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1Universidade Anhanguera - Uniderp
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
DA NÃO-RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 DOS CRIMES DE GESTÃO FRAUDULENTA E GESTÃO TEMERÁRIA DE
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS (ART. 4º, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI NACIONAL Nº 7.492 / 86)
RAPHAEL FERREIRA DE SOUZA
Manhuaçu (MG)
2010
2
RAPHAEL FERREIRA DE SOUZA
DA NÃO-RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 DOS CRIMES DE GESTÃO FRAUDULENTA E GESTÃO TEMERÁRIA DE
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS (ART. 4º, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI NACIONAL Nº 7.492 / 86)
Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação lato sensu TeleVirtual em Ciências Penais, na modalidade Formação para o Mercado de Trabalho, como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Ciências Penais.
Universidade Anhanguera – Uniderp
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
Orientador: Professor Dr. Gamil Föppel El Hireche
Manhuaçu (MG)
2010
3
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito e que se fizerem necessários, que isento
completamente a Universidade Anhanguera – Uniderp, a Rede de Ensino Luiz Flávio
Gomes e os professores indicados para compor o ato de defesa presencial de toda e
qualquer responsabilidade pelo conteúdo e idéias expressas na presente
monografia.
Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso
de plágio comprovado.
Manhuaçu / MG, 19 de Maio de 2010.
RAPHAEL FERREIRA DE SOUZA
4
A meu pai, Joaquim Suprano de Souza (in memorian),A meu avô materno, Aristóteles Ferreira (in memorian),Por terem vivido por nós e para nós.
A minha mãe, Rosângela Ferreira de Souza,A minha avó materna, Maria do Carmo Malacos Ferreira,Pelos exemplos de vida e por terem plantado a semente.
A minha única irmã, Mariana Ferreira de Souza,Pela devoção explícita e velada que sempre me expendeu.
A Sara Andressa Vinand,A Samuel Vinand, eA André Luiz Vinand,Pelo carinho incondicional.
5
“Impor uma pena não é um processo metafísico, mas sim uma amarga necessidade de uma sociedade de seres imperfeitos, como hoje são os homens.” 1
1 PUIG, Carlos Mir. El sistema de penas y su medición en la reforma penal. Barcelona: Bosch, 1986, p. 72. Livre tradução. In: TASSE, Adel el. Crime contra o Sistema Financeiro Nacional: O bem jurídico específico necessário para a incidência da Lei nº 7.492 / 86 à determinada conduta. Artigo publicado: Direito Penal Contemporâneo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, pp. 334-341. Material da 2ª aula da Disciplina Criminalidade Econômica e Organizada, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais - UNIDERP / Rede LFG, pg. 3.
6
RESUMO
O presente trabalho de conclusão de curso analisa os crimes de gestão fraudulenta
e gestão temerária de instituições financeiras sob a ótica constitucional, concluindo,
após o esgotamento da análise sob esse prisma, pela não-recepção de tais delitos
pela atual ordem jurídica. Para tanto, adentra nas linhas dogmáticas da Teoria do
Garantismo Penal, de LUIGI FERRAJOLI.
Palavras-chave: Não recepção, crime de gestão fraudulenta, crime de gestão temerária.
7
ABSTRACT
The present work of course conclusion analyzes the crimes of fraudulent
administration and reckless administration of financial institutions under the
constitutional optics, ending, to the cable, for the no-reception of such crimes for the
current juridical order. For this, it penetrates in the dogmatic lines of the Penal
Covenantor's Theory, of LUIGI FERRAJOLI.
Key-word: No reception, crime of fraudulent administration, crime of reckless administration.
8
ZUSAMMENFASSUNG
Die gegenwärtige Arbeit natürlich analysiert Schluß die Verbrechen betrügerischer
Verwaltung und leichtsinnige Verwaltung finanzieller Institutionen unter der
verfassungsmäßigen Optik, Ende, zum Kabel, für den nein-Empfang solcher
Verbrechen für die aktuelle juristische Reihenfolge. Für so sehr dringt es in den
dogmatischen Linien von der Theorie des Strafbaren Vertragspartners, von LUIGI
FERRAJOLI.
Schlüsselwort: Kein Empfang, Verbrechen betrügerischer Verwaltung, Verbrechen leichtsinniger Verwaltung.
9
SUMÁRIO
PROLEGÔMENOS 10
CAPÍTULO 1Do Controle de Constitucionalidade 13Do conceito de inconstitucionalidade
Inconstitucionalidade Formal x Inconstitucionalidade Material
Do fenômeno da não-recepção
CAPÍTULO 2Crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto 18
CAPÍTULO 3Do Garantismo Penal 20
CAPÍTULO 4Do crime de Gestão Fraudulenta (Art. 4º, caput, da Lei 7.492 / 86) 23
CAPÍTULO 5Do crime de Gestão Temerária (Art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492 / 86) 27
ENTENDIMENTO CONCLUSIVO 30
REFERÊNCIAS 35
10
PROLEGÔMENOS
Muito tem sido comentado acerca do objeto desta obra.
Para uns, as cominações dos delitos em tela são irrisórias, sendo
absolutamente improfícuas contra os mais abastados financeiramente. Para outros,
os crimes em tela são simplesmente inconstitucionais, sendo completamente
irrelevantes a espécie e a quantidade de pena neles prevista. Os pretórios do país,
de outro giro, têm para si que são crimes material e formalmente válidos.
Longe de afirmações levianas, pretende esta obra a demonstração
jurídica suficiente de que tais delitos sequer foram recepcionados pela atual Carta
Política, o que produz relevantes conseqüências.
Importante registrar que definir crimes de fundo econômico-financeiro não
é tarefa trivial. Não há unanimidade sobre o assunto. Foi precisamente esse o ponto
de partida deste estudo: a ausência de conceitos e normas jurídicas específicos
acerca dos delitos dessa relevância. Alguns desavisados poderiam desejar impugnar
estas primeiras letras declarando a existência da Lei Nacional nº 7.492 / 86, que traz
em seu bojo os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Contudo, tal
argumento não resiste há um estudo mais paciente, conforme adiante se
demonstrará.
11
Não parece possível a aplicação de normas legais anteriores a atual
Carta Constitucional de forma automática e acrítica. Todas elas devem ser
reinterpretadas em face da nova Constituição. Essa é a ratio essendi desta obra,
que adotou o conceito convencionado no 11º Congresso das Nações Unidas sobre a
Prevenção do Crime e Justiça Penal, ocorrido em 18 de Abril de 2005 2, que assim
dispôs sobre o assunto:
Por crime económico e financeiro entende-se, de um modo geral, toda a forma de crime não violento que tem como conseqüência uma perda financeira. Este crime engloba uma vasta gama de actvidades ilegais como a fraude, a evasão fiscal e o branqueamento de capitais. (...) É difícil determinar a amplitude global do fenómeno, em parte devido à ausência de um conceito claro e aceite por todos, em virtude de os sistemas de registro dos crimes económico-financeiros diferirem consideravelmente de um país para o outro e de vários casos não serem identificados porque as empresas ou as instituições financeiras optam por resolver os incidentes internamente.
Vê-se do quanto extraído que não se cuida de delitos de interpretação
simples. Antes, pelo contrário, são crimes que não têm a mesma visibilidade dos
crimes vulgares, presenciados cotidianamente nas vias públicas (o que por si só
demanda estudo mais verticalizado).
Em razão desse característico, os crimes tipificados nesse diploma
ficaram conhecidos internacionalmente como white collar criminals3 (crimes de
colarinho branco), que em sentido amplo congloba as infrações penais contra a
ordem tributária, contra o sistema financeiro, contra a administração pública, entre
muitos outros.
Desde 1986, época de publicação da Lei de regência dos crimes de fundo
financeiro (Lei Nacional nº 7.492 / 86), tem-se discutido muito acerca de sua
abrangência. Hoje, para além dessa discussão, questiona-se também sua validade.
2 Obtido a partir de http://www.unis.unvienna.org/pdf/fact_sheet_5_p.pdf, em 26.09.2009, às 18:14 hs.3 Expressão cunhada por EDWIN HARDIN SUTHERLAND, em 1939. In: MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. Anotações à Lei Federal n. 7.492 / 86. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1999. Pp. 02 - 03.
12
Conquanto seja ato normativo relativamente vetusto, a Lei 7.492 / 86
cuida de uma novíssima espécie de criminalidade, gerada, sobretudo, pelo recente
processo de internacionalização da economia. É a intitulada criminalidade dos ricos.
Essa criminalidade, invulgar, normalmente é perpetrada por redes
criminosas e revela significativo grau de complexidade. Empresarialmente
organizados - não raro transnacionalmente -, esses supostos criminosos chegam a
corromper servidores públicos e de agentes políticos. O objetivo primário de tais
delitos é a obtenção de riquezas sem a necessidade do uso de violência direta a
seres humanos.
Nesse panorama, em razão da própria natureza de tais infrações, verifica-
se que são condutas praticadas pelos mais bem postos socialmente, seja intelectual,
seja política, seja financeiramente, cuja repercussão vem gerando imenso impacto
social.
Nesse ínterim, mostra-se prudente e razoável analisar o tema proposto
com a devida precaução, através do método expositivo-crítico, analisando as
supostas validade e vigência desses crimes, antes de impingir aos indivíduos que
praticam as condutas previstas no Art. 4º, caput e parágrafo único, da Lei Nacional
nº 7.492 / 86 a estigmatizante pecha de criminosos.
13
1. DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Em virtude da pré-existência da Lei nº 7.492 / 86 a atual Carta Política,
mister se faz aferir sua compatibilidade com a vigente Constituição. Isso se
materializa através da técnica do controle de constitucionalidade.
No Brasil subsistem dois sistemas distintos dessa técnica, ambos
igualmente válidos: o difuso, também chamado de aberto, por via de exceção ou de
defesa, que é a permissão conferida a qualquer órgão julgador de verificar, in
concreto, a compatibilidade de um ato questionado com a Constituição da
República, e aquele chamado de controle concentrado, também conhecido como por
via de ação direta, cuja competência foi atribuída constitucionalmente ao Supremo
Tribunal Federal.
Através deste último sistema busca-se obter a declaração de
inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em tese, i.e., independentemente da
existência de casos concretos, objetivando-se a invalidação do objeto questionado
com vistas à garantia da segurança das relações jurídicas, que não podem ser sabor
de atos inconstitucionais. Naquele controle o efeito da decisão é restrito: atinge
apenas as partes diretamente interessadas em um caso específico. Neste, o efeito é
erga omnes, atingindo e vinculando todos os tribunais e a administração do país.
No ponto, importante lição é ofertada pelo magistério de JORGE
MIRANDA4:
4 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Pg. 1003.
14
Constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, isto é, a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido.
Assim, aferir a constitucionalidade de um ato normativo significa verificar
sua compatibilidade com a vigente Carta Política, através de seus requisitos formais
e materiais. Para tanto, deve o exegeta valer-se de apenas paradigmas positivados,
o que o STF chamou de bloco de constitucionalidade5.
1.1. Do conceito de inconstitucionalidade
Pelo exposto até o momento é possível verificar que inconstitucionalidade
é a desconformidade direta de um ato, público ou privado, com a Constituição da
República, seja essa incompatibilidade formal ou material. Assim, se um servidor
policial adentra a residência de um suspeito altas horas da madrugada a fim de
capturá-lo, comete uma conduta flagrantemente inconstitucional por ofender
diretamente o Art. 5º, XI, CRFB / 886.
Tal inconstitucionalidade é declarada a partir da retro mencionada técnica
do controle de constitucionalidade, que nada mais é que a necessidade de aferição
decorrente diretamente da idéia de supremacia constitucional sobre o ordenamento
jurídico, da rigidez constitucional e da proteção dos direitos fundamentais. Este
último, no dizer de ALESSANDRO PIZZORUSSO7, é a sua primordial finalidade.
1.2. Inconstitucionalidade Formal x Inconstitucionalidade Material
Cuida-se, no ponto, de técnica classificatória dos vícios constitucionais
quanto a sua espécie.
5 Nesse sentido: STF, ADI 1120 / PA. Rel. Min. Celso de Mello. 6 Nesse sentido: RE 528.096 / SP, Rel. Min. Cármem Lúcia.7 In: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. Pg.. 635.
15
Por inconstitucionalidade formal, GILMAR MENDES, INOCÊNCIO
COELHO e PAULO GONET8 pontificam que são os vícios que afetam o ato
normativo individualmente considerado, referindo-se aos pressupostos e
procedimentos relativos à formulação do ato.
Essa espécie de anomalia pode ser subjetiva, quando referente à fase de
iniciativa, ou objetiva, quando pertinente às demais fases do procedimento
legislativo.
Já a inconstitucionalidade material, segundo os mesmo autores9, é a
incompatibilidade em sentido substancial, ou seja, aquela referente ao próprio
conteúdo do ato, dando causa a um conflito de regras ou princípios estabelecidos na
Constituição.
Entrementes, necessário consignar que pouco importa de que espécie
seja. A pecha de “inconstitucional” macula qualquer ato ou fato jurígeno no seu limite
extremo, impossibilitando sua ratificação. Ipso facto, a declaração de nulidade dos
efeitos jurídicos advindos desse ato ou fato é mera questão de tempo.
1.3. Do fenômeno da não-recepção (ou da “revogação” de normas pré-constitucionais)
Torna-se fundamental deflagrar a explanação do ponto à luz do
magistério de LUIZ BARROSO10:
8 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. pg. 1003.9 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. pg. 1015.10 BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Pg. 72.
16
Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado. Por isso, toda a legislação ordinária, federal, estadual e municipal que não seja incompatível com a nova Constituição conserva sua eficácia. Se assim não fosse, haveria um enorme vácuo legal até que o legislador infraconstitucional pudesse recompor inteiramente todo o domínio coberto pelas normas jurídicas anteriores.
Nessa toada, é possível constatar que a continuidade da ordem jurídica
ocorre através de um procedimento que a literatura jurídica denominou recepção,
que outra coisa não é senão o fenômeno jurídico que ocorre quando o ordenamento
pré-constitucional (direito preexistente à nova Carta Política) mostra-se compatível
com a nova ordem constitucional, sendo por ela admitido como válido e,
conseqüentemente, vigente.
Em sentido inverso, quando as normas infraconstitucionais forem
incompatíveis com a nova Carta Política serão consideradas não recepcionadas,
sendo, pois, excluídas do novel ordenamento jurídico.
CARLOS MAXIMILIANO11, após enfatizar a exclusão automática dos
textos incompatíveis com a nova Carta Política, chega a mencionar que “basta a
antinomia implícita para desaparecer o texto ordinário e prevalecer o fundamental”.
FRANCISCO DE MIRANDA12 complementa o raciocínio: “As leis que continuam em
vigor são todas as que existiam e não são incompatíveis com a Constituição nova”.
Não fosse assim, haveria o que JOSÉ CANOTILHO13 intitulou de
interpretação da Constituição conforme as leis (gesetszeskonform
Verfassungsinterpretation), autorizando a sobreposição da legalidade à Constituição,
indo na contramão do que se espera de um Estado Democrático de Direito: a
constitucionalidade das leis.
11 In: BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., pg. 76.12 In: BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., pg. 76.13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999. Pg. 1158.
17
Aqui cabe uma observação: em que pese se tratar de norma
constitucional não admitindo o direito pretérito, o Supremo Tribunal Federal utiliza a
denominação revogação14 para se referir ao tema. Isso porque, à luz do
entendimento da Suprema Corte, lei posterior, sendo incompatível com a anterior
que discipline o mesmo objeto, pode revogá-la se for de idêntica ou superior
hierarquia. Segundo o STF, é ilógico admitir que norma superveniente, sendo de
igual hierarquia, possa retirar de vigência a anterior e uma de grau superior não o
possa.
14 Rp 1012 / SP, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 95 (39) / 980-981 e RE 353.508 AgR / RJ, Rel. Min. Celso de Mello.
18
2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO E DE PERIGO CONCRETO
Em razão das figuras jurídicas que esta obra se propôs a analisar
cuidarem de condutas erigidas à categoria de crime pelo legislador ordinário, torna-
se imperioso analisar a classificação dos delitos15 com a devida cautela.
Os delitos de perigo, por definição, são aqueles em que há uma grande
probabilidade de lesão a um bem ou interesse tutelado pela legislação penal. Na
definição de PAULO QUEIROZ16 tem-se que:
“(...) tais condutas só são penalmente consideradas, valoradas e proibidas à medida que possam ocasionar prejuízos a terceiros. É dizer, a proteção jurídica ocorre (ou deve ocorrer) sempre em referência, expressa ou tácita, a um interesse específico, concreto, lesado ou ameaçado de lesão.”
Segundo DAMÁSIO DE JESUS17, nesta espécie de crime o agente produz
tão somente um perigo de dano, independentemente do resultado por ele
efetivamente alcançado. Dessa forma, o indivíduo pode agir com dolo direto (quando
pretender a efetiva produção do perigo) ou eventual (quando apenas assumir o risco
de produzir referida danosidade).
A previsão para a punição na modalidade culposa nesta espécie de
delitos obedece à regra-geral: não há punibilidade por conduta culposa sem
expressa previsão legal (Art. 18, II, do Código Penal).
Esta classe de delitos possui ainda duas subespécies: os delitos de
perigo abstrato, ou presumido, que são aqueles cuja danosidade é presumida
legalmente (juris et de jure), possuindo danosidade pressuposta pela própria lei - i.
e., independentemente da efetiva lesão ou perigo real ao interesse tutelado, 15 Apenas no que tange aos crimes de perigo, concreto e abstrato, por necessidade de delimitação do assunto.16 QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do Direito Penal. Belo Horizonte, Del Rey, 1998. Pg. 108.17 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 3º Volume – Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 1988. Pg. 243.
19
prescindindo, pois, do efetivo dano - e de perigo concreto, onde a periculosidade é
relativa (juris tantum) e precisa ser provada, devendo o perigo produzido ser
investigado e cabalmente constatado em cada caso concreto.
Os crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária (Art. 4ª, caput, e
parágrafo único, da Lei nº 7.492 / 86) parecem se enquadrar como infrações de
perigo abstrato, por prescindirem de resultados danosos. Segundo se infere da
dicção legal, bastaria o mero risco de dano ao Sistema Financeiro Nacional para o
surgimento dos crimes em comento, dispensando-se, portanto, a análise de ofensa
real, ou concreta, ao bem juridicamente tutelado.
LUIGI FERRAJOLI18 critica essa espécie de delito. No sistema garantista
(“SG”), modelo de Direito Penal Mínimo por ele desenvolvido e largamente admitido
na jurisprudência nacional19, ficaram enumerados dez axiomas fundamentais, dentre
os quais os princípios da lesividade (ou da ofensividade) do ato, adiante analisado.
18 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002.19 Vide, por todos, o HC 95969 ED / SP. Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgado em 26/11/2009.
20
3. DO GARANTISMO PENAL
Não parece ser razoável tratar de Direito Penal sem rememorar dos
direitos e garantias fundamentais previstos no texto constitucional. Cuida-se,
sabidamente, dos limites intransponíveis a atuação do Estado.
Este, por seu turno, não é um fim em si mesmo. A razão de sua existência
e a do ordenamento jurídico dele decorrente é a necessidade de proteção e
organização da sociedade que o compõe. Tais figuras são nascidas para
semelhantes objetivos, não para o massacre de direitos individuais –
constitucionalmente assegurados.
A partir dessa premissa, LUIGI FERRAJOLI concebeu a Teoria Garantista
do Delito, que trata essencialmente da proteção e respeito aos bens, direitos e
garantias particulares estabelecidos em determinado ordenamento jurídico contra as
contumazes investiduras do próprio Estado, órgão criado para manter e fomentar o
bem-estar social.
De todos os postulados reitores do sistema garantista, três possuem
especial interesse para o desenvolvimento desta obra: os princípios da legalidade,
ofensividade do fato e da humanização, em sua dimensão da proporcionalidade em
sentido estrito.
Sob o postulado da legalidade, que é gênero, tem-se as seguintes
espécies: Lex certa, que traduz a idéia de que a legislação penal deva ser taxativa,
em virtude da segurança jurídica depender de certezas, e lex stricta, a qual afirma
que crimes devem ser previstos por lei em sentido estrito, sendo proscrito a
utilização de qualquer outra espécie normativa para a tipificação de crimes, como as
Medidas Provisórias, por exemplo.
Já o princípio da ofensividade da conduta, também chamado de princípio
da lesividade, traz a necessidade de investigar se o fato perpetrado atinge
21
concretamente o bem tutelado. Se o fato não for materialmente ofensivo, ou seja, se
para além do formalismo penal a conduta tida por delituosa não afetar de maneira
grave o objeto de proteção da norma, não há crime. Há, assim, a exclusão da
tipicidade penal. Nesse sentido, os crimes de perigo abstrato são francamente
condenáveis.
Por fim, quanto ao princípio da humanidade, especialmente em sua
dimensão “proporcionalidade stricto senso”, vertente mais significativa para esta
obra, é cediço que o mesmo proscreve excessos e constitui o aspecto substantivo
do devido processo legal. Mas para além dessa costumeira compreensão, dito
postulado traz em seu âmago uma outra faceta, a qual abrange uma série de
situações, dentre as quais é possível destacar a da proibição da tutela deficiente de
determinada garantia fundamental20.
Assim, a par do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit),
também chamado de “da proibição do excesso”21, há aquilo que SCHINK22 chamou
de princípio da proteção insuficiente (Untermassverbot). Dito autor interpretou tal
postulado como sendo:
A conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn).
Nesse sentido, toda a atuação do Estado deve ser, antes de tudo,
constitucional. Não basta a mera legalidade dos atos estatais (L´etat legal), como
bem observou JOSÉ CANOTILHO23. O país precisa seguir à risca os ditames
constitucionais, observando e curvando-se aos limites político-jurídicos que lhe
foram impostos pela assembléia constituinte de 1988.20 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. pg. 1017.21 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. pg. 330.22 In: MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. pg. 333.23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., pg. 91.
22
4. DO CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA (Art. 4º, caput, da Lei 7.492 / 86)
23
É cediço que as leis e demais atos normativos já nascem com a
presunção (relativa) de legitimidade e regularidade24, o que lhes confere aptidão para
a produção de seus esperados efeitos jurídicos. Não fosse assim, todos os atos
estatais deveriam ser impugnados judicialmente para que se pudesse ter certeza
acerca de sua constitucionalidade e legalidade.
Ocorre que essa presunção a bem do Estado é meramente relativa ( juris
tantum), admitindo provas em contrário. É o que se passa a fazer com vistas à
demonstração da inconstitucionalidade de duas dessas normas.
Convém destacar os preceitos primário e secundário do crime em de
gestão fraudulenta: Art. 4º. Gerir fraudulentamente instituição financeira: Reclusão
de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.
Como se infere sem dificuldades, os bens jurídicos imediatamente
tutelados pelo tipo delitivo são a higidez financeira e das atividades exercidas pelas
instituições financeiras, objetos de imensa relevância social.
Contudo, lamentavelmente é costumeira em matéria de Direito Penal
Econômico a utilização pelo Estado-Legislador de crimes de perigo abstrato para a
proteção da sociedade, além de tipos abertos e normas penais em branco.
Historicamente, dito crime já vinha previsto no Art. 3ª, IX, da Lei 1.521 /
51, que era facilmente classificável como de dano concreto, ou seja, dependia da
demonstração efetiva e cabal da ocorrência de prejuízo material.
Eis a íntegra do revogado dispositivo:
Art. 3º São também crimes desta natureza:(...)IX – gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios, ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de
24 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009. Pg. 300.
24
construções e de vendas de imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlio, pensão e aposentadoria; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falências ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados; (...)Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa, de vinte mil a cem mil cruzeiros. (Sem grifos no original)
Vê-se do quanto extraído que o tipo possuía um elemento descritivo claro
e suficiente para definir o conteúdo e o alcance da expressão “fraudulentamente”.
Posturas administrativas de índole falimentar ou o descumprimento de cláusulas
contratuais que gerassem prejuízo à instituição eram condutas criminosas.
Hoje, porém, a lei de regência é omissa quanto às condutas que podem
gerar danosidade às instituições financeiras. Traz, apenas, a vaga expressão “gerir
fraudulentamente”.
Não se ignora que renomados estudiosos do Direito Penal Constitucional
digam que essa tal postura legislativa seja suficiente. GILMAR MENDES,
INOCÊNCIO COELHO e PAULO GONET25 chegam a afirmar que
O indivíduo há de ter condições de saber o que é proibido ou permitido. Embora não se possa impedir a utilização de conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais, é certo que o seu uso não deve acarretar a não determinabilidade objetiva das condutas proibidas.
Todavia, acredita-se que a questão dos tipos penais deva ser analisada
sob critérios mais rigorosos, como o temo “fraudulentamente”, elementar do tipo em
estudo.
O que significa essa combinação de letras? A legislação penal regente da
matéria, Lei nº 7.492 / 86, é cristalinamente omissa a respeito.
25 MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., pg. 592.
25
Segundo o Código Civil de 2002, diploma subsidiário por excelência do
direito material, por fraude tem-se “a transmissão gratuita de bens ou remissão de
dívida”26 praticada pelo devedor insolvente, ainda quando o ignore essa qualidade.
Já o Código Penal, conquanto traga em seu Capítulo VI o título de “Do
estelionato e outras fraudes”, também não define exatamente o que seja tal figura.
Segundo o léxico MICHAELIS27, fraude é “a ação com má fé, engano,
como quando se altera um produto ou se deixa de pagar um imposto. Engano, má-
fé. (...)”.
Nesse sentido, em virtude da ausência de normatização expressa,
pressupõe-se que seja o emprego de ardil, estratagema ou malícia, com vistas à
obtenção de vantagem para si ou para outrem. Entrementes, frise-se: a lei penal
nada diz sobre isso.
Há mais.
A leitura do núcleo do tipo aliada à sua figura elementar (Gerir
fraudulentamente) também traz, em sua essentia, a idéia de reiteração. É, pois, lícito
pensar tratar-se de crime habitual, i.e., de um delito existente apenas quando de
uma reiteração de atos, sucessivos ou não, os quais constituem um crime único.
Nesse ínterim, em que pese a opinião de renomados cientistas em
sentido contrário28, condutas praticadas individualmente devem ser consideradas
indiferentes penais. RODOLFO MAIA chega a afirmar tratar-se de delito habitual
impróprio, ou acidentalmente habitual29, posto que, a seu juízo, bastaria uma única
ação para a configuração do tipo. Assim não parece ser, uma vez que a norma,
conquanto pretenda tutelar a indenidade do sistema financeiro contra qualquer ato
26 Art. 158, CC / 2002.27 Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Klick, 2001. pg. 567.28 Vide, por todos: MAIA, Rodolfo Tigre. Op. cit., pg. 55.29 MAIA, Rodolfo Tigre. Op. cit., p. 58.
26
hostil a este objeto, é defeituosa e conduz claramente à conclusão de que um único
ato não seria capaz de lesionar o ou desestabilizar gravemente o sistema nacional.
Falha redacional que beneficia o agente.
Ademais, conforme o próprio magistério de RODOLFO MAIA30,
Tais elementos [normativos], aliás, como asseverado, demandam exegese estrita de modo a não alargar demasiadamente o perfil de incidência deste tipo aberto e vulnerar a reserva legal.
Assim, é possível constatar a insuficiência normativa para configurar
qualquer tipo criminal. Cuida-se, portanto, normal penal em branco imprópria, ou
seja, “aquelas em que há a necessidade de complementação para que se possa
compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário31”.
Trata-se, por fim, de delito próprio, ou seja, que somente pode ser
praticado por agentes capazes de gerir instituições financeiras, tal como traz
expresso Art. 25 da citada Lei, onde a vítima - leia-se, sujeito passivo - imediata do
delito é o Estado, que tem sua credibilidade desacreditada. Mediatamente também
pode ser considerado sujeito passivo o mercado financeiro, cujas instituições e
investidores experimentam prejuízos em suas aplicações.
5. DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA (Art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492 / 86)
30 MAIA, Rodolfo Tigre. Op. cit., p. 58.31 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 5ª ed. Niterói: Impetus, 2005. Pg. 22.
27
Ab initio, urge evidenciar os preceitos primário e secundário do delito sob
análise: Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8
(oito) anos, e multa.
A princípio, necessário rememorar que o risco na manipulação de valores,
próprios ou de terceiros, é algo absolutamente normal - e até necessário - no
mercado financeiro. O que o tipo busca tutelar, aparentemente, são as posturas
executivas excessivas. Contudo, muitas críticas merecem ser tecidas. Veja-se: o
preceito primário do tipo penal em apreço (“se a gestão é temerária”) também não
contém elementos suficientes à delimitação da conduta punível. Como se percebe
sem o mínimo esforço, a legislação lamentavelmente também não possui um
elemento descritivo capaz de traduzir o alcance do termo “temerária”.
Os Códigos Civil e Penal também parecem nada esclarecer acerca da
expressão.
Temerário, etimologicamente, traz a idéia de risco. Cuida-se, pois, a
princípio, de conduta abusiva, que ultrapasse o limiar da prudência. É aquele
comportamento atrevido, impróprio, que traz consigo riscos excessivos ao
patrimônio dos clientes das instituições financeiras.
Mas um ponto merece reflexão: como punir, e. g., gestores de índole
arrojada? São eles que comumente proporcionam o amadurecimento e o progresso
das instituições, mormente em países subdesenvolvidos, como na República
Federativa do Brasil.
Aliás, também é importante lembrar que o risco no mercado financeiro
brasileiro não é de fácil constatação.
28
Nesse sentido, o objeto da tutela deste delito não é o resultado danoso de
uma operação financeira, mas sim a mera situação de risco causada pela ação do
administrador arrojado.
Além disso, cuida-se visivelmente de tipo penal aberto. O legislativo não
limitou a conduta incriminalizada dizendo o que é a boa ou má gestão, ainda que
arrojada.
Por certo que não se deve punir alguém simplesmente pelo que ele é,
mas sim pela sua conduta e vontade do agente, lançando a reprovação penal não
em razão do desvalor de sua ação, mas sim pelo resultado negativo por ela
causado.
Também não se deve confundir ação temerária com o seu resultado
pragmático. Na prática, se da postura do gestor advier lucro, a ação foi normal e
esperada. O autor será ovacionado, premiado e terá seu nome lançado no mercado
como “o grande gestor”. Se, entretanto, de sua postura advierem prejuízos, ela foi
temerária e o responsável será criminalmente punido.
Ora, é conquista do mundo contemporâneo o entendimento de que a
reprovação penal radica sobre o desvalor da ação e não do resultado, que lhe é
exterior e integra o tipo. O Direito Penal não pode ficar ao sabor dos resultados das
operações financeiras. É dogmática que merece e precisa ser compreendida a fundo
para evitar abusos e flutuações ao sabor de influências políticas, públicas ou
privadas, como funciona o mercado financeiro.
No caso do crime gestão de instituições financeiras, ora em estudo, a
omissão de um relevante elemento descritivo pode conduzir a uma hostilidade à
teoria do Direito Penal da Ação. Isto porque, no mercado financeiro, sabidamente o
risco de uma determinada operação pode ser majorado ao extremo por fatos
supervenientes à conduta e absolutamente imprevisíveis inicialmente ao agente,
29
possibilitando que o negócio celebrado em condições antes consideradas seguras
seja reputado como ato temerário, ilícito penal.
Dessa forma, não há a mais ínfima segurança jurídica quanto aos atos
que possam configurar o tipo gestão temerária. Aliás, cabe aqui a mesma
observação feita no caput do Art. 4º: o núcleo do tipo (Gerir) traz em seu íntimo a
noção de conduta reiterada. Assim, uma única conduta suspeita - porque impossível
se determinar, legalmente, o que seja temerário -, ainda que traga grandes reflexos
na macro-economia, jamais poderá ser considerada um delito na atual conjuntura do
Direito Penal Brasileiro.
Além disso, por ausência de previsão legal, pune-se a conduta exercida
tão somente a título de dolo. Contraditoriamente, temerário, como exposto até aqui,
expõe a idéia de audácia e imprudência. Evidente conflito de idéias, onde, mais do
que eu qualquer outro segmento do direito, a legislação deveria ser clara.
Por fim, importante glosar que se trata de crime formal, prescindindo de
resultado naturalístico. Assim, juridicamente pouco importa se da postura arrojada
do administrador a instituição financeira recebeu grande aporte de dividendos
(lucro). Em breves palavras, o gestor será punido por ser um gênio e um profissional
incomum.
ENTENDIMENTO CONCLUSIVO
30
À luz do exposto, verifica-se, mais uma vez, a grande deficiência do
Estado brasileiro em legislar construtivamente. Conquanto haja cada vez mais
representantes do povo nas casas legislativas do país, como deve ser em um país
democrático, em sentido contrário caminha a legislação, superabundante em
quantidade mas decrescente em qualidade.
Não se trata aqui exclusivamente da problemática questão das normais
penais em branco. Para muito além, cuida-se propriamente de lamentável
indefinição típica de crimes de altíssima relevância social. Assim os crimes de
gestão fraudulenta e de gestão temerária de instituições financeiras.
Não existem limites claros e objetivos para se aferir os conceitos das
elementares nos tipos incriminadores, limitadores por excelência dos critérios
acusatório e de julgamento. O elevado grau de indeterminação é tão extraordinário
que a tarefa valorativa do órgão julgador é livre de qualquer controle.
Também a sociedade, que naturalmente busca meios alternativos menos
onerosos para alcançar seus objetivos, conduta inerente à quintessência dos
negócios financeiros, fica sem perspectiva do que é proibido pela norma penal.
O princípio da legalidade penal, como demonstrado, traz em seu âmago a
necessidade da determinação taxativa da conduta anti-social. É o sub-princípio da
certeza ou do mandato de certeza, proibitivo de condutas penais sem suficiente
definição. Aliás, é de correntia sabença que a função garantidora é um dos
fundamentos do tipo penal32.
32 GRECO, Rogério. Op. cit., p. 201.
31
Conquanto subsistam posições judiciais francamente em sentido
contrário33, ficou demonstrada a flagrante violência ao princípio constitucional da
legalidade penal. Os crimes analisados carecem de limites normativos bem
definidos, importando em violação direta ao postulado da legalidade. O elevadíssimo
grau de indeterminação possibilita arbítrios ministeriais34 e jurisdicionais, podendo
até mesmo culminar no juízo de reprovação do agente em razão de acontecimentos
posteriores e imprevisíveis à sua conduta.
O objeto material, o núcleo, os sujeitos ativo e passivo dos tipos delitivos
mencionados, mais que válidos, são tecnicamente bem tracionados. Contudo, os
elementos fraudulentamente e temerária, elementares dos tipos incriminadores, por
serem francamente insuficientes aos fins a que se destinam, malferem os delitos que
compõem de chapada inconstitucionalidade, inviabilizando suas punições. Entenda-
se: é a ausência de um elemento descritivo gera a invalidade desses delitos.
Sob a perspectiva garantista, ainda que haja violenta afronta ao bem
jurídico tutelado, e independentemente do grau de relevância deste, não se pode
coadunar com hostilidades aos princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil, dentre os quais o direito de legalidade, que impõe clareza da legislação
penal.
Entende-se que a pena criminal só pode ser considerada legítima quando
houver rigoroso cumprimento do devido processo legal, inclusive em sua espécie
substantiva. A estrutura normativa penal deve ser delimitada ao máximo, deixando
indene de dúvidas problemas subjetivos de subsunção35. O que se vê hodiernamente
são descrições amplas que submetem a tipicidade a alta subjetividade do órgão
julgador, o que gera evidente insegurança jurídica. 33 Posição em contrário: TRF 4ª R. 7ª T. AC 1999.04.01.115593-7 / RS - Rel. Des. Fed. Fábio Rosa. DJU 24.04.2002, p. 1158.34 Quando do oferecimento de denúncias, submetendo à persecução penal aqueles que deveriam ser premiados por seus esforços administrativos na obtenção de maior lucratividade às entidades que representam.35 Entenda-se: adequação típica.
32
Ficou constatada claramente, ainda, a indevida utilização de crimes de
perigo abstrato, em clara afronta ao princípio da ofensividade, gerando grandes
possibilidades de vir a se punir através de responsabilidades objetivas ou de um
direito penal do autor.
É cediço que o núcleo intangível da Constituição congloba os direitos e
garantias individuais, dentre os quais o da estrita legalidade penal. É o direito penal
constitucional. Eis, em síntese, o modelo garantista do delito: a limitação do jus
puniendi.
Além disso, há que se proibir a punição de condutas esparsas, praticadas
sem reiteração de atos pelos supostos autores de infrações penais. Pela própria
redação legal, conclui-se que são crimes habituais, dependendo de mais de uma
conduta para a configuração formal do delito, sem a qual não se pode falar em
persecução penal.
Forte em tais razões, é possível asseverar que formalmente as normas
penais em estudo são válidas e aplicáveis, razão pela qual podem ser consideradas
recepcionadas pela atual ordem constitucional. Materialmente, todavia, a questão é
inversa.
Buscou-se ao longo da obra demonstrar a absoluta impossibilidade de
permanência de tais crimes no atual sistema repressivo brasileiro sem graves
prejuízos à garantia da segurança nas relações jurídicas. Admiti-los significa relegar
os direitos constitucionalmente assegurados a segundo plano em detrimento do
objeto juridicamente tutelado. Como demonstrado, a primordial finalidade do controle
de constitucionalidade, difuso ou concentrado, é a proteção dos direitos
fundamentais.
33
Assim, em conclusão, merece acolhida o entendimento de que essa
questão de inconstitucionalidade (richterklage) faz com que, sob grande rigor
técnico, admita-se, antes, a própria não-recepção dos crimes estudados - por serem
anteriores à atual Constituição da República.
A solução jurídica para os casos já ocorridos parece clara, com reflexos,
inclusive, no recente e polêmico caso da Operação Satyagraha. Por serem delitos
inconstitucionais, toda condenação penal proferida a partir 05 de outubro de 198836
até o final da vacatio legis da lei a ser criada (de lege ferenda), não poderá haver a
aplicação das cominações formalmente prevista em tais delitos. Acredita-se, mais,
que àqueles que foram condenados como incursos em tais crimes fazem jus à
indenização por erro judiciário (Art. 5º, LXXV, CRFB / 88). Isto parece obedecer à
melhor técnica e não deve causar comoção nem arrepios. Isto porque em um Estado
que se pretenda Constitucional e Humanitário de Direito (ECHD), deve ser
observada claramente a concepção garantista do delito, e a indenização por erro
judiciário conta com apoio, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em seu Art. 8º, in verbis:
Todo o homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. (Sem grifos nos original)
O modelo penal, em síntese, deve ser racional, e não escatológico, como
o atual entorno jurídico nacional. Enquanto os interesses políticos suplantarem os
sócio-jurídicos, não haverá o necessário respeito aos direitos fundamentais,
hostilizando-se, a cada nova oportunidade, as tão almejadas garantias
constitucionais.
36 Dia de promulgação da atual Carta Política.
34
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