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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO RICHARLLS MARTINS DA SILVA CONSTRUINDO UM PROCESSO DE ESCOLHAS MESMO QUANDO “ESCOLHER” NÃO É UM VERBO DISPONÍVEL Orientador: Profº Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho RIO DE JANEIRO 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO RICHARLLS …newpsi.bvs-psi.org.br/tcc/589.pdf · de estágio intitulado “Construindo um Processo de ... objetivo de realizar um trabalho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RICHARLLS MARTINS DA SILVA

CONSTRUINDO UM PROCESSO DE ESCOLHAS MESMO QUANDO “ESCOLHER” NÃO É UM VERBO DISPONÍVEL

Orientador: Profº Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

RIO DE JANEIRO

2007

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CONSTRUINDO UM PROCESSO DE ESCOLHAS MESMO QUANDO

“ESCOLHER” NÃO É UM VERBO DISPONÍVEL

RESUMO

Este trabalho possui como objetivo principal analisar as experiências de estágio em Orientação Vocacional, oferecido pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no projeto de extensão Curso Pré Vestibular de Nova Iguaçu. A metodologia adotada será a descrição da especificidade do trabalho e as reflexões obtidas a partir desta intervenção. Os eixos temáticos analisados serão as implicações éticas e os compromissos políticos da prática psicológica, no referido projeto de prática extensionista. Para isso problematizaremos a mistificação da escolha, as noções de vocação e dom, como conceitos sócio-históricos que são construídos, - e, portanto, não naturais. Num segundo momento, pretende-se refletir sobre a prática da extensão universitária para os graduandos de Psicologia da UFRJ e pensar a indissociabilidade - como um projeto político - entre o ensino, a pesquisa e a extensão na formação do psicólogo, questionando de que forma esta experiência afeta estes estudantes, reorganizando sentidos fechados, elitistas e estereotipados da Psicologia, enquanto prática profissional. Como último objetivo de análise levanta-se a possibilidade de entender a prática de Orientação Vocacional como um mecanismo de promoção de cidadania, numa perspectiva de valorização da autonomia do sujeito, lançando luz ao processo de escolhas que cotidianamente atravessa e produz diferentes subjetividades. Desta forma aposta-se em mecanismos que possibilitem a produção de novos olhares, olhares possíveis, menos distanciados do real, do outro e de si, que promovam subjetividades em uma cultura de direitos humanos.

Palavras-chave: Psicologia – Orientação Vocacional- Cidadania

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INSTITUTO DE PSICOLOGIA

À Associação Brasileira de Ensino em Psicologia Indico, para fins de inscrição de trabalho no prêmio Silvia Lane, o relatório de estágio intitulado “Construindo um Processo de Escolhas Mesmo quando Escolher não é um Verbo Disponível”, cujo autor, Richarlls Martins da Silva, produziu sob minha orientação em estágio de extensão realizado na Divisão Integração Universidade-Comunidade, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ressalto a qualidade das análises teóricas e do potencial de intervenção crítica do aluno, inter-relacionando ensino, pesquisa e extensão universitária à prática da Psicologia, enquanto ciência e profissão: características necessárias para a construção de uma psicologia comprometida com a realidade e com as urgências da sociedade brasileira. As experiências e pesquisas que subsidiam este relatório foram apresentadas em diferentes congressos e seminários no Brasil, como o III Congresso de Extensão Universitária, na UFRJ, Rio de Janeiro; III Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, UFSC, Florianópolis; II Simpósio de Juventude Brasileira, PUC-RS, Porto Alegre, e compõe a programação oficial do V Congresso Norte Nordeste de Psicologia, UFAL, Maceió, em maio, próximo. Desta forma, pelos motivos descritos acima, atesto este parecer, indicando a apresentação do referido relatório de estágio. Rio de Janeiro, 30 de março de 2007.

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho CRP 05/26077 Professor Adjunto – Matr. SIAPE 2320770 Av. Pasteur, 250 – Pavilhão Nilton Campos Campus Praia Vermelha CEP: 22290-240 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil E-mail: [email protected]

UNIVERSIDADE FEDERAL

DO RIO DE JANEIRO u f r j

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 5

1- APRESENTAÇÃO DO LOCAL E CONDIÇÕES NA QUAL O ESTÁGIO ACONTECEU, 6

2- DESCRIÇÃO DO TRABALHO, 8

3- APRECIAÇÃO SOBRE O DESENROLAR DAS ATIVIDADES E DOS DESAFIOS

ENFRENTADOS, 11

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 17

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 20

MEMORIAL, 21

5

INTRODUÇÃO

A compreensão de que a prática psicológica produz sujeitos e estes sujeitos

interferem nos espaços sociais, nos faz refletir sobre que sujeitos estão sendo produzidos

através de nossa atuação profissional. A reflexão que se faz presente é até que ponto nossa

praxis está sendo um mecanismo de cidadania e as emergências sociais estão afetando

nossa atuação (e a mesma sendo afetada reciprocamente).

O entendimento de que violência não é sinônimo de crime, mas compõe um conjunto

muito mais complexo, implicando em atos que promovam rupturas por meio da força,

produzindo modos de ser indivíduo, nos permite associar que grande parte da juventude

brasileira vive hoje em situação de extrema violência e não garantia de direito à vida plena.

A impossibilidade de escolher uma profissão, de acesso e permanência à universidade são

atos de violência tão fortes, no nível simbólico, porém não eclodem, ou se fazem presente

de forma tímida nas discussões do universo psi.

Quando não existe a possibilidade de escolher, como construir um processo de

escolha? Quando não se pode escolher (ou quando se é produzido para acreditar nesta

“verdade”), a situação de violência simbólica é tão latente e com implicações tão fortes

quanto à violência física. Contudo torna-se imperceptível ao senso comum, e, muitas vezes,

também não percebido por nós, profissionais da Psicologia. Nossa concepção teórica fez

do trabalho de Orientação Vocacional, tema deste relatório de estágio, um mecanismo de

superação a violência e um compromisso ético, profissional e social da Psicologia, numa

perspectiva de Análise do Vocacional.

6

Este relatório tem esta finalidade, questionar nossa prática, através da experiência de

estágio em Orientação Vocacional, na temática de Análise do Vocacional, subsidiado pelas

referenciais teóricos da Análise Institucional. Demonstraremos como a prática de

Orientação Vocacional pode ser um mecanismo de superação à violência juvenil, em

situação de vulnerabilidade social, que vive fora dos grandes centros urbanos. Acreditamos

que a Psicologia, enquanto prática profissional pode afetar a realidade social, desta camada

jovem, através do trabalho de Orientação Vocacional, numa perspectiva cidadã, que

contextualize o seu papel profissional na sociedade. E, ao mesmo tempo, a Psicologia é

afetada por este mesmo social, garantindo a transdisciplinaridade almejada por

determinadas correntes, embora não-hegemônicas, do pensamento contemporâneo.

1. APRESENTAÇÃO DO LOCAL E CONDIÇÕES NA QUAL O ESTÁGIO ACONTECEU

O estágio de Orientação Vocacional foi pensado para ser a participação da

Psicologia no projeto Curso Pré Vestibular de Nova Iguaçu-CPV NI, coordenado pela Pró

Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro- PR5 UFRJ, em parceria

com a Prefeitura do município de Nova Iguaçu. A equipe de Orientação Vocacional,

inserida no PROIPADI – Programa Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão em

Avaliação, Diagnóstico e Intervenção Psicológica – esteve presente neste projeto com o

objetivo de realizar um trabalho de orientação profissional, direcionada aos alunos do CPV

NI.

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O CPV NI ministrava suas atividades em dois colégios municipais, na cidade de

Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. O trabalho de Orientação

Vocacional ocorreu nas duas unidades de funcionamento do projeto, nos colégios Dr. Ruy

Berçot de Mattos e Monteiro Lobato. Minha atuação em campo ocorreu nas três turmas do

Colégio Ruy Berçot, com os aproximadamente 150 alunos, desta unidade.

Apesar do apoio institucional da prefeitura municipal, que foi a financiadora do

projeto, as condições físicas do colégio eram precárias. As salas de aula eram quentes, não

possuíam janelas; as paredes eram descontínuas, não chagavam ao teto, ou seja, as falas dos

professores se confundiam entre as turmas; a iluminação era insuficiente e os banheiros

estavam em mau estado de conservação.

As atividades de Orientação Vocacional aconteciam todas as terças-feiras, das

18:30h às 22:30h, nesta unidade. O trabalho era desenvolvido nas três turmas, com duração

de 1 hora e 15 minutos, em cada turma, referente ao tempo de aula. Logo no primeiro dia,

ao apresentar o trabalho, percebemos que não seria possível realizá-lo nas próprias salas de

aula das turmas, em razão de não existir a menor privacidade e respeito à individualidade

das falas, em função da arquitetura do colégio. Neste sentido, iniciamos as entrevistas

individuais e os trabalhos de grupo (dinâmicas e as aplicações dos testes psicológicos) em

uma sala do outro lado do corredor, que não possuía maçaneta, contudo garantia uma

privacidade e respeito maior ao grupo.

Nesta conjuntura aconteceram as atividades de estágio no projeto de extensão

citado, sendo importante caracterizar que o município no qual o estágio se realizou localiza-

se na região metropolitana do Rio de Janeiro, mas especificamente na Baixada Fluminense,

área com poucos acessos a bens culturais, lazer, infra-estrutura social. Assim como, o

bairro no qual se situa o colégio, onde as atividades ocorreram localiza-se fora do centro

urbano, assolado por enchentes constantemente.

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2. DESCRIÇÃO DO TRABALHO

O trabalho de Orientação Vocacional, desde o inicio, foi idealizado e embasado em

uma abordagem crítica, no qual a nossa prática e a atuação, enquanto psicólogos em

formação, eram questionadas a todo o momento, numa proposta de Análise do Vocacional.

A intervenção da Psicologia inseriu-se no projeto CPV NI com a proposta de um modo de

intervenção coletivo que possibilitasse a criação de um campo de problematização das

questões que atravessam a escolha profissional na atualidade, construindo dispositivos

comprometidos com a afirmação da potência de vida. Este foi o diferencial do trabalho

realizado: considerar a complexidade a respeito deste campo de atuação do psicólogo. O

entendimento de que nossa função não se restringia a facilitar a escolha da profissão, mas

sim, nos apropriar das dúvidas e expectativas relacionadas a este momento subjetivo do

aluno, e apartir daí pôr em análise o processo de escolhas, foi o norteador de nosso

trabalho.

Habitualmente intervir como psicólogo pressupõe analisar um território individual,

interiorizado, ou no máximo, circunscrito a relações interpessoais, transferindo as

produções políticas, sociais e econômicas ao campo de estudos de um outro especialista. A

tentativa de percorrer outros caminhos e recusar este destino, lançando mão de uma caixa

de ferramentas teórico-conceitual, estruturou o nosso desafio neste projeto.

Uma vez que nossa proposta de intervenção não se restringia a determinar ou

indicar uma profissão, de não fazer do trabalho um determinismo profissional, mas de ir

além, problematizando formas de resistências e reflexões sociais, levando estas

problemáticas para dentro dos grupos de orientação com os alunos. E, também, através das

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práticas cotidianas, institucionais e dos posicionamentos políticos, nas reuniões de equipe

com os demais estagiários, dos outros cursos de graduação, que compunham a equipe

interdisciplinar, da qual a Psicologia fazia parte. Desta forma a Psicologia, através do

trabalho de Orientação Vocacional, pôde pensar seu papel e atuação dentro deste projeto

maior, que tinha como objetivos principais facilitar o acesso e permanência de estudantes

de origem popular nas universidades públicas e a promoção da cidadania.

A apropriação de que estávamos no lugar e no projeto certo, mesmo sendo o

diferente, era embasada no conceito de que a atuação da Psicologia é uma prática política,

uma vez que entendemos que toda ação humana é política, pois ou conserva ou transforma,

como nos ensinou a professora Silvia Lane. Estávamos ali querendo transformar as visões

estereotipadas da Psicologia, nossa formação acadêmica elitizada, sem preocupação social e

a nós mesmos. O fato de não sermos professores, de não professar nenhuma matéria que

garantiria a entrada daqueles vestibulandos na universidade, e ainda assim, estarmos no

projeto e termos nos apropriado dele, como campo de atuação do psicólogo, foi uma

experiência singular na formação educacional dos estudantes de Psicologia que tiveram a

oportunidade de participar deste estágio.

Em campo, com os alunos, nosso trabalho consistia na singularidade de se trabalhar

com uma demanda espontânea, ou seja, os alunos não eram obrigados a participar da

proposta. Cada uma das três turmas possuía 50 alunos, em média; e por se tratar, também,

de um trabalho clínico, tínhamos como limitação não poder trabalhar com a turma inteira,

em um primeiro momento, e decidimos formar grupos de 15 alunos, e ao término do

trabalho com este grupo, trabalharíamos com outros 15 alunos, até contemplar o número de

interessados por turma.

Na apresentação do projeto aos estudantes, a aceitação foi inicial e tínhamos

praticamente a totalidade da turma querendo participar do projeto. O trabalho de pensar as

escolhas começou neste momento, quando delegamos aos alunos que escolhessem a melhor

forma de decidir quem seriam os 15 primeiros a iniciar o trabalho. A escolha deles foi para

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que fosse realizado um sorteio, e, assim, iniciara-se o trabalho de problematização de suas

escolhas.

A proposta consistiria, inicialmente, na realização de entrevistas individuais semi-

estruturadas e abertas, com os alunos interessados em participar dos grupos de orientação

vocacional. Após a realização das entrevistas, iniciaram os trabalhos específicos com os

grupos, nos quais realizamos aplicações de testes psicométricos e de dinâmicas de grupo,

reflexões através de letras de música, pesquisa sobre profissões, palestras e debates com

alunos convidados de diferentes cursos da UFRJ.

Ao término dos grupos de orientação, foram confeccionados laudos psicológicos,

aos moldes da Resolução 007/2003, do Conselho Federal de Psicologia, que foram

assinados pelo estagiário e pelo professor orientador. O último contato com os orientados,

que participaram do trabalho consistiu em uma entrevista individual final devolutiva, na

qual cada etapa do trabalho foi explicada, e onde entregamos e lemos junto aos mesmos o

laudo psicológico, tendo sempre como referencial, que o laudo era um ponto inicial de

inúmeras possibilidades e não um documento fechado em si.

Assim nossas atividades estiveram deste o primeiro momento para além de um

trabalho de orientar profissões; as inúmeras questões com as quais tivemos que conviver

perpassaram as aplicações e implicações que estavam destinadas a um estágio de

Orientação Vocacional.

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3. APRECIAÇÃO SOBRE O DESENROLAR DAS ATIVIDADES E DOS DESAFIOS ENFRENTADOS

A atuação da equipe de Análise Vocacional, desde o princípio, foi marcada pelo

desafio de pensar algo novo e levar a Psicologia a afetar a realidade social (e vice-versa).

As atividades de campo ocorreram em um colégio, com péssima infra-estrutura, que refletia

o contexto social, no qual esta juventude estava inserida. O reconhecimento da existência

de diversas juventudes no país compõe um complexo mosaico de experiências que

precisam ser valorizadas no sentido de promover os direitos dos jovens, articulando a busca

da igualdade individual de condições com a valorização da diferença.

Na realidade brasileira convive-se com uma profunda desigualdade social que

encontra origem num processo de organização que gerou um abismo entre ricos e pobres,

homens e mulheres, negros e brancos, entre outros, revelando a dificuldade em garantir

equidade, justiça social, educação, trabalho, cultura, acessibilidade, saúde, esporte, lazer, de

maneira mais ampla: qualidade de vida e cidadania. No Brasil, uma parcela significativa

dos jovens tem sido submetida a diferentes situações de violação de diretos fundamentais,

em situação de vulnerabilidade à violência e sua conseqüente não garantia de direito à vida.

Aliado ao medo do desemprego e das preocupações com o mundo do trabalho

(pode-se citar, a escolha da profissão), segurança e violência destacam-se como os

problemas que mais preocupam os jovens no atual contexto, nas diferentes regiões do país.

Estes dados foram cartografados nas discussões dos grupos e eclodiam nas entrevistas

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individuais. O medo com relação ao futuro profissional e o complexo quadro de violência

social eram citados como as maiores preocupações dos mesmos.

As múltiplas formas de violência, desde a física, letal, à simbólica, preconizadas por

Bourdieu (1989), vulnerabilizam principalmente a juventude, sendo importante caracterizar

dentro desta faixa etária os sujeitos mais prejudicados por ela. Devem ser considerados os

espaços e territoridade onde estes jovens estão inseridos; a exclusão física e geográfica; os

indicadores sócio-econômicos, culturais e educacionais dos mesmos; bem como os recortes

por gênero e raça. Dentro destes recortes, na periferia, voltando-se para os jovens pobres, as

jovens mulheres, a juventude negra, entre outros, encontram-se as parcelas juvenis com

maior necessidade e urgência de políticas públicas, que assegurem o cumprimento dos

direitos humanos, mais elementares.

Nesta conjuntura estava o público de nosso trabalho, composta pela juventude da

Baixada Fluminense, de Nova Iguaçu e um importante desafio nos era imposto, conciliar

nosso aprendizado acadêmico com a realidade social. Pudemos perceber o quanto nossa

formação em Psicologia é pensada dissociada da concretude que existe para além do

campus universitário. Desta forma, foi necessário contextualizar esta inadequação teórico-

prática e a partir deste ponto traçar mecanismos para superar esta defasagem, através das

supervisões do estágio.

O nosso postulado era o de ser possível denunciar a exclusão, buscando dar

visibilidade a esta camada e dando voz a uma parcela estigmatizada da sociedade, através

da inserção destes jovens em cursos superiores no país. Assim sendo, nossa prática era

pensada como um mecanismo de análise, mas ao mesmo tempo era também um analisador,

ao qual nos apropriávamos como dispositivo de Análise Institucional.

Tínhamos como objetivo analisar as implicações éticas e os compromissos políticos

da prática psicológica, por meio do trabalho de Análise Vocacional, produzido no referido

projeto de extensão da UFRJ. Para isso problematizamos a mistificação da escolha, as

noções de vocação e dom, como conceitos sócio-históricos que são construídos, - e,

13

portanto, não naturais - , permeados pela lógica do capitalismo e liberalismo. Para nós, era

fundamental que os alunos tivessem consciência que a escolha é um conceito sócio-

histórico, que o poder de decidir por uma ou outra profissão é um paradigma moderno.

Estas reflexões eram possíveis através das dinâmicas de grupos e dos trabalhos que

realizávamos com músicas e poemas. Nas dinâmicas, os estereótipos se faziam presentes

nas falas dos orientandos, e o trabalho de desconstrução de modelos fechados era o

condutor presente. Outro papel fundamental que as dinâmicas adquiriram no trabalho foi na

criação de uma identidade de grupo.

O posicionamento político de que devemos, enquanto psicólogos, nos apropriar de

todos os instrumentos metodológicos que nos possibilite facilitar uma autonomia do sujeito,

foi decisiva em nossa decisão por utilizar testes psicológicos, em nossos trabalhos.

Utilizamos três testes, sendo eles a BPR5- Bateria de Provas de Raciocínio 5, Quati-

Questionário de Avaliação Tipológica e LIP- Levantamento de Interesses Profissionais,

todos com pareceres favoráveis pelo Conselho Federal de Psicologia. Nosso maior desafio

era o de não usar estes instrumentos, como dispositivos fechados e determinantes, uma vez

que nas falas dos alunos, que já conheciam ou haviam realizado o trabalho de Orientação

Vocacional, sempre era recorrente o uso de testes, como o responsável por “dizer o que

devo fazer”. Isto era tudo o que não queríamos e nos afastávamos a todo o momento,

porque nosso postulado inicial era o de não fazer do trabalho um determinismo profissional.

O contato com estudantes, de diferentes cursos da UFRJ, foi importante para se

pensar as múltiplas possibilidades que a universidade pode oferecer, e tentar desnaturalizar

o senso comum que as únicas profissões existentes são Medicina, Direito, Engenharia.

Além de buscar aproximar este universo acadêmico, tão distante para estes alunos,

compartilhando as maneiras existentes de permanência de alunos de origem popular nas

universidades públicas, através do sistema de bolsas, essencial para que os mesmos possam

obter a conclusão.

Ao longo do decorrer das atividades, a maior dificuldade enfrentada pelo trabalho

de Análise Vocacional foi o desafio de lidar com a evasão progressiva dos alunos do Curso

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Pré Vestibular de Nova Iguaçu. As pesquisas demonstram que os índices de evasão em

cursos pré-vestibulares comunitários ou populares são muito mais elevados que em cursos

particulares, inúmeros aspectos podem ser atribuídos a este fato. A equipe de Psicologia

inserida no projeto, na tentativa de refletir sobre estas questões, realizou grupos de

egressos, buscando tentar entender o porquê das desistências, que fatores psicossociais

estavam envolvidos. Neste sentido, torna-se claro o quanto a atuação da Psicologia neste

projeto estava além de ser um simples trabalho de orientação profissional. Atuar com

alunos que desistem do curso nunca foi cogitado como demanda inicial de trabalho, quando

entramos no projeto; nem tão pouco conciliar conflitos internos que passaram a existir nas

turmas, ou entre turmas, como inúmeras vezes fomos convocados a fazer. Estas demandas,

que perpassam o trabalho, foram encaradas por nós, como substrato necessário para se

entender a atuação daqueles alunos, em um contexto mais amplo e não se posicionar

perante estas questões, não intervindo com nossa prática seria uma posição política, que

estávamos decididos a não tomar.

Os conflitos que eclodiam nas turmas e para os quais sempre éramos chamados a

solucionar, eram lidos pelos demais membros da equipe como algo negativo e que criava

instabilidade para o grupo, para nós a leitura tornava-se outra. Não víamos os conflitos e a

evasão como negativa em si, e tínhamos o posicionamento que nossa função não deveria

ser intervir no conflito e resolvê-lo, mas sim colocá-lo em análise, era isto que fazíamos.

Nossa tentativa era a de tentar entender o porquê de deixar o curso, desistir dos projetos,

etc. Mas, especialmente nesta temática, que refletiu indiretamente em nossos trabalhos,

percebemos que um dos fatores, que ocasionava as evasões, estava diretamente ligado à

proposta preconizada pelo trabalho de Orientação: que era a dificuldade em lidar com o

peso da escolha de cursar o pré-vestibular e o medo de não passar ou de passar e não ter

dinheiro para estudar. A dificuldade de trabalhar este medo levava muitos alunos a desistir

e evadir do curso.

Percebemos neste contexto algo extremamente característico, apesar da grande

evasão de alunos do curso, de aproximadamente 35%; os grupos de orientação vocacional

permaneciam com o mesmo público ou com pequenas oscilações. Este dado foi

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questionado e analisado por nós. O comportamento de muitos alunos se mostrava

diferenciado quando eram comparados seus modos de atuação nos encontros dos grupos de

orientação e nas demais atividades e aulas do projeto. Nossa tese é que a entrevista

psicológica inicial torna-se um dispositivo que possibilita a criação de vínculo e facilita a

sua manutenção, fundamentais para se pensar a continuidade dos orientandos nos encontros

de orientação vocacional.

Estas diferentes maneiras de expressão da subjetividade podem ser analisadas pelo

olhar da Psicologia e estão relacionadas, entre outros aspectos, a técnica de investigação

inicial adotada, que é a entrevista psicológica. Acreditamos que um acompanhamento mais

humanizado, possibilitado pela entrevista individual poderá possibilitar a manutenção deste

aluno no curso pré-vestibular, consolidando sua escolha inicial de ocupar este lugar. Logo,

mais do que um instrumento de trabalho do psicólogo, na proposta de análise vocacional a

entrevista torna-se um fator de motivação, evitando altos índices de evasão.

O fechamento do trabalho ocorreu com a entrega de um laudo psicológico, seguindo

as diretrizes da Resolução 007/2003, do Conselho Federal de Psicologia, em uma entrevista

final devolutiva. O desafio de confeccionar este documento de avaliação psicológica e não

fazer dele uma apropriação fechada foi estimulante e simbolizava a complexidade de nosso

trabalho, que nos fazia refletir sobre a ética que envolve o “ser psicólogo”. Tínhamos como

missão considerar e analisar os fatores sócio-históricos, não ser deterministas, pensar

criticamente sobre os resultados dos testes e sinalizar para os orientados, que aquele

documento não era um final, mas caracterizar as muitas possibilidades que emergiram ao

longo de todo o processo de trabalho.

O maior crescimento profissional e acadêmico que obtivemos, enquanto psicólogos

em formação, foi vivenciar a discussão de como é trabalhar escolha profissional, quando

escolher conjuga-se como um verbo indisponível para estes vestibulandos, durante a maior

parte de suas vidas. Quando se vive à margem, excluído, sem acesso à educação de

qualidade, bens culturais, meios de comunicação e privação alimentar, quais os

mecanismos que permeiam o processo de escolha? Neste contexto, quando (e como) é que

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se escolhe? Como falar em escolhas se esta não é apresentada como uma possibilidade? O

contato com esta juventude, com representações tão individuais, mas ao mesmo tempo,

com sonhos tão iguais a maioria dos jovens, nos fez perceber o quanto as possibilidades de

escolha nos são ilusórias e construídas, mas também que através de nosso trabalho é

possível pensar estas escolhas, numa perspectiva de superação à violência e promoção da

cidadania.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Orientação Vocacional pode ser um instrumento capaz de colocar em questão a

naturalização (e banalização) da violência. Nossa proposta de intervenção social, desde o

início, possuía como objetivo realizar um trabalho diferenciado. Contudo, não esperávamos

que este trabalho nos afetasse tanto, enquanto profissionais em formação, como nos afetou.

A compartimentalização do conhecimento, em nossas instituições, nos impede de

vivenciar a teoria na prática e a prática na teoria, referentes ao ensino da Psicologia, assim

como no ensino superior de modo geral, no Brasil. Nesta conjuntura, mais que o

cumprimento de uma norma curricular, exigida para a formação do psicólogo, tornou-se um

privilégio, para os estudantes de Psicologia, a oportunidade de participar deste estágio de

extensão.

Ter como proposta praticar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão foi

uma aplicação inovadora para o Instituto de Psicologia da UFRJ, que repercutiu como

sendo o maior ganho acadêmico que tivemos, em nossa formação. A possibilidade de atuar

como psicólogo em formação fora dos muros da universidade, inserido na realidade, onde

as pessoas estão representadas, com suas mazelas e esperanças, deveria ser a regra, em

todas as instituições brasileiras de ensino superior e não a exceção.

Ao refletir sobre o que nos era esperado e que nós esperávamos do estágio, as

expectativas eram enormes, queríamos problematizar o processo de escolhas, este era o

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foco, para isso nos apropriamos de todos os instrumentos e mecanismos psicológicos que

descrevemos, além de objetivarmos sair desta experiência com boa prática profissional, e

conseguindo relacionar conhecimento teórico e prático.

Tudo isto foi realizado, mas o que mais nos faz pensar a respeito de nossas práticas é

como conseguimos, por meio da Orientação Vocacional, vivenciar ações que estavam

muito além do que imaginávamos. Saímos desta experiência, se não preparados, ao menos

sensibilizados a saber trabalhar com equipes multidisciplinares, abordagens metodológicas

diferentes, grupos de egressos, juventude em vulnerabilidade, contextos sociais populares,

análise de conflitos grupais e outros temas que se tornaram transversais ao nosso trabalho.

A apropriação de que a orientação de profissões, numa perspectiva de Análise do

Vocacional, é um importante mecanismo de promoção cidadã foi encarada por nós com

tanta seriedade que podemos refletir, a partir desta concepção, os nossos próprios processos

de escolhas; enquanto psicólogos em formação o que escolher. Esta questão fundamentou

nossa proposta de que as escolhas são contínuas e processuais e não estão presentes apenas

no momento do vestibular. Assim, como nossos orientados, tínhamos que escolher, e será

que nossas escolham eram tão “nossas” assim? Tínhamos que decidir que especialidade

seguir, ou não seguir, decidir se seríamos psicólogos clínicos, educacionais, ou ligados aos

Recursos Humanos, por exemplo. A problematização presente nos grupos, agora também se

fazia viva em nossas representações, como quase psicólogos. Podemos vivenciar o processo

de escolhas e desmistificar a individualização das mesmas. Sermos afetados, enfim, por

nosso trabalho.

Ao colocar em análise que nossas escolhas não são tão individuais quanto

pensávamos, podemos fazer de nossa intervenção um dispositivo de análise das relações

sociais, das relações de poder, existentes em nossa sociedade e a partir desta perspectiva

traçar mecanismos de superação das mais diversas formas de violência. Desde a violência

da inacessibilidade à informação, à violência de não ter mecanismos que facilitem a

escolha, à violência de não ter o direito de sonhar com um futuro diferente. Quando nos

grupos, ou nas entrevistas individuais, essenciais para o trabalho, problematizávamos a

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escolha da profissão, estávamos problematizando a possibilidade de escolher, que

mecanismos as permeiam, e como fazer dessas escolhas uma forma de valorização cidadã.

Trabalhamos com o desejo, ao final desta jornada muitas atitudes, emoções, falas,

gestos nos afetaram. As expectativas colocadas eram enormes, pô-las em análise era um

movimento constante. Eles esperavam que indicássemos uma profissão, que os orientasse

na vida, desejavam e esperavam muito de nós. Esperavam, portanto, que escolhêssemos por

eles. Que fôssemos os “especialistas de dizer ao outro” o que fazer, como fazer e quando

fazer. Quando refletimos sobre o que fizemos, sobre os acertos e os erros do trabalho,

sabemos que nossa prática sempre será marcada por esta experiência. Após esta caminhada,

esperamos ter produzido sujeitos mais autônomos, ter produzido desejos de política de

mudança. Desejo de inconformismo com a realidade dada e com as injustiças. Esperamos

ter produzido, neles e em nós, o desejo de buscar (e criar) continuamente um mundo,

através de nossas práticas, no qual tenhamos a possibilidade de construir escolhas, onde

‘escolher’ possa se tornar, sempre, um verbo disponível.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEGLER, José. Temas de Entrevista. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989. FROTTÉ, Mônica Dreux. Analítica do Vocacional: percursos e derivas de uma intervenção. Dissertação (Mestrado em Estudos da Subjetividade) – Universidade Federal Fluminense, 2001. MACEDO, Mônica M Kother. Contextos de Entrevista. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. NOVAES, Regina Célia. Política Nacional de Juventude: Diretrizes e Perspectivas. São Paulo: Fundação Friedich Ebert, 2006.

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MEMORIAL

Minha trajetória é marcada pela dúvida do que fazer quando crescer. Nasci no

interior do Rio de Janeiro e minhas perspectivas de futuro não eram muito complexas.

Filho de pai policial militar e mãe dona de casa, o sonho de ambos era ter um filho

formado, mas as expectativas eram sempre em torno de duas profissões: Direito e

Engenharia. Aos 15 anos iniciei meus estudos no Colégio da Universidade Federal Rural

do Rio de Janeiro-UFRRJ e o contato com este mundo tão diferente do meu me fez refletir

sobre o que querer ser, sabia que queria continuar a estudar, mas o quê era uma dúvida

constante. Também sabia que não podia fugir de carreiras ligadas a História, Geografia,

Português, mais tarde me descubro alguém ligado a áreas de Humanas. Aos 16 anos,

devido a uma greve na UFRRJ, soube da existência de um curso de Orientação Vocacional

na Universidade do Estado do Rio de Janiero-UERJ, foi o suficiente para me inscrever,

mesmo sem ter tido contato com psicólogos antes.

As dúvidas que possuía eram se fazia Administração na UFRRJ, onde já estudava,

perto de casa, ou se fazia Cênicas Sociais, algo que nem sabia o que era, mas tinha uma

conhecida que estudava, e achava que ela se expressava muito bem. Meu sonho sempre foi

fazer Cinema, Comunicação, mas esta possibilidade nunca foi cogitada em minha família,

cresci ouvindo que isso não era profissão, que pobres não podiam fazer Cinema, e acreditei

nisso. Quando iniciei a orientação fazer Cinema não era uma questão pra mim, tinha uma

dúvida que era pontual, Administração ou Ciências Sociais. Mas, anos depois, fazendo

Psicologia, descobri que existem muitos mais atravessamentos em um trabalho de

Orientação Vocacional, que se possa imaginar, e durante a OV, o Cinema eclodiu e trazer

esta questão foi o grande ganho deste primeiro contato com a Psicologia. No final dos

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encontros sai de lá decidido a fazer Cinema, com muito mais dúvidas sobre profissões, do

que quando havia iniciado, tinha descoberto que existia muito mais carreiras e que elas

eram reais para mim.

Mas, depois de algum tempo, me descubro com uma séria questão: queria fazer

uma profissão, na qual pudesse ajudar pessoas e não avistava no Cinema a possibilidade de

isso se concretizar. Minha paixão pelo Cinema estava muito ligada ao mundo de sonhos, e

estava querendo viver em um mundo mais real. Neste contexto entram as dúvidas de novo,

agora já não é mais Administração ou Ciências Sociais, mas sim Direito ou Psicologia, na

dúvida fiz vestibular para as duas: Psicologia na UFRJ e Direito na UERJ. Acabei

passando para as duas, e tive outro impasse, o que escolher; optei por fazer as duas, mas

me decidi pela Psicologia, quando percebi que poderia intervir socialmente sim e que ela

era muito além que a clínica.

Na graduação quase que como um percurso natural, por minha trajetória pessoal, a

aproximação com a Orientação Vocacional foi acontecendo timidamente. Até o momento

em que fui selecionado para o estágio de extensão, para trabalhar no Curso Pré Vestibular

de Nova Iguaçu, com esta temática. Ocupar o lugar de orientando em um grupo foi

desafiador, mas encarei, pois sabia dos efeitos que aquele espaço possuía, uma vez que

quando fui orientando de OV, esta produção surtiu em mim a eliminação do medo de tentar

o desconhecido. Descobri que podia sim tentar o que me diziam que não podia e caso não

desse certo poderia sempre recomeçar. Estes motivos me levaram a escolher a Orientação

Vocacional como tema para ser analisado neste relatório, uma vez que minha trajetória

pessoal e acadêmica estiveram intimamente ligadas ao tema em questão.