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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
JOSEFA JANETE DE AZEVEDO
MEMÓRIAS, IMAGENS E O COTIDIANO NO ENGENHO PALMA: PERCEPÇÕES DA
ANTIGA EX-MORADORA
CURITIBA
2018
JOSEFA JANETE DE AZEVEDO
MEMÓRIAS, IMAGENS E O COTIDIANO NO ENGENHO PALMA: PERCEPÇÕES DA
ANTIGA EX-MORADORA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de
Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial
à obtenção do título de Bacharel em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira.
CURITIBA
2018
TERMO DE APROVAÇÃO
Dedico e agradeço em especial
ao meu querido orientador Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira, agradeço pela
referência acadêmica e espelho intelectual de alto nível que representa para mim, seu
comprometimento com o conhecimento culto e a forma de transmissão do saber, do
qual muito contribuiu para minha formação profissional de cientista social e
socióloga;
e também ao conjunto de professores(a) do curso de Ciências Sociais, para os quais
dedico afeição reconhecendo a importância docente de cada um(a), do começo ao fim
dessa etapa conclusiva;
aos meus familiares e amigos, em especial aqueles que me deram apoio e suporte
durante a caminhada, amparo afetivo, moral e material para que pudesse concluir o
processo com tranquilidade e plenitude.
De modo muito especial dedico o esforço e agradeço profundamente a senhora Júlia
ex-moradora do Engenho Palma-Pe, pela sua contribuição e valiosa participação
nesta pesquisa de campo, pelas ricas narrativas, experiências e memórias objeto de
análise.
À todos(a), meu muito obrigada!
RESUMO
O estudo empírico intitulado: “Memórias, imagens e o cotidiano no Engenho Palma:
percepções da antiga ex-moradora” teve foco na investigação do cotidiano e no
funcionamento do Engenho a partir das experiências vividas e memórias guardadas pela
participante do estudo [ex-moradora, nascida e criada no Complexo da Casa Grande]
situado no interior do estado de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. A partir do
tema surgiu a pergunta: qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido,
sentido e testemunhado na infância e na adolescência no Complexo da Casa Grande do
Engenho Palma? Assim, procurei conhecer o perfil pessoal, familiar e o contexto cultural.
No segundo objetivo propus analisar as experiências e memórias de narrativas de história
de vida a partir da percepção do cotidiano e do funcionamento do Engenho. Diferentes
autores ajudaram no artesanato metodológico, intelectual-reflexivo e prático da pesquisa.
Da observação participante de Malinowski (1976), à entrevista narrativa oral na
modalidade de história de vida de Bauer (2003) e Jovchelovich; Bauer (2002); da
epistemologia de Mills (1982), às contribuições analíticas de Bauer (2003); May (2014)
e Bardin (2009), todo o constructo esteve alinhado ao pensamento dos metodólogos e as
experiências da pesquisadora no campo. As ferramentas do “Software Nvivo 11” foram
utilizadas como possibilidade tecnologia de apoio na categorização dos dados. Clássicos
e contemporâneos das ciências sociais e da história em especial, ajudaram no
aprofundamento das categorias analíticas. A etnografia mosaica de Antonil (1711) trouxe
o contexto dos engenhos no Brasil; Simonsen (1937, 2005) e Lisboa (2014) os aspectos
sobre o desenvolvimento econômico do país colonial, assim como, Freyre (1963, 1967,
2003, 1996); Prado Jr (1981); Oliveira (2000) dos quais contribuíram com a reflexão
sociológica a respeito das relações sociais entre os indivíduos, o poder da classe
dominante, as instituições patriarcais [igreja, família, Engenho e estado]. Os resultados
apontam que as experiências vividas pela participante produziram impactos severos em
sua vida pessoal e familiar, a ponto de não mais distinguir o que representa e significa
memórias positivas e negativas vividas por ela durante sua infância e adolescência. Leva
a sugerir que as violências sofridas da infância à vida adulta resultaram em naturalização
da dor e, consequentemente a insensibilidade do eu, espécie de anestesia interna e
aniquilamento da capacidade de sentido efeitos negativos de forma involuntária e
inconsciente. As memórias do Engenho Palma servem tão somente como alento de um
passado vivo que inconscientemente busca o reencontro com família de origem ausente,
que infelizmente ela não viveu. O Engenho representa uma tentativa de fixar identidade
pessoal e origem da família enferma. É a revelação de uma criança órfã que se tornou
adulta.
Palavras-chave: 1. Cultura do Engenho e família. 2. Vida social, cotidiano e
funcionamento. 3. Imagem e representação. 4. Complexo da Casa grande. 5. Lazer e
festividades.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FOTOGRAFIAS E IMAGENS
IMAGEM 1 – SENZALA .............................................................................................. 49 FOTOGRAFIA 2 - CASAS DOS ANTIGOS MORADORES DO ENGENHO ........... 50 FOTOGRAFIA 3 - CASAMENTO DO SENHOR DO ENGENHO PALMA .............. 65 FOTOGRAFIA 4 – IGREJA DO ENGENHO PALMA ................................................ 71
IMAGEM 5 - TÍTULO DE SÓCIO BENEMÉRITO ..................................................... 74 FOTOGRAFIA 6 - COMPLEXO DA CASA GRANDE [ANTIGA E RECENTE] ..... 76
FOTOGRAFIA 7 - SENHOR DE ENGENHO VELHO[PAI] E NOVO [FILHO] ....... 77 IMAGEM 8 - DIPLOMA: CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA PÁTTRIA ....... 79 FOTOGRAFIA 9 - ENGENHO PALMA [PARTE EXTERNA] .................................. 86 FOTOGRAFIA 10 - FÔRMAS USADAS PARA O AÇÚCAR BRUTO ..................... 91 FOTOGRAFIA 11 - BULE DE FERRO [USO DOMÉSTICO DA CASA GRANDE] 93
GRÁFICOS
GRÁFICO DE HIERARQUIA 1 – ENGENHO [FREQUÊNCIA DE PALAVRAS] ... 99 GRÁFICO DE SENTIMENTOS 2 – POSITIVOS E NEGATIVOS ........................... 100
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTO
RESUMO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
2 EPISTEMOLOGIA DO MÉTODO, METODOLOGIA E TÉCNICAS .............. 13
2.1 DESENHO DA PESQUISA ..................................................................................... 19
2.1.1 Campo, Entrevista e Dados ................................................................................... 21
3 ENGENHO DE CANA-DEAÇÚCAR NO BRASIL: REFLEXÕES HISTÓRICO-
SOCIOLOGICAS ......................................................................................................... 24
3.1 Pernambuco – Oficial Capitania dos Engenhos do Brasil ........................................ 26
3.2 História e localização do Engenho Palma [Pernambuco] ......................................... 28
4 RESULTADOS DA PESQUISA .............................................................................. 35
PARTE I ........................................................................................................................ 37
4.1 PERFIL, ORIGEM E CONTEXTO SOCIOCULTURAL ....................................... 37
4.1.1 O Engenho Machados Velho e o atoleiro do açude............................................... 39
4.1.2 Fim do Engenho Machados Velho [herança] ........................................................ 39
4.1.3 Madrasta-avó e o cabelo ruim ............................................................................... 40
4.1.4 Quadro resumo: perfil sociofamiliar da entrevistada ............................................ 44
4.1.5 Foro e Condição [terra e moradia] ......................................................................... 45
4.1.6 Escravidão disfarçada e o espinho do Sindicato .................................................... 46
4.1.7 Senzala e Casas dos antigos moradores do Engenho [recente] ............................. 49
PARTE II ...................................................................................................................... 51
4.2 MODO DE VIDA, CONTO E LUDICIDADE INFANTIL .................................... 51
4.2.1 Liberdade - um modo de ver o mundo .................................................................. 52
4.2.2 Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância .............................................. 53
4.2.3 Banho de rio e pescaria .......................................................................................... 54
4.2.4 O ladrão e a viúva do Engenho .............................................................................. 55
4.2.5 Maria Quejero - amiga de infância ........................................................................ 57
4.2.6 Desencontro e reencontro com as amigas de infância ........................................... 58
4.2.7 Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão ........................................................ 59
4.2.8 O medo e mentira .................................................................................................. 59
4.2.9 Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó .......................................................... 60
4.2.10 A órfã com febre amarela .................................................................................... 60
PARTE III ..................................................................................................................... 62
4.3 PROPRIEDADE, CASAMENTO, FAMÍLIA E O COMPLEXO DA CASA
GRANDE ....................................................................................................................... 62
4.3.1 Igreja do Engenho - lugar de distinção social e funeral ........................................ 68
4.3.2 Título de Sócio Benemérito [Conferencia Vicentina de Machados] ..................... 74
4.3.3 Complexo da Casa Grande .................................................................................... 75
4.3.4 Velho e Novo Senhor do Engenho Palma [pai e filho] ......................................... 77
4.3.5 Corrida do Fogo Simbólico da Pátria [Diploma] .................................................. 78
PARTE IV ..................................................................................................................... 79
4.4 COTIDIANO E FUNCIONAMENTO DO ENGENHO PALMA .......................... 79
4.4.1 Estrutura do Engenho ............................................................................................ 83
4.4.2 Escravos do Engenho Palma ................................................................................. 86
4.4.3 Carreiro, boi e a moenda da cana .......................................................................... 86
4.4.4 Fôrmas de armazenamento e transporte do açúcar ................................................ 90
4.4.5 Bule de uso doméstico da Casa Grande................................................................. 93
5 ACHADOS DA PESQUISAR [NVIVO 11] ............................................................ 98
5.1 APRESETNAÇÃO GRÁFICA [HIERARQUIA E SENTIMENTO] ..................... 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 104
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 110
ANEXOS ..................................................................................................................... 113
ANEXO A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............. 113
ANEXO B - PERMISSÃO [UTILIZAÇÃO DE CONDEÚDO DE ÁUDIO] ............. 116
ANEXO C - AUDIO 1 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ............... 117
ANEXO D - AUDIO 2 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ............... 124
ANEXO E - AUDIO 3 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ................ 127
ANEXO F - AUDIO 4 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ................ 129
9
1 INTRODUÇÃO
O estudo empírico com narrativa oral intitulado: “Memórias, imagens e o
cotidiano no Engenho Palma: percepções da antiga ex-moradora” corresponde ao
Trabalho de Conclusão de Curso [TCC] nas Ciências Sociais [Sociologia Bacharelado]
com a finalidade de aprofundar o tema e investigar a seguinte questão: qual a percepção
da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na
adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho Palma? Com interesse de
registrar e entender a realidade, o cotidiano e o funcionamento do Complexo da Casa
Grande gravei, transcrevi e analisei as narrativas de história de vida, memórias e
experiências pessoais da entrevistada na pesquisa.
Apoiada no tema e na questão problema apresento também alguns objetivos de
encosto [geral e específico] para auxiliar na busca de resposta ao objeto. Assim, no
objetivo geral destaco o interesse de analisar os conteúdos de narrativas de história de
vida a partir de memórias e experiências pessoais da antiga ex-moradora do Engenho com
foco no cotidiano e o funcionamento do Complexo da Casa Grande. Nada além do que
suas experiências vividas, sentidas e testemunhadas durante a infância e adolescência
impactada na trajetória.
No segundo objetivo viso registrar o perfil pessoal, familiar e o contexto cultural
[modo de vida, conto e ludicidade infantil]; a dinâmica dos acontecimentos dentro do
Engenho olhando para as relações sociais, culturais, religiosas, produtivas e a forma de
contanto entre o Senhor de Engenho e as instituições de distinção de privilégios de classe
[casamento, família, igreja, estado]; aquilo que entra em contraste com a vida dos
moradores trabalhadores da propriedade imersos à diferentes formas de exploração.
Autores clássicos e contemporâneos foram erguidos como referências e base para
o aprofundamento do tema e reflexão do objeto sociologicamente falando. Antonil
(1711); Simonsen (1937, 2005); Freyre (1963, 1967, 2003, 1996); Prado Jr (1981);
Oliveira (2000); Lisboa (2014), contribuíram com suas obras, discussões e reflexões
sobre as questões de pertinência histórica-sociológica. Malinowski (1976); Bauer (2003);
Jovchelovich; Bauer (2002); Mills (1982); May (2014); Bardin (2009), deram suporte e
segurança teórico-metodológica para observação direta no campo, na produção dos
dados, na análise e sustentação epistemológica do desenho investigativo. Sem dúvida, o
pensamento e as contribuições dos autores ajudaram na construção do trabalho do começo
10
ao fim, desde a ideia embrionária da pesquisa até as últimas fases de registros no campo,
de análises e interpretação dos dados [conteúdos] em sua totalidade.
É de interesse acadêmico investigar o tema e o objeto, tende em vista a ausência
trabalhos científicos com narrativas de história de vida com essa riqueza de detalhes e
natureza do assunto. O que levanta forte necessidade de leituras outras a partir da empiria
dos fatos, das narrativas de história de vida da ex-moradora do Engenho como por
exemplo. Investigar, ouvir, registrar e analisar as experiências da informante de primeira
mão é a chave segredo da pesquisa.
Interessa conhecer o lado de dentro do Engenho Palma [situado na zona da mata
do estado de Pernambuco] berço de cultura, origem, nascimento e história do grande
interprete intelectual Gilberto Freyre referência neste estudo. Que tão bem e detalhado
conhecia o mundo do Engenho e suas façanhas internas, mas que infelizmente ele não
traduziu tudo, deixou invisível a percepção outra, o sentir e o olhar do ponto de vista dos
moradores e moradoras impactados na ponta oposta da realidade engenhesca. Os nascidos
dentro do Engenho, os filhos de gerações de trabalhadores exaustivamente explorados
pelo Senhor dono de escravos, da propriedade da terra, do poder e das vidas dominadas.
O que pensam e falam essa gente? No mínimo, as falas e as escutas rendem análises e
questões de alta complexidade. Aquilo que foi visto por um outro ângulo, sentido em
outros corpos, vivenciado por outras pessoas e dito com outros pontos de vistas objeto de
observação, são outras versões da mesma história. Então, foi dentro desse contexto que
me dirigir para o Engenho Palma guiada e na companhia da própria entrevistada ex-
moradora do lugar, para ouvir suas narrativas e registrar o relato de suas memórias
guardadas dentro e fora do ambiente do Engenho.
Trata-se de uma ex-moradora que carrega consigo uma história viva, real para si,
concreta enquanto experiências vividas. Pela primeira vez ela narra o cotidiano e o
funcionamento [no e do] Engenho Palma ala do Complexo da Casa Grande. E a partir dos
enredos, das memórias materializadas em códigos e palavras sobre sua infância e
adolescência, o mundo do Engenho foi contado na percepção adulta. E assim, mostrando
em narrativas, palavras, imagens e fotografias, o trajeto em movimento de seu passado
refeito em tempo real, para se localizar no mundo atual e presente.
O estudo proposto no TCC se conecta à outras pesquisas envolvendo a
entrevistada participante e seu contexto familiar, inclusive no trabalho de tese de
11
doutorado em Educação [2018] intitulada: 1“O dono dos corpos, o incesto e a teia da
violência doméstica familiar no Brasil”. Ainda há um outro estudo já realizado para o
primeiro TCC em Ciências Sociais defendido em 2017 com título: 2“As faces da violência
doméstica familiar: do estupro ao abandono”. São trabalhos empíricos parte do mesmo
contexto sociocultural da família que vem sendo estudada desde 2015. Portanto, a ex-
moradora do Engenho Palma entrevistada nesta empreitada é a mãe biológica do grupo
familiar em estudo e acompanhamento técnico, porventura, também é a participante desta
pesquisa. Tratar-se de uma continuidade ou desdobramento do objeto da investigação da
tese.
Assim, o trabalho foca num arquivo de memórias ricas e abrangentes, detalhadas
e consistentes em conteúdo, onde a vida cotidiana da entrevistada no Engenho é
visibilizada e exposta de forma original, fidedigna e de primeira.
São conteúdos originais e inéditos registrados em quatro gravações [extraoficiais]
de áudio, durante os vários dias em que a pesquisadora esteve no campo empírico para
investigação do objeto de tese na região nordeste do Brasil. Especificamente, nas
estruturas e território da prefeitura municipal de Igarassu [região metropolitana do Recife]
estado de Pernambuco no mês de julho e agosto do ano de 2016. O assunto sobre o
Engenho Palma apareceu nos intervalos e pausas da pesquisa oficial [tese] naquele
momento. Nas paradas para o café e conversas descontraídas, os áudios sobre as histórias
1 É uma pesquisa de Tese de doutorado intitulada: “O dono dos corpos, o incesto e a teia da violência
sexual doméstica no Brasil”, aprovada em 27 de junho de 2017 pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa - CONEP, sob o protocolo (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE:
56421316.9.000.0102 - Parecer: 2.140.696). Resumo da tese disponível em: <
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao
.jsf?popup=true&id_trabalho=6327596&fbclid=IwAR3DwjuZPDvKeIL1coAfkt-
6MpyhaBNYItH20TFEf7gtKbCx6Gng-a0Ba-Q >. Acessado em: 08 de julho de 2018.
Nota: É um estudo de caso envolvendo mãe e filha vitimadas de violências domésticas e abusos sexuais
praticados pelo mesmo agressor [marido x pai] das vítimas.
2 AZEVEDO, Josefa Janete de. As faces da violência doméstica familiar: do estupro ao abandono. 143f.
(Monografia de Graduação) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciassociais/files/2018/02/Monografia-Josefa-
Janete-de-Azevedo-090517.pdf >. Acesso em: 29 de abril, 2017.
Nota. Trata-se de um Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais [Licenciatura] com pesquisa
documental baseada em formulários de denúncia de violência doméstica e incesto familiar envolvendo um
pai biológico, 4 filhas e 1 filho, todos irmãos e pertencentes do mesmo grupo consanguíneo. Foram tomados
para a análise conteúdos de narrativas de depoimentos auto-descritivos das filhas (o) contra o pai agressor.
Apesar de hoje serem pessoas adultas, mas na infância e adolescência foram vítimas de violência doméstica
praticada pelo pai-agressor na convivência com a família. Razão que em 2015 ofereceram denúncias contra
o mesmo.
12
de vida, memórias e experiências da participante no Engenho foram gravados. De forma
livre e consciente os conteúdos gravados também foram autorizados conforme o
protocolo da pesquisa oficial da tese intitulada “O dono dos corpos, o incesto e a teia da
violência sexual doméstica no Brasil”. Contudo, todo material de produção extra esteve
fora do roteiro e do planejamento da investigação principal, por isso, está sendo objeto de
estudo e analise neste artigo extraído do TCC. Apesar de estar conectado ao tema de tese,
mas por questão de volume e densidade preferi deixar na reserva para esta oportunidade
investigativa e analítica.
O material extraoficial foi transcrito, tratado e organizado em categorias de
análises à luz do método qualitativo e das teorias sociológicas reflexivas para justa
discussão e apresentação.
Porventura, nesse contexto, o desenho metodológico se perfaz e se desenvolveu
guiado pelo planejamento inicial do estudo. Razão que também se conecta ao plano de
tese enquanto escolha da epistemologia do método qualitativo e das técnicas de
observação direta e da entrevista narrativa oral para resgate de memórias e experiências
de história de vida. Assim como, a análise dos conteúdos e interpretação dos dados
conforme as categorias de reflexão e decodificação das mensagens. Desse modo, defini a
estruturação do trabalho e organização das categorias em capítulos centrais
[metodológico, teórico-reflexivo e os resultados [achados].
No primeiro, apresento a epistemologia do método para aprofundamento do
estado da arte da pesquisa, o artesanato intelectual e prático olhando às teorias e técnicas
utilizadas na captura dos dados. No segundo, reflito com os autores [historiadores e
sociólogos] os assuntos pertinentes ao mundo do Engenho, olhando, obviamente, para as
dimensões do sistema funcional do Complexo, as ações dos indivíduos e o funcionamento
integrado gerador de impactos na vida social dos envolvidos nos processos produtivos,
culturais, sociais, institucionais misturados à vida cotidiana. No terceiro, quarto e quinto
capítulos foco nas narrativas do cotidiano e funcionamento do Engenho olhando a
dinâmica do Complexo da Casa Grande, buscando respostas para o objeto, objetos e os
achados da pesquisa. Nada mais que isso, porém, tudo isso.
13
2 EPISTEMOLOGIA DO MÉTODO, METODOLOGIA E TÉCNICAS
O tema “Memórias, imagens e o cotidiano no Engenho Palma: percepções da
antiga ex-moradora” do TCC, propôs um estudo de natureza empírica realizado no campo
de investigação da forma compartilhada. Explico, trata-se de um trabalho investigativo
de percurso relativamente permanente no campo por estar enquanto pesquisadora imersa
sob a realidade de interesse desde 2015. E assim produzindo pesquisa, com focos
diferentes, porém no contexto sociofamiliar e cultural do mesmo grupo de origem. Me
refiro a participação de membros vinculados à mesma família consanguínea, apesar das
temáticas e objetos de investigação distintas, mas, em certa medida estão todos
conectados intrinsecamente.
Neste caso, o TCC em destaque é parte desse desdobramento interligado ao
conjunto teórico-metodológico do qual adotei para realização dos estudos. Dentro dessa
plataforma de campo e de investigação, o Trabalho de Conclusão de Curso de graduação
em Sociologia tomou corpo e se fez como uma continuidade investigativa conectada ao
todo complexo conhecido até o momento.
A partir desse contexto do Engenho abro a discussão teórico-metodológica
reivindicada pelo tema e o objeto da pesquisa para desenvolver e colocar em prática o
desenho metodológico da pesquisa. Para assim proceder com a observação direta e
participante tomando obviamente Malinowski (1976) de referência no que tange o
emprego de técnicas de observação no campo empírico e no registro de dados em diário
de campo. Sobre a entrevista com narrativa oral de forma livre e espontânea, assim como,
o processo de escuta qualificada enquanto a participante narrava suas memórias de
história de vida, Bauer (2003) e Jovchelovich; Bauer (2002) deram conta desse artesanato
prático. Depois, ampliada nas reflexões e contribuições analítica de Bardin (2009).
Os conhecimentos sociológicos e as técnicas de produção de dados, a metodologia
colocada em movimento neste estudo, deram total amparo à pesquisa, os autores
selecionados e as experiências profissionais serviram de fundamento e segurança do
estudo. O artesanato intelectual e prático se conectou com as habilidades e competências
técnicas testadas na prática operacionalizada dentro do campo. O que foi fundamental
para proceder com os encaminhamentos, as mediações no Engenho e assim estabelecer
um traçado combinado com o campo e os contatos permanentes com a participante da
pesquisa. Já que a produção dos dados aconteceu em dois ambientes distintos. Na primeira
etapa, as gravações em áudio aconteceram dentro da Casa da Mulher no Município de
14
Igarassu [região metropolitana do Recife-Capital]. Enquanto que as observações diretas
e participativas para registro dos cenários e captura de fotografias recentes aconteceu
dentro do Complexo da Casa Grande no Engenho Palma [interior do estado de
Pernambuco] em contexto de visitação e constatação do patrimônio histórico.
As experiências da pesquisadora ajudaram na realização de todas as etapas, na
escuta apurada e qualificada da narração, na tomada de decisões corretas com os devidos
cuidados no registro dos dados e na oportunidade de visitação do Engenho. Onde os
protocolos e os limites foram levados bastante a sério. Para assim então realizar os dados
mais importantes com sucesso e em tempo real.
Todos os encaminhados foram realizados em etapas num movimento simétrico,
sem interferir no cotidiano da participante nem na rotina do Engenho. O que permitiu a
abertura de uma agenda de forma participativa e compartilhada no sentido de incluir as
melhores sugestões e valorizar as opiniões da informante guia. Essa foi uma experiência
também extraordinária e enriquecedora do trabalho.
A agenda e os combinados foram colocados em movimento incluindo os
encontros e reuniões com a ex-moradora do Engenho para traçar o plano da visitação ao
Complexo, tendo como guia a própria participante ex-moradora e nativa do lugar. A partir
desses enunciados dei início à reflexão epistemológica fundante da metodologia e das
técnicas de escolha.
A proposta investigativa do TCC em Sociologia se funda no artesanato intelectual
e prático no método e na metodologia da pesquisa qualitativa que Eco (1991); Becker
(1999); Mills (1982) oferecem em suas contribuições ao método, não somente isso, mas,
também, por ser os metodólogos de referências pessoal, adotados para fundamentar esta
e outras pesquisas empíricas percorrendo o caminho da ciência. São autores que deram
base e sustentação ao objeto desde a proposta inicial pensada para este estudo.
Eco (1991), destacar que a epistemologia do método é quem permite o(a)
pesquisador(a) pensar de forma sistematizada e profunda sobre o seu objeto de pesquisa,
de como operar no campo e colocar os elementos em contato e, ao mesmo tempo fazer
ciência de forma comprometida, já que a criação científica nada mais é do que uma arte
individual e coletiva ao mesmo tempo. Nada além do que uma atividade intelectual
artística, criativa e intransferível, é quando o(a) pesquisador(a) pensa, produz ideias,
organizando-as e construindo seu objeto internamente, no silêncio mental. E depois se
transforma em uma instituição criadora e criada por ele(a) mesmo. Finalmente, a pesquisa
é a essência da arte intelectual e prática que se materializa no campo.
15
Eco, também fala sobre a suposta imparcialidade e neutralidade do(a)
investigador(a) na pesquisa. Ele contrapõe a essa ideia de imparcialidade e neutralidade,
ao contrário disso, pensa e diz ser necessário que o tema e o objeto corresponda aos
interesses de quem investiga, isso deve aparecer em primeiro lugar. Uma vez que é o(a)
pesquisador quem busca o campo, se dispõe a investigar, demanda seu esforço na busca
de fontes acessíveis, dos espaços seguros, de materiais manuseáveis, dos informantes e
todo os encaminhamentos para o desenrolo do objeto. Para que assim possa produzir seu
trabalho de investigação no campo empírico ou no gabinete institucional ou particular.
Além de tudo isso, precisa atender as demandas de cada pessoa envolvida no
processo, observar se método de escolha corresponde a proposta, se as técnicas são
adequadas e aplicáveis, a viabilidade de realização e outros elementos. O termômetro é
esse, o próprio investigador é quem mede a temperatura do seu trabalho. Se tudo estar ao
seu alcance, se é possível estabelecer mediação, se tem a ver com as suas experiências,
se é um meio familiar em termo de controle e domínio do assunto de interesse.
Então, a pesquisa cientifica exige do(a) pesquisador(a) comprometido e envolvido
com a sua arte de pesquisar, o próprio corpo e a mente intelectual e prática totalmente
imersa no campo, no todo complexo do em torno que cerca o objeto de estudo.
Becker (1999), também contribui com essa discussão. Ele presume que o
pesquisador(a) estude os métodos de fazer pesquisa como seu campo do trabalho
intelectual, profissional e prático, como um livro de leitura de cabeceira. Desenvolver
pesquisa qualitativa no campo empírico não é uma tarefa fácil, requer domínio e técnicas
precisas. Saber fazer escolhas metodológicas, as teorias explicativas e esclarecedoras do
tema, o assunto de estudo, tudo deve estar interligado, claro e alinhado ao mesmo tempo,
e para isso precisa de uma vida de estudos dos métodos.
Sabendo que o campo, a realidade, objeto e os informantes tem história e
historicidade, tempo e espaço sendo ocupado em diferentes contextos. Portanto, requer
enfoque de interesse e experiências profissionais abundantes. E isso significa quase
sempre viver com inquietações. Até para a organização do trabalho requer justificação,
relações hierárquicas envolvendo coisas, pessoas, instituições, conceitos, teorias,
situações, fatos e todo conjunto associativo ao objeto. Há sempre uma organização
estruturada interna e invisibilizada em cada etapa do processo investigativo, onde tudo é
pensado em detalhes e racionalmente de forma silenciosa e oculta, até ser colocado em
prática.
No mínimo, essa é uma relação de alma do(a) pesquisador(a) com a sua pesquisa.
16
No artesanato intelectual e prático de Mills (1982), essas ideias fazem muito sentido para
a pesquisa e a vida do(a) pesquisador(a). O autor se refere ao cientista social e sociólogo
para dizer que este é acima de tudo artesão intelectual e prático com potencial cientifico
bastante elevado, mas também portador de mentes inquietas ambulantes na sociedade.
O seu lugar é dentro das ciências humanas e sociais por ser o seu lugar de ofício,
destino e profissão legitimamente. Aliás, para este a pesquisa é um fazer precedido por
um ato de reflexão fortalecido na experiência individual e na experiência do outro. Há
uma interdependência quase involuntária no emocional investigativo.
Mills, chama atenção com relação a crença. Para a ideia de que cada novo trabalho
de pesquisa seja realmente algo novo. O autor destaca que cada pesquisa não é exatamente
nova como imaginamos ser, mas sim uma atividade investigativa fruto de experiências
pessoais, profissionais, de contextos anteriores que estão sendo apenas atualizadas com a
nova-antiga questão colocada no hoje.
Contudo, a pesquisa empírica envolvendo o Engenho Palma, apesar dos conteúdos
de narrativas serem inéditos, mas o assunto de abordagem e investigação não figura algo
novo, um contexto e objeto desconhecido no Brasil, estar sendo apenas atualizado com
outras formas de mostrar uma realidade antiga. Nesse sentido, também concordo com
crítica do autor.
O diferencial estar no particular da pesquisa, nas percepções críticas e reflexivas
sobre os acontecimentos, também na ação criativa da pesquisadora no caso. Sabendo que
o assunto sobre o Engenho de cana-de-açúcar é velho e antigo, contudo, a proposta de
investigação deve ser eficiente, séria, clara e engenhosa do ponto de vista prático,
profundo e científico. A surpresas é que vão apontar o inédito.
É um nível de abstração intelectual e prática que exige um grau de raciocínio
lógico para o isolamento de cada questão a fim de selecionar os conteúdos
correspondentes e saber fazer as indagações adequadas, pertinentes ao objeto. Somente
assim é possível responder o questionamento feito ao novo-velho tema-problema
colocado sob novo raciocínio em tempo real. Praticamente é isso, o artesanato intelectual,
metodológico e prático gira em torno do velho objeto, questão de partida, com uso de
elementos novos, olhares e reflexões atualizadas talvez.
As relações estabelecidas entre teoria e método, o pensar intelectual e o fazer
prático é o que compõe as partes e o todo investigativo. Talvez, o esforço seja para
acrescentar algo que ainda foi pouco explorado, podendo estar oculto ou desconhecido
para a ciência. Mas, de qualquer modo, investigar um objeto qualquer é preciso ter em
17
mente que o projeto de pesquisa já nasce velho. Também existe a possibilidade de
iluminação das falsas ideias e opiniões em torno da realidade e objeto investigado
anteriormente, o aprofundamento ou descamação de certo entraves tende desmistificação
com mais clareza algo que ficou relativamente mal explicado. Para tal, é importante estar
aberto e preparado para críticas, reformulação de questões se necessário for por outro
investigador, (MILLS,1982, p. 223-226).
É parte da imaginação sociológica, intelectual e prática que acompanhou a
pesquisa e a pesquisadora durante todo percurso artesanal do estudo no campo
investigativo. Estudar o mundo do Engenho não é tão simples assim, entrar dentro do
Complexo da Casa Grande ouvindo a voz de quem viveu a diversidade do lugar causou
arrepios, curiosidades e náuseas muitas vezes. O prédio arquitetônico é relativamente
fechado, controlado, vigiado. Não há muralhas visíveis, mas há armamento pesados,
carregado de chumbo e pólvora nas mãos de pessoas vivas, trinadas e reais. Uma força
silenciosa continua em operação dentro dos espaços.
Entrar, permanecer e sair do Complexo da Casa Grande [Engenho, Igreja, Senzala,
Propriedade] na companhia da entrevistada foi uma experiência sem réplica. Visitar as
estruturas históricas do sítio arqueológico vivo no lugar, entrar nas repartições das
estruturas físicas e identificar o lugar ocupado por cada indivíduo, também não foi um
acesso simples ou fácil de realizar. Há protocolos de contato, controles e autorizações,
limites e permissões para entrar em cada recinto. No Engenho os herdeiros da propriedade
continuam exercendo seu poder no mando dos jagunços e sentinelas olheiros, tocaias
escondidos em todo lugar.
Há um discurso separatista operante no lugar que preserva o lado de dentro do
Engenho e a vida da família dominante com não pertencente a sociedade de indivíduos
comuns. O Complexo da Casa Grande é um exemplo disso, ativa em todos os cômodos e
ambientes a imaginação simbólica que a vida dos habitantes privilegiados e da família do
Senhor pertence a um mundo à parte. Não são pessoas de vida normal, são seres elevados
pelo poder que possui. Estão em outro patamar da espécie.
Observar, sentir e perceber a energia nos ambientes fixos [igreja, senzala, tronco
de tortura, maquinários do Engenho, mobília e objetos de valores de uso pessoal e
doméstico dos indivíduos, os esconderijos dos escravos [senzala e casa dos moradores],
o curral do gado, as terras para plantação de culturas e cana-de-açúcar, tudo está lá. Toda
olaria simbólica e prática ainda em operação de outra forma, foi vista e tocada de perto,
sentida na energia do corpo e no tato das mãos. As coisas que tem significados,
18
identidade, idade e tempo, tudo sendo mostrado o seu valor sentimental e monetário de
uma época. Um indumentário místico.
Os objetos corporificados na história do Complexo foram reconstituídos em tempo
real, com reinvenção de um passado recente para pensar o presente da pesquisa. E ali,
abrir um arquivo com inventário particular cheio de realidades narradas com palavras,
imagens e percepções outras.
A ex-moradora do Engenho reconheceu cada detalhe e recanto dos ambientes por
ela explorado na infância. A história de cada objeto utilizado no cotidiano por homens e
mulheres que circulava nas estruturas. O encontro com o Engenho foi mais do que um
reconhecimento da estruturada com a estrutura, com o objeto de contato, emanou força
de uma relação íntima, de empatia e identidade pessoal. Um momento de reviver histórias,
situações e realidades como se tivesse em tempo real, a entrevistada lembrava de tudo.
Uma memória lúcida de gerar espanto, o que permitiu compartilhar suas
experiências profundidade para fazer a viagem no tempo. Pude observar isso acontecendo
e fazendo parte também, ouvindo sua voz em narração num ritmo entusiasmado tateando
as estruturas físicas, tocando nos objetos com vida e história. Aqueles que tanto conhecia
de perto pela quantidade de uso em determinado tempo e lugar do cotidiano. Um
aglomerado de alvéolos que se misturava como parte de uma só história.
Enquanto a entrevistada caminhava ia narrando os enredos e a pesquisadora
registrando o passo a passo da visita guiada, o que rendeu uma extraordinária memória
de experiências empíricas com os pés no campo e no chão da fábrica fértil. Um feito para
agregar à vida e a carreira profissional. O estar lá fez a diferença na superação dos
obstáculos, na insegurança imaginativa própria do desconhecido. Os olhos viram e a
mente registrou a passagem única e intransponível.
Nesse sentido, May (2014), propõe a necessidade de observação de alguns
critérios no campo para avaliação previa da qualidade dos conteúdos produzidos na
empiria dos fatos. É importante verificar se o conteúdo de análise apresenta autenticidade,
credibilidade, representatividade, clareza e se é compreensível para a análise
interpretativa. Uma vez que a “[...] análise qualitativa enfatiza a fluidez do texto e do
conteúdo no entendimento interpretativo da cultura” alheia, (MAY, 2014 apud SCOTT,
1990, p.50).
O autor citado valoriza a análise qualitativa de conteúdos olhando a ideia de
processos ou contexto social em que se insere a pesquisa, nesse caso, o texto deve ser
abordado a partir do contexto de sua produção, que por sua vez seleciona o que é relevante
19
para a pesquisa observando se há tendências, sequências, regularidades, padrões ou
ordens implicadas nas partes e no todo analisado, (MAY, 2014).
Finalmente, Bardin (2009, p.123), reconhece que “[...] nem todo o material de
análise” está em condição de ser sistematizado com precisão objetiva. Portanto, é preciso
cuidar para produzir análises consistentes, críticas, interpretações coerentes que
corresponda de fato à realidade do campo, do objeto e seus objetivos. Já que o material
de análise qualitativa geralmente vem carregado de um elevado teor de subjetivações;
tanto do ponto de vista do entrevistado quanto do entrevistador, ambos estão implicados
com as mesmas situações. Por isso, carece de todo cuidado, analisar e interpretar com o
máximo de zelo e atenção, é uma dica.
Talvez, o Software [Nvivo 11] enquanto ferramenta tecnológica de precisão, seja
útil e utilizado para decodificação dados e revelação de categorias analíticas. Poderá ser
utilizado como ferramenta metodológica outra e de natureza sofisticada. É uma
possibilidade forte. Finalmente, destaco a seguir o desenho metodológico proposto para
resumo e organização da pesquisa.
2.1 DESENHO DA PESQUISA
ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA
Problema de Pesquisa Qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o
cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na
adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho
Palma?
Objetivos 1 - Analisar os conteúdos de narrativas de memórias e
experiências pessoais da antiga ex-moradora do Engenho
Palma, sobre cotidiano e funcionamento do Complexo da
olhando as experiências vividas, sentidas e testemunhadas
durante a infância e adolescência no local.
2 – Registrar a dinâmica dos acontecimentos dentro do
Engenho com foco nas relações de convivência sociais,
culturais, produtivas e a forma de contanto entre o Senhor
de Engenho, as instituições produtoras de distinção social
e os moradores da propriedade.
Questão norteadora 1 – O que revelam os conteúdos de narrativas de memórias
e experiências pessoais da antiga ex-moradora do
Engenho Palma, sobre cotidiano e funcionamento do
20
Complexo da olhando as experiências vividas, sentidas e
testemunhadas durante a infância e adolescência da
entrevistada?
[Perfil pessoal, origem familiar, contexto sociocultural]
2 – Como a vida no Engenho era sentida, vivida e
percebido pela entrevistada criança revelado na vida
adulta?
[Modo de vida, conto e ludicidade infantil]
3 - Qual era a dinâmica das relações de convivência
sociais, culturais, produtivas e a forma de contanto entre
o Senhor de Engenho, as instituições produtoras de
distinção social e os moradores da propriedade?
[Casamento, família e o Complexo da Casa Grande]
Delimitação e Local Região Nordeste do Brasil, Estado de Pernambuco,
[espacialidade e tempo urbano e rural]. 1 - Casa da
Mulher do município de Igarassu [realização de
narrativas]. 2 - Engenho Palma [visitação, observação,
registros de imagens].
Metodologia e Técnicas Pesquisa qualitativa, observação direta-participante,
entrevista narrativa oral de história de vida.
Análise de conteúdo, interpretação dos dados a partir das
categorias de reflexão e a decodificação.
Participante e critérios Uma informante entrevistada de primeira mão ex-
moradora do Engenho Palma-Pe, adulta, nascida e criada
na propriedade do Engenho. Narrativas de memórias,
experiências pessoais e relato do cotidiano local [forma
livre e espontânea].
FASES DA PESQUISA E PRODUÇÃO DOS DADOS
Primeira etapa
Casa da Mulher do Município de Igarassu-Pe [região
metropolitana do Recife-Capital]. Local de realização de
entrevista narrativa oral com a antiga ex-moradora do
Engenho Palma-Pe.
Segunda etapa Visitação guiada [companhia da entrevistada] ao
Engenho Palma. Local de visita: interior do estado de
Pernambuco [zona da mata-região canavieira]. Distancia
da capital [aproximadamente duas horas].
Fontes de observação e
consultas
Depoimentos, diário de campo, agravação em áudio,
fotografia de acervo pessoal, histórico e fotografias sobre
o Engenho publicadas em sites).
21
COMPOSIÇÃO DO QUADRO ANALÍTICO
Parte I Perfil, origem e contexto sociocultural.
Parte II Modo de vida, cultura e ludicidade infantil.
Parte III Casamento, família e o complexo da casa grande.
Parte IV Cotidiano e funcionamento do engenho palma.
Parte V Achados da pesquisar [Nvivo 11]. Considerações finais.
2.1.1 Campo, Entrevista e Dados
Diante de uma entrevistada ex-moradora de um Engenho, nascida e criada na
propriedade hoje patrimônio histórico da região, um convite entusiasmado para conhecer
o Complexo da Casa Grande e pisar no chão que ela pisou não podia ser recusado.
Antes da chegada a narração livre e espontânea havia sido começado muito antes
da viagem, mas até aquele momento não tinha chegado ao fim. Era só uma oportunidade
de encontro e contato que a narração das histórias inacabadas recomeçava de novo. Não
encontrei outra forma de valorizar a escuta a não ser ouvir igualmente entusiasmada e
interessada no assunto com o mesmo vigor da informante. O passo a passo da investigação
foi iniciado sem prever o fechamento do processo. Foi acontecendo naturalmente e os
dados produzidos em partes.
O convite feito e aceito, livre e espontâneo para visitar e conhecer o Engenho que
tanto a entrevistada deseja revisitar o local de suas origens. Uma senhora idosa com idade
de 67 anos, lúcida e aparentemente saudável que em julho de 2016 se dispôs revelar as
vivencias e experiências pessoais, familiares, culturais e a vida vivida dentro da
propriedade do Complexo. Onde seu avô [família] estabeleceu moradia e trabalho de
subsistência.
Entre julho e agosto de 2016 iniciei no campo [cidade de Igarassu-Pe] a gravação
de suas narrativas extras oficiais como forma de registro de uma outra passagem de sua
vida pessoal. Aquilo que ficaria fora do roteiro da tese como já sinalizei.
De forma bastante comprometida, colaborativa e interessada, não somente com
relação a esse quadro-contexto de estudo para TCC, mas também em todas as demais
frentes investigativas de outras pesquisas já desenvolvidas no campo, com temas, objetos
22
e conteúdos distintos, a participante se dispôs em participar. É a sua característica pessoal,
solidária e acolhedora.
Outro aspecto importante é que os conteúdos do TCC, os registros de gravação
extra, apesar de estar fora do roteiro de pesquisa de tese seguiu as orientações e regras do
protocolo de pesquisa oficial aprovado pelo CONEP. Por se tratar de um complexo tema,
objeto e contexto teve sua tramitação, aprovação, assinatura e autorização de uso de
materiais, imagens e áudios de pesquisas realizadas para aquele protocolo conforme o
[Termo de Consentimento, Livre e Esclarecido – TECLE e Termos de Permissão para
Utilização de Gravação em Áudio] disponíveis nos anexos A e B. Aprovado em 27 de
junho de 2017 pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP, sob o protocolo
(Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE: 56421316.9.000.0102 –
Parecer: 2.140.696).
Desse modo, os conteúdos oriundos de gravações extras oficiais, utilizados para
estudos neste TCC, faz parte do esquema oficial da pesquisa de tese produzida no mesmo
campo, durante os diferentes intervalos destinados para lanches e cafés compartilhados
entre a pesquisadora e a participante da pesquisa. As vezes também nos passeios
estratégicos no jardim da Casa da Mulher do Município de Igarassu/Pe [local de
realização das entrevistas oficiais. As pausas feitas para alívio das tensões daquele
momento serviram de levante de outros dados conexos, porém desdobrados em páginas.
Foram em momentos peculiares e espontâneos que nasceram as narrativas sobre
o Engenho Palma, depois de um tempo transcritos e utilizadas como material de pesquisa
empírica complementar usada para este TCC. É parte do mesmo complexo investigativo
felizmente. O que verdadeiramente rendeu extraordinários relatos sobre o mundo restrito
do Engenho misturado com a vida da moradora e sua família. A outra face da história, o
outro lado do funcionamento do Engenho, das manifestações no dia a dia, os
acontecimentos marcantes da infância e adolescência inocente. São relatos inéditos de
ouvir e conhecer.
São aproximações para além do cotidiano elementar, mas sim como experiências
reais, contatas com enredo [início, meio e fim] de histórias concretas. Um Brasil da
década de 50 e 60 sendo mostrado na janela do tempo, aquele que talvez poucos
brasileiros conheça o lado de dentro de um Engenho instalado no mundo rural, fechado,
controlado e sentido na própria pele. Essa é a parte mais incrível.
As gravações extras foi uma escolha combinada entre a pesquisadora e a narradora
das histórias, uma vez que os assuntos de pertinência estavam sendo contados em detalhes
23
e de forma espontânea, pedi para gravação da riqueza da fala e de imediato foi aceito. A
motivação e o entusiasmo da entrevistada em contar suas histórias no Engenho chamou
bastante atenção. A demonstração de saudades e sentimentos emocionados sobre sua
infância e adolescência no lugar de nascimento, foi algo que considero incomum ou nunca
visto quando comparado com as experiências em outras pesquisas.
Foi assim que ela resgatou suas ricas lembranças de um passado que não passou
simbolicamente. Construiu enredos criativos, risonhos, alegres, bem-humorados para
contar as memorias que guardou por tanto tempo e nunca havia contato para ninguém.
Uma voz adulta vivendo aventuras infantis com uso de linguagens próprias, sotaques,
mímicas e códigos indecifráveis as vezes, muitas palavras com representação e
significado de lugar e objeto relativamente desconhecido ou incomum para os ouvidos.
O brilho do seu olhar para a paisagem do Engenho, os cheiros sentidos nos
ambientes, as emoções sentidas no cotidiano, tudo isso estava nítido em sua mente com
perfeita clareza e lucidez. A capacidade criativa mostrada nas estruturas mentais e o
desenvolvimento da cognição lúdica, de certo modo permitiu fazer a trajetória mental que
tanto desejava reviver. Até o nome das pessoas [moradores, vizinhos, trabalhadores,
visitas, festas e acontecimentos] foram resgatados com precisão, tudo parte do seu dia a
dia.
Em cada intervalo, pausas, passeios, cafés, lanches, viagens, surgiam novas
histórias sobre o Engenho, durante a visitação e permanência no local também
acompanhou sua voz suave falando cada detalhe, como se tivesse num encontro
terapêutico de longa duração, rico em conteúdo, profundo em significado e autentico em
detalhes.
Diante desse conjunto narrado e transcritos, tratados e organizados em categorias
de análise, exponho o texto e os cenários em fotografias de arquivo pessoal. O que
permitiu responder o problema de pesquisa e seus objetivos de apoio. Esse foi o esforço
de luta, encontrar o caminho amparada nos conhecimentos acumulados, nas teorias
sociológicas, conceitos e reflexões críticas, na metodologia de escolha, a base para
fundamentar e responder o objeto desta pesquisa, o que se mostra no capítulo teórico na
sequência.
24
3 ENGENHO DE CANA-DEAÇÚCAR NO BRASIL: REFLEXÕES HISTÓRICO-
SOCIOLOGICAS
Neste capítulo, elegi alguns intelectuais clássicos e contemporâneos, cientista
social [sociólogos] para fundamentar o estudo e ajudar na reflexão do tema e o objeto de
pesquisa.
Sobretudo, olhando os discursos simbólicos e as ações práticas produtoras e
reprodutoras de relações sociais de interesse produtivo, envolvendo genealogia familiar,
indivíduos e grupos dominantes com influências e relações sociais fortes na política, na
economia, nas atividades culturais e religiosas do estado e da igreja enquanto objeto de
análise e reflexão. No contraponto com outras realidades vivenciadas por moradores
trabalhadores do mesmo território marcado por distinção. Me localizo a partir das
narrativas de história de vida da antiga ex-moradora entrevistada na pesquisa, assim como
seus relatos sobre o cotidiano [no, do] Complexo da Casa Grande incluindo o 3Engenho
Palma localizado no interior do estado de Pernambuco. Me refiro aos efeitos das ações
misturadas com a realidade impactada na vida dos indivíduos, especialmente os sem
privilégios ou beneficiamento das riquezas por eles produzidas.
Para tal, autores, como: Antonil (1711); Simonsen (1937, 2005); Freyre (1963,
1967, 1996, 2003); Prado Jr (1981); Oliveira (2000); Lisboa (2014) e outros igualmente
importantes, foram fundamentais na explicação e esclarecimento das questões de
pertinências vinculadas ao assunto e, também, no auxílio do artesanato intelectual ou na
tessitura do texto acadêmico para dar cientificidade e consistência. A partir desses
enunciados proponho discutir a arqueologia do Engenho Palma olhando aquilo que faz e
perfaz dentro do Complexo na percepção da entrevista ex-moradora do local.
Significa entrar na vida dela e dos habitantes para conhecer as histórias de vida
rela, os objetos materiais e materiais, as relações impregnadas de sentidos e
representações dentro e fora da Casa Grande, da Igreja, na política e no trabalho
produtivo. Nas relações de convivência social em meio as atividades culturais como
possibilidade de reflexão, crítica e debate.
Primeiramente, levo em conta o que Freyre diz a respeito do tipo de solo-terra,
clima e as condições adequadas ou adaptadas no Brasil que favoreceu todo esse processo
3 ENGENHO PALMA DA COMARCA DE BOM JARDIM. Atual referência do patrimônio histórico
do agreste de Pernambuco.
25
engenhesco começando pelo Nordeste do país. Diz logo que "[...] no Nordeste da cana-
de-açúcar, a água foi e é quase tudo. Sem ela não teria prosperado do século XVI ao XIX
uma lavoura tão dependente dos rios, dos riachos e das chuvas; tão amiga das terras
gordas e úmidas e ao mesmo tempo do sol", (FREYRE, 1967, p. 19).
O autor começa sua discussão sobre o solo de massapê, afirma ser um solo escuro,
pegajoso [rico em argila], em húmus, que tem fertilidade. Na geologia, o massapê como
é chamado no Nordeste e no Brasil, esse tipo de solo é o segundo mais fértil do mundo,
ficando atrás da "terra roxa", embora apresente cor avermelhada. Contudo, esse solo é o
resultado de milhões de anos de decomposição e sedimentação de origem basáltica
conforme os estudos da geologia em especial. A "terra roxa" e o massapê são
considerados os solos mais ricos e férteis no Brasil. Ambos, foram e são explorados,
primeiramente, para cultivo de cana-de-açúcar e, segundo, para a plantação de café.
Ao erguer os estudos de Freyre, ele mostra que:
O massapê é acomodatício. É uma terra doce ainda hoje. Não tem aquêle ranger
da areia dos sertões que parece repelir a bota do europeu e o é do africano, a
pata do boi e o casco do cavalo, a raiz da mangueira-da-índia e o brôto da cana,
com o mesmo enjôo de quem repelisse uma afronta ou uma intrusão. A doçura
das terras de massapê contrasta com o ranger da raiva terrível das areias sêcas
dos sertões. A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias
outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo Nordeste
e no Recôncavo se explica por condições particularmente favoráveis de solo,
de atmosfera, de situação geográfica, (FREYRE, 1967, p. 7-8).
Então, foram as condições da terra e do clima que levou a ocupação dela, a posse
e instalação do Engenho parte de um grande Complexo onde a Casa Grande, a Igreja, a
Senzala e o Engenho dependia da mesma matriz, a terra fértil. E com ela veio toda
estrutura erguida como rocha dura, todos os conflitos que persistem até os dias atuais.
O drama que se passou e se passa ainda no Nordeste não veio do fato da
introdução da cana, mas do exclusivismo brutal em que, por ganância de lucro,
resvalou o colono português, estimulado pela Coroa na sua fase já parasitária.
Dêsse drama, um dos aspectos mais cruéis foi o da destruição da mata,
importando na destruição da vida animal e é possível que em alterações do
clima, de temperatura e certamente de regime de águas. (FREYRE, 1967, p.
46).
Não encontro dúvida sobre a reflexão do autor, concordo e também constato
empiricamente e culturalmente como conterrânea que sou, que as condições favoráveis
encontradas por poucos indivíduos exploradores e grupos privilegiadas [famílias] do
26
Nordeste, contrasta com as muitas pessoas desfavorecidas, exploradas e escravizadas para
esse fim, o enriquecimento de alguns, a acumulação capitalista dos senhores de engenho
de cana-de-açúcar.
As condições dadas pela natureza e apropriação dela motivado pela cobiça
humana, teve efeito com a mesmo força e destruição semelhante a que sofreu os homens
e mulheres escravizadas sobre ela. Até, nada mais conseguir produzir sobre os corpos
danificados. O corpo das gentes escravizadas e a superfície da terra igualmente explorada
no Nordeste do passado, não tão distante assim. Ambos os corpos, a terra e o humano
sofreram os mesmos maus-tratos e impactos de empobrecimento. Com essas palavras,
adentro para localizar em Pernambuco o Engenho Palma e suas influências na vida da ex-
moradora entrevistada neste trabalho. Antes disso, exponho um breve histórico sobre o
tema.
3.1 Pernambuco – Oficial Capitania dos Engenhos do Brasil
A linha do tempo é o marco divisor da história sobre o surgimento e a evolução
dos Engenhos primitivo produtor de cana-de-açúcar e o açúcar industrializado no Brasil,
começando por Pernambuco, depois, Bahia e o resto do território colônia, até alcançar a
sofisticação e automação das usinas no Brasil Nação.
Se no ano de 1535, Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) fundou o primeiro
engenho de cana-de-açúcar na capitania de Pernambuco, três anos após o primeiro, outros
três Engenho já haviam sido instalados naquela região. Nos estudos de Lisboa (2014), é
possível observar que após a 4Restauração Pernambucana de 1655, a capitania do estado
possuía 109 Engenhos em funcionamento, devendo a estagnação da economia açucareira,
possivelmente devido aos impactos dos conflitos com os holandeses na colônia.
Considerando que “[...] poucos anos antes da invasão holandesa, Pernambuco possuía um
4 Insurreição Pernambucana ou chamada Guerra da Luz Divina. Em Pernambuco, registrou-se no
contexto da segunda das invasões holandesas do Brasil, um conflito entre pernambucanos e os holandeses
ocupantes dos territórios dos Engenhos, o que culminou com a expulsão destes numerosos indivíduos
[holandeses] da região Nordeste do país, especificamente de Pernambuco, tornando posse à coroa
portuguesa do território relativamente conquistado. Em 15 de maio de 1645, reunidos no Engenho de São
João, 18 líderes insurretos pernambucanos assinaram compromisso para lutar contra o domínio holandês
na capitania daquele estado. O movimento integrou forças lideradas por André Vidal de Negreiros, João
Fernandes Vieira, Henrique Dias e Filipe Camarão, nas célebres Batalhas dos Guararapes, travadas entre
1648 e 1649, que determinaram a expulsão dos holandeses do Brasil, quiçá, para sempre. Embora, tenham
deixado registros e grandes influências na capital.
27
número de engenhos superior ao que existia em 1655. Em 1623 existiam 137 engenhos2
e em 1629 a capitania contava com 150 deles”, (LISBOA, 2014, p. 197).
A autora lembra que a estagnação e diminuição do número de engenhos durante o
período holandês, tem a ver com
[...] a guerra de resistência entre 1630 e 1637 que trouxe uma maior diminuição
para a quantidade de unidades produtoras. As batalhas entre holandeses e luso–
brasileiros de norte a sul na zona da mata pernambucana fez com que os
engenhos se reduzissem a 108 ao fim da guerra de resistência. No entanto, a
recuperação se deu de forma muito rápida, pois em 1639 o número de engenhos
já tinha aumentado para 121, (LISBOA, 2014, p. 197).
O contexto da capitania pernambucana era de conflitos e impactos no Brasil
Colônia com consequências diversas, embora, na maioria dos casos, à exemplo da guerra
de restauração holandesa de (1645–1654), com motivação maior a tentativa de posse
[holandesa] e retomada [portuguesa] dos engenhos produtores do açúcar, apesar dos oito
anos de guerra, o conflito era concentrado e localizado naquela capitania.
Os engenhos fortemente afetados pela guerra de restauração, a maioria estavam
localizados na parte norte da capitania, afetando diretamente a freguesia de Paratibe
pertencente ao município de Olinda e a vila de Igarassu. Nessas regiões os Engenhos
foram todos arruinados.
Mas, nas demais regiões da capitania, nas regiões produtoras ao norte de Olinda, a
produção do açúcar continuou a moer cana e o açúcar final.
A ausência de registro em detalhes e oficiais a respeito da evolução dos números
de engenhos em funcionamento na capitania, dificulta muito na pesquisa de dados,
somente na segunda metade do século XVII, aparece o número de engenhos de
Pernambuco, registro realizados em torno de 1710 e 1711 com as etnografias e escritas
de André João Antonil, autor principal que foi estudado neste TCC. Apesar das
intempéries, a capitania cresceu em número de engenhos, ficando com 246 no total. Entre
esses, Antonil cita os engenhos de Itamaracá e Paraíba incluindo estes na contagem de
engenhos em Pernambuco. Razão pela qual, o Engenho de Itamaracá era um dos
pertencentes a família do Senhor do Engenho Palma que aparece nas narrativas da ex-
moradora entrevistada neste estudo.
O Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra], ainda na década de 50 e 60
administrava o Engenho de Itamaracá e o Presídio daquela, instalado e administrado por
ele mesmo e talvez sua família. Seu trânsito era de andança e revezamento entre a cidade
28
de Bom Jardim [lugar de origem e nascimento], o Engenho Palma propriedade produtora
e de moradia com a família, a cidade de Machados e a frequência no Engenho de
Itamaracá por ser o lugar em que instalou um famoso e temeroso presídio para detenção
e castigos dos escravos e desafetos pessoais oriundos da região. No caso, a penitenciária
de Itamaracá levava seu nome pessoal para identificar a prisão, fato que recentemente foi
desativada e transferida para a cidade de Limoeiro-Pe nas proximidades do Engenho
Palma, como aparece nas narrativas da ex-moradora e nos registros de pesquisas nos
capítulos seguintes.
É sobre esse Senhor de Engenho e sua propriedade que abriga o Engenho Palma
que inicio os tópicos e capítulos deste trabalho acadêmicos em desenvolvimento.
3.2 História e localização do Engenho Palma [Pernambuco]
O Complexo da Casa Grande do Engenho Palma – apesar da ausência de registro
histórico oficial – foi edificado no interior do estado de Pernambuco pertencente à
comarca da cidade histórica de 5Bom Jardim assentada no mesmo estado de referência.
5 HISTÓRIA DE BOM JARDIM
Uma poética lenda envolve a história de Bom Jardim. Acredita-se que no início do século XVIII, um único
fazendeiro possuía as terras que hoje formam o município. O sentimento religioso impulsionou o seu
desenvolvimento, pois o rico proprietário convidou um sacerdote para dar assistência aos poucos católicos
dos arredores, depois de mandar construir uma capelinha dedicada a Sant’Ana, próxima à sua casa. Tudo
entre uma vegetação cercada de paus-d’arco, também conhecidos como ipês. O sacerdote encantou-se com
a paisagem, classificando o local de majestoso, pois até havia “árvores de ouro”, referindo-se as flores
amarelas dos ipês e passou a chamar o lugar de Bom Jardim, origem ao nome do futuro município.
FONTE: Igreja matriz, praça central e pedra de granito marrom imperial de Bom Jardim. Fotografia
antiga de 1903, domínio público online, agosto de 2017. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=NggYLsNZrcY>. Acessado em: 29 de outubro, 2018.
Bom Jardim foi vila em 1870 e município em 1893. Hoje, é um dos mais prósperos municípios agrestinos,
tendo na cultura do abacaxi, bem como, na extração do granito e pedras semipreciosas, a sua maior riqueza.
Bom Jardim oferece uma infraestrutura de equipamentos e serviços. Hospedagens e restaurantes, tornam
agradável e divertida a estadia dos turistas que entram em contato com a culinária local e participam das
variadas manifestações populares.
Bom Jardim fica situado no Agreste Setentrional de Pernambuco a 110 Km do Recife, e o acesso é através
da rodovia estadual PE 90. Com altitude média de 334m, possui clima agradável com temperatura anula
29
Apesar da propriedade do Engenho Palma estar proximamente na divisa ou nas
proximidades da cidade de Machados-Pe, antes distrito também daquela cidade comarca.
Em razão da curta distância entre o Engenho Palma e a cidade de 6Machados, todo fluxo
em torno de 26ºC. O Município tem uma extensão territorial de 294 Km, onde se concentra a maior reserva
de granito marrom imperial do mundo. Suas manifestações culturais são marcadas pelas grandes expressões
musicais e poéticas, e sua culinária regional.
SOBRE O MUNICÍPIO DE BOM JARDIM
Bom Jardim é um município brasileiro do estado de Pernambuco. Localizado na Mesorregião do Agreste
Pernambucano e na Microrregião do Médio Capibaribe. O município é formado pelo distrito sede, pelos
distritos de Umari, Bizarra, Encruzilhada e Tamboatá, e pelos povoados de Freitas, Pindobinha e Lagoa
Comprida.
FONTE: Localização e limites do município de Bom Jardim. Mapa de domínio público online, agosto
de 2017. Disponível em: < http://bomjardim.pe.gov.br/sobre-o-municipio/>. Acessado em: 29 de outubro,
2018.
Cronologia municipal
29 de dezembro de 1757 – É criada a freguesia do Bom Jardim.
16 de agosto de 1800 – A povoação do Bom Jardim recebe os foros de Distrito.
19 de maio de 1850 – Lei Provincial 922 cria o município de Bom Jardim, desmembrado do território de
Limoeiro. A sede é elevada à categoria de vila.
19 de julho de 1871 – É instalada a Câmara de Bom Jardim, conforme comunicado através de ofício em 24
de julho do mesmo ano.
24 de maio de 1873 – Criação da Comarca de Bom Jardim.
4 de fevereiro de 1879 – Elevação da sede a categoria de cidade.
O município, no entanto, só foi oficialmente constituído em 10 de julho de 1893, com base no art. 2º das
disposições gerais da Lei 52 de 3 de agosto de 1892.
Geografia
Localiza-se a uma latitude 07º47’45” sul e a uma longitude 35º35’14” oeste. Sua população estimada em
2013 era de 38 871 habitantes.
Possui atualmente uma área de 208,39 km².
Hidrografia
O município de Bom Jardim está situado nos domínios da bacia hidrográfica do Rio Goiana. Seus principais
tributários são os rios Orobó, Tracunhaém e Caiai, além dos riachos: Cachoeirinha, Modo, Câmara, Pirauá,
do Tanque, Grande, Canguangue, Altos e Aroeiras. Os principais cursos d´água são temporários. A Represa
de Pedra Fina é o principal reservatório do município.
6 HISTÓRIA DA CIDADE DE MACHADOS
Fundação em 20 de dezembro de 1963. Distância da capital – Recife, 81 km. Machados está situado em
terras do antigo Engenho Bom Destino, que pertencia ao município de Bom Jardim. Pela proximidade ao
Engenho Machado (propriedade de uma família de mesmo nome), o nosso município recebeu o nome
Machados. O marco zero, localiza-se onde atualmente está edificada a Igreja Evangélica Congregacional.
A primeira casa, construída por Manoel João Rodrigues do Nascimento, no ano de 1890 e, lhe serviu de
residência e ponto comercial. Tal fato, despertou a atenção de outras pessoas, que começaram a construir
novas casas, iniciando, assim, a Vila Machados. A partir de sua fundação o povoado cresce e é elevado à
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comercial e social foi estabelecido com a comunidade mais próxima daquele Senhor de
Engenho. Assim, as influências políticas, econômicas e socioculturais estabelecidas entre
o proprietário do Engenho e os moradores da cidade de Machados também senhores de
outros Engenhos se estreitaram e prosperaram.
O herdeiro e proprietário [velho] 7Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra]
apesar de ser nascido e originário da cidade de Bom Jardim, suas ralações ativas envolveu
toda região do em torno do Engenho, incluindo as famílias privilegiadas da cidade de
categoria de vila. Em 10 de outubro de 1917 realiza-se a primeira feira livre, que resistindo às pressões de
alguns políticos da região, foi se firmando e atraindo a atenção dos comerciantes das comunidades vizinhas,
que aqui instalavam suas barracas a fim de comercializarem seus produtos.
Lei Estadual 4994, de 20 de dezembro de 1963, Art. 1º:
Fica criado o município de Machados, desmembrado do município de Bom Jardim, cuja sede será a do
atual distrito de mesmo nome, que será elevado à categoria de cidade.
População: 15.046 hab. IBGE/2014
Área: 56.957 km2
Bioma: Caatinga
CAPITAL DA BANANA
A banana é objeto de grande comércio internacional. É própria de clima quente e úmido, preferindo as
planícies próximas ao mar e resguardadas dos ventos. Os terapeutas e médicos recomendam a banana contra
enfermidades além de grande valor nutritivo. É ligeiramente diurética e laxativa. Conhece-se no Brasil mais
de 30 variedades de banana. As mais comuns são: prata, nanica, ouro, maçã, d’água, São Tomé, figo, da
terra, cacau, abóbora, chocolate, manteiga, etc.
Da bananeira tudo é aproveitado: raiz, pseudo caule, folhas, frutos e o mangará. Tanto na culinária,
medicina natural, como nas artes e no artesanato.
Machados é rico no cultivo da banana ficou conhecido como Capital da banana, seu Artesanato é
diversificado com bordados, pinturas, a palha da bananeira, e seus Licores a base de Frutas regionais.
7 NOTA. DR. ÊNIO PESSOA GUERRA [EM MACHADOS DO PASSADO]
Machados, traz hoje no seu registro fotográfico algumas fotos do popular Dr. Ênio Guerra [Senhor do
Engenho Palma]. Por muitos anos foi uma grande liderança política na região e na cidade de Machados,
chegando a ser deputado estadual. Quem não conhece as terras do Engenho Palma, e tantas outras histórias.
Dr. Ênio Pessoa Guerra nasceu em Bom Jardim, a 16 de julho de 1928. Filho de família tradicional, seus
pais, Flávio Pessoa Guerra e Josefa Galvão Pessoa Guerra, sempre prezaram pela formação de seus filhos.
Estudou em colégios da capital do Estado e na Faculdade de Direito do Recife, onde concluiu o curso de
Direito.
Várias foram as funções públicas exercidas por Dr. Ênio Pessoa Guerra. No Governo Cordeiro de Farias,
foi Diretor da Penitenciária Agrícola de Itamaracá, no período de 16/04/1954 a 31/01/1959, exercendo o
cargo com altivez e seriedade, tanto que retornou à direção daquela penitenciária no Governo de Paulo
Pessoa, permanecendo como diretor de 19/09/1964 a 15/08/1966.
Posteriormente, tornou-se Membro do Ministério Público atuando como Promotor Público da Comarca de
Orobó, onde se destacou graças à sua determinação na defesa dos direitos inerentes à cidadania.
A bela atuação em cargos públicos o credenciou a pleitear um assento na Assembleia Legislativa do Estado
de Pernambuco. Elegeu-se Deputado Estadual em 1966. Sua atuação naquela legislatura merece destaque,
integrou a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, a Comissão de Economia, Agricultura, Indústria,
Comércio, Viação e Obras Públicas, além da Comissão da Área das Secas e Negócios Municipais.
Em 1970, foi reeleito Deputado Estadual. Em 1973, saiu vitorioso na eleição de presidente da Casa Joaquim
Nabuco para o biênio 73/74. Nas eleições realizadas em 15 de novembro de 1974, foi reconduzido à Casa
Legislativa.
Enfim, seja como diretor de uma das maiores penitenciárias do Estado, Promotor de Justiça, Legislador ou
mesmo Delegado da SUNAB, o Dr. Ê. sempre buscou atuar com retidão e justiça. O Projeto de Lei
Ordinária nº 254, de autoria do Deputado Ricardo Teobaldo, que visa denominar de Penitenciária Dr. Ênio
Pessoa Guerra, o presídio de Limoeiro.
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Machados, com quem mantinha fortes laços de amizades, parentescos e compadrios
políticos fortalecido pelo transito comercial e cultural do lugar familiar. Da recém
emancipada cidade, antes dependente de sua comarca.
O Complexo da Casa Grande do Engenho Palma representa um projeto
arquitetônico com função e representação econômica, política, social, cultural e religiosa
forte, mas também de alta complexidade analítica com vista nas relações estabelecidas no
micro cotidiano interno e no macro externos com o estado, a política e a Igreja.
De fato, o Engenho é um monumento material e simbólico com edificação
característica de uma engenharia rústica, arcaica, conservadora, patriarcal dominante de
determinada família e época da história do Brasil. Quando o país levantava suas estruturas
e ainda levanta com concreto e vigas à base do trabalho escravo, da exploração brutal do
corpo humano, das massas dominadas com mão de ferro. Se erguia pedras, tijolos e
armaduras maciças para construir um lugar material-físico que não é seu, nem da maioria
dos produtores das riquezas. E o Complexo da Casa Grande, o Engenho Palma também é
resultante disso.
É sim uma estrutura robusta e forte como uma fortaleza guardiã do rei, com
muralhas invisíveis vigiadas com armas de fogo, como pude observar de perto, jagunços
e pistoleiros rondando os limites da terra. O monumento histórico sobreviveu ao tempo
de forma admiravelmente conservada. Quando comparada com outras estruturas, foi
possível observar que ali o concreto se misturou com sangue e suor das muitas vidas
humanas. O substrato do imaterial ainda permanece no lugar, nas paredes grossas, no piso
de pedra bruta, no chão batido, nas madeiras sem prego, nas máquinas de ferro amaciadas
com a força das mãos. Tudo estar impregnado nas velhas estruturas [lágrimas, dor, choros,
histórias e vidas] assim caminhando com o tempo que permanece no mesmo lugar.
O passado ressurgindo no presente com outras vozes, as vezes com a tonalidade
fraca, mas que insiste ecoar com esforço de transmitir experiências vividas em outra
versão da história. Aquela contada por quem nasceu e viveu no lugar, e,
involuntariamente, guarda consigo as memórias longínquas e inesquecíveis como é o
exemplo da antiga ex-moradora do Engenho. É mais do que uma narradora de histórias,
é a constatação da história pessoal e do lugar.
A vida cotidiana [no e do] Engenho Real só poderia ser contada com tanta
precisão, detalhes e fidedignidade por alguém que fez parte do dia a dia, que nasceu,
cresceu e viveu a infância e a adolescência se misturando com a terra, vivendo os
acontecimentos, testemunhando os fatos, sentindo a realidade no ordinário. Não
32
importando aqui se era ou não uma moradora criança de classe social baixa, média ou alta
conforme a pirâmide social sociologicamente falando, se pertence a raça supostamente
inferior ou superior, se é de cultura dominante ou periférica. O que interessa mesmo e de
fato é ouvir suas narrativas, a percepção e o observado dentro do Engenho para ajudar
compreender o funcionamento do lugar, a vida realçada e invisibilidade no Complexo,
isso é o que interessa. Talvez, aquilo que os indivíduos e a sociedade ainda não conheçam
do lado de dentro e em detalhes, sequer viu falar, menos ainda serviu de testemunha viva.
Essa é a finalidade da pesquisa, mostrar o interior do Engenho Palma sem
desvalorizar a imaginação criativa, até a realidade criada, fantasiada por aqueles que
contou, talvez, ou, apenas conhece um lado da história, a face oficial do enredo. Ou,
simplesmente, olhando do lado de fora, da varanda da Casa Grande. Interessa sim
valorizar todo esse esforço, mas em especial os conteúdos, as escutas e histórias contadas
por quem viveu a realidade cotidiana, o dia a dia do engenho, com os pés no chão da
propriedade maior. Nada mais do que a empiria da vida vivida por quem viveu o Engenho
de forma supostamente livre e espontânea. Para assim então registrar e analisar os
achados, os elementos e objetos parte do contexto real.
De sorte, foi essa a condição dada pela entrevistada em destaque, por conceder
seu tempo, sua dedicação e se dispor em narrar sua história permitindo ouvir e ouvindo
sua própria voz. Sem espírito de autojulgamento, do que é certo ou errado, apenas contar
o que viveu, viu, sentiu, dentro do lugar. Do ponto de vista formal na pronuncia das
palavras é a parte menos importante. O interesse e o esforço primordial foi o de ouvir e
registrar o que ela tinha para falar sobre o concreto-real no Engenho munida de detalhes.
Com esse foco mostrar a realidade tal qual ela se manifestava aos olhos da ex-moradora
do Complexo. Nada além disso.
A partir das narrativas, imagens e fotografias [recentes e antigas] transito no
ambiente tocando e sentindo as estruturas do Complexo, a vida dos habitantes se
misturando à arquitetura e os objetos históricos, mas que eram de uso cotidiano. E
enxergar, tudo que existia no lugar interagia e se agregavam entre si, empregando valor,
sentido e representação.
Tanto que muitos moradores, filhos de gerações anteriores, nasciam, cresciam,
casavam-se e viviam em meio as estruturas físicas, aos objetos, cenários naturais e
artificiais do Engenho e da Casa Grande criados para produzir identidade social,
referência pessoal e de grupo, relações de convivência próximas e distantes, distinção
social conectada a função produtiva, hierarquia de classe social, poder econômico e
33
político. Ali, se constituía a vida familiar do senhor de engenho [proprietário da terra, dos
escravos ou dos moradores trabalhadores] num mundo à parte, apesar das adversidades,
conflitos, desigualdades e mudanças cotidianas, mas, cada um se percebia pertencente ao
mesmo espaço-lugar.
Nas palavras de Freyre (1963, p. 83), “[...] a família não é o indivíduo, nem
tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é, desde o século XVI, o
grande fator colonizador no Brasil”.
E ainda acrescenta dizendo que
[..] a nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante, tendo a
família rural ou semi-rural por unidade, quer através de gente casada vinda do
reino, quer das famílias aqui constituídas pela união de colonos com mulheres
caboclas ou com moças órfãs ou mesmo à- toa mandadas vir de Portugal pelos
padres casamenteiros. Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira,
a família colonial. Com a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, o
patriarcado rural que se consolidava nas casas-grandes de engenho e de
fazenda [...] começou a perder a majestade dos tempos coloniais, (FREYRE,
1963, p. 89: 105).
Então, não é apenas uma Casa Grande ocupando espaço na propriedade com a
função de guardar uma família patriarcal nascida a partir do poder do Senhor de Engenho,
que tudo controlava com seus vários olhos multiplicado na face dos moradores
igualmente dominados. De longe e de perto enxergava a senzala cativa dos escravos
coisificados da propriedade, a produção no campo, o cultivo da cana-de-açúcar e o
funcionamento de tudo, incluindo o Engenho. Era sim tudo isso, mais também se figurava
num grande Complexo imaterial produtor de representações ínfimas e sentimentos
profundos que ainda sobrevive ao tempo. Quem é esse Senhor para seus moradores? É o
que mostra e discuto nas fotografias em exposição neste trabalho. Ali, aparece a dinâmica
da vida familiar, a cultural religiosa, a classe social privilegiada do velho e do novo
Senhor [Ênio Guerra – pai e filho] herdeiros das terras, da política local, da vida farta, em
comparação com a realidade dos moradores habitantes do mesmo lugar.
Não há dúvida de que o patriarca
[...] senhores rurais. Donos das terras. Dono dos homens. Dono das mulheres.
Suas casas representam esse imenso poderio feudal. O senhor de engenho ficou
dominando a colônia quase sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que
os vice-reis e os bispos, (FREYRE, 2003, p.38).
34
Atualmente, o Engenho Palma tenta deixar para trás o passado negativo vinculado
ao estigma da propriedade escravista de outrora, observa-se que há um esforço para
transformar o Engenho carregado de histórias e conteúdos paradoxais, em patrimônio
material de natureza imaterial, histórico cultural e simbólico que o estado de Pernambuco
propõe, obviamente isso é positivo não há dúvida, mas não significa o apagamento do
passado, das marcas e impressões deixadas no corpo e na memória das pessoas que lá
nasceram e viveram experiências, as histórias dos moradores que nasceram, viveram e até
morreram no lugar.
Felizmente, é sobre isso que proponho apresentar e explorar nas narrativas da
entrevistada, nos registros dos objetos históricos e fotografias capturadas no local à olho
nu, para fim de discutir e analisar as categorias levantadas no capítulo IV, na sequência
do estudo.
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4 RESULTADOS DA PESQUISA
“Este é o Engenho da Palma onde nasci e me criei”, (Entrevista da antiga ex-
moradora, julho-agosto, 2017).
Num processo construtivo em torno do tema e do objeto de pesquisa, dou início
neste capítulo a apresentação dos dados e resultados do estudo correspondentes as
questões levantas para reflexão. Logo e de imediato faço novamente a pergunta ponto de
partida para conduzir o processo analítico questionando: qual a percepção da antiga ex-
moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na adolescência
no Complexo da Casa Grande do Engenho Palma?
Recorri aos conteúdos de narrativas transcritas de gravações de áudios
extraoficiais, tratados em banco de dados e organizados em categorias analíticas para
responder à questão principal com auxílio dos objetivos de apoio, nos quais instigam as
motivações implicadas nos acontecimentos olhando para o todo complexo da vida social,
produtiva, cultural, política, econômica e familiar do Senhor proprietário das terras.
Trazendo para o centro a dinâmica das relações sociais e de convivência, o contato
estabelecido entre o Senhor, as instituições e os moradores da propriedade. São pontos de
interesse e investigação.
São conteúdos de narração longa em que a entrevistada antiga ex-moradora do
Engenho Palma se debruçou para contar suas memorias vividas na infância e
adolescência, detalhando os acontecimentos observados no local e também sobre os
objetos e fotografias dos cenários. Com os olhos, a mente e os sentidos preparados para
o encontro de face a face. É um relato sobre o que viu, ouviu, viveu e percebeu em meio
as conversas adultas no cotidiano do Engenho, a vida prática e construções simbólicas
parte dos ambientes habitados e relativamente restritos. As terras de sua andança e
exploração om brincadeiras infantis criadas e inventadas por ela mesma enquanto
caminhava na propriedade – os rios, a vizinhança, a plantações, o gado, o mel de furo,
como ela mesmo fala.
Baseada nas narrativas de histórias de vida da entrevistada, seus enredos
detalhados sobre a vida pessoal, social, produtiva e cultural do Engenho, destaco os
aspectos de suas experiências no Engenho. Para enxergar as imagens guardadas na
memória da informante, observar como percebe a conduta do Senhor de Engenho, a
percepção de sua família e dos moradores trabalhadores do lugar. A partir de suas
narrativas entender o que chama atenção da entrevistada criança daquela época, de como
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era visto o mundo de contraste em sua volta, “livre”, controlado e dominado por adultos
de riscos, ou, de confiança como era o caso de seu avô paterno. O que ela observada com
vista em tudo isso? Como reagia ao ambiente?
São aspectos que apresento num conjunto de tópicos [categorias analíticas]
levantadas nos capítulos IV e V deste trabalho, cujos resultados e achados da pesquisa
necessitou de organização e apresentação em partes distintas e conexas. Em cada parte,
os conteúdos sinalizados no quadro analítico visto no desenho metodológico da pesquisa,
conforme os assuntos das partes [I, II, III, IV], a estrutura de apresentação deu conta do
capítulo IV em especial. Depois, destaquei os gráficos de hierarquias de palavras e
conteúdos indicadores de sentimentos positivos e negativos evidenciados no capítulo V
deste trabalho, todo enredo e divisão do trabalho seguiu a mesma sistemática de
apresentar as narrativas, discutindo os conteúdos e tecendo a crítica discursiva e analítica.
Assim, na parte I, a atenção inicial foi centrada para a construção do perfil pessoal
da entrevistada, sua ascendência familiar e contexto sociocultural de referência. O modo
de vida e de viver no Engenho Palma, seus contos e ludicidade infantil própria de sua
idade de criança supostamente livre.
Na segunda parte do estudo do capítulo IV, situo o cotidiano do Engenho olhando
o ritual do casamento e a formação da família patriarcal dominante do Senhor do Engenho
Palma, suas relações sociais conectadas a vida religiosa, política, cultural e produtiva
envolvendo igreja, estado, a comunidade local e os moradores da propriedade, tudo parte
da mesma estrutura funcional do Complexo.
Na sequência das partes [III e IV], destaco o cotidiano e o funcionamento do
Engenho visto e vivido por uma criança e, ao mesmo tempo, tudo sendo discutido com as
contribuições dos autores da história e da sociologia que muito ajudou entender os
acontecimentos e a trajetória da entrevistada em meio aos conflitos impactados no mundo
Engenho conectada a vida dos adultos dominantes e dominados naquele contexto, em
especial a vida distintiva e as relações sociais do Senhor do Engenho Palma em contraste
com a dos moradores trabalhadores explorados ressurgidos do sistema semi-escravista na
década de 50 e 60. Do mundo produtivo masculina iniciado na lavou à vida doméstica
feminina, homens e mulheres servis dentro do Engenho e da Casa Grande à disposição de
um único Ser, o Senhor de Engenho.
E assim foi sendo tecida as partes e o todo com a articulação dos conteúdos vistos
em cada etapa do trabalho. Com isso, foi dando visibilidade para o ritual do casamento
do Senhor de Engenho e o lugar ocupado por sua família atrelada às conexões da Casa
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Grande e todo Complexo. O poderoso sistema de controle e funcionamento na fábrica de
produzir riquezas, tudo isso fazendo parte dos resultados da pesquisa discutidos neste
estudo e num fôlego só. Até alcançar o capítulo V e as considerações finais para selar o
fechamento do processo. É isso.
Na maioria das etapas do trabalho, as narrativas, imagens e fotografias dos
cenários do Engenho acompanha o texto discursivo, analítico e interpretativo desse
estudo. Não necessariamente nessa ordem.
PARTE I
4.1 PERFIL, ORIGEM E CONTEXTO SOCIOCULTURAL
A entrevistada é uma senhora idosa de 67 anos de idade [ano de referência, julho
2016] de origem familiar relativamente humilde segundo ela. De aparência e
características físicas de raças miscigenadas [mistura de índio, negro e português].
É de estatura mediana e tipo físico médio, cabelos crespos, cor de pele parda quase
negra, de voz mansa e calma, passos lentos e olhar profundo, cor dos olhos castanho-
escuros. Seu fenótipo predominante é característico da raça negroide contrastando com a
sensibilidade e natureza psicológica de povos indígenas. Demostra valentia, força e
determinação influência da cultura portuguesa talvez. Mas, a constatação é de que estive
durante semanas diante de uma face marcante, de uma ex-moradora de Engenho de
aparência peculiar, expressividade e alegria contagiante de uma “guerreira” resistente,
forte e frágil ao mesmo tempo. Delicada, caipira e marcada pelas intempéries da
sazonalidade do tempo, mostrando no corpo os desgastes da energia retirada pelo sol, a
esfregação da terra. Um corpo e alma feminina dedicada ao trabalho no campo, lugar de
cultivo da lavoura de subsistência e luta pela sobrevivência. Uma senhora hoje idosa que
serviu para procriação de filhos e afazeres domésticos sem fim.
Foram essas as marcas observadas na face e no semblante dos olhos, nas mãos,
braços e pés. As rugas na pele também revelam a passagem do tempo, os fios de cabelos
brancos desidratados pelo sol. São sinais indicadores de dificuldades vividas e marcas de
maus-tratos masculino.
O Engenho Palma é o seu lugar de origem e raiz. Onde morava com os membros
de sua família biológica, aqueles com quem teve a sorte de conhecer e conviver na
infância, o seu avô por exemplo. É a partir dessas aproximações reconstruiu na imagem
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metal um autorretrato da vida pessoal e familiar misturada à paisagem e os elementos do
lugar.
Afirma que seu avô paterno era foreiro locatário de glebas de terras para cultivo
de lavouras [sustento da família]. Plantava e colhia as culturas de subsistência do grupo.
Também era comerciante itinerante na região do em torno, vendia produtos agrícolas,
alimentícios e de utilidades para a freguesia próxima das mediações do Engenho.
Nos registros de Antonil (1711, p. 19-20) consta que:
Dos Engenhos depende os lavradores que tem partidos arrendados em terras
do mesmo Engenho como cidadãos fidalgos: e quanto aos senhores são mais
possantes e mais aparelhados de todo o necessário, afáveis e verdadeiros; tanto
mais tão procurados, ainda mais dos que não tem a cana cativa, ou por antiga
obrigação, ou por preço, que para isso receberão.
Servem ao Senhor de Engenho em vários ofícios, além dos escravos da enxada
e foice que tem nas fazendas e na moenda e fora os mulatos e mulatas, negros
e negras da ceifa ou ocupados em outras partes: barqueiros, canoeiros,
calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores.
Tem mais cada Senhor desses necessariamente um mestre de açúcar, um
banqueiro e um contrabanqueiro, um purgador, um caixeiro no Engenho e
outro na cidade, feitores nos partidos e roças, um feitor Mór no Engenho; e
para o espiritual um sacerdote seu Capelão; e cada qual desses oficiais tem
soldada.
A entrevistada é órfã desde os nove meses de idade, foi abandonada pelos pais
biológicos ainda recém-nascida. Com a separação conjugal do casal foi entregue para o
avô paterno [idoso] criar e cuidar da menina bebê. Este, fazia o papel e função de pai e
mãe da infanta, dedicou afeto e proteção até os cinco ou seis anos de vida, depois faleceu.
A menina órfã ficou desprotegida e sozinha no mundo. Nunca conheceu seus pais
biológicos nem teve vínculo com os parentes. Cresceu no Engenho convivendo com as
famílias conhecidas moradoras do lugar, até os 12 anos de idade. Quando se afastou da
propriedade para trabalhar de doméstica na cidade de Machados-Pe, lá começa a fase
mais trágica de sua vida na companhia de seu agressor sexual e de seus filhos pequenos.
Após o falecimento do avô, a entrevistada permaneceu na companhia de sua
madrasta-avó [segunda esposa do ente afetivo] e alguns parentes meio consanguíneo, com
quem conviveu até os 8 anos de idade, depois fugiu para morar com a vizinhança para
escapar dos maus-tratos sofridos na convivência com a madrasta. Foi totalmente
abandona por aqueles membros da família. Nesse intermédio, partiu para trabalhar de
doméstica na casa de outro proprietário de terra da cidade de Machados herdeiro do antigo
Engenho Machados Velho, local onde vive até os dias atuais. Assim ela narra:
39
4.1.1 O Engenho Machados Velho e o atoleiro do açude
Perguntei para a entrevistada, o que a senhora sabe sobre o Engenho de Machados
Velho, propriedade que deu origem ao nome da cidade de nascimento de seus filhos?
Dona Bazinha que me contou. 8Dona Bazinha é a mãe do pai dos meus filho.
Ela disse que conheceu o Engenho de Machados Velho moendo cana ainda,
ela disse. Que ela dixe que a besta era que moía a cana. Sim. Dixe que botava.
Dixe que botava uma canga nas besta. Os cavalos. Botava uma canga na besta
e tinha uns nêgo dando nas besta, pras besta rudeá. Antigamente era os nêgo
mesmo que arrudeava e moía a cana nesse Engenho de Machados ela dixe.
Machados Velho, e depois era as besta que moía e tinha os nêgo pra dá nas
besta. As besta arrudiá e quando elas arrodiava ia moendo, ia rodando a coisa
e ia moendo a cana.
Foi. Dona Bazinha dixe que conheceu isso aí. As besta arrudiava, arrudiava e
aquela cana caindo, quando as besta tava cansada trocava outros cavalo, até
moê aquela quantidade de cana. Que ela dixe pra mim que aquele açude dele
lá, dixe que caiu um carro de cana com boi, com o carreto, com tudo sabe.
Apareceu ali. Eu acho que era o atolêro. Ali, tem uns atolêro tão grande! A
gente passo um dia desses por lá eu e Pedro, eu já vi dois bois cair naqueles
atolêro ali. Naqueles atolêro. Ai, eles mais que depressa correu com as varas
de pau bem grande, butavam debaixo dela. Senão minha filha esse carrero, esse
carro de boi tirado de cana, os boi e esse Carrero sumiu nesse atolêro, nesse
açude. No que eles caíram afundaram, sumiram. Que eles passava por cima do
açude pra levá os caldo de cana. Dessa vez eu acho que o pneu do carro saiu
fora do “bado”, escapô, acho que sumiu. Não apareceu nem cavalo, nem carro,
nem boi, nem ninguém. Nem cana nem nada. Ali tem atolêro tão grande que
se uma casa dessa caí lá vai simbora. Fica no açude, pra cima tem um atolêro
desse, ele pisava ali, balançava pra todo canto e lá pra baixo também que foi
duas vaca atolada, que eu passei por lá essa semana eu vi. Tudo marcado de
pau que ele butô, que se pisá ali vai simbora. Não foi não Pedro?
Pedro era o seu neto, atualmente adolescente que acompanhava a entrevistada
em processo de narração.
É de lama. “Massapê”. Eu não sei dizê o que é que quer dizê esse negócio viu.
Não é areia não. É um barro. É um “massapê”. Em vários lugar. No Engenho
de Palma não sei.... (silêncio). Mas tinha sabe por quê? Porque tinha lá um
lugar até proibido de passá. Que se passasse afundava. Eu acho que era esse
alagadiço, esse negócio também. Esse alagadiço. É um lugar que a pessoa pisa
e vai simbora, some. Atoleiro é. (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA
EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
4.1.2 Fim do Engenho Machados Velho [herança]
Era, depois que ele [pai de seus filhos] boto o sitio né, depois que o Engenho
acabo. Agora é Machadinho. 9Ela só me falou isso. Ela conheceu o avô [dos
filhos] foi no outro Engenho Bom Destino. Acho que ela vinha pro lado de cá
e via né. Acho que era menina ainda, ou senhora novinha, assim. Ela era nova.
Que ele não vinha, o avô não vinha de Bom Destino pra Machados Velho.
Transitava de um Engenho pra outro. (IBID).
8 É a avó dos filhos, atualmente é viva e lúcida com 107 anos de idade. 9 É a avó dos filhos, atualmente é viva e lúcida com 107 anos de idade.
40
Para melhor entender o contexto, pedi esclarecimento e perguntei: as terras da
cidade de Machados eram do avô de seus filhos?
É, como eu falei: Machados Velho, Bom Destino e Panorama. Era três
Engenhos de uma vez, do mesmo dono. Ela disse que conheceu Machados com
três casa de palha. Ela conheceu os fundador de Machados todinho, ela
conheceu. Acho que Machado não era cidade não. Era umas casinha de palha
que tinha. A Igreja era uma casinha de palha, depois foi que foram aumentando.
Aqueles fundador foram fazendo o Engenho. Apareceram, depois que foi
aparecendo varias pessoas, depois que ele morreu né. Que o pai dele 10morreu,
foi ficando lá e foi chegando aqueles hôme mais importante né. Que nem o Dr.
João. Dr. João Marques, o Coronel Major João Marques.
Esse Coronel Major João Marques acho que ainda era família dele! Sim.
Coronel Major João Marques é o fundador de Machados. Foi quem fez o
Colégio, Grupo pros menino estudá. E foi isso, e foram formando, foram
formando a cidade. E era em terra, não tinha pista, não tinha nada, não tinha
transporte, não tinha nada. Depois foi que fico, que foram organizando não é,
aí, virou assim, virou essa cidadezinha. Mas não era assim, era sítio o Engenho,
terra de ninguém. (IBID).
Continuando a perguntar: a senhora sabe dizer se apôs o falecimento do avô de
seus filhos as terras do Engenho Machados Velho continuaram com os herdeiros?
Eu acho que sim. Eu não sei muito não. Eu acho que depois que ele morreu, eu
acho que foram vendendo, foram acabando né. Não, eu acho que quando ele
morreu um dos filhos era rapaz já, acho que era, eu não sei muito dessa história.
Mas quem tomava conta, quando ele morreu quem tomou conta das coisa, da
casa grande lá foi os filho dele. Que era (4) quatro filho parece. Dona Bazinha
dixe que ainda viu essa Casa Grande com umas parede em pé ainda, ela disse.
Eu sei que eles moravam em Bom Destino. Quem cuidava, acho que devia sê
os empregados. De tempo de escravo né. Devia ser, no começo devia sê tudo
escravo, né? Era libertação dos escravos ainda, isso era o negócio da
escravidão ainda né? (IBID).
A entrevistada também manifesta sua percepção sobre a madrasta-avó, segunda
esposa de seu querido avô depois que ficou viúvo da avó indígena com quem havia casado
e tido seus primeiros filhos. Narra:
4.1.3 Madrasta-avó e o cabelo ruim
Ah! Não tem nem como compará. Não tem nenhuma pessoa que eu compare 11ela, era daquela cor de Sinhá. Era, sei que ela era bem alta e mais forte que
Sinhá. O cabelo era daquele jeito, tinha uma parte que não tinha cabelo sabe?
Ela tinha o cabelo bem ruim. Ela tinha o cabelo ruim daquele jeito, preso
10 O avô dos filhos da entrevistada foi assassinado no Engenho Bom Destino [sua propriedade] com 17
perfuração de arma branca, em emboscada. Uma informação que consta nas pesquisas realizadas
anteriores [TCC e Tese] com a entrevistada e outros membros de sua família [filhos]. 11 A entrevistada se refere a sua madrasta-avó, quem a maltratava quando era criança.
41
daquele jeito. Ela era um cipó, bem grande. Era meia forte, mas ela não era
escrava não. Meia preta mas não era escrava.
Meu padrinho, meu avô arrumo essa mulher, não sei aonde foi, nem de onde
era nem nada. Foi quando eu conheci ela.
Ela era do Engenho Palmas?
Era assim: Ele não era de Palmas não. Ele veio morá em Palmas depois. Meu
pai e as minhas duas tias. Ele ficava lá conversando mas é que eu não me
lembro. Eles nasceram na Palma não. Ele parece que chegou na Palma com
esses filho dele pequeno. Mas nasceram na Palma não. Era noutro lugar que
ele morava, agora não sei aonde.
Sim. Não sei, não sei qual o lugar não. Isso era muito, muito. Ele conversava
assim muito as coisa, porque eu perguntava muito as coisas, eu era
perguntadeira, eu gostava de sabê das coisas: - Padrinho, ô padrinho, onde é
que o Sr. morava? Ele me dizia. Mas não me lembro mais não. Eu vim pra
Palma. Ele já chegou casado em Palma. Lá no lugar anterior, não em Palma.
Com essa mulher e com esses três filho dele. Agora não sei onde foi o lugar
não. Não, foi só isso que eu vi mesmo. (RELATO DA ENTREVISTADA
ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
Na nova cidade [Machados] de trabalho e moradia doméstica, a entrevistada em
fase inicial de sua adolescência foi explorada e abusada no lugar estranho por pessoas
também estranhas, tudo diferente do ambiente do Engenho que muito bem conhecia.
Passou a viver presa e sem liberdade dentro de uma casa de risco, restrita ao
mundo doméstico de um patrão violento. Logo, infelizmente, ocorreu o inesperado no
local de trabalho, foi abusada sexualmente e estuprada pelo indivíduo [patrão] doméstico
adulto, casado e pai das crianças que a menina cuidava. À base da força foi violentada
sexualmente dentro da casa ficando gravida do patrão aos 12 anos de idade. Teve seu
primeiro filho com 13 anos.
Resultante das violências sexuais e domésticas sofridas permanentemente, o
agressor sexual estuprou a menina virgem transformando-a em mulher-mãe por 19 vezes,
foram quase duas dezenas de gestões de filhos, uns nascidos vivos outros sequer
nasceram, espancados, mortos e abortados ainda no útero pelo próprio pai agressor. Os
sobreviventes atualmente soma 14 membros adultos, 10 mulheres e 4 homens. Segundo
ela, são os motivos absolutos de sua existência e alegria de viver, a quem transfere e
recebe amor e cuidado, representam o sentido de vida. Dos 12 aos 40 anos de vida a
entrevistada esteve em cativeiro doméstico mantida por seu agressor procriando filhos à
base das violências anos após anos ininterruptos. Uma escrava sexual exclusiva de um
homem abusador e violento. Uma sequência frenética de atos violentos que depois se
ampliou com atividades sexuais incestuosas praticadas contra as filhas adolescentes, onde
o agressor da mãe se transformou no abusador e algoz de toda a família.
42
Depois desses acontecimentos trágicos, a antiga ex-moradora do Engenho não
conseguiu mais retornar ao local de origem e nascimento para restabelecer os vínculos
sociais com a vizinhança deixado para traz. Raramente conseguia revisitar a propriedade,
somente depois que atingiu a fase adulta e a terceira idade, quando se separou e se viu
livre do agressor pessoal e de sua família.
Atualmente é aposentada beneficiária da aposentadoria rural e filiada ao sindicato
da cidade onde mora. Vive sozinha em sua casa, é separada do pai de seus filhos
aproximadamente há dez anos. Sente-se hoje uma pessoa livre e feliz. Agora pode ir para
onde quiser e fazer suas escolhas cotidianas. Tem amizade com a vizinhança da cidade
onde mora, viaja para visitar seus filhos sem dar satisfação para ninguém. Seu desejo é
permanecer na cidade de nascimento de sua família até os últimos dias de sua vida.
Foi alfabetizada pela própria filha que é professora do Programa de Alfabetização
de Jovens e Adultos – Paulo Freire. Aprendeu ler e escrever recentemente, quando
conseguiu a separação do ex-companheiro agressor. A religião foi a principal motivação
para os estudos, conseguir ler as escrituras da bíblia. Atualmente se declara evangélica
praticante, embora tenha a formação católica.
Pude observar que se trata de uma 12senhora saudável, lúcida, agradável, educada,
alegre e bem-humorada. Dedicou sua máxima atenção e zelo para narrar sua história de
vida em meio as diversidades vividas. Talvez, as dificuldades superadas fizeram dela uma
pessoa forte, dona de uma história indescritível por outra voz. Somente ela podia ser capaz
de contar o que viveu com precisão, segurança, detalhes e conhecimento dos fatos.
No mínimo é uma participante especial em todos os sentidos da expressão da vida.
Ouvi-la, foi uma grande experiência, um aprendizado intransferível, o maior teste
enquanto pesquisadora de campo e profissional interdisciplinar que me esforço para ser.
Um teste para a formação acadêmica, de resistência pessoal, de resiliência, humildade,
comprometimento e dedicação sem fim. Nada menos do que um apanhado para o resto
da vida.
12 Fonte: Fotografias antiga [fase jovem-adulta] e recente[fase adulta-idosa] lendo a Bíblia. Acervo da entrevistada para uso da pesquisa, 2017.
43
Em concomitância com o processo de narração e observação do campo, a
formatação da proposta de pesquisa foi sendo adaptada com o desenvolvimento das partes
do trabalho. Muitas coisas aconteceram nos ambientes transitados dentro do Engenho
principalmente, aquilo que parecia ser uma imagem na miragem do tempo, com os pés, o
corpo e os olhos no lugar alguns objetos foram se modificando. A admiração foi uma
qualidade mútua, o espanto pela manifestação de sentimentos fortes à flor da pele da
entrevistada ao sentir-se parte do lugar, o que rendeu um permanente compromisso entre
as envolvidas no processo até o esgotamento daquela energia transbordada. Finalmente,
considero um perfil raro de se encontrar em investigação empírica.
A Palma é um Engenho onde eu nasci e me criei, onde meu avô, meu tio
morava, eu morava. Morava na Palma, era.
Da Palma eu sinto saudade de, de, do Engenho, tumá caldo de cana. Livre,
brincando por aquelas, aquelas solta, aquelas vagens, catando lenha,
brincando, tumando banho no rio. Eu tenho muita saudade da Palma ainda
porque foi o canto que eu naisci e me criei né. Muito bom a Palma. Eu saí de
lá eu tinha 12 ano. Foi. 12 ano, então eu tenho muita história pra contá da
Palma, muita coisa boa que eu passei na Palma.
É assim como eu falei, tem umas coisa que eu passei, mas saudade das festa
que tinha, que ia com as minhas amiga, dançá o baile de carnaval, (risos). Lá
tinha baile de carnaval, tinha ciranda.
E daí Dr Ênio gostava muito de butá brincadera, então isso aí a gente sente
saudade. Tinha muito, muita brincadera que ele butava, Dr Ênio butava, muita
brincadera. E aí a gente ia e hoje eu sinto saudade. Doutô Ênio era o Senhor do
Engenho de lá.
Tinha maracatú né, carnaval, ciranda, que ele butava muito ciranda no pátio do
Engenho, butava presépio, butava Maria no tempo de festa. Então, tudo isso
eu lembro, saudade dessas festas, desses lugar que eu passava, saudade. Era
muito bom pra mim, que eu passei, que eu tive saudade foi a Palma. (RELATO
DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO
PALMA).
Dito isso, apresento na sequência um quadro resumo com informações extraídas
das narrativas e de documentos complementares indexados em outros estudos já citados
neste trabalho.
44
4.1.4 Quadro resumo: perfil sociofamiliar da entrevistada
Identificação Sexo/
Gênero
Idade
Escolaridade Local de
moradia
Atual
Profissão/
Ocupação
Qtde. de
filhos
Pais
biológicos
Saída do
Engenho
Atual Saída da
família
Atual
Entrevistada
antiga ex-
moradora do Engenho
Palma
Feminino
12 anos 67
anos
Criança
analfabeta
Alfabetizada
Ensino
Fundamental
Faz estudos
bíblicos
Machados
-Pe
Aposentada
[trabalhador
a rural]
14 filhos
vivos
10 mulheres
4 homens
Total: 19
gestações
Órfã
[abandonada
aos 9 meses] Criada pelo
avô paterno
até os 6 anos de idade.
FONTE: Informações extraídas da pesquisa de tese, dos formulários de denúncias e documentos
complementares ao Cadastro Social da família em acompanhamento. Autora: Josefa Janete de Azevedo,
junho, 2017. (Azevedo, 2017, p. 43-50).
Da forma mais genuína e fidedigna possível disponho blocos de narrativas na
íntegra para refletir os conteúdos conforme as categorias analíticas, como meio de
organização e demonstração dos achados encontrados na análise. Assim dou evidência
para as experiências pessoais e familiares vividas no Engenho olhando para as
observações em volta do avô paterno [de sobrenome Cavalcante] da entrevistada. Apesar
da família possuir sobrenome de grupos dominantes da região, mas o avô da ex-moradora
se mostra um homem em condição subordinada ao proprietário das terras do Engenho
como podemos observar em suas narrativas a seguir. Afinal, trata-se de uma família antiga
moradora do lugar [Cavalcante] que vivia como foreiro do Engenho, morando em Casa
de 13Condição. Isso tem a ver com as reflexões sobre genealogia familiar que Oliveira
(2000) discute sociologicamente se sua obra e também com os escritos históricos e
explicações de Antonil (1711); Simonsen (1937, 2005); Prado Jr (1981); Lisboa (2014),
quando este último afirma:
Embora o proprietário explore, em regra, diretamente suas terras (como ficou
entendido acima), há casos frequentes em que cede partes delas a lavradores
que se ocupam com a cultura e produzem a cana por conta própria, obrigando-
se, contudo, a moerem sua produção no engenho do proprietário. São as
chamadas fazendas obrigadas; o lavrador recebe metade do açúcar extraído da
sua cana, e ainda paga pelo aluguel das terras que utiliza uma certa
porcentagem, variável segundo o tempo e os lugares, e que vai de 5 a 20%. Há
também os lavradores livres, proprietários das terras que ocupam, e que fazem
moer a sua cana no engenho que entendem; recebem então a meação integral.
Os lavradores, embora estejam socialmente abaixo dos senhores de engenho,
não são pequenos produtores, da categoria de camponeses. Trata-se de
13 Condição. Era o pagamento do aluguel da casa que o morador do engenho habitava. O morador pagava
a casa com serviços prestados ao senhor de engenho, três dias de serviço por semana. Explicação da
entrevistada.
45
senhores de escravos, e suas lavouras, sejam em terras próprias ou arrendadas,
formam como os engenhos grandes unidades, (PRADO JR, 1981, p. 23).
Na percepção da entrevistada o cotidiano familiar é de trabalho produtivo
transferindo do avô para o tio, de geração em geração. Nesse caso, o trabalho agrega
outros valores familiares, tem significado de honra e distinção dos membros, são pessoas
honradas e trabalhadoras. Apesar de sofrer exploração do Senhor do Engenho Palma em
condições diferentes dos escravos e ex-escravos da propriedade. Por ser um membro da
família de sobrenome [Cavalcante] pertencente ao mesmo grupo de famílias
colonizadoras do Nordeste em especial. Numa longa narrativa, a entrevista relata e
explica como era esse cotidiano familiar e o que significava morar na propriedade na
condição de foreiro e morador em casa de Condição, narra:
Quando eu me lembro no meu tempo que eu era pequena, era de barriga cheia.
A gente lucrava muito, muito, muito feijão. Ah!, Coisa de cavalo, 3, 4, 5 cavalo
carregado. Não no tempo do meu avô não, era muito não. Já era mais pra comê
mesmo. Foi depois que meu avô morreu que meu tio ficô trabalhando pra pagá
foro, a condição, essas coisa, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
4.1.5 Foro e Condição [terra e moradia]
Ele era foreiro e foi ele o meu tio. Foreiro é assim: foreiro faz as coisa pra pagá
a sua casa que você mora, isso sem recebe nada. No engenho era assim. E
foreiro você trabalhava, alugava 3, 4, 5 bocado de terra pra você trabalhá.
Quando fosse o final do ano, você paga o foro, pagava a 14condição ainda. É,
todo mundo era assim.
A casa que você morava você trabalhava três dia no engenho sem ganha nada.
Três dia de graça. Depois, ele botô pra dois, ficô a segunda e a terça. Esses
outros dia que ficava era pra pessoa trabalhá, virá bicho pra trabalha, pra pagá
o foro, porque o foro era um dinheiro enorme. Se fosse 4 parte de terra, ele
andava falando daqueles 4 parte de terra, quanto era que ia dá.
Eu sei que tudo que tinha era pra trabalhá pra dá pro Doutô Ênio. Quebrava
milho, fazia farelo dois três vezes sem pará. Farinhada, milho, feijão, fava,
algodão, o que tivesse. Vendia tudo pra fazê aquele dinheiro “X” que ele dizia:
É tanto. No dia da Conceição tu chega, a Casa Grande tava completa, no pé da
calçada de morador pra pagá o fôro.
Era dinheiro viu. Eu me lembro que eu ficava assim, olhando assim, um monte
no chão assim espalhado. Ópa aqui mãe, esse dinheiro todinho não dá pra pagá
o foro ainda. Ele dizia.
Vai tê que fazê mais farinhada e o resto daquele algodão pra termina de pagá.
Aí, quando era no dia da Conceição, no dia 8, dia da Conceição, dia 8 de
novembro.
Aí, a gente acordava bem cedinho, botava aquele rolo de dinheiro no bolso e
ia levá pro doutô. Aí, chega lá, tá completo assim ó, tudo esperando já. Ele
abria a porta, o que tivesse casa alugada, terra alugada. Fosse quarto de terra,
46
ai levava. E se ele não fosse foreiro, fosse só furnicero, ele só pagava os três
dia de renda, de coisa.
Se o foreiro não pagasse, oxente! Não dormia na casa, que ele não deixava. Se
desse o dia da Conceição, dia 8 de dezembro.antes foi falado Novembro! Que
era o dia do pagamento, era esse dia. Ele dizia. Se não chegasse um, faltasse
um, que ele tava com o nome de todos eles ali e quanto ele ia recebê de cada
um. Se não chegasse um, mandava um morador lá. Vai na casa de fulano pra
sabê porque foi que ele não veio pagá o foro hoje. Aí, se chegasse lá ele tava
ascendendo não sei o que. Disse: o Dr. Ênio disse que é pra você pegá as cesta
hoje, você não dorme na casa. Era assim.
A pessoa tinha que pegá os moleque que tinha, os molambo veio tudo preto e
saí. O que tivesse era pra deixá. E não era pra cumê o que tivesse não. Saía e
deixava, e ele não tinha dinheiro nem pra entrá ali mais. O primeiro sinhô do
engenho era assim viu. Tinha pena de ninguém não.
Eu já fui na Casa Grande assim, mas eu ficava do lado de fora, eu nunca entrei
lá não. Não era todo mundo que entrava lá não, viu. Então, era assim, às vezes
eu ia buscá o leite, ficava assim em pé, aquela casa bonita menina. Cheia de
varanda, mas nunca entrei não. Tinha as empregada tudo. Aquelas empregada,
aqueles empregado que tinha tudo, mas conhecia não. O meu avô não sabia
não. O morador não entrava na casa dele não. Eles ficavam tudo na calçada do
lado de fora. No pé da calçada, nem na varanda não era pra entrá. Gritava um
por um, chamava o nome de um fulano de tal. Chegava lá, dava o dinheiro a
ele e voltava, vinha simbora.
Fulano de tal ele dizia, entregava o dinheiro a ele. Não era pra falta um centavo,
não era pra falta. E tanto que ele disse pra leva.
Aí, o meu avô era foreiro e meu tio era furniceiro, depois ficou foreiro também.
Pagava condição e foro. E o foro era o que ele trabalhasse. Tudo que ele
produzisse era pra tirá o dinheiro pro Sinhô do Engenho, que o Sinhô do
Engenho mandava. É escravidão. Saía de casa de manhã, às cinco hora da
manhã, a gente saía. Às vezes levava um punhadinho de farinha com um
pedacinho de carne, de peixe seco pra cumê lá. E às vezes não levava nada, o
dia todinho com fome. Na chuva, no sol, chegava em casa de noite. Se quisesse
mora. Era do mesmo jeito, um mais pior do que o outro, (RELATO DA
ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
Na sequência a ex-moradora do Engenho Palma narra sua percepção sobre os
impactos e as mudanças no Engenho com a chegada do Sindicato Rural, o que
transformou a vida dos moradores trabalhadores explorados.
4.1.6 Escravidão disfarçada e o espinho do Sindicato
Interessada no assunto, com voz impostada, sentidos aguçados e atenção
concentrada no assunto, a entrevistada explica em suas narrativas como se deu o processo
de mudança de condutas entre o Senhor de Engenho, o Sindicato e os trabalhadores rurais
explorados na propriedade. A transformação das relações produtivas teve também
impacto nas relações de convivências observadas na década de 50 e 60 dentro do
Engenho.
As leis trabalhistas impostas pelo Sindicato Rural ao Senhor de Engenho, gerou
animosidade e raiva no proprietário de terra por ser pressionado a mudar sua forma de
47
exploração dos moradores local. Os conflitos no ambiente de trabalho e moradia
representava ameaça de despejo, prisão e castigos severos. É uma narrativa bastante
detalhada que esclarece o contexto observado de perto.
Afirma:
Aí, depois foi que veio essa Reforma Agrária, teve esse negócio, o Sindicato,
foi que a Lei do Sindicato valeu. Foi que amenizou mais a situação do
trabalhador. Passou pra dois dia, era três passou pra dois. O Sindicato bateu
em cima, não era mais de graça de uma vez não, ele dava um dinheirinho, por
causa do Sindicato. O Sindicato que obrigô o Sinhô de Engenho tirá esse peso
de cima dos morador que era demais. Ele ficô com raiva, botô o morador pra
fora, ele botô pra corrê. Que o morador ia atrás sabe do Sindicato pra ter os
direitos deles. Apanharam muitos. Muitos apanharam, muitos morreram,
muitos fugia da casa, era assim.
Eles não queriam pagá nada pros trabalhador. Ele queria ter as coisa de graça.
Aí pronto. Faz muito tempo esse Sindicato. Aí, ficô assim, foi se
desenvolvendo, trabalhava e recebia menos, mas recebia. Como eu tava indo
dizê: era três dia, aí botô pra dois. Depois desses dois dia, eles pagava um dia
mais barato. E o outro ficava de graça. E assim foi enrolando sabe.
Foi enrolando em cima de gente, foi enrolando. Eu não lembro, se pagava tudo
certo ou se era do mesmo jeito. Era furniceiro e foreiro. Era tudo do Engenho.
Eu acho que ele dava permissão de construí a casa. Onde tivesse a casa, não
sei como era não. Eu sei que já tinha aquelas casa já. Agora aquelas casa tudo
velha sabe.
Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Deixava não.
Porque a banana dava um dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um
morador plantando banana ele mandava arrancá tudinho. Era Dr. Ênio. Aí,
depois de muitos anos ele morreu, ficou o filho. O filho único que ele tem. Eu
vi, eu era pequenininha, agora depois que ele cresceu não conheço mais não.
Mai, quando ele era pequenininho, pequeno, uns três ano eu acho. Eu via ele,
a empregada passeando com ele assim na coisa do Engenho.
Tinha uns homes, tinha o vaqueiro, tinha o pastorador das vaca, tinha tudo isso,
as empregada de casa, aqueles povo que trabalhava lá, pra lascá uma lenha, pra
fazê o que mandava, era cheio de gente lá, Casa Grande.
Tinha gado, muito gado. A Palma pertencia as vagem, era tudo cercado de boi,
por capoeira por todo lugar visse. Ali tinha muito. Tinha muita vaca de leite,
muita, muito boi, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
São narrativas com potencial de um documentário histórico na modalidade de
filme ou de livro didático na minha opinião. São falas reveladoras de acontecimentos
autênticos da vida social e produtiva, econômica e política, cultural e religiosa no
Engenho Palma envolvendo personagens de carne e osso reais, relações de interesses e
privilégios quase sempre. Os fatos e os objetos ferramenta de trabalho com valor
simbólico, as expressões de poder impregnados de intenções, dominação e valores de uma
classe homogênea se mostra nas atitudes e atividades de comando o tempo todo. É Salutar
observar as faces de uma história tão real contada voluntariamente para que a maioria dos
brasileiros de hoje e a comunidade científica tenha acesso. Pelo menos trata-se de uma
narrativa de acontecimentos reais, vivenciados empiricamente.
48
Me refiro a outras páginas de um livro de memórias silenciadas pelo tempo e a
força do medo. A vida real no Complexo da Casa Grande do Engenho de cana-de-açúcar
na Palma, não se mostre tão inocente aos olhos analíticos de quem analisa o contexto de
fora, talvez a ingenuidade e beleza esteja tão somente na percepção imaginativa ou
sentimento saudoso da fase infantil da entrevistada. A escrita lida e legitimada é de uma
história oficial na versão de quem nunca viveu a realidade do lado oposto decerto, apenas
o retrato da face dominante do Senhor e seus iguais, que se coloca na posição horizontal
do poder e age de forma excludente para aqueles que viveu a dor na pele. Em outras
palavras, as narrativas em evidência, objeto desta análise e interpretação crítica,
corresponde sim a uma revelação de verdades outras, a experiência de uma ex-moradora
autêntica que não usufruiu dos privilégios de poucos.
Me refiro aqueles que ocuparam as terras desse país sem pedir licença aos donos
das terras, demarcaram limites até onde a vista alcança, como originários de uma reserva
no grande território. A grande propriedade é fruto disso, sobre ela construíram masmorras
e um sistema de controle a partir do Complexo da Casa Grande. Nela, se agregou o
funcionamento à base da força humana e do trabalho escravo. A desumanidade dos
corpos, das vidas de uma grande massa foram submetidos às condições extremas. A
propriedade do Engenho Palma não difere desse trajeto hostil em nome da tradição. A
ocupação e posse se transformou em conceito de herança transmitida de pai para filho, de
geração para geração de descendente do mesmo grupo.
Nos estudos sociológicos de Oliveira (2000, p.45), o autor afirma que “[...] o
principal elemento nas relações sociais de produção no Brasil colonial era o trabalhador
escravo. Somente “[...] a partir do fim do tráfico de escravos em 1850, a composição dessa
população” explorada foi se alterando em passos lentos. Com a declaração formal da
abolição da escravidão no Brasil em 1888, a reposição de indivíduos escravizados foi
interrompida relativamente, mas, as condições de trabalho dentro das propriedades rurais,
nos Engenhos de cana-de-açúcar não teve grandes mudanças. Já que pelo visto, a
escravidão no Brasil imposta pelos europeus, se tornou em certa medida mais abusiva e
agressiva nos grandes, médios e pequenos latifúndios do país, movimentado por trabalho
escravo. Um quadro bastante complexo como podemos observar nas narrativas da ex-
moradora do Engenho Palma que viveu no contexto da década de 50 e 60.
Outro aspecto é sobre as condições de pobreza e moradia precária em que viviam
os moradores do Engenho, nas palavras da entrevistada essa realidade aparece impactada
na vida familiar.
49
A casa da gente era uma casinha muito é, casinha fraca né, como eu já falei,
antigamente não tinha casa de tijolo, era tudo de taipa como o povo falava, mas
eu tinha. Me lembro muito do lugar que eu morava e sinto saudade até hoje. A
Palma eu sinto saudade até hoje, quando eu passo por lá eu, parece que eu tô
vivendo aquela vida que eu vivia quando pequena.
Pois já voltei lá, já voltei lá, depois de uns tempo voltei lá mais meus dois filho
e uma amiga. E mostrei onde é que eu passava, onde eu morava, onde o lugar
que eu caminhava tudinho, eu mostrei pros meus, pra minha filha e o meu filho.
Eles ficaram tudo admirado, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
Perguntei ainda existe a casa onde morou com a sua família biológica [avô
paterno], assim respondeu: “[...] não, porque agora tudo é diferente né, agora tudo é
cana e banana, mai, mais ou menos assim se eu for lá e olhá assim mais ou menos, eu
ainda sei aonde eu morei”.
4.1.7 Senzala e Casas dos antigos moradores do Engenho [recente]
Da Senzala para as casinhas simples de taipa espalhadas no Engenho Palma.
IMAGEM 1 – SENZALA
FONTE: Imagem ilustrativa da antiga Senzala do Engenho - moradia dos escravos. Disponível
em: <http://www.joseferreira.com.br/blogs/historia/preciso-saber/o-engenho-e-o-fabricacao-do-
acucar-no-brasil-colonial/>. Acessado em: 13 de nov. 2018.
50
Na substituição da senzala, o Senhor de Engenho construiu várias casinhas de
alvenaria espalhadas na propriedade para os antigos moradores ex-escravos que ficaram
no Engenho com suas famílias, como pode ser observada na figura [2]. Decerto, os
moradores foreiros permaneceram na Condição à exemplo do avô da entrevistada que
morava nessas condições de moradia, casa simples, precárias e reguladas pelo sistema de
trocas. Ou, pagava pela ocupação, ou, prestava serviços gratuitos, ainda podendo oferecer
uma quantidade de grãos da produção oriunda do trabalho na terra. Essa era a situação do
morador foreiro do Engenho Palma. Uma espécie de acordo [contrato informal] com força
de lei e punição.
FOTOGRAFIA 2 - CASAS DOS ANTIGOS MORADORES DO ENGENHO
Com as mudanças do Brasil Colônia para o Brasil República, a Senzala do
Engenho Palma também fora sendo substituída por micro Senzalas na forma de casinhas
simples [taipa] para os ex-escravos ou moradores foreiros continuar morando na
propriedade do Senhor. E assim continuar trabalhando para ele produzindo lucros, manter
os herdeiros da terra controlando a propriedade escravocrata do suposto passado de
outrora.
As senzalas eram as habitações construídas na forma de barracões sem divisórias
para os escravos negros residirem no mesmo ambiente [homens, mulheres, crianças],
todos juntos e misturados entre si. Eram locais precários e com péssimas acomodações,
insalubres, cheios de de insetos, ratos, morcegos, na maioria das instalações. Os escravos
FONTE: Casas dos antigos moradores do Engenho de Palma [Sistema Colônia]. Parte do Complexo
da Casa Grande. Fotografia de acervo pessoal. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto de 2014.
51
dormiam acorrentados, com o corpo e os pés presos para fuga, violências físicas entre si
ou fugir do Complexo. Já que nada mais eram do que uma mercadoria com pernas. As
senzalas eram relativamente grandes, abrigava um numero de 20 a 50 indivíduos, ou, até
mais que isso. A quantidade de escravos dependia da fortuna do Senhor do Engenho e da
necessidade de comprar mão-de-obra escrava. Em geral, na maioria dos grandes
Engenhos, a soma oscilava entre 50 e 60 pessoas escravizadas. Sem divisão nos cômodos
da estrutura [homens, mulheres, crianças] dormiam no mesmo espaço-lugar. Nas
proximidades das senzalas o Senhor instalava o conhecido tronco ou pelourinho, lugar
usado para castigar [educar] o escravo desobediente ou matar de espancamento e surras
em público, um ritual iniciado no século XVI. Em paralelo, podendo ser comparado com
a fogueira da inquisição promovido pela Igreja Católica em praça pública; na queima e
extermínio de pessoas acusadas de bruxas, hereges, anticristos das mesmas épocas,
(ANTONIL, 1711).
São memórias vivas e detalhadas que permanecem produzindo diferentes
emoções, significados e representações para a ex-moradora do local, imagens com
impacto em sua história de vida que permanece até os dias atuais. É um discurso que ela
segue retratando as realidades e acontecimentos vividos e testemunhados na infância e
adolescência como se fosse gente adulta, como visto na parte IV do capítulo IV.
PARTE II
4.2 MODO DE VIDA, CONTO E LUDICIDADE INFANTIL
Em meio a realidade complexa do Engenho, o mundo vida infantil da entrevistada
não parou, em meio aos conflitos dos adultos encontrava lugar para brincar, vida livre,
sem afetar sua imaginação criativa, lúdica e inocente.
Dar destaque dizendo:
A gente brincava, eu ia pra lá só levá almoço pro home que morava lá. Que ele
trabalhava lá, era o maquinista do engenho. A gente chegava lá, eu pegava
fava e saía. Eu brincava nas solta, nas vagem, nos rio, era lá que eu brincava. Sozinha, mais umas amiga, às vezes sozinha, às vezes mais umas menina
também que tinha lá. Muitos morador né. Eu conheci as menina, a gente ia
tumá banho, era muito bom, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
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No Engenho a ex-moradora estabelece forte relação com a natureza e os elementos
de contato cotidiano. Seu sentimento é de pertencimento ao lugar, a melhor fase pelo visto
em que viveu as aventuras infantis, a cultura regional manifestada nas festividades
populares. No pátio da Casa Grande acontecei bailes de carnaval, maracatus, cirandas,
comemorações religiosas. Eventos promovidos pelo Senhor de Engenho [Dr. Ênio Pessoa
Guerra] prestigiado por seus moradores festeiros. Um modo de integração da convivência
social e distinção de classe operada ao mesmo tempo e no mesmo lugar. A rica vida
cultural no Complexo servia de estratégia de controle e alívio das tensões e conflitos,
também mostrava o poder do Senhor e sua capacidade de mando. A natureza e a cultura
do Engenho foi o que mais forte marcou suas memórias. Afirma:
Ah! Eu tinha umas arvores, eu gostava muito de ficá brincando por debaixo
dos pé de árvore, gostava muito de ficá sozinha, conversando sozinha (risos).
Quando eu falo sozinha eu fico embaixo dos pé de árvore, pra mim é uma
beleza, uma bênção aquilo ali pra mim. Tomar banho no rio, quando eu morava
na Palma, tumava caldo no engenho, chupá cana, comê mel, era muito bom era
maravilhoso isso aí, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
4.2.1 Liberdade - um modo de ver o mundo
A senhora se sentia livre morando no Engenho? Debulhou a resposta em palavras,
disse:
Quando eu tava naquele, naquelas soltas, naquelas vagens eu me sentia livre
como um passarinho. Aí aquilo pra mim era a coisa melhor do mundo que
sentia. Era muito bom.
Porque eu ficava, eu gosto muito de mato, de mata. Então, eu ficava por dentro
dos mato comendo araçá, comendo essas coisa, então eu me sentia muito livre,
era muito feliz.
A liberdade é coisa muito boa. Eu hoje me sinto liberta. Ói, eu me sinto, a
liberdade é uma coisa muito boa, uma coisa que você não se sente preso a nada.
É assim que hoje eu me sinto. Não sou presa a nenhuma coisa, faço da minha
vida o que eu quero. Vou pra onde quero, converso com quem eu quero, tenho
liberdade ir pra casa dos meus filho pra onde eu quiser. Então, isso pra mim é
a liberdade, que eu antes não tinha e agora eu tenho, sem ter ninguém que
mande em mim.
Criá filho não é fácil, é difícil. E a gente não tem liberdade pra fazer tudo que
quer quando tem filho pequeno. Então, é obrigado a fazer o que os filho precisa
né. Não tem liberdade, hoje eu tenho porque são tudo criado, tudo de maior
nos seus canto. E hoje, eu tenho muita liberdade. Tô muito feliz graças à Deus.
Sinto. Me sinto muito feliz hoje, graças a Deus. Me sinto feliz porque graças à
Deus não me falta nada, sou feliz com meus filho, amo meus filho, meus filho
me ama também. Então, eu sou feliz porque quando eu quero ir pra casa de um
filho eu vou, quando eu quero almoçar com filho eu vou, quero passear com
meu filho eu vou, então, tem liberdade melhor do que essa?, (RELATO DA
ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
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4.2.2 Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância
A festa foi de Bizarra, e a gente morava na Palma, daí a gente fomos a esta
festa. Aí Dona Maria dixe assim: Ô, vamo pra festa Maria. Eu sei que eu fui.
Morava com Seu Zé João, foi que eu pedi à ele. Eu dixe assim: to sabendo da
festa de 15Maria do quejeiro. Seu Zé João era o hôme que morava lá, era o
maquinista do Engenho. Que moía a cana na moenda do Engenho. Aí eu pedi
à Dona, à mulher dele. Ô Dona, a Srª deixa eu í pra festa de 16Bizarra? É Das
Dore. É. Aí ela disse assim: - Vai mais quem? Eu disse: - Eu vou... Só que a
gente tinha combinado pra í, pra que as irmã dela também ía. Que era Ester e
Ôróra. Duas moça, duas mocinha. Não. Cunhada de Zé João, irmã da mulher
dele. Era. Aí eu dixe: - Mas as menina também vai, a Srª deixa eu í, que eu vô
daqui com Maria, de lá a gente se junta. Ela dixe: - Então tá bom. Aí a gente
se vestiu minha fia, e saiu de mundo afora.
Que idade que a senhora tinha?
Uns 10 ano, 11ano. Uns 10 ano eu acho. Era Festa do Padroêro da cidade, é a
de São Sebastião. Era. Ai, a gente foi né. Saiu danada de perna de tardezinha
lá e fumo simbora, chegamo lá e se encontremo com as menina. Ai, fiquemo
na festa. A festa não foi muito boa não, que. Ai, a gente tava na festa, dali a
pôco foi um rebuliço, uma confusão, um povo tudo caindo, o povo tudo
correndo, coitado, tinham matado um hôme. Foi. Ai, a gente não sabia se corria
de noite, tarde da noite, se corria pra casa ou se corria pra se escondê em algum
canto, e a gente ficâmo sem sabê. A maria, as menina se perdêro. Ainda bem
que me segurei em Maria, (risos). E Maria, eu agarrando na saia dela (risos),
vou te conta. Maria morava na Palma também com a gente.
Todas essas meninas moravam na Palma, as irmãs. A Ôróra e Ester moravam
na Palma. Maria morava na Palma e eu morava na Palma. Tudo essa gente.
Tudo no Engenho. Lá no terreno do Engenho. Ai, minha menina, a gente fomo
corrê pra se escondê. E quando a gente tava correndo, topêmo foi com o hôme!
Com o homem que mataram. Ele tava sentado, assim no poste viu, (gestos de
corpo largado). E aquela cheia de sangue assim. Foi de faca. Foi. Eu não sei
por que né. Um rapaz ainda. O rapaz era alvo, bonito. Quando a gente deu de
cara assim, ele sentado no poste. Assim, a cheia de sangue. E a gente ficamo
doidinha. A gente corria de um canto e corria pra outro. E acertá o caminho de
vim meia noite!
E peguêmo as menina e cadê as menina. Minha fia, e haja gente a caçá, as
menina, Maria ficô doidinha, Maria e eu também fiquei. Ai, adepois, a gente
se encontrou com as menina. Mas a gente tinha que deixá amanhacê o dia, que
a gente não vinha sozinha que ia era por dentro das cana, por dentro dos mato.
Aí fiquemo na festa se acabando de medo. Ai, quando foi de 5 hora da manhã,
viemo simbora pra casa. Por dentro das cana, por dentro do mato. Chegando
em casa o sol já tava, o sol já tinha naiscido. A festa acabô, acabô de manhã.
Acabava de manhã a festa sabe.
Aí a gente viemo simbora pra casa, cheguemo em casa a Dona das Dores. A
Dona das Dores. - Mataram o hôme na festa. Ela dixe: - Tás vendo, eu bem
que eu disse à tú, que tú não fosse. Eu e Maria, a gente se encontrava lá nas
bacia do Engenho, Maria era uma bixiga também, (risos). Mais a gente ria tanto
minha fia, (risos). Ela namorava cum vaquêro. Era. Ai, um dia eu ía passando
15 Maria do queijeiro é ex-moradora do Engenho Palma, única amiga de infância da entrevista ex-
moradora do mesmo lugar, é viva, lúcida e mora da cidade de Machados. Ambas, mantêm amizade e
convivência próxima até os dias atuais. 16 A cidade de Bizarra é uma cidadezinha próximo do Engenho Palma, menos distante do que a cidade de
Machados, porém menor.
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era aquela conversa. A Maria namorava com um irmão, cum povo do mundo
minha fia! Era uma moça da gota. E era moça viu! Ela era mais velha que eu,
sabe quantos anos? Eu tenho 65, 6 e ela tem 76. Dez anos de diferença. E ela
já era moça já, mocinha. Moça nova mas era. Ai, passa Maria conversando
com o namorado, era casado já sei lá. Ai, só sei que tava Maria, quando foi no
outro dia foi que disse: - Ô bichinha, eu vi tú. Tava até a boca viu (risos). Nem
em casa ia viu, namora escondido. Ele era casado! O nome da mulher dele era
Belmira, sei lá. Ai, chegando em casa ela me dizia (risos). Ai pronto, a gente
passou esse tempo junto né, lá na Palma, depois eu saí, fui pra onde meu Deus!
Que eu fiquei longe de Maria. Conheci o pai dela, conheci a mãe, os irmão
dela. Eu não ia lá muito não. Mas ele fazia bolo, ele era bolêro. Todo mundo
que comprava bolo era dele. Bolo de Mandioca, Bolo de Trigo. Ele fazia bolo
numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande? De
pescada pequena. Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim
redondo (gestos com as mãos).
4.2.3 Banho de rio e pescaria
As aventuras dentro do Engenho também faziam parte das brincadeiras, do
aprendizado e da própria sobrevivência, relata:
A gente ia tumá banho meio dia, eu e as menina. Ela dizia assim: bora tomá
banho, digo vambora. A gente vai pescá. Era a Oróra e Ester, era as irmã da
mulher que eu morava lá. Aí, a gente ia de carrêra disparada no Engenho da
Palma. Mas, a gente ia pro rio, que é o rio de Orobó. A gente tava em casa né,
morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas pra gente í toma banho.
A gente saía de carrera disparada, num calor, um sol que doía. Do jeito que a
gente vinha, do jeito que a gente vinha de carrrêra, ladeira abaixo, nóis pulava
dentro do rio. Era bom, rio grande viu. Água limpinha. Aí, a gente tava
tumando banho, aí dizia: Ô, vamo pescá, eu digo: vamo. Aí, tinha umas lóca
dum Pial e Jacundá, era o peixe sabe? Ele tinha as lóca de entrá e de saí. Eles
sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque se você for butá
a mão por ali, ele sai por ali.
A gente ia tomá banho. Tomava banho e pescava. Meio dia, a gente morrendo
de calor, o sol quente. Procurava onde era a boca, chega era lisinha. Procura
onde é a saída e a entrada. Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui.
Eles furavam buraco nas parede pelas pedra.
As menina ia tampava e a gente vinha por aqui. Lá dentro das lóca. Acho que
eles se achavam preso lá e ficavam tudo furioso pra sai, oxe! Era pegano assim,
butava na saia, prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe. Branquinho
que chegava a brilhá. Era Jacundá e Pial. Aí, a gente prendia quando ele vinha
pulá, algum ia simbora, algum fugia e outros a gente pegava. Ficava dois na
boca. A gente pegava, vinha pra casa nos colo, porque não tinha onde butá os
peixes. Chegava em casa, oxe, Pial que era branquinho, pegava na hora assim,
tratava, butava sal e já ia assá pra cumê tudo. Mai, a gente fazia isso era no rio
da Palma, no Engenho da Palma. O Rio de Orobó cortava esse mundo todo. O
Rio de Orobó, ele nascia na Palma.
Oxe, o rio ele circulava a Palma todinha, Macicuava, Bizarra, Lagoa Comprida
e vai simbora, Limoreiro e vai simbora. Não tem fim o Rio de Orobó. Nesse
tempo tinha muito peixe, muito peixe nele.
O home ia pesca. Tava sem carne né? Ôh! João, hoje eu vô pescá. Ele dizia era
de manhã. Depois do almoço eu vô pescá. Ele tinha uma mochila desse
tamanho assim.
Uma mochila bem grande. Ele amarrava a mochila na cintura, vestia uma roupa
bem velha. Era um por dentro da água e outro por fora do rio. Aí, ouvia ele lá.
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Ele tinha dentro d’água era o caminho já. Olha lá pra quele bicho assim, olha
lá. Pescadêro viu. Oxe, tinha cada traíra ele pegava!
E nóis ficava batendo atrás dele pra pegá. Nós fazia que nem cachorro, se ele
pegá no dedo ele atora.
Ó, vai juntá uma pedra, qualquer coisa. Eu arranjava a pedra, punha lá, isso
tava aquele rolo assim num canto do jereré.
Aí com jeitinho assim pegava pela gargantilha, rasgava, a trouxa de traíra,
jacundá e um peixe chamado Piau. Existe na Palma. De certo, lá não tem peixe
mais não. Tinha um lugar lá que, um peixe que pegava, ô meu Deus, Jacundá
não, era Cumatã. Ah! Cumatã. Ela anda de rebanho feito gado, feito ovelha.
Ele é muito. Uma sai de filinha atrás da outra assim ó. Cada uma desse tamanho
assim ó.
Uma vez ele pegou um. Agora vc não podia pegá não, viu. Era um pedaço de
rio que tinha e que só tinha esse peixe e era só ele que podia pescá nesse lugar.
Mas, quando a gente ainda tava dentro do rio, í pra casa, disse assim: Vamo
simbora, ói, já tem uma bicha ali, ói uma cobra.
Cadê? Mas, graças a Deus que eu olhava, olhava e não via. Dizia que era
amarela, mas eu não via não. Só bichinho enorme, dizia, eu vô saí daqui.
Vamo simbora, já tá de noite. Vestia a roupa, aquela trouxa de peixe assim ó.
Aí, chegava em casa já tava escuro, daí a pouco a gente chegava. Ele pegava
uma butija que tinha ali de barro, despejava a botija de peixe, mas era aquela
peia de peixe. A gente ia pelá aqueles peixe, era pra pelá um bocado do peixe
que era pra fazê o molho pra gente cumê né.
E eu ficava pelando. Depoi que terminava, ia pelá também. Então, pegava uma
arutuma que tinha, botava aquele estendá de peixe. Salgava tudinho e butava
aquele estendá pra gente cumê.
Mai era bom. Lá em casa toda semana ia pegá. Era fácil mesmo. Porque ói,
não tinha não, não podia todo mundo pescá não, viu. Tinha que primeiro pedi.
E se fosse morador pescá e se não fosse morador, ele botava pra corrê. Seu
João Diló, era. O Seu João Diló diministradô da Palma.
Ele conhecia a gente, mai ele deixava a gente pescá. Às vezes a gente ficava
com medo. Vixe, se o hôme chegá aqui e brigá. Aí, ele passava assim, via a
gente pescando não dizia nada não. Toda semana a gente ia pescá. A gente
comprava carne no sábado e quando se acabava, no meio da semana dava
apuro. Vou pescá. Hoje eu vou pesca, viu João? Tá certo. Aí, chegava no dia
fazia aquela panelada de peixe. Era do rio. Água do rio, peixe do rio. Era uma
barriga cheia no rio, muito peixe, muita coisa.
Foi pescando mais os menino, a gente pescava. E como é tempo de camarão.
Numa época de camarão, oxe! Tinha dois tipo de camarão pra uma pessoa só.
Assim, puxava o jereré e vinha aquele monte de camarão. Bom tempo viu.
(RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO
ENGENHO PALMA).
4.2.4 O ladrão e a viúva do Engenho
O conto sobre o ladrão e a viúva é mais do que um acontecimento cotidiano do
Engenho, foi uma história real com consequências graves que serviu de exemplo para
todos os moradores local, como era a ação e o costume do Senhor de Engenho que agia
com violências para o controle das vidas subordinadas. Em detalhes relata:
Um dia me lembro, eu era pequena, de manhã eu fui busca água. Qualquer
coisa que acontecia na fazenda, na Casa Grande era uma confusão medonha.
Aí, eu fui buscá água com tanto medo. Aí, ele tinha um morador. Um morador
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foi robá a cabra de uma viúva que tinha, Dona Maria Pino. Ela tinha umas
cabrinhas lá, marranzinha. E eles todos era morador dele da Palma.
E esse ladrão foi robá. Esse home foi robá a cabra de Dona Maria Pino, uma
velhinha viúva. E o vigia ficava a noite todinha circulano o sítio todo sabe. Que
num sítio desse tamanho qualquer coisa que acontecesse era pra mata, ou matá
ou algemá e leva pra fazenda todo algemado.
Aí o vigia tava percorrendo era muita coisa pra esse home percorê na Palma.
Mas, era mais o lugar onde tinha as coisa: lavoura, cercado de boi, essas coisa
sabe?
Aí, o vigia viu uma gritarage de noite. “Solta minha cabra, ladrão!” A viuvinha
gritando, a mulher gritando. E do outro lado o vigia escutô né. Aí, ele foi atrás.
Dali a pouco, quando ele foi subindo a ladeira, lá vinha o cara puxando a cabra
da mulher. Puxando a marram e a mulher em cima gritando, chorando. Ele
desceu da bola de roça grande, ele puxando a cabra pra baixo. Quando chegou
em baixo o vigia já tava esperando ele.
Quando ele peitou foi em cima do vigia. Aí, o vigia pegô ele, levô ele pá
fazenda e a cabra. A cabra já tava morta. Não, foi não. Ele deixô levá a cabra,
a marram bem amarelinha, vermelhinha. Quando ele tava sangrando, o vigia
chegou. E tinha visto toda essa cena já né.
Aí, daquele jeito que tava a cabra sangrada, amarrada, sangrada, ele levô pra
fazenda o home e a cabra. E amarrado chegô lá: Ai, o Dr. Ênio pegô ele, botô
ele num canto, deu uma coça nele, deu-lhe uma piza. E um chapéu de palha
grande, hoje eu me lembro. Um chapéu de paia grande ele quebro aqui na testa
dele, quebro assim, ficô toda de fora a cara dele e a marram, amarrô ela morta
no pescoço dele. A cabra pendurada pra trás, a corda aqui na frente do lado da
cabra amarrada. E no cacete até em Bizarra, que ele foi preso em Bizarra. Ele
é quem mandava. Não era Polícia que levava não, ele mandava levá e prendê.
Aí, eu vi isso de manhã quando eu fui busca água, eu dei de cara com esse
home.
Não, eu fui buscá o leite. Que todo dia o home, o seu Zé João, ele dava. O seu
Zé João dava todo dia um litro de leite, ele dava ao morador. A todos não, mas
a muitos eles dava sabe. Eu fui buscá o leite. Seu João trabalhava no Engenho.
Era o maquinista do Engenho. Quando dei de cara na curva, não gosto de
lembrá dessas coisa não.
O home com aquela coisa quebrada na testa assim, a cabra com o pescoço
mole, balançando assim, derramando o sangue amarrada no pescoço dele. E a
cabra pra trás. Quando eu vi aquilo meu Deus, uns vigia de um lado e o outro
do outro, parei.
A gente morria quando eu via aquilo, viu. Cheguei, eu dixe Dona, eu vi uma
coisa tão feia. Ela dixe o que foi? Eu dixe a ela: acho que foi alguma coisa que
aconteceu na fazenda do Engenho. Aí, quando eu dixe a ela: um fulano de tal
que robô a casa de fulano de tal e o vigia pego e foi cacete viu. E levou pra
prendê, tá preso em Bizarra com essa cabra nas costa. Ninguém roubava não!
Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate
verde que tava no chão caído. Abacate verde, eu tava dentro de casa.
Aí, o abacate caiu, eu tava com fome fui apanhá. Dali a pouco chegô o vigia,
Virgi Maria do céu! Eu tinha um medo tão grande de seu João de Diló visse.
Botava lá pra fora e me dava uma pisa. Deus do céu! Quem é que não tinha
medo, né. E eu achei no chão, mas dixe que mesmo no chão não era pra pegá.
Deixasse lá. Oxe! Era muito medo que o morador tinha. Era tudo pisada em
cima da linha direitinho ó.
Era, ninguém saía do risco não, porque se saía era prisão e cacete, outro até
morria. Era. Dr. Ênio lá no Engenho era virado no diabo mesmo. Quando
dissesse fulano de tal venha cá, não fosse não pra vê. E ele já ia se acabando,
ele sabia que alguma coisa já ia fazê com ele, né.
Ah! Era todo poder na mão dele. Eles faziam o que queriam nos Engenho deles.
Todo Senhor de Engenho são assim. Eu só conheci esse né. Mas, que as
pessoas diziam. Também não existia muito Senhor de Engenho não né? Pra ser
um Senhor de Engenho naquele tempo acho que existia porque tinha o
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Engenho da Palma. Tinha o Engenho de Massicuaba. O Engenho da Palma, o
Engenho de Massicuaba e o Engenho de Paraná. Era três Engenho perto
mesmo. Era três Engenho perto. Massicuaba, tudo de uma família só.
Dr. Ênio, Massicuaba acho que era de um irmão dele, sei que era família lá.
Era três Engenho que tinha. Agora Engenho grande que tinha, Engenho grande
mesmo era dele, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
4.2.5 Maria Quejero - amiga de infância
Não, o nome dela é por causa do pai dela, era Eraque, Maria de Eraque. Agora
só que o apelido de Queijera, porque o marido dela vendia queijo.
Ai, tem o nome de Maria Queijera porque ela casou-se com o Senhor Queijero.
Mas o nome dela é Maria do Seu Eraque. O pai dela é Eraque. Morava no
Engenho, todos eles. Era o pai dele. Eu conheci o pai dele, conheci a mãe dele,
conheci os irmão, conheci as irmã.
Perguntei: porque que a senhora não foi morar com eles?
Deus me livre, tinha um bocado de hôme. Tinha rapaz. Eu tinha a maior
vergonha de hôme na minha vida. Eu vinha, se tivesse mulher eu chegava ali
e falava, mas se tivesse hôme dali eu vortava. (Risos)
Eu sei, eu era assim. Eu melhorei muito, mas eu era uma um bicho do mato
mesmo. Envergonhada, morria de vergonha de qualqué coisa. E de hôme
principalmente. Sei que não podia vê hôme não visse? Cortava caminho,
cortava a volta. Se tivesse hôme ali, eu cortava por dentro do mato o mais longe
pra não passá por perto.
Eu não sei. Ia, lá pro seu 17Oliveira (cochichando) - Meu Deus do Céu, será se
esse hôme não tá em casa? Jesus, tomara que ele não teja, meu Deus. Ia eu de
pontinha de pé, pontinha de pé. Se eu visse a cara do Seu Oliveira, eu me
escondia.
Ficava esperando, aí, se esse hôme saísse pra fora ou 18Enilda, ou comadre
Irene. Que era pra mim chegá e falá alguma coisa. Só que eu não chegava de
jeito nenhum.
Óh Maria, tá vendo? Perguntava a ela: - Olha lá, seu Oliveira ta aí? – Painho
tá lá fora. Mas deixe disso, num vai entrá, tá lá fora. Olhe, que eu ia com ela,
ficava na cozinha. Mas se ele tivesse na cozinha eu não ia não. Sempre fui
assim. Desde pequena que eu sou assim. Agora melhorei. Agora já chego na
casa do hôme, já converso. Se eu não conhecê também né? Se eu não conhecê,
eu fico meia envergonhada, timidez né?
É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa. E pra tudo né, pra falá com uma
pessoa só falava se conhecia, e se eu pudesse não falava porque eu tinha
vergonha de falá. Sei lá o que é que eu tinha, eu era que nem bicho do mato
mesmo.
Bizarra foi a última festa que a senhora foi na companhia da sua amiga Maria Quejero?
Foi. Ai, depoi eu saí de la, da casa que eu tava, fui pra outro lugar, outra casa
ali em Palma mesmo só que em outro lugar.
17 Oliveira, era o nome do esposo da cunhada, da entrevistada. 18 Enilda, era a filha da cunhada.
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4.2.6 Desencontro e reencontro com as amigas de infância
Ai, se desencontremo de Maria. Me desencontrei de Maria e nesse tempo
todinho, fui lá pra Machado, tive os filho tudinho, ai, quando foi o dia uma
pessoa disse assim: o filho meu parece! – Ô bichinho onde tá tua mãe? Ai, ali,
em cima mora uma mulher que conhece a senhora. Eu disse assim: - Ah ei,
quem?. Disse: Eu não sei, mas eu passei por lá na casa de tio Oliveira e
conversei com ela. Ela disse que conhecia a senhora e queria vê a senhora. Eu
digo, mas quem é essa mulher meu Deus? Ele disse: - Não sei, ela mora ali. E
mostrô a casa, lá perto do Seu Geraldo. Eu fiquei, fiquei, e disse quem é essa
pessoa, essa pessoa? Ai, quando foi um dia eu cheguei, perguntei a Enilda: -
Tu sabe quem é aquela mulher que mora ali? Ela disse: - É uma mulher que
tem um bocado de menino, se chama Maria. Eu digo, vamo passá por lá, pra
quando eu vê se conheço ela. Ela disse: - Vamo. Ai, a casa dela era assim e o
caminho era assim né (gestos indicando o lugar). O caminho ía a casa dela.
Ai, quando eu ia passando ouvi o grito dela. Me conheceu. Maria! Eu olhei
assim e disse assim: - Oxente! É tu que mora aqui? – Eu já sabia que tu morava
aqui, mas só que eu não queria, não ia na tua casa. Ai, demo um abraço e
comecemo a conversá.
Depoi que o menino dela morreu, e a gente fico, depois Maria desapareceu de
novo, (risos). Ficô eu. Ai, quando o 19hôme foi simbora pra São Paulo, que eu
fiquei só e fui trabalhá, me encontrei com Maria de novo. Quando eu cheguei
pra trabalha, Maria! Eu digo: - Xente! Ela disse: – E tu tá fazendo o que aqui?
– Trabalhá. – Eu também. Ai, fiquemo amiga de novo, até hoje. Ai, não se
afastemo mais não. Ela pegô, ela morava na rua da Palmera e eu lá no sítio.
Depoi, eu sai do sítio fui pra Recife, fiquei um pouquinho, voltei, a gente ficô
amiga de novo.
Eu sou, eu tenho 10 anos mais nova de que ela, ela tinha, se eu tinha 10 anos
ela tinha 19 não era? É por aí, até hoje. De vez em quando ela vai lá pra casa é
uma festa. Anda e tudo, ela já tá bem veínha. Veínha não. Toda cheia de dor
que nem eu, cheia de problema, mas ela vai lá em casa. Outro dia ela foi lá pra
casa. Ligou pra mim disse: -Maria liga pra mim, de vez em quando. Liguei. -
Maria... -Digo: Oi. - Tu tá em casa dormindo? Eu digo: - Tô. – Vou ai te vê.-
Vem mesmo, mesmo! Oxe, é a maior alegria, (risos).
Vou ajeitá a casa e fazê almoço que a minha amiga vem pra aqui hoje. A gente
conversa o dia todinho, ai, quando é de tardinha ela vai simbora. É muito bom.
Três amiga que eu tenho desde quando criança é: Maria, Creusa e Das Dore.
Aquela galega que morava lá perto do seu Fera, atrás lá no Sítio. Duas galega
do cabelo branco. Ela se lembra de tudinho. Duas moça, é duas moça véia.
Essas duas moça eu conheço desde quando era pequena. Moraram em Palma
também.
Ela mora em Machado. Ela mora na rua de Machadinho e Maria mora na rua
da Palmeira. Elas moram lá na rua. Vou! De vez em quando, eu vou lá.
Das dore, ela tá meia adoentada, nunca mais eu vi não, mas de vez em quando
eu vou lá.
Seu Zézinho Menino da Palma também, conhecido da gente. Essas três pessoa,
eu conheci quando era pequena e até hoje não se separemo. Separemo, depois
de um tempo se encontremo de novo, pronto. Tão tudo em Machados agora e
a da Palma também junto com a gente.
Agora, Maria que eu sei, ela tem muita história pra contá, porque ela já tinha
vivido uma época atrás. Ela era nascida. Eu acho que ela naisceu e criou-se no
Engenho. Eu acho que foi. Acho que ela nasceu e se criou. Eu também nasci,
me criei no Engenho né. Mas só que eu foi de lá pra cá, 10 anos pra cá. E ela
10 anos pra trás já conhecia.
É, essas moças são velhas, mas elas sabem, tem história. É Dr. Ênio era
padrinho delas. Não sei de que jeito tá, mas caduca tá não. É. Agora uma das
duas gosta demais de conversá, outra mais calada.
19 O hôme é o ex-companheiro e pai dos filhos da entrevistada.
59
Vê só o que eu fazia. (Risos). Ela um dia desses, ela tava falando. A gente tava
falando e conversando: Ai, a gente fazia farinha na casa de farinha delas, a
gente morava perto delas, depois se mudemo pra perto de 20Maravilha né?
4.2.7 Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão
E as coisas ficavam tudo lá, a semana todinha a gente fazia farinha lá. Elas
tocavam na azabumba, Pandeiro e o violão e eu ficava doidinha menina. “Meu
Deus do Céu”. Eu ficava doidinha quando via Das Dores pegá aquela
Azabumba “ti bum”, eu ficava assim hó, (gesto de alegria).
Uma vez eu disse assim: - Ficô uma farinha lá na casa, eu tinha 7 ano pra 8
ano, 7 ano eu acho. – Vai buscá uma pilha de farinha que ficô lá na casa de seu
Zézinho Menino. Vai logo cedo. Era o pai delas. – Tu vai cedo buscá. Eu disse:
- Tá certo. E eu fui fazendo rodapé por casa das minhas amiga. Em cada amiga
eu parava um pouquinho. Eu era levada do diabo não era? Fui na casa de umas
das amiga minha e ela tinha saído, eu fiquei esperando, mas vê só. Fiquei
esperando minha fia, deu meio dia, eu morrendo de fome lá esperando. Ai,
num chegô ninguém, eu fui mebora, fui lá pra Das Dores. Chegando lá tava
Das Dores da gota batendo pandero, a filha do quejero que era amiga também,
(risos), tava tudo junto. Era um no Zabumba, outro no pandêro, outro no violão,
minha fia, e a dança cá gota oxe! E eu no meio (risos).
4.2.8 O medo e mentira
E eu fiquei lá e as menina tocando e dançando, e eu olhando sem almoçá, fome
da gota. Disse: - Ô Maria, já tu saísse de casa que hora tu saísse de casa? – De
manhã. – Tu já almoçasse? Eu disse: - Não.
Vou vê uma coisa pra tu. Ô Maria, tu viesse fazê mesmo aqui o que? Eu disse:
- Buscá farinha. - Eita! Tu vai levá uma pisa da gota.
- Saiu de casa de manhã? Digo: - Foi. – Maria tu sabe tua tia quem é. E eu me
lembrava?! (risos). Eu só lembrava o que era quando eu ia no caminho. Eu
disse: - Meu Deus do Céu, vou levá uma pisa hoje! Vai vê a mentira que eu
preguei. Fiquei com medo de apanhá. Quatro saco de farinha, farinha pesada.
Subia ladêra e descia. Eu ia pensando: - Que é que eu vou dizê! Pensando e
caminhando. – Ai, eu sei o que que eu vô dizê. Vou dizê que me deu uma dor
e eu caí.
Mais veje só. Aí quando chego, subia ladêra correndo com saco na cabeça
cheguei molhada de suor. Cheguei aí ela: - Mais cachorra da peste, agora
chegando! Onde é que tu tava? – Ai é que me deu uma dor no caminho eu caí.
Me levantei agora. Veja só. Mai a pessoa que mente é uma tristeza.
E ela acredito né? Mais ou menos. Ai meu Deus! E ela foi procurá sabê. E eu
me esqueci de dizê à Das Dores, eu não vi a Das Dores na casa, que se ela
perguntasse alguma coisa ela dissesse que foi verdade. E eu sei que a Das
Dores, meu Pai do Céu, Das Dores vai dizê e foi certinho.
Quando chegô lá, ela perguntou à Das Dores, às menina: - Ôh! Das Dores,
Maria teve aqui ontem? - Esteve Dona Zefinha. - Má rapaz, Maria veio buscá
só farinha, só chegô em casa de noite! Que hora que ela saiu daqui? Perguntô.
E eu tava perto, corri logo, me escondí (risos).
Quando vi. Ai, eu disse assim, fiquei pensando o que é que ia dizê né, que ela
sabia que eu ia apanhá, que ela sabia que era tudo mentira. E ela fico assim: -
Ah! Ela saiu daqui de tardezinha. - De tardezinha? E que hora ela chegô aqui?
- Era umas 2 hora da tarde ou 3. - E foi? Calô-se. Eu digo: Cochichando. – Mas
20 Maravilha é um povoado próximo do Engenho Palma.
60
Das Dores, pra quê tu disse? Eu disse que tinha caído no caminho, tinha dado
uma dor! – Ai, eu não sabia, (risos).
4.2.9 Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó
- Porque que tú dixesse se ela ia perguntá? - Eu me esqueci, eu disse: - mas,
levei uma pisa menina. - Eu fiquei com pena agora, mas eu não sabia minha
fia, peguei e falei. Cheguei em casa, e foi tanta da coisa que ela disse comigo,
pegô ó. Oxe, mai foi cacete viu! Disse que pra nunca mai eu menti. Mas eu
mentia, eu mentia daqui pra li. Porque eu tinha medo de apanhá!
Eu inventava uma mentira, mas não lembrava. Mas ela ia atrás sabe. Pegava
cada mentira minha, ai, eu apanhava. Vixe, ai, foi assim, agora tô me
lembrando. Eu tava dizendo, falando. Vixe Maria! Mas aquela véia era muito
ruim pra tu viu. Má uma vez eu tive até medo, eu vi a véia fazendo assim: pá!
Pensei que ela tava batendo, ela tava batendo numa galinha. - Era em mim. Ela
disse que via ela pegá assim aquele negócio, “pá” na parede.
Daqui a pouco “pá” na parede. Disse que danado é aquilo? Ai, ela disse que
vinham tudo na porta, disse que era, era eu. Mais Dona Zefinha, a senhora qué
matá a menina? Eu quero matá. Ela era ruim, nunca vi.
Era dessa cor ela era. Alta que não passava aqui não. Mai a bicha era ruim.
Deus sabe que eu to falando. Minha fia mai essa veia era ruim, ela pisava na
guela. Ela mesmo dizia: “Eu piso, enquanto eu pudé, eu to batendo”. Era,
quando não aguentasse mais, cansada, é que ela soltava. Quando tava assim no
chão, embolando assim, assim ela deixava. Era, essa veia era muito ruim. Era
muito ruim mesmo. Tanto que as menina diziam: - Mas Dona Zefinha a
senhora vai matá a menina desse jeito Dona Zefinha!
E ela: - Eu quero matá mesmo. – Faça isso não com a bichinha! O povo que
tinha pena de mim. - Faça isso não com a bichinha! Com certeza eles tavam
falando: - “Mais que veia da gota Maria”. Ela ia matá se eu chegasse na porta.
Sabe porque isso? Tu sabê, não tem a asa da galinha? A asa da galinha tem
duas partes. Tem um pedacinho aqui e esse pedacinho aqui. E eu peguei três
pedacinho pra cumê. Quê eu tirei três pedacinho pra cume, ela viu do buraco.
Tava olhado lá. Do jeito que eu tirei aquele pedacinho ficô. Ficô virada num
bicho. Por causo disso. Ela quase me matô. Só não matô por causa Das Dores
que chegô. E, reclamô com ela. Era ruim demais. Ai, pronto, ai as menina, as
minhas amiga tudo sabia. Maria sabe, Das Dores sabe, Cleusa sabe. É a gente
era vizinha pertinho. Eu morava assim como assim. Ali na pracinha. E ela
morava aqui. Era só umas casinha assim.
Continuei a perguntar: porque que a senhora não ia morar com suas amigas?
E quem é que pegava! Todo mundo tinha medo dela. Ninguém conversava com
a veia, ninguém falava com ela. Ninguém ia lá, em casa não viu? Acho que
tinha era medo dela. Tinha amizade com ela não. Não falava nem arengava
com ela nem nada não, mai era pra ficá cada um no seu canto.
4.2.10 A órfã com febre amarela
Ah! Pois, vou te contá outra coisa, outra conversa que aconteceu comigo. Eu
quando tava com 7 ano. Quando meu avô morreu fiquei com 6 ano.
61
Ai, se mudou-se da Palma, viemo pra 21Pedra Fina. Cheguei lá eu tive uma
febre, uma Febre Amarela. Meu cabelo caiu todinho que ficô assim ó. Passô a
nascê um pé de capim. Meu cabelo era bom depois nasceu assim ó.
Aí minha fia, eu ia trabalhá todo dia. Pegava 6 hora da manhã no sol, só largava
de meio dia pra almoçá e voltava, só largava de noite. E o povo não me via,
não me via né. E perguntava assim: - Ô seu João cadê aquela menina? Ela foi
simbora pra algum canto? Ai, ele disse: - Ela tá doente. Olha, óia, olha eu tive
uma febre, essa Febre Amarela, eu passei 15 dia. Eu não me acordei, eu não
comia, eu não bebia, não fazia nada, que ninguém me via, nada. E era no chão
viu? Numa esteira veia, um negócio ai, uma esteira veia parece. Ela ia sai de
casa, ela chegava. Ela se acordava de manhã, comia alguma coisa, bebia café
e ia pro serviço, chegava meio dia comia e ia simbora. Botava no prato só, eu,
sem falá, eu não via nada.
Fiquei, faz de conta que eu morri e ninguém via sabe? Ninguém sabia como eu
tava, nem via nada.
E a senhora ficava sozinha doente e sem tomar remédio?
Não, sem nada. O meu cabelo era aqui ói, quando meu pai-avô morreu eu não
tinha o cabelo bem grande. O meu cabelo virô uma tábua, não podia penteá,
não podeia penteá, ai, o meu cabelo caiu todinho. Ela disse que foi varrê a casa,
ai, disse que viu aquela roda preta. Ela disse: - Misericórdia! Uma serpente
chega perto de Maria. No escuro ela viu, pensava que era uma cobra enorme.
Ai, que ela ascendeu o candiêro e foi repará era o meu cabelo. Que tinha caído
todinho. E eu no chão, na frieza no chão. Ai, só sei que quando as mulhere
perguntaram né? A menina disse assim: - Ô seu João cadê aquela mulher, que
eu não vi aquela menina, aquela sua menina que vai lá vê vocês? – Ela tá
doente. – Sim, tá doente de quê? – Sei não, tá com uma febre. – Será que a
gente podia vê ela? Ninguém ia lá em casa não! - A gente podia í vê ela? A
gente podia olhá pra ela. Ai, ele saiu batendo na enxada já na boquinha da
noite. Disse: - Ô mãe, ai, tem umas mulher que qué vê Maria. Ai, ela chego na
porta mandô as mulher entrá. E a mulher. - Mas que quarto é que ela tá? Um
quarto escuro! Era um candiêro de gás e só na sala. Onde eu estava o quarto
não tinha luz, nada de luz. Era aquela escuridão, dava pra vê de jeito nenhum.
Que nem um bicho! Ai, a mulher: - Onde é que tá a menina Dona Zefa? Eu
queria vê ela. Disse: - Ela tá ali dentro. Ai, quando as menina chegaram na
porta disse pra ela, que não podia chegá, não puderam chegá na porta do quarto.
A febre tão grande que eu tava. E eu não chorava, não sei quantos dia fazia. E
a mulher assim disse: - Meu Deus! Essa menina vai morrê. Vocês tão dando o
que a ela? – Nada não. Disse: - Ó seu João, vá lá na venda de fulano de tal, seu
Bihato, um nome parece um nome assim. - Compre uns comprimido que tem
lá e mande fazê um chá não sei de quê, e dê a essa menina. Essa menina vai
morrê. Diz que as menina saíram tudo chorando minha fia. Diz que as menina
choravam feito uma doida disse. Porque que não disse pra eles né. Disse: -
Meu Deus, mas tu visse aquela menina? Aquela menina vai morrê ali. Vão
achá a menina morta. Foi. Ai, foi que ele foi e comprô esse remédio. Porque
essas mulher mandaram. Ai, ele foi de noite, comprô esse remédio e mando
pra fazê esse chá. Que era o que as mulhere deram uns mato. Disse: - Esse
mato aqui ói. Faça o chá e dê com esse comprimido a ela. Que essa menina vai
morrê! Ai, foi que deram. Eu passei 15 dias sem sabê onde é que eu tava minha
fia. Quando foi com 15 dia eu tornei, foi que eu me acordei. Eu tava da cor
com aquele amarelidão assim! Assim ó, Ave Maria e fraqueza né, sem cumê.
Ai, eu me acordei e era um frio tão grande, minha fia! Meio dia em ponto e ia
pro sol. As menina dizia: - Minha fia saia daí que você vai morrê nesse sol
quente cunzinhada. Quanto sol mais quente tava mais eu gostava de ficá. Ai,
só assim minha fia que foi dando, que foi dando, que foi dando e eu melhorei.
21 Pedra Fina é um povoado próximo do Engenho Palma.
62
Antes de eu ficá boa eu dei um jeito e fui pro roçado. Ai, um dia encontrei
essas duas mulher. Disse: - Tú tás melhor fia? Tu tás melhor Maria? Eu digo:
- Amarela minha fia, veia sem uma pinga de sangue. Ela disse: - Mas menina,
tu tá é morta mesmo. E tu tá trabalhando! Eu disse: - Tô. Mas triste de quem
não tem mãe e as mulher chorando. Disse: - Minha fia, triste quem não tem
mãe, eu vi a tua situação. Você só tá melhor, primeiramente em Deus, e eu que
ensinei o remédio ao seu 22tio viu? Se não você hoje tava morta. Que eles não
são gente nem de dá um comprimido a vocês viu, a você. Eu calada. Ai pronto,
fiquei boa. Quando melhorei uma coisinha já fui trabalhá, eu tava trabalhando,
o sol tava pingando assim, aquele suor de tanta fraqueza. Ai, minha vida foi
assim até a uns 10 ano pra cá. É o que eu digo a você, é quando eu to vivendo
e to feliz de 10 anos pra cá, mas de 10 anos pra trás, até 6 anos porque era com
meu avô, depois do meu avô acabou-se a minha vida, era assim minha vida.
Era assim. De sofrimento. Se fosse fazê uma história da minha, um livro da
minha história, não tinha papel, acho, que desse. Tem muita história, tudo
história ruim. Ai pronto. As minhas amiga tudo sabe disso, da minha vida.
Maria quejero, não presenciô, não conheceu isso ai não. Porque quando eu
conheci ela tinha saído de casa já. Mas Das Dores ainda presenciô, que a gente
era.
Sua amiga Das Dores conheceu sua madrasta-avó?
Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa
boa sabe. Só que comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não
desobedecia de jeito nenhum. E ele é que nem esse povo, que nem bicho,
caboclo bravo do mato. Sem muita aproximação das pessoa, ele era na deles.
Então eu me criei assim. Me criei desse jeito. Nas casa que eu morava também
era do mesmo jeito. As pessoa primeiro eram pessoa de respeito. Eu via assim,
eu me criei assim. Em casa, me criei com essa veia assim. Sem conversá, com
ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem estuda,
sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim:
-Eu vivi como Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva
ela se cria. E assim fui eu.
E a senhora está aprendendo outras coisas agora?
To aprendendo agora depois de véia. Que depois de veia não acontece nada.
Tem que i aprendendo de pequena, de pouco né, que é pra quando tive véia já
sabê. É de vida.
Então, eu to sentindo essa alegria, essa felicidade como já falei através dos
meus filho, então, Não sabia. Eu não tinha o direito de chegá, de brincá com
uma amiga minha, nem conversá com uma pessoa nem nada. Era eu só, era eu
sozinha. Pronto, me criei assim meio bicho do mato. Não falava com as pessoa.
Tinha vergonha, de perguntá pras pessoa, chegava perto mas não falava não.
Não sabia nem o que que eu ia dizê. É, ficava logo infiada (risos).
PARTE III
4.3 PROPRIEDADE, CASAMENTO, FAMÍLIA E O COMPLEXO DA CASA
GRANDE
22 O tio era filho da madrasta-avó.
63
O casamento do Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra] herdeiro de gerações
anteriores, foi um acontecimento social de grande movimentação na região do em torno.
Um ritual além do religioso. Junto ao casamento as instituições, autoridades e
personalidade também estava representada e presente.
Dentro da Capela do Engenho ao lado da Casa Grande anexos do grande
Complexo do Engenho Palma, o Senhor havia sido batizado, consagrado com todos os
sacramentos da Madre Igreja. O casamento era o penúltimo ato a ser realizado, antes do
falecimento e sepultamento do herdeiro no mesmo lugar.
O casamento simboliza apenas mais um ato de confirmação e estreitamento dos
compromissos do Senhor de Engenho com a Igreja em nome da religiosa-fé, família, da
economia e política. Do nascimento ao encerramento da vida o ritual religioso testa e
confere os acordos estabelecidos entre si. A reprodução e formação da família é de
responsabilidade compartilhada. Uma instituição reproduz membros e a outra forma,
ensina e os direcionam no caminho a ser seguido. São inventoras de ações dominantes na
forma rígida, tradicional e impenetrável para outros indivíduos de classes ou lugares
diferentes.
Concordo com Oliveira (2000, p.46) quando afirma: “[...] a estrutura inicial da
classe dominante é a posse da terra” e a partir dela se inicia o processo de transformação
de indivíduos posseiros [proprietários das terras] do Brasil, no caso os ex-senhores de
Engenhos, entre esses o posseiro das terras do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra], é o
continuísta desta tradição.
O funcionamento do Complexo na década de 50 e 60 apenas garantia a
manutenção dos privilégios dos indivíduos da mesma classe, os status quo para distinção
social, como revela as narrativas da entrevistada em seus relatos. Entre tantos elementos
distintivos e continuístas da estrutura de dominação patriarcal, o casamento religioso do
Senhor de Engenho com a noiva da mesma classe social é exemplo disso. Propriedade,
Casamento, Igreja, Casa Grande tem função de instituição operativa do sistema. A
continuidade da tradição depende da procriação e descendência do casal. Poucos filhos
herdeiros legítimos com a esposa oficial pertencente a mesma cultura étnica-racial e, ao
mesmo tempo, muitas crias bastardas desprovidas de herança com mulheres negras quase
sempre servil para atividades sexuais extraconjugal.
Essa é a tradição operante autorizada nas sombras marginais do Engenho e da
sociedade patriarcal em sua extensão.
O autor afirma que:
64
O ser Senhor de Engenho é Título, a que muitos aspiram, porque traz consigo,
o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem
de cabedal, e governo; bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho,
quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do reino,
(ANTONIL, 1711, p. 19).
Nessa estrutura cada indivíduo membro da classe dominante em tempos distintos
dentro ou fora da propriedade do Engenho, reinventa a roda produtiva à base da
exploração das massas. Criam novas formas de dominação racional e objetiva. No caso
do Engenho Palma, o velho Senhor de Engenho [pai] do passado recente foi continuado
pelo novo [filho] herdeiro da mesma propriedade ocupada, com apenas aparências e
indumentários modernos, mas a essência da mentalidade e condutas são as mesmas.
A função em comum é dar continuidade ao poder herdado, a transferência da
herança de um parente para outro, como destino e missão de família já que seus membros
assim foram formados e socializados por ancestrais. À base da força manter cada coisa
no seu lugar, exigir hierarquia como forma de distinção de classe. Qualquer atrocidade
pode ser praticada para garantir privilégios, hegemonia, monopólio das riquezas e renda.
A valorização da classe dominante se distingue por atitudes próprias sempre envolvendo
exploração de muitos.
65
FOTOGRAFIA 3 - CASAMENTO DO SENHOR DO ENGENHO PALMA
De um lado, a Casa Grande habitada pela família do homem banco Senhor do
Engenho Palma, patriarca influente na política do estado, na Igreja da região. Pai e filho
deputados estadual de Pernambuco, homens letrados, donos do poder, reconhecidos por
outros iguais e a população curral de cabresto. Do outro lado aparece os sem cultura
letrada, os analfabetos em procissão ou manada. A multidão vista como raça inferior
estigmatizada pela cor de pele escura [preta ou parda], pobre, ex-escravos ou
descendentes da mesma raça. Os habitantes em casas de barro [taipa], de palha de
coqueiro e varas finas. Ou, moradores de favelas ou periferias urbanas e rurais ambulantes
no mundo do desemprego. Os que vivem na sociedade à parte, o exército de excluídos
humanos zumbis. São esses os ex-moradores trabalhadores escravos dos engenhos de
cana-de-açúcar no Brasil. E a entrevista da pesquisa decerto também descende dessas
origens.
O Engenho Palma de posse da família dominante na região nordeste brotou raiz
profunda de uma genealogia patriarcal com modos operantes e estilos de vidas distintas,
indivíduos e grupos continuístas de mesma herança de outrora, plantada como cultura
enraizada com o tempo que parece não ter mais volta.
FONTE: Casamento do [velho]Senhor de Engenho Palma - Ênio Pessoa Guerra e Dona Marieta
[esposa]. Homenagem do prefeito de Machados-Pe. Fotografia antiga de domínio público online,
agosto de 2017. Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-
guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.
66
O ritual do casamento por exemplo é sinal da força que tem a cultura dominante
no país, o casal patriarcal confere a função e o papel da igreja como parte do mesmo
sistema e a igreja por sua vez legitima a união. É uma troca de interesse sem inocência
entra as partes, é um grande negócio. A família interage e decide com a igreja [estado] o
rumo da vida social e produtiva da sociedade maior. Um acordo selado, com isso todos
os membros dominantes também passam a herdar a cultura religiosa também dominante.
Igreja, estado e família conceitualmente são instituições sociais distintas, mas não prática
não há diferença. Uma legitima a outra num corpo só [casamento, batismo, política,
festividades, funerais].
Do outro lado do Engenho, o lugar de trabalho braçal escravo está também
reservado, o sofrimento do corpo e d’alma dos indivíduos explorados não tem valor e
também podem ser substituídos como objeto de descarte. O utensilio doméstico [bule de
café] observado na fotografia [10] de uso da Casa Grande, decerto tinha mais valor do
que a escrava doméstica que manipulava a louça. Assim como todas as demais
ferramentas de trabalho masculino e feminino máquina de exploração de homens e
mulheres dentro e fora da Casa Grande. A vida do trabalhador escravo valia menos que
um saco de graus.
Também o mundo simbólico do sagrado e do profano caminhando junto dentro
do Engenho, nada se separa, tudo se mistura com a mesma força material e imaterial que
tem a religião, a política e a economia na cultura dominante. A igreja enquanto
reprodutora de rituais sagrados guardiã da divindade [religião e simbólicos] convive em
paralelo com a perversão do corpo durante as festividades profanas, devassas,
transgressoras da ordem moral, dos bons costumes e das regras religiosas da Madre Igreja,
na essência nada mais do que uma contradição permitida.
As comemorações religiosas e profanas no Complexo da Casa Grande do Engenho
Palma é exemplo disso. A Igreja suspensas por um período de tempo [um mês] para dar
lugar a profania do Senhor compartilhando os mesmos espaços da divindade. Embora,
com objetos originais de representação e significação distintos, mas não quer dizer que
não exista imitação do místico por seus adoradores fies travestidos de foliões profanos.
O simbólico sagrado e profano participa das mesmas manifestações culturais
[cerimônias religiosas e festividades nuas] usando em comum o corpo dos moradores do
mesmo lugar. Quem pulava carnaval estava ao mesmo tempo praticando profania da fé
no pátio da Casa Grande e de frente para a Igreja. Ao término do ritual se inicia com a
motivação do arrependimento dos pecados perdoados pela Igreja redentora do mesmo
67
Complexo. A devassa exploração do corpo e da carne sexual alterado pela cachaça
produzidas no Engenho, todo pecado é de passível perdão. Tudo faz parte da mesma
engrenagem da estrutura funcional da invenção do poder, é próprio do modelo dominante
plantado na Casa Grande.
Enquanto caminhava em meio aos ambientes de realização de eventos religiosos
sacros e festividades profanas no Engenho, as narrativas da ex-moradora do lugar,
participante de todos esses eventos acompanhava o percurso da caminhada. De forma
emocionante e criativa ela contava em detalhe o que vivia em cada momento.
O casamento era um grande acontecimento no Engenho e em toda região. A
distinção social da família do patriarca Senhor da propriedade [Ênio Pessoa Guerra] sua
esposa, parentes e amigos aparece nos registros da Casa Grande, os objetos de uso pessoal
como o vestido da noiva, o terno e gravata, penteado e corte de cabelos, as joias, os
convidados e os cenários adaptados no Complexo, lugar da nova moradia do casal.
Também ficou visível o ambiente “sagrado” da Igreja preparado para a cerimonia
do casamento dentro do mesmo padrão de sofisticação, endomentários finos e privilégios.
Afinal a Igreja é local de visitação coletiva, de visibilidade social daqueles que frequenta
o ritual, ali também acontece a exposição de roupas, de poder, status sociais e os prestígios
destinados ao Senhor. Não somente para ele, mas também incluindo os membros
familiares da classe dominante. Dentro da Igreja também se manifesta o acumulo e o
poder econômico que cada família tem. Isso fica exposto nas doações às causas religiosas,
aos financiamentos das comemorações do padroeiro da cidade. Tudo é divulgado para
toda comunidade quem doa as quantias monetárias para os padres. Nas homilias isso fica
em evidencia e destaque entre os fies.
Na cidade de Machados por exemplo é ritual da tradição os patronos financiadores
da festa do padroeiro serem divulgados durante a semana toda em carro de som e alto-
falante instalado na torre da Igreja para anunciar o patrono da festa para toda a
comunidade local e os povoados das mediações, sítios e vilas do em torno. Para assim,
tomar conhecimento da família patrocinadora da festa e doadora dos valores gordos ou
magros para a Igreja. São Sebastião é simbolicamente o padroeiro dono da festa durante
um mês inteiro, recebe semanalmente um volume de dinheiro, patrimônio, animais,
objetos de valores e variadas doações rentáveis. Cada família de prestígio da cidade
financia na forma de competição a festa semanalmente. Uma forma mercenária de
arrecadação em nome da cultura religiosa [Deus] para manter os cofres e bolsos cheios
do clero, os privilégios dos grupos religiosos dominantes em posição diferente e, ao
68
mesmo tempo igual ao do Senhor de Engenho. Havendo então apenas um
compartilhamento da fé e do dinheiro acumulado durante o ano como troca de favores. É
a lógica operante e simbólica que deu certo.
A competição entre as famílias dominantes da cidade de Machados no caso, era
exposta pela igreja de forma indireta ou silenciosa. Entre os patriarcas das famílias, a
rivalidade se mostrava na forma de expor o poder econômico em público em nome da
obra divina. Quem doasse mais seria mais abençoado pela Madre Igreja.
O patrocinador não tinha escolha, a Igreja é quem escolhe as famílias. Se não
“ajudar” também é exposto. Os valores das doações também eram comparados, se for alto
o fervor na homilia do padre é mais forte, se for baixo, também enfraquece o discurso na
missa. Com isso, os interesses da Igreja são atendidos permanentemente, assim a Igreja e
os Senhores de Engenho, as famílias dominantes e de poder continuam com a missão e
destino, a dominar pela dominação.
Essa relação é intrínseca principalmente se a família proprietária de terras tiver
membros com vínculo na política do estado, for um “representante do povo”, como é o
caso do Senhor de Engenho Palma. Onde pais e filho eram deputados do estado
representante da região. Uma condição que muito dependia da Igreja e dos padres de
confiança e proximidade. Havendo aí uma troca de interesses mútuos. A família Guerra
circulante da cidade de Machados, bastante reconhecida graças aos prestígios divulgados
pela Igreja, era patrocinadora das comemorações religiosas e em outras obras, em troca
tinha o apoio da instituição religiosa que tinha influencia na campanha política do
candidato ao cargo. O voto conduzido tinha sempre a influência da Igreja.
Na sequência apresento narrativas, discussões, imagens e texto sobre o lugar e a
função da Igreja parte do Complexo da Casa Grande do Engenho Palma.
4.3.1 Igreja do Engenho - lugar de distinção social e funeral
No contexto social do Engenho, a Igreja [Capela] não representa tão somente o
lugar místico da Casa de Reza, nem apenas a função de casar noivos, batizar crianças e
ensinar os princípios religiosos, sociais e culturais de uma determinada classe, a
dominante obviamente. É também um lugar de poder e distinção social por excelência.
Na figura [4] é possível observar a estrutura física interna da Capela [Igreja] do
Engenho Palma e ver a separação dos espaços físicos e simbólicos para valorizar essa
distinção social de classe. Está presente em todo lugar, mas também na divisão interna da
69
Igreja, os camarotes na cúpula destinados à ocupação do Senhor, sua família e membros
da mesma classe social de pertença. Os privilegiados se destacam do restante dos fies
pessoas comuns, escravos e moradores catequizados no Complexo.
A [Casa de Deus] fixada na Capela do Engenho Palma é um exemplo disso, da
distância social impregnadas na arquitetura física e simbólica dos ambientes e nas
relações sociais cotidianas. Os superindivíduos donos do poder econômico, político, tem
prestígio social religioso enquanto autoridade máxima do lugar que estão talvez abaixo
de Deus. Já que na terra são quem decidem tudo sobre a vida dos seres inferiores por
natureza, é um fenômeno social-divino de racionalidade calculada simples e, ao mesmo
tempo complexa pela força fixada na estrutura coletiva da sociedade cristã.
Nesse contexto, o 23Capelão da Igreja, o sacerdote é um ente exclusivo do Senhor
de Engenho, prestava serviços de interesses pessoais e aos demais membros da Casa
Grande. Incluindo o sacerdote, todos eram subordinados ao Senhor juntamente com os
assalariados homens livres, moradores e escravos do Complexo. Cada individuo
executava sua função, obedecia ordens e cumpria atividades para manutenção do sistema
de dominação. Como afirma Antonil (1711) em suas escritas raras e históricas sobre o
cotidiano dos Engenhos no Nordeste do Brasil.
23 O Capelão, a quem se há de encomendar o ensino de tudo o que pertence a vida cristã, para satisfazer a
maior das obrigações, que tem: a qual é doutrinar, ou mandar doutrinar a família, e escravos, [...] as orações
e os mandamentos da Lei de Deus, e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão de crer, o que
hão de orar, e como hão de pedir a Deus aquilo, de que necessitam. É para isso se for necessário dar ao
Capelão alguma coisa mais do que se costuma, entenda, que este fará o melhor dinheiro, que se dava em
boa mão.
Tem, pois, o Capelão obrigação de dizer missa na Capela do Engenho nos domingos e dias santos, ficando-
lhe livre a aplicação das missas nos outros dias da semana por quem quiser: salvo se se for concertar de
outra sorte com o Senhor da Capela, recebendo este pedido proporcionado ao trabalho. [...] Explicar a
doutrina cristã, a saber os principais mistérios da fé, e o que Deus, e a Santa Igreja mandam, que se guarde.
Quão grande mal é o pecado mortal, [...] para que eles nos perdoassem assim as culpas, como as penas, que
pelas culpas se devem pagar. De que modo havemos de do confessar os pecados e pedir a Deus perdão
desses com verdadeiro arrependimento e proposito de não tornar a cometê-los, ajudados da graça divina.
Em que consiste fazer penitência de seus pecados, [...] para não cair no pecado, e oferecer-lhe pela manhã
todo trabalho do dia.
Procurará também a aprovação para ouvir de confissão aos seus aplicados, [...] lhes possa servir
frequentemente de remédio; [...] por muita autoridade que tenha: porque se o penitente não for disposto,
por causa de estar amancebado, ou andar com ódio do próximo, ou por não tratar de restituir a fama, ou a
fazenda, que deve, ainda que fosse o mesmo Senhor do Engenho, o não há de absorver: e nisto poderia
haver, por respeito humano, grande encargo de consciência, e culpa grave.
O que se costuma dar ao Capelão cada ano pelo seu trabalho, quando tem as missas da semana livres, são
quarenta ou cinquenta mil reis: e com o que lhe dão os aplicados, vem a fazer sua porção competente, bem
ganhada, se guardar tudo o que acima está dito. E se houver de ensinar os filhos do Senhor de Engenho, se
lhe acrescentar o que for justo, e correspondente ao trabalho.
No dia, em que se bota a cana a moer, se o Senhor do Engenho não convidar ao Vigário, o Capelão, benzerá
o Engenho, e pedir a Deus, que dê bom rendimento, e livre aos que nele trabalharão de todo o desastre. E
quando no fim da safra o Engenho pesar, procurará, que todos deem a Deus as graças na Capela.
(ANTONIL, 1711, p.10-14)
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Por natureza, os indivíduos dominantes e privilegiados ocupantes da Casa Grande
do Engenho, homens, mulheres e crianças pouco sociáveis com as classes inferiores
[assalariados, moradores livres e negro-escravos], também exaltam o pequeno poder. A
identidade e o poder senhorial contamina todos os membros da mesma classe e genealogia
familiar, indivíduos vetores do pequeno poder que aspiram o grande domínio, que foram
educados para não se misturar com os diferentes, com a diversidade heterogênea do
Engenho, no caso, os braçais escravizados, analfabetos e sujos do trabalho. A
homogeneidade do grupo dominante é parte da tradição.
Portanto, manter o distanciamento físico, simbólico e social dentro das estruturas
do Complexo é a regra legitimada. Dentro da Igreja, os privilegiados assistem a missa
reservados em camarotes e cúpula Capela, um lugar de destaque diante de Deus e da
plateia religiosa. Afinal, a divindade simbólica é corporificada pelos mistérios nos objetos
sagrados [hóstia, cálice, sacrário, estátuas, vestuários]. Deus, também, mantém limite de
contato com os pecadores com a divisão espacial entre o altar e o salão de reza comum.
São os mesmos indivíduos, lugares e espaços ocupados dentro das estruturas
internas e externas das instituições sociais da sociedade maior, a mentalidade e
reivindicação de privilégios não se diferencia na estrutura social. É um ritual que vai da
Igreja-Capela à Casa Grande do Engenho Palma e se estende em toda sociedade.
A produção e transmissão do ethos cultural da classe dominação se movimenta na
família, nas estruturas do estado, na política, nas relações hierárquicas envolvendo
gênero, raça, etnicidade, cultura e relações produtivas. Do rural ao urbano a estrutura
dominante e os indivíduos dominados se perfaz nos séculos. Dentro da Igreja e no
Engenho indivíduos patriarcas criaram estrategias sofisticadas para manutenção do poder
e dos interesses acordados entre si. A opulência acima de tudo.
A Capela e o Capelão cumprem papeis e funções práticas e simbólica na estrutura
cognitiva dos indivíduos com esquema doutrinador e mantenedor do sistema dominante.
As missas e festividades religiosas supostas atividades integradoras da
comunidade cristã, de perto não é nada disso, está apenas cumprindo a parte no jogo do
poder, nada mais do que isso. Agem para legitimar da dupla dominação, de um lado, o
domínio e controle do Senhor de Engenho na exploração da força física pelo trabalho
escravo, do outro, a religião age no controle da mente pela fé dos escravizados. Um
esquema perfeito.
Os ambientes superiores da Igreja e da Casa Grande também servem de acesso
privilegiados para os ocupantes dos espaços enxergarem os indivíduos inferiores de cima
71
para baixo, os pés ficam suspensos do piso [base] de circulação comum, da coletividade
escravizada em especial. Das cúpulas [camarotes] da Igreja às varandas das Casas
Grandes, simbolicamente os superindivíduos estão todos sobre as cabeças dos demais
inferiores à classe - a ralé desprovida de poder, riquezas e bens. Desde que seja
controlada, vigiada e obediente aos mandos do Senhorial, caso contrário, castigos severos
e morte.
Da “Cúpula Sagrada” e da Varanda, o Senhor de Engenho e sua família podia
observar tudo e toda movimentação nas estruturas inferiores do Complexo. Quem entra e
sai dos ambientes produtivos e úteis ocupados por indivíduos perigosos, de riscos. Que
precisa ser controlado pelas violências, essa era a dinâmica do cotidiano no Engenho.
FOTOGRAFIA 4 – IGREJA DO ENGENHO PALMA
FONTE: Igreja do Engenho Palma [ambiente externo e interno]. Local de destaque para as Classes
Sociais privilegiadas e lugar Sepultamento no interior da Capela [tradição de família] Visita guiada
da pesquisadora com a entrevistada antiga ex-moradora do local. Fotografias recentes de acervo pessoal
Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto, 2017. Fotografia antiga de domínio público online, agosto de
2017. Disponível em: <http://professoredgarbomjardim-pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-
e-patrimonio.html>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.
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A escuta das narrativas e visitação in lócus foram os momentos mais ricos do
trabalho de campo, únicos e especiais durante todo o desenvolvimento da pesquisa,
principalmente quando a entrevistada começou a narrar suas memórias vividas dentro dos
ambientes revisitados do Engenho Palma. O que levou também a fazer outras pausas e
longos silêncios. A manifestação de sentimentos emocionados foi uma constante durante
o percurso da visita, a saudade sentida pelas lembranças da vida no lugar, os
acontecimentos cotidianos tiveram fortes destaques em suas falas. Tudo acontecendo
enquanto falava sobre cada fio do assunto puxado nas conversas e descamados em etapas
de enredos vetores das histórias. Ao mesmo tempo em que a entrevistada caminhava e
mostrava os cenários e os lugares por onde andou, correu, pulou, brincou e viveu sua
infância, ria e chorava de alegria e saudade. As coisas e objetos dos cenários ganharam
corpo, voz, nome e identidade própria. Os elementos da natureza, parte viva do lugar
exalavam cheiros que só ela sentia da terra, das flores, da liberdade saudosa e da brisa
receptora. Também os trabalhadores da propriedade tinham nomes ou apelidos
conhecidos e histórias reais com quem interagia no dia a dia. Dentro do Engenho Palma
um mundo de coisas começou a se mover nas palavras da ex-moradora, que não cabiam
em suas emoções. Era como se ainda estivesse vivendo no mesmo lugar e o tempo não
havia passado em sua imaginação lúdica e criativa.
O observado visível, sentido e palpável nas estruturas do Engenho Palma reforça
positivamente o tido e lido na escrita de Antonil (1711), corroborando também com as
narrativas de experiências vividas pela entrevistada antiga ex-moradora daquele lugar,
que por sinal é uma história bastante detalhada com voz e presença física inesquecível. A
ex-moradora e o lugar [paisagem, energia, sons, cheiros, imagens, objetos portadores de
histórias e vidas] são constatações de uma realidade concreta e real de um tempo que
aparentemente não se divorciou do lugar. Está tudo lá, em movimento invisível operando
com força simbólica sobre a mente e o corpo das pessoas que pertence de algum modo ao
Complexo. É assim que se apresentou e representa o mundo no Engenho Palma durante
a visitação da pesquisadora. Talvez, a força simbólica ainda se mantém no corpo vivo da
ex-moradora e nas estruturas do concreto habitando nos cantos da propriedade e no
silêncio das unidades físicas.
De fato, fui surpreendida por muitas vezes com a quantidade de coisas, detalhes e
riquezas nas histórias contadas por uma ex-moradora do lugar; num tempo relativamente
curto que anteriormente era desconhecido para a pesquisadora. Talvez, também, seja para
muitos que nunca estiveram em espaços dessas dimensão e natureza, um arquivo de
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marcas e histórias de nosso país. Foram experiências reais contadas de formas diferentes,
relatos pronunciados menos ainda escutados por outrem. Decerto, até hoje não encontrei
semelhança em outros encontros com o campo para comparação das experiências
acumuladas neste trabalho. Tudo acontecendo e sendo dito em voz alta e num fôlego só
para ser capturado com reflexão automática, quase isso.
O real e o imaginário em parceria, o prático e simbólico no jogo de sinuca, tudo
se mostrando e impregnado nas estruturas do Complexo da Casa Grande do Engenho
Palma, nos objetos à mostra, nos instrumentos de trabalho escravo, nas condutas
individuais e no comportamento coletivo revelado em imagens e fotos, nos documentos
secretos, na aparência do estilo e modo de vida do grupo familiar do Senhor. A definição
de um lugar em poucas linhas ou palavras – o Complexo da Casa Grande do Engenho
Palma pensada simbolicamente como o Céu para alguns e como o Inferno para outros.
Também a presença de urnas funerárias dentro da Igreja [Capela] do Complexo da Casa
Grande do Engenho Palma mantem a distância social e de contato entre o Senhor de
Engenho [familiares] e o resto da comunidade. Não interessando se a vida no corpo de
seus membros nasceu ou faleceu, o mais importante é reservar o seu lugar de distinção e
de privilégios dentro do sistema. A reverência ao corpo morto ou vivo continua sendo
objeto do ritual obrigatório.
É a partir do Complexo que tudo acontece e se desenvolve no cotidiano ordinário,
antes, passa pela ocupação das terras, a posse da propriedade, depois, transformada em
herança vitalícia com a instituição do casamento e nascimento da família do Senhor de
Engenho.
Com a família, os privilégios são institucionalizados como coisas intocáveis,
indissolúveis, são internalizados como distintivo de classe e poder, referência e identidade
social daquele grupo. O nascimento de membros [novos] e falecimento de outros [velhos]
dentro da estrutura do Engenho significa mais do que a renovação das gerações, além
disso, indica a perpetuação do poder de um grupo num extenso período de tempo, de
poucos no comando de muitos. Onde o Senhor é o dono absoluto de tudo, com benção da
Igreja estendido seu braço no Estado legal. No Título de Sócio Benemérito observado na
imagem [5] essa comunhão entre Igreja e o Senhor é constatada no documento. Há uma
forte relação de co-dependência e acordo entre a Igreja Matriz de Machados representada
na Ordem Vicentina e o Senhor de Engenho Palma [deputado estadual] daquela região
[Ênio Pessoa Guerra]. As conexões religiosas e políticas estabelecidas entre as
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instituições [Igreja, Senhor de Engenho e família] ficam bastante evidentes. O compadrio
religioso vinculado ao político.
4.3.2 Título de Sócio Benemérito [Conferencia Vicentina de Machados]
Na igreja onde a gente ia pra missa. Tinha e ainda tem. Mas, só que agora não
tem mais missa, o povo não fazem mais missa não. Não fazem mais missa não,
mas tem a igreja lá ainda, mas nesse tempo era muita coisa que tinha na igreja.
Tinha no mês de maio a noite uma festa que ele butava lá, festa muito boa,
muito bonita, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA
DO ENGENHO PALMA).
IMAGEM 5 - TÍTULO DE SÓCIO BENEMÉRITO
Em 1976 o Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra] recebeu o Título de
Sócio Benemérito da Irmandade Vicentina na Conferência municipal do padroeiro da
cidade de Machados [São Sebastião]. Confere o documento, “por decisão unanime” os
FONTE: Título de Sócio de Benemérito outorgado ao Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra.
Imagem antiga de domínio público online, agosto de 2017. Disponível em:
<https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.
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membros conferencistas padres e bispos daquela paróquia outorgam o Título de
Benemérito ao Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra] “em virtude de seus relevantes
serviços prestados à causa vicentina”. É um reconhecimento público das benfeitorias do
Senhor à Igreja, na estreita relação religiosa e política estabelecida entre as partes
envolvidas nas causas de interesses particulares em comuns. As trocas de “favores” e
cumplicidade dos interessados [Igreja, Senhor, Família e Estado] mantém visivelmente
as “boas relações”. Um ato simbólico com discurso político e conotação religiosa. Como
aparece nas narrativas da entrevistada e nas imagens apresentadas neste trabalho.
4.3.3 Complexo da Casa Grande
Gilberto Freyre em sua obra [Casa-grande & Senzala] de 1933, retrata bem como
era o Nordeste de 1937 e a produção do açúcar nos Engenhos de 1939. O autor expõe o
que constituíam as principais estruturas dos Engenho. Constrói sua narrativa sociológica
afirmando que o Complexo era formado pela Casa Grande, a Senzala, o Engenho, a
Capela e o Canavial.
As Casas Grandes eram as moradias dos Senhores de Engenhos e de suas famílias
oficiais herdeiras da propriedade. O nome "Casa Grande" fazia jus ao título, pois era de
fato um verdadeiro casarão com vários cômodos rústicos ou luxuosos conforme a
evolução do tempo. Começou a ficar luxuosa somente no do final do século XVIII e ao
longo do XIX. Nos séculos anteriores, a exemplo do século XVI e XVII, as Casas Grandes
não eram tão luxuosas ou palacianas assim. Algumas foram construídas de “[...] taipa,
pedra-lavada, cal, teto de palha ou de sapê”. Freyre afirma que no século XIX, as Casas
Grandes já haviam sido reformadas ou construídas com materiais caros, de luxo e
decoração personalizada, (FREYRE, 1933).
Mas, com as riquezas [ouro branco] sendo produzido em Pernambuco
principalmente, os mandatários rurais também foram se espalhando no luxo, como afirma
o auto:
Devia possuir grandes canaviais, lenha abundante e próxima, escravaria
numerosa, boiada capaz, aparelhos diversos, moendas, cobres, fôrmas, casas
de purgar, alambique; devia ter pessoal adestrado, pois a matéria-prima
passava por diversos processos antes de ser entregue ao consumo; daí certa
divisão muito imperfeita de trabalho, sobretudo certa divisão de produção. O
produto era diretamente remetido para além-mar; de além-mar vinha o
pagamento em dinheiro ou em objetos dados em troca e não eram muitos:
fazendas finas, bebidas, farinha de trigo, em suma, antes objetos de luxo. Por
luxo podiam comprar os mantimentos aos lavradores menos abastados e isto
era usual em Pernambuco, tanto que entre os agravos dos pernambucanos
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contra os holandeses capitulava-se o de por estes terem sido obrigados a plantar
certo número de covas de mandioca, (SIMONSEN, 2005, p.126).
No contexto mais recente a entrevistada narra o que via e percebia no em torno da
Casa Grande habitada pelo Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra] e sua família
patriarcal.
FOTOGRAFIA 6 - COMPLEXO DA CASA GRANDE [ANTIGA E RECENTE]
Me lembro das irmã dele: Dona Aline e Dona Coleta. Era o nome dela. Eu vi
elas duas. Elas iam bebê caldo. Lá dentro do Engenho. Elas morava lá, elas
estudava no município, nesse lugar. Elas vinham em casa de vez em quando.
Aí, de vez em quando, a gente via elas no Engenho. Antigamente esses filho
de Senhor de Engenho, filho desses povo não tinha faculdade por aqui, era tudo
fora. Se formava fora. Ia estudá e lá se formava. Não habitava não. Eles tavam
FONTE: Complexo da Casa Grande do Engenho Palma. Fotografia superior antiga de domínio
público online e inferior recente de acervo pessoal. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto, 2017.
Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em:
30 de outubro, 2018.
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alí enquanto tavam estudando, porque não tinha estudo pra eles. Eles iam se
formá queriam estudo bom né? Aí, iam pra Recife, eles estudavam em Recife,
outros lugar assim e lá se formava né. Aí, eles vinham pra casa assim: final de
ano, nas férias, era quando a gente via eles, (RELATO DA ENTREVISTADA
ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
Ele era braço. Ele era braço de governo viu. Ele tinha o poder que nem o
governo tem. Braço de governo é como se fosse. Era de Itamaracá. Ele morava
em Itamaracá e tinha um Presídio em Itamaracá. Prendia os preso em
Itamaracá na Ilha de Itamaracá. Eu via meu tio dizendo. Quando ele matava as
pessoa assim, ele levava prendia lá. Eles diziam que prendia os morador dele.
O único que prendia era ele e levava pra lá.
Tinha uma Ilha de Itamaracá diz que tinha um Presídio. Que não tinha pra onde
esses preso saí. Que era dentro da água, em cima da água. Eu via eles, meu tio
falando. Diz que era dele. Ah, no início eu era pequena, eu só ouvia só o boato,
o comentário. Mas, ladrão na terra dele não ficava não visse. Ladrão, se fosse
ladrão na terra dele, não ficava não, (IBID).
4.3.4 Velho e Novo Senhor do Engenho Palma [pai e filho]
Nas narrativas da entrevistada ex-moradora do Engenho Palma aparece em
detalhes, o modelo e a cultura familiar do proprietário das terras, a dinâmica e o
funcionamento do poder centrado no Senhor de Engenho que age como braço forte do
estado. Com ele, opera uma mentalidade violenta transmitida como herança de sangue.
Tanto que representa na percepção dos moradores do Engenho e para a população
regional, ser o Senhor da força e do poder absoluto quando mostra suas influencias diretas
e dominantes dentro das estruturas da Igreja e do Estado, enquanto político e dono das
máquinas produtivas. Confere seu domínio forte ao receber do próprio estado, em sua
homenagem o próprio nome dado à uma unidade prisional em Pernambuco.
FOTOGRAFIA 7 - SENHOR DE ENGENHO VELHO[PAI] E NOVO [FILHO]
FONTE: Ênio Pessoa Guerra [pai e filho]. Velho e Novo Senhor do Engenho Palma. Deputados Estadual
de Pernambuco. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em:
<https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.
Na percepção da entrevistada
antiga moradora do Engenho,
declara:
“Ele era bem gordo, uma papada,
tinha uma papada aqui, bonito ele
era, gordo, novo, branco. É muito
bonito ele. Dona Marieta era uma
galega. Era uma galega ela. Loura,
bem loura”.
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Na Ilha de Itamaracá [litoral] cidade histórica, lugar para onde supostamente
levava os presos do Engenho e das cidades do em torno para prisão e cumprimento de
pena por supostos crimes cometidos contra outrem ou a ordem social.
Decerto, os ex-escravos e trabalhadores opositores condenados à morte ou
fichados como presidiários perpétuos na penitenciária de seu controle e domínio. Era o
Senhor quem decidia o que fazer com a vida dos supostos desordeiros da sociedade local.
Prendia, castigava e dava fim ao conflito social à base da força autorizada. Nos estudos
complementares, observei que a unidade prisional com seu nome [homenagem], foi
redirecionado ou transferida para o presídio da cidade de 24Limoeiro-Pe [menos de 00:30
minutos de distância do Engenho Palma]. Talvez, por decisão política acordada entre o
Estado e o Senhor de Engenho, considerando que a unidade prisional de Itamaracá
[litoral] foi recentemente fechada por conta das pressões populares da cidade e as
constantes rebeliões dos presos.
Como podemos observar nas narrativas e documento em análise, as condutas
observadas no cotidiano mostram os tipos de relações de hierarquia e poder, mando e
obediência do proprietário das terras do Engenho.
4.3.5 Corrida do Fogo Simbólico da Pátria [Diploma]
O Diretório Regional da Liga de Defesa Nacional do Estado de Pernambuco, por
meio da Policia Militar da unidade federativa, concede ao velho Senhor de Engenho
Palma [Ênio Pessoa Guerra] um certificado [Diploma: 25Corrida do Fogo Simbólico da
24 PENITENCIÁRIA DR ÊNIO PESSOA GUERRA – PDEPG. PE 90, Km 23 Zona Rural Sítio
Quebrajejum – Limoeiro. (81) 3628-8822. Disponível em: <
http://www.seres.pe.gov.br/unidade/22/penitenciaria-dr-enio-pessoa-guerra>. Acessado em: 30 de outubro,
2018.
25 "Uma vez PE, sempre PE!" Grito de guerra do Pernambucanos. A Corrida do Fogo Simbólico da
Pátria (CFS) no estado de Pernambuco foi uma prática cívica-cultural iniciada pelo Exército Brasileiro em
1937 nas comemorações da Semana da Pátria no Brasil durante os festejos da independência do país.
Surgiu como ideia de um grupo de patriotas no Rio Grande do Sul que procurava um símbolo que
representasse o ardor cívico do nosso povo. Em 1938, aconteceu a 1º Corrida do Fogo Simbólico da Pátria realizando uma pequena corrida num trecho de 26 km entre as cidades de VIAMÃO e PORTO ALEGRE.
Simboliza uma Corrida de Revezamento da Chama Olímpica num contexto sociocultural e político que
favoreceu o aparecimento e fixação da cultura cívica nacional como uma forma de afirmar a identidade do
povo brasileiro e sua independência. Assim, a CFS pode ser vista como uma das ações nacionalizadoras
inspirada nos rituais das práticas esportivas com conteúdo político-cívico. Cuja, finalidade é a de percorrer
o território nacional numa corrida de revezamento denominada CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA
PÁTRIA com uma tocha [Pira da Pátria]. Em Pernambuco o Senhor de Engenho Palma [Ênio Pessoa
Guerra] também fez parte dessa aliança nacional conforme mostro o [diploma] de participação.
Disponível em: < http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/8300>. Acessado
em: 02 nov. 2018.
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Pátria], por sua participação no movimento em [1975] nas comemorações cívicas na
cidade de Machados-Pe. Lugar de circulação e convívio com as famílias igualmente
privilegiadas do local, proprietárias e donas de terras, com quem mantinha relações de
parentescos, de amizade e compadrinho político, negócios comerciais e vida cultural.
IMAGEM 8 - DIPLOMA: CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA PÁTTRIA
PARTE IV
4.4 COTIDIANO E FUNCIONAMENTO DO ENGENHO PALMA
Sobre o cotidiano do Engenho a entrevistada destaca sua percepção mostrando os
contrates das experiências vividas no lugar com riqueza de dados e detalhes do dia a dia
digno de um documentário de vida real.
De um modo especial ela narra era o funcionamento do Engenho:
FONTE: Diploma: Corrida do Fogo Simbólico da Pátria conferido à Ênio Pessoa Guerra pela sua
participação na Liga de Defesa Nacional em 1975. Fotografia antiga de domínio público online,
agosto, 2017. Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>.
Acessado em: 30 de outubro, 2018.
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Funcionamento do Engenho era assim: Era com cana né. Aí, plantava a cana,
limpava a cana, desfolhava a cana, quando a cana já tava boa de cortá, os
trabalhador ia cortá aquela cana.
Era, cortava aquela cana, um cortava o outro amarrava, outro jogava em cima
do carro, dos caminhão de carga e já levava diretamente pro Engenho. Quando
chegava lá no Engenho descarregava aquelas cana do jeito que tava amarrada,
já botava dentro da forma, do negócio de moê lá, da moenda. Tinha um
maquinista que ligava a máquina, que sabia manejá a máquina né. Ia botando
os feixe de cana dentro e aquela roda comendo assim Ó.
Comendo assim, caindo o bagaço de um lado e o caldo saia no outro. Aí, tinha
uns tanque grande de caldo, eles botavam uma bica. Ia botando os feixe de
cana e aquelas boca bem grande assim ó, aquele negócio fazia assim ó, aí, saía
cheio de caldo, tinha o caldo e os bagaço pra outro. Tinha dois tanque: eles
botavam duas bicas de aço, não sei, acho que era de aço. Aquele caldo daquela
cana já saía por aquela bica e já ia enchendo aqueles tanque. Uns tanque
enorme! Depois que aqueles tanque tava cheio ele já caía num outro tanque,
caía nas tachas, umas tacha enorme assim do tamanho dessa sala. Bem redonda
assim.
E o caldo já caía ali, já tinha botado fogo na fornalha já. Quando tava pegando
fogo aquilo e aquele mexendo com um negócio bem grandão, mexendo aquele
caldo todinho. Mexendo, cada um com aquele negócio bem enorme, um
negócio bem grandão assim mexendo todinho pra lá e pra cá. É pra fazê esse
mel desse caldo de cana.
Quando amanhecia o dia que isso já tava bom. A noite todinha mexendo. E a
fornalha com fogo em cima. A fumaça chegava na vizinha, quando esse mel
tava pronto dava um apito. “Píííííí...” bem assim e a gente escutava. Aquele
homem que passou a noite todinha mexendo aquele mel, aquele negócio
pesado. Ninguém sabia quantos coisa de mel que tinha ali dentro.
Se caísse ali dentro ói, ficava o bagaço. Quando amanhecia o dia que o engenho
dizia hoje piejô. Era na hora que o mel tava pronto. E daquele mel tinha um
furo, um pau, acho que era um pau, não sei o que era, bem grande um negócio
assim bem grande pra enchê aquele negócio, aquela tacha e enchia as
“encureta”. É, um negócio bem grande, enorme assim. Muito grande viu.
Cheio daquelas encureta assim, um negócio furado pra botá. Ia enchendo
tudinho aquilo e depois que ia enchê deixava tampado escorrendo lá. O que ia
escorrendo devagarzinho era o mel de furo que era pros bicho.
Aí, quando o mel tava açúcar, tava pronto, sequinho, vinha o cavalo. O pátio
do engenho ficava completo, completo, completo de cavalo. Era carregando
assim, duas encureta que carrega. Carregando, carregando. Aí, quando tava
tudo carregado saía tudo e ia simbora.
Encureta era de tauba. De botá o mel, fazê aquela coisa de açúcar desse
tamanho de garrafinha. Aí, ele levava com encureta e tudo. O mel virava o
açúcar.
Botava o mel dentro desse negócio, dessas encureta, e essas encureta tinha um
furinho embaixo que era pra escorrê, í, coalhando, quando o açúcar ia passando
já ia coalhando
Ficava aquele pauzinho de açúcar desse tamanho assim, abaixo da encureta.
Aquilo a gente entendia tudinho.
À medida que ia esfriando, ela ia saindo aqueles pinguinho de mel. Virava
aquela pedra de açúcar enorme, aquele negócio todinho. E aquele mel que
ficava embaixo era pros bicho. Pros gado. E também fazia o álcool, o álcool
não sei como que fazia não.
A gente entrava, os home trabalhava lá, a gente entrava, Seu José João, o home
que morava lá, ele era maquinista do Engenho. Aí, a gente entrava, bebia caldo,
comia rapa de tacha. Era. O home dava cheio de rapa de tacha pra gente. Do
mel, o mel que ficava, que pegava na tacha ele dava a gente.
Hum! Pois, chegava lá o Seu Zé João dizia: vai bebê mel de cana. Era correndo
assim, ó, aparando 2, 3 copo de cana, bebia assim ó. Bebia, era bom.
81
Fiquei um bocado de tempo. Eu fui morá mais ele, depois saí de lá de novo,
depois a mulher me chamou, foi me buscá de novo pra eu criá os filho dela.
Criei os dois menino dela. (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-
MORADORA DO ENGENHO PALMA).
O ambiente era cheio de coisas, acontecimentos, elementos parte de suas
aventuras do ponto de vista de uma criança inocente que enxerga o atrativo mundo
infantil, com relativa liberdade e vida social socializada na cultura prática do dia a dia. O
ensinado e apreendido enquanto regras da cultura do Engenho. Aquilo que indica avanço
e recuo na estrutura de funcionamento, das relações de hierarquia, poder, mando e
obediência. Mas, também o Engenho era um lugar carregado de eventos diversos e
realidades bastante complexas para a compreensão de uma criança imatura obviamente,
embora estivesse sendo narrada por uma criança que se tornara adulta. Embora, parece
existir pouca diferença da percepção da entrevistada criança para a pessoa adulta no
presente. As memórias da infância não foram substituídas com o passar do tempo.
Em meio a tudo isso, a vida social e produtiva compartilhada entre os moradores
[trabalhadores] do Complexo era movida à base de ordens e controles do Senhor do
Engenho, o que acarretava diferentes prejuízos na vida coletiva e pessoal dos
subordinados. Contudo, se o morador e a família quisesse sobreviver ao lugar era esse o
sistema de funcionamento da propriedade. Uns trabalhavam no cultivo da cana, outros na
produção do açúcar dentro do Engenho, a maioria trabalhava na condição de morador
portador de corpo livre, mas, com a mente e alma escrava, que não se transformaram em
homens e famílias plenamente livres e assalariados. Haviam aqueles que trabalhavam em
troca de moradia precária e uma quantidade de terra para trabalhar na lavoura de
subsistência.
As mulheres também eram escravizadas no Engenho, as que tinham habilidades
doméstica se destacavam para assumir atividades dentro da Casa Grande. Os homens
movimentavam a produção pesada no campo e as máquinas do Engenho, as mulheres
manipulavam objetos de utilidades e usos domésticos – cuidavam do senhorzinho, da
patroa, dos afazeres da casa em toda sua extensão [lavação de roupas, cozinha e
alimentação] e assistência geral aos habitantes do Complexo.
Os ambientes de circulação eram também vigiados, os moradores tinham
restrições de acesso, até no processamento do açúcar dentro do Engenho, a maioria só
podia circular sobre autorização e comando do feitor chefe, desde as atividades braçais
na plantação da lavoura principalmente, até a transformação do produto final, o açúcar e
82
os derivados da cana. Como aparece nas narrativas e história dos objetos analisados neste
estudo.
O Engenho era mais do que uma estrutura de concreto pesado de aparência rústica
ou envelhecida pelas intempéries do tempo sazonal e cronologicamente falando. Além de
tudo isso, era o lugar de ocupação e circulação de gerações de homens [maridos, pais,
chefes de famílias], mulheres [mães], filhos e crianças de todas as idades, todos
objetificados como instrumento de produção, mercadoria lucrativa ou máquinas humanas
usadas apenas para a produção de riquezas à base do trabalho escravo, explorado, ou, com
simbólica e mínima remuneração. Moravam todos de favor e deviam favores e obediência
ao Senhor e sua família. Dentro da Casa Grande as mulheres escravizadas serviam
também para o sexo marginal com o velho Senhor, ou, o senhorzinho a quem prestavam
trabalho de servidão multiplicada dentro do espaço doméstico, um servir sem fim. No
Engenho, cada indivíduo exercia função à base da violência. A dispensa de força bruta
para a plantação da cana, da colheita, preparação da terra para o replantio, transporte para
o Engenho, moenda, destilação do caldo, processamento do mel até chegar o ponto do
açúcar de qualidade. Finalmente, o armazenamento, transporte, comercialização e
exportação. Tudo em detrimento da manutenção do poder, do luxo, dos privilégios e
enriquecimento do Senhor e de sua família.
Muitas 26pessoas e coisas envolvidas no processo produtivo. Acima dos escravos
também havia muitos homens livres com funções distintas a serviço do Senhor, como
26 Feitor-Mór: Homem de poder inferior ao Senhor, assalariado e responsável pela administração do
engenho. Fiscalizava as atividades gerais, desde o plantio até o transporte final do açúcar. Olhava os
estoques, o trabalho dos escravos, a saúde. Tudo era comunicado ao Senhor do Engenho, qualquer fato
ocorrido ou suspeita, o que via e se passava no engenho. Os demais feitores – homens livres - eram
subordinados ao Feitor Mór. Conforme, Antonil (1711), o feitor-mor recebia um salário de sessenta mil réis
ao ano [século XVIII].
Feitor de moenda: era o homem responsável para fiscalizar a colheita, transporte e moeda da cana de
açúcar. Durante a moenda da cana, ficava controlando o trabalho dos escravos e escravas, cuidando para
evitar acidente durante o processo, até iniciar o processo de fervura. O autor destaca que o feitor de moenda
recebia um salário de quarenta a cinquenta mil réis ao ano.
Feitor ou capataz: Indivíduo responsável para vigiar e punir os escravos desobedientes às ordens. Sua
função era proteger a propriedade e os interesses do Senhor. Os canaviais e roçados dos moradores foreiros,
controlava as relações de convivência para evitar brigas entre os escravos, também, que algum deles fugisse
do Engenho ou ficasse ocioso no trabalho.
Mestre de açúcar: responsável para verificar a qualidade da terra, se era própria e fértil para o plantio da
cana, identificar a localização também era sua função, se tinha água para irrigação, condições adequadas
do clima. Na casa das caldeiras, era o responsável por manter todos os funcionários trabalhando
adequadamente, e manter um controle de qualidade, já que às vezes, o caldo precisava ser fervido com
tempo prolongado, ou repetida a coação, ou decoado por mais de uma ou duas vezes, até retirar toda
impureza da cana. Na casa de purgar era o responsável por avaliar o trabalho dos escravos e empregados
do Engenho. Finalmente, era o mestre do controle e fabrico do açúcar, fazia toda administração do produto,
do começo ao final. Antonil, afirma que nos grandes engenhos, o salário do mestre de açúcar era em torno
de 130 mil réis ao ano, podendo chegar aos 100 mil réis.
83
descreve Antonil (1711) e a linhagem de outros autores. No contexto do Engenho
trabalhavam homens com funções que ia do Feitor-Mór ao Caixeiro da Cidade. Sem
contar com a quantidade de escravos e moradores foreiros que viviam na propriedade.
4.4.1 Estrutura do Engenho
A monocultura da cana-de-açúcar na propriedade rural era a grande força motriz
mantenedora dos privilégios da sociedade colonial, senhorial, oligárquica, patriarcal,
dominante do Brasil colônia, pós-colonial, imperial, republicana, industrial e empresarial
dos tempos modernos, aquela que se estende nas camuflagens do século XXI e nos tempos
atuais. A palavra Engenho passou a representar tanto a conhecida Casa Grande quanto ao
próprio Senhor da propriedade, por ser o local de moenda da cana-de-açúcar, da economia
fundante das estruturas de poder econômico e todo processo de acumulação das riquezas,
não somente isso, mas também o Engenho representava além da produção de açúcar, a
Banqueiro ou soto-mestre: Um dos indivíduos ajudantes do mestre de açúcar. Quando o mestre se
ausentava da função por algum motivo, o banqueiro assumia o controle com a mesma eficiência do anterior,
para que a produção de açúcar na casa das caldeiras não parasse o processo. Geralmente, o banqueiro
substituía o mestre de açúcar no período da noite, fazendo o revezamento de turno para o descanso. O
salário do banqueiro ou soto-banqueiro, era de 30 a 40 mil réis ao ano.
Ajuda-banqueiro ou soto-banqueiro: era homem ajudante do banqueiro, sua função era de grande
responsabilidade na fabricação do açúcar, atuava para evitar atrasos dos escravos, desperdício da matéria-
prima e cuidar dos acidentes no Engenho. Nos registros de Antonil, essa função era desempenhada por
homem livre, por algum escravo ou mestiço de confiança do Senhor e do Feitor. Era responsável também
por supervisionar o envio dos pães de açúcar para a casa de purgar. Se empregado na função fosse realizado
por um escravo, ou, um mestiço, sofria estigma por ser um escravo, independente se era filho de mãe ou
pai branco. Nesses casos, as vezes não recebia salário, mas sim um agrado ou recompensa menor.
Caldeireiro e tacheiro: Eram os homens que trabalhavam nas caldeiras e tachos ferventes do caldo da
cana-de-açúcar. Este, cuidavam da temperatura de fervura e o processo de purificação do caldo. Eram
responsáveis para verificar se o caldo e o açúcar estavam no ponto, se estava fervendo na temperatura certa
durante as diferentes etapas do cozimento.
Purgador: O indivíduo que controlava a purificação do açúcar na casa de purgar. Verificava também a
qualidade do barro [argila] que seria usado no processo de purgação, além da organização dos pães nos
andaimes. Cuidava da organização e limpeza do ambiente, ordenava a limpeza dos jarros que armazenava
o melaço a ser novamente armazenado ou reutilizado no processo. O salário de purgador variava de acordo
com sua produção, se produzisse 4 mil pães numa estocada, recebia 50 mil réis ao ano por exemplo. O
salário era proporcional aos resultados da produção, é o que Antonil registra.
Caixeiro de engenho: Nada mais do que o indivíduo responsável para pesar o açúcar produzido no
Engenho, antes de ser encaixotado e marcado por letras [carimbos]. Uma espécie de supervisor exigente,
que cuidava da classificação do produto e contabilidade da produção para o Senhor de Engenho, o
pagamento dos trabalhadores assalariados, lavradores envolvidos no processo, até o repasse do dízimo para
a Igreja [Vigário da Capela]. Responsável pela supervisão e autorização do carregamento do açúcar
encaixotado, controle final, inspeção e transporte até o porto da capital. Finalmente, aguardar o embarque
final do produto entregue. Dependendo do volume da produção e do tamanho do engenho, o caixeiro podia
receber em salário o valor de 30 a 50 mil réis por ano.
Caixeiro da cidade: Este profissional se diferenciava do caixeiro do Engenho, sua função era de um
contador. Atuava como contratador, procurador e depositário do Senhor de Engenho, cuidava das finanças
e fluxo de caixa, das negociações, da contratação de navios, de compradores final do produto. Seu salário
era de 40 a 50 mil réis ao ano, (ANTONIL, 1711).
84
cultura do consumo da rapadura e aguardente no país e no mundo. Um Complexo
agroindustrial envolvendo cultivo da cana, preparo do açúcar e dos derivados do mel que
ia além das fronteiras da propriedade limite do próprio Engenho. E o Complexo do
Engenho Palma não se diferenciava desse modelo. Era exatamente igual a todos os demais
descritos Antonil. E também como afirma Caio Prado Jr, quando diz que na propriedade,
[...] o elemento central é o engenho, isto é, a fábrica propriamente, onde se
reúnem as instalações para a manipulação da cana e o preparo do açúcar. O
nome de "engenho" estendeu-se depois da fábrica para o conjunto da
propriedade com suas terras e culturas: "engenho" e "propriedade canavieira"
se tornaram sinônimos, (PRADO JR, 1981, p. 23).
O engenho representava uma verdadeira povoação, obrigando a utilização não
só de muitos braços, como as necessárias terras de canaviais, de mato, de pasto
e de mantimentos. Com efeito, além da casa do engenho, da de moradia,
senzalas e enfermarias, havia que contar com uns cem colonos ou escravos,
para trabalharem umas 1.200 tarefas de massapê (de 900 braças quadradas),
além dos pastos, cercas, vasilhames, utensílios, ferro, cobre, juntas de bois e
outros animais, (SIMONSEN, 2005, p. 122).
Em todo o Complexo da Casa Grande do Engenho Palma a movimentação dos
moradores era em torno do trabalho continuo para o funcionamento do Engenho, a
produção da cana-de-açúcar de forma permanente e continuada no campo. Sabendo que
“[...] a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde se preparava
o açúcar, só se tomava rendoso quando realizado em grandes volumes”, (PRADO JR,
1981, p. 19). Sobre esses aspectos do trabalho no Engenho a entrevistada relata:
Não brincava, a gente não brincava no engenho não. O Engenho produzia
açúcar, produzia mel de furo. Mel de furo é um, é um, é um alimento que dá
pros, que dá pro gado, mói a cana, e coloca o mel de furo moído naquela cana
moída, ou no capim, é pro gado cumê. E o mel, o mel que fazia, fazia açúcar.
Tinha aquelas, aquelas incureta grande e butava o mel e coalhava e ficava
aqueles coisa de açúcar. E quando tava tudo pronto, aí vendia pra todos os
lugares né, o açúcar preto muito bom, (RELATO DA ENTREVISTADA
ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).
Nos estudos de Antonil (1711), encontrei alguns tipos de Engenhos de cana-de-
açúcar, os mais comuns no Brasil na Era Colonial. Basicamente, são três os tipos mais
conhecidos que marcaram o período imperial do século XIX. O Engenho movido à base
da força animal e humana é o tipo do Engenho Palma, o Alprensa conforme a fotografia
[9].
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Alçaprensa ou alçaprema: Engenho movido a força humana, engenhoca
(pequeno engenho) que fabricava açúcar, rapadura, aguardente para consumo
interno do Engenho. Engenhoca envolvendo trapiche, molinete, atafona ou de
bois: engenho movido pela força de animais, escravo, podendo ter bois ou
cavalos.
Água ou real: Engenho movido com a força da água, envolvendo roda e
riacho.
Banguê: Engenho movido à vapor, usado a partir do século XIX. (ANTONIL,
1711).
Conforme a região do Brasil o termo e a pronúncia das palavras para identificação
do tipo de Engenho muda de acordo com o sotaque da população e cultura local, porém
a identificação e essência da engenharia criativa é a mesma. Nas palavras do autor, o
Engenho é uma verdadeira invenção humana de alta complexidade épica. O domínio da
técnica, o invento e a reflexão da ação mostra as capacidades criativas dos inventores
como descobertas humanas bastante sofisticadas.
Quem chamou as oficinas, em que se fabrica o açúcar, engenhos, acertou
verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê, e considera com
reflexão, que merecem, é obrigado a confessar, que são uns dos principais
partos, e invenções do engenho humano, o qual com pequena porção do
Divino, sempre se mostra no seu modo de obrar, admirável. Dos engenhos uns
se chamam reais, outros inferiores vulgarmente engenhocas. Os reais
ganharam este apelido, por terem todas as partes, de que se compõem, e todas
as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos
canaviais próprios, e outros obrigados à moenda; e principalmente por terem a
realeza de moerem com água, à diferença, de outros, que moem com cavalos e
bois, e são menos providos e aparelhados; ou pelo menos com menor perfeição,
e largueza, das oficinas necessárias, e com pouco número de escravos, para
fazerem como dizem, o engenho moente e corrente, (ANTONIL, 1711, p. 13-
14).
Perguntei, se o açúcar produzido era do tipo mascavo ou refinado? Pacientemente
ela respondeu.
O cotidiano e funcionamento do Engenho na perspectiva da entrevistada era
assim...
Não. Refinado só quem faz é as usina. É. Toda minha recordação é lá no
Engenho, que era o canto que tinha espaço pra andá, pra brinca, caçá lenha,
cumê, chupá manga, tudo isso. Era o rio, toma banho era isso, um lugar que eu
sinto muita saudade ainda. Saí da Palma com 12 anos como eu já falei. Fiquei
durante esses anos todinho na Palma. Todo mundo me conhecia, sabia que eu.
O meu tempo de felicidade foi esse né que passei. Depois que eu cresci foi só
trabalha, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO
ENGENHO PALMA).
86
FOTOGRAFIA 9 - ENGENHO PALMA [PARTE EXTERNA]
4.4.2 Escravos do Engenho Palma
Isso aí já, eu conheci dois, duas pessoa lá no Engenho. Eu não sei se eles eram
escravo, mas eles eram escravo da fazenda mesmo, na Casa Grande de Palma.
Eu conheci Seu João Diló, que era o pai do João Diló um negão bem preto,
bem altão que era nêgo da fazenda e tinha outro que era João Diló e Seu Cirino
Fortunato. Tudo isso era, fora um negão lá de dentro. Do Engenho. Nesse
tempo acho que era o Seu Eufrázio, do Coronel Eufrázio que era pai do Dr.
Ênio. E do Dr. Eufrázio quando morreu ficou o Dr. Nipodon e eles eram bem
velhinho. Eu me lembro que eu passava assim de manhã pra buscá o leite da
vaca, tava o Seu João Diló sentado assim, lá em cima. Bem preto sentado lá.
Era o querido do Engenho ali, ele sabia de tudo. Acho que aqueles ali, acho
que eram os escravo, depois né. Não, eu não conversava com eles não. Eu
falava assim pra minha vó aquele lá escravo do Engenho e da Casa Grande,
(IBID).
4.4.3 Carreiro, boi e a moenda da cana
Ela dixe a mim que alcançou a moenda do Engenho com as besta. Era dois
cavalos bem forte, bem gordo na frente e com esse carro de boi atrás. Os boi
é furado na ponta, no cangar. E os cavalo que não tem ponta é no pescoço. Na
ponta dos boi eles amarram uma corda de couro cru, do boi, pra ele se movê
FONTE: Arquitetura do Engenho Palma. Local de trabalho escravo e de trabalhadores explorados na
produção do açúcar bruto [natural]. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível
em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro,
2018.
87
amarrado um pro outro assim. E bota a canga no pescoço pra, eles não podem
se mexê os coitado. Inda tem, inda tem o Carrero. O Carrero do boi com uma
vara bem grande, com uma ponta de ferro na ponta pra furá os boi e eles carregá
essa carga de cana em cima do carro.
A gente via de longe, apita as roda. As roda de ferro, de madeira. Madeira forte
bem grande com aqueles negócio de ferro assim. Ai, vai fazendo assim
“tchuimmmm. Tchimmm, de longe a pessoa vê a zoada. E dois boi na frente
carregando, puxando. E o Carrero com o espeto assim furando. (IBID).
O Engenho Palma é uma propriedade que se enquadra no perfil dos grandes
latifúndios oriundos das 27Sesmarias e Capitanias Hereditárias em Pernambuco. Apesar
27 Sesmarias, Capitanias Hereditárias e o surgimento de Engenho no Nordeste do Brasil
[Pernambuco]. O decreto do Rei Dom João III, cria-se as Capitanias Hereditárias no Brasil. Com isso, a região Nordeste e
o litoral da colônia dividido em 14 Capitanias Hereditárias destinadas à colonizadores portugueses que
seriam os donatários das terras da colônia. Seriam os responsáveis para ocupar, colonizar e desenvolver a
agricultura e a pecuária nos territórios. Essa foi a estratégia e decisão do Rei de Portugal após a descoberta
e conquistas das terras à leste do Tratado de Tordesilhas em 1500, por Pedro Álvares Cabral. Cujo foco da
Coroa portuguesa seria explorar os recursos naturais da colônia na América Portuguesa, a extração do pau-
brasil inicialmente.
Dessa forma, ficou estabelecido a criação de 14 capitanias e seus 12 donatários, uns receberam mais que
uma porção de terra, fundando outras capitanias para administração das terras.
A partir das Capitanias Hereditárias o sistema administrativo da colônia foi bem-sucedido e funcionou no
controle do território do Brasil em 1534. A colônia foi dividida em faixas de terras e concedidas aos nobres
de confiança do rei D. João III (1502-1557), podendo ser transferida como herança de pai para filho, por
isso o nome “Capitanias Hereditárias”. O sistema foi implantado a partir da expedição de Martim Afonso
de Sousa, em 1530.
Nas figuras [1 e 2] trata-se do mapa do cartógrafo português criado por Luís Teixeira onde mostra a
América Lusitana com base no Tratado de Tordesilhas, após 1548, quando a Bahia foi transformada em
Capitania Real. Note que que existem grandes distorções, principalmente ao sul. Contudo, este é um mapa
que define as terras acordadas na época entre Portugal e Espanha. Este mapa é parte da obra Roteiro de
todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que há na costa do Brasil desde o cabo de
FONTE: 1 - Linha de Tordesilhas - Mapa de Luís Teixeira (cerca de 1574). 2 - Mapa das Capitanias
Hereditárias (1534-1536). 3 - Vila de Olinda e o Porto do Recife - cerca de 1574.
88
Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães (original na Biblioteca da Ajuda, volume 3, 1924,
Lisboa, Portugal).
Na figura [3] representa o mapa interativo da Vila de Olinda, capital da Capitania de Pernambuco, em
fragmento de um mapa de Albernaz da segunda metade do século 16. Mostra as terras dos engenhos, os
rios, o mar e as vilas e cidades em formação. Pernambuco foi a capitania que deu certo, tanto do ponto de
vista econômico, como de colonização portuguesa.
Capitanias Hereditárias Criadas de 1534 a 1536
A primeira capitania do Brasil continental foi a de Pernambuco, doada a Duarte Coelho, em 10 de março
de 1534. Foi o caso de maior sucesso comercial entre as capitanias brasileiras, na primeira metade do século
XVI.
No ano de 1535, o primeiro donatário em Pernambuco, Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) fundou o
primeiro engenho de cana-de-açúcar na capitania, na região da Vila de Olinda (fundada por Duarte em
1534), o denominado Engenho Velho. A engenhoca deu início a Era mais importante para o Brasil, como
novo polo açucareiro da colônia. Três anos depois, na Vila de São Vicente já havia sido instalado outros
três engenhos em pleno funcionamento.
"Desde o alvará de Dom Manuel e depois, conforme observou João Lúcio de Azevedo, "o privilégio,
outorgado ao donatário, de só ele fabricar e possuir moendas e engenhos de água, denota ser a lavoura de
açúcar a que se tenha especialmente em mira". No mesmo sentido eram feitos os regimentos e as leis
referentes à colônia: o de Tomé de Sousa, excluindo o senhor de engenho das execuções por dívidas; e dos
governadores de Pernambuco, assegurando privilégios aos que edificassem ou reedificassem engenhos; a
meia fidalguia concedida a quantos se tornassem senhores de engenho”.
Originalmente, as capitanias tinham o nome de seus donatários até serem por eles batizadas, mas algumas
nunca o foram ou não se conheceram seus nomes. Essas passaram para a História com nomes que se
referiam à região. Foi o caso da Capitania da Bahia. Seu donatário fundou uma vila na Barra, mas não se
sabe que nome ela recebeu e ficou conhecida como Vila do Pereira, depois Vila Velha.
Foram 14 capitanias doadas entre 1534 e 1536:
1 - Capitania de Pernambuco, batizada de Nova Lusitânia. Foi doada a Duarte Coelho, filho de Gonçalo
Coelho, em 10 de março de 1534. Tinha 60 léguas de litoral, desde Igarassu até o Rio São Francisco. A
expedição de Duarte Coelho chegou em sua Capitania, em 9 de março de 1535. Foi a mais próspera das
capitanias até a instalação da Capitania Real da Bahia, em 1549.
2 - Capitania da Bahia, doada em 5 de abril de 1534, a Francisco Pereira Coutinho. Foi a segunda capitania
criada no Brasil continental, depois de Pernambuco, e começava onde essa terminava, no Rio São
Francisco. Estendia-se até o atual Farol da Barra. A Bahia de Caramuru já era o principal porto do Brasil,
quando Coutinho chegou, em 1536. Ele construiu um castelo, fundou dois engenhos, mas sofreu ataques
dos franceses e dos tupinambás, que o devoraram, em 1546. Em 1548, a Bahia foi adquirida pela Coroa e
transformou-se na primeira Capitania Real da Brasil. Em 1549, foi construída a Cidade do Salvador, a
primeira do Brasil, para ser a Capital. A partir de então, foi a mais próspera das capitanias, até o século 18.
3 - Capitania dos Ilhéus, doada ao fidalgo Jorge de Figueiredo Correia. Seu litoral estendia-se desde a
"Ponta da Bahia de Todos os Santos da banda do Sul" até 50 léguas de litoral, ao sul. Teria sido a terceira
capitania doada no Brasil continental, embora a data de sua Carta de Doação (27 de julho de 1534) seja
posterior à de Porto Seguro (27 de maio de 1534).
A Carta de Doação da Capitania dos Ilhéus foi transcrita na carta de confirmação, passada a Dona Elena de
Castro, registrada em 1715, e a data da Carta de Doação foi indicada como 27 de julho de 1534(Documentos
Históricos, Biblioteca Nacional, Vol. LXXX, 1948). Apesar disso, a doação da Capitania dos Ilhéus seria
anterior à de Porto Seguro, pelo simples fato de que a Carta de Doação dessa refere-se àquela, para definir
seus limites (veja abaixo).
4 - Capitania de Porto Seguro, doada a Pero do Campo Tourinho, em 27 de maio de 1534. Seu litoral
começava, ao norte, onde terminava a Capitania dos Ilhéus. A Carta de Doação registrou: cinquenta léguas
de terra na dita Costa do Brasil, as quais se começarão na parte onde se acabarem as cinquenta léguas de
que tenho feito mercê a Jorge de Figueiredo Correa [...] quanto couber nas ditas cinquenta léguas,
5 - Capitania do Espírito Santo, doada, em 1º de junho de 1534, a Vasco Fernandes Coutinho, com 50
léguas de extensão na costa do Brasil, ao sul da Capitania de Porto Seguro. Coutinho era um fidalgo da
Casa Real e primo do donatário da Capitania da Bahia. O donatário chegou em sua Capitania, em 23 de
maio de 1535, com cerca de 60 pessoas, e deu a ela o nome de Espírito Santo, pois era dia de Pentecostes.
6 - Capitania de Santo Amaro, doada, 1º de setembro de 1534, a Pero Lopes de Sousa.
7 - Capitania de São Vicente, doada, em 6 de outubro de 1534, a Martim Afonso de Sousa, em dois lotes.
89
8 - Capitania do Maranhão.
9 - Segunda Capitania do Maranhão.
10 - Capitania do Ceará.
11 - Capitania do Rio Grande.
12 - Capitania de Itamaracá.
13 - Capitania de São Tomé.
14 - Capitania de Santana.
As Capitanias tiveram vida curta, foram abolidas dezesseis anos após sua criação. Direitos e Obrigações
do Donatário
O Rei Dom João III concedeu as terras para nobres de sua confiança. Cada Capitão Donatário era
considerado a autoridade máxima, ficando responsável por povoar, administrar, proteger o território, fundar
vilas e desenvolver a economia local. Por sua parte, a Coroa Portuguesa não dava nenhuma ajuda financeira
aos donatários para esse empreendimento. Os donatários, por outro lado, possuíam alguns privilégios
jurídicos e fiscais como:
- escravizar indígenas;
- cobrar tributos e doar lotes de terra não cultivados (sesmarias);
- explorar a região e usufruir de todos seus recursos naturais (donde uma porcentagem pertencia à coroa),
desde animais, madeira e minérios.
Os donatários possuírem grande poder, as capitanias não os pertenciam, mas sim à Coroa Portuguesa que
cobrava um imposto “dízimo”, 10% da produção. O sistema de capitanias sofreu com a falta de recursos,
algumas foram abandonadas e em outras jamais seus donatários estiveram ali. Eram constantes dos ataques
indígenas que lutavam contra a invasão de suas terras.
O empreendimento das capitanias hereditárias fracassou, apenas duas foram bem-sucedidas: a Capitania de
Pernambuco, comandada por Duarte Coelho, responsável por introduzir o cultivo da cana de açúcar e a
Capitania de São Vicente, comandada por Martim Afonso de Sousa, graças ao tráfico de indígenas que
realizavam naquelas terras. As capitanias impulsionaram o desenvolvimento das vilas e cidades. Com o
fracasso das capitanias o governo geral impulsionou nova reforma administrativa da colônia, que aos
poucos se transformaram em províncias, e, mais tarde constituíram alguns estados brasileiros
Curiosidade e realidades:
A herança do sistema de capitanias hereditárias no Brasil, pode ser sentido até hoje, seguido através
do coronelismo e das famílias que seguem mantendo o poder em certos estados. Martim Afonso de Sousa
permaneceu pouco tempo em sua capitania, logo foi deslocado para ocupar outro posto nas Índias a mando
da coroa. Quem administrou as terras adquiridas foi sua esposa, Ana Pimentel. Uma família que vem sendo
estudada pelo professor sociólogo Ricardo Costa de Oliveira em suas pesquisas sobre genealogia familiar
no contexto do Paraná-Brasil.
"Em 1576, Pernambuco exportava cerca de 70 mil arrobas de açúcar e em 1583 a cifra subia a 200 mil
arrobas. "Nos princípios do século XVII, diz de Carli, possuindo o Brasil 200 engenhos, a sua produção era
de 25 mil a 35 mil caixas de açúcar de 35 arrobas cada uma. É o tempo áureo do açúcar no Brasil",
(AMARAL, 1958, p. 328-329).
"Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdição civil e criminal, com
alçada até cem mil reis na primeira, com alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e
homens livres, para pessoas de má qualidade até dez anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia
(se o herege fosse entregue pelo eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer
que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente si a pena não fosse capital. Os
donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das costas e rios navegáveis;
seriam senhores das ilhas adjacentes até distancia de dez léguas da costa; os ouvidores, os tabeliães do
público e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar terras de
sesmarias, excepto à própria mulher ou ao filho herdeiro", (ABREU, 1907, p. 36).
De acordo com Simonsen (1937, p. 179), de 1630 a 1654, ou seja, por 24 anos, os holandeses ocuparam
parte do Nordeste do Brasil, controlando a produção açucareira de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio
Grande, os principais produtores desse tão cobiçado "ouro branco". De acordo com o relatório do holandês
Adriaen van der Dussen, concluído em 1639 para a Companhia das Índias Ocidentais, Dussen apontava
que Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande possuíam pelo menos 166 engenhos, embora hoje sabe-
se que há incertezas na exatidão do cálculo dele, contudo, seu relatório ainda é um dos melhores que existem
90
dos limites da demarcação das terras, sua origem vem de longe, sabendo que nem todos
os canaviais ocupavam grandes latifúndios. Muitas eram propriedades médias e pequenas
que cultivavam os canaviais e nos médios e pequenos engenhos eram moídas e
transformadas em açúcar.
4.4.4 Fôrmas de armazenamento e transporte do açúcar
As fôrmas de madeira usadas no armazenamento e transporte do açúcar bruto
repartido em blocos. Era uma das etapas do processo de produção no Engenho. Depois
que a fabricação do açúcar chegava a etapa final. Os escravos colocavam os blocos dentro
desses recipientes para transporte no lombo dos cavalos. Seguia viagem para o porto do
Recife com destino de exportação para a Europa.
Tudo processo resultante do trabalho escravo, o que deu origem às desigualdades
e exclusões sociais em massa, em detrimento dos privilégios e acumulação para poucos.
Esse, era, e é, o sistema funcional da sociedade escravocrata iniciada na grande
propriedade do Complexo da Casa Grande do Engenho, em especial na região Nordeste
incluindo o Engenho Palma no interior do estado objeto de referência e estudo.
desse período da história brasileira. "O açúcar brasileiro dominou o comércio do produto entre 1600 e 1700,
como já registrava Barlaeus na obra que escreveu em 1660, (AMARAL, 1958, p. 328-329).
Fonte de pesquisa: Disponível em: <https://www.historia-brasil.com/colonia/capitanias-hereditarias.htm>;
<https://www.todamateria.com.br/capitanias-hereditarias/>; <https://mapas.ibge.gov.br/escolares/publico-
infantil/brasil/capitanias-hereditarias.html>.
91
FOTOGRAFIA 10 - FÔRMAS USADAS PARA O AÇÚCAR BRUTO
No interior do Engenho, as estruturas da maquinaria e equipamentos na fabricação
do açúcar é dividido em três partes com funções distintas e conexas. A casa da moenda
[maquinaria], a casa das caldeiras [tacho de madeira, ferro ou cobre] e a casa de purgar
[local de purificação do mel]. Cada etapa fazia parte do fabrico do açúcar com fases
controladas, temperatura, tempo e horário marcado para início e término do processo
final. A fabricação da cachaça e da rapadura havia diferenças em comparação ao açúcar.
Nos compartimentos do Engenho, conforme descrição de Antonil (1711) tinha a
moenda – engenhoca ou máquina feita de madeira conectada à prensa também de
madeira, que ao girar a roda movimentava o mecanismo da engrenagem com a velocidade
da força humana, animal ou com a força da água [hidráulica]. O peso, a velocidade e a
força da moenda e das peças da engrenagem esmagava a cana, transformando em bagaço
e assim retirava o caldo da planta. Finalmente, o caldo coletado em tachos de madeira,
cobre ou ferro dava início ao processamento e transformação em etapas. Para Antonil
FONTE: Recipiente de madeira usada para curar o açúcar bruto e transporte do produto no lombo do
cavalo de carga. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em:
<http://professoredgarbomjardim-pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-e-patrimonio.html>.
Acessado em: 30 de outubro, 2018.
92
(1711), a moenda da cana na Casa da Moenda é a etapa mais perigosa do processo, era
alto o risco do escravo que movimentava a engrenagem ficar com a mão presa nas
máquinas, nas engrenagens das rodas, das prensas, podendo até ser puxado pelo braço e
ser moído na prensa. Quando acontecia, o escravo era esmagado, perdia o braço ou morria
com a gravidade dos ferimentos. Era um perigo constante. Por isso, o maquinista, o
caldeireiro, o feitor e todos os encarregados do Engenho exigia o cuidado com os escravos
e animais em função dos perigos no Engenho, não somente na moenda da cana, mas
também em todas as demais etapas do processo. Além dos riscos eminentes de acidentes,
mutilações e mortes, a moenda funcionava dia e noite como já foi descrito pelo autor. Os
escravos em movimento continuo e repetitivo ficavam cansados e exaustos com a
atividade, muitas vezes caiam no sono, na fadiga e cansaço extremo. A tragédia no
Engenho era questão de pouco tempo, (ANTONIL, 1711). 41).
Em Antonil (1711, p. 54-55), o autor faz um relatório etnográfico bastante
detalhado sobre o trabalho escravo no Engenho, relata o feminino usando expressões na
língua portuguesa de conotação “vulgar” para os dias atuais no contexto da cultura
brasileira. O autor descreve o processo produtivo no Engenho e a função das mulheres
escravas, como eram percebidas e envolvidas na fabricação do açúcar em concomitância
com os homens, assim relata:
As escravas de que necessita a moenda ao menos são sete ou oito, a saber: três
para trazer cana, uma para a meter, outra para passar o bagaço, outra para
concertar e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para limpar o
cocho do caldo (a quem chamam cocheira ou calumbá) e os aguilhões da
moenda e refrescá-los com água para que não ardam, servindo-se para isso do
parol da água, que tem debaixo do rodete, tomada da que cai no aguilhão, como
também para lavar a cana enlodada; e outra, finalmente, para botar fora o
bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for
necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas
haverá mister outra, que a ajude, porque de outra sorte não se daria vazão a
tempo e ficaria embaraçada a moenda, (ANTONIL, 1711, p. 54-55).
O trabalho das mulheres escravizadas não se restringia apenas ao processo da
fabricação do açúcar no Engenho, mas também na lavoura, na plantação e colheita das
canas, em todas as demais formas de produção e exploração do trabalho no interior do
Complexo, principalmente nas atividades domésticas na Casa Grande, na criação dos
filhos do Senhor, cozinha, rouba, banho e quase sempre incluindo sexo.
Um dos objetos reais e simbólicos dessa época encontrado no interior da Casa
Grande de Engenho Palma foi o bule de café usado por mulheres escravas na cozinha,
como é possível observar na fotografia [11]. Atualmente o objeto faz parte da coleção
93
arqueológica e do acervo do patrimônio histórico de Pernambuco dentro do próprio
Engenho, aberto à visitação externa.
4.4.5 Bule de uso doméstico da Casa Grande
FOTOGRAFIA 11 - BULE DE FERRO [USO DOMÉSTICO DA CASA GRANDE]
Voltando a discussão sobre a casa das caldeiras do Engenho, lá, havia vários
tachos usados nas etapas das fervuras do caldo da cana-de-açúcar, até atingir o processo
final do mel. Esses são os tipos utilizados pelos caldeireiros, como descreve Antonil
(1711).
Caldeira clarificadora: nos primeiros engenhos misturava-se o caldo com cal,
para ajudar a filtrar as impurezas antes de seguir para a fervura. Caldeira de
caldo: tacho onde se recebia o caldo vindo da casa da moenda. Caldeira do
meio: tacho que se iniciava a fervura e se retirava a primeira e a segunda
espumas, as quais continham impurezas como pedaços de folhas, caule, bagaço
da cana, etc. Caldeira de melar: continuava-se à fervura e onde se retirava a
terceira espuma a qual era levada para o parol de escuma. Aqui também se
fazia a garapa. Parol de melar: após ser fervido e ter as espumas retiradas, o
caldo era posto aqui para ser coado. Parol de coar: recebe o caldo para ser
coado. Usa-se o termo temperar também nessa etapa. Tacha de receber: após
ser coado, o caldo era mexido, fervido e decoado (filtrar), onde se acrescentava
água com cinzas para ajudar na filtração das impurezas existentes. Tacha de
porta: após o caldo ter suas espumas retiradas, ter sido coado e ter sido
decoado, o caldo continua a ser fervido. Tacha de cozer: o caldo continua a
FONTE: Bule de ferro de uso da Casa Grande. Utensílio de trabalho feminino escravo. Fotografia
antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em: <http://professoredgarbomjardim-
pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-e-patrimonio.html>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.
94
ser fervido e aqui atinge seu "ponto". Consiste na última etapa de fervura, pois
a partir daqui o chamado melaço será posto para iniciar a etapa de descanso e
esfriamento. Tacha de bater: o melaço é batido com uma batedeira para
atingir o ponto de cristalização, ficando mais consistente e massudo. Bacia de
repartir: Após ser batido, o melaço era desafogado, termo usado para se
referir ao ato de transferir o melaço da taxa anterior para esta, onde seria levado
para resfriadeira onde iria descansar e esfriar. Parol de escuma: local que se
depositava a espuma das três espumas para ser reutilizada.
Os responsáveis pelos tachos na casa de caldeira eram homens moradores do
Engenho, trabalhadores livres chamados de caldeireiros, designados para realizar o
processo e verificar a qualidade e o ponto certo do açúcar. A temperatura exata de fervura
e as demais etapas. Esse era um processo em que o maquinista [João Diló] do Engenho
Palma também aparece nas narrativas da entrevistada, assumindo posição e importância
no trabalho.
Antonil (1711), dar destaque para várias pessoas envolvidas na seção de
fabricação do açúcar, sendo que a maioria era trabalhadores homens e algumas mulheres
escravas. O autor descreve que no Engenho havia uma escrava conhecida de "calcanha"
que era a responsável por limpar o recinto, acender as candeias, coletar a segunda e a
terceira espuma retirada e voltar a colocá-la em um parol (recipiente ou vasilha) para
aproveitamento da espuma, tinha outras utilidades.
A lista de peças, ferramentas e objetos de uso cotidiano no processo da fabricação
do açúcar era grande, além dos tachos, paróis e caldeiras, outras utilidades também faziam
parte do artesanato da produção primitiva. Na etnografia de Antonil (1711), os
trabalhadores contavam com os objetos utilitários, como:
Batedeira: usada para bater no melaço após este terminar de ser fervido.
Caneca: recipiente usado para passar o caldo de um tacho para o outro.
Cinzeiro: tanque quadrangular onde se misturava água quente com cinzas para
ser usado na decoada, na taxa de receber. Colher: uma grande colher com
furos, usado para mexer o melaço após a fervura. Concha: uma concha de
ferro de cabo longo, usada para se provar o caldo. Escumadeira: tipo de colher
com vários furos, usada para se extrair a espuma. Fôrma: vaso de barro onde
se colocava o melaço para iniciar a purgação. Passadeira: grande colher usada
para transferir o caldo fervente para o tacho seguinte. Picadeira: lança de ferro
usada para se retirar os restos de melado que ficavam grudados nos tachos,
paróis e caldeiras. Pomba ou reminhol: grande colher usada para retirar o
melaço da última taxa. Era usado também para se acrescentar água na decoada.
Resfriadeira: tanque onde o melaço descansava e esfriava para depois ser
depositado nas formas, (ANTONIL, 1711).
95
Outras ferramentas de uso cotidiano no Engenho também fazia parte do inventário
e arquivo de trabalho braçal. De acordo com Antonil (1711), os trabalhadores fabricavam
os próprios instrumentos de uso cotidiano para fabricação do açúcar, entre esses:
Cavador: feito de ferro, era usado para escavar o açúcar a fim de se colocar a
argila ou barro. Facão: usado para raspar o açúcar mascavado após a fase de
purgar. Furador de ferro: usado para furar a ponta do pão de açúcar por onde
escorreria o melaço durante a fase de purgação dentro dos potes. Macete:
espécie de martelo usado para socar e comprimir o açúcar dentro dos potes.
Machadinha: usada para raspar o açúcar mascavado. Peça de couro: pedaço
de couro (geralmente de couro de vaca) usado para se ajeitar o açúcar dentro
dos potes. Rodo: usado para mexer o açúcar quando este é posto para secar
nos toldos. Tolete: espécie de martelo para se quebrar os pães de açúcar. Pelo
formato cônico que ele possuía, isso levava a dividir o pão em partes chamadas
de "caras", começando-se do alto até a ponta. Cada "cara" possuía uma
qualidade diferente, sendo a ponta afunilada de qualidade inferior.
A engrenagem da roda de moer a cana, o que dava início ao processo de retirada
do caldo da cana no Engenho, não era uma atividade mecânica de automática
simplesmente, ou, de fácil manuseio dentro das condições dadas. São altamente
complexas, perigosas, que exigia controle da força física e racionalidade mental bastante
apurada.
Os maquinistas e caldeironistas são exemplos disso, homens incrivelmente
inteligentes e experientes na operação das máquinas e fabricação do açúcar. Não era
qualquer pessoa que se tornava maquinista no Complexo, eram indivíduos privilegiados
pelo Senhor, escolhido pelo destaque na função. São homens que controlava outros
homens em condições inferiores, a força escrava estava sobre seu comando e ordens.
Dentro do Engenho e na propriedade também havia sistema de hierarquia entre os
indivíduos inferiores ao Senhor. É possível observar a presença de conflitos, mandos e
obediências se movimentando nas relações internas durante o processo de fabricação do
açúcar, o contato envolvendo o cotidiano e o processo produtivo na totalidade da
propriedade e da capacidade máxima do Engenho.
Finalmente, os tipos de açúcar eram processados conforme o comando do Senhor
de Engenho e a encomenda da produção para exportação do produto.
No balcão de secar trabalham as mesmas duas mães com as suas companheiras,
que são até dez, estendendo os toldos e quebrando com toletes as lascas e os
torrões grandes em outros menores atrás dos quebradores dos pães. E na
caixaria ajudam ao caixeiro no peso e encaixamento do açúcar as negras e
negros que são necessários, como também no pilar, igualar, pregar e marcar,
(ANTONIL, 1711, p. 80).
96
O autor retrata claramente toda engenharia de força humana e máquina envolvida
na produção. A classificação do açúcar era também bastante rigorosa, cada tipo
acompanhava uma letra do alfabeto português e também tinha marca. Tipo e marca:
Açúcar branco macho: marcava-se na caixa um B. Açúcar branco batido:
marcava-se na caixa dois BB. Açúcar mascavado macho: marcava-se na
caixa um M. Açúcar mascavado batido: marcava-se na caixa um MB.
Marca das arrobas: gravada na tampa a ferro quente, identificava o peso da
caixa. Marca do engenho: era gravada a ferro quente, e colocada no canto
inferior direito da tampa. Designava o engenho no qual o açúcar foi fabricado.
No caso de fosse alguma entidade religiosas ou organização mercantil, leva-se
o selo ou inicias dessa ordem ou organização. Marca do senhor ou do
mercador: poderia ser gravada a ferro quente ou pintada. Era marcada no
centro da tampa se fosse a fogo, e seria marcada na lateral da caixa se fosse em
tinta, onde se escrevia o nome do proprietário ou do comprador, (ANTONIL,
1711).
Nos relatórios de registros do autor, Antonil (1711) descreve que os escravos
exerciam as várias atividades em todo processo produtivo do açúcar, mas as principais
atividades fins eram exercidas por homens livres. Isso aparece o tempo todo nos escritos
de 28Simonsen, o autor faz destaque que se
[...] tratando da principal produção do Brasil naquela época, a do açúcar,
contavam-se em Pernambuco sessenta e seis engenhos; na Bahia trinta e seis,
e nas outras capitanias, juntas, metade deste número. Total dos engenhos, cento
e vinte. Referimos o número dos engenhos porque cremos este o melhor meio
de dar uma ideia de ilha de prosperidade e riqueza do país. (SIMONSEN, 2005,
p.142).
O açúcar literalmente era o produto de cobiça do mundo europeu em especial, dos
portugueses senhores de engenhos colonizadores do Brasil aos holandeses ocupantes da
capitania hereditária de Pernambuco, todos queriam e faziam as mesmas coisas, riquezas
à base da exploração do trabalho escravo. E isso está bastante marcado na memória das
pessoas exploradas por esses homens e suas famílias dominantes dos séculos e nos dias
28 Ocupação holandesa no Brasil [Pernambuco] e a produção do açúcar.
Simonsen (2005, p.155), o quadro econômico do açúcar explica a avidez com que a Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais procurou se apossar da parte mais rica do Brasil. As cinco capitanias que ocupou, de
1630 a 1650, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Sergipe e Rio Grande do Norte, eram as suas grandes
produtoras. Apesar da destruição de várias fazendas e engenhos e das dificuldades da mão-de-obra e de
lutas constantes com os antigos donos da terra, já em 1639 conseguiram os novos ocupantes exportar 33.000
caixas, mais de 600.000 arrobas. Warden informa que nessa época o Brasil deu grandes vantagens à
Companhia holandesa. Como rendas de 1639, indica: Dízimos do açúcar e direitos sobre víveres. . . . . . . . . 350.000 francos
Direitos sobre mercadorias holandesas . . . . . . . . . . . . 400.000
Direitos sobre o açúcar introduzido na Holanda . . . ... 300.000
Renda de engenhos, capitais e escravos. . . . . . . . . . . . 2.400.000
Total . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.450.000
97
atuais. Como podemos observar nos gráficos reveladores de sentimentos e hierarquias de
palavras [temas] encontradas nas narrativas enquanto achados na pesquisa e apresentados
na sequência do capítulo V.
98
5 ACHADOS DA PESQUISAR [NVIVO 11]
A finalidade é apresentar os achados mais importantes e ao mesmo tempo
conferidos nesta pesquisa, contudo, não significa dizer que esta seja a etapa mais relevante
do que a anterior, mas, sim, um complemento metodológico com uso de outra
metodologia e ferramentas tecnológicas do Software Nvivo 11, para verificar os
conteúdos narrados e a análise dos dados.
Por considerar o programa uma possibilidade de análise também sofisticada, que
ajuda a visibilizar o invisível aos olhos humanos e pensar os resultados a partir de temas
decodificados, gráficos, estatísticas e hierarquias de palavras com sentimentos positivos
ou negativos mostrado na base de dados. É sobre isso que sistematizo e demonstro na
ordem das categorias abaixo.
5.1 APRESETNAÇÃO GRÁFICA [HIERARQUIA E SENTIMENTO]
No gráfico de hierarquia de palavras, apresento a totalidade dos conteúdos
transcritos dos áudios [1,2,3,4] nos anexos [C,D,E,F] e decodificados no Software Nvivo
para verificar a hierarquia das palavras que tiveram maior frequência olhando a
representação e significado do termo para a entrevista ex-moradora do Engenho Palma.
Para decodificação da fonte, levei em conta os seguintes critérios: decodificação da
palavra exata composta por 7 letras do alfabeto brasileiro, para então rodar o gráfico
“nuvem de palavras”, padrão aplicado para todos os gráficos de hierarquia de palavra
[nuvem] e de sentimentos positivos e negativos.
No caso do gráfico [1], a visibilidade dos códigos pronunciados e repetidos com
maior frequência pela entrevistada durante sua narração registrado nos quatro áudios de
entrevista extraoficial, sobressaltou aquilo que tem maior relevância para ela. Estes foram
os importantes achados da pesquisa. No caso, a palavra [engenho] representa, significa e
condiz com a sua história de vida, uma representação real que ocupa lugar de destaque
em suas memórias, experiências e trajetória pessoal-familiar de grande valor, isso
também é observado durante as análises no capítulo IV.
Com a metodologia tecnológica, foi possível conhecer o universo de palavras
decodificadas neste banco de dados, compõe o total de 10.328 palavras oralizadas pela
entrevista ex-moradora do Engenho Palma, um volume bastante expressivo e extenso. O
99
que gerou uma amostra de 540 itens [referências] exatas com extensão de 7 letras do
alfabeto da língua portuguesa do Brasil.
Dessa amostragem, a palavra “engenho” foi pronunciada pela entrevistada por 59
vezes, significando em termo percentual ponderado, 0,60% do total dos códigos
pronunciados. Todavia, esta foi a palavra que teve maior peso e relevância no total dos
conteúdos de narrativas. É extraordinariamente simbólico e real.
GRÁFICO DE HIERARQUIA 1 – ENGENHO [FREQUÊNCIA DE PALAVRAS]
Na sequência do estudo, destaco a seguir o gráfico [2] gerado a partir dos mesmos
critérios e base de dados utilizado para gerar o gráfico [1]. Neste, interessa verificar o que
se apresenta com carga de sentimentos positivos e negativos pronunciados pela
entrevistada durante a produção dos dados.
FONTE: Nvivo 11. Representação gráfica de hierarquia de palavras representativas e
significativas. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, nov. de 2018.
100
GRÁFICO DE SENTIMENTOS 2 – POSITIVOS E NEGATIVOS
No total, foi encontrado 27 referências codificadas com sentimentos relativamente
neutros e 1 código representando sentimento positivo, segue:
AUDIO 1 A gente tava em casa né, morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas pra gente í
toma banho.
Eles sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque se você for butá a mão por
ali, ele sai por ali.
Meio dia, a gente morrendo de calor, o sol quente.
Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui.
Era pegano assim, butava na saia, prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe.
A gente pegava, vinha pra casa nos colo, porque não tinha onde butá os peixes. Chegava em
casa, oxe, Pial que era branquinho, pegava na hora assim, tratava, butava sal e já ia assá pra
cumê tudo.
O Rio de Orobó, ele nascia na Palma.
E se fosse morador pescá e se não fosse morador, ele botava pra corrê.
Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Porque a banana dava um
dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um morador plantando banana ele mandava
arrancá tudinho. Eu vi, eu era pequenininha, agora depois que ele cresceu não conheço mais
não.
Ele era bem gordo, uma papada, tinha uma papada aqui, bonito ele era, gordo, novo, branco.
É muito bonito ele. Dona Marieta era uma galega. Era uma galega ela.
Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate verde que tava no
chão caído. Botava lá pra fora e me dava uma pisa.
O home dava cheio de rapa de tacha pra gente.
FONTE: Nvivo 11. Representação gráfica de palavras com sentimentos positivos e negativos.
Autoria: Josefa Janete de Azevedo, nov. de 2018.
101
AUDIO 2 A Igreja era uma casinha de palha, depois foi que foram aumentando.
AUDIO 3 Mas ele fazia bolo, ele era bolêro. Todo mundo que comprava bolo era dele.
Ele fazia bolo numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande?
Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim redondo (gestos com as mãos).
AUDIO 4 É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa.
Referência de sentimento positivo encontrado no [áudio 4].
Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa boa sabe. Só que
comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não desobedecia de jeito nenhum. E ele é que nem
esse povo, que nem bicho, caboclo bravo do mato. Sem muita aproximação das pessoa, ele era na deles.
Então eu me criei assim. Me criei desse jeito. Nas casa que eu morava também era do mesmo jeito. As
pessoa primeiro eram pessoa de respeito. Eu via assim, eu me criei assim. Em casa, me criei com essa
veia assim. Sem conversá, com ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem
estuda, sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim: -Eu vivi como
Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva ela se cria. E assim fui eu.
Os achados no gráfico [2] representam surpresas para a pesquisadora e a pesquisa.
Ao observar o padrão das narrativas da entrevistada com base nos resultados da análise,
tanto na pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso de graduação quanto da pesquisa
de tese, observa-se que há um arquétipo de fala, pensamento e discurso operando sobre
as narrativas de história de vida, onde a realidade pouco representa sentimento impactado
na experiência vivenciada naquele contexto. É espantoso observar essa repetição de
resultados.
Os resultados da análise tradicional realizada à olho nu é um ponto, depois, os
indicadores mostrados através das ferramentas do Software Nvivo, onde um conjunto de
informações detectadas estavam relativamente ocultas aos olhos e a percepção humana,
assim, apontando questões internas da entrevistada escondidas ou invisibilizadas talvez
pela limitação de enxergar às sombras das palavras e das letras. O fato é que: o narrado
pela entrevistada não significa que as palavras estejam carregadas de sentimentos
positivos ou negativos observado nos conteúdos. Conteúdos analisados com teores
negativos não significa ser exatamente negativo para ela.
E isso é um dado que surpreendeu bastante a entrevista e a pesquisa causando
euforia e inquietação. O software aponta a inexistência desses supostos sentimentos com
carga negativa, quando aparece é neutro ou positivo conforme apresentado nas referências
do gráfico [2].
Assim como no Trabalho de Conclusão de Curso nas Ciências Sociais, os
resultados da pesquisa de tese na Educação também indicaram semelhanças de conflitos
analíticos impregnados nas questões de pesquisa. No caso da tese, a questão da violência
102
doméstica no contexto familiar da entrevistada havia sido naturalizada na perspectiva da
análise, o que também apontou no software Nvivo. E a questão aqui novamente se repete.
Será que a entrevistada na vida adulta narra sobre suas experiências negativas, mas não
sente o impacto necessariamente negativo? A fala é emocionada e o sentimento é neutro?
Ou, as experiências negativas não causam mais efeitos negativos quando contadas em
pesquisa? A narrativa sobre os eventos negativos vivenciados por ela não produz
sentimentos negativos em função da naturalização sofrido da infância a vida adulta?
São questões que movimentaram reflexões, inquietações, surpresas e necessidade
da crítica. Com isso, abro novas discussões sobre o tema e o objeto da análise, um campo
em aberto.
Os resultados apontam que as experiências vividas pela participante produziram
impactos severos em sua vida pessoal e familiar que não foram resolvidos até os dias
atuais, talvez nunca sejam, a ponto de não mais distinguir o que representa e significa
memórias positivas e negativas vividas por ela mesma durante sua infância e
adolescência. Decerto, isso também comprometeu a vida e o desenvolvimento de seus
filhos membros do grupo familiar extenso procriado também por ela. Enquanto mãe
biológica não teve preparo e nem referência da função e papel de mãe. As violências
naturalizadas por ela desde a infância, afetou também a vida dos filhos. Leva a sugerir
que as violências sofridas pela entrevistada ex-moradora do Engenho Palma, da infância
à vida adulta resultaram em naturalização da dor e do sofrimento agudo e,
consequentemente a permanência da insensibilidade do eu, como uma espécie de
anestesia interna para sobreviver ao caos, assim como, o aniquilamento da capacidade de
sentido os efeitos negativos de forma involuntária e inconsciente. Aquilo que é julgado
negativo na sua percepção não representa conteúdo tão negativo assim, é relativizado e
produz efeitos diferentes.
As memórias do Engenho Palma servem tão somente como alento para lembrança
de seu passado vivo que não passou exatamente, que inconscientemente ainda busca o
reencontro com família de origem ausente desde o berço, que infelizmente ela não
conheceu e nem viveu com seus pais biológicos. O Engenho representa essa moradia e
família imaginária, uma tentativa de fixar identidade pessoal, de existir no mundo e
resgatar o sentimento pendente da origem da família ainda enferma. É a revelação de uma
criança órfã que se tornou adulta também órfã.
Diante do todo complexo, faço novamente a pergunta ponto de partida deste TCC
para conferir se realmente o propósito foi alcançado e a provocação respondida,
103
questiono: qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e
testemunhado na infância e na adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho
Palma? Não há dúvida do alcance do objeto e a entrega de respostas incluindo os vários
aspectos da vida pessoal e familiar da entrevistada imersa ao mundo do Engenho Palma,
mas, não resta a dúvida de que o dito foi vivido de forma real, mas há dúvida sim, se o
dito estava sendo sentido ou foi literalmente naturalizado e não causa mais efeito. É uma
provocação crítica.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conjunto de dados nascidos das narrativas da ex-moradora do Engenho Palma
entrevistada para esta pesquisa, resultou no mínimo em profundas reflexões sobre o tema
e o objeto de investigação. Adentrar à vida cotidiana para ver o funcionamento do
Engenho Palma, sabendo que este é apenas mais um campo parte do universo de ricos
estudos daquele estado [Pernambuco] e, sobretudo, perceber que a vida dos habitantes da
propriedade do Engenho, da Casa Grande e dos casebres, antes senzala, dos moradores
do Complexo, são movimentos com dinâmicas relativamente padronizadas em termo de
regularidade das atividades geradoras de acontecimentos, situações e fatos. É quase como
uma redescoberta daquilo que já era talvez conhecido por outros olhares e linguagens com
enredos sobre a mesma história.
O evento de narrativas da ex-moradora significou além de uma imersão sobre o
mundo e a realidade vivida no Engenho Palma posto em evidência e reflexão, permitiu a
pesquisadora discutir o tema à luz das produções históricas, contribuições sociológicas,
vinda de diferentes autores da mesma linhagem de pensamento crítico; e, assim, analisar
uma importante quantidade de dados com linguagem simples e conteúdos complexos que
expõe em alto nível de sofisticação e detalhamento uma realidade densa, pouco conhecida
ou nunca estudada academicamente em outras experiências. Tudo sendo narrado por uma
informante de primeira mão que por sinal foi de difícil esgotamento dos assuntos pela
quantidade de dados, elementos e eventos desdobrados em cada etapa dos enredos. Muitas
histórias e uma infinidade de acontecimentos cotidianos que desconhecia nas obras dos
clássicos e contemporâneos da história oficial. Por isso, em cada bloco de narração em
função da diversidade de coisas ditas, personagens com vida, objetos impregnados de
memórias, elementos múltiplos e situações plurais que caberiam numa ampla e profunda
discussão de cada contexto parte das estruturas da mesma propriedade, mas, para este
estudo precisei encerrar as etapas, embora, ainda com os assuntos e temas inesgotados.
Depurar a vida da ex-moradora [no e do] Engenho Palma não foi uma atividade
tão simples como imaginava ser, careceu de muito esforço e dedicação concentrada para
dar visibilidade as experiências mais importantes para ela e o objeto, já que tudo se
mostrava igualmente importante diante dos contextos do cotidiano e do funcionamento
da vida no Engenho. O mundo traduzido por ela em palavras conhecidas e até
desconhecida para a pesquisadora que carrega pouca cultura do Engenho, mas com
sentido e significado compreensível apoiada na tradução dos termos, com esse
105
entendimento nasceu a história vivida no Engenho como valor imensurável para a dona
da própria história. Um evento que também deu corpo e alma ao objeto da pesquisa. Uma
história se perfazendo na outra, num comunado de protagonismo original com relações
intrínsecas entre informante, o Engenho, o objeto e a pesquisadora.
Não imaginava que fosse me deparar com tudo isso, os conteúdos do anexo F
principalmente, o que causou bastante sensibilidade, até choro de apiedamento de entrar
na vida daquela menina órfã desvalida no mundo perdido sem pai sem mãe para proteção
da vida, sobrevivendo sozinha ao mundo de riscos e no meio de adultos brutos ou
maleáveis, violentos ou acolhedores que agiam sobre ela, o que marcou a sua vida para
sempre.
Os maus-tratos e os espancamentos sofridos e praticados pela madrasta-avó,
foram os mais dolorosos de ouvir e analisar em todo o percurso da investigação, são
conteúdos fortes vividos por uma criança indefesa independente da condição de vida em
que se encontre a criança, maus-tratos, abandonos e espancamentos são situações difíceis
de digestão e aceitação em qualquer contexto. Foi o que mais me sensibilizou durante a
tripla narração das experiências e histórias de vida. Primeiramente, o relato gravado na
fase inicial das gravações, depois, a ré-escuta com a transcrição dos dados, por último, a
tri-ré-escuta silenciosa da análise. Não foi um trabalho rápido ou desengajado das
emoções, pelo contrário, demandou de muito esforço, concentração e luta para superar as
aflições e angustias contidas em cada bloco analítico posto à reflexão, apesar dos
espantos, das surpresas e entusiasmos diante do belo e da inocência infantil de uma pessoa
adulta que nada enxergava ou imaginava o que estava sendo visto no estudo apurado.
Registrar a voz da entrevistada contando suas experiências significa a forma mais
fidedigna de conhecer a realidade vivida pela ex-moradora do Engenho, a escuta
qualificada de uma outra perspectiva da versão da história, talvez, intencionalmente
invisibilidade por outrem. Trata-se da verdade de uma nativa, nascida e criada no lugar
que se representa expondo sua percepção sobre o cotidiano e o funcionamento do
Complexo lugar. Sobre os acontecimentos e os contextos vistos por ela, e assim dar
importância e visibilidade ao cotidiano corriqueiro, mas que teve impacto em sua vida
pessoal e familiar. Esse foi o alcance maior deste trabalho, encontrar o lugar do Engenho
e dar voz à entrevistada narrar suas experiências guardadas na memória. Como já disse
antes, um arquivo antes imaterial [cognitivo] que se transformou em dados concretos,
com um volume de conteúdos que não considero leves, nem de pouca importância para a
vida da participante principalmente. Trata-se de um apanhado de coisas diversas e de
106
situações vetoras de sentimentos bons e ruins, alegres e tristes, de dor e de saudade numa
constante mutação e contrastes. As emoções foram ampliadas em cada bloco de narração
com alcances diferentes e conexos ao mesmo tempo, da vida pessoal à familiar, das
atividades infantis aos acontecimentos trágicos de violências e agressões sofridas e
praticadas por adultos principalmente. Tudo se mostra revelando condutas, mentalidades,
poder e força de uma época, em um determinado lugar-espaço. Cada passagem das
histórias foi transmitida como uma página única de um livro da vida escrita com marcas
de experiências profundas que atingiram o corpo e a alma da participante narrante,
andante do lugar, talvez, com pouca consciência dos impactos dos eventos que se
misturaram com a própria vida. Me refiro as memórias narradas e escutadas com a mesma
intensidade e força que se mostravam as atividades positivas e negativas vivenciadas e
testemunhadas no cotidiano do Engenho.
Decerto, foram momentos entusiasmados e saudosos para a entrevistada que ria
contando a diversidade das histórias, embora não tenha sido tão fácil assim para a
pesquisadora ouvir tudo em silêncio crítico quase imóvel para não perder a riqueza dos
detalhes. Foram falas, escutas, histórias e contextos reveladores de um mundo antes
desconhecido com esse nível de descrição. A vida vivida da entrevistada no Engenho
Palma é digna de um novo estudo que amplie e aprofunde os aspectos revelados por ela,
embora, este já sirva de base para entender a face da realidade mostrada sem véu, o que
fica mais exposta para pensar a centralidade dos fatos. Sem dúvida, é necessário a
continuidade do estudo iniciado neste trabalho.
Então, foi com esse proceder, de procurar conhecer o mundo do Engenho Palma,
o Complexo da Casa Grande, a função e o lugar da Igreja, do estado, dos habitantes do
lugar, o funcionamento de tudo no dia a dia, olhando, sobretudo, para o lado de dentro
das estruturas físicas e simbólicas, das relações de contatos, das ações produtivas em volta
da vida pessoal e familiar da entrevistada informante da engenharia de coisas, que tão
bem conhecia a dinâmica funcional do lugar, e, em certa medida o funcionamento de suas
estruturas do Engenho, encontrei em meio a tudo isso, um grande arquivo revelador de
surpresas e achados, indicador dos aspectos sociais, políticos, religiosos, econômicos,
culturais e familiares dos indivíduos que compõem as histórias parte das realidades
concretas, como foram mostradas e discutidas nos capítulos deste trabalho, em especial
nos capítulos IV e V que apresentam os resultados do estudo deste TCC.
Para assim entender o contexto em que se deram as experiências vividas no
cotidiano ordinário e extraordinário do Engenho do ponto de vista da entrevistada, nos
107
arquivos de suas memórias significativas sobre os acontecimentos que produzia força de
representação material, simbólica e prática. O bando de dados, as fotografias, figuras e
imagens de objetos antigos, dos instrumentos de trabalho doméstico [bule] e também de
uso no Engenho [encureta]. Os objetos de utilidades e distinções sociais espalhadas nas
estruturas do Complexo, como marcadores de diferenças, lugares, espaços e poder na
relação de inferioridade e superioridade entre os habitantes da propriedade. Tudo fazendo
parte da tessitura artesanal do texto e da reflexão analítica, interpretativa, conclusiva do
trabalho final. Uma atividade de tom crítico tomada como desafio de pesquisa no campo.
Dito isso, posso considerar que o estudo para o TCC em questão atingiu os objetos
propostos e a intenção finalidade. Respondeu ao problema de pesquisa tecendo discussões
sobre o tema e a realidade da qual se insere a participante. O que estava também conectado
ao mundo revelado por ela. Então, para esta etapa me dou por satisfeita.
Finalmente, as experiências pessoais parte da história de vida da participante, sua
percepção sobre a própria vida [no, do] Engenho abriram novas possibilidades de
reflexões outras, estudos críticos para o aprofundamento do tema, esse é o desejo e
esperado. Tanto do ponto de vista teórico conceitual, como histórico-sociológico e
empírico reflexivo. Há lugar e objeto para todas as possibilidades do desenvolvimento de
outras pesquisas no campo. Por ser também a necessidade da academia produzir pesquisas
empíricas com essa dimensão e natureza, uma vez que a história produzida sobre o mundo
dos engenhos no Brasil, quase sempre acontece a partir de estudos bibliográficos apenas.
O que infelizmente indica existir ausência de material empírico sobre a realidade
concreta, como está sendo visto nessa experiência de campo por exemplo. É um olhar
crítico de forma positiva sobre a produção do conhecimento científico.
Os conceitos e teorias explicativas são valiosas e necessárias não há dúvida, mas
a pesquisa empírica também é fundamental para validar e fazer a ciência correspondente
com a realidade. Os engenhos do Brasil e no Nordeste são ainda pouco estudados
empiricamente no campo das ciências sociais em especial, um trabalho que carece ser
realizado com urgência e sem interrupção para que as últimas gerações de moradores
vivos e ex-moradores nascidos nos contextos dos Engenhos possam contribuir com suas
experiências pessoais como é o caso da participante deste estudo, principalmente com uso
da metodologia [entrevista narrativa] colada à história de vida desse raro sobrevivente da
história, um modo de libertação da voz que um dia esteve aprisionada nas senzalas e
troncos. Muitas vezes o ponto de vista de reflexão limita-se ao discurso de uma verdade
única contado numa escrita oficial, quase sempre oprimindo ou invisibilizando a verdade
108
da história de quem viveu no chão do Engenho. Sem levar em conta, que a escrita oficial
é manipulada intencionalmente quase sempre, e por isso não representa a realidade
daqueles que experienciaram o cotidiano no lado oposto da classe dominante, dos
Senhores de Engenho e seus familiares, incluindo os historiadores contratados para tal,
para assim registrar a vontade de quem revela apenas uma versão dos fatos. Talvez,
represente tão somente aqueles que olham, pensam e registram o mundo dos Engenhos
do lado de fora, ou, de dentro da Casa Grande sem nunca ter pisado no chão do Engenho
para moer cana e fabricar o açúcar. A vista de quem contou a história oficial talvez só
alcançou o mundo dos Engenhos visto com lentes de binóculos de baixa resolução.
Decerto, a realidade não foi retratada tal qual ela foi, ou é para os moradores explorados
no lugar.
Por último, as contribuições teóricas dos seletos autores ajudaram na reflexão
como toda, do tema ao problema de pesquisa, são fundamentais, válidas e aceitas
academicamente falando, mas isso não basta por conta do pouco aprofundamento da
questão a partir da base de dados empíricos, dos fatos reais vivenciados por outrem que
precisam ser descamados em cada momento da história e da ciência, ou melhor, por toda
sua extensão e existência. Por isso, me propus em contribuir com essa simples e
importante atividade de campo.
Em últimas palavras, digo que o cotidiano e o funcionamento do Engenho era e
fato a grande força propulsora e motriz que movimentava todo o Complexo e a
propriedade do Engenho em sua totalidade. As atividades do Engenho era quem mantinha
os privilégios da classe dominante, o enriquecimento ilimitado do Senhor, o luxo
consumido por sua família, o fornecimento de produtos para manutenção da Casa Grande,
incluindo também as doações monetárias para o Capelão e a Igreja matriz da região. O
engenho mantinha a cultura e o “ethos” da classe dominante que não abria mão dos
privilégios.
No lado oposto e separadamente naturalizava-se a condição da pobreza, das
desigualdades e a escravidão dos milhares de moradores trabalhadores explorados e
violentados na propriedade em detrimento da manutenção dos privilégios de poucos.
O Engenho rendia lucro e fortuna para o Senhor dono das terras e de tudo que
existia em sua propriedade. O Engenho Palma não se diferenciava dos demais, se tornara
uma estrutura estruturante do poder no interior do estado de Pernambuco. Era um negócio
rentável, de desejo, cobiça e disputa. Quanto mais lucrativo se tornava mais poder de
força, domínio e hierarquia emanava entre os grupos dominantes. Ser dono e Senhor do
109
Engenho Palma era um título de honra e prestígio, não somente isso, significava também
impor um modo e estilo de vida interpretado como modelo ideal a ser reproduzido e
seguido pela comunidade local. Como um objeto imaginário que produz luta e conflitos
o tempo todo, mas que todos almejam se tornar um igual. O Engenho e o Senhor é visto
como objeto de desejo individual que opera na mentalidade coletiva.
Então, quem não quer ser dono das terras? Da propriedade do Engenho? Das
riquezas produzidas na região? Morador da Casa Grande? Dono das mulheres, da força
de tralho dos homens? Do poder de decisão no estado, na política, na economia, no mando
e desmando no estado e no país? Incluindo até as influencias exercidas sobre a Igreja e os
padres de forma declarada ou sutil.
Era isso que estava em jogo e em movimento permanente no cotidiano e nas
atividades de funcionamento da capacidade do Engenho, esse sim era o lugar primeiro de
interesses pessoais do Senhor, dos familiares e de sua classe exigente e sedenta de
privilégios. Somente isso e muito mais.
Sem dúvida, os resultados da pesquisa apontaram tudo isso, além das memórias
da ex-moradora operando sobre o cotidiano e o funcionamento Engenho como parte viva
ou extensão de sua própria vida na propriedade de circulação, onde os feixes de coisas
em movimento representam para ela um passado que se traduz no presente para se
encontra no lugar, enquanto pessoa portadora de identidade e referência pessoal em
primeiro lugar.
Ela constrói diferentes formas de reencontro com o Engenho na tentativa de
localizar sua família ausente no lugar de nascimento e origem de sua infância e
adolescência. O Engenho representa mais do que uma estrutura do passado, é sobretudo
uma forma de coexistir no mundo, de representar-se para os filhos em tempos atuais. É
diante dele que expõe suas fragilidades familiares, as memórias de uma pessoa adulta
[órfã] que se ver criança em busca das raízes biológicas [pai e mãe]. O cotidiano e o
funcionamento do Engenho simbolizam coisas, sentidos e reencontros do eu e a busca da
vida familiar perdida e negligenciada na infância.
110
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113
ANEXOS
ANEXO A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Tema da pesquisa: O dono dos corpos, o incesto e a teia da violência sexual
doméstica no Brasil.
Pesquisa: Quem são as dez irmãs vítimas de violência sexual doméstica e incesto,
praticado pelo pai biológico no Brasil? Problematizando os modos operantes do
agressor e as causas da invisibilidade materna face ao abuso sexual das filhas.
Coordenadora: Doutoranda Josefa Janete de Azevedo, sob a Orientação da Professora
Dra. Tânia Stoltz.
Natureza da pesquisa
Prezada participante, você é convidada a participar desta pesquisa, que tem como
finalidade investigar as histórias de vida, as memorias, as experiências, as atitudes, as
percepções, os significados, as representações e sentimentos vividos, passados e atuais
das irmãs vítimas de violência sexual doméstica e incesto, praticado pelo pai biológico.
O estudo procura também traçar o perfil sócio-familiar, identificar possíveis abusos
sexuais sofridos pela mãe biológica, por outros membros da família de origem e atual
da entrevistada, bem como investigar a que recursos de apoio às vítimas buscaram para
tratar da violência e do abuso sofrido.
1. Participantes da pesquisa
A participante da pesquisa será no máximo dez irmãs, mulheres adultas, com idade
atual de 48, 47, 44, 43, 40, 36, 35, 34,31, 30 anos, que pertencem ao mesmo grupo familiar
por consanguinidade, que tenham convivido entre si, com os pais biológicos dentro do
mesmo lar, e sofrido violência sexual doméstica e incesto praticado pelo pai.
2. Envolvimento na pesquisa
Prezada entrevistada, ao participar desse estudo você deve autorizar primeiramente que
a pesquisadora coordenadora do projeto de pesquisa entreviste você para produção dos
conteúdos da investigação. As entrevistas podem ser em sua residência ou em outro
ambiente de sua escolha, desde que o local reúna as condições necessárias para a
condução do estudo, como: segurança, silêncio, tranquilidade, um local onde será
coletado os dados para tecer o trabalho final. O local, dia, hora e duração das entrevistas
serão flexíveis e respeitadas aas suas condições conforme sua disponibilidade e
interesse. Levar-se-ão em consideração o tempo necessário e suficiente para você
contar a história da sua vida a partir das questões que serão feitas a você. São previstas
até 04 entrevistas com cada participante, com a duração aproximada de 90 minutos cada
uma delas. O tempo de duração e o número de entrevistas respeitarão seu interesse,
disponibilidades e condições emocionais. A participante terá total liberdade de
prosseguir ou suspender a entrevista a qualquer momento ou fase do estudo, sem
natureza alguma de ônus ou prejuízo.
Este é um tema que certamente vai suscitar memorias, experiências, lembranças e
sentimentos, talvez se sinta desconfortável em algum momento do estudo, porém, você
terá apoio social durante todo o processo de investigação, e mesmo antes ou depois das
entrevistas, se você o desejar será dada continuidade ao acompanhamento pelo Serviço
Social e encaminhamento para atendimento de apoio psicológico. Você poderá ser
114
encaminhada também a algum serviço público para atendimento psicossocial, que
poderá ser realizado no Centro de Referência de Assistência Social - CRASS do seu
município, através da minha mediação e encaminhamento técnico.
Em qualquer tempo antes, durante e após a pesquisa, se você quiser interromper para
pedir mais informações sobre as questões e a pesquisa, terá total liberdade, é só
sinalizar. Poderá entrar em contato com a coordenadora da pesquisa através dos
telefones (41) 9621-1578 ou no e-mail: [email protected], ou com o Comitê
de ética em Pesquisa do Hospital de Clinicas da Universidade Federal do Paraná,
localizado na Rua Pe. Camargo nº 285 – térreo, CEP 80060-240 – Bairro Alto da Glória
– Curitiba – PR, Telefone: (41) 3360-7259, e-mail: [email protected]
Sobre as entrevistas
As entrevistas serão marcadas com antecedência. Serão solicitadas informações para
traçar o perfil sócio-familiar do grupo familiar de origem e de cada entrevista, como:
idade, emprego, escolaridade, composição da família de origem e de sua família atual,
entre outras. Serão feitas perguntas sobre a sua família, seus pais, sua comunidade, sua
história da vida, desde sua infância até sua vida atual e sobre seus sentimentos, seus
relacionamentos íntimos, amorosos e sociais, seus pensamentos, suas percepções e
atitudes em face de violência sexual doméstica e incestuosa sofrida dentro e fora da
família.
3. Riscos e desconforto
Seguramente a sua participação nessa pesquisa não lhe trará complicações legais,
institucionais ou de qualquer natureza por interferência de outrem, talvez apenas, a
mobilização de esforços para lembras das memorias e experiências de alguns eventos,
pessoas, sentimentos, emoções em função da temática que será abordada. Os
procedimentos utilizados nesta pesquisa obedecem rigorosamente aos Critérios da
Ética na Pesquisa com Seres Humanos conforme a Resolução 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos utilizados oferece riscos a sua
integridade e dignidade.
4. Confidencialidade
Todas as informações coletadas neste estudo serão estritamente confidenciais. As
gravações das narrativas e os relatos de pesquisa serão identificados com um código,
ou nome fictício se assim o desejar, e não com o seu nome. Apenas os dois membros
responsáveis por essa pesquisa, a pesquisadora e a orientadora, terão acesso e
conhecimento dos dados. Se você der a sua autorização por escrito, assinando a
Permissão para utilização das entrevistas gravadas, os dados poderão ser utilizados para
fins de ensino, artigos, publicações e debates acadêmicos científicos, relatórios
científicos, apresentação em congresso, elaboração de projetos de lei suplementar a Lei
Maria da Penha e outros trabalhos de cunho técnico, acadêmico cientifico que seja
relevante para a ciência e a sociedade.
115
5. Benefícios
Ao participar dessa pesquisa você não deverá ter nenhum benefício direto, de
remuneração ou concessão de qualquer espécie. Entretanto, esperamos que este estudo
produza conhecimentos e informações importantes sobre as questões relativas à
violência sexual doméstica incestuosa no Brasil, para municiar as famílias e a
sociedade, chamando atenção para a necessidade de desconstrução da cultura
masculina impostas nas regras do tabu do incesto, da qual funciona como estratégia de
camuflagem para as práticas incestuosas com filhas dentro do lar. Na ausência da ética
do afeto, do cuidado e de correspondência do pai para com as filhas, a cultura do incesto
e a previsão de crime, não impedem as práticas sexuais incestuosas entre pai e filhas.
Essa é a tese. No futuro essas informações poderão ser utilizadas em benefício de da
sociedade como um todo, em especial das famílias, mães e filhas indefesas que
precisam modificar a cultura de dominação e posse masculina dentro dos lares.
6. Pagamento
Você não terá nenhum tipo de despesa por participar desta pesquisa, bem como nada
será pago por sua participação. Entretanto, você receberá os resultados do estudo que
você e sua família de origem participou. Em nome do grupo estudado, a família
receberá um exemplar da tese após a defesa do trabalho e será agendado um encontro
online, via Skype, com o grupo das irmãs entrevistadas para fazer a exposição do
trabalho de defesa.
Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto
meu interesse em participar da pesquisa.
_________________________________________
Nome da participante da pesquisa
_________________________________________
Local e Data
_________________________________________
Assinatura da participante da pesquisa
_________________________________________
Coordenadora da Pesquisa
Josefa Janete de Azevedo.
116
ANEXO B - PERMISSÃO [UTILIZAÇÃO DE CONDEÚDO DE ÁUDIO]
Eu, por meio desta, autorizo a pesquisadora Josefa Janete de Azevedo e a integrante de
seu grupo de pesquisa, a sua orientadora professora doutora Tânia Stoltz, a utilizarem
os dados contidos nas gravações em áudio realizadas comigo durante as entrevistas que
fazem parte desse estudo. A permissão é para que as gravações e os dados nelas
contidos possam ser utilizados em encontros científicos para ilustrar aspectos das
questões envolvidas nos casos de abuso sexual, em debates entre grupos de pesquisa,
ainda para fins didáticos, de ensino, artigos, publicações, debates acadêmicos
científicos, relatórios científicos, apresentação em congresso, elaboração de projetos
de lei suplementar a Lei Maria da Penha e outros trabalhos de cunho técnico, acadêmico
cientifico que seja relevante para a ciência e a sociedade. Eu estou ciente de que as
pessoas envolvidas na pesquisa, a começar por mim a participante que será
entrevistada, em nenhum momento serei identificada pelo meu nome, exceto na medida
em que eu estiver falando algum nome de meus familiares durante a entrevista.
_________________________________________
Nome da participante da pesquisa
_________________________________________
Assinatura da participante da pesquisa
_________________________________________
Local e Data
117
ANEXO C - AUDIO 1 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA
Relatos de experiências e história de vida da entrevista ex-moradora do Engenho Palma
transcrito de [4] áudios de gravação extraoficiais realizado em concomitância com a
pesquisa de tese. Banco de dados extra que serviu para estudo e análise no TCC em
Ciências Sociais [Sociologia]. Abaixo, disponho a totalidade os conteúdos transcritos na
integra de 4 áudios de gravações extras conforme os anexos C, D, E e F.
PARTE I
Banho de rio e pescaria
A gente ia tumá banho meio dia, eu e as menina. Ela dizia assim: bora tomá banho, digo
vambora. A gente vai pescá. Era a Oróra e Ester, era as irmã da mulher que eu morava lá.
Ai, a gente ia de carrêra disparada no Engenho da Palma. Mas, a gente ia pro rio, que é o
rio de Orobó. A gente tava em casa né, morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas
pra gente í toma banho.
A gente saia de carrera disparada, num calor, um sol que doia. Do jeito que a gente vinha,
do jeito que a gente vinha de carrrêra, ladeira abaixo, nóis pulava dentro do rio. Era bom,
rio grande viu. Água limpinha. Ai, a gente tava tumando banho, ai dizia: Ô, vamo pescá,
eu digo: vamo. Ai, tinha umas lóca dum Pial e Jacundá, era o peixe sabe? Ele tinha as
lóca de entrá e de saí. Eles sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque
se você for butá a mão por ali, ele sai por ali.
A gente ia tomá banho. Tomava banho e pescava. Meio dia, a gente morrendo de calor, o
sol quente. Procurava onde era a boca, chega era lisinha. Procura onde é a saída e a
entrada. Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui. Eles furavam buraco nas
parede pelas pedra.
As menina ia tampava e a gente vinha por aqui. Lá dentro das lóca. Acho que eles se
achavam preso lá e ficavam tudo furioso pra sai, oxe! Era pegano assim, butava na saia,
prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe. Branquinho que chegava a brilhá. Era
Jacundá e Pial. Ai, a gente prendia quando ele vinha pulá, algum ia simbora, algum fugia
e outros a gente pegava. Ficava dois na boca. A gente pegava, vinha pra casa nos colo,
porque não tinha onde butá os peixes. Chegava em casa, oxe, Pial que era branquinho,
pegava na hora assim, tratava, butava sal e já ia assá pra cumê tudo. Mai, a gente fazia
isso era no rio da Palma, no Engenho da Palma. O Rio de Orobó cortava esse mundo todo.
O Rio de Orobó, ele nascia na Palma.
Oxe, o rio ele circulava a Palma todinha, Macicuava, Bizarra, Lagoa Comprida e vai
simbora, Limoreiro e vai simbora. Não tem fim o Rio de Orobó. Nesse tempo tinha muito
peixe, muito peixe nele.
O hôme ia pesca. Tava sem carne né? Ôh! João, hoje eu vô pescá. Ele dizia era de manhã.
Depois do almoço eu vô pescá. Ele tinha uma mochila desse tamanho assim.
Uma mochila bem grande. Ele amarrava a mochila na cintura, vestia uma roupa bem
velha. Era um por dentro da água e outro por fora do rio. Ai, ouvia ele lá. Ele tinha dentro
d’água era o caminho já. Olha lá pra quele bicho assim, olha lá. Pescadêro viu. Oxe, tinha
cada traíra ele pegava!
E nóis ficava batendo atrás dele pra pegá. Nós fazia que nem cachorro, se ele pegá no
dedo ele atora.
Ó, vai juntá uma pedra, qualquer coisa. Eu arranjava a pedra, punha lá, isso tava aquele
rolo assim num canto do jereré.
118
Ai com jeitinho assim pegava pela gargantilha, rasgava, a trouxa de traíra, jacundá e um
peixe chamado Piau. Existe na Palma. De certo, lá não tem peixe mais não. Tinha um
lugar lá que, um peixe que pegava, ô meu Deus, Jacundá não, era Cumatã. Ah! Cumatã.
Ela anda de rebanho feito gado, feito ovelha. Ele é muito. Uma sai de filinha atrás da
outra assim ó. Cada uma desse tamanho assim ó.
Uma vez ele pegou um. Agora vc não podia pegá não viu. Era um pedaço de rio que tinha
e que só tinha esse peixe e era só ele que podia pescá nesse lugar.
Mas, quando a gente ainda tava dentro do rio, í pra casa, disse assim: Vamo simbora, ói,
já tem uma bicha ali, ói uma cobra.
Cadê? Mas, graças a Deus que eu olhava, olhava e não via. Dizia que era amarela, mas
eu não via não. Só bichinho enorme, dizia, eu vô saí daqui.
Vamo simbora, já tá de noite. Vestia a roupa, aquela trouxa de peixe assim ó. Ai, chegava
em casa já tava escuro, dai a pouco a gente chegava. Ele pegava uma butija que tinha ali
de barro, despejava a botija de peixe, mas era aquela peia de peixe. A gente ia pelá aqueles
peixe, era pra pelá um bocado do peixe que era pra fazê o molho pra gente cumê né.
E eu ficava pelando. Depoi que terminava, ia pelá também. Então, pegava uma arutuma
que tinha, botava aquele estendá de peixe. Salgava tudinho e butava aquele estendá pra
gente cumê.
Mai era bom. Lá em casa toda semana ia pegá. Era fácil mesmo. Porque ói, não tinha não,
não podia todo mundo pescá não viu. Tinha que primeiro pedi. E se fosse morador pescá
e se não fosse morador, ele botava pra corrê. Seu João Diló, Era. O Seu João Diló
diministradô da Palma.
Ele conhecia a gente, mai ele deixava a gente pescá. As vezes a gente ficava com medo.
Vixe, se o hôme chegá aqui e brigá. Ai, ele passava assim, via a gente pescando não dizia
nada não. Toda semana a gente ia pescá. A gente comprava carne no sábado e quando se
acabava, no meio da semana dava apuro.
Vou pescá. Hoje eu vou pesca viu João. Tá certo. Ai, chegava no dia fazia aquela panelada
de peixe. Era do rio. Água do rio, peixe do rio. Era uma barriga cheia no rio, muito peixe,
muita coisa.
Foi pescando mais os menino, a gente pescava. E como é tempo de camarão. Numa época
de camarão, oxe! Tinha dois tipo de camarão pra uma pessoa só. Assim, puxava o jereré
e vinha aquele monte de camarão.
Bom tempo viu. Quando eu me lembro no meu tempo que eu era pequena, era de barriga
cheia. A gente lucrava muito, muito, muito feijão. Ah!, Coisa de cavalo, 3, 4, 5 cavalo
carregado. Não no tempo do meu avô não, era muito não. Já era mais pra comê mesmo.
Foi depois que meu avô morreu que meu tio ficô trabalhando pra pagá foro, a condição,
essas coisa.
Foro e Condição
Ele era foreiro e foi ele o meu tio. Foreiro é assim: foreiro faz as coisa pra pagá a sua casa
que você mora, isso sem recebe nada. No engenho era assim. E foreiro você trabalhava,
alugava 3, 4, 5 bocado de terra pra você trabalhá. Quando fosse o final do ano, você paga
o foro, pagava a condição ainda. É, todo mundo era assim.
A casa que você morava você trabalhava três dia no engenho sem ganha nada. Três dia
de graça. Depois, ele botô pra dois, ficô a segunda e a terça. Esses outros dia que ficava
era pra pessoa trabalhá, virá bicho pra trabalha, pra pagá o foro, porque o foro era um
dinheiro enorme. Se fosse 4 parte de terra, ele andava falando daqueles 4 parte de terra,
quanto era que ia dá.
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Eu sei que tudo que tinha era pra trabalhá pra dá pro Doutô Ênio. Quebrava milho, fazia
farelo dois três vezes sem pará. Farinhada, milho, feijão, fava, algodão, o que tivesse.
Vendia tudo pra fazê aquele dinheiro “X” que ele dizia: É tanto. No dia da Conceição tu
chega, a Casa Grande tava completa, no pé da calçada de morador pra pagá o fôro.
Era dinheiro viu. Eu me lembro que eu ficava assim, olhando assim, um monte no chão
assim espalhado. Ópa aqui mãe, esse dinheiro todinho não dá pra pagá o foro ainda. Ele
dizia.
Vai tê que fazê mais farinhada e o resto daquele algodão pra termina de pagá. Ai, quando
era no dia da Conceição, no dia 8, dia da Conceição, dia 8 de novembro.
Ai, a gente acordava bem cedinho, botava aquele rolo de dinheiro no bolso e ia leva pro
doutô. Ai, chega lá, tá completo assim ó, tudo esperando já. Ele abria a porta, o que tivesse
casa alugada, terra alugada. Fosse quarto de terra, ai levava. E se ele não fosse foreiro,
fosse só furnicero, ele só pagava os três dia de renda, de coisa.
Se o foreiro não pagasse, oxente! Não dormia na casa, que ele não deixava. Se desse o
dia da Conceição, dia 8 de dezembro. Que era o dia do pagamento, era esse dia. Ele dizia.
Se não chegasse um, faltasse um, que ele tava com o nome de todos eles ali e quanto ele
ia recebê de cada um. Se não chegasse um, mandava um morador lá. Vai na casa de fulano
pra sabê porque foi que ele não veio pagá o foro hoje. Ai, se chegasse lá ele tava
ascendendo não sei o que. Disse: o Dr. Ênio disse que é pra você pegá as cesta hoje, você
não dorme na casa. Era assim.
A pessoa tinha que pegá os moleque que tinha, os molambo veio tudo preto e saí. O que
tivesse era pra deixá. E não era pra cumê o que tivesse não. Saia e deixava, e ele não tinha
dinheiro nem pra entrá ali mais. O primeiro sinhô do engenho era assim viu. Tinha pena
de ninguém não.
Eu já fui na Casa Grande assim, mas eu ficava do lado de fora, eu nunca entrei lá não.
Não era todo mundo que entrava lá não viu. Então, era assim, as vezes eu ia buscá o leite,
ficava assim em pé, aquela casa bonita menina. Cheia de varanda, mas nunca entrei não.
Tinha as empregada tudo. Aquelas empregada, aqueles empregado que tinha tudo, mas
conhecia não. O meu avô não sabia não. O morador não entrava na casa dele não. Eles
ficavam tudo na calçada do lado de fora. No pé da calçada, nem na varanda não era pra
entrá. Gritava um por um, chamava o nome de um fulano de tal. Chegava lá, dava o
dinheiro a ele e voltava, vinha simbora.
Fulano de tal ele dizia, entregava o dinheiro a ele. Não era pra falta um centavo, não era
pra falta. E tanto que ele disse pra leva.
Ai, o meu avô era foreiro e meu tio era furniceiro, depois ficou foreiro também. Pagava
condição e foro. E o foro era o que ele trabalhasse. Tudo que ele produzisse era pra tirá o
dinheiro pro Sinhô do Engenho, que o Sinhô do Engenho mandava. É escravidão. Saía
de casa de manhã, às cinco hora da manhã, a gente saía. As vezes levava um punhadinho
de farinha com um pedacinho de carne, de peixe seco pra cumê lá. E as vezes não levava
nada, o dia todinho com fome. Na chuva, no sol, chegava em casa de noite. Se quisesse
mora. Era do mesmo jeito, um mais pior do que o outro.
Escravidão disfarçada e o espinho do sindicato
Ai, depois foi que veio essa Reforma Agrária, teve esse negócio o Sindicato, foi que a Lei
do Sindicato valeu. Foi que amenizou mais a situação do trabalhador. Passou pra dois
dia, era três passou pra dois. O Sindicato bateu em cima, não era mais de graça de uma
vez não, ele dava um dinheirinho, por causa do Sindicato. O Sindicato que obrigô o Sinhô
de Engenho tirá esse peso de cima dos morador que era demais. Ele ficô com raiva, botô
o morador pra fora, ele botô pra corrê. Que o morador ia atrás sabe do Sindicato pra ter
120
os direitos deles. Apanharam muitos. Muitos apanharam, muitos morreram, muitos fugia
da casa, era assim.
Eles não queriam pagá nada pros trabalhador. Ele queria ter as coisa de graça. Ai pronto.
Faz muito tempo esse Sindicato. Ai, ficô assim, foi se desenvolvendo, trabalhava e recebia
menos, mas recebia. Como eu tava indo dizê: era três dia, ai botô pra dois. Depois desses
dois dia, eles pagava um dia mais barato. E o outro ficava de graça. E assim foi enrolando
sabe.
Foi enrolando em cima de gente, foi enrolando. Eu não lembro, se pagava tudo certo ou
se era do mesmo jeito. Era furniceiro e foreiro. Era tudo do Engenho.
Eu acho que ele dava permissão de construí a casa. Onde tivesse a casa, não sei como era
não. Eu sei que já tinha aquelas casa já. Agora aquelas casa tudo velha sabe.
Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Deixava não. Porque a
banana dava um dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um morador plantando
banana ele mandava arrancá tudinho. Era Dr. Ênio. Ai, depois de muitos anos ele morreu,
ficou o filho. O filho único que ele tem. Eu vi, eu era pequenininha, agora depois que ele
cresceu não conheço mais não. Mai, quando ele era pequenininho, pequeno, uns três ano
eu acho. Eu via ele, a empregada passeando com ele assim na coisa do Engenho.
Tinha uns hômes, tinha o vaqueiro, tinha o pastorador das vaca, tinha tudo isso, as
empregada de casa, aqueles povo que trabalhava lá, pra lascá uma lenha, pra fazê o que
mandava, era cheio de gente lá, Casa Grande.
Tinha gado, muito gado. A Palma pertencia as vagem, era tudo cercado de boi, por
capoeira por todo lugar visse. Ali tinha muito. Tinha muita vaca de leite, muita, muito
boi.
Casamento do Senhor de Engenho e a Casa Grande
Ele era bem gordo, uma papada, tinha uma papada aqui, bonito ele era, gordo, novo,
branco. É muito bonito ele. Dona Marieta era uma galega. Era uma galega ela. Loura,
bem loura.
Me lembro das irmã dele: Dona Aline e Dona Coleta. Era o nome dela. Eu vi elas duas.
Elas iam bebê caldo. Lá dentro do Engenho. Elas morava lá, elas estudava no município,
nesse lugar. Elas vinham em casa de vez em quando. Ai, de vez em quando, a gente via
elas no Engenho. Antigamente esses filho de Senhor de Engenho, filho desses povo não
tinha faculdade por aqui, era tudo fora. Se formava fora. Ia estudá e lá se formava. Não
habitava não. Eles tavam alí enquanto tavam estudando, porque não tinha estudo pra eles.
Eles iam se formá queriam estudo bom né? Ai, iam pra Recife, eles estudavam em Recife,
outros lugar assim e lá se formava né. Ai, eles vinham pra casa assim: final de ano, nas
férias, era quando a gente via eles.
Ele era braço. Ele era braço de governo viu. Ele tinha o poder que nem o governo tem.
Braço de governo é como se fosse. Era de Itamaracá. Ele morava em Itamaracá e tinha
um Presídio em Itamaracá. Prendia os preso em Itamaracá na Ilha de Itamaracá. Eu via
meu tio dizendo. Quando ele matava as pessoa assim, ele levava prendia lá. Eles diziam
que prendia os morador dele. O único que prendia era ele e levava pra lá.
Tinha uma Ilha de Itamaracá diz que tinha um Presídio. Que não tinha pra onde esses
preso saí. Que era dentro da água, em cima da água. Eu via eles, meu tio falando. Diz que
era dele. Ah, no início eu era pequena, eu só ouvia só o boato, o comentário. Mas, ladrão
na terra dele não ficava não visse. Ladrão, se fosse ladrão na terra dele não ficava não.
O ladrão e a viúva
121
Um dia me lembro, eu era pequena, de manhã eu fui busca água. Qualquer coisa que
acontecia na fazenda, na Casa Grande era uma confusão medonha. Ai, eu fui buscá água
com tanto medo. Ai, ele tinha um morador. Um morador foi robá a cabra de uma viúva
que tinha, Dona Maria Pino. Ela tinha umas cabrinhas lá, marranzinha. E eles todos era
morador dele da Palma.
E esse ladrão foi robá. Esse hôme foi robá a cabra de Dona Maria Pino, uma velhinha
viúva. E o vigia ficava a noite todinha circulano o sítio todo sabe. Que num sítio desse
tamanho qualquer coisa que acontecesse era pra mata, ou matá ou algemá e leva pra
fazenda todo algemado.
Ai o vigia tava percorrendo era muita coisa pra esse hôme percorê na Palma. Mas, era
mais o lugar onde tinha as coisa: lavoura, cercado de boi, essas coisa sabe?
Ai, o vigia viu uma gritarage de noite. “Solta minha cabra ladrão!” A viuvinha gritando,
a mulher gritando. E do outro lado o vigia escutô né. Ai, ele foi atrás. Dali a pouco, quando
ele foi subindo a ladeira, lá vinha o cara puxando a cabra da mulher. Puxando a marram
e a mulher em cima gritando, chorando. Ele desceu da bola de roça grande, ele puxando
a cabra pra baixo. Quando chegou em baixo o vigia já tava esperando ele.
Quando ele peitou foi em cima do vigia. Ai, o vigia pegô ele, levô ele pá fazenda e a
cabra. A cabra já tava morta. Não, foi não. Ele deixô levá a cabra, a marram bem
amarelinha, vermelhinha. Quando ele tava sangrando, o vigia chegou. E tinha visto toda
essa cena já né.
Ai, daquele jeito que tava a cabra sangrada, amarrada, sangrada, ele levô pra fazenda o
hôme e a cabra. E amarrado chegô lá: Ai, o Dr. Ênio pegô ele, botô ele num canto, deu
uma coça nele, deu-lhe uma piza. E um chapéu de palha grande, hoje eu me lembro. Um
chapéu de paia grande ele quebro aqui na testa dele, quebro assim, ficô toda de fora a cara
dele e a marram, amarrô ela morta no pescoço dele. A cabra pendurada pra trás, a corda
aqui na frente do lado da cabra amarrada. E no cacete até em Bizarra, que ele foi preso
em Bizarra. Ele é quem mandava. Não era Polícia que levava não, ele mandava levá e
prendê. Ai, eu vi isso de manhã quando eu fui busca água, eu dei de cara com esse hôme.
Não, eu fui buscá o leite. Que todo dia o hôme, o seu Zé João, ele dava. O seu Zé João
dava todo dia um litro de leite, ele dava ao morador. A todos não, mas à muitos eles dava
sabe. Eu fui buscá o leite. Seu João trabalhava no Engenho. Era o maquinista do Engenho.
Quando dei de cara na curva, não gosto de lembrá dessas coisa não.
O hôme com aquela coisa quebrada na testa assim, a cabra com o pescoço mole,
balançando assim, derramando o sangue amarrada no pescoço dele. E a cabra pra trás.
Quando eu vi aquilo meu Deus, uns vigia de um lado e o outro do outro, parei.
A gente morria quando eu via aquilo viu. Cheguei, eu dixe Dona, eu vi uma coisa tão feia.
Ela dixe o que foi? Eu dixe a ela: acho que foi alguma coisa que aconteceu na fazenda do
Engenho. Ai, quando eu dixe a ela: um fulano de tal que robô a casa de fulano de tal e o
vigia pego e foi cacete viu. E levou pra prendê, tá preso em Bizarra com essa cabra nas
costa. Ninguém roubava não!
Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate verde que tava
no chão caído. Abacate verde, eu tava dentro de casa.
Ai, o abacate caiu eu tava com fome fui apanhá. Dali a pouco chegô o vigia, Virgi Maria
do céu! Eu tinha um medo tão grande de seu João de Diló visse. Botava lá pra fora e me
dava uma pisa. Deus do céu! Quem é que não tinha medo né. E eu achei no chão, mas
dixe que mesmo no chão não era pra pegá.
Deixasse lá. Oxe! Era muito medo que o morador tinha. Era tudo pisada em cima da linha
direitinho ó.
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Era, ninguém saia do risco não, porque se saía era prisão e cacete, outro até morria. Era.
Dr. Ênio lá no Engenho era virado no diabo mesmo. Quando dissesse fulano de tal venha
cá, não fosse não pra vê. E ele já ia se acabando, ele sabia que alguma coisa já ia fazê
com ele né.
Ah! Era todo poder na mão dele. Eles faziam o que queriam nos Engenho deles. Todo
Senhor de Engenho são assim. Eu só conheci esse né. Mas, que as pessoas diziam.
Também não existia muito Senhor de Engenho não né? Pra ser um Senhor de Engenho
naquele tempo acho que existia porque tinha o Engenho da Palma. Tinha o Engenho de
Massicuaba. O Engenho da Palma, o Engenho de Massicuaba e o Engenho de Paraná. Era
três Engenho perto mesmo. Era três Engenho perto. Massicuaba, tudo de uma família só.
Dr. Ênio, Massicuaba acho que era de um irmão dele, sei que era família lá. Era três
Engenho que tinha. Agora Engenho grande que tinha, Engenho grande mesmo era dele.
Funcionamento do Engenho
Funcionamento do Engenho era assim: Era com cana né. Ai, plantava a cana, limpava a
cana, desfolhava a cana, quando a cana já tava boa de cortá, os trabalhador ia cortá aquela
cana.
Era, cortava aquela cana, um cortava o outro amarrava, outro jogava em cima do carro,
dos caminhão de carga e já levava diretamente pro Engenho. Quando chegava lá no
Engenho descarregava aquelas cana do jeito que tava amarrada, já botava dentro da forma,
do negócio de moê lá, da moenda. Tinha um maquinista que ligava a máquina, que sabia
manejá a máquina né. Ia botando os feixe de cana dentro e aquela roda comendo assim
Ó.
Comendo assim, caindo o bagaço de um lado e o caldo saia no outro. Ai, tinha uns tanque
grande de caldo, eles botavam uma bica. Ia botando os feixe de cana e aquelas boca bem
grande assim ó, aquele negócio fazia assim ó, ai, saia cheio de caldo, tinha o caldo e os
bagaço pra outro. Tinha dois tanque: eles botavam duas bicas de aço, não sei, acho que
era de aço. Aquele caldo daquela cana já saia por aquela bica e já ia enchendo aqueles
tanque. Uns tanque enorme! Depois que aqueles tanque tava cheio ele já caia num outro
tanque, caia nas tachas, umas tacha enorme assim do tamanho dessa sala. Bem redonda
assim.
E o caldo já caia ali, já tinha botado fogo na fornalha já. Quando tava pegando fogo aquilo
e aquele mexendo com um negócio bem grandão, mexendo aquele caldo todinho.
Mexendo, cada um com aquele negócio bem enorme, um negócio bem grandão assim
mexendo todinho pra lá e pra cá. É pra fazê esse mel desse caldo de cana.
Quando amanhecia o dia que isso já tava bom. A noite todinha mexendo. E a fornalha
com fogo em cima. A fumaça chegava na vizinha, quando esse mel tava pronto dava um
apito. “Píííííí...” bem assim e a gente escutava. Aquele homem que passou a noite todinha
mexendo aquele mel, aquele negócio pesado. Ninguém sabia quantos coisa de mel que
tinha ali dentro.
Se caísse ali dentro ói, ficava o bagaço. Quando amanhecia o dia que o engenho dizia
hoje piejô. Era na hora que o mel tava pronto. E daquele mel tinha um furo, um pau, acho
que era um pau, não sei o que era, bem grande um negócio assim bem grande pra enchê
aquele negócio, aquela tacha e enchia as “encureta”. É, um negócio bem grande, enorme
assim. Muito grande viu. Cheio daquelas encureta assim, um negócio furado pra botá. Ia
enchendo tudinho aquilo e depois que ia enchê deixava tampado escorrendo lá. O que ia
escorrendo devagarzinho era o mel de furo que era pros bicho.
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Ai, quando o mel tava açúcar, tava pronto, sequinho, vinha o cavalo. O pátio do engenho
ficava completo, completo, completo de cavalo. Era carregando assim, duas encureta que
carrega. Carregando, carregando. Ai, quando tava tudo carregado saia tudo e ia simbora.
Encureta era de tauba. De botá o mel, fazê aquela coisa de açúcar desse tamanho de
garrafinha. Ai, ele levava com encureta e tudo. O mel virava o açúcar.
Botava o mel dentro desse negócio, dessas encureta, e essas encureta tinha um furinho
embaixo que era pra escorrê, í, coalhando, quando o açúcar ia passando já ia coalhando
Ficava aquele pauzinho de açúcar desse tamanho assim, abaixo da encureta. Aquilo a
gente entendia tudinho.
À medida que ia esfriando, ela ia saindo aqueles pinguinho de mel. Virava aquela pedra
de açúcar enorme, aquele negócio todinho. E aquele mel que ficava embaixo era pros
bicho. Pros gado. E também fazia o álcool, o álcool não sei como que fazia não.
A gente entrava, os hôme trabalhava lá, a gente entrava, Seu José João, o hôme que
morava lá, ele era maquinista do Engenho. Ai, a gente entrava, bebia caldo, comia rapa
de tacha. Era. O home dava cheio de rapa de tacha pra gente. Do mel, o mel que ficava,
que pegava na tacha ele dava a gente.
Hum! Pois, chegava lá o Seu Zé João dizia: vai bebê mel de cana. Era correndo assim, ó,
aparando 2, 3 copo de cana, bebia assim ó. Bebia, era bom.
Fiquei um bocado de tempo. Eu fui morá mais ele, depois sai de lá de novo, depois a
mulher me chamou, foi me buscá de novo pra eu criá os filho dela. Criei os dois menino
dela.
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ANEXO D - AUDIO 2 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA
PARTE II
O Atoleiro do açude no Engenho Machados Velho
Como que era esse Engenho de Machados Velho? Que... Dona Bazinha que me contou.
Quem é a Dona Bazinha? Dona Bazinha é a mãe do pai dos meus filho. Ela disse que
conheceu o Engenho de Machados Velho moendo cana ainda, ela disse. Que ela dixe que
a besta era que moía a cana. Sim. Dixe que botava. Dixe que botava uma canga nas besta.
Os cavalos. Botava uma canga na besta e tinha uns nêgo dando nas besta, pras besta rudeá.
Antigamente era os nêgo mesmo que arrudeava e moía a cana nesse Engenho de
Machados ela dixe. Machados Velho, e depois era as besta que moía e tinha os nêgo pra
dá nas besta. As besta arrudiá e quando elas arrodiava ia moendo, ia rodando a coisa e ia
moendo a cana.
Foi. Dona Bazinha dixe que conheceu isso aí. As besta arrudiava, arrudiava e aquela cana
caindo, quando as besta tava cansada trocava outros cavalo, até moê aquela quantidade
de cana. Que ela dixe pra mim que aquele açude dele lá, dixe que caiu um carro de cana
com boi, com o carreto, com tudo sabe. Apareceu ali. Eu acho que era o atolêro. Ali, tem
uns atolêro tão grande! A gente passo um dia desses por lá eu e Pedro, eu já vi dois bois
cair naqueles atolêro ali. Naqueles atolêro. Ai, eles mais que depressa correu com as varas
de pau bem grande, butavam debaixo dela. Senão minha filha esse carrero, esse carro de
boi tirado de cana, os boi e esse Carrero sumiu nesse atolêro, nesse açude. No que eles
caíram afundaram, sumiram. Que eles passava por cima do açude pra levá os caldo de
cana. Dessa vez eu acho que o pneu do carro saiu fora do “bado”, escapô, acho que sumiu.
Não apareceu nem cavalo, nem carro, nem boi, nem ninguém. Nem cana nem nada. Ali
tem atolêro tão grande que se uma casa dessa caí lá vai simbora. Fica no açude, pra cima
tem um atolêro desse, ele pisava ali, balançava pra todo canto e lá pra baixo também que
foi duas vaca atolada, que eu passei por lá essa semana eu vi. Tudo marcado de pau que
ele butô, que se pisá ali vai simbora. Não foi não Pedro?
Pedro era o seu neto, atualmente adolescente que acompanhava a entrevistada em
processo de narração.
É de lama. “Massapê”. Eu não sei dizê o que é que quer dizê esse negócio viu. Não é areia
não. É um barro. É um “massapê”. Em vários lugar. No Engenho de Palma não sei....
(silêncio). Mas tinha sabe por quê? Porque tinha lá um lugar até proibido de passá. Que
se passasse afundava. Eu acho que era esse alagadiço, esse negócio também. Esse
alagadiço. É um lugar que a pessoa pisa e vai simbora, some. Atoleiro é.
Carreiro, boi e a moenda da cana
Ela dixe a mim que alcançou a moenda do Engenho com as besta. Era dois cavalos bem
forte, bem gordo na frente e com esse carro de boi atrás. Os boi é furado na ponta, no
cangar. E os cavalo que não tem ponta é no pescoço. Na ponta dos boi eles amarram uma
corda de couro cru, do boi, pra ele se movê amarrado um pro outro assim. E bota a canga
no pescoço pra, eles não podem se mexê os coitado. Inda tem, inda tem o Carrero. O
Carrero do boi com uma vara bem grande, com uma ponta de ferro na ponta pra furá os
boi e eles carregá essa carga de cana em cima do carro.
A gente via de longe, apita as roda. As roda de ferro, de madeira. Madeira forte bem
grande com aqueles negócio de ferro assim. Ai, vai fazendo assim “tchuimmmm.
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Tchimmm, de longe a pessoa vê a zoada. E dois boi na frente carregando, puxando. E o
Carrero com o espeto assim furando.
Fim do Engenho Machados Velho [herança]
Era, depois que ele [pai de seus filhos] boto o sitio né, depois que o Engenho acabo. Agora
é Machadinho. Ela só me falou isso. Ela conheceu o avô [dos filhos] foi no outro Engenho
Bom Destino. Acho que ela vinha pro lado de cá e via né. Acho que era menina ainda, ou
senhora novinha, assim. Ela era nova. Que ele não vinha, o avô não vinha de Bom Destino
pra Machados Velho. Transitava de um Engenho pra outro.
As terras da cidade de Machados eram do avô de seus filhos?
É, como eu falei: Machados Velho, Bom Destino e Panorama. Era três Engenhos de uma
vez, do mesmo dono. Ela disse que conheceu Machados com três casa de palha. Ela
conheceu os fundador de Machados todinho, ela conheceu. Acho que Machado não era
cidade não. Era umas casinha de palha que tinha. A Igreja era uma casinha de palha,
depois foi que foram aumentando. Aqueles fundador foram fazendo o Engenho.
Apareceram, depois que foi aparecendo varias pessoas, depois que ele morreu né. Que o
pai dele morreu, foi ficando lá e foi chegando aqueles hôme mais importante né. Que nem
o Dr. João. Dr. João Marques, o Coronel Major João Marques.
Esse Coronel Major João Marques acho que ainda era família dele! Sim. Coronel Major
João Marques é o fundador de Machados. Foi quem fez o Colégio, Grupo pros menino
estudá. E foi isso, e foram formando, foram formando a cidade. E era em terra, não tinha
pista, não tinha nada, não tinha transporte, não tinha nada. Depois foi que fico, que foram
organizando não é, aí, virou assim, virou essa cidadezinha. Mas não era assim, era sítio o
Engenho, terra de ninguém.
Pesquisadora: As dizer se apôs o falecimento do avô de seus filhos as terras do Engenho
foram invadida?
Eu acho que sim. Eu não sei muito não. Eu acho que depois que ele morreu, eu acho que
foram vendendo, foram acabando né. Não, eu acho que quando ele morreu um dos filhos
era rapaz já, acho que era, eu não sei muito dessa história. Mas quem tomava conta,
quando ele morreu quem tomou conta das coisa, da casa grande lá foi os filho dele. Que
era (4) quatro filho parece. Dona Bazinha dixe que ainda viu essa Casa Grande com umas
parede em pé ainda, ela disse. Eu sei que eles moravam em Bom Destino. Quem cuidava,
acho que devia sê os empregados. De tempo de escravo né. Devia ser, no começo devia
sê tudo escravo, né? Era libertação dos escravos ainda, isso era o negócio da escravidão
ainda né?
Escravos do Engenho Palma
Isso aí já, eu conheci dois, duas pessoa lá no Engenho. Eu não sei se eles eram escravo,
mas eles eram escravo da fazenda mesmo, na Casa Grande de Palma. Eu conheci Seu
João Diló, que era o pai do João Diló um negão bem preto, bem altão que era nêgo da
fazenda e tinha outro que era João Diló e Seu Cirino Fortunato. Tudo isso era, fora um
negão lá de dentro. Do Engenho. Nesse tempo acho que era o Seu Eufrázio, do Coronel
Eufrázio que era pai do Dr. Ênio. E do Dr. Eufrázio quando morreu ficou o Dr. Nipodon
e eles eram bem velhinho. Eu me lembro que eu passava assim de manhã pra buscá o leite
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da vaca, tava o Seu João Diló sentado assim, lá em cima. Bem preto sentado lá. Era o
querido do Engenho ali, ele sabia de tudo. Acho que aqueles ali, acho que eram os escravo,
depois né. Não, eu não conversava com eles não. Eu falava assim pra minha vó aquele lá
escravo do Engenho e da Casa Grande.
Madrasta-avó e o cabelo ruim
Ah! Não tem nem como compará. Não tem nenhuma pessoa que eu compare ela, era
daquela cor de Sinhá. Era, sei que ela era bem alta e mais forte que Sinhá. O cabelo era
daquele jeito, tinha uma parte que não tinha cabelo sabe? Ela tinha o cabelo bem ruim.
Ela tinha o cabelo ruim daquele jeito, preso daquele jeito. Ela era um cipó, bem grande.
Era meia forte, mas ela não era escrava não. Meia preta mas não era escrava.
Meu padrinho, meu avô arrumo essa mulher, não sei aonde foi, nem de onde era nem
nada. Foi quando eu conheci ela.
Ela era de Palmas?
Era assim: Ele não era de Palmas não. Ele veio morá em Palmas depois. Meu pai e as
minhas duas tias. Ele ficava lá conversando mas é que eu não me lembro. Eles nasceram
na Palma não. Ele parece que chegou na Palma com esses filho dele pequeno. Mas
nasceram na Palma não. Era noutro lugar que ele morava, agora não sei aonde.
Sim. Não sei, não sei qual o lugar não. Isso era muito, muito. Ele conversava assim muito
as coisa, porque eu perguntava muito as coisas, eu era perguntadeira, eu gostava de sabê
das coisas: - Padrinho, ô padrinho, onde é que o Sr. morava? Ele me dizia. Mas não me
lembro mais não. Eu vim pra Palma. Ele já chegou casado em Palma. Lá no lugar anterior,
não em Palma. Com essa mulher e com esses três filho dele. Agora não sei onde foi o
lugar não. Não, foi só isso que eu vi mesmo.
127
ANEXO E - AUDIO 3 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA
PARTE III
Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância
A festa foi de Bizarra, e a gente morava na Palma, daí a gente fomos a esta festa. Aí Dona
Maria dixe assim: Ô, vamo pra festa Maria. Eu sei que eu fui. Morava com Seu Zé João,
foi que eu pedi à ele. Eu dixe assim: to sabendo da festa de Maria do quejeiro. Seu Zé
João era o hôme que morava lá, era o maquinista do Engenho. Que moía a cana na moenda
do Engenho. Aí eu pedi à Dona, à mulher dele. Ô Dona, a Srª deixa eu í pra festa de
Bizarra? É Das Dore. É. Aí ela disse assim: - Vai mais quem? Eu disse: - Eu vou... Só
que a gente tinha combinado pra í, pra que as irmã dela também ía. Que era Ester e Ôróra.
Duas moça, duas mocinha. Não. Cunhada de Zé João, irmã da mulher dele. Era. Aí eu
dixe: - Mas as menina também vai, a Srª deixa eu í, que eu vô daqui com Maria, de lá a
gente se junta. Ela dixe: - Então tá bom. Aí a gente se vestiu minha fia, e saiu de mundo
afora.
Que idade que a senhora tinha?
Uns 10 ano, 11ano. Uns 10 ano eu acho. Era Festa do Padroêro da cidade, é a de São
Sebastião. Era. Ai, a gente foi né. Saiu danada de perna de tardezinha lá e fumo simbora,
chegamo lá e se encontremo com as menina. Ai, fiquemo na festa. A festa não foi muito
boa não, que. Ai, a gente tava na festa, dali a pôco foi um rebuliço, uma confusão, um
povo tudo caindo, o povo tudo correndo, coitado, tinham matado um hôme. Foi. Ai, a
gente não sabia se corria de noite, tarde da noite, se corria pra casa ou se corria pra se
escondê em algum canto, e a gente ficâmo sem sabê. A maria, as menina se perdêro.
Ainda bem que me segurei em Maria, (risos). E Maria, eu agarrando na saia dela (risos),
vou te conta. Maria morava na Palma também com a gente.
Todas essas meninas moravam na Palma, as irmãs. A Ôróra e Ester moravam na Palma.
Maria morava na Palma e eu morava na Palma. Tudo essa gente. Tudo no Engenho. Lá
no terreno do Engenho. Ai, minha menina, a gente fomo corrê pra se escondê. E quando
a gente tava correndo, topêmo foi com o hôme! Com o homem que mataram. Ele tava
sentado, assim no poste viu, (gestos de corpo largado). E aquela cheia de sangue assim.
Foi de faca. Foi. Eu não sei por que né. Um rapaz ainda. O rapaz era alvo, bonito. Quando
a gente deu de cara assim, ele sentado no poste. Assim, a cheia de sangue. E a gente
ficamo doidinha. A gente corria de um canto e corria pra outro. E acertá o caminho de
vim meia noite!
E peguêmo as menina e cadê as menina. Minha fia, e haja gente a caçá, as menina, Maria
ficô doidinha, Maria e eu também fiquei. Ai, adepois, a gente se encontrou com as
menina. Mas a gente tinha que deixá amanhacê o dia, que a gente não vinha sozinha que
ia era por dentro das cana, por dentro dos mato.
Aí fiquemo na festa se acabando de medo. Ai, quando foi de 5 hora da manhã, viemo
simbora pra casa. Por dentro das cana, por dentro do mato. Chegando em casa o sol já
tava, o sol já tinha naiscido. A festa acabô, acabô de manhã. Acabava de manhã a festa
sabe.
Aí a gente viemo simbora pra casa, cheguemo em casa a Dona das Dores. A Dona das
Dores. - Mataram o hôme na festa. Ela dixe: - Tás vendo, eu bem que eu disse à tú, que
128
tú não fosse. Eu e Maria, a gente se encontrava lá nas bacia do Engenho, Maria era uma
bixiga também, (risos). Mais a gente ria tanto minha fia, (risos). Ela namorava cum
vaquêro. Era. Ai, um dia eu ía passando era aquela conversa. A Maria namorava com um
irmão, cum povo do mundo minha fia! Era uma moça da gota. E era moça viu! Ela era
mais velha que eu, sabe quantos anos? Eu tenho 65, 6 e ela tem 76. Dez anos de diferença.
E ela já era moça já, mocinha. Moça nova mas era. Ai, passa Maria conversando com o
namorado, era casado já sei lá. Ai, só sei que tava Maria, quando foi no outro dia foi que
disse: - Ô bichinha, eu vi tú. Tava até a boca viu (risos). Nem em casa ia viu, namora
escondido. Ele era casado! O nome da mulher dele era Belmira, sei lá. Ai, chegando em
casa ela me dizia (risos). Ai pronto, a gente passou esse tempo junto né, lá na Palma,
depois eu saí, fui pra onde meu Deus! Que eu fiquei longe de Maria. Conheci o pai dela,
conheci a mãe, os irmão dela. Eu não ia lá muito não. Mas ele fazia bolo, ele era bolêro.
Todo mundo que comprava bolo era dele. Bolo de Mandioca, Bolo de Trigo. Ele fazia
bolo numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande? De pescada
pequena. Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim redondo (gestos
com as mãos).
129
ANEXO F - AUDIO 4 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA
PARTE IV
Maria Queijera, amiga de infância
Não, o nome dela é por causa do pai dela, era Eraque, Maria de Eraque. Agora só que o
apelido de Queijera, porque o marido dela vendia queijo.
Ai, tem o nome de Maria Queijera porque ela casou-se com o Senhor Queijero. Mas o
nome dela é Maria do Seu Eraque. O pai dela é Eraque. Morava no Engenho, todos eles.
Era o pai dele. Eu conheci o pai dele, conheci a mãe dele, conheci os irmão, conheci as
irmã.
Porque que a senhora não foi morar com eles?
Deus me livre, tinha um bocado de hôme. Tinha rapaz. Eu tinha a maior vergonha de
hôme na minha vida. Eu vinha, se tivesse mulher eu chegava ali e falava, mas se tivesse
hôme dali eu vortava. (Risos)
Eu sei, eu era assim. Eu melhorei muito, mas eu era uma um bicho do mato mesmo.
Envergonhada, morria de vergonha de qualqué coisa. E de hôme principalmente. Sei que
não podia vê hôme não visse? Cortava caminho, cortava a volta. Se tivesse hôme ali, eu
cortava por dentro do mato o mais longe pra não passá por perto.
Eu não sei. Ia, lá pro seu Oliveira (cochichando) - Meu Deus do Céu, será se esse hôme
não tá em casa? Jesus, tomara que ele não teja, meu Deus. Ia eu de pontinha de pé,
pontinha de pé. Se eu visse a cara do Seu Oliveira, eu me escondia.
Ficava esperando, aí, se esse hôme saísse pra fora ou Enilda, ou comadre Irene. Que era
pra mim chegá e falá alguma coisa. Só que eu não chegava de jeito nenhum.
Óh Maria, tá vendo? Perguntava a ela: - Olha lá, seu Oliveira ta aí? – Painho tá lá fora.
Mas deixe disso, num vai entrá, tá lá fora. Olhe, que eu ia com ela, ficava na cozinha.
Mas se ele tivesse na cozinha eu não ia não. Sempre fui assim. Desde pequena que eu sou
assim. Agora melhorei. Agora já chego na casa do hôme, já converso. Se eu não conhecê
também né? Se eu não conhecê, eu fico meia envergonhada, timidez né?
É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa. E pra tudo né, pra falá com uma pessoa
só falava se conhecia, e se eu pudesse não falava porque eu tinha vergonha de falá. Sei lá
o que é que eu tinha, eu era que nem bicho do mato mesmo.
Bizarra foi a última festa que a senhora foi na companhia da sua amiga Maria
Quejero?
Foi. Ai, depoi eu saí de la, da casa que eu tava, fui pra outro lugar, outra casa ali em Palma
mesmo só que em outro lugar.
Desencontro e reencontro com as amigas de infância
Ai, se desencontremo de Maria. Me desencontrei de Maria e nesse tempo todinho, fui lá
pra Machado, tive os filho tudinho, ai, quando foi o dia uma pessoa disse assim: o filho
meu parece! – Ô bichinho onde tá tua mãe? Ai, ali, em cima mora uma mulher que
conhece a senhora. Eu disse assim: - Ah ei, quem?. Disse: Eu não sei, mas eu passei por
lá na casa de tio Oliveira e conversei com ela. Ela disse que conhecia a senhora e queria
vê a senhora. Eu digo, mas quem é essa mulher meu Deus? Ele disse: - Não sei, ela mora
130
ali. E mostrô a casa, lá perto do Seu Geraldo. Eu fiquei, fiquei, e disse quem é essa pessoa,
essa pessoa? Ai, quando foi um dia eu cheguei, perguntei a Enilda: - Tu sabe quem é
aquela mulher que mora ali? Ela disse: - É uma mulher que tem um bocado de menino,
se chama Maria. Eu digo, vamo passá por lá, pra quando eu vê se conheço ela. Ela disse:
- Vamo. Ai, a casa dela era assim e o caminho era assim né (gestos indicando o lugar). O
caminho ía a casa dela.
Ai, quando eu ia passando ouvi o grito dela. Me conheceu. Maria! Eu olhei assim e disse
assim: - Oxente! É tu que mora aqui? – Eu já sabia que tu morava aqui, mas só que eu
não queria, não ia na tua casa. Ai, demo um abraço e comecemo a conversá.
Depoi que o menino dela morreu, e a gente fico, depois Maria desapareceu de novo,
(risos). Ficô eu. Ai, quando o hôme foi simbora pra São Paulo, que eu fiquei só e fui
trabalhá, me encontrei com Maria de novo. Quando eu cheguei pra trabalha, Maria! Eu
digo: - Xente! Ela disse: – E tu tá fazendo o que aqui? – Trabalhá. – Eu também. Ai,
fiquemo amiga de novo, até hoje. Ai, não se afastemo mais não. Ela pegô, ela morava na
rua da Palmera e eu lá no sítio. Depoi, eu sai do sítio fui pra Recife, fiquei um pouquinho,
voltei, a gente ficô amiga de novo.
Eu sou, eu tenho 10 anos mais nova de que ela, ela tinha, se eu tinha 10 anos ela tinha 19
não era? É por aí, até hoje. De vez em quando ela vai lá pra casa é uma festa. Anda e tudo,
ela já tá bem veínha. Veínha não. Toda cheia de dor que nem eu, cheia de problema, mas
ela vai lá em casa. Outro dia ela foi lá pra casa. Ligou pra mim disse: -Maria liga pra mim,
de vez em quando. Liguei. - Maria... -Digo: Oi. - Tu tá em casa dormindo? Eu digo: - Tô.
– Vou ai te vê.- Vem mesmo, mesmo! Oxe, é a maior alegria, (risos).
Vou ajeitá a casa e fazê almoço que a minha amiga vem pra aqui hoje. A gente conversa
o dia todinho, ai, quando é de tardinha ela vai simbora. É muito bom. Três amiga que eu
tenho desde quando criança é: Maria, Creusa e Das Dore. Aquela galega que morava lá
perto do seu Fera, atrás lá no Sítio. Duas galega do cabelo branco. Ela se lembra de
tudinho. Duas moça, é duas moça véia. Essas duas moça eu conheço desde quando era
pequena. Moraram em Palma também.
Ela mora em Machado. Ela mora na rua de Machadinho e Maria mora na rua da Palmeira.
Elas moram lá na rua. Vou! De vez em quando, eu vou lá.
Das dore, ela tá meia adoentada, nunca mais eu vi não, mas de vez em quando eu vou lá.
Seu Zézinho Menino da Palma também, conhecido da gente. Essas três pessoa, eu conheci
quando era pequena e até hoje não se separemo. Separemo, depois de um tempo se
encontremo de novo, pronto. Tão tudo em Machados agora e a da Palma também junto
com a gente.
Agora, Maria que eu sei, ela tem muita história pra contá, porque ela já tinha vivido uma
época atrás. Ela era nascida. Eu acho que ela naisceu e criou-se no Engenho. Eu acho que
foi. Acho que ela nasceu e se criou. Eu também nasci, me criei no Engenho né. Mas só
que eu foi de lá pra cá, 10 anos pra cá. E ela 10 anos pra trás já conhecia.
É, essas moças são velhas, mas elas sabem, tem história. É Dr. Ênio era padrinho delas.
Não sei de que jeito tá, mas caduca tá não. É. Agora uma das duas gosta demais de
conversá, outra mais calada.
Vê só o que eu fazia. (Risos). Ela um dia desses, ela tava falando. A gente tava falando e
conversando: Ai, a gente fazia farinha na casa de farinha delas, a gente morava perto
delas, depois se mudemo pra perto de Maravilha né?
Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão
E as coisas ficavam tudo lá, a semana todinha a gente fazia farinha lá. Elas tocavam na
azabumba, Pandeiro e o violão e eu ficava doidinha menina. “Meu Deus do Céu”. Eu
131
ficava doidinha quando via Das Dores pegá aquela Azabumba “ti bum”, eu ficava assim
hó, (gesto de alegria).
Uma vez eu disse assim: - Ficô uma farinha lá na casa, eu tinha 7 ano pra 8 ano, 7 ano eu
acho. – Vai buscá uma pilha de farinha que ficô lá na casa de seu Zézinho Menino. Vai
logo cedo. Era o pai delas. – Tu vai cedo buscá. Eu disse: - Tá certo. E eu fui fazendo
rodapé por casa das minhas amiga. Em cada amiga eu parava um pouquinho. Eu era
levada do diabo não era? Fui na casa de umas das amiga minha e ela tinha saído, eu fiquei
esperando, mas vê só. Fiquei esperando minha fia, deu meio dia, eu morrendo de fome lá
esperando. Ai, num chegô ninguém, eu fui mebora, fui lá pra Das Dores. Chegando lá
tava Das Dores da gota batendo pandero, a filha do quejero que era amiga também, (risos),
tava tudo junto. Era um no Zabumba, outro no pandêro, outro no violão, minha fia, e a
dança cá gota oxe! E eu no meio (risos).
O medo e mentira
E eu fiquei lá e as menina tocando e dançando, e eu olhando sem almoçá, fome da gota.
Disse: - Ô Maria, já tu saísse de casa que hora tu saísse de casa? – De manhã. – Tu já
almoçasse? Eu disse: - Não.
Vou vê uma coisa pra tu. Ô Maria, tu viesse fazê mesmo aqui o que? Eu disse: - Buscá
farinha. - Eita! Tu vai levá uma pisa da gota.
- Saiu de casa de manhã? Digo: - Foi. – Maria tu sabe tua tia quem é. E eu me lembrava?!
(risos). Eu só lembrava o que era quando eu ia no caminho. Eu disse: - Meu Deus do Céu,
vou levá uma pisa hoje! Vai vê a mentira que eu preguei. Fiquei com medo de apanhá.
Quatro saco de farinha, farinha pesada. Subia ladêra e descia. Eu ia pensando: - Que é
que eu vou dizê! Pensando e caminhando. – Ai, eu sei o que que eu vô dizê. Vou dizê que
me deu uma dor e eu caí.
Mais veje só. Aí quando chego, subia ladêra correndo com saco na cabeça cheguei
molhada de suor. Cheguei aí ela: - Mais cachorra da peste, agora chegando! Onde é que
tu tava? – Ai é que me deu uma dor no caminho eu caí. Me levantei agora. Veja só. Mai
a pessoa que mente é uma tristeza.
E ela acredito né? Mais ou menos. Ai meu Deus! E ela foi procurá sabê. E eu me esqueci
de dizê à Das Dores, eu não vi a Das Dores na casa, que se ela perguntasse alguma coisa
ela dissesse que foi verdade. E eu sei que a Das Dores, meu Pai do Céu, Das Dores vai
dizê e foi certinho.
Quando chegô lá, ela perguntou à Das Dores, às menina: - Ôh! Das Dores, Maria teve
aqui ontem? - Esteve Dona Zefinha. - Má rapaz, Maria veio buscá só farinha, só chegô
em casa de noite! Que hora que ela saiu daqui? Perguntô. E eu tava perto, corri logo, me
escondí (risos).
Quando vi. Ai, eu disse assim, fiquei pensando o que é que ia dizê né, que ela sabia que
eu ia apanhá, que ela sabia que era tudo mentira. E ela fico assim: - Ah! Ela saiu daqui de
tardezinha. - De tardezinha? E que hora ela chegô aqui? - Era umas 2 hora da tarde ou 3.
- E foi? Calô-se. Eu digo: Cochichando. – Mas Das Dores, pra quê tu disse? Eu disse que
tinha caído no caminho, tinha dado uma dor! – Ai, eu não sabia, (risos).
Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó
- Porque que tú dixesse se ela ia perguntá? - Eu me esqueci, eu disse: - mas, levei uma
pisa menina. - Eu fiquei com pena agora, mas eu não sabia minha fia, peguei e falei.
Cheguei em casa, e foi tanta da coisa que ela disse comigo, pegô ó. Oxe, mai foi cacete
132
viu! Disse que pra nunca mai eu menti. Mas eu mentia, eu mentia daqui pra li. Porque eu
tinha medo de apanhá!
Eu inventava uma mentira, mas não lembrava. Mas ela ia atrás sabe. Pegava cada mentira
minha, ai, eu apanhava. Vixe, ai, foi assim, agora tô me lembrando. Eu tava dizendo,
falando. Vixe Maria! Mas aquela véia era muito ruim pra tu viu. Má uma vez eu tive até
medo, eu vi a véia fazendo assim: pá! Pensei que ela tava batendo, ela tava batendo numa
galinha. - Era em mim. Ela disse que via ela pegá assim aquele negócio, “pá” na parede.
Daqui a pouco “pá” na parede. Disse que danado é aquilo? Ai, ela disse que vinham tudo
na porta, disse que era, era eu. Mais Dona Zefinha, a senhora qué matá a menina? Eu
quero matá. Ela era ruim, nunca vi.
Era dessa cor ela era. Alta que não passava aqui não. Mai a bicha era ruim. Deus sabe que
eu to falando. Minha fia mai essa veia era ruim, ela pisava na guela. Ela mesmo dizia:
“Eu piso, enquanto eu pudé, eu to batendo”. Era, quando não aguentasse mais, cansada,
é que ela soltava. Quando tava assim no chão, embolando assim, assim ela deixava. Era,
essa veia era muito ruim. Era muito ruim mesmo. Tanto que as menina diziam: - Mas
Dona Zefinha a senhora vai matá a menina desse jeito Dona Zefinha!
E ela: - Eu quero matá mesmo. – Faça isso não com a bichinha! O povo que tinha pena
de mim. - Faça isso não com a bichinha! Com certeza eles tavam falando: - “Mais que
veia da gota Maria”. Ela ia matá se eu chegasse na porta.
Sabe porque isso? Tu sabê, não tem a asa da galinha? A asa da galinha tem duas partes.
Tem um pedacinho aqui e esse pedacinho aqui. E eu peguei três pedacinho pra cumê. Quê
eu tirei três pedacinho pra cume, ela viu do buraco. Tava olhado lá. Do jeito que eu tirei
aquele pedacinho ficô. Ficô virada num bicho. Por causo disso. Ela quase me matô. Só
não matô por causa Das Dores que chegô. E, reclamô com ela. Era ruim demais. Ai,
pronto, ai as menina, as minhas amiga tudo sabia. Maria sabe, Das Dores sabe, Cleusa
sabe. É a gente era vizinha pertinho. Eu morava assim como assim. Ali na pracinha. E ela
morava aqui. Era só umas casinha assim.
Porque que a senhora não ia morar com suas amigas?
E quem é que pegava! Todo mundo tinha medo dela. Ninguém conversava com a veia,
ninguém falava com ela. Ninguém ia lá, em casa não viu? Acho que tinha era medo dela.
Tinha amizade com ela não. Não falava nem arengava com ela nem nada não, mai era pra
ficá cada um no seu canto.
A órfã com febre amarela
Ah! Pois, vou te contá outra coisa, outra conversa que aconteceu comigo. Eu quando tava
com 7 ano. Quando meu avô morreu fiquei com 6 ano.
Ai, se mudou-se da Palma, viemo pra Pedra Fina. Cheguei lá eu tive uma febre, uma
Febre Amarela. Meu cabelo caiu todinho que ficô assim ó. Passô a nascê um pé de capim.
Meu cabelo era bom depois nasceu assim ó.
Aí minha fia, eu ia trabalhá todo dia. Pegava 6 hora da manhã no sol, só largava de meio
dia pra almoçá e voltava, só largava de noite. E o povo não me via, não me via né. E
perguntava assim: - Ô seu João cadê aquela menina? Ela foi simbora pra algum canto?
Ai, ele disse: - Ela tá doente. Olha, óia, olha eu tive uma febre, essa Febre Amarela, eu
passei 15 dia. Eu não me acordei, eu não comia, eu não bebia, não fazia nada, que ninguém
me via, nada. E era no chão viu? Numa esteira veia, um negócio ai, uma esteira veia
parece. Ela ia sai de casa, ela chegava. Ela se acordava de manhã, comia alguma coisa,
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bebia café e ia pro serviço, chegava meio dia comia e ia simbora. Botava no prato só, eu,
sem falá, eu não via nada.
Fiquei, faz de conta que eu morri e ninguém via sabe? Ninguém sabia como eu tava, nem
via nada.
Ficava sozinha e sem tomar remédio?
Não, sem nada. O meu cabelo era aqui ói, quando meu pai-avô morreu eu não tinha o
cabelo bem grande. O meu cabelo virô uma tábua, não podia penteá, não podeia penteá,
ai, o meu cabelo caiu todinho. Ela disse que foi varrê a casa, ai, disse que viu aquela roda
preta. Ela disse: - Misericórdia! Uma serpente chega perto de Maria. No escuro ela viu,
pensava que era uma cobra enorme. Ai, que ela ascendeu o candiêro e foi repará era o
meu cabelo. Que tinha caído todinho. E eu no chão, na frieza no chão. Ai, só sei que
quando as mulhere perguntaram né? A menina disse assim: - Ô seu João cadê aquela
mulher, que eu não vi aquela menina, aquela sua menina que vai lá vê vocês? – Ela tá
doente. – Sim, tá doente de quê? – Sei não, tá com uma febre. – Será que a gente podia
vê ela? Ninguém ia lá em casa não! - A gente podia í vê ela? A gente podia olhá pra ela.
Ai, ele saiu batendo na enxada já na boquinha da noite. Disse: - Ô mãe, ai, tem umas
mulher que qué vê Maria. Ai, ela chego na porta mandô as mulher entrá. E a mulher. -
Mas que quarto é que ela tá? Um quarto escuro! Era um candiêro de gás e só na sala.
Onde eu estava o quarto não tinha luz, nada de luz. Era aquela escuridão, dava pra vê de
jeito nenhum. Que nem um bicho! Ai, a mulher: - Onde é que tá a menina Dona Zefa? Eu
queria vê ela. Disse: - Ela tá ali dentro. Ai, quando as menina chegaram na porta disse pra
ela, que não podia chegá, não puderam chegá na porta do quarto. A febre tão grande que
eu tava. E eu não chorava, não sei quantos dia fazia. E a mulher assim disse: - Meu Deus!
Essa menina vai morrê. Vocês tão dando o que a ela? – Nada não. Disse: - Ó seu João, vá
lá na venda de fulano de tal, seu Bihato, um nome parece um nome assim. - Compre uns
comprimido que tem lá e mande fazê um chá não sei de quê, e dê a essa menina. Essa
menina vai morrê. Diz que as menina saíram tudo chorando minha fia. Diz que as menina
choravam feito uma doida disse. Porque que não disse pra eles né. Disse: - Meu Deus,
mas tu visse aquela menina? Aquela menina vai morrê ali. Vão achá a menina morta. Foi.
Ai, foi que ele foi e comprô esse remédio. Porque essas mulher mandaram. Ai, ele foi de
noite, comprô esse remédio e mando pra fazê esse chá. Que era o que as mulhere deram
uns mato. Disse: - Esse mato aqui ói. Faça o chá e dê com esse comprimido a ela. Que
essa menina vai morrê! Ai, foi que deram. Eu passei 15 dias sem sabê onde é que eu tava
minha fia. Quando foi com 15 dia eu tornei, foi que eu me acordei. Eu tava da cor com
aquele amarelidão assim! Assim ó, Ave Maria e fraqueza né, sem cumê. Ai, eu me acordei
e era um frio tão grande, minha fia! Meio dia em ponto e ia pro sol. As menina dizia: -
Minha fia saia daí que você vai morrê nesse sol quente cunzinhada. Quanto sol mais
quente tava mais eu gostava de ficá. Ai, só assim minha fia que foi dando, que foi dando,
que foi dando e eu melhorei. Antes de eu ficá boa eu dei um jeito e fui pro roçado. Ai, um
dia encontrei essas duas mulher. Disse: - Tú tás melhor fia? Tu tás melhor Maria? Eu
digo: - Amarela minha fia, veia sem uma pinga de sangue. Ela disse: - Mas menina, tu tá
é morta mesmo. E tu tá trabalhando! Eu disse: - Tô. Mas triste de quem não tem mãe e as
mulher chorando. Disse: - Minha fia, triste quem não tem mãe, eu vi a tua situação. Você
só tá melhor, primeiramente em Deus, e eu que ensinei o remédio ao seu tio viu? Se não
você hoje tava morta. Que eles não são gente nem de dá um comprimido a vocês viu, a
você. Eu calada. Ai pronto, fiquei boa. Quando melhorei uma coisinha já fui trabalhá, eu
tava trabalhando, o sol tava pingando assim, aquele suor de tanta fraqueza. Ai, minha vida
foi assim até a uns 10 ano pra cá. É o que eu digo a você, é quando eu to vivendo e to
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feliz de 10 anos pra cá, mas de 10 anos pra trás, até 6 anos porque era com meu avô,
depois do meu avô acabou-se a minha vida, era assim minha vida. Era assim. De
sofrimento. Se fosse fazê uma história da minha, um livro da minha história, não tinha
papel, acho, que desse. Tem muita história, tudo história ruim. Ai pronto. As minhas
amiga tudo sabe disso, da minha vida.
Maria quejero, não presenciô, não conheceu isso ai não. Porque quando eu conheci ela
tinha saído de casa já. Mas Das Dores ainda presenciô, que a gente era.
Sua amiga Das Dores conheceu sua madrasta-avó?
Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa boa sabe.
Só que comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não desobedecia de jeito
nenhum. E ele é que nem esse povo, que nem bicho, caboclo bravo do mato. Sem muita
aproximação das pessoa, ele era na deles. Então eu me criei assim. Me criei desse jeito.
Nas casa que eu morava também era do mesmo jeito. As pessoa primeiro eram pessoa de
respeito. Eu via assim, eu me criei assim. Em casa, me criei com essa veia assim. Sem
conversá, com ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem
estuda, sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim: -
Eu vivi como Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva ela se cria. E
assim fui eu.
E a senhora está aprendendo outras coisas agora?
To aprendendo agora depois de véia. Que depois de veia não acontece nada. Tem que i
aprendendo de pequena, de pouco né, que é pra quando tive véia já sabê. É de vida.
Então, eu to sentindo essa alegria, essa felicidade como já falei através dos meus filho,
então, Não sabia. Eu não tinha o direito de chegá, de brincá com uma amiga minha, nem
conversá com uma pessoa nem nada. Era eu só, era eu sozinha. Pronto, me criei assim
meio bicho do mato. Não falava com as pessoa. Tinha vergonha, de perguntá pras pessoa,
chegava perto mas não falava não. Não sabia nem o que que eu ia dizê. É, ficava logo
infiada (risos).