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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JOSEFA JANETE DE AZEVEDO MEMÓRIAS, IMAGENS E O COTIDIANO NO ENGENHO PALMA: PERCEPÇÕES DA ANTIGA EX-MORADORA CURITIBA 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

JOSEFA JANETE DE AZEVEDO

MEMÓRIAS, IMAGENS E O COTIDIANO NO ENGENHO PALMA: PERCEPÇÕES DA

ANTIGA EX-MORADORA

CURITIBA

2018

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JOSEFA JANETE DE AZEVEDO

MEMÓRIAS, IMAGENS E O COTIDIANO NO ENGENHO PALMA: PERCEPÇÕES DA

ANTIGA EX-MORADORA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de

Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas da

Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial

à obtenção do título de Bacharel em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira.

CURITIBA

2018

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TERMO DE APROVAÇÃO

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Dedico e agradeço em especial

ao meu querido orientador Prof. Dr. Ricardo Costa de Oliveira, agradeço pela

referência acadêmica e espelho intelectual de alto nível que representa para mim, seu

comprometimento com o conhecimento culto e a forma de transmissão do saber, do

qual muito contribuiu para minha formação profissional de cientista social e

socióloga;

e também ao conjunto de professores(a) do curso de Ciências Sociais, para os quais

dedico afeição reconhecendo a importância docente de cada um(a), do começo ao fim

dessa etapa conclusiva;

aos meus familiares e amigos, em especial aqueles que me deram apoio e suporte

durante a caminhada, amparo afetivo, moral e material para que pudesse concluir o

processo com tranquilidade e plenitude.

De modo muito especial dedico o esforço e agradeço profundamente a senhora Júlia

ex-moradora do Engenho Palma-Pe, pela sua contribuição e valiosa participação

nesta pesquisa de campo, pelas ricas narrativas, experiências e memórias objeto de

análise.

À todos(a), meu muito obrigada!

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RESUMO

O estudo empírico intitulado: “Memórias, imagens e o cotidiano no Engenho Palma:

percepções da antiga ex-moradora” teve foco na investigação do cotidiano e no

funcionamento do Engenho a partir das experiências vividas e memórias guardadas pela

participante do estudo [ex-moradora, nascida e criada no Complexo da Casa Grande]

situado no interior do estado de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. A partir do

tema surgiu a pergunta: qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido,

sentido e testemunhado na infância e na adolescência no Complexo da Casa Grande do

Engenho Palma? Assim, procurei conhecer o perfil pessoal, familiar e o contexto cultural.

No segundo objetivo propus analisar as experiências e memórias de narrativas de história

de vida a partir da percepção do cotidiano e do funcionamento do Engenho. Diferentes

autores ajudaram no artesanato metodológico, intelectual-reflexivo e prático da pesquisa.

Da observação participante de Malinowski (1976), à entrevista narrativa oral na

modalidade de história de vida de Bauer (2003) e Jovchelovich; Bauer (2002); da

epistemologia de Mills (1982), às contribuições analíticas de Bauer (2003); May (2014)

e Bardin (2009), todo o constructo esteve alinhado ao pensamento dos metodólogos e as

experiências da pesquisadora no campo. As ferramentas do “Software Nvivo 11” foram

utilizadas como possibilidade tecnologia de apoio na categorização dos dados. Clássicos

e contemporâneos das ciências sociais e da história em especial, ajudaram no

aprofundamento das categorias analíticas. A etnografia mosaica de Antonil (1711) trouxe

o contexto dos engenhos no Brasil; Simonsen (1937, 2005) e Lisboa (2014) os aspectos

sobre o desenvolvimento econômico do país colonial, assim como, Freyre (1963, 1967,

2003, 1996); Prado Jr (1981); Oliveira (2000) dos quais contribuíram com a reflexão

sociológica a respeito das relações sociais entre os indivíduos, o poder da classe

dominante, as instituições patriarcais [igreja, família, Engenho e estado]. Os resultados

apontam que as experiências vividas pela participante produziram impactos severos em

sua vida pessoal e familiar, a ponto de não mais distinguir o que representa e significa

memórias positivas e negativas vividas por ela durante sua infância e adolescência. Leva

a sugerir que as violências sofridas da infância à vida adulta resultaram em naturalização

da dor e, consequentemente a insensibilidade do eu, espécie de anestesia interna e

aniquilamento da capacidade de sentido efeitos negativos de forma involuntária e

inconsciente. As memórias do Engenho Palma servem tão somente como alento de um

passado vivo que inconscientemente busca o reencontro com família de origem ausente,

que infelizmente ela não viveu. O Engenho representa uma tentativa de fixar identidade

pessoal e origem da família enferma. É a revelação de uma criança órfã que se tornou

adulta.

Palavras-chave: 1. Cultura do Engenho e família. 2. Vida social, cotidiano e

funcionamento. 3. Imagem e representação. 4. Complexo da Casa grande. 5. Lazer e

festividades.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FOTOGRAFIAS E IMAGENS

IMAGEM 1 – SENZALA .............................................................................................. 49 FOTOGRAFIA 2 - CASAS DOS ANTIGOS MORADORES DO ENGENHO ........... 50 FOTOGRAFIA 3 - CASAMENTO DO SENHOR DO ENGENHO PALMA .............. 65 FOTOGRAFIA 4 – IGREJA DO ENGENHO PALMA ................................................ 71

IMAGEM 5 - TÍTULO DE SÓCIO BENEMÉRITO ..................................................... 74 FOTOGRAFIA 6 - COMPLEXO DA CASA GRANDE [ANTIGA E RECENTE] ..... 76

FOTOGRAFIA 7 - SENHOR DE ENGENHO VELHO[PAI] E NOVO [FILHO] ....... 77 IMAGEM 8 - DIPLOMA: CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA PÁTTRIA ....... 79 FOTOGRAFIA 9 - ENGENHO PALMA [PARTE EXTERNA] .................................. 86 FOTOGRAFIA 10 - FÔRMAS USADAS PARA O AÇÚCAR BRUTO ..................... 91 FOTOGRAFIA 11 - BULE DE FERRO [USO DOMÉSTICO DA CASA GRANDE] 93

GRÁFICOS

GRÁFICO DE HIERARQUIA 1 – ENGENHO [FREQUÊNCIA DE PALAVRAS] ... 99 GRÁFICO DE SENTIMENTOS 2 – POSITIVOS E NEGATIVOS ........................... 100

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA E AGRADECIMENTO

RESUMO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9

2 EPISTEMOLOGIA DO MÉTODO, METODOLOGIA E TÉCNICAS .............. 13

2.1 DESENHO DA PESQUISA ..................................................................................... 19

2.1.1 Campo, Entrevista e Dados ................................................................................... 21

3 ENGENHO DE CANA-DEAÇÚCAR NO BRASIL: REFLEXÕES HISTÓRICO-

SOCIOLOGICAS ......................................................................................................... 24

3.1 Pernambuco – Oficial Capitania dos Engenhos do Brasil ........................................ 26

3.2 História e localização do Engenho Palma [Pernambuco] ......................................... 28

4 RESULTADOS DA PESQUISA .............................................................................. 35

PARTE I ........................................................................................................................ 37

4.1 PERFIL, ORIGEM E CONTEXTO SOCIOCULTURAL ....................................... 37

4.1.1 O Engenho Machados Velho e o atoleiro do açude............................................... 39

4.1.2 Fim do Engenho Machados Velho [herança] ........................................................ 39

4.1.3 Madrasta-avó e o cabelo ruim ............................................................................... 40

4.1.4 Quadro resumo: perfil sociofamiliar da entrevistada ............................................ 44

4.1.5 Foro e Condição [terra e moradia] ......................................................................... 45

4.1.6 Escravidão disfarçada e o espinho do Sindicato .................................................... 46

4.1.7 Senzala e Casas dos antigos moradores do Engenho [recente] ............................. 49

PARTE II ...................................................................................................................... 51

4.2 MODO DE VIDA, CONTO E LUDICIDADE INFANTIL .................................... 51

4.2.1 Liberdade - um modo de ver o mundo .................................................................. 52

4.2.2 Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância .............................................. 53

4.2.3 Banho de rio e pescaria .......................................................................................... 54

4.2.4 O ladrão e a viúva do Engenho .............................................................................. 55

4.2.5 Maria Quejero - amiga de infância ........................................................................ 57

4.2.6 Desencontro e reencontro com as amigas de infância ........................................... 58

4.2.7 Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão ........................................................ 59

4.2.8 O medo e mentira .................................................................................................. 59

4.2.9 Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó .......................................................... 60

4.2.10 A órfã com febre amarela .................................................................................... 60

PARTE III ..................................................................................................................... 62

4.3 PROPRIEDADE, CASAMENTO, FAMÍLIA E O COMPLEXO DA CASA

GRANDE ....................................................................................................................... 62

4.3.1 Igreja do Engenho - lugar de distinção social e funeral ........................................ 68

4.3.2 Título de Sócio Benemérito [Conferencia Vicentina de Machados] ..................... 74

4.3.3 Complexo da Casa Grande .................................................................................... 75

4.3.4 Velho e Novo Senhor do Engenho Palma [pai e filho] ......................................... 77

4.3.5 Corrida do Fogo Simbólico da Pátria [Diploma] .................................................. 78

PARTE IV ..................................................................................................................... 79

4.4 COTIDIANO E FUNCIONAMENTO DO ENGENHO PALMA .......................... 79

4.4.1 Estrutura do Engenho ............................................................................................ 83

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4.4.2 Escravos do Engenho Palma ................................................................................. 86

4.4.3 Carreiro, boi e a moenda da cana .......................................................................... 86

4.4.4 Fôrmas de armazenamento e transporte do açúcar ................................................ 90

4.4.5 Bule de uso doméstico da Casa Grande................................................................. 93

5 ACHADOS DA PESQUISAR [NVIVO 11] ............................................................ 98

5.1 APRESETNAÇÃO GRÁFICA [HIERARQUIA E SENTIMENTO] ..................... 98

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 104

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 110

ANEXOS ..................................................................................................................... 113

ANEXO A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............. 113

ANEXO B - PERMISSÃO [UTILIZAÇÃO DE CONDEÚDO DE ÁUDIO] ............. 116

ANEXO C - AUDIO 1 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ............... 117

ANEXO D - AUDIO 2 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ............... 124

ANEXO E - AUDIO 3 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ................ 127

ANEXO F - AUDIO 4 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA ................ 129

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1 INTRODUÇÃO

O estudo empírico com narrativa oral intitulado: “Memórias, imagens e o

cotidiano no Engenho Palma: percepções da antiga ex-moradora” corresponde ao

Trabalho de Conclusão de Curso [TCC] nas Ciências Sociais [Sociologia Bacharelado]

com a finalidade de aprofundar o tema e investigar a seguinte questão: qual a percepção

da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na

adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho Palma? Com interesse de

registrar e entender a realidade, o cotidiano e o funcionamento do Complexo da Casa

Grande gravei, transcrevi e analisei as narrativas de história de vida, memórias e

experiências pessoais da entrevistada na pesquisa.

Apoiada no tema e na questão problema apresento também alguns objetivos de

encosto [geral e específico] para auxiliar na busca de resposta ao objeto. Assim, no

objetivo geral destaco o interesse de analisar os conteúdos de narrativas de história de

vida a partir de memórias e experiências pessoais da antiga ex-moradora do Engenho com

foco no cotidiano e o funcionamento do Complexo da Casa Grande. Nada além do que

suas experiências vividas, sentidas e testemunhadas durante a infância e adolescência

impactada na trajetória.

No segundo objetivo viso registrar o perfil pessoal, familiar e o contexto cultural

[modo de vida, conto e ludicidade infantil]; a dinâmica dos acontecimentos dentro do

Engenho olhando para as relações sociais, culturais, religiosas, produtivas e a forma de

contanto entre o Senhor de Engenho e as instituições de distinção de privilégios de classe

[casamento, família, igreja, estado]; aquilo que entra em contraste com a vida dos

moradores trabalhadores da propriedade imersos à diferentes formas de exploração.

Autores clássicos e contemporâneos foram erguidos como referências e base para

o aprofundamento do tema e reflexão do objeto sociologicamente falando. Antonil

(1711); Simonsen (1937, 2005); Freyre (1963, 1967, 2003, 1996); Prado Jr (1981);

Oliveira (2000); Lisboa (2014), contribuíram com suas obras, discussões e reflexões

sobre as questões de pertinência histórica-sociológica. Malinowski (1976); Bauer (2003);

Jovchelovich; Bauer (2002); Mills (1982); May (2014); Bardin (2009), deram suporte e

segurança teórico-metodológica para observação direta no campo, na produção dos

dados, na análise e sustentação epistemológica do desenho investigativo. Sem dúvida, o

pensamento e as contribuições dos autores ajudaram na construção do trabalho do começo

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ao fim, desde a ideia embrionária da pesquisa até as últimas fases de registros no campo,

de análises e interpretação dos dados [conteúdos] em sua totalidade.

É de interesse acadêmico investigar o tema e o objeto, tende em vista a ausência

trabalhos científicos com narrativas de história de vida com essa riqueza de detalhes e

natureza do assunto. O que levanta forte necessidade de leituras outras a partir da empiria

dos fatos, das narrativas de história de vida da ex-moradora do Engenho como por

exemplo. Investigar, ouvir, registrar e analisar as experiências da informante de primeira

mão é a chave segredo da pesquisa.

Interessa conhecer o lado de dentro do Engenho Palma [situado na zona da mata

do estado de Pernambuco] berço de cultura, origem, nascimento e história do grande

interprete intelectual Gilberto Freyre referência neste estudo. Que tão bem e detalhado

conhecia o mundo do Engenho e suas façanhas internas, mas que infelizmente ele não

traduziu tudo, deixou invisível a percepção outra, o sentir e o olhar do ponto de vista dos

moradores e moradoras impactados na ponta oposta da realidade engenhesca. Os nascidos

dentro do Engenho, os filhos de gerações de trabalhadores exaustivamente explorados

pelo Senhor dono de escravos, da propriedade da terra, do poder e das vidas dominadas.

O que pensam e falam essa gente? No mínimo, as falas e as escutas rendem análises e

questões de alta complexidade. Aquilo que foi visto por um outro ângulo, sentido em

outros corpos, vivenciado por outras pessoas e dito com outros pontos de vistas objeto de

observação, são outras versões da mesma história. Então, foi dentro desse contexto que

me dirigir para o Engenho Palma guiada e na companhia da própria entrevistada ex-

moradora do lugar, para ouvir suas narrativas e registrar o relato de suas memórias

guardadas dentro e fora do ambiente do Engenho.

Trata-se de uma ex-moradora que carrega consigo uma história viva, real para si,

concreta enquanto experiências vividas. Pela primeira vez ela narra o cotidiano e o

funcionamento [no e do] Engenho Palma ala do Complexo da Casa Grande. E a partir dos

enredos, das memórias materializadas em códigos e palavras sobre sua infância e

adolescência, o mundo do Engenho foi contado na percepção adulta. E assim, mostrando

em narrativas, palavras, imagens e fotografias, o trajeto em movimento de seu passado

refeito em tempo real, para se localizar no mundo atual e presente.

O estudo proposto no TCC se conecta à outras pesquisas envolvendo a

entrevistada participante e seu contexto familiar, inclusive no trabalho de tese de

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doutorado em Educação [2018] intitulada: 1“O dono dos corpos, o incesto e a teia da

violência doméstica familiar no Brasil”. Ainda há um outro estudo já realizado para o

primeiro TCC em Ciências Sociais defendido em 2017 com título: 2“As faces da violência

doméstica familiar: do estupro ao abandono”. São trabalhos empíricos parte do mesmo

contexto sociocultural da família que vem sendo estudada desde 2015. Portanto, a ex-

moradora do Engenho Palma entrevistada nesta empreitada é a mãe biológica do grupo

familiar em estudo e acompanhamento técnico, porventura, também é a participante desta

pesquisa. Tratar-se de uma continuidade ou desdobramento do objeto da investigação da

tese.

Assim, o trabalho foca num arquivo de memórias ricas e abrangentes, detalhadas

e consistentes em conteúdo, onde a vida cotidiana da entrevistada no Engenho é

visibilizada e exposta de forma original, fidedigna e de primeira.

São conteúdos originais e inéditos registrados em quatro gravações [extraoficiais]

de áudio, durante os vários dias em que a pesquisadora esteve no campo empírico para

investigação do objeto de tese na região nordeste do Brasil. Especificamente, nas

estruturas e território da prefeitura municipal de Igarassu [região metropolitana do Recife]

estado de Pernambuco no mês de julho e agosto do ano de 2016. O assunto sobre o

Engenho Palma apareceu nos intervalos e pausas da pesquisa oficial [tese] naquele

momento. Nas paradas para o café e conversas descontraídas, os áudios sobre as histórias

1 É uma pesquisa de Tese de doutorado intitulada: “O dono dos corpos, o incesto e a teia da violência

sexual doméstica no Brasil”, aprovada em 27 de junho de 2017 pela Comissão Nacional de Ética em

Pesquisa - CONEP, sob o protocolo (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE:

56421316.9.000.0102 - Parecer: 2.140.696). Resumo da tese disponível em: <

https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao

.jsf?popup=true&id_trabalho=6327596&fbclid=IwAR3DwjuZPDvKeIL1coAfkt-

6MpyhaBNYItH20TFEf7gtKbCx6Gng-a0Ba-Q >. Acessado em: 08 de julho de 2018.

Nota: É um estudo de caso envolvendo mãe e filha vitimadas de violências domésticas e abusos sexuais

praticados pelo mesmo agressor [marido x pai] das vítimas.

2 AZEVEDO, Josefa Janete de. As faces da violência doméstica familiar: do estupro ao abandono. 143f.

(Monografia de Graduação) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.

Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciassociais/files/2018/02/Monografia-Josefa-

Janete-de-Azevedo-090517.pdf >. Acesso em: 29 de abril, 2017.

Nota. Trata-se de um Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais [Licenciatura] com pesquisa

documental baseada em formulários de denúncia de violência doméstica e incesto familiar envolvendo um

pai biológico, 4 filhas e 1 filho, todos irmãos e pertencentes do mesmo grupo consanguíneo. Foram tomados

para a análise conteúdos de narrativas de depoimentos auto-descritivos das filhas (o) contra o pai agressor.

Apesar de hoje serem pessoas adultas, mas na infância e adolescência foram vítimas de violência doméstica

praticada pelo pai-agressor na convivência com a família. Razão que em 2015 ofereceram denúncias contra

o mesmo.

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de vida, memórias e experiências da participante no Engenho foram gravados. De forma

livre e consciente os conteúdos gravados também foram autorizados conforme o

protocolo da pesquisa oficial da tese intitulada “O dono dos corpos, o incesto e a teia da

violência sexual doméstica no Brasil”. Contudo, todo material de produção extra esteve

fora do roteiro e do planejamento da investigação principal, por isso, está sendo objeto de

estudo e analise neste artigo extraído do TCC. Apesar de estar conectado ao tema de tese,

mas por questão de volume e densidade preferi deixar na reserva para esta oportunidade

investigativa e analítica.

O material extraoficial foi transcrito, tratado e organizado em categorias de

análises à luz do método qualitativo e das teorias sociológicas reflexivas para justa

discussão e apresentação.

Porventura, nesse contexto, o desenho metodológico se perfaz e se desenvolveu

guiado pelo planejamento inicial do estudo. Razão que também se conecta ao plano de

tese enquanto escolha da epistemologia do método qualitativo e das técnicas de

observação direta e da entrevista narrativa oral para resgate de memórias e experiências

de história de vida. Assim como, a análise dos conteúdos e interpretação dos dados

conforme as categorias de reflexão e decodificação das mensagens. Desse modo, defini a

estruturação do trabalho e organização das categorias em capítulos centrais

[metodológico, teórico-reflexivo e os resultados [achados].

No primeiro, apresento a epistemologia do método para aprofundamento do

estado da arte da pesquisa, o artesanato intelectual e prático olhando às teorias e técnicas

utilizadas na captura dos dados. No segundo, reflito com os autores [historiadores e

sociólogos] os assuntos pertinentes ao mundo do Engenho, olhando, obviamente, para as

dimensões do sistema funcional do Complexo, as ações dos indivíduos e o funcionamento

integrado gerador de impactos na vida social dos envolvidos nos processos produtivos,

culturais, sociais, institucionais misturados à vida cotidiana. No terceiro, quarto e quinto

capítulos foco nas narrativas do cotidiano e funcionamento do Engenho olhando a

dinâmica do Complexo da Casa Grande, buscando respostas para o objeto, objetos e os

achados da pesquisa. Nada mais que isso, porém, tudo isso.

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2 EPISTEMOLOGIA DO MÉTODO, METODOLOGIA E TÉCNICAS

O tema “Memórias, imagens e o cotidiano no Engenho Palma: percepções da

antiga ex-moradora” do TCC, propôs um estudo de natureza empírica realizado no campo

de investigação da forma compartilhada. Explico, trata-se de um trabalho investigativo

de percurso relativamente permanente no campo por estar enquanto pesquisadora imersa

sob a realidade de interesse desde 2015. E assim produzindo pesquisa, com focos

diferentes, porém no contexto sociofamiliar e cultural do mesmo grupo de origem. Me

refiro a participação de membros vinculados à mesma família consanguínea, apesar das

temáticas e objetos de investigação distintas, mas, em certa medida estão todos

conectados intrinsecamente.

Neste caso, o TCC em destaque é parte desse desdobramento interligado ao

conjunto teórico-metodológico do qual adotei para realização dos estudos. Dentro dessa

plataforma de campo e de investigação, o Trabalho de Conclusão de Curso de graduação

em Sociologia tomou corpo e se fez como uma continuidade investigativa conectada ao

todo complexo conhecido até o momento.

A partir desse contexto do Engenho abro a discussão teórico-metodológica

reivindicada pelo tema e o objeto da pesquisa para desenvolver e colocar em prática o

desenho metodológico da pesquisa. Para assim proceder com a observação direta e

participante tomando obviamente Malinowski (1976) de referência no que tange o

emprego de técnicas de observação no campo empírico e no registro de dados em diário

de campo. Sobre a entrevista com narrativa oral de forma livre e espontânea, assim como,

o processo de escuta qualificada enquanto a participante narrava suas memórias de

história de vida, Bauer (2003) e Jovchelovich; Bauer (2002) deram conta desse artesanato

prático. Depois, ampliada nas reflexões e contribuições analítica de Bardin (2009).

Os conhecimentos sociológicos e as técnicas de produção de dados, a metodologia

colocada em movimento neste estudo, deram total amparo à pesquisa, os autores

selecionados e as experiências profissionais serviram de fundamento e segurança do

estudo. O artesanato intelectual e prático se conectou com as habilidades e competências

técnicas testadas na prática operacionalizada dentro do campo. O que foi fundamental

para proceder com os encaminhamentos, as mediações no Engenho e assim estabelecer

um traçado combinado com o campo e os contatos permanentes com a participante da

pesquisa. Já que a produção dos dados aconteceu em dois ambientes distintos. Na primeira

etapa, as gravações em áudio aconteceram dentro da Casa da Mulher no Município de

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Igarassu [região metropolitana do Recife-Capital]. Enquanto que as observações diretas

e participativas para registro dos cenários e captura de fotografias recentes aconteceu

dentro do Complexo da Casa Grande no Engenho Palma [interior do estado de

Pernambuco] em contexto de visitação e constatação do patrimônio histórico.

As experiências da pesquisadora ajudaram na realização de todas as etapas, na

escuta apurada e qualificada da narração, na tomada de decisões corretas com os devidos

cuidados no registro dos dados e na oportunidade de visitação do Engenho. Onde os

protocolos e os limites foram levados bastante a sério. Para assim então realizar os dados

mais importantes com sucesso e em tempo real.

Todos os encaminhados foram realizados em etapas num movimento simétrico,

sem interferir no cotidiano da participante nem na rotina do Engenho. O que permitiu a

abertura de uma agenda de forma participativa e compartilhada no sentido de incluir as

melhores sugestões e valorizar as opiniões da informante guia. Essa foi uma experiência

também extraordinária e enriquecedora do trabalho.

A agenda e os combinados foram colocados em movimento incluindo os

encontros e reuniões com a ex-moradora do Engenho para traçar o plano da visitação ao

Complexo, tendo como guia a própria participante ex-moradora e nativa do lugar. A partir

desses enunciados dei início à reflexão epistemológica fundante da metodologia e das

técnicas de escolha.

A proposta investigativa do TCC em Sociologia se funda no artesanato intelectual

e prático no método e na metodologia da pesquisa qualitativa que Eco (1991); Becker

(1999); Mills (1982) oferecem em suas contribuições ao método, não somente isso, mas,

também, por ser os metodólogos de referências pessoal, adotados para fundamentar esta

e outras pesquisas empíricas percorrendo o caminho da ciência. São autores que deram

base e sustentação ao objeto desde a proposta inicial pensada para este estudo.

Eco (1991), destacar que a epistemologia do método é quem permite o(a)

pesquisador(a) pensar de forma sistematizada e profunda sobre o seu objeto de pesquisa,

de como operar no campo e colocar os elementos em contato e, ao mesmo tempo fazer

ciência de forma comprometida, já que a criação científica nada mais é do que uma arte

individual e coletiva ao mesmo tempo. Nada além do que uma atividade intelectual

artística, criativa e intransferível, é quando o(a) pesquisador(a) pensa, produz ideias,

organizando-as e construindo seu objeto internamente, no silêncio mental. E depois se

transforma em uma instituição criadora e criada por ele(a) mesmo. Finalmente, a pesquisa

é a essência da arte intelectual e prática que se materializa no campo.

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Eco, também fala sobre a suposta imparcialidade e neutralidade do(a)

investigador(a) na pesquisa. Ele contrapõe a essa ideia de imparcialidade e neutralidade,

ao contrário disso, pensa e diz ser necessário que o tema e o objeto corresponda aos

interesses de quem investiga, isso deve aparecer em primeiro lugar. Uma vez que é o(a)

pesquisador quem busca o campo, se dispõe a investigar, demanda seu esforço na busca

de fontes acessíveis, dos espaços seguros, de materiais manuseáveis, dos informantes e

todo os encaminhamentos para o desenrolo do objeto. Para que assim possa produzir seu

trabalho de investigação no campo empírico ou no gabinete institucional ou particular.

Além de tudo isso, precisa atender as demandas de cada pessoa envolvida no

processo, observar se método de escolha corresponde a proposta, se as técnicas são

adequadas e aplicáveis, a viabilidade de realização e outros elementos. O termômetro é

esse, o próprio investigador é quem mede a temperatura do seu trabalho. Se tudo estar ao

seu alcance, se é possível estabelecer mediação, se tem a ver com as suas experiências,

se é um meio familiar em termo de controle e domínio do assunto de interesse.

Então, a pesquisa cientifica exige do(a) pesquisador(a) comprometido e envolvido

com a sua arte de pesquisar, o próprio corpo e a mente intelectual e prática totalmente

imersa no campo, no todo complexo do em torno que cerca o objeto de estudo.

Becker (1999), também contribui com essa discussão. Ele presume que o

pesquisador(a) estude os métodos de fazer pesquisa como seu campo do trabalho

intelectual, profissional e prático, como um livro de leitura de cabeceira. Desenvolver

pesquisa qualitativa no campo empírico não é uma tarefa fácil, requer domínio e técnicas

precisas. Saber fazer escolhas metodológicas, as teorias explicativas e esclarecedoras do

tema, o assunto de estudo, tudo deve estar interligado, claro e alinhado ao mesmo tempo,

e para isso precisa de uma vida de estudos dos métodos.

Sabendo que o campo, a realidade, objeto e os informantes tem história e

historicidade, tempo e espaço sendo ocupado em diferentes contextos. Portanto, requer

enfoque de interesse e experiências profissionais abundantes. E isso significa quase

sempre viver com inquietações. Até para a organização do trabalho requer justificação,

relações hierárquicas envolvendo coisas, pessoas, instituições, conceitos, teorias,

situações, fatos e todo conjunto associativo ao objeto. Há sempre uma organização

estruturada interna e invisibilizada em cada etapa do processo investigativo, onde tudo é

pensado em detalhes e racionalmente de forma silenciosa e oculta, até ser colocado em

prática.

No mínimo, essa é uma relação de alma do(a) pesquisador(a) com a sua pesquisa.

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No artesanato intelectual e prático de Mills (1982), essas ideias fazem muito sentido para

a pesquisa e a vida do(a) pesquisador(a). O autor se refere ao cientista social e sociólogo

para dizer que este é acima de tudo artesão intelectual e prático com potencial cientifico

bastante elevado, mas também portador de mentes inquietas ambulantes na sociedade.

O seu lugar é dentro das ciências humanas e sociais por ser o seu lugar de ofício,

destino e profissão legitimamente. Aliás, para este a pesquisa é um fazer precedido por

um ato de reflexão fortalecido na experiência individual e na experiência do outro. Há

uma interdependência quase involuntária no emocional investigativo.

Mills, chama atenção com relação a crença. Para a ideia de que cada novo trabalho

de pesquisa seja realmente algo novo. O autor destaca que cada pesquisa não é exatamente

nova como imaginamos ser, mas sim uma atividade investigativa fruto de experiências

pessoais, profissionais, de contextos anteriores que estão sendo apenas atualizadas com a

nova-antiga questão colocada no hoje.

Contudo, a pesquisa empírica envolvendo o Engenho Palma, apesar dos conteúdos

de narrativas serem inéditos, mas o assunto de abordagem e investigação não figura algo

novo, um contexto e objeto desconhecido no Brasil, estar sendo apenas atualizado com

outras formas de mostrar uma realidade antiga. Nesse sentido, também concordo com

crítica do autor.

O diferencial estar no particular da pesquisa, nas percepções críticas e reflexivas

sobre os acontecimentos, também na ação criativa da pesquisadora no caso. Sabendo que

o assunto sobre o Engenho de cana-de-açúcar é velho e antigo, contudo, a proposta de

investigação deve ser eficiente, séria, clara e engenhosa do ponto de vista prático,

profundo e científico. A surpresas é que vão apontar o inédito.

É um nível de abstração intelectual e prática que exige um grau de raciocínio

lógico para o isolamento de cada questão a fim de selecionar os conteúdos

correspondentes e saber fazer as indagações adequadas, pertinentes ao objeto. Somente

assim é possível responder o questionamento feito ao novo-velho tema-problema

colocado sob novo raciocínio em tempo real. Praticamente é isso, o artesanato intelectual,

metodológico e prático gira em torno do velho objeto, questão de partida, com uso de

elementos novos, olhares e reflexões atualizadas talvez.

As relações estabelecidas entre teoria e método, o pensar intelectual e o fazer

prático é o que compõe as partes e o todo investigativo. Talvez, o esforço seja para

acrescentar algo que ainda foi pouco explorado, podendo estar oculto ou desconhecido

para a ciência. Mas, de qualquer modo, investigar um objeto qualquer é preciso ter em

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mente que o projeto de pesquisa já nasce velho. Também existe a possibilidade de

iluminação das falsas ideias e opiniões em torno da realidade e objeto investigado

anteriormente, o aprofundamento ou descamação de certo entraves tende desmistificação

com mais clareza algo que ficou relativamente mal explicado. Para tal, é importante estar

aberto e preparado para críticas, reformulação de questões se necessário for por outro

investigador, (MILLS,1982, p. 223-226).

É parte da imaginação sociológica, intelectual e prática que acompanhou a

pesquisa e a pesquisadora durante todo percurso artesanal do estudo no campo

investigativo. Estudar o mundo do Engenho não é tão simples assim, entrar dentro do

Complexo da Casa Grande ouvindo a voz de quem viveu a diversidade do lugar causou

arrepios, curiosidades e náuseas muitas vezes. O prédio arquitetônico é relativamente

fechado, controlado, vigiado. Não há muralhas visíveis, mas há armamento pesados,

carregado de chumbo e pólvora nas mãos de pessoas vivas, trinadas e reais. Uma força

silenciosa continua em operação dentro dos espaços.

Entrar, permanecer e sair do Complexo da Casa Grande [Engenho, Igreja, Senzala,

Propriedade] na companhia da entrevistada foi uma experiência sem réplica. Visitar as

estruturas históricas do sítio arqueológico vivo no lugar, entrar nas repartições das

estruturas físicas e identificar o lugar ocupado por cada indivíduo, também não foi um

acesso simples ou fácil de realizar. Há protocolos de contato, controles e autorizações,

limites e permissões para entrar em cada recinto. No Engenho os herdeiros da propriedade

continuam exercendo seu poder no mando dos jagunços e sentinelas olheiros, tocaias

escondidos em todo lugar.

Há um discurso separatista operante no lugar que preserva o lado de dentro do

Engenho e a vida da família dominante com não pertencente a sociedade de indivíduos

comuns. O Complexo da Casa Grande é um exemplo disso, ativa em todos os cômodos e

ambientes a imaginação simbólica que a vida dos habitantes privilegiados e da família do

Senhor pertence a um mundo à parte. Não são pessoas de vida normal, são seres elevados

pelo poder que possui. Estão em outro patamar da espécie.

Observar, sentir e perceber a energia nos ambientes fixos [igreja, senzala, tronco

de tortura, maquinários do Engenho, mobília e objetos de valores de uso pessoal e

doméstico dos indivíduos, os esconderijos dos escravos [senzala e casa dos moradores],

o curral do gado, as terras para plantação de culturas e cana-de-açúcar, tudo está lá. Toda

olaria simbólica e prática ainda em operação de outra forma, foi vista e tocada de perto,

sentida na energia do corpo e no tato das mãos. As coisas que tem significados,

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identidade, idade e tempo, tudo sendo mostrado o seu valor sentimental e monetário de

uma época. Um indumentário místico.

Os objetos corporificados na história do Complexo foram reconstituídos em tempo

real, com reinvenção de um passado recente para pensar o presente da pesquisa. E ali,

abrir um arquivo com inventário particular cheio de realidades narradas com palavras,

imagens e percepções outras.

A ex-moradora do Engenho reconheceu cada detalhe e recanto dos ambientes por

ela explorado na infância. A história de cada objeto utilizado no cotidiano por homens e

mulheres que circulava nas estruturas. O encontro com o Engenho foi mais do que um

reconhecimento da estruturada com a estrutura, com o objeto de contato, emanou força

de uma relação íntima, de empatia e identidade pessoal. Um momento de reviver histórias,

situações e realidades como se tivesse em tempo real, a entrevistada lembrava de tudo.

Uma memória lúcida de gerar espanto, o que permitiu compartilhar suas

experiências profundidade para fazer a viagem no tempo. Pude observar isso acontecendo

e fazendo parte também, ouvindo sua voz em narração num ritmo entusiasmado tateando

as estruturas físicas, tocando nos objetos com vida e história. Aqueles que tanto conhecia

de perto pela quantidade de uso em determinado tempo e lugar do cotidiano. Um

aglomerado de alvéolos que se misturava como parte de uma só história.

Enquanto a entrevistada caminhava ia narrando os enredos e a pesquisadora

registrando o passo a passo da visita guiada, o que rendeu uma extraordinária memória

de experiências empíricas com os pés no campo e no chão da fábrica fértil. Um feito para

agregar à vida e a carreira profissional. O estar lá fez a diferença na superação dos

obstáculos, na insegurança imaginativa própria do desconhecido. Os olhos viram e a

mente registrou a passagem única e intransponível.

Nesse sentido, May (2014), propõe a necessidade de observação de alguns

critérios no campo para avaliação previa da qualidade dos conteúdos produzidos na

empiria dos fatos. É importante verificar se o conteúdo de análise apresenta autenticidade,

credibilidade, representatividade, clareza e se é compreensível para a análise

interpretativa. Uma vez que a “[...] análise qualitativa enfatiza a fluidez do texto e do

conteúdo no entendimento interpretativo da cultura” alheia, (MAY, 2014 apud SCOTT,

1990, p.50).

O autor citado valoriza a análise qualitativa de conteúdos olhando a ideia de

processos ou contexto social em que se insere a pesquisa, nesse caso, o texto deve ser

abordado a partir do contexto de sua produção, que por sua vez seleciona o que é relevante

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para a pesquisa observando se há tendências, sequências, regularidades, padrões ou

ordens implicadas nas partes e no todo analisado, (MAY, 2014).

Finalmente, Bardin (2009, p.123), reconhece que “[...] nem todo o material de

análise” está em condição de ser sistematizado com precisão objetiva. Portanto, é preciso

cuidar para produzir análises consistentes, críticas, interpretações coerentes que

corresponda de fato à realidade do campo, do objeto e seus objetivos. Já que o material

de análise qualitativa geralmente vem carregado de um elevado teor de subjetivações;

tanto do ponto de vista do entrevistado quanto do entrevistador, ambos estão implicados

com as mesmas situações. Por isso, carece de todo cuidado, analisar e interpretar com o

máximo de zelo e atenção, é uma dica.

Talvez, o Software [Nvivo 11] enquanto ferramenta tecnológica de precisão, seja

útil e utilizado para decodificação dados e revelação de categorias analíticas. Poderá ser

utilizado como ferramenta metodológica outra e de natureza sofisticada. É uma

possibilidade forte. Finalmente, destaco a seguir o desenho metodológico proposto para

resumo e organização da pesquisa.

2.1 DESENHO DA PESQUISA

ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA

Problema de Pesquisa Qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o

cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na

adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho

Palma?

Objetivos 1 - Analisar os conteúdos de narrativas de memórias e

experiências pessoais da antiga ex-moradora do Engenho

Palma, sobre cotidiano e funcionamento do Complexo da

olhando as experiências vividas, sentidas e testemunhadas

durante a infância e adolescência no local.

2 – Registrar a dinâmica dos acontecimentos dentro do

Engenho com foco nas relações de convivência sociais,

culturais, produtivas e a forma de contanto entre o Senhor

de Engenho, as instituições produtoras de distinção social

e os moradores da propriedade.

Questão norteadora 1 – O que revelam os conteúdos de narrativas de memórias

e experiências pessoais da antiga ex-moradora do

Engenho Palma, sobre cotidiano e funcionamento do

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Complexo da olhando as experiências vividas, sentidas e

testemunhadas durante a infância e adolescência da

entrevistada?

[Perfil pessoal, origem familiar, contexto sociocultural]

2 – Como a vida no Engenho era sentida, vivida e

percebido pela entrevistada criança revelado na vida

adulta?

[Modo de vida, conto e ludicidade infantil]

3 - Qual era a dinâmica das relações de convivência

sociais, culturais, produtivas e a forma de contanto entre

o Senhor de Engenho, as instituições produtoras de

distinção social e os moradores da propriedade?

[Casamento, família e o Complexo da Casa Grande]

Delimitação e Local Região Nordeste do Brasil, Estado de Pernambuco,

[espacialidade e tempo urbano e rural]. 1 - Casa da

Mulher do município de Igarassu [realização de

narrativas]. 2 - Engenho Palma [visitação, observação,

registros de imagens].

Metodologia e Técnicas Pesquisa qualitativa, observação direta-participante,

entrevista narrativa oral de história de vida.

Análise de conteúdo, interpretação dos dados a partir das

categorias de reflexão e a decodificação.

Participante e critérios Uma informante entrevistada de primeira mão ex-

moradora do Engenho Palma-Pe, adulta, nascida e criada

na propriedade do Engenho. Narrativas de memórias,

experiências pessoais e relato do cotidiano local [forma

livre e espontânea].

FASES DA PESQUISA E PRODUÇÃO DOS DADOS

Primeira etapa

Casa da Mulher do Município de Igarassu-Pe [região

metropolitana do Recife-Capital]. Local de realização de

entrevista narrativa oral com a antiga ex-moradora do

Engenho Palma-Pe.

Segunda etapa Visitação guiada [companhia da entrevistada] ao

Engenho Palma. Local de visita: interior do estado de

Pernambuco [zona da mata-região canavieira]. Distancia

da capital [aproximadamente duas horas].

Fontes de observação e

consultas

Depoimentos, diário de campo, agravação em áudio,

fotografia de acervo pessoal, histórico e fotografias sobre

o Engenho publicadas em sites).

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COMPOSIÇÃO DO QUADRO ANALÍTICO

Parte I Perfil, origem e contexto sociocultural.

Parte II Modo de vida, cultura e ludicidade infantil.

Parte III Casamento, família e o complexo da casa grande.

Parte IV Cotidiano e funcionamento do engenho palma.

Parte V Achados da pesquisar [Nvivo 11]. Considerações finais.

2.1.1 Campo, Entrevista e Dados

Diante de uma entrevistada ex-moradora de um Engenho, nascida e criada na

propriedade hoje patrimônio histórico da região, um convite entusiasmado para conhecer

o Complexo da Casa Grande e pisar no chão que ela pisou não podia ser recusado.

Antes da chegada a narração livre e espontânea havia sido começado muito antes

da viagem, mas até aquele momento não tinha chegado ao fim. Era só uma oportunidade

de encontro e contato que a narração das histórias inacabadas recomeçava de novo. Não

encontrei outra forma de valorizar a escuta a não ser ouvir igualmente entusiasmada e

interessada no assunto com o mesmo vigor da informante. O passo a passo da investigação

foi iniciado sem prever o fechamento do processo. Foi acontecendo naturalmente e os

dados produzidos em partes.

O convite feito e aceito, livre e espontâneo para visitar e conhecer o Engenho que

tanto a entrevistada deseja revisitar o local de suas origens. Uma senhora idosa com idade

de 67 anos, lúcida e aparentemente saudável que em julho de 2016 se dispôs revelar as

vivencias e experiências pessoais, familiares, culturais e a vida vivida dentro da

propriedade do Complexo. Onde seu avô [família] estabeleceu moradia e trabalho de

subsistência.

Entre julho e agosto de 2016 iniciei no campo [cidade de Igarassu-Pe] a gravação

de suas narrativas extras oficiais como forma de registro de uma outra passagem de sua

vida pessoal. Aquilo que ficaria fora do roteiro da tese como já sinalizei.

De forma bastante comprometida, colaborativa e interessada, não somente com

relação a esse quadro-contexto de estudo para TCC, mas também em todas as demais

frentes investigativas de outras pesquisas já desenvolvidas no campo, com temas, objetos

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e conteúdos distintos, a participante se dispôs em participar. É a sua característica pessoal,

solidária e acolhedora.

Outro aspecto importante é que os conteúdos do TCC, os registros de gravação

extra, apesar de estar fora do roteiro de pesquisa de tese seguiu as orientações e regras do

protocolo de pesquisa oficial aprovado pelo CONEP. Por se tratar de um complexo tema,

objeto e contexto teve sua tramitação, aprovação, assinatura e autorização de uso de

materiais, imagens e áudios de pesquisas realizadas para aquele protocolo conforme o

[Termo de Consentimento, Livre e Esclarecido – TECLE e Termos de Permissão para

Utilização de Gravação em Áudio] disponíveis nos anexos A e B. Aprovado em 27 de

junho de 2017 pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP, sob o protocolo

(Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE: 56421316.9.000.0102 –

Parecer: 2.140.696).

Desse modo, os conteúdos oriundos de gravações extras oficiais, utilizados para

estudos neste TCC, faz parte do esquema oficial da pesquisa de tese produzida no mesmo

campo, durante os diferentes intervalos destinados para lanches e cafés compartilhados

entre a pesquisadora e a participante da pesquisa. As vezes também nos passeios

estratégicos no jardim da Casa da Mulher do Município de Igarassu/Pe [local de

realização das entrevistas oficiais. As pausas feitas para alívio das tensões daquele

momento serviram de levante de outros dados conexos, porém desdobrados em páginas.

Foram em momentos peculiares e espontâneos que nasceram as narrativas sobre

o Engenho Palma, depois de um tempo transcritos e utilizadas como material de pesquisa

empírica complementar usada para este TCC. É parte do mesmo complexo investigativo

felizmente. O que verdadeiramente rendeu extraordinários relatos sobre o mundo restrito

do Engenho misturado com a vida da moradora e sua família. A outra face da história, o

outro lado do funcionamento do Engenho, das manifestações no dia a dia, os

acontecimentos marcantes da infância e adolescência inocente. São relatos inéditos de

ouvir e conhecer.

São aproximações para além do cotidiano elementar, mas sim como experiências

reais, contatas com enredo [início, meio e fim] de histórias concretas. Um Brasil da

década de 50 e 60 sendo mostrado na janela do tempo, aquele que talvez poucos

brasileiros conheça o lado de dentro de um Engenho instalado no mundo rural, fechado,

controlado e sentido na própria pele. Essa é a parte mais incrível.

As gravações extras foi uma escolha combinada entre a pesquisadora e a narradora

das histórias, uma vez que os assuntos de pertinência estavam sendo contados em detalhes

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e de forma espontânea, pedi para gravação da riqueza da fala e de imediato foi aceito. A

motivação e o entusiasmo da entrevistada em contar suas histórias no Engenho chamou

bastante atenção. A demonstração de saudades e sentimentos emocionados sobre sua

infância e adolescência no lugar de nascimento, foi algo que considero incomum ou nunca

visto quando comparado com as experiências em outras pesquisas.

Foi assim que ela resgatou suas ricas lembranças de um passado que não passou

simbolicamente. Construiu enredos criativos, risonhos, alegres, bem-humorados para

contar as memorias que guardou por tanto tempo e nunca havia contato para ninguém.

Uma voz adulta vivendo aventuras infantis com uso de linguagens próprias, sotaques,

mímicas e códigos indecifráveis as vezes, muitas palavras com representação e

significado de lugar e objeto relativamente desconhecido ou incomum para os ouvidos.

O brilho do seu olhar para a paisagem do Engenho, os cheiros sentidos nos

ambientes, as emoções sentidas no cotidiano, tudo isso estava nítido em sua mente com

perfeita clareza e lucidez. A capacidade criativa mostrada nas estruturas mentais e o

desenvolvimento da cognição lúdica, de certo modo permitiu fazer a trajetória mental que

tanto desejava reviver. Até o nome das pessoas [moradores, vizinhos, trabalhadores,

visitas, festas e acontecimentos] foram resgatados com precisão, tudo parte do seu dia a

dia.

Em cada intervalo, pausas, passeios, cafés, lanches, viagens, surgiam novas

histórias sobre o Engenho, durante a visitação e permanência no local também

acompanhou sua voz suave falando cada detalhe, como se tivesse num encontro

terapêutico de longa duração, rico em conteúdo, profundo em significado e autentico em

detalhes.

Diante desse conjunto narrado e transcritos, tratados e organizados em categorias

de análise, exponho o texto e os cenários em fotografias de arquivo pessoal. O que

permitiu responder o problema de pesquisa e seus objetivos de apoio. Esse foi o esforço

de luta, encontrar o caminho amparada nos conhecimentos acumulados, nas teorias

sociológicas, conceitos e reflexões críticas, na metodologia de escolha, a base para

fundamentar e responder o objeto desta pesquisa, o que se mostra no capítulo teórico na

sequência.

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3 ENGENHO DE CANA-DEAÇÚCAR NO BRASIL: REFLEXÕES HISTÓRICO-

SOCIOLOGICAS

Neste capítulo, elegi alguns intelectuais clássicos e contemporâneos, cientista

social [sociólogos] para fundamentar o estudo e ajudar na reflexão do tema e o objeto de

pesquisa.

Sobretudo, olhando os discursos simbólicos e as ações práticas produtoras e

reprodutoras de relações sociais de interesse produtivo, envolvendo genealogia familiar,

indivíduos e grupos dominantes com influências e relações sociais fortes na política, na

economia, nas atividades culturais e religiosas do estado e da igreja enquanto objeto de

análise e reflexão. No contraponto com outras realidades vivenciadas por moradores

trabalhadores do mesmo território marcado por distinção. Me localizo a partir das

narrativas de história de vida da antiga ex-moradora entrevistada na pesquisa, assim como

seus relatos sobre o cotidiano [no, do] Complexo da Casa Grande incluindo o 3Engenho

Palma localizado no interior do estado de Pernambuco. Me refiro aos efeitos das ações

misturadas com a realidade impactada na vida dos indivíduos, especialmente os sem

privilégios ou beneficiamento das riquezas por eles produzidas.

Para tal, autores, como: Antonil (1711); Simonsen (1937, 2005); Freyre (1963,

1967, 1996, 2003); Prado Jr (1981); Oliveira (2000); Lisboa (2014) e outros igualmente

importantes, foram fundamentais na explicação e esclarecimento das questões de

pertinências vinculadas ao assunto e, também, no auxílio do artesanato intelectual ou na

tessitura do texto acadêmico para dar cientificidade e consistência. A partir desses

enunciados proponho discutir a arqueologia do Engenho Palma olhando aquilo que faz e

perfaz dentro do Complexo na percepção da entrevista ex-moradora do local.

Significa entrar na vida dela e dos habitantes para conhecer as histórias de vida

rela, os objetos materiais e materiais, as relações impregnadas de sentidos e

representações dentro e fora da Casa Grande, da Igreja, na política e no trabalho

produtivo. Nas relações de convivência social em meio as atividades culturais como

possibilidade de reflexão, crítica e debate.

Primeiramente, levo em conta o que Freyre diz a respeito do tipo de solo-terra,

clima e as condições adequadas ou adaptadas no Brasil que favoreceu todo esse processo

3 ENGENHO PALMA DA COMARCA DE BOM JARDIM. Atual referência do patrimônio histórico

do agreste de Pernambuco.

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engenhesco começando pelo Nordeste do país. Diz logo que "[...] no Nordeste da cana-

de-açúcar, a água foi e é quase tudo. Sem ela não teria prosperado do século XVI ao XIX

uma lavoura tão dependente dos rios, dos riachos e das chuvas; tão amiga das terras

gordas e úmidas e ao mesmo tempo do sol", (FREYRE, 1967, p. 19).

O autor começa sua discussão sobre o solo de massapê, afirma ser um solo escuro,

pegajoso [rico em argila], em húmus, que tem fertilidade. Na geologia, o massapê como

é chamado no Nordeste e no Brasil, esse tipo de solo é o segundo mais fértil do mundo,

ficando atrás da "terra roxa", embora apresente cor avermelhada. Contudo, esse solo é o

resultado de milhões de anos de decomposição e sedimentação de origem basáltica

conforme os estudos da geologia em especial. A "terra roxa" e o massapê são

considerados os solos mais ricos e férteis no Brasil. Ambos, foram e são explorados,

primeiramente, para cultivo de cana-de-açúcar e, segundo, para a plantação de café.

Ao erguer os estudos de Freyre, ele mostra que:

O massapê é acomodatício. É uma terra doce ainda hoje. Não tem aquêle ranger

da areia dos sertões que parece repelir a bota do europeu e o é do africano, a

pata do boi e o casco do cavalo, a raiz da mangueira-da-índia e o brôto da cana,

com o mesmo enjôo de quem repelisse uma afronta ou uma intrusão. A doçura

das terras de massapê contrasta com o ranger da raiva terrível das areias sêcas

dos sertões. A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias

outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo Nordeste

e no Recôncavo se explica por condições particularmente favoráveis de solo,

de atmosfera, de situação geográfica, (FREYRE, 1967, p. 7-8).

Então, foram as condições da terra e do clima que levou a ocupação dela, a posse

e instalação do Engenho parte de um grande Complexo onde a Casa Grande, a Igreja, a

Senzala e o Engenho dependia da mesma matriz, a terra fértil. E com ela veio toda

estrutura erguida como rocha dura, todos os conflitos que persistem até os dias atuais.

O drama que se passou e se passa ainda no Nordeste não veio do fato da

introdução da cana, mas do exclusivismo brutal em que, por ganância de lucro,

resvalou o colono português, estimulado pela Coroa na sua fase já parasitária.

Dêsse drama, um dos aspectos mais cruéis foi o da destruição da mata,

importando na destruição da vida animal e é possível que em alterações do

clima, de temperatura e certamente de regime de águas. (FREYRE, 1967, p.

46).

Não encontro dúvida sobre a reflexão do autor, concordo e também constato

empiricamente e culturalmente como conterrânea que sou, que as condições favoráveis

encontradas por poucos indivíduos exploradores e grupos privilegiadas [famílias] do

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Nordeste, contrasta com as muitas pessoas desfavorecidas, exploradas e escravizadas para

esse fim, o enriquecimento de alguns, a acumulação capitalista dos senhores de engenho

de cana-de-açúcar.

As condições dadas pela natureza e apropriação dela motivado pela cobiça

humana, teve efeito com a mesmo força e destruição semelhante a que sofreu os homens

e mulheres escravizadas sobre ela. Até, nada mais conseguir produzir sobre os corpos

danificados. O corpo das gentes escravizadas e a superfície da terra igualmente explorada

no Nordeste do passado, não tão distante assim. Ambos os corpos, a terra e o humano

sofreram os mesmos maus-tratos e impactos de empobrecimento. Com essas palavras,

adentro para localizar em Pernambuco o Engenho Palma e suas influências na vida da ex-

moradora entrevistada neste trabalho. Antes disso, exponho um breve histórico sobre o

tema.

3.1 Pernambuco – Oficial Capitania dos Engenhos do Brasil

A linha do tempo é o marco divisor da história sobre o surgimento e a evolução

dos Engenhos primitivo produtor de cana-de-açúcar e o açúcar industrializado no Brasil,

começando por Pernambuco, depois, Bahia e o resto do território colônia, até alcançar a

sofisticação e automação das usinas no Brasil Nação.

Se no ano de 1535, Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) fundou o primeiro

engenho de cana-de-açúcar na capitania de Pernambuco, três anos após o primeiro, outros

três Engenho já haviam sido instalados naquela região. Nos estudos de Lisboa (2014), é

possível observar que após a 4Restauração Pernambucana de 1655, a capitania do estado

possuía 109 Engenhos em funcionamento, devendo a estagnação da economia açucareira,

possivelmente devido aos impactos dos conflitos com os holandeses na colônia.

Considerando que “[...] poucos anos antes da invasão holandesa, Pernambuco possuía um

4 Insurreição Pernambucana ou chamada Guerra da Luz Divina. Em Pernambuco, registrou-se no

contexto da segunda das invasões holandesas do Brasil, um conflito entre pernambucanos e os holandeses

ocupantes dos territórios dos Engenhos, o que culminou com a expulsão destes numerosos indivíduos

[holandeses] da região Nordeste do país, especificamente de Pernambuco, tornando posse à coroa

portuguesa do território relativamente conquistado. Em 15 de maio de 1645, reunidos no Engenho de São

João, 18 líderes insurretos pernambucanos assinaram compromisso para lutar contra o domínio holandês

na capitania daquele estado. O movimento integrou forças lideradas por André Vidal de Negreiros, João

Fernandes Vieira, Henrique Dias e Filipe Camarão, nas célebres Batalhas dos Guararapes, travadas entre

1648 e 1649, que determinaram a expulsão dos holandeses do Brasil, quiçá, para sempre. Embora, tenham

deixado registros e grandes influências na capital.

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número de engenhos superior ao que existia em 1655. Em 1623 existiam 137 engenhos2

e em 1629 a capitania contava com 150 deles”, (LISBOA, 2014, p. 197).

A autora lembra que a estagnação e diminuição do número de engenhos durante o

período holandês, tem a ver com

[...] a guerra de resistência entre 1630 e 1637 que trouxe uma maior diminuição

para a quantidade de unidades produtoras. As batalhas entre holandeses e luso–

brasileiros de norte a sul na zona da mata pernambucana fez com que os

engenhos se reduzissem a 108 ao fim da guerra de resistência. No entanto, a

recuperação se deu de forma muito rápida, pois em 1639 o número de engenhos

já tinha aumentado para 121, (LISBOA, 2014, p. 197).

O contexto da capitania pernambucana era de conflitos e impactos no Brasil

Colônia com consequências diversas, embora, na maioria dos casos, à exemplo da guerra

de restauração holandesa de (1645–1654), com motivação maior a tentativa de posse

[holandesa] e retomada [portuguesa] dos engenhos produtores do açúcar, apesar dos oito

anos de guerra, o conflito era concentrado e localizado naquela capitania.

Os engenhos fortemente afetados pela guerra de restauração, a maioria estavam

localizados na parte norte da capitania, afetando diretamente a freguesia de Paratibe

pertencente ao município de Olinda e a vila de Igarassu. Nessas regiões os Engenhos

foram todos arruinados.

Mas, nas demais regiões da capitania, nas regiões produtoras ao norte de Olinda, a

produção do açúcar continuou a moer cana e o açúcar final.

A ausência de registro em detalhes e oficiais a respeito da evolução dos números

de engenhos em funcionamento na capitania, dificulta muito na pesquisa de dados,

somente na segunda metade do século XVII, aparece o número de engenhos de

Pernambuco, registro realizados em torno de 1710 e 1711 com as etnografias e escritas

de André João Antonil, autor principal que foi estudado neste TCC. Apesar das

intempéries, a capitania cresceu em número de engenhos, ficando com 246 no total. Entre

esses, Antonil cita os engenhos de Itamaracá e Paraíba incluindo estes na contagem de

engenhos em Pernambuco. Razão pela qual, o Engenho de Itamaracá era um dos

pertencentes a família do Senhor do Engenho Palma que aparece nas narrativas da ex-

moradora entrevistada neste estudo.

O Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra], ainda na década de 50 e 60

administrava o Engenho de Itamaracá e o Presídio daquela, instalado e administrado por

ele mesmo e talvez sua família. Seu trânsito era de andança e revezamento entre a cidade

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de Bom Jardim [lugar de origem e nascimento], o Engenho Palma propriedade produtora

e de moradia com a família, a cidade de Machados e a frequência no Engenho de

Itamaracá por ser o lugar em que instalou um famoso e temeroso presídio para detenção

e castigos dos escravos e desafetos pessoais oriundos da região. No caso, a penitenciária

de Itamaracá levava seu nome pessoal para identificar a prisão, fato que recentemente foi

desativada e transferida para a cidade de Limoeiro-Pe nas proximidades do Engenho

Palma, como aparece nas narrativas da ex-moradora e nos registros de pesquisas nos

capítulos seguintes.

É sobre esse Senhor de Engenho e sua propriedade que abriga o Engenho Palma

que inicio os tópicos e capítulos deste trabalho acadêmicos em desenvolvimento.

3.2 História e localização do Engenho Palma [Pernambuco]

O Complexo da Casa Grande do Engenho Palma – apesar da ausência de registro

histórico oficial – foi edificado no interior do estado de Pernambuco pertencente à

comarca da cidade histórica de 5Bom Jardim assentada no mesmo estado de referência.

5 HISTÓRIA DE BOM JARDIM

Uma poética lenda envolve a história de Bom Jardim. Acredita-se que no início do século XVIII, um único

fazendeiro possuía as terras que hoje formam o município. O sentimento religioso impulsionou o seu

desenvolvimento, pois o rico proprietário convidou um sacerdote para dar assistência aos poucos católicos

dos arredores, depois de mandar construir uma capelinha dedicada a Sant’Ana, próxima à sua casa. Tudo

entre uma vegetação cercada de paus-d’arco, também conhecidos como ipês. O sacerdote encantou-se com

a paisagem, classificando o local de majestoso, pois até havia “árvores de ouro”, referindo-se as flores

amarelas dos ipês e passou a chamar o lugar de Bom Jardim, origem ao nome do futuro município.

FONTE: Igreja matriz, praça central e pedra de granito marrom imperial de Bom Jardim. Fotografia

antiga de 1903, domínio público online, agosto de 2017. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=NggYLsNZrcY>. Acessado em: 29 de outubro, 2018.

Bom Jardim foi vila em 1870 e município em 1893. Hoje, é um dos mais prósperos municípios agrestinos,

tendo na cultura do abacaxi, bem como, na extração do granito e pedras semipreciosas, a sua maior riqueza.

Bom Jardim oferece uma infraestrutura de equipamentos e serviços. Hospedagens e restaurantes, tornam

agradável e divertida a estadia dos turistas que entram em contato com a culinária local e participam das

variadas manifestações populares.

Bom Jardim fica situado no Agreste Setentrional de Pernambuco a 110 Km do Recife, e o acesso é através

da rodovia estadual PE 90. Com altitude média de 334m, possui clima agradável com temperatura anula

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Apesar da propriedade do Engenho Palma estar proximamente na divisa ou nas

proximidades da cidade de Machados-Pe, antes distrito também daquela cidade comarca.

Em razão da curta distância entre o Engenho Palma e a cidade de 6Machados, todo fluxo

em torno de 26ºC. O Município tem uma extensão territorial de 294 Km, onde se concentra a maior reserva

de granito marrom imperial do mundo. Suas manifestações culturais são marcadas pelas grandes expressões

musicais e poéticas, e sua culinária regional.

SOBRE O MUNICÍPIO DE BOM JARDIM

Bom Jardim é um município brasileiro do estado de Pernambuco. Localizado na Mesorregião do Agreste

Pernambucano e na Microrregião do Médio Capibaribe. O município é formado pelo distrito sede, pelos

distritos de Umari, Bizarra, Encruzilhada e Tamboatá, e pelos povoados de Freitas, Pindobinha e Lagoa

Comprida.

FONTE: Localização e limites do município de Bom Jardim. Mapa de domínio público online, agosto

de 2017. Disponível em: < http://bomjardim.pe.gov.br/sobre-o-municipio/>. Acessado em: 29 de outubro,

2018.

Cronologia municipal

29 de dezembro de 1757 – É criada a freguesia do Bom Jardim.

16 de agosto de 1800 – A povoação do Bom Jardim recebe os foros de Distrito.

19 de maio de 1850 – Lei Provincial 922 cria o município de Bom Jardim, desmembrado do território de

Limoeiro. A sede é elevada à categoria de vila.

19 de julho de 1871 – É instalada a Câmara de Bom Jardim, conforme comunicado através de ofício em 24

de julho do mesmo ano.

24 de maio de 1873 – Criação da Comarca de Bom Jardim.

4 de fevereiro de 1879 – Elevação da sede a categoria de cidade.

O município, no entanto, só foi oficialmente constituído em 10 de julho de 1893, com base no art. 2º das

disposições gerais da Lei 52 de 3 de agosto de 1892.

Geografia

Localiza-se a uma latitude 07º47’45” sul e a uma longitude 35º35’14” oeste. Sua população estimada em

2013 era de 38 871 habitantes.

Possui atualmente uma área de 208,39 km².

Hidrografia

O município de Bom Jardim está situado nos domínios da bacia hidrográfica do Rio Goiana. Seus principais

tributários são os rios Orobó, Tracunhaém e Caiai, além dos riachos: Cachoeirinha, Modo, Câmara, Pirauá,

do Tanque, Grande, Canguangue, Altos e Aroeiras. Os principais cursos d´água são temporários. A Represa

de Pedra Fina é o principal reservatório do município.

6 HISTÓRIA DA CIDADE DE MACHADOS

Fundação em 20 de dezembro de 1963. Distância da capital – Recife, 81 km. Machados está situado em

terras do antigo Engenho Bom Destino, que pertencia ao município de Bom Jardim. Pela proximidade ao

Engenho Machado (propriedade de uma família de mesmo nome), o nosso município recebeu o nome

Machados. O marco zero, localiza-se onde atualmente está edificada a Igreja Evangélica Congregacional.

A primeira casa, construída por Manoel João Rodrigues do Nascimento, no ano de 1890 e, lhe serviu de

residência e ponto comercial. Tal fato, despertou a atenção de outras pessoas, que começaram a construir

novas casas, iniciando, assim, a Vila Machados. A partir de sua fundação o povoado cresce e é elevado à

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comercial e social foi estabelecido com a comunidade mais próxima daquele Senhor de

Engenho. Assim, as influências políticas, econômicas e socioculturais estabelecidas entre

o proprietário do Engenho e os moradores da cidade de Machados também senhores de

outros Engenhos se estreitaram e prosperaram.

O herdeiro e proprietário [velho] 7Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra]

apesar de ser nascido e originário da cidade de Bom Jardim, suas ralações ativas envolveu

toda região do em torno do Engenho, incluindo as famílias privilegiadas da cidade de

categoria de vila. Em 10 de outubro de 1917 realiza-se a primeira feira livre, que resistindo às pressões de

alguns políticos da região, foi se firmando e atraindo a atenção dos comerciantes das comunidades vizinhas,

que aqui instalavam suas barracas a fim de comercializarem seus produtos.

Lei Estadual 4994, de 20 de dezembro de 1963, Art. 1º:

Fica criado o município de Machados, desmembrado do município de Bom Jardim, cuja sede será a do

atual distrito de mesmo nome, que será elevado à categoria de cidade.

População: 15.046 hab. IBGE/2014

Área: 56.957 km2

Bioma: Caatinga

CAPITAL DA BANANA

A banana é objeto de grande comércio internacional. É própria de clima quente e úmido, preferindo as

planícies próximas ao mar e resguardadas dos ventos. Os terapeutas e médicos recomendam a banana contra

enfermidades além de grande valor nutritivo. É ligeiramente diurética e laxativa. Conhece-se no Brasil mais

de 30 variedades de banana. As mais comuns são: prata, nanica, ouro, maçã, d’água, São Tomé, figo, da

terra, cacau, abóbora, chocolate, manteiga, etc.

Da bananeira tudo é aproveitado: raiz, pseudo caule, folhas, frutos e o mangará. Tanto na culinária,

medicina natural, como nas artes e no artesanato.

Machados é rico no cultivo da banana ficou conhecido como Capital da banana, seu Artesanato é

diversificado com bordados, pinturas, a palha da bananeira, e seus Licores a base de Frutas regionais.

7 NOTA. DR. ÊNIO PESSOA GUERRA [EM MACHADOS DO PASSADO]

Machados, traz hoje no seu registro fotográfico algumas fotos do popular Dr. Ênio Guerra [Senhor do

Engenho Palma]. Por muitos anos foi uma grande liderança política na região e na cidade de Machados,

chegando a ser deputado estadual. Quem não conhece as terras do Engenho Palma, e tantas outras histórias.

Dr. Ênio Pessoa Guerra nasceu em Bom Jardim, a 16 de julho de 1928. Filho de família tradicional, seus

pais, Flávio Pessoa Guerra e Josefa Galvão Pessoa Guerra, sempre prezaram pela formação de seus filhos.

Estudou em colégios da capital do Estado e na Faculdade de Direito do Recife, onde concluiu o curso de

Direito.

Várias foram as funções públicas exercidas por Dr. Ênio Pessoa Guerra. No Governo Cordeiro de Farias,

foi Diretor da Penitenciária Agrícola de Itamaracá, no período de 16/04/1954 a 31/01/1959, exercendo o

cargo com altivez e seriedade, tanto que retornou à direção daquela penitenciária no Governo de Paulo

Pessoa, permanecendo como diretor de 19/09/1964 a 15/08/1966.

Posteriormente, tornou-se Membro do Ministério Público atuando como Promotor Público da Comarca de

Orobó, onde se destacou graças à sua determinação na defesa dos direitos inerentes à cidadania.

A bela atuação em cargos públicos o credenciou a pleitear um assento na Assembleia Legislativa do Estado

de Pernambuco. Elegeu-se Deputado Estadual em 1966. Sua atuação naquela legislatura merece destaque,

integrou a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, a Comissão de Economia, Agricultura, Indústria,

Comércio, Viação e Obras Públicas, além da Comissão da Área das Secas e Negócios Municipais.

Em 1970, foi reeleito Deputado Estadual. Em 1973, saiu vitorioso na eleição de presidente da Casa Joaquim

Nabuco para o biênio 73/74. Nas eleições realizadas em 15 de novembro de 1974, foi reconduzido à Casa

Legislativa.

Enfim, seja como diretor de uma das maiores penitenciárias do Estado, Promotor de Justiça, Legislador ou

mesmo Delegado da SUNAB, o Dr. Ê. sempre buscou atuar com retidão e justiça. O Projeto de Lei

Ordinária nº 254, de autoria do Deputado Ricardo Teobaldo, que visa denominar de Penitenciária Dr. Ênio

Pessoa Guerra, o presídio de Limoeiro.

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Machados, com quem mantinha fortes laços de amizades, parentescos e compadrios

políticos fortalecido pelo transito comercial e cultural do lugar familiar. Da recém

emancipada cidade, antes dependente de sua comarca.

O Complexo da Casa Grande do Engenho Palma representa um projeto

arquitetônico com função e representação econômica, política, social, cultural e religiosa

forte, mas também de alta complexidade analítica com vista nas relações estabelecidas no

micro cotidiano interno e no macro externos com o estado, a política e a Igreja.

De fato, o Engenho é um monumento material e simbólico com edificação

característica de uma engenharia rústica, arcaica, conservadora, patriarcal dominante de

determinada família e época da história do Brasil. Quando o país levantava suas estruturas

e ainda levanta com concreto e vigas à base do trabalho escravo, da exploração brutal do

corpo humano, das massas dominadas com mão de ferro. Se erguia pedras, tijolos e

armaduras maciças para construir um lugar material-físico que não é seu, nem da maioria

dos produtores das riquezas. E o Complexo da Casa Grande, o Engenho Palma também é

resultante disso.

É sim uma estrutura robusta e forte como uma fortaleza guardiã do rei, com

muralhas invisíveis vigiadas com armas de fogo, como pude observar de perto, jagunços

e pistoleiros rondando os limites da terra. O monumento histórico sobreviveu ao tempo

de forma admiravelmente conservada. Quando comparada com outras estruturas, foi

possível observar que ali o concreto se misturou com sangue e suor das muitas vidas

humanas. O substrato do imaterial ainda permanece no lugar, nas paredes grossas, no piso

de pedra bruta, no chão batido, nas madeiras sem prego, nas máquinas de ferro amaciadas

com a força das mãos. Tudo estar impregnado nas velhas estruturas [lágrimas, dor, choros,

histórias e vidas] assim caminhando com o tempo que permanece no mesmo lugar.

O passado ressurgindo no presente com outras vozes, as vezes com a tonalidade

fraca, mas que insiste ecoar com esforço de transmitir experiências vividas em outra

versão da história. Aquela contada por quem nasceu e viveu no lugar, e,

involuntariamente, guarda consigo as memórias longínquas e inesquecíveis como é o

exemplo da antiga ex-moradora do Engenho. É mais do que uma narradora de histórias,

é a constatação da história pessoal e do lugar.

A vida cotidiana [no e do] Engenho Real só poderia ser contada com tanta

precisão, detalhes e fidedignidade por alguém que fez parte do dia a dia, que nasceu,

cresceu e viveu a infância e a adolescência se misturando com a terra, vivendo os

acontecimentos, testemunhando os fatos, sentindo a realidade no ordinário. Não

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importando aqui se era ou não uma moradora criança de classe social baixa, média ou alta

conforme a pirâmide social sociologicamente falando, se pertence a raça supostamente

inferior ou superior, se é de cultura dominante ou periférica. O que interessa mesmo e de

fato é ouvir suas narrativas, a percepção e o observado dentro do Engenho para ajudar

compreender o funcionamento do lugar, a vida realçada e invisibilidade no Complexo,

isso é o que interessa. Talvez, aquilo que os indivíduos e a sociedade ainda não conheçam

do lado de dentro e em detalhes, sequer viu falar, menos ainda serviu de testemunha viva.

Essa é a finalidade da pesquisa, mostrar o interior do Engenho Palma sem

desvalorizar a imaginação criativa, até a realidade criada, fantasiada por aqueles que

contou, talvez, ou, apenas conhece um lado da história, a face oficial do enredo. Ou,

simplesmente, olhando do lado de fora, da varanda da Casa Grande. Interessa sim

valorizar todo esse esforço, mas em especial os conteúdos, as escutas e histórias contadas

por quem viveu a realidade cotidiana, o dia a dia do engenho, com os pés no chão da

propriedade maior. Nada mais do que a empiria da vida vivida por quem viveu o Engenho

de forma supostamente livre e espontânea. Para assim então registrar e analisar os

achados, os elementos e objetos parte do contexto real.

De sorte, foi essa a condição dada pela entrevistada em destaque, por conceder

seu tempo, sua dedicação e se dispor em narrar sua história permitindo ouvir e ouvindo

sua própria voz. Sem espírito de autojulgamento, do que é certo ou errado, apenas contar

o que viveu, viu, sentiu, dentro do lugar. Do ponto de vista formal na pronuncia das

palavras é a parte menos importante. O interesse e o esforço primordial foi o de ouvir e

registrar o que ela tinha para falar sobre o concreto-real no Engenho munida de detalhes.

Com esse foco mostrar a realidade tal qual ela se manifestava aos olhos da ex-moradora

do Complexo. Nada além disso.

A partir das narrativas, imagens e fotografias [recentes e antigas] transito no

ambiente tocando e sentindo as estruturas do Complexo, a vida dos habitantes se

misturando à arquitetura e os objetos históricos, mas que eram de uso cotidiano. E

enxergar, tudo que existia no lugar interagia e se agregavam entre si, empregando valor,

sentido e representação.

Tanto que muitos moradores, filhos de gerações anteriores, nasciam, cresciam,

casavam-se e viviam em meio as estruturas físicas, aos objetos, cenários naturais e

artificiais do Engenho e da Casa Grande criados para produzir identidade social,

referência pessoal e de grupo, relações de convivência próximas e distantes, distinção

social conectada a função produtiva, hierarquia de classe social, poder econômico e

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político. Ali, se constituía a vida familiar do senhor de engenho [proprietário da terra, dos

escravos ou dos moradores trabalhadores] num mundo à parte, apesar das adversidades,

conflitos, desigualdades e mudanças cotidianas, mas, cada um se percebia pertencente ao

mesmo espaço-lugar.

Nas palavras de Freyre (1963, p. 83), “[...] a família não é o indivíduo, nem

tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é, desde o século XVI, o

grande fator colonizador no Brasil”.

E ainda acrescenta dizendo que

[..] a nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante, tendo a

família rural ou semi-rural por unidade, quer através de gente casada vinda do

reino, quer das famílias aqui constituídas pela união de colonos com mulheres

caboclas ou com moças órfãs ou mesmo à- toa mandadas vir de Portugal pelos

padres casamenteiros. Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira,

a família colonial. Com a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, o

patriarcado rural que se consolidava nas casas-grandes de engenho e de

fazenda [...] começou a perder a majestade dos tempos coloniais, (FREYRE,

1963, p. 89: 105).

Então, não é apenas uma Casa Grande ocupando espaço na propriedade com a

função de guardar uma família patriarcal nascida a partir do poder do Senhor de Engenho,

que tudo controlava com seus vários olhos multiplicado na face dos moradores

igualmente dominados. De longe e de perto enxergava a senzala cativa dos escravos

coisificados da propriedade, a produção no campo, o cultivo da cana-de-açúcar e o

funcionamento de tudo, incluindo o Engenho. Era sim tudo isso, mais também se figurava

num grande Complexo imaterial produtor de representações ínfimas e sentimentos

profundos que ainda sobrevive ao tempo. Quem é esse Senhor para seus moradores? É o

que mostra e discuto nas fotografias em exposição neste trabalho. Ali, aparece a dinâmica

da vida familiar, a cultural religiosa, a classe social privilegiada do velho e do novo

Senhor [Ênio Guerra – pai e filho] herdeiros das terras, da política local, da vida farta, em

comparação com a realidade dos moradores habitantes do mesmo lugar.

Não há dúvida de que o patriarca

[...] senhores rurais. Donos das terras. Dono dos homens. Dono das mulheres.

Suas casas representam esse imenso poderio feudal. O senhor de engenho ficou

dominando a colônia quase sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que

os vice-reis e os bispos, (FREYRE, 2003, p.38).

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Atualmente, o Engenho Palma tenta deixar para trás o passado negativo vinculado

ao estigma da propriedade escravista de outrora, observa-se que há um esforço para

transformar o Engenho carregado de histórias e conteúdos paradoxais, em patrimônio

material de natureza imaterial, histórico cultural e simbólico que o estado de Pernambuco

propõe, obviamente isso é positivo não há dúvida, mas não significa o apagamento do

passado, das marcas e impressões deixadas no corpo e na memória das pessoas que lá

nasceram e viveram experiências, as histórias dos moradores que nasceram, viveram e até

morreram no lugar.

Felizmente, é sobre isso que proponho apresentar e explorar nas narrativas da

entrevistada, nos registros dos objetos históricos e fotografias capturadas no local à olho

nu, para fim de discutir e analisar as categorias levantadas no capítulo IV, na sequência

do estudo.

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4 RESULTADOS DA PESQUISA

“Este é o Engenho da Palma onde nasci e me criei”, (Entrevista da antiga ex-

moradora, julho-agosto, 2017).

Num processo construtivo em torno do tema e do objeto de pesquisa, dou início

neste capítulo a apresentação dos dados e resultados do estudo correspondentes as

questões levantas para reflexão. Logo e de imediato faço novamente a pergunta ponto de

partida para conduzir o processo analítico questionando: qual a percepção da antiga ex-

moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e testemunhado na infância e na adolescência

no Complexo da Casa Grande do Engenho Palma?

Recorri aos conteúdos de narrativas transcritas de gravações de áudios

extraoficiais, tratados em banco de dados e organizados em categorias analíticas para

responder à questão principal com auxílio dos objetivos de apoio, nos quais instigam as

motivações implicadas nos acontecimentos olhando para o todo complexo da vida social,

produtiva, cultural, política, econômica e familiar do Senhor proprietário das terras.

Trazendo para o centro a dinâmica das relações sociais e de convivência, o contato

estabelecido entre o Senhor, as instituições e os moradores da propriedade. São pontos de

interesse e investigação.

São conteúdos de narração longa em que a entrevistada antiga ex-moradora do

Engenho Palma se debruçou para contar suas memorias vividas na infância e

adolescência, detalhando os acontecimentos observados no local e também sobre os

objetos e fotografias dos cenários. Com os olhos, a mente e os sentidos preparados para

o encontro de face a face. É um relato sobre o que viu, ouviu, viveu e percebeu em meio

as conversas adultas no cotidiano do Engenho, a vida prática e construções simbólicas

parte dos ambientes habitados e relativamente restritos. As terras de sua andança e

exploração om brincadeiras infantis criadas e inventadas por ela mesma enquanto

caminhava na propriedade – os rios, a vizinhança, a plantações, o gado, o mel de furo,

como ela mesmo fala.

Baseada nas narrativas de histórias de vida da entrevistada, seus enredos

detalhados sobre a vida pessoal, social, produtiva e cultural do Engenho, destaco os

aspectos de suas experiências no Engenho. Para enxergar as imagens guardadas na

memória da informante, observar como percebe a conduta do Senhor de Engenho, a

percepção de sua família e dos moradores trabalhadores do lugar. A partir de suas

narrativas entender o que chama atenção da entrevistada criança daquela época, de como

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era visto o mundo de contraste em sua volta, “livre”, controlado e dominado por adultos

de riscos, ou, de confiança como era o caso de seu avô paterno. O que ela observada com

vista em tudo isso? Como reagia ao ambiente?

São aspectos que apresento num conjunto de tópicos [categorias analíticas]

levantadas nos capítulos IV e V deste trabalho, cujos resultados e achados da pesquisa

necessitou de organização e apresentação em partes distintas e conexas. Em cada parte,

os conteúdos sinalizados no quadro analítico visto no desenho metodológico da pesquisa,

conforme os assuntos das partes [I, II, III, IV], a estrutura de apresentação deu conta do

capítulo IV em especial. Depois, destaquei os gráficos de hierarquias de palavras e

conteúdos indicadores de sentimentos positivos e negativos evidenciados no capítulo V

deste trabalho, todo enredo e divisão do trabalho seguiu a mesma sistemática de

apresentar as narrativas, discutindo os conteúdos e tecendo a crítica discursiva e analítica.

Assim, na parte I, a atenção inicial foi centrada para a construção do perfil pessoal

da entrevistada, sua ascendência familiar e contexto sociocultural de referência. O modo

de vida e de viver no Engenho Palma, seus contos e ludicidade infantil própria de sua

idade de criança supostamente livre.

Na segunda parte do estudo do capítulo IV, situo o cotidiano do Engenho olhando

o ritual do casamento e a formação da família patriarcal dominante do Senhor do Engenho

Palma, suas relações sociais conectadas a vida religiosa, política, cultural e produtiva

envolvendo igreja, estado, a comunidade local e os moradores da propriedade, tudo parte

da mesma estrutura funcional do Complexo.

Na sequência das partes [III e IV], destaco o cotidiano e o funcionamento do

Engenho visto e vivido por uma criança e, ao mesmo tempo, tudo sendo discutido com as

contribuições dos autores da história e da sociologia que muito ajudou entender os

acontecimentos e a trajetória da entrevistada em meio aos conflitos impactados no mundo

Engenho conectada a vida dos adultos dominantes e dominados naquele contexto, em

especial a vida distintiva e as relações sociais do Senhor do Engenho Palma em contraste

com a dos moradores trabalhadores explorados ressurgidos do sistema semi-escravista na

década de 50 e 60. Do mundo produtivo masculina iniciado na lavou à vida doméstica

feminina, homens e mulheres servis dentro do Engenho e da Casa Grande à disposição de

um único Ser, o Senhor de Engenho.

E assim foi sendo tecida as partes e o todo com a articulação dos conteúdos vistos

em cada etapa do trabalho. Com isso, foi dando visibilidade para o ritual do casamento

do Senhor de Engenho e o lugar ocupado por sua família atrelada às conexões da Casa

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Grande e todo Complexo. O poderoso sistema de controle e funcionamento na fábrica de

produzir riquezas, tudo isso fazendo parte dos resultados da pesquisa discutidos neste

estudo e num fôlego só. Até alcançar o capítulo V e as considerações finais para selar o

fechamento do processo. É isso.

Na maioria das etapas do trabalho, as narrativas, imagens e fotografias dos

cenários do Engenho acompanha o texto discursivo, analítico e interpretativo desse

estudo. Não necessariamente nessa ordem.

PARTE I

4.1 PERFIL, ORIGEM E CONTEXTO SOCIOCULTURAL

A entrevistada é uma senhora idosa de 67 anos de idade [ano de referência, julho

2016] de origem familiar relativamente humilde segundo ela. De aparência e

características físicas de raças miscigenadas [mistura de índio, negro e português].

É de estatura mediana e tipo físico médio, cabelos crespos, cor de pele parda quase

negra, de voz mansa e calma, passos lentos e olhar profundo, cor dos olhos castanho-

escuros. Seu fenótipo predominante é característico da raça negroide contrastando com a

sensibilidade e natureza psicológica de povos indígenas. Demostra valentia, força e

determinação influência da cultura portuguesa talvez. Mas, a constatação é de que estive

durante semanas diante de uma face marcante, de uma ex-moradora de Engenho de

aparência peculiar, expressividade e alegria contagiante de uma “guerreira” resistente,

forte e frágil ao mesmo tempo. Delicada, caipira e marcada pelas intempéries da

sazonalidade do tempo, mostrando no corpo os desgastes da energia retirada pelo sol, a

esfregação da terra. Um corpo e alma feminina dedicada ao trabalho no campo, lugar de

cultivo da lavoura de subsistência e luta pela sobrevivência. Uma senhora hoje idosa que

serviu para procriação de filhos e afazeres domésticos sem fim.

Foram essas as marcas observadas na face e no semblante dos olhos, nas mãos,

braços e pés. As rugas na pele também revelam a passagem do tempo, os fios de cabelos

brancos desidratados pelo sol. São sinais indicadores de dificuldades vividas e marcas de

maus-tratos masculino.

O Engenho Palma é o seu lugar de origem e raiz. Onde morava com os membros

de sua família biológica, aqueles com quem teve a sorte de conhecer e conviver na

infância, o seu avô por exemplo. É a partir dessas aproximações reconstruiu na imagem

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metal um autorretrato da vida pessoal e familiar misturada à paisagem e os elementos do

lugar.

Afirma que seu avô paterno era foreiro locatário de glebas de terras para cultivo

de lavouras [sustento da família]. Plantava e colhia as culturas de subsistência do grupo.

Também era comerciante itinerante na região do em torno, vendia produtos agrícolas,

alimentícios e de utilidades para a freguesia próxima das mediações do Engenho.

Nos registros de Antonil (1711, p. 19-20) consta que:

Dos Engenhos depende os lavradores que tem partidos arrendados em terras

do mesmo Engenho como cidadãos fidalgos: e quanto aos senhores são mais

possantes e mais aparelhados de todo o necessário, afáveis e verdadeiros; tanto

mais tão procurados, ainda mais dos que não tem a cana cativa, ou por antiga

obrigação, ou por preço, que para isso receberão.

Servem ao Senhor de Engenho em vários ofícios, além dos escravos da enxada

e foice que tem nas fazendas e na moenda e fora os mulatos e mulatas, negros

e negras da ceifa ou ocupados em outras partes: barqueiros, canoeiros,

calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores.

Tem mais cada Senhor desses necessariamente um mestre de açúcar, um

banqueiro e um contrabanqueiro, um purgador, um caixeiro no Engenho e

outro na cidade, feitores nos partidos e roças, um feitor Mór no Engenho; e

para o espiritual um sacerdote seu Capelão; e cada qual desses oficiais tem

soldada.

A entrevistada é órfã desde os nove meses de idade, foi abandonada pelos pais

biológicos ainda recém-nascida. Com a separação conjugal do casal foi entregue para o

avô paterno [idoso] criar e cuidar da menina bebê. Este, fazia o papel e função de pai e

mãe da infanta, dedicou afeto e proteção até os cinco ou seis anos de vida, depois faleceu.

A menina órfã ficou desprotegida e sozinha no mundo. Nunca conheceu seus pais

biológicos nem teve vínculo com os parentes. Cresceu no Engenho convivendo com as

famílias conhecidas moradoras do lugar, até os 12 anos de idade. Quando se afastou da

propriedade para trabalhar de doméstica na cidade de Machados-Pe, lá começa a fase

mais trágica de sua vida na companhia de seu agressor sexual e de seus filhos pequenos.

Após o falecimento do avô, a entrevistada permaneceu na companhia de sua

madrasta-avó [segunda esposa do ente afetivo] e alguns parentes meio consanguíneo, com

quem conviveu até os 8 anos de idade, depois fugiu para morar com a vizinhança para

escapar dos maus-tratos sofridos na convivência com a madrasta. Foi totalmente

abandona por aqueles membros da família. Nesse intermédio, partiu para trabalhar de

doméstica na casa de outro proprietário de terra da cidade de Machados herdeiro do antigo

Engenho Machados Velho, local onde vive até os dias atuais. Assim ela narra:

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4.1.1 O Engenho Machados Velho e o atoleiro do açude

Perguntei para a entrevistada, o que a senhora sabe sobre o Engenho de Machados

Velho, propriedade que deu origem ao nome da cidade de nascimento de seus filhos?

Dona Bazinha que me contou. 8Dona Bazinha é a mãe do pai dos meus filho.

Ela disse que conheceu o Engenho de Machados Velho moendo cana ainda,

ela disse. Que ela dixe que a besta era que moía a cana. Sim. Dixe que botava.

Dixe que botava uma canga nas besta. Os cavalos. Botava uma canga na besta

e tinha uns nêgo dando nas besta, pras besta rudeá. Antigamente era os nêgo

mesmo que arrudeava e moía a cana nesse Engenho de Machados ela dixe.

Machados Velho, e depois era as besta que moía e tinha os nêgo pra dá nas

besta. As besta arrudiá e quando elas arrodiava ia moendo, ia rodando a coisa

e ia moendo a cana.

Foi. Dona Bazinha dixe que conheceu isso aí. As besta arrudiava, arrudiava e

aquela cana caindo, quando as besta tava cansada trocava outros cavalo, até

moê aquela quantidade de cana. Que ela dixe pra mim que aquele açude dele

lá, dixe que caiu um carro de cana com boi, com o carreto, com tudo sabe.

Apareceu ali. Eu acho que era o atolêro. Ali, tem uns atolêro tão grande! A

gente passo um dia desses por lá eu e Pedro, eu já vi dois bois cair naqueles

atolêro ali. Naqueles atolêro. Ai, eles mais que depressa correu com as varas

de pau bem grande, butavam debaixo dela. Senão minha filha esse carrero, esse

carro de boi tirado de cana, os boi e esse Carrero sumiu nesse atolêro, nesse

açude. No que eles caíram afundaram, sumiram. Que eles passava por cima do

açude pra levá os caldo de cana. Dessa vez eu acho que o pneu do carro saiu

fora do “bado”, escapô, acho que sumiu. Não apareceu nem cavalo, nem carro,

nem boi, nem ninguém. Nem cana nem nada. Ali tem atolêro tão grande que

se uma casa dessa caí lá vai simbora. Fica no açude, pra cima tem um atolêro

desse, ele pisava ali, balançava pra todo canto e lá pra baixo também que foi

duas vaca atolada, que eu passei por lá essa semana eu vi. Tudo marcado de

pau que ele butô, que se pisá ali vai simbora. Não foi não Pedro?

Pedro era o seu neto, atualmente adolescente que acompanhava a entrevistada

em processo de narração.

É de lama. “Massapê”. Eu não sei dizê o que é que quer dizê esse negócio viu.

Não é areia não. É um barro. É um “massapê”. Em vários lugar. No Engenho

de Palma não sei.... (silêncio). Mas tinha sabe por quê? Porque tinha lá um

lugar até proibido de passá. Que se passasse afundava. Eu acho que era esse

alagadiço, esse negócio também. Esse alagadiço. É um lugar que a pessoa pisa

e vai simbora, some. Atoleiro é. (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA

EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

4.1.2 Fim do Engenho Machados Velho [herança]

Era, depois que ele [pai de seus filhos] boto o sitio né, depois que o Engenho

acabo. Agora é Machadinho. 9Ela só me falou isso. Ela conheceu o avô [dos

filhos] foi no outro Engenho Bom Destino. Acho que ela vinha pro lado de cá

e via né. Acho que era menina ainda, ou senhora novinha, assim. Ela era nova.

Que ele não vinha, o avô não vinha de Bom Destino pra Machados Velho.

Transitava de um Engenho pra outro. (IBID).

8 É a avó dos filhos, atualmente é viva e lúcida com 107 anos de idade. 9 É a avó dos filhos, atualmente é viva e lúcida com 107 anos de idade.

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Para melhor entender o contexto, pedi esclarecimento e perguntei: as terras da

cidade de Machados eram do avô de seus filhos?

É, como eu falei: Machados Velho, Bom Destino e Panorama. Era três

Engenhos de uma vez, do mesmo dono. Ela disse que conheceu Machados com

três casa de palha. Ela conheceu os fundador de Machados todinho, ela

conheceu. Acho que Machado não era cidade não. Era umas casinha de palha

que tinha. A Igreja era uma casinha de palha, depois foi que foram aumentando.

Aqueles fundador foram fazendo o Engenho. Apareceram, depois que foi

aparecendo varias pessoas, depois que ele morreu né. Que o pai dele 10morreu,

foi ficando lá e foi chegando aqueles hôme mais importante né. Que nem o Dr.

João. Dr. João Marques, o Coronel Major João Marques.

Esse Coronel Major João Marques acho que ainda era família dele! Sim.

Coronel Major João Marques é o fundador de Machados. Foi quem fez o

Colégio, Grupo pros menino estudá. E foi isso, e foram formando, foram

formando a cidade. E era em terra, não tinha pista, não tinha nada, não tinha

transporte, não tinha nada. Depois foi que fico, que foram organizando não é,

aí, virou assim, virou essa cidadezinha. Mas não era assim, era sítio o Engenho,

terra de ninguém. (IBID).

Continuando a perguntar: a senhora sabe dizer se apôs o falecimento do avô de

seus filhos as terras do Engenho Machados Velho continuaram com os herdeiros?

Eu acho que sim. Eu não sei muito não. Eu acho que depois que ele morreu, eu

acho que foram vendendo, foram acabando né. Não, eu acho que quando ele

morreu um dos filhos era rapaz já, acho que era, eu não sei muito dessa história.

Mas quem tomava conta, quando ele morreu quem tomou conta das coisa, da

casa grande lá foi os filho dele. Que era (4) quatro filho parece. Dona Bazinha

dixe que ainda viu essa Casa Grande com umas parede em pé ainda, ela disse.

Eu sei que eles moravam em Bom Destino. Quem cuidava, acho que devia sê

os empregados. De tempo de escravo né. Devia ser, no começo devia sê tudo

escravo, né? Era libertação dos escravos ainda, isso era o negócio da

escravidão ainda né? (IBID).

A entrevistada também manifesta sua percepção sobre a madrasta-avó, segunda

esposa de seu querido avô depois que ficou viúvo da avó indígena com quem havia casado

e tido seus primeiros filhos. Narra:

4.1.3 Madrasta-avó e o cabelo ruim

Ah! Não tem nem como compará. Não tem nenhuma pessoa que eu compare 11ela, era daquela cor de Sinhá. Era, sei que ela era bem alta e mais forte que

Sinhá. O cabelo era daquele jeito, tinha uma parte que não tinha cabelo sabe?

Ela tinha o cabelo bem ruim. Ela tinha o cabelo ruim daquele jeito, preso

10 O avô dos filhos da entrevistada foi assassinado no Engenho Bom Destino [sua propriedade] com 17

perfuração de arma branca, em emboscada. Uma informação que consta nas pesquisas realizadas

anteriores [TCC e Tese] com a entrevistada e outros membros de sua família [filhos]. 11 A entrevistada se refere a sua madrasta-avó, quem a maltratava quando era criança.

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daquele jeito. Ela era um cipó, bem grande. Era meia forte, mas ela não era

escrava não. Meia preta mas não era escrava.

Meu padrinho, meu avô arrumo essa mulher, não sei aonde foi, nem de onde

era nem nada. Foi quando eu conheci ela.

Ela era do Engenho Palmas?

Era assim: Ele não era de Palmas não. Ele veio morá em Palmas depois. Meu

pai e as minhas duas tias. Ele ficava lá conversando mas é que eu não me

lembro. Eles nasceram na Palma não. Ele parece que chegou na Palma com

esses filho dele pequeno. Mas nasceram na Palma não. Era noutro lugar que

ele morava, agora não sei aonde.

Sim. Não sei, não sei qual o lugar não. Isso era muito, muito. Ele conversava

assim muito as coisa, porque eu perguntava muito as coisas, eu era

perguntadeira, eu gostava de sabê das coisas: - Padrinho, ô padrinho, onde é

que o Sr. morava? Ele me dizia. Mas não me lembro mais não. Eu vim pra

Palma. Ele já chegou casado em Palma. Lá no lugar anterior, não em Palma.

Com essa mulher e com esses três filho dele. Agora não sei onde foi o lugar

não. Não, foi só isso que eu vi mesmo. (RELATO DA ENTREVISTADA

ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

Na nova cidade [Machados] de trabalho e moradia doméstica, a entrevistada em

fase inicial de sua adolescência foi explorada e abusada no lugar estranho por pessoas

também estranhas, tudo diferente do ambiente do Engenho que muito bem conhecia.

Passou a viver presa e sem liberdade dentro de uma casa de risco, restrita ao

mundo doméstico de um patrão violento. Logo, infelizmente, ocorreu o inesperado no

local de trabalho, foi abusada sexualmente e estuprada pelo indivíduo [patrão] doméstico

adulto, casado e pai das crianças que a menina cuidava. À base da força foi violentada

sexualmente dentro da casa ficando gravida do patrão aos 12 anos de idade. Teve seu

primeiro filho com 13 anos.

Resultante das violências sexuais e domésticas sofridas permanentemente, o

agressor sexual estuprou a menina virgem transformando-a em mulher-mãe por 19 vezes,

foram quase duas dezenas de gestões de filhos, uns nascidos vivos outros sequer

nasceram, espancados, mortos e abortados ainda no útero pelo próprio pai agressor. Os

sobreviventes atualmente soma 14 membros adultos, 10 mulheres e 4 homens. Segundo

ela, são os motivos absolutos de sua existência e alegria de viver, a quem transfere e

recebe amor e cuidado, representam o sentido de vida. Dos 12 aos 40 anos de vida a

entrevistada esteve em cativeiro doméstico mantida por seu agressor procriando filhos à

base das violências anos após anos ininterruptos. Uma escrava sexual exclusiva de um

homem abusador e violento. Uma sequência frenética de atos violentos que depois se

ampliou com atividades sexuais incestuosas praticadas contra as filhas adolescentes, onde

o agressor da mãe se transformou no abusador e algoz de toda a família.

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Depois desses acontecimentos trágicos, a antiga ex-moradora do Engenho não

conseguiu mais retornar ao local de origem e nascimento para restabelecer os vínculos

sociais com a vizinhança deixado para traz. Raramente conseguia revisitar a propriedade,

somente depois que atingiu a fase adulta e a terceira idade, quando se separou e se viu

livre do agressor pessoal e de sua família.

Atualmente é aposentada beneficiária da aposentadoria rural e filiada ao sindicato

da cidade onde mora. Vive sozinha em sua casa, é separada do pai de seus filhos

aproximadamente há dez anos. Sente-se hoje uma pessoa livre e feliz. Agora pode ir para

onde quiser e fazer suas escolhas cotidianas. Tem amizade com a vizinhança da cidade

onde mora, viaja para visitar seus filhos sem dar satisfação para ninguém. Seu desejo é

permanecer na cidade de nascimento de sua família até os últimos dias de sua vida.

Foi alfabetizada pela própria filha que é professora do Programa de Alfabetização

de Jovens e Adultos – Paulo Freire. Aprendeu ler e escrever recentemente, quando

conseguiu a separação do ex-companheiro agressor. A religião foi a principal motivação

para os estudos, conseguir ler as escrituras da bíblia. Atualmente se declara evangélica

praticante, embora tenha a formação católica.

Pude observar que se trata de uma 12senhora saudável, lúcida, agradável, educada,

alegre e bem-humorada. Dedicou sua máxima atenção e zelo para narrar sua história de

vida em meio as diversidades vividas. Talvez, as dificuldades superadas fizeram dela uma

pessoa forte, dona de uma história indescritível por outra voz. Somente ela podia ser capaz

de contar o que viveu com precisão, segurança, detalhes e conhecimento dos fatos.

No mínimo é uma participante especial em todos os sentidos da expressão da vida.

Ouvi-la, foi uma grande experiência, um aprendizado intransferível, o maior teste

enquanto pesquisadora de campo e profissional interdisciplinar que me esforço para ser.

Um teste para a formação acadêmica, de resistência pessoal, de resiliência, humildade,

comprometimento e dedicação sem fim. Nada menos do que um apanhado para o resto

da vida.

12 Fonte: Fotografias antiga [fase jovem-adulta] e recente[fase adulta-idosa] lendo a Bíblia. Acervo da entrevistada para uso da pesquisa, 2017.

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Em concomitância com o processo de narração e observação do campo, a

formatação da proposta de pesquisa foi sendo adaptada com o desenvolvimento das partes

do trabalho. Muitas coisas aconteceram nos ambientes transitados dentro do Engenho

principalmente, aquilo que parecia ser uma imagem na miragem do tempo, com os pés, o

corpo e os olhos no lugar alguns objetos foram se modificando. A admiração foi uma

qualidade mútua, o espanto pela manifestação de sentimentos fortes à flor da pele da

entrevistada ao sentir-se parte do lugar, o que rendeu um permanente compromisso entre

as envolvidas no processo até o esgotamento daquela energia transbordada. Finalmente,

considero um perfil raro de se encontrar em investigação empírica.

A Palma é um Engenho onde eu nasci e me criei, onde meu avô, meu tio

morava, eu morava. Morava na Palma, era.

Da Palma eu sinto saudade de, de, do Engenho, tumá caldo de cana. Livre,

brincando por aquelas, aquelas solta, aquelas vagens, catando lenha,

brincando, tumando banho no rio. Eu tenho muita saudade da Palma ainda

porque foi o canto que eu naisci e me criei né. Muito bom a Palma. Eu saí de

lá eu tinha 12 ano. Foi. 12 ano, então eu tenho muita história pra contá da

Palma, muita coisa boa que eu passei na Palma.

É assim como eu falei, tem umas coisa que eu passei, mas saudade das festa

que tinha, que ia com as minhas amiga, dançá o baile de carnaval, (risos). Lá

tinha baile de carnaval, tinha ciranda.

E daí Dr Ênio gostava muito de butá brincadera, então isso aí a gente sente

saudade. Tinha muito, muita brincadera que ele butava, Dr Ênio butava, muita

brincadera. E aí a gente ia e hoje eu sinto saudade. Doutô Ênio era o Senhor do

Engenho de lá.

Tinha maracatú né, carnaval, ciranda, que ele butava muito ciranda no pátio do

Engenho, butava presépio, butava Maria no tempo de festa. Então, tudo isso

eu lembro, saudade dessas festas, desses lugar que eu passava, saudade. Era

muito bom pra mim, que eu passei, que eu tive saudade foi a Palma. (RELATO

DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO

PALMA).

Dito isso, apresento na sequência um quadro resumo com informações extraídas

das narrativas e de documentos complementares indexados em outros estudos já citados

neste trabalho.

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4.1.4 Quadro resumo: perfil sociofamiliar da entrevistada

Identificação Sexo/

Gênero

Idade

Escolaridade Local de

moradia

Atual

Profissão/

Ocupação

Qtde. de

filhos

Pais

biológicos

Saída do

Engenho

Atual Saída da

família

Atual

Entrevistada

antiga ex-

moradora do Engenho

Palma

Feminino

12 anos 67

anos

Criança

analfabeta

Alfabetizada

Ensino

Fundamental

Faz estudos

bíblicos

Machados

-Pe

Aposentada

[trabalhador

a rural]

14 filhos

vivos

10 mulheres

4 homens

Total: 19

gestações

Órfã

[abandonada

aos 9 meses] Criada pelo

avô paterno

até os 6 anos de idade.

FONTE: Informações extraídas da pesquisa de tese, dos formulários de denúncias e documentos

complementares ao Cadastro Social da família em acompanhamento. Autora: Josefa Janete de Azevedo,

junho, 2017. (Azevedo, 2017, p. 43-50).

Da forma mais genuína e fidedigna possível disponho blocos de narrativas na

íntegra para refletir os conteúdos conforme as categorias analíticas, como meio de

organização e demonstração dos achados encontrados na análise. Assim dou evidência

para as experiências pessoais e familiares vividas no Engenho olhando para as

observações em volta do avô paterno [de sobrenome Cavalcante] da entrevistada. Apesar

da família possuir sobrenome de grupos dominantes da região, mas o avô da ex-moradora

se mostra um homem em condição subordinada ao proprietário das terras do Engenho

como podemos observar em suas narrativas a seguir. Afinal, trata-se de uma família antiga

moradora do lugar [Cavalcante] que vivia como foreiro do Engenho, morando em Casa

de 13Condição. Isso tem a ver com as reflexões sobre genealogia familiar que Oliveira

(2000) discute sociologicamente se sua obra e também com os escritos históricos e

explicações de Antonil (1711); Simonsen (1937, 2005); Prado Jr (1981); Lisboa (2014),

quando este último afirma:

Embora o proprietário explore, em regra, diretamente suas terras (como ficou

entendido acima), há casos frequentes em que cede partes delas a lavradores

que se ocupam com a cultura e produzem a cana por conta própria, obrigando-

se, contudo, a moerem sua produção no engenho do proprietário. São as

chamadas fazendas obrigadas; o lavrador recebe metade do açúcar extraído da

sua cana, e ainda paga pelo aluguel das terras que utiliza uma certa

porcentagem, variável segundo o tempo e os lugares, e que vai de 5 a 20%. Há

também os lavradores livres, proprietários das terras que ocupam, e que fazem

moer a sua cana no engenho que entendem; recebem então a meação integral.

Os lavradores, embora estejam socialmente abaixo dos senhores de engenho,

não são pequenos produtores, da categoria de camponeses. Trata-se de

13 Condição. Era o pagamento do aluguel da casa que o morador do engenho habitava. O morador pagava

a casa com serviços prestados ao senhor de engenho, três dias de serviço por semana. Explicação da

entrevistada.

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senhores de escravos, e suas lavouras, sejam em terras próprias ou arrendadas,

formam como os engenhos grandes unidades, (PRADO JR, 1981, p. 23).

Na percepção da entrevistada o cotidiano familiar é de trabalho produtivo

transferindo do avô para o tio, de geração em geração. Nesse caso, o trabalho agrega

outros valores familiares, tem significado de honra e distinção dos membros, são pessoas

honradas e trabalhadoras. Apesar de sofrer exploração do Senhor do Engenho Palma em

condições diferentes dos escravos e ex-escravos da propriedade. Por ser um membro da

família de sobrenome [Cavalcante] pertencente ao mesmo grupo de famílias

colonizadoras do Nordeste em especial. Numa longa narrativa, a entrevista relata e

explica como era esse cotidiano familiar e o que significava morar na propriedade na

condição de foreiro e morador em casa de Condição, narra:

Quando eu me lembro no meu tempo que eu era pequena, era de barriga cheia.

A gente lucrava muito, muito, muito feijão. Ah!, Coisa de cavalo, 3, 4, 5 cavalo

carregado. Não no tempo do meu avô não, era muito não. Já era mais pra comê

mesmo. Foi depois que meu avô morreu que meu tio ficô trabalhando pra pagá

foro, a condição, essas coisa, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

4.1.5 Foro e Condição [terra e moradia]

Ele era foreiro e foi ele o meu tio. Foreiro é assim: foreiro faz as coisa pra pagá

a sua casa que você mora, isso sem recebe nada. No engenho era assim. E

foreiro você trabalhava, alugava 3, 4, 5 bocado de terra pra você trabalhá.

Quando fosse o final do ano, você paga o foro, pagava a 14condição ainda. É,

todo mundo era assim.

A casa que você morava você trabalhava três dia no engenho sem ganha nada.

Três dia de graça. Depois, ele botô pra dois, ficô a segunda e a terça. Esses

outros dia que ficava era pra pessoa trabalhá, virá bicho pra trabalha, pra pagá

o foro, porque o foro era um dinheiro enorme. Se fosse 4 parte de terra, ele

andava falando daqueles 4 parte de terra, quanto era que ia dá.

Eu sei que tudo que tinha era pra trabalhá pra dá pro Doutô Ênio. Quebrava

milho, fazia farelo dois três vezes sem pará. Farinhada, milho, feijão, fava,

algodão, o que tivesse. Vendia tudo pra fazê aquele dinheiro “X” que ele dizia:

É tanto. No dia da Conceição tu chega, a Casa Grande tava completa, no pé da

calçada de morador pra pagá o fôro.

Era dinheiro viu. Eu me lembro que eu ficava assim, olhando assim, um monte

no chão assim espalhado. Ópa aqui mãe, esse dinheiro todinho não dá pra pagá

o foro ainda. Ele dizia.

Vai tê que fazê mais farinhada e o resto daquele algodão pra termina de pagá.

Aí, quando era no dia da Conceição, no dia 8, dia da Conceição, dia 8 de

novembro.

Aí, a gente acordava bem cedinho, botava aquele rolo de dinheiro no bolso e

ia levá pro doutô. Aí, chega lá, tá completo assim ó, tudo esperando já. Ele

abria a porta, o que tivesse casa alugada, terra alugada. Fosse quarto de terra,

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ai levava. E se ele não fosse foreiro, fosse só furnicero, ele só pagava os três

dia de renda, de coisa.

Se o foreiro não pagasse, oxente! Não dormia na casa, que ele não deixava. Se

desse o dia da Conceição, dia 8 de dezembro.antes foi falado Novembro! Que

era o dia do pagamento, era esse dia. Ele dizia. Se não chegasse um, faltasse

um, que ele tava com o nome de todos eles ali e quanto ele ia recebê de cada

um. Se não chegasse um, mandava um morador lá. Vai na casa de fulano pra

sabê porque foi que ele não veio pagá o foro hoje. Aí, se chegasse lá ele tava

ascendendo não sei o que. Disse: o Dr. Ênio disse que é pra você pegá as cesta

hoje, você não dorme na casa. Era assim.

A pessoa tinha que pegá os moleque que tinha, os molambo veio tudo preto e

saí. O que tivesse era pra deixá. E não era pra cumê o que tivesse não. Saía e

deixava, e ele não tinha dinheiro nem pra entrá ali mais. O primeiro sinhô do

engenho era assim viu. Tinha pena de ninguém não.

Eu já fui na Casa Grande assim, mas eu ficava do lado de fora, eu nunca entrei

lá não. Não era todo mundo que entrava lá não, viu. Então, era assim, às vezes

eu ia buscá o leite, ficava assim em pé, aquela casa bonita menina. Cheia de

varanda, mas nunca entrei não. Tinha as empregada tudo. Aquelas empregada,

aqueles empregado que tinha tudo, mas conhecia não. O meu avô não sabia

não. O morador não entrava na casa dele não. Eles ficavam tudo na calçada do

lado de fora. No pé da calçada, nem na varanda não era pra entrá. Gritava um

por um, chamava o nome de um fulano de tal. Chegava lá, dava o dinheiro a

ele e voltava, vinha simbora.

Fulano de tal ele dizia, entregava o dinheiro a ele. Não era pra falta um centavo,

não era pra falta. E tanto que ele disse pra leva.

Aí, o meu avô era foreiro e meu tio era furniceiro, depois ficou foreiro também.

Pagava condição e foro. E o foro era o que ele trabalhasse. Tudo que ele

produzisse era pra tirá o dinheiro pro Sinhô do Engenho, que o Sinhô do

Engenho mandava. É escravidão. Saía de casa de manhã, às cinco hora da

manhã, a gente saía. Às vezes levava um punhadinho de farinha com um

pedacinho de carne, de peixe seco pra cumê lá. E às vezes não levava nada, o

dia todinho com fome. Na chuva, no sol, chegava em casa de noite. Se quisesse

mora. Era do mesmo jeito, um mais pior do que o outro, (RELATO DA

ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

Na sequência a ex-moradora do Engenho Palma narra sua percepção sobre os

impactos e as mudanças no Engenho com a chegada do Sindicato Rural, o que

transformou a vida dos moradores trabalhadores explorados.

4.1.6 Escravidão disfarçada e o espinho do Sindicato

Interessada no assunto, com voz impostada, sentidos aguçados e atenção

concentrada no assunto, a entrevistada explica em suas narrativas como se deu o processo

de mudança de condutas entre o Senhor de Engenho, o Sindicato e os trabalhadores rurais

explorados na propriedade. A transformação das relações produtivas teve também

impacto nas relações de convivências observadas na década de 50 e 60 dentro do

Engenho.

As leis trabalhistas impostas pelo Sindicato Rural ao Senhor de Engenho, gerou

animosidade e raiva no proprietário de terra por ser pressionado a mudar sua forma de

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exploração dos moradores local. Os conflitos no ambiente de trabalho e moradia

representava ameaça de despejo, prisão e castigos severos. É uma narrativa bastante

detalhada que esclarece o contexto observado de perto.

Afirma:

Aí, depois foi que veio essa Reforma Agrária, teve esse negócio, o Sindicato,

foi que a Lei do Sindicato valeu. Foi que amenizou mais a situação do

trabalhador. Passou pra dois dia, era três passou pra dois. O Sindicato bateu

em cima, não era mais de graça de uma vez não, ele dava um dinheirinho, por

causa do Sindicato. O Sindicato que obrigô o Sinhô de Engenho tirá esse peso

de cima dos morador que era demais. Ele ficô com raiva, botô o morador pra

fora, ele botô pra corrê. Que o morador ia atrás sabe do Sindicato pra ter os

direitos deles. Apanharam muitos. Muitos apanharam, muitos morreram,

muitos fugia da casa, era assim.

Eles não queriam pagá nada pros trabalhador. Ele queria ter as coisa de graça.

Aí pronto. Faz muito tempo esse Sindicato. Aí, ficô assim, foi se

desenvolvendo, trabalhava e recebia menos, mas recebia. Como eu tava indo

dizê: era três dia, aí botô pra dois. Depois desses dois dia, eles pagava um dia

mais barato. E o outro ficava de graça. E assim foi enrolando sabe.

Foi enrolando em cima de gente, foi enrolando. Eu não lembro, se pagava tudo

certo ou se era do mesmo jeito. Era furniceiro e foreiro. Era tudo do Engenho.

Eu acho que ele dava permissão de construí a casa. Onde tivesse a casa, não

sei como era não. Eu sei que já tinha aquelas casa já. Agora aquelas casa tudo

velha sabe.

Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Deixava não.

Porque a banana dava um dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um

morador plantando banana ele mandava arrancá tudinho. Era Dr. Ênio. Aí,

depois de muitos anos ele morreu, ficou o filho. O filho único que ele tem. Eu

vi, eu era pequenininha, agora depois que ele cresceu não conheço mais não.

Mai, quando ele era pequenininho, pequeno, uns três ano eu acho. Eu via ele,

a empregada passeando com ele assim na coisa do Engenho.

Tinha uns homes, tinha o vaqueiro, tinha o pastorador das vaca, tinha tudo isso,

as empregada de casa, aqueles povo que trabalhava lá, pra lascá uma lenha, pra

fazê o que mandava, era cheio de gente lá, Casa Grande.

Tinha gado, muito gado. A Palma pertencia as vagem, era tudo cercado de boi,

por capoeira por todo lugar visse. Ali tinha muito. Tinha muita vaca de leite,

muita, muito boi, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

São narrativas com potencial de um documentário histórico na modalidade de

filme ou de livro didático na minha opinião. São falas reveladoras de acontecimentos

autênticos da vida social e produtiva, econômica e política, cultural e religiosa no

Engenho Palma envolvendo personagens de carne e osso reais, relações de interesses e

privilégios quase sempre. Os fatos e os objetos ferramenta de trabalho com valor

simbólico, as expressões de poder impregnados de intenções, dominação e valores de uma

classe homogênea se mostra nas atitudes e atividades de comando o tempo todo. É Salutar

observar as faces de uma história tão real contada voluntariamente para que a maioria dos

brasileiros de hoje e a comunidade científica tenha acesso. Pelo menos trata-se de uma

narrativa de acontecimentos reais, vivenciados empiricamente.

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Me refiro a outras páginas de um livro de memórias silenciadas pelo tempo e a

força do medo. A vida real no Complexo da Casa Grande do Engenho de cana-de-açúcar

na Palma, não se mostre tão inocente aos olhos analíticos de quem analisa o contexto de

fora, talvez a ingenuidade e beleza esteja tão somente na percepção imaginativa ou

sentimento saudoso da fase infantil da entrevistada. A escrita lida e legitimada é de uma

história oficial na versão de quem nunca viveu a realidade do lado oposto decerto, apenas

o retrato da face dominante do Senhor e seus iguais, que se coloca na posição horizontal

do poder e age de forma excludente para aqueles que viveu a dor na pele. Em outras

palavras, as narrativas em evidência, objeto desta análise e interpretação crítica,

corresponde sim a uma revelação de verdades outras, a experiência de uma ex-moradora

autêntica que não usufruiu dos privilégios de poucos.

Me refiro aqueles que ocuparam as terras desse país sem pedir licença aos donos

das terras, demarcaram limites até onde a vista alcança, como originários de uma reserva

no grande território. A grande propriedade é fruto disso, sobre ela construíram masmorras

e um sistema de controle a partir do Complexo da Casa Grande. Nela, se agregou o

funcionamento à base da força humana e do trabalho escravo. A desumanidade dos

corpos, das vidas de uma grande massa foram submetidos às condições extremas. A

propriedade do Engenho Palma não difere desse trajeto hostil em nome da tradição. A

ocupação e posse se transformou em conceito de herança transmitida de pai para filho, de

geração para geração de descendente do mesmo grupo.

Nos estudos sociológicos de Oliveira (2000, p.45), o autor afirma que “[...] o

principal elemento nas relações sociais de produção no Brasil colonial era o trabalhador

escravo. Somente “[...] a partir do fim do tráfico de escravos em 1850, a composição dessa

população” explorada foi se alterando em passos lentos. Com a declaração formal da

abolição da escravidão no Brasil em 1888, a reposição de indivíduos escravizados foi

interrompida relativamente, mas, as condições de trabalho dentro das propriedades rurais,

nos Engenhos de cana-de-açúcar não teve grandes mudanças. Já que pelo visto, a

escravidão no Brasil imposta pelos europeus, se tornou em certa medida mais abusiva e

agressiva nos grandes, médios e pequenos latifúndios do país, movimentado por trabalho

escravo. Um quadro bastante complexo como podemos observar nas narrativas da ex-

moradora do Engenho Palma que viveu no contexto da década de 50 e 60.

Outro aspecto é sobre as condições de pobreza e moradia precária em que viviam

os moradores do Engenho, nas palavras da entrevistada essa realidade aparece impactada

na vida familiar.

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A casa da gente era uma casinha muito é, casinha fraca né, como eu já falei,

antigamente não tinha casa de tijolo, era tudo de taipa como o povo falava, mas

eu tinha. Me lembro muito do lugar que eu morava e sinto saudade até hoje. A

Palma eu sinto saudade até hoje, quando eu passo por lá eu, parece que eu tô

vivendo aquela vida que eu vivia quando pequena.

Pois já voltei lá, já voltei lá, depois de uns tempo voltei lá mais meus dois filho

e uma amiga. E mostrei onde é que eu passava, onde eu morava, onde o lugar

que eu caminhava tudinho, eu mostrei pros meus, pra minha filha e o meu filho.

Eles ficaram tudo admirado, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

Perguntei ainda existe a casa onde morou com a sua família biológica [avô

paterno], assim respondeu: “[...] não, porque agora tudo é diferente né, agora tudo é

cana e banana, mai, mais ou menos assim se eu for lá e olhá assim mais ou menos, eu

ainda sei aonde eu morei”.

4.1.7 Senzala e Casas dos antigos moradores do Engenho [recente]

Da Senzala para as casinhas simples de taipa espalhadas no Engenho Palma.

IMAGEM 1 – SENZALA

FONTE: Imagem ilustrativa da antiga Senzala do Engenho - moradia dos escravos. Disponível

em: <http://www.joseferreira.com.br/blogs/historia/preciso-saber/o-engenho-e-o-fabricacao-do-

acucar-no-brasil-colonial/>. Acessado em: 13 de nov. 2018.

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Na substituição da senzala, o Senhor de Engenho construiu várias casinhas de

alvenaria espalhadas na propriedade para os antigos moradores ex-escravos que ficaram

no Engenho com suas famílias, como pode ser observada na figura [2]. Decerto, os

moradores foreiros permaneceram na Condição à exemplo do avô da entrevistada que

morava nessas condições de moradia, casa simples, precárias e reguladas pelo sistema de

trocas. Ou, pagava pela ocupação, ou, prestava serviços gratuitos, ainda podendo oferecer

uma quantidade de grãos da produção oriunda do trabalho na terra. Essa era a situação do

morador foreiro do Engenho Palma. Uma espécie de acordo [contrato informal] com força

de lei e punição.

FOTOGRAFIA 2 - CASAS DOS ANTIGOS MORADORES DO ENGENHO

Com as mudanças do Brasil Colônia para o Brasil República, a Senzala do

Engenho Palma também fora sendo substituída por micro Senzalas na forma de casinhas

simples [taipa] para os ex-escravos ou moradores foreiros continuar morando na

propriedade do Senhor. E assim continuar trabalhando para ele produzindo lucros, manter

os herdeiros da terra controlando a propriedade escravocrata do suposto passado de

outrora.

As senzalas eram as habitações construídas na forma de barracões sem divisórias

para os escravos negros residirem no mesmo ambiente [homens, mulheres, crianças],

todos juntos e misturados entre si. Eram locais precários e com péssimas acomodações,

insalubres, cheios de de insetos, ratos, morcegos, na maioria das instalações. Os escravos

FONTE: Casas dos antigos moradores do Engenho de Palma [Sistema Colônia]. Parte do Complexo

da Casa Grande. Fotografia de acervo pessoal. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto de 2014.

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dormiam acorrentados, com o corpo e os pés presos para fuga, violências físicas entre si

ou fugir do Complexo. Já que nada mais eram do que uma mercadoria com pernas. As

senzalas eram relativamente grandes, abrigava um numero de 20 a 50 indivíduos, ou, até

mais que isso. A quantidade de escravos dependia da fortuna do Senhor do Engenho e da

necessidade de comprar mão-de-obra escrava. Em geral, na maioria dos grandes

Engenhos, a soma oscilava entre 50 e 60 pessoas escravizadas. Sem divisão nos cômodos

da estrutura [homens, mulheres, crianças] dormiam no mesmo espaço-lugar. Nas

proximidades das senzalas o Senhor instalava o conhecido tronco ou pelourinho, lugar

usado para castigar [educar] o escravo desobediente ou matar de espancamento e surras

em público, um ritual iniciado no século XVI. Em paralelo, podendo ser comparado com

a fogueira da inquisição promovido pela Igreja Católica em praça pública; na queima e

extermínio de pessoas acusadas de bruxas, hereges, anticristos das mesmas épocas,

(ANTONIL, 1711).

São memórias vivas e detalhadas que permanecem produzindo diferentes

emoções, significados e representações para a ex-moradora do local, imagens com

impacto em sua história de vida que permanece até os dias atuais. É um discurso que ela

segue retratando as realidades e acontecimentos vividos e testemunhados na infância e

adolescência como se fosse gente adulta, como visto na parte IV do capítulo IV.

PARTE II

4.2 MODO DE VIDA, CONTO E LUDICIDADE INFANTIL

Em meio a realidade complexa do Engenho, o mundo vida infantil da entrevistada

não parou, em meio aos conflitos dos adultos encontrava lugar para brincar, vida livre,

sem afetar sua imaginação criativa, lúdica e inocente.

Dar destaque dizendo:

A gente brincava, eu ia pra lá só levá almoço pro home que morava lá. Que ele

trabalhava lá, era o maquinista do engenho. A gente chegava lá, eu pegava

fava e saía. Eu brincava nas solta, nas vagem, nos rio, era lá que eu brincava. Sozinha, mais umas amiga, às vezes sozinha, às vezes mais umas menina

também que tinha lá. Muitos morador né. Eu conheci as menina, a gente ia

tumá banho, era muito bom, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

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No Engenho a ex-moradora estabelece forte relação com a natureza e os elementos

de contato cotidiano. Seu sentimento é de pertencimento ao lugar, a melhor fase pelo visto

em que viveu as aventuras infantis, a cultura regional manifestada nas festividades

populares. No pátio da Casa Grande acontecei bailes de carnaval, maracatus, cirandas,

comemorações religiosas. Eventos promovidos pelo Senhor de Engenho [Dr. Ênio Pessoa

Guerra] prestigiado por seus moradores festeiros. Um modo de integração da convivência

social e distinção de classe operada ao mesmo tempo e no mesmo lugar. A rica vida

cultural no Complexo servia de estratégia de controle e alívio das tensões e conflitos,

também mostrava o poder do Senhor e sua capacidade de mando. A natureza e a cultura

do Engenho foi o que mais forte marcou suas memórias. Afirma:

Ah! Eu tinha umas arvores, eu gostava muito de ficá brincando por debaixo

dos pé de árvore, gostava muito de ficá sozinha, conversando sozinha (risos).

Quando eu falo sozinha eu fico embaixo dos pé de árvore, pra mim é uma

beleza, uma bênção aquilo ali pra mim. Tomar banho no rio, quando eu morava

na Palma, tumava caldo no engenho, chupá cana, comê mel, era muito bom era

maravilhoso isso aí, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

4.2.1 Liberdade - um modo de ver o mundo

A senhora se sentia livre morando no Engenho? Debulhou a resposta em palavras,

disse:

Quando eu tava naquele, naquelas soltas, naquelas vagens eu me sentia livre

como um passarinho. Aí aquilo pra mim era a coisa melhor do mundo que

sentia. Era muito bom.

Porque eu ficava, eu gosto muito de mato, de mata. Então, eu ficava por dentro

dos mato comendo araçá, comendo essas coisa, então eu me sentia muito livre,

era muito feliz.

A liberdade é coisa muito boa. Eu hoje me sinto liberta. Ói, eu me sinto, a

liberdade é uma coisa muito boa, uma coisa que você não se sente preso a nada.

É assim que hoje eu me sinto. Não sou presa a nenhuma coisa, faço da minha

vida o que eu quero. Vou pra onde quero, converso com quem eu quero, tenho

liberdade ir pra casa dos meus filho pra onde eu quiser. Então, isso pra mim é

a liberdade, que eu antes não tinha e agora eu tenho, sem ter ninguém que

mande em mim.

Criá filho não é fácil, é difícil. E a gente não tem liberdade pra fazer tudo que

quer quando tem filho pequeno. Então, é obrigado a fazer o que os filho precisa

né. Não tem liberdade, hoje eu tenho porque são tudo criado, tudo de maior

nos seus canto. E hoje, eu tenho muita liberdade. Tô muito feliz graças à Deus.

Sinto. Me sinto muito feliz hoje, graças a Deus. Me sinto feliz porque graças à

Deus não me falta nada, sou feliz com meus filho, amo meus filho, meus filho

me ama também. Então, eu sou feliz porque quando eu quero ir pra casa de um

filho eu vou, quando eu quero almoçar com filho eu vou, quero passear com

meu filho eu vou, então, tem liberdade melhor do que essa?, (RELATO DA

ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

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4.2.2 Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância

A festa foi de Bizarra, e a gente morava na Palma, daí a gente fomos a esta

festa. Aí Dona Maria dixe assim: Ô, vamo pra festa Maria. Eu sei que eu fui.

Morava com Seu Zé João, foi que eu pedi à ele. Eu dixe assim: to sabendo da

festa de 15Maria do quejeiro. Seu Zé João era o hôme que morava lá, era o

maquinista do Engenho. Que moía a cana na moenda do Engenho. Aí eu pedi

à Dona, à mulher dele. Ô Dona, a Srª deixa eu í pra festa de 16Bizarra? É Das

Dore. É. Aí ela disse assim: - Vai mais quem? Eu disse: - Eu vou... Só que a

gente tinha combinado pra í, pra que as irmã dela também ía. Que era Ester e

Ôróra. Duas moça, duas mocinha. Não. Cunhada de Zé João, irmã da mulher

dele. Era. Aí eu dixe: - Mas as menina também vai, a Srª deixa eu í, que eu vô

daqui com Maria, de lá a gente se junta. Ela dixe: - Então tá bom. Aí a gente

se vestiu minha fia, e saiu de mundo afora.

Que idade que a senhora tinha?

Uns 10 ano, 11ano. Uns 10 ano eu acho. Era Festa do Padroêro da cidade, é a

de São Sebastião. Era. Ai, a gente foi né. Saiu danada de perna de tardezinha

lá e fumo simbora, chegamo lá e se encontremo com as menina. Ai, fiquemo

na festa. A festa não foi muito boa não, que. Ai, a gente tava na festa, dali a

pôco foi um rebuliço, uma confusão, um povo tudo caindo, o povo tudo

correndo, coitado, tinham matado um hôme. Foi. Ai, a gente não sabia se corria

de noite, tarde da noite, se corria pra casa ou se corria pra se escondê em algum

canto, e a gente ficâmo sem sabê. A maria, as menina se perdêro. Ainda bem

que me segurei em Maria, (risos). E Maria, eu agarrando na saia dela (risos),

vou te conta. Maria morava na Palma também com a gente.

Todas essas meninas moravam na Palma, as irmãs. A Ôróra e Ester moravam

na Palma. Maria morava na Palma e eu morava na Palma. Tudo essa gente.

Tudo no Engenho. Lá no terreno do Engenho. Ai, minha menina, a gente fomo

corrê pra se escondê. E quando a gente tava correndo, topêmo foi com o hôme!

Com o homem que mataram. Ele tava sentado, assim no poste viu, (gestos de

corpo largado). E aquela cheia de sangue assim. Foi de faca. Foi. Eu não sei

por que né. Um rapaz ainda. O rapaz era alvo, bonito. Quando a gente deu de

cara assim, ele sentado no poste. Assim, a cheia de sangue. E a gente ficamo

doidinha. A gente corria de um canto e corria pra outro. E acertá o caminho de

vim meia noite!

E peguêmo as menina e cadê as menina. Minha fia, e haja gente a caçá, as

menina, Maria ficô doidinha, Maria e eu também fiquei. Ai, adepois, a gente

se encontrou com as menina. Mas a gente tinha que deixá amanhacê o dia, que

a gente não vinha sozinha que ia era por dentro das cana, por dentro dos mato.

Aí fiquemo na festa se acabando de medo. Ai, quando foi de 5 hora da manhã,

viemo simbora pra casa. Por dentro das cana, por dentro do mato. Chegando

em casa o sol já tava, o sol já tinha naiscido. A festa acabô, acabô de manhã.

Acabava de manhã a festa sabe.

Aí a gente viemo simbora pra casa, cheguemo em casa a Dona das Dores. A

Dona das Dores. - Mataram o hôme na festa. Ela dixe: - Tás vendo, eu bem

que eu disse à tú, que tú não fosse. Eu e Maria, a gente se encontrava lá nas

bacia do Engenho, Maria era uma bixiga também, (risos). Mais a gente ria tanto

minha fia, (risos). Ela namorava cum vaquêro. Era. Ai, um dia eu ía passando

15 Maria do queijeiro é ex-moradora do Engenho Palma, única amiga de infância da entrevista ex-

moradora do mesmo lugar, é viva, lúcida e mora da cidade de Machados. Ambas, mantêm amizade e

convivência próxima até os dias atuais. 16 A cidade de Bizarra é uma cidadezinha próximo do Engenho Palma, menos distante do que a cidade de

Machados, porém menor.

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era aquela conversa. A Maria namorava com um irmão, cum povo do mundo

minha fia! Era uma moça da gota. E era moça viu! Ela era mais velha que eu,

sabe quantos anos? Eu tenho 65, 6 e ela tem 76. Dez anos de diferença. E ela

já era moça já, mocinha. Moça nova mas era. Ai, passa Maria conversando

com o namorado, era casado já sei lá. Ai, só sei que tava Maria, quando foi no

outro dia foi que disse: - Ô bichinha, eu vi tú. Tava até a boca viu (risos). Nem

em casa ia viu, namora escondido. Ele era casado! O nome da mulher dele era

Belmira, sei lá. Ai, chegando em casa ela me dizia (risos). Ai pronto, a gente

passou esse tempo junto né, lá na Palma, depois eu saí, fui pra onde meu Deus!

Que eu fiquei longe de Maria. Conheci o pai dela, conheci a mãe, os irmão

dela. Eu não ia lá muito não. Mas ele fazia bolo, ele era bolêro. Todo mundo

que comprava bolo era dele. Bolo de Mandioca, Bolo de Trigo. Ele fazia bolo

numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande? De

pescada pequena. Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim

redondo (gestos com as mãos).

4.2.3 Banho de rio e pescaria

As aventuras dentro do Engenho também faziam parte das brincadeiras, do

aprendizado e da própria sobrevivência, relata:

A gente ia tumá banho meio dia, eu e as menina. Ela dizia assim: bora tomá

banho, digo vambora. A gente vai pescá. Era a Oróra e Ester, era as irmã da

mulher que eu morava lá. Aí, a gente ia de carrêra disparada no Engenho da

Palma. Mas, a gente ia pro rio, que é o rio de Orobó. A gente tava em casa né,

morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas pra gente í toma banho.

A gente saía de carrera disparada, num calor, um sol que doía. Do jeito que a

gente vinha, do jeito que a gente vinha de carrrêra, ladeira abaixo, nóis pulava

dentro do rio. Era bom, rio grande viu. Água limpinha. Aí, a gente tava

tumando banho, aí dizia: Ô, vamo pescá, eu digo: vamo. Aí, tinha umas lóca

dum Pial e Jacundá, era o peixe sabe? Ele tinha as lóca de entrá e de saí. Eles

sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque se você for butá

a mão por ali, ele sai por ali.

A gente ia tomá banho. Tomava banho e pescava. Meio dia, a gente morrendo

de calor, o sol quente. Procurava onde era a boca, chega era lisinha. Procura

onde é a saída e a entrada. Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui.

Eles furavam buraco nas parede pelas pedra.

As menina ia tampava e a gente vinha por aqui. Lá dentro das lóca. Acho que

eles se achavam preso lá e ficavam tudo furioso pra sai, oxe! Era pegano assim,

butava na saia, prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe. Branquinho

que chegava a brilhá. Era Jacundá e Pial. Aí, a gente prendia quando ele vinha

pulá, algum ia simbora, algum fugia e outros a gente pegava. Ficava dois na

boca. A gente pegava, vinha pra casa nos colo, porque não tinha onde butá os

peixes. Chegava em casa, oxe, Pial que era branquinho, pegava na hora assim,

tratava, butava sal e já ia assá pra cumê tudo. Mai, a gente fazia isso era no rio

da Palma, no Engenho da Palma. O Rio de Orobó cortava esse mundo todo. O

Rio de Orobó, ele nascia na Palma.

Oxe, o rio ele circulava a Palma todinha, Macicuava, Bizarra, Lagoa Comprida

e vai simbora, Limoreiro e vai simbora. Não tem fim o Rio de Orobó. Nesse

tempo tinha muito peixe, muito peixe nele.

O home ia pesca. Tava sem carne né? Ôh! João, hoje eu vô pescá. Ele dizia era

de manhã. Depois do almoço eu vô pescá. Ele tinha uma mochila desse

tamanho assim.

Uma mochila bem grande. Ele amarrava a mochila na cintura, vestia uma roupa

bem velha. Era um por dentro da água e outro por fora do rio. Aí, ouvia ele lá.

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Ele tinha dentro d’água era o caminho já. Olha lá pra quele bicho assim, olha

lá. Pescadêro viu. Oxe, tinha cada traíra ele pegava!

E nóis ficava batendo atrás dele pra pegá. Nós fazia que nem cachorro, se ele

pegá no dedo ele atora.

Ó, vai juntá uma pedra, qualquer coisa. Eu arranjava a pedra, punha lá, isso

tava aquele rolo assim num canto do jereré.

Aí com jeitinho assim pegava pela gargantilha, rasgava, a trouxa de traíra,

jacundá e um peixe chamado Piau. Existe na Palma. De certo, lá não tem peixe

mais não. Tinha um lugar lá que, um peixe que pegava, ô meu Deus, Jacundá

não, era Cumatã. Ah! Cumatã. Ela anda de rebanho feito gado, feito ovelha.

Ele é muito. Uma sai de filinha atrás da outra assim ó. Cada uma desse tamanho

assim ó.

Uma vez ele pegou um. Agora vc não podia pegá não, viu. Era um pedaço de

rio que tinha e que só tinha esse peixe e era só ele que podia pescá nesse lugar.

Mas, quando a gente ainda tava dentro do rio, í pra casa, disse assim: Vamo

simbora, ói, já tem uma bicha ali, ói uma cobra.

Cadê? Mas, graças a Deus que eu olhava, olhava e não via. Dizia que era

amarela, mas eu não via não. Só bichinho enorme, dizia, eu vô saí daqui.

Vamo simbora, já tá de noite. Vestia a roupa, aquela trouxa de peixe assim ó.

Aí, chegava em casa já tava escuro, daí a pouco a gente chegava. Ele pegava

uma butija que tinha ali de barro, despejava a botija de peixe, mas era aquela

peia de peixe. A gente ia pelá aqueles peixe, era pra pelá um bocado do peixe

que era pra fazê o molho pra gente cumê né.

E eu ficava pelando. Depoi que terminava, ia pelá também. Então, pegava uma

arutuma que tinha, botava aquele estendá de peixe. Salgava tudinho e butava

aquele estendá pra gente cumê.

Mai era bom. Lá em casa toda semana ia pegá. Era fácil mesmo. Porque ói,

não tinha não, não podia todo mundo pescá não, viu. Tinha que primeiro pedi.

E se fosse morador pescá e se não fosse morador, ele botava pra corrê. Seu

João Diló, era. O Seu João Diló diministradô da Palma.

Ele conhecia a gente, mai ele deixava a gente pescá. Às vezes a gente ficava

com medo. Vixe, se o hôme chegá aqui e brigá. Aí, ele passava assim, via a

gente pescando não dizia nada não. Toda semana a gente ia pescá. A gente

comprava carne no sábado e quando se acabava, no meio da semana dava

apuro. Vou pescá. Hoje eu vou pesca, viu João? Tá certo. Aí, chegava no dia

fazia aquela panelada de peixe. Era do rio. Água do rio, peixe do rio. Era uma

barriga cheia no rio, muito peixe, muita coisa.

Foi pescando mais os menino, a gente pescava. E como é tempo de camarão.

Numa época de camarão, oxe! Tinha dois tipo de camarão pra uma pessoa só.

Assim, puxava o jereré e vinha aquele monte de camarão. Bom tempo viu.

(RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO

ENGENHO PALMA).

4.2.4 O ladrão e a viúva do Engenho

O conto sobre o ladrão e a viúva é mais do que um acontecimento cotidiano do

Engenho, foi uma história real com consequências graves que serviu de exemplo para

todos os moradores local, como era a ação e o costume do Senhor de Engenho que agia

com violências para o controle das vidas subordinadas. Em detalhes relata:

Um dia me lembro, eu era pequena, de manhã eu fui busca água. Qualquer

coisa que acontecia na fazenda, na Casa Grande era uma confusão medonha.

Aí, eu fui buscá água com tanto medo. Aí, ele tinha um morador. Um morador

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foi robá a cabra de uma viúva que tinha, Dona Maria Pino. Ela tinha umas

cabrinhas lá, marranzinha. E eles todos era morador dele da Palma.

E esse ladrão foi robá. Esse home foi robá a cabra de Dona Maria Pino, uma

velhinha viúva. E o vigia ficava a noite todinha circulano o sítio todo sabe. Que

num sítio desse tamanho qualquer coisa que acontecesse era pra mata, ou matá

ou algemá e leva pra fazenda todo algemado.

Aí o vigia tava percorrendo era muita coisa pra esse home percorê na Palma.

Mas, era mais o lugar onde tinha as coisa: lavoura, cercado de boi, essas coisa

sabe?

Aí, o vigia viu uma gritarage de noite. “Solta minha cabra, ladrão!” A viuvinha

gritando, a mulher gritando. E do outro lado o vigia escutô né. Aí, ele foi atrás.

Dali a pouco, quando ele foi subindo a ladeira, lá vinha o cara puxando a cabra

da mulher. Puxando a marram e a mulher em cima gritando, chorando. Ele

desceu da bola de roça grande, ele puxando a cabra pra baixo. Quando chegou

em baixo o vigia já tava esperando ele.

Quando ele peitou foi em cima do vigia. Aí, o vigia pegô ele, levô ele pá

fazenda e a cabra. A cabra já tava morta. Não, foi não. Ele deixô levá a cabra,

a marram bem amarelinha, vermelhinha. Quando ele tava sangrando, o vigia

chegou. E tinha visto toda essa cena já né.

Aí, daquele jeito que tava a cabra sangrada, amarrada, sangrada, ele levô pra

fazenda o home e a cabra. E amarrado chegô lá: Ai, o Dr. Ênio pegô ele, botô

ele num canto, deu uma coça nele, deu-lhe uma piza. E um chapéu de palha

grande, hoje eu me lembro. Um chapéu de paia grande ele quebro aqui na testa

dele, quebro assim, ficô toda de fora a cara dele e a marram, amarrô ela morta

no pescoço dele. A cabra pendurada pra trás, a corda aqui na frente do lado da

cabra amarrada. E no cacete até em Bizarra, que ele foi preso em Bizarra. Ele

é quem mandava. Não era Polícia que levava não, ele mandava levá e prendê.

Aí, eu vi isso de manhã quando eu fui busca água, eu dei de cara com esse

home.

Não, eu fui buscá o leite. Que todo dia o home, o seu Zé João, ele dava. O seu

Zé João dava todo dia um litro de leite, ele dava ao morador. A todos não, mas

a muitos eles dava sabe. Eu fui buscá o leite. Seu João trabalhava no Engenho.

Era o maquinista do Engenho. Quando dei de cara na curva, não gosto de

lembrá dessas coisa não.

O home com aquela coisa quebrada na testa assim, a cabra com o pescoço

mole, balançando assim, derramando o sangue amarrada no pescoço dele. E a

cabra pra trás. Quando eu vi aquilo meu Deus, uns vigia de um lado e o outro

do outro, parei.

A gente morria quando eu via aquilo, viu. Cheguei, eu dixe Dona, eu vi uma

coisa tão feia. Ela dixe o que foi? Eu dixe a ela: acho que foi alguma coisa que

aconteceu na fazenda do Engenho. Aí, quando eu dixe a ela: um fulano de tal

que robô a casa de fulano de tal e o vigia pego e foi cacete viu. E levou pra

prendê, tá preso em Bizarra com essa cabra nas costa. Ninguém roubava não!

Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate

verde que tava no chão caído. Abacate verde, eu tava dentro de casa.

Aí, o abacate caiu, eu tava com fome fui apanhá. Dali a pouco chegô o vigia,

Virgi Maria do céu! Eu tinha um medo tão grande de seu João de Diló visse.

Botava lá pra fora e me dava uma pisa. Deus do céu! Quem é que não tinha

medo, né. E eu achei no chão, mas dixe que mesmo no chão não era pra pegá.

Deixasse lá. Oxe! Era muito medo que o morador tinha. Era tudo pisada em

cima da linha direitinho ó.

Era, ninguém saía do risco não, porque se saía era prisão e cacete, outro até

morria. Era. Dr. Ênio lá no Engenho era virado no diabo mesmo. Quando

dissesse fulano de tal venha cá, não fosse não pra vê. E ele já ia se acabando,

ele sabia que alguma coisa já ia fazê com ele, né.

Ah! Era todo poder na mão dele. Eles faziam o que queriam nos Engenho deles.

Todo Senhor de Engenho são assim. Eu só conheci esse né. Mas, que as

pessoas diziam. Também não existia muito Senhor de Engenho não né? Pra ser

um Senhor de Engenho naquele tempo acho que existia porque tinha o

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Engenho da Palma. Tinha o Engenho de Massicuaba. O Engenho da Palma, o

Engenho de Massicuaba e o Engenho de Paraná. Era três Engenho perto

mesmo. Era três Engenho perto. Massicuaba, tudo de uma família só.

Dr. Ênio, Massicuaba acho que era de um irmão dele, sei que era família lá.

Era três Engenho que tinha. Agora Engenho grande que tinha, Engenho grande

mesmo era dele, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

4.2.5 Maria Quejero - amiga de infância

Não, o nome dela é por causa do pai dela, era Eraque, Maria de Eraque. Agora

só que o apelido de Queijera, porque o marido dela vendia queijo.

Ai, tem o nome de Maria Queijera porque ela casou-se com o Senhor Queijero.

Mas o nome dela é Maria do Seu Eraque. O pai dela é Eraque. Morava no

Engenho, todos eles. Era o pai dele. Eu conheci o pai dele, conheci a mãe dele,

conheci os irmão, conheci as irmã.

Perguntei: porque que a senhora não foi morar com eles?

Deus me livre, tinha um bocado de hôme. Tinha rapaz. Eu tinha a maior

vergonha de hôme na minha vida. Eu vinha, se tivesse mulher eu chegava ali

e falava, mas se tivesse hôme dali eu vortava. (Risos)

Eu sei, eu era assim. Eu melhorei muito, mas eu era uma um bicho do mato

mesmo. Envergonhada, morria de vergonha de qualqué coisa. E de hôme

principalmente. Sei que não podia vê hôme não visse? Cortava caminho,

cortava a volta. Se tivesse hôme ali, eu cortava por dentro do mato o mais longe

pra não passá por perto.

Eu não sei. Ia, lá pro seu 17Oliveira (cochichando) - Meu Deus do Céu, será se

esse hôme não tá em casa? Jesus, tomara que ele não teja, meu Deus. Ia eu de

pontinha de pé, pontinha de pé. Se eu visse a cara do Seu Oliveira, eu me

escondia.

Ficava esperando, aí, se esse hôme saísse pra fora ou 18Enilda, ou comadre

Irene. Que era pra mim chegá e falá alguma coisa. Só que eu não chegava de

jeito nenhum.

Óh Maria, tá vendo? Perguntava a ela: - Olha lá, seu Oliveira ta aí? – Painho

tá lá fora. Mas deixe disso, num vai entrá, tá lá fora. Olhe, que eu ia com ela,

ficava na cozinha. Mas se ele tivesse na cozinha eu não ia não. Sempre fui

assim. Desde pequena que eu sou assim. Agora melhorei. Agora já chego na

casa do hôme, já converso. Se eu não conhecê também né? Se eu não conhecê,

eu fico meia envergonhada, timidez né?

É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa. E pra tudo né, pra falá com uma

pessoa só falava se conhecia, e se eu pudesse não falava porque eu tinha

vergonha de falá. Sei lá o que é que eu tinha, eu era que nem bicho do mato

mesmo.

Bizarra foi a última festa que a senhora foi na companhia da sua amiga Maria Quejero?

Foi. Ai, depoi eu saí de la, da casa que eu tava, fui pra outro lugar, outra casa

ali em Palma mesmo só que em outro lugar.

17 Oliveira, era o nome do esposo da cunhada, da entrevistada. 18 Enilda, era a filha da cunhada.

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4.2.6 Desencontro e reencontro com as amigas de infância

Ai, se desencontremo de Maria. Me desencontrei de Maria e nesse tempo

todinho, fui lá pra Machado, tive os filho tudinho, ai, quando foi o dia uma

pessoa disse assim: o filho meu parece! – Ô bichinho onde tá tua mãe? Ai, ali,

em cima mora uma mulher que conhece a senhora. Eu disse assim: - Ah ei,

quem?. Disse: Eu não sei, mas eu passei por lá na casa de tio Oliveira e

conversei com ela. Ela disse que conhecia a senhora e queria vê a senhora. Eu

digo, mas quem é essa mulher meu Deus? Ele disse: - Não sei, ela mora ali. E

mostrô a casa, lá perto do Seu Geraldo. Eu fiquei, fiquei, e disse quem é essa

pessoa, essa pessoa? Ai, quando foi um dia eu cheguei, perguntei a Enilda: -

Tu sabe quem é aquela mulher que mora ali? Ela disse: - É uma mulher que

tem um bocado de menino, se chama Maria. Eu digo, vamo passá por lá, pra

quando eu vê se conheço ela. Ela disse: - Vamo. Ai, a casa dela era assim e o

caminho era assim né (gestos indicando o lugar). O caminho ía a casa dela.

Ai, quando eu ia passando ouvi o grito dela. Me conheceu. Maria! Eu olhei

assim e disse assim: - Oxente! É tu que mora aqui? – Eu já sabia que tu morava

aqui, mas só que eu não queria, não ia na tua casa. Ai, demo um abraço e

comecemo a conversá.

Depoi que o menino dela morreu, e a gente fico, depois Maria desapareceu de

novo, (risos). Ficô eu. Ai, quando o 19hôme foi simbora pra São Paulo, que eu

fiquei só e fui trabalhá, me encontrei com Maria de novo. Quando eu cheguei

pra trabalha, Maria! Eu digo: - Xente! Ela disse: – E tu tá fazendo o que aqui?

– Trabalhá. – Eu também. Ai, fiquemo amiga de novo, até hoje. Ai, não se

afastemo mais não. Ela pegô, ela morava na rua da Palmera e eu lá no sítio.

Depoi, eu sai do sítio fui pra Recife, fiquei um pouquinho, voltei, a gente ficô

amiga de novo.

Eu sou, eu tenho 10 anos mais nova de que ela, ela tinha, se eu tinha 10 anos

ela tinha 19 não era? É por aí, até hoje. De vez em quando ela vai lá pra casa é

uma festa. Anda e tudo, ela já tá bem veínha. Veínha não. Toda cheia de dor

que nem eu, cheia de problema, mas ela vai lá em casa. Outro dia ela foi lá pra

casa. Ligou pra mim disse: -Maria liga pra mim, de vez em quando. Liguei. -

Maria... -Digo: Oi. - Tu tá em casa dormindo? Eu digo: - Tô. – Vou ai te vê.-

Vem mesmo, mesmo! Oxe, é a maior alegria, (risos).

Vou ajeitá a casa e fazê almoço que a minha amiga vem pra aqui hoje. A gente

conversa o dia todinho, ai, quando é de tardinha ela vai simbora. É muito bom.

Três amiga que eu tenho desde quando criança é: Maria, Creusa e Das Dore.

Aquela galega que morava lá perto do seu Fera, atrás lá no Sítio. Duas galega

do cabelo branco. Ela se lembra de tudinho. Duas moça, é duas moça véia.

Essas duas moça eu conheço desde quando era pequena. Moraram em Palma

também.

Ela mora em Machado. Ela mora na rua de Machadinho e Maria mora na rua

da Palmeira. Elas moram lá na rua. Vou! De vez em quando, eu vou lá.

Das dore, ela tá meia adoentada, nunca mais eu vi não, mas de vez em quando

eu vou lá.

Seu Zézinho Menino da Palma também, conhecido da gente. Essas três pessoa,

eu conheci quando era pequena e até hoje não se separemo. Separemo, depois

de um tempo se encontremo de novo, pronto. Tão tudo em Machados agora e

a da Palma também junto com a gente.

Agora, Maria que eu sei, ela tem muita história pra contá, porque ela já tinha

vivido uma época atrás. Ela era nascida. Eu acho que ela naisceu e criou-se no

Engenho. Eu acho que foi. Acho que ela nasceu e se criou. Eu também nasci,

me criei no Engenho né. Mas só que eu foi de lá pra cá, 10 anos pra cá. E ela

10 anos pra trás já conhecia.

É, essas moças são velhas, mas elas sabem, tem história. É Dr. Ênio era

padrinho delas. Não sei de que jeito tá, mas caduca tá não. É. Agora uma das

duas gosta demais de conversá, outra mais calada.

19 O hôme é o ex-companheiro e pai dos filhos da entrevistada.

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Vê só o que eu fazia. (Risos). Ela um dia desses, ela tava falando. A gente tava

falando e conversando: Ai, a gente fazia farinha na casa de farinha delas, a

gente morava perto delas, depois se mudemo pra perto de 20Maravilha né?

4.2.7 Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão

E as coisas ficavam tudo lá, a semana todinha a gente fazia farinha lá. Elas

tocavam na azabumba, Pandeiro e o violão e eu ficava doidinha menina. “Meu

Deus do Céu”. Eu ficava doidinha quando via Das Dores pegá aquela

Azabumba “ti bum”, eu ficava assim hó, (gesto de alegria).

Uma vez eu disse assim: - Ficô uma farinha lá na casa, eu tinha 7 ano pra 8

ano, 7 ano eu acho. – Vai buscá uma pilha de farinha que ficô lá na casa de seu

Zézinho Menino. Vai logo cedo. Era o pai delas. – Tu vai cedo buscá. Eu disse:

- Tá certo. E eu fui fazendo rodapé por casa das minhas amiga. Em cada amiga

eu parava um pouquinho. Eu era levada do diabo não era? Fui na casa de umas

das amiga minha e ela tinha saído, eu fiquei esperando, mas vê só. Fiquei

esperando minha fia, deu meio dia, eu morrendo de fome lá esperando. Ai,

num chegô ninguém, eu fui mebora, fui lá pra Das Dores. Chegando lá tava

Das Dores da gota batendo pandero, a filha do quejero que era amiga também,

(risos), tava tudo junto. Era um no Zabumba, outro no pandêro, outro no violão,

minha fia, e a dança cá gota oxe! E eu no meio (risos).

4.2.8 O medo e mentira

E eu fiquei lá e as menina tocando e dançando, e eu olhando sem almoçá, fome

da gota. Disse: - Ô Maria, já tu saísse de casa que hora tu saísse de casa? – De

manhã. – Tu já almoçasse? Eu disse: - Não.

Vou vê uma coisa pra tu. Ô Maria, tu viesse fazê mesmo aqui o que? Eu disse:

- Buscá farinha. - Eita! Tu vai levá uma pisa da gota.

- Saiu de casa de manhã? Digo: - Foi. – Maria tu sabe tua tia quem é. E eu me

lembrava?! (risos). Eu só lembrava o que era quando eu ia no caminho. Eu

disse: - Meu Deus do Céu, vou levá uma pisa hoje! Vai vê a mentira que eu

preguei. Fiquei com medo de apanhá. Quatro saco de farinha, farinha pesada.

Subia ladêra e descia. Eu ia pensando: - Que é que eu vou dizê! Pensando e

caminhando. – Ai, eu sei o que que eu vô dizê. Vou dizê que me deu uma dor

e eu caí.

Mais veje só. Aí quando chego, subia ladêra correndo com saco na cabeça

cheguei molhada de suor. Cheguei aí ela: - Mais cachorra da peste, agora

chegando! Onde é que tu tava? – Ai é que me deu uma dor no caminho eu caí.

Me levantei agora. Veja só. Mai a pessoa que mente é uma tristeza.

E ela acredito né? Mais ou menos. Ai meu Deus! E ela foi procurá sabê. E eu

me esqueci de dizê à Das Dores, eu não vi a Das Dores na casa, que se ela

perguntasse alguma coisa ela dissesse que foi verdade. E eu sei que a Das

Dores, meu Pai do Céu, Das Dores vai dizê e foi certinho.

Quando chegô lá, ela perguntou à Das Dores, às menina: - Ôh! Das Dores,

Maria teve aqui ontem? - Esteve Dona Zefinha. - Má rapaz, Maria veio buscá

só farinha, só chegô em casa de noite! Que hora que ela saiu daqui? Perguntô.

E eu tava perto, corri logo, me escondí (risos).

Quando vi. Ai, eu disse assim, fiquei pensando o que é que ia dizê né, que ela

sabia que eu ia apanhá, que ela sabia que era tudo mentira. E ela fico assim: -

Ah! Ela saiu daqui de tardezinha. - De tardezinha? E que hora ela chegô aqui?

- Era umas 2 hora da tarde ou 3. - E foi? Calô-se. Eu digo: Cochichando. – Mas

20 Maravilha é um povoado próximo do Engenho Palma.

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Das Dores, pra quê tu disse? Eu disse que tinha caído no caminho, tinha dado

uma dor! – Ai, eu não sabia, (risos).

4.2.9 Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó

- Porque que tú dixesse se ela ia perguntá? - Eu me esqueci, eu disse: - mas,

levei uma pisa menina. - Eu fiquei com pena agora, mas eu não sabia minha

fia, peguei e falei. Cheguei em casa, e foi tanta da coisa que ela disse comigo,

pegô ó. Oxe, mai foi cacete viu! Disse que pra nunca mai eu menti. Mas eu

mentia, eu mentia daqui pra li. Porque eu tinha medo de apanhá!

Eu inventava uma mentira, mas não lembrava. Mas ela ia atrás sabe. Pegava

cada mentira minha, ai, eu apanhava. Vixe, ai, foi assim, agora tô me

lembrando. Eu tava dizendo, falando. Vixe Maria! Mas aquela véia era muito

ruim pra tu viu. Má uma vez eu tive até medo, eu vi a véia fazendo assim: pá!

Pensei que ela tava batendo, ela tava batendo numa galinha. - Era em mim. Ela

disse que via ela pegá assim aquele negócio, “pá” na parede.

Daqui a pouco “pá” na parede. Disse que danado é aquilo? Ai, ela disse que

vinham tudo na porta, disse que era, era eu. Mais Dona Zefinha, a senhora qué

matá a menina? Eu quero matá. Ela era ruim, nunca vi.

Era dessa cor ela era. Alta que não passava aqui não. Mai a bicha era ruim.

Deus sabe que eu to falando. Minha fia mai essa veia era ruim, ela pisava na

guela. Ela mesmo dizia: “Eu piso, enquanto eu pudé, eu to batendo”. Era,

quando não aguentasse mais, cansada, é que ela soltava. Quando tava assim no

chão, embolando assim, assim ela deixava. Era, essa veia era muito ruim. Era

muito ruim mesmo. Tanto que as menina diziam: - Mas Dona Zefinha a

senhora vai matá a menina desse jeito Dona Zefinha!

E ela: - Eu quero matá mesmo. – Faça isso não com a bichinha! O povo que

tinha pena de mim. - Faça isso não com a bichinha! Com certeza eles tavam

falando: - “Mais que veia da gota Maria”. Ela ia matá se eu chegasse na porta.

Sabe porque isso? Tu sabê, não tem a asa da galinha? A asa da galinha tem

duas partes. Tem um pedacinho aqui e esse pedacinho aqui. E eu peguei três

pedacinho pra cumê. Quê eu tirei três pedacinho pra cume, ela viu do buraco.

Tava olhado lá. Do jeito que eu tirei aquele pedacinho ficô. Ficô virada num

bicho. Por causo disso. Ela quase me matô. Só não matô por causa Das Dores

que chegô. E, reclamô com ela. Era ruim demais. Ai, pronto, ai as menina, as

minhas amiga tudo sabia. Maria sabe, Das Dores sabe, Cleusa sabe. É a gente

era vizinha pertinho. Eu morava assim como assim. Ali na pracinha. E ela

morava aqui. Era só umas casinha assim.

Continuei a perguntar: porque que a senhora não ia morar com suas amigas?

E quem é que pegava! Todo mundo tinha medo dela. Ninguém conversava com

a veia, ninguém falava com ela. Ninguém ia lá, em casa não viu? Acho que

tinha era medo dela. Tinha amizade com ela não. Não falava nem arengava

com ela nem nada não, mai era pra ficá cada um no seu canto.

4.2.10 A órfã com febre amarela

Ah! Pois, vou te contá outra coisa, outra conversa que aconteceu comigo. Eu

quando tava com 7 ano. Quando meu avô morreu fiquei com 6 ano.

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Ai, se mudou-se da Palma, viemo pra 21Pedra Fina. Cheguei lá eu tive uma

febre, uma Febre Amarela. Meu cabelo caiu todinho que ficô assim ó. Passô a

nascê um pé de capim. Meu cabelo era bom depois nasceu assim ó.

Aí minha fia, eu ia trabalhá todo dia. Pegava 6 hora da manhã no sol, só largava

de meio dia pra almoçá e voltava, só largava de noite. E o povo não me via,

não me via né. E perguntava assim: - Ô seu João cadê aquela menina? Ela foi

simbora pra algum canto? Ai, ele disse: - Ela tá doente. Olha, óia, olha eu tive

uma febre, essa Febre Amarela, eu passei 15 dia. Eu não me acordei, eu não

comia, eu não bebia, não fazia nada, que ninguém me via, nada. E era no chão

viu? Numa esteira veia, um negócio ai, uma esteira veia parece. Ela ia sai de

casa, ela chegava. Ela se acordava de manhã, comia alguma coisa, bebia café

e ia pro serviço, chegava meio dia comia e ia simbora. Botava no prato só, eu,

sem falá, eu não via nada.

Fiquei, faz de conta que eu morri e ninguém via sabe? Ninguém sabia como eu

tava, nem via nada.

E a senhora ficava sozinha doente e sem tomar remédio?

Não, sem nada. O meu cabelo era aqui ói, quando meu pai-avô morreu eu não

tinha o cabelo bem grande. O meu cabelo virô uma tábua, não podia penteá,

não podeia penteá, ai, o meu cabelo caiu todinho. Ela disse que foi varrê a casa,

ai, disse que viu aquela roda preta. Ela disse: - Misericórdia! Uma serpente

chega perto de Maria. No escuro ela viu, pensava que era uma cobra enorme.

Ai, que ela ascendeu o candiêro e foi repará era o meu cabelo. Que tinha caído

todinho. E eu no chão, na frieza no chão. Ai, só sei que quando as mulhere

perguntaram né? A menina disse assim: - Ô seu João cadê aquela mulher, que

eu não vi aquela menina, aquela sua menina que vai lá vê vocês? – Ela tá

doente. – Sim, tá doente de quê? – Sei não, tá com uma febre. – Será que a

gente podia vê ela? Ninguém ia lá em casa não! - A gente podia í vê ela? A

gente podia olhá pra ela. Ai, ele saiu batendo na enxada já na boquinha da

noite. Disse: - Ô mãe, ai, tem umas mulher que qué vê Maria. Ai, ela chego na

porta mandô as mulher entrá. E a mulher. - Mas que quarto é que ela tá? Um

quarto escuro! Era um candiêro de gás e só na sala. Onde eu estava o quarto

não tinha luz, nada de luz. Era aquela escuridão, dava pra vê de jeito nenhum.

Que nem um bicho! Ai, a mulher: - Onde é que tá a menina Dona Zefa? Eu

queria vê ela. Disse: - Ela tá ali dentro. Ai, quando as menina chegaram na

porta disse pra ela, que não podia chegá, não puderam chegá na porta do quarto.

A febre tão grande que eu tava. E eu não chorava, não sei quantos dia fazia. E

a mulher assim disse: - Meu Deus! Essa menina vai morrê. Vocês tão dando o

que a ela? – Nada não. Disse: - Ó seu João, vá lá na venda de fulano de tal, seu

Bihato, um nome parece um nome assim. - Compre uns comprimido que tem

lá e mande fazê um chá não sei de quê, e dê a essa menina. Essa menina vai

morrê. Diz que as menina saíram tudo chorando minha fia. Diz que as menina

choravam feito uma doida disse. Porque que não disse pra eles né. Disse: -

Meu Deus, mas tu visse aquela menina? Aquela menina vai morrê ali. Vão

achá a menina morta. Foi. Ai, foi que ele foi e comprô esse remédio. Porque

essas mulher mandaram. Ai, ele foi de noite, comprô esse remédio e mando

pra fazê esse chá. Que era o que as mulhere deram uns mato. Disse: - Esse

mato aqui ói. Faça o chá e dê com esse comprimido a ela. Que essa menina vai

morrê! Ai, foi que deram. Eu passei 15 dias sem sabê onde é que eu tava minha

fia. Quando foi com 15 dia eu tornei, foi que eu me acordei. Eu tava da cor

com aquele amarelidão assim! Assim ó, Ave Maria e fraqueza né, sem cumê.

Ai, eu me acordei e era um frio tão grande, minha fia! Meio dia em ponto e ia

pro sol. As menina dizia: - Minha fia saia daí que você vai morrê nesse sol

quente cunzinhada. Quanto sol mais quente tava mais eu gostava de ficá. Ai,

só assim minha fia que foi dando, que foi dando, que foi dando e eu melhorei.

21 Pedra Fina é um povoado próximo do Engenho Palma.

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Antes de eu ficá boa eu dei um jeito e fui pro roçado. Ai, um dia encontrei

essas duas mulher. Disse: - Tú tás melhor fia? Tu tás melhor Maria? Eu digo:

- Amarela minha fia, veia sem uma pinga de sangue. Ela disse: - Mas menina,

tu tá é morta mesmo. E tu tá trabalhando! Eu disse: - Tô. Mas triste de quem

não tem mãe e as mulher chorando. Disse: - Minha fia, triste quem não tem

mãe, eu vi a tua situação. Você só tá melhor, primeiramente em Deus, e eu que

ensinei o remédio ao seu 22tio viu? Se não você hoje tava morta. Que eles não

são gente nem de dá um comprimido a vocês viu, a você. Eu calada. Ai pronto,

fiquei boa. Quando melhorei uma coisinha já fui trabalhá, eu tava trabalhando,

o sol tava pingando assim, aquele suor de tanta fraqueza. Ai, minha vida foi

assim até a uns 10 ano pra cá. É o que eu digo a você, é quando eu to vivendo

e to feliz de 10 anos pra cá, mas de 10 anos pra trás, até 6 anos porque era com

meu avô, depois do meu avô acabou-se a minha vida, era assim minha vida.

Era assim. De sofrimento. Se fosse fazê uma história da minha, um livro da

minha história, não tinha papel, acho, que desse. Tem muita história, tudo

história ruim. Ai pronto. As minhas amiga tudo sabe disso, da minha vida.

Maria quejero, não presenciô, não conheceu isso ai não. Porque quando eu

conheci ela tinha saído de casa já. Mas Das Dores ainda presenciô, que a gente

era.

Sua amiga Das Dores conheceu sua madrasta-avó?

Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa

boa sabe. Só que comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não

desobedecia de jeito nenhum. E ele é que nem esse povo, que nem bicho,

caboclo bravo do mato. Sem muita aproximação das pessoa, ele era na deles.

Então eu me criei assim. Me criei desse jeito. Nas casa que eu morava também

era do mesmo jeito. As pessoa primeiro eram pessoa de respeito. Eu via assim,

eu me criei assim. Em casa, me criei com essa veia assim. Sem conversá, com

ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem estuda,

sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim:

-Eu vivi como Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva

ela se cria. E assim fui eu.

E a senhora está aprendendo outras coisas agora?

To aprendendo agora depois de véia. Que depois de veia não acontece nada.

Tem que i aprendendo de pequena, de pouco né, que é pra quando tive véia já

sabê. É de vida.

Então, eu to sentindo essa alegria, essa felicidade como já falei através dos

meus filho, então, Não sabia. Eu não tinha o direito de chegá, de brincá com

uma amiga minha, nem conversá com uma pessoa nem nada. Era eu só, era eu

sozinha. Pronto, me criei assim meio bicho do mato. Não falava com as pessoa.

Tinha vergonha, de perguntá pras pessoa, chegava perto mas não falava não.

Não sabia nem o que que eu ia dizê. É, ficava logo infiada (risos).

PARTE III

4.3 PROPRIEDADE, CASAMENTO, FAMÍLIA E O COMPLEXO DA CASA

GRANDE

22 O tio era filho da madrasta-avó.

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O casamento do Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra] herdeiro de gerações

anteriores, foi um acontecimento social de grande movimentação na região do em torno.

Um ritual além do religioso. Junto ao casamento as instituições, autoridades e

personalidade também estava representada e presente.

Dentro da Capela do Engenho ao lado da Casa Grande anexos do grande

Complexo do Engenho Palma, o Senhor havia sido batizado, consagrado com todos os

sacramentos da Madre Igreja. O casamento era o penúltimo ato a ser realizado, antes do

falecimento e sepultamento do herdeiro no mesmo lugar.

O casamento simboliza apenas mais um ato de confirmação e estreitamento dos

compromissos do Senhor de Engenho com a Igreja em nome da religiosa-fé, família, da

economia e política. Do nascimento ao encerramento da vida o ritual religioso testa e

confere os acordos estabelecidos entre si. A reprodução e formação da família é de

responsabilidade compartilhada. Uma instituição reproduz membros e a outra forma,

ensina e os direcionam no caminho a ser seguido. São inventoras de ações dominantes na

forma rígida, tradicional e impenetrável para outros indivíduos de classes ou lugares

diferentes.

Concordo com Oliveira (2000, p.46) quando afirma: “[...] a estrutura inicial da

classe dominante é a posse da terra” e a partir dela se inicia o processo de transformação

de indivíduos posseiros [proprietários das terras] do Brasil, no caso os ex-senhores de

Engenhos, entre esses o posseiro das terras do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra], é o

continuísta desta tradição.

O funcionamento do Complexo na década de 50 e 60 apenas garantia a

manutenção dos privilégios dos indivíduos da mesma classe, os status quo para distinção

social, como revela as narrativas da entrevistada em seus relatos. Entre tantos elementos

distintivos e continuístas da estrutura de dominação patriarcal, o casamento religioso do

Senhor de Engenho com a noiva da mesma classe social é exemplo disso. Propriedade,

Casamento, Igreja, Casa Grande tem função de instituição operativa do sistema. A

continuidade da tradição depende da procriação e descendência do casal. Poucos filhos

herdeiros legítimos com a esposa oficial pertencente a mesma cultura étnica-racial e, ao

mesmo tempo, muitas crias bastardas desprovidas de herança com mulheres negras quase

sempre servil para atividades sexuais extraconjugal.

Essa é a tradição operante autorizada nas sombras marginais do Engenho e da

sociedade patriarcal em sua extensão.

O autor afirma que:

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O ser Senhor de Engenho é Título, a que muitos aspiram, porque traz consigo,

o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem

de cabedal, e governo; bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho,

quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do reino,

(ANTONIL, 1711, p. 19).

Nessa estrutura cada indivíduo membro da classe dominante em tempos distintos

dentro ou fora da propriedade do Engenho, reinventa a roda produtiva à base da

exploração das massas. Criam novas formas de dominação racional e objetiva. No caso

do Engenho Palma, o velho Senhor de Engenho [pai] do passado recente foi continuado

pelo novo [filho] herdeiro da mesma propriedade ocupada, com apenas aparências e

indumentários modernos, mas a essência da mentalidade e condutas são as mesmas.

A função em comum é dar continuidade ao poder herdado, a transferência da

herança de um parente para outro, como destino e missão de família já que seus membros

assim foram formados e socializados por ancestrais. À base da força manter cada coisa

no seu lugar, exigir hierarquia como forma de distinção de classe. Qualquer atrocidade

pode ser praticada para garantir privilégios, hegemonia, monopólio das riquezas e renda.

A valorização da classe dominante se distingue por atitudes próprias sempre envolvendo

exploração de muitos.

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FOTOGRAFIA 3 - CASAMENTO DO SENHOR DO ENGENHO PALMA

De um lado, a Casa Grande habitada pela família do homem banco Senhor do

Engenho Palma, patriarca influente na política do estado, na Igreja da região. Pai e filho

deputados estadual de Pernambuco, homens letrados, donos do poder, reconhecidos por

outros iguais e a população curral de cabresto. Do outro lado aparece os sem cultura

letrada, os analfabetos em procissão ou manada. A multidão vista como raça inferior

estigmatizada pela cor de pele escura [preta ou parda], pobre, ex-escravos ou

descendentes da mesma raça. Os habitantes em casas de barro [taipa], de palha de

coqueiro e varas finas. Ou, moradores de favelas ou periferias urbanas e rurais ambulantes

no mundo do desemprego. Os que vivem na sociedade à parte, o exército de excluídos

humanos zumbis. São esses os ex-moradores trabalhadores escravos dos engenhos de

cana-de-açúcar no Brasil. E a entrevista da pesquisa decerto também descende dessas

origens.

O Engenho Palma de posse da família dominante na região nordeste brotou raiz

profunda de uma genealogia patriarcal com modos operantes e estilos de vidas distintas,

indivíduos e grupos continuístas de mesma herança de outrora, plantada como cultura

enraizada com o tempo que parece não ter mais volta.

FONTE: Casamento do [velho]Senhor de Engenho Palma - Ênio Pessoa Guerra e Dona Marieta

[esposa]. Homenagem do prefeito de Machados-Pe. Fotografia antiga de domínio público online,

agosto de 2017. Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-

guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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O ritual do casamento por exemplo é sinal da força que tem a cultura dominante

no país, o casal patriarcal confere a função e o papel da igreja como parte do mesmo

sistema e a igreja por sua vez legitima a união. É uma troca de interesse sem inocência

entra as partes, é um grande negócio. A família interage e decide com a igreja [estado] o

rumo da vida social e produtiva da sociedade maior. Um acordo selado, com isso todos

os membros dominantes também passam a herdar a cultura religiosa também dominante.

Igreja, estado e família conceitualmente são instituições sociais distintas, mas não prática

não há diferença. Uma legitima a outra num corpo só [casamento, batismo, política,

festividades, funerais].

Do outro lado do Engenho, o lugar de trabalho braçal escravo está também

reservado, o sofrimento do corpo e d’alma dos indivíduos explorados não tem valor e

também podem ser substituídos como objeto de descarte. O utensilio doméstico [bule de

café] observado na fotografia [10] de uso da Casa Grande, decerto tinha mais valor do

que a escrava doméstica que manipulava a louça. Assim como todas as demais

ferramentas de trabalho masculino e feminino máquina de exploração de homens e

mulheres dentro e fora da Casa Grande. A vida do trabalhador escravo valia menos que

um saco de graus.

Também o mundo simbólico do sagrado e do profano caminhando junto dentro

do Engenho, nada se separa, tudo se mistura com a mesma força material e imaterial que

tem a religião, a política e a economia na cultura dominante. A igreja enquanto

reprodutora de rituais sagrados guardiã da divindade [religião e simbólicos] convive em

paralelo com a perversão do corpo durante as festividades profanas, devassas,

transgressoras da ordem moral, dos bons costumes e das regras religiosas da Madre Igreja,

na essência nada mais do que uma contradição permitida.

As comemorações religiosas e profanas no Complexo da Casa Grande do Engenho

Palma é exemplo disso. A Igreja suspensas por um período de tempo [um mês] para dar

lugar a profania do Senhor compartilhando os mesmos espaços da divindade. Embora,

com objetos originais de representação e significação distintos, mas não quer dizer que

não exista imitação do místico por seus adoradores fies travestidos de foliões profanos.

O simbólico sagrado e profano participa das mesmas manifestações culturais

[cerimônias religiosas e festividades nuas] usando em comum o corpo dos moradores do

mesmo lugar. Quem pulava carnaval estava ao mesmo tempo praticando profania da fé

no pátio da Casa Grande e de frente para a Igreja. Ao término do ritual se inicia com a

motivação do arrependimento dos pecados perdoados pela Igreja redentora do mesmo

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Complexo. A devassa exploração do corpo e da carne sexual alterado pela cachaça

produzidas no Engenho, todo pecado é de passível perdão. Tudo faz parte da mesma

engrenagem da estrutura funcional da invenção do poder, é próprio do modelo dominante

plantado na Casa Grande.

Enquanto caminhava em meio aos ambientes de realização de eventos religiosos

sacros e festividades profanas no Engenho, as narrativas da ex-moradora do lugar,

participante de todos esses eventos acompanhava o percurso da caminhada. De forma

emocionante e criativa ela contava em detalhe o que vivia em cada momento.

O casamento era um grande acontecimento no Engenho e em toda região. A

distinção social da família do patriarca Senhor da propriedade [Ênio Pessoa Guerra] sua

esposa, parentes e amigos aparece nos registros da Casa Grande, os objetos de uso pessoal

como o vestido da noiva, o terno e gravata, penteado e corte de cabelos, as joias, os

convidados e os cenários adaptados no Complexo, lugar da nova moradia do casal.

Também ficou visível o ambiente “sagrado” da Igreja preparado para a cerimonia

do casamento dentro do mesmo padrão de sofisticação, endomentários finos e privilégios.

Afinal a Igreja é local de visitação coletiva, de visibilidade social daqueles que frequenta

o ritual, ali também acontece a exposição de roupas, de poder, status sociais e os prestígios

destinados ao Senhor. Não somente para ele, mas também incluindo os membros

familiares da classe dominante. Dentro da Igreja também se manifesta o acumulo e o

poder econômico que cada família tem. Isso fica exposto nas doações às causas religiosas,

aos financiamentos das comemorações do padroeiro da cidade. Tudo é divulgado para

toda comunidade quem doa as quantias monetárias para os padres. Nas homilias isso fica

em evidencia e destaque entre os fies.

Na cidade de Machados por exemplo é ritual da tradição os patronos financiadores

da festa do padroeiro serem divulgados durante a semana toda em carro de som e alto-

falante instalado na torre da Igreja para anunciar o patrono da festa para toda a

comunidade local e os povoados das mediações, sítios e vilas do em torno. Para assim,

tomar conhecimento da família patrocinadora da festa e doadora dos valores gordos ou

magros para a Igreja. São Sebastião é simbolicamente o padroeiro dono da festa durante

um mês inteiro, recebe semanalmente um volume de dinheiro, patrimônio, animais,

objetos de valores e variadas doações rentáveis. Cada família de prestígio da cidade

financia na forma de competição a festa semanalmente. Uma forma mercenária de

arrecadação em nome da cultura religiosa [Deus] para manter os cofres e bolsos cheios

do clero, os privilégios dos grupos religiosos dominantes em posição diferente e, ao

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mesmo tempo igual ao do Senhor de Engenho. Havendo então apenas um

compartilhamento da fé e do dinheiro acumulado durante o ano como troca de favores. É

a lógica operante e simbólica que deu certo.

A competição entre as famílias dominantes da cidade de Machados no caso, era

exposta pela igreja de forma indireta ou silenciosa. Entre os patriarcas das famílias, a

rivalidade se mostrava na forma de expor o poder econômico em público em nome da

obra divina. Quem doasse mais seria mais abençoado pela Madre Igreja.

O patrocinador não tinha escolha, a Igreja é quem escolhe as famílias. Se não

“ajudar” também é exposto. Os valores das doações também eram comparados, se for alto

o fervor na homilia do padre é mais forte, se for baixo, também enfraquece o discurso na

missa. Com isso, os interesses da Igreja são atendidos permanentemente, assim a Igreja e

os Senhores de Engenho, as famílias dominantes e de poder continuam com a missão e

destino, a dominar pela dominação.

Essa relação é intrínseca principalmente se a família proprietária de terras tiver

membros com vínculo na política do estado, for um “representante do povo”, como é o

caso do Senhor de Engenho Palma. Onde pais e filho eram deputados do estado

representante da região. Uma condição que muito dependia da Igreja e dos padres de

confiança e proximidade. Havendo aí uma troca de interesses mútuos. A família Guerra

circulante da cidade de Machados, bastante reconhecida graças aos prestígios divulgados

pela Igreja, era patrocinadora das comemorações religiosas e em outras obras, em troca

tinha o apoio da instituição religiosa que tinha influencia na campanha política do

candidato ao cargo. O voto conduzido tinha sempre a influência da Igreja.

Na sequência apresento narrativas, discussões, imagens e texto sobre o lugar e a

função da Igreja parte do Complexo da Casa Grande do Engenho Palma.

4.3.1 Igreja do Engenho - lugar de distinção social e funeral

No contexto social do Engenho, a Igreja [Capela] não representa tão somente o

lugar místico da Casa de Reza, nem apenas a função de casar noivos, batizar crianças e

ensinar os princípios religiosos, sociais e culturais de uma determinada classe, a

dominante obviamente. É também um lugar de poder e distinção social por excelência.

Na figura [4] é possível observar a estrutura física interna da Capela [Igreja] do

Engenho Palma e ver a separação dos espaços físicos e simbólicos para valorizar essa

distinção social de classe. Está presente em todo lugar, mas também na divisão interna da

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Igreja, os camarotes na cúpula destinados à ocupação do Senhor, sua família e membros

da mesma classe social de pertença. Os privilegiados se destacam do restante dos fies

pessoas comuns, escravos e moradores catequizados no Complexo.

A [Casa de Deus] fixada na Capela do Engenho Palma é um exemplo disso, da

distância social impregnadas na arquitetura física e simbólica dos ambientes e nas

relações sociais cotidianas. Os superindivíduos donos do poder econômico, político, tem

prestígio social religioso enquanto autoridade máxima do lugar que estão talvez abaixo

de Deus. Já que na terra são quem decidem tudo sobre a vida dos seres inferiores por

natureza, é um fenômeno social-divino de racionalidade calculada simples e, ao mesmo

tempo complexa pela força fixada na estrutura coletiva da sociedade cristã.

Nesse contexto, o 23Capelão da Igreja, o sacerdote é um ente exclusivo do Senhor

de Engenho, prestava serviços de interesses pessoais e aos demais membros da Casa

Grande. Incluindo o sacerdote, todos eram subordinados ao Senhor juntamente com os

assalariados homens livres, moradores e escravos do Complexo. Cada individuo

executava sua função, obedecia ordens e cumpria atividades para manutenção do sistema

de dominação. Como afirma Antonil (1711) em suas escritas raras e históricas sobre o

cotidiano dos Engenhos no Nordeste do Brasil.

23 O Capelão, a quem se há de encomendar o ensino de tudo o que pertence a vida cristã, para satisfazer a

maior das obrigações, que tem: a qual é doutrinar, ou mandar doutrinar a família, e escravos, [...] as orações

e os mandamentos da Lei de Deus, e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão de crer, o que

hão de orar, e como hão de pedir a Deus aquilo, de que necessitam. É para isso se for necessário dar ao

Capelão alguma coisa mais do que se costuma, entenda, que este fará o melhor dinheiro, que se dava em

boa mão.

Tem, pois, o Capelão obrigação de dizer missa na Capela do Engenho nos domingos e dias santos, ficando-

lhe livre a aplicação das missas nos outros dias da semana por quem quiser: salvo se se for concertar de

outra sorte com o Senhor da Capela, recebendo este pedido proporcionado ao trabalho. [...] Explicar a

doutrina cristã, a saber os principais mistérios da fé, e o que Deus, e a Santa Igreja mandam, que se guarde.

Quão grande mal é o pecado mortal, [...] para que eles nos perdoassem assim as culpas, como as penas, que

pelas culpas se devem pagar. De que modo havemos de do confessar os pecados e pedir a Deus perdão

desses com verdadeiro arrependimento e proposito de não tornar a cometê-los, ajudados da graça divina.

Em que consiste fazer penitência de seus pecados, [...] para não cair no pecado, e oferecer-lhe pela manhã

todo trabalho do dia.

Procurará também a aprovação para ouvir de confissão aos seus aplicados, [...] lhes possa servir

frequentemente de remédio; [...] por muita autoridade que tenha: porque se o penitente não for disposto,

por causa de estar amancebado, ou andar com ódio do próximo, ou por não tratar de restituir a fama, ou a

fazenda, que deve, ainda que fosse o mesmo Senhor do Engenho, o não há de absorver: e nisto poderia

haver, por respeito humano, grande encargo de consciência, e culpa grave.

O que se costuma dar ao Capelão cada ano pelo seu trabalho, quando tem as missas da semana livres, são

quarenta ou cinquenta mil reis: e com o que lhe dão os aplicados, vem a fazer sua porção competente, bem

ganhada, se guardar tudo o que acima está dito. E se houver de ensinar os filhos do Senhor de Engenho, se

lhe acrescentar o que for justo, e correspondente ao trabalho.

No dia, em que se bota a cana a moer, se o Senhor do Engenho não convidar ao Vigário, o Capelão, benzerá

o Engenho, e pedir a Deus, que dê bom rendimento, e livre aos que nele trabalharão de todo o desastre. E

quando no fim da safra o Engenho pesar, procurará, que todos deem a Deus as graças na Capela.

(ANTONIL, 1711, p.10-14)

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Por natureza, os indivíduos dominantes e privilegiados ocupantes da Casa Grande

do Engenho, homens, mulheres e crianças pouco sociáveis com as classes inferiores

[assalariados, moradores livres e negro-escravos], também exaltam o pequeno poder. A

identidade e o poder senhorial contamina todos os membros da mesma classe e genealogia

familiar, indivíduos vetores do pequeno poder que aspiram o grande domínio, que foram

educados para não se misturar com os diferentes, com a diversidade heterogênea do

Engenho, no caso, os braçais escravizados, analfabetos e sujos do trabalho. A

homogeneidade do grupo dominante é parte da tradição.

Portanto, manter o distanciamento físico, simbólico e social dentro das estruturas

do Complexo é a regra legitimada. Dentro da Igreja, os privilegiados assistem a missa

reservados em camarotes e cúpula Capela, um lugar de destaque diante de Deus e da

plateia religiosa. Afinal, a divindade simbólica é corporificada pelos mistérios nos objetos

sagrados [hóstia, cálice, sacrário, estátuas, vestuários]. Deus, também, mantém limite de

contato com os pecadores com a divisão espacial entre o altar e o salão de reza comum.

São os mesmos indivíduos, lugares e espaços ocupados dentro das estruturas

internas e externas das instituições sociais da sociedade maior, a mentalidade e

reivindicação de privilégios não se diferencia na estrutura social. É um ritual que vai da

Igreja-Capela à Casa Grande do Engenho Palma e se estende em toda sociedade.

A produção e transmissão do ethos cultural da classe dominação se movimenta na

família, nas estruturas do estado, na política, nas relações hierárquicas envolvendo

gênero, raça, etnicidade, cultura e relações produtivas. Do rural ao urbano a estrutura

dominante e os indivíduos dominados se perfaz nos séculos. Dentro da Igreja e no

Engenho indivíduos patriarcas criaram estrategias sofisticadas para manutenção do poder

e dos interesses acordados entre si. A opulência acima de tudo.

A Capela e o Capelão cumprem papeis e funções práticas e simbólica na estrutura

cognitiva dos indivíduos com esquema doutrinador e mantenedor do sistema dominante.

As missas e festividades religiosas supostas atividades integradoras da

comunidade cristã, de perto não é nada disso, está apenas cumprindo a parte no jogo do

poder, nada mais do que isso. Agem para legitimar da dupla dominação, de um lado, o

domínio e controle do Senhor de Engenho na exploração da força física pelo trabalho

escravo, do outro, a religião age no controle da mente pela fé dos escravizados. Um

esquema perfeito.

Os ambientes superiores da Igreja e da Casa Grande também servem de acesso

privilegiados para os ocupantes dos espaços enxergarem os indivíduos inferiores de cima

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para baixo, os pés ficam suspensos do piso [base] de circulação comum, da coletividade

escravizada em especial. Das cúpulas [camarotes] da Igreja às varandas das Casas

Grandes, simbolicamente os superindivíduos estão todos sobre as cabeças dos demais

inferiores à classe - a ralé desprovida de poder, riquezas e bens. Desde que seja

controlada, vigiada e obediente aos mandos do Senhorial, caso contrário, castigos severos

e morte.

Da “Cúpula Sagrada” e da Varanda, o Senhor de Engenho e sua família podia

observar tudo e toda movimentação nas estruturas inferiores do Complexo. Quem entra e

sai dos ambientes produtivos e úteis ocupados por indivíduos perigosos, de riscos. Que

precisa ser controlado pelas violências, essa era a dinâmica do cotidiano no Engenho.

FOTOGRAFIA 4 – IGREJA DO ENGENHO PALMA

FONTE: Igreja do Engenho Palma [ambiente externo e interno]. Local de destaque para as Classes

Sociais privilegiadas e lugar Sepultamento no interior da Capela [tradição de família] Visita guiada

da pesquisadora com a entrevistada antiga ex-moradora do local. Fotografias recentes de acervo pessoal

Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto, 2017. Fotografia antiga de domínio público online, agosto de

2017. Disponível em: <http://professoredgarbomjardim-pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-

e-patrimonio.html>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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A escuta das narrativas e visitação in lócus foram os momentos mais ricos do

trabalho de campo, únicos e especiais durante todo o desenvolvimento da pesquisa,

principalmente quando a entrevistada começou a narrar suas memórias vividas dentro dos

ambientes revisitados do Engenho Palma. O que levou também a fazer outras pausas e

longos silêncios. A manifestação de sentimentos emocionados foi uma constante durante

o percurso da visita, a saudade sentida pelas lembranças da vida no lugar, os

acontecimentos cotidianos tiveram fortes destaques em suas falas. Tudo acontecendo

enquanto falava sobre cada fio do assunto puxado nas conversas e descamados em etapas

de enredos vetores das histórias. Ao mesmo tempo em que a entrevistada caminhava e

mostrava os cenários e os lugares por onde andou, correu, pulou, brincou e viveu sua

infância, ria e chorava de alegria e saudade. As coisas e objetos dos cenários ganharam

corpo, voz, nome e identidade própria. Os elementos da natureza, parte viva do lugar

exalavam cheiros que só ela sentia da terra, das flores, da liberdade saudosa e da brisa

receptora. Também os trabalhadores da propriedade tinham nomes ou apelidos

conhecidos e histórias reais com quem interagia no dia a dia. Dentro do Engenho Palma

um mundo de coisas começou a se mover nas palavras da ex-moradora, que não cabiam

em suas emoções. Era como se ainda estivesse vivendo no mesmo lugar e o tempo não

havia passado em sua imaginação lúdica e criativa.

O observado visível, sentido e palpável nas estruturas do Engenho Palma reforça

positivamente o tido e lido na escrita de Antonil (1711), corroborando também com as

narrativas de experiências vividas pela entrevistada antiga ex-moradora daquele lugar,

que por sinal é uma história bastante detalhada com voz e presença física inesquecível. A

ex-moradora e o lugar [paisagem, energia, sons, cheiros, imagens, objetos portadores de

histórias e vidas] são constatações de uma realidade concreta e real de um tempo que

aparentemente não se divorciou do lugar. Está tudo lá, em movimento invisível operando

com força simbólica sobre a mente e o corpo das pessoas que pertence de algum modo ao

Complexo. É assim que se apresentou e representa o mundo no Engenho Palma durante

a visitação da pesquisadora. Talvez, a força simbólica ainda se mantém no corpo vivo da

ex-moradora e nas estruturas do concreto habitando nos cantos da propriedade e no

silêncio das unidades físicas.

De fato, fui surpreendida por muitas vezes com a quantidade de coisas, detalhes e

riquezas nas histórias contadas por uma ex-moradora do lugar; num tempo relativamente

curto que anteriormente era desconhecido para a pesquisadora. Talvez, também, seja para

muitos que nunca estiveram em espaços dessas dimensão e natureza, um arquivo de

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marcas e histórias de nosso país. Foram experiências reais contadas de formas diferentes,

relatos pronunciados menos ainda escutados por outrem. Decerto, até hoje não encontrei

semelhança em outros encontros com o campo para comparação das experiências

acumuladas neste trabalho. Tudo acontecendo e sendo dito em voz alta e num fôlego só

para ser capturado com reflexão automática, quase isso.

O real e o imaginário em parceria, o prático e simbólico no jogo de sinuca, tudo

se mostrando e impregnado nas estruturas do Complexo da Casa Grande do Engenho

Palma, nos objetos à mostra, nos instrumentos de trabalho escravo, nas condutas

individuais e no comportamento coletivo revelado em imagens e fotos, nos documentos

secretos, na aparência do estilo e modo de vida do grupo familiar do Senhor. A definição

de um lugar em poucas linhas ou palavras – o Complexo da Casa Grande do Engenho

Palma pensada simbolicamente como o Céu para alguns e como o Inferno para outros.

Também a presença de urnas funerárias dentro da Igreja [Capela] do Complexo da Casa

Grande do Engenho Palma mantem a distância social e de contato entre o Senhor de

Engenho [familiares] e o resto da comunidade. Não interessando se a vida no corpo de

seus membros nasceu ou faleceu, o mais importante é reservar o seu lugar de distinção e

de privilégios dentro do sistema. A reverência ao corpo morto ou vivo continua sendo

objeto do ritual obrigatório.

É a partir do Complexo que tudo acontece e se desenvolve no cotidiano ordinário,

antes, passa pela ocupação das terras, a posse da propriedade, depois, transformada em

herança vitalícia com a instituição do casamento e nascimento da família do Senhor de

Engenho.

Com a família, os privilégios são institucionalizados como coisas intocáveis,

indissolúveis, são internalizados como distintivo de classe e poder, referência e identidade

social daquele grupo. O nascimento de membros [novos] e falecimento de outros [velhos]

dentro da estrutura do Engenho significa mais do que a renovação das gerações, além

disso, indica a perpetuação do poder de um grupo num extenso período de tempo, de

poucos no comando de muitos. Onde o Senhor é o dono absoluto de tudo, com benção da

Igreja estendido seu braço no Estado legal. No Título de Sócio Benemérito observado na

imagem [5] essa comunhão entre Igreja e o Senhor é constatada no documento. Há uma

forte relação de co-dependência e acordo entre a Igreja Matriz de Machados representada

na Ordem Vicentina e o Senhor de Engenho Palma [deputado estadual] daquela região

[Ênio Pessoa Guerra]. As conexões religiosas e políticas estabelecidas entre as

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instituições [Igreja, Senhor de Engenho e família] ficam bastante evidentes. O compadrio

religioso vinculado ao político.

4.3.2 Título de Sócio Benemérito [Conferencia Vicentina de Machados]

Na igreja onde a gente ia pra missa. Tinha e ainda tem. Mas, só que agora não

tem mais missa, o povo não fazem mais missa não. Não fazem mais missa não,

mas tem a igreja lá ainda, mas nesse tempo era muita coisa que tinha na igreja.

Tinha no mês de maio a noite uma festa que ele butava lá, festa muito boa,

muito bonita, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA

DO ENGENHO PALMA).

IMAGEM 5 - TÍTULO DE SÓCIO BENEMÉRITO

Em 1976 o Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra] recebeu o Título de

Sócio Benemérito da Irmandade Vicentina na Conferência municipal do padroeiro da

cidade de Machados [São Sebastião]. Confere o documento, “por decisão unanime” os

FONTE: Título de Sócio de Benemérito outorgado ao Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra.

Imagem antiga de domínio público online, agosto de 2017. Disponível em:

<https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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membros conferencistas padres e bispos daquela paróquia outorgam o Título de

Benemérito ao Senhor de Engenho [Ênio Pessoa Guerra] “em virtude de seus relevantes

serviços prestados à causa vicentina”. É um reconhecimento público das benfeitorias do

Senhor à Igreja, na estreita relação religiosa e política estabelecida entre as partes

envolvidas nas causas de interesses particulares em comuns. As trocas de “favores” e

cumplicidade dos interessados [Igreja, Senhor, Família e Estado] mantém visivelmente

as “boas relações”. Um ato simbólico com discurso político e conotação religiosa. Como

aparece nas narrativas da entrevistada e nas imagens apresentadas neste trabalho.

4.3.3 Complexo da Casa Grande

Gilberto Freyre em sua obra [Casa-grande & Senzala] de 1933, retrata bem como

era o Nordeste de 1937 e a produção do açúcar nos Engenhos de 1939. O autor expõe o

que constituíam as principais estruturas dos Engenho. Constrói sua narrativa sociológica

afirmando que o Complexo era formado pela Casa Grande, a Senzala, o Engenho, a

Capela e o Canavial.

As Casas Grandes eram as moradias dos Senhores de Engenhos e de suas famílias

oficiais herdeiras da propriedade. O nome "Casa Grande" fazia jus ao título, pois era de

fato um verdadeiro casarão com vários cômodos rústicos ou luxuosos conforme a

evolução do tempo. Começou a ficar luxuosa somente no do final do século XVIII e ao

longo do XIX. Nos séculos anteriores, a exemplo do século XVI e XVII, as Casas Grandes

não eram tão luxuosas ou palacianas assim. Algumas foram construídas de “[...] taipa,

pedra-lavada, cal, teto de palha ou de sapê”. Freyre afirma que no século XIX, as Casas

Grandes já haviam sido reformadas ou construídas com materiais caros, de luxo e

decoração personalizada, (FREYRE, 1933).

Mas, com as riquezas [ouro branco] sendo produzido em Pernambuco

principalmente, os mandatários rurais também foram se espalhando no luxo, como afirma

o auto:

Devia possuir grandes canaviais, lenha abundante e próxima, escravaria

numerosa, boiada capaz, aparelhos diversos, moendas, cobres, fôrmas, casas

de purgar, alambique; devia ter pessoal adestrado, pois a matéria-prima

passava por diversos processos antes de ser entregue ao consumo; daí certa

divisão muito imperfeita de trabalho, sobretudo certa divisão de produção. O

produto era diretamente remetido para além-mar; de além-mar vinha o

pagamento em dinheiro ou em objetos dados em troca e não eram muitos:

fazendas finas, bebidas, farinha de trigo, em suma, antes objetos de luxo. Por

luxo podiam comprar os mantimentos aos lavradores menos abastados e isto

era usual em Pernambuco, tanto que entre os agravos dos pernambucanos

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contra os holandeses capitulava-se o de por estes terem sido obrigados a plantar

certo número de covas de mandioca, (SIMONSEN, 2005, p.126).

No contexto mais recente a entrevistada narra o que via e percebia no em torno da

Casa Grande habitada pelo Senhor do Engenho Palma [Ênio Pessoa Guerra] e sua família

patriarcal.

FOTOGRAFIA 6 - COMPLEXO DA CASA GRANDE [ANTIGA E RECENTE]

Me lembro das irmã dele: Dona Aline e Dona Coleta. Era o nome dela. Eu vi

elas duas. Elas iam bebê caldo. Lá dentro do Engenho. Elas morava lá, elas

estudava no município, nesse lugar. Elas vinham em casa de vez em quando.

Aí, de vez em quando, a gente via elas no Engenho. Antigamente esses filho

de Senhor de Engenho, filho desses povo não tinha faculdade por aqui, era tudo

fora. Se formava fora. Ia estudá e lá se formava. Não habitava não. Eles tavam

FONTE: Complexo da Casa Grande do Engenho Palma. Fotografia superior antiga de domínio

público online e inferior recente de acervo pessoal. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, agosto, 2017.

Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em:

30 de outubro, 2018.

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alí enquanto tavam estudando, porque não tinha estudo pra eles. Eles iam se

formá queriam estudo bom né? Aí, iam pra Recife, eles estudavam em Recife,

outros lugar assim e lá se formava né. Aí, eles vinham pra casa assim: final de

ano, nas férias, era quando a gente via eles, (RELATO DA ENTREVISTADA

ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

Ele era braço. Ele era braço de governo viu. Ele tinha o poder que nem o

governo tem. Braço de governo é como se fosse. Era de Itamaracá. Ele morava

em Itamaracá e tinha um Presídio em Itamaracá. Prendia os preso em

Itamaracá na Ilha de Itamaracá. Eu via meu tio dizendo. Quando ele matava as

pessoa assim, ele levava prendia lá. Eles diziam que prendia os morador dele.

O único que prendia era ele e levava pra lá.

Tinha uma Ilha de Itamaracá diz que tinha um Presídio. Que não tinha pra onde

esses preso saí. Que era dentro da água, em cima da água. Eu via eles, meu tio

falando. Diz que era dele. Ah, no início eu era pequena, eu só ouvia só o boato,

o comentário. Mas, ladrão na terra dele não ficava não visse. Ladrão, se fosse

ladrão na terra dele, não ficava não, (IBID).

4.3.4 Velho e Novo Senhor do Engenho Palma [pai e filho]

Nas narrativas da entrevistada ex-moradora do Engenho Palma aparece em

detalhes, o modelo e a cultura familiar do proprietário das terras, a dinâmica e o

funcionamento do poder centrado no Senhor de Engenho que age como braço forte do

estado. Com ele, opera uma mentalidade violenta transmitida como herança de sangue.

Tanto que representa na percepção dos moradores do Engenho e para a população

regional, ser o Senhor da força e do poder absoluto quando mostra suas influencias diretas

e dominantes dentro das estruturas da Igreja e do Estado, enquanto político e dono das

máquinas produtivas. Confere seu domínio forte ao receber do próprio estado, em sua

homenagem o próprio nome dado à uma unidade prisional em Pernambuco.

FOTOGRAFIA 7 - SENHOR DE ENGENHO VELHO[PAI] E NOVO [FILHO]

FONTE: Ênio Pessoa Guerra [pai e filho]. Velho e Novo Senhor do Engenho Palma. Deputados Estadual

de Pernambuco. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em:

<https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.

Na percepção da entrevistada

antiga moradora do Engenho,

declara:

“Ele era bem gordo, uma papada,

tinha uma papada aqui, bonito ele

era, gordo, novo, branco. É muito

bonito ele. Dona Marieta era uma

galega. Era uma galega ela. Loura,

bem loura”.

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Na Ilha de Itamaracá [litoral] cidade histórica, lugar para onde supostamente

levava os presos do Engenho e das cidades do em torno para prisão e cumprimento de

pena por supostos crimes cometidos contra outrem ou a ordem social.

Decerto, os ex-escravos e trabalhadores opositores condenados à morte ou

fichados como presidiários perpétuos na penitenciária de seu controle e domínio. Era o

Senhor quem decidia o que fazer com a vida dos supostos desordeiros da sociedade local.

Prendia, castigava e dava fim ao conflito social à base da força autorizada. Nos estudos

complementares, observei que a unidade prisional com seu nome [homenagem], foi

redirecionado ou transferida para o presídio da cidade de 24Limoeiro-Pe [menos de 00:30

minutos de distância do Engenho Palma]. Talvez, por decisão política acordada entre o

Estado e o Senhor de Engenho, considerando que a unidade prisional de Itamaracá

[litoral] foi recentemente fechada por conta das pressões populares da cidade e as

constantes rebeliões dos presos.

Como podemos observar nas narrativas e documento em análise, as condutas

observadas no cotidiano mostram os tipos de relações de hierarquia e poder, mando e

obediência do proprietário das terras do Engenho.

4.3.5 Corrida do Fogo Simbólico da Pátria [Diploma]

O Diretório Regional da Liga de Defesa Nacional do Estado de Pernambuco, por

meio da Policia Militar da unidade federativa, concede ao velho Senhor de Engenho

Palma [Ênio Pessoa Guerra] um certificado [Diploma: 25Corrida do Fogo Simbólico da

24 PENITENCIÁRIA DR ÊNIO PESSOA GUERRA – PDEPG. PE 90, Km 23 Zona Rural Sítio

Quebrajejum – Limoeiro. (81) 3628-8822. Disponível em: <

http://www.seres.pe.gov.br/unidade/22/penitenciaria-dr-enio-pessoa-guerra>. Acessado em: 30 de outubro,

2018.

25 "Uma vez PE, sempre PE!" Grito de guerra do Pernambucanos. A Corrida do Fogo Simbólico da

Pátria (CFS) no estado de Pernambuco foi uma prática cívica-cultural iniciada pelo Exército Brasileiro em

1937 nas comemorações da Semana da Pátria no Brasil durante os festejos da independência do país.

Surgiu como ideia de um grupo de patriotas no Rio Grande do Sul que procurava um símbolo que

representasse o ardor cívico do nosso povo. Em 1938, aconteceu a 1º Corrida do Fogo Simbólico da Pátria realizando uma pequena corrida num trecho de 26 km entre as cidades de VIAMÃO e PORTO ALEGRE.

Simboliza uma Corrida de Revezamento da Chama Olímpica num contexto sociocultural e político que

favoreceu o aparecimento e fixação da cultura cívica nacional como uma forma de afirmar a identidade do

povo brasileiro e sua independência. Assim, a CFS pode ser vista como uma das ações nacionalizadoras

inspirada nos rituais das práticas esportivas com conteúdo político-cívico. Cuja, finalidade é a de percorrer

o território nacional numa corrida de revezamento denominada CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA

PÁTRIA com uma tocha [Pira da Pátria]. Em Pernambuco o Senhor de Engenho Palma [Ênio Pessoa

Guerra] também fez parte dessa aliança nacional conforme mostro o [diploma] de participação.

Disponível em: < http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/8300>. Acessado

em: 02 nov. 2018.

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Pátria], por sua participação no movimento em [1975] nas comemorações cívicas na

cidade de Machados-Pe. Lugar de circulação e convívio com as famílias igualmente

privilegiadas do local, proprietárias e donas de terras, com quem mantinha relações de

parentescos, de amizade e compadrinho político, negócios comerciais e vida cultural.

IMAGEM 8 - DIPLOMA: CORRIDA DO FOGO SIMBÓLICO DA PÁTTRIA

PARTE IV

4.4 COTIDIANO E FUNCIONAMENTO DO ENGENHO PALMA

Sobre o cotidiano do Engenho a entrevistada destaca sua percepção mostrando os

contrates das experiências vividas no lugar com riqueza de dados e detalhes do dia a dia

digno de um documentário de vida real.

De um modo especial ela narra era o funcionamento do Engenho:

FONTE: Diploma: Corrida do Fogo Simbólico da Pátria conferido à Ênio Pessoa Guerra pela sua

participação na Liga de Defesa Nacional em 1975. Fotografia antiga de domínio público online,

agosto, 2017. Disponível em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>.

Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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Funcionamento do Engenho era assim: Era com cana né. Aí, plantava a cana,

limpava a cana, desfolhava a cana, quando a cana já tava boa de cortá, os

trabalhador ia cortá aquela cana.

Era, cortava aquela cana, um cortava o outro amarrava, outro jogava em cima

do carro, dos caminhão de carga e já levava diretamente pro Engenho. Quando

chegava lá no Engenho descarregava aquelas cana do jeito que tava amarrada,

já botava dentro da forma, do negócio de moê lá, da moenda. Tinha um

maquinista que ligava a máquina, que sabia manejá a máquina né. Ia botando

os feixe de cana dentro e aquela roda comendo assim Ó.

Comendo assim, caindo o bagaço de um lado e o caldo saia no outro. Aí, tinha

uns tanque grande de caldo, eles botavam uma bica. Ia botando os feixe de

cana e aquelas boca bem grande assim ó, aquele negócio fazia assim ó, aí, saía

cheio de caldo, tinha o caldo e os bagaço pra outro. Tinha dois tanque: eles

botavam duas bicas de aço, não sei, acho que era de aço. Aquele caldo daquela

cana já saía por aquela bica e já ia enchendo aqueles tanque. Uns tanque

enorme! Depois que aqueles tanque tava cheio ele já caía num outro tanque,

caía nas tachas, umas tacha enorme assim do tamanho dessa sala. Bem redonda

assim.

E o caldo já caía ali, já tinha botado fogo na fornalha já. Quando tava pegando

fogo aquilo e aquele mexendo com um negócio bem grandão, mexendo aquele

caldo todinho. Mexendo, cada um com aquele negócio bem enorme, um

negócio bem grandão assim mexendo todinho pra lá e pra cá. É pra fazê esse

mel desse caldo de cana.

Quando amanhecia o dia que isso já tava bom. A noite todinha mexendo. E a

fornalha com fogo em cima. A fumaça chegava na vizinha, quando esse mel

tava pronto dava um apito. “Píííííí...” bem assim e a gente escutava. Aquele

homem que passou a noite todinha mexendo aquele mel, aquele negócio

pesado. Ninguém sabia quantos coisa de mel que tinha ali dentro.

Se caísse ali dentro ói, ficava o bagaço. Quando amanhecia o dia que o engenho

dizia hoje piejô. Era na hora que o mel tava pronto. E daquele mel tinha um

furo, um pau, acho que era um pau, não sei o que era, bem grande um negócio

assim bem grande pra enchê aquele negócio, aquela tacha e enchia as

“encureta”. É, um negócio bem grande, enorme assim. Muito grande viu.

Cheio daquelas encureta assim, um negócio furado pra botá. Ia enchendo

tudinho aquilo e depois que ia enchê deixava tampado escorrendo lá. O que ia

escorrendo devagarzinho era o mel de furo que era pros bicho.

Aí, quando o mel tava açúcar, tava pronto, sequinho, vinha o cavalo. O pátio

do engenho ficava completo, completo, completo de cavalo. Era carregando

assim, duas encureta que carrega. Carregando, carregando. Aí, quando tava

tudo carregado saía tudo e ia simbora.

Encureta era de tauba. De botá o mel, fazê aquela coisa de açúcar desse

tamanho de garrafinha. Aí, ele levava com encureta e tudo. O mel virava o

açúcar.

Botava o mel dentro desse negócio, dessas encureta, e essas encureta tinha um

furinho embaixo que era pra escorrê, í, coalhando, quando o açúcar ia passando

já ia coalhando

Ficava aquele pauzinho de açúcar desse tamanho assim, abaixo da encureta.

Aquilo a gente entendia tudinho.

À medida que ia esfriando, ela ia saindo aqueles pinguinho de mel. Virava

aquela pedra de açúcar enorme, aquele negócio todinho. E aquele mel que

ficava embaixo era pros bicho. Pros gado. E também fazia o álcool, o álcool

não sei como que fazia não.

A gente entrava, os home trabalhava lá, a gente entrava, Seu José João, o home

que morava lá, ele era maquinista do Engenho. Aí, a gente entrava, bebia caldo,

comia rapa de tacha. Era. O home dava cheio de rapa de tacha pra gente. Do

mel, o mel que ficava, que pegava na tacha ele dava a gente.

Hum! Pois, chegava lá o Seu Zé João dizia: vai bebê mel de cana. Era correndo

assim, ó, aparando 2, 3 copo de cana, bebia assim ó. Bebia, era bom.

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Fiquei um bocado de tempo. Eu fui morá mais ele, depois saí de lá de novo,

depois a mulher me chamou, foi me buscá de novo pra eu criá os filho dela.

Criei os dois menino dela. (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-

MORADORA DO ENGENHO PALMA).

O ambiente era cheio de coisas, acontecimentos, elementos parte de suas

aventuras do ponto de vista de uma criança inocente que enxerga o atrativo mundo

infantil, com relativa liberdade e vida social socializada na cultura prática do dia a dia. O

ensinado e apreendido enquanto regras da cultura do Engenho. Aquilo que indica avanço

e recuo na estrutura de funcionamento, das relações de hierarquia, poder, mando e

obediência. Mas, também o Engenho era um lugar carregado de eventos diversos e

realidades bastante complexas para a compreensão de uma criança imatura obviamente,

embora estivesse sendo narrada por uma criança que se tornara adulta. Embora, parece

existir pouca diferença da percepção da entrevistada criança para a pessoa adulta no

presente. As memórias da infância não foram substituídas com o passar do tempo.

Em meio a tudo isso, a vida social e produtiva compartilhada entre os moradores

[trabalhadores] do Complexo era movida à base de ordens e controles do Senhor do

Engenho, o que acarretava diferentes prejuízos na vida coletiva e pessoal dos

subordinados. Contudo, se o morador e a família quisesse sobreviver ao lugar era esse o

sistema de funcionamento da propriedade. Uns trabalhavam no cultivo da cana, outros na

produção do açúcar dentro do Engenho, a maioria trabalhava na condição de morador

portador de corpo livre, mas, com a mente e alma escrava, que não se transformaram em

homens e famílias plenamente livres e assalariados. Haviam aqueles que trabalhavam em

troca de moradia precária e uma quantidade de terra para trabalhar na lavoura de

subsistência.

As mulheres também eram escravizadas no Engenho, as que tinham habilidades

doméstica se destacavam para assumir atividades dentro da Casa Grande. Os homens

movimentavam a produção pesada no campo e as máquinas do Engenho, as mulheres

manipulavam objetos de utilidades e usos domésticos – cuidavam do senhorzinho, da

patroa, dos afazeres da casa em toda sua extensão [lavação de roupas, cozinha e

alimentação] e assistência geral aos habitantes do Complexo.

Os ambientes de circulação eram também vigiados, os moradores tinham

restrições de acesso, até no processamento do açúcar dentro do Engenho, a maioria só

podia circular sobre autorização e comando do feitor chefe, desde as atividades braçais

na plantação da lavoura principalmente, até a transformação do produto final, o açúcar e

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os derivados da cana. Como aparece nas narrativas e história dos objetos analisados neste

estudo.

O Engenho era mais do que uma estrutura de concreto pesado de aparência rústica

ou envelhecida pelas intempéries do tempo sazonal e cronologicamente falando. Além de

tudo isso, era o lugar de ocupação e circulação de gerações de homens [maridos, pais,

chefes de famílias], mulheres [mães], filhos e crianças de todas as idades, todos

objetificados como instrumento de produção, mercadoria lucrativa ou máquinas humanas

usadas apenas para a produção de riquezas à base do trabalho escravo, explorado, ou, com

simbólica e mínima remuneração. Moravam todos de favor e deviam favores e obediência

ao Senhor e sua família. Dentro da Casa Grande as mulheres escravizadas serviam

também para o sexo marginal com o velho Senhor, ou, o senhorzinho a quem prestavam

trabalho de servidão multiplicada dentro do espaço doméstico, um servir sem fim. No

Engenho, cada indivíduo exercia função à base da violência. A dispensa de força bruta

para a plantação da cana, da colheita, preparação da terra para o replantio, transporte para

o Engenho, moenda, destilação do caldo, processamento do mel até chegar o ponto do

açúcar de qualidade. Finalmente, o armazenamento, transporte, comercialização e

exportação. Tudo em detrimento da manutenção do poder, do luxo, dos privilégios e

enriquecimento do Senhor e de sua família.

Muitas 26pessoas e coisas envolvidas no processo produtivo. Acima dos escravos

também havia muitos homens livres com funções distintas a serviço do Senhor, como

26 Feitor-Mór: Homem de poder inferior ao Senhor, assalariado e responsável pela administração do

engenho. Fiscalizava as atividades gerais, desde o plantio até o transporte final do açúcar. Olhava os

estoques, o trabalho dos escravos, a saúde. Tudo era comunicado ao Senhor do Engenho, qualquer fato

ocorrido ou suspeita, o que via e se passava no engenho. Os demais feitores – homens livres - eram

subordinados ao Feitor Mór. Conforme, Antonil (1711), o feitor-mor recebia um salário de sessenta mil réis

ao ano [século XVIII].

Feitor de moenda: era o homem responsável para fiscalizar a colheita, transporte e moeda da cana de

açúcar. Durante a moenda da cana, ficava controlando o trabalho dos escravos e escravas, cuidando para

evitar acidente durante o processo, até iniciar o processo de fervura. O autor destaca que o feitor de moenda

recebia um salário de quarenta a cinquenta mil réis ao ano.

Feitor ou capataz: Indivíduo responsável para vigiar e punir os escravos desobedientes às ordens. Sua

função era proteger a propriedade e os interesses do Senhor. Os canaviais e roçados dos moradores foreiros,

controlava as relações de convivência para evitar brigas entre os escravos, também, que algum deles fugisse

do Engenho ou ficasse ocioso no trabalho.

Mestre de açúcar: responsável para verificar a qualidade da terra, se era própria e fértil para o plantio da

cana, identificar a localização também era sua função, se tinha água para irrigação, condições adequadas

do clima. Na casa das caldeiras, era o responsável por manter todos os funcionários trabalhando

adequadamente, e manter um controle de qualidade, já que às vezes, o caldo precisava ser fervido com

tempo prolongado, ou repetida a coação, ou decoado por mais de uma ou duas vezes, até retirar toda

impureza da cana. Na casa de purgar era o responsável por avaliar o trabalho dos escravos e empregados

do Engenho. Finalmente, era o mestre do controle e fabrico do açúcar, fazia toda administração do produto,

do começo ao final. Antonil, afirma que nos grandes engenhos, o salário do mestre de açúcar era em torno

de 130 mil réis ao ano, podendo chegar aos 100 mil réis.

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descreve Antonil (1711) e a linhagem de outros autores. No contexto do Engenho

trabalhavam homens com funções que ia do Feitor-Mór ao Caixeiro da Cidade. Sem

contar com a quantidade de escravos e moradores foreiros que viviam na propriedade.

4.4.1 Estrutura do Engenho

A monocultura da cana-de-açúcar na propriedade rural era a grande força motriz

mantenedora dos privilégios da sociedade colonial, senhorial, oligárquica, patriarcal,

dominante do Brasil colônia, pós-colonial, imperial, republicana, industrial e empresarial

dos tempos modernos, aquela que se estende nas camuflagens do século XXI e nos tempos

atuais. A palavra Engenho passou a representar tanto a conhecida Casa Grande quanto ao

próprio Senhor da propriedade, por ser o local de moenda da cana-de-açúcar, da economia

fundante das estruturas de poder econômico e todo processo de acumulação das riquezas,

não somente isso, mas também o Engenho representava além da produção de açúcar, a

Banqueiro ou soto-mestre: Um dos indivíduos ajudantes do mestre de açúcar. Quando o mestre se

ausentava da função por algum motivo, o banqueiro assumia o controle com a mesma eficiência do anterior,

para que a produção de açúcar na casa das caldeiras não parasse o processo. Geralmente, o banqueiro

substituía o mestre de açúcar no período da noite, fazendo o revezamento de turno para o descanso. O

salário do banqueiro ou soto-banqueiro, era de 30 a 40 mil réis ao ano.

Ajuda-banqueiro ou soto-banqueiro: era homem ajudante do banqueiro, sua função era de grande

responsabilidade na fabricação do açúcar, atuava para evitar atrasos dos escravos, desperdício da matéria-

prima e cuidar dos acidentes no Engenho. Nos registros de Antonil, essa função era desempenhada por

homem livre, por algum escravo ou mestiço de confiança do Senhor e do Feitor. Era responsável também

por supervisionar o envio dos pães de açúcar para a casa de purgar. Se empregado na função fosse realizado

por um escravo, ou, um mestiço, sofria estigma por ser um escravo, independente se era filho de mãe ou

pai branco. Nesses casos, as vezes não recebia salário, mas sim um agrado ou recompensa menor.

Caldeireiro e tacheiro: Eram os homens que trabalhavam nas caldeiras e tachos ferventes do caldo da

cana-de-açúcar. Este, cuidavam da temperatura de fervura e o processo de purificação do caldo. Eram

responsáveis para verificar se o caldo e o açúcar estavam no ponto, se estava fervendo na temperatura certa

durante as diferentes etapas do cozimento.

Purgador: O indivíduo que controlava a purificação do açúcar na casa de purgar. Verificava também a

qualidade do barro [argila] que seria usado no processo de purgação, além da organização dos pães nos

andaimes. Cuidava da organização e limpeza do ambiente, ordenava a limpeza dos jarros que armazenava

o melaço a ser novamente armazenado ou reutilizado no processo. O salário de purgador variava de acordo

com sua produção, se produzisse 4 mil pães numa estocada, recebia 50 mil réis ao ano por exemplo. O

salário era proporcional aos resultados da produção, é o que Antonil registra.

Caixeiro de engenho: Nada mais do que o indivíduo responsável para pesar o açúcar produzido no

Engenho, antes de ser encaixotado e marcado por letras [carimbos]. Uma espécie de supervisor exigente,

que cuidava da classificação do produto e contabilidade da produção para o Senhor de Engenho, o

pagamento dos trabalhadores assalariados, lavradores envolvidos no processo, até o repasse do dízimo para

a Igreja [Vigário da Capela]. Responsável pela supervisão e autorização do carregamento do açúcar

encaixotado, controle final, inspeção e transporte até o porto da capital. Finalmente, aguardar o embarque

final do produto entregue. Dependendo do volume da produção e do tamanho do engenho, o caixeiro podia

receber em salário o valor de 30 a 50 mil réis por ano.

Caixeiro da cidade: Este profissional se diferenciava do caixeiro do Engenho, sua função era de um

contador. Atuava como contratador, procurador e depositário do Senhor de Engenho, cuidava das finanças

e fluxo de caixa, das negociações, da contratação de navios, de compradores final do produto. Seu salário

era de 40 a 50 mil réis ao ano, (ANTONIL, 1711).

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cultura do consumo da rapadura e aguardente no país e no mundo. Um Complexo

agroindustrial envolvendo cultivo da cana, preparo do açúcar e dos derivados do mel que

ia além das fronteiras da propriedade limite do próprio Engenho. E o Complexo do

Engenho Palma não se diferenciava desse modelo. Era exatamente igual a todos os demais

descritos Antonil. E também como afirma Caio Prado Jr, quando diz que na propriedade,

[...] o elemento central é o engenho, isto é, a fábrica propriamente, onde se

reúnem as instalações para a manipulação da cana e o preparo do açúcar. O

nome de "engenho" estendeu-se depois da fábrica para o conjunto da

propriedade com suas terras e culturas: "engenho" e "propriedade canavieira"

se tornaram sinônimos, (PRADO JR, 1981, p. 23).

O engenho representava uma verdadeira povoação, obrigando a utilização não

só de muitos braços, como as necessárias terras de canaviais, de mato, de pasto

e de mantimentos. Com efeito, além da casa do engenho, da de moradia,

senzalas e enfermarias, havia que contar com uns cem colonos ou escravos,

para trabalharem umas 1.200 tarefas de massapê (de 900 braças quadradas),

além dos pastos, cercas, vasilhames, utensílios, ferro, cobre, juntas de bois e

outros animais, (SIMONSEN, 2005, p. 122).

Em todo o Complexo da Casa Grande do Engenho Palma a movimentação dos

moradores era em torno do trabalho continuo para o funcionamento do Engenho, a

produção da cana-de-açúcar de forma permanente e continuada no campo. Sabendo que

“[...] a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde se preparava

o açúcar, só se tomava rendoso quando realizado em grandes volumes”, (PRADO JR,

1981, p. 19). Sobre esses aspectos do trabalho no Engenho a entrevistada relata:

Não brincava, a gente não brincava no engenho não. O Engenho produzia

açúcar, produzia mel de furo. Mel de furo é um, é um, é um alimento que dá

pros, que dá pro gado, mói a cana, e coloca o mel de furo moído naquela cana

moída, ou no capim, é pro gado cumê. E o mel, o mel que fazia, fazia açúcar.

Tinha aquelas, aquelas incureta grande e butava o mel e coalhava e ficava

aqueles coisa de açúcar. E quando tava tudo pronto, aí vendia pra todos os

lugares né, o açúcar preto muito bom, (RELATO DA ENTREVISTADA

ANTIGA EX-MORADORA DO ENGENHO PALMA).

Nos estudos de Antonil (1711), encontrei alguns tipos de Engenhos de cana-de-

açúcar, os mais comuns no Brasil na Era Colonial. Basicamente, são três os tipos mais

conhecidos que marcaram o período imperial do século XIX. O Engenho movido à base

da força animal e humana é o tipo do Engenho Palma, o Alprensa conforme a fotografia

[9].

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Alçaprensa ou alçaprema: Engenho movido a força humana, engenhoca

(pequeno engenho) que fabricava açúcar, rapadura, aguardente para consumo

interno do Engenho. Engenhoca envolvendo trapiche, molinete, atafona ou de

bois: engenho movido pela força de animais, escravo, podendo ter bois ou

cavalos.

Água ou real: Engenho movido com a força da água, envolvendo roda e

riacho.

Banguê: Engenho movido à vapor, usado a partir do século XIX. (ANTONIL,

1711).

Conforme a região do Brasil o termo e a pronúncia das palavras para identificação

do tipo de Engenho muda de acordo com o sotaque da população e cultura local, porém

a identificação e essência da engenharia criativa é a mesma. Nas palavras do autor, o

Engenho é uma verdadeira invenção humana de alta complexidade épica. O domínio da

técnica, o invento e a reflexão da ação mostra as capacidades criativas dos inventores

como descobertas humanas bastante sofisticadas.

Quem chamou as oficinas, em que se fabrica o açúcar, engenhos, acertou

verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê, e considera com

reflexão, que merecem, é obrigado a confessar, que são uns dos principais

partos, e invenções do engenho humano, o qual com pequena porção do

Divino, sempre se mostra no seu modo de obrar, admirável. Dos engenhos uns

se chamam reais, outros inferiores vulgarmente engenhocas. Os reais

ganharam este apelido, por terem todas as partes, de que se compõem, e todas

as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos

canaviais próprios, e outros obrigados à moenda; e principalmente por terem a

realeza de moerem com água, à diferença, de outros, que moem com cavalos e

bois, e são menos providos e aparelhados; ou pelo menos com menor perfeição,

e largueza, das oficinas necessárias, e com pouco número de escravos, para

fazerem como dizem, o engenho moente e corrente, (ANTONIL, 1711, p. 13-

14).

Perguntei, se o açúcar produzido era do tipo mascavo ou refinado? Pacientemente

ela respondeu.

O cotidiano e funcionamento do Engenho na perspectiva da entrevistada era

assim...

Não. Refinado só quem faz é as usina. É. Toda minha recordação é lá no

Engenho, que era o canto que tinha espaço pra andá, pra brinca, caçá lenha,

cumê, chupá manga, tudo isso. Era o rio, toma banho era isso, um lugar que eu

sinto muita saudade ainda. Saí da Palma com 12 anos como eu já falei. Fiquei

durante esses anos todinho na Palma. Todo mundo me conhecia, sabia que eu.

O meu tempo de felicidade foi esse né que passei. Depois que eu cresci foi só

trabalha, (RELATO DA ENTREVISTADA ANTIGA EX-MORADORA DO

ENGENHO PALMA).

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FOTOGRAFIA 9 - ENGENHO PALMA [PARTE EXTERNA]

4.4.2 Escravos do Engenho Palma

Isso aí já, eu conheci dois, duas pessoa lá no Engenho. Eu não sei se eles eram

escravo, mas eles eram escravo da fazenda mesmo, na Casa Grande de Palma.

Eu conheci Seu João Diló, que era o pai do João Diló um negão bem preto,

bem altão que era nêgo da fazenda e tinha outro que era João Diló e Seu Cirino

Fortunato. Tudo isso era, fora um negão lá de dentro. Do Engenho. Nesse

tempo acho que era o Seu Eufrázio, do Coronel Eufrázio que era pai do Dr.

Ênio. E do Dr. Eufrázio quando morreu ficou o Dr. Nipodon e eles eram bem

velhinho. Eu me lembro que eu passava assim de manhã pra buscá o leite da

vaca, tava o Seu João Diló sentado assim, lá em cima. Bem preto sentado lá.

Era o querido do Engenho ali, ele sabia de tudo. Acho que aqueles ali, acho

que eram os escravo, depois né. Não, eu não conversava com eles não. Eu

falava assim pra minha vó aquele lá escravo do Engenho e da Casa Grande,

(IBID).

4.4.3 Carreiro, boi e a moenda da cana

Ela dixe a mim que alcançou a moenda do Engenho com as besta. Era dois

cavalos bem forte, bem gordo na frente e com esse carro de boi atrás. Os boi

é furado na ponta, no cangar. E os cavalo que não tem ponta é no pescoço. Na

ponta dos boi eles amarram uma corda de couro cru, do boi, pra ele se movê

FONTE: Arquitetura do Engenho Palma. Local de trabalho escravo e de trabalhadores explorados na

produção do açúcar bruto [natural]. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível

em: <https://portalmachadense.wordpress.com/2016/01/15/dr-enio-guerra/>. Acessado em: 30 de outubro,

2018.

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amarrado um pro outro assim. E bota a canga no pescoço pra, eles não podem

se mexê os coitado. Inda tem, inda tem o Carrero. O Carrero do boi com uma

vara bem grande, com uma ponta de ferro na ponta pra furá os boi e eles carregá

essa carga de cana em cima do carro.

A gente via de longe, apita as roda. As roda de ferro, de madeira. Madeira forte

bem grande com aqueles negócio de ferro assim. Ai, vai fazendo assim

“tchuimmmm. Tchimmm, de longe a pessoa vê a zoada. E dois boi na frente

carregando, puxando. E o Carrero com o espeto assim furando. (IBID).

O Engenho Palma é uma propriedade que se enquadra no perfil dos grandes

latifúndios oriundos das 27Sesmarias e Capitanias Hereditárias em Pernambuco. Apesar

27 Sesmarias, Capitanias Hereditárias e o surgimento de Engenho no Nordeste do Brasil

[Pernambuco]. O decreto do Rei Dom João III, cria-se as Capitanias Hereditárias no Brasil. Com isso, a região Nordeste e

o litoral da colônia dividido em 14 Capitanias Hereditárias destinadas à colonizadores portugueses que

seriam os donatários das terras da colônia. Seriam os responsáveis para ocupar, colonizar e desenvolver a

agricultura e a pecuária nos territórios. Essa foi a estratégia e decisão do Rei de Portugal após a descoberta

e conquistas das terras à leste do Tratado de Tordesilhas em 1500, por Pedro Álvares Cabral. Cujo foco da

Coroa portuguesa seria explorar os recursos naturais da colônia na América Portuguesa, a extração do pau-

brasil inicialmente.

Dessa forma, ficou estabelecido a criação de 14 capitanias e seus 12 donatários, uns receberam mais que

uma porção de terra, fundando outras capitanias para administração das terras.

A partir das Capitanias Hereditárias o sistema administrativo da colônia foi bem-sucedido e funcionou no

controle do território do Brasil em 1534. A colônia foi dividida em faixas de terras e concedidas aos nobres

de confiança do rei D. João III (1502-1557), podendo ser transferida como herança de pai para filho, por

isso o nome “Capitanias Hereditárias”. O sistema foi implantado a partir da expedição de Martim Afonso

de Sousa, em 1530.

Nas figuras [1 e 2] trata-se do mapa do cartógrafo português criado por Luís Teixeira onde mostra a

América Lusitana com base no Tratado de Tordesilhas, após 1548, quando a Bahia foi transformada em

Capitania Real. Note que que existem grandes distorções, principalmente ao sul. Contudo, este é um mapa

que define as terras acordadas na época entre Portugal e Espanha. Este mapa é parte da obra Roteiro de

todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que há na costa do Brasil desde o cabo de

FONTE: 1 - Linha de Tordesilhas - Mapa de Luís Teixeira (cerca de 1574). 2 - Mapa das Capitanias

Hereditárias (1534-1536). 3 - Vila de Olinda e o Porto do Recife - cerca de 1574.

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Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães (original na Biblioteca da Ajuda, volume 3, 1924,

Lisboa, Portugal).

Na figura [3] representa o mapa interativo da Vila de Olinda, capital da Capitania de Pernambuco, em

fragmento de um mapa de Albernaz da segunda metade do século 16. Mostra as terras dos engenhos, os

rios, o mar e as vilas e cidades em formação. Pernambuco foi a capitania que deu certo, tanto do ponto de

vista econômico, como de colonização portuguesa.

Capitanias Hereditárias Criadas de 1534 a 1536

A primeira capitania do Brasil continental foi a de Pernambuco, doada a Duarte Coelho, em 10 de março

de 1534. Foi o caso de maior sucesso comercial entre as capitanias brasileiras, na primeira metade do século

XVI.

No ano de 1535, o primeiro donatário em Pernambuco, Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) fundou o

primeiro engenho de cana-de-açúcar na capitania, na região da Vila de Olinda (fundada por Duarte em

1534), o denominado Engenho Velho. A engenhoca deu início a Era mais importante para o Brasil, como

novo polo açucareiro da colônia. Três anos depois, na Vila de São Vicente já havia sido instalado outros

três engenhos em pleno funcionamento.

"Desde o alvará de Dom Manuel e depois, conforme observou João Lúcio de Azevedo, "o privilégio,

outorgado ao donatário, de só ele fabricar e possuir moendas e engenhos de água, denota ser a lavoura de

açúcar a que se tenha especialmente em mira". No mesmo sentido eram feitos os regimentos e as leis

referentes à colônia: o de Tomé de Sousa, excluindo o senhor de engenho das execuções por dívidas; e dos

governadores de Pernambuco, assegurando privilégios aos que edificassem ou reedificassem engenhos; a

meia fidalguia concedida a quantos se tornassem senhores de engenho”.

Originalmente, as capitanias tinham o nome de seus donatários até serem por eles batizadas, mas algumas

nunca o foram ou não se conheceram seus nomes. Essas passaram para a História com nomes que se

referiam à região. Foi o caso da Capitania da Bahia. Seu donatário fundou uma vila na Barra, mas não se

sabe que nome ela recebeu e ficou conhecida como Vila do Pereira, depois Vila Velha.

Foram 14 capitanias doadas entre 1534 e 1536:

1 - Capitania de Pernambuco, batizada de Nova Lusitânia. Foi doada a Duarte Coelho, filho de Gonçalo

Coelho, em 10 de março de 1534. Tinha 60 léguas de litoral, desde Igarassu até o Rio São Francisco. A

expedição de Duarte Coelho chegou em sua Capitania, em 9 de março de 1535. Foi a mais próspera das

capitanias até a instalação da Capitania Real da Bahia, em 1549.

2 - Capitania da Bahia, doada em 5 de abril de 1534, a Francisco Pereira Coutinho. Foi a segunda capitania

criada no Brasil continental, depois de Pernambuco, e começava onde essa terminava, no Rio São

Francisco. Estendia-se até o atual Farol da Barra. A Bahia de Caramuru já era o principal porto do Brasil,

quando Coutinho chegou, em 1536. Ele construiu um castelo, fundou dois engenhos, mas sofreu ataques

dos franceses e dos tupinambás, que o devoraram, em 1546. Em 1548, a Bahia foi adquirida pela Coroa e

transformou-se na primeira Capitania Real da Brasil. Em 1549, foi construída a Cidade do Salvador, a

primeira do Brasil, para ser a Capital. A partir de então, foi a mais próspera das capitanias, até o século 18.

3 - Capitania dos Ilhéus, doada ao fidalgo Jorge de Figueiredo Correia. Seu litoral estendia-se desde a

"Ponta da Bahia de Todos os Santos da banda do Sul" até 50 léguas de litoral, ao sul. Teria sido a terceira

capitania doada no Brasil continental, embora a data de sua Carta de Doação (27 de julho de 1534) seja

posterior à de Porto Seguro (27 de maio de 1534).

A Carta de Doação da Capitania dos Ilhéus foi transcrita na carta de confirmação, passada a Dona Elena de

Castro, registrada em 1715, e a data da Carta de Doação foi indicada como 27 de julho de 1534(Documentos

Históricos, Biblioteca Nacional, Vol. LXXX, 1948). Apesar disso, a doação da Capitania dos Ilhéus seria

anterior à de Porto Seguro, pelo simples fato de que a Carta de Doação dessa refere-se àquela, para definir

seus limites (veja abaixo).

4 - Capitania de Porto Seguro, doada a Pero do Campo Tourinho, em 27 de maio de 1534. Seu litoral

começava, ao norte, onde terminava a Capitania dos Ilhéus. A Carta de Doação registrou: cinquenta léguas

de terra na dita Costa do Brasil, as quais se começarão na parte onde se acabarem as cinquenta léguas de

que tenho feito mercê a Jorge de Figueiredo Correa [...] quanto couber nas ditas cinquenta léguas,

5 - Capitania do Espírito Santo, doada, em 1º de junho de 1534, a Vasco Fernandes Coutinho, com 50

léguas de extensão na costa do Brasil, ao sul da Capitania de Porto Seguro. Coutinho era um fidalgo da

Casa Real e primo do donatário da Capitania da Bahia. O donatário chegou em sua Capitania, em 23 de

maio de 1535, com cerca de 60 pessoas, e deu a ela o nome de Espírito Santo, pois era dia de Pentecostes.

6 - Capitania de Santo Amaro, doada, 1º de setembro de 1534, a Pero Lopes de Sousa.

7 - Capitania de São Vicente, doada, em 6 de outubro de 1534, a Martim Afonso de Sousa, em dois lotes.

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8 - Capitania do Maranhão.

9 - Segunda Capitania do Maranhão.

10 - Capitania do Ceará.

11 - Capitania do Rio Grande.

12 - Capitania de Itamaracá.

13 - Capitania de São Tomé.

14 - Capitania de Santana.

As Capitanias tiveram vida curta, foram abolidas dezesseis anos após sua criação. Direitos e Obrigações

do Donatário

O Rei Dom João III concedeu as terras para nobres de sua confiança. Cada Capitão Donatário era

considerado a autoridade máxima, ficando responsável por povoar, administrar, proteger o território, fundar

vilas e desenvolver a economia local. Por sua parte, a Coroa Portuguesa não dava nenhuma ajuda financeira

aos donatários para esse empreendimento. Os donatários, por outro lado, possuíam alguns privilégios

jurídicos e fiscais como:

- escravizar indígenas;

- cobrar tributos e doar lotes de terra não cultivados (sesmarias);

- explorar a região e usufruir de todos seus recursos naturais (donde uma porcentagem pertencia à coroa),

desde animais, madeira e minérios.

Os donatários possuírem grande poder, as capitanias não os pertenciam, mas sim à Coroa Portuguesa que

cobrava um imposto “dízimo”, 10% da produção. O sistema de capitanias sofreu com a falta de recursos,

algumas foram abandonadas e em outras jamais seus donatários estiveram ali. Eram constantes dos ataques

indígenas que lutavam contra a invasão de suas terras.

O empreendimento das capitanias hereditárias fracassou, apenas duas foram bem-sucedidas: a Capitania de

Pernambuco, comandada por Duarte Coelho, responsável por introduzir o cultivo da cana de açúcar e a

Capitania de São Vicente, comandada por Martim Afonso de Sousa, graças ao tráfico de indígenas que

realizavam naquelas terras. As capitanias impulsionaram o desenvolvimento das vilas e cidades. Com o

fracasso das capitanias o governo geral impulsionou nova reforma administrativa da colônia, que aos

poucos se transformaram em províncias, e, mais tarde constituíram alguns estados brasileiros

Curiosidade e realidades:

A herança do sistema de capitanias hereditárias no Brasil, pode ser sentido até hoje, seguido através

do coronelismo e das famílias que seguem mantendo o poder em certos estados. Martim Afonso de Sousa

permaneceu pouco tempo em sua capitania, logo foi deslocado para ocupar outro posto nas Índias a mando

da coroa. Quem administrou as terras adquiridas foi sua esposa, Ana Pimentel. Uma família que vem sendo

estudada pelo professor sociólogo Ricardo Costa de Oliveira em suas pesquisas sobre genealogia familiar

no contexto do Paraná-Brasil.

"Em 1576, Pernambuco exportava cerca de 70 mil arrobas de açúcar e em 1583 a cifra subia a 200 mil

arrobas. "Nos princípios do século XVII, diz de Carli, possuindo o Brasil 200 engenhos, a sua produção era

de 25 mil a 35 mil caixas de açúcar de 35 arrobas cada uma. É o tempo áureo do açúcar no Brasil",

(AMARAL, 1958, p. 328-329).

"Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdição civil e criminal, com

alçada até cem mil reis na primeira, com alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e

homens livres, para pessoas de má qualidade até dez anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia

(se o herege fosse entregue pelo eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer

que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente si a pena não fosse capital. Os

donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das costas e rios navegáveis;

seriam senhores das ilhas adjacentes até distancia de dez léguas da costa; os ouvidores, os tabeliães do

público e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar terras de

sesmarias, excepto à própria mulher ou ao filho herdeiro", (ABREU, 1907, p. 36).

De acordo com Simonsen (1937, p. 179), de 1630 a 1654, ou seja, por 24 anos, os holandeses ocuparam

parte do Nordeste do Brasil, controlando a produção açucareira de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio

Grande, os principais produtores desse tão cobiçado "ouro branco". De acordo com o relatório do holandês

Adriaen van der Dussen, concluído em 1639 para a Companhia das Índias Ocidentais, Dussen apontava

que Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande possuíam pelo menos 166 engenhos, embora hoje sabe-

se que há incertezas na exatidão do cálculo dele, contudo, seu relatório ainda é um dos melhores que existem

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dos limites da demarcação das terras, sua origem vem de longe, sabendo que nem todos

os canaviais ocupavam grandes latifúndios. Muitas eram propriedades médias e pequenas

que cultivavam os canaviais e nos médios e pequenos engenhos eram moídas e

transformadas em açúcar.

4.4.4 Fôrmas de armazenamento e transporte do açúcar

As fôrmas de madeira usadas no armazenamento e transporte do açúcar bruto

repartido em blocos. Era uma das etapas do processo de produção no Engenho. Depois

que a fabricação do açúcar chegava a etapa final. Os escravos colocavam os blocos dentro

desses recipientes para transporte no lombo dos cavalos. Seguia viagem para o porto do

Recife com destino de exportação para a Europa.

Tudo processo resultante do trabalho escravo, o que deu origem às desigualdades

e exclusões sociais em massa, em detrimento dos privilégios e acumulação para poucos.

Esse, era, e é, o sistema funcional da sociedade escravocrata iniciada na grande

propriedade do Complexo da Casa Grande do Engenho, em especial na região Nordeste

incluindo o Engenho Palma no interior do estado objeto de referência e estudo.

desse período da história brasileira. "O açúcar brasileiro dominou o comércio do produto entre 1600 e 1700,

como já registrava Barlaeus na obra que escreveu em 1660, (AMARAL, 1958, p. 328-329).

Fonte de pesquisa: Disponível em: <https://www.historia-brasil.com/colonia/capitanias-hereditarias.htm>;

<https://www.todamateria.com.br/capitanias-hereditarias/>; <https://mapas.ibge.gov.br/escolares/publico-

infantil/brasil/capitanias-hereditarias.html>.

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FOTOGRAFIA 10 - FÔRMAS USADAS PARA O AÇÚCAR BRUTO

No interior do Engenho, as estruturas da maquinaria e equipamentos na fabricação

do açúcar é dividido em três partes com funções distintas e conexas. A casa da moenda

[maquinaria], a casa das caldeiras [tacho de madeira, ferro ou cobre] e a casa de purgar

[local de purificação do mel]. Cada etapa fazia parte do fabrico do açúcar com fases

controladas, temperatura, tempo e horário marcado para início e término do processo

final. A fabricação da cachaça e da rapadura havia diferenças em comparação ao açúcar.

Nos compartimentos do Engenho, conforme descrição de Antonil (1711) tinha a

moenda – engenhoca ou máquina feita de madeira conectada à prensa também de

madeira, que ao girar a roda movimentava o mecanismo da engrenagem com a velocidade

da força humana, animal ou com a força da água [hidráulica]. O peso, a velocidade e a

força da moenda e das peças da engrenagem esmagava a cana, transformando em bagaço

e assim retirava o caldo da planta. Finalmente, o caldo coletado em tachos de madeira,

cobre ou ferro dava início ao processamento e transformação em etapas. Para Antonil

FONTE: Recipiente de madeira usada para curar o açúcar bruto e transporte do produto no lombo do

cavalo de carga. Fotografia antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em:

<http://professoredgarbomjardim-pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-e-patrimonio.html>.

Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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(1711), a moenda da cana na Casa da Moenda é a etapa mais perigosa do processo, era

alto o risco do escravo que movimentava a engrenagem ficar com a mão presa nas

máquinas, nas engrenagens das rodas, das prensas, podendo até ser puxado pelo braço e

ser moído na prensa. Quando acontecia, o escravo era esmagado, perdia o braço ou morria

com a gravidade dos ferimentos. Era um perigo constante. Por isso, o maquinista, o

caldeireiro, o feitor e todos os encarregados do Engenho exigia o cuidado com os escravos

e animais em função dos perigos no Engenho, não somente na moenda da cana, mas

também em todas as demais etapas do processo. Além dos riscos eminentes de acidentes,

mutilações e mortes, a moenda funcionava dia e noite como já foi descrito pelo autor. Os

escravos em movimento continuo e repetitivo ficavam cansados e exaustos com a

atividade, muitas vezes caiam no sono, na fadiga e cansaço extremo. A tragédia no

Engenho era questão de pouco tempo, (ANTONIL, 1711). 41).

Em Antonil (1711, p. 54-55), o autor faz um relatório etnográfico bastante

detalhado sobre o trabalho escravo no Engenho, relata o feminino usando expressões na

língua portuguesa de conotação “vulgar” para os dias atuais no contexto da cultura

brasileira. O autor descreve o processo produtivo no Engenho e a função das mulheres

escravas, como eram percebidas e envolvidas na fabricação do açúcar em concomitância

com os homens, assim relata:

As escravas de que necessita a moenda ao menos são sete ou oito, a saber: três

para trazer cana, uma para a meter, outra para passar o bagaço, outra para

concertar e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para limpar o

cocho do caldo (a quem chamam cocheira ou calumbá) e os aguilhões da

moenda e refrescá-los com água para que não ardam, servindo-se para isso do

parol da água, que tem debaixo do rodete, tomada da que cai no aguilhão, como

também para lavar a cana enlodada; e outra, finalmente, para botar fora o

bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for

necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas

haverá mister outra, que a ajude, porque de outra sorte não se daria vazão a

tempo e ficaria embaraçada a moenda, (ANTONIL, 1711, p. 54-55).

O trabalho das mulheres escravizadas não se restringia apenas ao processo da

fabricação do açúcar no Engenho, mas também na lavoura, na plantação e colheita das

canas, em todas as demais formas de produção e exploração do trabalho no interior do

Complexo, principalmente nas atividades domésticas na Casa Grande, na criação dos

filhos do Senhor, cozinha, rouba, banho e quase sempre incluindo sexo.

Um dos objetos reais e simbólicos dessa época encontrado no interior da Casa

Grande de Engenho Palma foi o bule de café usado por mulheres escravas na cozinha,

como é possível observar na fotografia [11]. Atualmente o objeto faz parte da coleção

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arqueológica e do acervo do patrimônio histórico de Pernambuco dentro do próprio

Engenho, aberto à visitação externa.

4.4.5 Bule de uso doméstico da Casa Grande

FOTOGRAFIA 11 - BULE DE FERRO [USO DOMÉSTICO DA CASA GRANDE]

Voltando a discussão sobre a casa das caldeiras do Engenho, lá, havia vários

tachos usados nas etapas das fervuras do caldo da cana-de-açúcar, até atingir o processo

final do mel. Esses são os tipos utilizados pelos caldeireiros, como descreve Antonil

(1711).

Caldeira clarificadora: nos primeiros engenhos misturava-se o caldo com cal,

para ajudar a filtrar as impurezas antes de seguir para a fervura. Caldeira de

caldo: tacho onde se recebia o caldo vindo da casa da moenda. Caldeira do

meio: tacho que se iniciava a fervura e se retirava a primeira e a segunda

espumas, as quais continham impurezas como pedaços de folhas, caule, bagaço

da cana, etc. Caldeira de melar: continuava-se à fervura e onde se retirava a

terceira espuma a qual era levada para o parol de escuma. Aqui também se

fazia a garapa. Parol de melar: após ser fervido e ter as espumas retiradas, o

caldo era posto aqui para ser coado. Parol de coar: recebe o caldo para ser

coado. Usa-se o termo temperar também nessa etapa. Tacha de receber: após

ser coado, o caldo era mexido, fervido e decoado (filtrar), onde se acrescentava

água com cinzas para ajudar na filtração das impurezas existentes. Tacha de

porta: após o caldo ter suas espumas retiradas, ter sido coado e ter sido

decoado, o caldo continua a ser fervido. Tacha de cozer: o caldo continua a

FONTE: Bule de ferro de uso da Casa Grande. Utensílio de trabalho feminino escravo. Fotografia

antiga de domínio público online, agosto, 2017. Disponível em: <http://professoredgarbomjardim-

pe.blogspot.com/2011/11/projeto-historia-cultura-e-patrimonio.html>. Acessado em: 30 de outubro, 2018.

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ser fervido e aqui atinge seu "ponto". Consiste na última etapa de fervura, pois

a partir daqui o chamado melaço será posto para iniciar a etapa de descanso e

esfriamento. Tacha de bater: o melaço é batido com uma batedeira para

atingir o ponto de cristalização, ficando mais consistente e massudo. Bacia de

repartir: Após ser batido, o melaço era desafogado, termo usado para se

referir ao ato de transferir o melaço da taxa anterior para esta, onde seria levado

para resfriadeira onde iria descansar e esfriar. Parol de escuma: local que se

depositava a espuma das três espumas para ser reutilizada.

Os responsáveis pelos tachos na casa de caldeira eram homens moradores do

Engenho, trabalhadores livres chamados de caldeireiros, designados para realizar o

processo e verificar a qualidade e o ponto certo do açúcar. A temperatura exata de fervura

e as demais etapas. Esse era um processo em que o maquinista [João Diló] do Engenho

Palma também aparece nas narrativas da entrevistada, assumindo posição e importância

no trabalho.

Antonil (1711), dar destaque para várias pessoas envolvidas na seção de

fabricação do açúcar, sendo que a maioria era trabalhadores homens e algumas mulheres

escravas. O autor descreve que no Engenho havia uma escrava conhecida de "calcanha"

que era a responsável por limpar o recinto, acender as candeias, coletar a segunda e a

terceira espuma retirada e voltar a colocá-la em um parol (recipiente ou vasilha) para

aproveitamento da espuma, tinha outras utilidades.

A lista de peças, ferramentas e objetos de uso cotidiano no processo da fabricação

do açúcar era grande, além dos tachos, paróis e caldeiras, outras utilidades também faziam

parte do artesanato da produção primitiva. Na etnografia de Antonil (1711), os

trabalhadores contavam com os objetos utilitários, como:

Batedeira: usada para bater no melaço após este terminar de ser fervido.

Caneca: recipiente usado para passar o caldo de um tacho para o outro.

Cinzeiro: tanque quadrangular onde se misturava água quente com cinzas para

ser usado na decoada, na taxa de receber. Colher: uma grande colher com

furos, usado para mexer o melaço após a fervura. Concha: uma concha de

ferro de cabo longo, usada para se provar o caldo. Escumadeira: tipo de colher

com vários furos, usada para se extrair a espuma. Fôrma: vaso de barro onde

se colocava o melaço para iniciar a purgação. Passadeira: grande colher usada

para transferir o caldo fervente para o tacho seguinte. Picadeira: lança de ferro

usada para se retirar os restos de melado que ficavam grudados nos tachos,

paróis e caldeiras. Pomba ou reminhol: grande colher usada para retirar o

melaço da última taxa. Era usado também para se acrescentar água na decoada.

Resfriadeira: tanque onde o melaço descansava e esfriava para depois ser

depositado nas formas, (ANTONIL, 1711).

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Outras ferramentas de uso cotidiano no Engenho também fazia parte do inventário

e arquivo de trabalho braçal. De acordo com Antonil (1711), os trabalhadores fabricavam

os próprios instrumentos de uso cotidiano para fabricação do açúcar, entre esses:

Cavador: feito de ferro, era usado para escavar o açúcar a fim de se colocar a

argila ou barro. Facão: usado para raspar o açúcar mascavado após a fase de

purgar. Furador de ferro: usado para furar a ponta do pão de açúcar por onde

escorreria o melaço durante a fase de purgação dentro dos potes. Macete:

espécie de martelo usado para socar e comprimir o açúcar dentro dos potes.

Machadinha: usada para raspar o açúcar mascavado. Peça de couro: pedaço

de couro (geralmente de couro de vaca) usado para se ajeitar o açúcar dentro

dos potes. Rodo: usado para mexer o açúcar quando este é posto para secar

nos toldos. Tolete: espécie de martelo para se quebrar os pães de açúcar. Pelo

formato cônico que ele possuía, isso levava a dividir o pão em partes chamadas

de "caras", começando-se do alto até a ponta. Cada "cara" possuía uma

qualidade diferente, sendo a ponta afunilada de qualidade inferior.

A engrenagem da roda de moer a cana, o que dava início ao processo de retirada

do caldo da cana no Engenho, não era uma atividade mecânica de automática

simplesmente, ou, de fácil manuseio dentro das condições dadas. São altamente

complexas, perigosas, que exigia controle da força física e racionalidade mental bastante

apurada.

Os maquinistas e caldeironistas são exemplos disso, homens incrivelmente

inteligentes e experientes na operação das máquinas e fabricação do açúcar. Não era

qualquer pessoa que se tornava maquinista no Complexo, eram indivíduos privilegiados

pelo Senhor, escolhido pelo destaque na função. São homens que controlava outros

homens em condições inferiores, a força escrava estava sobre seu comando e ordens.

Dentro do Engenho e na propriedade também havia sistema de hierarquia entre os

indivíduos inferiores ao Senhor. É possível observar a presença de conflitos, mandos e

obediências se movimentando nas relações internas durante o processo de fabricação do

açúcar, o contato envolvendo o cotidiano e o processo produtivo na totalidade da

propriedade e da capacidade máxima do Engenho.

Finalmente, os tipos de açúcar eram processados conforme o comando do Senhor

de Engenho e a encomenda da produção para exportação do produto.

No balcão de secar trabalham as mesmas duas mães com as suas companheiras,

que são até dez, estendendo os toldos e quebrando com toletes as lascas e os

torrões grandes em outros menores atrás dos quebradores dos pães. E na

caixaria ajudam ao caixeiro no peso e encaixamento do açúcar as negras e

negros que são necessários, como também no pilar, igualar, pregar e marcar,

(ANTONIL, 1711, p. 80).

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O autor retrata claramente toda engenharia de força humana e máquina envolvida

na produção. A classificação do açúcar era também bastante rigorosa, cada tipo

acompanhava uma letra do alfabeto português e também tinha marca. Tipo e marca:

Açúcar branco macho: marcava-se na caixa um B. Açúcar branco batido:

marcava-se na caixa dois BB. Açúcar mascavado macho: marcava-se na

caixa um M. Açúcar mascavado batido: marcava-se na caixa um MB.

Marca das arrobas: gravada na tampa a ferro quente, identificava o peso da

caixa. Marca do engenho: era gravada a ferro quente, e colocada no canto

inferior direito da tampa. Designava o engenho no qual o açúcar foi fabricado.

No caso de fosse alguma entidade religiosas ou organização mercantil, leva-se

o selo ou inicias dessa ordem ou organização. Marca do senhor ou do

mercador: poderia ser gravada a ferro quente ou pintada. Era marcada no

centro da tampa se fosse a fogo, e seria marcada na lateral da caixa se fosse em

tinta, onde se escrevia o nome do proprietário ou do comprador, (ANTONIL,

1711).

Nos relatórios de registros do autor, Antonil (1711) descreve que os escravos

exerciam as várias atividades em todo processo produtivo do açúcar, mas as principais

atividades fins eram exercidas por homens livres. Isso aparece o tempo todo nos escritos

de 28Simonsen, o autor faz destaque que se

[...] tratando da principal produção do Brasil naquela época, a do açúcar,

contavam-se em Pernambuco sessenta e seis engenhos; na Bahia trinta e seis,

e nas outras capitanias, juntas, metade deste número. Total dos engenhos, cento

e vinte. Referimos o número dos engenhos porque cremos este o melhor meio

de dar uma ideia de ilha de prosperidade e riqueza do país. (SIMONSEN, 2005,

p.142).

O açúcar literalmente era o produto de cobiça do mundo europeu em especial, dos

portugueses senhores de engenhos colonizadores do Brasil aos holandeses ocupantes da

capitania hereditária de Pernambuco, todos queriam e faziam as mesmas coisas, riquezas

à base da exploração do trabalho escravo. E isso está bastante marcado na memória das

pessoas exploradas por esses homens e suas famílias dominantes dos séculos e nos dias

28 Ocupação holandesa no Brasil [Pernambuco] e a produção do açúcar.

Simonsen (2005, p.155), o quadro econômico do açúcar explica a avidez com que a Companhia Holandesa

das Índias Ocidentais procurou se apossar da parte mais rica do Brasil. As cinco capitanias que ocupou, de

1630 a 1650, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Sergipe e Rio Grande do Norte, eram as suas grandes

produtoras. Apesar da destruição de várias fazendas e engenhos e das dificuldades da mão-de-obra e de

lutas constantes com os antigos donos da terra, já em 1639 conseguiram os novos ocupantes exportar 33.000

caixas, mais de 600.000 arrobas. Warden informa que nessa época o Brasil deu grandes vantagens à

Companhia holandesa. Como rendas de 1639, indica: Dízimos do açúcar e direitos sobre víveres. . . . . . . . . 350.000 francos

Direitos sobre mercadorias holandesas . . . . . . . . . . . . 400.000

Direitos sobre o açúcar introduzido na Holanda . . . ... 300.000

Renda de engenhos, capitais e escravos. . . . . . . . . . . . 2.400.000

Total . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.450.000

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atuais. Como podemos observar nos gráficos reveladores de sentimentos e hierarquias de

palavras [temas] encontradas nas narrativas enquanto achados na pesquisa e apresentados

na sequência do capítulo V.

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5 ACHADOS DA PESQUISAR [NVIVO 11]

A finalidade é apresentar os achados mais importantes e ao mesmo tempo

conferidos nesta pesquisa, contudo, não significa dizer que esta seja a etapa mais relevante

do que a anterior, mas, sim, um complemento metodológico com uso de outra

metodologia e ferramentas tecnológicas do Software Nvivo 11, para verificar os

conteúdos narrados e a análise dos dados.

Por considerar o programa uma possibilidade de análise também sofisticada, que

ajuda a visibilizar o invisível aos olhos humanos e pensar os resultados a partir de temas

decodificados, gráficos, estatísticas e hierarquias de palavras com sentimentos positivos

ou negativos mostrado na base de dados. É sobre isso que sistematizo e demonstro na

ordem das categorias abaixo.

5.1 APRESETNAÇÃO GRÁFICA [HIERARQUIA E SENTIMENTO]

No gráfico de hierarquia de palavras, apresento a totalidade dos conteúdos

transcritos dos áudios [1,2,3,4] nos anexos [C,D,E,F] e decodificados no Software Nvivo

para verificar a hierarquia das palavras que tiveram maior frequência olhando a

representação e significado do termo para a entrevista ex-moradora do Engenho Palma.

Para decodificação da fonte, levei em conta os seguintes critérios: decodificação da

palavra exata composta por 7 letras do alfabeto brasileiro, para então rodar o gráfico

“nuvem de palavras”, padrão aplicado para todos os gráficos de hierarquia de palavra

[nuvem] e de sentimentos positivos e negativos.

No caso do gráfico [1], a visibilidade dos códigos pronunciados e repetidos com

maior frequência pela entrevistada durante sua narração registrado nos quatro áudios de

entrevista extraoficial, sobressaltou aquilo que tem maior relevância para ela. Estes foram

os importantes achados da pesquisa. No caso, a palavra [engenho] representa, significa e

condiz com a sua história de vida, uma representação real que ocupa lugar de destaque

em suas memórias, experiências e trajetória pessoal-familiar de grande valor, isso

também é observado durante as análises no capítulo IV.

Com a metodologia tecnológica, foi possível conhecer o universo de palavras

decodificadas neste banco de dados, compõe o total de 10.328 palavras oralizadas pela

entrevista ex-moradora do Engenho Palma, um volume bastante expressivo e extenso. O

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que gerou uma amostra de 540 itens [referências] exatas com extensão de 7 letras do

alfabeto da língua portuguesa do Brasil.

Dessa amostragem, a palavra “engenho” foi pronunciada pela entrevistada por 59

vezes, significando em termo percentual ponderado, 0,60% do total dos códigos

pronunciados. Todavia, esta foi a palavra que teve maior peso e relevância no total dos

conteúdos de narrativas. É extraordinariamente simbólico e real.

GRÁFICO DE HIERARQUIA 1 – ENGENHO [FREQUÊNCIA DE PALAVRAS]

Na sequência do estudo, destaco a seguir o gráfico [2] gerado a partir dos mesmos

critérios e base de dados utilizado para gerar o gráfico [1]. Neste, interessa verificar o que

se apresenta com carga de sentimentos positivos e negativos pronunciados pela

entrevistada durante a produção dos dados.

FONTE: Nvivo 11. Representação gráfica de hierarquia de palavras representativas e

significativas. Autoria: Josefa Janete de Azevedo, nov. de 2018.

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GRÁFICO DE SENTIMENTOS 2 – POSITIVOS E NEGATIVOS

No total, foi encontrado 27 referências codificadas com sentimentos relativamente

neutros e 1 código representando sentimento positivo, segue:

AUDIO 1 A gente tava em casa né, morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas pra gente í

toma banho.

Eles sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque se você for butá a mão por

ali, ele sai por ali.

Meio dia, a gente morrendo de calor, o sol quente.

Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui.

Era pegano assim, butava na saia, prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe.

A gente pegava, vinha pra casa nos colo, porque não tinha onde butá os peixes. Chegava em

casa, oxe, Pial que era branquinho, pegava na hora assim, tratava, butava sal e já ia assá pra

cumê tudo.

O Rio de Orobó, ele nascia na Palma.

E se fosse morador pescá e se não fosse morador, ele botava pra corrê.

Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Porque a banana dava um

dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um morador plantando banana ele mandava

arrancá tudinho. Eu vi, eu era pequenininha, agora depois que ele cresceu não conheço mais

não.

Ele era bem gordo, uma papada, tinha uma papada aqui, bonito ele era, gordo, novo, branco.

É muito bonito ele. Dona Marieta era uma galega. Era uma galega ela.

Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate verde que tava no

chão caído. Botava lá pra fora e me dava uma pisa.

O home dava cheio de rapa de tacha pra gente.

FONTE: Nvivo 11. Representação gráfica de palavras com sentimentos positivos e negativos.

Autoria: Josefa Janete de Azevedo, nov. de 2018.

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AUDIO 2 A Igreja era uma casinha de palha, depois foi que foram aumentando.

AUDIO 3 Mas ele fazia bolo, ele era bolêro. Todo mundo que comprava bolo era dele.

Ele fazia bolo numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande?

Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim redondo (gestos com as mãos).

AUDIO 4 É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa.

Referência de sentimento positivo encontrado no [áudio 4].

Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa boa sabe. Só que

comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não desobedecia de jeito nenhum. E ele é que nem

esse povo, que nem bicho, caboclo bravo do mato. Sem muita aproximação das pessoa, ele era na deles.

Então eu me criei assim. Me criei desse jeito. Nas casa que eu morava também era do mesmo jeito. As

pessoa primeiro eram pessoa de respeito. Eu via assim, eu me criei assim. Em casa, me criei com essa

veia assim. Sem conversá, com ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem

estuda, sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim: -Eu vivi como

Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva ela se cria. E assim fui eu.

Os achados no gráfico [2] representam surpresas para a pesquisadora e a pesquisa.

Ao observar o padrão das narrativas da entrevistada com base nos resultados da análise,

tanto na pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso de graduação quanto da pesquisa

de tese, observa-se que há um arquétipo de fala, pensamento e discurso operando sobre

as narrativas de história de vida, onde a realidade pouco representa sentimento impactado

na experiência vivenciada naquele contexto. É espantoso observar essa repetição de

resultados.

Os resultados da análise tradicional realizada à olho nu é um ponto, depois, os

indicadores mostrados através das ferramentas do Software Nvivo, onde um conjunto de

informações detectadas estavam relativamente ocultas aos olhos e a percepção humana,

assim, apontando questões internas da entrevistada escondidas ou invisibilizadas talvez

pela limitação de enxergar às sombras das palavras e das letras. O fato é que: o narrado

pela entrevistada não significa que as palavras estejam carregadas de sentimentos

positivos ou negativos observado nos conteúdos. Conteúdos analisados com teores

negativos não significa ser exatamente negativo para ela.

E isso é um dado que surpreendeu bastante a entrevista e a pesquisa causando

euforia e inquietação. O software aponta a inexistência desses supostos sentimentos com

carga negativa, quando aparece é neutro ou positivo conforme apresentado nas referências

do gráfico [2].

Assim como no Trabalho de Conclusão de Curso nas Ciências Sociais, os

resultados da pesquisa de tese na Educação também indicaram semelhanças de conflitos

analíticos impregnados nas questões de pesquisa. No caso da tese, a questão da violência

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doméstica no contexto familiar da entrevistada havia sido naturalizada na perspectiva da

análise, o que também apontou no software Nvivo. E a questão aqui novamente se repete.

Será que a entrevistada na vida adulta narra sobre suas experiências negativas, mas não

sente o impacto necessariamente negativo? A fala é emocionada e o sentimento é neutro?

Ou, as experiências negativas não causam mais efeitos negativos quando contadas em

pesquisa? A narrativa sobre os eventos negativos vivenciados por ela não produz

sentimentos negativos em função da naturalização sofrido da infância a vida adulta?

São questões que movimentaram reflexões, inquietações, surpresas e necessidade

da crítica. Com isso, abro novas discussões sobre o tema e o objeto da análise, um campo

em aberto.

Os resultados apontam que as experiências vividas pela participante produziram

impactos severos em sua vida pessoal e familiar que não foram resolvidos até os dias

atuais, talvez nunca sejam, a ponto de não mais distinguir o que representa e significa

memórias positivas e negativas vividas por ela mesma durante sua infância e

adolescência. Decerto, isso também comprometeu a vida e o desenvolvimento de seus

filhos membros do grupo familiar extenso procriado também por ela. Enquanto mãe

biológica não teve preparo e nem referência da função e papel de mãe. As violências

naturalizadas por ela desde a infância, afetou também a vida dos filhos. Leva a sugerir

que as violências sofridas pela entrevistada ex-moradora do Engenho Palma, da infância

à vida adulta resultaram em naturalização da dor e do sofrimento agudo e,

consequentemente a permanência da insensibilidade do eu, como uma espécie de

anestesia interna para sobreviver ao caos, assim como, o aniquilamento da capacidade de

sentido os efeitos negativos de forma involuntária e inconsciente. Aquilo que é julgado

negativo na sua percepção não representa conteúdo tão negativo assim, é relativizado e

produz efeitos diferentes.

As memórias do Engenho Palma servem tão somente como alento para lembrança

de seu passado vivo que não passou exatamente, que inconscientemente ainda busca o

reencontro com família de origem ausente desde o berço, que infelizmente ela não

conheceu e nem viveu com seus pais biológicos. O Engenho representa essa moradia e

família imaginária, uma tentativa de fixar identidade pessoal, de existir no mundo e

resgatar o sentimento pendente da origem da família ainda enferma. É a revelação de uma

criança órfã que se tornou adulta também órfã.

Diante do todo complexo, faço novamente a pergunta ponto de partida deste TCC

para conferir se realmente o propósito foi alcançado e a provocação respondida,

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questiono: qual a percepção da antiga ex-moradora sobre o cotidiano vivido, sentido e

testemunhado na infância e na adolescência no Complexo da Casa Grande do Engenho

Palma? Não há dúvida do alcance do objeto e a entrega de respostas incluindo os vários

aspectos da vida pessoal e familiar da entrevistada imersa ao mundo do Engenho Palma,

mas, não resta a dúvida de que o dito foi vivido de forma real, mas há dúvida sim, se o

dito estava sendo sentido ou foi literalmente naturalizado e não causa mais efeito. É uma

provocação crítica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conjunto de dados nascidos das narrativas da ex-moradora do Engenho Palma

entrevistada para esta pesquisa, resultou no mínimo em profundas reflexões sobre o tema

e o objeto de investigação. Adentrar à vida cotidiana para ver o funcionamento do

Engenho Palma, sabendo que este é apenas mais um campo parte do universo de ricos

estudos daquele estado [Pernambuco] e, sobretudo, perceber que a vida dos habitantes da

propriedade do Engenho, da Casa Grande e dos casebres, antes senzala, dos moradores

do Complexo, são movimentos com dinâmicas relativamente padronizadas em termo de

regularidade das atividades geradoras de acontecimentos, situações e fatos. É quase como

uma redescoberta daquilo que já era talvez conhecido por outros olhares e linguagens com

enredos sobre a mesma história.

O evento de narrativas da ex-moradora significou além de uma imersão sobre o

mundo e a realidade vivida no Engenho Palma posto em evidência e reflexão, permitiu a

pesquisadora discutir o tema à luz das produções históricas, contribuições sociológicas,

vinda de diferentes autores da mesma linhagem de pensamento crítico; e, assim, analisar

uma importante quantidade de dados com linguagem simples e conteúdos complexos que

expõe em alto nível de sofisticação e detalhamento uma realidade densa, pouco conhecida

ou nunca estudada academicamente em outras experiências. Tudo sendo narrado por uma

informante de primeira mão que por sinal foi de difícil esgotamento dos assuntos pela

quantidade de dados, elementos e eventos desdobrados em cada etapa dos enredos. Muitas

histórias e uma infinidade de acontecimentos cotidianos que desconhecia nas obras dos

clássicos e contemporâneos da história oficial. Por isso, em cada bloco de narração em

função da diversidade de coisas ditas, personagens com vida, objetos impregnados de

memórias, elementos múltiplos e situações plurais que caberiam numa ampla e profunda

discussão de cada contexto parte das estruturas da mesma propriedade, mas, para este

estudo precisei encerrar as etapas, embora, ainda com os assuntos e temas inesgotados.

Depurar a vida da ex-moradora [no e do] Engenho Palma não foi uma atividade

tão simples como imaginava ser, careceu de muito esforço e dedicação concentrada para

dar visibilidade as experiências mais importantes para ela e o objeto, já que tudo se

mostrava igualmente importante diante dos contextos do cotidiano e do funcionamento

da vida no Engenho. O mundo traduzido por ela em palavras conhecidas e até

desconhecida para a pesquisadora que carrega pouca cultura do Engenho, mas com

sentido e significado compreensível apoiada na tradução dos termos, com esse

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entendimento nasceu a história vivida no Engenho como valor imensurável para a dona

da própria história. Um evento que também deu corpo e alma ao objeto da pesquisa. Uma

história se perfazendo na outra, num comunado de protagonismo original com relações

intrínsecas entre informante, o Engenho, o objeto e a pesquisadora.

Não imaginava que fosse me deparar com tudo isso, os conteúdos do anexo F

principalmente, o que causou bastante sensibilidade, até choro de apiedamento de entrar

na vida daquela menina órfã desvalida no mundo perdido sem pai sem mãe para proteção

da vida, sobrevivendo sozinha ao mundo de riscos e no meio de adultos brutos ou

maleáveis, violentos ou acolhedores que agiam sobre ela, o que marcou a sua vida para

sempre.

Os maus-tratos e os espancamentos sofridos e praticados pela madrasta-avó,

foram os mais dolorosos de ouvir e analisar em todo o percurso da investigação, são

conteúdos fortes vividos por uma criança indefesa independente da condição de vida em

que se encontre a criança, maus-tratos, abandonos e espancamentos são situações difíceis

de digestão e aceitação em qualquer contexto. Foi o que mais me sensibilizou durante a

tripla narração das experiências e histórias de vida. Primeiramente, o relato gravado na

fase inicial das gravações, depois, a ré-escuta com a transcrição dos dados, por último, a

tri-ré-escuta silenciosa da análise. Não foi um trabalho rápido ou desengajado das

emoções, pelo contrário, demandou de muito esforço, concentração e luta para superar as

aflições e angustias contidas em cada bloco analítico posto à reflexão, apesar dos

espantos, das surpresas e entusiasmos diante do belo e da inocência infantil de uma pessoa

adulta que nada enxergava ou imaginava o que estava sendo visto no estudo apurado.

Registrar a voz da entrevistada contando suas experiências significa a forma mais

fidedigna de conhecer a realidade vivida pela ex-moradora do Engenho, a escuta

qualificada de uma outra perspectiva da versão da história, talvez, intencionalmente

invisibilidade por outrem. Trata-se da verdade de uma nativa, nascida e criada no lugar

que se representa expondo sua percepção sobre o cotidiano e o funcionamento do

Complexo lugar. Sobre os acontecimentos e os contextos vistos por ela, e assim dar

importância e visibilidade ao cotidiano corriqueiro, mas que teve impacto em sua vida

pessoal e familiar. Esse foi o alcance maior deste trabalho, encontrar o lugar do Engenho

e dar voz à entrevistada narrar suas experiências guardadas na memória. Como já disse

antes, um arquivo antes imaterial [cognitivo] que se transformou em dados concretos,

com um volume de conteúdos que não considero leves, nem de pouca importância para a

vida da participante principalmente. Trata-se de um apanhado de coisas diversas e de

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situações vetoras de sentimentos bons e ruins, alegres e tristes, de dor e de saudade numa

constante mutação e contrastes. As emoções foram ampliadas em cada bloco de narração

com alcances diferentes e conexos ao mesmo tempo, da vida pessoal à familiar, das

atividades infantis aos acontecimentos trágicos de violências e agressões sofridas e

praticadas por adultos principalmente. Tudo se mostra revelando condutas, mentalidades,

poder e força de uma época, em um determinado lugar-espaço. Cada passagem das

histórias foi transmitida como uma página única de um livro da vida escrita com marcas

de experiências profundas que atingiram o corpo e a alma da participante narrante,

andante do lugar, talvez, com pouca consciência dos impactos dos eventos que se

misturaram com a própria vida. Me refiro as memórias narradas e escutadas com a mesma

intensidade e força que se mostravam as atividades positivas e negativas vivenciadas e

testemunhadas no cotidiano do Engenho.

Decerto, foram momentos entusiasmados e saudosos para a entrevistada que ria

contando a diversidade das histórias, embora não tenha sido tão fácil assim para a

pesquisadora ouvir tudo em silêncio crítico quase imóvel para não perder a riqueza dos

detalhes. Foram falas, escutas, histórias e contextos reveladores de um mundo antes

desconhecido com esse nível de descrição. A vida vivida da entrevistada no Engenho

Palma é digna de um novo estudo que amplie e aprofunde os aspectos revelados por ela,

embora, este já sirva de base para entender a face da realidade mostrada sem véu, o que

fica mais exposta para pensar a centralidade dos fatos. Sem dúvida, é necessário a

continuidade do estudo iniciado neste trabalho.

Então, foi com esse proceder, de procurar conhecer o mundo do Engenho Palma,

o Complexo da Casa Grande, a função e o lugar da Igreja, do estado, dos habitantes do

lugar, o funcionamento de tudo no dia a dia, olhando, sobretudo, para o lado de dentro

das estruturas físicas e simbólicas, das relações de contatos, das ações produtivas em volta

da vida pessoal e familiar da entrevistada informante da engenharia de coisas, que tão

bem conhecia a dinâmica funcional do lugar, e, em certa medida o funcionamento de suas

estruturas do Engenho, encontrei em meio a tudo isso, um grande arquivo revelador de

surpresas e achados, indicador dos aspectos sociais, políticos, religiosos, econômicos,

culturais e familiares dos indivíduos que compõem as histórias parte das realidades

concretas, como foram mostradas e discutidas nos capítulos deste trabalho, em especial

nos capítulos IV e V que apresentam os resultados do estudo deste TCC.

Para assim entender o contexto em que se deram as experiências vividas no

cotidiano ordinário e extraordinário do Engenho do ponto de vista da entrevistada, nos

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arquivos de suas memórias significativas sobre os acontecimentos que produzia força de

representação material, simbólica e prática. O bando de dados, as fotografias, figuras e

imagens de objetos antigos, dos instrumentos de trabalho doméstico [bule] e também de

uso no Engenho [encureta]. Os objetos de utilidades e distinções sociais espalhadas nas

estruturas do Complexo, como marcadores de diferenças, lugares, espaços e poder na

relação de inferioridade e superioridade entre os habitantes da propriedade. Tudo fazendo

parte da tessitura artesanal do texto e da reflexão analítica, interpretativa, conclusiva do

trabalho final. Uma atividade de tom crítico tomada como desafio de pesquisa no campo.

Dito isso, posso considerar que o estudo para o TCC em questão atingiu os objetos

propostos e a intenção finalidade. Respondeu ao problema de pesquisa tecendo discussões

sobre o tema e a realidade da qual se insere a participante. O que estava também conectado

ao mundo revelado por ela. Então, para esta etapa me dou por satisfeita.

Finalmente, as experiências pessoais parte da história de vida da participante, sua

percepção sobre a própria vida [no, do] Engenho abriram novas possibilidades de

reflexões outras, estudos críticos para o aprofundamento do tema, esse é o desejo e

esperado. Tanto do ponto de vista teórico conceitual, como histórico-sociológico e

empírico reflexivo. Há lugar e objeto para todas as possibilidades do desenvolvimento de

outras pesquisas no campo. Por ser também a necessidade da academia produzir pesquisas

empíricas com essa dimensão e natureza, uma vez que a história produzida sobre o mundo

dos engenhos no Brasil, quase sempre acontece a partir de estudos bibliográficos apenas.

O que infelizmente indica existir ausência de material empírico sobre a realidade

concreta, como está sendo visto nessa experiência de campo por exemplo. É um olhar

crítico de forma positiva sobre a produção do conhecimento científico.

Os conceitos e teorias explicativas são valiosas e necessárias não há dúvida, mas

a pesquisa empírica também é fundamental para validar e fazer a ciência correspondente

com a realidade. Os engenhos do Brasil e no Nordeste são ainda pouco estudados

empiricamente no campo das ciências sociais em especial, um trabalho que carece ser

realizado com urgência e sem interrupção para que as últimas gerações de moradores

vivos e ex-moradores nascidos nos contextos dos Engenhos possam contribuir com suas

experiências pessoais como é o caso da participante deste estudo, principalmente com uso

da metodologia [entrevista narrativa] colada à história de vida desse raro sobrevivente da

história, um modo de libertação da voz que um dia esteve aprisionada nas senzalas e

troncos. Muitas vezes o ponto de vista de reflexão limita-se ao discurso de uma verdade

única contado numa escrita oficial, quase sempre oprimindo ou invisibilizando a verdade

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da história de quem viveu no chão do Engenho. Sem levar em conta, que a escrita oficial

é manipulada intencionalmente quase sempre, e por isso não representa a realidade

daqueles que experienciaram o cotidiano no lado oposto da classe dominante, dos

Senhores de Engenho e seus familiares, incluindo os historiadores contratados para tal,

para assim registrar a vontade de quem revela apenas uma versão dos fatos. Talvez,

represente tão somente aqueles que olham, pensam e registram o mundo dos Engenhos

do lado de fora, ou, de dentro da Casa Grande sem nunca ter pisado no chão do Engenho

para moer cana e fabricar o açúcar. A vista de quem contou a história oficial talvez só

alcançou o mundo dos Engenhos visto com lentes de binóculos de baixa resolução.

Decerto, a realidade não foi retratada tal qual ela foi, ou é para os moradores explorados

no lugar.

Por último, as contribuições teóricas dos seletos autores ajudaram na reflexão

como toda, do tema ao problema de pesquisa, são fundamentais, válidas e aceitas

academicamente falando, mas isso não basta por conta do pouco aprofundamento da

questão a partir da base de dados empíricos, dos fatos reais vivenciados por outrem que

precisam ser descamados em cada momento da história e da ciência, ou melhor, por toda

sua extensão e existência. Por isso, me propus em contribuir com essa simples e

importante atividade de campo.

Em últimas palavras, digo que o cotidiano e o funcionamento do Engenho era e

fato a grande força propulsora e motriz que movimentava todo o Complexo e a

propriedade do Engenho em sua totalidade. As atividades do Engenho era quem mantinha

os privilégios da classe dominante, o enriquecimento ilimitado do Senhor, o luxo

consumido por sua família, o fornecimento de produtos para manutenção da Casa Grande,

incluindo também as doações monetárias para o Capelão e a Igreja matriz da região. O

engenho mantinha a cultura e o “ethos” da classe dominante que não abria mão dos

privilégios.

No lado oposto e separadamente naturalizava-se a condição da pobreza, das

desigualdades e a escravidão dos milhares de moradores trabalhadores explorados e

violentados na propriedade em detrimento da manutenção dos privilégios de poucos.

O Engenho rendia lucro e fortuna para o Senhor dono das terras e de tudo que

existia em sua propriedade. O Engenho Palma não se diferenciava dos demais, se tornara

uma estrutura estruturante do poder no interior do estado de Pernambuco. Era um negócio

rentável, de desejo, cobiça e disputa. Quanto mais lucrativo se tornava mais poder de

força, domínio e hierarquia emanava entre os grupos dominantes. Ser dono e Senhor do

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Engenho Palma era um título de honra e prestígio, não somente isso, significava também

impor um modo e estilo de vida interpretado como modelo ideal a ser reproduzido e

seguido pela comunidade local. Como um objeto imaginário que produz luta e conflitos

o tempo todo, mas que todos almejam se tornar um igual. O Engenho e o Senhor é visto

como objeto de desejo individual que opera na mentalidade coletiva.

Então, quem não quer ser dono das terras? Da propriedade do Engenho? Das

riquezas produzidas na região? Morador da Casa Grande? Dono das mulheres, da força

de tralho dos homens? Do poder de decisão no estado, na política, na economia, no mando

e desmando no estado e no país? Incluindo até as influencias exercidas sobre a Igreja e os

padres de forma declarada ou sutil.

Era isso que estava em jogo e em movimento permanente no cotidiano e nas

atividades de funcionamento da capacidade do Engenho, esse sim era o lugar primeiro de

interesses pessoais do Senhor, dos familiares e de sua classe exigente e sedenta de

privilégios. Somente isso e muito mais.

Sem dúvida, os resultados da pesquisa apontaram tudo isso, além das memórias

da ex-moradora operando sobre o cotidiano e o funcionamento Engenho como parte viva

ou extensão de sua própria vida na propriedade de circulação, onde os feixes de coisas

em movimento representam para ela um passado que se traduz no presente para se

encontra no lugar, enquanto pessoa portadora de identidade e referência pessoal em

primeiro lugar.

Ela constrói diferentes formas de reencontro com o Engenho na tentativa de

localizar sua família ausente no lugar de nascimento e origem de sua infância e

adolescência. O Engenho representa mais do que uma estrutura do passado, é sobretudo

uma forma de coexistir no mundo, de representar-se para os filhos em tempos atuais. É

diante dele que expõe suas fragilidades familiares, as memórias de uma pessoa adulta

[órfã] que se ver criança em busca das raízes biológicas [pai e mãe]. O cotidiano e o

funcionamento do Engenho simbolizam coisas, sentidos e reencontros do eu e a busca da

vida familiar perdida e negligenciada na infância.

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ANEXOS

ANEXO A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Tema da pesquisa: O dono dos corpos, o incesto e a teia da violência sexual

doméstica no Brasil.

Pesquisa: Quem são as dez irmãs vítimas de violência sexual doméstica e incesto,

praticado pelo pai biológico no Brasil? Problematizando os modos operantes do

agressor e as causas da invisibilidade materna face ao abuso sexual das filhas.

Coordenadora: Doutoranda Josefa Janete de Azevedo, sob a Orientação da Professora

Dra. Tânia Stoltz.

Natureza da pesquisa

Prezada participante, você é convidada a participar desta pesquisa, que tem como

finalidade investigar as histórias de vida, as memorias, as experiências, as atitudes, as

percepções, os significados, as representações e sentimentos vividos, passados e atuais

das irmãs vítimas de violência sexual doméstica e incesto, praticado pelo pai biológico.

O estudo procura também traçar o perfil sócio-familiar, identificar possíveis abusos

sexuais sofridos pela mãe biológica, por outros membros da família de origem e atual

da entrevistada, bem como investigar a que recursos de apoio às vítimas buscaram para

tratar da violência e do abuso sofrido.

1. Participantes da pesquisa

A participante da pesquisa será no máximo dez irmãs, mulheres adultas, com idade

atual de 48, 47, 44, 43, 40, 36, 35, 34,31, 30 anos, que pertencem ao mesmo grupo familiar

por consanguinidade, que tenham convivido entre si, com os pais biológicos dentro do

mesmo lar, e sofrido violência sexual doméstica e incesto praticado pelo pai.

2. Envolvimento na pesquisa

Prezada entrevistada, ao participar desse estudo você deve autorizar primeiramente que

a pesquisadora coordenadora do projeto de pesquisa entreviste você para produção dos

conteúdos da investigação. As entrevistas podem ser em sua residência ou em outro

ambiente de sua escolha, desde que o local reúna as condições necessárias para a

condução do estudo, como: segurança, silêncio, tranquilidade, um local onde será

coletado os dados para tecer o trabalho final. O local, dia, hora e duração das entrevistas

serão flexíveis e respeitadas aas suas condições conforme sua disponibilidade e

interesse. Levar-se-ão em consideração o tempo necessário e suficiente para você

contar a história da sua vida a partir das questões que serão feitas a você. São previstas

até 04 entrevistas com cada participante, com a duração aproximada de 90 minutos cada

uma delas. O tempo de duração e o número de entrevistas respeitarão seu interesse,

disponibilidades e condições emocionais. A participante terá total liberdade de

prosseguir ou suspender a entrevista a qualquer momento ou fase do estudo, sem

natureza alguma de ônus ou prejuízo.

Este é um tema que certamente vai suscitar memorias, experiências, lembranças e

sentimentos, talvez se sinta desconfortável em algum momento do estudo, porém, você

terá apoio social durante todo o processo de investigação, e mesmo antes ou depois das

entrevistas, se você o desejar será dada continuidade ao acompanhamento pelo Serviço

Social e encaminhamento para atendimento de apoio psicológico. Você poderá ser

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encaminhada também a algum serviço público para atendimento psicossocial, que

poderá ser realizado no Centro de Referência de Assistência Social - CRASS do seu

município, através da minha mediação e encaminhamento técnico.

Em qualquer tempo antes, durante e após a pesquisa, se você quiser interromper para

pedir mais informações sobre as questões e a pesquisa, terá total liberdade, é só

sinalizar. Poderá entrar em contato com a coordenadora da pesquisa através dos

telefones (41) 9621-1578 ou no e-mail: [email protected], ou com o Comitê

de ética em Pesquisa do Hospital de Clinicas da Universidade Federal do Paraná,

localizado na Rua Pe. Camargo nº 285 – térreo, CEP 80060-240 – Bairro Alto da Glória

– Curitiba – PR, Telefone: (41) 3360-7259, e-mail: [email protected]

Sobre as entrevistas

As entrevistas serão marcadas com antecedência. Serão solicitadas informações para

traçar o perfil sócio-familiar do grupo familiar de origem e de cada entrevista, como:

idade, emprego, escolaridade, composição da família de origem e de sua família atual,

entre outras. Serão feitas perguntas sobre a sua família, seus pais, sua comunidade, sua

história da vida, desde sua infância até sua vida atual e sobre seus sentimentos, seus

relacionamentos íntimos, amorosos e sociais, seus pensamentos, suas percepções e

atitudes em face de violência sexual doméstica e incestuosa sofrida dentro e fora da

família.

3. Riscos e desconforto

Seguramente a sua participação nessa pesquisa não lhe trará complicações legais,

institucionais ou de qualquer natureza por interferência de outrem, talvez apenas, a

mobilização de esforços para lembras das memorias e experiências de alguns eventos,

pessoas, sentimentos, emoções em função da temática que será abordada. Os

procedimentos utilizados nesta pesquisa obedecem rigorosamente aos Critérios da

Ética na Pesquisa com Seres Humanos conforme a Resolução 196/96 do Conselho

Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos utilizados oferece riscos a sua

integridade e dignidade.

4. Confidencialidade

Todas as informações coletadas neste estudo serão estritamente confidenciais. As

gravações das narrativas e os relatos de pesquisa serão identificados com um código,

ou nome fictício se assim o desejar, e não com o seu nome. Apenas os dois membros

responsáveis por essa pesquisa, a pesquisadora e a orientadora, terão acesso e

conhecimento dos dados. Se você der a sua autorização por escrito, assinando a

Permissão para utilização das entrevistas gravadas, os dados poderão ser utilizados para

fins de ensino, artigos, publicações e debates acadêmicos científicos, relatórios

científicos, apresentação em congresso, elaboração de projetos de lei suplementar a Lei

Maria da Penha e outros trabalhos de cunho técnico, acadêmico cientifico que seja

relevante para a ciência e a sociedade.

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5. Benefícios

Ao participar dessa pesquisa você não deverá ter nenhum benefício direto, de

remuneração ou concessão de qualquer espécie. Entretanto, esperamos que este estudo

produza conhecimentos e informações importantes sobre as questões relativas à

violência sexual doméstica incestuosa no Brasil, para municiar as famílias e a

sociedade, chamando atenção para a necessidade de desconstrução da cultura

masculina impostas nas regras do tabu do incesto, da qual funciona como estratégia de

camuflagem para as práticas incestuosas com filhas dentro do lar. Na ausência da ética

do afeto, do cuidado e de correspondência do pai para com as filhas, a cultura do incesto

e a previsão de crime, não impedem as práticas sexuais incestuosas entre pai e filhas.

Essa é a tese. No futuro essas informações poderão ser utilizadas em benefício de da

sociedade como um todo, em especial das famílias, mães e filhas indefesas que

precisam modificar a cultura de dominação e posse masculina dentro dos lares.

6. Pagamento

Você não terá nenhum tipo de despesa por participar desta pesquisa, bem como nada

será pago por sua participação. Entretanto, você receberá os resultados do estudo que

você e sua família de origem participou. Em nome do grupo estudado, a família

receberá um exemplar da tese após a defesa do trabalho e será agendado um encontro

online, via Skype, com o grupo das irmãs entrevistadas para fazer a exposição do

trabalho de defesa.

Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto

meu interesse em participar da pesquisa.

_________________________________________

Nome da participante da pesquisa

_________________________________________

Local e Data

_________________________________________

Assinatura da participante da pesquisa

_________________________________________

Coordenadora da Pesquisa

Josefa Janete de Azevedo.

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ANEXO B - PERMISSÃO [UTILIZAÇÃO DE CONDEÚDO DE ÁUDIO]

Eu, por meio desta, autorizo a pesquisadora Josefa Janete de Azevedo e a integrante de

seu grupo de pesquisa, a sua orientadora professora doutora Tânia Stoltz, a utilizarem

os dados contidos nas gravações em áudio realizadas comigo durante as entrevistas que

fazem parte desse estudo. A permissão é para que as gravações e os dados nelas

contidos possam ser utilizados em encontros científicos para ilustrar aspectos das

questões envolvidas nos casos de abuso sexual, em debates entre grupos de pesquisa,

ainda para fins didáticos, de ensino, artigos, publicações, debates acadêmicos

científicos, relatórios científicos, apresentação em congresso, elaboração de projetos

de lei suplementar a Lei Maria da Penha e outros trabalhos de cunho técnico, acadêmico

cientifico que seja relevante para a ciência e a sociedade. Eu estou ciente de que as

pessoas envolvidas na pesquisa, a começar por mim a participante que será

entrevistada, em nenhum momento serei identificada pelo meu nome, exceto na medida

em que eu estiver falando algum nome de meus familiares durante a entrevista.

_________________________________________

Nome da participante da pesquisa

_________________________________________

Assinatura da participante da pesquisa

_________________________________________

Local e Data

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ANEXO C - AUDIO 1 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA

Relatos de experiências e história de vida da entrevista ex-moradora do Engenho Palma

transcrito de [4] áudios de gravação extraoficiais realizado em concomitância com a

pesquisa de tese. Banco de dados extra que serviu para estudo e análise no TCC em

Ciências Sociais [Sociologia]. Abaixo, disponho a totalidade os conteúdos transcritos na

integra de 4 áudios de gravações extras conforme os anexos C, D, E e F.

PARTE I

Banho de rio e pescaria

A gente ia tumá banho meio dia, eu e as menina. Ela dizia assim: bora tomá banho, digo

vambora. A gente vai pescá. Era a Oróra e Ester, era as irmã da mulher que eu morava lá.

Ai, a gente ia de carrêra disparada no Engenho da Palma. Mas, a gente ia pro rio, que é o

rio de Orobó. A gente tava em casa né, morrendo de calor, elas vinham lá da casa delas

pra gente í toma banho.

A gente saia de carrera disparada, num calor, um sol que doia. Do jeito que a gente vinha,

do jeito que a gente vinha de carrrêra, ladeira abaixo, nóis pulava dentro do rio. Era bom,

rio grande viu. Água limpinha. Ai, a gente tava tumando banho, ai dizia: Ô, vamo pescá,

eu digo: vamo. Ai, tinha umas lóca dum Pial e Jacundá, era o peixe sabe? Ele tinha as

lóca de entrá e de saí. Eles sai das lóca, ele faz duas boca, faz de entrada e saída, porque

se você for butá a mão por ali, ele sai por ali.

A gente ia tomá banho. Tomava banho e pescava. Meio dia, a gente morrendo de calor, o

sol quente. Procurava onde era a boca, chega era lisinha. Procura onde é a saída e a

entrada. Uma ia pra saída dele por ali, e a entrada por aqui. Eles furavam buraco nas

parede pelas pedra.

As menina ia tampava e a gente vinha por aqui. Lá dentro das lóca. Acho que eles se

achavam preso lá e ficavam tudo furioso pra sai, oxe! Era pegano assim, butava na saia,

prendia. Eram tudo desse tamanho assim os peixe. Branquinho que chegava a brilhá. Era

Jacundá e Pial. Ai, a gente prendia quando ele vinha pulá, algum ia simbora, algum fugia

e outros a gente pegava. Ficava dois na boca. A gente pegava, vinha pra casa nos colo,

porque não tinha onde butá os peixes. Chegava em casa, oxe, Pial que era branquinho,

pegava na hora assim, tratava, butava sal e já ia assá pra cumê tudo. Mai, a gente fazia

isso era no rio da Palma, no Engenho da Palma. O Rio de Orobó cortava esse mundo todo.

O Rio de Orobó, ele nascia na Palma.

Oxe, o rio ele circulava a Palma todinha, Macicuava, Bizarra, Lagoa Comprida e vai

simbora, Limoreiro e vai simbora. Não tem fim o Rio de Orobó. Nesse tempo tinha muito

peixe, muito peixe nele.

O hôme ia pesca. Tava sem carne né? Ôh! João, hoje eu vô pescá. Ele dizia era de manhã.

Depois do almoço eu vô pescá. Ele tinha uma mochila desse tamanho assim.

Uma mochila bem grande. Ele amarrava a mochila na cintura, vestia uma roupa bem

velha. Era um por dentro da água e outro por fora do rio. Ai, ouvia ele lá. Ele tinha dentro

d’água era o caminho já. Olha lá pra quele bicho assim, olha lá. Pescadêro viu. Oxe, tinha

cada traíra ele pegava!

E nóis ficava batendo atrás dele pra pegá. Nós fazia que nem cachorro, se ele pegá no

dedo ele atora.

Ó, vai juntá uma pedra, qualquer coisa. Eu arranjava a pedra, punha lá, isso tava aquele

rolo assim num canto do jereré.

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Ai com jeitinho assim pegava pela gargantilha, rasgava, a trouxa de traíra, jacundá e um

peixe chamado Piau. Existe na Palma. De certo, lá não tem peixe mais não. Tinha um

lugar lá que, um peixe que pegava, ô meu Deus, Jacundá não, era Cumatã. Ah! Cumatã.

Ela anda de rebanho feito gado, feito ovelha. Ele é muito. Uma sai de filinha atrás da

outra assim ó. Cada uma desse tamanho assim ó.

Uma vez ele pegou um. Agora vc não podia pegá não viu. Era um pedaço de rio que tinha

e que só tinha esse peixe e era só ele que podia pescá nesse lugar.

Mas, quando a gente ainda tava dentro do rio, í pra casa, disse assim: Vamo simbora, ói,

já tem uma bicha ali, ói uma cobra.

Cadê? Mas, graças a Deus que eu olhava, olhava e não via. Dizia que era amarela, mas

eu não via não. Só bichinho enorme, dizia, eu vô saí daqui.

Vamo simbora, já tá de noite. Vestia a roupa, aquela trouxa de peixe assim ó. Ai, chegava

em casa já tava escuro, dai a pouco a gente chegava. Ele pegava uma butija que tinha ali

de barro, despejava a botija de peixe, mas era aquela peia de peixe. A gente ia pelá aqueles

peixe, era pra pelá um bocado do peixe que era pra fazê o molho pra gente cumê né.

E eu ficava pelando. Depoi que terminava, ia pelá também. Então, pegava uma arutuma

que tinha, botava aquele estendá de peixe. Salgava tudinho e butava aquele estendá pra

gente cumê.

Mai era bom. Lá em casa toda semana ia pegá. Era fácil mesmo. Porque ói, não tinha não,

não podia todo mundo pescá não viu. Tinha que primeiro pedi. E se fosse morador pescá

e se não fosse morador, ele botava pra corrê. Seu João Diló, Era. O Seu João Diló

diministradô da Palma.

Ele conhecia a gente, mai ele deixava a gente pescá. As vezes a gente ficava com medo.

Vixe, se o hôme chegá aqui e brigá. Ai, ele passava assim, via a gente pescando não dizia

nada não. Toda semana a gente ia pescá. A gente comprava carne no sábado e quando se

acabava, no meio da semana dava apuro.

Vou pescá. Hoje eu vou pesca viu João. Tá certo. Ai, chegava no dia fazia aquela panelada

de peixe. Era do rio. Água do rio, peixe do rio. Era uma barriga cheia no rio, muito peixe,

muita coisa.

Foi pescando mais os menino, a gente pescava. E como é tempo de camarão. Numa época

de camarão, oxe! Tinha dois tipo de camarão pra uma pessoa só. Assim, puxava o jereré

e vinha aquele monte de camarão.

Bom tempo viu. Quando eu me lembro no meu tempo que eu era pequena, era de barriga

cheia. A gente lucrava muito, muito, muito feijão. Ah!, Coisa de cavalo, 3, 4, 5 cavalo

carregado. Não no tempo do meu avô não, era muito não. Já era mais pra comê mesmo.

Foi depois que meu avô morreu que meu tio ficô trabalhando pra pagá foro, a condição,

essas coisa.

Foro e Condição

Ele era foreiro e foi ele o meu tio. Foreiro é assim: foreiro faz as coisa pra pagá a sua casa

que você mora, isso sem recebe nada. No engenho era assim. E foreiro você trabalhava,

alugava 3, 4, 5 bocado de terra pra você trabalhá. Quando fosse o final do ano, você paga

o foro, pagava a condição ainda. É, todo mundo era assim.

A casa que você morava você trabalhava três dia no engenho sem ganha nada. Três dia

de graça. Depois, ele botô pra dois, ficô a segunda e a terça. Esses outros dia que ficava

era pra pessoa trabalhá, virá bicho pra trabalha, pra pagá o foro, porque o foro era um

dinheiro enorme. Se fosse 4 parte de terra, ele andava falando daqueles 4 parte de terra,

quanto era que ia dá.

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Eu sei que tudo que tinha era pra trabalhá pra dá pro Doutô Ênio. Quebrava milho, fazia

farelo dois três vezes sem pará. Farinhada, milho, feijão, fava, algodão, o que tivesse.

Vendia tudo pra fazê aquele dinheiro “X” que ele dizia: É tanto. No dia da Conceição tu

chega, a Casa Grande tava completa, no pé da calçada de morador pra pagá o fôro.

Era dinheiro viu. Eu me lembro que eu ficava assim, olhando assim, um monte no chão

assim espalhado. Ópa aqui mãe, esse dinheiro todinho não dá pra pagá o foro ainda. Ele

dizia.

Vai tê que fazê mais farinhada e o resto daquele algodão pra termina de pagá. Ai, quando

era no dia da Conceição, no dia 8, dia da Conceição, dia 8 de novembro.

Ai, a gente acordava bem cedinho, botava aquele rolo de dinheiro no bolso e ia leva pro

doutô. Ai, chega lá, tá completo assim ó, tudo esperando já. Ele abria a porta, o que tivesse

casa alugada, terra alugada. Fosse quarto de terra, ai levava. E se ele não fosse foreiro,

fosse só furnicero, ele só pagava os três dia de renda, de coisa.

Se o foreiro não pagasse, oxente! Não dormia na casa, que ele não deixava. Se desse o

dia da Conceição, dia 8 de dezembro. Que era o dia do pagamento, era esse dia. Ele dizia.

Se não chegasse um, faltasse um, que ele tava com o nome de todos eles ali e quanto ele

ia recebê de cada um. Se não chegasse um, mandava um morador lá. Vai na casa de fulano

pra sabê porque foi que ele não veio pagá o foro hoje. Ai, se chegasse lá ele tava

ascendendo não sei o que. Disse: o Dr. Ênio disse que é pra você pegá as cesta hoje, você

não dorme na casa. Era assim.

A pessoa tinha que pegá os moleque que tinha, os molambo veio tudo preto e saí. O que

tivesse era pra deixá. E não era pra cumê o que tivesse não. Saia e deixava, e ele não tinha

dinheiro nem pra entrá ali mais. O primeiro sinhô do engenho era assim viu. Tinha pena

de ninguém não.

Eu já fui na Casa Grande assim, mas eu ficava do lado de fora, eu nunca entrei lá não.

Não era todo mundo que entrava lá não viu. Então, era assim, as vezes eu ia buscá o leite,

ficava assim em pé, aquela casa bonita menina. Cheia de varanda, mas nunca entrei não.

Tinha as empregada tudo. Aquelas empregada, aqueles empregado que tinha tudo, mas

conhecia não. O meu avô não sabia não. O morador não entrava na casa dele não. Eles

ficavam tudo na calçada do lado de fora. No pé da calçada, nem na varanda não era pra

entrá. Gritava um por um, chamava o nome de um fulano de tal. Chegava lá, dava o

dinheiro a ele e voltava, vinha simbora.

Fulano de tal ele dizia, entregava o dinheiro a ele. Não era pra falta um centavo, não era

pra falta. E tanto que ele disse pra leva.

Ai, o meu avô era foreiro e meu tio era furniceiro, depois ficou foreiro também. Pagava

condição e foro. E o foro era o que ele trabalhasse. Tudo que ele produzisse era pra tirá o

dinheiro pro Sinhô do Engenho, que o Sinhô do Engenho mandava. É escravidão. Saía

de casa de manhã, às cinco hora da manhã, a gente saía. As vezes levava um punhadinho

de farinha com um pedacinho de carne, de peixe seco pra cumê lá. E as vezes não levava

nada, o dia todinho com fome. Na chuva, no sol, chegava em casa de noite. Se quisesse

mora. Era do mesmo jeito, um mais pior do que o outro.

Escravidão disfarçada e o espinho do sindicato

Ai, depois foi que veio essa Reforma Agrária, teve esse negócio o Sindicato, foi que a Lei

do Sindicato valeu. Foi que amenizou mais a situação do trabalhador. Passou pra dois

dia, era três passou pra dois. O Sindicato bateu em cima, não era mais de graça de uma

vez não, ele dava um dinheirinho, por causa do Sindicato. O Sindicato que obrigô o Sinhô

de Engenho tirá esse peso de cima dos morador que era demais. Ele ficô com raiva, botô

o morador pra fora, ele botô pra corrê. Que o morador ia atrás sabe do Sindicato pra ter

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os direitos deles. Apanharam muitos. Muitos apanharam, muitos morreram, muitos fugia

da casa, era assim.

Eles não queriam pagá nada pros trabalhador. Ele queria ter as coisa de graça. Ai pronto.

Faz muito tempo esse Sindicato. Ai, ficô assim, foi se desenvolvendo, trabalhava e recebia

menos, mas recebia. Como eu tava indo dizê: era três dia, ai botô pra dois. Depois desses

dois dia, eles pagava um dia mais barato. E o outro ficava de graça. E assim foi enrolando

sabe.

Foi enrolando em cima de gente, foi enrolando. Eu não lembro, se pagava tudo certo ou

se era do mesmo jeito. Era furniceiro e foreiro. Era tudo do Engenho.

Eu acho que ele dava permissão de construí a casa. Onde tivesse a casa, não sei como era

não. Eu sei que já tinha aquelas casa já. Agora aquelas casa tudo velha sabe.

Eu lembro, ele não deixava que os morador plantasse banana. Deixava não. Porque a

banana dava um dinheirinho. Deixava não, se soubesse que tinha um morador plantando

banana ele mandava arrancá tudinho. Era Dr. Ênio. Ai, depois de muitos anos ele morreu,

ficou o filho. O filho único que ele tem. Eu vi, eu era pequenininha, agora depois que ele

cresceu não conheço mais não. Mai, quando ele era pequenininho, pequeno, uns três ano

eu acho. Eu via ele, a empregada passeando com ele assim na coisa do Engenho.

Tinha uns hômes, tinha o vaqueiro, tinha o pastorador das vaca, tinha tudo isso, as

empregada de casa, aqueles povo que trabalhava lá, pra lascá uma lenha, pra fazê o que

mandava, era cheio de gente lá, Casa Grande.

Tinha gado, muito gado. A Palma pertencia as vagem, era tudo cercado de boi, por

capoeira por todo lugar visse. Ali tinha muito. Tinha muita vaca de leite, muita, muito

boi.

Casamento do Senhor de Engenho e a Casa Grande

Ele era bem gordo, uma papada, tinha uma papada aqui, bonito ele era, gordo, novo,

branco. É muito bonito ele. Dona Marieta era uma galega. Era uma galega ela. Loura,

bem loura.

Me lembro das irmã dele: Dona Aline e Dona Coleta. Era o nome dela. Eu vi elas duas.

Elas iam bebê caldo. Lá dentro do Engenho. Elas morava lá, elas estudava no município,

nesse lugar. Elas vinham em casa de vez em quando. Ai, de vez em quando, a gente via

elas no Engenho. Antigamente esses filho de Senhor de Engenho, filho desses povo não

tinha faculdade por aqui, era tudo fora. Se formava fora. Ia estudá e lá se formava. Não

habitava não. Eles tavam alí enquanto tavam estudando, porque não tinha estudo pra eles.

Eles iam se formá queriam estudo bom né? Ai, iam pra Recife, eles estudavam em Recife,

outros lugar assim e lá se formava né. Ai, eles vinham pra casa assim: final de ano, nas

férias, era quando a gente via eles.

Ele era braço. Ele era braço de governo viu. Ele tinha o poder que nem o governo tem.

Braço de governo é como se fosse. Era de Itamaracá. Ele morava em Itamaracá e tinha

um Presídio em Itamaracá. Prendia os preso em Itamaracá na Ilha de Itamaracá. Eu via

meu tio dizendo. Quando ele matava as pessoa assim, ele levava prendia lá. Eles diziam

que prendia os morador dele. O único que prendia era ele e levava pra lá.

Tinha uma Ilha de Itamaracá diz que tinha um Presídio. Que não tinha pra onde esses

preso saí. Que era dentro da água, em cima da água. Eu via eles, meu tio falando. Diz que

era dele. Ah, no início eu era pequena, eu só ouvia só o boato, o comentário. Mas, ladrão

na terra dele não ficava não visse. Ladrão, se fosse ladrão na terra dele não ficava não.

O ladrão e a viúva

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Um dia me lembro, eu era pequena, de manhã eu fui busca água. Qualquer coisa que

acontecia na fazenda, na Casa Grande era uma confusão medonha. Ai, eu fui buscá água

com tanto medo. Ai, ele tinha um morador. Um morador foi robá a cabra de uma viúva

que tinha, Dona Maria Pino. Ela tinha umas cabrinhas lá, marranzinha. E eles todos era

morador dele da Palma.

E esse ladrão foi robá. Esse hôme foi robá a cabra de Dona Maria Pino, uma velhinha

viúva. E o vigia ficava a noite todinha circulano o sítio todo sabe. Que num sítio desse

tamanho qualquer coisa que acontecesse era pra mata, ou matá ou algemá e leva pra

fazenda todo algemado.

Ai o vigia tava percorrendo era muita coisa pra esse hôme percorê na Palma. Mas, era

mais o lugar onde tinha as coisa: lavoura, cercado de boi, essas coisa sabe?

Ai, o vigia viu uma gritarage de noite. “Solta minha cabra ladrão!” A viuvinha gritando,

a mulher gritando. E do outro lado o vigia escutô né. Ai, ele foi atrás. Dali a pouco, quando

ele foi subindo a ladeira, lá vinha o cara puxando a cabra da mulher. Puxando a marram

e a mulher em cima gritando, chorando. Ele desceu da bola de roça grande, ele puxando

a cabra pra baixo. Quando chegou em baixo o vigia já tava esperando ele.

Quando ele peitou foi em cima do vigia. Ai, o vigia pegô ele, levô ele pá fazenda e a

cabra. A cabra já tava morta. Não, foi não. Ele deixô levá a cabra, a marram bem

amarelinha, vermelhinha. Quando ele tava sangrando, o vigia chegou. E tinha visto toda

essa cena já né.

Ai, daquele jeito que tava a cabra sangrada, amarrada, sangrada, ele levô pra fazenda o

hôme e a cabra. E amarrado chegô lá: Ai, o Dr. Ênio pegô ele, botô ele num canto, deu

uma coça nele, deu-lhe uma piza. E um chapéu de palha grande, hoje eu me lembro. Um

chapéu de paia grande ele quebro aqui na testa dele, quebro assim, ficô toda de fora a cara

dele e a marram, amarrô ela morta no pescoço dele. A cabra pendurada pra trás, a corda

aqui na frente do lado da cabra amarrada. E no cacete até em Bizarra, que ele foi preso

em Bizarra. Ele é quem mandava. Não era Polícia que levava não, ele mandava levá e

prendê. Ai, eu vi isso de manhã quando eu fui busca água, eu dei de cara com esse hôme.

Não, eu fui buscá o leite. Que todo dia o hôme, o seu Zé João, ele dava. O seu Zé João

dava todo dia um litro de leite, ele dava ao morador. A todos não, mas à muitos eles dava

sabe. Eu fui buscá o leite. Seu João trabalhava no Engenho. Era o maquinista do Engenho.

Quando dei de cara na curva, não gosto de lembrá dessas coisa não.

O hôme com aquela coisa quebrada na testa assim, a cabra com o pescoço mole,

balançando assim, derramando o sangue amarrada no pescoço dele. E a cabra pra trás.

Quando eu vi aquilo meu Deus, uns vigia de um lado e o outro do outro, parei.

A gente morria quando eu via aquilo viu. Cheguei, eu dixe Dona, eu vi uma coisa tão feia.

Ela dixe o que foi? Eu dixe a ela: acho que foi alguma coisa que aconteceu na fazenda do

Engenho. Ai, quando eu dixe a ela: um fulano de tal que robô a casa de fulano de tal e o

vigia pego e foi cacete viu. E levou pra prendê, tá preso em Bizarra com essa cabra nas

costa. Ninguém roubava não!

Um abacate, uma vez eu levei uma pisa tão grande por causa dum abacate verde que tava

no chão caído. Abacate verde, eu tava dentro de casa.

Ai, o abacate caiu eu tava com fome fui apanhá. Dali a pouco chegô o vigia, Virgi Maria

do céu! Eu tinha um medo tão grande de seu João de Diló visse. Botava lá pra fora e me

dava uma pisa. Deus do céu! Quem é que não tinha medo né. E eu achei no chão, mas

dixe que mesmo no chão não era pra pegá.

Deixasse lá. Oxe! Era muito medo que o morador tinha. Era tudo pisada em cima da linha

direitinho ó.

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Era, ninguém saia do risco não, porque se saía era prisão e cacete, outro até morria. Era.

Dr. Ênio lá no Engenho era virado no diabo mesmo. Quando dissesse fulano de tal venha

cá, não fosse não pra vê. E ele já ia se acabando, ele sabia que alguma coisa já ia fazê

com ele né.

Ah! Era todo poder na mão dele. Eles faziam o que queriam nos Engenho deles. Todo

Senhor de Engenho são assim. Eu só conheci esse né. Mas, que as pessoas diziam.

Também não existia muito Senhor de Engenho não né? Pra ser um Senhor de Engenho

naquele tempo acho que existia porque tinha o Engenho da Palma. Tinha o Engenho de

Massicuaba. O Engenho da Palma, o Engenho de Massicuaba e o Engenho de Paraná. Era

três Engenho perto mesmo. Era três Engenho perto. Massicuaba, tudo de uma família só.

Dr. Ênio, Massicuaba acho que era de um irmão dele, sei que era família lá. Era três

Engenho que tinha. Agora Engenho grande que tinha, Engenho grande mesmo era dele.

Funcionamento do Engenho

Funcionamento do Engenho era assim: Era com cana né. Ai, plantava a cana, limpava a

cana, desfolhava a cana, quando a cana já tava boa de cortá, os trabalhador ia cortá aquela

cana.

Era, cortava aquela cana, um cortava o outro amarrava, outro jogava em cima do carro,

dos caminhão de carga e já levava diretamente pro Engenho. Quando chegava lá no

Engenho descarregava aquelas cana do jeito que tava amarrada, já botava dentro da forma,

do negócio de moê lá, da moenda. Tinha um maquinista que ligava a máquina, que sabia

manejá a máquina né. Ia botando os feixe de cana dentro e aquela roda comendo assim

Ó.

Comendo assim, caindo o bagaço de um lado e o caldo saia no outro. Ai, tinha uns tanque

grande de caldo, eles botavam uma bica. Ia botando os feixe de cana e aquelas boca bem

grande assim ó, aquele negócio fazia assim ó, ai, saia cheio de caldo, tinha o caldo e os

bagaço pra outro. Tinha dois tanque: eles botavam duas bicas de aço, não sei, acho que

era de aço. Aquele caldo daquela cana já saia por aquela bica e já ia enchendo aqueles

tanque. Uns tanque enorme! Depois que aqueles tanque tava cheio ele já caia num outro

tanque, caia nas tachas, umas tacha enorme assim do tamanho dessa sala. Bem redonda

assim.

E o caldo já caia ali, já tinha botado fogo na fornalha já. Quando tava pegando fogo aquilo

e aquele mexendo com um negócio bem grandão, mexendo aquele caldo todinho.

Mexendo, cada um com aquele negócio bem enorme, um negócio bem grandão assim

mexendo todinho pra lá e pra cá. É pra fazê esse mel desse caldo de cana.

Quando amanhecia o dia que isso já tava bom. A noite todinha mexendo. E a fornalha

com fogo em cima. A fumaça chegava na vizinha, quando esse mel tava pronto dava um

apito. “Píííííí...” bem assim e a gente escutava. Aquele homem que passou a noite todinha

mexendo aquele mel, aquele negócio pesado. Ninguém sabia quantos coisa de mel que

tinha ali dentro.

Se caísse ali dentro ói, ficava o bagaço. Quando amanhecia o dia que o engenho dizia

hoje piejô. Era na hora que o mel tava pronto. E daquele mel tinha um furo, um pau, acho

que era um pau, não sei o que era, bem grande um negócio assim bem grande pra enchê

aquele negócio, aquela tacha e enchia as “encureta”. É, um negócio bem grande, enorme

assim. Muito grande viu. Cheio daquelas encureta assim, um negócio furado pra botá. Ia

enchendo tudinho aquilo e depois que ia enchê deixava tampado escorrendo lá. O que ia

escorrendo devagarzinho era o mel de furo que era pros bicho.

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Ai, quando o mel tava açúcar, tava pronto, sequinho, vinha o cavalo. O pátio do engenho

ficava completo, completo, completo de cavalo. Era carregando assim, duas encureta que

carrega. Carregando, carregando. Ai, quando tava tudo carregado saia tudo e ia simbora.

Encureta era de tauba. De botá o mel, fazê aquela coisa de açúcar desse tamanho de

garrafinha. Ai, ele levava com encureta e tudo. O mel virava o açúcar.

Botava o mel dentro desse negócio, dessas encureta, e essas encureta tinha um furinho

embaixo que era pra escorrê, í, coalhando, quando o açúcar ia passando já ia coalhando

Ficava aquele pauzinho de açúcar desse tamanho assim, abaixo da encureta. Aquilo a

gente entendia tudinho.

À medida que ia esfriando, ela ia saindo aqueles pinguinho de mel. Virava aquela pedra

de açúcar enorme, aquele negócio todinho. E aquele mel que ficava embaixo era pros

bicho. Pros gado. E também fazia o álcool, o álcool não sei como que fazia não.

A gente entrava, os hôme trabalhava lá, a gente entrava, Seu José João, o hôme que

morava lá, ele era maquinista do Engenho. Ai, a gente entrava, bebia caldo, comia rapa

de tacha. Era. O home dava cheio de rapa de tacha pra gente. Do mel, o mel que ficava,

que pegava na tacha ele dava a gente.

Hum! Pois, chegava lá o Seu Zé João dizia: vai bebê mel de cana. Era correndo assim, ó,

aparando 2, 3 copo de cana, bebia assim ó. Bebia, era bom.

Fiquei um bocado de tempo. Eu fui morá mais ele, depois sai de lá de novo, depois a

mulher me chamou, foi me buscá de novo pra eu criá os filho dela. Criei os dois menino

dela.

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ANEXO D - AUDIO 2 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA

PARTE II

O Atoleiro do açude no Engenho Machados Velho

Como que era esse Engenho de Machados Velho? Que... Dona Bazinha que me contou.

Quem é a Dona Bazinha? Dona Bazinha é a mãe do pai dos meus filho. Ela disse que

conheceu o Engenho de Machados Velho moendo cana ainda, ela disse. Que ela dixe que

a besta era que moía a cana. Sim. Dixe que botava. Dixe que botava uma canga nas besta.

Os cavalos. Botava uma canga na besta e tinha uns nêgo dando nas besta, pras besta rudeá.

Antigamente era os nêgo mesmo que arrudeava e moía a cana nesse Engenho de

Machados ela dixe. Machados Velho, e depois era as besta que moía e tinha os nêgo pra

dá nas besta. As besta arrudiá e quando elas arrodiava ia moendo, ia rodando a coisa e ia

moendo a cana.

Foi. Dona Bazinha dixe que conheceu isso aí. As besta arrudiava, arrudiava e aquela cana

caindo, quando as besta tava cansada trocava outros cavalo, até moê aquela quantidade

de cana. Que ela dixe pra mim que aquele açude dele lá, dixe que caiu um carro de cana

com boi, com o carreto, com tudo sabe. Apareceu ali. Eu acho que era o atolêro. Ali, tem

uns atolêro tão grande! A gente passo um dia desses por lá eu e Pedro, eu já vi dois bois

cair naqueles atolêro ali. Naqueles atolêro. Ai, eles mais que depressa correu com as varas

de pau bem grande, butavam debaixo dela. Senão minha filha esse carrero, esse carro de

boi tirado de cana, os boi e esse Carrero sumiu nesse atolêro, nesse açude. No que eles

caíram afundaram, sumiram. Que eles passava por cima do açude pra levá os caldo de

cana. Dessa vez eu acho que o pneu do carro saiu fora do “bado”, escapô, acho que sumiu.

Não apareceu nem cavalo, nem carro, nem boi, nem ninguém. Nem cana nem nada. Ali

tem atolêro tão grande que se uma casa dessa caí lá vai simbora. Fica no açude, pra cima

tem um atolêro desse, ele pisava ali, balançava pra todo canto e lá pra baixo também que

foi duas vaca atolada, que eu passei por lá essa semana eu vi. Tudo marcado de pau que

ele butô, que se pisá ali vai simbora. Não foi não Pedro?

Pedro era o seu neto, atualmente adolescente que acompanhava a entrevistada em

processo de narração.

É de lama. “Massapê”. Eu não sei dizê o que é que quer dizê esse negócio viu. Não é areia

não. É um barro. É um “massapê”. Em vários lugar. No Engenho de Palma não sei....

(silêncio). Mas tinha sabe por quê? Porque tinha lá um lugar até proibido de passá. Que

se passasse afundava. Eu acho que era esse alagadiço, esse negócio também. Esse

alagadiço. É um lugar que a pessoa pisa e vai simbora, some. Atoleiro é.

Carreiro, boi e a moenda da cana

Ela dixe a mim que alcançou a moenda do Engenho com as besta. Era dois cavalos bem

forte, bem gordo na frente e com esse carro de boi atrás. Os boi é furado na ponta, no

cangar. E os cavalo que não tem ponta é no pescoço. Na ponta dos boi eles amarram uma

corda de couro cru, do boi, pra ele se movê amarrado um pro outro assim. E bota a canga

no pescoço pra, eles não podem se mexê os coitado. Inda tem, inda tem o Carrero. O

Carrero do boi com uma vara bem grande, com uma ponta de ferro na ponta pra furá os

boi e eles carregá essa carga de cana em cima do carro.

A gente via de longe, apita as roda. As roda de ferro, de madeira. Madeira forte bem

grande com aqueles negócio de ferro assim. Ai, vai fazendo assim “tchuimmmm.

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Tchimmm, de longe a pessoa vê a zoada. E dois boi na frente carregando, puxando. E o

Carrero com o espeto assim furando.

Fim do Engenho Machados Velho [herança]

Era, depois que ele [pai de seus filhos] boto o sitio né, depois que o Engenho acabo. Agora

é Machadinho. Ela só me falou isso. Ela conheceu o avô [dos filhos] foi no outro Engenho

Bom Destino. Acho que ela vinha pro lado de cá e via né. Acho que era menina ainda, ou

senhora novinha, assim. Ela era nova. Que ele não vinha, o avô não vinha de Bom Destino

pra Machados Velho. Transitava de um Engenho pra outro.

As terras da cidade de Machados eram do avô de seus filhos?

É, como eu falei: Machados Velho, Bom Destino e Panorama. Era três Engenhos de uma

vez, do mesmo dono. Ela disse que conheceu Machados com três casa de palha. Ela

conheceu os fundador de Machados todinho, ela conheceu. Acho que Machado não era

cidade não. Era umas casinha de palha que tinha. A Igreja era uma casinha de palha,

depois foi que foram aumentando. Aqueles fundador foram fazendo o Engenho.

Apareceram, depois que foi aparecendo varias pessoas, depois que ele morreu né. Que o

pai dele morreu, foi ficando lá e foi chegando aqueles hôme mais importante né. Que nem

o Dr. João. Dr. João Marques, o Coronel Major João Marques.

Esse Coronel Major João Marques acho que ainda era família dele! Sim. Coronel Major

João Marques é o fundador de Machados. Foi quem fez o Colégio, Grupo pros menino

estudá. E foi isso, e foram formando, foram formando a cidade. E era em terra, não tinha

pista, não tinha nada, não tinha transporte, não tinha nada. Depois foi que fico, que foram

organizando não é, aí, virou assim, virou essa cidadezinha. Mas não era assim, era sítio o

Engenho, terra de ninguém.

Pesquisadora: As dizer se apôs o falecimento do avô de seus filhos as terras do Engenho

foram invadida?

Eu acho que sim. Eu não sei muito não. Eu acho que depois que ele morreu, eu acho que

foram vendendo, foram acabando né. Não, eu acho que quando ele morreu um dos filhos

era rapaz já, acho que era, eu não sei muito dessa história. Mas quem tomava conta,

quando ele morreu quem tomou conta das coisa, da casa grande lá foi os filho dele. Que

era (4) quatro filho parece. Dona Bazinha dixe que ainda viu essa Casa Grande com umas

parede em pé ainda, ela disse. Eu sei que eles moravam em Bom Destino. Quem cuidava,

acho que devia sê os empregados. De tempo de escravo né. Devia ser, no começo devia

sê tudo escravo, né? Era libertação dos escravos ainda, isso era o negócio da escravidão

ainda né?

Escravos do Engenho Palma

Isso aí já, eu conheci dois, duas pessoa lá no Engenho. Eu não sei se eles eram escravo,

mas eles eram escravo da fazenda mesmo, na Casa Grande de Palma. Eu conheci Seu

João Diló, que era o pai do João Diló um negão bem preto, bem altão que era nêgo da

fazenda e tinha outro que era João Diló e Seu Cirino Fortunato. Tudo isso era, fora um

negão lá de dentro. Do Engenho. Nesse tempo acho que era o Seu Eufrázio, do Coronel

Eufrázio que era pai do Dr. Ênio. E do Dr. Eufrázio quando morreu ficou o Dr. Nipodon

e eles eram bem velhinho. Eu me lembro que eu passava assim de manhã pra buscá o leite

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da vaca, tava o Seu João Diló sentado assim, lá em cima. Bem preto sentado lá. Era o

querido do Engenho ali, ele sabia de tudo. Acho que aqueles ali, acho que eram os escravo,

depois né. Não, eu não conversava com eles não. Eu falava assim pra minha vó aquele lá

escravo do Engenho e da Casa Grande.

Madrasta-avó e o cabelo ruim

Ah! Não tem nem como compará. Não tem nenhuma pessoa que eu compare ela, era

daquela cor de Sinhá. Era, sei que ela era bem alta e mais forte que Sinhá. O cabelo era

daquele jeito, tinha uma parte que não tinha cabelo sabe? Ela tinha o cabelo bem ruim.

Ela tinha o cabelo ruim daquele jeito, preso daquele jeito. Ela era um cipó, bem grande.

Era meia forte, mas ela não era escrava não. Meia preta mas não era escrava.

Meu padrinho, meu avô arrumo essa mulher, não sei aonde foi, nem de onde era nem

nada. Foi quando eu conheci ela.

Ela era de Palmas?

Era assim: Ele não era de Palmas não. Ele veio morá em Palmas depois. Meu pai e as

minhas duas tias. Ele ficava lá conversando mas é que eu não me lembro. Eles nasceram

na Palma não. Ele parece que chegou na Palma com esses filho dele pequeno. Mas

nasceram na Palma não. Era noutro lugar que ele morava, agora não sei aonde.

Sim. Não sei, não sei qual o lugar não. Isso era muito, muito. Ele conversava assim muito

as coisa, porque eu perguntava muito as coisas, eu era perguntadeira, eu gostava de sabê

das coisas: - Padrinho, ô padrinho, onde é que o Sr. morava? Ele me dizia. Mas não me

lembro mais não. Eu vim pra Palma. Ele já chegou casado em Palma. Lá no lugar anterior,

não em Palma. Com essa mulher e com esses três filho dele. Agora não sei onde foi o

lugar não. Não, foi só isso que eu vi mesmo.

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ANEXO E - AUDIO 3 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA

PARTE III

Festa de Bizarra, assassinato e a amiga de infância

A festa foi de Bizarra, e a gente morava na Palma, daí a gente fomos a esta festa. Aí Dona

Maria dixe assim: Ô, vamo pra festa Maria. Eu sei que eu fui. Morava com Seu Zé João,

foi que eu pedi à ele. Eu dixe assim: to sabendo da festa de Maria do quejeiro. Seu Zé

João era o hôme que morava lá, era o maquinista do Engenho. Que moía a cana na moenda

do Engenho. Aí eu pedi à Dona, à mulher dele. Ô Dona, a Srª deixa eu í pra festa de

Bizarra? É Das Dore. É. Aí ela disse assim: - Vai mais quem? Eu disse: - Eu vou... Só

que a gente tinha combinado pra í, pra que as irmã dela também ía. Que era Ester e Ôróra.

Duas moça, duas mocinha. Não. Cunhada de Zé João, irmã da mulher dele. Era. Aí eu

dixe: - Mas as menina também vai, a Srª deixa eu í, que eu vô daqui com Maria, de lá a

gente se junta. Ela dixe: - Então tá bom. Aí a gente se vestiu minha fia, e saiu de mundo

afora.

Que idade que a senhora tinha?

Uns 10 ano, 11ano. Uns 10 ano eu acho. Era Festa do Padroêro da cidade, é a de São

Sebastião. Era. Ai, a gente foi né. Saiu danada de perna de tardezinha lá e fumo simbora,

chegamo lá e se encontremo com as menina. Ai, fiquemo na festa. A festa não foi muito

boa não, que. Ai, a gente tava na festa, dali a pôco foi um rebuliço, uma confusão, um

povo tudo caindo, o povo tudo correndo, coitado, tinham matado um hôme. Foi. Ai, a

gente não sabia se corria de noite, tarde da noite, se corria pra casa ou se corria pra se

escondê em algum canto, e a gente ficâmo sem sabê. A maria, as menina se perdêro.

Ainda bem que me segurei em Maria, (risos). E Maria, eu agarrando na saia dela (risos),

vou te conta. Maria morava na Palma também com a gente.

Todas essas meninas moravam na Palma, as irmãs. A Ôróra e Ester moravam na Palma.

Maria morava na Palma e eu morava na Palma. Tudo essa gente. Tudo no Engenho. Lá

no terreno do Engenho. Ai, minha menina, a gente fomo corrê pra se escondê. E quando

a gente tava correndo, topêmo foi com o hôme! Com o homem que mataram. Ele tava

sentado, assim no poste viu, (gestos de corpo largado). E aquela cheia de sangue assim.

Foi de faca. Foi. Eu não sei por que né. Um rapaz ainda. O rapaz era alvo, bonito. Quando

a gente deu de cara assim, ele sentado no poste. Assim, a cheia de sangue. E a gente

ficamo doidinha. A gente corria de um canto e corria pra outro. E acertá o caminho de

vim meia noite!

E peguêmo as menina e cadê as menina. Minha fia, e haja gente a caçá, as menina, Maria

ficô doidinha, Maria e eu também fiquei. Ai, adepois, a gente se encontrou com as

menina. Mas a gente tinha que deixá amanhacê o dia, que a gente não vinha sozinha que

ia era por dentro das cana, por dentro dos mato.

Aí fiquemo na festa se acabando de medo. Ai, quando foi de 5 hora da manhã, viemo

simbora pra casa. Por dentro das cana, por dentro do mato. Chegando em casa o sol já

tava, o sol já tinha naiscido. A festa acabô, acabô de manhã. Acabava de manhã a festa

sabe.

Aí a gente viemo simbora pra casa, cheguemo em casa a Dona das Dores. A Dona das

Dores. - Mataram o hôme na festa. Ela dixe: - Tás vendo, eu bem que eu disse à tú, que

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tú não fosse. Eu e Maria, a gente se encontrava lá nas bacia do Engenho, Maria era uma

bixiga também, (risos). Mais a gente ria tanto minha fia, (risos). Ela namorava cum

vaquêro. Era. Ai, um dia eu ía passando era aquela conversa. A Maria namorava com um

irmão, cum povo do mundo minha fia! Era uma moça da gota. E era moça viu! Ela era

mais velha que eu, sabe quantos anos? Eu tenho 65, 6 e ela tem 76. Dez anos de diferença.

E ela já era moça já, mocinha. Moça nova mas era. Ai, passa Maria conversando com o

namorado, era casado já sei lá. Ai, só sei que tava Maria, quando foi no outro dia foi que

disse: - Ô bichinha, eu vi tú. Tava até a boca viu (risos). Nem em casa ia viu, namora

escondido. Ele era casado! O nome da mulher dele era Belmira, sei lá. Ai, chegando em

casa ela me dizia (risos). Ai pronto, a gente passou esse tempo junto né, lá na Palma,

depois eu saí, fui pra onde meu Deus! Que eu fiquei longe de Maria. Conheci o pai dela,

conheci a mãe, os irmão dela. Eu não ia lá muito não. Mas ele fazia bolo, ele era bolêro.

Todo mundo que comprava bolo era dele. Bolo de Mandioca, Bolo de Trigo. Ele fazia

bolo numas latinha, nessas latinha de pescada grande, não tem umas grande? De pescada

pequena. Fazia também dois tipo de bolo, ele fazia uns bolinho assim redondo (gestos

com as mãos).

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ANEXO F - AUDIO 4 [TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA] NARRATIVA

PARTE IV

Maria Queijera, amiga de infância

Não, o nome dela é por causa do pai dela, era Eraque, Maria de Eraque. Agora só que o

apelido de Queijera, porque o marido dela vendia queijo.

Ai, tem o nome de Maria Queijera porque ela casou-se com o Senhor Queijero. Mas o

nome dela é Maria do Seu Eraque. O pai dela é Eraque. Morava no Engenho, todos eles.

Era o pai dele. Eu conheci o pai dele, conheci a mãe dele, conheci os irmão, conheci as

irmã.

Porque que a senhora não foi morar com eles?

Deus me livre, tinha um bocado de hôme. Tinha rapaz. Eu tinha a maior vergonha de

hôme na minha vida. Eu vinha, se tivesse mulher eu chegava ali e falava, mas se tivesse

hôme dali eu vortava. (Risos)

Eu sei, eu era assim. Eu melhorei muito, mas eu era uma um bicho do mato mesmo.

Envergonhada, morria de vergonha de qualqué coisa. E de hôme principalmente. Sei que

não podia vê hôme não visse? Cortava caminho, cortava a volta. Se tivesse hôme ali, eu

cortava por dentro do mato o mais longe pra não passá por perto.

Eu não sei. Ia, lá pro seu Oliveira (cochichando) - Meu Deus do Céu, será se esse hôme

não tá em casa? Jesus, tomara que ele não teja, meu Deus. Ia eu de pontinha de pé,

pontinha de pé. Se eu visse a cara do Seu Oliveira, eu me escondia.

Ficava esperando, aí, se esse hôme saísse pra fora ou Enilda, ou comadre Irene. Que era

pra mim chegá e falá alguma coisa. Só que eu não chegava de jeito nenhum.

Óh Maria, tá vendo? Perguntava a ela: - Olha lá, seu Oliveira ta aí? – Painho tá lá fora.

Mas deixe disso, num vai entrá, tá lá fora. Olhe, que eu ia com ela, ficava na cozinha.

Mas se ele tivesse na cozinha eu não ia não. Sempre fui assim. Desde pequena que eu sou

assim. Agora melhorei. Agora já chego na casa do hôme, já converso. Se eu não conhecê

também né? Se eu não conhecê, eu fico meia envergonhada, timidez né?

É timidez, eu sou muito tímida pra essas coisa. E pra tudo né, pra falá com uma pessoa

só falava se conhecia, e se eu pudesse não falava porque eu tinha vergonha de falá. Sei lá

o que é que eu tinha, eu era que nem bicho do mato mesmo.

Bizarra foi a última festa que a senhora foi na companhia da sua amiga Maria

Quejero?

Foi. Ai, depoi eu saí de la, da casa que eu tava, fui pra outro lugar, outra casa ali em Palma

mesmo só que em outro lugar.

Desencontro e reencontro com as amigas de infância

Ai, se desencontremo de Maria. Me desencontrei de Maria e nesse tempo todinho, fui lá

pra Machado, tive os filho tudinho, ai, quando foi o dia uma pessoa disse assim: o filho

meu parece! – Ô bichinho onde tá tua mãe? Ai, ali, em cima mora uma mulher que

conhece a senhora. Eu disse assim: - Ah ei, quem?. Disse: Eu não sei, mas eu passei por

lá na casa de tio Oliveira e conversei com ela. Ela disse que conhecia a senhora e queria

vê a senhora. Eu digo, mas quem é essa mulher meu Deus? Ele disse: - Não sei, ela mora

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ali. E mostrô a casa, lá perto do Seu Geraldo. Eu fiquei, fiquei, e disse quem é essa pessoa,

essa pessoa? Ai, quando foi um dia eu cheguei, perguntei a Enilda: - Tu sabe quem é

aquela mulher que mora ali? Ela disse: - É uma mulher que tem um bocado de menino,

se chama Maria. Eu digo, vamo passá por lá, pra quando eu vê se conheço ela. Ela disse:

- Vamo. Ai, a casa dela era assim e o caminho era assim né (gestos indicando o lugar). O

caminho ía a casa dela.

Ai, quando eu ia passando ouvi o grito dela. Me conheceu. Maria! Eu olhei assim e disse

assim: - Oxente! É tu que mora aqui? – Eu já sabia que tu morava aqui, mas só que eu

não queria, não ia na tua casa. Ai, demo um abraço e comecemo a conversá.

Depoi que o menino dela morreu, e a gente fico, depois Maria desapareceu de novo,

(risos). Ficô eu. Ai, quando o hôme foi simbora pra São Paulo, que eu fiquei só e fui

trabalhá, me encontrei com Maria de novo. Quando eu cheguei pra trabalha, Maria! Eu

digo: - Xente! Ela disse: – E tu tá fazendo o que aqui? – Trabalhá. – Eu também. Ai,

fiquemo amiga de novo, até hoje. Ai, não se afastemo mais não. Ela pegô, ela morava na

rua da Palmera e eu lá no sítio. Depoi, eu sai do sítio fui pra Recife, fiquei um pouquinho,

voltei, a gente ficô amiga de novo.

Eu sou, eu tenho 10 anos mais nova de que ela, ela tinha, se eu tinha 10 anos ela tinha 19

não era? É por aí, até hoje. De vez em quando ela vai lá pra casa é uma festa. Anda e tudo,

ela já tá bem veínha. Veínha não. Toda cheia de dor que nem eu, cheia de problema, mas

ela vai lá em casa. Outro dia ela foi lá pra casa. Ligou pra mim disse: -Maria liga pra mim,

de vez em quando. Liguei. - Maria... -Digo: Oi. - Tu tá em casa dormindo? Eu digo: - Tô.

– Vou ai te vê.- Vem mesmo, mesmo! Oxe, é a maior alegria, (risos).

Vou ajeitá a casa e fazê almoço que a minha amiga vem pra aqui hoje. A gente conversa

o dia todinho, ai, quando é de tardinha ela vai simbora. É muito bom. Três amiga que eu

tenho desde quando criança é: Maria, Creusa e Das Dore. Aquela galega que morava lá

perto do seu Fera, atrás lá no Sítio. Duas galega do cabelo branco. Ela se lembra de

tudinho. Duas moça, é duas moça véia. Essas duas moça eu conheço desde quando era

pequena. Moraram em Palma também.

Ela mora em Machado. Ela mora na rua de Machadinho e Maria mora na rua da Palmeira.

Elas moram lá na rua. Vou! De vez em quando, eu vou lá.

Das dore, ela tá meia adoentada, nunca mais eu vi não, mas de vez em quando eu vou lá.

Seu Zézinho Menino da Palma também, conhecido da gente. Essas três pessoa, eu conheci

quando era pequena e até hoje não se separemo. Separemo, depois de um tempo se

encontremo de novo, pronto. Tão tudo em Machados agora e a da Palma também junto

com a gente.

Agora, Maria que eu sei, ela tem muita história pra contá, porque ela já tinha vivido uma

época atrás. Ela era nascida. Eu acho que ela naisceu e criou-se no Engenho. Eu acho que

foi. Acho que ela nasceu e se criou. Eu também nasci, me criei no Engenho né. Mas só

que eu foi de lá pra cá, 10 anos pra cá. E ela 10 anos pra trás já conhecia.

É, essas moças são velhas, mas elas sabem, tem história. É Dr. Ênio era padrinho delas.

Não sei de que jeito tá, mas caduca tá não. É. Agora uma das duas gosta demais de

conversá, outra mais calada.

Vê só o que eu fazia. (Risos). Ela um dia desses, ela tava falando. A gente tava falando e

conversando: Ai, a gente fazia farinha na casa de farinha delas, a gente morava perto

delas, depois se mudemo pra perto de Maravilha né?

Casa de farinha, zabumba, pandeiro e violão

E as coisas ficavam tudo lá, a semana todinha a gente fazia farinha lá. Elas tocavam na

azabumba, Pandeiro e o violão e eu ficava doidinha menina. “Meu Deus do Céu”. Eu

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ficava doidinha quando via Das Dores pegá aquela Azabumba “ti bum”, eu ficava assim

hó, (gesto de alegria).

Uma vez eu disse assim: - Ficô uma farinha lá na casa, eu tinha 7 ano pra 8 ano, 7 ano eu

acho. – Vai buscá uma pilha de farinha que ficô lá na casa de seu Zézinho Menino. Vai

logo cedo. Era o pai delas. – Tu vai cedo buscá. Eu disse: - Tá certo. E eu fui fazendo

rodapé por casa das minhas amiga. Em cada amiga eu parava um pouquinho. Eu era

levada do diabo não era? Fui na casa de umas das amiga minha e ela tinha saído, eu fiquei

esperando, mas vê só. Fiquei esperando minha fia, deu meio dia, eu morrendo de fome lá

esperando. Ai, num chegô ninguém, eu fui mebora, fui lá pra Das Dores. Chegando lá

tava Das Dores da gota batendo pandero, a filha do quejero que era amiga também, (risos),

tava tudo junto. Era um no Zabumba, outro no pandêro, outro no violão, minha fia, e a

dança cá gota oxe! E eu no meio (risos).

O medo e mentira

E eu fiquei lá e as menina tocando e dançando, e eu olhando sem almoçá, fome da gota.

Disse: - Ô Maria, já tu saísse de casa que hora tu saísse de casa? – De manhã. – Tu já

almoçasse? Eu disse: - Não.

Vou vê uma coisa pra tu. Ô Maria, tu viesse fazê mesmo aqui o que? Eu disse: - Buscá

farinha. - Eita! Tu vai levá uma pisa da gota.

- Saiu de casa de manhã? Digo: - Foi. – Maria tu sabe tua tia quem é. E eu me lembrava?!

(risos). Eu só lembrava o que era quando eu ia no caminho. Eu disse: - Meu Deus do Céu,

vou levá uma pisa hoje! Vai vê a mentira que eu preguei. Fiquei com medo de apanhá.

Quatro saco de farinha, farinha pesada. Subia ladêra e descia. Eu ia pensando: - Que é

que eu vou dizê! Pensando e caminhando. – Ai, eu sei o que que eu vô dizê. Vou dizê que

me deu uma dor e eu caí.

Mais veje só. Aí quando chego, subia ladêra correndo com saco na cabeça cheguei

molhada de suor. Cheguei aí ela: - Mais cachorra da peste, agora chegando! Onde é que

tu tava? – Ai é que me deu uma dor no caminho eu caí. Me levantei agora. Veja só. Mai

a pessoa que mente é uma tristeza.

E ela acredito né? Mais ou menos. Ai meu Deus! E ela foi procurá sabê. E eu me esqueci

de dizê à Das Dores, eu não vi a Das Dores na casa, que se ela perguntasse alguma coisa

ela dissesse que foi verdade. E eu sei que a Das Dores, meu Pai do Céu, Das Dores vai

dizê e foi certinho.

Quando chegô lá, ela perguntou à Das Dores, às menina: - Ôh! Das Dores, Maria teve

aqui ontem? - Esteve Dona Zefinha. - Má rapaz, Maria veio buscá só farinha, só chegô

em casa de noite! Que hora que ela saiu daqui? Perguntô. E eu tava perto, corri logo, me

escondí (risos).

Quando vi. Ai, eu disse assim, fiquei pensando o que é que ia dizê né, que ela sabia que

eu ia apanhá, que ela sabia que era tudo mentira. E ela fico assim: - Ah! Ela saiu daqui de

tardezinha. - De tardezinha? E que hora ela chegô aqui? - Era umas 2 hora da tarde ou 3.

- E foi? Calô-se. Eu digo: Cochichando. – Mas Das Dores, pra quê tu disse? Eu disse que

tinha caído no caminho, tinha dado uma dor! – Ai, eu não sabia, (risos).

Espancamento, maus-tratos - Madrasta-avó

- Porque que tú dixesse se ela ia perguntá? - Eu me esqueci, eu disse: - mas, levei uma

pisa menina. - Eu fiquei com pena agora, mas eu não sabia minha fia, peguei e falei.

Cheguei em casa, e foi tanta da coisa que ela disse comigo, pegô ó. Oxe, mai foi cacete

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viu! Disse que pra nunca mai eu menti. Mas eu mentia, eu mentia daqui pra li. Porque eu

tinha medo de apanhá!

Eu inventava uma mentira, mas não lembrava. Mas ela ia atrás sabe. Pegava cada mentira

minha, ai, eu apanhava. Vixe, ai, foi assim, agora tô me lembrando. Eu tava dizendo,

falando. Vixe Maria! Mas aquela véia era muito ruim pra tu viu. Má uma vez eu tive até

medo, eu vi a véia fazendo assim: pá! Pensei que ela tava batendo, ela tava batendo numa

galinha. - Era em mim. Ela disse que via ela pegá assim aquele negócio, “pá” na parede.

Daqui a pouco “pá” na parede. Disse que danado é aquilo? Ai, ela disse que vinham tudo

na porta, disse que era, era eu. Mais Dona Zefinha, a senhora qué matá a menina? Eu

quero matá. Ela era ruim, nunca vi.

Era dessa cor ela era. Alta que não passava aqui não. Mai a bicha era ruim. Deus sabe que

eu to falando. Minha fia mai essa veia era ruim, ela pisava na guela. Ela mesmo dizia:

“Eu piso, enquanto eu pudé, eu to batendo”. Era, quando não aguentasse mais, cansada,

é que ela soltava. Quando tava assim no chão, embolando assim, assim ela deixava. Era,

essa veia era muito ruim. Era muito ruim mesmo. Tanto que as menina diziam: - Mas

Dona Zefinha a senhora vai matá a menina desse jeito Dona Zefinha!

E ela: - Eu quero matá mesmo. – Faça isso não com a bichinha! O povo que tinha pena

de mim. - Faça isso não com a bichinha! Com certeza eles tavam falando: - “Mais que

veia da gota Maria”. Ela ia matá se eu chegasse na porta.

Sabe porque isso? Tu sabê, não tem a asa da galinha? A asa da galinha tem duas partes.

Tem um pedacinho aqui e esse pedacinho aqui. E eu peguei três pedacinho pra cumê. Quê

eu tirei três pedacinho pra cume, ela viu do buraco. Tava olhado lá. Do jeito que eu tirei

aquele pedacinho ficô. Ficô virada num bicho. Por causo disso. Ela quase me matô. Só

não matô por causa Das Dores que chegô. E, reclamô com ela. Era ruim demais. Ai,

pronto, ai as menina, as minhas amiga tudo sabia. Maria sabe, Das Dores sabe, Cleusa

sabe. É a gente era vizinha pertinho. Eu morava assim como assim. Ali na pracinha. E ela

morava aqui. Era só umas casinha assim.

Porque que a senhora não ia morar com suas amigas?

E quem é que pegava! Todo mundo tinha medo dela. Ninguém conversava com a veia,

ninguém falava com ela. Ninguém ia lá, em casa não viu? Acho que tinha era medo dela.

Tinha amizade com ela não. Não falava nem arengava com ela nem nada não, mai era pra

ficá cada um no seu canto.

A órfã com febre amarela

Ah! Pois, vou te contá outra coisa, outra conversa que aconteceu comigo. Eu quando tava

com 7 ano. Quando meu avô morreu fiquei com 6 ano.

Ai, se mudou-se da Palma, viemo pra Pedra Fina. Cheguei lá eu tive uma febre, uma

Febre Amarela. Meu cabelo caiu todinho que ficô assim ó. Passô a nascê um pé de capim.

Meu cabelo era bom depois nasceu assim ó.

Aí minha fia, eu ia trabalhá todo dia. Pegava 6 hora da manhã no sol, só largava de meio

dia pra almoçá e voltava, só largava de noite. E o povo não me via, não me via né. E

perguntava assim: - Ô seu João cadê aquela menina? Ela foi simbora pra algum canto?

Ai, ele disse: - Ela tá doente. Olha, óia, olha eu tive uma febre, essa Febre Amarela, eu

passei 15 dia. Eu não me acordei, eu não comia, eu não bebia, não fazia nada, que ninguém

me via, nada. E era no chão viu? Numa esteira veia, um negócio ai, uma esteira veia

parece. Ela ia sai de casa, ela chegava. Ela se acordava de manhã, comia alguma coisa,

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bebia café e ia pro serviço, chegava meio dia comia e ia simbora. Botava no prato só, eu,

sem falá, eu não via nada.

Fiquei, faz de conta que eu morri e ninguém via sabe? Ninguém sabia como eu tava, nem

via nada.

Ficava sozinha e sem tomar remédio?

Não, sem nada. O meu cabelo era aqui ói, quando meu pai-avô morreu eu não tinha o

cabelo bem grande. O meu cabelo virô uma tábua, não podia penteá, não podeia penteá,

ai, o meu cabelo caiu todinho. Ela disse que foi varrê a casa, ai, disse que viu aquela roda

preta. Ela disse: - Misericórdia! Uma serpente chega perto de Maria. No escuro ela viu,

pensava que era uma cobra enorme. Ai, que ela ascendeu o candiêro e foi repará era o

meu cabelo. Que tinha caído todinho. E eu no chão, na frieza no chão. Ai, só sei que

quando as mulhere perguntaram né? A menina disse assim: - Ô seu João cadê aquela

mulher, que eu não vi aquela menina, aquela sua menina que vai lá vê vocês? – Ela tá

doente. – Sim, tá doente de quê? – Sei não, tá com uma febre. – Será que a gente podia

vê ela? Ninguém ia lá em casa não! - A gente podia í vê ela? A gente podia olhá pra ela.

Ai, ele saiu batendo na enxada já na boquinha da noite. Disse: - Ô mãe, ai, tem umas

mulher que qué vê Maria. Ai, ela chego na porta mandô as mulher entrá. E a mulher. -

Mas que quarto é que ela tá? Um quarto escuro! Era um candiêro de gás e só na sala.

Onde eu estava o quarto não tinha luz, nada de luz. Era aquela escuridão, dava pra vê de

jeito nenhum. Que nem um bicho! Ai, a mulher: - Onde é que tá a menina Dona Zefa? Eu

queria vê ela. Disse: - Ela tá ali dentro. Ai, quando as menina chegaram na porta disse pra

ela, que não podia chegá, não puderam chegá na porta do quarto. A febre tão grande que

eu tava. E eu não chorava, não sei quantos dia fazia. E a mulher assim disse: - Meu Deus!

Essa menina vai morrê. Vocês tão dando o que a ela? – Nada não. Disse: - Ó seu João, vá

lá na venda de fulano de tal, seu Bihato, um nome parece um nome assim. - Compre uns

comprimido que tem lá e mande fazê um chá não sei de quê, e dê a essa menina. Essa

menina vai morrê. Diz que as menina saíram tudo chorando minha fia. Diz que as menina

choravam feito uma doida disse. Porque que não disse pra eles né. Disse: - Meu Deus,

mas tu visse aquela menina? Aquela menina vai morrê ali. Vão achá a menina morta. Foi.

Ai, foi que ele foi e comprô esse remédio. Porque essas mulher mandaram. Ai, ele foi de

noite, comprô esse remédio e mando pra fazê esse chá. Que era o que as mulhere deram

uns mato. Disse: - Esse mato aqui ói. Faça o chá e dê com esse comprimido a ela. Que

essa menina vai morrê! Ai, foi que deram. Eu passei 15 dias sem sabê onde é que eu tava

minha fia. Quando foi com 15 dia eu tornei, foi que eu me acordei. Eu tava da cor com

aquele amarelidão assim! Assim ó, Ave Maria e fraqueza né, sem cumê. Ai, eu me acordei

e era um frio tão grande, minha fia! Meio dia em ponto e ia pro sol. As menina dizia: -

Minha fia saia daí que você vai morrê nesse sol quente cunzinhada. Quanto sol mais

quente tava mais eu gostava de ficá. Ai, só assim minha fia que foi dando, que foi dando,

que foi dando e eu melhorei. Antes de eu ficá boa eu dei um jeito e fui pro roçado. Ai, um

dia encontrei essas duas mulher. Disse: - Tú tás melhor fia? Tu tás melhor Maria? Eu

digo: - Amarela minha fia, veia sem uma pinga de sangue. Ela disse: - Mas menina, tu tá

é morta mesmo. E tu tá trabalhando! Eu disse: - Tô. Mas triste de quem não tem mãe e as

mulher chorando. Disse: - Minha fia, triste quem não tem mãe, eu vi a tua situação. Você

só tá melhor, primeiramente em Deus, e eu que ensinei o remédio ao seu tio viu? Se não

você hoje tava morta. Que eles não são gente nem de dá um comprimido a vocês viu, a

você. Eu calada. Ai pronto, fiquei boa. Quando melhorei uma coisinha já fui trabalhá, eu

tava trabalhando, o sol tava pingando assim, aquele suor de tanta fraqueza. Ai, minha vida

foi assim até a uns 10 ano pra cá. É o que eu digo a você, é quando eu to vivendo e to

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feliz de 10 anos pra cá, mas de 10 anos pra trás, até 6 anos porque era com meu avô,

depois do meu avô acabou-se a minha vida, era assim minha vida. Era assim. De

sofrimento. Se fosse fazê uma história da minha, um livro da minha história, não tinha

papel, acho, que desse. Tem muita história, tudo história ruim. Ai pronto. As minhas

amiga tudo sabe disso, da minha vida.

Maria quejero, não presenciô, não conheceu isso ai não. Porque quando eu conheci ela

tinha saído de casa já. Mas Das Dores ainda presenciô, que a gente era.

Sua amiga Das Dores conheceu sua madrasta-avó?

Conheceu essa veia, e conheceu o meu tio. Ela conheceu. Meu tio era pessoa boa sabe.

Só que comandado pela mãe, só fazia o que os pais queria. Não desobedecia de jeito

nenhum. E ele é que nem esse povo, que nem bicho, caboclo bravo do mato. Sem muita

aproximação das pessoa, ele era na deles. Então eu me criei assim. Me criei desse jeito.

Nas casa que eu morava também era do mesmo jeito. As pessoa primeiro eram pessoa de

respeito. Eu via assim, eu me criei assim. Em casa, me criei com essa veia assim. Sem

conversá, com ninguém, não sabia de nada, ninguém falava nada pra mim. Então. Sem

estuda, sem sabê o que que era certo, o que que era errado. Vivia assim, eu digo assim: -

Eu vivi como Deus criou batata. Batata e eu nasci lá e Deus manda a chuva ela se cria. E

assim fui eu.

E a senhora está aprendendo outras coisas agora?

To aprendendo agora depois de véia. Que depois de veia não acontece nada. Tem que i

aprendendo de pequena, de pouco né, que é pra quando tive véia já sabê. É de vida.

Então, eu to sentindo essa alegria, essa felicidade como já falei através dos meus filho,

então, Não sabia. Eu não tinha o direito de chegá, de brincá com uma amiga minha, nem

conversá com uma pessoa nem nada. Era eu só, era eu sozinha. Pronto, me criei assim

meio bicho do mato. Não falava com as pessoa. Tinha vergonha, de perguntá pras pessoa,

chegava perto mas não falava não. Não sabia nem o que que eu ia dizê. É, ficava logo

infiada (risos).