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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO DE DIREITO ENTRE A RONDA E A CANA: OS DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIDADE DO JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX Fátima Maria Martins Barroso Montenegro 09/0005678 Brasília – DF Dezembro de 2013

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIAFACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO DE DIREITO

ENTRE A RONDA E A CANA: OS DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIDADE DO

JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX

Fátima Maria Martins Barroso Montenegro09/0005678

Brasília – DF Dezembro de 2013

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Fátima Maria Martins Barroso Montenegro

ENTRE A RONDA E A CANA: OS DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIDADE DO

JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Orientador: Prof. Dr. Evandro Piza Duarte

Brasília – DF Dezembro de 2013

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Fátima Maria Martins Barroso Montenegro

ENTRE A RONDA E A CANA: OS DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIDADE DO

JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, pela banca examinadora composta por:

_______________________________EVANDRO PIZA DUARTE

Prof. Dr. e Orientador

_________________________________________PAULO HENRIQUE BLAIR DE OLIVEIRA

Prof. Dr. e Examinador

_____________________________________________RAFAEL DE DEUS GARCIA

Aluno do Programa de Pós Graduação em Direito – Mestradoe Examinador

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AGRADECIMENTOS

Às notáveis mulheres do clã Barroso, todas fortes e independentes.

Bisavó Noca, se hoje ainda pesa em meus ombros ser mulher, não me esqueço

da guerreira que, em tempos piores, para defender o que acreditava ser melhor para si e para a

família, domou costumes e quebrou regras. Saudades.

Vovó Carmelita, suas palavras e atitudes sempre me dão forças, sua doçura e

dedicação sempre me confortam, sua fibra me faz pedir a deus que permita que eu seja metade

da mulher que você é quando chegar a sua idade.

Tia Greicy, sua capacidade de converter amor em determinação é louvável.

Obrigada por me mostrar que o medo às vezes pode ser inevitável, mas que, nesses casos,

deve ser confrontado, pois desistir daqueles que amamos não é uma opção.

Tia Gladis, por todos os cuidados, carinho, e por sempre procurar tornar meus

sonhos realidade. Mamãe não teria escolhido melhor madrinha.

Luísa, com quem compartilho não somente os laços de sangue, mas também

laços de amor. Minha melhor amiga, não te amo somente por ser minha irmã. Te amo porque

você é uma das mulheres mais incríveis que conheço, porque posso olhar para você, posso

olhar para mim e então não é difícil pereceber que, muito do que há de bom em nós,

construímos juntas, embora o pioneirismo seja todo seu e muito do que fiz foi para te

orgulhar.

Mamãe, você que faz mágica. Você que sempre está lá. Você que lutou com o

mundo para me defender, mas que para ele me criou. Você que, com todo o carinho e

proteção, me fez uma mulher independete e que sabe exatamente o que quer e como alcançar.

Você a quem eu queria dizer as palavras mais belas de agradecimento, mas não encontro

vocabulário para expressar o meu amor. A você, mamãe, acima de qualquer outro e qualquer

coisa, eu devo tudo.

Ao Alexandre, que me viu crescer e me ajudou a crescer. Várias vezes você

secou minhas lágrimas e me fez rir, acalmou minhas angústias academicas e teve paciência

para, antes de trabalhos e provas, me ensinar conteúdos que eu julgava ser incapaz de

compreender. Você que é meu cunhado, mas sempre me tratou com o carinho e preocupação

dedicados a uma irmã mais nova.

Ao meu primo, Raul, esse caçula com maturidade de irmão mais velho. A

pessoa mais corajosa que conheço.

5

Ao meu pai, David, por todas as músicas, peças e historinhas antes de dormir,

por me ensinar a recorrer à imaginação nos momentos difíceis, em que eu acreditava não

haver saída. À Hiderlene, por ter me dado dois irmãos lindos, David e Miguel.

Ao meu avô, Nilo, por ter acreditado sem nenhuma ressalva e sempre ter me

apoiado. Embora poucos tenham sido os momentos em que nos encontramos pessoalmente

nestes últimos cinco anos, você sempre esteve em cada escolha que fiz durante minha

graduação.

Ao Alberto, o melhor e mais atencioso de todos os padrastos. Obrigada por

sempre ter cuidado de mim com todo o carinho, sou realmente grata por ter você em nossas

vidas.

Ao tio Hassan, pessoa maravilhosa a quem me orgulho de chamar padrinho.

Ao meu orientador, Evandro Piza Duarte, que me abriu as portas de um mundo

novo e me fez crescer como ser humano.

Ao Professor Paulo Blair e Rafael de Deus por gentilmente aceitarem o convite

para participação na banca.

Ao professor Ítalo, por ter enxergado em mim capacidade que eu ainda não

sabia possuir.

Aos amigos verdadeiros, quase conto vocês nos dedos, mas sei que posso

contar com vocês quando preciso. Ana Verônica e Raísa, minhas irmãs por escolha. Bruno

Vial, Lucas e Luciana Freire, os melhores veteranos e conselheiros em assuntos de faculdade

e também em assuntos de bar. Victor, meu melhor amigo, a distância às vezes é grande, mas o

amor que sinto por você também é. Cris, minha historiadora preferida e amiga para todas as

horas. Noêmia, pelas conversas e risadas. Stênio, o melhor presente que deus me deu nestes

cinco anos de faculdade, sorte a minha ter te conhecido. Ana Carolina, Gabriela Tavares,

Gabriela de Paula e Andréa, meus dias de faculdade teriam sido sem graça sem vocês.

Luciana Braga e Bruno Dantas, por me acompanharem durante esse ano difícil de transições.

Ainda que recente, a amizade que nutro por vocês é forte e verdadeira. Aos colegas de ProIC,

Edson, Juliana e Jonathas, por não somente construir comigo uma boa pesquisa, mas também

uma bela amizade.

Ao meu namorado, João Paulo. Obrigada por ter sido paciente com as minhas

variações de humor nestes últimos meses, por ter entendido a fixação que desenvolvi pelo

meu tema de pesquisa de forma a não se chatear com a minha monopolização de nossas

conversas. Muito pelo contrário, obrigada por ter se engajado, ter se tornado um excelente

6

interlocutor e ter sido rígido e duro quando eu precisei, sem nunca deixar de ser meu porto

seguro. Obrigada pelas conversas de madrugada, pelas tardes trocando ideias por gtalk, pelas

fugas do trabalho de monografar quando eu achava que não conseguiria mais, pelo ombro

amigo, pela revisão da monografia. Obrigada por me surpreender, permanecendo ao meu lado

quando eu julgava que você não estaria lá. Te amo para sempre. <3

7

“O menino cresceu entre a ronda e a canacorrendo nos becos que nem ratazana.Entre a punga e o afano, entre a carta e a fichasubindo em pedreira que nem lagartixa.Borel, Juramento, Urubu, Catacumba,nas rodas de samba, no eró da macumba.Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,Mangueira, São Carlos, menino mandando,ídolo de poeira, marafo e farelo,um deus de bermuda e pé-de-chinelo,imperador dos morros, reizinho nagô,o corpo fechado por babalaôs.

Baixou Oxolufã com as espadas de prata,com sua coroa de escuro e de vício.Baixou Cão-Xangô com o machado de asa,com seu fogo brabo nas mãos de corisco.Ogunhê se plantou pelas encruzilhadasCom todos seus ferros, com lança e enxada.E Oxossi com seu arco e flecha e seus galose suas abelhas na beira da mata.E Oxum trouxe pedra e água da cachoeiraem seu coração de espinhos dourados.Iemanjá, o alumínio, as sereias do mare um batalhão de mil afogados.

Iansã trouxe as almas e os vendavais,adagas e ventos, trovões e punhais.Oxum-Maré largou suas cobras no chão.Soltou sua trança, quebrou o arco-íris.Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizoslançando a doença pra seus inimigos.E Nana-Buruquê trouxe a chuva e a vassouraPra terra dos corpos, pro sangue dos mortos.

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Exus na capa da noite soltaram a gargalhadae avisaram a cilada pros Orixás.Exus, Orixás, menino, lutaram como puderammas era muita matraca e pouco berro.E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia,Zumbi menino Lumumba tomba da raiamandando bala pra baixo contra as falanges do mal,arcanjos velhos, coveiros do carnaval.

- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,por que me abandonaram?Por que nos abandonamosem cada cruz?

- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,nem tudo está consumado.A minha morte é só uma:Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus... Grampearam o menino do corpo fechadoe barbarizaram com mais de cem tiros.Treze anos de vida sem misericórdiae a misericórdia no último tiro.

Morreu como um cachorro e gritou feito um porcodepois de pular igual a macaco.Vou jogar nesses três que nem ele morreu:num jogo cercado pelos sete lados”.

João Bosco e Aldir Blanc – Tiro de Misericórdia

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RESUMO

Tanto os discursos favoráveis quanto os contrários à promulgação da Lei do Ventre Livre, assim como os discursos sobre a implementação de outras medidas de emancipação gradual da escravidão negra, baseavam-se na mesma imagem, a do escravo como elemento de periculosidade para seu senhor e para a sociedade. Tal fato, constatado pelo presente trabalho, conduziu à intensificação da segregação racial e à formulação de justificativas para a disposição do corpo do negro como espaço de intervenção da violência. A partir do desenvolvimento do conceito de empatia e autonomia, em Lynn Hunt; da construção do fluxo de informações pluridimensional e da culpa política, de Susan Buck-Morss; e da análise de discurso de pronunciamentos parlamentares do Senado dos anos 1870 e 1871, de processos criminais compreendidos entre 1870 e 1900 e de outras obras desse período, o presente trabalho objetiva demonstrar que o discurso sobre a pretensa criminalidade (iminente e imanente) do menor de idade negro, construído principalmente a partir de três eixos conceituais (o castigo moderado, o discernimento e o abandono moral), foi elemento formador de opinião, poder e sentimento influenciado e constituído pelo medo, o que ressignificou o espaço das ideias de liberdade, igualdade e mesmo de infância, sob a forma de um pretenso humanismo que, na verdade, apenas mascarava novas formas de submissão.

Palavras-chave

Escravidão; Lei do Ventre Livre; discurso do medo; negro no imaginário social; análise

de discurso; debate parlamentar; castigo corporal; vigilância comportamental; racismo.

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ABSTRACT

Both favorable and opposed discourses to the promulgation of the Brazilian Free Womb Law, as well as the discourses about the implementation of other measures aiming the gradual emancipation of black people were based on the same image: the slave as an element of danger to his master and the society. This fact, as verified by the present work, strengthened racial segregation and reinforced justifications for the arrangement of the black body as a space for violent actions. Based on Lynn Hunt’s concept of empathy and autonomy; Susan Buck-Morss' construction of multidimensional flow of information and political guilt; and the analysis of 1870 to 1871 parliamentary discourses, pronounced at the Brazilian Senate, 1870 to 1900 criminal law suits, and other works of this period, this study aims to demonstrate that discourses about underage black boys’ pretense criminalization (imminent and immanent), built mainly from three conceptual axes (moderated punishment, discernment and moral abandon), were crucial to form opinions and strengthen feelings based on fear. This re-signified the space of ideas of freedom, equality and even childhood, in the form of an alleged humanism that in truth only hid new ways of submission.

Key wordsSlavery; Brazilian Free Womb Law; fear discourse; black people in the social imagery; discourse analysis; parliamentary debate; physical punishment; behavioral vigilance; racism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... P. 12

CAPÍTULO I DOS DISCURSOS SOBRE A PROMULGAÇÃO DA LEI DO VENTRE LIVRE ......................................................................................................................... P. 18

CAPÍTULO II DA PRETENSA HUMANIZAÇÃO DOS CASTIGOS CORPORAIS APLICADOS AOS ESCRAVOS ........................................................................................................ P. 36

CAPÍTULO III O DISCURSO SOBRE A CRIMINALIDADE DO JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX …................................................................................................... P. 60

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... P. 96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... P. 104

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INTRODUÇÃO

Ao contrário do que pretende fazer crer a história comemorativa brasileira, a

promulgação da Lei do Ventre Livre (conhecida também pelo nome de Lei Rio Branco), de 28

de setembro de 1871, não representou um grande avanço no sentido de aquisição de direitos

individuais e sociais para as populações negras. Na verdade, além de ser um fruto da

discriminação da sociedade em relação aos escravos, a Lei do Ventre Livre se insere num

conjunto de discursos que, camuflando a necessidade de manutenção da ordem hierárquica da

sociedade sob a insígnia do humanitarismo, defendiam uma maior e crescente criminalização

do jovem negro, justificando tanto a disposição do corpo desses menores como espaço de

intervenção da violência quanto a criação de mecanismos de vigilância de seu

comportamento.

A narrativa histórica acerca de sua promulgação, como qualquer narrativa, está

sujeita a convicções, experiências pessoais e crenças do historiador, não se podendo, dessa

forma, excluir possíveis motivações políticas e ideológicas para a forma como a Lei do Ventre

Livre é atualmente vista: momento heróico e, de um ponto de vista ético-moral, politicamente

belo.

Porém, o que se esconde por trás da perpetuação dessa visão – por vezes

ingênua, por outras, bastante maliciosa – é a dinâmica do discurso do medo presente no

quadro das transformações econômicas e nas lutas sociais entre senhores e escravos no século

XIX.

O presente trabalho utiliza-se da análise de discurso para, a partir de discursos

parlamentares do Senado presentes nos Anais do Império de 1870 e 1871, de outros discursos

extraídos de obras da época relativas à discussão sobre a promulgação da Lei do Ventre Livre

e de uma amostra de 44 processos criminais1 compreendidos entre 1870 e 1900, com os

propósitos de (i) extrair do dito aquilo que não foi dito, ou que foi omitido ou mesmo

silenciado; (ii) estabelecer continuidades entre discursos que, por meio do esquecimento

ideológico, apresentavam-se vanguardistas à época quando, na verdade, retomavam sentidos

preexistentes; (iii) explicitar a atuação da memória discursiva na escolha do modo de se dizer

algo de forma a possibilitar, assim, a identificação e compreensão do modo como o que não

foi explicitamente dito nos discursos não deixava nem deixou de, igualmente, constituir os

1 Esses 44 processos foram encontrados nos Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes, disponível em <http://www.documenta.ufsj.edu.br/>. Mais informações sobre o acervo bem como a análise de 3 processos selencionados entre a amostra encontram-se no terceiro capítulo do presente trabalho.

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sentidos por eles produzidos2.

Em outras palavras, busca-se demonstrar que as discussões do século XIX

sobre a emancipação dos escravos, sobre a aplicação de castigos moderados e sobre a

criminalidade do jovem filho de mãe escrava não tinham como prioridade as demandas da

população negra, mas, antes, eram influenciadas pelo crescente medo presente no imaginário

social de que a população negra pudesse vir a inverter a ordem hierárquica da sociedade e

estavam comprometidas, portanto, com a manutenção dos privilégios senhoriais.

Dessa forma, pretende-se identificar um discurso em que o escravo era

concebido como um indivíduo dotado de ressentimentos e mágoas, sedento por vingança e

potencialmente perigoso, discurso competente não somente para justificar a necessidade de

conceder liberdade aos escravos, segundo a justificativa de que tais sujeitos representavam

uma grande ameaça ao senhor e à sua família, mas também para justificar a disposição do

corpo negro como espaço de intervenção da violência senhorial e estatal.

Importante ressaltar que, embora o presente trabalho tenha por objeto de estudo

discursos políticos e processos criminais, os elementos contraditórios que associam medo,

liberdade e juventude estavam presentes em outras dimensões do discurso abolicionista, como

na poesia de Castro Alves, conforme destacou Evandro Charles Piza Duarte3.

No poema “A criança”, pertencente à obra “Os Escravos”, de 1883, Castro

Alves constrói um diálogo entre um indivíduo genérico e uma criança, filha de mãe escrava,

que se encontra chorando na estrada. Inicialmente, a criança é representada como dotada de

inocência e digna de compaixão. Porém, ao final do poema, quando o interlocutor questiona a

criança sobre o motivo de seu choro e se dispõe a fazê-la sorrir, o inocente é convertido em

elemento de perigo potencial, ao afirmar que o motivo de sua tristeza é não ter mais mãe, por

causa da escravidão, e que por esse motivo quer vingança.

(...)É triste ver uma alvorada em sombras,Uma ave sem cantar,O veado estendido nas alfombras.Mocidade, és a aurora da existência,Quero ver-te brilhar.Canta, criança, és a ave da inocência.(…) Não. Perdeste tua mãe ao fero açoite

2ORLANDI, Eni puccinelli. Análise de discurso. Campinas: Pontes Editores, 2012.

3 DUARTE, Evandro Charles Piza. DO MEDO DA DIFERENÇA À LIBERDADE COM IGUALDADE: As Ações Afirmativas para Negros no Ensino Superior e os Procedimentos de Identificação de seus Beneficiários. Tese de doutorado. Brasília, 2011, p. 699.

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Dos seus algozes vis.E vagas tonto a tatear à noite.Choras antes de rir... pobre criança!...Que queres, infeliz?...— Amigo, eu quero o ferro da vingança.4

A Lei do Ventre Livre foi gerada em um contexto de medo, não de compaixão,

e representa, no imaginário social, uma possível solução a essa crescente desconfiança e

apreensão da sociedade escravocrata em relação aos negros. Porém, na prática, por possuir

pouca eficácia, essa Lei não amenizou o sentimento de medo que a sociedade possuía em

relação aos escravos. Antes, acabou por agravá-lo.

A referida Lei promovia uma liberdade fictícia para os filhos de escravas

nascidos a partir de sua promulgação, uma vez que essas crianças poderiam ficar sob a

custódia do proprietário de sua mãe até os 21 anos de idade (trabalhando, em regime escravo,

para pagar sua moradia e alimentação) ou poderiam ser entregues por aquele ao Governo.

Quando sob a custódia do proprietário de sua mãe, esses menores cresciam nas

senzalas, recebendo o mesmo tipo de tratamento dedicado aos seus pais, ou seja, estavam

sujeitos ao regime de trabalho aplicado aos escravos e podiam, inclusive, segundo o artigo 18

do Regulamento de 13 de novembro de 1872, ser submetidos a castigos corporais, desde que

não excessivos, detalhe este que conferia a tal regulamento ares humanitários, condizentes ao

espírito iluminista da época, mas que, convenientemente, abstinha-se de estipular parâmetros

para a aferição de abuso desse direito por parte dos senhores das mães dos nascidos livres

(alcunhados, doravante de ingênuos), sujeitando esses seres humanos, alcançados pela Lei do

Ventre Livre, ao juízo de proporcionalidade entre castigo físico e desobediência e à concepção

da diferença entre moderação e crueldade, ambas confiadas ao arbítrio privado daqueles

senhores.

O resultado da Lei do Ventre Livre, assim, foi o crescente abuso físico e mental

contra crianças e adolescentes negros, processo esse motivado pela ideia (presente no

imaginário social como consequência de argumentos usados nas ações tutelares que conferiam

ao abandono âmbito não somente físico, mas também moral e, ainda, atribuíam a esse

abandono a futura perdição dos menores) de que, com a promulgação de tal lei, o número de

crianças abandonadas havia aumentado e que, da situação de abandono e ócio desses menores,

decorreria o aumento da violência e criminalidade.

Nesse ponto, identifica-se novamente a dinâmica dos estereótipos sociais, vez

4 ALVES, Antônio Frederico de Castro. Os Escravos. 1883. Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Castro%20Alves-2.pdf>. Acessado em: 27 de novembro de 2013.

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que a sociedade começou a marginalizar as crianças e jovens negros, que eram prontamente

identificados como delinquentes e de tal identificação decorria, mais uma vez, a justificativa

para a disposição do corpo negro como espaço da intervenção da violência e a excessiva

vigilância sobre seus valores e modo de vida.

O intuito do presente trabalho, portanto, é analisar e evidenciar a continuidade

entre o discurso sobre a criminalidade dos jovens negros e a consequente necessidade de sua

constante vigilância e punição, que foi uma das consequências da edição da Lei do Ventre

Livre e dos discursos científicos e criminológicos que influenciaram a maneira com que as

populações jovens negras foram, desde a Lei do Ventre Livre, criminalizadas pelo imaginário

científico brasileiro, marcado pela retórica do medo, por meio da criação de leis e práticas

sociais segregacionistas.

Dessa forma, o primeiro capítulo do presente trabalho, a partir da

análise de discurso das obras "A emancipação dos escravos" e "Carta aos fazendeiros e

commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do Sr.

Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", ambas de 1871, e dos

discursos parlamentares do Senado dos anos 1870 e 1871, pretende demonstrar que tanto os

discursos favoráveis quanto os contrários à promulgação da Lei do Ventre Livre, assim como

os discursos sobre a implementação de outras medidas de emancipação gradual das

populações negras sob catividade, possuíam objetivos que, embora opostos, baseavam-se em

uma mesma imagem: a do escravo como elemento de periculosidade para seu senhor e para a

sociedade.

Assim, pretende-se comprovar que essa representação arraigada no imaginário

social acerca do negro condicionava o resultado da discussão, de modo que,

independentemente do ponto de vista político que se sagrasse vitorioso, desaguava-se em

uma única possibilidade: a intensificação da segregação racial e a formação de justificativas

para a disposição do corpo do negro como espaço de intervenção da violência.

O segundo capítulo, por meio da articulação das obras de Lynn Hunt5, Susan

Buck-Morss6 e de Evandro Charles Piza Duarte7, pretende demonstrar, a partir da ideia de que

o fluxo de informações formadoras de discursos era pluridimensional (de forma que os ideais

5HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos – uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.6BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. (Tradução de Sebastião Nascimento). Pensilvânia: University of Pittsburg Press, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002011000200010&script=sci_arttext>. Acesso em: 21 de outubro de 2013.7DUARTE, Evandro Charles Piza. DO MEDO DA DIFERENÇA À LIBERDADE COM IGUALDADE: As Ações Afirmativas para Negros no Ensino Superior e os Procedimentos de Identificação de seus Beneficiários . Tese de doutorado. Brasília, 2011.

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humanitários não nasciam na Europa e só então vinham a ser exportados para o restante do

mundo), que a propagação tanto das ideias iluministas quanto das experiências capazes de

transformar os processos de empatia e autonomia do corpo ocorria simultaneamente com a

escravidão8 e, por isso, tais valores e experiências teriam sido vivenciados pela sociedade

brasileira do século XIX.

Assim, busca-se explicar a persistência da cegueira da sociedade quanto às

condições dos escravos por outro argumento que não a incapacidade do branco de estabelecer

empatia pelo negro ou de conceber o corpo deste como autônomo e exclusivo. Tenciona-se,

portanto, comprovar que tal cegueira atuava como uma possível imposição do dever de

obediência social destinado à manutenção da ordem hierárquica e à proteção da coletividade.

Ainda, busca-se apresentar a questão da moderação dos castigos como possível subterfúgio

criado pela sociedade branca para preservar as estruturas do mundo escravocrata sem,

contudo, sucumbir à brutalização humana derivada dos flagelos a que os escravos eram

submetidos.

Por fim, o terceiro capítulo possui por objetivo esclarecer como o discurso

político da periculosidade do jovem negro converte-se em discurso jurídico, por meio da

análise de três processos da Comarca do Rio das Mortes e pelos discursos do final do século

XIX, que tinham por objeto a delimitação do conteúdo do termo "discernimento". Dessa

forma, visa-se comprovar a hipótese de que, após a promulgação da Lei do Ventre Livre,

estabeleceu-se um mecanismo de retroalimentação entre o crescente medo que a sociedade

sentia em relação aos negros e a necessidade de manutenção dos laços senhoriais.

Pretende-se mostrar, dessa forma, como o discurso sobre o abandono moral de

menores agravou a criminalidade do jovem negro no imaginário social e no espaço judicial. A

concepção moral do abandono, ao estabelecer que desse somente poderia decorrer a perdição

e a prática de condutas criminosas pelos menores, e que estas, por serem frutos da ociosidade,

somente seriam evitadas por meio da submissão dos ingênuos ao trabalho, apresentava-se

como instrumento de manutenção da ordem hierárquica da sociedade, ao proporcionar a

ampliação da possibilidade de incidência das ações tutelares. Tal ampliação facilitou a

sujeição de menores aos laços senhoriais e às estruturas de trabalho escravo, mas também, à

medida que a dimensão da concepção de abandono assumia maiores proporções, o discurso

que relacionava o abandono com a perdição intensificava-se de maneira alarmante.

Assim, o presente trabalho se propõe a demonstrar que a não submissão dos

8 BUCK-MORSS, Susan, op. cit.

17

jovens negros aos padrões de condutas e valores da sociedade branca, aliada ao discurso do

pretenso humanismo das medidas políticas voltadas a esses menores (que, na verdade,

tornavam possíveis novas formas de submissão dos negros aos interesses da elite branca),

resultaram na criminalização dos jovens negros, mesmo que esses estivessem na condição de

vítimas, o que tornava impossível a inclusão social deles senão como instrumentos de

sustentação dos privilégios brancos.

18

CAPÍTULO IDOS DISCURSOS SOBRE A PROMULGAÇÃO DA LEI DO VENTRE LIVRE

A Lei do Ventre Livre, embora possa ser apresentada como uma das causas

agravantes tanto da criminalização dos jovens negros quanto da aplicação de punições

corporais a estes, não pode ser indicada como marco espontâneo do surgimento dessa

criminalização e do consequente estabelecimento do corpo do negro como espaço de

intervenção da violência, pois a própria Lei do Ventre Livre é resultado de um contexto

histórico em que predominava no imaginário social a imagem do negro como um indivíduo

perigoso, subversivo e imoral.

Para compreender, portanto, como, a partir da promulgação dessa lei, o

sentimento de medo da sociedade em relação aos indivíduos negros é agravado, gerando o

discurso sobre a criminalidade dos jovens negros e produzindo justificativas para a aplicação

de castigos corporais contra estes, é necessário, antes, entender como e por que esse

sentimento de medo e apreensão, por parte da população branca, foi construído.

No entanto, estabelecer temporalmente de maneira precisa quando surgiu a

necessidade humana de se diferenciar em grupos ou quando surgiu o preconceito ligado aos

critérios utilizados para promover essa diferenciação é tarefa que não se encontra entre as

pretensões do presente trabalho, pois impossível a qualquer pesquisador.

Dessa forma, objetivando explicar como fenômeno histórico o processo de

marginalização dos jovens negros e de naturalização no imaginário social da aplicação de

punições corporais a estes, faz-se necessário recorrer à exploração do campo lexical referente

ao conceito de “outro”, articulando-o ao conceito de “medo” para, assim, tornar-se possível,

a partir da compreensão da dinâmica do discurso do medo, entender o processo da

criminalização dos jovens negros e da naturalização das punições corporais pelo imaginário

social antes e após a promulgação da Lei do Ventre Livre.

Há vasta literatura acerca da contraposição existente entre os conceitos "outro"

e "eu", sendo estes fundamentais à construção do discurso sobre a diferença e à

fundamentação de preconceitos ligados a divisões promovidas pelo ser humano de acordo

com determinados critérios, como cor, descendência, classe social, domínio da linguagem,

entre outros. Se tais conceitos forem considerados sob uma perspectiva que priorize a

atuação das relações de poder em determinada sociedade, verificaremos a existência de dois

19

grupos sociais: os estabelecidos e os outsiders9.

Os primeiros, visando à manutenção de sua posição de poder dentro da

localidade onde habitam, criam um sistema de diferenciação entre si e os demais (os

outsiders), por meio de comportamentos sociais tais quais a estigmatização e a fofoca, que

permitem a identificação de si mesmos com os valores humanos mais nobres e a atribuição

da ausência de valores humanos superiores ao grupo dos outsiders.

A estigmatização consiste na atribuição de um sinal, um símbolo a um

indivíduo, indicando que este deve ser evitado, ignorado pelo restante da sociedade. Já a

fofoca, por seu turno, não possui uma função meramente de entretenimento, mas atua como

importante mecanismo de promoção da coesão social, como artifício de manutenção do poder,

vez que, além de garantir que nenhum integrante dos estabelecidos irá se relacionar de

maneira que não seja meramente profissional com um outsider, por temer a consequente

queda de status social gerada pela fofoca, confirma e propaga os valores negativos atribuídos

aos outsiders.

A construção dos conceitos de "outro" e "eu" sobre uma base que considera as

relações de poder existentes em uma sociedade possui ainda o condão de demonstrar como a

depreciação sofrida pelos outsiders não é internalizada apenas pelos estabelecidos, mas

também pelos próprios outsiders. Estes, além de justificarem para si mesmos o preconceito

por parte dos estabelecidos, pois atribuem essa ausência de valores humanos considerados

superiores a parcelas do grupo ao qual pertencem (fenômeno explicado pela falta de coesão

social, vez que os outsiders vivem há menos tempo na localidade e, por isso, tiveram menor

oportunidade de convívio, formando laços raros e frágeis entre si), possuem jovens em seu

grupo que cresceram revoltados com o preconceito, tendendo, portanto, a se portar de maneira

imoral, vez que seriam tratados como delinquentes pelos estabelecidos de qualquer forma.

A internalização da inferioridade pode ser inclusive incentivada pelos

estabelecidos, é o que ocorre quando estes, por exemplo, proíbem que os outsiders exerçam

comportamentos comuns a toda sociedade como, por exemplo, utilizar sapatos.

A construção da imagem do "outro" pode ainda ser entendida como derivação

da imagem do "eu", fenômeno que seria fruto de uma paranoia fundada num medo

inconsciente de si mesmo10. Transpondo a análise para as relações vivenciadas a partir do

9ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

10SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

20

colonialismo e do escravismo, pode-se sugerir que a imagem europeia do "outro" teria sido

construída a partir do próprio modelo da imagem do homem europeu. Ou seja, informaria

muito mais sobre a cultura e identidade do povo europeu, a partir da análise de sua

perspectiva sobre o mundo, do que sobre os povos considerados como os outros.

A imagem do outro se assemelharia, assim, mais ao homem europeu do que ao

que os indivíduos não-europeus realmente eram antes da dominação e colonização, pois a

estes indivíduos não foram atribuídos defeitos novos ou vícios de caráter por aqueles

desconhecidos. Antes, foram atribuídos os defeitos que os europeus, em nome do modelo que

criaram para si mesmos, não foram capazes de assumir.

Ainda no campo lexical do conceito “outro”, é relevante explorar os conceitos

de “negro” e “escravo”. "Negro" constitui, na verdade, um conceito construído pelos

europeus (a partir da homogeneização e uniformização de diferenças existentes entre as

diversas tribos africanas que não se enxergavam nem como negras, nem como africanas) para

distinguir indivíduos de cor de pele diferente da sua própria pele.

Por sua vez, o conceito “escravidão” foi reconstruído também pelo ponto de

vista “branco”.

Embora a escravidão fosse uma desigualdade que existia desde a Antiguidade,

esta era associada à guerra ou à dívida, ou seja, possibilitava que os escravos possuíssem

diversas procedências, suas bases modificaram-se na modernidade: a Escravidão Moderna

permitiu a pronta identificação entre “negro” e “escravo”, vez que os indivíduos escravizados

possuíam apenas o local de procedência – a África – e a cor de pele como denominadores

comuns11.

O processo de transferência para o outro daquilo que a coletividade não quer

reconhecer em si mesma pode ser entendido como uma forma de purificação, pois é um

modo que a coletividade possui de buscar os culpados de seus problemas sem abalar a coesão

social, vitimizando-se de forma a justificar, antecipadamente, os atos de injustiça que

cometerá contra os supostos culpados. Porém, se a coesão social é mantida, o medo persiste,

pois, se agora não há medo das mazelas da vida, há a noção, mesmo que inconsciente, de se

ter prejudicado o outro, gerando nele rancor, que poderá se manifestar futuramente,

colocando em risco, dessa forma, a manutenção da hegemonia do poder12.

11BARROS, José D’Assunção. A Construção Social da Cor – Diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009.

12DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

21

Fato é que, muito antes de 28 de setembro de 1871, data da promulgação da

Lei do Ventre Livre, e também após essa data, a sociedade brasileira encontrava-se sob

constante tensão entre brancos e escravos, pois a cada medida adotada no sentido de se

extinguir gradualmente a escravidão e melhorar as condições de vida dos escravos através de

políticas paternalistas, estes, ao contrário do esperado por seus senhores, se agitavam ainda

mais, demonstrando que as possibilidades paliativas e de acomodação do sistema escravocrata

já tinham sido superadas. A respeito dessa tensão constante entre senhores e escravos, afirma

Maria Helena Machado:

De fato, ao longo dos anos 70 e 80, a identificação do escravo enquanto "inimigo doméstico" irreconciliável escapa das páginas dos livros dos reformadores, que desde os inícios do século debatiam-se com o problema da heterogeneidade ou da diferença sob a qual se constituia, sob a égide do sistema escravista, a nação, ganhando as tribunas, os jornais, vulgarizando-se. Na esteira do incremento de uma criminalidade escrava bem definida, os fazendeiros passavam a concientizar-se de que estavam sentados sob um vulcão que poderia explodir a qualquer momento, colocando em risco não apenas a viabilidade econômica de suas plantações, como a si próprios e a suas famílias. Ora, a redundância com que se sucediam as denúncias acerca dos crimes de escravos, com seus requintes de crueldade e "irracionalidade" passavam a conotar a escravidão como empresa de risco. (MACHADO, 1994, p. 24).

Porém, o medo que os senhores de escravos direcionavam às populações

negras não era apenas o receio de serem submetidos, individualmente, à violência que

normalmente infligiam aos escravos. Desde a Revolução do Haiti, ocorrida em 1791, em que

houve a adoção de ideais até então entendidos como aplicáveis somente a contextos que

envolviam indivíduos brancos, suas elites e conflitos de direito entre si, tais como igualdade e

liberdade, a extrapolação dessas ideias além do limite esperado pelas elites alastrou-se pelo

mundo gerando, assim, o grande temor de que, por meio da violência, de uma possível

superioridade bélica e numérica, os escravos pudessem promover a inversão da ordem

hierárquica, o que ocasionaria o desaparecimento do mundo escravista e do modo de vida e

privilégios ligados a tal modo de produção e existência13.

É nesse contexto de medo em que, às vésperas da promulgação da Lei do

Ventre Livre, são proferidos discursos tanto no sentido de apoio à emancipação gradual dos

escravos – e consequente aprovação de tal lei – quanto no sentido de existência de

necessidade de a lei não ser aprovada. Embora tais discursos possuíssem objetivos opostos,

13AZEVÊDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

22

constata-se que compartilham, como demonstram as obras "A emancipação dos escravos" e

"Carta aos fazendeiros e commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do

parecer do Sr. Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", entre si

a mesma base argumentativa, que é a imagem do escravo como indivíduo perigoso para seu

senhor e para a sociedade.

A obra "A emancipação dos escravos" é um parecer escrito por Christiano

Benedicto Ottoni, em 15 de julho de 1871, para o Clube Fluminense da Lavoura e do

Comércio. Nesse parecer, Ottoni apresenta a proposta dos ventres livres como contrária aos

interesses da sociedade brasileira, ressaltando que o problema a ser questionado não era a

necessidade de se promover a emancipação dos escravos, mas a maneira pela qual esta

deveria ocorrer.

Segundo o autor, o projeto da Lei do Ventre Livre, apesar de não se apresentar

como a melhor medida a ser implementada no país, de um ponto de vista tanto econômico

quanto social, teria sido o projeto escolhido, entre as demais opções, para ser levado adiante,

por ser obra do Imperador e seu Ministério.

Assim, Ottoni fundamenta a falta de interesse da Nação na promulgação de tal

projeto no fato de nem ao menos os relatórios e estudos sobre a oportunidade e os impactos de

tal medida, realizados pelo Conselho de Estado, terem sido apresentados à Câmara para que

essa pudesse analisar a viabilidade dos ventres livres. Melhor seria, para o autor, que em

menos de um século a escravidão fosse extinta por meio do natural decréscimo populacional

dos negros (devido ao excesso de número de óbitos em relação ao número de nascimentos),

pelas alforrias concedidas voluntariamente pelos senhores de escravos e por meio da

instituição de um fundo social de custeio da emancipação.

Por seu turno, na obra "Carta aos fazendeiros e commerciantes fluminenses

sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do Sr. Conselheiro Christiano Benedicto

Ottoni ácerca do mesmo assumpto", datada de 16 de agosto de 1871, o autor anônimo, que se

identifica apenas como "um conservador" ou "VALETE" dirige-se, por meio de uma carta

aberta, aos fazendeiros e comerciantes fluminenses, os quais, aconselhados em "Emancipação

dos escravos", por Christiano Benedicto Ottoni, um republicano, posicionam-se

contrariamente à promulgação da Lei do Ventre Livre.

Embora fosse evidente que o objetivo primordial da aludida carta era o de

defender o sistema monárquico, o autor, ao tentar demonstrar que a única razão de Ottoni se

opor à promulgação da Lei do Ventre Livre era o fato de o projeto dessa lei ser apoiado pela

23

Monarquia, acabou por deixar transparecer o medo que direcionava, inclusive, às razões

daqueles favoráveis à emancipação gradual dos escravos. Assim se constata ao examinar-se o

seguinte trecho:

(...) Não se deixem (os Srs. Deputados) coagir pela historieta da politica imparcial da Corôa, nem intimidar pela figa do programma de reformas liberaes. Assim, senhores, as màs consequencias que o vosso conselheiro indicava, deixam de existir, porque elle entende que se deve protelar a decisão da camara; a base do projecto não deve ser submettida a exame regular e á decisão das camaras, sómente porque foi apadrinhada pelo prestigio da monarchia, que é e será sempre o primeiro fundamento da ordem e da liberdade deste paiz; e a camara satisfazendo aos inimigos da monarchia deve recorrer a um meio indigno della!Sabeis porém qual é a opinião de muitos fazendeiros a semelhante respeito? Permitti que vo-lh'a exponha. Os fazendeiros do Rio Bonito na sua representação ao poder legislativo, que encontrareis no Jornal do Commercio de 16 de Junho, dizem: Fazendo este pedido não são os abaixo assignados compellidos pelo desejo de opposição radical á idéia de emancipação, nem têm em vistas levantar embaraços á que desde já se resolva definitivamente esse problema. Pelo contrario sendo a resolução de tal problema, reclamada pela religião, pela moral, e por todas as leis sociaes e economicas; affectando directa e immediatamente os mais vitaes interesses da lavoura, fonte principal da riqueza publica, e conseguintemente entendendo com o bom estar de todas as classes da sociedade brasileira, é mister pôr-lhe um termo quanto antes para que desappareça o estado de incerteza, em que tem estado o paiz de certo tempo a esta parte; incerteza que perturbando as relações eutre os senhores e os escravos produziu naquelles terrores não destituidos de fundamento, e nestes esperanças temerarias. Este estado de duvida não póde continuar. (ANÔNIMO, 1871, p. 11/14).

As questões relevantes presentes no trecho acima transcrito estão mais

intimamente relacionadas àquilo que não foi dito expressamente pelo emissor da mensagem

do que àquilo que está explícito, pois são justamente os sentidos constituídos por aquilo que

foi esquecido, foi omitido ou foi silenciado em um discurso que se perpetuam de maneira

imperceptível no imaginário social.

Uma vez que o discurso não é transparente14, mas sim dotado de historicidade,

e que, por outro lado, deve-se atribuir sentidos aos fatos, mister se faz recorrer à análise de

discurso como metodologia viável para revelar a atuação da memória discursiva, do

inconsciente e da ideologia existente por detrás do processo de formação dos significados da

mensagem, pois, no presente trabalho, mais importante do que determinar o que os discursos

analisados querem dizer é determinar como esses discursos produzem significados.

Somente dessa forma, através da conjugação da língua com a história na

produção de sentidos discursivos, é possível que os textos sejam trabalhados não apenas como

ilustrações, documentos exemplificativos de um conhecimento que já foi produzido em outro

14ORLANDI, Eni, op. cit.

24

lugar, mas principalmente como fontes desse conhecimento, o qual, dessa forma, pode ser

produzido a partir do próprio texto, da análise de como e em que contexto se formou

determinado discurso, vez que, na análise discursiva, não há separação entre a forma e o

conteúdo, dado que a língua não é meramente a estrutura pela qual se transmite uma

mensagem, mas o próprio acontecimento15 a ser analisado.

Quando, portanto, no discurso acima transcrito, o emissor informa o

posicionamento dos fazendeiros do Rio Bonito em relação à aprovação da Lei do Ventre

Livre, os quais afirmaram que a emancipação gradual dos escravos seria medida exigida

pelos valores religiosos, morais e pelas leis sociais e econômicas, não deve tal discurso ser

tomado apenas como exemplo do contexto em que ocorriam as discussões desse período, mas,

antes, como material capaz de historicamente informar que, na época em que se discutia a

promulgação da Lei do Ventre Livre, os senhores de escravos não mais consideravam a

escravidão como algo natural ou ligado a um direito divino, mas já tinham consciência de sua

artificialidade social, sua imposição pelo poder e pelo violência, de modo que não se poderia

justificar a existência de escravos em mais nada além da manutenção da ordem econômica e

hierárquica da sociedade.

Embora "A emancipação dos escravos" possuísse um objetivo oposto de "Carta

aos fazendeiros e commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer

do Sr. Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", ou seja, embora

contivesse argumentação contrária à promulgação da Lei do Ventre Livre, os discursos de

ambas as obras produzem sentidos complementares. Assim, se a análise de discurso da

segunda informa a ciência da artificialidade social da escravidão, a análise da primeira, como

veremos no fragmento abaixo transcrito, veicula um juízo social de desvalor dessa

artificialidade.

Hoje um membro do 16 de Julho traz o mesmissimo projecto da Commissão do anno passado: mas para que uma proposta nova, se a idéa fundamental é a mesma e as accessorias se podiam emendar na discussão? E' que não se quer a iniciativa da Camara, sim a do Mornarcha, para que se continue a dizer na Europa que é Sua Magestade Imperial o unico brasileiro inimigo da escravidão!Se do lado do poder se põe assim a questão, não pódem extranhar que n'esse terreno a aceitemos.As discussões da imprensa, depois da proposta do Governo, offerecem observações analogas: quem as tem acompanhado, lhes terá reconhecido estas duas feições carecteriscas.1.ª Ninguem defende a escravidão: reconhecem hoje todos a necessidade de medidas que dentro de um prazo mais ou menos limitado extirpem o cancro social: versa a

15Ibid.

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divergencia sobre a escolha dos meios mais ou menos directos, mais ou menos efficazes, mais ou menos perigosos.2.'ª Paira sobre todos os estudos um prejulgamento, uma coação moral e politica que tolhe e constrange o livre exame, e que bem póde viciar a solução.Um ou outro protesto que surge pela simples conservação do status quo, são excepções que não refutam a minha primeira asserção; e d'esses não me occuparei, limitando-me a pedir a Deus que os esclareça. Entretanto, o que pretende a grande maioria dos interessados que reclamam contra o projecto ministerial? Querem garantias de segurança para as suas familias, de ordem e de paz para seus estabelecimentos ruaes, de respeito á propriedade, embora illigitima, adquirida em boa fé e consagrada pela legislação. (OTTONI, 1871, p. 10/11).

Nesse fragmento, a preocupação essencial do emissor do discurso é demonstrar

o interesse do Imperador em promover a emancipação gradual dos escravos somente por meio

de projeto que a ele possa ser atribuído. Dessa forma, Ottoni questiona o motivo de o projeto

da Lei do Ventre Livre ter sido apresentado pelo governo como alternativa única, após a

rejeição, em 1870, pelo Ministério, do projeto da Comissão especial – que, embora não

contivesse a previsão do ventre livre, e sim proposta de arrolamento dos escravos e faculdade

para libertar os da Nação, possuía a mesma finalidade central daquele projeto. qual seja: a

emancipação gradual do elemento servil) – se, no entanto, o projeto da Comissão poderia ter

sido adotado de maneira complementar ao ventre livre.

Importante ao presente trabalho, no entanto, é a indignação de Ottoni para com

o Imperador naquilo que não se manifesta de maneira direta e explicita em seu discurso, mas

que, no entanto, não deixa de produzir sentido.

Ao acusar o monarca de possuir a ambição de ser visto pela Europa como o

"único brasileiro inimigo da escravidão", Ottoni, na verdade, com essa construção discursiva,

não está somente criticando a excessiva vaidade do Imperador, mas manifestando apreensão

quanto à possibilidade de a sociedade brasileira, como um conjunto, não ser vista como

contrária à existência de escravos. Essa preocupação percebida no discurso de Ottoni insere,

dessa forma, a discussão da Lei do Ventre Livre em um contexto histórico em que era feio ou

socialmente reprovável ser visto como partidário da escravidão.

A existência de tal preocupação pode ser confirmada pela afirmação, no mesmo

fragmento, de que nenhum brasileiro defendia a perpetuação da existência dos escravos. Por

meio dessa segunda construção discursiva, Ottoni não informa somente a existência de uma

apreensão coletiva, mas o temor próprio de, ao posicionar-se contrariamente à promulgação

da Lei do Ventre Livre, ser considerado entre os seus como escravista.

Da mesma forma, ao recorrer a Deus para esclarecer aqueles que ainda

pudessem se posicionar de maneira favorável à manutenção da escravidão, não somente

26

insere-se fora desse grupo de indivíduos, como também, ao contrapor Deus e a perpetuação da

escravidão, fortalece a capacidade de tal discurso informar historicamente a condenação

social, de um ponto de vista moral, da existência de escravos.

Se não houvesse o medo de reprovação social, tanto individualmente como

coletivamente considerada, por que a nação cederia, como afirma Ottoni que ela o fez, à

coação moral por parte do monarca? Haveria somente que se falar em coação política, em

arbitrariedade do poder imperial ou mesmo em imposição pela força, mas, no entanto, o que

nos informa o discurso de Ottoni é a submissão da concordância da sociedade brasileira não

ao medo de uma iminente retaliação do poder do imperador, mas a um constrangimento de

ordem moral que somente é possível quando se possui noção de estar fazendo mal e, mais, se

possui o medo de ser moralmente julgado por fazer mal.

Ainda, no trecho do fragmento discursivo em que Ottoni invoca Deus, aquele

utiliza a expressão "um ou outro protesto que surge pela simples conservação do status quo"

para indicar indivíduos que defenderiam a continuação da escravidão. No entanto, logo em

seguida, Ottoni afirma, com certa condescendência em relação aos refratários à abolição, que

os que são contrários à promulgação da Lei do Ventre Livre assim o são porque querem a

adoção de medida emancipatória capaz de garantir, de um lado, a segurança de suas famílias e

propriedades rurais e de respeitar, de outro lado, o direito de propriedade do senhor sobre o

escravo, por mais ilegítimo que fosse.

O que implicitamente está presente em tal discurso, portanto, não é o

desconhecimento de Ottoni sobre o que seria manutenção do status quo: muito pelo contrário,

é a existência da submissão do discurso humanitário (abordada de maneira mais detida no

próximo capítulo) à necessidade de conservação da ordem hierárquica da sociedade e dos

privilégios dos brancos, submissão essa que se manifestou e se naturalizou por meio do

discurso da emancipação gradual e da moderação na aplicação de castigos aos escravos.

Assim, por meio de medidas que aparentemente melhoravam as condições de

vida dos escravos, sem, no entanto, representar o fim das estruturas que caracterizam o

trabalho escravo, a sociedade criava escapes para a contradição existente entre seus valores

morais e a necessária existência dessas estruturas para a manutenção da ordem social.

O discurso de Ottoni revela que, por meio de melhorias no tratamento e

concessões gradativas de liberdade, procurava-se eliminar os horrores da escravidão sem,

contudo, abalar estruturalmente as relações de trabalho existentes no país. Tais melhorias e

medidas gradativas possuíam o efeito de discursivamente reduzir os prejuízos de ser escravo a

27

uma nomenclatura, como se a monstruosidade de "ser escravo" estivesse unicamente contida

no nominalismo de "ser escravo".

Dessa forma, a apreciação valorativa das condições ligadas a essa

nomenclatura era relegada a um segundo plano de importância, criando a impressão ilusória

de que se estava resolvendo o problema da existência da escravidão ao limitar os excessos dos

senhores e ao eliminar gradualmente a possibilidade dos indivíduos negros serem

classificados como escravos quando, na verdade, permitia-se a sobrevivência das condições e

estruturas a ela ligadas, mesmo que a escravidão viesse a ser abolida, como de fato o foi (e

sem nenhuma medida para a inclusão efetiva dos negros como cidadãos brasileiros)16.

Em outras palavras, intentava-se acabar com a escravidão sem, no entanto,

abolir as estruturas que forneciam autorização tanto para o enriquecimento por meio da

exploração de trabalho quanto para a violência como modo de coação dos indivíduos negros.

Voltando à análise do trecho da obra "Carta aos fazendeiros e commerciantes

fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do Sr. Conselheiro Christiano

Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", ao mencionarem, de maneira velada, o estado

de incerteza pelo qual passava o país naquele determinado momento histórico, bem como as

perturbações existentes entre os senhores e seus escravos, relacionando àqueles terrores

justificáveis e a estes, esperanças temerárias, os fazendeiros do Rio Bonito talvez não tenham

contribuído de maneira concisa para uma análise de conteúdo, vez que os termos que

utilizaram tenham sido abertos e imprecisos para exemplificar o que se sabe sobre o contexto

histórico da época. Porém, através da análise de discurso, é possível estabelecer, a partir da

escolha das palavras e de sua disposição, e mesmo a partir da imprecisão com que a

mensagem é emitida, a dinâmica do medo atuante naquela sociedade.

A forma velada pela qual a questão da revolta dos escravos era tratada na

imprensa e na esfera pública reflete o temor de que a difusão de informações precisas sobre

tal questão pudesse gerar pânico social entre as diversas camadas da população, conduzindo o

país à violência e à desordem, capaz de gerar um completo caos que colocaria em risco a

ordem hierárquica e os privilégios da elite17.

Também na fala do Senhor Nabuco, proferida na sessão do Senado em 27 de

junho de 1870, pode-se visualizar o processo de produção de sentidos do discurso a partir

16José Alipio Goulart, por exemplo, denuncia a insistência de alguns fazendeiros em aplicar castigos corporais aos imigrantes europeus que vieram substituir os escravos na lavoura e aos trabalhadores livres. GOULART, José Alipio. Da Palmatória ao Patíbulo (Castigos de Escravos no Brasil). Rio de Janeiro: Conquista, 1971, p.65.17MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. Os Movimentos Sociais na Década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

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daquilo que não foi expressamente dito, o que revela, dessa forma, a relação existente entre

discurso e história.

Senhores, só há uma questão em que o governo não quer tomar a iniciativa; só há uma questão que o governo abandona á iniciativa privada: é a emancipação dos escravos. Esta grande questão do paiz o governo a entrega á iniciativa individual, sem duvida porque nada quer fazer, sem duvida porque elle sabe que a iniciativa individual entre nós é absolutamente nulla.E, na verdade, senhores, como se manifesta na Inglaterra a actividade do self-government senão pela associação? Mas este meio de actividade da iniciativa individual é entre nós absolutamente nullo, porque a associação está por todos os modos manietada pela lei de 1860. ·Entretanto, eu posso aventurar sem medo de errar que o governo, abandonando a questão da emancipação, deixando a ao azar, não serve á causa publica porque fica adiada indefinidamente a anciedade dos senhores que querem uma solução, e deixam-se vagas e illimitadas as esperanças dos escravos.Eu na verdade tenho apprehensões por causa de tantas festas; não sei que empenho é este do governo em promover esse movimento das massas! Será que se pretenda antes divinisar a guerra do que a paz? Será que se pretenda inspirar na nossa população o espírito bellicoso? Mas, senhores, o espírito bellicoso, quando não tem objecto para sua actividade no exterior, é fatal no interior! A paz, a paz é a unica necessidade que temos, e a unica felicidade das nações.18

Mais tarde, em outra sessão do Senado, ocorrida no dia 12 de julho de 1870, o

Sr. Nabuco retomaria a questão da agitação crescente dos escravos em relação à cada vez mais

urgente e próxima emancipação.

Assim, Srs. ministros, deixastes os senhores entregues á uma anciedade peior do que a do condemnado que espera a execução da sentença: deixastes os escravos alimentar esperanças vagas, indefinidas, para tardes de lutar depois com a impaciencia delles, com a desesperação delles.E dizeis que a questão não está estudada? Então não ha entre nós questão estudada! Pois uma questão formulada em um projecto elaborado no conselho de Estado, ahi discutido e approvado, não é uma questão estudada neste regimen? Existe esse trabalho e tanto que a commissão da camara dos deputados exigiu logo que viessem os trabalhos confeccionados no conselho de Estado.19

No primeiro trecho transcrito, Nabuco refere-se como sendo ilimitadas as

esperanças dos escravos quanto a sua emancipação para, logo em seguida, referir-se ao temor

que possuía de a então recente animosidade gerada pelo final da Guerra do Paraguai provocar

uma crescente belicosidade na população. Ao jogar com essas duas ideias no mesmo discurso,

Nabuco, embora imbuído da clara intenção de defender o interesse dos escravos em relação à

conquista de sua liberdade, pela escolha das palavras e da estrutura de seu discurso, faz

presente a questão da periculosidade do escravo para a sociedade e, consequentemente

18 Discurso do Sr. Nabuco, na sessão do dia 27 de junho de 1870 do Senado Brasileiro.

19 Discurso do Sr. Nabuco, na sessão do dia 12 de julho de 1870 do Senado Brasileiro.

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fornece um argumento baseado no medo que poderia ser usado em sentido contrário para a

defesa do adiamento da medida emancipatória em discussão.

O mesmo pode ser concluído sobre o segundo discurso, pois, ao apresentar a

impaciência dos escravos como argumento capaz de justificar a emancipação gradual,

Nabuco, de maneira não intencional, mas sujeito aos efeitos da língua e da história, emitiu

esse discurso a partir de uma posição na história que alinhava sentidos provindos de discursos

segregacionistas, de inferiorização e bestificação do negro.

Tais efeitos de sentidos também podem ser verificados em discurso proferido

por Nabuco mais tarde na mesma sessão. A partir da colocação desse discurso em relação a

outros discursos que, valendo-se da dinâmica do medo, poderiam tanto incentivar como

rechaçar a aprovação de medidas graduais de emancipação, percebe-se que o sentido

perpetuado é o da periculosidade do escravo para a sociedade e suas estruturas.

Senhores, este negocio é muito grave: é a questão mais importante da sociedade brasileira (apoiados); e e imprudencia abandonal-a ao azar. Quereis saber as consequencias? Hei de dizer com toda a sinceridade, com toda a força das minhas convicções; o pouco serve hoje, e o muito amanhã não basta; as cousas politicas teem por principal condição a opportunidade; as reformas por poucas que sejam valem muito na ocasião; não satisfazem ao depois ainda que sejam amplas. Não quereis os meios graduaes: pois bem, haveis de ter os meios símultaneos; não quereis as consequencias de uma medida regulada por vós pausadamente, haveis de ter as incertezas da imprevidencia; não quereis ter os inconvenientes economicos porque passaram as Antilhas ingleza e franceza, arriscae-vos á ter os horrores de S. Domingos.20

Retomando a análise de discurso da obra "Carta aos fazendeiros e

commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do Sr.

Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", é possível prontamente

identificar o medo que a sociedade branca tinha em relação ao contingente númerico de

negros e mestiços.

No lamentavel intuito de fortificar estas apprehensões, pretende o vosso illustrado conselheiro (pag. 70) que classificando as turmas de nascidos em cada anno de 1872 a 1899, e calculando-as segundo a lei de sobrevivencia pelas taboas de Montferrand, haveria 73.339 crianças livres de um a dez annos, 177.468 crioulos de 11 a 20 para serem contidos no trabalho forçado, e 193.118 emancipados de 21 a 28 annos, que seria preciso policiar e obrigar ao trabalho em 1900. Que meios, pergunta elle, e que policia bastaria para tanto?A resposta a esta consideração é fácil. As 73.339 crianças livres são contidas pelo poder da familia, á que estão ligadas, e vivem ainda na classe dos innocentes; todos os mais o serão pelo trabalho agricola á que se entregam, e que é o pai e a mãi da ordem social.

20Discurso do Sr. Nabuco, na sessão do dia 12 de julho de 1870 do Senado Brasileiro.

30

Demais; esses individuos estão espalhados pela immensa superficie do Imperio, e contando este actualmente uma população livre de 8.000.000 de habitantes, que em 1900 se terá elevado a 10.000.000 pelo menos, esses 370.686 individuos maiores em 1900, corresponderão apenas a 3 1/2 %, isto é, haverá um livre por effeito da proposta do governo para 30 do restante da população. Haverá nisso perigo para nos assustar? Quando em 1865, Lincoln declarou a emancipação de todos os escravos dos Estados-Unidos a relação desses escravos nos Estados do Sul, que tinham uma população de 8.000.000 de habitantes livres, era de um escravo para dous brancos; e entretanto apezar de todos os incitamentos da época, a paz publica se não interrompeu alli.Conhecidos como são estes factos, admira, honrados Srs. fazendeiros e commerciantes, que o homem que nos pergunta seriamente que meios e que policia bastaria para proteger em 1900 a sociedade contra a existencia de 370.686 cidadãos, que ficaram livres desde a data da lei, seja o mesmo que não teme deixar livres nesse mesmo anno de 1900 toda a população, que então restar dos 1.500.000 ou dos 2.000.000 escravos, que actualmente existem no Imperio, e que deveriam conservar-se nesse mesmo computo se não se elevassem pela lei natural do progresso de humanidade, uma vez que na sua opinião não se deve extinguir a fonte da escravidão pela libertação do ventre. Assim o Sr. Conselheiro Ottoni, depois de fazer diversos calculos para conhecer a quanto monta o fundo de emancipação, que seguindo a lembrança da proposta do governo elle annue a que se crêe, pretende a pag. 48 que é facil com medidas indirectas elevar a 5% a taxa da reducção annual, e que a diminuição da massa da população escrava seria tão rapida, que cada anno passado tornaria mais facil qualquel solução. A pag. 51 elle diz igualmente - por estes meios póde-se antes do fim do seculo extinguir a escravidão, como se amortiza um capital. Se todos esses escravos não morreram, nem podiam morrer no fim do seculo actual, porque se recrutaram pelos nascimentos de outros, parece-vos, que ha seria argumentação em que se exprime por tal modo valendo-se de imaginarios terrores?Antevendo uma primeira objecção, de que pelo seu methodo tambem se lançaria á sociedade annualmente bandos e acervos de escravos em estado livre, e sem preparo, que provocaria grandes perigos para nos servirmos das suas expressões a pag. 40, na pagina seguinte julga o Sr. Ottoni dissolvel-a, dizendo: que não ha methodo de extinguir a escravidão, que escape aos perigos mencionados, e que o systema do projecto do governo, os offereceria em maior escala se contra as suas provisões pudesse ser executado sem perturbação. Notando-vos que esta ultima phrase parece não ter sentido, porque nenhum perigo póde resultar de um systema, que se executa sem perturbação, dirijo-me á vossa razão? Podeis julgar que maior perigo ha no projecto do governo em libertar as gerações futuras, e ter no fim do seculo 370.686 livres pelo nascimento, do que em apresentar na sociedade 1.500.000 a 2.000.000 de pessoas, que então sahiram da escravidão?Pretende o Sr. Ottoni com os seus algarismos, a pag. 41, que a primeira turma dos nascidos ditos livres de 1.500.000 escravos actuaes, seria de 34.500, e que destes poderão chegar aos 21 annos uns 22.000... Eis-ahi bandos de 20.000 e mais escravos, exclama elle, lançados repentinamente na sociedade sem preparo, e sem escolha... A emancipação gradual, attendendo-se á mortalidade, e ás manumissões espontaneas, poderá contentar-se com muito menor número, como hei de demonstrar ainda neste capitulo.(...)Se sómente por effeito das manumissões individuaes o Sr. Ottoni affirma a pag. 51 que póde-se antes do fim do seculo extinguir a escravidão como se amortiza um capital, e a pag. 48 que por effeito das manumissões resultantes do fundo da amortização, que concorre com aquellas e com a morte, os 6% reduzirão a população escrava em dez annos á metade, segue-se que nesta hypothese o contingente de escravos, que se lançarão logo no primeiro anno, elevar-se-ha a 52.500 individuos. Na primeira hypothese tudo lhe parece perigos, desordem, desorganização, etc.; na segunda nada enxerga. Ha real procedencia em taes raciocinios?Estes resultados não podiam escapar á perspicacia do Sr. Ottoni, patentes como se deixam mostrar a todo espirito reflectido; mas querendo de certo modo prevenir a objecção sem enuncial-a, julga escapar-se della dizendo-nos, que o seu projecto de

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lançar annualmente na sociedade 37.500 a 52.500 libertos pelo fundo emancipador, ou por liberalidades particulares (o que vem a ser o mesmo), é mais conveniente, porque póde dar-se preferencia ás familias, aos que celebrarem contractos de locação de serviços, etc., emquanto que no caso da proposta do governo cada mó de individuos embrutecidos pelo captiveiro de facto, em que jazeram até a maioridade, cahirá desapiedada sobre a sociedade com todos os seus perigos. Qual a conclusão a tomar desta tirada? que os libertados pelo fundo emancipador, e pelos particulares tornaram-se todos uns santinhos pela moralidade, que no captiveiro adquiriram, e daquelles, que nasceram livres, nenhum pôde conseguir essa moralidade tão facil aos outros, vivendo na mesma atmosphera social, ou para nos servirmos das expressões do Sr. Ottoni a pag. 73, como elles sahidos das mesmas senzalas, como elles ignorantes, embrutecidos, inçados de todos os vicios da escravidão, como elles odiando o trabalho, porque até alli lhe foi imposto, e tendo como elles tudo a ganhar, e nada a perder com a subversão da sociedade existente.Que fada, que genio influiu para que tão diversos effeitos se encontrem em entes, que têm todos origem commum, e vida identica no trabalho nacional? A imaginação, só a imaginação assombrada do Sr. Conselheiro, e tão assombrada com effeito, que no estado de exaltação, á que infelizmente chegou, não recuou em affirmar a pag. 75, que mal póde prever-se qual deve ser o resultado da admissão no seio da patria de um tal elemento (370,686 individuos em 1900) mil vezes peior do que a escravidão, e até abalançou-se a predizer-nos uma guerra de raças, um futuro de devastação e de sangue, um grande passo para o mais descabellado communismo ao serviço dos Rochefort, e dos Pyat, o desenvolvimento enfim em larga escala, da ociosidade, da vagabundagem, e do banditismo. (ANÔNIMO, 1871, p. 34/38).

Embora a intenção do autor seja claramente a de comprovar que a dimensão

numérica dos nascidos de escravas após a promulgação da Lei do Ventre Livre não

representava perigo à sociedade, com o trecho acima transcrito não se objetiva analisar a

opinião do autor sobre a menor ou maior periculosidade de se promover a emancipação de

forma gradual ou de uma só vez.

A atenção do leitor deve ser concentrada na pergunta que o emissor faz sobre o

discurso do conselheiro Ottoni e que, no entanto, não responde. Por que, para Ottoni, assim

como para muitos outros de sua época, o filho de uma escrava que nasce livre é mais

perigoso, mais propício a revoltar-se do que o escravo posto em liberdade por seu senhor?

Prossegue o autor, mais uma vez sem apresentar resposta a tal questionamento:

Depois de termos mostrado, que não têm procedencia estes horrores, que o Sr. Ottoni enxerga em haver no fim do presente seculo 193.118 individuos, que restarão de todos os libertos pelo ventre livre, é inutil tomar em consideração as outras ponderações que em seguida faz, quando vê levantar-se um exercito policial e um acervo de meios coercitivos para policiar esses poucos individuos espalhados no immenso territorio da nação, e confundidos em uma população de dez milhões; - quando vê nesse elemento grande prestimo para organizar-se um exercito, dar golpes de estado a Napoleão, e ageitar a comedia dos plebiscitos, como se alguem tentasse contra a liberdade do paiz, e a liberdade não pudesse encontrar defensores serios nas grandes e poderosas instituições do Estado; - quando enxerga os perigos interminaveis, a que exporia nossos filhos a libertação das crias, acompanhada de seu embrutecimento ate a maioridade, como se estes perigos já não os houvesse com a propria escravidão asylada no seio das familias, e não podessem ser afastados separando os nossos filhos do contacto desses entes que tanto assustam a sensibilidade paternal do Sr. Ottoni. (ANÔNIMO, 1871, p. 40/41).

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A partir da conjugação dos dois trechos do discurso do autor sobre o discurso

do conselheiro Ottoni, que apresentam expressões como "guerra de raças", "communismo",

"Napoleão" e "plebiscito", é possível inferir que o temor de Ottoni, mesmo que de maneira

inconsciente, baseava-se no fato de que os indivíduos nascidos livres, por não terem a mesma

condição de gratidão apresentada por aqueles escravos que receberam a liberdade como

dádiva de seus senhores e, por terem nascido, pelo menos em teoria, na condição de homens

livres, poderiam vir a interiorizar essa condição como sendo a ordem natural das coisas, sendo

dessa forma impelidos a buscar as demais condições de igualdade, causando inversões na

ordem social tais quais as observadas na Revolução do Haiti.

Se o mérito do discurso do autor anônimo é, portanto, não o oferecimento de

resposta, mas a formulação da pergunta certa sobre o discurso do conselheiro Ottoni, este, em

seu parecer, também não fornece de maneira explícita uma razão capaz de justificar sua

crença em uma maior periculosidade do filho de escrava que nasce livre em relação ao

escravo que teve sua liberdade concedida por deliberação de seu senhor.

A análise de outros fragmentos do discurso de Ottoni, no entanto, produzem o

mesmo sentido daqueles fragmentos questionados pelo autor anônimo. Assim, percebe-se que

a presença do medo da inversão hierárquica não está presente de maneira isolada nos

fragmentos selecionados de "A emancipação dos escravos" pelo autor de "Carta aos

fazendeiros e commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do

Sr. Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", mas é uma

constante, não necessariamente percebida por Ottoni, na própria construção argumentativa

deste.

Mas a consequencia do exposto é que até os 21 annos a liberdade será puramente nominal: os infelizes, serão até a maioridade captivos de facto.E aos 21 annos sahirão das senzalas, ignorantes, embrutecidos, inçados de todos os vicios da escravidão, odiando o trabalho, porque até alli lhes foi imposto; e virão exercer direitos politicos, eleger, serem eleitos, alistar-se no numero dos cidadãos!Que bello corpo eleitoral se nos prepara!Observe-se que estou argumentando sobre a supposição de que a lei se executa sem perturbações, que os ingenuos se sugeitam ao trabalho forçado, que o paes escravos de filhos livres se armam de resignação christã, supposições estas por demais arbitrarias.Ainda assim, comtudo, que futuro espera a nossa sociedade, lançando-se em seu seio tão grande numero de analphabetos, sahidos na vespera de embrutecedora escravidão? E' assim que se hade formar a nação livre cujas maravilhas farão esquecer o trabalho escravo?Eu não dou peso ao direito de propriedade sobre os que hão de nascer; liberte-os todos o Governo, sem indemnisação, se póde e quer fundar em cada municipio um hospicio de maternidade para pensar-lhes a infancia, e estabelecimnetos proprios para educal-os.Mas deixal-os captivos de facto até 21 annos, e sendo maiores, já incapazes de

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aprender, callejados no vicio, aborrecendo o trabalho, lançal-os na sociedade com direitos iguaes aos de nossos filhos! ... Os Srs. ministros pensaram acaso n'esse futuro quando aceitaram o programma do fructo livre dos ventres captivos? (OTTONI, 1871, p. 73/74).

Se a assembléa permitte, accrescentarei uma unica observação a respeito da belleza do systema, allegação com que se responde a tudo por parte do ministerio. A. belleza está n'este principio: d'ora em diante ninguem mais nascerá captivo; nenhum dos que nascerem será liberto; a lei os proclama ingenuos. Um Sr. Deputado que alludio a esta belleza do systema fez-lhe a a justiça devida; mas eu pedirei licença para accrescentar a essa parte do discurso a que me refiro um pequeno retoque; é uma confrontação do liberto da lei vigente com o ingenuo da lei projectada.Um homem livre, facto que como sabem todos os senhores não é muito raro, commetteu a fraqueza, teve a desgraça de ter um filho de uma escrava; mas homem de coração e verdadeiro pae, o liberta na pia e o accolhe em seu seio. É pois innocentissimo; não bebe o leite da escravidão; seu pae o cria em seus braços educa-o, dá-lhe instrucção, posição na sociedade; é medico, é padre, é engenheiro, é jurisconsulto, é um d'estes cidadãos homens de côr, como tantos possuimos de grande merito intellectual e moral; mas tem o peccado original, é liberto, não póde ser deputado, nem subir ao ministerio. Vem agora a nova lei, e põe ao lado d'esse homem outro que como elle nasceu de mulher escrava, mas que a lei declara livre, e entretanto subjeito a captiveiro de facto até a maioridade.Este é ingenuo: mas é analphabeto, embrutecido; os que têm indole pacifica não passam de instrumentos brutos de trabalho; os de más entranhas, são animaes ferozes, que a grande reforma solta das jaulas sobre o povo pacifico: mas estes são ingenuos, podem ser ministros d'estado! Eis a belleza do systema. (OTTONI, 1871, p. 101/103).

Assim, a partir dos trechos acima transcritos, é possível inferir que, embora

Ottoni não expresse de maneira direta o temor que possuía em relação a uma inversão na

ordem social, é patente o medo que possuía de que ocorresse a desconstrução do mundo

escravocrata e de seus privilégios: é esse sentimento o local a partir do qual ele emite seu

discurso. Embora exista silêncio quanto a esse temor, ele não deixa de produzir sentido.

No primeiro fragmento, a real preocupação de Ottoni não é a submissão dos

filhos de escravas aos senhores destas até 21 anos de idade, também não o é o conjunto das

desvantagens sociais e intelectuais, decorrentes de tal submissão, infligidas aos ingênuos em

relação ao resto da sociedade livre. A preocupação de Ottoni, em verdade, escora-se no fato de

o filho de escrava vir a poder ter direitos políticos, direitos iguais aos filhos de homens

brancos livres, o que incomoda profundamente Ottoni.

Mas, em tal contexto histórico, não há que se falar em eleger um filho de

escrava em uma sociedade que não possui mobilidade social, em que o quadro de opções

políticas já é predefinido. Não há que se preocupar que o filho de escrava vote de forma não

conscientemente benéfica à pátria de um ponto de vista da sociedade branca, se, na verdade,

não importa a orientação política de sua escolha, esta sempre limitar-se-á às ideologias que

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compreendem somente a problematização das questões da população branca e, por isso, não

representam as demandas do jovem negro. Não há que se falar em cidadania se a própria

ignorância e o embrutecimento, vícios decorrentes da sujeição ao cativeiro até os 21 anos de

idade e analfabetismo limitariam as condições de possibilidade do exercício efetivo dessa

cidadania21.

Por outro lado, seria ingenuidade aceitar de imediato o fato que Ottoni,

ressalte-se, Conselheiro, não sabia as regras do jogo político, ignorava a rede de privilégios

existentes tanto para o ingresso quanto para a permanência no quadro dos representantes da

nação e desconhecia a seletividade do discurso político. Não, o jovem negro nascido a partir

da promulgação da Lei do Ventre Livre, como bem Ottoni tinha conhecimento, ou pelo menos

intuía, somente teria possibilidade de exercer seus direitos políticos de forma contrária aos

interesses da sociedade branca, representando assim uma ameaça a esta, em um contexto em

que certos privilégios já tivessem sido eliminados e, se o discurso político existente na época

não tivesse motivação para isso, o próprio imaginário social da população branca,

influenciado pelos desdobramentos da Revolução do Haiti22, apresentava como única solução

capaz de modificar o sistema de hierarquias a apropriação dos ideais liberais pelo negro e o

direcionamento de sua tão temida brutalidade e violência para essa transformação.

Ainda, o debate traz elementos sobre o modo como a segregação política e

social foi sendo construída para os negros (escravos e libertos). Percebe-se, assim, que a

categoria ''liberto'' indicava um status jurídico em que os direitos de cidadania eram

distribuídos de modo diverso, correspondendo às distinções da linha de raça/cor, de forma que

um liberto não poderia ser deputado ou subir ao ministério. Percebe-se também que a

invenção de status jurídicos distintos entre os “negros” e suas alocações abaixo do status de

“branco” era uma das consequências esperadas do processo de abolição lenta e gradual.

Portanto, ao apresentar a possibilidade do exercício de direitos políticos pelo

filho de escrava nascido após a promulgação da Lei do Ventre Livre, mesmo que de forma

inconsciente, o que não necessariamente ocorreu, Ottoni informa o medo que a população

branca tinha de uma inversão da ordem hierárquica, de ser subjugada aos interesses dos

negros. Assim, o negro filho de escrava com branco da elite da sociedade não era um

problema social, não porque não fosse analfabeto nem embrutecido, mas porque crescera em

meio às relações sociais brancas, ainda que não necessariamente nelas inserido, e, por isso,

21Para mais sobre a ineficácia dos direitos políticos em sociedades em que não há mobilidade social, conferir ROTH, Brad R. "Retrieving Marx for the Human Rights Project". Leiden Journal of International Law, 17, 31-66, 2004.22AZEVÊDO, Célia Maria Marinho de, op. cit.

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não teria motivação para promover mudanças na hierarquia da qual acredita fazer parte. E por

tal crença, é de fato ingênuo.

Assim, o contexto no qual se inseriam as discussões sobre a promulgação da

Lei do Ventre Livre foi de constante e crescente medo, a justificar tanto pontos de vista

favoráveis à aprovação de tal lei quanto contrários a ela. Dessa forma, é fácil perceber que

qualquer que fosse a posição vencedora, predominaria no imaginário social a periculosidade

do negro, sua selvageria e rancor quanto aos brancos, sua subversão quando à ordem

estabelecida, imagem que não pode gerar outro efeito senão intensificar a segregação racial e

servir de base para justificar a disposição do corpo do negro como espaço de intervenção da

violência.

Em outras palavras, o pano de fundo discursivo, onde constava um acordo

entre Ottoni e seu interlocutor anônimo quanto à validade dos argumentos, era a certeza de

que os negros representavam não apenas um problema econômico porque exerciam, de modo

escravizado, as atividades produtivas naquela sociedade, mas um problema político, pois a

posição de escravo/liberto/ingênuo/negro/homem de cor representava uma posição de

subalternidade imposta dentro e fora da escravidão, e, portanto, de oposição estrutural aos

sistemas de privilégios que eram construídos dentro e fora do regime de trabalho escravo.

A distinção entre os dois autores estava em medir as consequências de

estratégias, mas, sobretudo, na crença de que um regime de “tutela” e a violência estatal

seriam sempre necessários em certa medida.

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CAPÍTULO IIDA PRETENSA HUMANIZAÇÃO DOS CASTIGOS CORPORAIS APLICADOS AOS ESCRAVOS

Súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D. Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.

Machado de Assis23

"O mundo sempre soube, por tôda parte, das perversidades cometidas pelos

senhores de escravos nas colônias onde a Inglaterra tem alguma gerência, (...), não mais sendo

duvidosa a sua veracidade" (KOSTER, 1816, apud GOULART, 1971, p.20), afirmou Henry

Koster em sua obra "Viagens pelo Nordeste do Brasil".

Em seu livro "O Brasil", Augusto de Carvalho afirmou que entre os colonos

ingleses havia a prática de usar as engrenagens das rodas dos engenhos de açúcar para triturar

os pés dos escravos negros como forma de castigo.24 De acordo com o publicista Harry

Johnston, durante cem anos os britânicos mutilaram, torturaram, garrotearam, queimaram

vivos e deixaram morrer de fome escravos negros na Ilha de Barbados.25

Relato mais detalhado dos castigos aplicados aos escravos negros é o do

23ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1970, p.233. 24apud GOULART, José Alipio, op. cit., p. 21. 25Apud ibid, p. 21.

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historiador Fernando Ortiz, em sua obra "Los Negros Esclavos". Segundo Ortiz, baseado nas

punições aplicadas aos negros especificamente nas Antilhas:

(...) en las otras Antillas el boca abajo se daba a veces colgando al negro por sus extremidades y así se le llamaba hamaca, o bien se le colgaba de las manos. Los esclavos a veces eran echados vivos a los hornos o quemados parcialmente con tizones e hierros enrojecidos. Algunos hubo a los cuales se les puso pólvora para hacerle explotar con una mecha, a lo que se llamó brûler un peu de poudre au cul d'une nègre. A las mujeres se les quemó las partes deshonestas. A otros se les derramó sobre sus cabezas guarapo hirviendo. Las mutilaciones fueron también frecuentes; y lo fué, aún en tiempos relativamente modernos, el suplicio de enterrar vivo a un esclavo en la fosa que el mismo se abría, dejandole la cabeza fuera, la cual se untaba con melaza para que lo comieran las moscas. A veces los ataron desnudos, y tendidos en el suelo, embarrados con azúcar, junto a los hormigueros. Estos castigos horrendos, y otros análogos, no fueron vistos en Cuba, salvo raríssimos casos de índole patológica. (ORTIZ, 1916, apud GOULART, 1971, p. 20).

Assim como ocorreu nas colônias britânicas e espanholas, a disposição do

corpo do escravo negro como espaço de intervenção da violência senhorial não deixou de

apresentar feições brutais nas colônias portuguesas. Dessa forma, contra um discurso histórico

que vai ao encontro da pretensa democracia racial de Gilberto Freyre que, ao retratar a

sociedade brasileira como liberta de preconceito e segregação racial, exclui do espaço de

discussão a desigualdade social existente entre "ser negro" e "ser branco", afirma José Alipio

Goulart:

(...) em que pêse a propalada benevolência do português, aspecto êste que Debbanié, segundo rememora Gilberto Freyre, atribuiu a um traço de cultura moura e mourisca, impregnada no elemento moçárabe que da península se transportou para estas plagas. Acontece, porém, que o português era um senhor de escravos reconhecidamente perverso, e disso não fêz segrêdo o grande historiador luso Alexandre Herculano: 'A vida do escravo era nessa época (a da monarquia mercantil e capitalista) verdadeiramente horrível em Portugal" – disse êle sem subterfúgios nem panos quentes. Aduziu, ainda, o autor de A Inquisição em Portugal, que a escravidão, de que sempre se serviu a economia portuguêsa, mesmo nos tempos de rija saúde, tomou aspecto acentuadamente mórbido ao tornar-se a monarquia mercantil e imperialista. Ora, foi nessa época e quando imbuído daquêles propósitos, que o português veio para o Brasil e aqui também passou a ser senhor de escravos, não havendo, portanto, razão de nenhuma sorte – nem econômica, nem financeira, nem social – que ditasse tão rápida e radical transformação na sua conduta para com o elemento servil (GOULART, 1971, p.21).

Dessa forma, no Brasil, segundo Goulart (1971), também havia manifestações

sádicas e monstruosas no ato de punir os escravos. Em âmbito doméstico, por exemplo, era

comum que as escravas fossem submetidas a deformações corporais sempre que

representassem competição para suas senhoras em relação à atenção afetiva ou sexual de seus

senhores. Assim, suas senhoras ordenavam que olhos fossem extirpados; seios, decepados;

dentes, arrancados ou espatifados; narizes, cortados; orelhas, talhadas; nádegas, lanhadas;

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faces, deformadas; membros, amputados, ou seja, ordenavam a mutilação dos atributos físicos

da escrava que pudessem ser responsáveis pelo despertar do interesse do senhor. Havia ainda

senhoras que, não por esse motivo, mas por motivos de ordem administrativa doméstica ou

mesmo por sadismo promoviam tais deformações.

José Alipio Goulart (1971), ao observar que na literatura acadêmica brasileira

as referências sobre a temática dos castigos corporais aplicados aos escravos eram difusas,

somente sendo possível o aprofundamento em tal assunto pela leitura de diversas obras que

tratavam da escravidão de maneira geral e não dos castigos em particular, apresentou, através

de exposição do material por ele coletado, tal tema com especialidade e amplitude expositiva

em sua obra "Da palmatória ao patíbulo (Castigos de Escravos no Brasil)".

Segundo o próprio autor, a obra não traz inovações quanto à temática, sendo

original apenas pela peculiaridade de se dedicar somente aos castigos e penas aplicados aos

escravos brasileiros, apresentando, de maneira mais aprofundada, uma coletânea expositiva e

descritiva desses castigos e dos aparelhos utilizados para aplicá-los, motivo pelo qual se

adotou tal obra, no presente trabalho, com o intuito de melhor ilustrar os suplícios aos quais

os escravos eram submetidos.

O castigo das palmatoadas, também conhecido como “bolos”, era um dos

castigos domésticos mais comuns. Os escravos submetidos a essa punição tinham as palmas

de suas mãos golpeadas de forma contínua, por determinado número de vezes ou à vontade do

carrasco, com a palmatória, instrumento descrito por Goulart como sendo uma roda feita de

madeira, com peso e resistência consideráveis, "(...) de razoável diâmetro, digamos dez

centímetros, por uns dois ou três de altura, ou espessura, à qual se ajustava um cabo (...) A

roda, em regra, apresentava alguns furos abertos na madeira" (GOULART, 1971, p. 58).

Considerando-se o peso e a forma do instrumento utilizado e a delicadeza do

epitélio da palma da mão humana, a palmatoada causava no castigado equimoses e

ferimentos, podendo, a depender do número de bolos que o castigado recebesse, causar

deformações por fortes edemas e rachaduras pelas quais escorriam sangue. Goulart ilustra o

horror dos escravos:

Frente a frente com o carrasco, quando êste levantava a palmatória, para deferir o bôlo, um arrepio percorria o corpo da vítima levando-a, num gesto instintivo de natural defesa, a procurar recolher a mão espalmada diante do supliciador; e ao estalar a palmatoada o negro se contorcia de dor, embora fôsse obrigado a oferecer incontinenti a outra mão, para prosseguimento do castigo. Lágrimas, súplicas, gemidos, mesmo a visão do membro entumecido, congestionado e ensanguentado, não alteravam o propósito do carrasco, cuja fúria, por vêzes, levando-o além das palmatoadas pròpriamente ditas, fazia-o bater em outras partes do corpo, pancadas

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dolorosíssimas, visto que aplicadas com instrumento contundente" (GOULART, 1971, p. 57).

Nas propriedades rurais e nas casas de cadeia era comum que o escravo fosse

punido com o tronco, instrumento que, segundo a descrição de Debret, consistia em duas

peças de madeira, de 6 (seis) a 7 (sete) pés de comprimento, unidas por dobradiças de ferro

em uma de suas extremidades e dotadas de cadeado na outra extremidade, apresentando

buracos pelos quais poderiam ser passados os punhos, as pernas e o pescoço do escravo26.

Segundo Goulart:

A verdade é que variava o modo de prender-se o escravo ao aparelho aqui referido, pois a tanto se prestava a estrutura dêste. Podiam meter-se ambos os pés no tronco rasteiro, ficando o escravo retido apenas pelos tornozelos e, como disse Ortiz, deitado de costas ou de bruços; nos troncos de pés prendia-se o castigado pelos pulsos e as vêzes pelo pescoço, ao mesmo tempo, posição muito à feição para uma boa surra nas nádegas. Tronco havia em que o condenado era prêso pelos pulsos e tornozelos, apoiando-se apenas nas nádegas. Uma variedade de tronco, muito conhecida, vinha a ser um aparelho quase análogo ao descrito, pôsto que confeccionado em ferro, e que permitia ao réu locomover-se portando-o. (GOULART, 1971, p. 64).

A finalidade do tronco era não só acalmar escravos agitados, como também

evitar fugas e punir. Assim, o escravo ficava exposto às suas próprias fezes e urina, sofria

ferimentos decorrentes do contato prolongado entre sua pele e a madeira do instrumento, por

passar dias no tronco, inchava de maneira a ter sua fisionomia deformada27.

A marcação da pele do escravo por meio de ferro em brasa representou não só

uma formalidade mercantil do tráfico de escravos (formalidade que foi proibida em 1813 pelo

príncipe regente D. João) destinada a facilitar a negociação destes, como também método de

marcar escravos que fugiam ou participavam de quilombos, que eram, assim, punidos por

meio da dor causada pelo ferro incandescente28.

A máscara de flandres, por sua vez, podia ser de zinco ou de folha-de-flandres,

bem como podia cobrir somente a boca do castigado ou todo o rosto (ficava presa à parte de

trás do pescoço por meio de prolongamentos que eram fechados por cadeado), nesse último

caso, a máscara apresentava pequenos buracos que permitiam que o escravo enxergasse e

respirasse29. O castigo, nesse caso, consistia em impedir que o escravo se alimentasse. Sobre a

máscara de flandres, afirma Goulart:

26apud GOULART, José Alipio, op. cit., p. 64.27GOULART, José Alipio, op. cit.28Ibid.29Ibid.

40

O castigo da máscara tinha, em regra, duração prolongada, sendo necessária permissão do senhor para a retirada do aparelho a fim de poder o paciente alimentar-se. Além do sofrimento físico, que aquêle instrumento não podia deixar de acarretar, passava ainda seu portador pela humilhação do andar por tôda parte de rosto tapado, alvo de chacotas de companheiros. Escravos houve que fugiram portando o singular aparelho. (GOULART, 1971, p.71).

O castigo de açoites era aplicado para punir tanto faltas leves quanto graves,

sendo maior o número de chicotadas que o escravo iria receber segundo a gravidade de sua

ação. Segundo o Padre Manoel Ribeiro da Rocha30, no Brasil havia senhores que inclusive

ordenavam que seus novos escravos, recém adquiridos, fossem açoitados somente com o

intuito de desde logo intimidá-los, de modo a garantir sua futura obediência.

Embora mais usual que outras punições, por ser aplicada mais rapidamente e

não impossibilitar que o castigado retomasse seus afazeres quase imediatamente à aplicação

dos açoites, nem sempre era, no entanto, menos cruel.31 Embora Goulart descreva a flagelação

dos escravos pelo açoite de maneira passional, a imagem criada por esse autor ilustra bem o

sofrimento do escravo:

O bacalhau, "chicote de relho para açoitar escravos", como ensina mestre Aurélio Buarque de Holanda, comia lombo de negro, a carne estufando, rasgando em lanhos, abrindo sulcos profundos mais parecendo biqueiras de sangue. O negro gemendo, bufando, estrebuchando, chorando, apelando desesperadamente aos santos de sua predileção por um milagre; (...) O braço do carrasco sobe e desce no lepo-lepo ritimado da surra, tunda, sova, pisa, coça, que são outros tantos designativos dados à flagelação (GOULART, 1971, p. 86).

A crueldade era tão grande que comumente, durante o castigo de açoite, o

chicote utilizado era substituído por outro, vez que o próprio sangue do escravo amolecia o

couro do instrumento, causando-lhe menor dor32.

Como mencionado anteriormente, ainda havia o castigo de mutilação física

que, no entanto, não era aplicado somente às escravas atraentes que despertassem interesse

sexual do senhor e ciúmes da senhora. A mutilação não causava somente imensa dor, como

também estigmatizava o escravo, possibilitando que este fosse reconhecido pela sociedade

como um fora da lei, rebelde e perigoso. Segundo Goulart:

Castrações, amputações de seios, extrações de olhos, fraturas de dentes, desfigurações de faces, amputação de membros, etc., foram castigos que em engenhos e fazendas brasileiros não se pode dizer tenham sido raros: nos engenhos do Nordeste e em fazendas do Centro-sul, disse Artur Ramos, "as crueldades dos

30Ibid, p. 86.31Ibid.32Ibid.

41

senhores de engenho e de feitôres atingiram a extremos incríveis". (GOULART, 1971, p.162).

Os castigos acima apresentados eram dotados de grande crueldade, porém

ainda se enquadram no rol de castigos oficiais. Com efeito, eles eram mais comumente

aplicados e estavam acolhidos pela legislação corretiva do período em que perdurou a

escravidão brasileira, mesmo que somente por curta ou extensa faixa de tempo.

No entanto, o escravo ainda estava sujeito aos castigos improvisados, não

oficiais, que dispensavam o uso dos instrumentos mais comuns de aplicação de castigos, pois

derivavam da mente do senhor. Assim, segundo Goulart (1971), alguns senhores preenchiam

os talhos abertos na carne dos escravos, provenientes de incisões feitas à navalha, de sal e

vinagre. Outros, na região da faixa açucareira, mandavam untar o corpo inteiro e nu do

escravo com mel para, então, amarrá-lo e entregá-lo aos bois (caso em que recebia lambidas

destes, sentindo cócegas até o desespero), ou ao formigueiro de saúvas, ou a outros tipos de

insetos. Houve escravos que foram atirados dentro das fornalhas dos engenhos. No Rio

Grande do Sul, a aplicação do castigo colete de couro não era tão rara assim. Embebia-se o

colete em água, para que o couro amolecesse e esticasse, em seguida o escravo era exposto ao

sol, vestindo o colete, para que este enrijecesse e encolhesse, causando asfixia ao castigado.

Com base nessa imagem dantesca criada a partir da coletânea apresentada de

maneira minuciosa por Goulart e considerando-se que tais atrocidades ocorreram em todas as

colônias escravistas, é natural ao homem contemporâneo indagar-se sobre a falta de empatia

do branco para com o escravo, sobretudo após o florescimento dos ideais iluministas no

século XVIII. Estaria, dessa forma, toda a sociedade branca doente de cegueira ou sadismo?

Embora a empatia seja uma capacidade universal dependente da biologia do

cérebro, pois ocorre por meio do processo de compreensão da subjetividade de outros

indivíduos, processo que envolve imaginar que as experiências interiores destes são

semelhantes às próprias experiências, até o século XVIII, as pessoas eram capazes somente de

sentir empatia por indivíduos próximos ou que pudessem ser considerados seus semelhantes,

seus iguais33.

Para Lynn Hunt (2009), é importante considerar que a biologia propicia uma

predisposição essencial para que o indivíduo sinta empatia pelo próximo. Porém, a expressão

de empatia é modelada por cada cultura a seu próprio modo. Dessa forma, o ser humano

aprende a sentir empatia, desenvolvendo-a e configurando-a por meio da interação social.

A superação do alcance da empatia que antes era restrito a fronteiras sociais 33HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos – uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

42

tradicionais existentes entre antíteses como nobres e plebeus, senhores e criados, homens e

mulheres, não se deu no século XVIII somente pela leitura dos romances epistolares. No

entanto, não é possível negar que esses romances possibilitavam a identificação entre o leitor

e personagens comuns e desconhecidos de si, por definição, possibilitando que o leitor

sentisse empatia por personagens de diferentes classes, sexo e nações.34

Segundo Hunt (2009), da forma narrativa dos romances epistolares – troca

fictícia de cartas – resultou em uma nova psicologia e no estabelecimento de fundamentos

para uma nova ordem política e social, pois esses romances, ao apresentarem como

personagens centrais pessoas comuns com problemas cotidianos, ensinavam ao leitor uma

nova categoria a ser considerada no ato de julgar o outro como seu semelhante ou não, os

sentimentos íntimos, as emoções internas.

Os romances epistolares causavam no leitor a sensação de que a personagem da

obra lida era real, pois como nesses romances não havia a presença do ponto de vista do autor

sobre as ações da personagem, seu ponto de vista acabava por transparecer nas perspectivas

expressadas pelas personagens nas cartas, de maneira que a autoria do romance ficava

obscurecida35.

Como a narração do romance epistolar se concretizava por meio de cartas, não

havia grandes obstáculos para que o leitor entrasse em contato com o eu interior da

personagem. Assim, o narrador não se interpunha entre o leitor e a personagem, os

sentimentos desta não precisavam ser inferidos a partir de sua ação ou fala, vez que o leitor

participava do florescimento da personalidade da personagem, como se fosse um amigo

próximo ou, mesmo que de maneira imperceptível, a própria personagem36.

O romance epistolar, dessa forma, demonstrava para os leitores, por meio da

expressão dos sentimentos íntimos das personagens presente nas cartas, que a individualidade

era dependente de uma interioridade pessoal, qualidade inerente a todos os indivíduos,

tornando aos olhos do leitor, consequentemente, todos os indivíduos iguais37.

Se no final do século XVIII a capacidade de sentir empatia do ser humano

começa a superar as barreiras de parentesco e classe social. É também nesse período que a

discussão sobre tortura e punição começa a demandar novas atitudes, exigindo métodos mais

humanos.

Na Prússia, a tortura judicial foi abolida em 1754 por Frederico, o Grande, ação

34Ibid.35Ibid. 36Ibid. 37Ibid.

43

imitada nas décadas seguintes por diversas nações européias. Assim, a Suécia aboliu tal

prática em 1772 e a Áustria e Boêmia, em 1776. O governo britânico, em 1783, optou por

não manter as execuções como forma de entretenimento popular, descontinuando a procissão

pública para Tyburn, local popular por sediar tais eventos. Além disso, no mesmo ano, o

governo britânico adotou o uso regular da "queda" (plataforma de enforcamento mais

elevada), para assegurar execuções mais rápidas e humanas38.

Já em relação à França, há quatro marcos importantes quanto à tortura. A

eliminação do uso da tortura como forma de obtenção de confissão de culpa antes da

condenação e a abolição provisória do uso da tortura antes da execução para obtenção dos

nomes dos cúmplices foram medidas adotadas pela monarquia francesa respectivamente em

1780 e 1788. Já no período revolucionário, todas as formas de tortura judicial foram

renunciadas pelo governo francês, introduzindo em 1792 a guilhotina como forma uniforme e

pretensamente indolor de execução da pena de morte39.

Assim, para Lynn Hunt, "No final do século XVIII, a opinião pública parecia

exigir o fim da tortura judicial e de muitas indignidades infligidas aos corpos dos condenados"

(HUNT, 2009, p. 76). Nesse sentido, a partir da década de 1760, "(...) campanhas de vários

tipos levaram à abolição da tortura sancionada pelo estado e a uma crescente moderação nos

castigos (até para os escravos). Os reformadores atribuíam suas realizações à difusão do

humanitarismo do Iluminismo" (HUNT, 2009, p. 80).

Porém, a intertextualidade existente entre o discurso iluminista sobre os

direitos do homem e a tortura e o castigo cruel não foi imediatamente estabelecida. Para que

essa conexão ocorresse, não era necessária apenas a superação das fronteiras da empatia

humana além do âmbito da família, do gênero e da classe social, mas todo um novo interesse

pelo corpo humano que, antes do final do século XVIII, não era sagrado por si próprio, mas

somente dentro de uma ordem religiosamente definida que permitisse a disposição do corpo

em benefício de uma coletividade40.

A princípio, a ideia de que, pelo menos após o nascimento do indivíduo, os

corpos estão separados um do outro parece óbvia e natural. Porém, as fronteiras existentes

entre os corpos dos indivíduos somente ganharam contornos mais nítidos após o século XIV41.

Para Hunt (2009), com a crescente necessidade de guardar para si mesmo seus

excretos corporais, o ser humano se tornou mais autônomo. Defecar e urinar em público,

38Ibid, p.75/76.39Ibid, p. 76.40Ibid. 41Ibid.

44

assoar o nariz com as mãos, cuspir, comer na mesma tigela que outro indivíduo passaram a ser

ações repulsivas. A agressividade e as explosões violentas de emoção também se tornaram

comportamentos inaceitáveis de um ponto de vista social. No entanto, essas mudanças da

forma com que o ser humano se relacionava com o corpo eram apenas indícios superficiais de

uma transformação mais profunda, o surgimento do indivíduo fechado em si mesmo, com

fronteiras a serem respeitadas ao se relacionar socialmente.

Essas mudanças nas atitudes pelas quais o indivíduo relacionava-se com o seu

próprio corpo culminaram não só em mudanças artísticas no final do século XVIII, mas

também na maneira de vivenciá-las42. Com o deslocamento do fundamento de toda autoridade

de uma estrutura religiosa transcendental para uma estrutura humana interior, era necessário

que as pessoas, para que pudessem captar o sentido de tal mudança, experimentassem essa

transformação de maneira íntima, experimentação que foi propiciada, nesse período, por meio

das artes.

Dessa forma, o indivíduo não mais ia à ópera para encontrar e conversar com

amigos, mas também para, em silêncio, escutar a música de maneira a se permitir sentir

emoções individuais e diferenciadas. Em 1759, eliminou-se a possibilidade de a plateia

sentar-se no palco durante a encenação da peça e, em 1782, ocorreu a instalação de bancos na

Comédie Française em espaço pelo qual antes a plateia podia andar livremente durante o

espetáculo, medidas a sinalizar a valorização de experiências interiores e individuais em

detrimento das explosões coletivas.

Na arquitetura, surgiu a separação do ambiente por cômodos, destinados a

finalidades e pessoas específicas. A pintura começou a retratar não somente figuras ligadas à

religião e ao governo, mas também pessoas comuns, estimulando a ideia de que cada ser

humano era um indivíduo diferenciado e singular, devendo ser representado desta maneira43.

Essa nascente visão individualista e secular, no entanto, não interferiu somente

na maneira com que o indivíduo relacionava-se com as expressões artísticas, mas também na

atitude do indivíduo quanto à dor alheia44.

Até o final do século XVIII, o castigo e a pena possuíam a função de estimular

as pessoas a fazerem o bem e dissuadir estas de seguirem a tendência para o mal, pois,

segundo a doutrina cristã vigente na época, todos os seres humanos, desde o pecado original,

teriam uma predisposição para a maldade. Assim, o espetáculo público da dor tinha por

42Ibid. 43Ibid. 44Ibid.

45

função causar o terror na população presente, fazendo com que esta se identificasse com o

sofrimento do condenado, servindo, dessa forma, como instrumento de dissuasão45. Segundo

Lynn Hunt:

Pela compreensão tradicional, as dores do corpo não pertenciam inteiramente à pessoa condenada individual. Essas dores tinham os propósitos religiosos e políticos mais elevados da rendenção e reparação da comunidade. Os corpos podiam ser mutilados com o objetivo de impor a autoridade, e quebrados ou queimados com o objetivo de restaurar a ordem moral, política e religiosa. Em outras palavras, o ofensor servia como uma espécie de vítima sacrificial, cujo sofrimento restauraria a integridade da comunidade e a ordem do Estado. (HUNT, 2009, p. 94).

Embora a intenção da punição cruel e pública fosse causar medo nos

espectadores de maneira a inibir que estes agissem com vilania e contrariamente à lei, o

caráter sacrificial da punição, que se traduzia na celebração da recuperação comunitária do

dano do ato cometido pelo criminoso, fazia com que esta fosse acompanhada de certo espírito

festivo capaz de esvair o medo dos espectadores em relação à crueldade da punição46.

A partir da segunda metade do século XVIII, com a reavaliação do corpo

individual e das dores relacionadas a este, o castigo cruel e o sofrimento público não podiam

mais ser justificados pela religião. O corpo não pertencia mais à comunidade, mas somente

ao indivíduo, este já não podia ser sacrificado em benefício daquela ou em nome de um

propósito religioso maior. Pelo contrário, o castigo não era mais uma expiação de pecados,

mas a maneira pela qual o indivíduo quitava sua "dívida" com a sociedade, reabilitando-se

socialmente. Isso não poderia ocorrer por meio da mutilação do corpo do indivíduo, pois o

castigo cruel representava um entrave a qualquer reparação social, vez que a dor não

brutalizava apenas o torturado, mas também os espectadores47.

Assim, para Hunt (2009), tanto a autonomia quanto a empatia são práticas

culturais que apresentam dimensões físicas e emocionais. A primeira prática baseia-se na

compreensão da individualidade dos corpos e de seu caráter sagrado. Cada indivíduo, e

somente ele, é dono de seu próprio corpo, possuindo autocontrole e devendo respeitar as

fronteiras existentes entre seu próprio corpo e o de outro indivíduo. A empatia, por sua vez,

baseia-se na percepção de que o outro, assim como nós, também sente e pensa, possuindo

sentimentos interiores essencialmente semelhantes.

Segundo Lynn Hunt (2009), os novos tipos de leitura e os novos estímulos

artísticos ligados à visão e à audição tiveram efeitos físicos sobre o cérebro, proporcionando

45Ibid. 46Ibid. 47Ibid.

46

às pessoas novas experiências individuais capazes de fazer com que as fronteiras da empatia

superassem o âmbito da família imediata, da associação religiosa ou da classe social, tornando

possível uma mudança social e política, processo que desembocou na conformação discursiva

dos direitos humanos. Tal mudança explica-se pela semelhança existente entre as experiências

de cada indivíduo, capaz de gerar um novo contexto social, e não pela inserção de todos em

um mesmo contexto prévio.

Se o gênero literário romance epistolar não foi tão expressivo e popular entre

os escritores brasileiros quanto foi entre os escritores europeus, difícil, ainda assim, seria

negar a hipótese de que a população do Brasil também vivenciou o processo de superação das

fronteiras da empatia (para além do âmbito de parentesco e conhecimento do indivíduo) e o

processo de autonomia e autocontrole dos corpos individuais.

Comumente pensa-se que o fluxo de ideias do Iluminismo deu-se da mesma

maneira que o fluxo de capitais e mercadorias, ou seja, no sentido de que tais ideias seriam

gestadas na Europa, irradias para o resto do mundo por mãos europeias e, só então, aplicadas

internamente pelos povos não europeus. Esse pensamento, que atribui unicamente à Europa a

força motriz e transformadora da sociedade, no entanto, é paradoxal, vez que a produção

teórica europeia iluminista é silente quanto à condição de escravidão do negro48.

O termo "escravidão" foi empregado no século XVIII pelos teóricos iluministas

como metáfora política para referir-se aos efeitos malignos das relações de poder. Para esses

teóricos, a liberdade era concebida como o valor político maior e universal.

Importante ressaltar, no entanto, que tal metáfora foi construída no período em

que o sistema econômico do Ocidente era sustentado através da escravidão dos povos

africanos como mão de obra nas colônias europeias, fator que, embora seja paradoxal,

favoreceu a irradiação global dos ideais do Iluminismo49.

Seria, nesse contexto, de se esperar que a grande diferença existente entre

pensamento e prática fosse percebida por pensadores dotados de racionalidade e

esclarecimento. Contudo, não é o que se verifica na história dos ideais iluministas. Os

próprios pensadores que difundiam o ideal de liberdade como estado natural do indivíduo e

direito inalienável do homem, aceitavam com grande naturalidade a condição do escravo

negro, mantendo, assim, escondida a engrenagem colonial escravista em um período histórico

48DUARTE, Evandro Charles Piza, op. cit. 49BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. (Tradução de Sebastião Nascimento). Pensilvânia: University of Pittsburg Press, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002011000200010&script=sci_arttext>. Acesso em: 21 de outubro de 2013.

47

marcado pelas grandes revoluções50.

Assim, Simon Schama51, importante historiador contemporâneo holandês, ao

descrever a Era de Ouro da Holanda, em sua obra "O desconforto da riqueza", publicada em

1987, dedica-se a relatar, em mais de seiscentas páginas, como a nova república holandesa

desenvolveu sua própria cultura nacional, tornando-se rica e benigna, sem, no entanto,

mencionar que tal desenvolvimento foi possibilitado pelo controle holandês sobre o tráfico

mercantil global, inclusive sobre o tráfico de escravos. Pelo contrário, Schama apresenta

como alicerce do caráter nacional holandês não o comércio mundial, mas a família,

permitindo, dessa forma, que seu leitor adentre no ambiente doméstico e na vida privada do

povo da Holanda. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo nesse âmbito, o escravo não

era estranho ao convívio da sociedade holandesa, fator que poderia ser comprovado, por

exemplo, pelas pinturas da época que, não raro, retratavam negros52.

Quando se refere à escravidão, Schama apenas a utiliza como metáfora para

referir-se à tirania dos espanhóis combatida pelos holandeses em seu processo de afirmação

nacional e, embora reconheça que, nesse tempo, os holandeses discriminavam e

estigmatizavam judeus e outros grupos de forasteiros em nome da purificação da sociedade

holandesa, permanece silente quanto à existência e condição dos escravos africanos. Em outro

momento, o historiador utiliza o termo escravidão para examinar como o acúmulo de bens

conquistado pelos holandeses acabou por nestes despertar o temor de ter seu livre arbítrio

ameaçado por tal acúmulo, tornando-os escravos do luxo guiados pela avareza do consumo53.

O domínio do comércio global como um todo, sem exclusão do tráfico de

escravos africanos, não foi responsável somente pela acumulação de riquezas da Holanda,

mas também da Grã-Bretanha. Esta última logrou obter o controle das atividades e relações

comerciais por meio de guerras navais promovidas, a partir de 1651, contra os holandeses. No

entanto, não foi somente no acúmulo de riquezas que a Grã-Bretanha seguiu o exemplo

holandês. Esse período de conquista do mercado global também foi marcado pela revolução

cromwelliana que se levantava contra desigualdades e injustiças, metaforicamente chamadas

de "escravidão", resultantes da monarquia absolutista e dos privilégios feudais, mantendo,

porém, a mesma cegueira holandesa quanto à condição do escravo negro54.

Nesse período, um dos grandes expoentes do pensamento iluminista no campo

50Ibid.51Apud ibid. 52Ibid. 53Ibid. 54Ibid.

48

da teoria política inglesa foi Thomas Hobbes. Com a publicação de "Leviatã", em 1651,

Hobbes, ao considerar a escravidão como consequência da guerra de todos contra todos

(fenômeno resultante do estado natural do ser humano, vez que nesse estado não haveria a

intervenção de autoridades na convivência entre os homens), situou-a entre os processos

inerentes à própria humanidade55.

Por sua vez, John Locke considerava, como pode ser verificado pela leitura de

"Dois tratados sobre o governo", obra datada 1690, a escravidão era reputada como condição

humana vil e impossível de ser defendida, devido ao temperamento e coragem do povo inglês,

por qualquer de seus conterrâneos. No entanto, a escravidão em Locke não é aquela à qual os

africanos eram submetidos nas colônias, inclusive nas britânicas, mas uma metáfora para a

tirania legal56, metáfora, inclusive, comumente presente no debate parlamentar da época sobre

teoria constitucional. Cabe ressaltar, ainda, que Locke era acionista da Real Companhia

Africana, instituição participante da promoção do colonialismo nos Estados Unidos, em

particular no Estado da Carolina57.

Nos Estados Unidos, o discurso de Locke foi mobilizado pelos colonos

americanos, senhores de escravos, na obtenção de sua independência em relação à Grã-

Bretanha. Nesse contexto, o termo "escravidão" foi utilizado como metáfora para a condição

do indivíduo tributado sem seu consentimento, pois este não poderia se defender apresentando

resistência à opressão, impossibilidade que levaria à tirania. No entanto, essa nova nação

concebida a partir de sua luta pela liberdade tolerava a coexistência da escravidão, dando vida

a uma das maiores incoerências da história da humanidade ao inscrever a escravidão em sua

Constituição58.

Mesmo em Rousseau, o padroeiro da Revolução francesa, a questão da

escravidão dos africanos é silenciada. Para esse pensador, a escravidão seria a mais vil

condição, tanto para a alma quanto para o coração, a que um ser humano poderia ser

sujeitado. Ainda, teria legalidade nula, por ser ilegítima e vazia de sentido59, e, no entanto, o

pensador excluiu de sua apreciação teórica tanto a existência quanto as condições dos

escravos africanos submetidos aos interesses europeus.

Para o filósofo catalão Sala-Molins60, tal omissão de Rousseau não era

consequência de seu desconhecimento das circunstâncias da situação dos africanos: pelo

55Apud ibid. 56Apud ibid.57Ibid. 58Ibid. 59Apud ibid.60Apud ibid.

49

contrário, o pensador não só tinha contato com escravos domésticos, como inclusive citou

relatos de viagens em sua obra, convenientemente ignorando os trechos desses relatos capazes

de ilustrar os horrores a que os escravos negros eram submetidos. Ainda em sua obra,

Rousseau escreveu sobre seres humanos de diversas partes do mundo e, no entanto, não

escreveu sobre os africanos. O mais grave, porém, foi excluir a escravidão africana da

apreciação de uma teoria que pregava a igualdade entre os homens e estabelecia a origem da

desigualdade no surgimento da propriedade privada.

Quando em 1807, com a publicação da "Fenomenologia do espírito", apareceu

pela primeira vez na obra de Hegel a ideia de "luta de vida ou morte" entre senhor e escravo

como chave para o avanço da liberdade. Hegel inaugurou a possibilidade de se pensar a

escravidão não somente em termos de oposição a um estado mítico de natureza, como havia

sido feito pelos pensadores iluministas que o antecederam, mas também em termos da

oposição entre escravo e senhor, o que teve o efeito de trazer para dentro de sua obra a

realidade de sua época que tanto era ignorada pelos demais pensadores61.

Para Susan Buck-Morrs (2009) há apenas duas possibilidades. Ou a dialética

do senhorio e da servidão de Hegel decorria do fato de este possuir, através da leitura de

revistas e jornais (no período em que ficou em Jena escrevendo a "Fenomenologia do

espírito"), conhecimento sobre a existência e condição dos escravos negros, bem como

conhecimento sobre a vitoriosa Revolução Haitiana, ou então que, de todos os filósofos da

liberdade, Hegel era o mais cego.

Para Evandro Piza Duarte (2011), Susan Buck-Morrs rompeu com a ideia

tradicional e dominante de que a construção dos direitos se deu a partir de um fluxo de ideias

unidirecional, de que a irradiação de tais ideias estava sujeita a um único sentido que

circunscrevia sua eclosão intelectual à Europa e a simples importação destas ideias para os

demais povos do mundo. Assim:

Ao contrário, Susan Buck-Morss empenhou-se em demonstrar especificamente que a perspectiva hegeliana da história - um dos momentos fundadores do discurso sobre a liberdade (e do papel das revoluções) e da história da liberdade centrada na história da Europa - somente poderia ser compreendida no diálogo implícito de Hegel com acontecimentos revolucionários não apenas da Revolução Francesa, mas, sobretudo, das Revoltas de São Domingos. Em outras palavras, a herança ideológica européia, exportada para o resto do mundo resultava, de fato, de um horizonte de compreensão em que o resto do mundo já estava anteriormente presente. (DUARTE, 2011, p. 429).

A tese de Susan Buck-Morss incorpora a possibilidade de se pensar a formação das reflexões na cultura européia a partir de relações de poder, e não meramente da

61Apud ibid.

50

lógica do poder como coisa, como instrumento utilizado por um sujeito numa direção, da Europa sobre o resto do mundo, do senhor sobre o escravo. Ao mesmo tempo, sugere que a experiência da formação da identidade européia deve ser compreendida a partir de fluxos de informações que vão da periferia para o centro, e vice-versa. Soma-se o fato de que elas encontram e reencontram em situações concretas novas dimensões. (DUARTE, 2011, p. 433/434).

Dessa feita, considerando-se que tanto as ideias iluministas quanto as

experiências capazes de gerar no indivíduo os processos de percepção da autonomia e

autocontrole do corpo individual e de superação das fronteiras da empatia (além dos laços de

parentesco, de classe e religião) são propagados juntamente com a escravidão, por fluxos de

informações pluridimensionais.

Ainda, e consequentemente, considerando-se que a luta dos escravos pela

liberdade também foi um ponto fundamental para a construção da concepção de direitos,

impõe-se uma série de questionamentos: como explicar a persistência da cegueira dos

indivíduos brancos em relação ao sofrimento dos negros? Por que os princípios de liberdade e

igualdade não eram aplicados aos escravos? Quais motivos impediam que o branco

enxergasse o negro como detentor de sentimentos íntimos semelhantes, como detentor de um

eu interior? O que justificava a compreensão dos corpos negros não como um espaço de

autonomia e autocontrole, mas de intervenção da violência?

Para Susan Buck-Morss, a contradição existente entre a defesa dos ideais

iluministas e a existência do regime escravista foi assimilada pelo europeu como "culpa

política". Ou seja, a sociedade branca já possuía a consciência de que, do ponto de vista de

seu próprio contexto cotidiano, as práticas ligadas à escravidão eram totalmente

inconcebíveis62.

A cegueira quanto às condições dos escravos não pode ser explicada, portanto,

pela incapacidade do branco de estabelecer empatia pelo negro ou de conceber o corpo deste

como autônomo e exclusivo. Antes, a questão da contradição entre os ideais iluministas e a

escravidão, bem como as implicações dessa contradição para o sentido de correção moral da

sociedade branca, era para esta evidente, porém por ela não reconhecida. A continuidade do

regime de escravidão pode ser explicada, no entanto, pela maneira com que as autoridades,

representantes da coletividade como um todo, toleravam tal regime, perpetuando suas práticas

de maneira a delas obter benefícios, não só de ordem econômica63.

Dessa forma, a consciência de que a escravidão era abominável, do ponto de

vista da imaginação moral e da concepção dos direitos humanos, existia, mas era 62apud DUARTE, Evandro Charles Piza, op. cit.63DUARTE, Evandro Charles Piza, op. cit.

51

desautorizada pela conjuntura da sociedade e seu pressuposto de obediência social. A cegueira

em relação à escravidão apresentava-se, portanto, como um dever socialmente imposto,

necessário para a manutenção da própria ordem social, cegueira que, se quebrada, poderia

representar uma forma de traição, vez que colocaria em risco tal ordem e, por consequência, a

proteção da coletividade64.

Se assim não fosse, se a mente dos indivíduos brancos não estivesse povoada

de dilemas fundados no contraste existente entre a situação dos negros e a necessidade de

continuidade do sistema escravocrata como fator essencial para a manutenção dos privilégios

e da ordem social, como explicar discursos e mesmo leis que transitavam entre essas duas

esferas? Ou melhor, como explicar a união engenhosamente perversa de dois sentimentos

aparentemente antagônicos (quais sejam: a necessidade de preservar as estruturas do mundo

escravocrata e a necessidade de não sucumbir à brutalização humana derivada dos flagelos a

que os escravos eram submetidos) em um único discurso, o da moderação no trato com os

negros, sem passar pela culpa política?

Com efeito, o discurso que recomendava que os escravos fossem bem vestidos

e alimentados por seus senhores, somente devendo ser castigados se necessário e de maneira

moderada, era duplamente conveniente à população branca, vez que se prestava a

proporcionar a paz de consciência a uma sociedade que sabia sobreviver da exploração e da

desgraça do negro – e que assim pretendia permanecer.

O jesuíta Jorge Benci, em sua obra "Economia Cristã dos Senhores no Governo

dos Escravos", de 1705, defendia a ideia da existência de obrigações recíprocas entre os

senhores e seus escravos. Assim, o escravo deveria trabalhar, o que o tornava merecedor do

sustento fornecido pelo senhor. Este, por sua vez, tinha o dever de alimentar, vestir, cuidar das

doenças e ensinar a doutrina cristã para o escravo, sendo seu dever também punir quando

necessário e sem excessos, evitando que o escravo tornar-se insolente em relação ao seu

senhor e a Deus. Benci condenava a aplicação de castigos indiscriminados e defendia o juízo

de proporcionalidade entre a gravidade da ação do escravo e a punição a ser aplicada. Esta, no

entanto, deveria sempre causar temor no escravo, sob pena de não evitar erros futuros.65

Segundo Silvia Hunold Lara (1988), sobre Benci:

O discurso desse jesuíta sobre os castigos aconselhava basicamente moderação; ou seja, cuidado para que o excesso das punições não levasse o escravo a escapar do domínio senhorial (por fuga, suicídio ou morte), para que o poder não fosse

64Apud ibid. 65Apud LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

52

prejudicado com seu exercício brutal, para que a punição, atemorizando o escravo, tornasse efetiva a sua sujeição. Assim, mais que uma reforma humanitária da relação senhor-escravo, Benci pretendia orientar o sentido de preservar, com segurança, a continuidade do domínio senhorial. (LARA, 1988, p. 50).

Em 1711, em sua obra "Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e

Minas", o Padre André João Antonil afirmava ser necessário vestir e alimentar a escravo para

que este pudesse sobreviver, assim como castigá-lo para que fosse mais produtivo em suas

tarefas. Era o que no Brasil se conhecia tão comumente pelo nome de três “pés”: pau, pão e

pano. Deveria haver moderação tanto quanto ao trabalho quanto ao castigo, que não deveria

ser aplicado sem averiguação do culpado nem com ímpeto de vingança.66

Pode-se perceber, a partir da ideia de moderação proposta tanto por Benci

quanto por Antonil, que o que estava sendo recomendado sob o nome de humanitarismo

cristão, na verdade era a elaboração de um método eficiente de dominação senhorial. Nesse

sentido, afirmou Lara:

Ao protestarem contra o excesso nos castigos, ao mesmo tempo em que testemunhavam sua existência em alto grau na relação senhor-escravo, Antonil e Benci assinalavam que a moderação devia obedecer a critérios racionais (que apareciam no texto sob a forma de humanitarismo cristão), que os tornasse eficientes enquanto mecanismos de dominação e exploração dos escravos. Uma violência que não fazia parte das paixões humanas, mas que devia ser medida e controlada a fim de domesticar, ensinar e preservar o escravo. Uma economia que equilibrava sobrevivência, submissão e produção, garantindo a dominação senhorial e a continuidade da exploração escravista. Uma racionalidade que orientava o 'governo econômico dos senhores' e que, ao colocar-se em termos de humanitarismo cristão, cuidava essencialmente da continuidade do domínio senhorial. Uma racionalidade que insistia nos açoites e prisões como os melhores meios para ensinar e domar a rebeldia dos escravos; que alertava contra os excessos que poderiam ser ruins para os próprios senhores, pois os embruteciam ou punham em risco seu investimento; finalmente, que advertia para uma característica essencial do castigo-instrumento de dominação: a moderação significava também a dosagem que marcava a presença do castigo sem que ele precisasse ser efetivamente aplicado. (LARA, 1988, p. 51/52).

Para o Padre Manoel Ribeiro Rocha, em "Ethiope resgatado, empenhado,

sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso theológico-jurídico em que se propõe o

modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os pretos cativos

africanos e as principais obrigações que concorrem a quem deles se servir", de 1758, os

escravos deveriam receber de seus senhores sustento (alimento, vestuário, remédio), correção

(a severidade do castigo deveria estar conforme a índole do escravo) e instrução (catecismo,

66Apud ibid.

53

ensino dos bons costumes e da doutrina cristã).67

Em seu texto "Análise sobre a Justiça do Comércio de Resgate dos Escravos da

Costa da África, novamente revista e acrescentada por seu autor", de 1808, o Bispo Azeredo

Coutinho afirmou que, para alcançar um bom tratamento para os negros, sem abrir espaço

para desobediência e insubordinação, o senhor de escravos deveria proporcionar a estes o

sustento e o vestuário, uma boa noite de sono, a doutrina cristã e o castigo justo, que seria a

punição que, não excedendo regras humanitárias, manteria o escravo obediente a seu senhor.

Coutinho apresentou, ao final do texto, um projeto de lei que objetivava reprimir abusos por

parte dos senhores nas relações destes com os escravos.

Embora tal projeto pretendesse que os senhores acusados de comportamento

abusivos para com os escravos provassem o contrário por meio de testemunhas, estabelecia

apenas a pena de multa, a ser aplicada em obras pias, caso ficasse demonstrado que o senhor

realmente agira de forma excessiva. Ainda, segundo o projeto, os escravos não podiam

testemunhar contra seu próprio senhor e contra este não podiam ser promovidas devassas.68

Segundo Lara, sobre o projeto de lei do Bispo Azeredo Coutinho:

Assim, seu projeto destinava-se, antes de mais nada, a preservar e a conservar a relação senhor-escravo, amenizando o tratamento sem afrouxar a dominação e o controle senhoriais e impedindo qualquer manifestação, por parte dos escravos ou da justiça, que pudesse restringir o domínio senhorial. Mais que uma reforma da instituição, Azeredo Coutinho pretendia, portanto, apenas controlar o cumprimento de alguns 'deveres' senhoriais, entre os quais, além de alimentar, vestir e catequizar o escravo, incluía-se necessariamente o de castigá-lo. (LARA, 1988, p. 48/49).

Nos discursos de todos os religiosos por Silvia H. Lara (1988) apresentados,

pode-se perceber a gritante necessidade que a sociedade escravista tinha de se conceber mais

humana, minorando o sofrimento dos escravos, sem, no entanto, abrir mão do castigo como

elemento essencial para o exercício do poder senhorial, apresentando-se como instrumento de

dominação, disciplina, prevenção de rebeldia e, mesmo assim, também como elemento

apaziguador da consciência da população branca.

A legislação sobre a aplicação de castigos corporais aos escravos também não

escapou ao discurso humanitarista baseado na moderação nas relações entre os senhores e

escravos. Diferentemente das colônias holandesa, inglesa e francesa, no Brasil não vigorava

um Código Negro. Tais fontes de direito apresentavam-se como legislações benéficas aos

escravos, intentadas a regular as relações entre escravos e seus senhores por meio de limites

67Apud ibid.68Apud ibid.

54

legalmente estabelecidos, evitando, inclusive, os castigos excessivos. No entanto, a grande

maioria das punições previstas nos Códigos Negros para os senhores que não observassem o

que neles se recomendava consistia em multas de valor tão insignificante que várias vezes

nem chegavam a ser cobradas.69 Exemplifica Arthur Ramos:

O código de Martinica, por exemplo, estabelecia uma tarifa progressiva como esta: cortar o punho, duas libras; as orelhas, cinco libras; a língua, seis libras, e assim por diante. Os castigos mais rigorosos, como enforcar ou queimar vivo eram sujeitos às multas respectivas de trinta e sessenta libras! (RAMOS, 1942, p. 100).

Assim, por trás de um pretenso humanitarismo, o melhor tratamento dos

escravos proposto por esses códigos era, em verdade, uma série de dispositivos que tratavam

o negro como mercadoria, coisa, animal. Como se não fosse suficientemente ruim, os únicos

dispositivos em que o escravo era concebido como pessoa eram aqueles de responsabilização

perante a justiça por crimes que cometeu.

No Brasil, não houve uma edição de codificação inteira destinada à

regulamentação das relações entre senhores e escravos. No entanto, nas colônias portuguesas,

a mente e o espírito dos homens não estavam livres da culpa pela escravização dos negros,

como também não estava livre da dependência do trabalho escravo a manutenção de seus

interesses e da ordem social também. Assim, em "Legislação sobre escravos africanos na

América portuguesa", Silvia Hunold Lara apresenta vasto material coletado em sua pesquisa,

que reúne leis, cartas régias, provisões e consultas, usadas no presente trabalho para ilustrar a

determinação com que se tentava fazer da escravidão uma instituição humanizada.

Já em 20 de março de 1688, o monarca de Portugal, por carta régia, expressava

sua preocupação em relação aos castigos aplicados aos escravos ao determinar ao

Governador-Geral Matias da Cunha que, sempre que realizasse "devassas gerais", procurasse

descobrir os senhores que agiam com crueldade em relação a seus escravos. Tais senhores

poderiam ser denunciados inclusive por seus escravos e, no entanto, a única punição que

receberiam seria a obrigatoriedade de venda desses escravos a terceiros que lhes tratassem

bem. Caso ficasse comprovado que o senhor não agia de forma cruel, a solução do monarca

para evitar uma possível vingança por parte do senhor que foi denunciado pelo escravo era

simplesmente notificar aquele para que assim não o fizesse.

Carta régia de 20 de março de 1688Governador do Estado do Brasil. Eu el-rei vos envio muito saudar. Por ser informado que muitos dos moradores dessa capitania que têm escravos lhes dão

69RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.

55

muito mau trato e os castigam com crueldade, o que não é lícito aos senhores dos tais escravos, porque só lhes podem dar aquele moderado castigo que é permitido pelas leis; e desejando evitar que os pobres escravos padeçam sobre lhes faltar a liberdade a e vingança de seus senhores, sou servido que, de hoje em diante, em todas as devassas gerais que se tirarem nesse Estado, se pergunte pelos senhores que com crueldade castigarem seus escravos e que aqueles que o fizerem sejam obrigados a vendê-los a pessoas que lhes dêem bom trato e que, havendo quem denuncie perante as Justiças dos senhores que na forma referida castigarem cruelmente os seus escravos, se lhes tomem as denunciações e ainda as que derem os mesmos escravos castigados; e no caso que se não provem as denunciações ou querelas serão pelas Justiças notificados os senhores dos tais escravos que, por esta causa, lhe não façam dano algum. E esta carta se registrará nos livros desta Relação para que nela se faça executar como também nos da Secretaria desta capitania. Escrita em Lisboa, a 20 de março de 1688. Rei.FONTE: DH, 32, pp. 393-394; ANRJ, Cartas Régias, Cartas Régias, Cod. 952, vol. 4, fl. 168; Pizarro, 5, pp. 221 e 327; ABN, 28, p. 193; ACL,Documentos... (Ms. Az. 95), fls. 117-117v)70

Observe-se que o "bom tratamento" a que se refere a carta régia não significa

cessar a submissão do escravo a castigos e trabalho compulsório, mas apenas proibia – ou,

quando menos, advertia - não agir segundo o que seria um comportamento monstruoso para a

consciência da sociedade da época. Em outras palavras, tratar bem os escravos era castigá-los

moderadamente, o que se pode confirmar pelas palavras do próprio monarca proferidas

apenas três dias depois, na Carta Régia de 23 de março de 1688:

Carta régia de 23 de março de 1688

Governador do Estado do Brasil. Eu el-rei vos envio muito saudar. Por ser informado que alguns dos moradores desse Estado que têm escravos os castigam com crueldade, excedendo aquela moderação que é permitida aos senhores quando castigam aos escravos, não somente obram contra a proibição das leis, mas também contra a caridade do próximo o que por toda a razão se deve evitar, sou servido ordenar-vos que tomeis informações verbais e sumárias do modo com que os senhores tratam aos seus escravos e, achando que alguns excedem a moderação que lhes é permitida, os castigueis arbitrariamente e, quando acheis algum compreendido em excesso grave, o fareis processar sumariamente remetendo ao ouvidor-geral o conhecimento do excesso para que o sentencie camerariamente com ministros que lhes nomeardes por adjuntos, evitando quanto vos for possível que chegue à notícia dos escravos este remédio que se dá ao seu imoderado castigo, por se evitar que com menos justificada causa possam argüir a seus senhores e, se entender que bastará que os senhores saibam a forma em que mando proceder contra eles e achando-se alguns compreendidos em castigar com maior excesso aos seus escravos, além das penas que lhe forem dadas serão obrigados a vendê-los, com a condição que o senhor que os comprar será obrigado a tratá-los com castigo moderado. E fazendo-vos saber o arcebispo que lhe consta que algum senhor castiga aos seus escravos com crueldade e tirania procedereis contra ele na forma referida porque aos prelados ordeno que, quando lhes constar de semelhante excesso, mandem dar parte aos governadores. E esta carta se registrará no livro da Relação dessa cidade e nos dessa Secretaria para que a todo o tempo conste desta minha resolução, a qual vos encomendo muito façais inteiramente cumprir e guardar. Escrita em Lisboa, a 23 de março de 1688. Rei.

70Retirada de LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. 2000, p. 198. Disponível em: <http://www.larramendi.es/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1000203>. Acessado em: 4 de novembro de 2013.

56

FONTE: DH, 68, pp. 160-161; ANRJ, Cartas Régias, Cartas Régias, Cod. 952, vol. 4, fl. 172; ABN, 28, pp. 193-194; ACL, Documentos... (Ms.Az. 95), fls. 117v-118."71

Tal carta régia, de 23 de março de 1688, representou um verdadeiro retrocesso

em relação à carta do dia 20 de março de 1688. Embora sua finalidade também tenha sido

regular a aplicação de castigos aos escravos, evitando punições excessivas e cruéis, essa carta

é ainda mais marcada do que a anterior pela necessidade de manutenção dos privilégios e

ordem social.

Com efeito, a determinação de que o Governador-Geral, durante as "devassas

gerais", procurasse descobrir que senhores eram cruéis foi substituída por determinação bem

mais difusa que prescrevia apenas a tomada de informações pelo governador, sobre esses

senhores, de maneira verbal e sumária72. A venda obrigatória do escravo seria punição

aplicada somente aos casos de "maior excesso", de forma que o direito de propriedade dos

senhores não ficasse tão comprometido e exposto à insurgêncaia de revoltas, aspecto que

poderia ser potencialmente elevado ante a proibição de os escravos poderem denunciar seus

senhores. Esse último retrocesso é claramente manifestação do grande receio que a sociedade

branca possuía em relação a abalos na ordem escravista, que não seria a mesma caso o senhor

pudesse ser denunciado publicamente por seu próprio escravo73

Menos de um ano após essa segunda carta régia, o monarca português expede

uma terceira em 23 de fevereiro de 1689. As medidas previstas nas cartas dos dias 20 e 23 de

março do ano anterior, que já não tinham eficácia prática por falta de meios compulsórios de

fazer com que elas fossem respeitadas pela sociedade e aplicadas pelas autoridades74, foram

formal e solenemente revogadas pela terceira carta, dado que apresentavam-se inconvenientes

à conservação do Estado.

"Carta régia de 23 de fevereiro de 1689Governador do Estado do Brasil. Eu el-rei vos envio muito saudar. A vossa carta de 11 de agosto passado me foi presente em que me dais conta de haverdes recebido as minhas de 20 e 23 de março do mesmo ano em que vos ordenava a forma em que se devia proceder contra os senhores que imoderada e cruelmente castigassem a seus escravos, representando-me os inconvenientes que de sua execução resultavam ao meu serviço e à conservação desse Estado. E mandando ver e considerar novamente esta matéria, hei por bem que não tenham efeito as ditas ordens de 20 e 23 de março e que nesse Estado se guarde e observe o que as leis dispõem em comum sobre os senhores que a seus escravos dão imoderado castigo; e parecendo-vos necessário

71 Retirada de ibid, p.199.72SILVA JUNIOR, Waldomiro Lourenço da. A escravidão e a lei: gênese e conformação da tradição legal castelhana e portuguesa sobre a escravidão negra na América, séculos XVI-XVIII. 2009. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07122009-143158/>. Acesso em: 25 de outubro de 2013. 73Ibid. 74Ibid.

57

que aos ditos escravos conste desta minha resolução o fareis entender com algum ato positivo para se que se evitem as perturbações que entre eles e seus senhores já começam a haver, com a notícia que tiveram das ordens que se nos haviam passado. Escrita em Lisboa, a 23 de fevereiro de 1689. Rei. FONTE: DH, 68, p. 174; DH, 32, pp. 394-395; ANRJ, Cartas Régias, Cartas Régias, Cod. 952, vol. 5, fl. 29; BNRJMS, Cartas Régias... 7, 3,53,fls. 530-31; ABN, 28, p. 198; ACL, Documentos..., (Ms. Az. 95), fls. 118v-119"75

Em 7 de fevereiro de 1698, a preocupação do monarca com a crueldade dos

castigos aplicados aos escravos é novamente tema de carta régia. Diferentemente da carta de

20 de março de 1688, o monarca toma o cuidado de recomendar que o governador atue de

forma a averiguar e evitar o uso das argolas de ferro sem, no entanto, gerar o

descontentamento dos senhores causado pela intervenção estatal em seu poder de propriedade

ou a possibilidade de ação direta do escravo contra os maus tratos de seu senhor.

"Carta régia de 7 de fevereiro de 1698Governador da capitania do Rio de Janeiro, amigo. Eu el-rei vos envio muito saudar. Sou informado que nessa capitania costumam os senhores que têm escravos, para os castigarem mais rigorosamente, prendê-los por algumas partes do corpo com argolas de ferro para que assim fiquem mais seguros para sofrerem a crueldade do castigo que lhe quiserem dar. E porque este procedimento é inumano e ofende a natureza e as leis, vos ordeno que com prudência e cautela procureis averiguar o que há nesta matéria exatamente e que, achando que assim é, o façais evitar pelos meios que vos parecerem mais prudentes e eficazes, procurando que estes não causem alvoroço nos donos e que se consiga o fim que se pretende sem ruído ou alteração dos mesmos escravos. Espero do zelo com que me servis o executeis assim. Escrita em Lisboa, a 7 de fevereiro de 1698. Rei.FONTE: ANRJ, Cartas Régias, Cod. 952, vol. 9, fl. 37; BNRJMS, II, 34, 23, 1, doc. 46; AAPB, 31 pp. 93-94"76

Outros documentos organizados por Silvia Hunold Lara, que demonstram o

dilema da sociedade branca, em relação ao tratamento dedicado ao escravo, e a necessidade

da manutenção dos mecanismos escravistas como forma de garantir a perpetuação dos

privilégios e da ordem social, são a Carta Régia de 5 de novembro de 171077, a Provisão de 17

de janeiro de 171478, a Provisão de 29 de novembro de 177979, a Consulta de 23 de outubro de

171080 e a Consulta de 28 de janeiro de 175481.

No período do Brasil Império também há diversa legislação capaz de elucidar o

antagonismo existente entre as tentativas de humanizar os castigos aplicados aos escravos

sem, contudo, colocar em risco as estruturas que permitiam a manutenção da ordem social

75Retirada de LARA, Silvia Hunold, op. cit., 2000, p. 201. 76Retirada de LARA, Silvia Hunold, op. cit., 2000, p. 211. 77Ibid, p. 232/233. 78Ibid, p. 237.79Ibid, p. 362/363. 80Ibid, p. 479/480.81Ibid, p. 540/542.

58

por meio da organização do trabalho do elemento servil.

A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824,

determinava em seu artigo 179, inciso XIX82, verbis:

Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.

No entanto, a possibilidade de aplicação de castigos moderados aos escravos

continuava a existir em legislação infraconstitucional, o que era justificado pelos

doutrinadores jurídicos através do argumento de que escravos não seriam cidadãos83. Dessa

forma, o Código Criminal do Império do Brasil, em seu artigo 14, item 6º, previa a

possibilidade de o senhor aplicar castigos moderados a seus escravos, não respondendo

juridicamente por se tratar de crime justificável84, verbis:

Art.14. Será o crime justificavel, e não terá lugar a punição delle:6º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a qualidade delle, não seja contraria ás Leis em vigor.

Importante ressaltar que, mesmo em caso de castigo excessivo, contrário às

leis, para evitar a possibilidade de deterioração da hierarquia senhor-escravo, não era possível

ao escravo denunciar seu próprio senhor por atos de crueldade. Tal previsão estava presente

no artigo 75, parágrafo 2º do Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de

18328586.

Em lei de 20 de outubro de 1823, que dava nova forma aos Governos das

Províncias, criando um Presidente e um Conselho para cada uma, ficou estabelecido, em seu

artigo 24, item 10, que seria função daquele zelar pela moderação no trato com os escravos e

agir de forma a propiciar a emancipação gradual destes8788.

A Lei de 1º de outubro de 182889, que dava nova forma às Câmaras Municipais, 82CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/s/artigos/a-escravidao-no-imperio-do-brasil-perspectivas-juridicas>. Acessado em: 2 de novembro de 2013.83Ibid. 84Ibid. 85Ibid. 86“Art. 75. Não serão admittidas denuncias:§ 2º Do escravo contra o senhor”. 87"Art. 24. Tratar-se-hão pelo Presidente em Conselho todos os objectos, que demandem exame e juizo administrativo, taes como os seguintes: 10. Cuidar em promover o bom tratamento dos escravos, e propôr arbitrios para facilitar a sua lenta emancipação."88GOULART, José Alipio, op. cit., p. 25.89Ibid, p. 25.

59

estabelecendo as atribuições e processo de eleição destas, dispunha em seu artigo 59 que

"Participarão ao Conselho Geral os maos tratamentos, e actos de crueldade, que se costumem

praticar com escravos, indicando os meios de preveni-los".

Dessa forma, pode-se sugerir que “a moderação”, fundada numa cultura

religiosa cristã, representou uma estratégia de acomodação capaz de retirar do espaço público

os efeitos da “culpa política” decorrente da contradição entre a crescente consciência da

igualdade entre brancos e negros e, portanto, da artificialidade da escravidão, e os interesses

dos senhores brancos na manutenção da escravidão.

Ao mesmo tempo, a proposta de moderação fornecia a possibilidade de uma

resposta coletiva (dos senhores) contra as contradições crescentes entre senhores e escravos

ao longo do século XIX.

O procedimento de acomodação hierarquizada era conhecido da tradição

ibérica, com a criação de novos estamentos intermediários. Assim como a ideia de uma

prevalência do interesse “público” (de um Estado Escravista) sobre o individual (dos senhores

em cada caso). Esse dois elementos parecem surgir como estratégias de domínio em um

cenário no qual, ao contrário de outros países, os negros eram uma maioria numérica.

Novamente aqui, a acomodação dependeria de um fator central, a racionalização dos

instrumentos de violência com a intervenção crescente do Estado sobre a justiça direta dos

senhores.

Assim, a cegueira em relação à ambiguidade existente entre os valores morais

da sociedade e a necessidade de manutenção dos interesses da população branca (que só

poderia se dar pela perpetuação das estruturas escravistas) servia de adubo para o "virtuoso"

discurso sobre a essencialidade do uso de moderação na aplicação de castigos aos escravos. A

Lei do Ventre Livre, como será exposto no próximo capítulo, mesmo que tratasse de crianças

e adolescentes teoricamente livres a partir de sua promulgação, não seria uma exceção.

60

CAPÍTULO III

OS DISCURSOS SOBRE A CRIMINALIDADE DO JOVEM NEGRO NO FINAL DO SÉCULO XIX

A Lei do Ventre Livre determinava que os filhos de escravos nascidos a partir

de sua promulgação – 28 de setembro de 1871 - seriam livres. Porém deveriam ficar sob os

cuidados do senhor de seus pais até completar oito anos de idade. A partir desse momento, o

senhor de escravos poderia optar entre manter o menor sob sua custódia até que este

completasse vinte e um anos de idade, em troca de seu trabalho braçal, ou entregar o menor

para o Governo, recebendo indenização pelos gastos destinados ao cuidado deste ao longo de

oito anos.

Durante as discussões que antecederam a aprovação da Lei do Ventre Livre, a

questão dos limites do poder do senhor de escravos sobre os filhos destes que nascessem

livres apresentou-se, como podemos verificar na obra "Carta aos fazendeiros e

commerciantes fluminenses sobre o elemento servil, ou refutação do parecer do Sr.

Conselheiro Christiano Benedicto Ottoni ácerca do mesmo assumpto", como de fundamental

importância para a aceitação e o sucesso da implementação de tal proposta. Como e sob

quais condições deveria trabalhar o menor? Tais condições gerariam inveja nos que ainda

eram escravos? Poderia o tutor aplicar castigos físicos no menor caso este se recusasse a

trabalhar ou se comportasse de maneira a desagradar o senhor de seus pais? Segundo o autor:

Tendo-vos mostrado, que sabiamente foi adoptada pela proposta do governo a libertação do ventre em relação á indemnização que vos offerece em dinheiro, ou em serviços pela criação dos filhos de vossas escravas, passarei agora a tomar em consideração os outros motivos, por que lhes sois adversos.Fallemos primeiramente da desorganização do trabalho agricola. O trabalho se desorganiza em vossa opinião, porque a servidão dos menores até 21 annos será origem de ciumes e de indisciplina entre numerosa população escrava, uma vez que aquelles vão ter tratamento diverso do que se der á esta. Engano manifesto. Estamos persuadidos, que o escravo entre nós, já acostumado a ver homens livres a seu lado, tem perfeita noção da differença do seu estado para o delles, e estima ver livres a seus filhos, seus parentes, e os filhos dos seus parceiros. Não julguemos a natureza sómente pelo seu máo aspecto, e saibamos que os bons sentimentos não são extranhos á raça decahida pela escravidão, quando a historia presente e passada nos mostram exemplos de sua devotação. (...) Pelo lado de tratamento e vestuario não é provavel, que os entes, que agora vão ser livres, exijam-no melhor do que os seus parceiros de trabalho, porque elles sabem,

61

que todos descendem da mesma origem, e não devem envergonhar-se de comerem do mesmo caldeirão, receberem as mesmas vestimentas, e sujeitarem-se aos mesmos trabalhos, e modo de vida.Quanto a coerção, que necessariamente deve dar-se para sujeital-os aos trabalhos, não póde haver duvida de que aos donos das fazendas, em que ha pessoas libertas pela lei, de cujos serviços devem elles ter o usofructo, compete o infligir castigo modico, quér sejam considerados como tutores, e mestres, quér como usufructuarios, do mesmo modo que tambem moderado deve ser o que esses donos de fazendas têm de impôr aos seus escravos. Assim se a lei criminal do nosso paiz, permitte aos senhores castigar os seus escravos, esse castigo moderado tambem é licito ao usufructuario pela lei.Não se póde dar portanto nos estabelecimentos agricolas a indisciplina, de que tanto vos arreceias como desorganizadora do trabalho, si fôr admittida a promiscuidade dos escravos com os livres, que nasceram depois da lei. (ANÔNIMO, 1871, p. 30/31). (grifamos)

No trecho acima existe a afirmação de que os filhos de escravos nascidos após

a Lei do Ventre Livre não almejariam melhores condições de vida e de trabalho do que

aquelas destinadas aos seus pais, por saberem serem filhos de escravos.

É relevante destacar que o autor generaliza um ponto de vista quanto à

liberdade dos escravos baseado numa concepção sobre o que ele pensa a respeito das

populações negras. Portanto, um ponto de vista racializado. Esse ponto de vista não reflete

necessariamente a concepção de liberdade dos negros que eram escravizados naquela época,

mas a estratégia discursiva de alguém que fala para um auditório que compreende e aceita a

distinção “natural” entre o comportamento de brancos e negros.

Uma vez que a lei de 7 de novembro de 1831 declarava que todos os escravos

vindos do estrangeiro ficariam livres ao adentrar os portos ou o território brasileiro, a

legitimidade do direito dos senhores de escravos que contraíram cativos africanos após essa

determinação ficou comprometida.

Dessa forma, a condição de escravo estava intimamente relacionada à

submissão ao sistema da escravidão, ao seu regime de trabalho e ao arcabouço disciplinar

deste, vez que se aferida em termos de legalidade, constatar-se-ia a irregularidade de

submissão à escravidão de grande parte dos cativos90. Assim, é congruente afirmar que estar

sujeito ao mesmo regime e condições de trabalho de seus pais escravos não correspondia com

a imagem de liberdade que possuíam os escravos, vez que era justamente esse regime que

determinava a condição de cativo.

Em outras palavras, diante da evidente ilegalidade da escravidão da maioria

dos escravos, pode-se sugerir que estado de direito e estado de fato possuíam um significado

90MACHADO, Maria Helena, op. cit.

62

entrelaçado para a grande massa de cativos91.

Liberdade, segundo a concepção dos escravos, era não mais estar sujeito a um

regime de trabalho próprio das monoculturas de latifundios; era, em vez disso, gerir o seu

tempo como lhes conviesse, desenvolver culturas independentes de subsistência92. Ainda, a

concretização da liberdade, para o escravo, não ocorreria apenas pela eliminação do cativeiro

e das obrigações e castigos ligados a tal condição. A ideia de liberdade era, nesse sentido,

indissociável da ideia de igualdade. O escravo queria possuir as mesmas condições e

oportunidades do homem branco. Mesmo circunstâncias simples, como a possibilidade de se

vestir determinada roupa ou possuir determinado objeto, possuía o condão de preencher o

conteúdo histórico do que seria liberdade para o escravo93.

Para a elite branca brasileira, a liberdade do filho de escrava que nascesse após

a promulgação da Lei do Ventre Livre era garantida e confirmada pela própria possibilidade

de exercício dessa liberdade, especialmente pela permissão que este recebia, através da lei, de

se portar como um homem livre. Essa visão vai ao encontro do liberalismo e da manutenção e

defesa do direito de propriedade (vez que, liberto, o negro poderia opor o uso, gozo e fruição

de bens, direitos e atividades contra todos).

No entanto, é certo que, para que a existência da liberdade seja efetiva, e não

mera enunciação despida de força normativa, o indivíduo deve estar provido dos meios, isto é,

da capacidade material necessária para vencer possíveis interferências ao exercício daquela94.

Não existia, portanto, efetiva liberdade dos nascidos de escravas após a Lei do Ventre Livre se

a possibilidade de perseguir as mesmas condições sociais e econômicas dos homens brancos

estava comprometida, por exemplo, pela escassez de recursos e pelo preconceito, não

dispondo, geralmente, os negros livres de meios ou garantias para superar tais interferências.

Voltando ao trecho transcrito, nele se afirma possuir o tutor dos menores o

direito de aplicar-lhes castigos corporais da mesma forma que aplicava aos escravos, de

maneira moderada. No entanto, há silêncio no discurso sobre o que seriam castigos módicos.

91Esse tema foi explorado quanto ao direito de propriedade sobre escravos por Juliana Litaiff em “Indenização do medo: a abolição da escravidão e o debate político sobre a indenização do direito de propriedade dos senhores de escravos (leis de 1871 e 1885)”, monografia defendida e aprovada em julho de 2013. Disponível em: <http://bdm.bce.unb.br/bitstream/10483/5816/1/2013_JulianaAndradeLitaiff.pdf>. Acessado em: 26 de novembro de 2013. 92MACHADO, Maria Helena, op. cit.

93SILVA, Cesar Mucio. Processos-crime: escravidão e violência em Botucatu. São Paulo: Alameda, 2004.

94Para mais sobre as condições do exercício da liberdade, consultar COHEN, G. A. Libertad y dinero. Santiago: Estudios Públicos, 2000.

63

Assim, até onde a disposição do corpo do negro como espaço de intervenção da violência

deveria ser socialmente aceita? Tal proposta se insere no âmbito particular do senhor de

escravos, sistemática em que a moderação do castigo submetida ao juízo de

(des)proporcionalidade deste e não sendo passível de fiscalização pelo Governo.

Outra solução para uma possível desobediência desses menores se insere no

âmbito público, vez que se atribuiu ao Governo o dever de punir, como é possível verificar na

fala do Sr. Carneiro de Campos, proferida em sessão do Senado ocorrida em 4 de setembro de

1871:

Eu duvido muito que os fazendeiros se possam aproveitar das disposições que se lhes offerece; o nascido chegando a certa idade, logo que seja chamado aos trabalhos em que elle vê seus progenitores soffrerem tarefas arduas e acompanhadas de todas as privações, naturalmente procura esquivar-se delles; e qual é o meio de o obrigar a servir? Diz o projeto: 'O dono do escravo terá a disponibilidade de seus serçivos até 21 annos'. Em primeiro logar que serviços são esses? Como se define esses serviços? Nessa generalidade pergunto eu: será o serviço ordenado pelo senhor ou o escolhido pelo escravo? Quem ha de dizer qual a qualidade de serviço que elle ha de prestar?(...)Supponhamos que assim seja, começam então elles a (...) servir de má vontade, a não servir, e perguntarei: qual é o meio de os coagir? A prisão? Ahi ha de intervir o governo para obrigal-os; mas como? Ha de ter uma numerosa policia, uma numerosa força, ha de emfim vêr-se a braços com tudo isso"95 (grifamos)

A partir do discurso do Sr. Carneiro de Campos é possível perceber a atuação

da dinâmica do medo na sociedade brasileira do século XIX. A medida gradual de

emancipação proposta a partir da liberdade dos ventres ainda não tinha sido aprovada e os

negros ainda não nascidos já estavam sendo criminalizados pela sociedade. Em outras

palavras, o "problema" nem ao menos existia, mas a sociedade já estava reclamando ao

Estado medidas de segurança, reclamando que fosse feito do corpo do negro um espaço de

intervenção da violência antes mesmo da constituição do delito pelo qual ele deveria ser

punido.

A resposta legislativa para a questão dos castigos físicos veio no ano seguinte à

promulgação da lei, no artigo 18 do Regulamento de 13 de novembro de 1872 (regulamento

responsável por estabelecer os parâmetros de execução da Lei do Ventre Livre) que

determinava:

Art. 18. Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas, antes de atingirem elles a idade de 21 annos, se, por sentença do juizo criminal, reconhecer-se que os

95Discurso do Sr. Carneiro de Campos, na sessão do dia 4 de setembro de 1871 do Senado Brasileiro.

64

senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos. (Lei - art. 1º § 6º).

Embora no artigo 19 do mesmo regulamento a privação de alimentos ou a

sujeição a atos imorais tenha sido igualada a castigos excessivos, persistiu a omissão sobre a

intensidade com que o menor poderia ser punido, limitando-se tal regulamento a apenas, no

parágrafo único do artigo 19, possibilitar ao juiz de órfãos aferir tais situações judicialmente,

nomeando, no caso, curador e depositário ao menor.

Como visto no capítulo anterior, por meio da autorização para aplicar aos

ingênuos castigos módicos, a necessidade de perpetuar as estruturas ligadas ao trabalho

escravo, que permitiam a manutenção dos privilégios da sociedade branca, pode ser

conciliada com os valores humanitários da época, o que dava ensejo a coexistência de dois

mundos antagônicos em um só, pretensamente harmônico, em que o branco pode ser

humanista e esclarecido sem ter que admitir em seu caráter as consequências resultantes de

um embrutecimento decorrente da convivência com os horrores das torturas pelos quais

passavam os negros – inclusive aqueles libertos.

Nesse contexto, o efeito desse enunciado legislativo aberto é permitir que o

indivíduo pense abstratamente em castigos leves, quase parecidos com os que aplicaria ao

próprio filho se este fosse malcriado, e, então, os generalize, assumindo como uma realidade

partilhada, de modo homogêneo, pela sociedade e, no entanto, aplique o castigo que lhe

convier segundo seu humor e sua análise particular de cada caso de desobediência escrava.

No entanto, se do artigo 10 ao artigo 15 do Regulamento de 13 de novembro de

1872 são apresentados detalhes de como ocorreria a requisição da indenização de 600$000,

com juros anual de 6%, pelo senhor que não quisesse utilizar a mão de obra do filho de sua

escrava após ele ter completado oito anos de idade, o mesmo não ocorre quanto a esclarecer a

forma de provocação da aferição, pelo juiz de órfãos, de maus-tratos e castigos excessivos

aplicados ao ingênuo.

Dessa forma, o artigo 82 do mesmo regulamento determina que "O processo

para verificar os factos do art. 18 deste regulamento é o dos paragraphos do art. 63 do decreto

nº 4824 de 22 de Novembro de 1871". Os parágrafos do artigo 63 do decreto nº 4824 de 22 de

novembro de 1871, por sua vez, apresentam os procedimentos que devem ser observados

durante o processo, inclusive no que diz respeito à possibilidade de se recorrer da decisão

judicial, mas também não explicam como o ingênuo levaria a informação de possíveis

castigos excessivos ao conhecimento do juiz para então receber a tutela processual.

65

A leitura de outros dispositivos do decreto nº 4824 de 22 de novembro de 1871,

esclarece a finalidade e o modo pelo qual ocorria o inquérito policial no final do século XIX,

determinando que os chefes, delegados e subdelegados de polícia poderiam ser notificados de

possível ocorrência de infração por qualquer meio viável.

Art. 38. Os Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, logo que por qualquer meio lhes chegue a noticia de se ter praticado algum crime commum, procederão em seus districtos ás diligencias necessarias para verificação da existencia do mesmo crime, descobrimento de todas as suas circumstancias e dos delinquentes.

Art. 39. As diligencias a que se refere o artigo antecedente comprehendem:1º O corpo de delicto directo.2º Exames e buscas para apprehensão de instrumentos e documentos.3º Inquirição de testemunhas que houverem presenciado o facto criminoso ou tenham razão de sabel-o.4º Perguntas ao réo e ao offendido.Em geral tudo o que fôr util para esclarecimento do facto e das suas circumstancias.Art. 40. No caso de flagrante delicto, ou por effeito de queixa ou denuncia, se logo comparecer a autoridade judiciaria competente para a formação da culpa a investigar do facto criminoso, notório ou arguido, a autoridade policial se limitará a auxilial-a, colligindo ex-oficio as provas e esclarecimentos que possa obter e procedendo na esphera de suas attribuições ás diligencias que lhe forem requisitadas pela autoridade judiciaria ou requeridas pelo Promotor Publico ou por quem suas vezes fizer.Art. 41. Quando, porém, não compareça logo a autoridade judiciaria ou não instaure immediatamente o processo da formação da culpa, deve a autoridade policial proceder ao inquerito aceroa dos crimes communs de que tiver conhecimento proprio, cabendo a acção publica: ou por denuncia, ou a requerimento da parte interessada ou no caso de prisão em flagrante.

Se havia excesso no castigo aplicado ao ingênuo, levar os fatos ao

conhecimento das autoridades, devido à própria condição de hipossuficiência deste, dada a

dependência e submissão do menor ao senhor de sua mãe, bem como à falta de previsão legal

de mecanismos de proteção do ingênuo, não era tão simples. Ora, quem cooperaria para a

própria acusação? Assim, mesmo que as autoridades responsáveis pela aferição dos maus-

tratos pudessem vir a saber deles por quaisquer meios, ou seja, mesmo que a notícia do

castigo em excesso pudesse ser fornecida às autoridades competentes por meio do ingênuo, de

sua mãe, ou de algum outro familiar, que senhor, em perfeito juízo, conhecendo essa intenção,

permitiria de bom grado que seu escravo procurasse as autoridades?

Não havia, portanto, como recorrer à Justiça por meios que não fossem

perigosos para o ingênuo, o que só era alcançada pela fuga, atos de desobediência, ou ficava o

menor à sorte da sensibilização de algum terceiro que tivesse conhecimento dos fatos.

Faltavam, assim, instituições jurídicas voltadas à defesa dos direitos de pessoas em condições

de vulnerabilidade social.

66

Qual fosse a forma de o delegado, subdelegado ou de o chefe de polícia obter a

notícia de que o ingênuo era punido de maneira desproporcional e cruel, o processo do juízo

criminal capaz de cessar a obrigação de prestação de serviços do filho de escrava para o

senhor desta, como bem deixava claro o artigo 19, parágrafo único do regulamento de 13 de

novembro de 1872, somente seria iniciado se o juiz de órfãos, após verificar os fatos, julgasse

que havia fundamentos para a ação criminal, caso em que nomearia depositário e curador para

o menor.

Dessa feita, havia dois momentos em que o ingênuo precisava obter êxito em

demonstrar ser vítima de castigos excessivos para que pudesse desonerar-se da obrigação de

trabalhar para o senhor de sua mãe até 21 anos de idade. O sumário da culpa, primeiro

momento, é marcado pela formação do conjunto de peças necessário para fundamentar a

denúncia e a pronúncia daquele que castigou o ingênuo de maneira cruel. O julgamento,

segundo momento, envolve os procedimentos anteriores e concomitantes às reuniões do

Tribunal do Júri. Nestas, há a configuração e julgamento do crime e a fixação da pena.

Caracterizado pelos inquéritos que objetivavam a comprovação da ocorrência

do crime, bem como da pertinência de indiciar o réu, o sumário da culpa era iniciado pela

denúncia, composta por resumo detalhado dos fatos e circunstâncias do crime e de rol de

testemunhas. Após tal fase, determinava-se a realização de exame de corpo de delito,

qualificava-se o réu e a vítima, reduzindo a termo nos autos as perguntas que a eles fossem

feitas, bem como suas respostas, inquiriam-se as testemunhas. Tanto a autoridade policial

quanto a judicial eram autorizadas a conduzir o interrogatório, que deveria ser realizado na

presença dos representantes das partes. Finalizado o período de investigação, caso o juiz de

órfãos julgasse procedente a denúncia, pronunciaria o acusado, remetendo os autos ao juízo

criminal. Sobre esse segundo momento, afirma Maria Cristina Cortez Wissenbach:

"Preparado o processo, o nome do réu colocado no rol dos culpados e autorizada sua seqüência pelo juiz de direito, abriam-se os preparativos para o julgamento: a promotoria elaborava o libelo-crime acusatório, formado pelos diversos quesitos que orientariam o julgamento e as penas; os jurados – cidadãos ativos das listas eleitorais do Imério – eram convocados em edital público, para depois serem sorteados em número de doze; determinavam-se as sessões do Tribunal do Júri nas quais seria julgado o crime. (...) Ao interrogatório do réu, dirigido pelo juiz e interpelado ora pela promotoria ora pelos advogados, seguiam-se os autos de acusação e as declarações da defesa que, por sinal, não constam dos registros. Ouvidas as partes, os jurados se retiravam para reunião em sala secreta, de onde trariam, sem fundamentar, suas decisões a respeito de cada um dos quesitos. Fazendo público o escrutínio dos jurados, cabia ao juiz enunciar a sentença final e a condenação do réu às penalidades previstas" (WISSENBACH, 1998, p. 41/42).

67

Assim, se houvesse casos de excessos e crueldade nos castigos aplicados a

ingênuos, a sociedade branca, e não quem sentia (literalmente) na carne, determinava a

abrangência de seu conteúdo. E se, por vezes, esse excesso era reconhecido pela sociedade,

era considerado exceção, fruto do sadismo particular de determinado senhor. Se havia algo

análogo à escravidão na relação entre o ingênuo e o senhor de sua mãe, havia também um

pretenso humanitarismo ao tratar com aquele, expresso por meio da possibilidade pouco

eficaz de o menor recorrer à Justiça caso submetido a atos de crueldade.

Frente aos horrores decorrentes de um sistema social abusivo, a sociedade se

cegava com as cores pastéis e acetinadas dos ideais humanitários.

Conta-se, por exemplo, que uma criança 'um ingênuo menor de 15 anos', maltrapilho, imundo, excessivamente emagrecido, com o corpo chagado de queimaduras, escoriações e cicatrizes... invadiu a casa do juiz de direito de Feira de Sant'Ana suplicando a êste que não o mandasse devolta a seu senhor. Pois bem: dita autoridade entregou a criança ao chefe de polícia que, por sua vez, a devolveu ao pretenso 'senhor' recomendando que lhe aplicasse uma surra, , a fim de que o fedelho não mais se animasse a apresentar queixas a juízes. Acontece, porém, que o queixoso era um ingênuo, portanto, filho de um ventre livre; e, muito embora aos cuidados do senhor de sua mãe escrava, como mandava a Lei, era, entretanto, pessoa livre. (GOULART, 1971, p. 79).

No entanto, a possibilidade legal de o tutor aplicar castigos moderados ao

ingênuo não demonstra somente a necessidade de perpetuação das estruturas do trabalho

escravo, mas também o medo que a população branca nutria em relação aos negros. Em

decorrência, as primeiras crianças beneficiadas pela Lei do Ventre Livre mal tinham

completado um ano de idade, quando o regulamento de 13 de novembro de 1872 entrou em

vigor, e já estavam condenadas pelo imaginário social. Não tinham condições de exercer

comportamentos nocivos à ordem hierárquica da sociedade, mas a mera ameaça combinada

com o medo inspirado na população branca pelas revoltas negras foram suficientes para

justificar a submissão desses menores à violência promovida pelos senhores de seus pais e

pelo Estado.

Fugiu ao escopo do presente trabalho verificar se havia uma preferência por

parte dos senhores de escravos em não receber a indenização e, em lugar disso, usufruir da

mão de obra dos jovens negros após estes completarem 8 (oito) anos de idade, ou se a prática

do abandono dos filhos de escravas por seus senhores veio a aumentar, por os senhores

julgarem que a indenização do Estado não compensaria os gastos necessários à manutenção

do menor até os oitos anos ou mesmo que o trabalho compulsório até os 21 anos não

cumpriria tal papel indenizatório, situações essas que, por razões expostas nesse trabalho,

68

apresentavam-se como suposta situação de risco para o senhor e sua família. De igual sorte,

não se pretendeu verificar se os senhores efetivamente acreditavam que o mercado de aluguel

de ama de leite era mais rentável do que usufruir do trabalho dos menores e se tal

circunstância levaria a um maior abandono dos ingênuos – inclusive na roda dos expostos -

para que não tornassem o leite de suas mães escasso96.

Ora, a ideia, de base quantitativa e estatística, de que o discurso da

criminalidade sobre o jovem negro, a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre,

intensificou-se porque o abandono de filhos livres de escravas aumentou, de forma que o

menor não conseguiria se inserir no mercado de trabalho e teria que recorrer,

consequentemente, a atividades não regulamentadas e demarcadas como ilícitas para garantir

sua sobrevivência, é uma hipótese que não é capaz de explicar o modo como a falta de opção

e a opção ilícita foram construídas socialmente e, desse modo, registradas.

Tal posição, de naturalização de fenômenos sociais, como a percepção do

crime, da criminalidade e do criminoso, não é adequada para um trabalho que possui por

finalidade justamente analisar e desconstruir discursos e mecanismos sociais que promovem a

segregação e perpetuam o racismo.

O presente trabalho, portanto, não ingressa no mérito se houve ou não aumento

no número de crianças negras abandonadas após a promulgação da Lei do Ventre Livre, se

houve ou não aumento da delinquência nas duas décadas seguintes a essa lei, porque mesmo o

discurso que defende que, na verdade, o comportamento criminoso de alguns poucos jovens

negros era generalizado pela sociedade por decorrência da dinâmica do medo97, está sujeito

aos efeitos da língua e da história, e atribuir a responsabilidade ao negro por sua violência,

mesmo que de forma subsidiária, seria adotar, para o presente trabalho, uma posição na

história que alinhava sentidos provindos de discursos segregacionistas e de inferiorização e

bestificação do negro.

Prefere-se, por limites metodológicos atinentes ao recorte cronológico estudado

96LIMA, Lana L. G. & VENÂNCIO, R. P. O abandono de crianças negras no Rio de Janeiro. In: História da criança no Brasil. Mary del Priore (org). 5 ed. São Paulo: Contexto, 1998.97Em artigo anterior, "A Lei do Ventre Livre o o discurso sobre a criminalidade dos jovens negros", realizado para o programa de iniciação científica da Universidade de Brasília (ProIC), defendemos tal hipótese. Naquela época, apresentar a hipótese de crescimento no número de menores negros abandonados para justificar a necessidade da procura de atividades ilícitas por um maior número, embora restrito, de menores negros, buscando a sua sobrevivência, relacionando o medo crescente que a sociedade possuía em relação à população negra com a generalização desse comportamento violento e criminoso, mas ainda assim particular, apresentou-se como a única hipótese capaz de explicar a intensificação do medo da sociedade em relação a esses menores e, consequentemente, do discurso de criminalidade da juventude negra. Porém, já naquela época, tal construção argumentativa incomodava por mostrar-se falha naquilo que guardava em comum com a imagem do jovem negro adotada por discursos segregacionistas. A superação de tal entendimento, portanto, é fruto do aprofundamento no presente tema.

69

e às leituras que se pode fazer dele com propriedade, trabalhar no plano discursivo – e não

com dados concretos sobre a violência vez que, aqui, o discurso não é só documento capaz de

exemplificar dados históricos, mas o próprio evento histórico em si, a ser analisado, capaz de

gerar, portar, transmitir e instilar sentidos, discursos e práticas que não são percebidos

segundo filtragens e métodos quantitativos que, não raro, arrogam-se o atributo de causais.

Dessa forma, após a promulgação da Lei do Ventre Livre, o discurso sobre a

criminalidade do jovem negro é agravado pelo mecanismo de retroalimentação existente entre

o crescente medo que a sociedade sentia em relação aos negros e a necessidade de

manutenção dos laços senhoriais que garantiam a perpetuação dos privilégios da elite branca,

mecanismo que se propagou por meio do discurso sobre os menores abandonados.

Para Lívia Maria Botin (2007), os processos de tutela de menores, sobretudo

após a promulgação da Lei do Ventre Livre, muitas vezes não eram promovidos em interesse

do menor, visando, na verdade, a obtenção de mão de obra gratuita ou de fonte de renda

alternativa. Assim, segundo a autora, com base nos trabalhos de Fraga Filho98, Maria

Aparecida Papali99 e Gislaine Azevedo100, muitos dos autores das ações tutelares objetivavam

não o conforto e segurança do ingênuo, mas "agregar" alguém na família para, gratuitamente,

realizar as tarefas domésticas e as tarefas da lavoura, ou ceder os trabalhos do menor para um

terceiro em troca de pagamento ou obtenção de vantagem previamente acertada. Mais do que

o interesse individual em continuar explorando em condições abusivas a mão de obra dos

jovens negros, o vínculo de tutela, nesse contexto, informa uma tentativa social de perpetuar

relações próprias ao domínio senhorial, de manter os laços senhoriais101.

A historiografia sobre infância pobre no século XIX tem mostrado que a utilização do vínculo tutelar para a manutenção do trabalho infantil era prática comum nas grandes cidades brasileiras. O recente trabalho de Fraga Filho sobre a população baiana, incluindo as crianças, constatou, a partir da documentação policial, que muitos menores recolhidos pelas autoridades públicas baianas eram encaminhados para os mestres de ofício, dos quais recebiam tratamentos severos e rígidos, sendo

98A obra de Fraga Filho citada por Botin no trecho transcirot é "Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX". FRAGA FILHO, Walter. Mendigos Moleques e vadios na Bahia do século XIX. EDUFBA, Salvador, 1996.99O texto de Maria Aparecida Papali ao qual Botin se refere no trecho transcrito é a tese de doutorado "Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895)". PAPALI, Maria Aparecida C. R.. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895), São Paulo, Annablume: FAPESP, 2003.100Como indica o trecho transcrito, Botin utilizou a tese de mestrado de Gislaine Azevedo "De Sebastiana a Giovanis: o universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917)". 101MENDONÇA, Joseli. No processo da abolição, embates em torno da liberdade. In: Revista Impulso - revista de Ciências sociais vol. 09, n° 18, 1995 p.53-67, apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p. 40/41.

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reduzidos, em muitos casos, à condição de escravos. Como vimos, para o interior de São Paulo, mais precisamente Taubaté, Maria Aparecida Papali, organizou um extenso trabalho sobre os caminhos e as lutas de alguns libertos e ingênuos pela liberdade jurídica, a partir da promulgação da lei de 1871, e no período pós-abolição, momento em que as elites locais, utilizando-se de brechas legais, buscaram manter sob seu domínio os filhos livres de suas ex-escravas. Segundo suas considerações, muitos senhores da cidade só deixaram de negociar escravos em meados de 1887; assim, com o fim da escravidão, essa elite senhorial começou a temer por uma eventual perda da mão-de-obra. A tutela também se apresentou como uma saída, uma tentativa de controlar a camada recém- liberta; crianças e jovens que, da condição de ingênuos, passaram a ser considerados órfãos, sofreram diretamente a coerção dos antigos senhores. Ao serem tutelados, tais menores eram encaminhados para o serviço doméstico ou para a lavoura. Papali verificou que no ano de 1888 foram encontradas 154 ações de tutela, número bastante elevado se comparado com as 330 ações pesquisadas para o período de 1871 a 1895. É importante ressaltar que dessas 154 ações, 148 denominam os órfãos tutelados de exingênuos. Ao que tudo indica, os antigos senhores passaram a utilizar o vínculo tutelar para garantir a mão-de-obra e o controle dessas crianças.Já para a capital da província, outro recente trabalho monográfico intitulado De Sebastiana a Giovanis: o universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917) chegou a conclusões bastante semelhantes às de Fraga Filho e Papali. Ao analisar justamente a história e o funcionamento do juizado de órfãos de São Paulo, Gislaine Azevedo constatou que os mecanismos jurídicos que antes visavam amparar a infância pobre foram utilizados no final do século XIX de forma a garantir o controle das crianças indigentes da cidade. Além disso, concluiu que a intensificação desse mecanismo contribuiu para a manutenção do trabalho infantil na capital da província. A cidade passava por transformações econômicas e sociais nesse período. Assim, muitos indivíduos percebiam o vínculo tutelar como uma forma de utilizar o trabalho desses órfãos. A maioria dos “candidatos” a tutores alegava abandono dos menores ou maus tratos da família. Porém, essas considerações camuflavam outros interesses: “...o de ter crianças trabalhando gratuitamente para eles”. Segundo as conclusões da autora, a prática da tutela se transformou, na virada do século XX na capital da província, em um amplo mecanismo de constituição da criadagem. (BOTIN, 2007, p.71/72).

(..) sujeitos importantes da cidade foram inúmeras vezes ao juizado para estabelecer tutela com eventuais órfãos pobres. Vimos no capítulo anterior, que muitos desses indivíduos obtinham sucesso nas disputas judiciais justamente por ter uma profissão que possibilitava um certo conhecimento pessoal com os funcionários da instância – em especial o Juiz e o Curador Geral da cidade. Porém, intriga nestes casos o fato de que tutores "repetidos" apareceram com o claro objetivo de formalizar um contrato de trabalho para a criança. É como se esses indivíduos tivessem a função de fazer esses trâmites burocráticos. (BOTIN, 2007, p.93).

Ainda, Botin fez estudo de caso de processos tutelares de Campinas, cidade do

interior do Estado de São Paulo, e logrou demonstrar que, por meio de argumentação

construída a partir da relação entre abandono e perdição, os autores de tal ação obtinham êxito

em suas demandas. Ao analisar trecho de um dos processos por ela pesquisado, afirmou:

Vemos ainda pela denúncia proferida por José dos Santos que o abandono dos pais do menor Antonio implicaria sua "perdição", por isso a necessidade de se estabelecer tutela. O interessante deste depoimento está justamente no fato de associar o abandono do infante à sua “perdição”. O argumento utilizado não se vale de um problema presente e concreto, mas de uma conseqüência futura – a perdição – se o

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menor continuar no seu estado atual de abando. Um leitor desavisado não percebe que José dos Santos, utilizando-se dessa lógica – abandono resulta em perdição - elaborou um argumento “convincente” para o Juiz, o que o fez estabelecer vínculo tutelar no mesmo dia. Interessa explorar, sobretudo nesse capítulo os significados que tais discursos como esse adquiriam no final do século XIX, momento de discussões políticas importantes em torno da emancipação dos escravos. (BOTIN, 2007, p. 17).

O aumento do número de ações de tutela a partir da promulgação da Lei do

Ventre Livre, bem como após a promulgação da Lei Áurea (1888), demonstra bem como a

motivação dos autores das ações tutelares era a manutenção do vínculo servil ao qual os

jovens negros sempre estiveram submetidos. Se a aplicação de castigos corporais aos

ingênuos tornou-se aceitável e humanizada por meio do discurso da moderação, e o motivo de

tal engenhoso engodo, como vimos, era a manutenção dos laços de submissão dos jovens

negros aos senhores de escravos, a criatividade estratégica perversa do imaginário social

novamente surpreende no discurso sobre a possível perdição do menor decorrente de seu

abandono, ao estabelecer a exploração do trabalho do ingênuo e a manutenção dos laços de

servidão como mecanismo capaz de impedir que o jovem negro viesse a se tornar, quando

adulto, um criminoso.

Assim, no final do século XIX era comum valer-se do discurso sobre a falta de

valores morais e civis dos negros, decorrentes de seu embrutecimento pelo cativeiro, o que os

impediria de serem capazes de exercer a cidadania, como justificativa para defender a

perpetuação da escravidão ou, pelo menos, explicar a necessidade de promoção de uma

emancipação lenta e gradual, que deveria ser acompanhada de medidas para educar os

escravos. Essa identificação do escravo com a ausência de valores morais, bem como a ideia

de educação como forma de resolver esse problema, foi processo que também ocorreu em

relação aos ingênuos.

Importante ressaltar que para esse discurso havia grande diferença entre os

termos "educar" e "instruir": segundo tal perspectiva, a educação que os jovens negros

deveriam receber para que não viessem a se tornar criminosos não era aquela capaz de

melhorar suas condições de vida, de inserir esses menores em posições de melhor qualificação

no mercado de trabalho, mas aquela que estava "de acordo com a sua condição", ou seja, era,

na verdade, a sujeição e condicionamento do menor a uma disciplina baseada nos valores

morais e na concepção de adequação comportamental segundo as crenças e valores da

sociedade branca.

Por sua vez, a instrução referia-se meramente ao aprendizado do ofício, afinal,

72

a manutenção das estruturas de exploração do trabalho era o que dava força e vida aos

discursos sobre a necessidade de se tutelar menores abandonados, e não os interesses destes, e

ao ensino primário, vez que para desempenhar alguns ofícios o jovem deveria saber ler e

escrever.

Ou seja, a preocupação não era com os jovens abandonados, não havia o

interesse de se criar um ambiente propício à aquisição de direitos e cidadania pelos ingênuos,

mas, antes, garantir a hegemonia da elite no que se refere às relações de trabalho e ao controle

social. Sobre a figura do tutor no final do século XIX, afirma Botin:

Ele não só seria o responsável legal pela criança pobre, como também deveria direcioná-la corretamente para o universo do ofício. Nesse sentido, a legislação orfanológica expressava que os vínculos tutelares também poderiam auxiliar na instrução dos órfãos, visto que era função essencial do tutor garantir ensino ao seu protegido. O trecho é bastante explícito em relação à educação das crianças órfãs pobres; elas deveriam ser instruídas em trabalhos agrícolas e em ofícios. E mais, está preconizado que tal condição era essencial para que ela não se transformasse no futuro, em criminosa. (BOTIN, 2007, p.66).

A ideia de que a condição de abandono do ingênuo gerava a futura perdição e

que esta, a partir do estabelecimento de vínculos de tutela, era evitada por meio da educação,

que se dava pela moralização do menor através do trabalho e da disciplina a tanto necessária,

permitiu, inclusive, a justificação da aplicação de castigos físicos aos menores. Assim, as

punições seriam para o próprio benefício do ingênuo, pois para que ele não se tornasse um

criminoso, deveria adquirir o hábito de trabalhar, devendo, para isso, ser controlado e vigiado.

Nesse contexto, os castigos e maus tratos representavam instrumentos de correção e instrução

necessários à formação de um cidadão de bem e trabalhador.

Segundo Irene Rizzini (2008), o hábito do trabalho era o que indicava a

virtuosidade ou a viciosidade de determinado indivíduo no final do século XIX. Por sua vez a

ociosidade era considerada a mãe dos demais vícios, capaz de degenerar não somente o

indivíduo, mas a sociedade como um todo. A criminalidade, assim, seria produto da

ociosidade, o que justificava a submissão dos menores ao trabalho, vez que evitar que o jovem

se tornasse um criminoso se justificava tanto no sentido de proteger a própria criança quanto

de proteger a sociedade de uma violência iminente. Assim, afirma Rizzini:

(...) a ideologia do trabalho fez com que a condição de trabalhador funcionasse como um atestado de virtude e condição básica de aprovação na sociedade, constituindo instrumento poderoso de regulação econômica e social, sobretudo no século XIX. No caso da criança, a lógica era adaptá-la desde cedo para o trabalho. Portanto, a sua inserção, a mais precoce possível no mundo do trabalho, era vantajosa na época. (...) interessava acostumar a criança ao trabalho árduo como forma eficaz de mantê-la

73

ocupada e conformada na luta exclusiva por sua subsistência (RIZZINI, 2008, p.103).

Acreditava-se que havia uma predisposição no indivíduo ao ócio que, se

permitida, levaria esse indivíduo a ser ocioso de maneira continua e voluntária, conduzindo

ele à "vagabundagem", ato que era identificado como insubordinação, vez que representava a

recusa, de um indivíduo apto, a trabalhar102 e a se submeter à ordem hierárquica da

sociedade103.

As ações de tutela, dessa forma, atuaram como mecanismos de manutenção dos

laços senhoriais. A manutenção de tais laços, por sua vez, era considerada convenientemente

pela sociedade como a forma de evitar a criminalidade do jovem negro, justificando mesmo a

aplicação de castigos e maus tratos aos menores.

Entretanto, tais ações somente poderiam ser promovidas em relação às crianças

e aos jovens abandonados, pois era a situação de abandono que justificava tanto a necessidade

do menor quanto a sua periculosidade futura para a sociedade. Logo, para que houvesse mão

de obra disponível para a sujeição aos laços senhoriais e às estruturas de exploração do

trabalho, era necessário que houvesse jovens na condição de abandono.

O discurso sobre menor abandonado, no final do século XIX, não vai estar

limitado, portanto, ao abandono físico, ao fato de o ingênuo ser órfão ou não possuir um tutor.

Exatamente por isso que, para o presente trabalho, não é relevante saber se houve aumento no

número de ingênuos abandonados pelos senhores de suas mães, de crianças deixadas na roda,

ou de menores vivendo sozinhos na rua, após a promulgação da Lei do Ventre Livre, pois o

discurso que vai relacionar a criminalidade ao abandono, intensificando a segregação racial

em relação aos jovens negros por meio da dinâmica do medo, considera também as dimensões

morais deste.

Assim, abandonado era aquele menor que não tinha quem lhe provesse

sustento ou educação. Como a capacidade de sustento depende das condições financeiras, o

menor que pertencia à família muito pobre podia ser incluído como objeto do discurso sobre o

abandono de menores e sua periculosidade. Como a concepção de educação do final do século

102RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.103A hipótese de que o negro escravizado não teria disciplina suficiente para manter uma autodisciplina para o trabalho na sociedade livre esquece que na sociedade colonial ele era o único elemento disciplinado por diversos regimes de disciplina (senhorial, militar e religiosa) enquanto o restante da sociedade, especialmente a parte branca, era disciplinada para o ócio. Porém, a historiografia oficial tomou como verdadeira a inversão ideológica operada pelos fazendeiros de escravos, políticos e intelectuais, do século XIX que, não dispostos ao trabalho, estavam desejosos de manter a disciplina e o lugar ocupado pelos negros após a abolição.

74

XIX estava ligada à ideia de moralização das crianças e jovens, e como essa moralização era

concebida a partir dos valores e crenças da população branca, qualquer criança que realizasse

conduta condenada por aqueles valores e crenças, ou que tivesse familiares com

comportamentos socialmente reprováveis, também era incluído como objeto desse discurso.

Assim, afirma Botin:

Denunciar nas ações o abandono “moral” das crianças significava dizer, em muitos casos, que a família desconhecia seu paradeiro, suas companhias, ou ainda que o menor trabalhava em atividades informais como jornaleiro, quitandeiro, etc. Enfim, quando o argumento usado recaía sobre a incapacidade de gerir a vida da criança, a intenção do candidato era justificar a retirada do pátrio poder não da maneira legal, mas sim baseadas em idéias subjetivas e moralizantes. Não era interessante fazer referências às Ordenações Filipinas, pois a mãe solteira era passível de ser tutora de seu filho. Os discursos usados para garantir a tutela estavam, em meados dos anos 1890, inseridos as novas condutas e posturas políticas de controle da família e reorganização das relações de trabalho.Assim como as crianças eram alvos de políticas moralizadoras e repressoras, as mulheres passaram a ser tema de teses jurídicas e dissertações médicas. Pretendia-se difundir, através desses compêndios, o ideal da mulher honesta e higiênica, condições essenciais, segundo os textos, para a formação da boa mãe e esposa. Ao analisar as ações pesquisadas, percebemos que os padrões de honestidade e moralidade defendidos no cotidiano dos tribunais estavam associados à conduta das mães. Nesse sentido, qualquer ação das mães considerada inadequada poderia justificar a abertura de uma ação tutelar. A vigilância sobre os hábitos e costumes das mulheres pobres – entre elas as mães solteiras ou amasiadas – e a imoralidade atribuída ao seu cotidiano se intensificaram no final do século XIX. Cada vez mais, comportamentos como os de "sair sozinha pelas ruas" ou "com algum estranho" passaram a ser associados à idéia de degeneração moral. E, no caso do juizado de órfãos, tais comportamentos também foram utilizados para retirar a responsabilidade legal da mãe solteira sobre seu filho.(BOTIN, 2007, p.83).

Para Rizzini (2008), existia uma espécie de consenso discursivo sobre o que

seria moral e o que seria imoral para a sociedade brasileira do final do século XIX. Assim, "A

certeza com que nossos autores classificavam o que era ou deixava de ser moral , nos leva a

imaginar uma espécie de escala fictícia de valores , a partir da qual era possível 'medir' o grau

de moralidade dos indivíduos" (RIZZINI, 2007, p.53). Como a pobreza era identificada com o

vício, por conta de sua enorme desigualdade econômica e social, considerava-se que a

sociedade brasileira possuía um alto grau de imoralidade, conclusão que era agravada pela

ideia de que tanto os vícios quanto as virtudes eram, em parte, herdados dos ascendentes, de

forma que as crianças nascidas de boas famílias teriam uma propensão a serem virtuosas,

merecendo, portanto, privilégios, e as crianças das camadas mais pobres trariam consigo

degenerescências e, por isso, necessitadas de corretivos.

Assim, pertencer a uma família em estado de miserabilidade, trabalhar de

maneira informal na rua, brincar fora de casa em espaço público, frequentar ambientes que

75

eram considerados viciosos, como tabernas ou até mesmo terreiros, ser filho de mãe solteira,

andar na companhia de homens caso se fosse menina, jogar capoeira, eram todos fatos

capazes de justificar a propositura da ação tutelar.

A concepção moral do abandono, dessa forma, era muito conveniente à

manutenção da ordem hierárquica da sociedade, vez que ampliou a possibilidade de

incidência das ações tutelares, facilitando a obtenção de menores, os quais poderiam ser

sujeitados aos laços senhoriais e às estruturas de trabalho escravo, como mão de obra.

No entanto, à medida que a concepção de abandono assumia dimensões cada

vez mais amplas, o discurso que relacionava o abandono com a perdição do menor,

justamente devido ao fato de a sociedade ver abandono em quase toda conduta que não estava

de acordo com seus padrões comportamentais e seus valores morais, também assumia

proporções mais alarmantes.

Em razão disso, se o medo da inversão da ordem social e do desaparecimento

dos privilégios da elite branca levavam a sociedade a não conceder a liberdade aos ingênuos

de forma plena, a solução encontrada para continuar submetendo os filhos de escravas ao

trabalho compulsório retroalimentava o sentimento de medo que o branco tinha em relação ao

negro, consolidando a imagem do jovem negro como potencialmente perigoso no imaginário

social e, de maneira cíclica, intensificando o discurso sobre a periculosidade dos menores

negros abandonados.

Para Rizzini (2009), o Brasil, no final do século XIX, passava por intensas

transformações políticas, econômicas e sociais, as quais naturalmente se refletiam no papel da

criança na sociedade e ocasionavam o que a autora chamou de "descoberta" da concepção de

criança como problema/solução para o país. Tal fato sinalizava para a necessidade de criação

de legislação diferenciada para o menor, especialmente voltada para a criança e adolescente, o

que ocorreu de maneira gradual e por meio de maior atribuição de intervenção do Estado nas

questões que envolviam os menores.

A história do menor no final do século XIX, nesse sentido, é também a história

sobre gerações e atribuição de responsabilidades, pois a classificação de infância estava

submetida à origem familiar e à "herança" social de cada menor, "Assim, os bem nascidos

podiam ser crianças e viver sua infância; os demais estavam sujeitos ao aparato jurídico-

assistencial destinado a educá-los ou corrigi-los, (...)" (RIZZINI, 2009, p.98).

Após a independência do Brasil, o primeiro dispositivo penal do Império que

demonstrava evidente interesse jurídico pela criança e adolescente, a conferir tratamento

76

jurídico diferenciado ao menor, apareceu no Código Criminal de 1830. Desde a origem do

direito, a menoridade era considerada uma atenuante para a atribuição da pena; porém, antes

de 1830, a punição aplicada a crianças e adolescentes não possuía diferenciação significativa

em relação à punição aplicada aos adultos.

O Código Criminal do Império de 1830, dessa forma, determinava, em seu

artigo 10, parágrafo primeiro, que os menores de quatorze anos não seriam julgados

criminosos, ou seja, a responsabilidade penal foi fixada a partir dos quatorze anos de idade.

Porém, é importante ressaltar o que determinava o artigo 13 do mesmo Código, a respeito do

discernimento do menor, verbis:

Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos.

O Código Criminal de 1830 apresentava três faixas etárias diferentes de

menoridade. Antes de completar 14 anos de idade, ninguém possuía, excluindo-se os casos de

discernimento, responsabilidade penal. A partir dos 14 anos de idade até 17 anos, os jovens

poderiam responder penalmente por cumplicidade. Por fim, os jovens que possuíssem 17 a 21

anos de idade eram julgados normalmente, sem fatores que lhes retirassem a punibilidade ou

lhes atenuassem as penas. Assim, civilmente, o indivíduo não era responsável até completar

21 anos, devendo ser tutelado por um responsável; penalmente, no entanto, ele adquiria

responsabilidade bem antes de seu 21º aniversário104.

Embora o artigo 13 do Código Criminal de 1830, acima transcrito, trouxesse a

previsão legal de casas de correção, estas nunca existiram e, segundo Rizzini (2009), as

primeiras tentativas de elaboração de regulamento para essas instituições somente surgiram

vinte anos após a promulgação do Código Criminal. Tais instituições deveriam ser

estabelecimentos com alas diferenciadas, visando, assim, a separação entre os presos comuns

e os menores deliquentes, mendigos e vadios, vez que a punição aplicada a estes últimos

deveria cumular prisão com trabalho, por possuir evidente intenção correcional. No entanto,

tal separação de direcionamento e regime entre menores e presos adultos nunca ocorreu na

vigência do Código Criminal de 1830105.

104BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007. 105VIEIRA, Octaviano. Menores perante o código penal (apontamentos práticos). S. Carlos do Pinhal: São Paulo, 1900, apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-

77

No início do Império também havia leis destinadas a solucionar a questão da

criança abandonada e desvalida. Com claros fundamentos na ideologia cristã de amparar o

necessitado, essas leis expressavam a preocupação em recolher as crianças órfãs e expostas e

conduzi-las a estabelecimentos destinados à sua criação, nos quais eram praticadas medidas

assistencialistas de iniciativa privada e teor religioso e caritativo106. Assim, afirma Rizzini:

Aqui percebe-se o penetrar da administração das instituições asilares religiosas na legislação, através das alianças que se estabeleciam entre a igreja com suas obras de caridade e o governo. A responsabilidade de zelar pelos expostos era nitidamente da igreja, que, para tanto, contava com subsídios provenientes dos cofres públicos. A legislação reflete, portanto, a nítida associação existente entre as ações do governo e da igreja na esfera política e mesmo no âmbito mais estritamente jurídico. (RIZZINI, 2009, p.101).

O tratamento jurídico que deveria ser atribuído ao menor filho de escrava já era

questão importante em 1852, quando os Ministérios dos Negócios da Justiça do Rio de

Janeiro, no Aviso nº 190, declarou ao Presidente da Província de São Paulo que o Código

Criminal também deveria ser aplicado aos escravos menores de idade107. No entanto, não se

deve subestimar os efeitos da promulgação da Lei do Ventre Livre no que diz respeito ao

tratamento jurídico dos menores, pois, a partir dessa lei, as crianças que antes estavam

restritas ao domínio dos senhores de escravos, passavam a ser também responsabilidade do

Governo.

Essa passagem da criança do âmbito de responsabilidade particular do senhor

de escravos para o âmbito de responsabilidade pública pode ter ocasionado, inclusive, a

precipitação de um maior rigor das leis penais, vez que, antes da promulgação de tal lei, as

funções sociais eram legalmente delimitadas108. Assim, se no início do período imperial a

deliquência infantil não representou ameaça capaz de ultrapassar o controle das autoridades

policial e judiciária, no final do século XIX, a legislação passou a considerar a criança um

"magno problema"109, oscilando, dessa forma, entre a defesa dos interesses do menor e a

1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p.152.106Exemplos desse fato são o Decreto nº 407, de 23 de setembro de 1846, o Decreto nº 994, de 22 de setembro de 1858 e o Decreto nº 3.283, de 28 de setembro de 1863 (RIZZINI, 2009, p.101).107Para Rizzini, o assunto foi objeto de aviso porque a menor Ambrosina, que tinha treze para quatorze anos, assassinou a mulher do capataz de seu senhor. Na época, convencionou-se que, como o artigo 10 do Código Criminal foi concebido em termos gerais e fundado nos princípios da humanidade, também deveria ser aplicado aos escravos (RIZZINI, 2009, p.103).108RIZZINI, Irene. Crianças e menores – do Pátrio Poder ao Pátrio Dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Orgs.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 2ª ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009, p.104.109Ibid, p.108.

78

defesa da sociedade em relação à ameaça que a criança abandonada representava à ordem

pública110.

No final do século XIX, um novo Código Penal foi elaborado para substituir o

código de 1830. No entanto, o tratamento jurídico dos menores não sofreu grandes inovações.

O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, dessa forma, não considerou, em seu

artigo 27, parágrafos primeiro e segundo, criminosa a criança que não tivesse nove anos

completos, bem como aquelas que, possuindo nove anos de idade, ou mais, e menos que

quatorze anos, não tivessem discernimento de seus atos. Tanto para o Código Criminal de

1830, em seu artigo 18, item 10, quanto para Código Penal de 1890, em seu artigo 42,

parágrafo 11, ter menos de 21 anos de idade era apenas circunstância atenuante do crime.

Porém, diferentemente do Código Criminal de 1830, o qual determinava o

recolhimento dos menores de quatorze anos que agissem com discernimento em casas de

correção, a nova codificação de 1890, em seu artigo 30, estabelecia que "Os maiores de 9

annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a

estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto que o

recolhimento não exceda á idade de 17 annos". O fato da recuperação dos menores não

ocorrer mais pelo encerramento destes em instituições de correção, mas pela submissão deles

à disciplina de instituições industriais, revela a ideia do trabalho como principal meio de

regenerar os indivíduos que não se adequavam aos valores da sociedade da época111.

Nas duas codificações, a questão do discernimento do menor ao cometer o ato

criminoso era de grande importância para a verificação da existência ou não de

responsabilidade penal. O "discernimento" baseava-se em descrições subjetivas, não havia

parâmetros objetivos para definir a gravidade de um crime cometido por um menor de idade,

recorria-se, então, à flexibilização de usos e conceitos para legalmente explicar a existência ou

ausência do discernimento na ação do menor, o que tornou a própria infância objeto do debate

jurídico112.

Dessa forma, se a partir de 1830 existiam dispositivos jurídicos específicos

para a menoridade, os limites da imputabilidade dos menores estavam sujeitos aos diferentes

critérios e definições dos juristas sobre o termo "discernimento"113.

Para Tobias Barreto114, o discernimento seria a capacidade individual de 110Ibid, p.109.111SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 6ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008.112BOTIN, Lívia Maria, op. cit., p.135.113Ibid, p.137.114BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em direito criminal. (Publicação original 1884.) Prefácio de Luiz

79

distinção entre o "certo" e o "errado", entre o que seria delito e o que seria conduta não

considerada má. A presença ou ausência dessa capacidade poderia ser verificada tanto pelo

critério da consciência de si mesmo e do mundo externo, como pela consciência do dever e do

direito. Assim, para Barreto, os loucos não preenchiam o primeiro critério e os menores

deveriam ser julgados de acordo com o segundo, ou seja, sua responsabilidade penal

associava-se à sua capacidade de percepção e aceitação das regras formais do convívio social.

As faixas etárias representariam, portanto, um modo de distinguir o domínio

que menores de diferentes idades teriam sobre o conhecimento dos direitos e deveres sociais,

permitindo a aferição do grau e da medida em que o próprio menor se consideraria

criminoso115. Importante ressaltar, no entanto, que para Barreto, a influência que o grau de

desenvolvimento social e intelectual do indivíduo exercia sobre seu conhecimento dos direitos

e deveres era maior do que a influência exercida por sua idade física, fato não considerado na

redação do Código Criminal de 1830, o que para o autor representava uma grande falha na

legislação. Nesse sentido, afirma Botin:

O autor levanta a suspeita de que possuir a idade de 14 anos – considerada pela jurisprudência brasileira de responsabilidade penal – não torna um indivíduo passível de ser julgado como criminoso comum. Vimos, em um primeiro momento, que ele associava o discernimento segundo as influências “mesológica, climatérias e sociais” específicas de cada região. Tais influências produziam, em última instância o grau/noção de responsabilidade “psichica” e “social”. Assim, mais do que saber a idade do indivíduo era necessário avaliar seu ambiente social. Para Tobias, portanto, em um Estado com muitas províncias, com diferentes graus de desenvolvimento e de cultura, deveria prevalecer como base para imputabilidade a idade mais alta possível, aquela que pudesse convir com todas as províncias para não existir perigo de se taxar de criminoso um indivíduo que não atingiu o discernimento necessário para avaliar sua ação, (...). (BOTIN, 2007, p.141).

Para Octaviano Vieira116, o limite da responsabilização criminal também não

podia ser relacionado a uma idade exata. Porém, influenciado pela Escola de Milão e pelas

ideias de Cesare Lombroso, considerava que os humanos possuíam tendência ao crime. Essa

tendência se manifestaria ainda quando os indivíduos fossem crianças pequenas, sofreria um

pequeno aumento até a idade de 15 ou 16 anos; de 16 a 21 anos esse aumento seria mais

Carlos Fontes Alencar. Obra fac-similiar. Brasília: Senado Federal, conselho editorial, 2003. (Coleção História do Direito brasileiro), apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p.139.115Ibid, p.139.116VIEIRA, Octaviano. Menores perante o código penal (apontamentos práticos). S. Carlos do Pinhal: São Paulo, 1900, apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p.146.

80

brusco e, depois dessa fase, o aumento da tendência decairia, continuando, porém, em

ascensão. O ápice da criminalidade seria os 25 anos de idade e, depois dos 30 anos, a

criminalidade começaria a decrescer. Essa distribuição da tendência da criminalidade por

faixas etárias, para Botin (2007), explicaria por que havia forte intervenção das autoridades no

cotidiano dos menores pobres, vez que aquelas acreditavam que estes se encontravam na fase

em que os indivíduos estavam mais propensos à vadiagem e ao crime.

Segundo Vieira117, o nível de discernimento do menor estava associado a

determinados valores morais, conforme corrobora Botin:

Para Vieira, os limites da responsabilidade sobre as ações eram proporcionalmente variáveis aos graus de moralidade e ao meio onde o criminoso cometeu o delito. Isto é, era o estado da moralidade ou a sua ausência que determinava os instintos dos indivíduos acusados por um crime. Vemos também que o jurista faz questão de ponderar inúmeras variáveis que influenciavam a idéia geral de discernimento, no entanto, ele as classifica segundo critérios abstratos. Assim, ao contrário dos discursos que determinavam que a capacidade de discernimento de um indivíduo poderia ser medida a partir de algo concreto (uma ação, por exemplo) agora, os discursos em torno da responsabilidade estavam baseados na moral, no caráter, na hereditariedade, no local em que se cometeu o crime, valores, portanto, não codificáveis – o que tornava o julgamento sobre o grau do discernimento individual ainda mais subjetivo. (BOTIN, 2007, 149).

Cândido Motta118 também acreditava que o grau de discernimento do menor

não poderia ser aferido somente por sua idade. Para esse fim, deveriam ser considerados a

trajetória de vida do menor, os hábitos de sua família, sua herança hereditária e sua situação

socioeconômica, enfim, aferir seu grau de "degenerescência". Para esse jurista, a idade e o

discernimento não poderiam, isoladamente considerados, definir o caráter e as tendências do

menor, pois seriam apenas elementos gerais da personalidade deste.

Por tal via, quais fossem os critérios para verificar a existência ou não de

discernimento na conduta do menor, sua trajetória pessoal sempre acabava influenciando a

decisão do juiz, pois o conteúdo do termo "discernimento" era preenchido subjetivamente pela

ponderação, a partir da perspectiva da elite da sociedade, de valores morais e condutas sociais.

As tensões entre o debate público sobre o fim da escravidão e a estratégia de

abolição lenta e gradual, o debate parlamentar sobre a libertação dos ingênuos e o regime da

tutela pelos senhores, bem como o debate jurídico sobre a responsabilidade penal dos menores

117Ibid, p.148.118Motta, Candido N. Nogueira. Os menores delinqüentes e seu tratamento no estado de São Paulo. São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, 1909, apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p.154.

81

e a submissão a uma justiça estatal, convergem para a pergunta de como tais tensões

apareciam nos conflitos cotidianos vivenciados entre senhores e essas crianças e adolescentes

que foram supostamente “libertados”.

Dessa forma, visando uma melhor apreciação do que foi exposto no presente

trabalho, em geral, e neste capítulo, em específico, realizou-se pesquisa de processos, do final

do século XIX, em que menores figuraram como partes. Apesar de várias obras da revisão

bibliográfica apresentarem análises processuais, tais fontes utilizaram documentos de

arquivos cujos acervos, pelo menos na área de interesse do presente trabalho, ainda se

encontram apenas em suportes físicos, lotados no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) e

no Centro de Memória da Universidade de Campinas (CMU-Unicamp). Sem acesso direto aos

processos utilizados e citados nessas obras, fez-se necessário realizar pesquisa em outros

bancos de dados por elas não apresentados. Assim, o único arquivo encontrado que

disponibiliza os próprios autos dos processos do final do século XIX em suporte eletrônico –

e, mesmo assim, apenas de forma parcial, dado que grande parte de seus documentos ainda é

exclusivamente física, é o Acervo Judiciário da Comarca do Rio das Mortes.

Instituída em 1714, a Comarca do Rio das Mortes, que possuía sede na Vila de

São João del Rei e também compreendia Jacuí, Baependi, Campanha da Princesa, Barbacena,

Queluz, Nossa Senhora de Oliveira, São José do Rio das Mortes e Tamanduá, foi uma das

três primeiras comarcas a se formar na capitania das Minas Gerais. Resultado da realização de

convênios entre a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), a prefeitura de

Conselheiro Lafaiete e os fóruns tanto desse município quanto de Oliveira e Itapecerica, o

Projeto Forum Documenta é responsável por identificar, organizar, microfilmar e

disponibilizar, por meio de imagens digitalizadas, os acervos documentais de tal região. Além

da cooperação técnica do Arquivo Público Mineiro, Arquivo Nacional e Casa de Rui Barbosa,

o projeto recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais

(FAPEMIG) e do Conselho Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (CFDD), órgão

colegiado do Ministério da Justiça119.

O Projeto Forum Documenta desenvolve seu trabalho de identificar, conservar

e divulgar acervos judiciários, formados por documentação cartorial do século XVIII e XIX,

espalhados pela região que antes compreendia a Comarca do Rio das Mortes, no Laboratório

de Conservação e Pesquisa Documental (LABDOC), pertencente ao Departamento de

Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei. Até o fechamento do presente

119 Informações disponíveis em: <http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/brtchannel/index.php?pagenum=2>. Acessado em: 27 de novembro de 2013.

82

trabalho, estavam disponíveis para consulta os registros criminais de 1793 a 1900 dos acervos

dos fóruns de São João del-Rei e de Oliveira, os acervos dos fóruns de Conselheiro Lafaiete e

Itapecerica ainda se encontravam em processo de digitalização120.

Dois foram os critérios de seleção dos processos.

Primeiramente, estes deveriam estar compreendidos no lapso temporal que vai

de 1870 a 1900, período de maior importância para este trabalho, porquanto marcado tanto

pela nova situação social criada pela Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) – ou seja,

a do filho livre da mãe escrava – quanto pelo acirramento das tensões sociais envolvendo a

questão da escravidão, que resultou na promulgação da Lei Áurea (13 de maio de 1888).

O segundo critério aplicado à escolha dos processos foi apresentar pessoa

menor de idade como réu ou ofendido da demanda penal, vez que o foco da pesquisa é o

discurso sobre a criminalidade do jovem negro.

Pensou-se, ainda, em aplicar o critério da cor do indivíduo, tarefa que, no

entanto, não foi possível, vez que, a maioria dos processos não apresenta tal informação,

embora apresente, implicitamente, a condição social das partes.

Para Hebe Maria Mattos121, a partir dos últimos anos da vigência da escravidão

no Brasil, há um progressivo desaparecimento da referência à cor de pele das partes

processuais nos registros judiciais, qualificação essa que era comum até a segunda metade do

século XIX. A partir de pesquisa de processos cíveis e criminais, Mattos percebeu um

processo de “branqueamento” conjunto ao processo de se perceber livre. Dessa forma, se o

indivíduo de alguma forma alcançava a liberdade, era considerado branco em âmbito judicial,

ou então não se fazia referência à sua cor, como se a condição de ser livre determinasse a sua

cor. Nesse sentido, fundamenta Botin, escorado na obra de Mattos:

Para a autora, a cor passou a ser associada nos anos finais do Império às qualificações sociais impostas aos indivíduos que viviam no sistema escravista – uma espécie de marca da sua descendência, de forma que ela mesma significava o lugar social no qual o indivíduo deveria se apresentar. Desta perspectiva, antes de significar apenas uma ideologia de branqueamento, a cor ou a sua ausência passou a representar um passaporte para o mundo da liberdade na sociedade Imperial, garantindo, em última instância a cidadania. Muitos casos analisados que registravam a ausência da cor, não estavam condicionados a uma política imposta de cima para baixo. Mas simplesmente a uma opção individual dos envolvidos – desde o escrevente, que deixou de citar a cor dos depoentes de um processo, até os próprios envolvidos que abandonaram sua cor no momento da pronúncia. Para a

120 Ibid. 121Mattos, Hebe Maria. Das cores do silencio: os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1998. Capítulo 01. pp 30-59, apud BOTIN, Lívia Maria. Trajetórias cruzadas: meninos (as), moleques e juízes em Campinas (1866-1899). Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas: Campinas, 2007, p.55/57.

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autora, então, o sumiço dessa expressão poderia significar uma nova construção do ideal das simbologias que envolviam a liberdade – ou seja, uma das formas de se negar uma herança escravista, e conseqüentemente a cidadania no Império estava justamente na anulação de expressões que remetessem à cor. (BOTIN, 2007, 57).

Tendo isso em consideração, o presente trabalho não se preocupou com a

ausência de informação sobre a cor dos menores que figuraram nos processos pesquisados,

vez que a omissão de tal dado poderia ocorrer por vontade do próprio menor, intencionando,

mesmo que de forma inconsciente, negar e se desvincular de uma herança escravista, pois as

garantias legais só se aplicavam ao cidadão e este só existia em liberdade122.Antes,

considerou-se a situação de submissão e, ainda assim, de exclusão social, a que estavam

submetidos os menores encontrados em tais processos (qualificados somente como

"brasileiros") o material de interesse fundamental para este trabalho, dado que, conforme todo

o exposto, o processo de formação de tal exclusão, no Brasil, passou necessariamente pela

questão do "ser negro". Porém, descartaram-se os processos em que era evidenciada a

ascendência europeia do menor.

Assim, foram encontrados 44 processos123 que preenchiam os dois critérios de

seleção. Destes, 16 (dezesseis) processos tratavam de casos de espancamento, lesão corporal,

ferimentos; 17 (dezessete) processos cuidavam de casos de estupro, defloramento, agressão

sexual; 3 (três) processos, de casos de homicídio; 3(três) processos, de caso de furto, roubo e

5 (cinco) processos foram reunidos em um único grupo por possuírem a mais diversificada

tipificação.

Nos processos que cuidam de lesão, ferimento, espancamento, pessoas

menores de idade aparecem exclusivamente como réus em 3 (três) processos; exclusivamente

como vítimas em 12 (doze) processos e em apenas um, tanto a vítima quanto o réu são

menores de idade.

Importante ressaltar, pelo que se depreendeu da leitura das fichas descritivas

dos processos, que a maioria dos casos trata de lesão causada por adulto a menor que a ele

estava subordinado, sendo assim, repetem-se os casos de violência contra garotas que eram

empregadas domésticas do agressor ou que estavam sob sua responsabilidade.

Não há casos em que o menor atuou exclusivamente como réu nos processos

de estupro e defloramento aqui reunidos. Por outro lado, em 14 (quatorze) ele foi vítima. Em

3 (três) processos há simultaneamente menores como réu e ofendido. Como nos crimes de

122BOTIN, Lívia Maria, op. cit., p.58.123 Disponíveis em: <http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/brtbusca/index.php?

query=menor&mid=12&action=showall&andor=AND&start=0>. Acessado em: 1º de novembro de 2013.

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lesão e espancamento, aqui a questão das meninas empregadas domésticas também se repete

nos processos. Sobre as garotas defloradas, há uma constante linha discursiva que visa

submeter o direito à tutela penal aos valores morais da sociedade, bem como apresenta o

casamento como mecanismo de reparação do dano causado a menor, o que evidencia que a

intenção das autoridades era antes manter a ordem social, por meio da configuração da

instituição da família segundo os padrões da elite branca, do que suprir os interesses e garantir

a segurança da menor.

Não há caso de homicídio em que o menor figure unicamente como réu. Dos 3

(três) processos apresentados, há um em que a vítima é o menor e há 2 (dois) em que tanto a

vítima quanto o réu são menores. Já nos processos de furto e roubo, todos eles apresentam o

menor exclusivamente como réu. Nos demais processos que não puderam ser reunidos em

torno de um padrão de tipificação penal, o menor aparece 4 (quatro) vezes unicamente como

vítima e somente uma vez ele ocupa os polos de vítima e réu.

Dentro desse universo de possibilidades, e levando-se em consideração não

somente a ficha descritiva dos processos, a disponibilidade de versão digitalizada e a

verificação do estado de conservação das fontes, realizou-se nova triagem e foram escolhidos

três processos para serem analisados e compreendidos à luz dos efeitos da dinâmica do medo

sobre o discurso da criminalidade do jovem negro no final do século XIX.

Processo de espancamento de menor124

Em 1º de fevereiro de 1897125, Antônio Manoel teria espancado sua empregada

doméstica, a menor Maria Gregória, de 12 anos de idade. Consta da denúncia, oferecida em

25 de fevereiro de 1897, que:

Tendo me chegado o presente auto de corpo de delicto, com elle, venho offerecer a VSª denuncia contra Antonio Manoel, residente no districto do Cláudio pelo crime seguinte:Antonio Manoel, o denunciado, em dias do mez de Janeiro, espancou a menor Maria Gregória de 12 annos de idade, produzindo-lhe os ferimentos leves contundentes do auto de corpo de delicto. Por ser este facto crime e de alçada do tribunal criminal offerece-se contra o denunciado a presente denuncia que o torna incurso no artigo 303 do Cod Penal.126

124Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes, Processo OLC-00324. Disponível em: <http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48513>. Acessado em: 3 de novembro de 2013. 125A data do crime apresentada na ficha de descrição deste processo está equivocada.126Ibid, p.3

85

Com efeito, a determinação da realização do exame de corpo de delito ocorreu

ainda no mesmo dia do acontecimento do crime, por meio de portaria do Juiz de Paz do

Distrito do Cláudio, abaixo transcrita.

Tendo se aprezentado á este juizo Pedro de Tal, empregado de Antonio Manoel, trazendo ao meu conhecimento que o dito Antonio Manoel espancara hoje uma sua empregada de nome Maria Gregoria, de doze (12) annos de idade, proceda-se ao corpo de delicto para o que, na falta de médicos, nomeio peritos o pharmaceutico João Paulo de [ilegível] Pereira e Bernardino [ilegível] que serão notificados para comparecerem hoje, á uma hora da tarde, na caza da rezidencia actual do referido Antonio Manoel, sob as penas da lei127.

Consta do auto do exame de corpo de delito que a menor apresentava três

lesões, duas do lado esquerdo da face e uma na mão esquerda. Embora tal informação não

conste no auto, até porque não faz parte dos quesitos a serem respondidos pelo perito, a lesão

da mão esquerda pode ser resultado da tentativa, voluntária ou não, da menor de proteger a

própria face.

Ao primeiro de Fevereiro de mil oitocentos e noventa e sete (anno do Nascimento de Nosso Sinhor Jesuz Christo) á uma hora da tarde, neste Freguesia do Cláudio Comarca da Oliveira na caza de propriedade de João das Chagas Ferreira, onde actualmente rezide Antonio Manoel de Sá, ahi prezentes o Juiz de Paz Cidadão Antonio José de Freitas, commigo [ilegível] do seu cargo abaixo assignado, os peritos notificados Bernardino [ilegível] e pharmaceutico João Paulo de [ilegível] Pereira e as testemunhas Pedro Ferreira Barboza e Francisco Martins e [ilegível], todos moradores néste logar, o Juiz [ilegível] aos peritos o juramento aos Santos Evangelhos de bem e fielmente desempenharem a sua missão declarando com verdade o que descobrirem e encontrarem e o que em sua consciencia entenderem e encarregou-lhes que procedessem ao exame na pessoa de Maria Gregoria, empregada do dito Antonio Manoel e que respondessem aos seguintes quesitos:1º Si ha lezão corporal; 2º si é mortal; 3º, qual o instrumento que a-occazionou; 4º, si della rezultou ou póde rezultar mutilação ou amputação de membro ou orgão; 5º, si pode haver ou rezultar deformidade, qual ella seja; 6º, si produz infermidade incuravel que prive a offendida para sempre de poder exercer o seu trabalho; 7º, si produz grave incommodo de saude, que inhabilite a paciente do serviço activo por mais de trinta dias; 8º, qual o valor do danno cauzado. Em consequencia passaram os peritos a fazer os exames e investigações ordenadas e as que julgaram necessarias, concluidas as quais declararam o seguinteEncontraram na paciente Maria Gregoria, de idade de doze annos, trez (3) ferimentos, sendo douz sobre a face esquerda e um sobre a mão tambem esquerda, e, portanto respondem aos quesitos pelo modo seguinte: Ao 1º, que ha lezão corporal; ao 2º, que não é mortal; ao 3º, que foi occazionada por instrumento contundente; ao 4º, 5º, 6º e 7º, negativamente; ao 8º, que avaliam o danno cauzado em cincoenta mil reiz [ilegível] E são estas as declarações que em sua consciencia e sob o juramento prestado têm a fazer. E por nada mais haver deu-se por findo o exame ordenado e de tudo se lavrou o prezente auto que vae por mim escripto, rubricado pelo Juiz e assignado pelo mesmo peritos e testemunhas commigo. (fls. 9/11 -> auto de corpo de delito)128

127 Ibid, p.7128 Ibid, p.9/11

86

A única informação sobre o modo pelo qual as lesões foram produzidas é a do

auto de corpo de delito, que afirma que o instrumento que produziu os ferimentos em Maria

Gregória era de natureza contundente. A testemunha Pedro Ferreira Barboza diz ter escutado

gritos da menor e a "toada" das pancadas129, os gritos também foram escutados pela

testemunha Rita Conceição130. Ambas as testemunhas afirmaram que haviam conversado com

a menor após o evento e que esta indicou Antonio Manoel como autor da agressão, contexto

em que, seria verossímil e plausível que ela também tivesse informado como as lesões foram

produzidas. No entanto, parece não haver, em nenhum momento do processo, preocupação

das autoridades em averiguar qual teria sido o instrumento utilizado, questão que possui

grande influência na aferição da crueldade da agressão sofrida por Maria Gregória.

Assim, os ferimentos podem ter sido causados, por exemplo, tanto por tapas

desferidos de mão aberta quanto por pancadadas de palmatórias, não existindo muitas

informações sobre a gravidade dos ferimentos, que foram julgados de seriedade leve a partir

do auto de corpo de delito e dos depoimento das testemunhas, as quais informaram a

impossibilidade de as lesões causarem deformidades ou incapacidade para o trabalho por

mais de 30 dias – fato que, não necessariamente, exime de excessividade a conduta do réu.

Ainda, o próprio tipo penal apresentado na denúncia, artigo 303 do Código

Penal de 1890, informa que das lesões não resultou sangramento131. Não se deve ignorar,

porém, que a agressão dirigida à face do indivíduo não é somente capaz de produzir lesões

físicas, como também apanhar no rosto é gesto socialmente reconhecido de humilhação e

submissão, gesto marcado na memória e prolongado durante o tempo que as marcas das

pancadas continuaram no rosto da menor.

O dano causado pela agressão foi avaliado em 50 mil réis pelos peritos, valor

pequeno se forem levados em consideração o sofrimento físico e psicológico da menor, bem

como as possíveis consequências de ela ter sido submetida a processo que envolvia seu

empregador como réu (o que facilmente ocasionaria, pelo menos, sua demissão). É

representativo o pequeno valor – ou mesmo o desvalor – aos olhos da Justiça, considerando-se

que, provavelmente, o valor não era fixado arbitrariamente pelos peritos, mas com base em

critérios social e judicialmente aceitos, menos do que o preço de um burro que, como será

visto no próximo processo, custaria pelo menos 70 mil réis.

Embora o juiz tenha decidido pela pronúncia do réu, baseando-se na

129 Ibid, p. 19130 Ibid, p. 21131“Art.303. Offender physicamente alguem, produzindo-lhe dôr ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue: Pena – de prisão cellular por tres mezes a um anno”.

87

incapacidade de um menor com a idade da vítima adulterar um fato132, a promotoria opinou

em sentido contrário:

No rigor do direito, não encontro neste processo materia [ilegível] pronuncia, ha apenas uns indicios vagos de que fôra Antonio Manoel o autor dos leves ferimentos na face de Maria Gregoria, que a meu ver, de barato que fosse elle o autor destes ferimentos, pela sua natureza e sede, não passam de simples desciplinamentos a menor confiada a sua guarda; portanto fará justiça o meretissimo Sr Juiz Substituto.133

Justificar a agressão praticada pelo réu contra a menor como mera forma de

disciplinar esta, insere a fala do promotor nos discursos sobre a criminalidade dos jovens

pobres no final do século XIX, onde evidentemente estavam inclusos os jovens negros, ao

inverter a condição de Maria Gregória de vítima para ameaça social.

Ora, o que podemos depreender do argumento do promotor é que, se a menor

apanhou, fez por onde merecer, caso contrário não haveria que se falar em "disciplina", pois

esta somente se aplica àqueles que subvertem ou ignoram os valores morais da sociedade e

precisam a eles ser condicionados, garantindo-se, assim, a manutenção da ordem hierárquica.

Como anteriormente exposto, a possibilidade de aplicação de castigos físicos

aos menores, fossem ingênuos, tutelados ou estivessem de outra forma sob a responsabilidade

do adulto, era uma forma de perpetuação de estruturas de submissão, decorrentes do regime

de trabalho escravo, mesmo após a conquista da liberdade pelo indivíduo.

Como para a sociedade a grande arma para combater a perdição desses

menores era o trabalho, justificava-se a aplicação de castigos moderados como interesse do

menor, como instrumento para o seu próprio benefício. Assim, escondia-se a necessidade de

manutenção da ordem hierárquica e o medo decorrente de uma possível supressão dos

privilégios da elite branca na conjunção entre a ideia da salvação pelo trabalho e da

moderação do castigo disciplinador, conjunção essa que imprimia um caráter humanitário

para a continuação do tratamento cruel e abusivo que antes era imposto aos escravos.

Processo de furto cometido por menor134

No dia 18 de agosto de 1887, João Ribeiro dos Santos, 12 anos de idade, supostamente

132 Ibid, p. 26133 Ibid, p. 24134Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes, Processo OLC-01217. Disponível em: <http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=34825>. Acessado em: 3 de novembro de 2013.

88

teria furtado dois burros135 e um relógio com corrente de prata e, ao tentar vender o produto do

crime, teria despertado a desconfiança do comprador de que o burro negociado poderia ser

roubado, razão pela qual o menor foi preso em flagrante. Consta da denúncia que:

O Promotor Publico da Comarca do Rio Lambary, em conformidade do art.o 1º do Dec. nº 3/63 de 7 de Julho de 1883, vem perante V. S.ª denunciar a Antonio Ribeiro dos Santos, que consta tambem chamar-se João Ribeiro dos Santos, preso na Cadeia desta Cidade pelo facto criminoso que passa á explicar:No dia 18 do corrente mez, ao anoitecer o denunciado, chegou á esta Cidade, conduzindo dois animaes desarreiados e dirigio-se para o rancho de Manoel José Salgado Guimarães e ahi chegando entrou em negocio de um dos animaes com Francisco Salgado Guimarães, e de facto effectuou a venda por setenta mil reis, recebendo o dinheiro, dirigio-se para esta Cidade, e comprou com o mesmo dinheiro varias fazendas a Evaristo das Chagas [ilegível] e uns arreios em caza de Francisco Antonio de [ilegível]. Depois do denunciado ter vindo para a Cidade, Francisco Salgado Guimarães desconfiou que os animaes erão furtados, pelo que expressa que o denunciado voltasse o que com effeito deo-si, e ao chegar este ao rancho com os objectos comprados e com os arreios, e querendo arreiar o outro animal, para evadir-se, foi preso por Francisco Salgado Guimarães e outros, á ordem do Delegado de Policia, e ao conduziremn-o para Cadeia, passarão por caza de Evaristo Chagas e Francisco Antonio de [ilegível], onde estes sabendo pela confissão do denunciado, que os animaes forão furtados, de prompto receberão os objectos vendidos, e restituirão os valores dos mesmos á Francisco Salgado Guimarães. Ao chegar á Cadeia, sendo o denunciado revistado, foi encontrado em seu poder um relogio e corrente de prata, que também foi furtado á Albino Marques, sendo os animaes furtados um ao mesmo Albino Marques e outro a Antonio Coelho de Almeida, trabalhadores da Estrada de Ferro Oeste de Minas, estando os [ilegível] animaes no posto da fazenda de Joaquim Ignacio na [ilegível]; o denunciado confessou o crime e com todo cynismo.Com tal procedimento o denunciado commetteo o crime previsto no arto 257 do Cod. Crim; por isso o Promotor vem apresentar a presente denuncia, e appresenta para testemunhas ás [ilegível] no final declaração, e requer qui si proceda á formação da culpa com as formalidades legaes no dia hora e lugar por V.S.ª detterminados, distribuindo-se e autoando a presente denuncia.136

O promotor, ao afirmar que o réu confessara o crime com todo o cinismo, não

só atribuiu ao garoto a ciência sobre estar agindo mal diante da lei e da sociedade, como

também indicou desprezo por parte do menor em relação à boa conduta moral defendida pela

sociedade. Assim, retirou deste a inocência e ingenuidade, duas das características que, pelo

imaginário social, mais marcavam a infância, permitindo que o interlocutor, ao identificar no

menor a malícia de um adulto, visualizasse de pronto o discernimento na conduta de João. A

intenção de demonstrar que o réu tinha capacidade de discernimento, no entanto, não ficou

somente limitada a essa autoridade. Veja-se o auto de perguntas realizadas pelo delegado ao

réu:

135É equivocada a informação da ficha de descrição do processo de que seriam dois cavalos.136 Ibid, p.5/7

89

No mesmo dia mez, anno, e lugar retro declarado, ahi presente o réo Antonio Ribeiro dos Santos, livre de ferros e sem constrangimento algum, estando presente seu curador, o Delegado, fez ao menor réo as seguintes perguntas: Qual o motivo por que se acha prezo? Respondeu, por que fez a tolice de trazer o burro perttencentte ao [ilegível] Coelho, feitor no trabalho do avançammento da esttrada de ferro Oeste na [ilegível] e um outro burro pertencente a José [ilegível] trabalhador na ponte inferno, sobre o rio das mortes, tambem do prolongamento da estrada de ferro Oeste. Perguntado o lugar onde pegou os animais que forão encontrados em seu poder? Respondeu que o macho [ilegível], pertencente ao [ilegível] Coelho pegou a legua e meia para cá da Gramma e que o outro pegou para cá do rio Jacaré, onde o [ilegível] Garcia está parecendo huma [ilegível], perguntado se tinha autorização dos donos, para [ilegível] os animais? Respondeu que de ambos tinhão ordens para isso. Perguntado que tendo ordem dos donos para prender os animais, como negociara hum? Respondeu que sua intenção era indenisar, com outro burro ou com dinheiro e se assim fizera é por que tinha necessidade de dinheiro. Perguntado se o dono dos animais sabem se elle vendeu ou [ilegível] dos mesmos, Respondeu que ignorão. Perguntado a quem vendeu hum dos animais? respondeu que a Francisco Salgado, pela quantia de setenta mil reis, e que depois o comprador disse que desconfiara que o animal era roubado, pediu o dinheiro e este entregou a referida quantia, faltando mil e tanto que ja tinha gasto. Perguntado se na ocasião em que foi prezo quantos animais tinha? Respondeu que tinha os dois. Como nada mais disse nem lhe foi perguntando, mandou o Juiz lavrar este auto (...)137

Por que o delegado do caso que, sem dúvida, conhecia as circunstâncias em

que o crime ocorreu, iria se preocupar em perguntar ao menor o motivo de este se encontrar

preso? Tal pergunta foi claramente tendenciosa e visava uma resposta do réu que indicasse a

consciência deste da reprovabilidade de sua conduta. Deve-se considerar, no entanto, que

qualquer resposta do menor que não indicasse o fato de ele desconhecer o motivo de se

encontrar preso ensejaria a crença, no interlocutor, de João saber estar errado, pois por qual

outro motivo o menor afirmaria estar preso por este ou aquele ato, se não o julgasse moral e

socialmente condenável? Ora, se não possui o discernimento, a capacidade de distinção entre

bem e mal, não julgaria que seu ato foi o que ocasionou a prisão.

No entanto, ignora-se que, desde o primeiro momento, deixou-se claro para

Antonio o motivo pelo qual estava sendo preso em flagrante, o que denota o juízo de

reprovabilidade da conduta pela sociedade, mas não necessariamente revela que João agiu

com discernimento, pois para repetir o que lhe foi dito, não precisaria realizar juízo de valor

sobre sua ação. A repetição daquilo que se lhe afirmou incorreto não equivale à consciência da

incorreção do ato.

A subjetividade do conteúdo do termo "discernimento", que era preenchido

segundo os valores e usos da população branca, e a ausência de parâmetros objetivos para

aferir se houve sua presença na conduta do menor condicionavam a responsabilidade penal do

menor de idade ao talante do juiz e de sua interpretação pessoal dos fatos e possibilitavam que

137 Ibid, p.16/18

90

as autoridades, se previamente convencidas da presença de discernimento no ato do menor,

realizassem artimanhas para comprová-la, vez que seu conteúdo poderia ser facilmente

preenchido por qualquer desvalor social.

Dessa forma, a imprecisão do termo "discernimento" se colocava a serviço do

discurso da criminalidade (impulsionado pela dinâmica do medo) ao inverter a lógica de sua

própria aferição, de modo que a existência do discernimento na ação do menor não era

deduzida a partir de indícios, mas era primeiramente presumida e somente então procurava-se

angariar argumentos de validação para essa presunção – inclusive mediante a sugestão, ao

menor, da existência do ato, de sua autoria, de sua materialidade delitiva e, por consequência,

da existência de uma confissão.

Processo de defloramento de menor138

Maria Theodolina Gomes do Carmo, 17 anos, empregada doméstica, não era

mais virgem. Seria vítima ou estaria perdida? Em 21 de abril de 1891 foi oferecida denúncia

contra Theodoro Pereira Dutra:

No comprimento dos meus deveres como Promotor Publico da Comara e em attenção aos documentos que se me offerecem venho perante VSª denunciar de Theodoro Pereira Dutra, rezidente na Freguesia do Carmo da Matta, pelo crime de defloramento. Joaquim Sabino Alves, o queixoso diz ter em sua companhia a menor Maria filha de Maria Gomes a qual foi deflorada por Theodoro Pereira Dutra, e sendo a offendida miseravel pede a justiça punição contra o criminoso. Pelo que fica narrado, Theodoro Dutra incorreu na sanção do art 268 do Cod penal combinado com o art 275 § 1 do mesmo Codigo.Assim pois requeiro a VSª que [ilegível] mande proceder o auto de corpo de delicto na pessoa da offendida, ouvindo-se depois na formação da culpa as testemunhas seguintes: (...)139

Inicialmente, é importante ressaltar que o promotor fala no crime de

defloramento, porém o tipo penal que corresponde a esse crime, no Código Penal de 1890, é o

artigo 267, cuja descrição é "Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano

ou fraude: Pena – de prisão cellular por um a quatro annos". O tipo penal apresentado pelo

promotor, no entanto, é o artigo 268, que possui como descrição "Estuprar mulher virgem ou

não, mas honesta: Pena – de prisão cellular por um a seis annos". O artigo 275140 do Código 138Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes, Processo OLC-00832. Disponível em: <http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=39583>. Acessado em: 3 de novembro de 2013. 139 Ibid, p.7140"Art.275. O direito de queixa privada prescreve, findos seis mezes, contados do dia em que o crime for commettido."

91

Penal de 1890 trata da prescrição do direito de queixa privada e nem ao menos possui

parágrafos.

Entre outros documentos, o processo apresenta o depoimento de cinco

testemunhas e os autos de perguntas à ofendida e à sua mãe.

Getúlio Gonçalves de Abreu Chaves, primeira testemunha, afirmou que pouco

sabia sobre as circunstâncias em que o fato criminoso haveria ocorrido, mas que tinha sido

procurado por Theodoro Pereira Dutra "(...) para servir de intermediario em um acôrdo entre o

denunciado Theodoro Pereira Dutra, e a offendida o qual denunciado para obter o acôrdo, isto

é a desistencia do processo [ilegível], propusera-se a pagar certa quantia a offendida"141(sic).

José Ignacio da Silva Paz afirmou que as pessoas da freguesia atribuíam o

defloramento da menor ao Theodoro Pereira Dutra, mas que a menor "(...) declarou á

testimunha e a outras pessoas que quem a offendêra foi o hespanhól Candido Varella, que foi

trabalhador da Estrada de ferro de Oeste"142. Ainda sobre isso, a testemunha afirmou que a

menor "Disse mais que esse hespanhól algum tempo depois de ter se retirado da [ilegível]

escreveo á menór, convidando-a para acompanha-lo (...)"143 e, segundo a testemunha, seria

"(...) certo que essa carta se acha em poder de Joaquim Sabino Alves"144.

José Ignácio terminou seu depoimento afirmando que "(...) a offendida retirou-

se da caza de Joaquim Sabino Alves, para viver em companhia de Carlos Antonio [ilegível], o

qual a recebera a circunstancias da [ilegível] e desde então tem vivido prostituída"145.

Olympio Ribeiro da Silva afirmou que teria ouvido duas mulheres conversando

no dia seguinte ao da retirada da menor para a companhia de Carlos Antonio, que não sabia

se o que falaram era verdade, mas que as mulheres "(...) disseram que o offensor da menór

era o denunciado Theodoro Pereira Dutra, o qual a illudia com promessas de casamento"146.

Salathiel José Machado disse não saber "(...) se o hespanhól Carlos Varell, digo

hespanhól Candido Varella, em qualquer tempo mantivera relações com a dita menór, sendo

certo que ela actualmente se acha prostituida"147.

José Philippe Ribeiro de Araujo declarou que não podia garantir que Theodoro

Pereira Dutra tivera sido o deflorador de Maria Theodolina Gomes do Carmo, mas que a

autoria do crime era àquele atribuída pelos moradores da Ermida148. A testemunha afirmou 141 Ibid, p.25142 Ibid, p.26143 Ibid, p.26144 Ibid, p.26/27145 Ibid, p.27146 Ibid, p.28147 Ibid, p. 29148Antigamente o nome da cidade Carmo da Mata era Ermida da Mata da Senhora do Carmo. Disponível em:

92

também que um de seus empregados havia sido procurado pelo denunciado e que este teria

pedido a chave da casa de Maria Carlota, mas que seu empregado recusara-se a entregar a

chave, alegando que tinha contas para resolver com a proprietária da casa. Sobre esse fato

acrescentou que "(...) lhe parecia que a chave era pedida para poder o denunciado tomar conta

da caza e [ilegível] com a offendida"149.

Maria Theodolina, no auto de perguntas à ofendida, contestou ser Theodoro

quem a deflorara, informando que "(...) quem primeiramente [ilegível] relações consigo foi o

hespanhól Candido Varella a cerca de um anno, e ao qual a interrogada entregava-se muito

espontaneamente"150, e completando "(...) que só depois de prejudicada pelo dito hespanhól,

tiverá tambem relações com o denunciado, como tem tido com diversos outros individuos"151.

Para Maria Candida de Jezus, mãe da menor, sua filha tinha tendência a se

casar com Theodoro, informando que este "(...) uma ou outra vêz hia á caza da interrogada,

parecia tratar sua filha com respeito"152, e que "(...) no conceito publico o denunciado foi o

offensor de sua filha, (...)153".

No entanto, o promotor achou por bem desconsiderar o fato de que

publicamente acreditava-se que Theodoro deflorara Maria Theodolina, argumentando que a

própria menor adimitiu que teria sido deflorada anteriormente, opinando pela impronuncia do

acusado. Veja-se:

Em vista da queixa instruida e documentada de fs 2 ___ levando a conta Theodoro Pereira Dutra, a autoria do crime de defloramento em a menor Maria Theodolina Gomes, e, em vista da antinomia flagrante que existe entre a queixa e (depois denuncia) e as declarações da offendida, (mais interessada talvez na sanção da lei) declarações corroboradas pelos officiais de fs 7 e 8-v e depoimentos das testemunhas de fs 13-v e 15 nada tenho a requerer.A natureza do crime, por sua vez, faz escapar um acurado exame sobre a natureza das provas ___ As tres testemunhas que sobraçadas a vóz publica pretendem fazer [ilegível] sobre o indiciado, se destroem ante as declarações da offendida, do depoimento de fs 13 e 15 e dos officiais da autoridade policial; a dar-se-lhes credito, nas suas vagas presumpções, seria ser mais realista do que o próprio [ilegível] __ A vida desregrada, prostituida, levada de ha mezes pela offendida e bem assim [ilegível] em cazar-se, não se tratando de um defloramento recente, viria no caso de pronunciada burlar o espirito da lei consagrado no paragrapho unico do art 277 do Codigo Penal, obrigando-se o casamento de encontro ao modo de pensar da offendida, e mto moral e philosophicamente considerando a harmonia que devia de existir no lar d'aquelle cazal. Em vista das razões e provas quer juridicas quer philosophicas, opino pela não pronuncia do indiciado. O meretissimo Dr Juiz

<http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/historico.php?lang=&codmun=311400&search=minas-gerais%7Ccarmo-da-mata%7Cinfograficos:-historico>.149 Ibid, p.30150 Ibid, p.32151 Ibid, p.32152 Ibid, p.33153 Ibid, p.33

93

Preparador fará a Justiça.154

O que claramente o promotor optou por ignorar foi o alegado por Getúlio

Gonçalves de Abreu Chaves, no sentido de que teria sido procurado pelo denunciado para

intermediar acordo entre este e a menor e que inclusive Theodoro teria oferecido dinheiro à

ofendida para que esta desistisse do processo. Relevante ainda lembrar que, segundo a

denúncia, a menor era miserável. Assim, seria plausível a hipótese de que, devido às

circunstâncias, Maria Theodolina teria voltado atrás sobre o acordo, ou aceitado um novo,

dessa forma mentindo, durante o interrogatório, sobre as reais circunstâncias do seu

defloramento. Mas tal hipótese não passou pela mente do promotor ou pelo menos foi

prontamente descartada, juntamente com a opinião geral da população de Carmo da Mata, no

sentido de que teria havido crime e que o ofensor teria sido mesmo Theodoro.

Para o promotor, a simples incerteza de que a menor anteriormente poderia ter-

se envolvido sexualmente com Candido Varella já era motivo bom o bastante para inocentar

Theodoro. Ora, por que a opinião da comunidade a respeito de este último ser o ofensor não

tinha credibilidade aos olhos do promotor, por ninguém afirmar ter certeza, mas, noutra via,

os rumores sobre a menor ter sido deflorada anteriormente eram considerados relevantes e,

veladamente, desabonadores da ofendida, a ponto de sequer serem objetados por essa

autoridade como possíveis fofocas a serem mais bem averiguadas?

Não, a situação de prostituição a que, segundo algumas testemunhas, Maria

Theodolina estava sujeita era argumento suficiente para que o promotor afasta-se a hipótese

de ela ser vítima, e não uma garota perdida, não importando se a prostituição, se é que ocorreu

(pois a menor afirma durante o interrogatório ter tido relações com vários outros homens, mas

não diz nada sobre receber alguma quantia ou favor por isso), deu-se depois dos fatos,

portanto nada indicando sobre a inocência da menor na época do ocorrido.

A menoridade era definida por lei a partir da idade da ofendida, o que indicava

que havia uma preocupação legal em, reconhecendo a inexperiência da fase anterior à

condição do adulto, atribuir aos indivíduos que se encontravam nesse período de transição

entre infância e adolescência e entre adolescência e vida adulta o direito à proteção.

No entanto, a exemplo da ofendida, as menores defloradas eram privadas de

seu estado de inocência, recebendo da sociedade, bem como dos juristas, o tratamento de

mulheres adultas155.

154 Ibid, p.35/36155ABREU, Martha. Meninas Perdidas. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. 6ª. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p.290.

94

Independentemente de ser virgem ou não, fica claro pelo depoimento das

testemunhas que a menor foi iludida por Theodoro com promessas de casamento, explícitas

ou implícitas (o denunciado chegou até a conhecer a mãe da ofendida). Porém, o promotor se

sentiu no direito de retirar da garota toda a vulnerabilidade que a ela deveria ser atribuída por

sua condição de menor de idade e, pior, no direito de retirar a dignidade necessária ao

casamento, deixando a entender que Maria Theodolina, por causa da prostituição e vida

desregrada, não era mais mulher apta para o casamento, chegando a comparar a possibilidade

de pronunciar Theodoro para responder pelo defloramento – dano que, caso comprovado,

poderia ser reparado pelo denunciado por meio de realização de casamaneto entre ele e a

menor – com o crime de incitação à prostituição, previsto no artigo 277 do Código Penal,

verbis:

Art.277. Excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição de alguem para satisfazer desejos deshonestos ou paixões lascivas de outrem:

Pena – de prisão cellular por um a dous annos.

Paragrapho unico. Si este crime for commettido por ascendente em relação á descendente, por tutor, curador ou pessoa encarregada da educação ou guarda de algum menor com relação a este; pelo marido com relação á sua propria mulher:

Pena – de prisão cellular por dous a quatro annos.

Ao justificar seu parecer de não pronúncia de Theodoro em razões e provas

tanto jurídicas quanto filosóficas, o promotor, em outras palavras, estava afirmando que a

aplicação do tipo penal do defloramento baseava-se em um modelo de vida sexual e amorosa

constituído a partir da moralidade e honestidade das famílias da elite.

A partir do momento que as menores, não sendo mais virgens, fugiam a esse

modelo, representavam uma ameaça à sociedade, vez que colocavam em risco o padrão

familiar adequado à manutenção da ordem hierárquica e social, padrão em que a mulher

representaria a própria base moral da sociedade, pois era sua responsabilidade transmitir os

valores e a adequação comportamental para as próximas gerações156, constituindo, assim, um

risco permitir a proliferação de menores que foram criados às margens das crenças da elite,

risco que justificava a inversão do papel da menor de vítima para prostituta.

Nos processos analisados, portanto, verifica-se que, na realidade, não

importava qual polo o menor ocupava na ação penal, a dinâmica do medo sempre estava a

alimentar o discurso sobre a criminalidade do jovem negro de forma que este, no imaginário

social, somente não representaria uma ameaça se estivesse subjugado aos padrões de condutas

156Ibid, p. 290.

95

e valores da sociedade branca, padrões estes que não somente não o representavam, como

também tornavam impossível sua inclusão senão como instrumento de sustentação dos

privilégios brancos.

Dessa forma, resignificava-se o espaço das ideias de liberdade, igualdade e

mesmo de infância a partir do interesse da elite, processo promovido pelo medo e redimido

por um pretenso humanismo que apenas justificava novas formas de submissão da população

negra às demandas brancas.

96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei do Ventre Livre, cuja promulgação ocorreu em um período histórico em

que o negro, para o imaginário social, era um indivíduo perigoso, subversivo e imoral, não foi

a origem da criminalização dos jovens negros e do discurso sobre a aplicação de castigos

corporais a esses. Porém, é, sem dúvida, causa agravante desses fenômenos. Muito antes de

28 de setembro de 1871, data da promulgação dessa lei, já havia constante tensão entre

brancos e escravos, pois, a cada medida adotada no sentido de se extinguir gradualmente a

escravidão e melhorar as condições de vida dos escravos através de políticas paternalistas,

maior era, a contrário sensu, a agitação dos escravos, o que indica que as possibilidades de

acomodação do sistema escravocrata já tinham sido superadas.

O medo que os senhores de escravos nutriam em relação às populações negras

não era apenas o receio da sujeição individual à violência que normalmente era infligida aos

escravos. Desde a Revolução do Haiti (em que ideais até então entendidos como aplicáveis

somente a indivíduos brancos, tiveram seu uso apropriado pela população negra e por essa

ampliado além do limites impostos pela elite branca), ocorrida em 1791, alastrou-se pelo

mundo grande temor de que, por meio da violência, iminente e potencializada por uma

possível superioridade bélica e numérica, os escravos pudessem promover a inversão da

ordem hierárquica (o que significaria o fim do mundo escravista, bem como do modo de vida

e privilégios ligados a ele)157.

É nesse contexto de medo em que, às vésperas da promulgação da Lei do

Ventre Livre, foram proferidos tanto discursos favoráveis quanto contrários à promulgação

dessa lei que, embora possuísem objetivos opostos, compartilhavam entre si a mesma base de

argumentação: a imagem do escravo como elemento de periculosidade para seu senhor e para

a sociedade.

As questões de maior relevância para o presente trabalho encontram-se,

principalmente, naquilo que, nos discursos analisados, não foi dito expressamente pelo

emissor da mensagem, pois se perpetuam de maneira imperceptível no imaginário social

justamente os sentidos constituídos por aquilo que foi esquecido, foi omitido ou foi silenciado

157AZEVÊDO, Célia Maria Marinho de., op. cit.

97

em um discurso. Dessa forma, uma vez que o discurso não é transparente158 e possui

historicidade, deve-se recorrer à análise de discurso como metodologia viável para revelar a

atuação da memória discursiva, do inconsciente e da ideologia existente por trás do processo

de formação dos significados da mensagem, dado que, no presente trabalho, buscou-se não

somente determinar o que os discursos analisados queriam dizer, mas também e,

fundamentalmente, determinar como esses discursos significavam.

Através da conjugação da língua com a história na produção de sentidos

discursivos, foi possível trabalhar os discursos não apenas como documentos exemplificativos

e ilustrativos de um conhecimento estanque que já foi produzido em outro lugar, mas como

fontes, elementos constitutivos desse conhecimento, capazes de serem transportardos e

relidos, vetores do conjunto de relações de significados. A despeito de reconformações e

influxos da experiência social e histórica, tais discursos informam a persistência e a impressão

de certas cargas de sentido não apenas na compreensão e na linguagem, mas também na

doutrina e na técnica – inlusive as do Direito. Tal possibilidade, gerada pela análise de como e

em que contexto se forma determinado discurso, faz da análise de discurso ferramenta não

apenas de reconhecimento e colheita de objetos, mas método mesmo de construção e

interpretação, não havendo, portanto, separação entre a forma e o conteúdo, o que torna a

língua não somente a estrutura pela qual se transmite uma mensagem, mas o próprio

acontecimento159 a ser analisado no presente trabalho.

Os discursos sobre a promulgação da Lei do Ventre Livre não devem, assim,

ser tomados apenas como exemplos do contexto em que ocorriam as discussões desse

período, mas antes como material capaz de historicamente informar que:

(i) na época em que se discutia a necessidade e os efeitos de tal lei, a sociedade não

mais considerava a escravidão como fenômeno natural ou ligado a um direito divino, mas já

tinha consciência de sua artificialidade social, sua imposição pelo poder e violência, de modo

que não se podia justificar a existência de escravos em outras bases que não a manutenção da

ordem econômica e hierárquica da sociedade;

(ii) a discussão da Lei do Ventre Livre estava inserida em um contexto histórico em

que tanto a coletividade quanto o indivíduo temiam ser considerados como elementos

favoráveis à continuação não provisória da existência de escravos, fato que demonstra a

condenação social, de um ponto de vista moral, da defesa da perpetuação da escravidão;

158ORLANDI, Eni puccinelli, op. cit.

159Ibid.

98

(iii) havia submissão do discurso humanitário, manifestada e naturalizada pelas

medidas de emancipação gradual e de moderação dos castigos aplicados aos escravos, à

necessidade de conservação da ordem hierárquica da sociedade e dos privilégios dos brancos.

Por meio de medidas que aparentemente melhoravam as condições de vida dos escravos,

procurava-se eliminar os horrores da escravidão sem, contudo, abalar estruturalmente as

relações de trabalho existentes no país;

(iv) a sociedade temia que o filho livre de mãe escrava adquirisse direitos políticos

por meio da apropriação dos ideais liberais e da tão temida brutalidade e violência, atribuídas

ao negro pelo imaginário social, e invertesse a ordem hierárquica, tal como ocorreu na

Revolução do Haiti;

(v) tanto o discurso favorável quanto o contrário à promulgação da Lei do Ventre

Livre faziam predominar no imaginário social a periculosidade do negro, sua selvageria e

rancor quanto aos brancos, sua subversão quanto à ordem estabelecida, imagem que não podia

gerar outro efeito senão intensificar a segregação racial e servir de base para justificar a

disposição do corpo do negro como espaço de intervenção da violência.

No final do século XIX, a sociedade já havia passado por transformações das

práticas culturais de autonomia e empatia em suas dimensões físicas e morais. A primeira

prática baseava-se na compreensão da individualidade dos corpos e de seu caráter sagrado.

Cada indivíduo, e somente ele, era dono de seu próprio corpo, dotado de autocontrole e

obrigado a respeitar as fronteiras existentes entre si e o corpo de outro indivíduo. A empatia,

por sua vez, baseava-se na percepção do indivíduo de que o outro, assim como ele, também

sente e pensa, tinha sentimentos interiores essencialmente semelhantes160. A partir do século

XVIII, novos tipos de literatura e novos estímulos artísticos afetaram físicamente o cérebro,

ao proporcionar às pessoas novas experiências individuais capazes de fazer com que as

fronteiras da empatia superassem o âmbito da família imediata, da associação religiosa ou da

classe social, o que tornou possível uma mudança social e política: os direitos humanos. Tal

mudança explica-se pela semelhança existente entre as experiências de cada indivíduo, capaz

de gerar um novo contexto social, e não pela inserção de todos em um mesmo contexto

prévio161.

Considerando-se que, no final do século XIX, os ideais humanitários não eram

gestados na Europa e posteriormente irradiados, em um fluxo unívoco, para o restante do

mundo, onde seriam aplicados internamente pelos povos não europeus, mas que, ao contrário,

160HUNT, Lynn, op. cit.161Ibid.

99

o fluxo de informações era pluridimensional, de forma que a propagação tanto das ideias

iluministas quanto das experiências capazes de transformar os processos de empatia e

autonomia do corpo ocorria juntamente com a escravidão162, seria difícil negar a hipótese de

que a população do Brasil também vivenciou e cultivou esses processos e valores. A

persistência da cegueira quanto às condições dos escravos não pode ser explicada, portanto,

pela incapacidade do branco de estabelecer empatia pelo negro ou de conceber o corpo deste

como autônomo e exclusivo. Era evidente para a sociedade – porém, não reconhecida – a

contradição entre os ideais iluministas e a escravidão, bem como as implicações dessa

contradição para a correção moral.

A continuidade da escravidão pode ser explicada, no entanto, pela tolerância de

tal regime por parte das autoridades, que perpetuavam as práticas escravistas de maneira a

delas obter benefícios163. Portanto, havia por parte da sociedade a consciência, do ponto de

vista da imaginação moral e da concepção dos direitos humanos, de que a escravidão era

abominável, mas tal consciência era desautorizada pela conjuntura da sociedade e seu

pressuposto de obediência social. A cegueira em relação à escravidão apresentava-se, assim,

como um dever socialmente imposto, necessário para a manutenção da própria ordem social,

sob pena de, se quebrada, representar uma forma de traição por colocar em risco tal ordem e

a proteção da coletividade164.

A mente dos indivíduos brancos estava povoada de dilemas fundados no

contraste existente entre a situação dos negros e a necessidade de continuidade do sistema

escravocrata como fator essencial para a manutenção dos privilégios e da ordem social. A

solução perversa desse impasse foi unir esses dois sentimentos aparentemente antagônicos (a

necessidade de preservar as estruturas do mundo escravocrata e a necessidade de não

sucumbir à brutalização humana derivada dos flagelos a que os escravos eram submetidos) em

um único discurso, o da moderação no trato com os negros. O discurso que recomendava que

os escravos fossem bem vestidos e alimentados por seus senhores, somente devendo ser

submetidos a castigos moderados e necessários, portanto, era duplamente conveniente à

população branca, vez que proporcionava paz de consciência a uma sociedade que sabia

sobreviver da exploração e da desgraça do negro, e assim pretendia permanecer.

Pode-se perceber, nas leis que disciplinavam a aplicação de castigos aos

escravos, a gritante necessidade que a sociedade escravista tinha de se conceber mais humana,

162BUCK-MORSS, Susan, op. cit.163DUARTE, Evandro Charles Piza, op. cit. 164Apud DUARTE, Evandro Charles Piza. op. cit.

100

minorando o sofrimento dos escravos, sem, no entanto, abrir mão do castigo como elemento

essencial para o exercício do poder senhorial, vez que era instrumento de dominação,

disciplina e prevenção de rebeldia. A Lei do Ventre Livre, mesmo que regulasse as relações

existentes entre senhores de escravas e os filhos destas que nascessem livres, não seria uma

exceção.

O artigo 18 do Regulamento de 13 de novembro de 1872, responsável por

estabelecer os parâmetros de execução da Lei do Ventre Livre, ao dar aos senhores das

escravas mães dos ingênuos autorização para aplicar a esses castigos módicos, além de suprir

a necessidade social de perpetuação das estruturas ligadas ao trabalho escravo (as quais

permitiam a manutenção dos privilégios da sociedade branca), conciliava essa necessidade

aos valores humanitários da época, o que deu ensejo à coexistência de dois mundos

antagônicos em um só, pretensamente harmônico, em que o branco podia ser humanista e

esclarecido sem ter que admitir em seu caráter as consequências resultantes de um

embrutecimento decorrente da convivência com os horrores das torturas pelos quais passavam

os negros – inclusive aqueles libertos.

O efeito de um enunciado legislativo aberto, tal qual o do artigo 18 do

Regulamento de 13 de novembro de 1872, era permitir que o indivíduo pensasse os castigos

leves de maneira abstrata e generalizasse sua ideia, assumindo como uma realidade partilhada,

de modo homogêneo, pela sociedade e, no entanto, aplicasse, segundo seu humor e sua

análise particular de cada caso de desobediência dos menores filhos de escrava, o castigo que

lhe conviesse.

Se houvesse excesso no castigo aplicado ao ingênuo, não era simples levar os

fatos ao conhecimento das autoridades. A condição de hipossuficiência determinada pela

dependência e submissão do menor ao senhor de sua mãe, bem como a falta de previsão legal

de mecanismos de proteção do ingênuo, forneciam meios para que o senhor de escravos

barrasse o acesso do ingênuo às autoridades. Dessa forma, mesmo que a notícia do castigo em

excesso pudesse ser fornecida às autoridades competentes, por meio do ingênuo, de sua mãe,

ou de algum outro familiar, nenhum senhor em perfeito juízo permitiria de bom grado que seu

escravo procurasse as autoridades. Faltavam instituições jurídicas voltadas à defesa dos

direitos de pessoas em condições de vulnerabilidade social: o menor, para recorrer à Justiça,

tinha que praticar atos de desobediência, como a fuga, ou ficar à sorte da sensibilização de

algum terceiro que tivesse conhecimento dos fatos.

A possibilidade legal de o tutor aplicar castigos moderados ao ingênuo não

101

demonstra somente a necessidade de perpetuação das estruturas do trabalho escravo, mas

também o medo que a população branca nutria em relação aos negros. As primeiras crianças

nascidas sob a promulgação da Lei do Ventre Livre, mesmo que não tivessem condições de

exercer comportamentos nocivos à ordem hierárquica da sociedade devido a sua pouca idade,

pois mal tinham completado um ano quando o Regulamento de 13 de novembro de 1872

entrou em vigor, já estavam condenadas pelo imaginário social. A mera ameaça combinada

com o medo inspirado na população branca pelas revoltas negras foram suficientes para

justificar a submissão desses menores à violência promovida pelos senhores de seus pais e

pelo Estado.

Dessa forma, após a promulgação da Lei do Ventre Livre, o discurso sobre a

criminalidade do jovem negro é agravado pelo mecanismo de retroalimentação existente entre

o crescente medo que a sociedade sentia em relação aos negros e a necessidade de

manutenção dos laços senhoriais que garantiam a perpetuação dos privilégios da elite branca,

mecanismo que se propagou por meio do discurso sobre os menores abandonados. Tal

discurso refletiu-se no aumento do número de ações de tutela, a demonstrar como a motivação

dos autores das ações tutelares era a manutenção do vínculo servil ao qual os jovens negros

sempre estiveram submetidos. O argumento utilizado para justificar a exploração do trabalho

do ingênuo e a manutenção dos laços de servidão foi a representação do trabalho como única

solução para a possível perdição do menor, que poderia tornar-se um criminoso quando

adulto, decorrente de seu abando.

Nesse contexto, as punições seriam para o próprio benefício do ingênuo, pois

para que ele não se tornasse um criminoso, deveria adquirir o hábito de trabalhar, devendo,

para isso, ser controlado e vigiado. Portanto, a sociedade defendia a ideia de que os castigos e

maus tratos representavam instrumentos de correção e instrução necessários à formação de

um cidadão de bem e trabalhador. No final do século XIX, o hábito do trabalho indicava a

presença de virtuosidade em determinado indivíduo. A ociosidade, por sua vez, por ser para o

imaginário social a mãe dos demais vícios, possuía o poder de degenerar não somente o

indivíduo, mas a sociedade como um todo. Mesmo a criminalidade era considerada produto

da ociosidade, o que justificava a submissão dos menores ao trabalho.

O menor abandonado era aquele que não tinha quem lhe provesse sustento ou

educação. Assim, como a capacidade de sustento depende das condições financeiras, o menor

que pertencia à família muito pobre podia ser incluído como objeto do discurso sobre o

abandono de menores e sua periculosidade. Ainda, como a concepção de educação do final do

102

século XIX baseava-se na moralização das crianças e jovens, e vez que essa moralização era

concebida a partir dos valores e crenças da população branca, qualquer criança que realizasse

conduta condenada por aqueles valores e crenças, ou que tivesse familiares com

comportamentos socialmente reprováveis, também era incluída como objeto desse discurso.

A concepção moral do abandono, dessa forma, apresentava-se como

instrumento de manutenção da ordem hierárquica da sociedade, vez que sua consequência foi

ampliar a possibilidade de incidência das ações tutelares, o que facilitou a sujeição de

menores aos laços senhoriais e às estruturas de trabalho escravo. Por outro lado, à medida que

a dimensão da concepção de abandono ampliava-se, o discurso que relacionava o abandono

com a perdição do menor assumia proporções mais alarmantes. Ou seja, a solução encontrada

para continuar submetendo os filhos de escravas ao trabalho compulsório acabou por

retroalimentar o sentimento de medo que o branco possuía em relação ao negro, consolidando,

no imaginário social, a imagem do jovem negro como potencialmente perigoso e,

ciclicamente, ocasionando renovada intensificação do discurso sobre a periculosidade dos

menores negros abandonados.

Quanto ao tratamento jurídico dado aos menores criminosos no século XIX,

tanto no Código Criminal de 1830 quanto no Código Penal de 1890, a questão do

discernimento do menor ao cometer o ato criminoso foi de grande importância para a

verificação da existência ou não de responsabilidade penal.

O "discernimento" baseava-se em descrições subjetivas, de forma que não

havia o estabelecimento de parâmetros objetivos para a definição da gravidade de um crime

cometido por um menor de idade. A solução era, dessa forma, flexibilizar usos e conceitos

para legalmente aferir a existência ou ausência do discernimento na conduta do menor, o que

fez da própria infância objeto do debate jurídico165. Quais fossem os critérios indicados pela

doutrina para verificar a existência ou não de discernimento na conduta do menor, sua

trajetória pessoal sempre acabava influenciando a decisão do juiz, pois o conteúdo do termo

"discernimento" era preenchido subjetivamente pela ponderação, realizada a partir da

perspectiva da elite da sociedade, de valores morais e condutas sociais.

Vítima ou criminoso, o imaginário social sempre criminalizava o jovem negro

caso este não se submetesse aos padrões de condutas e valores da sociedade branca, que não o

representavam e tornavam impossível sua inclusão social senão como instrumento de

sutentação dos privilégios brancos. O discurso sobre a criminalidade do jovem negro no final

165BOTIN, Lívia Maria, op. cit., p.135.

103

do século XIX, portanto, ao ser influenciado pelo medo, ressignificava o espaço das ideias de

liberdade, igualdade e mesmo de infância, sob a forma de um pretenso humanismo que, na

verdade, apenas mascarava as novas formas de submissão da população negra aos interesses

da sociedade branca.

104

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