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FICHA TÉCNICA Título original: Una Madre Autor: Alejandro Palomas Copyright © Alejandro Palomas, 2014 Edição portuguesa publicada por acordo com Sandra Bruna Agencia Literaria, SL Todos os direitos reservados Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Catarina Gândara Imagem da capa: Shutterstock Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, abril, 2015 Depósito legal n. o 390 310/15 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: Una MadreAutor: Alejandro PalomasCopyright © Alejandro Palomas, 2014Edição portuguesa publicada por acordo com Sandra Bruna Agencia Literaria, SLTodos os direitos reservadosTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Catarina GândaraImagem da capa: ShutterstockCapa: Vera Espinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, abril, 2015Depósito legal n.o 390 310/15

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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O bom funâmbulo sabe queo verdadeiro vazio está em cima.

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Livro primeiro

Algumas luzes e muitas sombras

«Não se pode encontrar paz evitando a vida, Leonard.»

Virginia Woolf, no filme As horas,baseado no romance homónimo de Michael Cunningham

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UM

A mãe tinha dito que se encarregaria de comprar as flores mas, com tanta barafunda, esta tarde esqueceu ‑se de passar na florista e não temos flores. Agora está ao meu lado a contar uvas passas. Arranca ‑as delicadamente do pezinho enquanto ouve rádio, que toca em três aparelhos no pequeno apartamento: no transístor que está na bancada da cozinha, no que ficou ligado no quarto dela e, por último, no que está na casa de banho e que ela quase nunca desliga. Estamos sentados à mesa da sala de jantar. Ela conta uvas passas e eu dobro os guardanapos encarnados com estampados natalícios, enquanto o creme de espargos e um assado de uma coisa que deveria ser peru mas que parece ser outra coisa qualquer vão arrefecendo dentro do forno.

Do lado de fora da janela é noite cerrada. No chão, junto do sofá, o Max dorme todo enroscado. Tem a cabeça apoiada num pequeno charco de baba e mexe as patas enquanto sonha. A Shirley, a cadelinha da mãe, dorme ao lado dele na sua alcofa, tapada com uma manta axadrezada.

Barcelona. Hoje é 31 de dezembro.— Somos cinco — diz a mãe. — Não contando com a Olga,

claro. — A Olga é a namorada da Emma, ou, como lhe chama a Silvia quando a Emma não está por perto, «a intrometida», daí que a mãe a conte sempre como uma pessoa à parte. E não é que o faça por desprezo. Simplesmente conta como contam as mães: os meus de um lado, os restantes do outro lado. Aqui os do meu sangue, ali quem não o é. — Embora o tio Eduardo chegue um

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pouco mais tarde, porque o voo dele está atrasado — esclarece, separando doze uvas passas e colocando ‑as na primeira taça. Depois continua a contar e, ao reparar que eu não digo nada, para e olha para mim. — Passa ‑se alguma coisa?

Nego com um movimento da cabeça. A mãe está nervosa, emo‑cionada. Já anda assim há umas semanas, desde que tem a certeza de que esta noite estaremos todos presentes. Por fim, depois de tantas tentativas frustradas, os que somos do seu sangue iremos sentar ‑nos à mesa a celebrar o fim de ano e brindaremos juntos. É um grande dia para ela e não disfarça o nervosismo, porque não sabe como fazê ‑lo. Desde que se divorciou do pai aconteceu sempre alguma coisa, houve sempre qualquer coisa que acabou por correr mal e o jantar de Ano Novo ficou incompleto. No primeiro Natal, a Emma ficou retida quase um mês na Argentina, porque a com‑panhia aérea em que viajava foi à falência e, de caminho, deixou todos os voos em terra. O tio Eduardo foi quem faltou a seguir: um ano depois decidiu ir viver para Lisboa e, por altura do Natal, estava à espera de receber um par de contentores cheios de móveis que, ao que parece, se tinham perdido pelo caminho e tinham acabado por aparecer em Tânger. E, no ano passado, foi a minha vez e a do Max. No dia 31, ao meio ‑dia, enquanto brincava com ele no parque, a bola ressaltou contra uma árvore e saltou dispa‑rada para a estrada. O Max fez então aquilo que nunca tinha feito: desatou a correr atrás da bola como se a sua vida dependesse disso e, ao atravessar a rua, foi atropelado por um jipe. Passámos a noite nas urgências da Faculdade de Medicina Veterinária, ele milagro‑samente ileso, apesar de ter sido obrigado a ficar sob observação, e eu com dois tranquilizantes na veia, deitado numa maca entre o Max e um sharpei com cara de buda enfronhado, que não parava de ganir porque, aparentemente, tinha não sei o quê nos intestinos. E assim, para a mãe, o jantar foi novamente um mar de poucas luzes e muitas sombras.

Esta é, finalmente, a noite da mãe. E ela está a pé desde as seis da manhã, tão emocionada que, entre os nervos, o modo desastrado que a caracteriza e o pouco que vê, já temos um número recorde de destroços adicionais amontoados junto do balde do lixo.

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— Leva isso lá para fora antes que a Silvia chegue, por favor, Fer — suplica ‑me com uma expressão angustiada, antes de se sen‑tar à mesa para continuar a contar as uvas passas. — Já sabes como é que a tua irmã fica quando eu parto alguma coisa — acrescenta, ao mesmo tempo que olha de soslaio para o saco com os restos do candeeiro de porcelana, três copos, duas molduras, um jarro de água e um bule supostamente chinês que, até à data, era a estrela da sua coleção de horrores em miniatura, cortesia de um jornal que ela se recusa a ler mas que compra «por causa das ofertas».

Agora, do outro lado da mesa, olha para mim e, subitamente, há nos olhos dela tanta emoção contida, tanta vontade de que a noite seja um sucesso e de nos ter a todos aqui que, apesar da trabalheira que me deu durante todo o dia, reprimo o desejo de a abraçar e de lhe dizer que não se preocupe, que vai correr tudo bem.

— Achas que eles vão gostar? — pergunta ela pela enésima vez, virando ‑se para trás para espreitar para dentro do forno. — É que... estava aqui a pensar que a comida talvez seja pouca. Embora, claro está, também haja as duas saladas, e de certeza que o tio Eduardo vai trazer qualquer coisa do Duty Free. E, além disso, ainda sobra‑ram os torrões que a Silvia trouxe no dia de Natal, e...

— Acalma ‑te, mãe — interrompo ‑a com delicadeza. — A co‑mida chega e sobra.

Devemos ter tido esta conversa pelo menos uma dúzia de vezes nas últimas três horas. Será que a comida vai chegar? Será sufi‑ciente? Será que vão gostar? Está muito calor? Não seria melhor baixarmos um bocado o aquecimento? Acendemos já as velas ou esperamos até que eles cheguem? E o aperitivo? Ah, sem aperitivo? Achas mesmo?... Perguntas... A mãe lança perguntas para o ar como se estivesse a enumerar os ingredientes de uma receita que já não permite demasiados retoques, porque são as horas que são e porque, por esta altura, já todos devem estar a caminho. Mas as per‑guntas dela escondem outras de diferente calado e abafam aquelas que realmente a põem neste estado, a sofrer por antecipação, presa entre a ansiedade e uma emoção quase infantil que, apesar dos anos, nunca aprendeu a controlar: são estas dúvidas que a atormentam e que nem ela nem nenhum de nós pode resolver antecipadamente,

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porque algumas famílias são assim — somos assim —, assim tão intensas, assim tão imprevisíveis e tão arrebatadas; são estas dúvi‑das que, se a mãe se atrevesse a dar ‑lhes voz, soariam desta maneira: «Achas que a Silvia se vai comportar e que não se vai pegar com a Olga? E que não vai começar a falar de política e a reclamar contra os bancos ou contra o teu pai, e que passaremos o serão em paz? E achas que o tio Eduardo não vai contar nenhuma história daquelas ordinárias das viagens dele, que deixam a Olga assim tão... tão...? E, por favor, diz ‑me que não vai aparecer nenhum vizinho do prédio, como aconteceu há dois anos, quando o senhor Samuel do 1.º C apareceu com aquela pobre mulata cubana, a que estava seminua, a perguntar se tínhamos uma garrafa de rum, e a cubana depois voltou porque queria ficar connosco e... ai, filho, diz ‑me que não».

E a verdade é que, apesar de desde que o pai já não está connosco se terem desatado muitos nós e se ter libertado muita tensão, com os quais felizmente já não temos de lidar, e apesar de o jantar de Ano Novo se ter suavizado muito, o fim de ano é uma data que, a esta família, nos sufoca. É por isso que chegamos tensos a esta noite, decididos, cada um desde o cantinho da sua vida, a corrigir na medida do possível a intensidade do ano anterior e a passar um serão descontraído, conversando tranquilamente sobre ninharias e partilhando um sentido de humor no qual todos nos reconhe‑cemos e que nos torna mais família, que nos fala melhor do que somos juntos.

Mas, até à data, as tentativas saíram sempre goradas.E a isto há que acrescentar que, desde há umas semanas, há

qualquer coisa que parece ter posto a mãe alerta. Está inquieta, preocupada. Sem o saber, adivinha coisas às quais por enquanto continua alheia, verdades ainda não reveladas. Luzes e sombras. Está mais trapalhona. Mais barulhenta.

Não imagina que talvez tenha motivos para estar assim. Motivos que desconhece.

Por enquanto.— Não, não se passa nada — respondo finalmente, tentando

esquecer o último jantar em que estivemos todos juntos e em que o

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tio Eduardo quis surpreender ‑nos com um «presente de arromba» (foi assim que o anunciou, batendo com uma colher de chá na taça de champanhe, com tanto azar que a taça ficou feita em cacos à terceira pancadinha, semeando a toalha de mesa com pedacinhos de cristal). O presente em questão foram umas pastas coloridas com informação pormenorizada sobre como fazermo ‑nos sócios da Digni tas, aquela organização de suíços que ajuda as pessoas a cometer suicídio. Tinha juntado a cada pasta uma cópia do formu‑lário para redigir o testamento vital. A Olga, católica da linha dura como poucas, tinha ficado verde e a Emma tinha desatado a chorar, daquela forma que só ela chora, sem fazer barulho, porque a Lua, a cadelinha dela, acabara de morrer e, de repente, ela sentia ‑se cul‑pada não me recordo agora de quê. Depois, os mais velhos tinham bebido um pouco excessivamente e o tio Eduardo tinha caído pelas escadas abaixo (a mãe vive num primeiro andar) e tivemos de chamar uma ambulância. Durante o trajeto para o hospital o tio Eduardo não parou de abanar no ar a sua cópia do testamento vital, enquanto berrava com o enfermeiro, arrastando as palavras como um velho bêbado e gritando: «São todos uma cambada de assassinos e de maricas, mas a mim não me hão de vencer! Demó‑nios, piores do que demónios!».

É verdade... se não contarmos com a Olga, continuamos a ser cinco. Duas gerações de irmãos: a da mãe — o tio Eduardo e ela, e a minha — a Silvia, a Emma e eu. Duas gerações como dois carris paralelos que atravessam o tempo, separados esta noite pela mesa, pelos pratos, pelos copos e pelas múltiplas interpretações da nossa história em comum.

Sem o pai. Sem os avós.Eles mortos. Ele ido. Ausentes, todos.E eu aqui, a contar uvas passas com a mãe, como se nada fosse,

temendo — como ela — o que talvez a noite encontre nesta mesa posta para sete. «Que nada corra mal, por favor, que nada corra mal», adivinho ‑a a rogar em silêncio, enquanto recordo subita‑mente a confissão que a Silvia me fez há apenas quarenta e oito horas e cujo peso sinto desde então sobre os ombros, como uma segunda pele.

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E no meu radar particular pisca desde há umas horas uma luzi‑nha encarnada que conheço bem. É uma luzinha cada vez mais clara, que pisca intermitentemente no ecrã retangular da minha mente, encarnada sobre fundo branco, como os guardanapos que agora dobro.

Daquele lado da mesa, a mãe respira fundo e expira lentamente o ar pelo nariz. Deste lado, eu observo ‑a e sinto ‑a próxima. A mãe é parte de mim, daquilo que gosto e que não gosto de ter comigo. É muitas coisas. Por vezes, demasiadas, penso enquanto continuamos à mesa e, na rádio, alguém se ri. Falam de uvas passas, de anos anteriores e de coisas que não têm o mínimo interesse. Lugares comuns. Vazios. Ruído natalício.

Falta pouco.Devem estar prestes a chegar.

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DOIS

A mãe vira ‑se para trás, olha em direção à cozinha e semicerra os olhos. Há demasiadas luzes acesas e a fotofobia dela não per‑doa. Cerca de sessenta e quatro por cento de incapacidade: isto é a mãe — entre muitas outras coisas, apesar de, na altura, a organi‑zação de invisuais não ter aceitado a inscrição dela, alegando que a fotofobia não era uma doença passível de certificação e que apenas aceitavam pessoas com uma incapacidade visual igual ou superior a sessenta e cinco por cento. Quando saímos do consultório do médico que a avaliou (um tipo infame, com os dentes castanhos e uma corcunda do tamanho de um colina do País de Gales, que nem sequer se levantou para nos cumprimentar quando entrámos e que não observou a mãe em momento algum), fomos sentar ‑nos numa esplanada para beber qualquer coisa. Era agosto e estava um calor infernal. A mãe estava ausente, a saborear a sua cerveja com um prazer infantil. O asfalto ardia. O ar também.

— Bem... — disse ela por fim, com os bigodes cheios de espuma e um sorriso de felicidade que augurava uma dessas saídas que a Silvia não costuma encaixar bem e que o tio Eduardo, no seu afã de parecer jovem e moderno, qualifica como «brutal». — Vês como não estou assim tão mal?

Olhei para ela.— Não — retorqui, com o maxilar cerrado. — Na verdade, tens

tido um ano magnífico. Só te tiraram dois melanomas das costas, não vês um palmo à frente do nariz e vives num apartamento cama‑rário para maiores de sessenta e cinco, com uma cadela minúscula

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que come lenços de papel usados e uma vizinha chamada Euge‑nia que vende Tupperware de marcas estrangeiras e atira o lixo pela janela para dentro do contentor. Estás ex ‑ce ‑len ‑te, mãe. Estamos todos excelentes. Na verdade, somos a Família Excelente. Não sei porque é que não fomos convidados para participar no programa Informação Semanal, para o especial de verão.

Ela franziu ligeiramente o sobrolho e depois deu um grande gole na cerveja.

— Que exagerado, filho — retorquiu, abanando negativamente a cabeça. — Sentes raiva. Eu entendo. — E, revirando os olhos, acrescentou: — É uma corrente vibratória que sinto aqui — rema‑tou, espetando os indicadores no esterno.

Sim, sentia raiva. E muita. Contra o médico corcunda dos cegos, contra o calor infernal daquela canícula do meio ‑dia e contra mim próprio, por não ser capaz de encarar as coisas com o sentido de humor e a despreocupação da mãe. Devia voltar a fumar, pensei num arrebato de mau génio, enquanto a via molhar novamente os bigo‑des na espuma da cerveja com uma expressão de felicidade estam‑pada no rosto. Não consegui evitar dar ‑lhe uma nova chicotada:

— Tenho que admitir que, desde que sabes que só tens sessenta e quatro por cento de incapacidade, te tornaste muito observa‑dora, mãe.

— Ihihih. — O risinho dela converteu ‑se em tosse e a tosse espalhou um regueiro de espuma pela mesa fora. Quando quis pegar num guardanapo para limpar a mesa, a mão varreu tudo o que encontrou pelo caminho e a garrafa saltou disparada para o pas‑seio, de onde rolou até à berma. Dois miúdos cobertos de tatuagens que estavam sentados nas costas de um banco de jardim, a trocar qualquer coisas que não eram cromos e a ouvir uma música rap num desses telemóveis que se vendem nos «chineses», começaram a aplaudir.

— Que simpáticos — comentou a mãe, cumprimentando ‑os com a mão. Eles sorriram ‑lhe. Entre os dentes do da esquerda brilharam um par de coroas de ouro e um brilhante. O da direita meteu um charro na boca e deu uma passa que lhe deve ter calci‑nado metade do cérebro. — Vês como não estou assim tão mal?

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Não consegui deixar de sorrir. Nesse momento, tocou o telemó‑vel dela, uma espécie de mamarracho com ecrã fluorescente e teclas do tamanho de pratos que o tio Eduardo lhe tinha trazido de Hong Kong e do qual, de cada vez que alguém lhe ligava, saltava a voz de uma chinesa que, gritando a plenos pulmões, declamava uma página inteira do I Ching.

— Eduardo! — gritou a mãe, quando finalmente conseguiu atender e a chinesa parou de salmodiar com voz metálica. — Sim, sim, sim. Estou aqui com o Fer, numa esplanadinha. Sim. Não. Ah. Que bom. Não, não me deram o subsídio porque me falta um por cento. Não achas que é fantástico? É claro que isso já eu sabia. Estou ótima. Claro. Sim, a comemorar com uma cerveja. Ai, não fazes ideia de como eu estava nervosa, Eduardo. Consegues imaginar, se lhes dava para me meterem num desses quiosques, acompanhada de um cão, a vender raspadinhas? E, para mais, com o que eu adoro jogar na lotaria!

Quando desligou, guardou o telemóvel na bolsinha de pele cor‑‑de ‑rosa do Bob Esponja, e olhou para mim.

— Passa ‑se alguma coisa contigo?Quis dizer ‑lhe que sim, que se passava alguma coisa comigo,

que tínhamos ido até ali com aquele calor que derretia as palmei‑ras, a 17 de agosto, à procura de alguma coisa e que essa alguma coisa era um subsídio para que ela pudesse orientar ‑se melhor na vida; que a resposta ideal teria sido «sim, senhora, tem direito a receber o subsídio» e que a péssima resposta fora «não, senhora, não tem direito a receber o subsídio», mas vi ‑a tão entusiasmada e tão feliz, a proteger os olhos com a mão em pala para conseguir ver qualquer coisa, com aquela cara de quem nunca partiu um prato, que a minha resposta foi:

— Adoraria conseguir gostar de cerveja.Ela franziu ligeiramente os lábios e suspirou.— Humm.... É tudo uma questão de tentar, filho. — Tomou

um par de goles, enquanto do banco dos adolescentes nos chegava a nuvem tóxica do charro que me encheu os olhos de lágrimas e em que a mãe nem sequer reparou. — Eu, ao princípio, e estou a falar‑‑te de há muitos anos, também não gostava, não havia maneira.

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Dava ‑me um asco... e agora estás a ver. — Deu mais um grande trago e rematou com: — Ouve, talvez pudesses pedir à Ingrid que te fizesse reiki. É óbvio, se ela trabalha com alcoólicos e com ani‑mais, se calhar também trabalha com abstémios.

Engoli em seco. A Ingrid é a amiga sueca da mãe. Tem cin‑quenta anos e, para além de trabalhar num operador turístico de viagens de aventura nas ex‑repúblicas soviéticas, está apaixonada pelo Arundel, um miúdo vinte e cinco anos mais novo do que ela, com quem andou a encontrar ‑se apenas meia hora por dia durante uma semana — a Ingrid estava lesionada porque, numa sessão de xamanismo, o xamã bateu ‑lhe com uma espécie de maraca de ferro na anca e deslocou ‑lha ligeiramente, e o Arundel foi o fisio‑terapeuta dela. O rapaz em questão, que já nessa altura era casado e tinha um filho, regressou à Venezuela pouco tempo depois de terminar o mestrado em Barcelona e desde então que a Ingrid anda a poupar como uma possessa durante o ano inteiro para ir passar o verão a fazer voluntariado nalguma ONG de Caracas, porque depois de ter lido O segredo está convencida de que o destino a levará até ao Arundel e que ele estará à espera dela, embora o pobre coi‑tado ainda não o saiba. Além disso, a Ingrid é mestre de reiki para animais de quinta, mas não pratica muito porque, há uns meses, fez uma sessão com uma cria de cavalo árabe e o animal tentou montá ‑la; como ela resistiu, o bicho arrancou ‑lhe metade do cabelo.

— Mãe, a Ingrid é uma doida varrida que, um dia, vai aparecer desmembrada na fogueira de algum desses xamãs que a fustigam em público. Não me massacres.

A mãe levou a mão à cara e abanou lentamente a cabeça, num gesto de incredulidade.

— Achas? Pobrezinha, é tão boazinha... Sabes que não cobra nada aos pacientes?

— Não sabia, mas não me admira. Na verdade, o que me admira é que ela tenha pacientes.

— E, no outro dia, contou ‑me que um senhor lhe pediu se ela lhe podia fazer reiki nos... bem, nos tintins, porque o... aparelho dele não funcionava, e àquela grande tonta não lhe ocorreu mais nada a não ser dizer ‑lhe que sim.

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— E?— Bem, pôs ‑lhe as mãos em cima.— E?— Bem, parece que funcionou.— Mãe...— E ele fez a coisa em cima dela.— Mãe!— Ai, filho, só te estou a contar o que ela me disse.Enfim. A mãe não vê. Era disso que eu estava a falar. E menos

ainda quando há excesso de luz. E quando não vê — e, como agora, está sentada a uma mesa — é preciso estar sempre a vigiá ‑la, por‑que como mexe as mãos da maneira que mexe, costuma atirar tudo para o chão. E, às vezes, até se atira a ela própria.

— Queres que apague alguma das luzes, mãe?Ela pestaneja e mete uma uva passa na boca. Depois abana len‑

tamente a cabeça numa negativa silenciosa e, tapando os olhos com a mão em pala, a modos de viseira, diz:

— Cheira ‑me a que se passa alguma coisa com a tua irmã.Eu encolho ‑me ligeiramente. Quando a mãe começa com um

dos seus «cheira ‑me a que», sei que a coisa não vai acabar bem, porque há qualquer coisa que começa por não estar bem. Pergunto‑‑me se ela saberá mais do que diz e se o que quer é comparar informações. Não, não pode ser. A Silvia não pode ter ‑lhe contado nada. À mãe, não.

— Tenho duas irmãs, mãe — respondo ‑lhe, levantando ‑me para desligar o rádio e tentar retirar importância ao comentário dela. — De qual das duas é que estamos a falar?

— Da Emma, claro.Respiro fundo, mais tranquilo.— Pois, com a Emma passa ‑se sempre qualquer coisa.Ela nega com um movimento da cabeça e dá um estalinho com

a língua.— Que coisa, não achas? — diz, enquanto o seu olhar se perde

na janela. — Passa ‑se sempre qualquer coisa com a Emma, e com a Silvia nunca se passa nada — acrescenta. E tem razão. No seu mecanismo mental de estrutura peculiar cabem verdades que às

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vezes soam como bofetadas e que nos desarmam a todos. Foi sem‑pre assim. — E contigo... hummm... contigo já podia começar a passar ‑se qualquer coisita, não achas, meu amor? — remata, virando ‑se para mim.

Eu já sabia que ia acabar por me tocar a mim. E sei porque é que ela o diz. E ela também sabe.

Mas não insiste. Na rádio, alguém famoso canta uma canção de Natal e a entrevistadora conta uma anedota sobre uma noite de Fim de Ano que passou em Roma, que incluiu lentilhas e cue‑cas vermelhas e que não tem graça nenhuma. São mais ou menos nove horas.

— Gostava de gostar do Natal — digo eu, mudando de assunto. — Mesmo que fosse só um bocadinho. Como as outras pessoas. As pessoas normais, quero eu dizer.

Ela franze o sobrolho e inclina ligeiramente a cabeça. Depois desliga o rádio e o silêncio instala ‑se.

— Pois — diz. — Eu gosto muito. Do Natal, claro. — Exa‑mina com atenção uma uva passa, com a lupa que traz sempre consigo, e acrescenta, como se estivesse a falar consigo mesma: — Das pessoas normais, um pouco menos.

Rimo ‑nos, ela com esse riso tão contagioso que me encanta, e eu com o que tenho, que às vezes chega e outras não.

— Essa parece uma frase do tio Eduardo.— É porque é uma frase do tio Eduardo — diz ela com um

sorriso.No meu iPhone não param de soar toques sucessivos. Há quatro

tons diferentes que tocam intercaladamente e aos quais a mãe acha muita piada: o do Facebook, o do Twitter, o dos e ‑mails e também o dos WhatsApps, sobretudo os do grupo de paddle que, com o passar das semanas, foi aumentando e agora estão todos a tentar chegar a acordo para jogarem até trinta pessoas. Esta gente não descansa, nem sequer no Fim de Ano!

— Lembra ‑te de pôr taças de champanhe só para mim e para a Silvia, está bem? — pede a mãe.

— E para o tio Eduardo, não?Ela abana a cabeça numa negativa silenciosa.

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— Deixou de beber. — E, ao ver que estou prestes a fazer um comentário mordaz, levanta a mão e acrescenta: — Pelo menos, foi o que me disse.

Eu arqueio uma sobrancelha e ela encolhe os ombros.— Não me perguntes. Só sei que já não bebe. — E depois

acrescenta: — Já conheces o teu tio — e volta a encolher os ombros. — Algumas luzes e muitas sombras. Dentro do género dele, claro. — Conta mais um grupo de doze uvas passas e, quando termina, acrescenta: — Ah, e também me disse que tinha uma coisa para nos contar.

— Uma coisa para nos contar, tipo o quê?— Não sei, Fer — responde sem olhar para mim. — Do teu tio

pode esperar ‑se qualquer coisa. Até tenho medo.Algumas luzes e muitas sombras. Esta é uma expressão muito

nossa, muito dos do nosso sangue. Foi a avó Ester quem a cunhou já no fim — quando as cataratas fizeram o seu serviço e o fizeram bem feito, e ela se recusou terminantemente a ser operada. Achámos graça à frase e, a pouco e pouco, adotámo ‑la e fomo ‑la adaptando a diferentes situações, como quando a mãe nos perguntava como é que estávamos e não nos apetecia dar ‑lhe demasiados pormenores ou quando tínhamos de descrever alguém que tinha entrado na vida de algum dos três e a situação não era ainda completamente clara. Depois, como o passar do tempo, acabou por servir um pouco para tudo: a fruta do supermercado que não nos convence, um restaurante que não é mau de todo mas que também não é um delírio... essas coisas.

Isto de algumas luzes e muitas sombras leva ‑me sempre, infa‑livelmente, a pensar no pai. E o que penso não é bom. Não faz falta que o diga. Do pai já eu e a mãe falámos muito. Do que não é bom, quero dizer.

— Parece mentira que faça quase quatro anos que o pai já não está presente — digo em contrapartida. Não sei por que é que o digo. De repente vejo ‑me assim, com um copo em cada mão, e não me ocorre nada melhor para dizer. Mas arrependo ‑me imediata‑mente a seguir.

A mãe para de contar as uvas passas.

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— Ah, sim? — pergunta num tom de voz distraído. — Tantos? — Todos os anos, em algum dos almoços ou jantares que organi‑zamos no Natal, há sempre um de nós que menciona aquilo e todos os anos ela finge ficar surpreendida.

— Sim.— Céus. — Suspira. — Que coisa, não achas? — Mete as uvas

passas numa taça que depois pousa ao seu lado. — Sabes, disse‑ram na rádio que este foi o dezembro mais seco dos últimos trinta anos. E acho que, numa das emissoras, as doze badaladas vão ser dadas por uns bonecos animados desses para crianças. Os Simpson ou qualquer coisa do género. O que é que te parece?

A mãe é especialista em mudar de assunto quando a conversa não lhe interessa. A falta de vista e a maneira desastrada como se movimenta fisicamente pelo mundo contrastam com o excelente jogo de cintura com se escapa a tudo o que a incomoda. Sabe falar assim, perpendicularmente às intervenções dos restantes, como se estivesse a jogar Scrabble. Desde que vive sozinha neste apartamento com a cadelinha dela que quando não quer continuar com uma conversa cruza ‑a a meio com uma frase qualquer para a levar para outro rumo. Agora, percorrendo a sala de jantar com o olhar, diz num tom de voz alarmado: — Espero não me ter esquecido de lim‑par nada. Já sabes como fica a Lady Pano do Pó quando lhe dá para andar a passar o dedo por aí.

A Lady Pano do Pó é a Silvia. A alcunha é da minha autoria e só a mãe e eu é que a partilhamos, em segredo, desde que a mãe me contou que, todas as quintas ‑feiras, quando a Silvia vem almoçar aqui a casa dela, a primeira coisa que faz depois de lhe dar um par de beijos desses de bochecha contra bochecha, é ir a correr passar revista à cozinha e à casa de banho. Normalmente, termina com a Silvia de avental posto, luvas de borracha enfiadas nas mãos e pano do pó em riste. E com uma bronca. À mãe, claro. «Não podes viver assim, mãe», repete ‑lhe a Silvia uma e outra vez, de cigarro entre os dedos, tensa como a corda de um violino. «A porcaria vai acabar por te engolir».

A cena é sempre a mesma: a Silvia a mastigar raiva e nicotina e a mãe a comer um gelado ou um pacote de bolachas de choco‑late e a beber um copo de leite, sentada em frente do televisor,

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concentrada na telenovela do primeiro canal. Seja ela qual for. «Ai, querida», responde ‑lhe a mãe com um sorriso beatífico, que na realidade é um esgar de «estou ‑me nas tintas para isso», e voz de avozinha bondosa, «vá lá, não sejas tão intolerante com a tua mãe». E depois, quando vê que a Silvia está a olhar para ela como se quisesse fulminá ‑la, tenta apaziguar a situação com um dos seus «credo, um pouco de pó não faz mal a ninguém. Acalma ‑te e vem sentar ‑te aqui ao pé de mim a ver televisão. Vá, meu amor, anda cá», enquanto dá umas palmadinhas na almofada do sofá, sem nunca deixar de sorrir por um segundo que seja, como se estivesse a falar com uma mentecapta.

— Tens a certeza de que ela não vem com o Peter? — pergunto à mãe enquanto vou dispondo na mesa os talheres de sobremesa e os copos de vinho. O Peter é o marido da Silvia, para além de ser norueguês, engenheiro informático e tão calado que às vezes até mete medo. A Silvia e ele conheceram ‑se num simpósio de otimização de recursos ou qualquer coisa do género, há uns dez anos, quando ela já vivia há outros dez com o Sergio, um colega do emprego que a mãe e o pai adoravam e que ela deixou e trocou pelo Peter porque, como nos disse: «É preciso saber meter a mudança a tempo, mesmo que a direção seja a mesma e a velocidade tam‑bém». E foi uma frase que o tio Eduardo não tardou a aproveitar, traduzindo ‑a para a mãe de acordo com o seu próprio dicionário: «Ou seja, o norueguês gosta de se divertir. Não é como o outro». A mãe olhou para ele como se estivesse a ver passar um táxi no meio do deserto. Quando finalmente ela entendeu a mensagem, o tio Eduardo rematou o seu resumo com um comentário ainda mais infeliz: «Embora eu não o culpe, coitado. Diz ‑me tu que homem consegue ter pedalada para aturar uma fera como esta rapariga».

A questão é que desde que o Peter e a Silvia vivem juntos que ele passa sempre o Natal em Tromsø — «essa cidade em que os universitários recebem tratamento com raios UVA para não cometerem suicídio e em que os supermercados têm seguranças a trabalhar na secção de licores», como nos contou a Silvia quando regressou da primeira vez que lá passou férias com o Peter. Com ele e com a mãe e o irmão dele, o Adam, que, aparentemente, era

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ativista da Greenpeace no Mar do Norte, até a polícia o ter apa‑nhado com dois quilos de cocaína escondidos no porão do barco com que se dedicava a perseguir baleeiros de dia e a fornecer às tripulações neve artificial durante a noite no porto. A versão sempre otimista da mãe é que a Silvia e o Peter passam o Natal separados porque «são um casal muito progressista» e porque, como diz a Ingrid, «é sempre bom deixar os chacras arejarem e as auras respirarem». A versão do tio Eduardo é muito diferente: «O Peter é de Marte e a Silvia é do País do Nunca, e vá ‑se lá saber por que é que, depois de tantos anos, ainda não apresentou à família esse cromo da bola que, com aqueles olhos de bacalhau e aquele cabelo sujo, de certeza que tem alguma cabana escondida por aí, nas terras geladas, cheia de cadáveres de velhotes mumificados».

Quando lhe pergunto se tem a certeza de que o Peter não vem esta noite, a mãe olha para mim e assente.

— Absoluta — responde, agrupando as facas e os garfos de sobremesa. — A Silvia telefonou ‑me esta tarde e disse que vinha sozinha. O Peter só volta da Noruega no dia dois.

— É uma pena — comento. — Mais um Fim de Ano sem poder desfrutar da alegria e da simpatia do Peter. Não sei se conseguire‑mos sobreviver!

Ela olha para mim e sorri. Depois abana lentamente a cabeça.— Não sejas mau — diz. — O Peter é bom rapaz. — E, ao

ver a minha expressão pouco convencida, acrescenta: — E isso, estando a coisa como está, já é muito bom.

Quando ponho as taças de champanhe na mesa, ela olha para mim da outra ponta, voltando a proteger os olhos com a mão em pala.

— É melhor ires lavá ‑las primeiro — diz, dando um suspiro de resignação. — Se não, de certeza que a Lady Pano do Pó acaba por metê ‑las na máquina de lavar loiça. E, já que estás na cozinha, traz ‑me uma Coca ‑Cola Light do frigorífico, se faz favor.

Estou prestes a perguntar ‑lhe se quer que também dê uma lavagem aos talheres e aos copos, mas nesse momento o intercomu‑nicador toca e os cães correm para a porta, desatando a ladrar como possessos.

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— Aí a tens — exclama a mãe num tom de voz tenso. Depois diz: — A tua irmã já chegou — enquanto se dirige para o inter‑comunicador, abre a porta da rua e volta para a sala de jantar, deixando a porta de casa entreaberta. Depois de voltar a sentar ‑se à mesa, abre a lata de Coca ‑Cola, bebe um grande gole e fica a olhar para o quadro que está pendurado na parede da sala de estar, mesmo por cima do sofá de pele branco. É um retrato enorme da avó Ester, com uma moldura de madeira escura e sóbria. A avó está sentada com as costas muito direitas e usa um vestido de cerimónia verde com um ombro a descoberto. Posa diante de uma biblioteca de madeira e olha para a frente com um ar muito sério.

Os cães ladram, ansiosos por cumprimentar a Silvia, que já está a subir as escadas, e a mãe torna a olhar para mim e diz:

— Não sei porquê, mas ando há vários dias com a sensação de que esta noite vamos ter mais do que uma surpresa. — Depois fareja o ar como um sabujo e agita os dedos de ambas as mãos, extremamente excitada. — É como uma vibração... hummm... holística, filho. Tu... não sentes?

Ho... lística? penso.Consigo conter a gargalhada, mas não consigo morder a língua

a tempo.— Disseste exatamente a mesma coisa no ano passado, mãe,

e, se bem me lembro, tivemos um jantar que foi tudo menos holís‑tico, portanto não gozes. — Ela franze o nariz e solta um pequeno suspiro de aborrecimento, enquanto eu tomo mentalmente nota de que devo renovar os esforços para tentar que a Ingrid e a mãe deixem de encontrar ‑se tantas vezes. Depois ela volta a olhar para o retrato da mãe dela, levanta a lata de Coca ‑Cola em direção ao quadro e benze ‑se uma, duas, três vezes.

— Ai, mãe, menos mal que te foste a tempo e não tiveste de ver aquilo em que nos tornámos. Apesar de eu saber que tu nos enten‑des, não é? — diz então, baixando a voz, no momento exato em que a porta se abre e o Max salta para cima da Silvia, empurrando ‑a com os seus setenta e cinco quilos de grand danois carinhoso e baboso, lançando ‑a diretamente contra a parede e fazendo ‑a dar um grito agudo.

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