazia o prato e pegava um café, ela aindamantinha a cabeçabaixa,deformaqueelenãoanotou.MasLucasaviuimediatamente.
—AlgumanotíciadaLisa?—perguntou.Elabalançouacabeça.—Nadaainda.Oslábiosdelesecontraíram.—Eutômesentindopéssimopor...Euqueriasóterestadocomela.Percebendoquãodesgastadoederrotadoeleparecia,Allieoabraçou.—AIsabelledissequeelavai carbemeeuacreditonisso.—Elefezquesim
comacabeçanoombrodeAllie.—Émelhorvocêdormir,Lucas.Tácomumacarapéssima.
Lucasconseguiudarumsorriso.—Obrigado,Allie.VocêpareceoCarter,eletavamedizendoamesmacoisa.EnquantoLucasseafastava,AllieprocurouCarter.Estavasozinhosentadojunto
a uma das mesas mais afastadas com as pernas esparramadas. Comia com umaperfeiçãomecânica;olhos xosnoprato, comose realmentenãoquisessevermaisnada.
ElaesperouatéqueCartertivesseacabadodecomerantesdeiratéele.OdesgastedeixaraseurostotãovulnerávelqueAllieperdeuofôlego—pareciaummenininho.Masoolharcautelosoretornouquaseimediatamente.Puxandoumacadeira,elanãoesperouqueeleaconvidasseparasentar.
—Oi—disseAllie.—Oitambém.—AvozdeCarterestavadistante.Elaexaminouorostodele.—Tátudook?—Eutôbem.—Carterolhouparaela.—Tudook?Alliedeudeombros.—Eutôviva.—EusoubedaRuth...Elalevantouamãoporreflexo.—Nãoqueroconversarsobreisso.—Desculpa—disseele.—Aculpanãoésua.—AfastoudamenteimagenssombriasdocorpodeRuth.
—Ésóque...eunãoconsigofalardissoagora.Nãotôpronta.—Tudobem.—Tomouumgoledocafé.Umsilêncioseabateusobreeles.Allieesperoutrêsrespiradas.—Carter?—Quê?—VocêviuoPhil?Eletábem?Carterbalançouacabeça.—Não tá,não.Tá arrasado.Ele se culpapornão ter estado comela quando
tudoaconteceu,coitado.Vaivoltarpracasaporumtempo.Allieabsorveuestainformaçãoantesdefalarnovamente.—Sobreontemànoite...—Allie...—Carterlançouaelaumolhardealerta,maselaoignorou.—Eutavabêbada?Ou,seilá...drogada?Querdizer,eujá queibêbadaantes,e
euseicomose cabêbada,óbvio.Maseusótinhatomado trêstaças.Eeu...Bom,
nãoseiexatamenteoquedeuemmim.—Eutambémnãoseioquedeuemvocê,Allie.Seutomeradeacusação,eelaseinclinouparalongedele,ferida.—Ei.Issonãoéjusto.— Quer saber o que eu acho? — Seus olhos escuros brilharam de raiva
reprimida.—AchoquevocêbebeudemaiseconfiounoSylvain.Eutenteiteavisar.—Eu sei! Eu sei que você tentou.—Ela também estava com raiva,mas sua
raivaeradesimesma.—Aculpafoitodaminha.Eeusintomuitopornãoterteouvido.Fuiburra.Souumaidiota,tábom?Meperdoaagora?
Aexpressãodelesuavizou.—Olha,Allie,ésóque...eujátedisse issoantes.Vocênãotáaquihátempo
su ciente pra entender como as coisas são nessa escola. Só toma cuidado, tá? Ascoisasnãosãosempreoqueparecem.Aspessoasnãosãosemprequemparecemser.
ApesardeotomdeCarterestarmaisgentil,oavisoafezgelar.Que colégio é esse, a nal? Quem é essa gente? Uma sensação de preocupação
queimouseuestômago.Possocon aremalguém?AtémesmonoCarter?Elesemprefoitãoirritante,masseráquejámentiualgumavez?
ElaestudouaexpressãosériadeCarter,entãoesticouamãoetocou-lheobraço.—Obrigada,Carter.Surpreso,eleergueuumasobrancelha.—Peloquê?—Vocêmeioquemesalvoudaminhaburriceontem.Jáforamduasvezesem
24horas.Emalgunspaíseseutedeveriaminhavida,meuprimeirofilho,algoassim.Eleabriuumquasesorriso,maselaaindaviucertareservanosseusolhos.—Só...acreditaemmimdapróximavez,tá?Elafezquesimcomacabeçavigorosamente,mastudoquefaloufoi:—Tá.Aoseinclinarparatrásnacadeiraetomarumgoledocaféqueestavaesfriando,
elecerrouosolhoseos xouemalgumacoisaatrásdela.Allievirou.Dooutroladodasaladerefeições,Sylvainestavasentadosozinho,perfurando-oscomoolhar.Elapôdesentiraraivairradiandodelecomocalor.
Carterretribuiuoolhar,semseesquivar.—Ai,saco—Alliemurmurou.—Vocêvaiterproblemascomele—disseCarter,virando-separaela.—Eleé
poderosoporaquienãovai car feliz senão tiveroquequer.Eoqueelequerévocê.
EncarandoSylvaindestemida,Alliedisse:
—Quepena.Porqueelenãopodemeter.Chegando a cadeira para trás, ela se levantou e foi na direção em que Sylvain
estava sentado, na frente da sala. A expressão dele era intimidante, mas ela agoraestavasóbria.Inclinou-seatéqueasmãosseapoiassemnobraçodacadeiradeSylvaineseurostoestivesseapoucoscentímetrosdodele.
Aofalar,suavozsooucomoumsussurroameaçador.—Aquelefoiopiorencontrodaminhavida.Eentrenós.Acabou.Tudo.Elaesperouapenasosu cienteparacronometraroolharsurpresonorostodelee
entãosevirouparaaporta.Comocantodoolho,viuCartersorrir.
Ao subir as escadas para odormitório feminino, contou cadapasso.Chegando aoquarto,61passosdepois,abriuaporta.
Estava tudo como ela havia deixado horas atrás. As gavetas da cômoda aindaestavamabertas.Asroupasqueelaespalharapelochãoemsuaprocuraapressadaporalgumacoisaparavestirnomeiodamadrugadacontinuavamlá.
Respirandofundo,deuopassodenúmero62paradentrodoquartoeiniciouoprocesso de fazê-lo parecer seguro de novo. Primeiro pegou e guardou as roupas;depois organizou a já organizada escrivaninha e fechou a porta do armário.Finalmente,quando tudoestavaperfeito, fechouapersianaparabloqueara luzdodia, tirou os sapatos e deitou por cimada colcha.Estava totalmente exausta.Mastambémestavaelétricademaisparaconseguirdormir.
Por meia hora virou de um lado para outro enquanto os eventos da noitegiravam em sua mente como os dançarinos do baile.Quem matou a Ruth?... OCarterdevemeacharumavagabunda...Eutavabêbada?AJodissequeochampanheeraforte...MasaRuthtava...Elatava...
ImagensescuraseborradasdocorpoensanguentadodeRuthlhecausaramânsiadevômitoeelasesentouderepente,comocoraçãoaceleradoeasmãosmolhadasdesuor.
Nãoconseguiarespirar.Ar.Precisodear.Saltandoda cama, cambaleou até a escrivaninha e abriu a janela.A luz do dia
inundouoquartoeelarespirouengasgadaoarfresco,caloroso...—Ai!A voz do lado de fora da janela a assustou tanto que ela quase caiu da
escrivaninhaaochegarpara trás.Agarrandoa cadeira como se isso fosseprotegê-la,respiroucomdificuldade.
—Quem...?
—Allie?Oquehouve?—Carter?—elaarfou.—Que...diabos...você...?Ignorandoapergunta,eleesticouobraçopelajanelaeapuxouparaperto—o
corpodeladeslizou com facilidade sobre amadeirapolidada escrivaninha; elanãoteveforçapararesistir.
OsolhosnegrosdeCarterestavamsériosaoobservá-lalutandopararespirar.—Lembraoquevocê feznaquelaoutranoite?Precisa fazeroutravez. Inspira
pelonariz.Lentamente.Eexpirapelaboca.Allietentouassimilaroqueestavaacontecendo.—Vocêtava...meespionando...?Eleaencarou.—Porra,Allie.Quercalarabocaerespirar?Comosolhosnosdele,asmãosdeCarteragarrandoassuas,Allierespirouem
sincronia com ele, asperamente no início, e gradualmente com mais facilidade.Quando ela parecia estar respirando normalmente, ele a soltou e as perguntasexplodiramdela.
—Vocêéumcompleto tarado?Comofoiquesubiuaqui?Ecomoéqueachouomeuquarto?E...
Sentadonoparapeito,Carterriuelevantouasmãos.—Ah,Allie,eumoreiavidatodanessaescola.Conheçocadacentímetrodaqui.
Inclusiveotelhado.Onde,aliás,ébemfácilsubir.Ficomeiosurpresodevocêaindanãotertentadoisso.
Allieprocurouqualquer sinaldequeele estivessementindo,masnãoviunadaalémdeexasperação.
—Vocêveiodoseuquarto?—Elafezumapausa,olhandoemvolta.—Ondeéoseuquarto,aliás?
Carterapontouparaooutroladodaconstrução.—Olha,odormitóriomasculinoénoúltimoandardoprédioprincipal.Minha
janelaéaterceiraalinoandardecima,távendo?Alliecontouasjanelasdosquartosefezquesim.Orapazsevoltounovamente
paraela.—Éfácilirdaquipralá.Derepenteelateveumalembrançadealgumassemanasanteriores.Encarou-o.—Vocêjáveioaquiantes.—Otomeradeacusação.—Logoqueeuvimpra
cá,euachoqueouvialguémforadaminhajanelaumdiademadrugada.Foivocê,nãofoi?
Eleteveadecênciadeparecerconstrangido.
—Ai,cacete.Nãoacheiquevocêtivesseescutado.Desculpa.—Vocêmematoude susto,Carter—disseela.—Oquevocê tava fazendo
aqui?Eleseencolheudesconfortavelmente.—Eu...naverdadetavaindoveroutrapessoaevocêabriuajanelaequaseme
derruboudotelhado.Nãosouumvoyeurnemnadaassim.Lembrando-se do alerta de Jo, sobre ele partir os corações das meninas, Allie
imaginouquemeleteriaidoencontrar.Examinou-o,especulando.Quemdiabosévocê,afinaldecontas,CarterWest?Tê-lonadefensiva fez comque ela se sentissemaisno controle.Ela cruzou as
pernaseapoiouoscotovelosnosjoelhos.—Entãoporquevocêtáaquiagora,Carter?Indoveroutrameninadenovo?Ogarotoseinclinounamolduradajanela,evitandoosolhosdeAllie.Aofazê-
lo,deslocouumapedradorebordoeelaaouviubateratéochão,atrêsandaresdali.—Não.Claroquenão.Nãoénada.Só quei...preocupadocomvocê,seilá—
disse a nal.—Foiumanoitehorrível e você temessas crisesdepânico, então eusó...sabe?...fiqueipreocupado.
Osdois caramseolhandoporuminstante,masosolhosdeCartereramtãoin nitamente escuros que pareciam evocar imagens dos eventos terríveis da noiteanterior.Elacobriuorostocomamãoparabloqueá-las.
—Eunãoparode ver aRuth edeme lembrar...Foihorrível,Carter.Muitohorrível.Tavaescuro,masdeupraverqueagargantadelatavacortada.Tinhatantosangue...Edepoisospassos.Euacheiqueeuiaserapróxima.
—Quepassos?QuandoAllie levantouoolhar,Carter estavaolhando xamentepara ela.Pela
primeira vez lhe ocorreu que, com todo o caos, não tivera chance de contar aninguémoquetinhaacontecidoláfora.
Depoisdeficaremdiacomahistória,eleinsistiunospassosqueelaescutara.—Vocêtemcertezadequeospassosvieramdedentrodaescolaedepoisforam
pralonge?Alliefezquesim.DavaparaverqueamentedeCarterestavatrabalhando.—Quantospassosvocêouviu?Assim,quantaspessoasvocêachaqueestavamlá?
—perguntouele.—Uma, eu acho,mas não sei bem. Eu tava assustada demais. Carter, quem
podeterfeitoisso?Vocêachaquepodetersidoumaluno?Ou...umprofessor?Atéagora,aideianãohavialheocorrido,masderepentetudoestavaparecendo
assustadoramentepossível.Torciaparaqueelerissedela,oudissessequeestavasendo
boba.Masnãofoioqueelefez.Emvezdisso,eleesfregouosolhos.—Nãosei.Achoquenão...masnãoseimais.— Por que não me mataram também? — Sua voz estava lamuriosa ao
nalmentedizeraspalavrasquevinhaevitandodesdeanoitepassada.—Porqueeucontinuoviva?
Carterolhouparaoterrenodaescola.Nãofalounadaporumlongoinstante.Aofazê-lo,suavozestavaáspera.
—Nãosei,Allie.Masseforpossívelqueoassassinotenhatevistoetalvezachequevocêoviu...Bom.Vocêprecisatomarmuitocuidadoapartirdeagora.
Amanhãestavamorna,masAllieestremeceu.Reduziuavozaumsussurro.—Carter,oquetáacontecendo?Osolhosdelese xaramnosdelaeelasentiuoquantoelequeria falaralguma
coisa,masomomentopassoueelebalançouacabeça.—Nãoposso,Allie.Nãoposso.Ela estava tão cansada que não aguentava discutir — há quase dois dias não
dormiadireito.Apoiandoacabeçanamãoefechandoosolhos,elabocejou.—Euquero caracordadaecombaterassassinos,masestoucansadademais—
murmurou.—Émuitoruimestarsozinhaagora,Carter.Queriaquevocêpudesseficar.
Umlongosilênciopairousobreeles,maselacochilouumpoucoenãopercebeuatéCarterfalarnovamente.
—Chegapralá—disseele.Ela abriu espaçopara ele por cimada escrivaninha, ele entrouhabilmente pela
janelaeentãoafechou.Umaondasúbitadeadrenalinaafezsesentirmuitodesperta.—AgentevaiseencrencarmuitoseaJulesdescobririsso—disseela,apesarde
nãoseimportar.—Ah,eusei lidarcomaJules—comentou.Sentando-senochãoao ladoda
cama, ele esticou as pernas com um resmungo de prazer; sua forma esguia caracomprimidanoparapeitoeeledeviaterpassadoanoite inteiracorrendo.—Alémdomais,hojetáumaloucura.Ninguémvaiperceber.Deitanacamaevamostentardormir.
Após um segundo de hesitação, Allie desceu da escrivaninha e subiu na cama.Fingindoindiferença,puxouocobertorazuldopédacamaeentregou-oaele.Masquandoosdedosdeambossetocaram,osdoiscongelaramporumsegundo.
—Precisadeumtravesseiro?—perguntouela,forçandoavozasoarfirme.
—Obrigado,não,assimtábom.—Elesoavacalmo,maselaviucomoestavacomamandíbularijaaodesdobrarocobertor.
Allie se espreguiçou e tentou relaxar, mas seu corpo estava duro — todos osmúsculostensos,comoseestivessemprontosparalutar.Colocouasmãosnorosto.
—Nãoconsigofazerisso.Eununcavoudormir.CarterlevantouumadasmãosdeAlliedorostoeficousegurando-a.—Játeconteiqueeutinhacrisesdepânico?Surpresa,Allierolouparaoladodemodoqueconseguissevê-lo.—Tinha?Quando?—Algunsanosatrás.—Eleestavadeitadodecostas,olhandoparaoteto.—Eu
tavapassandoporumperíododifícilecomeceiateresses...momentos.Umamigomuitobommeajudou.Eumacoisaqueelemeensinoufoiaparardepensarnoquetavameenlouquecendoeemvezdissomeconcentraremcoisasquemedeixavamseguro.Até... feliz.A forçarpensamentosmelhoresnaminhacabeça.Oque te fazfeliz,Allie?
Elapensoumuito.OChristopher,vivo,bemenormal.Fazerpartedeumafamílianormal.Estaraqui.Pelomenosatéontemànoite.
—Nãosei—sussurrou.Carter couquietoporumtempo,segurandoamãodelanopeitodele.Quando
falounovamente,elasentiuavibraçãodavozatravésdaspontasdosdedos.— Imagina... que a gente está em outro lugar. Algum lugar muito bonito.
Talvezemumapraiacomareiabrancaeáguaazul.AllietentouseenxergarcomCarteràsombradeumapalmeira,comareiaentre
osdedosdospés.—Aqui você tá segura—eledisse, coma vozbaixa e rme.—Talvezmais
tarde a gente possa fazer snorkel e ver os peixes nadando. Peixes coloridos. Estávendo?
Concentrando-se nas palavras dele, imaginou poder enxergá-los passando pelaáguacristalina.Começouaouvirorumorrítmicodasondas.AvozdeCartereratãocalmante que seus ombros relaxaram a nal, enquanto cardumes brilhantes depeixinhos tropicais azuis, vermelhos e amarelos se espalhavampor sua imaginação.Sua respiração foi candomais uniforme. Sentiu-se afundandona águamorna—lentaedeliciosamente.
—Élindo.—Estavacomavozpesadadesono.—Ésim—eledisse,aindasegurandosuamão.Mentalmenteemergiudaáguaeviuumnavionohorizonte,comvelasabrindo
enquantocaíanosono.
Q
DEZESSETE
uando Allie acordou, algum tempo depois, estava sozinha, mas tinha asensação nada desagradável de que Carter tinha estado com ela durantequase todo o tempo. Tinha meio que acordado diversas vezes com
pesadelos,enotorporexauridoteveaimpressãodetê-loouvidosussurrar:—Estátudobem.Dorme.Sentando-se,olhouparaodespertador.Faltavampoucoparaassete.Damanhã?Oudanoite?Uma olhada para a janela revelou uma noite de verão.Tinha passado o dia
inteirodormindo.Aoesticarosmúsculos fatigados,suabarrigaroncoutãoaltoquede inícionão
entendeuoqueestavaouvindo.—Morrendodefome—anunciouparaoquartovazio.Saltandodacama,foidiretoparaaporta,eemseguidafreouaosevernoespelho
daparede.Estavacomoscabelosarrepiados,orostomanchadodefuligemeusandoas mesmas roupas que vestira no meio da noite, agora quase irreconhecivelmenteamarrotadas.
Fezumacaretaparasimesma.Ai,droga.Nemeupossosairdessejeito.Pegando uma escova da mesa, forçou-a pelos emaranhados os ondulados,
pulando em um pé só e praguejando para si mesma quando a saia prendeu nossapatosquetinhacalçadoantes.
Aindaabotoandoocinto,correuparaforadoquarto,parandobrevementediantedoespelhoparaesfregarafuligemdorosto,eseapressoupelocorredorvazioatéoprimeiroandar,ondeparou.
Estavaquieto.Estranhamentequieto.Umpensamentohorrível cruzou amentedeAllie:e se todomundo foi embora
enquantoeuestavadormindoesóesqueceramdemim?Apesardesaberqueeraumaideiaabsurda,sentiuumaondademedoaocorrer
pelas escadas vazias, ouvindo apenas o barulho da borracha dos seus sapatos nosdegraus.Mas,aoseaproximardotérreo,viugruposdealunossemovendoemum
silênciotristonhoemdireçãoàsaladerefeiçõesedesacelerou.Sesentiuridícula.Claroquenãotinhamidoembora.Você está sedescontrolando , repreendeu-se, antesde respirarpara se acalmar e se
juntaràmultidão.O cheiro de comida se misturava desagradavelmente ao odor pungente de
madeiraegessoqueimados.Aoolharemvoltaàprocuradeumrostofamiliar,notouquemuitosqueacercavamtinhamcurativosvisíveis.Umdelesestavademuletas.
Nasaladerefeições,abagunçadanoiteanteriorjáhaviasidoremovida,masasmesasnão forampostasparao jantar comos cristais e as louçasde sempre.Haviapilhasdepratos sobre todasasmesas,eosalunosestavampassando-osunsparaosoutros.Nenhumavelabrilhava(depoisdoincêndio, coufelizporisso).Todossesentavamquietoscomoseninguémsoubesseexatamenteoquedizer.
Notou aliviada que Jo, Gabe e Lucas estavam à mesa habitual, e se dirigiudiretamenteparaeles,masentãoCarterfoiparapertodela.
—Oi.Ao virar para olhar nos olhos escuros de Carter, seu estômago revirou.
Repentinamentetímida,enfiouasmãosnosbolsosdasaia.—Oipravocêtambém.—Dormiubem?O rapaz tinha tomado banho e mudado de roupa — ainda estava com as
bochechasrosadasporcausadaáguaquenteeoscabelosestavamúmidosnaspontas.Ocansaçohaviadesaparecidodorosto.
Allie concordou com a cabeça, tentando permanecer calma, como semeninosdormissememseuquartotodososdias.Masocalorsubiuàsbochechas,traindo-a.
—Evocê?Quehorassaiu?—Umahoraatrás,maisoumenos.Cartertinhaumamaneiradefalartãoquietaqueelafoiforçadaaseinclinarpara
pertodeleparaescutar.Faziaatéconversascomunspareceremíntimas.—Precisavatrocarderoupa—prosseguiu.Allieestavacompletamentecientedo
fatoqueseubraçoestavaesfregandonodele.—Nãoquisteacordar,vocêdemoroutantopradormir.
Atensãoentreosdoiserainsuportável.Umdelesteriaquedesviaroolhar,masAllienãoqueriaquefosseela.
O que está acontecendo comigo?, imaginou.Não posso gostar do Carter.Simplesmente...nãoposso.
—É—concordouamenina,semfôlego.—Querdizer...eutambémtivequetrocarderoupa.
Olhandoemvolta,Carterpercebeuquequasetodomundojátinhasentado.—ÉmelhoragenteirouoZelaznyvaicomeçaragritar.Eleaconduziuatéamesaeesperouatéqueestivessesentada.Emseguida,para
surpresadeAllie,puxouacadeiraao ladodela.Carternunca sentavacomogrupodelanasrefeições,eagarotatentounãodemonstraroquantoficoufeliz.
Gabenãoteveosmesmosescrúpulos.— Carter! — disse, inclinando-se para trás na cadeira com um sorriso
provocador.—Quantahonra.Carterdeudeombros.—Ah,sabecomoé,Gabe.Àsvezesprecisoficarpertodevocê.Jo,queaindapareciacansada,seinclinounadireçãodeAllie.—Vocêdormiu?—Acabeiconseguindo—respondeu.—Evocê?— Na verdade não. — Jo sorriu um sorriso cansado. — Mas acho que tô
morrendodefome.Issofazdemimumamápessoa?—Esperoquenão—respondeuAllie.—Parecequemorteedestruiçãocausam
impactonegativonumadietadebaixacaloria.Quempodiaimaginar?—AlguémtemnotíciasdaLisa?—perguntouCarter.FoiLucasquerespondeu.—EncontreiaEloiseháumahoraeeladissequeaLisaestáacordadaebem.A
gentedevepodervisitá-laembreve.Allie se sentiusorrirpelaprimeiravezdesdeanoitepassada.Aatmosfera cou
maisleve,eporumtempoaconversafluiuquasenormalmente.EntãoavozdeLucassedestacouentreosmurmúrios.—Ei,todomundoficousabendodoanúncio?Allieolhouemvoltadamesa,maspercebeuqueninguémsabiadoqueeleestava
falando.—Queanúncio?—perguntouCarter.—AIsabellevaifazeralgumaespéciedegrandeanúnciohojeànoitesobreoque
aconteceu.Tácorrendoumboatodequevãomandartodomundopracasaefecharocolégioatéofimdoverão.
— Não! — Jo pareceu arrasada e Allie olhou para ela, surpreendida pelaveemênciado tom.Gabe colocou amão em seuombro e elaolhoupara ele comolhostranstornados.—Nãopodemmandaragentepracasa.Nãopodem.
—Tenhocertezadequenãovão.—AvozdeGabeera tranquilizanteeAlliedesviouoolharenquantoeletentavaacalmaranamorada.
Asportasdasaladerefeiçõesseabrirameosfuncionáriossurgiramcomostrajes
pretoshabituais, carregandovasilhase travessasqueemitiamvapor.Apesardeestarmorrendodefome,Allieassistiucomumestranhodesinteresseenquantocolocavamacomidanamesa.Comerparecia,decertaforma,tãosempropósito,depoisdetudoqueacontecera.
Sentindoumamovimentação,olhouparabaixoeviuCarterservindoensopadonopratodela.Encontrouoolhodelaesorriuculpado.
— Hmmm... Ensopado delicioso — disse debilmente, e ela se surpreendeurindo.
Carterserviualgunslegumesemseguida,masquandolheentregouumpão,elalevantouasmãos,serendendo.
— Tá bom, tá bom. Para. Vou comer. Prometo. — Deu uma garfadaobediente,mastigandocomfalsoentusiasmo.—Satisfeito?
Ocupado limpando o próprio prato,Carter ignorou o sarcasmo.Aliás, aquelaprimeira mordida foi muito boa, e Allie viu que a segunda desceu com maisfacilidade ainda.No mdas contas, esvaziouoprato e limpouo restodomolhocomopão.Emseguidasentouparatráscomumsuspirosatisfeito.
—Vocêrealmenteestavacomfome—Carterobservou,entretido.—Meuirmãosemprefalaqueeucomoquenemummenino...—Alliefalou
sempensar,eseusorrisofoiemboratãodepressaquantochegou.NuncafalavasobreChristopher.
Omurmúriona sala aumentougradualmentenamedida emqueosboatos seespalhavam sobre o anúncio iminente, e Allie se sentiu aliviada por as coisasparecerem ligeiramente mais normais, ainda que apenas momentaneamente. MasolhouemvoltadamesaeviuqueJopareciaabatidaepreocupadaenquantomexianacomida.Antesquepudessedizerqualquercoisaaela,umavozfaloudafrentedasala.
—Atenção,porfavor.Trajandocalçaspretaseumcasacoazul-claro,Isabelleesperouatétodomundo
caremsilêncio.Ohomemcomquemeladançarananoiteanteriorseencontravaaalgunsmetros dela, com asmãos cruzadas em uma posição de calma. Seus olhosalertaspareciamnotartudo.EntãoAlliesentiuocoraçãoacelerar—Sylvainentroupelaportaeficoupertodela,comosefossepartedeumtriunvirato.
Oqueeleestáfazendo?O rosto de Isabelle estava sombrio, mas Allie cou maravilhada pelo quão
normalelaparecia.— Sei que muitos de vocês passaram a noite em claro, e entendo que estão
cansados.Tambémagradecemosmuitopelosesforçosemapagaroincêndio.
Allie olhou para Carter e viu que ele estava tando Isabelle com uma ligeiracarranca.
— O que aconteceu ontem à noite foi algo sem precedentes na história daCimmeria— prosseguiu Isabelle.—É algo perturbador e que vai exigir bastantetrabalhodanossaparteparareajustarascoisas.Oincêndioporsi sócomprometeuparedes muito antigas. Pedaços da nossa história se foram para sempre. Mas nósvamosrestaurarestaescola,nãotenhamdúvida,eelavaicontinuarcomosemprefoi.
Aplausoshesitantesdosalunosparecerampegá-ladesurpresa,eIsabelleesperouquecessassem.
—Lamentomuito que os eventos de ontem à noite tenham acontecido. Foichocantepara todomundo.Somos solidáriosàquelesqueerampróximosdeRuthJanson, eraumamenina adorável, aindaqueperturbada, e sentiremosmuito a suafalta.Seusuicídiofoiumchoqueterrível.
Allieengasgouecobriuabocacomamão.Suicídio?Doqueelaestáfalando?—Sabemosque algunsde vocêspodem terproblemas em lidar comamorte
dela, e estamos todos, os professores e eu, prontos para ajudar a qualquer hora seprecisarem de aconselhamento ou alguém para ouvi-los. — Os olhos de Isabelletransbordavamcompreensão.—Nãoprecisamsofrersozinhos.
UmmurmúrioatravessouorecintoeAlliepercebeuquealgunsalunosestavamchorando.VirandoparacapturaroolhardeJo,viuqueameninaestavamordendoolábioetentandonãochorar—Gabeaindaestavacomobraçoemtornodela.
—Haveráumamissanacapelanasemanaquevem.Tenhocertezadequeosqueaconheciambemvãoquerercomparecer.
Apósesperaruminstanteparaquetodasaquelasinformaçõesfossemabsorvidas,Isabellecontinuoumaisrapidamente.
—Algunsalunosferidosnoincêndiovãonosdeixaramanhãparaserecuperarememcasa,edesejamostudodebomaeles.Esperamosvê-losdevoltanooutono.Paraaquelesquevãocontinuarnaescola,asobrasdereparaçãodevemdemorarcercadeummês, e temoquehaverá algum transtornonesseperíodo.É incômodo,porémnecessário.Osalão,obviamente,estáproibidoporenquanto.
Isabelledeuumpassoparatrás.—Enquantoisso,otoquederecolherserámaiscedoestanoite;queremostodos
devoltaaosrespectivosquartosatéasnove,eterãoquepermanecerdentrodaescolaotempotodo,pelomenosaolongodaspróximas48horas.
AssimqueIsabelleterminoudefalar,osprofessoresseagruparamaoseuredoreosalunoscomeçaramasedirigirparaaporta,imersosemconversassussurradas.
VirandoparaCarter,Alliesussurrou:
—Quediabos...?Comoslábioscerrados,elebalançouacabeça.OlhandoparaIsabelle,Allieselevantou.—PrecisodescobrirquandovamospodervisitaraLisa.Eualcançovocês.Carterapegoupelobraço,eseusolhoscontinhamumaviso.—Allie...—Consigodarconta—disse,sacudindoamãodele.—Prometoquenãovou
terumataque.QuerosabersobreaLisa.—Teencontrodepois—prometeuCarter,seapressandoatrásdeGabeeLucas.Na beira do grupo de professores, Allie esperou um intervalo na conversa.
Estavam claramente agitados, mas sussurravam tão baixo que ela só conseguiaidentificarumafraseaquieali.
—Perigosodemais...—Mandatodomundopracasa!—fraseditacomgrandeveemênciaporJerry,
quefoirepreendido.—...sobreoNathaniel.EntãoEloiseanotouali.—Podemosajudar,Allie?Todossecalaramaovirarparaolharparaela.Alliecruzouumtornozeloatrásdo
outroemgestoinconscientedenervosismo.—SóestavapensandoseagentepodeveraLisa...IsabelleatravessouogrupoeenvolveuAlliecomumbraço.—Elatábem,Allie.Estáacordada,masumpoucogrogue.Vocêpodevisitá-la
amanhã.Allie sustentouosolhosde Isabellede formadesa adora.Deperto, elaparecia
maisansiosadoqueaparentaraadistância—estavacomolheiras.Masadiretoranãoseesquivoudoolhardamenina.
—Precisademaisalgumacoisa,Allie?—perguntoucalmamente.Por apenas um segundo, Allie se imaginou dizendo “Preciso! Por que você está
fingindoqueaRuthcortouaprópriagargantadeorelhaaorelha?”MasalgolhedissequenãoeraahoraenemolugarparadesafiarIsabelle.—Não...obrigada—respondeuela,seapressandoparaaporta.Logoantesdechegaràsaída,ouviuossussurroscomeçaremoutravez.
Doladodeforadasaladerefeições,Joestavasozinha,apoiadacontraaparede.Parecia menos pálida do que durante o jantar, mas Allie não gostou da maneiracomoelaabriaefechavaasmãos.
JopareceusealegrarumpoucoquandoAlliedeuaboanotíciasobreLisa,masalgumacoisaaindaestavaerrada.
Enquanto as duas subiam as escadas para a ala do dormitório feminino, AllieviroueviuJoolhandoparabaixo,quasechorando.
—Oquefoi,Jo?—perguntou.—Oquetáacontecendo?—Nãoénada,Allie—respondeuela,semolharnosolhosdeAllie,eamenina
sabia que Jo não estava falando a verdade,mas não achou que insistir no assuntofosseajudar.
QuandochegaramaoquartodeJo,Allieentroucomela, repentinamentecommedodedeixaraamigasozinha.Algumacoisaestavaterrivelmenteerrada.Josentouna cama, tirandoos sapatos damaneira habitual,mas estava apertando as própriasmãos.
Allieseinclinouparatrásnaescrivaninha.Falouemumtomcalmo.—Jo,temalgumacoisaqueeupossafazer?— Preciso falar com o Gabe — falou Jo, e em seguida repetiu a frase de
maneirasdiferentes.—Eusó...precisofalarcomoGabe.PrecisoveroGabe.—MasagenteacaboudedeixaroGabe—disseAllie,confusa.Jobalançouacabeça.—Preciso falar com ele sozinha.Estou tendoumataque.Ele vai saber o que
fazer.Examinandoorostopálidodaamiga,Allietomouumarápidadecisão.—Tudobem,não sepreocupa.Euachoele.Me fazumfavoredescansaum
pouquinho,tudobem?Vocêdormiualgumahorahoje?—Maseunãotôcansada—disseJo,sentandonacama.—Tôligadademais
pradormir.—Eutambémestava—disseAllie.—Mastenta, tudobem?Deitaeeu co
aquiatévocêdormir.EuachooGabe,prometo.—Precisofalarcomele.—AvozdeJoestavaarrastadadeexaustão.Seusolhos
se fecharam, mesmo enquanto uma lágrima escorria pela lateral do rosto.Finalmente,elaseapoiounostravesseiros.
—Sódescansaumsegundo—pediuAlliesuavemente.Elaestavapertodaportaaberta;abrisaaindaestavafresca.—VouacharoCartereeletrazoGabeaqui.
—ComovocêvaiacharoCarter?—AvozdeJoestavasonolenta.Olhando pela janela para as sombras compridas na grama abaixo, Allie
respondeu:—EusempreachooCarter.
Quando a respiração de Jo estava rme e regular, Allie fechou silenciosamente ajanelaeapersiana.Emseguidasaiunaspontasdospés,fechandoaportaatrásdesicomumcliquequasesilencioso.
Lá embaixo, encontrou o térreo praticamente vazio. Todos os alunos queestavam por ali tinham desaparecido para os respectivos quartos. Ela não sabia aocertoporondecomeçaraprocurar—nunca tinha idoaodormitóriomasculinoenemsequer tinhacertezaquantoacomochegar lá,excetopelo telhado,oquenãopareciaumaboaideiaagora.
Naquele instante ouviu um barulho estalado pelo corredor e viu Julescaminhando com determinação, com uma prancheta contra o peito. O barulhovinhadassandáliasbatendoacadapasso.
Lembrou-sedaspalavrasdeJoaoperguntarsehaviameninasnaEscolaNoturna.“TalvezaJules...”
Alliesecolocounocaminhodamonitora.—Oi,Jules.Tudobem?—Utilizouseutommaisamigável,eJulespareceuum
poucoespantada.—Oi,Allie.—Eladesacelerou,masnãoparou,eAllieaacompanhou.—SabeondeoGabeeoCarterestão?—Porquê?—perguntouaoutra,desconfiada.Allietentouumaabordagemgentil,porémchateada.—Éumahistórialongaelouca,masoCarterestácomumacoisaminhaeeu
precisodela,eaJoachouqueelepudesseestarcomoGabe.Vocêsabe?Tipo...ondeelesestão?
JulesexaminouorostodeAllie.—Não—respondeufriamente,apressandoopasso.Praguejandoemsilêncio,Alliecorreuatrásdela.—Olha,Jules.Émuitoimportante.Eunãoperguntariasenãofosse.Julesparouevirouparaela.—Eles estão numa reunião na ala das salas onde você não pode entrar, tudo
bem?Massevocê carpertodaporta,provavelmentevaiencontrarcomelesquandosaírem.Poroutrolado,eunãofaçoideiadequantotempovaidemorar.
Aessaaltura,Alliequeriasacudi-la,masnãoiadesistir.—Então—disseela,desenhandoumalinhanochãocomodedãodopé—,
aondevocêtáindo?Colocandoapranchetaembaixodobraço,Julesfingiuumapaciênciaexagerada.—Oquevocêquer,Allie?— Só que se você estiver indo pra essa reunião, podemandar o Carter aqui.
Agora?Oudizpraelequeeutôesperandoaquiequeprecisofalarcomele.Émuitoimportante.
Comcaradequenãoconseguiaacreditarnoqueacabaradeouvir,Julescomeçouaandaroutravez.
—Claro,Allie.Querqueeutragacháechocolatedelá?A nal,nãotenhonadamelhorprafazerhojedoquesersuamensageira.
Ficandoparatrásdela,Allielevantouodedodomeioparaascostasdamenina.— Não, obrigada — disse, com a voz alegre e rme. — Posso pegar meu
própriochá.AvozdeJulesflutuouemretornoquandoameninadobrouaesquina.—Queótimo.Apoiando-senaparede,comosbraçoscruzadossobreopeitoeasoladeborracha
deumdossapatosencostadanoantigopaineldemadeiraatrásdesi,Allieesperou.Depoisdedezminutosescorregoupelaparedeesentounochão,cruzandoaspernas.Naquela posição, a mesa barroca com topo de mármore que estava perto dela aescondia,assimIsabellenãoaviuquandopassouaoseulado,acompanhadaporseuparceirodedança,algunsminutosdepois.
— ... ela precisa saber que oNathaniel tá fora de controle.—Sua voz estavageladaderaiva.—Nãodápraaceitaroqueaconteceuontemànoite.Elatemquefazeralgumacoisaa respeito.Pelomenosescolherumlado.MeuDeus,Matthew,pessoassemachucaram.Criançassemachucaram.Issonãopodecontinuar.
Matthew murmurou em resposta alguma coisa que Allie não conseguiuidentificar.
—Bem,entãovocêvaiterqueseencontrarcomelapessoalmente—Isabelleseirritouenquantoosdoissaíamdoseualcanceauditivo.
As palavras da diretora provocaram um efeito eletrizante em Allie, que seinclinouparaafrentea mdeespiaremvoltadaspesadasbasesdemadeiraesculpidadamesa.
Entãonãofoiumprofessorenemumaluno,a nal.Alliepuxouosjoelhosparapertodocorpoeosabraçouenquantoumaestranhasensaçãodealíviocaíasobreela.Pelomenosoassassinonãoeraalguémqueconsideravacomoamigo.
Maispassos.AllieseinclinououtravezeviuCarterporperto,olhandoparacimaeparabaixo
docorredoramplo.Levantou-seaostropeços.—Carter.—Allie!Aconteceualgumacoisa?AJulesdissequevocêtavameprocurando.
Alliequasesorriu.Nãoacredito.Elafaloupraele.Aproximou-sedeCartereabaixouavoz.—OGabetánessareuniãoquevocêestava?Carterassentiu.—EleprecisairproquartodaJo,elaestátendoumataque—revelouAllie.Carternãopareceusurpreso.—Voufalarcomele.Viquetinhaalgumacoisaerradaduranteojantar,elenão
queriadeixarelasozinha,mas...OsolhosdeAllieestavampreocupados.—Elatámuitoestranha,Carter.Nãopareceela.— Eu disse pra ele que isso ia acontecer. — Fez-se uma pausa enquanto ele
pareciatomarumadecisão.—Allie,agenteprecisaconversar.—Claro.Oquefoi?Carterolhouemvolta.—Não,emparticular.Podemeencontrarnacapeladaquiavinteminutos?Allieoolhoudesconfiada.—Agentenãopodesairdaqui,senãopodemosprovocarafúriadeIsabelle,ejá
passadasnove.—Éahoraperfeita—declarouCarter.—Todomundotáemreunião,oujá
voltou pro quarto por causa do toque de recolher. Os professores estão todosdistraídos.
Alliepensou emdizernão.Aúltima coisaqueprecisava eradeumadetenção.MasCarterpareciamuitodeterminado.Torceuparaqueoquequerqueeletivesseparafalarexplicassepartedoqueestavasepassando.
—Tudobem,masseeuforexpulsavoudedurarvocê.Apesar de os lábios dele terem se curvado em um sorriso, seus olhos estavam
sérios.—Ótimo.Tevejolá.MedáunsdezminutospraavisarproGabedaJo.Depois
corredepressa.Enquantoeleseafastava,Alliemurmurouparasimesma:—Correrdepressa?Penseiquevocêtivesseditoquetodomundoestavaocupado
demaispraperceber.Elamarchoudeum ladoparaooutro impacientemente (391 passos) enquanto
esperavaosdezminutospassarem.Depoisdeoitominutos,elacomeçouasedirigirparaaportadafrente(33passos)comumaindiferençacasual.Aentradaestavaquieta,masquandosuamãotocouamaçanetadaporta,ouviuvozesvindopelocorredor.
Alémdos grandes suportes de velas e das tapeçarias, havia pouconeste espaço,
excetopor umamesade ferro forjado coberta por um tecidopesado.Allie correuparatrásdamesaexatamentequandoEloiseeZelaznydobraramaesquina.
—Vaidemorar?—perguntavaEloiseenquantoospassosseaproximavam.Elapareciairritada.
—Esperoquenão.—Zelaznyabriuaporta.—Masdependedoqueagentedescobrir.
—Porondequercomeçar?Aoatravessaremaporta,AllieescutouarespostadeZelazny:—OndeencontramosocorpodaRuth.Ocliquedafechaduraecoounaentradadepedravazia.Noesconderijo,Alliefranziuatesta.Oqueelesestãoprocurando?PrimeiroachouquenãoiaconseguirsairdejeitonenhumcomZelaznyeEloise
láfora,masentãolembrouqueocorpodeRuthtinhasidoencontradonosfundos.Acapela cavanobosque,próximoaogramadodafrentedacasa.ApesardenãoterescutadooqueZelaznyestavadizendo,seiamcomeçarpelosfundos,eladeveriatertemposuficienteparachegaraoabrigodaflorestaantesquealguémavisse.
Paradaraelestempodesaíremdafrentedaescola,contouatécemantesdeabriraporta.Girousilenciosamenteasdobradiçaseespiouoladodefora.
Nemumaalmaàvista.Saindosobaluznoturna,Alliefechoucuidadosamenteaportaatrásdesi.AcabaradepassardotoquederecolherdasnovehorasestipuladoporIsabelle,eo
sol estava prestes a se pôr ao m do longo dia de verão. No degrau superior,iluminada pelo brilho dourado, Allie olhou para cima durante um longo instantecomo se estivesse tentando absorver a luz para sua alma. Em seguida correu pelogramadoeavançouemdireçãoàfloresta.
Umavezquechegouemsegurançaaobosque(97passos),desacelerouumpoucopara recuperar o ar, em seguida correu pela trilha através das sombras queaumentavam.Tudoestavasilenciosoeobscuro.Quandochegouaopátiodaigreja,cincominutosmaistarde,osilêncioeraopressor.
Se o Carter está aí, certamente não o estou ouvindo. O clique metálico dafechaduraaoabriroportãopareceuecoarpelapacíficaclareira.
Instintivamenteelasedirigiuàárvoreondesentaramnodiadadetenção.Aoseaproximarviuumpécalçadocomumsapatopretopendurado.Esticandoobraço,agarrou-oefoiinstantaneamentepuxada.
—Oi,vocêconseguiu.—Eleestavasentadonomesmogalhoespesso,comascostas apoiadas no tronco. Ao se inclinar para ajudá-la, Allie mais uma vez coumaravilhadacoma forçadeCarter,quea levantoucomfacilidadeparapertodele.
Elaseajeitouemumpontolisoesesentoudefrenteparaorapaz,comosjoelhosdobradoseospésapoiadosnogalhoentreosdois.
—Então...oquevocêquer,Carter?—perguntou,inclinandoacabeça.—Porquequismeencontrarbemaqui,naterradadetenção?
— Porque não queria que ninguém ouvisse, e esse é o único lugar que euconheçoondepossoter100%decertezadequepodemosconversaremsegurança.
Alguma coisa na postura de Carter parecia desconfortável. Ele parecia terdificuldadesemdecidiroquefalar,eelanãoconseguiacapturarosolhosdele.
—Éque...—disseele,eentãoparou.Apósuminstantetentououtravez.—Temalgumascoisasquevocêprecisasaber.
GraçasaDeus,pensouela.Finalmentealgumasrespostas.AllienãoesperouCartercomeçar.—Carter, oque você sabe sobre isso tudo?Porque eles estão ngindoque a
Ruth se matou? A garganta dela estava... Impossível ela ter feito aquilo consigomesma.Ehaviaoutroslá.Euouvi.EaIsabellesabesobreeles.
Carter já tinha começado a interrompê-la antes que ela tivesse mencionadoIsabelle.Agoraelemesmoparoueaencarou.
—OquetefazpensarqueaIsabellesabe?Rapidamenteelarelatousobreterescutadoosprofessoreseemseguidaaprópria
IsabellefalandosobrealguémchamadoNathaniel,ea implicaçãodequeeleestariaenvolvidonosacontecimentos.
Carterpassouosdedosnocabelo.—Então eles acham que ninguém da escola teve nada a ver com amorte da
Ruth,masvãofalarpratodomundoqueelasematou.Allieseinclinou.—Masporquê?Apolícianãovaiolharpraelaeperceber imediatamenteque
nãofoiumsuicídio?CarterencontrouoolhardeAllie.—Quepolícia?Agarotaolhoupasmaparaele.—Estáfalandosério?Achaquenãochamaramapolícia?—Nãochamaram.Nemvãochamar.—Mas...como...?Arespostafoiimediata.—Apolícianãoveioaquiporqueapolícianãofazideiadoqueestáacontecendo
aqui,eninguémvaicontar.NuncavãosaberqueaRuthmorreuaqui.Ocorpodelavaiapareceremumbecoemalgumlugar,eospaisdela,quepassamotempoquase
todonaFrança,vãodizerprapolíciaqueelatinhafugido.Eospoliciaisvãoacreditarporqueopaidelaéumbanqueirodoramodeinvestimentoseamãedelausaroupasdemarca,eessetipodegentenãomente,certo?
Allienãopodiaacreditarnoqueestavaouvindo.—Táfalandosério?Carter,vocêestádizendoquetudoissovaiserencoberto?—Claroquevai,Allie.Existeummotivopeloqualvocênuncaouviufalarna
Cimmeriaantesdevirpracá.—Seutomeraamargo.—Aindanãoentendeu?Nãosabeondeestá?
Allienãosabiaoquedizer.Procurouaspalavrascertas.—Carter,oqueestáacontecendoaqui,sério?—Éissoqueestoutentandodescobrir—disse,olhandoparaopátiodaigreja.
—Olha,aCimmeriaéumlugarmuitoincomumebemcosturado.Todomundoconhecetodomundo.Todomundoestáaquiporummotivo.Lembradequandoagenteteveaquelaespéciedediscussão,quandoagenteseconheceu?Vocêachouqueeutavafalandoquevocênãotinhadireitodeestaraqui?
Enrubescendocomalembrançadahumilhação,Alliefezquesimcomacabeça.—Agentenãorecebealunosnovosquenãotenhamalgumaligaçãofortecoma
escolanomeiodo verão.Tipo se ospaisnão zerempartedo conselho.Ou se afamília inteira não tiver estudado aqui.Coisa assim— explicouCarter.—Eu sóestavatentandodescobrirqualdessascoisasvocêera.Masnãoénenhuma.Vocênãotemqualquerligaçãocomocolégio.
Carterolhoudiretamentenosolhosdela.—Issonãoacontecesimplesmente.Prendendo-se ao galho com os joelhos, Allie mordeu a unha do polegar
enquantotentavaprocessaroqueeleestavadizendo.Anoiteestavainvadindoosoldeverãoeestavamaisdifícilidentificarasfeiçõesdomeninoàluzdesbotada.
— Não sei o que dizer — falou Allie. — Meus pais disseram que a políciarecomendouaCimmeria...oupelomenos—parouparapensar—elesmeioquedisseramisso.Masforamsupersecretosemrelaçãoaoassuntoantesdeagentevirpracá.Nãomedisseramnemonde cavao colégio.Aindanão seionomeda cidademaispróxima.Foitudomuitoapressado,estranhoecomaresdeJamesBond.
Carterbalançouacabeça.— A polícia de Londres não teria recomendado essa escola porque nunca
ouviram falar daqui. Então seus paismentiram.Agora, por que fariam uma coisadessas?
Sentindoocoraçãobater loucamente,Allie tentou respirarnormalmenteenãoentrarempânico.(Cincoinspiradas,quatroexaladas.)
—Quersaber,Carter?—Avozsoouapertadaeelaengoliuemseco.—Temrazão.Eurealmentenãoseiondeestou.
— Então precisa descobrir — disse Carter. — E precisa resolver depressa emquemvaiconfiar.
I
DEZOITO
sto tudo era demais para Allie assimilar. Tremendo, ela abraçou o própriocorpo.—Carter,sevocêtátentandomeassustar,conseguiu.Entãojápodeparar?
Porumlongominutoelenãodissenada,emseguidasuspiroupesadamente.—Desculpadespejar issotudoemcimadevocê.Enãoqueroteassustar.Mas
queroquepercebaquetudoissoémuitosério.—EusoubequeerasérionahoraemquecaíemumapoçadesanguedaRuth
—disparou.—Eutôentendendo,tálegal?Estouentendendoatédemais.Agentetámuitoencrencado.Algumacoisaabsurdaestáacontecendo.Pessoasestãomorrendo.Essaescolaémuitoestranhaeomeulugarnãoéaqui.
Carterdeslizoupelotronco,chegandotãopertodelaqueosjoelhosdosdoissetocaram,eaabraçou.Inicialmenteelatentouafastá-lo,maseleaseguroufirme.
—Desculpa. Eu não devia estar fazendo isso com você. Só não quero que semachuque—disseele.
Respirandotrêmula,elasepermitiurelaxarnosbraçosdeCarter.Ocalordoseucorpopareciaseguro.
Soltando-a,eleseinclinouparatrásosuficienteparaenxergarseurosto.— Eu estava tentando te assustar, mas só porque tenho medo do que pode
acontecer.Onegócio éo seguinte, eu vimaquihojepra te convencer a voltarpracasa.
Surpresa, elaolhouparaCarter enquantoele continuava, agora se atrapalhandocomaspalavras.
—Achoqueteliberampor,tipo,estressementaloucoisadotipo.Allie abriu a boca para discutir, mas Carter continuou antes que ela pudesse
protestar.—Sóqueeudecidiquenaverdadenãoquero.Quevocêvá,querodizer.Oque
estouquerendodizeré...esperomuitoquevocê que.Agentevaidescobriroquefazer.
—Achoquenãotemosoutrasaída—disseAllie,simpli cando—,porqueeu
nãotenhomaispraondeir.No escuro, Allie não conseguiu enxergar os olhos de Carter quando ele
respondeu.—Entãovocêéexatamentecomoeu.Carterolhouparaocéu,ondeorestinhodaúltimaluzagoraestavaseapagando.—Émelhoragenteentrar.Táficandotarde.Saltandodo galho com a leveza de um atleta, ele virou e colocou asmãos na
cinturadelaparatrazê-laparabaixo.AllieagarrouosombrosdeCarterenquantoelea colocava no chão. Os olhos do rapaz prenderam os dela por um segundo, emseguidaelevirouparaoportão.
—Pisafundo,Sheridan—disseele,comavozáspera.—Estoulogoatrásdevocê.Aoseapressarempelatrilhadecascalhos,osoldesapareceuporcompletoecom
oescuroveioainquietação.Allieolhouemvoltaenquantocorriamnocrepúsculodanoite, tentandosentirqualquermovimentoouperigona orestaao redor.Abrisasoprando através dos topos dos pinheiros emitia um chiado lúgubre. Allie pôdeperceberqueCartertinhatotalconsciênciadecadaruído—tinhaolhosatentos—eela se manteve perto dele, igualando cada passo. Nenhum dos dois falou atéchegarem à borda da oresta e a escola se tornar visível. Pararam para recobrar ofôlegonabeiradogramado.
ApesardeAllie saberquenadamais era seguro, cou satisfeita ao ver a escola,comluzesbrilhandoatravésdosvitraischumbados,esealegrouumpouco.
—Muitobem—disseCarter, arfandoapósacorridapela oresta—,vamosfazeroseguinte:provavelmenteninguémtávigiandoaportadafrenteagora.Correomaisrápidopossívelatélá.Euvoulogoatrás.
Allieoolhoudesafiadoramente.—Comosepudessemeultrapassar.Elenãoconseguiuconterosorriso.—Tudobementão.Agenteapostacorrida.—Eoqueovencedorganha?—perguntouAllie,erguendoumasobrancelha.Carterriu.—Voupensaremalgumacoisa.—Oueuvoupensaremalgumacoisa.Um,dois, trêse JÁ!—Allieopegou
desprevenidoaopartir,comosbraçospulsandoeaspernasacelerandopelogramado;elecorreuparareagirantesqueelaabrissemuitavantagem.
—Isso...éroubo—arfouCarteratrásdela.—Aceita—respondeu,acelerando.
Allie tinha que admirar a força dele— apesar de ter começado na frente, eleschegaramaosdegrausquaseaomesmotempo.Lutandoparaseraprimeiraaalcançaraporta,elesbrigaramporespaçoeagarraramamaçanetaaomesmotempo,comamãodeAlliesobreadele.Brincalhões,seempurraramnadisputaparaverquemseriaoprimeiroaabrir.
—Shhh!—sibilouCartersubitamente,eamboscongelaram,escutando.EntãoAllieouviuoqueeletinhaescutadoantes:passosdoladodedentro.Não
ousousemover.Estavamcompletamenteemaranhados—osbraçosdeCarteremvoltadocorpodela,alcançandoaporta,enquantoAllieestavacomumadasmãosnelaeoutranobraçodorapaz.OsmúsculosdosbraçosedopeitodeCarterestavamduros contra o seu corpo. O coração de Allie acelerou ao respirar o cheirocaracterísticodomenino,decaféetempero.ElaosentiutremerelevantouosolhosparaverqueCarteraolhava,comolhostãoescurosquantoanoiteacimadeles.
—Achoquejáforam—sussurrouCarter,comosolhosaindanosdela.Alliefezquesimcomacabeça,nãoousandofalar.—Preparada?—eleperguntou.—Estou.—Seusussurrofoiquaseinaudível.Arrancandoosolhosdosdele,elavirouparaaporta,pressionandonovamenteas
costas contra o calor do corpo dele apenas pelo tempo em que levou para girar amaçaneta.Emseguidaaportaseabriusilenciosamente—osaguãodeentradaestavavazio.
—Agecomnaturalidade—sibilouCarter,empurrando-asingelamenteparaoquarto.
Oempurrãopareceudevolvê-laàrealidade.— Sempre — respondeu ela, empinando o queixo e passeando pelo chão de
pedra.Carterfechouaportaatrásdeamboseelesatravessaramocorredor.Allieaindaestava se recuperandodoquequerque tivesseacabadodeacontecer
entre eles, mas Carter falou do jeito sucinto de sempre, como se nada tivesseacontecido.
—Vocêérápida—observouele.—Sempregosteidecorrer.—Tentouatingiromesmotomcasual.—Gosto
desaberquepossoescapar.Umsorrisoseformounoslábiosdele.—Dealgumjeito, issonãomesurpreende.—Estavampertodaescadaagora.
—Certo.Vouprodormitóriomasculino.Daquivocêvaibem?—Super—elarespondeu.
—Tudobem—disseele,levantandoopunho.—Atémais,então.Alliesocouopunhodele,eemseguidasevoltouparaaescadaria.Masenquanto
Carter desaparecia pelo amplo corredor, ela sussurrou atrás dele, tão baixinho queseriaimpossívelqueescutasse:
—Boanoite,Carter.
Através das janelas, o sol inundava a escadaria principal enquantoAllie a descia namanhã seguinte, os cabelos molhados sobre os ombros. Estava tão desgastada nanoite anterior que dormiu em minutos. Devia ter dormido bem, pois não tinhalembranças de pesadelos, nem de sonhos, por sinal. Agora, depois de um banhoquente,sentia-secomoelamesmapelaprimeiravezdesdeobailedeverão.
A sala de refeições estava movimentada, ainda que menos barulhenta que onormal,masnemJonemGabeestavamemlugaralgum,entãoelasesentouaoladodeLucas.
—Oi—cumprimentouela,malolhandoparaomenino.Seufocoestavanosovosmexidosenobaconempilhadosemseupróprioprato.
LucasmalesperouAlliesentar.—OGabeea Jo sumiramdesdeontemànoite.Aconteceualgumacoisa?—
questionouLucas.Mastigandoentusiasmadamente,elabalançouacabeça.—Nãoviosdoishoje—respondeu,engolindocomesforço.—Sério,tôcom
muitafome.—JáfoiveraLisa?—perguntou.—Não,evocê?Lucasfezquesimcomacabeça.—Hojedemanhã.Elatábemmachucada,mastáacordadaeconversando.PoruminstanteAlliesesentiutãoaliviadaqueseesqueceudecomer.—Ai,Lucas, issoéótimo!Vouachara Jodepoisque sairdaquieagentevai
visitaraLisa.Apóstomarrapidamenteorestodocafédamanhã,Allieseapressouparaoandar
de cima para encontrar Jo, movendo-se com tanta velocidade que estavapraticamentecorrendoquandoumaportaseabriubemnoseucaminho.ElatevequedesviarenquantoKatiesaía,soprandooesmaltedasunhas.
—Querolharporondeanda,Allie?—irritou-se,tirandoamãocomasunhasperfeitasemrosa-clarodocaminho.—Vocêvivecorrendoporessecorredorcomoumamanadadegnus.
— Desculpa, va... quer dizer, Katie. — Allie disse, mantendo a voz doce ao
passarporelaemritmomenosacelerado.MasKatiefoiatrás.—Praondevocêtáindo?TáprocurandoaJo?Allienãovirouparaolharparaela.—Porque,Katie?Vocêéaassessoradeimprensadela?—Nãosejaidiota.Eusótava...preocupadacomela.Não soava nem um pouco preocupada, e Allie sentiu os nervos formigando.
Sinaisdealertaacenderamemsuamente.Parandoondeestava,virou.—Porquetápreocupadacomela?Oquehouve?Katiesoprouasunhascomumafraquezaproposital.—Não aconteceunada. Só vi elahojedemanhãparecendoperturbada. Sabe,
nãosounenhumaespecialista,maselaestavacomcaradequetinhatomadoalgumacoisa.
OestômagodeAllieapertou.—Comoassim,“tomadoalgumacoisa”?AJonãousadrogas.—Eeupenseiquevocêsduasfossemamigas—disseKatie.—Bem,seelanão
te contou, então achoquenão con a emvocê.Então émelhor eunão falarmaisnada.
Fechando asmãos ao ladodo corpo,Allie virounovamentepara adireçãodoquartodeJo.
—Queseja,Katie.VaifazersuasfofocasmaldosaspraJulesouprassuasoutrasamigasidiotas.Masmedeixaforadisso.
—Comtodoprazer—respondeuKatie,caminhandonaoutradireção.—Masvocêtáindoproladoerrado.NaúltimavezqueeuviaJoelaestavaentrandonoseuquarto.Nãonodela.
AllieserecusouareagirecontinuouindoparaoquartodeJo,massemoveuemumritmoaceleradoenquantoaspalavrasdeKatieecoavamemseusouvidos.PorqueJo entraria no seu quarto? Bateu duas vezes à porta antes de abri-la sem esperarresposta.
Oquartoestavavazio.Apersiana encontrava-se aberta,mas todas as luzes estavam apagadas e a cama
amarrotada, mas não parecia que alguém tinha dormido nela. Havia roupasempilhadas no chão de um jeito estranhamente bagunçado. As gavetas daescrivaninha estavam semiabertas, como se Jo estivesse apressada e procurandoalgumacoisa.
DeterminadaanãodarouvidosanadadoqueKatiedissesse,Alliesesentounaescrivaninhaeesperouumpouco,casoJoestivesseporpertoefossevoltarlogo,mas
depoisdeumtempofoiforçadaaadmitirqueissonãoaconteceria.Atravessando o corredor para o próprio quarto, foi mais devagar. Assim que
abriuaporta,teveumavagasensaçãodepavor.Nada estava do jeito que tinha deixado. A luz estava acesa e o quarto, um
desastre.Asgavetasdaescrivaninhatinhamsidoabertasereviradas—canetas,livrosepapéisseencontravamnochão.
Allieolhouemvoltacautelosamenteantesdedarumpassoparadentro,masoquarto estava vazio. Ao atravessar catou os pertences espalhados em um torpor,empilhando papéis e reunindo livros. Ao chegar à escrivaninha viu que estavasegurandosuacópiadasRegras,quetinhamsidorasgadas.
Alguémtinhatraçadoumalinhagrossanaprimeirapáginaeescrito:
ISTOÉUMABABAQUICE!!
Ao virar a folha, ela viu um bilhete atrás. O garrancho furioso estava difícil deentender,maselasoubequeeradeJomesmoantesdelerorecado.
A
Estátudoarruinado.Todomundoestámentindo.Vocêprecisasaberaverdade,masninguém
vaitecontar.Vemconversarcomigo:estounotelhado.NÃOFALAPROGABEondeestou.
J
—Merda.—MesmoenquantoAlliesuspiravaapalavranotouqueajanelaacimadaescrivaninhaestavaescancarada.
Correu de volta para a frente do quarto e fechou a porta. Sua mente estavagirando.Oqueeufaço?Oqueeufaço?
Subindonaescrivaninha,olhoupela janela.Osquartosdodormitório cavamlogoabaixodoporão.Elaseinclinoueolhouparaochão.
Eraumadistâncialonga.Mas Carter já tinha feito aquilo e disse que era fácil. Se ele conseguia, Allie
também era capaz. Respirando fundo, se ajeitou com cautela até estar sentada norebordoondeelehaviaseempoleiradonooutrodia,apoiandoospésnavelhacalhavitorianaabaixo.
—Jo?—sussurrouexperimentando.Nãoobteveresposta.Muito abaixo dela conseguia ouvir vozes e o ruído entrecortado de pessoas
caminhandopelocaminhodecascalhos.Segurando rmeamolduradajanela,testouaforçadacalhaantesde carempé
nela.Erasólida.Viroudemaneiraqueolhasseparaaparedee,agarrandoprimeiroajanelaeemseguidaastelhas,deslizoupelorebordoesubiunele,encontrandoespaçosparaosdedosnostijolos.Umavezlá,parouerespiroucomdi culdade,olhandoemvolta.
—Jo?Umruídochiadoacimadacabeçaafezolharparacima,masAllienãoenxergou
nada.Emseguidaouviuumrisinhoamargo.—Achadonãoéroubado.—AvozdeJosoavairritada.Grunhindocomoesforço,Alliesubiunorebordoseguinte;deláconseguiavero
telhado.Joestavasentadabemnoalto,apoiadaemumachaminé.Seuscabeloseramumverdadeiroemaranhado,eAlliepercebeuqueelatinhachorado.
—Jesus,Jo.Comochegouaí?Ecomoagentevaidescer?Joacenouamãoemsinaldedescarte.—Nãosejatãocovarde,Allie,peloamordeDeus.Searriscadevezemquando,
quetal?—Emseguidasaltoue coudepédestemidamente,seequilibrandobemnapontadotelhado.
Prendendo a respiração,Allie começou aprocuraruma formade chegar lá emcima.Viuumaseçãodenticuladadetelhasondeimaginouqueconseguiriasesegurare subir, e foi cuidadosamente para lá.Depois que começou a subir, viu como astelhasformavamsériesnaturaisdeapoiosparamãosepés.
Masnoúltimotrechoseupéescorregou.Aosesentirdeslizando,tentougritar,masnãosaiunenhumsom.
Seus dedos agarraram um pedaço de alvenaria e se seguraram. Uma vez queconseguiu um apoio sólido, foi sentindo a parede com as pontas dos pés até quelocalizasseumatelhadenticulada.
Assimqueambosospésseajeitaramnotelhado,elaselevantoucomumgrandeesforço,seespalhandonotelhadocomumsaltodeselegante.
Apoiadanachaminé,Jo—quenemsemovimentouparaajudá-la—aplaudiusarcasticamente.
—ParabénspraAllie.ElasubiuprotopodaescadariadosucessodaCimmeriarapidinho.Achoqueelamereceumabebida.Nãoconcordam,plateia?
Abaixandoobraço,pegouumagarrafadevodcaescondidaatrásdospésdelaeaentregouaAllie.Estavapelametade.
—Bebeumpouco.Aplateiaachaquedevebeber.Agorairritadaeaindatrêmulaporcausadaquasequeda,Allieignorouagarrafa.—Queplateia,Jo?Dequediabosvocêtáfalando?Eoquetáfazendoaquiem
cima?
Dandodeombros,Jotirouatampadagarrafaetomouumgole,fazendoumacareta.
— Sabe, isso não melhora com o tempo — disse, tampando novamente agarrafa.—EurealmentecontestoaescolhadevodcadaIsabelle.VocêpensariaqueelatemGreyGooseouAbsolut,masnão.Sóessaporcariarussa.
Comoelapodeestarbêbadaàsoitodamanhã?,questionouAllie.—Jo,vocêpassouanoiteinteirabebendo?—Não!Nãoseja ridícula.Sóasúltimashor...Quehoras são?—Elavirouo
braçoparachecarorelógio,derramandovodcanotelhado.—Ops!Allietentouparecercalma.—Porfavor,senta,Jo,efalacomigo.—Claro,Allie!—Josorriuparaela,tãoalegrementequantoseestivessenasala
de refeições conversandodepois do almoço.—Quero falar com você.Mas estousentadaháhoras.Éótimolevantaremeesticar.
Rodandoemumpé,elaosciloudesgovernadamente.Engasgando-se,Alliecobriuabocacomasmãos,masemseguidaJoseequilibroueriu.
—Essafoiporpouco.OcoraçãodeAllieestavabatendotãoaceleradoqueelatemeusofrerumenfarto.—Porfavor,Jo.Porfavor,sentaefalacomigo.Eutomoavodca.Mas...senta.Comosea ideiativesseacabadode lheocorrer,Joabaixouatéestarsentadano
telhado.Osorrisohaviadesaparecidodeseurosto.Agoraparecialúgubreelágrimascorriamsilenciosamentedosseusolhos.
—Ninguémmeentende,Allie.Nemvocê.Vocêéminhamelhoramigaenãopossotecontaraverdade.Issomedeixatãotriste.
Fungando,pegouagarrafaetomoumaisumgole.EmseguidapassouobraçosobreosolhoseentregouavodcaaAllie.Allieinclinouagarrafae ngiutomarumgole,emseguidasegurouagarrafadescuidadamente,comosetivesseesquecidoqueestavacomela.
Inclinou-separapertodeJo.—Ah,querida,eusintomuitovendovocêtriste.Aconteceualgumacoisa?Joolhouparaelacomoseestivesseirritada.—Claroqueaconteceualgumacoisa,Allie!ARuthestámorta!Elatámorta.E
ninguém nunca vai contar a verdade sobre o que aconteceu. Todo mundo émentiroso.
Levantandoobraço,JoapontouparaAllie.—Evocênãosabenada.Todomundoestáescondendoascoisasdevocêporque
nãosabemporquevocêtáaqui.Ouquemvocêé.Quemévocê,AllieSheridan?
Allielevantouasmãos.—Eusósou...eu,Jo.Nãosouninguém.Balançandoacabeçaveementemente,Jopareceugradualmentemaisirritada.—Não,não,não!Issotambémnãoéverdade.Vocênãosabenada.Realmente
nãosabe.Eissoé...estúpido.Eninguémvaitecontar.Ninguémvaitecontar.—DerepentelevantouoolhareencontrouodeAllienoquepareceuumaparódiadeclarezatotal.—Euseidascoisasenãovoucontar.
Allieengoliuemseco.—Oquevocêsabe,Jo?SabequemmatouaRuth?Jocerrouosolhosmaliciosamente.—Todomundosabeoquetáacontecendo,Allie.Todomundo,menosvocê.
—Acrescentoucomumavozentoada.—Masnãovoutecontar...—Jo,vocêtemquemecontar.—OcoraçãodeAllieestavaacelerado,masela
lutou para manter a expressão vazia. — É muito importante. A polícia tem quesaber.
Balançandoacabeçadeumladoparaooutro,Jopareceuchorosanovamente.—Meuspaisnãomequeremporperto,sabia,Allie?Elesnãodãoamínimapra
mim.Allietentouacompanhar.—Tenhocertezadequedão,Jo.Devemdar.Sãoseuspais.MasmefaladaRu...—Não dão não!— gritou Jo.—Meus pais amam dinheiro, e amam Saint
Tropez,HongKongeaCidadedoCabo.Masnãoamim.Amimnão.Elaestavasoluçandoagora.Enquantoestavadistraída,Allieatravessouotelhado
maisparapertodela—pertoobastanteparaquepudesse,sepreciso,segurá-la.—Ai, Jo.Eunão sabia.—Joestava completamentedescontrolada,masAllie
precisavafazê-laconversarsobreRuth.—MefalaquemmachucouaRuth,Jo.Eaíagentepodeconversarmaissobreasuafamília.
Joaencarou.—Nãotentameenrolar,Allie.Aofalar,Allieescutouumamovimentaçãologoabaixodelas.Antesquepudesse
reagir,Carterapareceu,subindoagilmenteotelhadoparapertodelas.—Olá,meninas.—Avozsooupropositalmentecasual.—Eaí?Atravésdaslágrimas,Josorriuparaele.—CarterWest!Euteamo,CarterWest.Vocêétãobonito,etemessesolhos
escuros profundos. Eu teria te escolhido se não tivesse escolhido oGabe.—Emseguidapareceuconfusaporumsegundo.—Não,euteriaescolhidooLucassenãotivesseescolhidooGabe.Massenãodessecerto,escolheriavocê.De nitivamente.
OutalvezoSylvain.Carternãohesitou.—Eeutambémteriateescolhido,Jo.Porquevocêéameninamaisbonitado
colégio.Sorrindo timidamente,comorosto rubroe inchado,oscabelosarrepiados, Jo
disse:—Sério?Essaéacoisamaisgentilquejámedisseram.Medáumabraço.Saltando sem qualquer aviso, ela cambaleou muito, com os braços rodando.
Allieexclamoueesticouobraçoparasegurá-la,masCarterestavaaoladodeJoemuminstante,envolvendo-aemumabraçoforteerindocomela.
—Cuidado,Jo,agenteestáumpoucoaltoaqui.Elaignorouaspalavrasdele.—Euteamo,CarterWest.VocêémuitomaisgentilqueoGabe.Carteraabaixougentilmenteparaumaposiçãosentadaoutravez,comosolhos
nelaotempotodo.—VocêsabequeoGabeteama,nãosabe?Vocêfalariacomele,seelesubisse
aqui?—OGabenãome ama.Elenão fala a verdade sobrenada.Éummentiroso
como todomundo.—OlhouCarter, analisando-o.—Mas não tenho certeza sevocêtambémémentiroso.
Jo se levantou sem rmeza, afastando as mãos de Carter quando ele tentouajudá-la.
—Carter,vocêsabeoqueoGabeé.AAllienãosabedenada.Masvocêsabe.—ElasevoltouparaAllie.—OGabeé importante,muitomais importantedoquevocê, do que eu ou o Carter. Ele é da Escola Noturna, sabe o que é a EscolaNoturna,Allie?
Carter estava congelado no lugar, olhando xamente para Jo como se nãosoubesseoquefazer.Alliebalançouacabeça.
—Não.Oqueé,Jo?—É um bando demeninos emeninas ngindo que são cavaleiros, soldados,
deuses ou alguma coisa. Acham que vão ser reis domundo.— Jo apontou paraAllie.—Elesnãogostamdevocê,sabia?Achamquevocêéperigosa.Eunãoparoderepetirqueelesestãoenganados,masnãomeouvem!Cadêminhagarrafa?
EnxergandoagarrafaaospésdeAllie,Jodeuumpassorápidoemdireçãoaela.Levantando-se,AlliepegouavodcaeolhouparaCarter semdizernada,masantesquepudessemdecidiroquefazer,Joavançouparaabebida.
Carter se esticou para alcançá-la, mas foi tudo muito rápido; uma telha solta
prendeunopédeJo,queperdeuoequilíbrio.Caindosemcontrole,elaroloupelotelhadoíngremee,comumgritoestridente,desapareceu.
AgarrafadevodcacaiudasmãossemforçadeAllie,roloupelotelhadoeatingiuo chão abaixo com uma batida cristalina. No terrível instante que sucedeu, Allieouviuumavozgritandolonge,epercebeuqueeraadelaprópria.
Carter couolhandoparaoespaçoondeJoestivera,comorostovazio.Eumsegundopareceuseestenderalémdoslimitespermitidospelafísica.
Emseguidaosdoisescutaramumruídoarranhadovindodapontadotelhado.Antes que Allie pudesse reagir, Carter já tinha se jogado de bruços e começado adescer o telhado íngreme para a borda. Allie foi atrás, e ambos viram mãosensanguentadastentandosesegurar.SeatiraramparaJonomesmoinstante.Carteragarrou o pulso esquerdo de Jo, e alguns segundos depois Allie segurou a mãodireita.SobreoombrodeJo,Allieenxergouaquedaíngremeparaochão.
Agora estava ouvindo um resmungo agudo abaixo do telhado, como se Joestivesse assustada demais para chorar. O sangue em suas mãos as tornouescorregadiase,enquantoAllielutavaparasegurá-la,Cartergritoutenso:
—Pegaopulso.AessaalturaAlliejáagarraraobraçodeJo,masporcausadaproximidadecoma
encostaíngreme,tevequeseutilizardetodaasuaforçaparasustentarJosemqueelaprópriacaísse.Puxá-laeraimpossível.OrostodeCarterestavaroxodetantoesforço,masnaposiçãoemqueestavamatéeleestavatendodificuldades.
—Tudobem,vamostentardeumjeitodiferente.Soltaobraçodela—disseele,arfando.—Euvoutentar rodar,para car sentadodireito.Aíconsigoalgumatraçãoprapuxareladevolta.Pegaaminhacinturaesegura rme.—Capturandooolhardela,acrescentou:—Nãodeixaagentecair,Allie.
Tãoapavoradaquenãoconseguiarespirar,Allie fezquesimcomacabeçaparacon rmarquetinhaentendido.SegurandoobraçodeJocomgarrasdeferro,Cartersevirouparasentarcomumrosnadodeesforço.Assimqueeleestavapronto,AlliesoltouobraçodeJoe,movimentando-seomaisdepressaqueconseguia,secolocouatrás de Carter, apoiando os pés com força nas telhas. Enquanto Allie agarrava acinturadele,elegritou:
—Notrês,epuxacomtodaasuaforça.Um,dois...Notrês,Allieenterrouoscalcanhareseaiçou.OtroncodeJoapareceusobreabordadotelhado.CartereAlliepararameemseguida:—Denovo!—gritouCarter.—Puxa!Destavez, Jo subiucompletamente, eosdois alcançaramosbraçosdamenina
parapuxá-ladevoltaemsegurança.Lágrimas de alívio queimaram os olhos de Allie. Ofegante com o esforço,
engatinhouparapertodeJo.—Vocêestábem?—AgarrouasmãosdeJoparaverosmachucadosefranziua
testa.—Ah,Jo—disse.VáriasdasunhasdeJotinhamsidoarrancadasehaviaumcorteprofundonapalmadamãoesquerda,quesangravalivremente.
—Allie?Jo?—AvozdeGabeveiodebaixodeles.CartereAllietrocaramumolhar.MasfoiJoquerespondeu.—Gabe—gritou,soluçando.—Gabe,meajuda!—Jo?—eleberroudevolta,avozcarregadademedo.Alliepôdeouvi-lo subindo rapidamente emdireçãoa elas, aparentementepelo
mesmocaminhopercorridoporCarter.Pulandoparaotelhado,Gabe couparadoolhandoparaelesporumsegundo,
espantado,antesdecorrerparaJo.—Quediabosaconteceu?Oquehouvecomassuasmãos?—Quandoelanão
respondeu,elesevoltouparaCarter.—Carter?AvozdeCarterestavaentorpecidaporumatensãoexausta.— Ela caiu do telhado. Acho que se machucou tentando se segurar. A gente
precisalevarelapraenfermeira.—JesusCristo.—GabeenvolveuJonosbraçosealevantoudemodoqueela
cassedepé,apoiadanele.OlhandoparaCarterporcimadoombro,mexeuabocasememitirsom:—Vodca?
Carterfezquesimcomacabeça.ApesardeGabeparecerentristecido,estavacomavozcalma.
—Estoucomvocê,amor.Voutelevarláprabaixo.Carter,podemeajudar?Voltando-separaAllie,Carterdisse:—Ficaaqui,tudobem?Nãosemexe.Euvoltopratemostrarocaminhoseguro
pradescer.Semfala,Allieassentiu,eCarterfoiatrásdeGabe.Elaouviuosdoisabaixando
Joparao rebordo, e emseguidamanobrando-apela janela.Houveummurmúriobaixo de conversa que ela não conseguiu escutar, e em seguida o ruído deCarterretornando.
Aindasentadanotelhadocomosbraços rmesenvolvendoocorpo,elaestavasebalançandopara trás e para a frente, contando cadamovimento (cento e dezessete,centoedezoito,centoe...)
—Vocêestábem?—CarteragachouaoladodelademodoqueorostoestivessealinhadocomodeAllie.Ameninapôdeverapreocupaçãonosolhosdorapazao
limparcomaspontasdosdedosumalágrimanorostodela.Ajeitando-se,Allieassentiu.—Entãovamossairdessetelhadomaluco—disseCarter.Orapazaajudouaselevantar,emseguidaaconduziupelolocalporondeAllie
havia subido anteriormente, para um pedaço onde o telhado se inclinava maisgradualmente em direção ao parapeito.Dali foimais fácil descer para um peitorilmenosestreito,eemseguidaatravessaracurtadistânciaatéajaneladoquarto.
Doparapeito,pulouparaaprópriaescrivaninha,batendoacabeçacomforçanapartesuperiordamolduradajanela.Ládentroelatitubeoupeloquarto,segurandoacabeçaenquantoCarterdeslizavagraciosamentepelajanelaeolhavamaravilhadoparaAllie.
Apesardetudoquetinhamacabadodepassar,elaoviutentandonãosorrir.—Allie,oquefezcomvocêmesmaagora?Ameninaapontouparaacabeça.—Vemcá.—Eleagarrouobraçodela,puxou-aparasieexaminoubrevemente
acabeça.—Sério,sevocêsobreviveràCimmeria,vaiacabarsemneurônioalgum.Eledeuumbeijonomachucado,seuslábioslevescomoumdesejo.—Pronto.Achoqueesseétodootratamentomédicoqueprecisa.Provavelmentefoicoincidência,masacabeçarealmentemelhorou.—Comovocêachouagente?—perguntouAllie.—AJulesfalouquetalvezhouvesseumproblema.Vimteprocurar.Vocênão
estava,masviaquilo.—Carterapontouparaobilhetenaescrivaninha.—Depoisviajanelaaberta,esomeidoisedois.
—Obrigada,Carter.—AvozdeAllieestavaexaltada.—AchoquevocêsalvouavidadaJo.
—Preferia que vocês não tivessem se encrencado—disse ele,mas sorriu.—AgoravamosacharoGabeeaJoeverificarqueelaestábem?
Allieconcordou,espantadaaoperceberqueestavasorrindoemretribuição.—Obrigada.—Denada—disseele.—Agoratentanãosemachucarenquantoatravessao
corredor.—AllieosocounobraçoquandoCarterabriuaporta,eemseguidapulouparatrás.
Isabelleestavanocorredorláfora,comasmãosnacintura.
A
DEZENOVE
llieeCarterpercorreramocorredorcercadosporIsabelleeMatthew.Allietinhaa sensaçãodequeestavamsendoconduzidos.Nãohouvediscussão.Isabelleapenasdisse:
—Carter,Allie.Venhamconosco,porfavor.Eforam.Caminharam rapidamente para o escritório de Isabelle. A diretora segurou a
porta aberta para eles e entrou por último, antes de sentar na cadeira atrás da suamesa,comMatthewaolado,apoiandoumamãonascostasdacadeiradela.Elanãooapresentou.
—Chameivocêsaquiporquequerosabersecometiumerro—Isabelle xouosolhosemAllie.
—Oque...oquequerdizer?—respondeuAlliecautelosamente.—Violeimuitas regras pra te aceitar nesta escola.—A voz de Isabelle estava
carregadaderaiva.—Errei?Enquanto Allie sentiamedo se desenrolando em seu estômago, ouviu-se uma
batidarápidanaporta.—Entra.—AvozdeIsabelleeraumaordem.Sylvainentrou.Olhouemvolta,evitandooolhardeAllie,emseguidafechoua
portaatrásdesi,eapoiouascostasnela.Comocoraçãoafundando,Alliesevoltounovamenteparaafrente.—Nãoestouentendendo—disse.—Oquefoiqueeufiz?—Deiinstruçõesclarasdequeosalunosnãodeveriamsairedescubroquevocê
nãosóestevenotelhandobebendocomJoArringford,mastambémfoiàcapela.Eutepergunto,oquedevopensar,Allie,alémdequeéumainsubordinada?
Allieaencarou,boquiaberta.Comoelasabesobreacapela?Carterseinclinouparaafrente.—Esperaaí,Isabelle.Elafoipracapelaporqueeupedi.Estivecomelaotempo
todo.Elaesteveemsegurança.—E a Jo estavamuito chateada— disse Allie.—Tivemedo de que ela se
machucasse.Sóestavatentandoajudar.OolhardeIsabelleeragelado.— Uma garrafa que caiu do telhado não acertou um aluno por poucos
centímetros.Seeletivessesidoatingido,nósteríamossidoresponsáveis.Temvidro,evodca,devoacrescentar,espalhadosnafrentedaportadeentrada.
AllieestavatãochocadaefuriosaquetevequeabaixarosolhosparaqueIsabellenão visse a raiva em sua expressão.A Ruth morre, o colégio pega fogo, e ela estápreocupadaemserprocessadaporvidroquebrado?
IsabelletransferiuaatençãoparaCarter:—Eporque,pergunto, você esteve comela o tempo todo?Você conhece as
regras.— Depois do que aconteceu com Ruth e Lisa, a Allie cou nervosa. Estava
pensando em abandonar a escola — explicou Carter. — Queria que ela pudesseconversarlivremente,semmedodeserouvidaporbisbilhoteiros.
Impressionadacomatranquilidadecomqueeleutilizouaverdadepara,bem...mentir,Allie olhoupara Isabelle, para ver como ela estava recebendo.Nãopareciaimpressionada.
— Entendo que a Allie estivesse chateada, mas há lugares onde essa conversapoderia ter sepassadoaquina casa,Carter—disse ela secamente.—Enãogostoquando minhas regras são solenemente ignoradas, principalmente quando foraminstauradasdemaneiratãoclaraetãorecentemente.
Carterestendeuasmãos,comaspalmasparacima.—Bem, então sou eu que devome desculpar, e não ela. Fui eu que sugeri a
capela.Noinícioelaatéserecusouair,porquenãoqueriaviolarasregras,maseuaconvenci.Sealguémfoiinsubordinado,fuieu.Mas zissoporrazõesqueconsidereiválidas.
A voz de Carter estava surpreendentemente con ante, pensou Allie. Seu tommaispareciaodeum lhoacalmandoumamãe irritadadoqueodeumalunosedirigindoaumadiretora.
—Mepermite,Isabelle?—Sylvainolhouparaadiretora interrogativamenteeelalhedirigiuumcurtoacenodecabeça.
—Carter,vocênãosódesobedeceuas instruçõesdeIsabelle,comotambémasminhas— disse, suas vogais francesas elegantes envolvendo cada palavra.—E aofazerisso,colocouaAllieemperigo,eissoéinaceitável.
Pelaprimeiraveznaconversa,Carterpareceutenso.Allieoviucerrarospunhoseemseguidarelaxá-losmuitodeliberadamentesobreocolo.Nãodissenada.
Isabellesuspirou.
— Basta. Carter e Allie, esta foi uma transgressão muito séria às regras queestabeleci ontem ànoite.Entendoque vocês dois ainda estejam chateados comosacontecimentosdanoitedesexta-feira.Docontrário,receberiamdetençãoeumavisopor escrito. Em vez disso, estou apenas alertando quemais uma infração não serápermitida.
—Oquevaiacontecercoma Jo?—Aperguntaexplodiudos lábiosdeAllieantesqueelapudesseseconter.
Isabelledirecionouumolharafiadoaela.—Vamoscomeçarcomoqueexatamentesepassounotelhadohojedemanhã,
Allie,podemos?Alliecontousobreobilhete,sobreternotadoajanelaabertaesobretersubido
paraencontrarJonotelhadoetudoquesucedeu.—Eurealmentenãosabiaoquefazeralémdeajudar—explicou.—Elaestá
bem?—Quatrodasunhasda Jo foramarrancadas—relatou Isabelle—eumadas
mãos sofreu um corte fundo. Ela tá muito machucada. Todos estes ferimentospresumivelmente ocorreram durante a queda. Além disso, está bêbada. Como osmachucados são super ciais e a embriaguez é temporária, ela foi tratada pelasenfermeirasesedada.Vaicontinuarnaenfermariaatéagentedecidirumcastigo.Ospaisdelaserãoavisados.
—Elavai ser... expulsa?—Allie agarrouosbraçosdacadeira comtanta forçaquesuasjuntasembranqueceram.
Isabellepareciareprovadora.— Não vou discutir ações disciplinares envolvendo outros alunos com você,
Allie.Matthew se inclinou para sussurrar alguma coisa ao seu ouvido. Quando
terminou,IsabellesevoltouparaAllie.—Podeir,Allie.GostariadeconversaremparticularcomoCarteruminstante.AllieolhouparaCarter,maseleestavacomosolhos xosàfrenteenquantoela
saíadasala.NotouquetantoSylvainquantoMatthewficaramparatrás.Nemtãoparticularassim.Fechando aporta atrásde si, ela se apoiou tentandoouvir,masnãodavapara
escutarnadaatravésdamadeirasólida.Girando,correupelasescadasparaodormitóriofeminino,parandononúmero
335.Bateu, em seguida deu um salto para trás quando a porta se abriu quase
instantaneamente.
Julesestava,comosempre,imaculada—uniformeengomadoecabeloperfeito.—Allie...Oqueeupossofazerporvocê?Seficousurpresaemvê-la,nãodemonstrou.— Quero visitar a Lisa — revelou Allie —, mas não sei onde ca a ala de
enfermagem,eimagineiquevocêsoubesse.—Ouvi dizer que ela nalmente acordou—disse Jules.—Vai até o térreo,
atravessaaaladassalasdeaula.Depoissobeaescadano m.Énoprimeironívelquechegar.Vaisaberquandovir.
Alliehesitou,desejandoquepudessecon aremJulesobastantepararealmenteconversar com ela. Quando ela não se moveu, a monitora loura ergueu assobrancelhasperfeitamentearqueadaseperguntou:
—Algumproblema?—Ésóque...—Allieenrolouabainhadacamisetaemumdedo—oCarter
me falou que você deu meu recado ontem à noite. Eu queria te agradecer. Nãoprecisava.
Julescruzouosbraçossemmuitafirmeza.—Denada.Maseumesentiriamelhorsevocêfalasseaverdadesobreomotivo
pelo qual queria falar com ele. E agora, com tudo que aconteceu com a JoArringford,estoupensandosedevomearrependerdaminhadecisão.
—Mastudoqueeu zfoitentarajudaraJo!—protestouAllie.—Eunãodeiavodcapraela,nemleveielaprotelhado.Sótenteisalvaravidadela.Nãoentendoporqueissoétãohorrível.
—Bem,porquenãoveiomechamarantes?—perguntouJules.—Porqueeufariaisso?—rebateuAllie.—Vocêsóiatentararrumarencrenca
praela.Julespareceuirritada,mastambém,pensouAllie,umpoucoferida.—Você e a Jo sãominha responsabilidade enquanto estão neste andar, Allie.
Vocênuncadevesecolocaremperigocomofezhoje.EoCartermecontousobreassuas crises de pânico, por que você nãome falou isso? Eu não tô aqui pra te dardetenção,nemgritarcomvocê.Estouaquipraajudar.Masindependentedoqueeufaça,vocêmetratacomoseeufossesuainimiga.
IstofoitãosurpreendentequeporuminstanteAllieficousempalavras.—Eusó...penseiquevocêmedetestasse—disseafinal.— Nunca te detestei — disse Jules. — Você sempre pareceu intimidada por
mim,irritada,eeunãosabiacomotefazerenxergarqueeunãosousuainimiga.—MasvocêéamigadaKatieGilmoreeelameodeiademais.Parasuasurpresa,Julesdeuumarisadabreve.Levantouamãosedesculpando.
—SouamigadaKatie,esim,elateodeia,masésóciúme.ElagostadoSylvaineoSylvaingostadevocê,e issofereossentimentosdelaefazelaparecermalvada.Elatáacostumadaaconseguiroquequer.Masvocêprecisasaberqueissonãotemnadaavercomigo.Eusempre falopraKatiequeelaprecisacrescere tedeixarempaz,mas—deudeombros—elaéumapessoaindependente.
Suaexpressãosetornoumaisséria.—Nãomejulguepelocomportamentodela.Mejulguepelomeu.Agoratímida,Allieesfregouapontadeumpénaoutra.—Desculpa,Jules.Eufuicompletamentebabaca.—Tudobem—disse Jules.—Eudevia ter sentado e conversado comvocê
antes. Sou amonitora e tinha que saber como lidar com esse tipo de coisa.Masgostariamuitoquepudéssemosdeixarissopratrás.
Comumolhardesafiador,elaestendeuamão.—Amigas?Apósumafraçãodesegundodehesitação,Allieaceitou.—Amigas.— Muito bem, agora vai ver a Lisa; ela provavelmente tá solitária lá, sem
companhia—disse Jules, recuandoparaopróprioquarto, acrescentandocom seutommaisoficial:—Esemmaispasseiospelotelhado,porfavor.
Enquanto se apressava pela rota indicada por Jules, Allie reviveu mentalmente aconversaquetiveracomamonitora.
Comopossotererradotantoemrelaçãoaela?Seráquemeenganeitantoassim?Lembrou-se deCarter e Sylvain rindo dela por não gostar de Jules— ambos
pareciamachá-laótima,apesardeSylvainterconcordadoqueelasabiaserdifícil.Masserdifícilnãoéserruim.Costumavaincomodá-laofatodequeosdoisatinhamdefendido.Mastalvez,
setivesseerradonojuízoquefizeradeJules,tudofizessesentido.Tentouselembrardascoisasqueamonitoratinhaditoqueadeixarammagoada,
ederepentesóconseguiaserecordardaexpressãodeespantoquandoAllie coucomraivaouchateada.
MasmesmoassimpareciaestranhoqueJulesderepentequeriaseramigadela.AspalavrasinebriadasdeJonotelhadoapitaramemseusouvidos:“Elesnãogostamdevocê...achamquevocêéperigosa.”
As luzes estavam apagadas na ala das salas de aula, e ela apalpou a paredeprocurando um interruptor. Quando não o achou, andou depressa. Seus passosecoaram enquanto ela praticamente corria pelo corredor, passando por portas que
abriam em salas vagas, onde cadeiras vazias e mesas se dispunham em leirasfantasmagóricasecírculos.
No m do corredor, uma porta sem nenhuma marca tinha um vidro foscoatravésdoqualpassavaaluzdodia.
Parecepromissora.Abriu.Atrásdaportahaviaumaescadariaquelevavaparacima,bastanteiluminadapor
janelasemtodososandares.Oprimeironívelaoqualchegoufoiummezaninoentreo térreo e o primeiro andar. Saindo da escada, entrou imediatamente em umcorredor onde os tetos baixos e os pisos de linóleo contrastavam com os espaçoscrescentes e a madeira polida em outros lugares da casa. Em um dos lados docorredortinhauma leiradeportasbrancasfechadas,cadaqualcomumajaneladevidrofoscosubdivididaporumacruzazulcuidadosamentepintada.Aoutraparedeeraalinhadaporjanelasatravésdasquaisluzearfrescoentravam.
—Olá?—Alliechamou.Suavozecooupelocorredorvazio.Estava tão silencioso que ela se sentiu enervada ao percorrer o corredor
ensolarado.Bateuemcadaportaquepassoueasforçou.Ninguémrespondeu,eastrêsprimeirasquetentouestavamtrancadas.
Masaquartaabriu.Oquartoestavaescuro,comtodasascortinas fechadas.O lugarerapequenoe
tinhaapenasumacama.Alliepôdeverumchumaçobrilhantedecabeloslourosnotravesseiro.—Jo?—sussurrou,dandoumpassoinseguroparadentrodoquarto.—Você
estábem?Nãoobteveresposta,masalgolhediziaqueJoestavaacordada.Deixandoaporta
aberta,atravessouoquartonaspontasdospésparaseajoelharaoladodacama.OsolhosdeJoestavamfechados,masarespiraçãoestavairregular.
—Ei—Alliesussurrou–,vocêestábem?UmalágrimaescapoudoolhodeJoecorreupeloladodorosto.Elalimpou-a
commãoscheiasdeataduras,comoumamúmia.—Nãoqueroconversaragora,Allie.—Estavacomavozroucaeentorpecida.Ferida,Alliepensouemdiscutir,masemvezdissofoiparaaporta.Aoabri-la,
olhou para trás — Jo estava deitada de costas, olhando para o teto como se jáestivessesozinha.
Devoltaaocorredor,Allietentouasoutrasportas.AduasportasdoquartodeJo,espioueviuumrecintoensolarado,pintadodebranco,noqualduas leirasde
quatrocamashospitalareseramseparadasporcortinasbrancasesvoaçandocomumaleve brisa que sussurrava pela janela semiaberta. Apenas uma das camas estavaocupada.
Deitada sob uma coberta branca em uma cama branca, contra uma paredebranca,Lisaestavapálidaecomosolhosfechados—seuscíliosespessosprojetavamsombrascomohematomasnapele.Seuscabeloslongosesedososestavamespalhadospelos travesseiros, e uma atadura grande cobria um dos lados do rosto. Um dosbraçosestavacomumatala.
Allie se assustou com a magreza de Lisa. Será que em algum momento elacomia?Pareciatão...quebrável.
Aosentaremumacadeirademadeiranabeiradacama,emitiuumrangidofracoeLisaabriuosolhos.
Elasorriusonolenta.—Allie.Allie retribuiu o sorriso, mas linhas de preocupação se acumularam entre os
olhos.—Oi.Comovocêestá?Tudobem?Soubequetinhaacordado.Lisa se ajeitou nos travesseiros. Estava comum gesso no pulso, por onde um
soro havia sido passado em algum momento, e hematomas escuros arroxeadosmanchavamapartesuperiordosbraços.
—Tudo bem.Eu tô bemdopada, eu acho.Não sei há quanto tempo estouaqui.
AfragilidadedeLisafezcomqueseusolhosparecessemenormesecomoosdeumacriança,eAlliesentiuumaondainesperadadeinstintodeproteção.
—Nãomuito.—Allietevequepararparapensar.—Querdizer,é...Quediaéhoje?Domingo,euacho.—Enrubesceucomaprópriaconfusão,masLisapareceusatisfeita.
—Ótimo.Penseiquefossemais.—Elaolhoupelajanelaeumasombrapassoupelo seurosto.—Mas jávaiescurecer,nãovai?—Parecia tãoassustadaqueAlliepegousuamãoeaapertou.
—Nãosepreocupa.Vocêtátotalmenteseguraaqui.Lisa não pareceu convencida,mas amedicação parecia afetar sua habilidade de
sustentarumpensamento,euminstantemaistardeelarelaxououtravez.— Lisa, o que aconteceu com você? — perguntou Allie. — A Jo disse que
perdeuvocêquandoasluzesseapagaramenãoteviumaisatéagenteteencontrar...bem,vocêsabe,nosaguãodeentrada.
Comosolhosescurecendo,Lisafranziuorostoseconcentrando.
—Está tudomuito confuso.Lembrodedançar comoLucas.Depois agentedecidiusairpraandarerespirarumpouco.Agenteiapelaportadafrenteporqueadetrásestavalotada.Masaíasluzesseapagaram.Nocomeçonãofoinadademais;aliás,pareceuatédivertido.Asvelasestavamiluminandoaentrada,entãoaindadavapraenxergaretudo.Masaspessoascomeçaramagritar.
“OLucasmemandou car láe falouquevoltavapramebuscar.Ecorreuprosalãopraveroqueestavaacontecendo.”
LisaparoueolhouparaAlliecomolhosvazios.—E foi isso.Nãome lembro demais nada.Tudo não passa de um branco
imenso.Allieafagouamãodaamiga.—AIsabelledissequevocêtábem;teveconcussãooualgumacoisa?Umavezo
meuirmãoteveenãoconseguiuselembrardetercaídoatéduassemanasdepois.—É,aenfermeirafalouqueeubatiacabeçaemalgumacoisaquandocaí,eme
corteidealgumjeito;levei12pontos.—Elatocouocurativoinconscientemente.— E os seus braços? — Inclinando-se mais para perto, Allie levantou
cuidadosamenteasmangascurtasdacamisolahospitalardeLisaparapoderenxergarmelhorapele.—Esseshematomas...parecem...marcasdemão.
Olhandoparaosbraços,Lisafalou:—Parecem?Nãofaçoideiadecomoapareceramaí.Etorciopulsoquandocaí,
euacho.— Eles... — Allie hesitou e recomeçou. — Imagino que tenham te contado
sobreaRuth?Confirmandocomacabeça,Lisapareceuprestesachorar.— Mas não acredito — sussurrou. — Como ela poderia... se matar? Nunca
pareceu tristenemdeprimida.E tinhaváriosplanospro futuro.Queriaviajarpelomundo,sabe?Nãoentendoporqueelafariaumacoisadessas.
Alliepensouemrevelarasprópriassuspeitasarespeitodaversãoo cialdamortedeRuth,masnãoachavaqueLisafosseapessoacertaparacontarisso.Nãoquenãoconfiassenela,eramaisumaquestãodenãoquererpreocupá-la.
Duranteumtempo caramquietaseLisacochilou,masquandoAlliesemexeunacadeira,orangidoaacordounovamente.
—Aindaestáaqui.—AvozsonolentadeLisapareciasatisfeita.—Claroqueestou—respondeuAllie.—Vocênãodeve carsozinhaotempo
todo.Émuitochato.Ondeestãoasenfermeiras?Lisaolhouemvoltacomoseesperassevê-lassaltandodetrásdeumarmário.—Nãosei.Éestranho, carammuitoaquiontem,masquasenãoasvihoje.—
Bocejou.—Mefala,oqueandaacontecendonomundoreal?Oqueestárolando?Allieimaginouoquantodeveriacontar.EmseguidadecidiuqueLisaconheciaJo
melhordoqueela.—Nãomuitacoisa.Ascoisassóestãoumpoucoestranhas.E...Lisa,aJomeio
queteveumataquehojedemanhã,eagoratáseriamenteencrencada.Lisapareceumaisalerta.—Comoassim?Porqueelatáencrencada?AlliecontouaLisaoquetinhaacontecidonaquelamanhãnotelhado.Quando
terminou,esperavaverameninaemchoque,mas,emvezdisso,elaapenasbalançouacabeça.
—Coitadada Jo.Eladeve estarmuitochateada.Queriapoder conversar comela.
—Lisa,oCartermefalouqueelajáfezessetipodecoisaantes...?Lisaassentiu.—Você conhece a Jo—disse.—Ela é absolutamente adorável.Masospais
ignoramela.Sempreaignoraram.Achoqueelafaziaessetipodecoisaprachamaraatençãodeles.Depoissetornouumaespéciedehábito,eusuponho.Elescansaramemandaramelapracá.Maselaéfelizaqui,entãohámuitotemponãoacontecia.Aúnicacoisaqueconsigopensaréqueoqueaconteceunobailefoidemais.
Pareciatriste.—ElagostavamuitodaRuth,sabe?Allieassentiu.—Achoquefazsentido.Masnuncaaviassimantes.Nãosoubeoquefazer.LisaesticouamãoparapegaradeAllieeapertou-a.—Pobredevocê.DeveacharqueaCimmeriaéumasilodeloucos.Naverdade
nãoé.Pelomenosnormalmentenão.—Tudo bem. — Allie pôs a mão em cima da de Lisa. — Quando vão te
liberar?Lisadeudeombros.—Ninguémfalou.Olhandoparaorelógio,Allieselevantou.— É melhor eu ver o que tá acontecendo lá fora. As coisas andam muito
estranhas. Tenho a sensação de que se eu não estiver lá a escola inteira podesimplesmente...explodir.Éassustador.
AbaixouparadarumabraçoemLisa,queparecia tãoraquíticaqueAlliequasenãoaapertou.
Lisasorriuparaela.
—Obrigadaporvirmevisitar.—Euvolto—prometeuAllie.—Esevocêestiverbemosu cienteprafazer
visitas,aJoestáaduasportasdaqui.Masdáumtempopraelarecuperarasobriedadeantes.
Aofecharaporta,AllieouviuLisadizer:—Nãoseesquecedemim...
–O
VINTE
i,Allie!AvozveiodasalacomumenquantoAllievoltavadaalamédicaparaaescola,
eelavirouparaverLucasachamandocomumaceno.—Oi,acabeideveraLisa—disseAllie.—Elaestavabem.—Ótimo!—respondeuele.—Seiqueelaqueriatever.AJotambémfoi?Alliebalançouacabeça.Eleaindanãosabeoqueestáacontecendo?—VocênãofaloucomoGabe?—OtomdeAllieeracauteloso.—Não,nãovioGabe,oCarterouaJo.Vocêsabeoqueestáacontecendo?Eladiminuiuavoz.— Aconteceu uma coisa hoje de manhã. — Relatou brevemente os
acontecimentosdotelhado.Lucasrevirouosolhos.—AimeuDeus.Issodenovonão.Allierecuousurpresa.—Comoassim,“denovo”?— A Jo fazia esse tipo de coisa o tempo todo. Foi por isso que os pais
mandaramelapracá.AJosurtaàsvezes.Bebedemais,sedroga,aíbateoPorschedealguém, invade o casamento de um estranho... Você sabe. O “a-mamãe-não-me-ama”desempre.—Elenãopareceusolidário.—Foiporissoqueeutermineicomela.Todoessedramachatérrimo.Cansa.
—Vocêachaqueelavaiserexpulsa?LucasriucomoseAllietivessefeitoumapiada.—Nunca.Ospaisdelasãomuitobemrelacionadosemilionários.Elapoderia
matar alguém que mesmo assim a deixariam continuar até a formatura, e aindafariamumafestadedespedida.
AntesqueAlliepudesseresponder,eleprosseguiu:—Bom,pelomenosissoexplicaondeaJoeoGabeestão;elaestáencrencadae
ele,tentandoajudar.MascadêoCarter?Allie relatouaversãoeditadadecomoela eCarter tinhamvioladoo toquede
recolhernanoiteanterior.— Espero que ele não esteja encrencado demais — disse Allie ao terminar o
relato.—Ah, a Isabelle vai superar,não sepreocupa.Ela ngequeele é sómaisum
aluno,mastodomundosabequeelaamaelecomosefosseum lho.—Eleaolhouanalisando-a.—Oqueestárolandoentrevocês,aliás?Estãoficando?
Ruborizando,Alliebalançouacabeça.—Não,claroquenão.Sósomosamigos.— Hm-hum. — Lucas não pareceu convencido. — Amigos que fogem pra
florestadepoisdotoquederecolher.Omelhortipodeamizade.OtomdeLucaseradeprovocação,eAlliesentiuacorsubirmaisainda.—Nãosejadoido—disseela.—Sejacomofor,nãoseicadêeleagora.—EsperoqueoSylvainnãoestejapegandopesadocomele.Elevaimorrerde
ciúmedevocêpassartempocomoCarteragoraquedeuumforanele.Allieestavaolhandoparaochãoparaesconderorubordorosto,maslevantoua
cabeça.—Comovocêsabequeeudeiumforanele?Lucassorriunovamente.—Allie,nãoexistemsegredosnaCimmeria,principalmentenoquesereferea
relacionamentos.AKatieGilmoreandairritantementefelizdesdesextaànoite,eestácontando pra todo mundo que o Sylvain te dispensou — revelou Lucas. —Considerando que ele está completamente infeliz, todomundo presumiu que, naverdade,foivocêquedispensouele.Adivinhei,certo?
Allieassentiu.—Ótimo.Elesabeserumcompletobabaca.Éoqueacontecequandoseuspais
sãobilionáriosevocêé lhoúnico.—Lucassorriuendiabrado.—Elenãoébomosuficientepravocê.OCarterébemmaislegal.
Enquanto Allie tentava insistir mais uma vez que ela e Carter eram apenasamigos,Lucasriueainterrompeu:
— Escuta, eu tenho que ir. Vou ver se o Carter voltou pro dormitóriomasculino. Ou o Phil, ou qualquer pessoa, na verdade. Eu tô muito entediado.Talvez seja forçado a estudar se alguma coisa não acontecer logo.Um verdadeiropesadelo.
Contudo,enquantoelesedespedia,umameninaaltaegraciosaseaproximou.—Ouvi você ameaçar estudar, Lucas? Por favor, não. ATerra pode parar de
girarehojetemmacarrãonojantar.Nãoqueroperder.—Tudobem,então—respondeuLucas.—Vouarrumaroutracoisaprafazer,
nãoqueroquepercaoseuespaguete.Allie e amenina se olharam com expectativa durante ummomento até Lucas
notar.—Ah,desculpa.Nãopercebiquevocêsnãoseconheciam.AllieSheridan,essaé
aRachelPatel.Rachel,Allie.Vocêsdeveriamconversar.Podemgostarumadaoutra.Sãoduasmalucas.
—Babaca—Racheldisseafetuosamente.Sentindo-sede foradasprovocaçõesamistosas,Allie examinouos sapatos,mas
depoisqueLucasseafastou,Rachelvirouparaelacomumsorrisolargoqueexibiadentesbrancosperfeitosecovinhas.
—OLucas é legal.Éaquele caraqueé tãomeuamigoqueeununcapoderianamorar.Vocêtemumdesses?
Elatinhapelebronzeadaeolhosemformadeamêndoas,eseus longoscabeloscacheadosestavampresosporumelásticoprateado no.TinhaumsorrisoirresistívelqueAllieseviuretribuindofacilmente.
—Achoquetodomundotem—respondeu,pensandoemMarkemLondres.— Fato. É como uma regra da natureza. — Rachel estudou Allie por um
momento.—Então nalmenteconheçoafamosanovaalunadequemtodomundofala.
Alliegostoudavozdela—eraquasedoce,comumlevetoquedeumsotaquedonorte.
—Ninguémfalademim—replicouAllie,envergonhada.—Temoquefalemsim.Naverdadevocêédaminhaturmadehistória,sabia?
—disseRachel.Allie tentou se lembrar de tê-la visto lá e invocou uma vaga imagem de uma
meninasériaquesempresabiaasrespostasparaasperguntasdeZelazny.—Vocêusaóculos—disse,comumtomnegligentementeacusatório.—Eé
superinteligente,certo?Rachel pegou um par estiloso de óculos de moldura escura do bolso da saia
apenasosuficienteparaqueAllieosvisse.—Confesso.Souumanerdtotal.Nãoconsigoevitar.Eeusóusoosóculospra
enxergarasprojeções.Elapausou,emseguidafalou:—Aspessoasrealmentefalamdevocê,sabe.Alliefezumacareta.—Ah,ótimo.Oqueelasdizem?Comatestaenrugadaenquantopensava,Rachelpassouumalistaresumida.
—Ah, você sabe,primeiroque estava cando comoSylvain,depoisquenãoestavamais;queéamigada Jo,depoisquea Jo surtou;que foivocêqueachouocorpodaRuthnanoitedobaile...—pausou.—Oqueépéssimo,apropósito,seforverdade.
AlliebaixouosolhosearespiraçãodeRachelsibilouatravésdosdentes.—Droga.—Elaolhouparaorelógio.—Praondevocêestavaindo,aliás?Está
ocupada?Alliebalançouacabeça.— Vamos almoçar — disse Rachel enquanto caminhavam pelo corredor. —
Querosabertudo.AlémdahistóriadaRuth,querosaberoqueestásepassandocomaJoArringford.Oquehouve?Ela realmente se jogoudo telhado?A fofoca sobreesseassuntoéinacreditável...
Sentadaemumcantosilenciosodasaladerefeições,comxícarasdecháesanduíches,Allie se viu contando tudo para Rachel. Tudo sobre ter encontrado Ruth e emseguidaLisa,assimcomoahistóriadoseventosdotelhado.Rachelprestouatençãoacadapalavraenquantoosanduíchepermaneciaintocadoàsuafrente.
Porqueconseguiacontaraelacoisasquenãotinhareveladoaninguém,Allienãosabia.Talvezeusóprecisedealguémpraconversarquenãosejaummeninoequenãová se jogardo telhado,pensou.Qualquerque fosseomotivo,nãoparecia capazdedeixardefalarefalar.
Havia algo inerentemente honesto em Rachel. Ela parecia ao mesmo tempoconhecedoraecríticadaCimmeria.Sabia tudosobre todomundodaescola,e,noentanto,claramentemantinhaumadistânciadamaioria.Lucaspareciaserseuúnicograndeamigo,masquandoAllieperguntouporqueelanãosentavacomele,GabeeJonasrefeições,elafezumacareta.
—Nãoéaminha—disse.MasRachelnãoeraexclusivamenteouvinte.Provouserumaverdadeiracolunista
defofocadasintrigasdaCimmeria.—Comovocêsabedissotudo?—Allieperguntouemdeterminadomomento.—Eusimplesmenteescuto—disseRachel.—Você cariaimpressionadacom
oquantoépossívelaprendersesimplesmentesentarquietae ngircuidardaprópriavida.Talvezestejanomeusangue.Meupaiéumaespéciedeinvestigador.
—Tipoumpolicial?—perguntouAllie.—Maisoumenosisso.Quandoasalaesvazioueasduasficaramlásozinhas,Rachellançouumdesafio.—Falaonomedequalquerpessoadestaescolaeeutedigotudosobreela:coisas
sabidasoususpeitadas.—Sério?—Allieriu.—Sério.—Tudobem...KatieGilmore—falouAllie.Rachelsorriu.—Boaescolha.Incrivelmenterica.Opaidelaébanqueiroinvestidor,moraem
Kensington,transacomaempregada.Compraos lhoscomfériasemSeychellesecompra amulher comumAmericanExpress Black.—Serviu-se de um copo desuco.—O irmãodela se formou aquino anopassado, agora estuda emOxford,ondeaprendeafazerdinheiroigualaopapaizinho.
—Impressionante—disseAllie, comumolharde respeito.—Ea Jules?—perguntou.
Rachelfezquesimcomacabeça.— JulesMatheson,muito inteligente, notas perfeitas, aparência perfeita, toda
perfeita. É um pouco assustador. O pai dela é conselheiro da Rainha. O irmãoestudouaquiháalgunsanos,acaboude se formarcomhonrasemHistóriaAntigaemCambridge.Nadadeescandalosoaí.QuersaberdaJo?
Engolindo em seco, Allie hesitou antes de responder. Isto parecia uma certatraição.Mas Jonunca tinha reveladomuito sobre si,naverdade.Edepoisdoquetinhaacontecido...
—Quero—respondeu.—JoArringford—desembuchouRachel.—Filhadobanqueiroeex-ministro
de governo omas Arringford, que atualmente é um executivo do FundoMonetárioInternacionalemoranaSuíça,temcasasemKnightsbridge,naCidadedoCabo, SaintTropez... onde você imaginar.Os pais dela são divorciados.O papaitemumanovamulher,queéseisanosmaisvelhaqueaJo.AmamãepassaamaiorpartedotempomorandoemSaintTropez.Umirmão,deoitoanosdeidade,estudana Eton. A Jo émuito inteligente, tem notas perfeitas. Já teve três surtos e umatentativadesuicídio...
—Para!—disseAllie,tardedemais.—...háumanoemeio—concluiuRachel.—AJotentousematar?—sussurrouAllie.Rachelassentiusombriamente.—NoferiadodeNatal.Ospaisdela...nenhumdosdoisachamoupravoltar
pracasa.Elaficouaqui...tomouunsremédios.Alliesesentiuenjoada.—Como...?
—OLucasqueencontrou,eles sóestavam candoháunsdoismeses.Ocaratinha cadoaquiprapassaroNatalcomela.Quandoelanãodesceupra jantarnodia25,ele subiuatéoquartodelapravercomoestavae...FelizNatal,pessoal—suspirou.—Fizeramuma lavagem estomacal,mandarampro psicólogo.OLucascoudo ladodelao tempotodo.Quandoelamelhorou, terminoucomela.AJo
começouaficarcomoGabetrêssemanasdepois.—Nãofoiàtoa...—AfrasedeAlliepairounoar.—Oquê?—perguntouRachel.—DepoisqueaJo...vocêsabe.OLucasnãopareceusurpreso.—É,bem.Nãoficou—disseRachelsecamente.—Masporquetodomundo,porqueoLucasaindaéamigodela?—Vocêconheceuela—respondeuRachel.Noventaenoveporcentodotempo
ela é ameninamaisdoce e generosaque você já conheceu.Alémdisso, ela éumadeles.
—Umadeles?—perguntouAllie.—Vocêsabe,afamíliaérica,ospaisestudaramaqui,algunsconhecemeladesde
pequena.ElaécompletamenteCimmeria—declarouRachel.EnquantoAllie cavaparadaporuminstante,pensando,umaideialigeiramente
terrívellheocorreu.—Oquevocêsabesobremim?Rachelpareceuhesitante.—Temcertezadequequersaber?Allieassentiu.—Euaguento.Claramentedesconfortável,Rachelpensoucuidadosamenteantesderesponder.—Certo,euseimuitopoucosobrevocê,econsiderooqueseisemfundamento.
— Pausou, parecendo pedir desculpas. — Mas lá vai. O nome Sheridan édesconhecidodetodos,entãovocênãotemlegado,anãoserquesejapeloladodasuamãe.Vocêé lhaúnicaatéondetodossabem.Seuspaistêmempregospúblicosde alguma espécie. Cresceu no sul de Londres.Tem cha criminal. Seus pais temandarampracáporcastigo.Tembolsadeestudos.EncontrouocorpodaRuth.
Allieengoliuemseco.Quandocolocadodestamaneira...—MeuDeus,eupareçoumaperdedora.— Ei, não foi essa a minha intenção. — Rachel pareceu preocupada. — Eu
realmentenãoseimuitosobrevocê.Nãoteachoumaperdedora.Allieconsiderouisto,emseguidaolhoudesafiadoramenteparaRachel.—Evocê?
—Oquetemeu...oquê?—disseRachel,confusa.—Mefalaasfofocasdevocê.Rachelsorriu.—Justo.Tudobem.Deixaeuver.RachelPatel, lhadeRajesheLindaPatel.
NascidaemLeeds.Paiasiático,mãenão.PaifoialunobolsistadaCimmeriaeagoraéumespecialistaemsegurançainternacional;trabalhaparaalgunsgovernos.Assuntosultrassecretos.ÉdoconselhodaCimmeria,muito in uente.Racheltemumairmã,Minal,quetem12anosdeidade.AmãedeRacheltemdoisph.D.,umexcesso,sequer minha opinião, e administra uma empresa privada de pesquisa médica nãomuitolongedaqui,ondeafamíliatemumaresidênciasuntuosademuitosacresdeterra. Rachel tem notas perfeitas em quase todas as matérias, principalmente emciências,equersermédicaquandocrescer.Tudobem?
Alliesorriu,masseusolhosestavamsérios.—Tudobem.Estavamquites.
Jonãoapareceunaauladebiologianasegundademanhã.Sem conseguir lidar com o fato de não saber o que estava acontecendo, Allie
ficoudepoisdaaulaparaperguntaraJerryondeelaestava.—AJotransgrediuseriamenteasRegras,conformevocêsabe,Allie.—Tirouos
óculosdearmação na.—Elarecebeuoqueagentechamadesuspensãoemcasacomocastigo.
—Oqueéisso?—perguntouAllie.Eleesfregouaslentescomumlençobrancoelimpo.—Signi caque,quandoforliberadadaenfermaria,vaiterque carnoquarto.
As refeições e os trabalhos escolares serão entregues lá, mas ela não vai poderparticipardenenhumaatividadenormal.
Alliegirouabainhadacamisabrancanosdedosenquantoconsideravaaspalavrasdoprofessor.
—Quantotempovaificar...suspensa?Jerryequilibrounovamenteosóculosnonariz.— Só uma semana, desde que obedeça às restrições, acompanhe o trabalho
escolarenãoviolemaisnenhumaregra.—EupossoveraJo?Jerrybalançouacabeça.— Sem contato, sinto muito, Allie. Ela deve utilizar esse tempo isolada pra
refletireestudar.
Allieolhouparaochãoenquantoelefalou,masentãolevantouacabeçacomaexpressãocheiadepreocupação.
—Elaestámelhor?Jonãoestava...sabe...normalontem.Portrásdaslentesbrilhantes,osolhoscastanhosdeJerryeramgenerosos.—Nãoavi.PerguntapraEloiseoupraIsabelle,elaséqueestãosupervisionando
ocastigo.Mastenhocertezadequeestábem.Allieassentiu.—Obrigada,Jerry.Então a Jo está encrencada, mas não foi expulsa, Allie pensou ao atravessar o
corredor.OLucastinharazão.FicouimaginandoseJoaindaestaria loucaouse játinhavoltadoaonormal,e
em seguida se sentiu desleal por especular. Mas não podia ngir que osacontecimentosdodiaanteriornãoa zeramquestionarserealmenteconheciaJoounão.
AconversacomJerryquase fezcomqueseatrasasseparaaaulade inglês,eaoentrar, amaioria dos alunos já estava sentada.Allie sentou ao lado deCarter, queestavarabiscandoocantodocaderno.
—Oi.—Oipravocê também.—Ele levantouoolharpara sorrirporumsegundo,
emseguidaretornouaodesenho.—Porondevocêandou?—perguntouAllie,tirandooslivrosdabolsa.—Não
tevejodesdeontemdemanhã.CarterlançouparaAllieumolharcheiodesignificado.—Vocêsabe.Coisas.Elaergueuassobrancelhas,masdeixoupassar.—OJerrydissequeaJovaipassarumasemanaemprisãodomiciliar—disse,
passandoaspáginasdolivro.—Merece—concordouele,acrescentandoemseguida:—umacamisadeforça
tambémnãofariamalnenhumaela.—Bomdia,turma.—AvozdeIsabellesalvouAlliedeterquepensaremum
contra-ataque.—RecentementenóslemosobrasdeT.S.Eliot,enasemanapassadapedi para lerem um trabalho que in uenciou muito a sua escrita, osRubáiyát deOmar Khayyám, notoriamente traduzidos por um homem chamado EdwardFitzGerald.DiscutimososenhorFitzGeraldnasexta-feira...
Depois de tudo que tinha acontecido naquele m de semana, Allie não tinhaqualquerlembrançadaauladesexta-feira.DecidiuqueteriaqueacreditarnapalavradeIsabelle.
— Vamos começar com minha passagem preferida, Quadra LXIX. Clare —Isabelle se voltoupara umamenina loura bonita—, você pode ler pra gente, porfavor?
Alliesentiuumaondadeinvejacomumapontadadeculpa—ClaretinhasidoopardeCarternobaile,eAllievinhaevitando-adesdeentão.Lembrou-sedoolhardeClareparaCartercomumaespéciedeadoração.MasCartertinhapassadootempotodoolhandoparaAllie.
Levantando-se,Clareleucomumavozdocecomoumsino:
ÉumtabuleirodexadrezdenoitesediasOndeodestinobrincacomhomenscomopeças:Movimentosaquieacolá,chequesemortes,E,umporum,voltamàgaveta.
—Obrigada,Clare—disseIsabelle.Aoretomaroassento,ameninalançouumolharesperançosoaCarter,masele
estavacomosolhosgrudadosnocaderno.Quebagunça,pensouAllie,desenhandoumcoraçãopretoemumapáginabranca
docaderno,eemseguidaapunhalando-ocomumaflecha.Isabelleseapoiouemumamesa.—Estaéumaescritaquaseexistencialista,amaioriadevocêsvaiselembrardas
teorias básicas do existencialismo que vimos no começo deste período, se nãolembram,passemnabibliotecaporqueissovaicairnaprova,queeuadorotantopelavisãodesoladoradavidaquantopelohumornegro.Oequilíbrioéúnico.Então,oqueachamqueeleestádizendo?
QuandoAllieleuapassagemnodomingo,teveum ashbackdaauladexadrezdeJoqueacabarainterrompidaháalgumassemanas.Masantesquepudesselevantara mão, a voz de Carter a surpreendeu — não achou que ele estivesse prestandoatençãoàaula.
—Achoqueeletádizendoquenóssomospeões.Equeodestinoescolheoqueacontece comagente; comquemnos casamos,quandomorremos.Mas eo livre-arbítrio?Nósnãotomamosdecisões?Issonãoépoder?
—Precisamente—concordouIsabelle.—Poroutro lado,nosso livre-arbítrionãoéafetadopeloqueodestinonosdá?
—Masissoéumabsurdo.—AvozcaracterísticadeSylvainveiodofundodasala,eAllievirounacadeiraparavê-lo.—Tudodependedenós.Nósdetemostodoopoder.Nãoexistedestino.Comopodeexistir?
—Típico—murmurouCarter.Sylvainoencarou.—Oqueissoquerdizer,Carter?AntesqueCarterpudesseresponder,Isabellesemeteuentreeles.—Fico feliz queosdois estejam levando apoesia tão a sério,masnunca tive
umabriganaminhasalaporcausadeOmarKhayyám,epre ronãoterumaagora.Então, acho que esgotamos minha passagem predileta. A próxima passagem quegostariadeolhar...
Duranteasemanaseguinte,aescolavoltoumaisoumenosànormalidadeentediante.Ocheirode fumaçadesapareceugradualmente, e as reformascomeçaramno salão.Uma caçamba de entulho apareceu do lado externo da ala oeste, e pedia-sefrequentemente que os alunos evitassem o corredor principal entre o salão e acaçamba.Apercussãodemartelos e furadeirasquedistraíabastante logo se tornouumaspectotediosododiaadia.
Lisafoimandadaparacasaparaserecuperardosferimentos.E,semelaeJoporperto,Allie se viu passando quase todo o tempo comRachel. Isto signi cava quepassava o tempo quase todo na biblioteca, pois era lá que Rachel parecia morar.EntãoAllienãosesurpreendeunemumpoucoquandoRachel sugeriuquefossempara a biblioteca estudar na tarde de sexta-feira. Lucas veio juntomeio contra suavontade,alegandoterumtrabalhoparasegundanoqualaindanemtinhatocado.
Rachelseprovouacompanhiaidealparaosexercíciosdeciências,considerandoquesabiatudo.
—Vocêrealmenteéumgêniodasciências—maravilhou-seAllie,fazendoumacareta enquanto Rachel explicava a estrutura biológica da tênia, com os olhosrelativamentebrilhantesdeinteresse.
Levantandoosolhosdoslivros,Lucasdisse:—Porquevocêachaqueeusouamigodela?Nãoécomoseelafosselegal,ou
coisadotipo.Rachel deu uma cotovelada nas costelas de Lucas, e em seguida se voltou
novamenteparaAllie.— Meu negócio é a ciência, mas você pode me ajudar com francês, que
definitivamentenãoéaminha.—NãofalaemfrancêscomaAllie—alertouLucas.Quandoasduasolharam
confusasparaele,Lucasmexeuabocasemfalar:—Sylvain.—Ah,não.—Allieenterrouorostonasmãos.—Muitocedo?—perguntouLucas.
Alliefezquesimcomacabeça,masRachelestavalutandoparanãorir.—Quê?—perguntouAllie.— É que — disse Rachel, rindo — você terminou com oSylvain. É como
terminarcom,seilá,Deusoucoisadotipo.RacheleLucasagoraestavamrindodescontroladamente.— Basicamente todas as meninas desse colégio querem car com ele e você
simplesmenteodispensou.Alliesentiuorostoruborizar,eolhouemvoltaparasecerti cardequeninguém
tinhaescutado.—Queremcalaraboca?—sibilouAllie.—Sério!Enquanto tentavam se controlar, comRachel limpando lágrimas de tanto rir,
Allievirouaspáginasdolivro,franzindoorosto.—Eleéumbabaca—murmuroudefensivamente.Isso os ativou novamente, só que desta vezAllie tambémquis rir.Tinha que
admitir,eraumtantoengraçado.Deumjeitohorrível.Naquela noite, depois do jantar, entediada de tanto ir para a biblioteca, Allie
voltou para a sala comum, para ler a tarefa de inglês. Mesmo após uma semanatentandoalcançaramatéria,aindaestavaatrasada.ApesardoincêndioedamortedeRuth, os professores estavam aumentando a pressão, e ela tinha montanhas decapítulosparaler.Antesdasnovedanoiteestavaquasedormindo,encolhidaemumapoltronadecouropertodeumpianoinutilizadoemumcantodasala,comacabeçaapoiadaemumadasmãos,easpalavrasnapáginaasuafrentecomeçandoanadar.Quando um pedaço de papel dobrado em um quadradinho apareceu diante dela,Allielevouuminstanteparanotaroqueestavaacontecendo.
—Seu amigoCartermepediu pra te entregar— sussurrouLucas, colocandoumaênfasesarcásticanapalavra“amigo”.
—Quê?Cadêele?—perguntouAllie,sentando-seeretaeolhandoemvolta.Lucasdeudeombros.—Eupasseiporelenocorredorháalgunsminutos.Tenhoquecorrer.Agente
vaijogarcríquetelánafrente.Olhandoemvoltaparasecerti cardequeninguémaobservava,Alliedesdobrou
opedaçodafolhadecaderno.Acaligra abonitadeCarterpreenchiaapenasalgumaslinhasnocentrodapágina.
AllieAgenteprecisaconversar.Meencontreàs9h30nabiblioteca.Vouestarnaseçãodelatimantigo
nofundodocantoesquerdo.NãodeixaoSylvaintevermeprocurando.C
O coração de Allie bateu mais acelerado. Assim que terminou de ler as palavras,dobrouobilhete aomeiopara escondero recadoeoguardouentre aspáginasdolivro.
Os 20 minutos seguintes passaram lentamente enquanto ela tentava ler, masachava impossível se concentrar. Finalmente, às 09h25, juntou as coisas e, seespreguiçandodeformateatralparaindicarquãocansadaestava,casoalguémestivessedeolho,levantoudacadeira.
—Bem,achoquevoudormir—falouparaninguémantesdesedirigirparaaporta.
Umaveznocorredor,parouefolheouospapéis,esperandoparaversealguémaseguira. Quando ninguém apareceu, foi para a biblioteca, parando para olhar porcimadoombroantesdeabriraporta.
Ládentroviuqueolocalestavacheio,porémsilencioso,eaoatravessarostapetesmacios, virou algumas páginas do caderno como se estivesse procurando algumacoisa.Ocasionalmente olhava os números dos livros nas prateleiras.Como se nãotivesseachadooquequeria,continuava.
Eudeveriaseratriz,pensou.Tãoconvincente.Gradualmentefoipassandopelaparededepainéiselaboradosondeoscubículos
deestudodosformandostinhamaquelesmuraisestranhamenteviolentos,echegouàseçãode línguas antigas.Quantomais avançava,menospessoas via.Ao alcançar asprateleirasdaparededofundo,nãohaviamaisninguémporperto.
Incertaquanto à localizaçãodos livrosde latim,passoupor cada la,puxandolivrospesadosdasprateleirasparaidenti cara língua.Masapesardeterencontradolivrosantigos,comcapadecouro,pilhasemgregoeemárabe,nãoachounadaemlatim.
—Porqueesconderamoslivrosdelatim?—murmurou.—Éalgumaespéciedepiadinhainteligente?Tipo,sequiserleremlatimtemqueiraté...
—Allie.Osussurroqueinterrompeuseuspensamentosaleatóriosveiodealgumlugarà
frente,nocantomaisisoladodorecinto.—Carter?—Aluminosidadeerafraca.EnquantoAlliecerravaosolhosparaver
quemtinhafalado,umamãoseesticoudassombraseapuxouparaoespaçoentreduasenormesestantesdelivros.
—Jesus—disseAllie.—Bastavaumsimples“oi”.Carternãosorriu.— Desculpa. Só quis te trazer aqui antes que todo mundo na biblioteca
começasseaimaginaroquevocêestariafazendonasessãodelínguasantigasfalandosozinha.
—UmtrabalhosobreRomaAntigapraauladehistória.Allie estava muito satisfeita com seu álibi, mas Carter não pareceu
impressionado.—AgenteestáestudandoCromwell.— Eu estou me adiantando — disse defensivamente. — A gente vai ter que
estudarRomaalgumahora.—Muitoconvincente.QuandoAllieassimilouaexpressãosemhumordeCarter,seucoraçãoafundou.—Oque houve,Carter?Qual é a de toda essa trama? Por que não veiome
buscarnasalacomum?—Olha,temosumproblema.—Cruzandoosbraços,eleapoiouascostasem
umaestantecomoseestivessetentandocolocardistânciaentreosdois.—Certo—disseela.—Qualéonossoproblema?—Apartirdeagora,sealguémteperguntaroquevocêviunasextaànoite,você
dizqueaRuthsematou,tudobem?Allieabriuabocaparaprotestar,maselelevantouamãoecontinuoufalando.—Porque até onde todomundo sabe, foi isso que ela fez, tudo bem?Ela se
matou.UmsilêncioseabateuenquantoelapensavanoqueCarterestavafalando.—Maseuseiquenãoéverdade—disseela.—Sabe?—questionou.—Comovocêsabe?Porcausadasuaexperiênciacom
ciênciaforense?Estavaescuro,Allie.Tinhamuitosangue.Vocêseassustou.MasnãotemcomosaberseaRuthsematouounão.Entãoparadebancaradetetive.
—AIsabelletemandouaquipramedizerisso?—perguntouirritada.—Ninguémmemandou.—Elaolhounosolhosdele,procurandoalgumsinal
deevasão,maselenãodesviouoolhar.Carteralcançouamãodela.—Eutôdoseulado,Allie.Deverdade.—Entãonãoentendo!—eladisse,libertandoamão.—Porqueestáfazendo
isso?Euvioquevi.Carterseaproximou.—Olha,Allie,estãoespalhandoquevocêestavacomelaquandoelamorreu.
—Queeu...oquê?—Ameninaoencarou.—Equevocêfoiaúltimapessoaqueviuelaviva,eaúnicaqueviuocorpo.Alliebalançouacabeça.—Eunão...Ogarotoescolheucuidadosamenteaspalavrasseguintes.—Allie,estárolandoumboatodequevocêtevealgumacoisaavercomamorte
daRuth.
N
VINTEEUM
amanhãseguinteAlliedesceuasescadasprecisamenteàs6h43.Seuscabelosestavampresosemumrabodecavaloquebalançouacadapasso.Pareciacansada,porémdecidida.
QuandodeixouCarternanoite anterior, foi aobanheiro e jogou água frianorosto. Ficou lá durante algum tempo, se olhando no espelho, revivendomentalmenteaconversa.
—Como alguémpode achar que eu tive alguma coisa a ver com amorte daRuth?—perguntaraaele,chocada.—Issoéloucura.Agentemalseconhecia.Porqueeuiaquerermachucarela?
—Éumaarmação,Allie.—O rostodele estava sombrio.—TambémestãofalandoquevocêembebedouaJonotelhado,equetem...problemasmentais.—Ela abriu a boca para protestar e ele levantou a mão. — Quem quer que estejaespalhandoessascoisassabequenãoéverdade.Estãoteprovocando.
—Masporquê?Porquealguémiaquererfazerisso?—Algumaspessoassesentemameaçadasporvocê.— Como eu ameaço alguém? — ela perguntou lamuriosa. — Eu não sou
ninguém.—Játedissequenãoachoqueissosejaverdade—disseele.—Enemninguém
acha.—Nãoentendo.—Elapassouosdedospelocabelo,pressionandoastêmporas
com força.—Meus pais são funcionários públicos.Não são ricos.Amaioria daspessoasaquiéfilhademilionários.Comopodemsesentirameaçadospormim?
—Éissoqueagenteprecisadescobrir—disseCarter.Depoisdissonãoconseguiudormir.Agitada, saiudacamaàsduasdamanhãe
abriu a janela para entrar ar fresco.Umahora depois a fechouporque estava comfrio.Emummomentoouviupassospelaportadoseuquarto,eemseguidasilêncio.
Maisdeumavezopensamentopassouporsuamente:seráquefoiaRachel?Eucon einela.Elaéaúnicaquesabedetudo.Nãoconteipramaisninguém.Elaadorafofoca.Maselanãofaria...Faria?
Achavaquetinhacochiladoporvoltadasquatrodamanhã,masnãopormuitotempo.Quandooalarmetocouàs6h15,estavacompletamenteacordada,olhandoparaoteto.
Eagoratinhaqueenfrentarocafédamanhã.
Indoomais cedopossívelpara a salade refeições emumsábado,Allie torciaparaevitaramaioriadaspessoas.ElaeCartertinhamdecididoqueeladeveriaviverodiacomosempre.Maselanãoquerialidar,porexemplo,comKatieGilmoreagora.
Aoentrar,ninguémpareceuprestarnenhumaatençãoindevidaaelaeenquantoenchiaopratocomcerealetorrada,sepermitiuumasensaçãodealívio.Talvez essacoisatodadeboatonãovácausarnada.
Olhouaoredordasalaprocurandoascompanhiashabituais,mastinhadescidotãocedoqueninguémestavalá.
—Oi,Allie.Vemsentarcomigo.—Rachelestavasozinhaaumamesaàdireita.Por um instante Allie hesitou, os pensamentos da noite passada giraram
nauseantes.MaspareceriaestranhonãosentarcomRachel.Rachel éapessoamais ligadanas fofocasdo colégio.Senãomencionarosboatosa
meurespeito,vousaberqueéela.Foiatéameninaerepousouabandejasobreamesa.—Porumsegundoacheiquefosseterquesentarsozinha.— Eu sempre tô aqui cedo — disse Rachel. — Meu pai meio que me
programoupraacordarcedoquandoeuerapequenaeagoraachoquevouserassimprasempre.Éerradoatrapalharosonodecrianças.
Rachel tinha feito um sanduíche de torrada, ovo e queijo, e ao servir leite nocereal,Allietevequeadmiraramaneiracomoelaodevoravasistematicamente.
—Seucaféparecemelhorqueomeu—observou.—Arefeiçãomaisimportantedodia,amiga—disseRachel,mastigando.—Ei,
vocêsoubequeaspessoasestãoespalhandoboatoshorrorososaseurespeito?Alliecongelou,comacolherameiocaminhodaboca.—Ouvialgumacoisa—dissecautelosamente.—Ouviumacoisalouca.Rachelassentiu.— O “a Allie é uma assassina psicopata”? Foi esse que eu ouvi. Soube pela
SharonMcInnon,conhece?Alliebalançouacabeça.—Bem—Rachelestavadandoumamordidanosanduíche—,eumandeielase
foder.UmaondadealívioseabateusobreAllie.NãofoiaRachelentão.Sabiaquenão
tinhasido.—Ecomoelareagiu?—perguntou.— Bem — respondeu Rachel. — Acho que ela está acostumada a me ouvir
dizendoisso,porqueelaéumavaca.Agoraasduasestavamrindo,masaspreocupaçõesdeAllienãoadeixaramrelaxar
pormuitotempo.—Quemestá falandoessascoisas,Rachel?—perguntou.—Sãomentiras tão
horríveis,quemfariaumacoisadessas?—Passeiamanhãtentandodescobrir—falouRachel,franzindoatesta.—Não
sepreocupa.Voudesvendar.Allieergueuaxícaradechá.—Comvocêdomeulado,Rachel,elesnãotêmamenorchance.Masporalgummotivo,Allieaindasesentiadesconfortável.Ao caminhar pelo corredor após o café da manhã, estava perdida em seus
pensamentospreocupados.PossoconfiarnaRachelagora.Certo?Játinhaquasechegadonaescadaquandoavoza adadeKatiecortouosilêncio
damanhãnormaldesábado.—Oi,assassina!Comoestápassandoestamanhã?Allievirouparaencará-la.—Vaisefoder,Katie.—Olhaaboca.—Oslábiosperfeitosdaruivaestavamcurvadosemumsorriso
vil. — A gente tinha que saber que, se te deixasse entrar na escola, ia tudo proinferno.
Seu grupo de puxa-sacos polidas riu ao redor, sussurrando uma para a outraenquantoesperavamumarespostadeAllie.
—Doquevocêtáfalando,Katie?—Allielutouparamanteravoz rme,apesardaraivaquecresciadentrodela.Mesmotentandopensarnamelhormaneiradelidarcomasituação,odesejoopressordesocaracaradeKatieestavafalandomaisalto.Cerrouasmãosempunhos.
Enquantosuabatalhainternaexplodia,Katiedeuumpassoemdireçãoaela.—Soube que você tem problemas de temperamento.—Sua voz era baixa e
maliciosa.—FoiissoqueaconteceucomaRuth,Allie?Elatechateou?Teirritou?Allie sentiu o punho levantando antes que tivesse consciência do que estava
fazendo.MasantesdeacertaronarizempinadodeKatie,alguémaagarrouportráseapuxoutãodepressaqueseuspéschegaramasairdochão.
—Katie,vocênãodeveriaestartendoumdosseusataquesdebulimia?—Avoz
sedosadeSylvainperguntouenquantoAlliesedebatianosbraçosdorapaz.Katieoencarouincrédula.—Nãopodeestarfalandosério,Sylvain.Oquevocêestáfazendo?Porqueestá
defendendoessamaria-ninguém?Oquevocêvênela?Allieparoudelutar,maseleaindaaseguravacom rmeza.Ocalordoseucorpo
nodelatrouxelembrançasdesagradáveis.—Vejoalguémcommaisclassedoquevocêjamaisteránessasuavidamiserável.
—Osolhosazul-clarosvarreramogrupodeamigas.—Eissovalepratodasvocês.Agorapodemcontinuarcuidandodosprópriosassuntos,porfavor.
Apósumbrevemomentodeindecisão,ogrupocomeçouamigrarparaasaladerefeições.Katiefoinafrente,decabeçaerguida.
SóquandoestavamcompletamenteforadealcancevisualéqueSylvainabaixouosbraçosechegouparatrás.
—Queriaquetivessemedeixadobaternela—confessouAllie,ingrata.—Penseinisso—revelou.—Elaéhorrível.Eusó...Deixapralá.—Alliepassouapontadopénochão.
—Obrigada.—Denada.Mas temoque você vá termuitosproblemas agora.Esses boatos
estão...—Sylvaingirouodedonoar—emtodolugar.Eelavaiusar issocontravocê.
—Eusei—disseAllie.—Sóqueriasaberqueméquetáfalandoessascoisas.Eleaolhoucomseriedade.—Quandotodomundoestáfalando,achoquenãoimportamaisquemfalou
primeiro.Masacreditoqueosprimeirosboatostenhamsidoespalhadosporalguémqueteminvejadevocê.
Allieolhouparaaportadasaladerefeições.—TipoaKatie.—TipoaKatie—disseele.— Não tenho certeza. Mas é uma coisa que... ouvi. Vou investigar. E se
descobrir,voufalarcomaIsabelle.Allienãoqueriatergratidãoaele,nãodepoisdoquetinhaacontecido.Masseele
pudesseimpedirqueissopiorasse...—Seriaótimo,Sylvain.— Não se preocupa. Como vocês britânicos dizem, eu te devo uma. — Ela
enrubesceu, mas ele continuou, com o sotaque engrossando na medida em quefalava.—Tenhoquedizerisso,Allie.Nanoitedobaile...Desculpapelojeitoduroque te tratei... Eu sei que te machuquei. Foi errado. Você é diferente das outras
meninascomquemjámeenvolvi.Seiquenãopossotetratarcomoelas.AsbochechasdeAlliequeimaram,maselaoencarou.—Vocênãodeveriatratarnenhumameninaassim,Sylvain.Nunca.ParaespantodeAllie,eleabaixouacabeça.—Temrazão.Absolutment.Porfavor,aceiteminhasdesculpas.— Eu... eu só... Sylvain, não — gaguejou. Não queria perdoá-lo. Queria
continuarcomraiva.Masentãoumpensamentolheocorreu.—Precisosaberumacoisa—disseela.—Vocêcolocoualgumacoisanaminhabebidanaquelanoite?
Elepareceuhorrorizado,enaqueleinstanteelasoubeaverdade.— Meu Deus. Claro que não. O que você pensa que eu sou? — perguntou
Sylvain.—Desculpa—retratou-se.—Maseuprecisavasaber.Porqueascoisas caram
muitoembaçadas.— O champanhe da Cimmeria é forte — disse ele. — Se você não está
acostumado e bebe rápido demais, ele sobe. E eu te deixei tomar rápido, isso éverdade.Etenteitirarvantagemdisso.Foierrado.
Ahumildadeeaaparentehonestidadedelaadeixaramsemescolha.—Estádesculpado,Sylvain—falou.—Jáesqueci.Antesqueelepudesseresponder,elaacrescentou:—Olha,voufugirantesquemaisalguémmechamedeassassinaousedesculpe
por terpraticamenteme estuprado, tá?Não aguentomaisnenhuma emoção antesdasnove.
Antesdevirarparacorrerparaasescadas,eledisse:—Cuidado,Allie.—Seusolhosestavamintensos.—Existeperigodeverdade
aoseuredornomomento.—Ah,ótimo—exclamou, exausta.—Tava torcendopra vocêdizer alguma
coisadessetipo.
Allie jamais teriautilizadoestapalavra,masela seescondeunoquartoduranteboaparte damanhã.Mas antes do almoço já tinha terminado todo o dever de casa eestavaolhandoemvolta,procurandoalgumacoisaparafazer.Eestavacomfome.
Incapazdeencararmaisumarefeiçãonasalalotada,eladesceuumpoucoantesdamaioriadosalunos,pegoualgunssanduíches,guardando-osnabolsacomalgumasgarrafasdeáguaeumamaçã.
Mas ao atravessaro corredorpara aportada frente,umgrupode alunosmaisnovospassouporela,eAllieescutouumdelessussurrar:
—Olhaaíaassassina.
Algunsriram,eoutrosaolharamcommedo.Oquepoderiafazer?Nãopodialutarcontratodos.Entãofingiuquenãoouviue
continuouandando.Aodescerosdegrausdafrente,algunssegundosdepois,umadasamigasdeKatiepassouporelaedesenhouumcírculolargoaoseuredor,comoseelafossetóxica.
—Quenojo—disseamenina,olhando-adacabeçaaospésantesdeseretirarapressada.
Comacabeçaerguida,Alliecontinuou.Masogramadoestavalotadodealunosesticados sobo sol, e ela imaginou escutar sussurros e risadas ao redor.Empoucotempoestavacorrendopelagrama,cruzandoalinhadasárvores.
Longedetodomundo.Nacasadeveraneioparoupararecuperarofôlego.Estavacompletamentevazia
— não via ninguém. Sentada nos degraus, ela abaixou a cabeça até os joelhos erespiroulentamenteatéseacalmar.
Porqueessascoisassempreaconteciamcomela?Porumbreveinstantepensouque tinha encontrado um lugar onde pudesse simplesmente... viver. Onde estavasegura.Ondeeraquaseaceita.
Maserasempreamesmacoisa.Todomundosevoltacontramim.Todomundomeabandona.Queriachorar,masnãopodia.Olhandoparaasárvores,sepermitiupensarem
Christopher.Elenãodesapareceusimplesmente.Primeiroaafastou.Tratou-acomosehouvessealgumacoisaerradacomela.Comosenãoaamassemais.
Agoraestavaacontecendooutravez.Sóquedessavezeracomtodomundo.Bem.Quasetodomundo.Allie tinha Carter. E talvez devesse con ar na Rachel. Havia alguma coisa
inerentemente boa nela. E pelo menos por enquanto ainda tinha Lisa, também.TalvezatéLucas.
Então...nãoestavasozinhadestavez.Apósumtempo,percebeuque realmenteestavamortade fome.Saboreandoa
paz na clareira perto da casa de veraneio, abriu a coberta na grama e comeu ossanduíchesnocalordo sol—completamente sozinha.Semsussurros, semrisadas,semloucura.Maistardeseesticouapoiandoacabeçanabolsa.Empoucosminutosestavadormindo.
Quandoacordou,osoldeverãohaviadescido,eelaagoraestavasobasombraquerapidamenteesfriava.
Juntandoascoisas,voltouparaaescolacomalgumarelutância.Suatardedepaztinhasidotãoagradável,nãoestavaprontapara lidarcomasituaçãonaqualestava
metida.Aproximando-se da casa, percebeu que era mais tarde do que pensava — o
gramadoestavavazio,enocorredorpôdeouviroagitodasaladerefeições.Deviaterpassadodassete;todomundoestavajantando.
Subindoasescadasparaoquarto, sentiuumapontadade fome,emseguida selembroudequetinhaseparadoumsanduícheeunsbiscoitosparaojantar.
Nãovouprecisarencararninguématéamanhãdemanhã.Sabiaqueestavasendocovarde,masnãoseimportava.Contudo, na medida em que a noite avançou, os defeitos no seu plano se
tornaram claros. Não falava com ninguém desde as oito da manhã. Não tinhatelevisão, computador nem video game. Tinha passado o dia lendo, e dormiradurantehoras.Àsonzeemeiaestava sentadanaescrivaninhaolhandoparaa janelaaberta,despertaemuitoentediada.
Luzes foram se acendendo nos quartos ao redor, pois os alunos tinhamregressadodosjogosqueelaosouviupraticandonosgramados.HámeiahoratinhaescutadooberroásperodeZelaznyanunciandoo“Toquederecolher!”,seguidodeumbaixoresmungodevozesepassosnocorredordoladodeforadoquarto.
Agora,deslizandopelaescrivaninhaparaoparapeito,Alliesaltouparaorebordo,menostimidamentedoquedaúltimavez.Suasaiabateucontraascoxasnabrisafriadanoite.SeguindoocaminhoqueCarterhaviamostradono mdesemanapassado,Allietevequepassarporalgumasjanelasparapercorrerorebordoatéopontoondeotelhado se inclinava em um ângulo suave, para poder subir.De lá atravessaria emsegurança o telhado até a construção principal.Ali umponto semelhante formavaumasaídanaturalparaumrebordoquepassavapelasjanelasdosmeninos.
Masalgunsalunosaindaestavamacordados—aindahavialuztransbordandodasduasjanelaspelasquaisteriaquepassarantesquepudessechegaràrelativasegurançadotelhado.
Aochegaràprimeira, espioucautelosamenteatravésdeumcantodovidro.Asluzes estavam acesas, mas o quarto parecia vazio, e ela atravessou, soltando arespiraçãosomentequandojáotinhaultrapassado.
A janela seguinte estava totalmente aberta. Ao se aproximar escutou vozes erisadas.Espiandoointerior,viutrêsmeninasconversando.Umadelas—umagarotabonitacompelemorenaecabeloslisoseescurosquebatiamacimadosombros—estavasentadanacama,nafrentedajanela.Allieareconheceucomoumadaspuxa-sacosdeKatie.
Asoutrasduasestavamnochão,decostasparaela.Mesmoportrás,oscabeloscurtoselourosfaziamcomquefosseimpossívelnãoreconhecerJo.Agarotaaolado
delatinhaumrabodecavaloruivovívidoecaracterístico.Katie.OqueaJoestáfazendocomela?Penseiqueaindaestivessenaenfermaria.Estarrecida,Alliesesegurounostijolosetentoudecidiroquefazer.Asmeninas
pareciamrelaxadasepoderiamconversardurantehoras.Seria impossívelpassarpelajanela sem que a garota na cama a visse. Mas não podia subir no telhado daqui.Estavapresa.
Estava comos dedos doídos pelo esforçode se segurar nos tijolos, e tentandoencontrar uma maneira de mudar de posição no rebordo estreito para car maisconfortável, entãonãoestavaprestandomuita atençãoquandoaspalavrasdeKatieflutuarameelademorouuminstanteparaperceberdequemestavafalando.
—...eeuachoquealgumacoisatemqueserfeita—diziaKatie.—AIsabellenão tem o direito de deixar alguém como ela solta entre nós.Não sabemos nadasobreela.PrimeiroaRuth,edepois...bem.Elapodiatertematadonaqueletelhado,Jo.Éummilagrequetenhasobrevivido.
Espera.Oqueelaestádizendo?EsperouparaqueJodissessequeKatieestavalouca.—Euachavaqueelafosseminhaamiga—disseJo.—Masagoranãocon o
nemumpouconela.Acenanotelhadofoiassustadora.Eupodiatermorrido.Eu salvei sua vida! Allie cou olhando para a parede na frente dela, como se
pudesseperfurá-lacomosolhos.—Claroquepodia—disseKatie.—OlhaoqueaconteceucomaRuth.Nãoé
nenhuma coincidência que aAllie não tenha idobuscar ajuda antes.Ela subiuprapoder carsozinhacomvocênummomentovulnerável.SóDeussabecomovocêsobreviveu.
— O Carter também estava lá. — A puxa-saco falou, soandosurpreendentementerazoável.
—É,oCarterdefatomeajudou...—disseJo,incerta.—Masporqueelenãoimpediueladeteempurrar?—perguntouapuxa-saco.Empurrarquem?Ninguémfoiempurrado!—Porqueeletáapaixonadoporela.—AvozdeKatie transbordoudesprezo,
masAlliesentiuocoraçãoparar.Eleestáapaixonadopormim?Allie sorriu tolamentepara aparedediantede si.
Sério?—Eletambémjáestáacabadoaqui—concluiuKatie.Allieparoudesorrir.—Agentenuncadeveriateraceitadoele—prosseguiuKatie.—Nuncaentendi
aobsessãodaIsabellecomessecara.Olugardelenãoéaqui.Elenãotemlegado,nãocomo ela.Os padrões estão caindomuito.Vou contar promeu pai, ele tem queinterceder.
Seutomsarcásticopareceudivertirapuxa-saco.—IssodeveassustaraIsabelle—riu.—Émelhorque assuste.Ele édo conselho—declarouKatie.—E Jo, você
também precisa escrever pro seu pai. Ele é muito in uente. Conta pra ele o queaconteceuno telhado,queumaalunanova louca tentou tematar, eque a Isabellenãoestáfazendonadaprateproteger.
Allieprendeuarespiração,esperandoqueJodissessequeestaeraumaideiatola.Quenãoparticiparia.QuesabiaqueAlliemereciaestaraqui.
—Tudobem—disseJo.Tudobem?,Alliepensou,traída.Tudobem?Suamimadinha...Alguémbateuàporta.Allieseinclinouparaespiarpelabeiradajanela.Julesestavanaentrada.—Katie,Ismay,podemvircomigoumsegundo?Precisoconversarcomvocês.
—Julespareciaséria,pensouAllie,masKatiesimplesmenterevirouosolhos.— Sério, Jules? — Ela se levantou e passou pela monitora, cada passo
transbordandoirritação.—Quecoisamaischata.Oqueseráqueelaquer?,pensouAllie,observando-assair.Apuxa-saco,queAllieagorasabiaqueprovavelmenteeraIsmay,foi logoatrás.
Joaseguiu.Apesar de estar oprimida pelo desejo de se jogar no quarto e exigir uma
explicação da ex-melhor amiga, Allie esperou exatamente onde estava. Assim quedesapareceramdevista,passoupelajanelacomoumaFúria.Algunssegundosdepois,estavasubindootelhadoparaoprédioprincipaleemseguidadescendopelodecliveparaajanelaabertadeCarter.
Eleestavasentadoàescrivaninhatrabalhandoenãoanotoulogodecara.Allie examinou o rosto dele— assimilando a pele clara e os cabelos escuros e
lisos ligeiramente despenteados. A maneira como seus longos cílios projetavamsombras em forma de pena nas bochechas. Gostava das mãos do rapaz — tinhadedoslongos,porémfortes;asunhaseramquadradaselimpas.
Sentiuumcalorinesperadoseespalharpelocorpoaoobservá-lo.Eleémuitoencantador...Como se tivesse escutado os pensamentos dela, Carter levantou o rosto e os
olharesseencontraram.Comumgritodeespantoele se levantoutãodepressaqueacadeiracaiu.Allie
tentounãoriraltoenquantoelevoltavaàescrivaninhaeolhavapelajanela.—Allie?—Carter pareceu envergonhado e irritado, apesar de ela achar que a
irritaçãoprovavelmentefoisóparaencobriravergonha.—Quediabos...?—Oi—sussurrouela.—Nãoconsigodormir.Quersairprabrincar?Eleabriuajanela.—Vocêémaluca.Entraaquiantesquevocêsemate.—AKatieétãovaca—reclamouaosubirnamesa.Carterergueuassobrancelhas.—Nãotemoquediscutir.—Vocênãoestáentendendo.—Alliefoideumladoparaooutronoquarto.
—Ouvielafalandopelajanela.Elaestátentando“acabarcomagente”eodeianósdois, e agora estáplantandopensamentos terríveis ameu respeitona cabeçada Jo;queeutenteimatarelanotelhado.AchoqueelaestáportrásdessesboatosterríveissobreaRuth.
EnquantoAlliediscursava,elefechouajanelaatrásdela.Emseguidalevantouacadeirademadeiradochãoeaajeitousobamaçanetadaportadoquarto,testandoparaverseestavaestável.
Finalmentesevoltouparaela.—Oqueexatamentevocêouviu?Elacontouoquetinhaacontecidonaquelamanhã—comKatieeasamigas,e
sobre como Rachel já sabia de toda a fofoca antes das sete. Os olhos de CartercerraramquandoAlliemencionouaintervençãodeSylvain,maselenãodissenada.AofalarsobreoquetinhasepassadonoquartodeKatie,orostodeleescureceu.Elapôdeperceberqueeleestavatentandomanteracalma.
—Tudobem,entãoexistemduaspossibilidades—falouCarter.—Ounãofoielaqueiniciouoprimeiroboatoesóestáseaproveitandoparaespalharmaisalgunssobre você e a Jo, ou foi elaque espalhouoprimeiro e essenovo só fazpartedoplanomaligno.—Cartersocouapalmaesquerdacomopunhodireito.—Essavacasocialite.
— O que a gente faz? — perguntou Allie. Então pela primeira vez prestouatençãoaolugarondeestava.—Eporqueoseuquartoémaiordoqueomeu?
Ele tinhaduasprateleirasde livros contraumadela, e espaçoparaumacadeiraextranocanto.AopassoqueasparedeserambrancascomoasdoquartodeAllie,todos os tecidos no quarto tinham tom azul-escuro, atribuindo um clima maismasculino ao cômodo.Allie notou que todas as prateleiras erampreenchidas comlivrosmuitoutilizados.Equehaviaumavelhaboladefutebolnacadeiraextra.Elaapontoupara a camamuitobemesticada e ele fezque simcoma cabeça.Allie se
sentoueesticouaspernas.—Estouaquihámaistempo—Carterdissedistraidamente.Elepuxouacadeiradaescrivaninhaesesentoudiantedela.— Essas fofocas são pra causar o máximo dano possível, até para te fazerem
deixaraescola.Mepareceumacampanha.Praselivrardevocê.Alliedeslizouparaafrenteatéosjoelhospraticamentetocaremosdele.—Tudobem,Carter.Chegade segredos e de toda essa babaquice.Chegou a
hora.Mefaladesselugar.—Allie...Carterseinclinouparalongedela,masAllieignorouoolhardealertaqueelelhe
dirigiu.— Ã-ã. Dessa vez não. Uma pessoamorreu. E outra está tentando arruinar a
minhavida aqui.Atéonde sei,quemmatouaRuthpodevir atrásdemim.Vocêsabedecoisas.Supostamenteémeuamigo.Entãomecontatudo.Agora.
Ele atravessou o quarto e se colocou contra a parede, a postura antes relaxadaagorarígidadeinsegurança,osbraçoscruzados.
—Vocênãoentende,Allie.Nãoposso.Seeufalasse,esealguémdescobrisse...—Carterbalançouacabeça.—Seriaruim.Confiaemmim.
—Comopossocon aremvocêsevocênãomecontaaverdade?—perguntou.Baixinho,murmurou:—TalvezeudevesseperguntarproSylvain...
As bochechas deCarter se avermelharam. Elemarchou de volta para onde elaestavaeseinclinou.
—Quersaberoquevocêsigni caproSylvain?Bem,euteconto.Todoanoeleescolheumaalunanovabonitinha,transacomelaeadispensa.Éissoqueelefaz.Etodasasgarotaspensamquesãotãoespeciais.Aúltimaacabouabandonandoaescolaporquetodomundoestavatirandosarrodela.MasquandoospaisdelaretiraramaofertadeumadoaçãogenerosapraCimmeria,aIsabellealertouqueelenuncamaiszesseisso.—Elecuspiuaspalavrascomosesentissenojoemdizê-las.—Entãoé
issoquevocêrepresentapraele,Allie.Amaisnovaeingênuaconquista.Quepensaqueomeninolindoericoescolheuela.Sóela.
—Para!—Allieoempurroueselevantouemumpulo.Tinhaacabadodefazeraspazes comSylvain, e elepareceu sincero.—Se isso é verdade,porquenãomecontouantes,Carter?
Estavamapoucoscentímetrosumdooutro,ambosfuriosos.AlliepodiasentirnorostoarespiraçãodeCarter.
—Eutentei—declarou.—Só...nãoacheiquefosseacreditaremmim.Maselanãoiadeixá-loescapartãofacilmente.
— Pelo que sei, você também é um arrasador de corações. Como o que oSylvainfazédiferentedoquevocêfaz?
Elefezumacareta,masnãodesviouoolhar.— A diferença é que o Sylvain faz de maldade. Eu não quero machucar
ninguém.Sóestouprocurandoapessoacerta.—Aspessoasdizemquevocêgostadetransasdeumanoitesó—disseAllieem
tomdeacusação.—EssaspessoassãoasmesmasquefalamquevocêmatouaRuth?Nãotinhapensadonisso.— Tudo bem — concedeu. — Então me diz. O que falam sobre você é
mentira?Eleestavacomosolhoscoladosnosdela.— É, Allie. É mentira. Ou no mínimo um exagero. Eu ganhei essa... bem,
reputação,euacho...porquese cocomalguémepercebodecaraquenãovaidarcerto,terminologo.Eapessoanuncaéacerta.—Seusolhosnãopareciamescondernadadela, elaviuapenasvulnerabilidade.—Nãoqueromachucarninguém,Allie.Nãoqueromesmo.Sóqueroameninacerta.
Estandotãopróximadele,elaimaginouquepudessesentirocalordocorpodeleatravessandooespaçoentreosdois,esemsaberexatamenteporqueestavafazendoisso,estendeuamão,comapalmaviradaparaeleeosdedosabertos.
—Tudobem.Acreditoemvocê.Desculpa.Carterpressionouapalmanadela.—Obrigado—dissesuavemente.—Peloquê?—Poracreditar.Eleolhouinterrogativamenteparaasmãosdosdois.—IssoéalgumaespéciedecoisaquesefazemLondres?Quando Allie riu, Carter entrelaçou os dedos nos dela. Ela sentiu arrepios
instantaneamente.—Vocêsdacidadegrandetêmtodasessastradiçõesloucas—disseele.—É—elasussurrou,suagargantafechando.—Vocêsdocamponãosabemo
queestãoperdendo.—Foioque queisabendo.E,vocêsabe,umdia—Carterpuxouamãodela
atéeladarumpassoemdireçãoaele—eugostariamuitodedescobrir.Os rostos estavam tãopróximos agoraque foi inevitável—quando ele tocou
muitosuavementeoslábiosnosdela,elasuspirou,eemseguidacolocouasmãosnanucadele,puxandosuacabeçaparabaixo.
OcalordabocadeCarteraalegrouquando,comumgemidoderendição,eleaabraçou, seus lábios semovendo emdelicados beijinhos de borboleta pelo queixodela.
—Euqueriafazerisso—sussurrouaoouvidodela—hámuitotempo.OcorpointeirodeAllietremeueelaopuxoucommaisforça.Calorseespalhou
porseucorpo.Osbeijosdeleerammaisintensosagora,comosefossedevorá-la.Derepenteeleseafastoucomclaroesforço,sedistanciandoomáximopossível
dentrodoslimitespermitidospeloquarto.Colocou-secontraaparedeoposta,comosolhosescuroseoscabelosbagunçadosondeosdedosdelahaviampassado.
Eleestavaofegante,eelasoubeoqueCarteriadizerantesquefalasse.—MeuDeus,detestotomaraatitudeadulta,masagentedeveria...—Não,temrazão.—Ficaramseolhandoporuminstante.—Muitobem—
disseela.—Então.Temisso.—Sim.Temisso,absolutamente.—Carterriu,umrisoíntimoecaloroso.—
Você... ca aí um minuto, se não tiver problema. Agora, do que a gente estavafalandoantesdesermos...interrompidos?
OsorrisodeletinhaumimpactoquasetãofortesobreocorpodeAlliequantoseubeijo—tinhaasensaçãodequeeraaúnicameninanoplaneta.Estavadifícilseconcentrarnaspalavrasdele.
—Euestava...achoqueestavatepedindopramecontartudo—disseela.OsorrisodeCarterdesbotou.Allielamentouvê-lodesaparecer,masaconversa
precisavaacontecer.—Eutenhomotivospranãotertecontadotudo,Allie.Nãoésóporqueeusou
umbabacaquequeresconderascoisasdevocê.— Eu entendo. — Estavam mais calmos agora, e ela teve a sensação de que
estavaouvindode fato.—Masachoquepreciso saberondeestou.Qualéadessecolégio.Pessoasestãosemachucando.Nãoqueromemachucar,Carter.
Elepareceuperturbado.—Seeutecontar,quebroumjuramento.Eeumantenhoaminhapalavra.Éa
únicacoisaquepodemfalardemim.— Mas não está começando a contestar pra quem fez esse juramento? —
perguntouAllie.—Mefala,Carter.MefalasobreaEscolaNoturna.Eeujuroquenuncavourepetirissopranenhumaalmaviva.
OsolhosdeCarterinvestigaramorostodeAllie,comoseestivesseprocurandoalgumsinalquelhedissessequalseriaacoisacertaasefazer.Finalmenteelesentounacadeira,apontandoparaacama.
—Émelhorsentar—suspirou.—Issopodedemorar.
–A
VINTEEDOIS
primeiracoisaqueprecisasaberéquenãosei tudo—disseCarter.—Souumnovoiniciado,comeceinoúltimoperíodo.Temumanodetreinamento
antesdeteaceitarem.—Tudobem.—Allieestavasentadanacama,abraçandoos joelhos,olhando
atentamenteparaosolhosdele.—Masvocêcresceuaqui.Devesaberalgumacoisa.—Euseioquemecontaram—revelou.—Eécoisamuitoséria.Carterapoiouocotovelonascostasdacadeira.—Esseéoprimeiropassodeumaorganizaçãomaior.Pessoassãorecrutadaspela
Cimmeriaespeci camenteparaentraremnaEscolaNoturna,porqueaspessoasdessaorganizaçãomaiorqueremelasprorestodavida,fazsentido?
Alliepareceuconfusa.—Maisoumenos...—Tudo bem, o que estou dizendo é que você começa a EscolaNoturna na
Cimmeria,depoiscontinuaemOxbridge.E,sevocêédaEscolaNoturna,vaientraremOxford,CambridgeounaLSE,semdúvida.Efazpartedeumclubelá.Então,quando se forma na universidade, vai trabalhar em uma empresa dirigida por ummembrodaorganização.EeventualmentedirigeumaempresaquecontratapessoasquecomeçaramnaEscolaNoturna.Efazoquemandam.Oqueestoudizendoé:issoéprorestodavida.
Franzindoorosto,Allietentouprocessarainformação.—Qualéonomedessegrupomaior?Elebalançouacabeça.— Não faço ideia. Não tenho certeza se tem algum nome. Simplesmente...
existe.— Então... — Allie ainda estava tentando entender. — Você está na Escola
Noturnaagora,equandoterminarvaipra,digamos,Oxford,ondevaiparticipardeumaversãouniversitáriadaEscolaNoturna.Depoisvaitrabalhare carmuitorico...nãoentendo.Issonãoaconteceriadequalquerjeito?Qualéoobjetivo?
Carterreduziuavozaumsussurro.
—Sópossotecontaroquecontampragente,Allie.EoquecontaméqueaEscolaNoturnacontrolaomundo.
—Controlao...—Allieolhoufixamenteparaele—,oquequerdizer?— Quero dizer presidentes, primeiros-ministros, membros do parlamento,
CEOs, jornalistas, as pessoas que você vê naTV, as pessoas sobre as quais lê nojornal,pessoasquecontrolamomundo.AEscolaNoturnaestáemtodolugar.
EnquantoCarterlistavaprofissões,elapareceuhesitante.—Oquê?Todoseles?— Não. Mas muitos. E em todos os níveis. A Escola Noturna comanda
corporações de imprensa. Empresas deTV.Departamentos de governo.Militares.Tudo.Estáemtodososcantos.
—Etudocomeçaaqui?—perguntouincrédula.—Carter,issoéimpossível.—Masnão sei seé sóaqui.Agentevive recebendoalunosde intercâmbiode
outroslugares,tipooSylvain.—Entãoécomoumaespéciede...conspiraçãogigante?—É.Atordoada,elaprocuroualgumsinalnorostodorapazque indicasseque tudo
nãopassavadeumapiadaelaborada.Masnãoencontrounada.—Comofunciona?Carterbalançouacabeça.—Issovaimuitoalémdoquerevelamaosneos.—Neos?—Neófitos—explicou.—Écomochamamagentenoprimeiroano.— Que constrangedor — disse ela secamente. — Então o que elesde fato
revelamavocês?—Agenterecebeagrandeoferta,todoodiscursoda“sociedadedepoder”eum
jantarchiquecomummontedecarasricosusandosmoking,quecostumavamseragente—relatou.
—Tudo bem, mas o que vocês fazem? — perguntou, franzindo a testa. —Digo,aqui,naCimmeria.Todoessetreinamentodevocês,oqueé?
Ogarotorespiroufundo.—MeuDeus,édifícilexplicar.Elestêmtodasessasteoriassobreguerraesobre
estratégiaserabasedetudo,então,seiquepareceestranho,masaprimeiracoisaquefazeménosensinarajogarxadrez.Agentepassadiasjogandoxadrez.Enquantonosalimentamcomcoisassobrecomooscavalossãoguerreiroseospeões,soldados...
—Espera,eujáouviissoantes.—Elaoencarou.—AJomedisseessasexataspalavrasháalgumassemanas.AJoé...?
—DaEscolaNoturna?—Carterpareceudesconfortável.—Nãoexatamente.Opaidelaé,eeleestáinsistindopraqueelaentre,masaIsabelleachaqueelanãoestápronta.A Jo temesses...problemas, você sabe.Entãoelesderamumpré-pré-treinamentopraela,eoGabeficadeolho.
— Quê? O próprio namorado? — Allie cou horrorizada. — Está, tipo...espionandoelapraessescaras?
—Não!—Entãoelepausou.—Bem,maisoumenos,euacho.Maselenãofingequegostadela.
—Não—Allierespondeusarcástica.—Elejamaisfariaisso.Elelevantouasmãosemsinalderendição.—Então—continuouela—,depoisdoxadrez,é...oquê?Jogosdeguerra?É
issoquevocêsfazemànoitenafloresta?Eleassentiu.—Maisoumenos.Treinamentodecombate, técnicasde evasão.Esse tipode
coisa.—Queloucura.Porqueestãoensinandoisso?Vocêssãoapenascrianças.— A guerra é uma estratégia pra vida e pros negócios. E alguns vão acabar
comandandoexércitos.Egovernos.—Carterdeudeombroscomacasualidadedequem falava de um teste de matemática. — Olha, a Cimmeria é isso, até certoponto.EtodomundonessaescolaéligadoàEscolaNoturnadealgumaforma.
CarterdirigiuumolhardiretoaAllie.—Exceto,aparentemente,você.—Excetoeu—atestouela.—Então—disse—,oquevocêestáfazendoaqui?Allie couparada,olhandoparaeleporumlongotempo.Emseguidadeslizou
paraabeiradacama,posicionadaparasaltar.—Nãosei.Masestouprontapradescobrir.Vocêestácomigo?—Emtese...—eledissecautelosamente—sim.Oquetememmente?OrostodeAllieestavavivo,comumamisturadeanimaçãoedeterminação.—Lembraqueontem,nabiblioteca,agentedecidiuqueeudeveria ngirque
não tem nada acontecendo e que ninguém está falando de mim enquanto vocêtentavadescobriroquetárolando?
Carterfezquesimcomacabeça.— Bem, esquece isso.O que quer que esteja se passando aqui, o lugar onde
vamosdescobriréoescritóriodaIsabelle.Vamoslá.Agora.—Nem pensar!—Ele pareceu chocado.— Isso é loucura, Allie. Se formos
pegosnoescritórioda Isabellevãonosexpulsar.Não tenhadúvida.Agentenunca
passariapraumaboafaculdade.Estragariatudo.—Maseuseicomoevitarisso—disseAllie,levantando-secomumsalto.—Como?—Nãosendopegos.Elasedirigiuparaaporta.—Allie...—Ela ignorou o tom de alerta deCarter e abriu a porta,mas ele
esticouobraçoporcimadelaeafechououtravez.—Esperaumminuto.Elereduziuavozaumsussurro.—Oquevocêestáprocurandoexatamente?Oqueachaquevaiencontrar?—Duascoisas—falou.—PorqueaRuthmorreu.Eporqueeuestouaqui.Quando ele não pareceu convencido, Allie levantou a cabeça de forma
desafiadora.—Euvou,Carter.Vouagora.Nãovouesperaratémaistarde,ouatéquetalvez
alguém um dia decida me dar essas informações por pura bondade. Isso não vaiacontecer.Tudo bem? Então, você vem comigo? Ou ser o futuro presidente daCimmeriaLtda.érealmentetãoimportanteassimpravocê?
Carter olhou nos olhos dela durante um longo minuto, e então pareceu sedecidir.
Eleabriuaporta.
–E
VINTEETRÊS
sseéoseupé?Ouodeoutrapessoa?OsussurrodeAlliefoitãosilenciosoquepareceudesaparecernaescuridãoem
voltadela.—Claroqueémeu—sussurrouCarter.—Dequemmaispoderiaser?Estavam caminhando nas pontas dos pés pelo corredor, da escada para o
escritóriodeIsabelle.Aoredordelesavelhacasaestavaanormalmentequieta—nãorangianemsossegava.Eracomoseestivesseprendendoarespiração.
Carterexplicouque,comopartedotreinamento,osalunosdaEscolaNoturnapatrulhavam os corredores da escola à noite, mas não constantemente. Então,durante a descida, se esconderam em um recanto na parede no primeiro andar eesperaramatéumpardesombraspassar,silenciosocomoamorte.
Depoisdisso,Carterconcluiuquetinhammaisdeumahoraatéqueapatrulharetornasse.Entãodesceramasescadas,pulandoodegraubarulhentoquasenofinal.
Agoraestavamdo ladode foradaportapraticamente invisíveldoescritóriodeIsabelle,atéteremcertezadequeadiretoranãoestavaládentro.
—Porqueelaestariaaqui?—sussurrouAllie.—Éumadamanhã.Carterdeudeombros,masseuolharinformouaAlliedequeerapossível.Depoisdenãoescutaremnadapelaporta,ele nalmentedecidiuqueeraseguro
entrar.Comamãonamaçaneta,sustentouosolhosdela.—Três—murmurou—,dois...um...—girouamaçaneta.Aportaestavatrancada.CarterpraguejoubaixinhoeAllieconteveumarisadinha.—PlanoB?Alcançandoobolso,elegirouumarame.—Doisminutos—disse.—Podemarcar.Inclinando-se para baixo, ele en ou o arame emuma fechadura queAllie não
estava enxergando, eomoveu suavemente comaspontasdosdedos, atéque, semaviso,aportaabriu.
—Uau.Menosdedois—revelouadmirada.—Ondeaprendeuafazerisso?
Eleolhouparaela.—Ondevocêacha?—Naigreja?Orapazsorriueempurrouaporta.Abriucomumruídocomoumsuspiro.—É,tábom.—Então—sussurrouAllie entrandono escritório—, comoarrombarportas
ajudaaformarumprimeiro-ministromelhor?Fechandoaportaatrásdeles,Cartertirouumacapadecasimiradecorcremede
umadascadeirasdecouroeapressionoucontraabasedaporta.—Nãofaçoideia—falou.Então, comum clique que pareceu ecoar na escola silenciosa, ele acendeu um
pequenoabajurdemesa.Aoladodomóvel,osdoisolharamaoredordoescritóriodeIsabelle,assimilandoatapeçariadeunicórnioemumaparede,ostapetesorientaisespessos, as prateleiras repletas de livros e revistas e osmuitos armários demognoorganizadamentepreenchidos.UmaxícaravaziadechácomoselodaCimmeriaseencontrava sobre a mesa entre as pilhas de papel. O ar tinha um vago cheiro doperfumecítricocaracterísticodeIsabelle.
—Estoumesentindoumacriminosa—cochichouAllie,derepenteincerta.—Ah, não se sente assim, não— disse Carter.—Agora a gente já tá aqui.
Vamosacabarlogocomisso.Alliesabiaqueeletinharazão.Eratardedemaisparavoltar.—Porondeagentecomeça?Allieestavafalandomaisconsigomesmadoquecomele,masCarterrespondeu
imediatamente.—Eucuidodasprateleirasdelivros.Vocêolhaosarmários.Durantemeiahora trabalharamemumsilêncio apressado.Carter começouno
lado esquerdo da sala e foi de prateleira em prateleira, procurando qualquer coisaestranha.Alliesentounochão,examinandoosarmáriosbaixos.
O primeiro tinha basicamente registros de manutenção, registros telefônicos,recibos — nada que interessasse. O segundo parecia conter registros acadêmicos,provaseoutrostrabalhosescolaresdeanosanteriores.
Assimqueabriuoterceiroarmário,Alliesoubequeestavanocaminhocerto.—Bingo—sussurrou.Carterolhouparaela.—Oqueé?—Registrosdealunos.Orapazparouoqueestava fazendoe foi atéAllie.Procurandoos registrosde
Ruth,elacomeçouapassarpelosJs.Eentãoparou.—Nãoestáaqui.Carterpareceuconfuso.—Temqueestar.Procuraoutravez.—Jansen—murmurouAlliebaixinho.—J-a-n-s-e-n.Não.Nãoestáaqui.—Podeserqueestejanolugarerrado,oucoisadotipo—falou.—Voltapara
ocomeço.Impacientemente,Allie folheouaspastascuidadosamenteetiquetadas,passando
pornomesconhecidos,assimcomoporoutrosquenuncatinhaouvido,atéchegaraumqueafezparar.
—Achou?—perguntouCarter.—Não...Éomeu.Aspontasdosseusdedosestavamemumapastagrossacomseunomeescritono
topocomtintapreta.—Pega.Allieouviuatensãonavozdele.—Vocêacha?—perguntouela.—Duascoisas,lembra?—disseele.—Estamosprocurandoduascoisas.Comrelutância,ela separouapastaeolhouorestodosregistros,pausandono
quedizia“CarterWest”.—Queroseu?Balançandoacabeça,dissecurtamente:—Jáseioquediz.—Tudobem.—Allieolhouoresto.—ApastadaRuthnãotáaqui.—Devemtertirado.—CarterfoiatéamesadeIsabelle.—Podeestarnamesa
dela,vouprocurar.Vocêolhaoseu.Allie cou sentada no chão, olhando para a capa da pasta, com os dedos
posicionadosparaabri-la.Agoraqueomomentohaviachegado,estavacommedo.Eurealmentequerosaberaverdade?Acimadela,podiaouviroruídodeCarterrevirandopáginaseabrindogavetas.
Estavatrabalhandocomvelocidade—elasabiaquenãodispunhademuitotempo.Abriuapasta.As primeiras páginas eram coisas normais: formulários de admissão sem
nenhuma surpresa, transcriçõesdasduasúltimas escolas.Olhando as antigasnotas,elafezumacaretaevirouapágina.
As coisas carammais estranhas.Umacópiada certidãodenascimento.Fotosdela quando criança comos pais.Uma foto dela bebê comumamulher que não
reconhecia,rindoparaacâmera.Havia uma carta endereçada a Isabelle, escrita com a letra damãe de Allie. A
meninaaseguroupertodaluzparaenxergarmelhor.Entãoperdeuofôlego.Palavrasefrasespareciampularparacimadela.
“Precisamosdasuaajuda,Izzy”,“...nãosabemosoquefazer”,“OChristopherpode ter sido levado...”, “não queremos envolver a Lucinda, mas achamos quechegouahora...”,“...perigo...”
“Precisamosdasuaajuda,Izzy?”ElachamaIsabellede“Izzy”?Virou a página. Essa carta, escrita em um papel espesso e caro, continha um
bilhetecomumacaligra aelegantequeelanãoreconhecia.Adataeradejulhodesteano.
Isabelle.Admitaminhanetaimediatamente,sobProtocolodeProteção.Estareiemcontato.Lucinda
Poruminstante,Allieparouderespirar.Porqueessebilheteestánaminhapasta?QueméLucinda?Cada vez mais ansiosa, virou a página. As seguintes tinham cópias de velhos
registrosdaCimmeria,masnãoeramdela.Eramdesuamãe.Com as mãos tremendo, Allie olhou rapidamente cada página, e em seguida
passando-a.Olhandoepassando.Olhandoepassando.Aúltimapáginaeraumbilheteemumcartãoamarelado.Reconheceualetrado
bilheteanteriordeLucinda.
G.MuitofelizemsaberqueminhafilhaestáindobemnaEscolaNoturna.Estánosangue,comodizem.Ficariafelizemreceberatualizaçõessemanaissobreoprogressodelaapartirdeagora.L.S.
Allie derrubou a pasta, como se ela pudesse morder. Mas a voz de Carterinterrompeuseuspensamentosacelerados.
—Ei.Émelhordarumaolhadanisso.Seu tom era sombrio, e Allie se apressou para onde ele estava, segurando um
papelsobalâmpada.ElaespiouporcimadoombrodeCarterparaenxergar.Quandoterminoudeler,olhouparaele,aturdida.
—MeuDeus,Carter.Oqueagentevaifazer?
Depois disso, não caram muito tempo no escritório de Isabelle. Allie devolveurapidamenteapáginaparaolugarnoarmário,enquantoCarterajeitavaamesa.Eledobrouacapa,acolocoudevoltanobraçodacadeiradecouroeemseguidaapagoualuz.
Osdoisseinclinaramcontraaporta,escutandoduranteoquepareceuumlongotempo, em seguida ele abriu a porta e saiu enquantoAllie esperava.Quando tevecerteza de que o corredor estava vazio, voltou para buscá-la. Fecharam a porta,congelandoquandoocliquedofechovoltandoparaolugarecooucomoumgritonaquelesilênciosobrenatural.
Era uma e meia da manhã. Se fossem pegos no corredor agora, não teriamnenhumadesculpa.
Sótinhamdado12passosquando,semaviso,Carterparou.Estendendoobraçoaodobraremaesquinaemdireçãoàescadaria,eleconteveAllie.Depoisdeolharemvolta, o garoto foi para a escuridão embaixo da escada; não precisou dizer umapalavra—elaestavalogoatrásdele.
Puxando-a até que estivesse com o corpo pressionado contra o dele, Cartersussurrouquaseemsilêncioaoseuouvido.
—Temalguémvindoaí.Comacabeçanoombrodele, inalandoocheirodecaféecanela,elaassentiue
virouparaquepudesseveroqueestavaacontecendoemvolta.OsbraçosdeCarteraenvolviamprotetoramente.
Mas então ela tambémouviu os passos.Muito silenciosamente, alguém vinhapelocorredornadireçãodeles.
Allieprendeuarespiraçãoetentoufazerocoraçãobatermenosacelerado.Assistiram enquanto uma gura sombria passou por eles, foi até a porta do
escritóriodeIsabelleetentouamaçaneta.Aodescobrirqueestavatrancada,a gurasedeteveduranteuminstante,comoseestivesseconsiderandoasopções,antesdeseretirar.
QuandoAllieolhouparaCarter comumolhar interrogativo, elepressionouodedonoslábiosdela.Nãosemexeramdurantecincominutos,eentão,depoisqueorapazsaiueolhouemvolta,pegouamãodelaeseapressarampelasescadas.
Conseguiram atravessar o corredor vazio da ala feminina sem serem vistos,chegaramaoquartodeAllie,ondeelafechouaportaatrásdeleseacendeuoabajurdaescrivaninha.
—Quemera?—sussurrouela.
—Nãovi—disseCarter.—Masestavacomuniformedaescola.Entãoéumaluno.
—Achaqueeleviuagente?—perguntou.Elebalançouacabeça.—Nãoolhoupronossolado.Allierelaxouumpouco.—Achoquenãosomososúnicostentandodescobriroquerealmenteandase
passandoporaqui.Aadrenalinaqueaimpulsionouduranteasatividadesnoturnaspareceuescoardo
seucorpodeumavezsó,eelabocejoulongamente.—Nósdoisprecisamosdormir—disseCarter.—Amanhãtemaula,a nalde
contas.—Masagenteprecisaconversarsobreissotudo.—Allietentouseforçara car
maisacordada.—Minhapastaeaquelacarta...—Meencontranacapelaamanhãdepoisdaaula—disseele.—Eeuvoupro
caféàssete,vainamesmahoraeeuprotejovocêdosfofoqueiros.Enquantoisso...dormeumpouco.
Carterabriuajanela,emseguidasevoltounovamenteparaela.—Maisumacoisa.Hojemaiscedo?Nomeuquarto?Allieenrubesceueesperoueledizerquetinhasidoumerro.—Foiincrível.—Elesorriuaquelesorrisosexy,comocabelocaindonosolhos,
epulouajanela.Uma inundaçãode calor se espalhoupelo corpodela.Todoo estresse doque
tinhamdescobertoestanoitedesapareceueelasorriunaescuridão.—Tambémachei—disseela.
Namanhã seguinte,Alliedesceuparao cafédamanhãprecisamente às setehoras.Carterestavaesperandoporelanasaladerefeições.
— Milady está pronta para sua escolta? — perguntou Carter quando ela seaproximou.
—Miladypoderiaassassinarumsanduíchedebacon—disseela.—Quantadelicadeza,Milady.Entraramnasaladerefeiçõesrindo,massentiramafriezadoambientenamesma
hora.—Nossa—murmurouCarter.Intimidadapela sensaçãodeque estavam todosolhandopara ela,Allie foi um
poucomaisparapertodeleenquantoseserviamnobufê.Aoseapressaremparaonde
Rachel estava sentada comLucas,Alliepôdeouviros sussurros e risadas em tornodeles.
TantoRachelquantoLucaspareciampreocupados.—Quedroga—disseLucasaosentarem.—Oqueagentevaifazer?—AchoqueaIsabellevaiterqueintervir—disseCarter.—Nãotemmuito
queagentepossafazer,anãoserqueaAlliequeiraqueagentesigaelaportodososcantos.
—NormalmenteaIsabellenãopermitiriaqueessetipodecoisasaíssetantodocontrole—concordouRachel.
—Talvezelaestejatentandonãodemonstrarfavoritismo—sugeriuLucas.—TodomundosabequeelatemuminteresseespecialemAllie.
— Que seja. — Allie colocou o bacon no pão. — Só o que sei é que vouquebraraKatieseelachegarpertohoje.
Dandoumamordidagigantesca,elalevantouoolharparaverCarterbalançandoacabeça.
—Quê?—perguntoucomabocacheia.—Nada—respondeuele.—Achoqueoque ele estápensando—disseRachel, sorrindo—é “essa é a
nossagarota”.—Atenção, por favor.—A vozde Isabelle ecoou sobre a agitaçãoda sala de
refeições.Osilênciodominouoambiente.Nafrentedasala,comumcasaco lavandaaberto sobreumasaiabrancaeuma
blusa, comum lençode seda sobreoombro,pareciamais sériadoqueAllie já selembravadetervisto.
—Gostariadelembraratodososalunosquebullyingébaseparaexpulsãocomumaúnicaofensa.Esperonãoterquerepetirorecado.
Aosair,seuspassosecoarampelasalalotada.Rachel, Carter e Lucas assentiram quando Allie apontou para si mesma e,
mexendoabocasemfazerbarulho,perguntou:“Foiporminhacausa?”Maistarde,aosedirigiremparaasaulas,estavamdivididossobreseIsabelleteria
feito ou não o su ciente para acabar com a fofoca. Rachel achava que não, masCartereLucasacreditavamqueelafizeratudoquepodiaatéagora.
Aoentrarnaauladebiologia,elaviuqueJo,livredaprisãodomiciliar,jáestavasentadaemseulugarhabitual—oscabeloslourosdefadacuidadosamentepenteadoseaexpressãovencida.
Allienãosabiacomoirialidarcomisso.Nãopodiademonstrarquetinhaouvidoalgoontemànoite, porque como explicaria isso?Enãopodiamudarde lugar—
Jerryiriaquerersaberomotivo.Amelhorcoisaasefazer,concluiu,seriasersuperior.Senãopuderdizernadabom,nãodiganada.EntãosesentouemsilêncioaoladodeJoevirouligeiramenteacadeirademodo
quenão cassede frenteparaela.Contudo, Joclaramente tambémhaviadecididoser superioreasduas sentaram, ladoa lado, semdizerumapalavradurante longosseteminutos,atéJerryentrarecomeçaraaula.
Depoisdaaula,Allieselevantoudolugarefoiparaocorredor.Enãoolhouparatrás.
Noalmoço,JoeGabeevitaramamesahabitual,esesentaramemumcantodasala.Allie se juntou aRachel e Lucas, que, ela observou, estavam sentando juntoscommaisfrequênciaultimamente.
—Oi—disseela,largandoabolsa.—Oquehácomeles?RacheleLucastrocaramumolharqueelanãoconseguiutraduzir.—Afofoca—falouRachelapósumsegundo—équeaJoestavatãobêbada
quenãoconseguemaislembraroqueaconteceunotelhado.Entãoresolveuacreditarnoquedizemsobreosacontecimentos.
—Ah, ótimo—disseAllie, sentando.—Então agora ela acha que eu tenteimatarela?
Osdoisfizeramquesimcomacabeçaemsincronia.—Seriaengraçadosenãofossecomigo—suspirouAllie.—Nãoécomigoeeunãoachograça—ofereceuRachel.—Vocêsnãoacreditamnela?—perguntouAllieesperançosa.—Dejeitonenhum—disseLucas.—Agenteconheceelabemdemais—afirmouRachel.—Olha,voutentarfalar
comaJomaistarde,praverseconsigocolocaralgumjuízonacabeçadela.—Oupelomenosfazercomqueelaselembredoquerealmenteaconteceu.—
CarterpuxouacadeiraaoladodeAllieesentou.—Tipocomoela coutãobêbadaa ponto de quase matar todo mundo. Se quer saber minha opinião, isso é bemconveniente agora que todo mundo sabe que alguma coisa de louco aconteceunaqueledia.Derepenteelanãose lembrade teragido feitoumadoidanodiaemquefoisolta.
—Nãoécaracterísticodelanão lembrar—disseLucas, franzindoo rosto.—Nasoutrasvezesquefezisso,elasempreselembrou.
AdúvidanavozdelefezAlliesentirumapunhaladageladadepreocupação.EseatéoLucaseaRachelcomeçaremaduvidardemim?AísósobraríamoseueoCarter.
Comosesoubesseoqueelaestavapensando,Carterdeuumbeijonacabeçadela.
—Não deixa ela te abater— sussurrou ele, e Allie se viu sorrindo apesar detudo.
TinhaconsciênciadequeLucaseRachelestavamolhandoeentendendotudo,equelogoaescolainteirasaberiaqueestavamjuntos.
—Euestoubem—disseela,comavozfirme.Eeraverdade.
Durante o resto do dia,Allie não podia dizer que tinha sofrido bullying. Em vezdissofoitratadacomoumfantasma—comosenãoestivesselá.
Ninguémde foradoseugrupo imediatodeamigos faloucomela.Mesmoaopassar por Katie no corredor, a menina simplesmente virou a cara e continuouandando.
EnquantoAllievoltavaparaoquartoapóso mdasaulas,Julesaabordounocorredor.
— Só queria dizer que sinto muito pela maneira como todos estão secomportando—disse amonitora.—Conversei ontem com a Isabelle, e ela deuadvertênciasescritasaKatieeasamigas.
—EntãoachaqueaKatieestáportrásdasfofocas?—perguntouAllie.—ConheçoaKatiedesdesempre,Allie.—Julespareciafrustrada.—Masfalei
praelaquenãopodemosseramigasanãoserqueelaconserteisso.Émuitoinjustocomvocê.Eissonãovaiacontecernaminhafrente.Elasabequaléaminhaopinião,eesperoqueelaparecomisso.
—Obrigada, Jules.—A gratidãono tomdeAllie era sincera.—É estranhoouviraspessoasdizendomentirassobrevocê.
—Sealguémteassediarou zerbullying,falacomaIsabelleoucomigo—disseJules.—A gente resolve.Mas, olha, eu sei o que aconteceu entre você e aKatieontem,eprefiroqueissonãoacabeemsocos.
Allieenrubesceuculpada.—Tudobem,tudobem...eutentomecontrolar.QuandoJulessefoi,Allievestiuasroupasdecorridaesaiu.Eramaisumatarde
anormalmente quente— ela sentia o sol em seus ombros enquanto corria para acapela, e decidiu fazer o caminho longo, passando também pela casa de veraneio.Curtiutantoacorridaquequaselamentouquandochegou,masaomesmotempo...tinhaoCarter.
Aoabriroportãoelaoviuimediatamente,encostadonaportaanciãdemadeiradaigreja,olhandoparaela.
—Oi—cumprimentouela,correndopelatrilhadepedra.—Oipra você também—respondeu ele.—Bemnahora.Olha, antesde a
genteentrar,temumacoisaqueagenteprecisafazer.Alcançandoamãodela,eleapuxouparaperto,e,àsombradaentradaabaixoua
boca para a dela. Ela sorriu nos lábios dele e o puxou mais para perto, até quepudesse sentir o calor do corpo dele no seu. Incentivado pela resposta dela, ele abeijou com mais urgência, segurando-a tão rme que seus pulmões pareceramcomprimidos.Quandoparou,umminutodepois,elaestavavermelhaesemar.
—Quebomquejáriscamosesseitem—declarouAllie.—Tambémacho.—Elesegurouaportaparaela.—Entãoagoraesperoquea
genteconsigafocarnascoisasruinseassustadorassemsedistraircomasromânticasedivertidas.
Suavozecoounasparedesdepedraenquantoelechegouparaoladoparadeixá-laentrar.Aopassarporele,Allieparouparapassarosdedostentadoramentenobraçodele,doombroàspontasdosdedos.Arrepiosseformaramnocaminho.
—Ã-hã—disseela,rindo.Eletentouagarrá-la,maseladançouparaforadoseualcance,rindo.—Naigrejanão,Carter.Agentevaiproinferno.—Entãonãomedeixacairemtentação—disseele, seguindo-aalgunspassos
atrás.—Justo—concordouAllie,aindamuitolongedele.—Contandoquevocême
livredomal.—Negóciofechado.AlliedeixouqueCarteraalcançassepertodopúlpito.Eleapuxourindoparaum
bancoescurodemadeiraaoseulado,comobraçosobreseusombros.—Esselugaréincrível—elaexclamou,olhandoaoredor,enquantoopolegar
de Carter levantava a manga curta da sua camiseta e acariciava a pele morna. —Nuncavinadacomoessaspinturasemtodaaminhavida.
—Achoquemuitasigrejaserammaisoumenosassim.—OslábiosdeCarteragoraestavamnaorelhadeAllieeelafechouosolhos,sentindoocorpotremer.—Masmudaram.
—Quechatopraelas—sussurrouAllie.—Nãoé?Obeijofoimaispassionaldestavez,eapósuminstanteelecolocouAllieemseu
colo.Tirandooelásticodorabodecavalodela,elepassouosdedospelocabelodagarotaatécaíremaoredordorostodeleemondassuaves,enquantoelaseinclinavaparaafrenteparabeijá-lo.Virandoacabeça,elepassouoslábiossuavementeentreaorelhaeocantodabocadeAllie.Arespiraçãodelaveioemarfadascurtas.
Mas,apósalgunsminutos,elaseafastou.Comumsuspirolamentoso,Cartera
soltoueeladeslizoudocolodorapazparaobancoaoladodele.—Nãoadiantounadariscarissodalista—disseelacomumsorrisotorto.—Euteaviseisobremedeixarcairemtentação—relembrou.Allieriu.—Comoeupoderiatetentar?Souumaatletatodasuada.Elepuxouumchumaçodoseucabelosolto.—Tentadora.Masapósuminstanteelesuspirou.—Muitobem,entãoagoraagentedevedestruiroclimaadorávelqueagente
criouefalarsobreoquetáacontecendo.TodoocalorpareceuabandonarocorpodeAllieeelaestremeceu.—É,vamosfazerisso.Temcertezaquenãotemmaisninguémaqui?—Estamossegurosaqui—disseeleconfiante.Vamoscomeçarcomasuapasta.Allieconcordou.—Era estranha.Tinha todas as coisas normais do tipo a-Allie-não-é-boa-em-
inglêseummontedepapéisquenãoerammeus.Carterpareceuconfuso.—Tipooquê?—Tipo...osregistrosescolaresdaminhamãe.—Olhouparaelecomumolhar
significativo.—Daqui.—Daqui...tipo,daCimmeria?—Avozdeleseelevouincrédula.—Exatamente.Então, aoqueparece,minhamãe tambémnãoeramuitoboa
emciênciasquandotinhaaminhaidade.Ah,elaestudounaCimmeria,umaescolada qual ela ngiu que nunca tinha ouvido falar até a semana emque vimpra cá.Aliás,elaconheceesselugartãobemquechamouaIsabellede“Izzy”emumacarta.
—Iz...?—Carteraencarou.—Quediabosestáacontecendo?—Nãofaçoideia.Mastemmais.Tambémtinhaumbilhetenaminhapágina
deumapessoachamadaLucindaparaaIsabelle,datadodeummêsatrás.Ordenavaqueelaadmitisse“minhaneta”imediatamentee“aprotegesse”.
Carterexaloucomumassobiobaixo.—NãosuponhoquevocêtenhaumaavóchamadaLucinda.—Umadasminhasavósmorreuantesdomeunascimento.Aoutramorreuhá
doisanos—relatouAllie.—ElasechamavaJane.—Então...—disseCarter.—QueméLucinda?—Allieconcluiuopensamentoporele.—Boapergunta.
TambémtinhaumbilhetecomaletradaLucindapraalgumapessoacomainicial“G”,falandosobrecomoa lhadelaestavaindobemnaEscolaNoturna.Erabem
antigo.Cartertirouoscabelosdosolhosenquantoabsorviatodasessasinformações.—Allie,seuspaisjátedisseramalgumacoisaquefosseverdade,algumdia?Elasesurpreendeuaosentirlágrimasqueimandoseusolhos.—Nãosei—disseela,forçando-asaseremcontidas.Cartersegurouamãodela.— Tudo bem, então vamos resumir. — Ele riscou cada item com uma
batidinha nas costas da mão dela. — Você é péssima em inglês. Sua mãeprovavelmente estudou aqui. A Lucinda é sua avó, ou pensa que é, e seus pais seesqueceramdefalardelapravocê,durantetodaasuavida.EquemquerquesejaessaLucinda, ela é importanteo su cientepradar ordens a Isabelle.—Eleparecia teracabado,masentãoacrescentou:—Ah,eaIsabelletemumapelidoridículo.
Alliesorriuummeiosorrisoparaele.—Éisso,euacho.—Então...nãomuitacoisa.—Não—dissedebilmente.—Nãomuita.—Tudobem, vamos deixar isso assimpor umminuto, porque parece que a
gentevaiprecisardetempoprapensaremcomolidarcomtudoisso.—Eleolhouparaavelhapinturadaárvorenaparede.—Vamosfalarsobreacarta.
AcartaqueeletinhaencontradonamesaeradeNathanielparaIsabelle,edatavade alguns dias atrás. Era curta e furiosa. “O que aconteceu na noite do baile foiapenas uma provinha do que tenho a oferecer”, dizia. “Me dê o que mereço, oudestruireiaCimmeriacomminhasprópriasmãos.”
Indicava uma data e uma hora para uma “conferência no local de sempre”. Anoiteeraamanhã,ahora,meia-noite.Masolugarnãofoidescrito.
—Oqueéumaconferência?—Alliehaviaperguntadonahora,acrescentandoesperançosa:—Temomesmoprefixodeconfraternização.
—Conferênciaéumtermomilitar—Carterhaviarespondido,virandoopapel.—Éumareuniãodeinimigosparadiscutirtermos.
—Ah—disseAllie.—Entãoéumapéssimaconfraternização.Agora,encolhidanobancodaigrejaaoladodeCarter,fezaperguntaquetinha
passadoodialheperturbando.—NósdoisachamosqueoNathanielmatouaRuth?Carterpareciasério.—Nãosei.Elesófaltoudizerissonacarta.Masomaiorproblemaquetenho
comissoé,porquê?Porqueelefariaisso?OqueelequerqueaIsabellenãoquerdar?Eporquequertantoapontodefazerumacoisadessas?
Elagirouumamechadecabelonodedoaoolharparaaárvorenaparede.— Eu li em algum lugar que a maioria das pessoas que são assassinadas são
mortas por pessoas que conhecem elas, tipo família ou namorado. — Soltou amecha de cabelo.—MeuDeus, queria que a gente tivesse encontrado a pasta daRuth.Quer dizer, e se oNathaniel é, tipo, o padrastomalvadodela, ou coisa dotipo?
Carterbalançouacabeça.—Sefossealgumacoisadessetipo,porqueestariafazendoexigênciasaIsabelle,
agindocomoseelestivessemumahistóriaeelativessefeitoalgumacoisaruimcomeleemalgummomento?Pramimnãofazsentido.
—Pramimnadadisso faz sentido—disseAllie.—Onegócio éo seguinte,temtantacoisarolandoqueagentenãosabe.Nãotemcomodescobriroqueestáacontecendoanãoserquealguémnosconte.
Carteraencarou.—Éisso,Allie!Agentevaifazerelescontarem.—Hmm...como?—perguntou,desconfiada.Eleseinclinouparaafrentecomasbochechasrubrasdeanimação.— Simples. A Isabelle vai encontrar o Nathaniel amanhã à noite. Eu sigo a
Isabelle pra reunião. Aí posso ouvir a conversa e a gente decide o que fazer emseguida.
—Ótimaideia—concordouAllie.—Euvoucomvocê.Carterolhoufixamenteparaela.—Masnãovaimesmo.—Vousim.— Allie... — Os olhos dele alertaram-na para esquecer o assunto, mas ela
ignorou.—Porquevocêdeveireeunão?Issoenvolveamimeàminhafamília,e,apesar
deeusabermaisagora,aindanãoestouentendendooqueestáacontecendodefato.—Eletentoufalar,maselalevantouamão.—Éaminhavida,Carter.Eeuqueroentenderquemtábagunçandotudo.
—Podeserperigoso.—Alliepôdeescutarafrustraçãonavozdele.—Evocêpodeserexpulsa.Allie,nãoéumaboaideia.
—Éperigoso—a rmouela.—Maseuvou.Olha,tinhaumacoisanaminhapasta que eu não mencionei. Na carta da minha mãe, ela falou no meu irmão,Christopher.Eeladiz“e seele tiver sido levado”.—Ela se inclinouparaa frente,concentrada. — Não vê, Carter? Eu poderia descobrir o que aconteceu com oChristopher.Precisoir.
PorumlongoinstanteosolhosdeleestudaramorostodeAllie.Elapôdeveromomentoemqueelecedeu.
—Tudobem—concordou,resignado.—Nãogostonadadisso.Masseique,seeunãotedeixarircomigo,vocêvaisozinhaeseencrencaraindamais.
—Obrigada!—Elajogouosbraçosnopescoçodele.—Mastenhoumacondição—apontou,segurando-a.—Agentetemquefazer
domeujeito.Combinado?—Combinado!—respondeuAllie,abraçando-omaisforte.—Agora,quantospontosagenteganhanoinfernoseprofanaressacapela?—
Carterperguntou,inalandoocheirodocabelodela.
S
VINTEEQUATRO
egurando-se no parapeito externo dos dormitórios femininos, AllieatravessoulentamenteemdireçãoaodeclivedotelhadoondeelapodiasubireatravessarparaoquartodeCarter.
Tinhaacabadodepassardohoráriodotoquederecolher.Anoiteestavaescuraesemnuvens—tempoperfeitoparafugir.
Allie já tinhapassadopelaprimeira janela—agora tinhaapenas adeKatienocaminho.Nas pontas dos pés, inclinou-se com cuidadonadireçãodamolduradajanela,paraespiaroladodedentro.
Asluzesestavamacesas,maspareciavazio.Esticandoobraçoparaalcançarooutroladodajanela,passouapressada.Vitória,pensou.Masaodaropróximopasso,elachutoualgumacoisanabeiradacalha—talvez
umatelhaouumapedra,pensariamaistarde—quebateucomforçanochão,como impacto percussivo de um pequeno tambor. Congelada no lugar, Allie nãoconseguiudecidirseseriamelhorseapressarnorestantedatravessiadotelhado—searriscandoafazermaisbarulho—ouficarondeestava,paradacomoumcadáver.
— Quem está aí? — A voz vinha de menos de um metro de distância docotovelodireitodeAllie.
Allie prendeu a respiração.Estava com suas roupas de corrida— legging azul-escura e uma camiseta da mesma cor. Somadas aos tênis também escuros, elaconcluiuquedeveriaestarpraticamenteinvisível.
PensacomoaMulher-Gato,disseasimesma.—Jo?Évocê?—AvozdeKatieperfurouanoite.—OuéaAllie,aassassina
louca?Seforvocê,Allie,sóprateinformar,vouprocuraraJulespratedenunciar.Allietentourespirarnocompassodabrisa,paraqueosomdesaparecesse.Após
alguns minutos, silêncio. Contou até cem, em seguida correu para o declive dotelhadoesubiu,saltandoparaoladodosmeninos.Apráticaestavaajudando-aasetornar mais veloz. Deslizou pelo declive daquele lado até chegar a um cano deescoamento,edeláfoiparaoquartodeCarter.
Ajaneladeleestavaaberta,aluzacesa,eCarterestavadooutroladodoquarto,esperando por ela. Allie teve a impressão de que os olhos escuros de Carter seiluminaramaovê-la.
Quandoelapulouajanela,omeninoseaproximouparalevantá-ladamesa.—Oi—sussurrouCartercomaquelemeiosorrisosexyqueadeixavalouca.—Oipravocêtambém.AlliejátinhadecididonãocontarparaeleoqueKatietinhaditosobredenunciá-
laparaJules—sabiaquenãoseriaprecisomuitoesforçoparaCarterinsistirqueAllieficassenaescolaenquantoelesaíasozinho.
Emvezdisso,ameninaesticouosbraçosepuxouorostodeleparaperto.Algunsminutosdepois,Carter levantouacabeçaparaolharnosolhosdela.Ele
acariciouabochechadeAllie.—Agenteprecisair,seguiraIsabelleedescobrirqueméoassassino.—Quelsaco—disseAllie,levantandooslábiosparamaisumbeijo.—Meualemãoépéssimo,oqueissosignifica?—murmurouele.Allieriucontraabochechadele.—Significa“porquevocêestáfalando?”.Umminutodepoiseleseafastoucomumsuspirolamentoso.—Vamosfazer logoanossaespionagemantesqueagenteesqueçaoquedeve
fazer.Allieajeitouaroupa.—Certo.Vamosdarumshowdebola.—Ui,queconvincente.—Obrigada—disseela.—Passeiodiaensaiando.Carter abriuaporta e se certi coudequeocorredor estavavazioantesdedar
passagemparaela.Desceramasescadas,parandoemcadaandarparaouvir sehaviapassosouvozes.
Na porta dos fundos, ele saiu primeiro outra vez, enquanto ela esperava nasombra,evoltouparabuscá-laquandotevecertezadequenãohavianinguémporperto.
Numritmoperfeito,elescircularamaalalesteparaafrentedacasa,seguindoarota que tinham escolhido mais cedo naquele dia. Na entrada da oresta, seabaixaram atrás da samambaia, se ajeitando para ter uma visão clara da escola.Contanto que a reuniãonão acontecesse em algum lugar atrás do prédio, estavambemposicionados.
—Agora—sussurrouCarter—agenteespera.Acimadeles,umaluacheiaprojetavaumbrilhoazulfantasmagóriconoterreno.
Sobestaluzenxergavamclaramente.Então,quandoumgrupodefigurassombreadassaiupelaportadafrentevinteminutosmaistarde,viramcadamovimento.
Depois que as guras se dirigiram à trilha que levava até a capela, Cartergesticulou para que as seguissem, e correram lentamente pelo caminho, evitandogravetos que pudessem estalar sob seus pés e denunciá-los. Carter correumais oumenos trêsmetros à frente dela, garantindo que os alvos estavam su cientementedistantesparanãoescutaremseuspassos.
Estavam perto da igreja quando ouviram vozes. Recuando, Carter agarrou obraçodeAllieeelespararamnasombradomurodopátiodaigreja.Logoàfrente,oportãode acesso aopátio estava aberto, eCarter entrou sorrateiramenteparaolharemvolta,emseguidaacenouparaqueelaoseguisse.
—Essesdramas,Nathaniel,sãoumsaco.AvozdeIsabelle.Alliepodiaouvi-lacomclareza,masnãoenxergavaninguém.
Ondeelaestava?Carter atravessouaté a árvore, evitandocom facilidade lápides,pedras eoutros
perigos,enquantoelaiacautelosamenteatrás.—Depressa—sussurrouele.Noescuro,Alliefranziuatesta.—Euestouindodepressa.Carter subiu no grande galho baixo, em seguida se inclinou para dar amão a
Allieeapuxouparaoseulado.Dessaforma,osdoisescalaramavelhaárvore,umgalhodecadavez,atéestarembemacimadoportão.Carterestavaemumgalho,eAllielogoabaixo.Elanãoconseguiavê-losemesticaropescoço,masmesmoassimpodiasentiratensãonocorpodele.Eleestavaalerta;posicionado.
Através dos galhos estreitos e retorcidos ao redor, podiam enxergar o rio quecorriaatrásdaigreja,atéolago.Aluacontribuiuiluminandoacena.
Haviaumhomemnamargem,comgramadopradobatendonosjoelhos.Tinhaumenormepastoralemãoaoseulado,paradocomoumaestátua.Isabelleestavaemfrenteaele,namargempróxima,comosbraçoscruzados.Alliepôdeverairritaçãonaposturadadiretora.
Inclinando-separaafrenteemseupoleiro,AllieestudouNathanielcomfascínio.Trajando calças escuras e uma camisa preta de manga curta, ele não eraparticularmentealtonembaixo.Tinhacabelosespessoseescuros,eóculosestilosos.Aliás, sob todos os aspectos tinha uma aparência comum.Mas transpirava poder;maispanteradoqueleão.
Desgrudando os olhos dele, Allie olhou para a diretora. Estava com roupasincomunsparaela—umasimplestúnicapretae leggingcombotasqueiamatéo
joelho.Allieteveasensaçãodequeelaestavatentandoparecerdura.—Aúnicacoisaquequerosaber,Isabelle,éisso.—AvozdeNathanielerade
barítonoenãosoavadesagradável,masalgumacoisanela fezAlliesentirmedo.—Vocêestádispostaafinalmentefazeracoisacerta?
Isabelleignorouapergunta.—O que provocou isso,Nathaniel? Pensei que estivesse satisfeito com nossa
combinação.Oventoaumentoue,poruminstante,Allienãoconseguiuouvirasvozespor
cimadoruídodasárvores.Quandovoltouaescutá-las,Nathanielestavafalando.—...entãoeuconcordeiemfazerascoisasdoseujeito.Fuipaciente.Agoraéa
minhavez.PelaprimeiravezIsabellesemexeu,caminhandoemdireçãoaorio,fechandoo
espaçoentreosdois.—Oquevocêfeznanoitedobailefoiselvagem,Nathaniel.Porquealguémte
dariaocontroledestaescoladepoisdaquilo?—Fizoquetinhaquefazer—disse.—Sevocêtivessehonradoonossoacordo,
nadadaquiloteriasidonecessário.—Oquetinhaquefazer?—AvozdeIsabelleseelevouderaiva.—Mataruma
dasminhasalunasasangue-frioeraumacoisaquevocêtinhaquefazer?Nathanielergueuumasobrancelha.—Umadassuasalunasfoimorta?Nãofaziaideia.Talvezvocêdevesseconversar
comosseusfuncionários.Ninguémfoimortopormimnempelaminhaequipe.AllieviuosombrosdeIsabelleenrijecerem.—Agargantadeumaalunafoicortadadeorelhaaorelha—disseela.—Você
estámedizendoquenãotevenadaavercomisso?Nathanieltinhaosorrisodeumpredador.—Parecequesuaescolaéumlugarmuitoperigoso,diretora.Eunãoiriaquerer
meusfilhosestudandoaqui.Isabelleoolhou,incrédula,eelelevantouamãodireita.—Juroquenósnãotivemosnadaavercomisso.Pelaminhahonra.—Suahonra...—OtomdeIsabelleeradedesdém,masalgumacoisaemsua
vozdisseaAlliequeadiretoraacreditavaemNathaniel.—Deixaeutedizeroqueachoqueestáportrásdissotudo—disseIsabelle.—Achoquevocêtávendoqueaescola é bem-sucedida. Que a maré está virando contra você e suas ideias. E quemuitos no conselho que outrora discordaram de mim agora estão reavaliando asprópriasopiniões.Masvocêétãoarrogantequeaindaquerprovarqueoseujeitoémelhor.
—Já chega disso.—Nathaniel se aproximou da água, o cachorro continuouondeestava,comosolhos xosemIsabelle.—Essassãominhascondições,Isabelle.Você vai falar pros membros do conselho que mudou suas crenças bizarras. Quepercebeu o quanto estava errada. E que quer entregar a direção da Cimmeria pramim.
Cadapalavratransbordavamalícia.SeIsabellesesurpreendeucomalgumacoisadoqueelefalou,nãodemonstrou.
Emvezdisso,soouentretida.—Ah,Nathaniel,nãosejaridículo.Vocêsabequeestascondiçõessãoabsurdas.
Rejeitotodaselas.Ohomemdeuumpassoparatrás.—Entãovaisofrerasconsequências.QuandoNathanielvirouparasair,comocachorroao lado,Isabellegritoupor
trásdele:—ALucindavaisaberquefoivocê,Nathaniel.Elavaicuidardevocê.Nathanieldesapareceuna orestasemolharparatrás.Apósuminstante,Zelazny
eEloisesaíramdetrásdasárvoreseforamatéIsabelle.Conversarambrevemente,eemseguidavoltaramparaa oresta.Quandochegaramàsárvores,outrasduas gurassombreadassejuntaramaeles.
Com as costas pressionadas contra o tronco da árvore, Allie cou sentadacongelada, comospensamentos emum turbilhão.QuandoCarterolhoupara ela,Alliepôdeperceber,pelaexpressãodele,queestavatãoconfusoquantoelaemrelaçãoatudoisso.
—Vamossairdaqui—disseele.Após descerem da árvore, atravessaram o portão;Carter fechou-o atrás deles e
estendeuamão.—Pronta?Allieassentiu.Começaramacorrer.
N
VINTEECINCO
a volta, os professores tiveram algunsminutos de vantagem,masCarterguiouAllieporumcaminhoalternativoatéaescola.Estarotapassavaporumacasinhadepedraemumjardimcheiode ores.Oaromadejasmime
rosasflutuouatéosdoisatravésdabrisa.—Dequeméessacasa?—sussurrouAllie.—DoBobEllison—disse.AcasajátinhaficadomuitoparatrásquandoCarteracrescentou:—Eucrescilá.Allieparou.—Aquelaeraasuacasa?—Continuaandando—Carterfalou,semolharparatrás.—Agentepodefalar
dissodepois.As árvores ao redor formavamdesenhos fantasmagóricos soba luzda lua,mas
comoestavamescapandodamesmaformaquenaida—comCartercorrendotrêsmetrosàfrente—Alliesesentiusegura.Coisasqueaassustaramnopassado—umchiadonomato,oruídodeumgravetoestalandoaolonge—nãoaincomodaramemnada.
MasquandoagarotaouviuavozdeCarter,freou.Elenãoestavafalandocomela.
Carter tinha avançado muito e dobrado uma curva na trilha, então Allie nãoconseguiaenxergá-lo,nemapessoacomquemeleestavafalando,masalgumacoisaestava errada.Agindopor instinto, eladesviouda rota e se escondeu atrásdeumaárvorecercadaporsamambaiasaltas.Umaveznolocal,elaseajoelhoueprendeuarespiração.
—...nada—diziaCarter.Entãoveioaoutravoz—avozdeGabe:—Entãovocêtáfazendoarondasozinho,mesmonãosendooseuturno?AlliepercebeuqueGabenãoestavaacreditandoemCarter.—Porque,qualéoproblema?—perguntouCarter.—Eusemprefaçoisso.
— Hoje não — disse Gabe. — Não ouviu o Zelazny? Depois do toque derecolher,agentesópodesairnosnossosprópriosturnos.Émelhorvocêfalarcomele.Elenãovaigostardisso.
—Tudobem—disseCarter.—Atémaistarde.Allieouviuo ruídodospassosdeCarterdesaparecendoao longe.Em seguida,
escutoupassosevozesvindoemsuadireção—váriaspessoas,pensou. Inclinou-separaespiaremvoltadaárvore.Aoluar,viuGabeconversandocomalguém,masocorpodorapazestavaescondendoquemquerquefosse.
— ... tudoerradoàs vezes, sabe?—reclamavaGabe.—Eleprecisa se ajustar.NãoseiporqueoZelaznyoatura.
—Acreditounele?—perguntouaoutrapessoa.Allienãoestavavendoquemeraenãoreconheceuavoz.
—Nãoligo,naverdade—disseGabe.—Seelecontinuarfazendobesteira,nãovaifazerdiferençaseforverdadeounão.—Orapazcaminhoupelatrilha.—NuncaentendiporqueaIsabelleinsistiupragentedeixareleentrarnaEscolaNoturna.
Naquele instante,umbarulhofortenobosqueatrásdeAlliea fezsaltar.Elaseagachououtravez,abaixodasfolhasdasamambaiaaoredor.
—Quem está aí?—perguntouGabe.A voz dele sooumais próxima eAlliecou estática, como coração saindopelaboca.À luzdo luar, pôde ver queGabe
estavanabordadatrilha,olhandodiretamenteparaela.Conseguiaouvirarespiraçãodele.
ConheciaGabe.Sempreforammaisoumenosamigos.Masalgumacoisaestavamuitoerradaaqui.Elesoavadiferente.Furioso.Atémesmoameaçador.
Todososseusinstintosmandaramqueelacontinuasseescondida.AvozdeLucasveiodamatapróxima.—Soueu,cara.—Jesus.—Gabesoouenojado.—Pegaleve,cara.—Desculpa!Eutropeceinumadrogadeumtronco.Estáescuronasárvores.—Queseja.—Gabevoltouparaatrilha.—Vamoscontinuar.Apósesperarosilênciovoltaretercertezadequeelesestavamlonge,Allievoltou
paraatrilhaeemseguidacorreurapidamentedevoltaparaaescola.Já tinha chegado na entrada da oresta quando uma gura saiu de trás dos
arbustosaoladodatrilhaesecolocounoseucaminho.Dandoumsaltoparatrás,Allie abriu a boca para gritar, mas uma mão tampou seus lábios e um braço aenvolveuenquantoelasedebatiaparasesoltar.
—Allie—murmurouCarter.—Soueu.Paradesedebater.— Jesus.—Ela relaxou nos braços dele.—Você quasemematou de susto,
Carter.—OGabeteviu?—sibilou.Allienegou.—Eumeescondi.Claramentealiviado,eleapontouparaadireita.—Poraqui.Mantendo-se às sombrasnabeiradogramado,derama voltapara aportados
fundos.Deláfoifácilvoltar.Atravessaramsorrateiramenteaporta,masadiscriçãonão foinecessária—os corredores estavamvazios.Ouviramas vozes elevadasquevinhamdoescritóriodeIsabelle,masnão caramporláparaescutarecorrerampelasescadas.
—Quemerdaéessaquetáacontecendo?CarterandoudeumladoparaooutronochãodoquartodeAllie,passandoas
mãospeloscabelosescuros.Sentadanabeiradaescrivaninha,elanãotinhanenhumarespostaparaele.—QueméNathaniel?—murmurouCarterparasimesmo.—Porqueeletá
fazendoisso?—Umcachorro!—disseAlliefutilmente.Carterolhouparaelaeameninaexplicou.—Foiumcachorroqueeuea Joouvimosnaquelediano jardim interno.O
Nathanieldeviaestarlá.— Faz sentido — disse Carter. — Mas continuo não entendendo o que tá
acontecendo.Queméele?—Tudo bem, vamos pensar no que ele disse. Ele falou sobre o conselho—
disseAllie.—DissepraIsabellesereunircomoconselho.CarterolhouparaAllie,inquirindo.—Bem,porqueelepróprionãoprocuraosintegrantes?—perguntou.—Quer
dizer,seeleétãopoderoso.Eseelenãopodesedirigiraoconselho,temqueterummotivo.
—Isso.—Umaexpressãode compreensão se formouno rostodeCarter.—Ouporquejáteveproblemascomeles,ouporquenãogostamdele.
—Ounãoconhecemele.—Allie fezumacareta,pensando.—ONathanielpodesertotalmentedefora.MastiveaimpressãodequeeleeaIsabelleseconhecemmuito bem. Como se fossem dois velhos amigos que se desentenderam, oufamiliaresbrigados,oualgumacoisa.
—É.Ouex-amantes—disseCarter.
Seusolharesseencontraram.— Com certeza — concordou ela. Pensaram nisso por um instante, Allie
balançandoopéeCarterandandodeumladoparaooutro.—E a Lucinda— lembrou Allie, interrompendo o silêncio.—Ela disse “A
Lucindavaisaber”.—Euouvi.—Elegirouecontinuouandando.—OutravezLucinda...—murmurouela,olhandoCarterirdeumladoparao
outro.—Vocêacreditounele?NoNathaniel,querodizer.AchaqueelenãomatouaRuth?
—Nãosei.—Seutomreveloufrustração.—AchoqueaIsabelleacreditounele.—Ótimo—murmurou.—Simplesmenteótimo.—Então isso signi caria...—deixoua frasenoar.Nãoqueriapensarnoque
issosignificaria.Levantandoospésparaamesa,abraçouosjoelhos.—MeuDeus,issoéumpesadelo...Oqueagentefazagora?Carterparoudeandardeumladoparaooutro.—Nãofaçoideia.
Aolongodorestodasemana,Alliesesentiuisolada.Todososalunossentaramnoslugares de sempre e os professores prosseguiram com as aulas como sempre, masnada estava igual. Alguma coisa muito ruim ia acontecer — Nathaniel ia fazeralgumacoisa—e,dentretodososalunos,sóelaeCartersabiamdisso.
Pior, continuava sendo tratada como se fosse invisível pormuitos alunos. Eraignorada quando andava com eles pelos corredores, quando passava por eles nasescadas, quando escovava os dentes no banheiro. E apesar de se recusar a admitir,aquiloestavacomeçandoaafetá-la.Eraumaexperiênciaestranhamenteextracorporalsertratadacomosenãoestivessepresente.
Na quarta de manhã, uma menina que ela não se lembrava ter visto antesderrubouumacanetapertodelanaauladefrancês.QuandoAllieapegoueentregou,ameninaagiucomosenãoestivessevendo,mesmoquandoAllieacenoudeumladoparaoutronafrentedela.Afinal,deixouacanetacairnochão.
—Dane-se—murmurouAllie,voltando-senovamenteparaocaderno.Namanhãdequinta-feira,Julesachamouedissequeestavafazendotudoque
podiaparafazercomqueKatieencerrasseacampanhacontraela.— Estou tentando, Allie, de verdade — disse. — Mas ela é teimosa.Tentei
conversarcomaIsabelle,masnuncasoubequeelaeratãoocupada.Allie sabia perfeitamente bempor que Isabelle estava ocupada,mas não podia
contarissoaJules.—OJerryfaloucomosmeninosedissequeelespoderiamsercastigadossenão
parassem,entãoachoquedevemvoltaraonormal logo.Claro,algunspodem carcommaismedodaKatiedoquedoJerry.—Julespareceudesconfortável.—Masdessavezvaidartudocerto.Operíodoterminaemalgumassemanas,eopróximovaisermelhor...
OunopróximoaKatieenvenenamaisgenteaindacontramim.Eentãoasituaçãovaisetornarimpossível,Alliepensou.
Joaindaestavaevitandoosantigosamigos—nasrefeiçõessesentavacomGabeoucomKatieesualegiãodepuxa-sacos,dooutroladodasalaemrelaçãoàantigamesa.
Allieachouqueelapareciainfeliz.Masprovavelmenteestouimaginando.Na sexta-feira, no entanto, já tinha aguentado o su ciente. Depois da última
aula,atravessouocorredoratéoquartodeJo,batendonaportacomviolênciaantesdeabri-la.
Joestavasentadanacama,lendoumarevistademoda.—Vocêpodiabater—resmungou,irritada.—Eubati.Evocêpodianãoserumavaca—respondeuAllie.Suspirandocompesar,Jovoltouaatençãoparaarevista,passandoapáginacom
umbarulhoagudoeirritado.— Olha, Jo — disse Allie, apoiando-se na escrivaninha —, a gente precisa
conversar...Agora.—Tudobem.Conversa.—Jocontinuouvirandoaspáginas.Crack.Crack.Crack.—Doque você se lembra sobre o que aconteceu no telhado naquele dia?—
perguntouAllie.Os olhos azul-claros de Jo, normalmente calorosos, pareciam duas pedras de
gelo.—Nãome lembrodemuita coisa,mas sei que euquase acabeimorrendode
algumjeito.Involuntariamente,Allieolhoupara asmãosde Jo,ondegesso ainda cobria as
pontasdosdoisdedos.—Onãolembraréqueéoproblemaaqui—declarouAllie.—Porqueeume
lembro.Melembrodetudo.EoquenãoconsigoentenderéporquenenhumavezvocêveioperguntaroquetinhaacontecidopramimouproCarter.
Jofechouarevistacompaciênciaexageradaeolhouparaela.—Nãofuiatévocêporqueeunãocon oemvocê,Allie—disse.—Olha,o
negócio é o seguinte: com uma semana deitada na cama com as mãos cheias deataduras,eutivemuitotempoprapensaremtudo.Epercebiquenãofaçoideiadequemvocêsejaoudeondetenhavindo.Sóseioquevocêmecontou.Etambémseiqueascoisassóderamerradodesdequeagenteseconheceu.
AsbochechasdeAllieenrubescerameelaencarouJo,incrédula.— Você tá me dizendo que acha que o que anda acontecendo aqui é culpa
minha?—Pensa,Allie—disse Jo.—Não é sua culpa, pelomenosumpouquinho?
Parecequeaconfusãotepersegue.TalvezaKatietenharazão.Talvezvocêrealmentesejalouca.
Seutomfoivenenosoeaspalavrasamachucaram.Poruminstante,Allieperdeuafala.
Josupostamenteerasuaamiga.Masentãoempinouoqueixoeencarouagarotacomumolharduro.—Quersaberoqueaconteceunotelhado,Jo?Tudobem.Euteconto.Você
bebeumeiagarrafadevodcaedançounotelhado.Dançou.Sejogoudeumladoprooutrocomoumafadabêbada.Nãosabiaondeestavaenãoseimportoucomquemestava afundando com você.Tanto eu quanto oCarter nos arriscamos para salvarvocênaqueledia.Eagora,euprecisodizer,tôumpoucoarrependida.
Jotentoufalar,masAllieainterrompeu.— Se não acredita emmim, pelo amor deDeus, acredita noCarter. Você o
conhece há anos.Ou acredita na Jules, ela tem tentado falar com você.Mas nãoacredita nas pessoas que só estão te usando pra me atingir. Porque isso é muitopatético.
Comorostorubroderaiva,Jojogouarevistanela.Aovoarpeloquarto,Allieaseguroucomfacilidade.
—Eoqueeumearrependoagoraédeterpensadoquepodiasersuaamiga.—Jodisparouaspalavrascontraela.—Agorasaidaqui.
Lutandocontraaslágrimas,Alliecaminhouaostrancosebarrancospelocorredoremdireçãoaosantuáriodopróprioquarto.
Nãovoudeixarninguémmeverchorando.MasnaquelemomentoRachelsecolocounafrentedelacarregandoummonte
delivros.DeuumaolhadanorostodeAllieepegouamãodela.—Comigo—dissecomfirmeza,puxando-aparaopróprioquarto.Derrubandooslivrossobreaescrivaninha,sentounacamaaoladodela.—Oqueaconteceu?
Efoiosuficiente.Comocorpotremendoporcausadossoluços,AllierevelouoconfrontocomJo
eareaçãodamenina.AcrescentouascoisasqueouviraKatiefalando(masdeixoudeforaapartesobreestarnorebordodajanelaagarradaaumaparede).
RachelsegurouamãodeAllieeouviutudo,estalandoalínguaocasionalmenteem sinal de solidariedade, mas basicamente permitindo que a menina abrisse ocoração.
—Sónãoentendocomoelapôdedizeraquelascoisaspramim...ousobremim—disseAlliefinalmente,enquantoossoluçosdiminuíam.
Rachelesperouatéqueaslágrimascessassempararesponder.—AJotem...problemas—argumentoudiplomaticamente.—Elaéfrágil.A
vidafamiliardelanãoé...boa.Maselatembomcoração.Todosnóssabemosdisso.ElatásendomanipuladapelaKatieepelocordãodaspuxa-sacospraacreditarnessasbobagensaseurespeito.Maseuseiqueissonãoéumgrandeconsolo.Dói,sóqueriaquetivessemaisalgumacoisaqueeupudessefazer.
RachelentregouumacaixadelençosaAllie.—Achoqueelavaiacabarvoltandoaonormal.Equandoissoacontecer,vaise
arrependerdetudoquedisseatéagora.—ÉporissoquevocênuncaandoucomaJoecomaLisa?—perguntouAllie,
secandoosolhos.—PorqueaJoéumpouco,comovocêchamou?Frágil?Rachelhesitouantesderesponder.—Eutivemeupróprio...con itocomogrupodaJohámuitotempo.Lembra
quandotefaleiqueoLucaseraoamigocomquemeununcapoderiaficar?Allieassentiu.— Bem, não foi totalmente verdade. — Rachel olhou para as mãos. — Eu
queimuitoa mdoLucasquandocomeceiaestudaraqui,hádoisanos.Elemeioque cuidou de mim. Não tem muitos alunos asiáticos aqui, e eu era um poucoinsegura.Maselefezcomqueeumesentissetotalmentebem-vinda.Eueranovinha,bem,vocêsabecomoé.Ummeninolegalebonitoteadota...Fiqueicompletamenteapaixonada.
Allieaolhousurpresa,eRacheldeudeombros.— Algumas semanas depois, uma menina loura bonita chega atrasada no
período, oLucasdáumaolhadapra ela e...—elabateu asmãos e as deixou cairseparadas.—OLucasvirameumelhoramigoprasempre.
Allieaolhou,confusa.—Mas...elesterminaram,nãofoi?—Ah, sim.—Rachel revirouosolhos.—Terminaram.Depoisque ela teve
umacrise—suspirou.—Masachoqueumapartedemimnuncaconseguiuperdoá-loporterescolhidoaJoemvezdemim.Eoutrapartenuncaaperdoouporelaterdeixadoelefazeressaescolha.Outalvezsejaamesmapartefazendoasduascoisas.
—Quedroga—disseAllie.Rachelsorriutristemente.—É,umadroga.HásemanasqueRachelvinhasendooportosegurodeAllie.Elapareciamuito
sábia e madura apesar da idade — Allie queria contar para ela sobre o que tinhadescobertocomCarter.Sealguémsaberiaoquefazer,concluiu,seriaRachel.Nãoofez porque prometeu aCarter que não contaria para ninguém.Mas guardar todasaquelasinformaçõeseraalgoimpossível.Enãohaviamaisninguémaquemcontar.TalvezelaeCarterprecisassemdaajudadeRachel.
Olhou para Rachel durante um longo tempo enquanto vivia uma batalhainterna.
—Quê?—perguntouRachel,confusa.Allielimpouasúltimaslágrimasdosolhos.—Precisotecontarumacoisa.
—Vocêfezoquê?AvozincréduladeCarterecoounacasadeveraneio.Eradepoisdojantareosol
estava desaparecendo no céu, dourando os topos das árvores ao redor. Estavamsentadosemumbancodepedrabanhadospelosol.
Allielevantouoqueixoteimosa.—Euconfionela,Carter.Enãopodemossersóosdoislidandocomisso.— Não, mas nós dois deveríamos estar envolvidos na decisão de contar pra
alguém,Allie.Nãovaipermanecer segredopormuito temposeagente sairporaícontando pra pessoas em quem a gente acha que pode con ar, sem conversarprimeiro—eledisse.—Querdizer,eunãosaícontandoproLucas.
AlliepensouemLucasaparecendonobosque.—Nãofazisso—disseelarapidamente.Carterlhelançouumolharaborrecido.— Sério, Allie, quanto você realmente sabe sobre ela? Você já, por exemplo,
paroupraimaginarseelapoderiateralgumacoisaavercomafofocasobrevocêterencontradoocorpodaRuth?
Allieachouqueocoraçãopoderiaterparado.—Quê?Estádizendoque ela teve algumacoisa a ver?—perguntou, lutando
paramanteracalma.
—Estoudizendoquenãosei,nemvocê—respondeu.—Estoudizendoqueelaadora fofocar.Eutôdizendoqueémuitacoincidênciavocê ter faladopraelaederepentetodomundoterficadosabendo.
—Ela não...— hesitou Allie. Em quem podia con ar, na verdade? Por queRachelseriadiferentedeJoouSylvain?Tinhacon adonosdois.Osdoistraíramsuaconfiança.
—Vocênãosabe,Allie.—AvozdeCarterestavamaissuaveagora.—Nãoseiosuficientesobreelaprasaberseagentepodeconfiar.Elasemprefoiquieta.
—Quenemvocê—observouAllie.—Quenemeu—concedeurelutantemente.—Masopaidelaéimportantena
EscolaNoturna.Ele faz a segurança de corporações gigantes, aconselha governos...Eleédedentro,Allie.
—Euseidisso.ARachelmefalouqueopaidelaeraum gurãonoconselho—disse.—MasaRachelnãoédaEscolaNoturna,é?
—Não,eissoéestranho.—Entãoépossívelqueelanãosejadedentro,comoopai—disse.—É.Masvocêsearriscoumuitoemnomedeuma“possibilidade”—declarou.Alliesabiaqueeletinhaumbomargumento.—Temrazão.Desculpa.Voutomarmaiscuidado.Amolecido,elesentoupensandoporuminstante.—Oqueelatedissequandovocêcontoutudo?—perguntou.— Ela não soube o que pensar.Mas tinha quase certeza de ter ouvido o pai
falando sobre um sujeito chamado Nathaniel e reclamando que ele andavaarrumandoencrenca.—Allieolhoucautelosamenteparaele.—Ficouimaginandosedeveriaperguntarsobreissopraele.
—Quê?—CarterquasegritouapalavraeAlliedesviou.—Elanãovaifazerisso—assegurou-oapressadamente.—Elasóqueriaquea
genteconversassesobreessapossibilidade.Elaachaqueagentepodeconfiarnele.—Ai,masquemaldição.—Carterabaixouacabeçanasmãos.—Oquê?—Allieperguntouinocentemente.—Éassimquevocêguardasegredo,Allie?Sério?—Não...querdizer,é.—Dirigiuumolharaele.—Sóconteipraumapessoa,
Carter.Achoquevocêestáexagerando.—Al,agentepodeseferrarmuito.—Eusei—respondeuela,nadefensiva.—Eaí?—disseCarter.—De repente agentedevia tentarnão contar nossos
segredosprosoutros?
Alliecerrouosolhos.—EntãoachoquevocêquerqueeufalepraRachelquevocêpreferequeelanão
contepropai?—É,Allie.Éissoqueeuquero.—Tudobem—respondeuelafriamente.—Agente acaboude ter nossa primeira briga?—perguntouCarter, olhando
paraelacomaquelemeiosorrisoquesempreaderretia.—Não—respondeuAllie.—Achoqueagentebrigoubastanteantesde car,
nãoé?—Éverdade—concordouele.—Seja como for—disse ela—, goste você ounão, agora a gente temmais
alguémpraajudarquandoprecisar.Eelaémuitointeligente.—Issopodeserútil—concedeucommávontade.—É—falou.—Foioquepensei.Carterdeuumsoquinhodelevenoombrodela.Allierespondeufazendocócegas
nele,elogoosdoisestavamrindo.Colocandoobraçonosombrosdamenina,eleabeijounatêmpora.
—Desculpa—disseele.—Eunãodeviater cadotãoirritado.Vai cartudobem.
—Vaificartudobem—declarou—seagentefizerficarbem.Dealgumjeito.—Oquemelembraqueeuqueriatecontaroquedescobrihoje—disse.ApesardeCarterparecer sério, ela achavadifícil se concentrarnaspalavrasdele
quandoolhavanaquelesolhosgrandeseescuros.—Tudobem—disseela,pensandodemaneirasonhadora:elerealmenteémeu.
Porvontadeprópria!—Allie,éimportante.—Desculpa.—Alliesesoltoudeleesentou-seereta.—Podefalar.—AEscolaNoturnaestárecomeçandoafazertreinamentosnomeiodanoite.Alliefranziuorosto.—Oquesignificaisso?— Signi ca que a gente recebe umas instruções muito estranhas. Vamos
patrulharoterritórioemturnos,durantetodaanoite.Vamosnosrevezar,pratodomundo dormir um pouco. — Olhou para as árvores. — Nós já patrulhamos oterritório antes, por questões de treinamento, mas dessa vez é diferente. É muitointenso.Estãodizendoque é umnovoprojetopra ensinar o que eles chamamde“proteção e defesa”. Vão encenar ataques falsos que a gente tem que combater.Disseramatéqueagentepodeterfolgadasaulasdamanhãdepoisdosnossosturnos
danoite.Issonuncaaconteceu.Começahoje,eagentevaipassaro mdesemanainteirotreinando.
Observandoorostodele,Allieviuapreocupaçãoemseusolhos.—EstãosepreparandoproNathaniel—constatouela.Carterassentiu.— Suponho que não tenha a menor chance de ligarem pra polícia pra pedir
ajuda?—Ã-hã.—Então...nadadeescaparduranteanoite?—supôs.—Dejeitonenhum—respondeuele.—Asegurançaestáprestesa carintensa
aqui.—Tudobem—disseelaquietamente.—Entãoeleestávindo.—Ah,sim.—OsolhosdeCarterexaminaramohorizonte.—Eleestávindo.
P
VINTEESEIS
ara Allie, aquele m de semana pareceu se arrastar por uma eternidade,desacelerado por uma mistura tóxica de pavor e solidão. Carter e LucasestavampresosnaEscolaNoturna,entãoacampanhaanti-Allielideradapor
Katiecontinuavafirme.Pelaprimeiravez,percebeuoquantopassaraaseapoiaremCarter.Maloviu,e
quandoo fez, só tiveram tempoparaum rápido abraço.Quandoperguntou a elecomoascoisasestavamindo,ogarotoapenasrespondeu:
—Estáintenso.Mas os olhos de Carter disseram tudo que Allie precisava saber — ele estava
cansado.Epreocupado.Aformaqueencontroudelidarcomissofoinãolidar.Passouamaiorpartedo
tempo na biblioteca. Na semana seguinte seria o m do período, e ela tinhatrabalhospara terminar e testesparaosquais sepreparar.Comtoda a emoçãodasúltimas semanas, ela acabou cando para trás. Depois de tudo que tinha passadonesteverão,nãopretendiatirarnotasruins.
Rachelpassavaodiainteirolá,todososdias,entãoAlliesempretinhacomquemestudar.
—Colegasdeestudo—Rachelgostavadedizer,comumaalegriaindevida.MasassementesdedúvidaplantadasporCartercontinuavamnamentedeAllie.
SeráqueaRachelespalhouboatossobremim?Possoconfiarnela?Racheldavatantoapoioeeratãoabertaehonestaemrelaçãoàscoisasqueisso
pareciaimpossível.MasAlliesabiaquenadaeraimpossível.Amesadabibliotecáriaestavasendocontroladaporalunosvoluntários,fatoque
Rachelobservoucomsobrancelhaserguidas.—AchoqueaEloise estáde folga,praticando jogosdeguerra—murmurou,
depoisqueosvoluntários lhetrouxeramolivroerradopelaterceiravez.—Queriaqueelapudesseesperaratéofimdoperíodo.
—VocêsabiaqueaEloiseera...—Alliegesticulouvagamente.Rachelassentiu.
—Elaéumavelhaamigadomeupai.Achoqueelefoiumdostreinadoresdelaquando era aluna. De qualquer forma, a Eloise não tem segredos para mim. —Fechandoolivro,acrescentou:—Pelomenoséoqueeuacho.Aessaaltura,quemsabe?
—Éassimquemesintoemrelaçãoatudo.—Allienãoolhounosolhosdela.Rachelolhouparaorelógio.—Meio-dia.Querdarumintervaloecomeralgumacoisa?Deixandooscadernosabertossobreamesaparareservaremolugar,foramparaa
sala de refeições. Estava estranhamente quieta — muitos alunos estavam levandosanduíches lápara fora,parao solde mdeverão.Escolheramumamesaemumcantoquietoondepoderiamconversarsemqueninguémasouvisse.
—AlgumanotíciadoCarter?—perguntouRachel.Alliedeudeombros.—Poucacoisa.Eledissequetemmuitotrabalhoequenãoháintervalos.Oque
oLucasdisse?—Amesmacoisa.Rachelmordeuosanduíche,franzindoorosto.Alliepôdeperceberqueelaestava
pensandoemalgumacoisa,masesperouatéqueestivesseprontaparafalar.—Oquevocêvaifazernasférias,Allie?—perguntoua nal.—Seiquevocêe
osseuspaistêm“problemas”.—Fezgestodeaspasnaúltimapalavra.—Masvocêvaipracasa?
A pergunta pegou Allie de surpresa. Com tudo que estava acontecendo, nãotinhapensadonoquefazer.Nãoestavaprontaparavoltarparacasa,paraossilênciosdesconfortáveis e as expressões descon adas. O relógio correndo e osarrependimentoscontidos.Masoquemaispoderiafazer?
—Euachoquevoupracasa—suspirou.—Sabe,nãofalocomosmeuspaisdesde que cheguei aqui. Fiquei com tanta raiva dememandarem pra cá.Depoisquei comraivade teremmentidopramim.Queriaquepercebessemque eunão
tinha ligado e ligassem pramim. Só pra terem certeza de que eu estava bem.—Puxouacascadosanduíche.—Nãoligaram.
Rachelseinclinouparapertodela.—Éoseguinte, sevocênãoconseguirencarar,pode carnaminhacasa.Falei
sobre isso ontem com aminhamãe; contei tudo sobre você. Elame falou pra tedizerqueébem-vindaaqualquerhoraequepode carotempoquequiser.Temosmuitoespaço.
Isso prova, pensou Allie.Ela é minha amiga de verdade. Do contrário não mechamariapracasadela,certo?Éissoqueverdadeirosamigosfazem.
Masseusubconscienteparanoicotinhaumcontra-argumento:quebelamaneirademeespionar.
Mesmo assim, a ideia era tentadora. Passar algumas semanas em uma enormecasa de campo comRachel versus voltar para casa, para seus pais infelizes, discutirproblemasdefamílianacasinhadeLondres?Nãotinhanemcompetição.
Mas.—Rachel,muito obrigada. Posso pensar?— pediu.— Sei que alguma hora
tenhoquelidarcommeuspais.Masnomomentonãovejoporquê.—Eusei.—OsolhosdeRacheleramsolidários.—Deveserdifícil.— Sua família parece tãomaravilhosa— comentouAllie.—Acho que você
ganhoualoteriadafamília.Rachelnãopareceuconvencida.—Vocênãoconhecemeupai.Elequerqueeusigaospassospro ssionaisdele.
Meencheo sacopraentrarnaEscolaNoturnadesdequeeuchegueiaqui.Ele caloucoporeunãoentrar.Enãotámuitofelizporqueeuqueroestudarmedicina.Eleodeiamédicos,dizquesãotodosuns“charlatães”.Agentevivediscutindoporisso.—Terminouosanduíche.—Viu?Afamíliadeninguéméperfeita.
Allienãoestavaacreditando.—É,mastemosimperfeitosetemaminhafamília.Somosimperfeitoscomo
umabombanuclearprestesaexplodiréimperfeita.Rachelriu.—Bomargumento.OclãSheridanclaramentenãoestámuitobemagora.—AllieSheridan?—Umalunomaisnovo,queAllienãoselembravadejáter
visto,estavaàmesadelas,olhandoparaRachel.—Ela.—RachelapontouparaAllie.—Eu—disseAllie,olhandocuriosaparaele.—AIsabelleperguntousevocêpoderiairatéoescritóriodela,porfavor?Allienãoconseguiuconterasurpresa.—Quê?Porquê?Eleaolhousemexpressão.—Allie...—Rachelestavatentandonãorir.—Oquevocêfezdessavez?Alliedeudeombros.—Elaprovavelmentesóquermedizeroquantosouincrível.Denovo.—Ã-hã—disseRachel.—Bem,euvoupassaratardetodanabiblioteca,me
encontraquandoficarlivre.Seelanãotejogarnocalabouçooucoisaparecida.—Muitoobrigada—disseAllie, juntandoas coisas.—Mas tenhoquedizer
que, a essa altura, se eu descobrisse que tem um calabouço aqui, não ia me
surpreender.
OescritóriodeIsabelleestavavazioquandoAlliechegou,masaportaestavaaberta,então amenina sentou emuma das cadeiras. Enquanto esperava, olhou em volta,nervosa, como semesmoagorapudessedescobrirqueela eCarter tinhamdeixadoalgumacoisaforadolugarquefossedenunciá-los.
Isabelle entrou algunsminutos depois, parecendo distraída, com os óculos notopodacabeça.
— Aceita uma xícara de chá? — perguntou, ligando uma chaleira sobre umapequenageladeiraemumcanto.—Euestouprecisandomuitodeuma.
—Claro—respondeuAllieeducadamente,apesardenãoestarcomvontadedetomarchá.
AchaleiraganhouvidacomumroncoenquantoIsabelleprocuravaumaxícaraextra,eemseguidasecerti cavadequeestavalimpa.Quandoochá coupronto,adiretoraentregouumaxícaraaAllie,virandocuidadosamenteaalçaparaqueelanãosequeimasse,eemseguidasentouemumacadeiraaolado.
—Assim estámelhor.—Bebericou o chá, re etindo umpouco, em seguidafocou o olhar em Allie. — Não existe nada de errado com o mundo que nãomelhorecomumaboaxícaradechá.Obrigadapor tervindo,Allie.Nãoquero tetirardosestudospormuitotempo.Mascomo mdoperíodonasexta-feira,queriaconversarcomvocêparadescobrirquemvocêé.Jáestácomagenteháseissemanas,entãojátevetempoparaseadaptar.Seiqueestefoiumperíodoforadocomum,efiqueiimaginandosevocêquerconversarsobrealgumacoisa.
Poruminstante,Allieperdeuafala.Elaestábrincando?IsabelleestavaolhandoparaAlliecomexpectativa,eelasoubequeteriaquedizer
algumacoisa.Oqueeudevofalar?“Bem,oassassinatofoiumpoucoperturbador,eoincêndiome
preocupouumpouquinho.Quase fui estuprada eminha ex-melhor amiga está louca.MaspelomenosvoutirarAemhistória”?
—Certo...—disseela,cautelosamente.Tentou pensar em alguma coisa menos sarcástica para dizer, mas sua cabeça
estavacheiadecoisas sobreasquaisnãopodiaconversar—coisasquenãodeveriasaber.EsabiaqueIsabellenãoestavainteressadaemseudesempenhoembiologia,ouemporqueatrasaraumtrabalhonasemanapassada.
Enquanto seu silêncio se estendia, Isabelle ergueu uma sobrancelha e ofereceuumacordadesalvação.
—Há algum tempo não tem crises de pânico, pelo que sei. Acho que é umprogresso.
Atéaqueleinstante,Allienãotinhanotadoaextensãodetempodesdeoúltimoataque.Masjáfaziamaisdeduassemanas.E,naverdade,agoraqueestavapensando,nãovinhacontandocoisascomtantafrequência.
—É verdade—admitiu.—Achoquenão estou...medescontrolando tantoquantoantigamente.
Isabelleriu.— Bem, as coisas andam estressantes por aqui, mas me parece que você está
lidandomelhorcomoestresse.E cofelizemconstatarisso.—Repousouochá.—Agora,vocêeaJo...
Alliefranziuorosto.Estanãoeraumaconversaquequeriater.—Percebiqueestãomenospróximasdoquecostumavamser,porquê?Hesitante, Allie relatou em linhas gerais o que tinha se passado.Consternada,
Isabellefechouosolhoscastanhosdouradosenquantoescutava.—Vou falar com a Jo— disse, quandoAllie concluiu.—Ela também está
passandopordi culdades.Entãovocêtalveztenhaqueserpacientecomela.Masseiquesuaamizadeéimportanteparaela.
—Eraimportante—murmurouAllie,enfatizandoaprimeirapalavra.—Evoltaráaser—disseIsabelle,confiante.—Sevocêforpaciente.Repousouaxícaradechá.—AcampanhadaKatietambéméumproblemacomoqualestoulidando.Sei
queaJulesfaloucomvocêesintomuitonãotertidotempodefazerissoatéagora.Ando muito ocupada. Mas quero que saiba que a Jules anda me atualizandodiariamenteequetemlutadocontraKatieporvocê.
“Vocêtemsidosurpreendentementepacientecomela,masachoquechegamosaumpontoemquetereiqueconsiderarsuspendê-laseelanãoparar—disseIsabelle.—ElaconhecemuitobemasRegras,assimcomoospaisdela.Escreviparaelessobreisso,maselesnãoresponderam.Entãovoudarumúltimoavisoaelahoje.Agradeçomuitooseucontrole.”
—Cuidado!—disseAllie,antesquepudesseseconter.Adiretoraaolhoucuriosa.—Querdizer...Ospaisdelanãosãodoconselho?Achoquesãosuperpoderosos;
ela vive se gabando disso. Eles seriam... você sabe. Maus inimigos... eu acho. Seforemcomoela.
Isabelleseinclinouparaafrente.—Você émuito gentil por se preocupar comigo, Allie. Fique tranquila, vou
tomarcuidado.Mudandoparaumassuntomenosperigoso,conversaramsobreasmatériaspor
alguns minutos. Isabelle elogiou sua dedicação e observou que as notas tinhammelhoradobastante.AtéZelaznyelogiouotrabalhosobreaGuerraCivil.
—Então,naverdade,minhaúnicapreocupaçãoéoqueaconteceagora—disse.—Comoassim?—perguntouAllie,confusa.— Durante seu período aqui, eu falei várias vezes com a sua mãe. Ela tá
preocupadacomvocê.Seuspaissentemsuafalta.Imediatamente,lágrimasqueimaramosolhosdeAllie,quelutouparacontê-las.
Ficoumuito surpresacomoquanto issoamachucou.Tinhaevitado falar comospais porque estava commuita raivadeles.Masnão sabiaporque elesnão tinhamentradoemcontato.
Aomesmo tempo, se sentia traída pelo que havia encontradono seu arquivo.Isabelle conhecia bem a suamãe e nunca revelou isso. Se seus pais a traíram nãocontando a verdade, Isabelle não fez a mesma coisa? Aliás, não tinham todosmentido?
Talvezhojefosseodiadaverdade.—Vocêconhecebemosmeuspais?—perguntouAllie.AexpressãodeIsabellesealterounamesmahora.Adiretora couvisivelmente
tensa.—Porqueestáperguntandoisso?—rebateu,cautelosa.—Umacoisaqueaminhamãedissequandoestavametrazendoparacáanda
me incomodando—mentiuAllie.—Ela te chamoude “Izzy” semquerer, e emseguidasecorrigiu.Comoseteconhecesse.EdepoisaKatieeaJofalaramqueaquitodomundotinhalegado.Issomefezimaginaroqueeuestavafazendoaquisenãotenholegado.
Elaencarouadiretora.—Eutenholegado,Isabelle?Emoção passou pelo rosto de Isabelle enquanto ela hesitava por mais um
segundo,masnofimarespostafoisimples.—É,Allie.Vocêtemumgrandelegado.
A
VINTEESETE
pósdeixaroescritóriodeIsabelle,Alliefoijogaráguafrianorostoantesdevoltarparaabiblioteca.Aosentar,Rachelaolhoucuriosa.—Oquê?Ocalabouçoestavaocupadooucoisado tipo?—perguntou,
comumsorrisoprovocador.MasaonotarorostovermelhodeAllie,suaexpressãomudouparaumadepreocupação.—Ei,oquehouve?
Allierespondeucomumsorrisoabatido.—Nãofoinada,naverdade.Sóvirouumasessãoinesperadadeterapia.—Detesto quando terapia aparece e te surpreendedesse jeito—disseRachel,
masseuolharcontinuavapreocupado.—Querdarumtempoeconversar?A solidariedade deRachel deixouAllie outra vez com lágrimas nos olhos, e a
meninaassentiu.Nãoqueriachorarnafrentedetodomundo.Rachelaconduziuatéumcantosilenciosoafastadodabibliotecaesaiuembusca
delenços,voltandocomumacaixaeduasxícarasdechá.—Mecontatudo—disse,sentando-se.—Oupelomenostudoquequiserme
contar.Alliecomeçouafalar,masemseguidaparou.Sehojeéodiadaverdade,porque
pararnaIsabelle?Nãoconseguiapensaremumbommotivo.—Antesdetecontar,precisofazerumapergunta—declarou.—Podeserque
temachuque.Masesperoqueentendaporqueprecisoperguntar.OsolhosemformadeamêndoasdeRachelestavamarregaladosdesurpresa,mas
elanãoperdeuacalma.—Tudobem—concordouRachel.—Podemeperguntarqualquercoisa.—Vocêjáfezfofocasobremim?Rachelsequerhesitou.— Antes de te conhecer, sim — revelou. — Porque eu fofoco sobre todo
mundo.Masassimqueteconheci,eupareienuncamaisfizfofoca.Nunca.Olhando-adeperto,Allienãoviuqualquerindíciodehesitação.Nenhumsinal
dequenemsequersesentiradesconfortávelcomapergunta.Simplesmenteparecia...
elamesma.TodososinstintosdeAlliedisseramquepodiaconfiaremRachel.—Aquestãoéque—disseAllie—,todomundoparecementirpramim.Meus
pais.AIsabelle.AJo.Tôperdendoafé...—Emtodomundo?—concluiuRachelnolugardela.Allieassentiu.Rachelcolocouamãonocoração.—Juropelaminhafamília,Allie,nãosouumadasmentirosas.Podecon arem
mim.Dealgumjeito,Alliesabiaqueeraverdade.Inclinando-separaafrente,deuumabraçoemRachel.—Acreditoemvocê.Desculpaporterqueperguntar.—Euentendo—respondeuRachel, retribuindooabraço.—Talvezmaisdo
quevocê imagine.Não esquece, já tô aquiháum tempo.Existeummotivopeloqual escolho não termuitos amigos.Agora,me conta o que aconteceu pra deixarvocêchateada.
AllierelatoubrevementeareuniãocomIsabelleesobreterperguntadoseelaterialegado.QuandocontouarespostadeIsabelle,arespiraçãodeRachelsibilouatravésdosdentes.
—Elaadmitiu?Nossa!Oquevocêdisse?— Eu tentei fazer ela ser especí ca — disse Allie, lembrando-se do olhar de
Isabelle.Elapareciadividida.—Minhamãeestudouaqui,nãoestudou?—perguntaraa Isabelle.—Vocês se
conheceramnessaépoca.Isabelleassentira.—Estudou.Agenteeradamesmaturma.Suamãeeraumadasminhasmelhores
amigas.Alliefranziuatesta.—Entãoporqueeununcaconhecivocê?Enemouvifalarnessecolégio?— É uma longa história, Allie, mas quero que saiba que sua mãe nunca se
desentendeucomigo.ElasedesentendeucomaCimmeria.Ecomaspessoasportrásdaescola—explicou,emumtomsombrio.—Achoquevocêtinhaqueconversarsobreissocomela.Elanãogostariaquefosseeuatecontarahistóriadela.Nãoéumdireitomeu.Maseupossotedizerqueassimqueelacompletouosestudosaqui,deixoutudoisso.Enuncamaisolhoupratrás.Elaodiavaessaescola.Eachoquefoiporissoqueelanuncatecontouarespeito.
Repousandoaxícarasobreamesa,Allielevantouaspernaseabraçouosjoelhos.—Maselamemandoupracá.Isabellefezquesimcomacabeça.
—Porquememandariapraumcolégioqueodiava?—queixou-seAllie.—Elanãoestavaconseguindolidarcomvocê—disseIsabelle.—Eissonãoéculpa
sua, é dela.E ela sabedisso.Depois que oChristopher... fugiu, suamãe mudou.Foidominadapelapreocupaçãoatéquechegouaopontoemqueelanãoconseguiamaisserumaboamãepravocê.
UmaondainesperadadepesarinundouAllie,queseinclinouparaafrenteatéacabeçaestarapoiadanosjoelhos,tentandonãochorar.
—Temandarpracáfoiumadascoisasmaiscorajosasqueelajáfeznavida,Allie—disseIsabellegentilmente.—Elasabiaquevocêestavaencrencadaondeestava.Maspratemandarpracá,elatevequepedirajudaa...aumaspessoasquetinhadeixadopratráshámuitotempo.Eissofoidifícil.
Allieassistiuumalágrimacairnojoelho.—Por que nãome contou antes?—perguntou, com a voz abafada.—Você e
minhamãesãosuperamigasenenhumadasduasmedissenada.Nãoéomesmoquementir?
IsabellecolocouamãonoombrodeAllie.Faloucomavozbaixaecalma.—Elame implorou pra não contar, e eu tive que fazer o que suamãe queria,
porquevocêé lhadela,enãominha.Achoqueelaerrouemnãotedizeraverdade,eelasabequepensoassim.Maseunãopodiatrairacon ançadela.—Elasoavacomosetambémestivesselutandocontraaslágrimasagora.—Mastambémnãoqueriatrairasuaconfiança.Sintomuitopornãotertecontado.
Allierespiroutrêmula.—Vocêestáescondendomaisalgumacoisademim?Fez-seumlongosilêncio.— Adultos — respondera Isabelle com cautela — não podem contar tudo que
sabem para os jovens. Não é assim que as coisas funcionam. Contam o máximo quepodemparaosdeixaremseguros.Então, sim,estouescondendoalgumascoisasdevocê,atéacharquevocêestáprontaprasaberdelas.Mas,porfavor,acreditequevoucontarquandovocêestiverpronta.
AtristezadeAlliefoisuperadapelaraiva.Porqueosadultossempreseachammaispreparados para lidar com assuntos importantes só porque são mais velhos? Por queachamqueissodáaelesodireitodementir?
MasIsabelleaindanãotinhaacabado.—Epartedisso,umaboapartedisso,temquevirdosseuspais.Nãodemim.Você
precisafazeressasperguntasaelesprimeiro,edarachancedeseremhonestoscomvocê.Senãocontarem,ousevocêacharquenãoestãosendohonestos,entãomeprocura.Eucontooquepuder.
— Como eu posso perguntar alguma coisa pros meus pais? — A voz de Allie seelevou.—Eunãoligueipraelesporqueestavaesperandopraversemeligavam.Acheiqueiamtelefonarsesentissemsaudades.Oupelomenosiammandarcartas.Masnãofizeramnadadisso.Sãoinúteis.
— Suamãe não falou com você porque queria te dar um tempo pra pensar—comentouIsabelletristemente.—Éhoradedecidirsevocêquerounãocontinuaraqui.Eseconsegueounãoperdoarasuamãe.Euseisemsombradedúvidasqueelalamentamuitopeloquãodifícilissotemsidopravocê.Porserquemé,elanãoconseguetedizerisso.
Elaacrescentacomumsussurro:—Maseuconsigo.Allieescondeuorostonasmãos,paraqueIsabellenãoavissechorar,massentiua
diretoraaabraçar.Maistarde,quandoseacalmou,Isabelle lhedeuumlençoecolocounovamentea
xícaradechánassuasmãos.—Vocêprecisaentender,Allie —disseela—,queaindatemmuitoaaprender
sobrevocêmesma.Suafamíliatemumahistórialongaeúnica.Suamãerejeitouessahistória, então ela escolheunão te contar sobre ela.Euachoumapena.Você vemdeuma linhagem incrível. Pergunta pra ela. E espero que você perdoe seus pais. Elesfizeramoqueachavamcerto.
Quando Allie terminou de contar a história, Rachel se inclinou para trás noassento.
—Uau—exclamou.—Quecoisamaisintensa.Enãoestounemaíproqueeladiz.Seuspaissãomuito idiotas.Maseutômuitocuriosaprasaberoqueelaquerdizercomsualinhagem.
—SópodeseraLucinda—constatouAllie.—Sejaelaquemfor.—Suamisteriosapossívelavó...—re etiuRachel.—Nãohádúvidasdeque
elaéachave.Vocênãoperguntousobreela?—Não.Medistraícomessamerda-dos-meus-pais-serem-uma-merda.—Eutôficandolouca—disseRachel.—Queméela?—Gostariadesaber.RachellançouumolhardesafiadorparaAllie.—Vocêsabeoquevoufalar.Alliesuspirou.—Seupai...—...sabetudo—concluiuRachelnolugardela.—Deixaeucontarpraeleo
quetáacontecendo.
—OCarternãoquercontarpramaisninguém,principalmentepraummembrodoconselho,comooseupai—disseAllie.—Eleaindaestáirritadocomigoportercontadopravocê.
—Tudobem—concordouRachel.—Masnãoédafamíliadelequeagentetáfalando.Édasuaedaminha.
Racheltinharazão.—Deixaeupensar—disseAllie.—TalveztenhaqueconvenceroCartermais
umpouquinho.—Ok—falouaoutra—,masnãodemoramuitoprapensar.Operíodoacaba
nasexta.
Na segunda-feira, Allie ainda não tinha se decidido quanto ao que falar a Rachelsobrecontaraopaidela.Masquandoentrounasaladerefeiçõesnahoradoalmoço,todosospensamentossobreo mdoperíodo,LucindaeperigodeixaramsuamenteaoverLisana entrada.Ela estavapálida emaismagradoquenunca,masoúnicolembretevisíveldoataqueeraacicatrizvermelhanabochecha.
— Lisa! Meu Deus. — Allie correu para abraçá-la. — Quando você voltou?Comoestá?
—Oi,Allie.Chegueihá algumashoras.—Sorriu abatida.—Meuspaisnãoqueriamqueeuperdesseasprovaseeuestavamesentindomelhor,então...
—Quedroga—disseAllie.—Bem,sejabem-vindadevolta!Ascoisas carammuitoerradassemvocê.Ficofelizqueváficaraquidurantecincodiasinteirinhos.
—Obrigada.—Lisaolhouaoredordasala,claramenteconfusa.—Oqueestáacontecendo?Não temninguémnanossamesa.E a Jo está lá com...—apontouparaocantodasalaondeJoestavasentadacomIsmayeKatie.
Allieassentiu.—Umhorror.AJomeodeiaagora.—Mentira.—Lisaaolhouincrédula.—Não,ésério.Muitacoisaaconteceuenquantovocênãoestavaaqui.Ogrupo
basicamente acabou por enquanto. Está todo mundo dividido. Eu tenho sentadocomaRachelPatelecomoLucasnamaioriadasvezes,seelesestiveremporaqui,ecomoCarter.
—Porquê?Oqueaconteceu?—MeuDeus,éahistóriamaislongadahistóriadaburrice—disseAllie,com
um suspiro. — Con a em mim: a Jo me odeia. Mas de algum jeito estousobrevivendo.
Lisapareciaperdida.
—Nãofaçoideiadeondesentaragora—disseresmungando.OslábiosdeAlliesecurvaramemumsorrisoendiabrado.—Bem, vocêpode sentar coma Jo e aKatieGilmore.Ou comigo e como
Lucas.—Vamos,então—disseLisacomumrisoculpado.ForamatéondeRachele
Lucasjáestavamenchendoospratoscomsanduíches.Duranteoalmoço,serevezaramnorelatodoquetinhasepassadoenquantoLisa
estiveraemcasaserecuperando.Allietentouserjustaaocontarseuladodahistória,masLisanãopareceuterqualquerproblemaemacreditarnopior.
—Ah,Jo...—disseela,balançandoacabeça.—Issooutraveznão.Lucassuspirou.—Foiexatamenteoqueeudisse.Tudopareceumpoucofamiliardemais.—MasbotaraculpanaAlliequandotodomundosabequeelafazessascoisas...
—comentouLisa.—Éumamaldade.—AKatietátirandovantagemdela—disseRachel.—Estáusandoela.EaJo
deveestarmuitomalsetácaindonadela.QuandoCarterapareceuatrasado,deuumbeijolevenacabeçadeAllieantesde
sentarao ladodela.OsolhosdeLisasearregalaram,masAllieestavasorrindoparaCarterenãoseimportoucomofatodeLucasterdadoumasingelacotoveladanascostelasdeLisa.
Fora isso,noentanto,nãohouvenenhumafaíscaentreLisaeLucas.Aliás, emdeterminadomomento,AlliepercebeuLisaolhandopreocupadaparaLucaseRachel,e pela primeira vez notou quão próximos se sentavam, e quão companheirospareciam.
TalvezRachelestivessepensandoemperdoá-lo,afinal.Não gostava da ideia de se encontrar nomeio de um triângulo entre Rachel,
LucaseLisa,mas,aomesmotempo,queriaqueRachel cassecomomeninoqueafaziafeliz.
Umarugadepreocupaçãoseformoubrevementeemseurosto.Porqueoamortemquesersempretãocomplicado?
Àsonzehorasdaquelanoite,Allietirouacaradoslivros.—Comida—murmurou.—Precisodecomida.Ela estava estudandona biblioteca comCarter, Lisa eRachel desde o nal do
jantar. O toque de recolher da biblioteca tinha sido estendido até a meia-noitenaquelasemana,emesmoaessahoraasalacontinuavalotada.
—Voubuscaralgumacoisaprabeber—informouAllie.—Alguémquer?
—Euestoubem—disseLisa,maldesgrudandoosolhosdolivro.Rachelsepronunciou:—Não quero ser pedante,mas a genteacabou de fazer um intervalo há uma
hora.—AAlliegostadosintervalosmaisdoquegostadeestudar—observouCarter.—Eoquetemdeanormalnisso?—disseAllie,selevantando.—Tudobem.
Vocês cam.Euvoltoquandoencontrarcomida.Equandotodosvocêsdesmaiaremdefomemaistarde,nãopensemquevãopodersealimentardemim.
Saindo da biblioteca com os olhos turvos, foi direto para umamesa estocadacom barras de cereais, vasilhas de frutas e jarras de café e chá no lado de fora dabiblioteca. O corredor estava cheio de alunos dando intervalo nos estudos, seespreguiçando,dormindoeconversandoantesdevoltaremaoslivros.
—Café—murmurou,dirigindo-seatéamesa.Ao servir café em uma xícara branca com o brasão da Cimmeria em azul,
examinouacomidacomdesânimo.—Porquenãotembiscoitoaqui?—disse,aninguémemparticular.—Ecadê
ochocolate?Comopossotrabalharnestascondições?—Eutragochocolate.Alliedeuumsaltoegirou,quasederrubandoocafé.—Sylvain,quemaldição.Vocêmeassustou.—Désolé...nãotiveintençãodeteassustar.Ameninanãopareceuconvencida.EnquantoSylvainseserviadecafé,Allievirouparasair.—Bem,foiótimofalarcomvocê...Sylvaindeuumrápidopassoemdireçãoaela.—Allie,espera.Porfavor.Euqueriafalarcomvocê...deverdade.—Ai,meuDeus,precisamesmo?—ConversarcomSylvaineraaúltimacoisa
queelaqueriaagora.—Não,claroquenão—disseele,parecendoferido.—Maseuia carmuito
felizsevocêmedessealgunsminutosdoseutempo.Alliesuspirou.—Tudobem.Desdequevocêprometaquenãovaisedesculparoutravez.OsolhosazuisdeSylvainbrilharam.—Eu não posso prometer que nuncamais voume desculpar,mas eu quero
conversarsobreoutracoisaagora.Contudo,mildescul...—Pronto,chega—disseela,afastando-sedele,masSylvainaseguroulevemente
pelobraço,rindo.
—Eunãoresisti!Porfavor,nãovai.Prometoquenãofaçodenovo.Allienãoteveaintençãodesorrirparaele,masofez.—Tudobem,eudesisto.Oquefoi?—Vocêseimporta...?—Elegesticulouparao mdocorredor.—Émelhora
genteirpraoutrolugar.— A gente não pode ir a nenhum lugar além daqui. — Ela apontou para a
biblioteca.—Jápassadasonze.—Ah,asregrasnãosãotãorígidaspramim.—Quandoelaoolhoucheiade
dúvida,eleacrescentouimediatamente:—Agentenãovaimuitolonge.—Cincominutos.—Ela levantou amão com os dedos abertos.—Depois
tenhoquevoltarpraestudar.—Combinado.Carregandoaxícaradecafé,elaoseguiupelocorredoremdireçãoaosaguãode
entradavazio.Ospassosdelesecoarampelapassagemespaçosa.Assim que caram sozinhos, o comportamento dele mudou. Ele parecia
desconfortável,eolhouemvoltaparasecerti cardequenãotinhamsidoseguidos.AtensãodeSylvainadeixoudesconfortável.
—Então...sobreoquevocêqueriaconversar?—perguntouela.Semqualquer aviso, ele deuumpassopara pertodeAllie e a puxoupara um
abraço.Antesqueameninapudesseseafastar,Sylvainsussurrouaoouvidodela:—Sintodizer,Allie,quevocêestácorrendoperigo.—Sylvain—sibilou—,mesolta.—Porfavor,Allie, ngequeagentetáconversandocomoamigospróximos.—
O tom suplicante de Sylvain a espantou o su ciente para que parasse de tentar seafastar.
—Quediabosestáhavendo?—sussurroueladevolta.—Nãoposso falarmuitacoisa—respondeu—,masacreditoquevocêesteja
correndoperigo.Quealguémvaitentartemachucar.Allie procurou qualquer sinal de que o rapaz estivesse brincando,mas ele não
estavasorrindo.Pelaprimeiravezsentiuumapontadademedo.—Quem,Sylvain?Quemquermemachucar?Ogarotobalançouacabeça.— Não posso contar nada. Não tinha nem que te contar isso. Mas eu tô
preocupadocomvocê.Porfavor,acreditaemmim,éverdade.—ÉoNathaniel?AssimqueAlliefalouaspalavrasamãodelavoouecobriusuaboca.Umafaíscadeinteresseiluminouorostodele.
—ComovocêsabesobreoNathaniel?OCartervaimematar.—Eu...Eusó...devoterouvidoumboatooualgumacoisa...Sylvainaencarou,comoseprocurassealgumapista.—Quemteameaça—disseele suavemente—importamenosdoqueoque
podeacontecersenãotemantivermosemsegurança.Achoquevocêdeve carcomamigosomáximopossível,não casozinhaemmomentoalgum.Principalmenteláfora.
Para Allie, ainda parecia estranho ser Sylvain quem estava lhe contando sobreisso.Elainclinouacabeçaparaolado,desconfiada.
—AIsabellesabe?—Sabe,mas não quer te assustar e acha que pode te proteger.Todomundo
achaquepodeteproteger.Eunãotenhotantacerteza.Porfavor,acreditaemmim.Éumfatoreal.
O calor do corpo dele ainda pressionando o dela era perturbador. Seu cheirofamiliarafezselembrardecomojásesentiraemrelaçãoaele—aosbeijosdele.
DerepenteprecisavaestarlongedeSylvain.Allieexalou.—Certo.Tudobem.Vouficarcomamigosenãovousairmuito.Nãopira.Amenina esperava que ele fosse se retirar naquele instante,mas Sylvian cou
ondeestava,olhandonosolhosdela.—Oquê?Temmais?—perguntouela.—Porfavor,dizquenãotemmais.—Não.AindatôtentandodescobrircomovocêsabesobreoNathaniel.— E eu ainda tô tentando descobrir quem quer me machucar — rebateu
acidamente.—Entãoachoqueagenteempatou.Ela pôde enxergar nos olhos do rapaz algo que parecia re etir suas próprias
emoções con ituosas, e isso tambémapreocupou.Manobrandopara se livrardosbraçosdele,elapegouocaféecomeçouavoltarpelocorredor.Elefoiaoladodela.
Quandochegaramàportadabiblioteca,eledissebaixinho:—Lembradoqueeudisse.Cuidado.—Estoutomando—respondeuameninacomcrueldade.
AllienãoconseguiadecidirsedeveriacontaraCartersobreaconversacomSylvainounão.Tinhaquase certezadequeCarternão caria feliz em saberque ela tinhafaladocomSylvain.Ede nitivamentenãoiagostarqueaconversativesseocorridocomo aconteceu.Mas não contar parecia errado.Não necessariamente como umatraição.Maiscomoumamentira.Umpouco.
MasquandovoltouparaabibliotecaeleestavaguardandooslivrosparairparaaEscola Noturna, então a decisão foi tomada por ela — só teve tempo para umarápidadespedida,enãovoltouavê-lonaquelanoite.Nodiaseguinte,comoelefoiliberadoparadormir,nãooencontrounasaulasdamanhã.Entãonãotevechancedecontar.
Pelomenosfoiassimqueexplicouparasimesma.EparaRachel,que,parasuasurpresa,levouanotíciamuitoasério.
—OSylvain émuito importante naEscolaNoturna,Allie. Ele pode ser umbabacacompleto,massealguémvaisabersobreessetipodecoisa,éele.—Rachelfranziuocenhoaopensarnoassunto.—VocêfaloucomaIsabelle?
EstavamsentadasondeAllieeSylvainhaviamconversadonanoiteanterior,cadauma com uma xícara quente de chá e um biscoito intocado. Apesar de não terninguémemvolta,conversavamaossussurros.
—Deveria?—perguntouAllie.— Isso estáme incomodando.Elenão falouque eu não deveria. Mas me pareceu meio... não sei. Emoff. Como se ela nãoquisessequeeusoubesse.
— Mas se você tá mesmo correndo perigo, por que ela não quereria quesoubesse?—Rachelpareciapreocupada.
—Nãosei,essahistória todasoamuitoestranha.Masoolharnorostodele...mepareceuqueestavarealmentepreocupado.—Allieseinclinouparatráscomumsuspiro.—Temalgumacoisaerrada.
—Deixaeupensar—disseRachel.—Vouteralgumaideia.MasAllietambémachouqueelapareciapreocupada.
ComoavisodeSylvainpairandosobreela,Alliedormiumalnasegunda-feira.Naterça,apósmaisumdiadeaulas intensaseumanoite terminandoumtrabalhonabiblioteca,agarotaestavaexaustaquandosubiuasescadasàmeia-noite.
Seus dentes receberam uma breve visita da escova e já estava semidormindoquandocolocouopijama.
Deixandoajanelaabertaparaabrisanoturnamorna,murmurou:—Boanoite,quarto.Ecaiunumsonotãoprofundoquenãoconseguiaselembrardenenhumsonho.Quandoacordoumaisoumenosduashorasdepois,primeironãosoubeoquea
perturbou.Abriuosolhos.Aindaimersanoborrãoentresonhoevigília,elaviuumagura inclinada sobre a cama, observando-a. De início, achou que estivesse
sonhando.Emseguidaoouviurespirando.
—Carter?—murmurou,semexendo.Allie sentiu mais do que viu o movimento súbito enquanto a gura saltava
agilmenteparaamesaesaíapelajanelacomafacilidadedeumacrobata.NãoéoCarter.Apercepçãoaarrancoudotorporeelasesentounacama,ereta,olhandoparaa
janelaabertaporumafraçãodesegundoantesdepularparaacenderaluz.Oquartoestavavazio,masalguémtinhaestadolá,tinhacertezadisso.Oslivros
epapéisnaescrivaninhatinhamsidobagunçados.Umacanetaquetinharepousadoemumcadernoantesdedormiragoraestavacaídanochão.
Nãofoiumsonho.Forçando-seacontinuarrespirandouniformemente,elasubiunaescrivaninhae
olhoupelajanela,mastudoqueviufoiapaisagem,banhadapelobrilhodesbotadodeumafatiadelua.
Tremendoapesardanoitemorna,Alliefechouajanelaeatrancou—testandoaforçadatrancaantesdevoltarparaacamaeabraçarosjoelhos.Ficouacordadaporumlongotempo.
–T
VINTEEOITO
alvezvocêestivessesonhando—sugeriuCarter,maselaviuqueosmúsculosdorapaztinhamficadotensos.
—Nãoestava—insistiuAllie.—Coisassaíramdolugar.Alémdisso,euviele.Estavam sentados com Rachel na casa de veraneio. As aulas do dia tinham
terminadoháalgunsminutos.Océuestavacinzentoesinistro,masaindanãotinhacomeçadoachover.
—Vocêvêpessoasnossonhos—observou.—Todomundovê.Comopodeter certeza de que não foi o vento que soprou as coisas quando você estavadormindo?
—Vocêsebeliscou,Allie?—perguntouRachel.—Oufezalgumacoisaprasecertificardequeestavaacordada?Àsvezesossonhospodemparecermuitoreais.
—Euvi.—Allieestavacadavezmaisfrustrada.—Porquenãoacreditamemmim?Euestavasentadanacamaenquantoelepulavaa janela.Nãofoiumsonho.Eleestevenomeuquarto.—Ameninaestremeceu.—Eleestevenomeuquarto.
—Ei,tátudobem.—Rachelcolocouobraçoemvoltadela.—Vocêestábem.Agenteacredita.Agente sóquerquevocê tenhacerteza.Contaexatamenteoqueviu.Comoeleera?
Retorcendoorosto,Allietentouselembrardetudo.—EleeramaisbaixoqueoCarteremais leve.Estavatododepretoe tinhaa
peleclara.Tenhoquasecertezadequetinhacabelospraticamentelouros.Duranteumtempopassaramsemmuitoentusiasmoporumalistadetodosos
alunosquepoderiamseencaixarnadescrição,masdescartaramtodos.—Ninguém na EscolaNoturna tem essa aparência— falouCarter.—E só
quemédaEscolaNoturnapodesubirnotelhadonessahora.—QuemédaEscolaNoturnaequemquerquefosseapessoanomeuquarto
ontem à noite — disse Allie. — Carter, tem mais uma coisa que eu preciso tecontar...
Atéaqueleinstante,aindanãotinhafaladoparaelesobreaconversacomSylvain,então revelou tudo de uma vez. EnquantoCarter ouvia, suamandíbula enrijeceu.
Quando ela terminou, o garoto levantou em um pulo, sem dizer uma palavra, emarchoudacasadeveraneioatéabeirada oresta,onde couparadodecostasparaelas.
—Uh-oh—disseAllie,semovimentandocomosefosselevantarecaminharatéele,eemseguidamudandodeideiaesentandonovamente.
—Dáumminutopraele.Elevai carbem—tranquilizouRachel.—Edepoiseuirritoelebastantecomaminhanotícia.
—Notícia?—Allieergueuumasobrancelhacuriosa.—Vamosesperar—respondeuRachel,observandoCarter.—Sóquerocontar
umavez.Allieviuqueeleagoraestavavoltando.Oruborquehavia inundadoseurosto
enquantoescutavaahistóriadelatinhasumidoeCarterpareciamaiscalmo.—Euacreditonele—disseCarter.—Eleéumbabaca,massealguémteriaessa
informação,seriaele.Eletinhaquetercontadopramim.Nãopravocê.—Pareciafurioso.—Maseleéa mdevocê,entãodecidiufazerassim.Tudobem.Agoraagentesabe.
Allie olhouparaRachel, que franziu o rosto antes de se inclinarnadireçãodeCarter.
—Vocênãovaigostardoqueeutenhopradizer.—Oquê?—rosnouele.—Támedizendoqueessediaaindavaimelhorar?—Euconteipromeupaioquetáacontecendo.—Ah,ótimo.Realmentemelhora!—Carterpassouamãonocabelo.—Não
fazia ideiadequeissofossepossível.Sabe,entrevocêsduas, todomundovaisabertudosobreagenteantesdo mdoperíodonasexta-feira.Émelhoragentealugarumoutdoorpra estampar todos os nossos segredos?Talvez possamosmontar umsite,todososnossossegredospontocom.
—Aquinãotemcomputador—relembrouAllie.— Eu tenho total ciência da falta de tecnologia de internet na Cimmeria —
comentouCarter,irritado.—Masobrigadopormelembrar.AlliedesviouparatrásdeRachel.—Sintomuito—disseRachel.—Entendoquevocêsnãosaibamquepodem
con arnomeupai,masacreditem,vocêspodem.EeutôassustadapelaAllie.Entãopegueio telefoneda Isabelle emprestado e contei tudopra ele.Ele sabequeméoNathaniel.
Aúltimafrasepareceupairarnoar.Alliefoiaprimeiraarecobrarossentidos.—Queméele?—perguntouansiosa.
—Onegócioéoseguinte—disseRachel,olhandopreocupadaparaCarter.—Elenãoquermecontar.
—Claroquenão—disseelesarcasticamente.—Maseleétotalmenteconfiável.—Eleé.—Rachelestava lutandoparasemantercalma.—Eledissequenão
podiamecontarisso.Masmeupaimedissealgumascoisassobreele.FalouqueoNathaniel fala sério.Que ele e a Isabelle forammuito próximos, e essas foram aspalavras exatas que ele utilizou, mas que tiveram uma briga e agora o cara estádeterminado a assumir a Cimmeria e a EscolaNoturna, parameio que ocupar olugardela.Emeupaidisseque,seissoacontecesse,seriaumdesastre.EleabominaoNathaniel.Dissequeeleémuitorígido.Provavelmentelouco.Equenãovaimediresforçospraconseguiroquequer.
—Ah,ótimo—disseAllie.—Acoisapiora—prosseguiuRachel.—Algunsmembrosdoconselhoestão
do lado dele. Tem alguma coisa que a Isabelle tá fazendo que eles não estãogostando.Temalgoavercomaorganizaçãomaior.Sejacomofor,algumaspessoasgostariamque a Isabelle sumisse e achamque podem se utilizar doNathaniel praisso.Deixarocaraselivrardelaedepoisselivrardele.Masopapaidissequenãovaidarcertoequeissopoderiaarruinartudo.
“ElevaiconversarsobreissocomaIsabellenasexta,quandoviermebuscar.Masfaloumaisumacoisa.”
RachelolhouparaAlliecomocenhofranzido.—Eledissepravocêtomarcuidado.ImagensdanoiteanterioracenderamnamentedeAllieeameninaestremeceu.
Emseguidaselevantou,comolhosdeterminados.—VamosfalarcomaIsabelle.—Oque...—disseRachel.—Agora?—Agora.—Ela tem razão.—Carter se levantou e foi para o ladodeAllie.— Jánão
tenhomais ideias. E alguém entrou no quarto da Allie ontem à noite. Chegou ahora.
—Bem—Rachelselevantouejuntou-seaeles—,talvezelanãoexpulsetodomundo.
—Evocê temcertezadequenão estava sonhando?—Osolhosde Isabelle erampenetrantes,masAllienãoesmoreceu.
—Tenho—disseAllie,comavozmaisconfiantedoqueestavasesentindo.Depoisqueaabordaramcomahistória,IsabelleconvidouSylvaineMatthewa
se juntarem a eles, e agora estavam todos reunidos no escritório. Allie e Cartersentaram no alto dos armários que revistaram duas semanas antes. Rachel estavasentadadepernascruzadasnochãoabaixodeles.Sylvain,IsabelleeMatthewestavamnascadeirasdecourodadiretora.
Quando Sylvain e Matthew se juntaram a eles, Isabelle apresentou Matthewcomo um “especialista em segurança”, e em seguida solicitou que Allie, Rachel eCartercontassemnovamenteahistória.
Agora,enquantoprocessavamainformação,asalaestavaemsilêncio.—ÉumadaspessoasdoNathaniel—disseSylvain,rompendoosilêncio.Isabelleoolhouincrédulo,maselenãorecuou.—Elesjásabem,nãosabem,Allie?—perguntou,olhandofirmementeparaela.Enrubescendo,Allieassentiu.—ComovocêsabesobreoNathaniel?—perguntouIsabelle,comavoztensa
deraiva.AllieolhourapidamenteparaCarter,eemseguidaparaIsabelle.Suamandíbula
trabalhouenquantopensounoquedizer.—Issorealmenteimporta?IsabellesustentouoolhardeAllieporumlongoinstante,eAllienãoconseguiu
leraexpressãodadiretora.—Não. Suponho que não.—Olhou para Carter e Rachel.—Vocês todos
sabem?Assentiram,mudos.—Muitobem,então.Matthew?—Isabellesevoltouparaoconselheiro.—Quemmaispoderiaser?—perguntouMatthew.—Certo.Faltamdoisdiasparaacabaroperíodo—disseIsabelleparatodos.—
A Escola Noturna já está fazendo o máximo possível para tentar garantir que oterritóriodaescolaestáseguro.Masnãotemosgentesu ciente,entãoalguémentrouenãopercebemosnada.NãoseioquevocêspensamquesabemsobreoNathaniel,maspossofalarqueeleémuitoperigosoevingativo.Eleesteveportrásdepartedoqueaconteceunanoitedobailedeverão.Entãoprecisamosmudarnossaestratégia.Voufalarcomosoutros,masenquantoisso,SylvaineCarter,opapeldevocêsagoraé carpertodaAllieotempotodo.Noiteedia.Pelomenosumdevocêsvaiterqueacompanhá-la constantemente.Nunca saiam do lado dela.Trabalhem em turnos.Combinado?
CarterfezumacarafeiaparaSylvain,masconcordou.Sylvainpareceucompletamenteinocente.—Combinado.
—Allie—Isabelle sevoltouparaela.—Queroquecontinuecomasuavidanormalmente.Vaipraaula.Dormenopróprioquarto.MasnãovaialugarnenhumsemoCarterouoSylvain.
Apesar de não conseguir imaginar como funcionaria (e quando precisasse ir aobanheiro?),Allieconcordoumuda.
—Rachel,seiquevocêjáestáfazendoisso,mas caomáximopossívelcomaAllie.Elavaiprecisardoseuapoio.
—Claro—disseRachel.Isabellecontinuou:—Voufalarcomoseupai,paramecerti cardequeeleconcordacomisso,mas
tenhocertezadequeconcordará.— Agora. — Os olhos de Isabelle passaram pelos alunos. — Por favor, nos
deixem.Temostrabalhoafazer.
Nocorredordo ladode foradoescritório,a tensãonoarera forte.CarteragarroupossessivamenteamãodeAllie.
—Querqueeuassumaoprimeiroturno?—AvozdeSylvainerasedapura.UmtendãotrabalhounamandíbuladeCarter.—Euqueroquevocêvásef...—começou,masAllieagarrouobraçodele.—Carter,não.Calma.—Elaolhouparaosdois.—Vocêspodem carcomigo
atéumterqueirparaalgumlugar,tudobem?Aíooutroassume.Sembriga.Pelomenosnãoentrevocês.
Nenhumdosdoisrespondeu.—VoupassarorestododianabibliotecacomaRachel.Podemosestudartodos
juntos—prosseguiuAllie.—Vaificartudobem.Sãosódoisdias.—Pormimestábom—Sylvainronronou.Carteraindanãotinhasepronunciado,eagoraAllieolhouparaele,acariciando
suabochechatensacomaspontasdosdedos.—Vamos—sussurrou.—Tudobem—concordouentredentes.—Nósdois vamos tomar contade
você.Alliesuspirou.—Ótimo.—Bem...Temumlivrodequímicamechamando—declarouRachel.Allieaolhoucomgratidão.—Eeuaindatenhoqueterminaraquelemalditotrabalhodehistória.Sótenho
quecorrerparaomeuquartobuscarminhasanotações.
—Euvoucomvocê—entoaramCartereSylvain.Osdoisseentreolharam.—Ai,meuDeus—murmurouAllie,exaurida.—Issoéperfeito.
Pelorestodanoite,foraumrápidointervaloparajantar,ostrês caramestudandonabiblioteca,ondearegradoproibidofalarsigni cavaquenãopodiambrigar,peloqueAlliesesentiugrata.Massemprequedavamumintervaloparatomarcafé,tantoSylvainquantoCarter se levantavampara acompanhá-la.Carter fazia cara feiaparaSylvain,quesempredavadeombrosinocentemente.
—Masestoucomsede.—Babaca—murmuravaCarter,pegandoamãodeAllie.AllieviravaparaRachelenquantoeleapuxava,mexendoabocacomorecado:—Meajuda.Rachelsorriasolidariamente.Mais tarde, quando Rachel sugeriu um intervalo para ir ao banheiro, Allie a
seguiuansiosamente.SylvaineCarteresperaramdoladodeforadaporta.—Então,basicamente,esteéomeupiorpesadelo.Meuatualemeuex-futuro
namoradosconstantementedomeulado...juntos.—Alliejogouáguafrianorosto.— O Carter está lidando muito mal com a situação. — Rachel suspirou
enquantoAlliesecavaorosto.—Queriaque,paraobemdele,eletomasseumabelaxícaradecalma.
—Precisamesmo.Nãotenhocomoaguentarissodurantedoisdiasinteiros—disse Allie, aplicando uma leve camada de brilho labial cor-de-rosa. — Vouenlouquecer.
Olhou para o próprio re exo no espelho.O cabelo tinha crescido e a henna,desbotado.Agorasependuravaemondasescurasbrilhantessobreasomoplatas.Seusolhoscinzentosegrandeseramemolduradospor longoscíliosnegroscontraapeleclara.Usavapoucamaquiagem;nãoprecisavademais.Ablusabrancaeasaiaxadrezdouniformeenfatizavamsuascurvaserealçavamsuaspernasatléticas.Percebeuquenãosepareciaemnadacomamolecaquesemprefoi.PelaprimeiravezachouquepudesseenxergaralgumacoisadoqueCartereSylvainviamnela.
Eumudei,pensou,eviuumaexpressãosatisfeitanoespelho.Estoumeio...bonita.—Pronta?—perguntouRachel,jogandoatoalhadepapelnolixo.Allieguardouobrilholabialnobolso.—Pronta.
—Temqueparar,Carter—disseAllie.—São sódoisdias.Eu realmentequero
quevocêfaçaisso.—Masnuncavoumeesquecerdojeitoqueeletetratou...—comentou,com
osombrostensos.—Eusei,maselemepediudesculpaseeuaceitei, entãovocê tambémvai ter
que desculpar— disse ela.—Ele estáme ajudando. A Isabelle quer que a gentetrabalheemunião,então,porfavor,paradesertãomacho.Vocênãoéassim.
Jápassavademeia-noiteeelesestavamsentadosnacamadoquartodeAllie.Asjanelas estavam fechadas e trancadas, e uma barra tinha sido a xada para prendermelhor.IsabelleinsistiaqueumdelespassasseanoitedoladodeforadoquartodeAllie,masosdoisestavaminsistindoemficar.Sylvainestavaláforaagora.
—Desculpa—pediuCarter.—Seiqueestousendociumento.—Vocêacha?—perguntouAllie,rindo.Elesorriuenvergonhado.—Umpouco,talvez.—Eusóquerovocê,CarterWest.—Elasubiunocolodeledemodoque cou
comumapernadecadaladodeCarter,ecomorostoapoucoscentímetrosdodele.—Vocênãoprecisaterciúmedenada.
As mãos de Carter deslizaram pelas costas de Allie enquanto ela abraçava opescoçodele.
—Sóvocê—sussurrouela,seinclinandoparaafrenteparabeijá-lo.Beijaram-se até todos os pensamentos sobre Sylvain desaparecerem e estarem
inteiramentefocadosumnooutro.AsmãosdeCarterdeslizaramparaosquadrisdeAllie,eapuxaramcom rmezacontraoprópriocorpo,eelanãoresistiu.Quandoasmãosdelepuxaramabainhadablusaparaforadasaiaepercorreramsuascostas,suapele formigou. Quando mordeu a orelha dele, Allie sentiu o coração de Carteracelerar.
Quando a garota recuou, ambos estavam sem fôlego; o rostodeCarter estavaenrubescido.
—Euvouseraadultadessavez—disseAllie.—Temqueser?—sussurrouele.Asaiadelahavialevantado,eeleacariciousuas
coxasnuas.— Infelizmente. — Ela se levantou e, inclinando-se para a frente, tocou
levementeoslábiosnosdele,recuandoantesqueCarterpudesseagarrá-la.—Alguémtemqueser,etenhoasensaçãodequenãovaiservocê.
—Nãodessavez—disseele.Passandoasmãosnocabeloparaajeitá-lo,eladisse:—Quebomqueagenteteveessaconversa...
Carterriu.—Vocêvaitentarnãoserciumento?—Voutentar—prometeu.Levantando-se,eletentoualcançá-la,masemdois
segundosAlliejáestavanaporta,eaabriu.—Boanoite,então.—Elaolhouemvoltadoladodefora,atévirqueSylvain
estavasentadodecostasparaaparedeolhandoaportadoquartodela,semexpressão.—Boanoite,Sylvain.
—Boanoite,mabelleAllie.—Elateveaimpressãodesentirarrependimentonavozdele.
Carterpassouporelaaosair,inclinando-separabeijá-lalevemente.—Sevirououvirqualquercoisa,grita,tudobem?—Prometo.Assim que ele saiu, ela vestiu um pijama branco limpo e deitou.Depois que
apagou a luz, repassoumentalmente a noite, lembrando-se da sensação dos lábiosdele.Doquantoeleaqueria.
EmnenhummomentopensouemNathaniel,ouemperigo,ouemprecisardeguarda-costas.Emvezdisso,imersanocalordafelicidade,caiunosono.
Maistarde,imaginariaoqueaacordara.Talvezospassosnocorredor.Ouasvozesdoladodeforadaporta.Dequalquerforma,quandosuaportaseabriusubitamenteealuzacendeu,elajáestavasentadanacama.Eramtrêsdamanhã.
—Levanta,Allie.—O rosto deCarter estava sombrio.—ONathaniel estávindo.
A
VINTEENOVE
llie lutou para manter a calma. Ainda grogue de sono, tentou calçar ochinelo diversas vezes, mas não parecia capaz de fazer os pés deslizaremdentrodeles.
— Deixa. Não dá tempo. — Carter alcançou a mão dela e a puxou para ocorredor,ondeSylvainestavaalerta,esperandoporeles.
—Poraqui—disseSylvain,conduzindo-osparalongedasescadas.—Praondeagenteestáindo?—sussurrouAllie.—Sairdaqui—respondeuCarter.Correram para o m do corredor, onde Jules estava esperando perto de uma
portanãonumeradaqueAlliesemprepresumiusetratardeumarmáriodevassouras.Sem uma palavra ela abriu para revelar uma escadaria estreita e curvilínea, maliluminadaporlâmpadasexpostas.
Correramaumavelocidadeperigosa,Sylvainliderando,AllieeCarternomeio,eJulesatrás.Ninguémfalounada.Quandochegaramláembaixo,Sylvainabriuumaporta que levava a uma sala que Allie nunca tinha visto — um espaço com umaspectodecriptaquepareciatersidotalhadoempedra,compilaresespessosdepedradecalcobertosporelaboradosentalhes,iluminadoporumaluzquepiscava.OchãodepedraestavaempoeiradoefriosobospésdeAllie.
Nãoacredito.Temumcalabouço.—Ondeagentetá?—sussurrouela.—Naadega—respondeuJules.Ela, Sylvain e Carter tinham formado uma espécie de círculo com Allie no
centro.Estavamtodosdecostasparaela,espiandoassombras.—Melhortirarmoseladaqui?—perguntouJules.—AIsabellefaloupratirarsefosseseguro—disseCarter.—Mascomoagente
vaisaber?—Fiquemaqui.—AvozdeSylvainveiodetrásdeAllie.Silenciosamente,eledesapareceunassombras.Osoutrostrês caramondeestavam,emsilêncio.Apóscercadecincominutos,
Sylvainreapareceuegesticulouparaqueoseguissem.Comamesmaformaçãoadotadanasescadas,correramparaumaportaescondida
nas sombras. Ele indicou que esperassem enquanto ele atravessava. Em seguida,voltououtravezeacenoucomacabeçaparaCarter.
Todososseguiramporumaescadaeumaportatãopequenaquetiveramqueseabaixarparapassar.Umavezláfora, caramen leiradoscomascostasnaparededaescola. O braço de Carter se esticou sobre Allie protetoramente, segurando-a nolugar.
A noite estava fria e úmida — nuvens cobriam a lua. De início Allie nãoconseguiuvernada,masseusolhosseajustaramgradualmente.
Lembrava a noite em que ela e Carter seguiram Isabelle para a reunião comNathaniel.Desconfortável,olhouparaabordadafloresta,escuranohorizonte.
Seráqueagoratemalguémlá,olhandopragentecomonósolhamospraeles?Carterpuxouamãodela:estavamindo.Correramemtornodaalaoesteparaos
fundosdaescola,passandopelogramadodopátio,eemdireçãoaojardimfechado.Pedras cortaram os pés descalços de Allie, mas ela ignorou a dor. Logo antes dechegaremaoportãodojardim,Sylvaindesvioudarotaedesapareceu.Umporumoseguiram.
AgrutaparaaqualoslevoueratãobemescondidaatrásdeárvoresemataespessaqueAllienuncatinhanotadoantes.
Nãoconseguiaidenti carosdetalhesnaescuridão,masdavaparasentirqueerafeita de pedra e madeira, e conseguiu identi car vagamente uma estátua de umamulhernuaegraciosadançandonocentro.
Comunicando-se apenas por gestosmanuais,Carter, Sylvain e Jules formaramumescudoprotetornafrentedeAllie,defrenteparaaescola.Allietentou cartãoparadaquantoaestátuaatrásdesi.
Duranteumlongotempo,nadaaconteceu.Alliejátinhacontado137respiraçõesquandoviuJulesgesticularparaumpequenopontodeluzaolonge.Alliecerrouosolhosetentoufocarnele.
Emsegundos,haviamaisum.Eoutro.Emseguida,haviameiadúziadelessemovendocomtantalevezaquepareciam
flutuar.Eestavamseaproximando.AllieestavaentreJuleseCarter,tentandoenxergarmelhor.—Oquesãoeles?—arfou.FoiSylvainquerespondeu.—Nathaniel.Allieficousemar.
—Oqueagentevaifazer?—Esperar—disseJules.Levou cincominutos para os pontos de luz se tornarem tochas iluminadas. E
estavampróximososu cienteparaqueAlliepudesseenxergarasformassombreadasqueassustentavamquandoouviuavozdeIsabellesoar.
—Nathaniel!Paracomisso.Nãoétardedemais.—Euseiquenãoé.—AquelavozfamiliardesdenhosagelouosanguedeAllie.
—Éporissoqueestamosaqui.—Deixaessaescolaempaz—disseIsabelle.—Nãoimportaoquevocêfaça,
nuncavaiteraCimmeria.— Você parece tão segura — comentou Nathaniel. — Mas, pensando bem,
semprefoiarrogante.—ALucindanão quer isso,Nathaniel.—A voz continha um aviso.—Vai
contraasvontadesdelaporsuaprópriacontaerisco.— Se isso é verdade, então cadê ela?— desdenhou.—Não estou vendo ela
correrprateproteger.Enquanto discutiam, alguma coisa no ar chamou a atenção de Allie. Uma
mudançanatemperatura?Ouera...umcheiro?Oqueéisso?SuamãovooueagarrouobraçodeCartercomurgência.—Fumaça.Eutôsentindocheirodefumaça.Cheirandooar,SylvainvirouparaCarterepelaprimeiravezelaviudesesperono
rostodele.—Lá!—Julesapontouparaaaladodormitóriomasculino.Afumaçavazava
pelajaneladosegundoandarechamasdançavamportrásdovidro.—Ai,meuDeus—sussurrouAllie.—Jules,ficacomaAllie—instruiuSylvain.—Carter,vemcomigo.Antesdesegui-lo,CarteragarrouAlliepelosombros.—Ficaaqui.—Estavaescuro,maselapôdeenxergaromedoemseusolhos.Semdizer nada,Allie assentiu, esticando-se para agarrar amãodele com tanta
forçaquedoeu.Eentãoelesumiu.Agorasozinhas,AllieeJulesficaramladoaladoolhandoparaaescola.AvozdeIsabellenãotinhaperdidonemumpoucodaconfiança.— É esse o seu plano, Nathaniel? Destruir o que não pode ter através de
mentiras?De trapaças?De exigências? Sempre soubeque você era desaforado,masissovaitedestruir,enãoaCimmeria.
Eleriu.
—Eunãodeveria carsurpresocomasuaarrogância,Isabelle.Mas,porfavor,nãomeofenda.Soumaisespertodoqueisso.
Uma luz no andar superior chamou a atenção deAllie.Tocando o ombro deJules,elaapontou.Piscouemumajanela.
—Odormitóriofeminino—sussurrouJules,olhando-afixamente.—Oqueagentefaz?—perguntouAllie.—OSylvaineoCartervãocuidardisso—murmurouaoutraemresposta.Masotempopassouenadaaconteceu.Aschamasnaaladasmeninaspareceram
adquirirforçaecrescerrapidamente.Afumaçaagoraestavadensa.—Jules,agentetemquefazeralgumacoisa—disseAlliecomurgência.— Eu prometi ao Sylvain... — argumentou Jules, mas Allie ouviu a
preocupaçãonavozdela.Alliesedecidiu.—Vamosficarjuntas.Vamos.NãoesperouJulessedecidir—correudagrutaemdireçãoàsárvores,masJulesa
alcançourapidamenteeagarrouamangadeseupijama,conduzindo-apelalateraldaescolaparaumaentradalongedeIsabelleeNathaniel.
Correram juntaspelaporta, passandoporum leve torporde fumaça.Estavamemumasalacomprateleirasemaisprateleirasdelivros.
Estamosnosfundosdabiblioteca.Estavamperto de onde havia encontradoCarter há algumas semanas— latim
antigo.Nuncasoubequetinhaumaportaali.—Poraqui—sussurrouJules.Eemseguidadesapareceu.Aturdida,Alliegirouemumcírculoprocurandoporela,masestavasozinha.—Jules?—sibilounaescuridão.—Cadêvocê?Nãoobteveresposta.— Jules?—Allie ouviu opâniconaprópria voz.Respirando trêmula, tentou
decidiroquefazer.Alguma coisa estava errada. Tinha certeza de que Jules não a deixaria... ou
deixaria?Seucoraçãobateuacelerado.Seráqueelametrouxeparaumaarmadilha?Tossiu.Afumaçaestavaengrossando.Derepentesoubeoquefazer.Correupelabiblioteca,passandopelosrecantosdosestudantesepelasmesasonde
já havia sentado tantas vezes com Rachel e Jo, em seguida atravessou a porta dabiblioteca.Tinhaumalarmedeincêndiodolado,eelaopuxou.
Nadaaconteceu.Olhou xamente para ele, espantada. Em seguida lhe veio uma lembrança—
algo que Gabe havia dito antes do mergulho de verão: “Todos os alarmes nessaconstruçãosãofalsos.Nãotemalarmes.”
Sem parar para pensar, correu pela escada principal em direção ao dormitóriofeminino.Aoalcançaroandareviraremdireçãoàpróximaescadaria,viuuma guranofimdocorredor.Ohomemestavacomumatochaacesanamão.
Alliecongelou.Eleaindanãoatinhavisto.Se cassecompletamenteparada,elejamaisanotaria,eentãopoderiasubirparaodormitóriofeminino.
Mas aí ele provocaria mais incêndios. A escola queimaria. Nathaniel venceria.Sentiu-sedividida.Oqueeramaisimportante?Alertarasmeninasoucontê-lo?
Eraumasituaçãoimpossível.Nãohavianinguémparalhedizeroquefazer.Issosempreacontececomigo.UmaondainesperadaderaivaasacudiueAlliedeu
váriospassosnadireçãodeNathaniel.—Ei!Você!—gritouaplenospulmões,eoviupararevirar.Por um curto instante tão longo quanto a eternidade, nenhum dos dois se
moveu,eosdois seencararam.Achamaestavapróximaosu cientedorostodeleparaqueelapudesseidentificarsuasfeições.
—Christopher?—sussurrou.Elaviunosolhosdelequeatinhareconhecidoemaisalgumacoisa.Eentãoele
correu.—Christopher!—Elaberravaagora.—Christopher!Nãomedeixa!Através das lágrimas que corriam pelo seu rosto, ela viu que o rapaz tinha
desaparecido.Omundogirou,eAllieseapoiounaparedeparatersuporte,enquantorespirava
fundo.Masa fumaçaestavaespessademaisagora,eela tossiucomtanta forçaqueachouquefossedesmaiar.
Tudobem,pensou,engasgando,tentandorespirar.Calma,Allie.PodiaescutaraspalavrasdeCarteremsuamente,dizendoparaseconcentrarna
respiração.Respirou várias vezes, curta e rmemente, ltrandoo arpelo tecidodamanga. Quando o mundo parou de rodar, olhou em volta. A fumaça estava seintensificando.
Nãotinhamuitotempo.Puxandoacamisadopijamaporcimadaboca,elasecurvouparabaixoecorreu
orestodaescadaria(17degraus)paraodormitóriofeminino.Abriuaprimeiraportaqueviu.Afumaçaaindanãotinhachegadoali,edavapararespirar.Ameninaqueestavadeitadasesentou.
EraKatie.—Fogo!—gritouAllie, respirando arpuro.—Katie, levanta eme ajuda.A
gentetemquetirartodomundodaqui.—Quê?—AvozdeKatieestavagrogueeconfusa,maselalogofocouemAllie.
—Masque...?—Aescolaestápegandofogo,Katie.Porfavor!Sentindoocheirodafumaça,Katiesaltoudacama.EnquantoAlliecorriaparaforadaporta,gritouporcimadoombro:—Todasasportas!Bateemtodasasportas!Avisaprameseguirem.Katiecuidoudeumladodocorredor,Alliedooutro.Correram,abrindoportas
e,senecessário,sacudindomeninasdacamaparaacordá-las.Allie avançou para o quarto de Rachel, mas a menina já estava acordada,
perturbadapelasvozes.—Meajuda—disseAllie,semfôlego.QuandoAlliechegouàportadeJo,amaioriadasmeninasjáestavaacordada.O
quartodeJoestavacheiodefumaça,eAllieviusuacabeçalouraaindanotravesseiro.Abaixounochãoeengatinhoupeloquarto.
—Jo—bufou,comavozcompletamenterouca.—Acorda.Mas Jonão semoveu.MesmoquandoAllie a sacudiu violentamente, ela não
reagiu.Esticandoamão,AlliedeuumtapanacaradeJo,comforça.Seusolhossemexeram.—Ai—sussurroufracamenteeAlliesentiuumimpulsohistéricoderir.—Levanta,Jo.Vocêtemquelevantar.Comobraço embaixodoombrode Jo,Allie apuxoupara cima,mas ela era
pesada demais para conseguir levantá-la sozinha. Quando Rachel entrou, algunssegundos depois, entendeu rapidamente a situação e colocou o braço no outroombrodeJo.Juntas,levantaram-na.
—Lisa—sussurrouJo.AlliedirigiuumolhardepânicoparaRachel.—EuviaLisa—disseRachel.—Elatánocorredor.EnquantopraticamentecarregavamJoparaforadoquarto,Allieolhouemvolta,
preocupada.—Tátodomundoaqui?—Eucontei.—AvozeradeKatie.—AúnicapessoafaltandoéaJules.Alliesesentiucomosetivesselevadoumsoco.—Elaestavacomigoláembaixo—dissesemfôlego.—Perdiela.
—Vamos sairdaquiprimeiro—disseRachel suavemente.—Depois a gentepodeprocurarporela.
Allieconseguiaenxergararazãonaspalavrasdela.—Poraqui.Os pés de Jo estavam semovendo agora, eRachel conseguia apoiá-la sozinha,
então Allie as conduziu pela rota de Sylvain. Aquela escada ainda estava livre defumaça.
Aochegaremàadega,AllievirouparaKatie.—Contaoutravez.Semhesitar,Katiecalculourapidamente.—Estamostodasaqui.Allie gesticulou para que todas a seguissem e as conduziu pelas escadas até a
porta,rezandoparaqueestivesseaberta.Estava.Saírampela escuridão, tossindo e inalandoprofundamenteo ar fresco.Allie se
afastouosuficienteparaqueninguémpudessevê-la.Entãovomitounagrama.Quandovoltouparaogrupo,Joestavaempésemprecisardeapoio,apesarde
aindaparecerbastantetonta.Allieseajeitouetentouaparentarestarcontrolada.—Jo,vocêpodelevartodomundoparaojardiminterno?—perguntourouca.
—Achoquelávãoficarseguras.Joassentiu,ecaminhoudebilitadapelatrilha.Todasasoutrasforamatrás,exceto
RacheleKatie.—Aondevocêestáindo?—perguntouRachel,desconfiada.—TenhoqueacharaJules—respondeuAllie.—Elapodeestarmachucada.—Entãoeuvoucomvocê—disseRachel.—Rach,não.—Alliepôdeouvirapreocupaçãonaprópriavoz.—Vocêpode
semachucar.— Você também — observou Katie. — E eu vou junto. A Jules é minha
melhoramiga.Nãovamosdeixarvocêfazerissosozinha.—Ai,meuDeus—resmungouAllie.—Meninas,asituaçãoégrave.—Vainafrente,Allie.—AvozdeRachelera rme.—OndevocêviuaJules
pelaúltimavez?Allieasencarouincerta,masotempoestavapassando.Sabiaquenãoiaconseguir
convencê-lasdocontrário.—Nabiblioteca.Temumaportasecreta.—Euseiondeé—falouRachel.
—Sabe?—Claroquesei—disse.—Seitudosobreabiblioteca.Mantendo-seàssombras,correramparaaportaeabriram-na.Afumaçasaiuem
umaondacinzaeespessa.Alliesentiuocoraçãoafundar.Issoeraimpossível.—Fiquemabaixadas—sibilouRachel,eelascaíramsobreasmãoseosjoelhos,
cobrindoasfacescomasroupas.—Ondevocêestavaquandoviuelapelaúltimavez?—perguntouKatieaAllie.Allienãoqueriaresponderquecomaquelafumaçaespessatudopareciaestranho.
Que não tinha certeza. Prendendo a respiração, levantou e olhou em volta, emseguidaabaixououtravez.
Latimantigoevaiemfrente.—Achoqueunsquatrometrosemeioemfrente.Engatinharamparaafrente.Masquandochegaramlá,Julesnãoestavaemlugar
nenhum.Racheltossiu.—Nãoestouvendoela.— Vamos nos dividir. — A voz de Katie saiu abafada pela camisa. — Não
andemmaisdoquetrêsmetrosemdireçõesdiferentes,edepoisagenteseencontradevoltaaqui.
—Cuidado...—acrescentouAllie.Mantendo-se o mais agachada o possível, Allie foi para longe delas,
contabilizandomentalmenteoavanço.Masacabouindomaisdoquetrêsmetrosnom das contas — quando não encontrou Jules, avançou seis. Em seguida sete e
meio.MasJulesnãoestavalá.A fumaça estavamais espessa, e estava difícil enxergarmuita coisa. Seus olhos
arderameaslágrimasborraramaindamaisavisão.Demais.Fuilongedemais.Allie viroupara voltarpara as outras,mas cou instantaneamentedesorientada
—de onde tinha vindo?No escuro e com aquela fumaça, parecia tudo amesmacoisa.Tinhapassadoporaquelaprateleiraaltaantes?Acom livroscomtítulos emcirílico?Jáatinhavistoalgumaveznavida?
Tossiu violentamente. Quando tentou recuperar o fôlego, mesmo através dacamisaafumaçaeratãofortequeeracomoseestivesseembaixod’água.Nãotinhaar.Nãotinhaoxigênio.Suarespiraçãoveioemengasgoscurtoseinúteis.
Quando tentou irmais depressa, os contornos da sua visão começaram a car
pretos.Nãoiaconseguir.Aolonge,ouviuumavozgritar:—Achei!Elaestáaqui.Outravozchamouseunome.Elatentouengatinharemdireçãoaosom,masnão
conseguiusemover.—Aqui—resmungou,mas sabiaqueo somtinha sido fracodemaispara ser
ouvido.Nunca tinha se sentido tão exausta.Se eu pudesse descansar só um pouquinho,
poderiareunirforças.Sóumcochiloevouconseguirajudarmais.Tôtãocansada.Suacabeçaestavamuitopesada.Deixou-secairnochão.Enquanto a inconsciência a envolvia como um cobertor quente, suspirou
aliviada.Derepenteestavavoando,apoiadaporalgoforteecarinhoso.Sucumbiu.Segura.
Protegida.Flutuando.Arcalorosopreencheuseuspulmões,eemseguidasefoi.Encheuospulmõesese
foi.Diversasvezes.Eentãoumalindavoz.—Porfavor,nãonosdeixe.Nãovai.Lábioscalorososnosdela.Arquentenoseucorpo.Foi acometidapor umador e tossiu tão violentamente que seu corpo sacudiu
convulsivamente.Contudo,quandoaconvulsãoparou,foiacariciadaporarfrescoerespirouagradecida.
Abriu os olhos.Estavano colode Sylvain, que a abraçava forte.Ela esticouobraçoetocouseurostoadmirada.
—Porquevocêestáchorando?—sussurrouela.Elenão respondeu.Emvezdisso, a embaloucomoumbebê, como rostono
cabelodela.Escutando-arespirar.
–D
TRINTA
estavezaIsabellechamouabrigadadeincêndio,então?—perguntouAlliecomumsussurrorouco.
—Tipo,pelaprimeiraveznahistória.—Rachelsorriuparaela.—DepoisquevocêeaJulesquasemataramtodomundodesusto.
Era demanhã e estavam sentadas em um quarto na ala dos professores. Allieestavaapoiadaemtravesseiros,agarrandoaxícaradechácomlimãoemelqueRachelhavia trazido para aliviar sua garganta. Rachel estava empoleirada no pé da cama,relatandotudoquetinhaacontecido“depoisquevocêmorreu”.
— Puseram uma máscara de oxigênio em você, apesar de terem tido que tearrancardoSylvainpraisso.—Rachelergueuumasobrancelha.—Elenãoqueriatesoltar.
—EntãofoioSylvainquemeencontrou?—Foi.—Como...?Ele e o Carter evacuaram o dormitório masculino. Então viram o outro
incêndio. O Carter foi buscar os professores. O Sylvain ia evacuar o dormitóriofeminino, mas quando percebeu que estava vazio, foi nos encontrar lá fora —explicouRachel.—EueaKatietínhamosacabadodelevaraJules,evimosquevocênãoestavalá...
Parou a frase nomeio, e Allie percebeu que ela estava chorando. Esticando obraço,apertouamãodaamiga.
—Estoubem—sussurrou.Rachelassentiuelimpouaslágrimasdosolhos.Apósumsegundo,continuou,masagorasuavoztremia.—Quandoagentedissequevocêtinhasumido,ninguémconseguiusegurá-lo.
Elecorreuprabibliotecacomosefosseincapazdesequeimar.Elarespiroufundo.—Nãoteviquandoeletetrouxeprafora,euestavatentandoressuscitaraJules.
Mas a Jo me contou que ele passou um bom tempo te reanimando até vocêrecuperarossentidos.Depoisdissonãoquistesoltar.Achoqueeleestavacommedo
dequevocêfossepararderespirar.—Achoquesim—ecoouAllie.—De qualquer forma, assim que a Isabelle chamou a brigada de incêndio, o
Nathanieleoscomparsasevaporaram,eeuqueriaqueissofosseliteralmenteverdade.—Rachelseinclinouparatrás,apoiando-secontraaparede.—Você,aJulesetrêsfuncionáriosprecisavamdeoxigênio,aJuleseumcara,Peter?Conhece?
Alliebalançouacabeça.—Eleéumdosalunosmaisnovos.Bem,osdoisestãonohospitalporcausada
fumaça.Queriam te levar também,masninguémdeixou.A Isabelle, oCarter e oSylvainnão admitiram.Então te colocaram aqui e oCarter passou a noite inteirasentadopara se certi cardeque você estava respirando.E você estava—concluiualegremente.
—Parabénspramim—resmungouAlliefracamente.—Verdade.Parabénspravocê.—Equalfoioprejuízo?—perguntouAllie.—Não tenho certeza. Sei que três ou quatro salas sofreram perda total.Não
estão deixando ninguém entrar nos dormitórios, e a casa inteira está fedendo afumaça.—Ela franziuonariz.—O incêndionabiblioteca começounamesadabibliotecáriaeseespalhoupelasestantesaoredor.Nãosabemquantoslivrosforamperdidos.
Elapareciaverdadeiramentetriste,eAllietevequeesconderumsorriso.— Acham que os quartos onde os incêndios começaram estavam todos
desocupados,ecomeçaramumincêndioemumsótãoenotérreopertodasescadas—Allielembrou-sedeChristophercomumatochaemchamas—,masaindaestãoinvestigando. A Isabelle tá de um lado pro outro feito uma louca. Tem unsempreiteirosvindohojeàtardeparaavaliarosdanos,etodomundovaipracasa.Agentevaiescrevertrabalhosparasubstituirasúltimasprovas.Achoqueagentepodiainsistiremfazerosnossossobresegurançacontraincêndios.
ArisadadeAlliesooucomoumalixapassandoemumamadeira.—EupossomudarmeutrabalhodehistóriaefalarsobreoGrandeIncêndiode
Londres.—É,né?Pesquisavocêjáfez.Alguémbateuàporta.Allietentoudizer“entra”,massooucomoumsussurro.—Entrez-vous—disseRachel.Joabriueentrounervosa,fechandoaportaatrásdesi.—Oi,Allie.Vocêtábem?Alliesorriufracamente.
— Vou sobreviver, mais uma vez, eu acho — declarou. — A Rachel estavaacabandodemecontartudoqueaconteceuontemànoite.
—Foiumaloucura—disseJo.—Muitoassustador.— Mas todas nós estamos aqui — disse Rachel. — Eu z ressuscitação
cardiopulmonar em uma pessoa de verdade pela primeira vez. Então não foi tãoruim.
—Valeusuperapena—concordouAllie.—Foioquepensei.Parecendodesconfortável,JosevoltouparaRachel.—Detestopedir isso,masvocêse importariaemmedaralgunsminutosasós
com...Rachelsaltoudacama.—Claro.Allie,voubuscarcomidapravocê.Oquevocêquer?AgargantadeAllieestavadoendo.—Algumacoisafria—respondeu.—Nadaapimentado.UmsorrisocarinhosoiluminouorostodeRachel.—Certo.Nadadecomidaapimentada.Deixacomigo,meuamor.Quandoaportasefechouatrásdela,Josesentoucomcuidadonabeiradacama.—Sóqueriatepedirdesculpas.Allie começou a respondeu que não precisava,mas Jo balançou a cabeça. Seu
rostoestavavermelho,eAllienotouqueelatinhachorado.—Vocêsalvouminhavidaontemànoiteearriscouasuaporisso.Acreditoque
você fez amesma coisa no telhado há algumas semanas. AKatieme contou quementiupramimporqueestavacomraivadevocê.
Allieseespantou.—Elafezoquê?Joassentiu.—Vocêtambémsalvouavidadela,vocêsabe.Elapodeserumavaca,masnãoé
umavacaingrata.UmarisadaroucaexplodiudeAllieantesquepudesseseconter,e logoasduas
estavamrindo,apesardeissoterprovocadoumacrisedetosseemAllie.—Eudigopraelaquevocêmefalou—conseguiucrepitar.Quandoseacalmaram,Joaolhouseriamente.—Eu sei que tenho umproblema,Allie. Eu tenho esses... o que o terapeuta
chamade“momentos”emquenãosouracional.Eeunãodeveriabebernunca.Sintomuitoterenvolvidovocê.Euqueriatantoquenuncativesseacontecido.Sepudessevoltar atrás, voltava em um segundo. Mas quero que você saiba que eu tô me
esforçando.—Tudobem—disseAllie,apesardenãoestar.Comosetivesseouvidoseuspensamentos,Jodisse:—Naverdade,nãotátudobem.Euseidisso.—Quebom—disseAlliedelicadamente.MasJonãotinhaacabado.—Naverdade,éoseguinte—explicou—:cadavezqueaconteceéprovocado
por alguma coisa. Costumava ser por causa dos meus pais. Eles faziam algumababaquice,ouseesqueciamdemim,epronto.Masdessavezfoi...oqueaconteceucomaRuth.
ElaolhouparaAllie.—É que... saber uma coisa horrível e não contar pra ninguém... acho que te
enlouquece.Allie sentiua ardênciadeuma lágrima, comodedosgelados em suapele.Não
conseguiadesgrudarosolhosdeJo.—Achoquesim.Oquevocêsabiaquemaisninguémsabia?OsolhosredondoseazuisdeJosustentaramosdela.—EuseiquemmatouaRuth.Enãoaguentei.Saber.Nãopodia...seraúnica.Respira,solta...Allieaencaroufirmemente,enquantoseucoraçãobatianosouvidos.—QuemmatouaRuth,Jo?—sussurrou.—FoioGabe.—AvozdeJoestavaentorpecidade tantopesar.—OGabe
matouaRuth.
Quando Rachel voltou alguns minutos depois com iogurte, sorvete e morangos(“Viu?Nadaapimentado...”),AllieestavaabraçandoJo,enquantoaamigachorava.
PorcimadacabeçadeJo,AlliesussurrouparaRachel:—ChamaaIsabelle.Semdizernada,Rachelcolocouacomidanamesaecorreu.—Vai car tudobem—sussurrouAllie, repetidasvezes, comosenão tivesse
certeza.Sentiu-senauseadaerespiroufundoecalmamenteparatentarestabilizarosprópriosnervosenquantodúvidassurgiamemsuamenterápidodemaisparaqueasrespostasacompanhassem.
FoioGabe?OGabematouaRuth?Porquê?ElaselembroudeterseescondidodeGabenatrilhananoiteemquesaiucom
Carter.Algumacoisanavozdele—umelementoameaçador—ativouuminstintodeautoproteçãoquealevouaseesconder.Naquelemomentotevetantomedodele
quantodeNathaniel.Masassassinato?Aquilopareciainconcebível.Porqueelefariaumacoisadessas?
Ruth era amiga dele. O que a garota poderia ter feito para que o rapaz quisessemachucá-la,quantomaismatá-la?
—Jo,aIsabellevaichegaremalgunsminutosevocêtemquecontaraverdadepraela—disseAllie,rouca.—Vocêfazisso?
Comorostoinchadoevermelho,Joassentiu.— Foi por isso que te contei. Acho que todo mundo precisa saber. Ele é
perigoso.QuandoRachel e Isabelle entraram correndo algunsminutos depois, Jo ainda
estavachorando.Adiretoraestavausandoamesmaleggingpretaeatúnicadanoitedaconferência,echeiravaligeiramenteafumaça.
—Allie?—perguntou,vendoaslágrimasdeJoeorostopálidodeAllie.—Tátudobem?
—AJotemumacoisapratecontar—sussurrouAllie.JocontouparaIsabelleoquetinhacontadoaAllie.Enquantoelafalava,Isabelle
afundoulentamentesobreosjoelhosaoladodacama,semtirarosolhosdorostodeJo.
—Masporque,Jo?—perguntoufinalmente.—Eletecontouporquê?—Ele disse que a Ruth falou. E que ela sabia demais sobre o que realmente
estavaacontecendo.Elaqueriacontarpraspessoas.Achoqueelaqueriatecontar—disse Jo. — Mas aí ele não quis me contar o que isso signi cava, tipo o querealmenteestavaacontecendo.
Allie pôde ver o choque no rosto de Isabelle, mas a diretora manteve a vozsobrenaturalmentecalma.
—Rachel—disseela—,podebuscaroMattheweoAugust,porfavor?—Elaalcançou a mão de Jo, molhada de lágrimas, e agarrada a um lenço úmido eamassado.—Eletecontoucomofoi?
—Umpouco.O su ciente prame assustar— revelou Jo.—Foi durante obaile.Todomundoestavafelizedançando.Elesómedeixousozinhadurantealgunsminutos, mas quando voltou, vi sangue na mão dele. Achei que ele tivesse semachucado.Eledissequetinhatidoumacidente,umcorte,nadasério.Masnãomecontou...sobreaRuth.Elemefalouháalgumassemanas.NãoqueriamaisqueeuandassecomaAllie.FalouqueoquetinhaacontecidocomaRuthpoderiaacontecercomelatambém.Oucomqualquerumadasamigasdela.
Lembrando-se do corpo de Ruth — o rosto tão pálido que estava quaseirreconhecível; o vestido rosa ebonito escurode sangue—Allie engoliu em seco.
Gabetinhafeitoameaças.—Aquelepoderiatersidoorostodela.Ovestidobonitodela.
Contouasbatidasdocoração...doze,treze,catorze...—Oquemaiseletedisse?—perguntouIsabelle.—ElenãoqueriaqueeufalassenadapraAlliesobreaEscolaNoturna,nemnada
sobreoqueeleestavafazendo.—AvozdeJosoavacansada.—EledissequeaAllieeraculpadadetodasascoisasruinsqueandavamacontecendo,equevocêeoZelaznyeram fracos. Ele disse que o Nathaniel tinha razão e que vocês deveriamsimplesmenteentregaragarotapraele...
IsabelleeAllietrocaramumolharespantado.—ComooGabesabiasobreoNathaniel?—perguntouIsabellegentilmente.—Nãosei—disseJo.—Maselessimplesmente...seconhecem.Tipo,oGabe
encontracomeleàsvezes.Praconversar.Alliearfou.ViuacordesaparecerdorostodeIsabelle.—Eles são...amigos?—AvozdeIsabelle tremeu, sóumpouquinho. Jonão
teriapercebido,masAllienotou.— Mais ou menos. — Jo pensou a respeito. — Acho que o Gabe tem
admiraçãoporele.Naquele instante,MattheweZelaznyentraram.Isabelle se levantoue saiupara
conversarcomeles.VoltousozinhaparaoquartoesesentounacamaaoladodeJoeAllie.
—Porquenãonoscontouantes,querida?—perguntoucalmamente.LágrimascorrerampelorostodeJo.— Eu não sabia o que fazer — soluçou. — Eu amo... amava o Gabe. Não
podia...nãosabiaoquefazer.Desculpa.Desculpadeverdade.—Tudobem—sussurrouIsabelle.MasAlliepercebeuqueelaestavamentindo.
***
DepoisqueIsabelle levouJoparaoseupróprioquarto,Rachelvoltoua tempodefazerAllie tomarumpoucode sorvetemeioderretidoe iogurtequente.FicouatéAlliedormir.
Quando ela acordou,Carter estava sentado aopéda camaolhandoparaAllie,seusolhosescurosilegíveis.
—Oi—disseelacomavozrouca.—Comovocêestá?—Avozdeleestavasuave.—Nuncaestivemelhor.—Masacordardesencadeouumacessodetosse,eele
lheentregouumcopod’águacomumcanudo.Depois que tomou um gole, se sentiumelhor e se arrastou na cama até estar
sentada.—SoubedoGabe?—sussurrouela.Elefezquesimcomacabeça,estavacomosmúsculostensos.—Eudeviaterpercebido,Allie.Comoéquenãopercebiqueeraele?—Ninguémpodiaperceber—disseela.—Nãoseculpa,outodosnósteremos
quenosculpar.Jáacharamele?— Não.Tá todo mundo procurando. Ninguém sabe onde ele tá. Deve ter
escapado.Eladigeriuainformaçãoporuminstante.Emseguidafalou:—ARachelme contouque você salvouummonte de gente ontem. Isso foi
incrível.—Evocêtambémsalvou.—Masnãofalouquefoiincrível,eelaviuatensão
norostodele.—Oquefoi?—perguntouela.Elebalançouacabeçaenãofalounadaporuminstante,equandoofez,suavoz
tremeu.—Porquevocênão counoesconderijo,Allie?Teria cadobemsetivesseme
ouvido.—Desculpa,Carter,mastivemedopelasmeninas—respondeu.—Tinhaque
ajudar.Nãopodiasimplesmentedeixarqueelasmorressem.—Agenteteriaevacuadoelas—rebateu.—Agentenãosabiadisso—falou.—Ofogoseespalhourapidamente.—Dequemfoiaideiadeentrar?SuaoudaJules?Alliepensouemmentir.—Minha—respondeu.—AJulesqueriaesperarmais.—Evocêsduasquasemorreram—eledisseirritado.—Masagentesalvouaspessoas,Carter.—Suavozroucaestavaindignada.—
Agenteajudou.—Eusacrificariatodaselasporvocê.Allieoencarou,horrorizada.—Nãofalaisso—sussurrouemresposta.—Quecoisahorrível.— Eu sei que é horrível. — Os dedos de Carter limparam uma lágrima da
bochechadela.Eeleevitouosolhosdela.—Eéverdade.Elanãofaziaideiadoquedizer,eoestudoupreocupada.—Euestoubem,vocêsabe.
—Eusei.—Entãonãovamospirar,tábom?Vamosnossentirgratosporestarmosbem.
—Elaalcançouamãodeleeaseguroucontrasuabochecha.—Estoumuitofelizquevocêtambémestejabem.
Semdizernada,eleaabraçou.—CartereAlliesalvamomundo—sussurrouela.
Naquelatarde,RacheltrouxeparaAllieumasaiaquecheiravacomoumafogueira.—Medeixaramentrarnodormitóriodurantetrêssegundosinteiros,saqueeiseu
armáriopracatarisso—disseela.—Desculpapelofedor.—Nãosepreocupa—tranquilizouAllie.—Estoufelizpor nalmentepoder
tiraressepijamatorrado.—Disseramque a gente pode subir pra buscar nossas coisas amanhã—disse
Rachel.—Comsupervisão,éclaro.—Claro.—Alliedeuumsorrisotorto.—Saúdeesegurança.—Todomundo vai pra casa entre hoje e amanhã,meu pai vem amanhã de
manhã—disseRachel.—Aofertaaindaestádepé,sequiserficarcomagente.—Obrigada,Rachel—disseAllie.—Podeserqueeuaceite.Depois de um banho no banheiro dos professores para esfregar a fuligem do
cabelo,Alliecomeçouasesentirhumanaoutravez.MasRacheltinhaseesquecidodetrazersapatos,entãomaistarde,quandodesceupelasescadas,aindaestavadescalça.MasfoidecididaatéoescritóriodeIsabelleebateuàporta.
Aporta se abriu antes que as juntasdesgrudassemdamadeira. Semdizerumapalavra, Isabelle a abraçou forte. Em seguida segurou-a à distância do braço eexaminouseurosto.
—Vocêestábem?—Achoquesim—sussurrouAllie.Adiretorasegurouaportaabertaparaela.—Entra,senta.—ComoestáaJo?—perguntouAllie.—Nãoestábem—respondeu Isabelle, sentandoao ladodeAllie enquantoa
chaleira chiava ao fundo. — Ela está muito chateada, o que é perfeitamentecompreensível.
Alliehesitou—incertaquantoaconseguirfazerapróximapergunta.—EoGabe?—sussurrouafinal.Isabellebalançouacabeça.— Sumiu. Quando o Zelazny e o Matthew foram procurar, já tinha
desaparecido.Achamosqueelepodeterfugidoontem,duranteoincêndio.DealgumjeitoAllienãosesurpreendeu.Respiroufundoparaseestabilizar.—Então...oqueaconteceagora?—Vamosprocurá-lo.—Isabelleseocupoupreparandoochá.—Vamosavisar
ospaisdele.Vamostentarnoscerti cardequeeleestejaseguro.CuidaremosdaJo.EdepoisencontraremosumaformadelidarcomoNathaniel.
—Euqueroajudar—disseAllie.—Vocêvaiajudar—respondeuIsabelle.—Euteprometo.— Não, Isabelle. — A voz de Allie estava rme. — Quero dizer que quero
ajudar.Queroestarenvolvidaemtudoapartirdeagora.Adiretora a olhou semexpressão eAllie tentounãodeixar a voz se encherde
frustração e tensão. Se havia ummomento em que precisava agir como adulta, omomentoeraesse.
—Eutônomeiodissotudo.DecertaformaGabetinharazãoeoproblemasoueu.ONathanielpegouoChristophereagoramequertambém.Éverdade,nãoé?Passeitodoesseperíodosendoresgatada,salvaeajudada,todomundosópensaemmeproteger,oqueéótimo,esoumuitograta.Masqueromeproteger.Agora,nãotenhoamenorcondiçãodemesalvar.Nãoseicomo.—Acalmouosnervos.—Masexisteumlugarondepossoadquirirashabilidadespraisso.
Isabellefaloulentamente.—VocêquerentrarparaaEscolaNoturna.—Nãofazsentido?—Allieabraçouoprópriocorpo.—Precisosermaisfortee
ágil.Precisoaprenderalutar.Eprecisosaberoqueestáacontecendoprapoderfazeras coisas certas.Nunca vou só fazer o que vocêmanda se disser “Allie, não vai láfora”.Massemeincluir...Aíédiferente.
Um silêncio pesado se abateu sobre elas. Dava para ver que Isabelle estavapensando.Apósumsegundoadiretoralheentregouumaxícaradeumchádeervascomumaromaestranhocomlimão.
—Prasuagarganta.Bebe.—Sentou-seaoladodela.—Tudobem,então.Euconcordo.Voufalarcomosoutros.
UmaondadeemoçãopassouporAllie.Comose tivesseenxergado, Isabelle seapressouemsuprimi-la.
— Não é uma decisão exclusivamente minha, Allie. Outros vão ter queconcordar.Masvouteapoiar.
ApesardeterouvidoacauteladeIsabelle,Allienãoacreditou.SabiaqueIsabellepodiafazertudoquequisesse.
Estavadentro.
Mudandodeassunto,Isabellefalou:—Vocêestácomavozpéssima,aliás.Omédicoolhousuagarganta?UmmédicohaviavisitadoAllieháumahoraparaexaminá-la.Declarouquesua
garganta“nãoestavatãoruimquantopoderiaestar”,elhedeuumfrascoderemédiosealgoparagargarejar.
Isabelleacenoucomacabeça,concordando.—Dissequevousobreviver.Masnuncavoucantarcomaópera.—AchoqueoPuccinicontinuasemvocê—disseIsabelle.—Poderiatersido
muitopior.—Foioquepensei.ComoestáaJules?Isabellebalançouacabeçapositivamente.— Está muito bem. Sofreu uma concussão, ela tropeçou e bateu a cabeça.
Perdeuaconsciência.Masfoipoupadadafumaçaedocalor,quesãoaspiorescoisas,entãoospulmõesnãosofreramdanospermanentes.Vaivoltarhojeànoite.
Culpada,AllieselembroudecomotinhaduvidadodeJulesatéoúltimominutonabiblioteca.
—Quebomqueelaestábem—disse.—Foimuitocorajosa.—Eladisseomesmosobrevocê.Alliefezaperguntaseguintecomumpoucodereceio.—VocêviuoSylvain?—Suagargantaapertou.—Eu...queriaagradecer.—Eleestáteevitando—disseIsabelledemaneiradescuidada.AcabeçadeAllielevantou.—Porquê?Osolhosdadiretoraeramgentis.—Vocêsabe,nãosabe?Ocalordo chá estava irradiando atravésdaporcelanada xícara, queimandoos
dedosdeAllie.—Seioquê?—Queelegostadevocê.NaqueleinstanteAlliepercebeuquesabia.Lembrava-sedaslágrimascaindoem
seurosto.Emoçõesquenãoreconheciacircularamporela.—MaseuestoucomoCarter—dissefracamente.—Eusei.—Isabellelevantouasmãos.—Entãoéisso.Allieolhouparaafatiadelimãoflutuandosemrumonaxícara.—Éisso.Adiretoraseencolheunacadeira,suasolheirasdenunciavamaexaustão.—NãoachoquevocêvaiveroSylvainoutraveznesteperíodo.Eleprecisade
tempoprapensar.Esecurar.—Vocêpodedizerpraele...—Alliepensounoquefalar.—Só...agradecerpor
mim?—Agradeço.Allierepousouaxícara.—Eeudecidiquevoupracasa,enãopracasadaRachel.Precisoconversarcom
osmeuspais.Isabellepareceupreocupada.— Acho que é a coisa certa a se fazer, e co feliz que vá fazê-la — disse
cautelosamente.—MasagoraquesabemosqueoChristopherestácomoNathaniel,equeoNathanielestáinteressadoemvocê...Bem,ascoisasmudaram.Asituaçãoémaisperigosa.Vouexplicarissoparaasuamãe.Mas,Allie,emcasavocêtácorrendomaisperigo.Fareioquepuderprateproteger,masnãocorrariscos.
AlliepensouemRuth.—Voutercuidado—prometeu.—Vouficarquieta.—Operíododeoutonocomeçadaquiatrêssemanas—disseIsabelle.—Mas
nãopossotedeixar cartantotempoemcasa.Tedoualgunsdias,masdepoisachoquevocêdeveirpracasadaRachel.Opaidelaésupercapazdeteproteger,evaiestarteesperando.Mandoumcarrotebuscar.
Haviaalgomuitoruimemouvirquesuacasa—umdiaolugarmaisseguroquejá conhecera—não eramais segura.MasAllie não discutiu. Já tinha visto o queNathanielestavadispostoafazer.
—Tudobem—disseoutravez.Isabellepegouumpedaçodepapeldamesaeescreveualgumacoisa.— Se car preocupada ou assustada, se alguma coisa parecer ameaçadora ou
simplesmenteerrada...—dobrouopedaçodepapeleemseguidaoentregouaAllie—,meliga,eeumandotebuscarem.Nãocorrariscos.Fazissopormim?
Opapel tinha onomede Isabelle em alto relevono topo, eAllie viu que elatinhaanotadoumnúmerodetelefone.
Allieassentiu.—Prometo.Asduasse levantarameIsabelleaabraçounovamente.Allie foiatéaporta.Ao
giraramaçaneta,Isabelleaconteve.—Maisumacoisa—disseela.—PedeprasuamãetecontarsobreaLucinda.
—OsolhosdeAlliesearregalaram,maselanãodissenada.Isabelleconcluiu:—Dizpraelaqueeudissequeestánahora.
–V
TRINTAEUM
amoslá,mala.Fecha!Allie tinhaen adoasúltimascoisasnamala,queagoraestavaprotuberante
nas laterais e se recusava a fechar. Mesmo quando utilizou toda a sua força nãoconseguiufecharozíper.
Todas as meninas tinham sido autorizadas a passar quinze minutos nosrespectivosquartospara fazerasmalas.No mdascontas,quase todososquartosestavam inteiros. Mas os professores temiam que o fogo e a água tivessemenfraquecidoostetoseospisos.
—Ah,droga.Arfando por conta do esforço, ela abriu amala e procurou alguma coisa para
deixarparatrás.SuasbotasDocMartenvermelho-escurasarranhadasealtasestavamlogoemcima.Elaasretirouetentounovamente.
Fechoucomfacilidade.Pegouasbotascomafeição.Dejeitonenhumvoulargarminhasbotasaqui.Segurando-asnasuafrente,examinouosarranhõesnosdedos,aformacomoo
courohaviasemoldadoparaencaixarnosseuscalcanhares.Eraapaixonadaporelasdesdeodiaemqueasviu,navitrinedalojadecaridadenaruadocolégio.Quandodescobriuqueeramdoseutamanho,soubequeeramdestinadasasersuas.Durantedoismeses, foi todososdiasna lojaparasecerti cardequeaindaestavamlá.Porm, convenceu os vendedores a deixarem separadas até o seu aniversário. As solas
grossas, o couro robusto, o puro poder agressivo das botas zeram com que sesentisseforteoutravez.Eramcomosuaarmadura.
Seiquemudeienquantoestiveaqui,pensou.Masnãomudeitantoapontodenãoprecisardessasbotasmaravilhosas.
Tirandoossapatossensatosdocolégio,calçouasDocs,amarrando-ascomumafamiliaridadefeliz.Combinadascomouniforme,ficaram...perfeitas.
Entãoolhouaoredorumaúltimavez,passandoamãonamesadaescrivaninha.Tinha detestado tanto este lugar quando chegou. Agora mal podia esperar paravoltar.
Elalevantouabolsaparaoombroecorreupelaporta,dandoumencontrãocomtodaaforçaemCarter,queestavadooutrolado.
—Oi,Speed—eleriu,ajeitando-acomumamãoemcadaombro.—Cadêoincêndio?
—Haha,vocêéhilário—disseela,revirandoosolhos.Orapazalisouocabelodela.—Seuspaisjáchegaram?—Vãochegaraqualquerhora.—Fezumacareta.—Sóestoumeapressando
porqueomeupaiodeiaesperar.OsolhosdeCarter se anuviarambrevemente, e ela se lembroudequeospais
delejamaisviriambuscá-looutravez.—Onde você vaimorar durante as férias?— perguntou com uma expressão
preocupada.—Nãovãotedeixarficarnodormitóriomasculino.—Voumemudarparaaaladosprofessoresenquantoestãoreparandooestrago
provocadopelafumaça—disseCarter.—Vaificartudobem.—Esperoquevocênãofiquemuitosozinho.—Vou carbem—assegurou.—Aquiéaminhacasa,lembra?Enãovou car
sozinho.A Jo e o Sylvain vão car, e a Jules só vai passar algunsdias em casa.AmaioriadaspessoasdaEscolaNoturnavoltadepoisdeumasemana,maisoumenos.
AoouvironomedeSylvain,Allie sentiuumapontada indesejadano coração.Nãooviadesdeoincêndio.
—Quebom—concordou.—Masvoumepreocupar comvocêdomesmojeito.
—Eeucomvocê.Meescreve—pediu.—EvoutentarconseguirotelefonedaIsabelleprateligar.
—Aindatemmeunúmero?Elelevantouamão—elatinhaanotadologoabaixodasjuntasháumahora.—Voutatuarenquantovocêestiverfora—brincou.Um silêncio sombrio se abateu. Allie repousou a mala no pé, balançou-a
suavementecomosdedos.— Você vai tomar cuidado, não vai? — disse ele, mexendo singelamente a
bainhadacamisadela,puxando-aparapertodesi.—Vaificarsegura?Apesardeeleterdeixadoavozleve,elaouviuapreocupaçãoportrásdaspalavras.—Nãosepreocupa.Vou carótima.Só coumasemanaemcasa,depoisvou
pramansãodecampodaRachel,queaparentementeétãoseguraquantooPaláciodeBuckingham.
—Ótimo—disseele,abraçando-acomforça.—Contantoquetenhacuidado.
Agenteprecisadevocêporaqui,vocêsabe.—Precisammesmo.Esselugarestariaruindosemmim—dissecomumsorriso
irônico.Enterrandoorostonocabelodela,Carterrespiroufundo.—Estánahora!Todomundoprafora!AvozdeZelaznyveiodaportadeforadocorredor.Allielevantouorostopara
umbeijo rápido, recuando quase imediatamente. Eramuito tarde para despedidaslongas.
Pegouabolsaealevantouporcimadoombro.—Voudescersozinha,tudobem?—OsolhosdeAllieinvestigaramorostode
Carter, mas ela sabia que ele iria entender. Se ele realmente a beijasse direito, oupedisseque casse,seelacontinuasseolhandonaquelesolhos,jamaisconseguiriasairpelaporta.
Movendo-serapidamente,elafoiatéaportaeaabriu.Elegritouportrásdela:—Belasbotas,Sheridan.Elanãoolhouparatrás.—Ficafrio,CarterWest.Elajáestavanametadedocorredorquandoouviuarespostadele.—Sempre.
FIM