Upload
phungmien
View
223
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
“VIDA E MATERIALIDADE:OBSERVAÇÕES E PROPOSTAS INICIAIS PARA
UMA PESQUISA SOBRE O RECÉM-NASCIDO PREMATURO EM SUA
PASSAGEM PELA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA NEONATAL1.”
Autora: Rachel Salgueiro Rizério (UFF/RJ)
Palavras-chave: Recém-nascido. Prematuridade. UTI neonatal.
INTRODUÇÃO
A escolha por uma trajetória fora da Medicina através do Mestrado em
Antropologia, e neste momento no Doutorado, tem possibilitado novos olhares
ontológicos e epistemológicos a esta médica pediatra neonatologista. Acréscimos,
inovações e desafios são estímulos para obtenção de referenciais conceituais e
metodológicos diferenciados de uma normatividade epistêmica que projeta o divisor
Natureza/Cultura em uma série de dualismos interligados: corpo/mente; ciência/crença;
normal/patológico; real/artificial; humano/não humano. Neste contexto, esta pesquisa se
inicia com foco em uma realidade específica e peculiar da área médica - o recém-
nascido prematuro2 e sua estadia em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal,
de um Hospital Público do Sistema Único de Saúde (SUS)3, em Niterói, RJ.
Este artigo inicial procura de alguma forma identificar os motivos pelos quais o
recém-nascido prematuro se tornou o foco principal desta pesquisa de Doutorado. A
princípio, utilizarei alguns dados atuais e referências que localizam socialmente o
1Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2Considera-se prematuro todo recém-nascido que nasça antes de 37 semanas de gestação materna. (OMS,
1961; Ministério da Saúde, 1994). 3Unidades de internação para recém-nascidos prematuros cuja imaturidade orgânica necessita de cuidados
intensivos para manutenção de suas vidas, em hospitais da rede pública. Pelo Ministério da Saúde e
Secretarias de Saúde Estaduais e Municipais a organização destas unidades obedecem a um organograma
crescente em complexidade, e as UTIs Neonatais pertencem ao nível terciário de assistência ao recém-
nascido no Brasil. (Ministério da Saúde, 1994).
recém-nascido prematuro na contemporaneidade e que demonstram sua relação
intrínseca com a vida e com a morte em nossa sociedade. A seguir, como médica
neonatologista em uma UTI Neonatal de um Hospital Público em Niterói (RJ), trarei
alguns conceitos que demonstram o significado do recém-nascido e do período neonatal
do ponto de vista da medicina atual. Na sequência, farei as primeiras descrições do
campo como um exercício inicial de escrita da realidade observada e vivida,
aparentemente tão familiar, como exercício de desnaturalização de modo a entender e
apreender os sistemas de pensamento e classificatório nativos. Será observado que ao
longo da escrita algumas perguntas vão aparecendo, e não houve pretensão alguma
neste momento em tentar respondê-las. Utilizando como estímulo uma citação de
Eduardo Viveiros de Castro, “aceitar a oportunidade e a relevância da tarefa de “pensar
outramente” (autrement, Foucault) sobre o pensamento (...), sensível à criatividade e
reflexividade inerentes à vida coletiva dos povos (humanos e não-humanos)”. (Castro,
p.4, 2011)
O UNIVERSO NEONATAL
Contemporâneo
“Uma mulher alemã deu à luz uma bebê com apenas 21 semanas e
cinco dias de gestação, igualando o recorde de nascimento mais
prematuro do mundo, anunciou hoje a clínica de Fulda, na Alemanha.
Quando nasceu, a 07 de Novembro, Frieda pesava apenas 460
gramas. Cinco meses e meio depois, a bebé já pesa 3,5 quilos e teve
alta clínica na passada quarta-feira, adiantou a instituição de saúde em
comunicado. "Na literatura especializada existem registos de
prematuros mais leves à nascença, alguns até com peso inferior a 300
gramas, mas não há nenhuma referência de um prematuro mais jovem
que Frieda", acrescenta. Há apenas o registo do caso de um bebé que
nasceu com 21 semanas e cinco dias de gestação em Otawa, no
Canadá, em 1987, exatamente como Frieda.”
(http://www.dn.pt/globo/europa/interior/alema-deu-a-luz-bebe-mais-
prematuro-e-pequeno-do-mundo-1836629.html)
Enquanto pesquiso na internet, vejo uma notícia divulgada no ano de 2011, que
aparece em conjunto com inúmeras outras notícias de sites de jornais, ou mesmo de
publicações científicas, parecendo disputar em qual país, com suas respectivas
tecnologias médicas, nasceu e sobreviveu o recém-nascido menor e mais prematuro do
mundo, e da história.
Estatístico
“O período neonatal é uma época altamente vulnerável para o bebê,
que está completando muitos ajustes fisiológicos essenciais à
existência extra-uterina. As elevadas taxas de morbidade e
mortalidade neonatais atestam a fragilidade da vida durante este
período; nos Estados Unidos, de todas as mortes que ocorrem no
primeiro ano, dois terços são de neonatos.” (Nelson, p.504, 1997)
“A mortalidade neonatal é o principal componente da mortalidade
infantil desde a década de 1990 no país e vem se mantendo em níveis
elevados, com taxa de 11,2 óbitos por mil nascidos vivos em 2010. A
taxa de mortalidade infantil do Brasil em 2011 foi 15,3 por mil
nascidos vivos, alcançando a meta 4 dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, compromisso dos governos integrantes
das Nações Unidas de melhorar a saúde infantil e reduzir em 2/3 a
mortalidade infantil entre 1990 e 2015. No entanto, considera-se que
estes níveis de mortalidade estão aquém do potencial do país, e
refletem condições desfavoráveis de vida da população e da atenção
de saúde, além das históricas desigualdades regionais e
socioeconômicas. O principal componente da mortalidade infantil
atualmente é o neonatal precoce (0-6 dias de vida) e grande parte das
mortes infantis acontece nas primeiras 24 horas (25%), indicando
uma relação estreita com a atenção ao parto e nascimento. As
principais causas de óbitos segundo a literatura são a prematuridade, a
malformação congênita, a asfixia intra-parto, as infecções perinatais e
os fatores maternos, com uma proporção considerável de mortes
preveníveis por ação dos serviços de saúde.” (Lansky, 2014).4
Considero pertinente trazer estas referências, sendo a segunda uma pesquisa
nacional, para localizar o bebê que nasce prematuro na nossa sociedade. A pesquisa,
voltada principalmente para saber quantos deles morrem, procura identificar fatores que
estejam associados a esses óbitos, como a identificação social e econômica de sua mãe e
família, região onde nasceu, em que condições ele nasceu. Compreendidos como fatores
de risco para a mortalidade destes bebês, vão direcionar políticas públicas específicas
para a redução dos índices de mortalidade em todo país. Chama a atenção a grande
relevância que é a morte desses bebês, fazendo parte de contextos de análise de
desenvolvimento e qualidade de vida de sociedades e países.
4Pesquisa Nascer no Brasil: Estudo de coorte sobre a mortalidade neonatal na pesquisa Nascer no Brasil,
com entrevista e avaliação de prontuários de 23.940 puérperas entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012.
Utilizou- se modelagem hierarquizada para análise dos potenciais fatores de risco para o óbito neonatal. A
taxa de mortalidade foi 11,1 por mil; maior nas regiões Norte e Nordeste e nas classes sociais mais
baixas. O baixo peso ao nascer, o risco gestacional e condições do recém-nascido foram os principais
fatores associados ao óbito neonatal. A inadequação do pré-natal e da atenção ao parto indicaram
qualidade não satisfatória da assistência. A peregrinação de gestantes para o parto e o nascimento de
crianças com peso < 1.500g em hospital sem UTI neonatal demonstraram lacunas na organização da rede
de saúde. Óbitos de recém-nascidos a termo por asfixia intraparto e por prematuridade tardia expressam a
evitabilidade dos óbitos. A qualificação da atenção, em especial da assistência hospitalar ao parto se
configura como foco prioritário para maiores avanços nas políticas públicas de redução das taxas e das
desigualdades na mortalidade infantil no Brasil. (Lansky, 2014)
Médico
"Para nossos olhos já gastos, o corpo humano constitui, por direito de
natureza, o espaço de origem e repartição da doença: espaço cujas
linhas, volumes, superfícies e caminhos são fixados segundo uma
geografia agora familiar, pelo atlas anatômico. Esta ordem do corpo
sólido e visível é, entretanto, apenas uma das maneiras da medicina
espacializar a doença. Nem a primeira, sem dúvida, nem a mais
fundamental.” (Foucault, p. 1, 1970).
Nas sociedades ocidentais, para se conhecer um recém-nascido prematuro é
preciso estar dentro de um hospital. E para compreender o significado do nascimento e
do recém-nascido na medicina ocidental contemporânea é necessário mergulhar no
universo médico e decifrar sua linguagem técnica-médica-científica, que reflete o
conhecimento sobre os processos de saúde e de doença, vida e morte. Descrevendo
localizações anatômicas (corpo como organismo estruturado), fenômenos fisiológicos
(celulares, biofísicos, bioquímicos e moleculares) e processos patológicos (infecções
por microorganismos, metaplasias, inflamações), a medicina demonstra seu
conhecimento científico, institucionalizado e socialmente respaldado. Como o foco
desta pesquisa é o recém-nascido, como ele faz parte deste universo médico? Por que
ele está no hospital? O recém-nascido é um doente?
A medicalização do parto, e a consequente hospitalização da mulher
gestante/puérpera/mãe com seu bebê, os tornaram pacientes de médicos e de instituições
de saúde, sejam elas públicas ou privadas. Porém não foi sempre assim e este modelo de
assistência ao parto não é o mesmo em todas as sociedades e grupos. Neste sentido, as
possibilidades de extensão destas questões para a pesquisa são imensas. Neste
momento, considero importante duas questões para se buscar conhecer um recém-
nascido prematuro: a primeira delas é onde ele está. E como já exposto acima, ele nasce
e está inserido no universo médico hospitalar institucionalizado. Mary Douglas
contribui para a compreensão do hospital enquanto instituição, constituída a partir de
uma convenção cognitiva e social legitimada. “Quanto mais amplamente as instituições
abrigam as expectativas, mais elas assumem o controle das incertezas, com um efeito a
mais: o comportamento tende a conformar-se à matriz institucional.” (Douglas, p.
1998). Autoridades médica e institucional detêm o conhecimento e o local do
nascimento. Ambas, medicina e hospital, conferem identidade, operam classificações e
tomam decisões de vida e de morte.
A outra questão é de onde ele surge. O que nos leva ao fato essencial que para
começar a conhecê-lo, precisa-se conhecer sua genitora. A história de um recém-
nascido começa com a história de sua mãe. Nome, idade, onde vive, estado civil,
gestações anteriores, estado de saúde e possíveis doenças, e todos os dados necessários
para completar a Anamnese médica. A começar pelos dados sociais, vai terminar com o
exame físico completo da gestante e do feto. O que podemos chamar de 2 em 1 – dois
seres humanos em um só corpo, ou organismo. E esta conexão com o organismo
materno, o 2 em 1, passa a ser 1 por 1 com o nascimento. Além de exigir as adaptações
necessárias pelo pequeno ser imaturo para a vida fora do útero materno, o nascimento
pode levar a repercussões breves ou mesmo duradouras sobre o bebê, a depender das
condições de saúde da mãe e do parto. A complexidade deste vínculo mãe-recém-
nascido pode ser percebida através da seguinte passagem:
“A transição da vida intra-uterina para a extra-uterina exige muitas
mudanças bioquímicas e fisiológicas. Não mais dependente da
circulação materna através da placenta, a função pulmonar do recém-
nascido é ativada para a troca respiratória autossuficiente de oxigênio
e dióxido de carbono. O neonato também se torna dependente da
função do trato gastrointestinal para a absorção de alimento, da função
renal para a excreção de resíduos e manutenção da homeostase
química, da função hepática para a neutralização e excreção de
substâncias tóxicas e da função do sistema imunológico para proteção
contra infecções. Sem o apoio do sistema placentário materno, os
sistemas cardiovascular e endócrino neonatais também se adaptam à
função auto-suficiente. Muitos problemas especiais do recém-nascido
estão relacionados a inadaptação em virtude de asfixia, prematuridade,
anomalias congênitas ameaçadoras a vida ou efeitos adversos ao
parto.” (Nelson, p. 504, 1997)
Esta transição faz parte do chamado Período Neonatal, que são as primeiras
quatro semanas de vida após o nascimento. Para a Neonatologia5, este período é ainda
compreendido como um continuum entre as vidas fetal e neonatal, pois nele “o
crescimento e o desenvolvimento sofrem influências de fatores genéticos e de fatores
5Neonatologia: Esta é a área de conhecimento da Medicina pertencente a Pediatria e voltada para o
recém-nascido desde o momento do seu nascimento até 30 dias de vida, quando passa a ser considerado
um lactente e a ser cuidado pelo Pediatra. Considera-se que todo Neonatologista é um Pediatra, mas nem
todo Pediatra é um Neonatologista. Para ser um Neonatologista, exige-se que o Pediatra após sua
formação completa pela Residência Médica em Pediatria faça mais um ano de Residência Médica em
Neonatologia. (Nota da Autora).
ambientais tanto intra-uterinos como extra-uterinos, como influências sociais,
econômicas e culturais” (Nelson, p. 501, 1997).
NASCER PREMATURO
Na Maternidade do Hospital Público em questão, chegam tanto gestantes por
meios próprios, como encaminhadas por outros hospitais, ou ainda transferidas de
outros hospitais. Isto porque esta Maternidade é classificada como Maternidade de
Gestações de Alto Risco – destinada a gestações de risco, complicadas, cujas gestantes
possuem algum problema de saúde antes ou durante a gravidez e necessitam de
cuidados com maior complexidade, como UTI Neonatal, UTI para adultos e Banco de
Sangue. 6
Uma gestante que chega em trabalho de parto na Maternidade do Hospital é
atendida pelo médico obstetra em plantão. Durante a consulta, o obstetra procura
informações sobre a gravidez com a própria gestante e/ou familiares e acompanhantes,
através de dados escritos em seu cartão do pré-natal, e através do exame físico da
gestante. Quando necessário, os dados são complementadas com a realização de uma
ultrassonografia. É a conhecida e chamada “história da mãe”. O estado de saúde da
gestante e do feto e o tempo de sua gestação talvez sejam as questões mais importantes
neste momento. Se há uma emergência em curso, ou alguma necessidade de tratamento
urgente, e se estiver em risco ou vigência de trabalho de parto, a gestante será internada.
É solicitado então a abertura de um prontuário médico ao setor de internações do
hospital, e a gestante recebe a partir daí um diagnóstico como por exemplo “Gestante
em trabalho de parto.” Se a data provável do parto estiver ainda distante deste dia, será
6PORTARIA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE Nº 1.020, DE 29 DE MAIO DE 2013Art. 2º Para os fins
desta Portaria, serão consideradas as seguintes definiçõesII - gestação, parto e puerpério de risco:
situações nas quais a saúde da mulher apresenta complicações no seu estado de saúde por doenças
preexistentes ou intercorrências da gravidez no parto ou puerpério, geradas tanto por fatores orgânicos
quanto por fatores socioeconômicos e demográficos desfavoráveis;III - risco materno: risco avaliado a
partir das probabilidades de repercussões desfavoráveis no organismo da mulher em consequência das
condições identificadas no inciso II do "caput" deste artigo; IV - risco fetal: risco avaliado a partir das
condições de risco materno e da pesquisa de vitalidade, maturidade, desenvolvimento e crescimento fetal;
V - risco neonatal: risco avaliado a partir da conjugação de situações de riscos sociais e pessoais maternos
com as condições do recém-nascido, com maior risco de evolução desfavorável de sua saúde; VI -
encaminhamento responsável na gestação de alto risco: processo pelo qual a gestante de alto risco é
encaminhada a um serviço de referência, tendo o cuidado garantido no estabelecimento de origem até o
momento do encaminhamento, com o trânsito facilitado entre os serviços de saúde de forma a ter
assegurado o atendimento adequado.” Para a compreensão da estrutura e funcionamento de um hospital
Terciário ver Artigo 11 da mesma portaria.
internada como “Gestante em trabalho de parto prematuro”. Algumas vezes sérias e
complexas emergências chegam a Maternidade, quando resoluções rápidas são
necessárias, e a “história da mãe” se torna conhecida somente depois da resolução da
emergência.
As gestantes em trabalho de parto são levadas ao Centro Obstétrico (CO), setor
onde ocorrem os nascimentos, e onde se encontra a equipe obstétrica de plantão –
enfermeiras, técnicas de enfermagem, obstetras, neonatologistas, funcionários da
limpeza. O CO é uma das áreas de acesso mais restrito no hospital, e a entrada é
permitida apenas pela equipe interna, devendo-se atravessar várias portas e passar por
um vestiário para a troca de roupas (tira-se a roupa de uso comum e coloca-se o “pijama
do CO”). São duas enfermarias, uma para as gestantes e outra para as puérperas, e três
salas de parto, uma para partos normais e duas para partos cesarianas. Em cada uma
delas há, além da mesa do parto e todo um mobiliário com materiais específicos para os
partos hospitalares, um berço aquecido para o bebê que vai nascer.
Em todos os nascimentos, partos normais ou cesarianas, há um neonatologista
para dar a primeira assistência médica aos recém-nascidos, durante os seus primeiros
minutos de vida. Dados mundiais e nacionais consideram que cerca de 10% de todos os
recém-nascidos necessitam de algum tipo de assistência para começar a respirar logo
após o nascimento.
“Ao nascimento, cerca de um em cada 10 recém-nascidos
(RN) necessita de ajuda para iniciar a respiração efetiva; um
em cada 100 precisa de intubação traqueal; e 1-2 em cada
1.000 requer intubação acompanhada de massagem cardíaca
e/ou medicações, desde que a ventilação seja aplicada
adequadamente. A necessidade de procedimentos de
reanimação é maior quanto menor a idade gestacional e/ou
peso ao nascer.”(Reanimação do recém-nascido ≥34 semanas
em sala de parto: Diretrizes 2016 da Sociedade Brasileira de
Pediatria 26 de janeiro de 2016. www.sbp.com.br).
Assim, os bebês quando nascem são observados a todo tempo pelo
neonatologista. Os marcos principais de saúde e vitalidade são: estarem nascendo após
uma gestação de 9 meses, ou “de termo”; a mãe não estar com problemas de saúde
(previamente ou durante a gravidez); pesarem acima de 2.500g; e chorarem no primeiro
minuto de vida. Logo após seus primeiros 15 minutos de vida, o recém-nascido já
possui toda uma classificação diagnóstica feita pelo neonatologista, principalmente seu
Escore de Apgar (foto1). Que em conjunto com os demais dados, seu estado de saúde, e
principalmente sua idade gestacional e seu peso, vão direcionar o bebê para acompanhar
sua mãe logo depois do parto, ou ser encaminhado a UTI Neonatal.
Foto1: Escore de Apgar (Gomela, 2012)
Os recém-nascidos são encaminhados a UTI Neonatal principalmente por 2
motivos: por ser um recém-nascido prematuro que não tenha condições vitais para
sobreviver pela imaturidade orgânica, ou por ser um recém-nascido a termo com alguma
doença proveniente da gestação ou do parto. A prematuridade é definida pela OMS
como o nascimento de um bebê antes de 37 semanas de gestação. Atualmente, a
Federação Brasileira de Obstetrícia (Febrasgo) considera a forma mais fidedigna para o
cálculo da idade gestacional os dados oferecidos pela primeira ultrassonografia da
gestante realizada no primeiro trimestre. São vários cálculos e fórmulas para tentar se
chegar a uma idade gestacional o mais fidedigna possível.
“A definição da idade gestacional deve ser a mais acurada
possível. O uso da ultrassonografia no primeiro trimestre é o
padrão ouro. Quando a paciente foi submetida à fertilização
assistida, data da transferência é a mais precisa. Também se
pode aceitar a ultrassonografia de segundo trimestre (entre 18
e 20 semanas), já que, na maioria das vezes, é impossível
fazer um rastreamento universal no primeiro trimestre de
gestação com a ecografia. Se a data da última menstruação
(DUM) é conhecida, um ultrassom obtido antes das 13
semanas e 6 dias, com um comprimento cabeça-nádega que
corresponde a uma idade gestacional, dentro de cinco dias,
confirma a estimativa de data provável de parto (DPP). Por
outro lado, a DPP estimada deveria basear-se no ultrassom, se
a diferença entre as datas menstruais e do ultrassom é de seis
dias ou mais. Para ultrassons entre 16 e 22 semanas de
gestação, idade gestacional com base na biometria fetal, deve
ser menor que 10 dias para confirmar DUM e a DPP estimada
deve ser alterada somente se a diferença de idade gestacional
calculada é de onze dias ou mais. Se a DUM é desconhecida,
a idade gestacional deve ser baseada em ultrassom, de
preferência, no primeiro trimestre. Quando realizada por
profissionais treinados, o primeiro ultrassom é o mais preciso
e a gravidez não deve ser considerada com base em ultrassom
subsequente. A Biometria é baseada no diâmetro biparietal,
circunferência abdominal e comprimento do fêmur.
(http://www.febrasgo.org.br/site/?p=7703)
Na Neonatologia, além dos dados trazidos pela gestante e pelo obstetra que
acompanha o nascimento, utiliza-se o exame físico da recém-nascido para a
confirmação da sua idade gestacional. Através do Método Capurro e do Método New
Ballard são avaliados aspectos físicos e neuromusculares do bebê que indicam níveis
maturacionais. A cada sinal avaliado é dada uma pontuação, e ao final a soma dessa
pontuação significa um índice de maturidade, que equivale a idade gestacional em
semanas. Por exemplo, a pele. De uma pontuação de -1 (menos 1) até 5 (cinco), a pele
pode ter os seguintes aspectos: -1 = pegajosa, friável, transparente / 0 = gelatinosa,
vermelha, translúcida / 1 = lisa, rósea, veias visíveis / 2 = descamação superficial e/ou
erupção, poucas veias / 3 = áreas pálidas com sulcos, raras veias / 4 = apergaminhada,
fendas profundas, sem vasos / 5 = pele semelhante a couro, rachadura, enrugada.
Quanto menor a pontuação, menor a idade gestacional, mais prematuro é o bebê.
Foto 2: Método New Ballard. (Gomela, 2012)
Foto 3: Método New Ballard (Gomela, 2012).
Após o Escore de Apgar e a Idade Gestacional, o peso ao nascer, considerado
como a demonstração direta do crescimento intra-uterino, é o terceiro dado essencial
para a classificação do recém-nascido. Cabe aqui uma pequena demonstração
esquemática deste sistema classificatório, a partir dos gráficos com percentis que
agregam peso e idade gestacional:
Foto 4: Gráfico de crescimento para bebês prematuros (Gomela, 2012)
O gráfico acima, destinado aos prematuros - que nascem antes de 37 semanas –
classifica os recém-nascidos da seguinte forma: se ele nasceu com 28 semanas de idade
gestacional com peso de 800g, ele se encontra dentro da área branca. Logo, ele é um
recém-nascido prematuro Adequado para a Idade Gestacional (AIG). Se ele com 28
semanas nascesse com peso de 600g, estaria na área azul abaixo da área branca, o que o
classificaria como recém-nascido prematuro Pequeno para a Idade Gestacional (PIG). E
se o seu peso com 28 semanas estivesse acima de 1.600g, seria classificado como
Grande para a Idade Gestacional (GIG). Tais diferenças classificatórias que casam
peso com idade gestacional traduzem o quanto o meio intra-uterino favoreceu o seu
adequado ganho de peso do feto. Tal informação é importante principalmente para os
bebês PIGs. Seu peso abaixo do esperado reflete um crescimento intra-uterino restrito,
ou seja, suas trocas sanguíneas com o útero materno ocorreram com dificuldade durante
a maior parte do tempo em que foi gerado, por alguma alteração durante a gestação ou
por alguma doença materna que prejudicou o crescimento adequado do bebê dentro do
útero. São bebês que “apresentam maior risco de comprometimento da função motora
ou cognitiva, de déficits de atenção, de déficits de aprendizado específico e de
problemas escolares e comportamentais.” (Gomela, p. 203, 2012). Com isso, o sistema
classificatório dos recém-nascidos busca demonstrar ao neonatologista os bebês cujos
riscos possam ser amenizados, não apenas durante sua passagem pela UTI Neonatal,
mas também ao longo de seu crescimento e desenvolvimento durante a infância.
Através dele, um diagnóstico é feito e a partir daí condutas serão decididas, o que vai
influenciar de alguma maneira seu tempo de permanência na UTI Neonatal.
Como nascer antes de 37 semanas de gestação é nascer prematuro, sempre me
chamou a atenção o fato de o recém-nascido prematuro, ou seja, a prematuridade,
possuir um código próprio no CID-107, que é o P07
8. Logo, a prematuridade é
considerada uma doença. A questão que surge é: seria a imaturidade, a incompletude do
tempo para uma maturidade determinada como “normal”, uma “anormalidade”?
7CID 10: Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida
como Classificação Internacional de Doenças – CID 10) é publicada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) e visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A CID 10
fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas,
aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças. A cada
estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código CID
10.(http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm) 8Transtornos relacionados com a gestação de curta duração e peso baixo ao nascer não classificados em
outra parte.
O bebê prematuro quando nasce recebe todos os cuidados necessários pelo
Neonatologista, com uma complexidade maior por ser prematuro, e será encaminhado a
UTI Neonatal se demonstrar sinais de incapacidade de adaptação à vida fora do útero
materno. Seu nome estará vinculado ao nome da mãe, e será, no prontuário médico e
para as equipes que lhe atenderão, o “RN de Maria da Silva”, por exemplo. Assim, o
recém-nascido possui, antes mesmo de ter oficialmente um nome registrado em cartório,
um prontuário hospitalar e um diagnóstico médico.
Será também pesquisado pelas equipes médicas, obstetras e neonatologistas, o
por quê da prematuridade. Primeiramente quem é a mãe, sua história de vida, de saúde e
de doenças, e sua história obstétrica – gestações prévias, abortos e partos prematuros
prévios. O que causou o nascimento do bebê antes dos 9 meses de gravidez, ou 40
semanas de gestação? Existe toda uma literatura médica tanto obstétrica como Neonatal,
além de pesquisas e estudos locais, regionais e nacionais, prospectivos e retrospectivos,
destinadas a esta questão. Divididos em fatores causais fisiopatológicos (doenças
durante a gestação ou maternas, como Hipertensão e Pré-Eclâmpsia, por exemplo) e
fatores causais socioeconômicos (como percebido na descrição acima das estatísticas
sobre a prematuridade), contribuem para o entendimento e compreensão sobre cada
bebê em acompanhamento na UTI Neonatal.
A UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA NEONATAL
Sob os cuidados permanentes do médico neonatologista e de uma equipe de
enfermagem e técnicos de enfermagem, o prematuro é preparado para ser levado para a
UTI Neonatal, que é localizada um andar abaixo do centro obstétrico. Antes, o
neonatologista conversa com a mãe sobre o estado de saúde de seu filho e o por quê da
necessidade de ele ser levado para a UTI Neonatal. Porém, em muitas situações
emergenciais, nas quais a gestante apresenta um quadro clínico grave e necessitou de
uma cesariana de urgência, ou ainda quando o bebê nasce muito grave e necessita de
reanimação cardiopulmonar, mãe e bebê não são apresentados um ao outro. Só depois
do período necessário de recuperação da mãe ela irá até a UTI neonatal conhecer o seu
bebê. Assim, o recém-nascido é transferido do berço aquecido para a incubadora de
transporte, esta e todos os aparatos necessários para o bebê, como bala de oxigênio,
soros, etc..., e serão levados pela equipe até o elevador. Esta transferência chama a
atenção de todos, funcionários ou não do hospital. A incubadora e seu conteúdo,
caminhando sobre rodas pelo hospital, atraem muitos olhares. Geralmente os olhos da
mãe, ainda na cama do parto, acompanham todo o movimento.
O acesso a UTI Neonatal se dá através de uma única entrada, uma porta dupla e
uma fechadura eletrônica, ao redor da qual existe uma placa identificando o local como
UTI. Para a porta ser aberta, quem está do lado de fora deve se identificar pelo interfone
para que a porta seja aberta por dentro. Há um pequeno hall na entrada, com uma pia,
saboneteira e uma lixeira de pedal, com notificações na parede para a adequada e
necessária lavagem de mãos por aquele que entra no setor. Logo após há uma segunda
porta dupla, sem fechaduras porém permanentemente fechada. A seguir há um corredor
de 2 metros de largura e aproximadamente 7 metros de comprimento, no qual se
percebe várias portas de entrada e saída – conforto médico, conforto de enfermagem,
pequena sala da coordenação de enfermagem e área de expurgo. Seguindo por este
corredor chega-se então ao amplo salão que é a UTI Neonatal. Amplo, claro e bem
iluminado pelas lâmpadas fluorescentes, possui as paredes pintadas com as cores branco
e lilás e com alguns desenhos infantis coloridos de animais e flores, tendo ainda uma
numeração de 1 a 8 – no caso, espaço destinado a 8 leitos, ou incubadoras. Porém, este
número sempre é ultrapassado, pois a demanda de bebês que precisam de UTI é sempre
maior. O espaço já recebeu 18 bebês internados.
Cada espaço destinado a um leito, ou seja, a um paciente recém-nascido, possui
em torno de quatro a seis metros quadrados (reduzido de forma importante nos dias de
maior lotação), e contém todos os equipamentos necessários a um bebê prematuro, o
que é chamado de leito de terapia intensiva neonatal: monitor multiparâmetros, bombas
de infusão de medicação, aparelho de ventilação mecânica, todos ligados por fios a
tomadas nas paredes por trás da incubadora aquecida. Há ainda nesta parede torneiras
para as saídas de oxigênio e ar comprimido, além de aspiradores a vácuo. Para cada
incubadora existe uma cadeira tipo poltrana acolchoada destinada a mãe do bebê.
As equipes de profissionais que trabalham na UTI Neonatal são formadas por
médicos neonatologistas, enfermeiras, técnicas de enfermagem, fisioterapeutas e
fonoaudiólogas. A estes profissionais cabem dar a assistência técnica necessária aos
prematuros internados na unidade e os cuidados para a manutenção de sua vida, e para
isso são utilizados inúmeros dispositivos, materiais, equipamentos, e objetos que o
ajudem a fazer sua transição entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina. Ao tentar
substituir o útero materno, a tecnologia neonatal visa oferecer ao prematuro as
condições para que ele possa continuar a se desenvolver e crescer até que esteja pronto
para a vida fora da UTI. E é aqui que começam minhas observações no campo empírico.
No cuidado, nos objetos e nos corpos.
Foto 7:https://www.facebook.com/photo
MINI-CORPOS, MULTI-COISAS, CUIDADOS MANUAIS – QUESTÕES E
PROPOSTAS INICIAIS.
Foto 8:http://extra.globo.com/incoming/4474311-7e1-a1a/w640h360-PROP/bebe-1.jp
“Recém-nascido prematuro, em incubadora aquecida e monitorização contínua,
acesso venoso tipo PICC em membro inferior esquerdo, sonda oro-gástrica, confortável
em ventilação mecânica. Hipoativo, reativo ao manuseio, hipocorado (+/4+), hidratado,
acianótico, anictérico, pulsos palpáveis e perfusão capilar satisfatória. Ausculta
pulmonar com roncos difusos em ambos os pulmões, ausculta cardíaca com ritmo
regular, sem sopros. Abdome globoso, depressível, indolor, sem massas ou
visceromegalias. Genitália e membros sem anormalidades.”9
A citação acima é um exemplo de descrição do exame físico de um prematuro
por um médico neonatologista em seu dia-a-dia. Um corpo literalmente descrito pela
linguagem médica, olhado e examinado por aquele que detém o conhecimento do corpo
do prematuro. Na articulação entre a clínica e a linguagem reconhecemos uma “ciência
positiva”, podendo-se assim pronunciar sobre o indivíduo um discurso com estrutura
científica. (Foucault,1977). Objetificado o olhar e tecnificado o exame, a “neutralidade
do pesquisador é transportada para a prática clínica como necessária ao desempenho da
função médica.” (Bastos, p.69, 2006)
Para Bruno Latour, “qualquer conversa do corpo parece necessariamente
conduzir à fisiologia e posteriormente à medicina” (Latour, p.57, 2007). Neste artigo,
propõe que o antigo dualismo entre um corpo fisiológico em confronto com um outro
corpo fenomenológico pode ser mudado a partir de uma mudança na concepção de
ciência e se levarmos a sério o papel articulador das disciplinas.
A conjunção medicina-antropologia oferece novos territórios conceituais e
analíticos ao se observar um prematuro. Em 1934, Marcel Mauss apresenta uma
definição de corpo reflexo do pensamento científico de seu tempo, clássico exemplo da
dicotomia natureza x cultura: “O corpo é o primeiro e mais natural instrumento do
homem”; eainda, “o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio
técnico do homem, é seu corpo.” (Mauss, p.407, 2003). Neste contexto, o prematuro
representaria um objeto técnico ainda em construção. Porém, de lá pra cá muita coisa
mudou.
Inicio uma tentativa de descrição da observação que faço da seguinte forma:
observo um recém-nascido imaturo, um mini-corpo físico no qual a vida depende de
multi-objetos incorporados a ele, num momento presente de dependência, incubado em
9Exemplo descrito pela autora.
maturação, a espera de um futuro de independência deste universo hospitalar.
Institucionalizado por ter nascido imaturo e necessitar da medicina para sobreviver. Sua
história de vida começou assim. O quanto esta experiência de vida influenciará sua vida
futura abre inúmeras possibilidades de pesquisa e de estudos. Uma ampla bibliografia
em neurologia do desenvolvimento e em psicologia infantil demonstram pesquisas
sobre a prematuridade e suas repercussões, porém ainda sem muita clareza destes
processos. A passagem a seguir demonstra o quanto representa o nascimento de um
prematuro para a ciência médica frente a fenômenos ainda desconhecidos:
“As crianças nascidas pré-termo constituem, na atualidade,
um grande desafio para os especialistas que trabalham em
programas de acompanhamento de crianças de risco.
Seguindo o processo de conhecimento dos fatores que
envolvem a passagem da vida intra-uterina para a extra-
uterina, são necessários estudos bem planejados para
averiguar o comportamento de crianças nascidas pré-termo,
pelo fato de o nascimento antecipado não ser um evento
normal.” (Ribeiro, p. 212, 2006)
Aqui ressurge a questão patológica e anormal do recém-nascido prematuro. É
inegável sua imaturidade física, orgânica, corpórea, que o impossibilita de sobreviver
fora do útero materno, e que por ter nascido antes do tempo, fora do universo da UTI
Neonatal. Porém, por que o prematuro não é normal? Em “O Normal e o Patológico”
(Canguilhem, 2009), Canguilhem demonstra a definição de anormal em função de suas
características, específicas ou genéricas, classificação esta que coube à ciência médica
autoridade diagnóstica sobre o corpo, por estar respaldada pelo contexto disciplinatório
e normalizante que acompanhou o processo de formação das sociedades industriais
capitalistas, a partir do século XIX (Foucault, 1970).
Ao se observar a incubadora onde está o prematuro, chama a atenção a
quantidade de objetos agregados ao seu corpo. São os dispositivos técnicos descritos,
que chegam até ele através da assistência dada pela equipe multidisciplinar. Sondas de
silicone, cateteres com agulhas e plásticos, tubos plásticos, fitas colantes como
esparadrapos e microporos anexam na pele e penetram através da pele do bebê materias,
através dos quais passam substâncias, medicamentos, sangue e componentes, e soros
necessários para a manutenção da hemodinâmica da vida do bebê prematuro. Ficam
agregados, colados, e passam através e por dentro de orifícios, dentro dos vasos
sanguíneos, e de cavidades ou vísceras, muitos deles permanecendo por dias e semanas
seguidas. Fluxos, infusões, líquidos sanguíneos, gases sob pressões, que saem e entram
por fios, cabos e circuitos para dentro e para fora da incubadora aquecida, conectados
aos vários aparelhos ao redor da incubadora. O prematuro seria então um mini-corpo
doente, incapaz, dependente de coisas.
Ver tudo isso é ver uma relação de intimidade complexa entre o animado e os
inanimados, orgânicos e inorgânicos, na qual diferenciações não podem ser feitas, nem
separações, pois corpo e objeto se tornam uma só estrutura através da qual a vida é
mantida. Objetos constitutivos e constituintes do corpo. Onde termina o humano e
começa a máquina? E onde está a fronteira? Esta relação complexa entre corpo e objetos
na área médica hospitalar pode oferecer possibilidades interessantes de análise sob o
ponto de vista da cultura material.
Neste sentido, podemos considerar que na UTI Neonatal, os mini-corpos de
prematuros representam processos vitais em formação, nos quais os fluxos devem ser
seguidos e os caminhos traçados através dos quais a forma é gerada, numa
permeabilidade com o mundo das coisas No decorrer dos dias, é neste ambiente que
o prematuro passa por mudanças e vai sendo continuamente formado: aumenta de peso
e tamanho, a pele vai se tornando mais firme, e são mudanças ininterruptas, num
crescente de formação, e numa relação complexa entre o animado e o inanimado, Ele
respira, e quando não respira o aparelho de ventilação respira por ele, com variações
entre movimento e repouso. Ele dorme, e ao dormir uma nutrição percorre suas veias e
dilui-se em sua corrente sanguinea para nutri-lo, com variações entre velocidade e
lentidão de fluxos. Vemos diariamente o prematuro passando por todos os processos de
células e moléculas em formação, síntese e crescimento, incorporação, no qual o ganho
de peso, o aumento de tamanho e o desprendimento progressivo dos equipamentos e
materiais vão dando cada vez mais liberdade ao mini-corpo, até ele conseguir ir, após
dias ou até mesmo meses, receber a tão esperada “alta hospitalar”.
E afinal, onde está sua mãe? Enquanto permanecem internadas, começam a
aparecer na UTI Neonatal a partir do momento que possuem condições físicas para
caminharem. São recebidas principalmente pela equipe de enfermagem, e orientadas
sobre as normas do setor, sendo a principal delas a lavagem de mãos. Suas primeiras
visitas são vagarosas, observadoras e silenciosas. É estimulado pela equipe o primeiro
contato com seu bebê através das portinhas da incubadora, através da frase que ouço
com frequência durante o plantão: “Mãe, você pode tocar no seu bebê, é só abrir a porta
da incubadora.” Com o tempo vão se acostumando com as rotinas da UTI, suas histórias
de vida vão se tornando conhecidas e passam a fazer parte da rotina e da equipe.
E são inúmeras as histórias de vida que estão por trás de cada bebê em sua
incubadora. Mães adolescentes, mães com alguma doença em curso, mães que não
sabiam que estavam grávidas, mães dependentes químicas, mães moradoras de rua,
mães desconhecidas... Como saber o que elas pensam sobre tudo isso? Esta talvez seja
uma das perguntas que mais estimula este trabalho.
Foto 9: https://www.facebook.com/photo
São designados como “Cuidados ao recém-nascido” todos os contatos feitos pela
equipe de enfermeiros e técnicos de enfermagem com o prematuro. E na dinâmica de
trabalho na unidade, cada assistência dada a cada bebê chega até ele através das mãos
dos profissionais, e elas se destacam como o veículo principal através do qual os
cuidados acontecem: arrumação do bebê na incubadora, exame físico, higiene, contato,
afeto. Apenas elas entram na incubadora. Mãos nos mini-corpos, pele com pele, multi-
coisas. Assim, o Cuidado inerentemente demonstra uma relação entre um e um outro,
interação. Latour propõe novos discursos sobre o corpo a partir de proposições ao invés
de afirmações, levando em consideração que ter um corpo, para além de essência e
substância, é aprender a ser “afec-tado”, é ter uma “interface que vai ficando cada vez
mais descritível quando aprende a ser afetado (movido, posto em movimento) por
muitos elementos.” (Latour, p.40, 2007). Ao prematuro é essencial que ele seja afetado,
ele estar vivo depende disso. Se o corpo é “aquilo que deixa uma trajetória dinâmica
através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo”
(Latour, p.40, 2007), ao prematuro é exigido muito precocemente sua exposição a
sentidos, dores e sensações ainda não dimensionadas pela ciência. Pela sua imaturidade
cerebral e somática, cognitiva e motora, o vasto território desconhecido da memória
celular nos impede ainda de saber por completo como é queuma pessoa é feita, e o que
leva dentro de si. Indiscutível, porém, é que pesquisar recém-nascidos nos faz observar
pessoas, e pensar que cada uma delas já foi um recém-nascido. E que hoje são pessoas
porque no princípio de tudo, houve uma outra pessoa. Pessoas trazem pessoas, pessoas
fazem pessoas, na essencialidade relacional do cuidado através das coisas.
Por fim, gostaria deretomar a notícia divulgada na internet sobre a bebê alemã
mais prematra do mundo, que recebeu alta após cinco meses e meio de internação. O
que podemos dizer sobre o significado da gestação e do nascimento em nossa
sociedade? Podemos dimensionar os investimentos científicos e tecnológicos feitos
sobre um mini-corpo de 460 gramas e de 21 semanas de embriogênese? Como um
“ciborg”, foi mantido como “um organismo tecnicamente suplementado” que pôde
viver prematuramente fora do útero materno “como um sistema homeostático
inconsciente” (Preciado, p.30, 2008). Já questionava Foucault em “Microfísica do
Poder” (Foucault, 1970): “Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e
suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa?” (Foucault, p.
84, 1970).
REFERÊNCIAS
BASTOS, L.A.M..Corpo e Subjetividade na Medicina: Impasses e Paradoxos. Rio de
janeiro: Editora UFRJ, 2006.
CANGUILHEM, G.. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 2009.
CASTRO, E.V.. Xamanismo Transversal. In: QUEIROZ, R.C. & NOBRE, R. F. (org.).
Levi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
DOUGLAS, M.. Como as instituições pensam. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1998.
FOUCAULT, M.. Microfísica do poder. Rio de janeiro: Editora Graal, 1970.
FOUCAULT, M.. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense-
Universitária, 1977.
GOMELLA, T.L..Neonatologia. Tratamento, Procedimentos, Problemas no Plantão,
Doenças e Drogas. Rio de janeiro: Editora Revinter, 2012.
LANSKY, S..(org.). Pesquisa Nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e
avaliação da assistência à gestante e ao recém-nascido.Cad. Saúde Pública, Rio de
Janeiro, 30 Sup:S192-S207, 2014.
LATOUR, B.. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência.
In: NUNES, J.A.& ROQUE, R. (orgs.). Objetos impuros. Experiências em estudos
sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2007, pp. 40-61.
MAUSS, M.. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
NELSON, W.E., BEHRMAN, R.E., KLIEGMAN, R.M.& ARVIN, A.M.. Tratado de
Pediatria. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1997.
PRECIADO, B.. Testo Yonqui. Madri: Editora Espasa Calpe, 2008.
RIBEIRO, M.V.L.M. & GONÇALVES, V.M.G..Neurologia do Desenvolvimento da
Criança. Rio de janeiro, Editora Revinter, 2006.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/0104manual_assistencia.pdf
http://extra.globo.com/incoming/4474311-7e1-a1a/w640h360-PROP/bebe-1.jpg
http://www.dn.pt/globo/europa/interior/alema-deu-a-luz-bebe-mais-prematuro-e-
pequeno-do-mundo-1836629.html
http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm
http://www.sbp.com.br