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Vidas Secas em plena Amazônia

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Impactos Socioambientais - Enquanto a usina de Belo Monte aguarda o alagamento do rio Xingu para se tornar a terceira maior hidrelétrica do mundo, moradores ribeirinhos são removidos sob a previsão de um futuro árido na região mais úmida do país

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Brasil

12 Cidade Nova • Novembro 2015 • nº 11

MARTINA [email protected]

vidas secas em plena amazônia

enho 46 anos e mais de 35 como barqueiro. Co-mecei com nove anos ajudando meus pais.

Sou filho do rio Xingu. Nasci na bei-ra do rio, debaixo de um pé de caju. Hoje continuo aqui, mas, ao invés de vida, só vejo destruição.” A incer-teza sobre o amanhã move e comove o barqueiro Antônio Gomes Xavier, removido da beira do rio Xingu por conta da construção da usina hidre-létrica de Belo Monte, que promete ser a terceira maior do mundo, atrás da chinesa Três Gargantas e da bina-cional Itaipu. As obras iniciadas em 2011 levaram mais de 7 mil famílias a uma mudança repentina. A vida, antes irrigada pelo rio, está se tor-nando cada vez mais árida.

“Não tem mais passageiro para levar de barco. Fico pensando na

minha vida, como vou conseguir dinheiro para manter minha famí-lia. Não sei mais o que fazer. Minha tristeza é essa. E isso não é só eu, não. É todo mundo que trabalha aqui no rio.”

Profissões que deixam de existir, separação de amigos e parentes, in-segurança, casas que não respeitam o modo de vida local e falta de aces-so à infraestrutura são alguns dos elementos que compõem o cenário enfrentado atualmente pelos habi-tantes de Altamira (PA).

Tudo parecia caminhar bem em 2011, quando a concessionária Nor-te Energia teve que assinar um docu-mento chamado Projeto Básico Am-biental (PBA), que lista uma série de condições para a execução da obra. Entre elas, a garantia de moradia e produção no mínimo semelhantes

em relação às que as famílias remo-vidas dispunham antes da implanta-ção do empreendimento. A promessa encheu os moradores de esperança. Em agosto, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Na-turais Renováveis (Ibama) determi-nou que a empresa suspendesse o processo de realocação de famílias justamente pelo descumprimento desse e de outros compromissos.

A história de Antônio evidencia o descaso. Seu ofício de transportar em barcos gente que morava nas ilhas ao longo do rio até a beira do Xingu, onde começa a cidade de Al-tamira, não tem mais razão de ser, já que quase todo mundo foi remo-vido dessas áreas.

Nenhuma compensação foi ofe-recida a ele, que contabiliza o pre-juízo: “Nosso ganho diminuiu 90%

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casas de um dos Reassentamentos Urbanos coletivos construídos em altamira/Pa

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depois da barragem. Antes, três em-barcações faziam R$ 300 cada, num total de R$ 900 por dia. Hoje, a gente faz uma viagenzinha aqui, outra ali, para transportar o pessoal que cons-trói a usina. Com o dinheiro não dá nem para manter a embarcação”.

Presidente da Associação de Bar-queiros, Antônio afirma que a en-tidade não foi reconhecida pela empresa e que a sede chegou a ser de-molida sem a devida indenização aos pilotos. “Nossa atividade vai acabar, é um desespero só”, lamenta.

SeparaçõesOutra condicionante descum-

prida foi a manutenção de laços sociais com a família e vizinhos, cuja convivência já ultrapassava décadas. Muita gente que morava na beira do rio ou nas ilhas optou por mudar para as casas construídas pela empresa em novos bairros, os chamados RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos). O plano previa a transposição de blocos de residên-cias para uma mesma área, mas a mudança, feita às pressas, separou muita gente, inclusive pais e filhos.

“Não moro perto de nenhum amigo meu, nem do meu pai, que começou a ficar depressivo por cau-sa das mudanças. Eles moram a pelo menos 6 km de distância da minha nova casa”, afirma Maria Elena de Araújo Silva, 48 anos, 30 deles vivi-dos em Altamira.

Segundo a moradora, a realo-cação prejudicou também seu tra-balho como cabeleireira, já que os antigos clientes passaram a viver muito longe. Maria recebia um sa-lário de R$ 1.600 e agora está sem meios de obter renda.

TrânsitoOs RUCs ficam muito distantes

da cidade. A promessa era de que os

bairros ficariam no máximo a dois quilômetros dos centros urbanos. “O mais próximo fica a 10 km do cen-tro. É longe demais”, diz Carolina Reis, advogada do programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA). Como resultado, houve aumento de trânsito e de acidentes, além do dificultoso acesso ao comércio e aos serviços públicos, ainda concentra-dos no centro de Altamira.

Voluntária do Movimento de Mulheres da Transamazônica e do Xingu, Maria Elena teve que deixar o ambientalismo que tanto defende de lado para financiar uma moto, já que o transporte público ainda não conecta todos os bairros ao centro. “Antes, mesmo quem morava na periferia, gastava no máximo 15 minutos para ter acesso a banco, escola… Agora a distância é muito maior e nem tem coletivo para car-regar o povo”, diz.

A moto também foi a solução encontrada por Antônio para levar sua filha de 16 anos à antiga esco-la, já que o bairro onde mora ainda está sem nenhum colégio.

O aumento do fluxo de veículos tem consequências graves. De acor-do com estudo feito pelo ISA, o nú-mero de acidentes trânsito saltou de 456 para 1.169 nos últimos quatro anos: um aumento de 144%.

O atraso na conclusão de hospi-tais nos novos bairros concentra os casos no Hospital Regional de Alta-mira, que atendeu 213% mais pa-cientes vítimas de acidente de trânsi-to em comparação com 2013. Pouco acostumados às motos, muitos mo-tociclistas andam sem capacete. A falta de sinalização e de iluminação nos bairros piora a situação.

criminalidadeOutra estatística que engrossou

foi a população de Altamira, que passou de 100 mil habitantes para

cerca de 140 mil após a obra. Para Yuri Paolino, da coordenação na-cional do Movimento dos Atingi-dos por Barragens (MAB), o empre-endimento desestruturou a região do ponto de vista econômico, pois enquanto a demanda aumentou, a produção de alimentos caiu.

“Foram retiradas 1.800 famílias da área rural, onde produziam ali-mentos ou pescavam”, observa. “Está tudo inflacionado e a violência au-menta. Não dá para mensurar como a região vai lidar com isso.”

Uma das consequências da ex-plosão demográfica, da dispersão de vizinhos que viviam há anos lado a lado e do aumento do custo de vida é o crescimento da criminalidade. De acordo com a pesquisa do ISA, os casos de homicídios, violência con-tra mulheres e adolescentes, furtos e roubos praticamente duplicaram.

Dados apontam que, de 2011 a 2014, o número de assassinatos por ano em Altamira saltou de 48 para 86 casos.

infraestruturaO plano previa ainda a constru-

ção de casas de alvenaria, mas a em-presa entregou aos moradores casas de concreto. Muitos deles reclamam que o material usado nas novas re-sidências não leva em consideração o clima quente da região amazônica e são muito abafados. Além disso, as paredes não suportam a insta-lação de redes, utensílio típico da cultura local.

Alguns preferem chamar os RUCs de loteamentos ao invés de bairros, já que a infraestrutura é precária e o comércio quase ine-xistente. Nos reassentamentos falta também saneamento básico, arbori-zação e áreas de lazer.

“O bairro parece um labirinto para quem não o conhece. As casas são iguais e as ruas não têm nome. c

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Tenho medo de sair e não saber vol-tar”, confessa Maria Elena. Segundo ela, as casas são de baixa qualidade e exigem reformas a cada cinco anos. “Por mais que as casas das pessoas fossem em cima de igarapés ou construídas com madeira, a garan-tia era de dez a 15 anos. Eu mesma já tive que reformar o banheiro por-que o material não corresponde ao que tinha na minha casa”, reclama.

“Das 4 mil famílias, há um uni-verso variado de pessoas. Algumas entendem que a casa é boa, outras, que são frágeis”, pondera a advoga-da Carolina Reis. “O problema é não haver diálogo com a cultura local dessa região durante as remoções e as construções dos novos bairros e casas”, critica.

Algumas pessoas que optaram pela indenização ao invés das casas construídas pela Norte Energia en-frentam dificuldade para encontrar residência em Altamira, devido ao boom imobiliário gerado pelo em-preendimento, aponta Reis.

“Os cidadãos agora são forçados a buscar casa perto da estrada e têm que começar uma nova vida, além de adquirir um novo ofício, como tra-balhar de pedreiro ou arrumar qual-quer bico”, afirma. “Todo processo de remoção foi permeado por uma série de violações graves de direito à mo-radia e à recomposição de sua vida.”

indígenasTambém são muitos os prejuí-

zos da obra aos indígenas. Segundo dados do ISA, houve degradação e desmatamento de suas terras, in-trodução de alimentos industriali-zados nas aldeias, alta de 127% da desnutrição infantil, além de maior circulação de pessoas de fora nas áreas de proteção.

Para Reis, o empreendimento promove “um laboratório humano em grande escala”, já que não se sabe

quais são as transformações pelas quais o rio deve passar depois que a hidrelétrica ligar seus motores.

“A área onde os indígenas mo-ram, na volta do rio, vai secar. Já se nota a diminuição da pesca. A na-vegabilidade e a qualidade da água também estão em questão”, pontua.

Sem saídaDevido a 12 requisitos ainda

pendentes, em setembro o Iba-ma paralisou a construção de Belo Monte. Sem a concessão da licen-ça pelo órgão, a Norte Energia não pode encher seu reservatório e gerar energia. As obras já estão atrasadas há mais de nove meses.

Em nota à reportagem de Cida-de Nova, a Norte Energia informou que o Instituto apenas indicou itens nos quais identifica necessidade de maiores informações para esclare-cimento de dúvidas. “Entre os dias 25 de setembro e 2 de outubro, fo-ram encaminhados esclarecimen-tos iniciais para o pedido feito pelo órgão ”, afirma a empresa.

Apesar das contraindicações, a presidente do Ibama, Marilene Ra-mos, declarou acreditar que a licença será emitida ainda neste ano. “Está bastante adiantado. Muita coisa já foi feita. Muita coisa já foi cumprida. E o que não está tem que cumprir”, afirmou durante evento público.

A Defensoria Pública da União (DPU), que recebe todas as recla-mações dos afetados pelas obras, moveu uma ação de R$ 3,5 bilhões contra o empreendimento, na qual exige uma série de compensações e indenizações a indígenas, barquei-ros, carroceiros, ribeirinhos, pesca-dores e a população urbana atingi-da. O órgão requer ainda medida cautelar para que a dona da usina não inicie o processo de enchimen-to do reservatório, mesmo que o Ibama conceda a licença.

desenvolvimento para quem?

Muitos questionam o suposto desenvolvimento que a obra efetiva-mente trará à região amazônica, já que, com o fim da construção, min-guam também os empregos gerados. “Perdeu-se a oportunidade de criar uma indústria local ligada ao ex-trativismo e a outras características econômicas da região. Os empregos criados pela obra foram voláteis. O que de fato ficou de perene para o futuro dessas populações? Muito pouco”, analisa Carolina Reis.

Uma possível melhora ainda pode ser vista no horizonte. O go-verno federal deve indicar um ter-ritório, próximo a Altamira e com acesso ao rio Xingu, para destinar às pessoas que dependem das águas para sobreviver. Para o Ministé- rio Público Federal, a definição des-se território pode representar uma solução inovadora para uma obra desse tipo.

Seu Antônio vê a notícia com pouco entusiasmo. “Se tá difícil até para indenizar as pessoas daqui, fazer outra casa no meio do rio, eu acho que é meio difícil, né?” E re-corda com tristeza um passado tão recente: “Destruíram minha casa to-dinha. Ainda tenho uma foto dela. Agora, tem uma ponte no lugar”.

Para os removidos de Altamira, a vida de sempre está distante, como uma paisagem numa fotografia. Resta saber se o governo aprenderá com as duras lições de Belo Monte e dará melhores condições aos deslo-cados pelas próximas hidrelétricas que prometem desenvolver o país.

A moradora Maria Elena dá a dica e lembra que “existem projetos que possibilitam o desenvolvimen-to do país sem destruir a história de quem ajudou a construir a Amazô-nia. Como é possível ver benefício no que se destrói?”.

MARTINA [email protected]