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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO JOHN DEWEY E A MEDIAÇÃO SOCIAL DA ESCOLA PÚBLICA NO FINAL DO SÉCULO XIX E NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX NOS ESTADOS UNIDOS CLAUDEMIR GALIANI MARINGÁ 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

REA DE CONCENTRAO: EDUCAO

JOHN DEWEY E A MEDIAO SOCIAL DA ESCOLA PBLICA NO FINAL DO SCULO XIX E NAS PRIMEIRAS

DCADAS DO SCULO XX NOS ESTADOS UNIDOS

CLAUDEMIR GALIANI

MARING 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

REA DE CONCENTRAO: EDUCAO

JOHN DEWEY E A MEDIAO SOCIAL DA ESCOLA PBLICA NO FINAL DO SCULO XIX E NAS PRIMEIRAS

DCADAS DO SCULO XX NOS ESTADOS UNIDOS

Tese apresentada por CLAUDEMIR GALIANI, para a Defesa Pblica, ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Estadual de Maring, como requisito para a obteno do ttulo de Doutor em Educao. rea de Concentrao: EDUCAO. Orientadora: Profa. Dra.: MARIA CRISTINA GOMES MACHADO

MARING 2014

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JOHN DEWEY E A MEDIAO SOCIAL DA ESCOLA PBLICA NO FINAL DO SCULO XIX E NAS PRIMEIRAS

DCADAS DO SCULO XX NOS ESTADOS UNIDOS

CLAUDEMIR GALIANI

BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado UEM Maring-PR Prof. Dr. Joo Luiz Gasparin UEM Maring-PR Prof. Dr. Jos Joaquim Pereira Melo UEM Maring-PR Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha UNESP Ribeiro Preto-SP Prof. Dra. Ireni Marilene Zago Figueiredo UNIOESTE Cascavel-PR.

Data de Aprovao

07 de Novembro de 2014

4

Dedico este trabalho ao meu filho Felipe, aos meus familiares e a todos os professores da Rede Pblica, em especial aos professores do CEEBJA Prof. Manoel R. da Silva, de Maring.

5

AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, pelo incentivo.

Aos colegas de trabalho do CEEBJA Prof. Manoel R. da Silva de Maring.

Secretaria de Educao do Estado do Paran.

Ao Secretrio de Educao do Estado do Paran Flvio Arns.

Ao Ncleo Regional de Educao de Maring.

s professoras Thais Andreia Broggio e Tatiane Motta da Escola de Ingls e

Espanhol (PBF), pela reviso da traduo.

s acadmicas Jssica Mendona Dias e Gabriela Bruschini Grecca da

UEM, pela traduo.

Aos professores que ministraram aulas no curso de Doutorado: Analete

Regina Schelbauer, Angela Mara de Barros Lara, Clio Juvenal Costa, Czar de

Alencar Arnaut de Toledo, Jos Joaquim Pereira Melo, Mario Luiz Neves de

Azevedo e Terezinha Oliveira.

A todos os professores do Programa de Ps-Graduao e do Colegiado.

Ao Hugo Alex da Silva e Marcia Galvo da Motta Lima da Secretaria do

PPE-UEM.

Maria de Lourdes Longhini Trevisan, pelo apoio, sugestes e reviso

tcnica.

minha orientadora Dra. Maria Cristina Gomes Machado, que sempre

esteve ao meu lado, incentivando, corrigindo, sugerindo, mesmo que eu utilize um

dicionrio para agradecimento, as minhas palavras sero insuficientes para

descrever o meu sentimento de gratido.

6

[...] S h uma concluso que a experincia humana inegavelmente confirma a de que fins democrticos requerem mtodos democrticos para sua realizao (DEWEY, 1970, p. 260).

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GALIANI, Claudemir. JOHN DEWEY E A MEDIAO SOCIAL DA ESCOLA PBLICA NO FINAL DO SCULO XIX E NAS PRIMEIRAS DCADAS DO SCULO XX NOS ESTADOS UNIDOS. 210p. Tese para defesa pblica no Programa de Ps-Graduao em Educao, na rea de Fundamentos da Educao Universidade Estadual de Maring. Orientadora: Maria Cristina Gomes Machado. Maring, PR, 2014.

RESUMO Esta pesquisa analisa as formulaes de John Dewey (1859-1952) e as suas propostas metodolgicas para a educao no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX nos Estados Unidos. O pressuposto metodolgico que norteia esta anlise de que a educao, inserida nas mudanas das diferentes etapas de produo e troca capitalista, e produtora de contradies sociais, assume formas diferentes na organizao, metodologia e procedimentos didticos escolares. Compreende-se que este autor, diante das contradies da sociedade burguesa, expressa o seu inconformismo e prope uma mediao entre a educao escolar e a sociedade em contnuo processo de alterao nas formas de produo e reproduo do capital, orientada pelos mtodos fordistas, essencialmente mecnicos, em detrimento dos valores e aptides humanas. A mediao proposta por Dewey consiste em minimizar os conflitos e lutas sociais, assegurando os pressupostos de igualdade e de liberdade, delegando educao escolar uma responsabilidade na formao de um sentimento democrtico, a fim de assegurar o equilbrio social na distribuio e uso da produo material e moral da sociedade. A mediao, proposta via educao por ele, privilegia atividades de cooperao, solidariedade e atende aos interesses pblicos e coletivos, opondo-se aos interesses privados e individuais. Pela via democrtica, ensinada a partir do ambiente escolar, intenciona conciliar os interesses divergentes entre as classes antagnicas: burguesia e proletariado, sem provocar rupturas na hierarquia social. Para isto, props que a escola fosse uma sociedade em miniatura, com a finalidade de atender aos interesses mais amplos e sociais em um ambiente de interao social, convertendo-a em um ambiente experimental, um laboratrio da vida social. Todavia as proposies deweyanas, ao visarem a uma minimizao do conflito histrico dual e antagnico da burguesia e da classe proletria e com a crena de que a educao democrtica propiciaria uma unidade pacfica capaz de pr fim luta de classes essencialmente econmica, permitem questionamentos e novas possibilidades de anlises e interpretaes sobre o autor. Nesta tese, procurou-se devolver a historicidade s formulaes deweyanas, retirando deste autor determinados slogans otimistas ou pessimistas, atribudos por diferentes intrpretes. Entende-se que John Dewey foi um autor que sintetizou e enfatizou a educao escolar diante das contradies sociais e, portanto, um homem de seu tempo. As suas formulaes no se caracterizam como fruto de uma genialidade ou de um visionarismo supra histrico, mas correspondem s necessidades impostas pelas formas de organizao da produo capitalista na sua fase de desenvolvimento mecnico e tecnolgico. Palavras-chave: Educao; Histria da Educao; Escola Pblica; John Dewey.

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Galiani, Claudemir. JOHN DEWEY AND THE SOCIAL MEDIATION OF PUBLIC SCHOOL AT THE END OF THE NINETEENTH CENTURY AND THE FIRST DECADES OF THE TWENTIETH CENTURY IN THE UNITED STATES. 210p. Thesis for public defense in the Post-Graduate Education in the Foundations of Education area - State University of Maring. Guiding: Maria Cristina Gomes Machado. Maringa, PR, 2014.

ABSTRACT

This research analyzes the formulations of John Dewey (1859-1952) and its methodological proposals for education in the late nineteenth century and the first decades of the twentieth century in the United States. The methodological presupposition that guides this analysis is that education, inserted in the changes of the different phases of capitalist production and exchange, producer of social contradictions, takes different forms in the organization, teaching methodology and school procedures. It is understood that this author, given the contradictions of bourgeois society, expressed his discontent and he proposes a mediation between the school education and society in a continuous process of change in forms of production and reproduction of capital, driven by fordist methods, essentially mechanics, in detriment of the human values and skills. The mediation proposed by Dewey is to minimize conflicts and social struggles, ensuring the assumptions of equality and freedom, delegating responsibility for school education in the formation of a democratic sense, to ensure social balance in the distribution and use of material production and morals of society. The mediation via education, proposed by him, favors cooperation, solidarity activities and meet the public and collective interests, as opposed to private and individual interests. Through democratic ways, taught from the school environment, it intends to reconcile divergent interests between the antagonistic classes : bourgeoisie and proletariat, without causing disruptions in the social hierarchy. For this, he proposed that the school was a miniature society, in order to meet broader social and in an environment of social interaction interests, converting it into an experimental environment, a laboratory of social life. However the deweyanas propositions, in targeting the minimization of the dual and antagonistic historical conflict from the bourgeoisie and the working class and the belief that democratic education would provide a peaceful unit capable of ending the economic essence of class struggle, and allow questions new possibilities for analysis and interpretations of the author. In this thesis, we tried to return to the historicity deweyanas formulations, removing this author particular optimistic or pessimistic slogans, assigned by different interpreters. It understood that John Dewey was an author who synthesized and emphasized on education of social contradictions and therefore is a man of his time. His formulations are not characterized as the result of a genius or a supra historical visionarismo, but satisfy the requirements imposed by the forms of organization of capitalist production in its mechanical and technological phases of development.

Keywords: Education; History of Education; Public school; John Dewey.

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SUMRIO

1. INTRODUO ............................................................................................ 11

2. JOHN DEWEY E AS DIFERENTES INTERPRETAES CONSTRUDAS PELA LITERATURA EDUCACIONAL BRASILEIRA.......

21

2.1. John Dewey: aspectos biogrficos e produo cultural e cientfica..........................................................................................................

22

2.2. A recepo e as diferentes interpretaes das propostas educacionais deweyanas no Brasil...................................................................................... 2.2.1. O carter antirrevolucionrio e reformista das formulaes deweyanas......................................................................................................

38 44

2.2.2. O carter progressista e modernizador das formulaes deweyanas.....................................................................................................

50

2.2.3. O carter conciliador e pragmtico das formulaes deweyanas........ 2.3. Consideraes finais: o carter mediador das formulaes deweyanas.................................................................................................... 3. A CONSOLIDAO DA CONCEPO LIBERAL NA SOCIEDADE ESTADUNIDENSE NO SCULO XIX E INCIO DO SCULO XX.................................................................................................................. 3.1. Os pressupostos liberais que orientaram a construo da nacionalidade estadunidense e suas respectivas contradies..............................................

52 57 62 64

3.2. A sociedade e a democracia americana no sculo XIX sob o olhar de Tocqueville....................................................................................................

77

3.3. A casa dividida a sociedade americana em meados do sculo XIX..................................................................................................................

81

3.4. A casa dividida entre burgueses X proletariado o desenvolvimento industrial e os seus efeitos sobre a sociedade americana no sculo XIX.................................................................................................................. 3.5. A casa unificada a sociedade americana no final do sculo XIX e incio do sculo XX.........................................................................................

84 90

3.6. Consideraes finais............................................................................... 99

10

4. A CONSTRUO E A CONSOLIDAO DO SISTEMA DE ENSINO PBLICO NOS ESTADOS UNIDOS NO SCULO XIX................................

102

4.1. Os precursores da educao pblica nacional estadunidense no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX............................................................

104

4.2. Horace Mann e o esforo para a implantao da escola comum pblica americana......................................................................................................

110

4.2.1. Consideraes pontuais a respeito dos Relatrios Anuais sobre a educao na gesto de Horace Mann...........................................................

120

4.3. A consolidao do sistema educacional americano: Henry Barnard e a mediao conciliadora entre as divergncias pblicas e privadas ................

126

4.3.1. Henry Barnard e a defesa do mtodo de ensino pestalozziano...........

135

4.4 Consideraes Finais...............................................................................

141

5. AS PROPOSTAS EDUCACIONAIS MEDIADORAS DEWEYANAS E A SUA FUNO MINIMIZADORA DAS DESIGUALDADES SOCIAIS............

146

5.1. John Dewey: entre o trabalho mecanizado e fordista e a formao humanista.......................................................................................................

151

5.2. Dewey, Pestalozzi e Froebel: convergncias e divergncias..................

158

5.3. O mtodo instrucional herbartiano e as objees deweyanas.................

167

5.4. A metodologia de ensino proposta por Dewey........................................

176

5.5. Consideraes finais .............................................................................

182

CONSIDERAES FINAIS .......................................................................... 189 REFERNCIAS...............................................................................................

202

11

1. INTRODUO

Esta tese tem como objeto de investigao a funo social da educao

teorizada por John Dewey (1859-1952) no perodo delimitado entre o final do

sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX nos Estados Unidos.

O projeto de pesquisa, apresentado Universidade Estadual de Maring,

tinha como propsito inicial compreender a funo social da educao teorizada

por John Dewey (1859-1952), identificando o elo articulador entre s suas

formulaes metodolgicas e as mudanas sociais que se processavam nos

Estados Unidos no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX.

O interesse por este tema est relacionado a uma inquietao pessoal,

como docente da educao bsica na rede pblica de ensino do Estado do

Paran, pois acredito que a incorporao de novas tecnologias na sociedade

interferem diretamente o processo educativo ocasionando por um lado novas

possibilidades de aprendizagem, modificaes metodolgicas, novas formas de

aquisio e circulao de informaes, e, por outro, ocasiona uma dependncia

naturalizada s pequenas mquinas de uso pessoal (notebook, smartphone,

celulares) acentuando aes individualizadas configuradas em um mundo virtual

que em alguns casos substituem o mundo real, construindo uma dilemtica

relao entre os seres humanos e a mquina, impondo novos padres culturais

na sociedade. Ao deparar com John Dewey, foi possvel perceber que este autor

tinha um posicionamento de incoformismo diante da sociedade de seu tempo

relacionado a esse processo de fetichizao da mquina e des-humanizao do

homem, condio esta que levou ao autor propor mudanas metodolgicas

significativas para o processo educativo.

No decorrer da pesquisa, observou-se que o autor explicitava divergncias

diante dos pressupostos liberais burgueses que norteavam a sua sociedade e as

suas propostas metodolgicas para o processo educativo tinha um

direcionamento mais amplo e no estava restrita ao ambiente escolar. Para

compreender o autor e a educao neste perodo, foi necessario tomar como

base a sociedade em que estavam situados. Deste modo constatou-se que as

suas formulaes estavam articuladas s condies materiais existentes na

sociedade, descartando-se algumas premissas pr-estabelecidas nas

12

interpretaes didticas produzidas sobre este autor de que suas formulaes

eram frutos de uma genialidade pessoal, visionria e proftica. Bem como no se

constituiam como propulsoras de mudanas sociais revolucionrias, visto que no

ocasionam rupturas com o modo de produo do capital e no proporciona

superao das contradies da sociedade burguesa.

Sob o pressuposto de que o modo de produo do capital no esttico e

possui uma lgica propulsora de contradies, constatou-se que a cada mudana

que ocorria nas relaes de produo, reproduo e troca na sociedade norte-

americana, impulsionava alteraes e mudanas na organizao escolar nos seus

aspectos fsicos e pedaggicos. O entendimento de que as formulaes

metodolgicas deweyanas expressam concomitantemente os antagonismos

propiciados pelo desenvolvimento econmico que se processavam em seu pas e

permitem uma indagao pertinente. possvel asseverar que ele formulou e

sistematizou uma proposta educacional que contm, em sua essncia, a sntese

de um processo histrico que no se ope ao desenvolvimento e ao progresso

material, guiado pelo capitalismo, no entanto favorvel distribuio equitativa

dos bens culturais e materiais?

Para responder a esta indagao fez-se necessrio um estudo sobre o

itinerrio liberal vigente nos Estados Unidos no sculo XIX e amplamente criticado

pelo autor. Destaca-se a propagao de um iderio progressista de defesa do ser

humano, sob a crena da razo e da capacidade de o homem construir a sua

prpria histria, construir os seus projetos e empreendimentos pessoais, sua

autonomia, sua liberdade. Entretanto a estratificao social fundada na

desigualdade econmica, impedia a participao na vida social ou simplesmente

reduzia a participao democrtica de todas as classes sociais e naturalizava a

pobreza e a misria como decorrentes de uma seleo natural. Este lado

reacionrio da burguesia tomou forma, entretanto revestido da institucionalizao

cada vez mais requintada do Estado.

Assim, a tarefa de historicizar no simples, em funo da prpria

complexidade e do carter contraditrio da sociedade burguesa em que Dewey

estava inserido. Por esta razo, optou-se por um mtodo de anlise

fundamentado na concepo de que a produo, e com ela a troca de produtos,

a base de sustentao de toda a ordem social e o modo de produo material

13

determina as relaes de classe e toda a produo da vida social. Conforme

esclarecem Marx e Engels (1993, p. 37-38),

A moral, a religio, a metafsica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de conscincia que a elas correspondem, perdem toda a aparncia de autonomia. No tem histria, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produo material e seu intercmbio material, transformam sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar. No a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia. Na primeira maneira de considerar as coisas, parte-se da conscincia como do prprio indivduo vivo; na segunda, que a que corresponde vida real, parte-se dos prprios indivduos reais e vivos, e se considera a conscincia unicamente como sua conscincia.

Com base neste pressuposto, considera-se que as relaes de produo e

reproduo do capital determinam as relaes de classe e a organizao da vida

social em um formato complexo proporcionando um entrelaamento entre os

aspectos polticos e culturais simultneos. Todavia desvelar um carter histrico

s formulaes deweyanas requer, necessariamente, uma compreenso das

mltiplas relaes construdas no processo histrico, no sendo possvel tal

compreenso fundamentada em um projeto pessoal, ou como afirma Engels: [...]

as transformaes sociais e todas as revolues polticas no devem ser

procuradas nas cabeas dos homens nem na ideia de que eles faam da verdade

eterna, mas nas transformaes operadas no modo de produo e de troca

(1981, p. 54).

oportuno lembrar que ser liberal, no incio do sculo XIX, significava ser

revolucionrio, ser oposio a uma ordem pr-estabelecida sob a imobilidade de

classes sociais e sob o princpio da obedincia passiva s formas de governo, s

instituies sociais religiosas e econmicas. Porm, no final do sculo XIX,

assumiu outra conotao ao enfatizar a igualdade como premissa fundamental

para a produo social do capital, via diviso social do trabalho que produziria a

riqueza, mas no se apropriavam dela.

Acrescenta-se nesta compreenso, as diversas etapas de desenvolvimento

do capitalismo nos Estados Unidos, iniciando-se pela fase da produo

manufatureira e agro-industrial que exigia tarefas complexas manuais e mentais

produo mecanizada fordista, que exigia tarefas simplificadas e repetitivas em

14

conformidade ao ritmo da mquina. Por esta razo, faz-se necessrio conhecer

os eventos que marcaram a histria dos Estados Unidos e os seus respectivos

desdobramentos histricos, salientando que a transio de um sculo ao outro

no contm uma marca revolucionria e nem tampouco caractersticas de

rupturas econmicas neste pas. Ocorriam alteraes nas formas de produo de

massa, impulsionadas pela mecanizao fordista, e que consolidaram um modelo

econmico que projetou a nao norte-americana em um mercado mundial

altamente competitivo, e que, portanto, requeria novos meios de produo e fora

de trabalho especializada e sintonizada ao ritmo da mquina.

Quanto s propostas pedaggicas froebeliana e herbartiana vigentes no

pas, que cumpriam uma funo de ajustamento individual s exigncias

econmicas e sociais e, por isto, eram coadjuvantes de um processo de

manuteno e perpetuao da hierarquizao de classes, entraram em um ciclo

de indefinies diante das alteraes no processo de produo. Seria, entretanto,

possvel afirmar, categoricamente, que elas se tornaram obsoletas?

Compreende-se que John Dewey situa-se num contexto transicional de

amplas mudanas econmicas e sociais, mas que no so caracterizadas por

rupturas imediatas na sociedade. Diante dos antagonismos da sociedade

burguesa, ele expressa o seu inconformismo e prope uma mediao com o

intuito de minimizar as contradies existentes, convertendo a educao em um

instrumento crtico de mediao entre as relaes de produo e reproduo do

capital, essencialmente mecnicas, e a formao humana. A mediao que

prope consiste em assegurar os pressupostos de igualdade e de liberdade e

aponta a educao como principal meio para a sua efetivao, sobretudo na

conduo de uma sociedade democrtica e na democratizao do progresso

material da sociedade.

E por considerar que as suas propostas educacionais foram sistematizadas

na tentativa de equacionar e minimizar o acirramento de classes formulou-se

alguns questionamentos que nortearam esta anlise, tais como: Em que moldes

Dewey prope a mediao entre a educao escolar e a sociedade em contnuo

processo de mudana? A mediao proposta pelo autor est restrita ao processo

educativo nos seus aspectos metodolgicos ou envolve outra concepo de

homem, sociedade e educao? As concepes definidas pelo autor de

15

democracia, liberdade social e educao so suficientes para minimizar as

contradies burguesas? Como sua obra vem sendo estudada e interpretada no

Brasil?

John Dewey situa-se entre aqueles autores interpretados pelos vrios

campos do saber, tais como filosofia, lgica, tica, pedagogia, psicologia e

sociologia. Recebeu diferentes denominaes, como: defensor de uma

pedagogia infantil, pai do ativismo pedaggico, fundador da educao

progressista, pioneiro da educao reflexiva, pioneiro da escola nova,

revolucionrio e antirrevolucionrio, pai do learning by doing e da escola

progressista, entre outras denominaes.

importante salientar que os slogans, criados para facilitar a compreenso

de determinadas propostas e formulaes, nem sempre cumprem os objetivos

pelos quais foram criados, sendo comum ocasionarem uma reduo

epistemolgica, o caso de John Dewey que recebeu vrios slogans

progressistas. Na opinio de Scheffler (1974, p. 48), [...] os slogans progressistas

foram, cada vez mais, assumindo uma vida prpria. E, em muitos casos,

propiciam uma imagem simplificada, ocasionando o seu deslocamento do

contexto histrico. Inclui-se neste universo de enquadramentos a literatura

educacional, traduzida na lngua portuguesa e a produzida no Brasil sobre John

Dewey.

As interpretaes das propostas educacionais deweyanas no mbito

didtico, destinado formao pedaggica de professores no Brasil, em muitos

casos, satisfazem as exigncias e investigaes acadmicas, facilitam o

entendimento dos leitores, em sua maioria acadmicos de cursos de licenciatura

com formao voltada para atuar nas sries iniciais e finais do ensino

fundamental e ensino mdio, cumprindo apenas uma funo tecnicamente

didtica correta. Entretanto, em funo das exigncias editoriais ou decorrentes

da prpria concepo dos intrpretes, essas leituras aligeiram a compreenso de

suas ideias e, em determinadas situaes, ocultam ou invertem a historicizao

de suas formulaes pedaggicas, propiciando uma anlise reducionista ou

fragmentria deste autor, ou como alerta Abreu (1968, p. 13), [...] o grande

infortnio de Dewey que ningum fora mais louvado e contestado e menos lido

do que ele.

16

Por considerar John Dewey uma importante referncia na histria da

educao, recorreu-se leitura e interpretao das produes escritas por este

autor no seu idioma original e nas suas respectivas tradues feitas no Brasil,

com nfase em algumas produes entre elas: The School and Society 1900,

The child and the curriculum 1901, Democracy and Education1- 1916, Liberalism

and Social Action 1935, Experience and Education 1936, Freedom and

Culture 1939. Alm das citadas, este autor possui uma vasta produo escrita e

publicada em vrios idiomas. O conjunto de sua produo escrita foi publicado em

1996 pela Intelex Corporation, sob a coordenao de Barbara Levine, na forma de

CD-ROM, intitulado Works about John Dewey, 1886-1995, facilitando esta

pesquisa. Alm das obras deste autor, foram utilizados, para compreender o

processo de construo da educao pblica norte-americana, os relatrios

oficiais de Amoy Dwight Mayo (1823-1907), publicados no documento Report of

the Commissioner of education for the year 1896-1897, vol. 1 e 22. As obras de

Elwood Patterson Cubberley: Public education in the United States (1919) e The

history of education vol. 1 e 2 (1920), embora no se caracterizem como fontes

primrias, foram estudadas por se considerar uma das primeiras sistematizaes

didticas dos Estados Unidos e porque so contemporneas a John Dewey e

fazem vrias referncias a este educador.

A produo literria deweyana evidencia uma educao centrada em um

sentimento democrtico, solidrio, cooperativo, com o intuito de promover ruptura

1 Essa obra foi traduzida em vrios idiomas: portugus, italiano, espanhol, russo, chins,

germnico e adaptada em outros inmeros idiomas.( THE CENTER FOR DEWEY STUDIES. Southern Illinois University at Carbondale. Disponvel em: . Acesso em: 2 jun. 2003. 2 Este documento composto de dois volumes e contm, na forma de relatrio, dados e

informaes estatsticas das escolas pblicas americanas em perodos que antecederam a 1898. O documento composto pelos relatrios de vrios Estados, sendo que, em cada Estado, o responsvel pelas informaes so os Secretrios de Educao ou Superintendentes. Neste documento, so apresentadas informaes sobre a educao e os sistemas educacionais em vrios pases do continente europeu, do continente asitico, africano e americano. Algumas pginas deste documento foram reservadas para descrever a atuao de educadores que lideraram movimentos em prol da educao pblica, entendidos pelos seus proponentes como pessoas que se destacaram na histria dos Estados Unidos. Foi editado e publicado oficialmente pelo Departamento Nacional de Educao no ano de 1898, contm um conjunto de relatrios minuciosos e abrangentes de todo o processo educacional no territrio norte-americano, incluindo alunos matriculados, nmero de professores, localizao e currculos. Investimentos e gastos das escolas, formas de administrao, anlises de material didtico, relatrios de superintendentes e diretores no setor educacional, enfim, bastante abrangente e, organizados anualmente, foram disponibilizados a toda a comunidade interessada. A traduo deste documento de responsabilidade de Claudemir Galiani, Jssica Mendona Dias e Gabriela Bruschini Grecca (UEM).

17

ante um ensino autoritrio, antidemocrtico e individualista, e sua percepo

diante das desigualdades sociais inserem este autor como uma importante

referncia na histria da educao do sculo XX. Apesar das divergentes

interpretaes, John Dewey citado em inmeros manuais de histria da

educao, filosofia, psicologia, pedagogia, didtica e outros destinados

formao de professores. Trata-se de um clssico e, parafraseando Calvino

(2007, p. 11), [...] um clssico um livro que nunca terminou de dizer aquilo que

tinha para dizer.

Esta tese estabeleceu como objetivo geral analisar os vnculos histricos

da teoria educacional e metodolgica proposta por Dewey ao definir uma nova

funo social para a educao escolar no contexto de acirramento das

desigualdades sociais impulsionadas pelo desenvolvimento da produo e

reproduo do capital. A anlise desdobrou-se em outros objetivos especficos

no menos importantes, tais como: apreender como a obra de John Dewey foi

interpretada pela literatura educacional didtica brasileira e fora do Brasil;

identificar os pressupostos liberais que nortearam o desenvolvimento econmico

dos Estados Unidos; historicizar a educao escolar e a escola pblica norte-

americana num contexto de mudanas nas etapas de produo do capital e

explicitar a proposta educacional deweyana diante das desigualdades sociais e

posicion-la como uma nova alternativa diante dos mtodos de Herbart e Froebel

vigentes nos Estados Unidos no final do sculo XIX e incio do sculo XX.

Para dar conta dos objetivos elencados, esta tese foi organizada em cinco

sees. A primeira seo refere-se a esta introduo.

Na segunda seo, so analisados os aspectos mais importantes da vida,

itinerrio profissional e produo terica de John Dewey, bem como as diferentes

interpretaes e posicionamentos dos comentadores de sua produo, cujas

obras esto impressas e disponibilizadas por editoras no mercado e que, apesar

de datas de publicao mais remotas, ainda circulam nos ambientes

educacionais. Para fins de exposio, estas interpretaes foram agrupadas em

trs concepes diferentes: educadores e intelectuais que consideram John

Dewey um proponente antirrevolucionrio, outro grupo que o considera

proponente de uma nova pedagogia de carter progressista e modernizador e,

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finalmente, um grupo que o considera proponente de uma educao conciliadora

e equalizadora das desigualdades sociais.

Os questionamentos que permeiam esta seo propem-se a evidenciar,

ante as contradies da produo material, social e cultural burguesa dos Estados

Unidos no final do sculo XIX e incio do sculo XX: Como John Dewey, em sua

produo cultural e cientfica, equacionou essas desigualdades? Em relao s

interpretaes sobre Dewey at o presente momento, possvel uma

interpretao diferente e que no esteja fragmentada e nem enquadrada em

slogans otimistas ou pessimistas?

Na terceira seo, apresentam-se as concepes de trabalho,

propriedade, liberdade, igualdade e democracia, relacionando-as s formulaes

pedaggicas deweyanas e porque nelas se explicitam com mais veemncia as

contradies dos ideais liberais do sculo XIX e incio do sculo XX.

Fundamentam-se no indivduo como gerador de riquezas pessoais e nacionais e

esto articuladas construo do sentimento de nacionalidade estadunidense e

perpassaram todo o sculo XIX. A oposio a esses pressupostos teorizada por

Karl Marx (1818-1883), Engels (1820-1895) e pelo prprio John Dewey que tece

vrias crticas ao liberalismo voluntarista e individualista.

Os questionamentos que permeiam esta seo esto relacionados as

concepes deweyanas de democracia, sociedade e educao e a sua oposio

ao liberalismo clssico no seu modo de entender, congelou-se no tempo e na

histria e no foi dada a devida importncia para os problemas sociais e ao

materialismo marxista que no seu modo de entender apresenta uma interpretao

reducionista da histria humana ao tomar como princpio motor da sociedade a

luta de classes.

Na quarta seo, analisam-se a construo e a consolidao do sistema de

ensino pblico nos Estados Unidos. Inicialmente, apresentam-se os

posicionamentos de Horace Mann (1796-1859) entre as dcadas de 1830 a 1850,

perodo em que predominou a produo manufatureira e agroindustrial, quando

se priorizava o trabalho manual. Nesta fase, Mann enfrentou a oposio de

lideranas liberais, que criaram vrios entraves para a implantao e expanso do

ensino pblico e favoreceram as iniciativas privadas de cunho religioso catlica,

calvinista, congregacional e denominacional. Em seguida, so elucidados os

19

posicionamentos de Henry Barnard (1811-1900), posterior Guerra Civil, perodo

em que a produo manufatureira iniciou um processo de mecanizao. Nesta

fase, Barnard, comprometido com os princpios liberais de sua poca, evidenciava

uma preocupao com os mtodos de aprendizagem, defendia o mtodo de

ensino pestalozziano e enfrentava oposies diante dos setores privados e

pblico que passaram a reivindicar do sistema uma atuao direcionada para a

formao de mo de obra especializada.

Os questionamentos que permeiam esta seo esto relacionados ao

modo de produo na sua fase manufatureira e industrial e como este modo de

produo se imps sobre a sociedade e ocasionou nos primrdios da educao

pblica a insero de mtodos pedaggicos alinhados a esta etapa de produo

capitalista.

Na quinta seo, so analisadas as propostas e formulaes deweyanas

com o intuito de compreender como este autor equacionou e definiu a funo

social da educao diante das mudanas e alteraes sociais que se

processavam intensamente nos Estados Unidos no perodo em estudo. No mbito

econmico, as mudanas foram impulsionadas pela introduo do trabalho

mecanizado, orientado pelos mtodos fordista e taylorista, que no exigiam da

classe operria uma contnua qualificao, requeria outrossim, algumas

habilidades tcnicas e formas de comportamentos solidrios e cooperativos. No

mbito poltico, o contexto mundial apontou a emergncia de Estados totalitrios

nacionalistas que colocavam em risco a sobrevivncia dos regimes democrticos.

No mbito social, as organizaes operrias internacionalizavam-se e fortaleciam-

se com a mesma intensidade que o capitalismo. No mbito pedaggico, as

formulaes pedaggicas froebelianas e herbartianas, em proeminncia nos

Estados Unidos, contrastavam-se simultaneamente, assim como a organizao

da sociedade. A pedagogia herbartiana enfatizava a igualdade na transmisso de

contedos, mas no assegurava a mesma igualdade da aprendizagem e de modo

inverso a pedagogia froebeliana enfatizava as diferenas individuais e as aptides

naturais individuais e mantinha assegurado no final do processo essas diferenas

individuais. A mediao deweyana em oposio a esses modelos pedaggicos

a de enfatizar simultaneamente as aptides e diferenas individuais

20

disponibilizadas para as necessidades sociais e coletivas, razo pelo qual prope

atividades de cooperao e solidariedade.

Os questionamentos desta seo esto relacionados com as

desigualdades sociais percebidas e vivenciadas por Dewey em sua sociedade.

Diante dessas desigualdades, Dewey apresenta-se como proponente de uma

formulao pedaggica que contempla, mediante mtodos de ensino, o despertar

de um sentimento democrtico fundamentado na percepo, sensibilidade,

experincia, racionalidade, cooperao, solidariedade, voltados essencialmente

para a transformao social. Mas possvel creditar educao a formao de

uma conscincia transformadora sem que se alterem as bases materiais da

sociedade?

21

2. JOHN DEWEY E AS DIFERENTES INTERPRETAES CONSTRUDAS

PELA LITERATURA EDUCACIONAL BRASILEIRA

Esta seo faz uma reviso sobre as interpretaes contidas na literatura

educacional traduzidas para a lngua portuguesa e as produzidas no Brasil a

respeito de John Dewey e tem como objetivo identificar, por meio de anlises

sobre as propostas educacionais deweyanas, se os enquadramentos e os slogans

atribudos a este autor permitem uma compreenso do contexto histrico em que

suas formulaes educacionais foram produzidas.

A premissa inicial de que as interpretaes das propostas educacionais

deweyanas, por conterem um formato de apresentao didtica destinadas

formao pedaggica de professores no Brasil, em muitos casos, satisfazem as

exigncias e investigaes acadmicas, facilitam o entendimento dos leitores, em

sua maioria acadmicos de cursos de licenciaturas com formao voltada para

atuar nas sries iniciais e finais do ensino fundamental e mdio e, portanto,

cumprem uma funo tecnicamente didtica correta. Entretanto o uso de

determinados slogans, tais como: pioneiro e fundador da escola nova,

revolucionrio e anti-revolucionrio, pai do learning by doing e da escola

progressista, entre outros, propicia uma imagem simplificada de John Dewey e

ocasiona o seu deslocamento do contexto histrico, comprometendo a

historicizao de suas formulaes educacionais.

Com o intuito de estabelecer uma correspondncia entre as formulaes

deste autor e como ele foi compreendido nas diferentes interpretaes, organizou-

se esta seo em dois momentos. No primeiro, sero analisados aspectos mais

importantes da vida de John Dewey, desde seu itinerrio profissional sua

produo cultural e cientfica, com nfase sua interpretao e funo social

atribuda educao. Os questionamentos que permeiam esta anlise esto

relacionados s contradies da produo material, social e cultural burguesa dos

Estados Unidos no final do sculo XIX e incio do sculo XX e como John Dewey,

em sua produo cultural e cientfica, equacionou tais contradies. Em suas

formulaes, h o reconhecimento dessas contradies e expressam um carter

conformista ou de ruptura via educao?

22

No segundo momento, ser feita uma anlise de como John Dewey

interpretado na literatura educacional produzida no Brasil e fora dele e por que

essas interpretaes ocasionaram posicionamentos diferentes entre vrios

comentadores e educadores. Diante dos diversos posicionamentos e na tentativa

de responder se h outras formas de compreender John Dewey, diferente

daquela como foi interpretado na literatura educacional brasileira, recorreu-se

reviso de literatura com base em autores cujas obras esto impressas e

disponibilizadas por editoras no mercado e, mesmo com datas de publicaes

mais remotas, ainda circulam nos ambientes educacionais.

2.1. John Dewey: aspectos biogrficos e produo cultural e cientfica.

John Dewey nasceu no dia 20 de outubro de 1859, na cidade de

Burlington, no estado de Vermont, regio nordeste dos Estados Unidos. Cresceu

em uma pequena comunidade basicamente rural com uma populao em sua

maioria afiliada ao congregacionalismo. Este ambiente, na interpretao de

Amaral (1990, p.35), [...] exerceu fortes influncias em sua formao

democrtica, pois no havia nenhuma hierarquia que comandava o

relacionamento entre os membros de cada comunidade, isso revelava o carter

democrtico das mesmas. Na comunidade, frequentava constantemente a Hul

House.3 De acordo com a descrio de Wesep (1960, p. 231): A comunidade em

que Dewey conviveu em sua infncia conservava uma tradio de liberdade,

simplicidade, cortesia, assentada na ideia de que a vida coletiva deveria dar a

cada um a maior liberdade possvel de decidir sobre a sua vida particular.

O itinerrio4 acadmico e profissional de Dewey assinala a passagem por

diversas Universidades: Universidade de Johns Hopkins (1882-1883),

Universidade de Michigan (1884-1893), Universidade de Chicago (1894-1904) e

Universidade de Columbia (1905-1930). Os motivos das mudanas institucionais

estavam sempre relacionados com discordncias entre suas ideias e as de seus

3 Hul House era um estabelecimento social, um lugar no qual as pessoas de vrias crenas se

reuniam para discutir os mais diferentes assuntos em condies de igualdade. Ningum se interessava como cada um vivia fora dali, mas, uma vez ali dentro, interessava-se por viver juntos da melhor forma possvel (AMARAL, 1990, p. 46). 4 As informaes sobre seu itinerrio acadmico e profissional foram extradas da coletnea de

obras de John Dewey, publicadas pela Editora Abril em 1980 ( Coleo os Pensadores).

23

superiores. Aps 1930, Dewey continuou a proferir palestras e conferncias em

vrias instituies de ensino e continuou a escrever at s vsperas de sua morte

em Nova York no dia 01 de junho de 1952.

Alm de sua longa atuao profissional como educador, ele atuou em

defesa de vrias questes polticas5, tais como: direito dos negros, direito do voto

feminino e ampliao da escola pblica. No mbito educacional, defendeu a

transparncia na admisso de professores universitrios, profissionalizao da

mulher na educao, direito feminino de ocupar cargos de direo nas instituies

de ensino e direitos do educador. Em 1915, foi um dos fundadores da Associao

Americana de Professores Universitrios e, no ano seguinte, tornou-se membro

honorrio do primeiro Sindicato de Professores da cidade de Nova Iorque. Em

1920, participou do julgamento dos imigrantes italianos anarquistas Nicola Sacco

e Bartolomeo Vanzetti, posicionando-se contrrio condenao ( MONARCHA,

2009, P.40). Em 1933, foi um dos fundadores da Universidade-no-Exlio, para

estudantes perseguidos em pases com regimes totalitrios (JACOBY, 1990, p.

142). Em 1938, presidiu a Comisso Conjunta de Inqurito no julgamento de Leon

Trotski, inocentando-o contra as acusaes de Stalin. (CUNHA, 2001). Em 1941,

juntamente com Einstein e Whitehead, posicionou-se contrrio proibio de

Bertrand Russel de lecionar no City College de Nova York. Esse posicionamento

rendeu-lhe um processo na Suprema Corte dos Estados Unidos, sendo acusado,

inclusive, de esquerdista e subversivo (BUFFA; NOSELLA, 1997).

Em relao ao itinerrio filosfico de John Dewey, em um artigo recente,

Warde (2013) aponta as vrias influncias que marcaram a sua vida acadmica e

cientfica. Inicialmente, o seu pensamento filosfico foi marcado pela filosofia

germnica, mas, no decorrer de sua atuao, seguiu outras trajetrias. De acordo

com Warde (2013, p. 185), [...] John Dewey envereda com desenvoltura por

vrios caminhos tericos, mas parece portar uma ferramenta precisa de extrao

daquilo que lhe intelectualmente til e de subsequente dispensa da fonte de que

se nutriu.

5 As informaes sobre a atuao poltica e o itinerrio profissional de John Dewey foram extradas da THE ENCYCLOPEDIA AMERICANA. Vol 9, p.45. New York: Americana Corporation, 1972; THE NEW ENCYCLOPEDIA BRITANNICA. 15. ed. Vol. 4, p. 51-53, Chicago (Estados Unidos): Pan American and Universal Conventions Encyclopedia Britannica, 1993.

24

A teoria educacional de John Dewey foi objeto de experimento na Escola

Elementar Universitria, tambm conhecida como escola-laboratrio, criada pelo

Departamento de Educao da Universidade de Chicago em 1896. Esta escola

atendia a crianas entre 4 e 13 anos e intencionava redefinir uma nova funo

para a escola a partir da experincia. As crianas bem novas aprendiam conceitos

de fsica e biologia, presenciando os processos de preparo do lanche e das

refeies, feitos na prpria classe. Esta ligao entre ensino e prtica cotidiana foi

sua grande contribuio para a escola filosfica do Pragmatismo. Mas a iniciativa

fracassou aps trs anos.

Nesta escola, a sala de aula era um local no qual as crianas formavam

grupos, criavam planos e executavam suas atividades sob a orientao do

professor, que conduzia o aluno de acordo com a complexidade da sociedade,

orientando-o para a resoluo de problemas e dando-lhe a oportunidade de

aprender da forma mais natural possvel. O intuito era habilit-lo para que tivesse

conscincia e condies de enfrentar os obstculos encontrados. A metodologia

adotada procurava encontrar meios eficazes de aprender e ensinar, tendo o aluno

como centro da educao e agente ativo no processo de aprendizagem.

Acreditava que o impulso expressivo das crianas, o instinto artstico, emergia dos

instintos comunicativos e construtivos. O exemplo ilustrativo relacionado com o

trabalho txtil expressa esta premissa.

As crianas montaram um tear primitivo na oficina; aqui, o instinto construtivo foi estimulado. Depois, sentiram vontade de fazer algo com o tear, de criar algo. Tratava-se dum tear semelhante aos dos ndios, pelo que o professor lhes mostrou cobertores fabricados por estes. Cada criana fez um desenho baseado nos padres dos cobertores navajos, dentre os quais foi escolhido o que parecia mais adequado em causa. Os recursos tcnicos eram limitados, mas coube aos prprios alunos selecionar as cores e a forma final do produto. O exame do trabalho das crianas de doze anos revela que o fabrico do cobertor exigiu delas muita pacincia, meticulosidade e perseverana. Para alm de exibirem uma grande disciplina e o domnio de conhecimentos histricos e dos fundamentos da concepo tcnica, elas revelaram uma certa dose de esprito artstico, isto , a capacidade de transmitir corretamente uma ideia. (DEWEY, 2002, p. 48).

Ele defendia que a escola-laboratrio deveria estar voltada para alguns

princpios bsicos: desenvolver a solidariedade, integrar aluno e sociedade,

25

promover atividades que favorecessem a cooperao das crianas e formar o

cidado. Para efetivar tais princpios, os mtodos pedaggicos autoritrios foram

rejeitados. Conforme explicita Dewey (1971, p. 18), [...] a educao em uma

democracia deveria ser uma ferramenta que integrasse o indivduo.

Ele prprio considerava que a escola-laboratrio no era uma escola

modelo e que sua finalidade no consistia em demonstrar qualquer doutrina ou

ideia especial, apenas que [...] sua tarefa era observar a educao da criana

sob a luz dos princpios da atividade mental e dos processos de crescimento,

estabelecidos pela moderna psicologia (DEWEY, 1900, p. 96).

Dentre as propostas testadas na escola laboratrio, as atividades de

cooperao ganham um lugar de destaque, por favorecerem a socializao das

crianas de uma forma diferente da que elas eram educadas pelos seus pais ou

responsveis.

Na opinio de Dewey, a cooperao e a socializao conduzem para duas

consequncias inevitveis. A primeira que as concepes individual e social da

educao no tm significao alguma quando isoladas ou destacadas da

situao a que se referem, isto , de nada adianta focar o desenvolvimento

harmnico de todas as aptides do indivduo enquanto [...] a concepo de

educao como um processo e uma funo social no for definida de acordo com

a espcie de sociedade que temos em mente (DEWEY, 1959a p. 104). A

segunda refere-se a um dos problemas fundamentais da educao para uma

sociedade democrtica, e origina-se nos conflitos entre objetivos da vida social e

objetivos das necessidades individuais, os quais so muitas vezes contraditrios

entre si, prevalecendo as necessidades impostas socialmente.

Sua obra, tanto experimental quanto terica, tendeu, na opinio de

Cubberley (1919, p. 359), para [...] re-psicologizar e socializar a educao, dando

uma praticidade aos contedos, sem perder o rigor cientfico.6 Durante a

realizao de atividades na escola experimental para crianas de 4 a 13 anos,

foram estabelecidos alguns mtodos considerados fundamentais para o

desenvolvimento de uma nova metodologia de ensino. Os princpios

6 His work, both experimental and theoretical, has tended both to re-psychologize and socialize

education; to give to it a practical content, along scientific and industrial lines; and to interpret to the child the new social and industrial conditions of modern society by connecting the activities of the school closely with those of real life.(CUBBERLEY, 1920, p. 359).

26

estabelecidos nesta escola eram: 1) habilitar a criana para viver em uma vida

cooperativa; 2) trabalhar aspectos fundamentais nas crianas, para que as

mesmas adquiram a conscincia de responsabilidade, cooperao e

solidariedade; 3) Organizar e dirigir atividades consonantes a sua utilidade, o seu

significado tanto para uso da linguagem como para a representao mental

(CUBBERLEY, 1919, p. 342). Na opinio deste autor, um de seus grandes

mritos foi exatamente:

Dar criana a condio de sujeito social. Dewey acreditava que a escola pblica era o remdio principal para os males da sociedade organizada, e isso ele tentou mostrar a partir da mudana do trabalho escolar, de modo a torn-lo uma miniatura da prpria sociedade. 7

Durante os dez anos que esteve na Universidade de Chicago (1894-1904),

Dewey fundou a Escola de Pragmatismo de Chicago. Esta escola reunia vrios

participantes8, inclua professores, estudantes e personalidades da poca,

inclusive a escritora e ativista social Jane Addams, fundadora da Hull

House de Chicago (ALTENBAUGH, 2003, p.188). Esta tenha sido talvez uma das

mais importantes e significativas atuaes intelectuais de Dewey e serviram para

popularizar as suas ideias. Mas, alm de suas tentativas de colocar em prtica

suas ideias, um dos grandes mritos de John Dewey encontra-se na sua

produo cultural e cientfica bastante extensa. Na interpretao de Cunha (2009,

p. 8), considerado um dos mais notveis e coerentes interpretes na atualidade do

pensamento deweyano, afirma que: [...] Dewey tomou a educao como recurso

para discutir os problemas do homem no mundo contemporneo, o que situa suas

7 Believing that the public school is the chief remedy for the ills of organized society, Dewey has

tried to show how to change the work of the school so as to make it a miniature of society itself. (CUBBERLEY, 1919, p.342). 8 O grupo original era composto por George H. Mead, James H. Tufts, James R. Angell, Edward

Scribner Ames (Ph.D. Chicago 1895) e Addison W. Moore (Ph.D. Chicago 1898). Simon F. MacLennan (Ph.D. Chicago 1896, professor do Oberlin College), Ernest Carroll Moore (Ph.D. Chicago 1898, professor da University of California, Berkeley), Arthur K. Rogers (Ph.D. Chicago 1899, professor em Yale University), Ella Flagg Young (Ph.D. Chicago 1900, professor de pedagogy, University of Chicago), H. Heath Bawden (Ph.D Chicago 1900, professor no Vassar College e na University of Cincinnati), Henry W. Stuart (Ph.D. Chicago 1900, professor em Stanford University), Irving E. Miller (Ph.D. Chicago 1904, Professor de Psychology e Pedagogia, State Normal School de Wisconsin), Irving King (Ph.D. Chicago 1905, professor de religio, State University of Iowa) e William K. Wright (Ph.D. Chicago 1906, professor no Dartmouth University) (AMERICAN PHILOSOPHY. Pragmatism. Disponvel em: , consulta realizada em 5 de setembro de 2014, s 11horas)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Hull_Househttp://pt.wikipedia.org/wiki/Hull_Househttp://pt.wikipedia.org/wiki/Chicagohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1896http://www.pragmatism.org/genealogy.htm#chicago

27

reflexes alm da esfera do ensino, tomado em sentido estrito. Assim, o

pensamento deweyano abrange diversos campos, passando pela psicologia e

pela tica, por temticas polticas, econmicas, sociais e temticas que se

interpem ao projeto do modo de vida democrtico.

As primeiras publicaes de John Dewey ocorreram no final do sculo XIX,

e contm estudos e aprofundamentos no campo da psicologia experimental, entre

estas produes destacam-se: The New Psychology de 1884, Psychology de

1887, The Ego as Cause de 1894, The Reflex Arc Concept in Psychology 1896,

Psychology and social practice 1901. Ainda no final deste sculo, publicou alguns

ensaios e artigos sobre a relao entre a psicologia e a educao, reunidas no

livro Interest and Effort in Education9, 1895.

No artigo My Pedagogic Creed10 de 1897, professa a sua f na educao

como um instrumento de mudana na sociedade. O historiador Altenbaugh (2003,

p. 190) refere-se ao pensamento deweyano como [...] embrionrio de uma nova

sociedade, em aluso sua crena no poder de transformao que a educao

opera em uma sociedade. Dewey aponta para a educao como um meio de

converter as potencialidades individuais para as necessidades sociais, isto ,

assegura ao indivduo a liberdade de escolha e opo entre ser mdico,

professor, processador de mquinas e assim por diante, e a sociedade,

organizada institucionalmente, garante as condies necessrias para sua

realizao. Esta crena est expressa na seguinte afirmao:

Eu acredito que o indivduo que ser educado um indivduo social e aquela sociedade uma unio orgnica de indivduos. Se ns eliminamos o fator social da criana, permaneceremos em uma abstrao do indivduo; se ns eliminamos o fator individual, permanecemos em uma concepo de sociedade como uma massa inerte e inanimada. Ento, educao tem que comear com uma perspiccia psicolgica nas capacidades da criana, interesses e hbitos. Devem ser interpretados estes poderes e traduzidos em condies de equivalncia social e postos ao modo de servio social. (DEWEY, 1897, p. 78).

9 Traduzido para o portugus por Ansio Teixeira sob o ttulo de Interesse e Esforo (In: Os

Pensadores, Abril Cultural, 1980). 10

Traduzido para o portugus sob o ttulo de Meu credo pedaggico (In: D'vila, Antnio. Pedagogia. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1954).

http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADsio_Teixeira

28

Acredita, sob o ponto de vista da psicologia, que as potencialidades e os

desejos individuais e as necessidades e condies materiais adquirem um

determinado alinhamento, assemelhando-se a uma utopia bem intencionada. Isto

porque, sob o ponto de vista histrico, existe um grande abismo entre os desejos

individuais e as necessidades sociais, isto , a sociedade burguesa, organizada

com a finalidade de perpetuar a produo e reproduo do capital, sempre esteve

disposta e interessada em investir em indivduos que atendessem aos dispositivos

produtivistas, necessrios manuteno e estabilidade do capital, portanto, a

crena em potencialidades individuais na leitura da sociedade burguesa

convertida em potencialidades produtivas. Neste sentido, a boa inteno

deweyana no reflete a inteno da sociedade burguesa.

Em relao aos mtodos de ensino, Dewey acreditava que, quanto mais

democrticos fossem, mais favoreceriam o despertar de um sentimento

democrtico mais amplo sem estar preso a um nico sistema de organizao

poltica e sem se tornar refm de um cabedal ideolgico. Entretanto defende que

este sentimento no surge espontaneamente e nem fruto do acaso, reflexo de

uma aprendizagem organizada e direcionada para este fim. Sob esta concepo,

ele se posiciona contrrio aos processos espontanestas e aos improvisos, dos

quais era alvo de acusao de seus opositores, expressando-se nos seguintes

termos:

Eu acredito que a nica verdadeira educao aquela que estimula os poderes da criana pelas exigncias das situaes sociais em que ela se encontra. Estas demandas sociais a estimulam a agir como um membro de uma unidade, a emergir da sua estreiteza de ao e de sentimento e de conceber a si mesmo a partir do ponto de vista do bem-estar do grupo ao qual ela pertence. (DEWEY, 1897, p. 77).

Sob o ponto de vista de que a finalidade educacional democrtica, h

uma certa coerncia metodolgica no sentido de valorizar as aes coletivas e

romper com as atitudes meramente individualistas, entretanto deve-se ressaltar

que a democracia tanto pode expressar um ideal de igualdade quanto pode

assegurar a desigualdade, dependendo de como a sociedade organiza-se e

conduz institucionalmente a democracia. Desta forma, converter a finalidade

29

democrtica como finalidade educacional pode incorrer-se em um risco de

converter a escola em mais um instrumento de imobilismo social do que em um

instrumento de mudana social.

No incio do sculo XX, a sua produo terica revela uma alternncia

entre temas educacionais e filosficos, em que o autor buscou dar um tratamento

filosfico aos temas educacionais, em especial nas publicaes: The School and

Society 1900, The child and the curriculum11 1901, The educational situation

1902, Logical Conditions of a Scientific Treatment of Morality 1903, Studies in

Logical Theory 1903, Relation of theory to practice in the training of teachers

1904, The School and the child 1906, Ethics: Theory of moral life 1908, How

we Think12 1910, Educational Essays 1910.

A partir da publicao do livro The School and Society (1900), as anlises

deweyanas levantam um debate mais direto sobre a natureza social do ser

humano e a necessidade de sua formao para esta natureza, que, muitas vezes,

suplantada pelos instintos individuais. Esta sua preocupao exposta da

seguinte forma:

Temos a tendncia para encarar a escola segundo uma perspectiva individualista, pondo a tnica na relao entre professor e aluno, ou entre professor e pai. Aquilo que mais nos interessa so, naturalmente, os progressos feitos pela criana individual que conhecemos, o seu desenvolvimento fsico normal, a sua evoluo no que toca capacidade de ler, escrever e contar, o aumento dos seus conhecimentos de geografia e histria, as suas melhorias em termos de conduta. com base nesses padres que avaliamos o trabalho da escola. Todavia conveniente que ampliemos o alcance desta perspectiva. Aquilo que o pai deseja para o prprio filho, a comunidade deseja para todas as crianas que crescem no seu seio. (DEWEY, 2002, p. 17).

Vale ressaltar que os debates propostos por Dewey sobre a natureza na

sua dimenso individual e social, muitas vezes opostas ou em constante conflito,

as incertezas, o progresso e o desenvolvimento apoiam-se na literatura

darwinista. Esta percepo visvel na publicao do ensaio: The Influence of

11

Traduzido para o portugus por Ansio Teixeira sob o ttulo de A Criana e o Programa Escolar (In: Os Pensadores, Abril Cultural, 1980). 12 Traduzido para o portugus com o ttulo de Como pensamos (Companhia Editora Nacional, 1959).

http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADsio_Teixeira

30

Darwin on Philosophy and Other Essays in Contemporary Thought de 1910, no

qual estabelece algumas concordncias com o naturalismo darwiniano contidos

na obra A origem das espcies, publicada em 185913. Na observao de

Brubacher (1961, p. 59), [...] apoiando-se em Darwin, Dewey parece ter

estabelecido fortes razes para o reinado indefinido da educao progressiva.

importante salientar que, dentre os avanos cientficos que ocorreram no

sculo XIX, a teoria de Darwin (1809-1882) foi a que mais causou impacto no

mbito das cincias sociais, considerada por muitos historiadores e estudiosos

como um divisor de guas, influenciando vrios cientistas em pases diferentes.

Na observao de Hobsbawm (2012, p. 393): Nos Estados Unidos, o darwinismo

no apenas triunfou rapidamente, mas cedo transformou-se na ideologia do

capitalismo militante. Explica este historiador,

A teoria da evoluo pela seleo natural ia bem mais longe que os limites da biologia, e nisso reside sua importncia. Ela ratificava o triunfo da histria sobre todas as cincias, embora histria nesse sentido fosse normalmente confundida pelos contemporneos com progresso. Alm disso, ao trazer o prprio homem para dentro do esquema da evoluo biolgica, abolia a linha divisria entre cincias naturais, humanas ou sociais. Portanto, todo o cosmo, ou pelo menos todo o sistema solar, precisava ser concebido como um processo de mudana histrica constante. O sol e os planetas estavam no centro dessa histria, e, sobretudo, por razes ideolgicas extremamente delicada, Darwin trouxe no apenas os animais mas tambm o homem para o esquema evolucionista. (HOBSBAWM, 2012, p. 390).

No final do sculo XIX, o darwinismo tanto servia para um bom uso como

para um uso ideologicamente comprometido. Com o processo de mecanizao na

produo industrial, o aumento quantitativo de escolas pblicas e a exigncia

cada vez mais rigorosa dos meios de produo, remeteu-se para o processo de

escolarizao uma reponsabilidade na formao de sujeitos aptos para o ingresso

no mercado de trabalho. Para averiguar as aptides naturais, muitas escolas

adotaram uma metodologia seletiva, sob a denominao de vocacional, para

ingresso em cursos profissionais. John Dewey

entendia que se criava uma espcie de determinismo social via educao, um

13

Ttulo original: On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or The Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life.

31

mau uso de Darwin, especialmente porque caracterizava uma forma de selecionar

e conduzir os alunos de acordo com suas aptides.

O principal alvo das crticas deweyanas sobre os testes de inteligncia e

vocacionais foi o seu colega da Universidade de Columbia, o psiclogo Thorndike

(1874-1949). Esse psiclogo acreditava que as crianas aprendiam a partir de

estruturas condicionantes de forma automtica e portanto, o mais importante no

era o processo de ensino e aprendizagem, mas os instrumentos utilizados para

verificao da aprendizagem. Desta forma a introduo de testes de inteligncia

permitiriam selecionar os mais aptos dos menos aptos, os mais educveis dos

menos educveis, e assim por diante, e encaminh-los para os cursos e ao

mercado de trabalho de acordo com suas aptides. Os mtodos de mensurao

assim so descritas por Thorndike:

As caractersticas de um teste especializado geralmente so as seguintes: a) determina-se um lugar e um tempo especfico; b) estabelece-se um conjunto de tarefas iguais a todas as pessoas examinadas c) o assunto da avaliao determinado de acordo com a finalidade do exame. Ao contrrio, a avaliao fundada nas situaes da vida real: a) se efetua em um periodo indefinido; b) se baseia em situaes que no so as mesmas para diversas pessoas e c) o assunto da avaliao no considerar a finalidade especfica do exame. A distino entre as situaes de exame e as situaces da vida real nem sempre so precisas e exatas, mas os resultados finais permitem algumas aproximaes em relao s atividades cotidianas. ( THORNDIKE; HAGEN, 1977, p. 28, traduo nossa)14

O carter mensuracionista foi adotado por inmeras escolas dos Estados

Unidos, constituindo-se em uma forte tendncia no final do sculo XIX. Dewey

contrape-se a esta concepo porque ela sobrepunha-se as aptides individuais

s sociais, no assegura os princpios de liberdade e desqualifica a condio

humana da aprendizagem. Para ele, um modelo educacional organizado nestes

14

Las caractersticas de un examen especializado que generalmente son los siguientes: a) determinar si un determinado lugar y tiempo, b) el establecimiento de un conjunto de tareas iguales a todos los indivduos examinados c) la evaluacin de la asignatura se determina de acuerdo con propsito del examen. Por el contrario, la evaluacin basada en situaciones de la vida real: a) se lleva a cabo en un perodo indefinido, b) se basa en situaciones que no son las mismas para diferentes personas y c) el objeto de la evaluacin no considera que el propsito del examen. La distincin entre las situaciones de examen y la vida real no siempre es precisa y exacta, pero los resultados finales permiten algunas aproximaciones sobre las actividades diarias. (Thorndike, Hagen, 1977, p. 28).

32

moldes continuaria a privilegiar os privilegiados e no alteraria nenhuma

hierarquia social, uma vez que a sociedade j tinha definido economicamente os

ocupantes das posies hierrquicas e isso em nada contribuiria para a

democratizao da sociedade, ao contrrio, tornava-a mais anti-democrtica

ainda. A sua proposta educacional fundada em uma metodologia que privilegiasse

a cooperao social visava a superao da seletividade e das desigualdades

educacionais e sociais.

O naturalismo darwiniano aceito por Dewey era aquele que levava em

conta a mudana evolutiva e progressiva simultnea entre ser humano e

ambiente, tanto o ambiente fsico exerce uma ao modificadora no ser humano

como o ser humano capaz de modificar o ambiente fsico, e ambos se

modificam. Nesse processo, incluem-se todas as instncias sociais, por esta

razo prope que a escola

[...] deve assumir a feio de uma comunidade em miniatura, ensinando situaes de comunicao de umas a outras pessoas, de cooperao entre elas, e ainda, estar conectada com a vida social em geral, com o trabalho de todas as demais instituies: a famlia, os centros de recreao e trabalho, as organizaes da

vida cvica, religiosa, econmica e poltica. ( DEWEY, 1967, p. 8).

A teoria de Darwin concebe a seleo natural pelo instinto de conservao

da prpria espcie e admite as diferenas entre as espcies como um processo

positivo na sua evoluo e, por essa razo, possvel estabelecer caractersticas

harmonizadoras por meio das necessidades de sobrevivncia ou das prprias

alterao e modificao do meio. Darwin (1981, p.84) expe da seguinte forma a

sua defesa ao naturalismo:

Dei o nome de seleo natural ou de persistncia do mais capaz preservao das diferenas e das variaes individuais favorveis e eliminao das variaes nocivas. As variaes insignificantes, isto , as que no so nem teis e nem nocivas ao indivduo, no so certamente prejudicadas pela seleo natural e permanecem no estado de elementos variveis, como as que podemos observar em algumas espcies polimorfas, ou terminando por fixar, graas natureza do organismo e s condies de vida.

33

As modificaes do ambiente afetam a todos, mesmo aqueles em um

processo de isolamento. De acordo com Darwin (1981, p. 103), [...] numa regio

isolada, e pouco extensa, as condies orgnicas e inorgnicas da existncia

geralmente so uniformes, de maneira tal que a seleo natural propenda a

modificar do mesmo modo todos os indivduos variveis da mesma espcie.

A filosofia deweyana, apoiada no naturalismo darwiniano, aponta algumas

objees no que se refere a absoro do itinerrio liberal capitalista por

considerar que essa concepo engendrava e criava determinismos seletivos aos

considerar os seres humanos como sujeitos prontos e condicionados ao meio

social. Dewey (1967, p. 11) exemplifica a sua crtica da seguinte forma: [...] uma

criana vivendo em um meio de msicos ter inevitavelmente estmulos, por

menores que sejam, s suas aptides musicais, e as ter mais estimuladas,

relativamente, do que os outros impulsos, que poderiam despertar em ambiente

diverso. Mas isto no far dela um msico, embora desenvolva habilidades e

aptides musicais com maior facilidade que uma criana que viva em uma famlia

de camponeses.

Para ele, o meio tanto pode coagir como estimular, e o resultado reflete-se

nas escolhas. E nem sempre as escolhas seguem um ordenamento invarivel s

aptides naturais, em especial quando os estmulos econmicos sobrepem-se

s necessidades de sobrevivncia. Exemplo anlogo a esta premissa refere-se

aos profissionais de medicina hoje no Brasil, isto : Quantos mdicos so filhos

de mdicos e quantos mdicos so filhos de pedreiros? Sem necessitar de um

levantamento cientfico preciso, chega-se concluso de que a maioria dos que

exercem a medicina, hoje, so filhos de mdicos, no porque herdaram de seus

pais esta aptido, mas porque as condies econmicas e materiais favoreceram

tal escolha. Isto no significa afirmar que a condio social modifique

essencialmente a natureza humana, porque certas aptides e habilidades sero

preservadas, independente do exerccio ocupacional posterior, isto , uma criana

cujos pais so msicos, mesmo exercendo uma ocupao diferente, tal como

mdico, pedreiro ou professor, possuir conhecimentos sobre msica com maior

profundidade do que outros cujos pais no sejam msicos.

Para Dewey (1900), no se pode negar que cada indivduo possui por

natureza um conjunto de aptides e predisposies para a vida social e esta a

34

condio bsica para a preservao de sua espcie, isto , a espcie humana s

tem significado se inserida na vivncia social e est em constante processo de

mutao. Os termos: evoluo, progresso e desenvolvimento, embora

tenham significados diferentes na sua aplicao ao contexto social, so

embrionrios e amlgamos. Por esta razo, para viver em sociedade,

necessrio aprender a viver socialmente. Para participar do processo de

adaptabilidade evoluo, ao progresso, ao desenvolvimento e s mudanas

sociais, necessrio aprender a participar desse processo. Nisto consiste o seu

naturalismo: um contnuo processo de aprendizagem via experincia individual

ressignificada pela vivncia social. E, a escola, cumpre o papel de mediadora das

experincias, dando-lhes um significado qualitativo. Mas, para que isto possa

ocorrer, o conhecimento escolar deveria ter uma abrangncia que envolvesse

todos os ambientes em que o indivduo interage, de uma forma democrtica.

Na obra The schools of tomorrow (1915), o autor expe a sua preocupao

com as formas mecnicas impostas pelos mtodos de produo de seu tempo,

que se assemelham aos processos de ensino, em especial a opo de um ensino

via instruo, que faz uma mera transposio de conhecimentos do mundo adulto

para o mundo da criana.

O livro Democracia e Educao15 (1916) um dos mais conhecidos e foi

traduzido em vrios idiomas, o que lhe valeu o adjetivo de defensor da

democracia ou filsofo da educao democrtica. Mas importante observar que

as questes de natureza social so incisivamente destacadas por este autor

como questes que requerem aprendizagem e precisam ser tratadas sob um

olhar racional e cientfico. Afirma:

A escola tem igualmente a funo de coordenar, na vida mental de cada indivduo, as diversas influncias dos vrios meios sociais em que ele vive. Um cdigo prevalece na famlia; outro, nas ruas; um terceiro, nas oficinas ou nas lojas; um quarto, nos meios religiosos. Quando uma pessoa passa de um desses ambientes para outro, fica sujeita a impulsos contraditrios e acha-se em risco de desdobrar-se em personalidades com diversos padres de julgar e sentir, conforme as vrias ocasies. Este risco impe escola uma funo fortalecedora e integradora. (DEWEY, 1959a, p. 23).

15

Traduzido para o portugus por Ansio Teixeira sob o ttulo de Democracia e Educao(Companhia Editora Nacional, 1959).

35

No conjunto de sua produo terica, em especial no livro Democracia e

Educao (1916), elenca a democracia como uma categoria fundamental para a

compreenso de suas formulaes educacionais. O pressuposto que alimenta

suas concepes que a democracia, embora se constitua em um instrumento

fundamental e vlido para a emancipao humana e social, no pode estar

enclausurada em uma organizao poltica, deve permear a conscincia em todas

as instncias, e deve ser vista pela sua articulao racional entre o pensamento, o

sentimento e a ao. Na observao de Cubberley (1920, p. 340):

A grande preocupao de Dewey era transformar a democracia em um instrumento til na vida social, de forma que os jovens fossem formados com esse esprito e esse esprito se refletisse em todas as relaes que se estabelecessem, quer em casa, no escritrio, na loja, enfim em qualquer ambiente. Desta forma, Dewey transformou o conhecimento escolar em um instrumento de democracia, e ainda, o conhecimento escolar permitia a preparao para o enfrentamento de situaes cada vez mais complexas na vida social, poltica e industrial do mundo moderno.16

Outras produes deweyanas, merecem destaquem, entre elas: Creative

Intelligence 1917, Reconstruction in Philosophy17 1920, Human Nature and

Conduct18 1921, Experience and Nature19 1925, The public and its problems

1927, The Quest for Certainty 1929, Philosophy and Civilization 1931, Art as

Experience20 1934, A Common Faith 1934, Liberalism and Social Action

16

During the past half century the school has been transformed, in the principal world nations, from a disciplinary institution where drill in mastering the rudiments of knowledge was given, into an instrument of democracy calculated to train young people for living, for useful service in the office and shop and home, and to prepare them for intelligent participation in the increasingly complex social and political and industrial life of a modern world. This transformation of the school has not always been easy , but the vastly changed conditions of modern life have demanded such a transformation in all progressive nations. (CUBBERLEY, 1920, p. 340). 17

Traduzida no Brasil por Antnio Pinto de Carvalho sob o ttulo de Reconstruo em Filosofia (Companhia Editora Nacional, 1959). 18

Traduzida no Brasil sob o ttulo de A natureza humana e a conduta (introduo psicologia social (Brasil, 1956). 19

Traduzida no Brasil por Murilo Otvio Rodrigues Paes Leme sob o ttulo de Experincia e Natureza (In: Os Pensadores, Abril Cultural, 1980). 20 Traduzida no Brasil por Murilo Otvio Rodrigues Paes Leme sob o ttulo de A arte como experincia (In: Os Pensadores, Abril Cultural, 1980).

36

1935, Experience and Education21 1936, Logic, Theory of Inquiry22 1938,

Freedom and Culture23 1939, Theory of Valuation 1939, Intelligence and

Modern World 1939, Education, Today 1940, Education and science 1940,

The Philosopher of the Common Man 1940, The Living Thoughts of Thomas

Jefferson24 1940, Problems of Men 1946 e Knowing and the Known 1949,

Theory of moral life 25 1960.

Alm de sua vasta produo terica impressa, este autor proferiu palestras

e conferncias em muitos pases, entre os quais: Rssia, China, Mxico, Turquia,

entre outros. Conforme observa Monarcha (2009, p. 39): Considerado a alma

mater da inovao educacional norte-americana, as teorizaes de John Dewey

converteram-se em esteio de teorias societrias alm de exercer influncia sobre

Claparde, Cousinet, Ferrire, Piaget, Kilpatrick, Decroly, Kerschensteiner,

Luzuriaga, entre outros.

Embora referenciado e citado por vrios educadores americanos e fora dos

Estados unidos, a teoria educacional de Dewey no foi adotada como uma

pedagogia institucionalizada tal como foi a de Pestalozzi, Froebel e Herbart. E a

sua experincia com a Escola Laboratrio no se estendeu a todo o sistema

pblico. Uma das razes mais plausveis de que no final do sculo XIX e incio

do sculo XX, as mudanas impulsionadas pelo desenvolvimento econmico e

pelas novas formas de organizao do trabalho industrial e mecanizado

requeriam um modelo educacional compatvel e adequado a elas, isto , no

exigiam uma mediao escolar centrada em valores humanos, como propunha

Dewey. Por essa razo as propostas de Thorndike pelo teor administrativo,

tcnico e mensuracionista tinham uma identificao imediata com as

21 Traduzida no Brasil por Ansio Teixeira sob o ttulo de Experincia e Educao (Companhia Editora Nacional, 1971). 22 Traduzida no Brasil por Murilo Otvio Rodrigues Paes Leme sob o ttulo de Lgica a teoria da investigao (In: Os Pensadores, Abril Cultural, 1980). 23

Traduzida no Brasil por Ansio Teixeira sob o ttulo de Liberalismo, liberdade e cultura. (Companhia Editora Nacional, 1970). 24

Traduzida no Brasil por Lda Boechat Rodrigues sob o ttulo de O Pensamento Vivo de Jefferson (Livraria Martins Editora, 1954). 25 Traduzida no Brasil por Lenidas Contijo de Carvalho sob o ttulo de Teoria da vida moral (In: Os Pensadores, Abril Cultural, 1980).

http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jeffersonhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jeffersonhttp://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADsio_Teixeirahttp://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAda_Boechat_Rodrigues

37

necessidades industriais e foram introduzidas na maioria das escolas que

ofertavam o ensino secundrio.

No conjunto de sua produo terica, John Dewey apontou para a

necessidade de equacionar as aspiraes individuais s necessidades sociais via

mediao escolar. Esta preocupao est expressa com intensidade nas obras

Liberalism and Social Action de 1935 e Freedom and Culture de 1939, nas quais

expressa vrias crticas ao individualismo liberal e posiciona-se contra os ideais

liberais do sculo XX, acusando-os de converterem a noo de natureza humana

para explicar as diferenas e desigualdades sociais, remetendo para o indivduo a

responsabilidade de seus sucessos e fracassos. Em suma, deixa claro que a

democratizao na sociedade no depende do governo, ao contrrio, o governo

um reflexo da sociedade democratizada. Para ele, a democratizao da

sociedade depende de um sistema educacional que traduza em seus contedos e

mtodosas necessidades sociais. A educao produz valores, valida valores e d

continuidade a determinados valores que, postos na vida social, servem para a

sua manuteno ou para a sua mudana.

John Dewey (1970) optou por trilhar os caminhos da mudana social via

educao, deslocando as aes e hbitos de cunho individualista para aquelas

voltadas para o bem comum e o meio social, mas isso no assemelha os seus

posicionamentos com os de Karl Marx e Engels (1998), embora os trs autores se

oponham desigualdade social, a ruptura proposta por estes autores difere nos

mtodos. Enquanto Marx e Engels (1998) defendiam o meio revolucionrio, via

unio da classe proletria e transformao de todas as instituies burguesas,

tomando como base a estrutura econmica, John Dewey (1970) propunha a

transformao via educao e como garantia de um processo pacfico. Em suma,

no se pode afirmar categoricamente que eles tenham aproximaes, porque as

suas concepes de revoluo so totalmente opostas. E mesmo porque, para

Dewey (1970), o motor das desigualdades sociais em seu pas era o liberalismo,

que conduzia a sociedade nos moldes clssicos e praticamente anulava toda a

ao do Estado ou, quando no, minimizava e restringia a atuao do Estado nas

questes econmicas essenciais.

Os posicionamentos deweyanos diante do liberalismo sugerem alguns

questionamentos, tais como: Quais sos os principais empecilhos para a vivncia

38

democrtica em sua plenitude: o individualismo orientado pelos moldes liberais ou

as desigualdades sociais? Sendo a sociedade guiada pelos pressupostos liberais,

possvel a educao impulsionar mudanas sociais mais amplas em uma

sociedade de classes, que limita a participao econmica, que estimula o

individualismo, que mantm sua estrutura sobre as desigualdades sociais?

Dewey (1970) acreditava que era possvel a ocorrncia dessas mudanas

de forma pacfica, consciente e ordenada. Mas, para isto, seria necessrio

converter a educao em uma ferramenta ou em um instrumento de mudana

social, ensinando os indivduos a despojarem-se dos seus instintos egosticos e

privados e, medida que as pessoas mudassem, as estruturas mudariam. As

suas formulaes e posicionamentos possibilitam compreender que as

contradies da sociedade burguesa na qual Dewey estava inserido refletem em

suas interpretaes da mesma forma que refletem nas interpretaes sobre

Dewey no Brasil, e que, portanto, so alvos de controvrsias.

2.2. A recepo e as diferentes interpretaes das propostas educacionais

deweyanas no Brasil.

As interpretaes formuladas sobre Dewey, no Brasil, iniciaram-se nas

primeiras dcadas do sculo XX, perodo marcado por conflitos entre naes

europeias que culminaram na Primeira Guerra Mundial. Em meio aos conflitos

eminentes na Europa, os Estados Unidos assumiram gradativamente a posio

de liderana entre as naes capitalistas e, medida que se deslocava a

liderana do capitalismo da Europa para a Amrica do Norte no sculo XX, a

produo cultural e intelectual desse pas se tornou alvo de interesse de outras

naes, em especial do Brasil.

Foi neste contexto que vrios intelectuais e polticos brasileiros, defensores

de um capitalismo moderno, avanado e condutor do desenvolvimento e do

progresso, estabeleceram um intercmbio de proximidade com os Estados

Unidos, por acreditarem que as etapas de desenvolvimento da nao norte-

americana serviriam como modelo para o desenvolvimento e o progresso do

Brasil. Somando-se a esta crena, deve-se registrar que, no Brasil, no final do

sculo XIX e incio do sculo XX, na sua fase de transio poltica entre o regime

39

monrquico e republicano, os seus defensores buscavam um aporte ideolgico

consistente de desenvolvimento e progresso para a sua consolidao, no qual

inclua a instituio de uma educao pblica.

Neste cenrio, uma das questes a serem equalizadas, no Brasil, era

estimular o interesse pela educao tanto das instncias institucionais polticas

quanto da populao. Para um grupo de intelectuais e educadores brasileiros,

entre eles: Ansio Teixeira, Loureno Filho, Carneiro Leo e Fernando Azevedo, a

expanso do sistema educacional era a chave para o progresso e o

desenvolvimento nacional. E foi a partir desta constatao que esses educadores

posicionaram-se em defesa de uma educao pblica, gratuita e leiga e em

conformidade com o processo de urbanizao e desenvolvimento industrial do

pas.

As propostas pedaggicas que estavam em ebulio nos Estados Unidos

provocaram o interesse de educadores brasileiros que julgavam, para aquele

momento, as mais adequadas para o Brasil. Tais propostas receberam vrias

nomenclaturas, tais como: escola nova, educao progressista, pedagogia

renovada, pragmatismo americano, entre outras. De qualquer forma, suas

nomenclaturas referenciavam o educador, filsofo e intelectual estadunidense

John Dewey e foram assumidas por vrios educadores brasileiros, em especial

Ansio Teixeira, que, na observao de Abreu (1968, p.,12), [...] conseguia

pensar deweyanamente, e Loureno Filho, fundador da Revista Escola Nova em

1930.

A recepo de teorias educacionais relacionadas a um novo modelo

metodolgico no exclusividade do perodo republicano brasileiro, remonta, de

acordo com Nagle (1974), desde o final do Imprio, porm, nesta fase, no se

encontra uma apresentao sistemtica e ampla das ideias escolanovistas. Esta

sistematizao ocorreu a partir da dcada de 1920, com um conjunto de

publicaes sobre um novo modo de pensar a funo social da educao.

Destacam-se, entre estas publicaes, artigos, textos e livros de John Dewey,

traduzidos por Ansio S. Teixeira, e a primeira coleo especializada, denominada

Biblioteca de Educao, organizada por Loureno Filho. Explica Nagle (1974, p.

274) [...] que essa literatura apresentava era uma discusso de Repblica,

Democracia e Escola Nova, sem qualquer referncia a lugar e tempo. Na

40

interpretao deste autor, predominava um idealismo e de certa forma distanciado

da realidade, uma crena num mundo supra-histrico em substituio ao mundo

histrico, considerado submundo.

Como nessas primeiras dcadas intensificava-se um acelerado processo

de industrializao e urbanizao no Brasil, acirravam-se, simultaneamente,

diversos conflitos e divergncias que envolviam a classe operria em formao,

constituda essencialmente por imigrantes europeus e escravos recm-libertos,

alm da burguesia, que, na ausncia de uma legislao que assegurasse direitos

trabalhistas, estabelecia seus prprios critrios de regulamentao do trabalho.

Os conflitos e divergncias assinalam uma fase de transio entre o modo

de produo predominantemente agrrio e o advento de novas relaes de

produo do capital, orientadas pela industrializao. Ressalta-se que, neste

processo de transio das formas de produo, no ocorreram mudanas

hierrquicas nas estruturas tradicionais e conservadoras, isto , a estrutura

fundiria no pas manteve-se organizada na forma de propriedade privada e os

seus respectivos proprietrios continuaram os mesmos. A mudana que ocorreu

foi em relao mo de obra, que se deslocou em grande quantidade das

propriedades agrcolas para os centros urbanos, formando um novo contingente

assalariado e sem escolarizao. Neste cenrio e para assegurar o mnimo de

escolarizao da classe operria, tornava-se necessrio ampliar a oferta

educacional no pas. Portanto, a ampliao das oportunidades escolares, aliadas

a um dese