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18 UNIVERSIDADE FLUMINENSE - UFF FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO UMA MESTRA DA PALAVRA: Ética, memória, poética e (com)paixão na obra de Célia Linhares por ADRIANNE OGÊDA GUEDES RIO DE JANEIRO 2008

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UNIVERSIDADE FLUMINENSE - UFF FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

UMA MESTRA DA PALAVRA:

Ética, memória, poética e (com)paixão na obra de Célia Linhares

por ADRIANNE OGÊDA GUEDES

RIO DE JANEIRO 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

UMA MESTRA DA PALAVRA:

Ética, memória, poética ou (com)paixão na obra de Célia Linhares

por ADRIANNE OGÊDA GUEDES

Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutora em Educação da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da Profª Drª Iduina Mont’Alverne Chaves.

RIO DE JANEIRO 2008

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FOLHA DE APROVAÇÃO Adrianne Ogêda Guedes UMA MESTRA DA PALAVRA: Ética, memória, poética ou (com)paixão na obra de Célia Linhares Rio de Janeiro, 17 de abril de 2008. Aprovada por:

_________________________________ Iduina Mont’Alverne Chaves (UFF- Presidente)

_______________________________________ Maria Cecília Sanchez Teixeira (USP)

_______________________________________ Denice Bárbara Catani (USP)

_______________________________________ Valdelúcia Alves da Costa (UFF)

________________________________________

Waldeck Carneiro da Silva (UFF)

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Para minha mãe Eny, e Moacyr e Aguiléa Ogêda, meus avós maternos, (in memorian), raízes.

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Agradeço, A todos os depoentes que colaboraram fundamentalmente com esse trabalho: Ana Heckert, Andréia Reis, Balina Belo, Bruna Molissani, Clarice Nunes, Dagmar Canella, Dorothy Pritchard, Eliana Yunes, Estela Scheivar, Heloisa de Oliveira Santos Villela, Inês Bragança, Isabel Reis, Jésus de Alvarenga Bastos, Raimundo Palhano, Lúcia Fidalgo, Luís Sangenis, Maria de Jesus Gaspar Leite, Mônica Sally, Mônica Corbucci, Ney Luiz Teixeira de Almeida, Patrícia Porto, Ramofly Bicalho dos Santos, Rosane Marendino, Tereza Calomeni, Rose Clair Matela, Thereza Pflueger, Valdelúcia Alves da Costa e Waldeck Carneiro da Silva, As bolsistas Juliana Pessanha e Verônica Costa, pelos compartilhamentos no vasculhar de uma estrada comum a nossos interesses, A UFF pela bolsa CAPES que viabilizou essa pesquisa, A Isabela da secretaria do programa de doutorado da UFF, sempre solícita e atenciosa, A Selene Beviláqua Chaves Afonso, que com sua escuta sensível, arguta e atenta tem me ajudado nas travessias, Aos colegas que fazem parte do grupo de orientandos da professora Iduina Chaves: Bruna Molissani, Eduardo Menezes, Jacyana Guaraná, Patrícia Porto e Tânia Ninhary que foram parceiros muito importantes ao longo de meu doutorado, escutando as idéias quando elas ainda estavam nascendo, A José Linhares que com sua simpatia, boa vontade e erudição, me ajudou na pesquisa histórica desta tese, A Iduina Mont’Alverne Chaves, por tudo e muito mais. Pela parceria atenta e entusiasmada com que me brindou ao longo desse trabalho, fazendo dessa caminhada, uma experiência nada solitária, A Gabriela Paschoal e Luang Dachar, que com sensibilidade e criatividade deram seus toques de arte a esse trabalho, E por fim, a própria Célia Linhares, que se mostrou sempre disponível as minhas muitas solicitações, abrindo sua casa e sua vida com singular receptividade e afetuosidade. A Daniela, presença sempre amiga, com quem troquei impressões, sentimentos e dúvidas nesses quatro anos e que sempre tinha uma palavra cúmplice e bem vinda, A Maria José, pelo apoio e cuidado tão necessário nesses tempos corridos, A querida Márcia Ahrends que me ajudou a “colocar” o corpo no lugar pós tese, A minha família, Glauco, Miatã e Isabella por fazerem parte da minha vida e estarem por perto, fazendo tudo ter um sentido muito maior, Aos meus sogros Maria e Kleber, com quem sempre pude contar, Ao Glauco muito especialmente, pelo carinho com que me acolheu nos momentos mais difíceis e nos de partilha da alegria de criar. Também pelos jogos de frescobol que me ajudavam muitas vezes a me preocupar apenas em acertar a bola.

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SUMÁRIO

Resumo Abstract Introdução

Capítulo 1: Década de 60, os Inícios

1.1 - Movimento popular e políticas públicas: tensões e conquistas dos anos 60.

1.1.1 Movimento estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento da

Pedagogia Nova.

1.1.2 A reforma universitária no final da década

1.2 Entre o dia e a noite: Incertezas e confianças

1. 3 – Trilhas do pensamento pedagógico que se construía... 87

1.4 A voz dos parceiros: Dorothy Pritchard, Memórias de uma rádio-educadora.

1.5 O levedo está fermentando: marcando a trilha para continuar a caminhada.

Capítulo 2: Década de 70, medos e ousadias.

2.1 “Segurança e desenvolvimento(?!)”: a desnacionalização do Brasil 112

2.2 De mala e cuia: Chegada ao Rio de Janeiro

2.3 Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente. 131

2.4 Trilhas do pensamento pedagógico ... 137

2.4.1 artigo: “O poder das expectativas e o self” (1972) 142

2.4.2 Introdução à ontologia da criatividade (ensaio de filosofia educacional sob a

metodologia fenomenológica) – Tese de Livre docência. 1974 145

2.4.3 Ambigüidade, androgenia e crise – 1974.

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2.4.4 Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e

pesquisa em perspectiva. 1978 156

2.5.1 A voz dos parceiros: Balina Belo, memórias de uma professora de didática.

2.5.2 A voz dos parceiros: Jésus de Alvarenga Bastos,de aluno à colega, memórias de

muitas parcerias. 175

2.6 Pedra e semente: A Saga do herói, aventura de estar vivo. 190

Capítulo 3: Década de 80: Firmeza e esperança 196

3.1 Abertura política: O povo volta às ruas.

3.2 Mais firme na trilha. 204

3.3 Trilhas do pensamento pedagógico ... 213

3.3.1 Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina 216

3.3.2 A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/ Falklands (1982)

219

3.3.3 A educação e suas relações com as Identidades Culturais na América Latina

(1983). 221

3.3.4 La identidad cultural y el processo de educacion en la América Latina – tesis de

Doctorado em Ciências de la Educación, Universidad Nacional de Buenos Aires (1983).

3.3.5 A Interdisciplinaridade na Psicopedagogia (1986). 225

3.3.6 Os protagonistas da Pedagogia Escolar: Suas convergências e divergências

(1987)

3.3.7 A escola e seus profissionais: tradições e contradições (1988) 227

3.4 A voz dos parceiros: Heloisa de Oliveira Santos Villela, aprendendo a viver com

Célia, memórias de um encontro de fortalecimento e confiança 236

3.4 A voz dos parceiros: Waldeck memórias de um homem político 255

3.5 Mestra-mãe

Capítulo 4: de 90 aos dias atuais: início de um novo século, novos tempos?!

4.1 Novas idéias, velhas raízes.

4.2 Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços.

4 . 3 Parte I: Trilhas do pensamento, anos 90.

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4.3.1 A Crise do Político na Educação: a imposição da estratégia como

espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos na construção

ética. Tese para Concurso de Professor Titular de Política Educacional (1993)

292

4.3.2 Tecnologias inteligentes x juventude desempregada: desafios da história. (1995)

4.3.3 Sujeitos Históricos: seus lugares na Escola e na Formação de Professores. (1996)

4.3.4 Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na escola

pública. (1997) 301

4.3.5 Terremotos na pedagogia: perspectivas da formação de professores. 303

4.3.6 Escola Balaia – Um convite ao Debate para a Reinvenção de Caxias. (1999)

4.3.7 O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: A presença de Paulo Freire. (1997)

4.3.8 Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso? (1999) 321

4.3.9 Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos. 1998 321

4.4 Voz dos parceiros PARTE I: anos 90.

4.4.1 A voz dos parceiros: Clarice Nunes, uma parceria de confiança. 323

4.4.2 A voz dos parceiros: Valdelúcia, memórias de vôos em parceria: 329

4.4.3 A voz dos parceiros: Inês Bragança, memórias do convite para um piquenique-

pedagógico

4. 5. Parte II: Trilhas do pensamento, anos 2000.

4.5.1 Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?

Memórias e Projetos do Magistério no Brasil. (2001)

4.5.2 De uma cultura de paz e justiça social: movimentos instituintes em escolas

públicas como processos de formação docente.

4.5.3 Liberdade: uma busca nossa de cada dia. (2003). 350

4.5.4. Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire.

(2003)

4.5.5 Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços

contemporâneos. (2003).

4.5.6 Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem? (2004).

4.5.7 Movimentos instituintes na educação pública.

4. 6. Parte II: A Voz dos Parceiros, anos 2000. 461

4.6.1 A voz dos parceiros, anos 2000: Maria de Jesus Gaspar Leite, Sonhando com um

futuro para a escola: de mãos dadas com Célia.

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4.6.2 A voz dos parceiros: Ney Luiz, lembranças de um encontro que trouxe

mudanças.

4.6.3 A voz dos parceiros: Ramofly.

4.7 Outras vozes: depoimentos.

4.8 Tempo de tecelagem

FECHAMENTO/ ABERTURA: Uma mestra da palavra: ética, memória, poética e com-paixão OU (com)paixão na obra de Célia Linhares. Referências bibliográficas

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RESUMO IDENTIFICAÇÃO: GUEDES, Adrianne Ogêda: Uma mestra da palavra: Ética, memória, poética e (com)paixão na obra de Célia Linhares. Orientadora: Iduina Mont’Alverne Braun Chaves. UFF, Niterói-RJ, 1704/2008. Tese (Doutorado em Educação), 405 páginas. Campos de confluência: Políticas Públicas, Movimentos Instituintes e Educação. Linha de pesquisa: Formação de Profissionais da Educação. Projeto de pesquisa: Política de formação de professores: a cultura das licenciaturas na UFF.

Este trabalho situa-se no âmbito das pesquisas narrativas, focalizando as experiências dos sujeitos, na interface com o estudo dos contextos mais amplos em que transcorrem. Buscou-se compreender as marcas significativas do pensamento educacional/pedagógico da educadora maranhense Célia Linhares, cuja trajetória profissional teve como lócus principal a Universidade Federal Fluminense no período que vai de 1970 a 2000. A tese estuda a sua produção escrita com vistas a: apreender as idéias força, a forma como elas foram se construindo e se constituindo ao longo do tempo, a presença das questões que circulavam nos diferentes tempos históricos vividos por ela e a potencialidade de seu estilo de escrita. A escolha da obra/vida desta professora, se deu em virtude da significativa contribuição à educação brasileira, sobretudo no campo das políticas públicas para formação de professores, tema ligado ao campo de confluência Políticas Públicas, Movimentos Instituintes e Educação, do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Outro critério importante para este estudo foi a expressiva obra da referida professora, que nos permitiu articular seus textos, à sua história profissional e à sua pratica pedagógica. Os estudos da complexidade, que têm como patrono Edgar Morin, permeiam o método, as análises e as reflexões tecidas ao longo dessa tese. Entrevistas foram realizadas com a professora Célia Linhares e com pessoas com as quais trabalhou e conviveu em diferentes épocas de sua vida. Além disto, foi feito o estudo do pensamento pedagógico brasileiro desde a década de 60 e das relações entre a educação, o contexto mais amplo brasileiro e a inserção política e pedagógica da professora Célia Linhares, buscando evocar as interdependências entre educação, política, economia e demais aspectos do nosso contexto sócio-político e cultural. Este trabalho nos leva a concluir que a obra dessa educadora ressalta a necessidade de agirmos contra a barbárie, convocando a educação a constituir-se como promotora da solidariedade, do sentimento de pertença no exercício da escuta e do diálogo, no acolhimento e no estabelecimento de relações pautadas pelo amor e pelo afeto. Os princípios da emancipação pela autonomia dos sujeitos, da dignidade e da cidadania como aprendizagem escolar são nucleares no ideário pedagógico da professora Célia Linhares Mestra do Amor, que se deixa contaminar pela verdade do outro, não impondo a sua própria. Palavras-chave: Formação de professores, História da Educação e Pesquisa Narrativa.

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ABSTRACT This work lies in the scope of searches narratives, focusing on the experiences of the subject, at the interface with the study of broader contexts in which they occur. Thus, it was possible to understand through trajectories, methods and processes of life, involving personal choice, experiences and strategies of the teachers and students face the tensions of a time that never ceases to change. In summary, this study searches to understand the marks of thought significant educational/teaching of the professor Célia Linhares, especially through the study of their written production with a view to: seize the ‘ideas strength’, the way they were building and forming over time, the apresentation of the issues that circulated in different historical times lived by her and singularity of her style of writing. The choice of the work/life of this teacher, happened because of the significant contribution to the Brazilian education, especially in the field of public policy for training of teachers, a theme linked to the research group called ‘Public Policies, Movements Instituints and Education, linked to the Post Graduate Program in Education of the Universidade Federal Fluminense. Another important criterion for this study was the expressive writing works of the teacher in study, which allowed the thorough knowledge of their texts, its history and its professional pedagogical practice. The studies of the complexity, by Edgar Morin, permeate the method, analysis and reflections woven throughout this thesis. Interviews were conducted with with the professor Célia and with many of her peers, people with whom she worked and lived at different times of her was made a study of of the brazilian pedagogical thought since the decade of 60 and the relationships between education, the broader context of Brazil and the insertion of professor Celia Linhares in this movement of interdependence between education, politics, economy and other aspects of our the socio-political and cultural context. Her work emphasizes the need to act against barbarism, calling education to constitute itself as a promoter of solidarity, a sense of belonging to students, in the exercise of listening and dialogue and in the admission and the establishment of relations guided by love and affection. The principles of emancipation through autonomy of the subjects, dignity and citizenship as school learning are core ideas in the teaching of professor Célia Linhares, Master of Love, which makes contaminate the truth of the other, not imposing her own.

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INTRODUÇÃO

“Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida”. (Eduardo Galeano in As Palavras Andantes, 1994) “Não se pode pensar sem alicerces. Que é o imbecil, senão aquele que não dispõe da segurança proporcionada por um sólido cajado?” (Michel Mafessoli, 2004) “(...) É que a sociedade está voltada para o consumo. Não nos foi possível descobrir e vivenciar, com intensidade, que todo real é uma fantasia que ganhou corpo. Só pela fantasia acrescentamos. Somos sempre levados a acreditar que a fantasia é um exercício menor. Parece-me que estamos mais preocupados com a qualidade dos preços do que com a qualidade dos valores. Por muito tempo fomos induzidos à crença de que consumir é mais prazeroso que criar”. (Bartolomeu Campos de Queirós – Jornal da Unicamp, nº293 – 27 de junho a 7 de julho de 2000)

Alicerces. Introduzir um trabalho é, de certo modo, além de apresentá-lo, explicitar

sobre quais alicerces me sustento/sustentei para construir essa tese. Mostrar o “cajado” que

me acompanha no qual me apoio na aventura de escrever e me inscrever. É o momento de

expor mais um pouco – pois que o corpo da tese já o faz, e muito – a pesquisadora que sou

(ou que vou sendo): que questões me mobilizam e encorajam, como compreendo a ciência,

quais são as referências teóricas e metodológicas que me orientam e animam. Na esperança

que essa introdução não seja apenas um desfile protocolar de teorias com vistas a cumprir a

exigência formal de um trabalho acadêmico, prefiro pensar que vou contar uma história. A

história dessa tese e da experiência de autoria que vivi. A história de meus alicerces.

Eu sempre gostei de histórias. Sou filha de uma professora-atriz, Eny Ribeiro, que

abandonou o teatro em função de, entre outras questões, a não aceitação de sua família. Moça

de família simples e conservadora que via com olhos desconfiados o mundo do teatro, “não

era coisa de uma mulher decente”, pensavam. Eny então enterrou fotos, recortes de jornal e

lembranças no fundo dos armários escuros de seu closet. Os figurinos das muitas peças de que

participou, colocou dentro de um enorme baú de madeira e deixou-o dentro de um outro

armário escuro, o do meu quarto. Eu lembro de que eram escuros os armários, como me

pareciam escuras as memórias daquele sonho do teatro que me encantava tanto. A mim me

interessava desenterrar esses sonhos. Pouco se falava sobre esse tempo do teatro, pouco se

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falava de passagens do passado (ou pelo menos, das que eu gostaria de conhecer mais). Mas

havia brechas, em que escapavam cores no meio do breu. Uma delas, quando o baú se abria e

eu mergulhava dentro dele, com minha amiga de toda a vida, Verônica Gerchman, recriando

incontáveis mundos. Outra, quando minha mãe deixava sua veia teatral escoar nas histórias

que contava e nos trabalhos que desenvolveu como diretora de escolas públicas. Eram peças

de fantoches, festas culturais, danças, um mundo de eventos com os jovens dos subúrbios

cariocas. Eu assistia e participava de tudo aquilo, acompanhando o caminho que a arte

ocupava agora na vida de minha mãe. Uma professora-atriz, uma atriz-professora. A mim

interessa revirar baús e closets, pescando sonhos. E o fazia.

Nas histórias dramatizadas no meu quarto com Verônica, envoltas nas fantasias – as

vestidas e as criadas – mesmo sendo ainda uma criança, já conseguia perceber a força e

potência de saúde que advinham da criação. Verônica morava com sua mãe e pouco convivia

com o pai. Em nossas brincadeiras, na grande maioria das vezes, era ela quem encarnava os

personagens masculinos. Lembro que reconheci um dia, pela primeira vez, as conexões entre

o que vivíamos fora daquele quarto e nossos jogos dramáticos e narrativos. Certo dia,

encantada após ter andado no novo carro esporte de seu pai, após um dos raros fins de semana

passados com ele, Verônica se sentou na cama anunciando: “Esse é o meu novo carro

esporte! Vamos passear!”. Sua expressão era de contentamento. Naquele espaço da fantasia,

da história inventada, elaborávamos desejos, sonhos, faltas e o nosso próprio crescimento.

Brincamos assim durante muitos e muitos anos. Até o momento em que nossos sonhos não

couberam mais naquele quarto e naquele baú.

De meus tempos de menina, me lembro também de prestar muita atenção nas pessoas.

No jeito que falavam, como caminhavam, suas histórias e idiossincrasias. Eu poderia passar

muito tempo as observando e notava detalhes. Diante do espelho, era comum também, com

maquiagens, perucas e fantasias, encarnar muitos personagens diferentes. Brincava com

sotaques e expressões, inventava histórias, me transformando em gentes diferentes, vivendo

outras vidas. Ainda o faço em casa, não mais para o espelho mas para divertimento de minha

família.

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Na adolescência e nos tempos de universidade, me deliciava com a leitura dos textos

biográficos, autobiográficos e mesmo dos romances que traziam histórias de vidas e

trajetórias. “Devorava” autobiografias e biografias. Histórias como as de “O Diário de Anne

Frank1”, “Christiane F.2”, “Feliz Ano Velho3” de Marcelo Rubens Paiva, “Com licença eu

vou à luta4” de Eliane Maciel, Mahatma Gandhi5, Charles Chaplin6, Isadora Duncan7, Liv

Ulman8, “Olga9” de Fernando Morais, são algumas que sem esforço me vêm à lembrança e

que povoaram meu universo.

Posso lembrar detalhes que me marcaram em cada um desses livros. De Christiane F.

lembro da perplexidade em conhecer a trajetória de alguém que, com apenas 13 anos, vivia

num submundo assustador e que conseguiu, de alguma forma, sair dele. Tão distante dos 13

anos que vivi. De Eliane Maciel, tocava-me sua coragem de enfrentar uma família

conservadora em que se sentia oprimida e fazer escolhas dissonantes, para minhas crises com

as autoridades, típicas de adolescente, Eliane era uma cúmplice. De Mahatma Gandhi a

admiração por sua tenacidade em empreender uma luta pacífica. Com Charles Chaplin

surpreendi-me ao conhecer aspectos de sua origem, da mãe com problemas mentais, da

extrema pobreza, da capacidade de se recriar em meio a tanta miséria. Com Isadora Duncan a

liberdade de ser mulher, vivendo e fazendo escolhas, num tempo em que o destino das

mulheres era traçado com linhas duras e inflexíveis. De sua dança-livre – uma de minhas

paixões –, de pés descalços, vestimentas leves, explorando novas possibilidades de

movimento. Mobilizava-me as experiências daqueles personagens reais, seus sofrimentos,

encruzilhadas, abismos, esperanças, valores, amores. Através da leitura e, em particular, da

leitura de textos literários, “a partir do mundo transfigurado em arte”, que é a obra literária,

ia compreendendo melhor o mundo em que vivemos, o outro e a mim mesma (Ando, 2006).

1 Editora Record, 1990. 2 “Eu Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída” de Kai Hermann e Horst Rieck, Editora Bertrand, 1984. 3 Editora Brasiliense, 1982. 4 “Com licença eu vou à luta: é ilegal ser menor?”, de Eliane Maciel, Editora Codecri, 1983. 5 GANDHI, Mohandas K. Autobiografia: Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. São Paulo: Palas Atenas, 1999. 6 “Histórias da minha vida” de Charles Chaplin, Editora José Olympio, 1965. 7 “Fragmentos autobiográficos” de Isadora Duncan, Editora L, P&M, 1985. 8 “Mutações”, Liv Ullmann, Editora Círculo do Livro, SP/ 1985. 9 Editora Alfa-Omega, 1986.

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As histórias romanceadas também me interessavam (e ainda interessam), tais como a

trilogia10 de Noah Gordon: “O Físico”, “Xamã” e “A escolha da Doutora Cole”. Nela

conhecemos a saga de uma família desde o século XI, em que de gerações em gerações, nasce

um membro com especial dom de cura. É fascinante acompanhar o movimento histórico, a

própria invenção da medicina desde seus primórdios, as mudanças de valores, de cenários, de

ambientes culturais. Lembro também de “Todos os homens são mortais11” de Simone de

Beauvoir, que conta a história de um homem imortal, narrada pelo próprio personagem

ficcional em sua jornada sem fim numa vida que não tem a morte como horizonte.

Imortalidade que tem peso de “danação pura e simples” nas próprias palavras de Beauvoir,

pois que o impede de compreender a efemeridade da vida.

Já adulta outras tantas descobertas têm me alimentando e não raro, incluo textos de

gênero biográfico em meu trabalho como professora formadora de professores.

Algumas de minhas leituras parecem até algo estranhas, “vergonhosas”12 como nos

diz Lygia Bojunga em suas memórias de leitura, mas que revelam esse leitor que somos todos

nós, em busca se sentidos e humanidade, como que procurando cúmplices para o próprio ato

de viver. Reconheço, no entanto, que minhas escolhas foram movidas por essa curiosidade em

conhecer o outro em sua diferença. Ao aproximar-me desse estranho outro, debruço-me sobre

os sentidos que ele foi dando a sua vida, os porquês de suas escolhas, os encontros e

desencontros que viveu. Conheço um outro tempo que não vivi, partilho de sentimentos e

sentidos que não são os meus. Vou me encontrando a mim mesma nessas leituras, seja pela

absoluta ou relativa diferença, seja pelas semelhanças e convergências. Vale citar alguns

desses livros, como exercício mesmo de explicitar o que foi me afetando nessa aproximação

que os textos biográficos possibilitam.

Sem organizar de forma cronológica as leituras que desejo sublinhar, começo com

algumas das tais escolhas “embaraçosas” (como aquela revista de trivialidades que a gente,

10 Editora Rocco, 2000. 11 Editora Nova Fronteira, 1983. 12 Em suas memórias de leitura no livro “Livro” de Lygia Bojunga Nunes, a autora faz uma divertida menção a uma de suas “paixões literárias” de juventude, das quais não tem nenhum orgulho em declarar: “(...) Um dia eu chafurdei (a palavra é bem essa: cha-fur-dar) num caso meio vergonhoso da minha vida de leitora. É o tal caso que eu disse que ia contar o milagre, mas não ia dar o nome do santo. Não vou nem contar se o santo é brasileiro ou não. Também não interessa. O que interessa é que foi esse caso – bem negativo, por sinal – que me deu a fantástica dimensão dessa coisa que a gente é. A gente: nós todos aqui: leitores (BOJUNGA NUNES in Livro, um encontro com Lygia Bojunga, 1988: 17,18).

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por vergonha, lê escondido ou o misterioso autor de uma literatura sem novidade, por quem

Lygia se apaixonou). A biografia de Kelly Slater13, livro escolhido por minha filha quando

tinha quatorze anos, em 2007 nas férias de verão, é uma dessas. Slatter é um jovem campeão

de surf, que narra em sua biografia a infância e os vários episódios vividos em cima de uma

prancha, apresentando seus ídolos do surf, sua relação com a liberdade, o risco e buscando o

sentido que o moveu a conquistar tantos títulos nesse esporte. Passagens de uma vida passada

nas ondas, a recomendação de sua mãe é um emblema: “Quando pegávamos resfriado, em vez

de nos levar ao médico, minha mãe nos mandava surfar (SLATER, 2005,p.58)”. Li também o

livro de “Abílio Diniz14”, empresário brasileiro, que embora não seja exatamente uma

biografia, evoca vários aspectos pessoais. Diniz fala de sua rotina, de suas experiências

familiares, do que acredita que sejam os valores mais caros em sua vida. Aparentemente,

Abílio representa a absoluta diferença de escolhas e caminhos com relação aos meus, e isso

acende minha curiosidade. Instigava-me reconhecer no perfil daquele business-man, que

passou por experiências como a de um seqüestro, um interesse pelo movimento, pela

manutenção da saúde, aparentemente algo tão diferente da idéia pré-formada que eu tinha de

alguém que se dedicava integralmente a vida empresarial. Queria entender o sentido que

ocupava em sua vida, tão talhada pela idéia de “sucesso”, essa dimensão do corpo. Convite a

olhar para além das idéias pré-concebidas e reconhecer convergências na diferença.

Assim também foi ler a autobiografia de Danuza Leão15, num livro em que desfilam

personalidades do campo das artes em vários cenários cariocas, sobretudo numa Copacabana

glamorousa em sua época de ouro, ou seja, aparentemente a pura familiaridade, carioca e

copacabanense que sou. No entanto, quanta diferença reconheço na forma como Danuza

traçou sua vida, viveu a maternidade e os relacionamentos. Outros tempos também de um Rio

de Janeiro que não conheci em que a rua parecia franqueada ao povo, as grandes salas de

cinema ainda não tinham sido substituídas por prédios, A confeitaria Colombo reinava na

avenida principal do bairro. Tempo de boemia e encontro social (o tempo ainda “não era

dinheiro”). Uma viagem para a vida da elite cultural carioca das décadas de 60 e 70.

13 GAIA Editora, 2005. 14 “Caminhos e escolhas” de Abílio Diniz, Editora Elsevier, 2007. 15 “Quase tudo”, Companhia das Letras, 2005.

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Fechando o ciclo das estranhezas (serão mesmo estranhas?), o livro “A semente da vitória16”,

do preparador físico Nuno Cobra, surgiu no meu caminho, combinando com a fase de

corredora que vivi em 2006 (uma professora e doutoranda que, entre leituras, escritas e

planejamentos de aulas, buscava na corrida não perder de vista sua corporeidade). Afora o

tom prescritivo ao estilo da literatura de “auto-ajuda”, Cobra apresenta uma visão da

preparação física interessante que ressoou em mim. Ele faz uma crítica a idéia corrente de que

o bom treinamento é aquele que implica em dor muscular e leva a exaustão. Critica também

termos como “malhar o corpo”, tão em voga na atual cultura fitness, por associar a um

maltrato. O autor ressalta a necessidade de integrar às dimensões do corpo, mente e emoção.

Sugere atenção ao próprio movimento, cuidado consigo. Os depoimentos daqueles que

treinaram com ele, dão notícias de mudanças que não se limitaram apenas ao físico, mas que

envolveram a própria autoconfiança e uma relação mais integrada com suas próprias vidas. É

curioso conhecer caminhos tão distantes dos meus e reconhecer a sua legitimidade. A

semelhança na diferença, a diferença na semelhança.

Outras leituras fisgaram-me pela sintonia maior com a minha própria vida e também

pelas temáticas ligadas aos meus interesses mais caros. Bartolomeu Campos de Queirós é um

exemplo, em suas memórias de menino no livro “Por parte de Pai17”. Ele nos conta, dentre

outras preciosas histórias, como deixou de fazer xixi na cama. Seu avô, com quem morou

grande parte da infância, tinha o hábito de escrever nas paredes as coisas mais importantes

que aconteciam na pequena cidade mineira em que moravam. Parede viva, verdadeiro e

exótico patrimônio cultural da família. Certo dia, o avô ameaçou o menino Bartolomeu de

escrever na parede que ela ainda fazia xixi na cama. Ameaça que surtiu prontamente o efeito

desejado, revelando o estatuto de poder que a escrita ganhava na vida de Bartolomeu e a

referência fundamental daquele avô-historiador. “Eu mesmo só parei de urinar na cama

quando meu avô ameaçou escrever na parede. O medo me curou. Leitura era coisa séria e

escrever mais ainda. Escrever era não apagar nunca mais. O pior é que, depois de ler,

ninguém esquece, se for coisa de interesse.” (QUEIRÓS, 1995, p.14). O artigo memorialista

16 Editora SENAC, 2005. 17 Editora RHJ, 1995.

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de Vitória Líbia B. de Faria, “Memórias de leitura e Educação Infantil18”, traz também a

presença da memória de infância na construção do vínculo com a leitura. Nele, Vitória narra

as delícias de uma infância passada no interior em que os serões literários congregavam

leitores de todas as idades em volta de um pai contador de histórias, forjando a leitora voraz

que ela se tornaria. “Sempre havia os que não sabiam ler convencionalmente, outros que já

liam fluentemente e os que liam com certa dificuldade. Essa heterogeneidade não impedia

nenhum de nós de participar ativamente dos atos de leitura. O desejo de decifrar aquilo que

os livros diziam e de ser admitido no mundo da leitura misturava-se com a admiração pela

figura paterna” (Faria, 2004, p. 50). Conta também que ao entrar na escola e ter suas

experiências de leitura ignoradas, sentiu fundo o abismo entre escola e vida.

Quero ainda citar mais algumas leituras que me tocaram de modo especial. “Língua

Absolvida19” de Elias Canetti é uma delas. Livro autobiográfico traz as memórias de infância

de Canetti, vividas na Bulgária e em outros países da Europa. Narrativa riquíssima em que o

autor rememora miudezas de suas experiências com outras culturas, com a literatura, com

outras línguas e a sua convivência com seus pais e familiares. Dentre elas, tocou-me

especialmente o vínculo de Elias-menino com seu pai, que faleceu muito jovem, com 31 anos.

O pai presenteava-o constantemente com livros. Sempre que Elias finalizava a leitura de um,

prontamente outro já chegava para ocupar seu lugar. A discussão sobre as leituras era um

espaço de encontro e afeto entre pai e filho. Canetti lembra que não raras vezes dedicava-se a

ler os livros com avidez por saber que a noite viveria a delícia de poder contar a seu pai suas

impressões sobre o que lera. Troca que o alimentava e pela qual aguardava com entusiasmo.

“Comentava com meu pai cada um dos livros que lia. Às vezes ficava tão excitado, que ele

tinha que me acalmar. Mas nunca me disse, à maneira dos adultos, que os contos eram

mentira; sou-lhe especialmente grato por isso; talvez ainda hoje eu os considere verdadeiros.

(...) Os livros e as conversas com meu pai sobre eles se tornaram a coisa mais importante do

mundo, para mim.” (CANETTI, 2000, p. 50-51).

18 FARIA, Vitória Líbia Barreto de. “Memórias de leitura e educação infantil”. In: JUNQUEIRA, Renata (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. 19 Editora Companhia das Letras, 2000.

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“Retratos20” de Roseana Kligerman Murray é também uma leitura que me tocou

especialmente, essa mais pela capacidade da singeleza de seus textos, mesclados com

imagens, de capturar meu coração a cada leitura. São páginas que misturam fotos em preto e

branco de entes queridos ladeadas por pequenos textos traduzindo impressões e sentimentos

da autora por eles. “A avó em cabelos muito brancos, curtos e lisos. Pouco cabelo. A pele é

toda enrugada. Parece que já está virando árvore. O corpo também é pequeno. Ela toda

parece um pássaro. (...) Os olhos pousados em coisas distantes, invisíveis navios, alguma

terra do lado de lá?” (MURRAY, 1998). Para mim, que tenho tanta curiosidade em

compreender como é mesmo então que se formam esses laços de prazer e sentido com a

cultura, especialmente com a leitura e a escrita, reafirmei com Vitória Líbia e os serões

literários, com Bartolomeu de Queirós e as paredes de seu avô, com Elias Canetti e as

conversas com seu pai e com os delicados poemas amorosos de Roseana Murray, dentre

outros, as interconexões entre conhecimento, literatura e vínculo afetivo. Pista importante

para pensar a formação do leitor e do escritor21, tema de meu profundo interesse.

Sem me demorar nos detalhes, que de tão gostosos me convidam a entrega, não posso

deixar de mencionar outros livros e autores, que por motivos semelhantes e outros mais,

muito me agradaram. “Como e por que ler os clássicos22” de Ana Maria Machado,

“Infância23” de Graciliano Ramos, “Felicidade Clandestina24” de Clarice Lispector, “Quase

20 Retratos, editora Minguilim, 1998. 21 A esse respeito vale citar o livro “Teia de autores” de Pedro Benjamin e Tânia Dauster, da editora Autêntica, 2001, fruto de pesquisa sobre a formação do escritor. Os autores entrevistaram vários escritores de literatura perguntando sobre as influências que consideravam mais marcantes para que se tornassem leitores e escritores. Impressiona saber da quase inexistente referência à escola como uma influência. De modo geral, surge sempre a figura de um familiar ou algum amigo especial. Sobre a formação do leitor produzi em co-autoria com Adriana Hoffman o artigo “Formação de professores leitores em um projeto de extensão universitária no curso de Pedagogia: um relato de experiência”, nele discutimos a formação de professores numa perspectiva cultural, defendendo que para ser um formador de leitores – uma das tarefas do docente – há que se amar a literatura, como ensinar a gostar daquilo que não se gosta? Esse artigo foi publicado na Revista Educere et Educare vol. 2 N. 3 jan./jun. 2007. 22 Ana Maria Machado defende que os clássicos são na verdade os livros de que não nos esquecemos. Comenta vários de seus clássicos e discute as relações entre formação de leitores e a escolha literária adequada à infância. Editora Objetiva, 2002. 23 Nesse livro, Graciliano narra experiências de uma infância muito peculiar. Nela a leitura é introduzida com dureza, parte de uma educação marcada por extrema rigidez. Editora Record, 1995. 24 Clarice é Clarice, “irresumível” (se tal palavra existisse...). É uma experiência sensorial ler Clarice. Nesse livro, destaco “Menino a bico de pena”, que narra com delicadeza e sensibilidade o mundo de experiências de um menino-bebê. Esse já tive a oportunidade de ler em cursos de professores de creche e rendeu boas discussões sobre esse universo tão misterioso e interessante que é o homem no começo de sua vida. Editora Rocco, 2000.

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memória25” de Carlos Heitor Cony, “Meus demônios26” de Edgar Morin. Todos os livros que,

de diversas formas, resgatavam memórias de diferentes períodos da vida, ensinando-me a

viver27.

Preciso ainda citar uma paixão antiga, que se renova sempre. A literatura para

crianças. Como Ana Maria Machado, Ricardo de Azevedo e Bartolomeu Campos de

Queirós28, de certo modo também estranho essa categoria “literatura infantil”, por isso utilizo

a nomenclatura literatura para crianças. O complemento “infantil” pode fazer pensar numa

literatura menor o que, efetivamente, ela não o é. Mas ainda assim, acredito que há uma

especificidade temática e uma forma estilística que é afeita ao universo da infância e que

muitos adultos - sorte a deles -, conseguem encontrar nessa forma um sentido especial, se

tornando leitores desse tipo de literatura. Posso dizer que sou um desses adultos de sorte.

Dentre esse universo da produção literária para crianças, que tem crescido cada vez

mais, quero destacar a que para mim é a escritora maior, a premiadíssima Lygia Bojunga

Nunes29. Lygia é a primeira escritora brasileira que traz em seu universo literário o mundo

interno da criança, encontrando uma forma toda própria de traduzir os sentimentos infantis.

Na literatura de Lygia, a infância não é mitificada, não é idealizada como momento de puro

encantamento, de alegria e felicidade. Ela traz uma infância que sofre, que tem solidão, que

vive perdas, que lida com a morte, com a separação, com o medo. Raquel, a menina da Bolsa

Amarela, foi um dos primeiros personagens que conheci, ela revela bem essa criança de

Lygia:

“Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu

25 Cony as voltas com um pacote que lhe chega de seu falecido pai, revê histórias e sentimentos relativos a seu pai. Um convite a emoção. Editora Companhia das Letras, 1994. 26 Editora Bertrand Brasil, 1997. Morin conta aqui os caminhos que trilhou durante um bom período de sua vida intelectual, relatando o vínculo com o conhecimento e os estudos que desenvolveu. 27 Não resisti a referência. “Harold e Maude: Ensina-me a viver” livro de Colin Higgins (editora Record, 1986) foi uma leitura que marcou meu tempo de adolescente. A história de amor entre um conturbado e lúgubre jovem, obcecado pela morte e uma vivaz mulher septuagenária realçava a capacidade de se encantar e se usufruir da vida. Essa história rendeu uma bela versão cinematográfica dirigida por Hal Ashby em 1972 e uma montagem teatral brasileira em 1982 com a dama do teatro Henriette Morrineau e o então desconhecido Diogo Vilela. Eu vi o filme e a peça! 28 Participei dos dois penúltimos Congressos de Leitura (COLE) em 2003 e 2005 e lá tive a oportunidade de ouvir Ricardo Azevedo e suas impressões sobre a literatura para crianças. Ana Maria Machado e Bartolomeu também abordam a questão da especificidade da literatura infantil em diversos artigos que li em revistas especializadas. 29 Há pouco mais de dois anos Lygia criou a editora Casa Lygia Bojunga para editar exclusivamente seus livros, passando a ter o controle maior de sua própria obra. O site www.casalygiabojunga.com.br merece uma visita, pois aborda todos os seus livros, projetos, sonhos e prêmios.

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deixei vazio, esperando uma coisa bem magra para esconder lá dentro. (...) Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar). Pronto! a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas.” (A Bolsa Amarela, editora Casa Lygia Bojunga, 2006)

Seus livros sempre me causaram um impacto profundo. Em outubro de 2006, em uma

das poucas oportunidades em que Lygia, tímida para falar em público, recebeu em uma

biblioteca um grupo de crianças para conversar sobre um de seus livros, eu estava lá. Vivemos

um momento inesquecível. Eu, do alto de meus mais de trinta anos, estava a sua frente,

esperando calmamente numa fila repleta de crianças a minha vez de receber um autógrafo.

Quando enfim, me vi diante dela, os olhos marejaram e mostrei a minha coleção completa de

suas obras, muitas já amarelecidas com o tempo. Confessei que sempre que encontrava seus

livros em sebos, resgatava-os. Impossível deixá-los lá na poeira, sem ninguém para lê-los.

Não sei que mágica se deu, mas o dom da palavra se fez e consegui dizer a Lygia o que ela

significava para mim, como eu tinha vivido tão perto daqueles personagens todos que ela

havia criado, como os sentia meus amigos. Pensei... bom, ou ela vai me achar uma daquelas

clássicas “fãs loucas” de filme ou eu consegui mostrar a ela um pouco da força que sua obra

tem de alcançar o outro. Lygia, também com os olhos embaçados me disse: “É tão estranho

conhecer alguém que conhece tanto a gente...”, com um sorriso e sem muitas palavras

faladas, usou as escritas, terreno onde transita tão bem e fez uma dedicatória especial em cada

um dos mais de 8 livros que levei. Eis uma delas: “Adrianne, fiquei emocionada de me saber

tão presente na tua vida. Gostaria muito de continuar freqüentando teus momentos de

quietude”. Que delícia! Lygia sempre foi para mim livro-casa, para me referir ao belo texto

“Livro” em que ela aborda sua relação com os livros e as palavras:

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras. Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir

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novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação. Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava. Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava. Mas, como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar. (Livro, um encontro com Lygia Bojunga Nunes, 1988)

Bom, estarei eu já me perdendo em meio as histórias? Creio que não. Pois não é justo

de histórias que quero falar?! Das histórias que nos formam, que nos interpenetram e dos

rumos que tomamos em nossas trajetórias pessoais?! Afinal, não é a narrativa a arte

primordial dos seres humanos e, para sermos, não temos que nos narrar?! (MONTERO,

2004)

Perdas, desafios, amores, rompimentos, acontecimentos... todo o caldo de

experiências que eram retratadas nesses livros que mencionei me motivavam e instigavam. O

que me ensinaram/ensinam? Sempre me instigou o que temos de parecido, nós humanos,

todos, o que aprendemos e trocamos com nossas semelhanças; e o que temos de diferente,

singular, cujo sentido nos parece tão pessoal, tão único, tão nosso.

Talvez essa tenha sido a força motriz que sempre me fez olhar com tanta curiosidade

os trajetos do outro, descritos em livros, filmes, músicas e outras narrativas. Talvez tenha sido

esse o sentido, agora me referindo especialmente aos caminhos da produção dessa tese, que

me mantinha escutando com vivo interesse durante tantas horas as histórias de meus

entrevistados, num tempo sem tempo, sem relógio, sem pressa.

Singularidades, coletividades marcam nossas trajetórias. As influências que nos

formam não são matemáticas, isto é, não basta que se junte uma família assim, com umas

tantas experiências assadas que teremos, certamente, um sujeito dessa ou daquela forma. Há

mistérios nessa composição que instigam a curiosidade. Talvez só possamos falar desse

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mistério, que é como nos humanizamos, se contarmos com a idéia da complexidade30

(MORIN) para nos acompanhar nessa empreitada. Se integrarmos a subjetividade como

substrato para nossas interpretações, se tomarmos o erro, a margem de dúvida, o inesperado

como companheiros de trabalho. A dimensão objetiva não fica de fora, importante lembrar.

Ela nos traz dimensões mais amplas, que dizem respeito às pressões de ordem social, política,

econômica e cultural que se mesclam no que nos compõe. Mas essa não é uma leitura

suficiente. Não dá conta. Não esgota o mistério (que não é esgotável). É então esse olhar que

admite a complexidade do real, a dimensão subjetiva como parte dos fenômenos, um de meus

alicerces. Nesse sentido, introduz-se aqui uma concepção de ciência que incorpora o

complexo, o subjetivo, o erro, o imponderável. Leva-nos a um entendimento do mundo que,

mais do que controlado, precisa ser compreendido, contemplado, como nos diz Santos:

“A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado. (...) A criação científica no paradigma emergente assume-se como próxima da criação literária ou artística... “ (Santos, 1987)

Nesse ponto, outras histórias são convidadas a entrar. As histórias de como alguns dos

estudos fundamentais para essa tese entraram na minha vida, ou melhor, como nos

encontramos. Estudos como os da complexidade, da memória, da mestria na formação do

professor, da pesquisa (auto)biográfica e narrativa, dentre outros. Penso que nossa relação

30 Apesar de pé de página, o conceito de complexidade é central em minha tese. Escolho, nesse momento, colocá-lo aqui apenas para não romper o fluxo da narrativa. Mais a frente ainda o retomarei com maior destaque. O conceito de complexidade com o qual trabalho referencia-se na obra de Edgar Morin. O debate sobre a complexidade é algo razoavelmente recente no cenário da filosofia e das ciências, traz uma dimensão de ciência que se contrapõe a hegemonia que a racionalidade vem ocupando desde a modernidade. Morin traz o sentido de abertura que tal conceito evoca, colocando a luz sobre outros aspectos, esquecidos pela racionalidade clássica, sem com isso desqualificá-la. Aponta para a insuficiência da lógica racional e abre novas perspectivas que nos permitem ampliar o entendimento dos fenômenos humanos. A complexidade põe em cheque os “pilares da certeza” que fundamentam o pensamento científico clássico, de cujos pressupostos decorre o pensamento simplificador. Tal pensamento só concebe objetos simples que obedecem a leis gerais, que produz um saber anônimo, que não inclui o contexto e todo o complexo, ignora o singular, o concreto, a existência, o sujeito, a afetividade, os desejos, as finalidades, a consciência. O ser humano, a vida, os cosmos são submetidos às leis deterministas triviais, em que é possível prever os efeitos de qualquer causa conhecida. O conhecimento é controlável, esquadrinhável, obediente às regras e leis ordenadas. É nas brechas da crise do pensamento simplificador que a complexidade se funda. Segundo Morin, a complexidade é antes de tudo um “esforço para conceber o desafio inevitável que o real lança ao nosso espírito”. Ela pretende não se constituir como alternativa a perspectiva simplificadora do conhecimento, mas sim, compreender o real numa dimensão mais ampliada, reconhecendo nele aquilo que não se comporta nas definições simplificadoras. (MORIN, 1982, GUEDES, 2001)

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com os conceitos e teorias passam por essa dimensão do encontro. É Lopes31 quem me ajuda

a melhor traduzir essa idéia:

“Achei anotado em mim – quando? – em um livro de Nietzche: o que nos faz aproximar de um autor ou de autores, e não aproximar de outro, não está nele, mas em nós mesmos. Essa aproximação, porém, tem um lado perverso. É alguma coisa em latência e inominável que nos aproxima. Ao chegarmos nele, encontramos a expressão daquilo que se queria dizer, mas nesse ponto já não podemos mais dizer, pois esse outro já disse, ele já o fez. (...) Achamos em nós mesmos a verdade do que ouvimos e que não sabíamos que lá estava, de sorte que somos levados a amar aquele que no-la fez ouvir; pois ele não nos mostrou seus bens, mas os nossos” (LOPES, 2003, p.11) “(...) Os livros e autores são mais do que ferramentas de trabalho. Parecem-se com incenso, que perfuma e perfumando faz companhia. (...) Bourdieu diz que “Quem procura acha”. Mais afeita ao Tao, diria que não procuro. Acho. (LOPES, op.cit, p. 11)

Assim foi com os livros que citei e com os estudos que subsidiaram essa tese. Meus

alicerces. Referências que perfumaram e fizeram companhia, assim como Lopes recebi

transfusão de signos, de palavras, de frases...

A, já mencionada, teoria da complexidade foi um deles. Edgar Morin e os estudos da

complexidade entraram em minha vida em 1999 aproximadamente, quando uma de minhas

professoras do curso de pós-graduação que fiz na UNRIO32, apresentou-nos o autor. Na

época, soube que Morin era estudado por alguns professores do Programa de Pós-graduação

em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fui então participar de um

encontro voltado aos candidatos para a pós-graduação daquele ano. Assistindo a apresentação

das linhas de pesquisa do referido programa, escutei a professora Iduina Mont’Alverne

Chaves apresentar seu trabalho e mencionar Morin com uma referência importante para ela.

Após trocarmos algumas palavras, decidi naquele momento me candidatar ao Mestrado sob

sua orientação. Ai começou uma intensa história de criação entre nós, Iduina e eu, permeada

por troca, afeto, instigação, alegria. E também por necessários momentos de desencontro,

31 A introdução de seu livro “Da sagrada missão pedagógica”foi uma leitura que me entusiasmou dado o seu tom literário e narrativo, quebrando com os cânones acadêmicos tradicionais. Foi um incentivo a firmar-me na convicção que é possível escrever de forma narrativa sem perder o rigor científico. 32 Formação em Docentes do Nível superior.

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estranhamento e dúvida. Mas sempre, sempre sustentados por um amor, confiança e

admiração mútuos.

Foi com Iduina a meu lado que mergulhei nos estudos da complexidade. Para mim,

eles abriam a possibilidade de compreender a pesquisa científica numa dimensão ampliada

que critica a razão produtivista e a racionalização modernas que lidam com categorias

redutoras da totalidade. O paradigma da complexidade busca a integração entre o diverso,

compreende o saber como unificado, apontando para a perspectiva de comunicação e

imbricação entre os diversos saberes. Valoriza aspectos como a singularidade, o entorno, o

cotidiano, o vivido, o pessoal, a ambigüidade, dentre outros.

Há uma busca, na perspectiva da complexidade, de restaurar a totalidade do sujeito,

compreendendo as relações entre os diferentes aspectos que, por vezes, são ambíguos,

concorrentes, contraditórios na vida humana. A criatividade é valorizada, a subjetividade, a

iniciativa, o micro, a complementaridade, a convergência. Desta forma, mais do que tentar

superar os elementos que fazem parte da complexidade da vida e do real (como no paradigma

clássico), esse paradigma busca compreender a vida em sua inteireza. Numa visão holística,

considera o imaginário e a utopia como fatores instituintes na sociedade, recusando uma

ordem que aniquila a paixão, o desejo, o olhar, a escuta. Se essas categorias não são novas no

campo educacional, apenas recentemente tem sido lidas e analisadas com maior abertura e

simpatia (MORIN, 1998,1999, 2000; MONT’ALVERNE CHAVES, 1998, 1999, 2000;

GUEDES, 2000, 2002).

O pensamento complexo contribui para pensar a complexidade como um dado da

realidade, o real em seu processo permanente de transformação, de criação e recriação,

construção e reconstrução, na contramão de uma visão dualista, que divide a realidade entre

verdade/mentira, certo/errado, bom/mau.

Esse tem sido um alicerce fundamental em minhas pesquisas desde o mestrado. Um

belo encontro em que ressoou forte a compreensão de uma ciência que valoriza o singular, o

micro, a emoção, a arte. Que não parcelariza a realidade para compreendê-la, mas reconhece a

necessidade de considerar os fenômenos em conjunto.

A escolha pelo tema de minha pesquisa de doutorado nasceu das questões evocadas

em minha dissertação de mestrado, "Cultura e ideário pedagógico do Curso de Pedagogia

UFF/ Niterói", orientada pela professora Iduina Mont’Alverne Chaves e concluída em 2002.

Pesquisando a formação de professores do curso de Pedagogia da referida universidade,

entrevistei muitos estudantes sobre suas impressões a respeito da Formação que viviam na

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UFF, tanto os que estavam cursando os primeiros períodos, quanto os que estavam concluindo

ou próximos de concluir o curso.

Um dos aspectos que me chamou atenção nos depoimentos dos estudantes tinha a ver

com o papel do mestre em suas trajetórias. Alguns faziam referência a contribuição especial

de um ou outro professor que havia despertado especial interesse por algum assunto ou

fortalecido sua autoconfiança. Esse é na verdade um assunto que sempre mobilizou minha

curiosidade e interesse e que se acirrou naquele momento. O que faz com que alguns

professores marquem de forma tão especial e outros não? Como nos tornamos “bons

professores”? E o que é, afinal, ser um bom professor? Filmes33, livros34, histórias sobre

mestres que impactavam seus estudantes sempre contaram com minha audiência interessada e

sensível.

Nesse sentido, mais recentemente, a leitura de “O mestre ignorante, cinco lições sobre

a emancipação intelectual” de Jacques Rancière e “Professores para quê? Para uma Pedagogia

33 “Escritores da Liberdade” dirigido por Richard La Gravenese e lançado em 2007 é um desses filmes que me tocaram de modo especial. Baseado em fatos reais, narra a trajetória de uma professora de Inglês que vive sua primeira experiência como docente numa escola dos subúrbios americanos. A ela é destinada uma turma de “integração”, que bem as moldes brasileiros, de integrada só tem mesmo o nome. A hostilidade entre os diferentes grupos é explícita. A professora encontra um ponto de acesso aos seus alunos, dando voz à eles que contando suas próprias histórias, e ouvindo as dos outros, descobrem o poder da tolerância e reconhecem-se em meio às supostas diferenças. Outros como “A sociedade dos poetas mortos”de Peter Weil, (EUA, 1989), “Ao mestre com carinho” de James Clawel (EUA, 1967), “A escola da vida” de Willian Dear (EUA, 2005), “Quando tudo começa” de Bartrand Tavernier (França, 1999), “Nenhum a menos” de Zhang Yimou (China, 1998), “O carteiro e o poeta” dirigido por Michael Radford em 1994 e “Música do Coração” de Wes Craven (1999) são alguns de meus cult movies queridos que narram experiências de professores. Muitos deles utilizei em meus cursos de graduação, pós-graduação e formação continuada, sempre rendendo excelentes debates e reflexões. 34 Muitos desses livros conheci por ocasião de minha pós-graduação na UNIRIO,mestrado e doutorado na UFF. Para citar apenas alguns dos livros que abordam o papel do professor e pesquisam sua prática que tive a oportunidade de conhecer melhor, destaco “O bom professor e sua prática” de Maria Isabel Cunha (Papirus, 1989) onde a autora procura desvendar o que seria o “bom professor”, investigando seu cotidiano, sua prática e metodologia. “Cartografias do trabalho docente” organizado por Corinta Geraldi, Dario Fiorentini e Elisabete Pereira (Mercado das Letras, 1998) apresenta uma coletânea de artigos que discutem a prática dos professores, tomando-a como objeto de pesquisa. O livro “Da figura do Mestre” de Marlene Dozol (editora da Universidade de São Paulo, 2003) em que a autora explora as categorias filosóficas valiosas à compreensão do tema, selecionando autoridade, formação e sedução como formas de ver a interação entre mestre e aluno. “Ofício de Mestre” de Miguel Arroyo (editora Vozes, 2000) em que o autor resgata imagens sobre o ofício do mestre. “O lugar social do professor” (ed. Quartet, 1998) e “O professor invisível: imaginário, trabalho docente e vocação” (Ed. Quartet, 2003) ambos de Rodolfo Pereira. O primeiro pesquisa a desvalorização atual do magistério, buscando suas origens e o segundo resgata a idéia de vocação, buscando confrontar o preconceito que ela provoca. “Meu professor inesquecível” organizado por Fanny Abramovich (ed. Gente, 1997) que traz depoimentos de onze escritores contemporâneos sobre seus professores inesquecíveis. “Da sagrada missão pedagógica”, de Eliane Marta Teixeira Lopes (ed. São Francisco, 2003), resultado de uma extensa pesquisa da autora em diversos materiais (livros, jornais, panfletos) com vistas a compreender como a idéia da missão de mestre tem sido transmitida e, por fim, ‘O mestre ignorante, cinco lições sobre a emancipação intelectual” de Jacques Ranciére (ed. Autêntica, 2005) que aborda a tarefa singular da emancipação intelectual como um dos desafios da mestria e “Professores para quê?” de Georges Gusdorf da e editora Martins Fontes, 2003. Autores como Tardiff, Nóvoa, Catani, Gusdorf, dentre outros, exploram também aspectos relativos ao ser professor e a sua prática e são preciosas referências para mim. Leituras que me instigam.

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da pedagogia” de Georges Gusdorf, tem sido referências instigantes para pensar o papel do

mestre e os aspectos que conferem mestria a alguém. Mobiliza-me a idéia central das obras

desses autores que indica a promoção da autonomia intelectual do “discípulo” como uma das

tarefas do verdadeiro mestre.

Estudar no doutorado a trajetória de uma professora nos pareceu, a mim e a minha

orientadora, um caminho rico para explorar, dentre outras questões, esse papel do mestre.

Inicialmente, essa era uma questão nuclear. Escolhemos então para nosso estudo a obra/vida

da professora Célia Linhares, pela significativa contribuição que tem dado à educação

brasileira, sobretudo no campo das políticas públicas para formação de professores, tema

ligado ao campo de confluência ao qual pertencemos na UFF (Políticas Públicas, Movimentos

Instituintes e Educação). Era também um critério importante para a escolha da professora a

ser pesquisada, que ela tivesse uma expressiva obra escrita. Queríamos trabalhar com a

possibilidade de pesquisarmos seus textos, sua história profissional e sua prática pedagógica,

utilizando a pesquisa narrativa e entrevistas semi-estruturadas.

Este estudo buscou, assim, compreender as marcas significativas do pensamento

educacional/pedagógico de Célia Linhares, especialmente, através do estudo de sua produção

escrita com vistas a apreender as idéias força, a forma como elas foram se construindo e se

constituindo ao longo do tempo, a presença das questões que circulavam nos diferentes

tempos históricos vividos por ela, e a potencialidade de seu estilo de escrita. Selecionamos os

textos produzidos desde a década de 60 até os dias de hoje, entrevistas com Célia Linhares e

algumas pessoas que fizeram parte de sua trajetória, seus pares, como chamamos. Esses

materiais foram fontes preciosas para apreensão de seu ideário pedagógico.

Em 2006 fiz o primeiro grupo de entrevistas mais curtas com orientandos e ex-

orientandos de Célia e duas entrevistas longas com ela própria. Estava então preparando

minha qualificação e esse foi um primeiro material de pesquisa de campo que reuni.

Posteriormente, em 2007, realizei mais duas entrevistas semi-estruturadas longas com Célia

Linhares, José Linhares e nove com outros de seus parceiros. Além dessas entrevistas,

mantive contato freqüente com Célia Linhares via e-mail, e com alguns dos entrevistados,

expondo dúvidas e solicitando a eles que esclarecessem alguns aspectos de seu pensamento

e/ou de suas experiências que eu necessitava compreender melhor. Foi também intenso o

envio de materiais para leitura por parte de Célia, enriquecendo a investigação bibliográfica.

Ao iniciar a pesquisa, lembro que outras questões de estudo e interesse foram

surgindo e o papel do mestre, que era central, foi se integrando a outros aspectos que se

manifestaram com força evidente. Uma temática que surgiu, em função dos elementos do

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campo que traçamos, foi a da Memória. Passagens de um longo tempo passado foram

rememoradas pelos entrevistados. Pareceu-nos, assim, oportuna a necessidade de

revisitar/aprofundar meus estudos a respeito do assunto.

Ecléa Bosi foi então uma parceira importante nesse momento. Em seus instigantes

livros “Memória e sociedade35” e “O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia social36”

travei contato com seus estudos da memória e com sua visão de uma História que inclui

aspectos do comportamento, do quotidiano. Para Bosi, a história tradicional, a “que

estudamos na escola” (2004, p. 13) não aborda o passado recente e faz parecer aos estudantes

que ela é uma sucessão unilinear de lutas de classes ou de tomadas de poder por diferentes

forças. Fica fora dessa história etapista e linear, como se fosse de menor importância, os

aspectos do quotidiano, os microcomportamentos, fundamentais para Psicologia Social. Bosi

resgata tais aspectos, compreendendo que eles traduzem muito de um tempo vivido,

ampliando nosso conhecimento a respeito dos valores, da cultura, dos sentidos próprios de

diferentes momentos históricos. Considera que a memória oral é um instrumento precioso

para construirmos a crônica do quotidiano afirmando que:

A história que se apóia unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. A literatura conhece já esta prática pelo menos desde o Romantismo: Victor Hugo faz surgir Notre Dame de Paris num quadro popular medieval que a história oficial havia desprezado. (Bosi, 2004, p. 15)

A autora afirma também que “Do vínculo com o passado se extrai a força para a

formação da identidade” (p. 16) e ainda “Quando se trata de história recente, feliz o

pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e reconstituir comportamentos e

sensibilidades de uma época!” (p. 16-17). Idéias que fortaleceram minha confiança na escolha

dos caminhos de minha pesquisa de campo, reconhecendo na possibilidade de ter de Célia

Linhares, vivos testemunhos de sua trajetória no mundo da educação.

Interessava-me compreender como a memória se constitui. Expressariam o passado tal

como ele foi ou, de outro modo, ao lembrarmos, recriamos o passado a partir do que somos no

35 Companhia das letras, 2003. 36 Ateliê editorial, 2004.

46

presente? Porque algumas coisas são lembradas, outras esquecidas? Eram questionamentos

que guiaram meus estudos e curiosidades sobre o tema. Com o próprio ato de rememorar,

vamos reconstituindo sentidos à luz de um tempo vivido, que os atualiza e recria, a partir de

novas relações entre fatos e vivências, esquecendo algumas passagens da própria história,

lembrando mais vivamente de outras, como nos diz Bosi (2003). A autora, em sua pesquisa

sobre as lembranças de velhos, relata a alegria de alguns dos entrevistados com a

oportunidade de relembrar a própria trajetória, narrando a vida para um escutador atento e

interessado. Alguns depoimentos citados por Bosi ilustram esse sentimento: “Vejo, hoje a

minha voz está mais forte que ontem, já não me canso a todo instante. Parece que estou

rejuvenescendo enquanto recordo” (Sr. Ariosto), “Agradeço por estar recordando e

burilando meu espírito” (Dna. Risoleta) (Bosi, 2003, p. 38). Como que se o próprio ato de

narrar a vida reavivasse o sentido da mesma para cada um dos entrevistados, tarefa de auto-

aperfeiçoamento, uma reconquista. Os depoimentos recolhidos por Bosi assinalam o direito a

narrar a própria vida como algo que permite uma reafirmação de valor da história pessoal. A

escuta atenta do pesquisador funcionando com um espelho, fortalecedor do reflexo positivo da

própria existência. Célia, em suas reflexões sobre a memória, afirma algo que ressoa com as

pesquisas de Bosi.

Partindo dos lugares empoeirados onde a escola, com freqüência, tem depositado uma

versão da memória, como um equipamento reprodutor, Célia interroga o que queremos

construir, conquistar, quando reelaboramos o discurso da memória escolar.

“Na trajetória milenar desta palavra, vamos encontrá-la como alimento da poesia e da própria verdade. Na Grécia arcaica, a memória em que apoiavam os poetas fornecia-lhe uma vidência de tal ordem divinizada, que por si mesma estava dotada de uma eficácia capaz de instalar um mundo simbólico-religioso identificado com o próprio real. O aedo sabia o futuro porque tinha acesso ao passado. Tão ligada estava a memória a um movimento de criação coletiva que para Homero versejar era lembrar que ele fazia relatando a epopéia do seu povo e reafirmando seu projeto de polis como dignidade épica. Platão37, em suas recorrentes discussões sobre a retórica, a persuasão e o conhecimento, invocou a palavra de Sócrates para

37 PLATÃO, FEDRO, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, p121.

47

estremecer o prestígio, como que era tratado o alfabeto com suas possibilidades de escrita.” 38

A memória, ao ser escutada, é desalienadora – afirma Bosi (op.cit.) –

pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a figura do

consumidor atual. Perspectiva que aponta para a função social da memória e o enriquecimento

possível, para as novas gerações, do partilhamento de memórias, em que saberes diversos se

comunicam.

A autora ressalta, ainda, que a memória é um cabedal infinito do qual só registramos

um fragmento. Era freqüente no contato com seus entrevistados, que as mais vivas

recordações aflorassem depois da entrevista, na hora do cafezinho, na escada, no jardim, ou

na despedida da entrevistadora. A lembrança puxava mais lembranças e seria preciso um

escutador infinito...

“(...) Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem." (BOSI, 2003)

Em seus estudos, Bosi destaca, em especial as enunciações de Halbwachs que

identifica os quadros sociais da memória, retirando o foco adstrito ao mundo da pessoa e

ampliando para a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo

depende de suas relações com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com

a profissão, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo.

A autora chama atenção para a afirmação de Halbwachs sobre o apoio da memória

autobiográfica na memória histórica, ressaltando que toda história de nossa vida faz parte da

história geral.

As situações que vivemos e as outras pessoas afetam, provocam, impulsionam nossa

memória. Cada memória individual é assim um ponto de vista sobre a memória coletiva, que

38 LINHARES, Célia. A Escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1997, 2ª ed. P.120/121 .

48

muda conforme o lugar que ocupamos e as relações que mantemos com outros meios.

Lembrar, sublinha Bosi, não é de fato reviver uma memória conservada, intacta, pelo

contrário, lembrar é ato de refazer, reconstruir, repensar, com as imagens e idéias de hoje, as

experiências do passado.

Portanto, o passado “tal como foi” na verdade não existiria, pois ao lançarmos um

olhar atualizado para o vivido, ressignificamos as experiências à luz do presente, de quem

somos hoje, de todo o cabedal de vivências que se seguiram à que teve curso no passado. Os

materiais que estão agora à disposição no conjunto de representações que povoam nossa

consciência atual, afetam as lembranças, a reconstroem. Não somos os mesmos de ontem,

nossas idéias, percepções, valores alteraram-se, e com isso, nossa organização do vivido

também é afetada. Assim a memória da pessoa está intrinsecamente ligada à memória do

grupo, e esta última à esfera maior da tradição (BOSI, 2003).

A linguagem seria o instrumento socializador da memória, afirma Bosi, aproximando

no mesmo espaço histórico e cultural a imagem lembrada e as imagens da vigília atual. As

categorias que a linguagem atualiza acompanham nossa vida psíquica tanto na vigília quanto

no sonho. As convenções verbais produzidas em sociedade constituem o quadro ao mesmo

tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva. Os estudos sobre a memória,

apontam, para Bosi, a biografia e a autobiografia como possíveis caminhos metodológicos

para se conhecer a forma predominante de memória de um dado indivíduo. A narração da

própria vida é, segundo a autora, o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de

lembrar, é a sua memória.

O que temos, portanto é a impossibilidade de reviver o passado tal e qual. Lembrar o

que vivemos na infância, por exemplo, é uma reconstrução que sofre influências múltiplas,

dentre elas o que ouvimos os outros dizerem sobre nossas lembranças. O passado sofre uma

“desfiguração” ao ser reconstruído, ao ser manejado pelas idéias e pelos ideais presentes de

quem rememora. Isso sublinha o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal, social, da

memória.

Novamente reencontro aproximações entre o pensamento de Célia e de Bosi, quando

uma e outra recusam aprisionar a memória em esquemas positivistas e massificadores.

“A memória com que Benjamin trabalha e que nós valorizamos, se constitui de um tecido fagulhante, as reminiscências, ‘que relampejam nos momentos de pergio.” (Célia, entrevista, 2007)

49

Portanto, Célia evoca a forma com que a memória se faz presente, sempre em

movimentos afetados pela vida e carregados de assombros e de surpresas. Essa também é

uma marca trazida por Bosi em seus estudos sobre a memória e que diz respeito à forma como

a recordação aflora e suas conexões com o ponto de vista cultural e ideológico do grupo em

que o sujeito está inserido. No filme “Quem somos nós” 39, um dos cientistas que comenta

questões sobre a física quântica, traz uma lenda que ilustra bem tal conceito sobre o modo

como recordamos: “Os povos indígenas da América do Sul provavelmente não viam as

caravelas dos colonizadores se aproximando, pois aquele tipo de embarcação não fazia parte

de nada que eles conhecessem. Assim, eles não tinham o conceito da coisa que possibilitasse

o reconhecimento das caravelas. Foi preciso que um xamã, intrigado com o movimento

inquieto do mar, se pusesse a contemplar o oceano até, enfim, conseguir enxergar as

embarcações”. De fato, essa lenda nos aponta para o fato de que para compreendermos uma

dada realidade, é necessário que ela, de alguma forma, repercuta em conhecimentos prévios/

convenções que construímos em nossa história.

Com relação à memória, dessa forma a questão da convencionalização nos leva a

considerar também a relação existente entre o ato de lembrar e o relevo existencial e social do

fato recordado para o sujeito que recorda. O que é lembrado estaria condicionado pelo

interesse social que o fato tem para o sujeito.

Das contribuições de Bosi em seus estudos sobre a memória o que podemos destacar

como mais relevante para esta pesquisa, é a idéia da inerência da vida atual ao processo de

reconstrução do passado, bem como as relações entre memória, formação cultural e vínculos

grupais e sociais. Somos marcados pela história e nossa memória está entranhada pela

cultura, pela tradição, pelas ideologias dos diferentes momentos históricos de que

participamos. Reconheço, assim, o aspecto social da memória, que ela é construída na

articulação entre aspectos individuais e sociais, que se modifica à medida que as experiências

do indivíduo se ampliam, de certo modo, remodelando-as. A partir dos princípios sobre

memória essa pesquisa se conduziu.

39 Direção de William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente e Roteiro de William Arntz, Betsy Chasse e Matthew Hoffman.

50

Para mim, tais conceitos se materializaram muito claramente, não apenas ao

acompanhar o rememorar de meus entrevistados mas em mim mesma, a medida em que fui

mergulhando nas memórias dos outros a respeito de tempos e experiências que conhecia de

forma distante. Não raro, os próprios entrevistados surpreendiam-se com a emoção que o

rememorar provocava neles, bem como com a força com que lembranças que pareciam tão

distantes no tempo surgiam. A situação que vivi com uma de nossas entrevistadas, Dorothy

Pritchard, exemplifica muito bem essa questão. Ela começou nossa conversa desconfiando de

sua própria memória, “sou pessoa de pouca memória”, dizia. No entanto, a quantidade de

detalhes que foram sendo descortinados, e a vivacidade com que ela me relatava os mesmos,

expressavam que, mais do que um relato factual, ela vivia por meio do próprio ato de

rememorar, um revivificação das experiências, uma leitura atualizada que não seria possível

ser feita na própria época da experiência em si.

Em “sugestões para um jovem pesquisador” de Bosi (2004) encontro uma advertência

que me tocou de modo especial, pois traduziu um sentimento que me acompanhou na maior

parte das entrevistas que realizei. Bosi recomenda que a entrevista seja realizada na casa do

depoente, pois assim estaremos “mergulhados na sua atmosfera familiar e beneficiados pela

sua hospitalidade” (2004, p. 59). Diz também que a entrevista ideal é aquela que permite

formação de laços de amizade, responsabilidade pelo outro, da qualidade desse vínculo,

afirma a autora, vai depender a qualidade da entrevista. “Narrador e ouvinte irão participar

de uma aventura comum e provarão, no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o

ouvinte pelo o que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de

rememorar quanto o das pessoas ditas importantes.” (2004, p.60-61). Bosi continua,

afirmando que ambos sairão transformados pela convivência, dotada de uma qualidade única

de atenção.

Para citar alguns dos momentos inesquecíveis vividos em minha pesquisa de campo,

lembro da diversão em acompanhar Dorothy Pritchard assando pães de queijo, colocando um

timer próximo a nós duas e me confidenciando que invariavelmente esquecia as coisas no

forno - culinária, dizia, não é bem o meu forte. Das experiências que me contou com as

danças circulares e as aulas de cavaquinho que aquela jovem senhora vivia com entusiasmo.

Sentia-me aberta aquele contato, para mim prazeroso e instigante. Lembro-me também da

emoção ao partilhar com Balina Belo de sua busca em vários cadernos antigos por uma de

suas poesias. A tal poesia não encontramos, mas ela leu várias, para meu contentamento. Das

tardes na casa de Célia, entre lanchinhos e causos contados por José, seu marido, num

ambiente que tanto comunicava sobre a própria vida e história daquela família: livros em

51

todos os lugares e um empenho eterno em catalogá-los e organizá-los, nas fotos dos filhos nas

paredes, nos brinquedos dos netos em cantos da sala, na sala-escritório com enorme arquivo

de todo o processo ligado ao desaparecimento de Rui Frazão Soares, irmão de Célia. Em

nossas conversas, sinto que havia um sentimento de amizade que permitia a eles que me

contassem suas vidas conversando desarmados (BOSI, 2004, p. 60).

Esses encontros – porque foram, efetivamente, entrevistas-encontros – mobilizaram-

me por inteiro. O que eu sabia sobre passagens da história recente brasileira, como o golpe

militar, a ditadura, o AI-5, transformaram-se em muito mais do que informações conhecidas

racionalmente em livros e artigos diversos. Aproximando-me daquelas pessoas e de suas

experiências reais, acontecimentos passados se presentificaram para mim também, integrando

à minha forma de hoje compreendê-los à dimensão de uma verdadeira experiência, vivida

através da história oral que meus entrevistados me narraram. Vivi na pele o que Benjamim e a

própria Célia Linhares preconizam com tanta confiança, o poder da narrativa e da experiência

de tirar a história da dura vida enclausurada nos fatos lineares, contadas por apenas um

ângulo. A história me encharcou por inteiro. Senti-me grávida de história. E como toda

grávida que conheço, passei a ver por onde andava outras grávidas (não é assim quando

estamos esperando um filho? Não nos parece que aumenta a quantidade de mulheres na

mesma condição que a nossa por onde andamos?).

Nos tempos de produção dessa tese, minha escuta e sensibilidade foram tocados por

esse universo de experiências que passou a me habitar. Passei a reconhecer nas novas leituras

que fazia, nos filmes que via e nos estudos para a tese que fui dando continuidade, ligações

com aquele universo de experiências. Também aconteceu a releitura de alguns textos, como

os da própria Célia, e compreendê-los de uma outra forma, o que não me era possível quando

da primeira leitura. Não basta dizer que me sentia “sabendo mais” sobre diversos fatos

históricos. Eu não apenas sabia mais, mas sabia de uma forma diferente, que envolvia minha

emoção, minha sensibilidade, meu interesse, que tinha se acendido mais vivamente. “O que é

de interesse não se esquece”, nos dizia Queirós. De fato, aquele universo passou a ser de meu

interesse. Como não reconhecer nesse mergulho, que passa pela experiência de narrar ao outro

a própria vida e história, um caminho fascinante para pensarmos na formação do professor?

52

Para exemplificar esse sentido integrado que o conhecimento histórico, via narrativas

e estudos passou a ter para mim, posso citar alguns filmes que assisti e a intensidade de

sentimentos e relações que pude fazer hoje. Um deles menciono ao longo da tese, se intitula

“A vida dos outros40”. O filme conta a história real do sistema de observação alemão oriental

durante o período da Guerra Fria. Nos anos 80, o Ministro da Cultura se interessa por uma

atriz casada com um conhecido dramaturgo. Acusados de serem traidores do comunismo,

passam a ser observados por um agente do serviço secreto, a Stasi. O agente em questão, um

homem simples, cuja vida solitária se resume a servir o Estado, envolve-se intensamente com

a vida dos artistas que passa a acompanhar diariamente. Emociona-se com a música que

escutam, com as peças que encenam e lêem em voz alta, com os momentos de amor e medo

que o casal compartilha e então passa a protegê-los. O algoz vira cúmplice pois foi tocado

pela arte, pelo sensível, pelo humano. O filme trata com extrema delicadeza e humanidade o

esforço de seus protagonistas para extrair a dignidade de suas regradas vidas durante esse

período pré-queda do muro de Berlim. Reportei-me às histórias que alguns de meus

entrevistados narraram a respeito da ditadura brasileira, das tensões permanentes, do medo de

estarem sendo espreitados e, sobretudo, das ambigüidades presentes nas relações de força

entre perseguidos e perseguidores.

Outro filme, “Batismo de Sangue”, dirigido por Helvécio Ratton e lançado em 2006,

baseado no livro de Frei Beto, traz a história verídica do engajamento de alguns freis

beneditinos na resistência à ditadura no fim dos anos 60. Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando

e Ivo passam a apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos

Marighella, ficando na mira das autoridades policiais. Capturados a mando do General Fleury,

sofrem torturas até denunciarem o ponto de encontro com Marighella, o que ocasionou seu

assassinato pelas forças da ditadura. “A tortura quebra o homem”, frase dita por um dos

personagens. Quebra por que diante da dor, do limite humano, somos levados a trairmos a nós

mesmos, esfacelando-nos, cindindo-nos. A experiência de cisão leva Frei Tito a perturbação

mental e conseqüente suicídio. As cenas de tortura do filme foram para mim impossíveis de

assistir na integra tão reais me pareciam. A dor, a injustiça, a perplexidade diante da

40 Filme produzido pela Alemanha em 2007, com direção e roteiro de Florian Henckel Von Donnersmarck.

53

capacidade humana de destruição me tomaram. Foi-me impossível não lembrar a todo o

momento de Rui Frazão, de Célia Linhares, dos anos 60 e 70 que agora fazem parte de mim

também. Na linha de filmes brasileiros, “Zuzu Angel” de Sérgio Rezende, reporta-se a

temática semelhante a do filme de Ratton. Narra a história, também verídica, da luta de Zuzu

em busca de seu filho desaparecido, Stuart. Ele é preso, torturado e assassinado pelos agentes

do Centro de informações da Aeronáutica, sendo dado como desaparecido político. Inicia-se

então o périplo de Zuzu, denunciando as torturas e morte de seu filho. Suas manifestações

ecoaram no Brasil, no exterior e em sua moda. Assim como em “Batismo” fui capturada pelas

emoções do filme e pela temática que sentia agora tão próxima.

“A culpa é de Fidel”, filme francês dirigido por Julie Gravas em 2007, foi outro que vi

recentemente e que me tocou de modo especial. Narra a história da menina Anna de 9 anos

que vê sua vida se modificar inteiramente em virtude do engajamento político de seus pais

com a causa Chilena. Novos valores, novos hábitos passam a fazer parte da vida da família.

Toda aquela mudança é vista pelo olhar da criança que busca compreender os sentidos que

passam a orientar a família, sentindo os efeitos de escolhas que não são as dela em sua vida

cotidiana. Os adultos, hora compartilham com ela alguns de seus sentidos, hora deixam-na no

vazio sem compreender o que se passa. E ela vai fazendo um esforço hercúleo para encontrar

um lugar no meio das mudanças, coisa que o faz concretamente, elegendo um canto do

armário como seu, construindo um pequeno continente de segurança. Também aqui me tocou

esse movimento que é o nosso de buscar sentidos e de como muitas vezes, arrastamos filhos,

familiares e amigos nas escolhas que vamos fazendo. Algumas com impactos tão decisivos na

vida de todos. Escolhas que, no caso das crianças, parecem tão distantes de suas necessidades

e entendimentos...

Esses são alguns exemplos. Conhecer a história pela voz de quem a viveu, a retirou

para mim do frio campo da informação factual para introduzi-la no campo da experiência, da

sensação. Essa minha renovada escuta e abertura para ouvir e conhecer de novo elementos

relativos a outros tempos históricos de meu país e do mundo, se estendeu para a forma como

passei a apreciar as músicas (revisitando o movimento Tropicalista e conhecendo-o melhor,

ouvindo Beatles, Bob Dylan e outros), os movimentos populares daqui e do mundo (o

movimento negro americano e seus líderes, o movimento armorial, maio de 68 na França, as

Balaiadas Maranhenses, dentre outros), a produção artística e cultural (as artes plásticas e seu

movimento de renovação nos anos 80, o movimento teatral da época da ditadura e do período

de democratização, o cinema, a imprensa na voz dos irreverentes criadores do Pasquim).

Dispersava-me (no ótimo sentido da palavra) lendo depoimentos de ex-exilados políticos,

54

como o de Heloneida Stuart (concedido em 1999 para o Centro de Pesquisa e documentação

de História Contemporânea do Brasil – CPDOC da Fundação Getúlio Vargas), pesquisando

personalidades das épocas estudadas, ouvindo músicas, lendo sobre movimentos artísticos e

culturais. Numa curiosidade que só fazia crescer no contato com meus entrevistados e com os

textos de Célia. Como que se assim eu pudesse sentir o mundo com eles, me tornando mais

porosa às suas experiências. Esse mergulho na história, que se deu via música, literatura,

cinema me levou a necessitar compor na tese um panorama, ainda que breve e geral, dos

principais movimentos das décadas que enfoquei, ambientando os capítulos em seu contexto

histórico. Descobri depois, mesmo sem saber, que segui o conselho de Lucien Febvre (1977)

de que:

Para fazer história virem resolutamente as costas ao passado e antes demais vivam. Envolvam-se na vida. Na vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua variedade. Historiadores, sejam geógrafos. Sejam também juristas e sociólogos e psicólogos: não fechem os olhos ao grande movimento que, à vossa frente, transforma a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico. Mas vivam também uma vida prática. (...) É preciso que a história deixe de vos parecer como uma necrópole adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância. É preciso que no velho palácio onde ela dorme, vocês penetrem animados da luta, ainda cobertos de poeira do combate, do sangue coagulado do monstro vencido, e que, abrindo as janelas de par em par, avivando as luzes e restabelecendo o barulho, despertem com a vossa própria vida, a vossa vida quente e jovem, a vida enregelada da Princesa adormecida... (Lucien Febvre in Combates pela História, 1977, p. 56)

Como meu foco era compreender o trajeto de Célia Linhares e a construção de seu

pensamento pedagógico, era fundamental também contextualizar os diversos momentos

históricos que atravessou, com que tensões e idéias dialogou. Para tanto foi preciso abordar o

pensamento pedagógico brasileiro ao longo das décadas de 60 até os dias de hoje. O encontro

com o livro recém lançado por Demerval Saviani, “História das Idéias pedagógicas no

Brasil”, lançado em 2007, foi fundamental, pois apesar de ter recorrido a Otaíza Romanelli,

Maria Lúcia Aranha e outros, sentia falta de mais subsídios. Com Saviani, pude trazer para

esse trabalho uma visão mais ampla do movimento social e as conexões entre o pensamento

pedagógico brasileiro e aspectos da economia e política que se interpenetravam.

Pela natureza de meu trabalho, que congrega tantas vozes, que mergulha em aspectos

da cultura, da arte, da literatura é na pesquisa narrativa e nos estudos sobre as práticas

autobiográficas na formação de professores que encontrei, também, um caminho teórico-

55

metodológico interessante. Narrativa que é conteúdo e forma, que convida a construir uma

escrita em que se congregam muitas vozes, rompendo alguns cânones (LOPES, 2003).

Os estudos de Catani, Bueno e Sousa (2003), em sintonia com os da francesa Marie-

Christine Josso (2004) dentre outros, foram referência fundamental para compreender a

relevância das práticas autobiográficas e biográficas na formação de professores. Catani,

Bueno e Sousa (2003), afirmam que no imaginário social, as professoras não têm história

porque repetem. Repetem o que aprenderam, repetem cursos, programas, conhecimentos,

práticas, durante as décadas de sua carreira profissional. Para as autoras, tal perspectiva faz

com que as professoras não sejam em geral sujeitos de memória. Portanto, considerar a voz

dos professores nas pesquisas biográficas e autobiográficas é possibilitar a evocação da

própria história, valorizando a experiência humana e reconhecendo aí uma inestimável

riqueza para o conhecimento. Contar histórias é dar voz ao sujeito. Uma voz comumente

reprimida na nossa escola, seja de nível básico ou superior. Dar voz a Célia e seus pares era

portanto, agir no sentido de valorizar suas trajetórias, compreender seus percursos.

Desse modo, o processo de dar sentido/significado, através do narrar-se, pode ser visto

como emancipatório, pois consiste em uma forma de dar expressão à experiência pessoal.

Nessa perspectiva, afirmo a escolha das Pesquisas narrativas em minha tese. É Iduina

Mont’Alverne Chaves (1999) quem explicita o sentido desse tipo de pesquisa. A autora

afirma que as histórias de professores têm um lugar especial no estudo do ensino e da

formação/educação dos mestres, pois uma vez contada uma história, ela se torna peça da

história, uma peça aberta à interpretação.

As pesquisas narrativas, afirma Mont’Alverne Chaves, tais como as histórias de vida e

os relatos autobiográficos trabalhados por Catani e outros, têm se constituído como estratégias

privilegiadas para se estudar as práticas e as carreiras de professores. Para Nóvoa a formação

é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida (Nóvoa, 1988, p. 116).

Somando-se aos esforços de reconceitualizar a formação de professores, de acordo com as

perspectivas contemporâneas de pesquisa e de valorizar a subjetividade, estas perspectivas

buscam dar voz aos mestres, permitindo que eles se ouçam e se façam ouvir. Trata-se de

buscar formas através das quais o sentido se constitui, valorizando a experiência e a

subjetividade.

A concepção de formação subjacente a essas teorias postula que as práticas docentes

encontram-se enraizadas em contextos e histórias individuais, que antecedem, até mesmo, a

entrada na escola, estendendo-se a partir daí por todo o percurso de vida escolar e

56

profissional, em contraposição a idéia de que ela só se daria a partir do momento em que os

alunos e professores entram em contato com as teorias pedagógicas nos centros de formação.

Schön, Pèrez, Sacristán (apud Catani et all, 2003) observam que o discurso

pedagógico é prescritivo por excelência. Este caráter, segundo os autores, é contraproducente

para a experiência dos professores, tendo em vista que as prescrições acabam por impor e por

exigir dos docentes uma conduta ética e uma competência prática que raramente eles podem

realizar. Tal imposição leva a um modo equivocado de se compreender as relações entre

teoria e prática na atividade docente, vistas em geral de modo unívoco e linear. Tal equívoco

acaba por gerar tensões no professor, pois ao invés de fazê-lo refletir sobre seu trabalho e sua

formação, exigem um modelamento que gera desestímulo e insatisfação profissional. A

percepção da educação como “campo de aplicação de teorias” levou a idéia de que o olhar

sobre a experiência passada é no mínimo inútil, porque se refere ao ultrapassado, e no

máximo pernicioso, porque sem bases científicas. Nesse sentido, reforçam a idéia de que

textos de biográficos poderiam instigar a espaços de reflexão na formação de professores.

A respeito do ato de narrar – próprios das pesquisas narrativas - vemos com

Benjamim (1994) que as experiências narrativas têm se tornado cada vez mais raras na

contemporaneidade, em função de um tempo que dá relevo a velocidade das informações, ao

consumo em detrimento da experiência e da convivência.

O narrador não está presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais. (...) É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede a um grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (Benjamim, 1994: 197-8)

Portanto, as pesquisas narrativas buscam abrir espaço para que a experiência dos

sujeitos seja contada e interpretada, possibilitando que àqueles que têm acesso a ela possam

também refletir sobre a sua própria trajetória à luz da trajetória do outro. Além disso,

contribuem para pensar/ponderar sobre as questões e problemas educacionais, ao trazer via

bio-história, aspectos da trajetória profissional e de seus contextos à tona. Vale acrescentar

que ao desenvolver de modo sistemático a prática de escrita e análise sobre os relatos, com os

professores, este tipo de estudo configura um tipo de pesquisa de colaboração, à medida que

os professores envolvidos nesse processo se tornam simultaneamente tema e sujeitos da

pesquisa (MONT’ALVERNE CHAVES, 1999).

57

A narrativa é contemporânea – pois está relacionada ao aqui e ao agora – e ao mesmo

tempo histórica – pois traz a dimensão da tradição, do enraizamento no passado, capturando-

o, preservando-o e atualizando-o. Ao narrar a própria história, outras histórias podem ser

criadas. As histórias individuais de professores, por exemplo, podem levar outros professores

a relembrarem suas próprias histórias e a fazerem relações nos planos individuais e coletivos.

Para Mont’Alverne Chaves (op.cit.) a pesquisa narrativa é uma ampla categoria para

uma variedade de práticas de pesquisas contemporâneas que incluem a coleta e a análise de

autobiografias, biografias, histórias de vida, relatos pessoais, narrativas pessoais, narrativas de

entrevistas, documentos de vida, histórias orais, auto-etnografia, etnopsicologia, memória

popular, etc. A pesquisa narrativa é claramente interdisciplinar, incluindo elementos de

estudos literários, históricos, antropológicos, sociológicos, psicológicos e culturais. As

ciências sociais, têm saído desde a década de 70, aproximadamente, de um modelo

marcadamente tradicional positivista para uma postura interpretativa: tornando-se o

significado seu foco central.

A autora afirma ainda que o estudo das narrativas possibilita também que aspectos da

vida social e cultural do contexto onde vivem os narradores sejam revelados. Essa

perspectiva se apóia numa concepção de conhecimento que reconhece que as diferentes

situações vividas pelos professores ao longo de suas histórias, marcam a sua narrativa, pois ao

recontarem suas experiências estão na verdade realizando uma recriação permanente,

influenciada pelo momento vivido. Contar histórias é o que nós pesquisadores fazemos ao

organizarmos as narrativas dos professores. Tal perspectiva aponta as narrativas como

fenômeno e método (Mont´Alverne Chaves, 1999).

A narrativa, como fenômeno e como método, assume um papel central no

desenvolvimento pessoal e profissional. Por meio do contar, escrever e ouvir histórias de vida

– as suas e as dos outros – é possível ultrapassar barreiras culturais, descobrir a força da

identidade e a integridade do outro e ainda, aprofundar a compreensão de suas perspectivas e

possibilidades. Além disso, as narrativas interessam-se em construir e comunicar significados

de vida.

A narrativa apresenta características multifuncionais. Faz uso de materiais pessoais,

tais como estórias de vida, testemunhos, exemplos, conversas e escritos pessoais. Ela convida

à reflexão e requer do pesquisador o exame do contexto onde se situa a pesquisa e suas

implicações mais amplas.

O pesquisador trabalha não apenas com aquilo que é dito, mas também com os não

ditos, presentes nas “entrelinhas”, dentro do contexto no qual a vida é vivida e o contexto da

58

entrevista no qual as palavras são faladas para representar aquela vida. Mont’Alverne Chaves

(1999) afirma que “O uso metodológico da narrativa traz os pesquisadores ao contato com

questões metodológicas, epistemológicas, ontológicas, numa perspectiva multidisciplinar,

com suporte da antropologia e da literatura”.

No entanto, para que as histórias narradas contribuam efetivamente para a formação

de professores é preciso, como nos aponta Mont’Alverne Chaves (op.cit.), que elas sejam

genuínas e provoquem união, sejam evocativas, convidem à reflexão e sejam passíveis de

interpretação. A autenticidade, a reflexão, a reinterpretação elevam, como nos diz a autora, a

história “para além do reino da conversa inútil”.

O reconhecimento das potencialidades educativas do trabalho com os relatos de

formação apóia-se na idéia de que a espécie de reflexão favorecida pela reconstituição da

história individual de relações e experiências com o conhecimento, a escola, a leitura e a

escrita permite reinterpretações férteis de si próprio e de processos e práticas de ensinar.

Estas são as premissas que sustentam às pesquisas que usam narrativas e que lhes

conferem qualificação e riqueza. Acredito que elas se constituem em oportunidades de

investigar a formação de modo que a teoria e a prática se façam presentes de modo

indissociável. Viver a história e entender as nossas próprias narrativas poderá ser o melhor

exercício de construção do conhecimento sobre este tema.

É importante também que eu fale um pouco sobre algumas escolhas quanto a forma da

escrita desse trabalho. Procuro não interromper fluxos, por isso lanço mão dos pés de página.

Por vezes, o excesso de informações que não dizem respeito diretamente ao que se está

abordando pode funcionar como “arame farpado” no texto, dificultando sua leitura. Nessa

introdução busquei evitar isso, sem no entanto, deixar de explicitar algumas relações que

considerei pertinentes e acrescentar referências sobre os livros, filmes e outros que mencionei

e que considero, enriqueceram a leitura e ampliaram a compreensão desse texto.

No caso dos pés de página ao longo dos capítulos da tese, o motivo é também não

interromper fluxos, mas passa por uma reflexão que fui fazendo a medida em que escrevia.

Percebi que muitas das informações de rodapé poderiam até ser dispensáveis para o

leitor/avaliador. No entanto, elas estavam ali pois tinham me ajudado a compreender melhor

esse trabalho. Como exemplo, pesquisei um pouco sobre autores mencionados por Célia que

não conhecia suficientemente. Para mim foi muito importante me aprofundar um pouco mais,

me permitiu caminhar com maior clareza em meus estudos. Mas de fato, não são informações

de corpo de texto. São quase que pequenos desvios, estradas paralelas que peguei, para alargar

59

as questões que ali se apresentam, para fornecer mais subsídios para a leitura e o

entendimento do trabalho. Nunca para atrapalhar, isso pretendi.

Também me foi difícil tratar Célia Linhares, nos momentos em que citei suas obras ou

mesmo algum trecho de suas entrevistas, pelo sobrenome, seguindo as regras de citação de

fontes bibliográficas. Foi preciso usar seu primeiro nome dada a proximidade com ela, sua

presença tão viva e tão pessoal nesse trabalho.

Outra questão que fui me dando conta ao longo da tese foi o uso alternado de “eu” e

“nós”. Bem sei que vez por outra utilizo a primeira pessoa do singular, para em seguida lançar

mão da primeira pessoa do plural. Não foi um descuido, um escape, um deslize. Foi mesmo

um sentimento que me acompanhou durante a produção dessa tese. Senti-me muito

acompanhada. Tantas vozes a meu lado... dos entrevistados, de Iduina e da própria Célia.

Essas últimas, interlocutoras permanentes. Iduina, mais do que interlocutora, quase o meu

grilo falante (conhecemos todos a história do Pinóquio?!), a me amparar nos abismos,

dúvidas, angústias, alegrias do artesanato da escrita da tese. No entanto, ainda que tão

acompanhada e nada solitária, tem algo de muito pessoal nessa construção. Escolhas que,

ainda que muito partilhadas e tomadas em conjunto com Iduina, sinto como singulares em

determinados momentos. Portanto, peço a licença acadêmica para mesclar, deixar que os eu e

nós se misturem nessa tessitura. Lembrando que onde está escrito eu, leia-se nós; e aonde esta

escrito nós, leia-se eu. Constituídos que somos pelos muitos outros que nos habitam, nem por

isso deixamos de ser um eu singular. Impossível separar carne e sangue. Sou nós, sou eu.

Esse trabalho está organizado em quatro capítulos, cada qual dedicado a uma década,

a partir dos anos 60. Dividido por décadas apenas como forma de organização textual, pois é

importante ressaltar que não compreendemos a história de forma linear. Abordamos da década

de 60 até os dias atuais. Todos os capítulos têm uma estrutura semelhante. Começamos

apresentando, o panorama geral da década em questão. Num segundo momento, focalizamos

o pensamento pedagógico brasileiro do período, destacando as relações de força que se

estabeleciam no país. Em seguida, situamos a vida de Célia na época, trazendo aspectos

ligados às suas experiências profissionais, familiares e outras peculiaridades. Na parte final

apresentamos as idéias marcantes expressas nas obras de Célia Linhares realizadas no período

enfocado, seguidas pelas narrativas desenvolvidas a partir das entrevistas com parceiros

ligados a esta década. No fechamento do capítulo, fazemos uma síntese das idéias de Célia na

década em questão.

O primeiro intitula-se “Década de 60, os inícios”. Nele abordamos a emergência dos

movimentos populares e as tensões entre as diferentes forças que lutavam pela hegemonia.

60

Destacamos o movimento estudantil e o fortalecimento do empresariado e seu poder de

interferência nas políticas sociais, aliados com as forças militares. No campo da educação,

destacamos o surgimento da Pedagogia Nova e a reforma universitária. Anísio Teixeira e

Paulo Freire aparecem em destaque com suas contribuições para a educação. Abordamos

também os principais acontecimentos na vida de Célia Linhares, que incluiram o início de sua

atuação como docente e a experiência na Rádio Educadora do Maranhão. Além disso,

trazemos as entrevistas com seus pares, fechando o capítulo com as principais idéias da

professora Célia Linhares, no campo da educação, nesse período

O capítulo dois, “Década de 70, medos e ousadias”, época considerada o “auge da

ditadura”. Abordamos a política de “Segurança e desenvolvimento” liderada pelo

empresariado e o processo de desnacionalização do Brasil com a abertura para o comércio

internacional. Com relação à trajetória de Célia, é o período de sua imigração para o Rio de

Janeiro e sua entrada na Universidade Federal Fluminense. Período em que viveu a perda de

seu irmão Rui Frazão, o que a marcou fortemente. Nessa parte do capítulo, apresentamos as

principais idéias presentes nas produções escritas de Célia e as narrativas desenvolvidas a

partir dos depoimentos de seus pares, bem como o fechamento do capítulo com as idéias

centrais de Célia Linhares em 70. Compõe, também, essa parte do trabalho a apresentação das

principais idéias presentes nas produções escritas de Célia nessa época e as narrativas

desenvolvidas a partir dos depoimentos de seus pares, bem como o fechamento com as idéias

centrais de Célia Linhares em 70.

O terceiro capítulo intitula-se “Década de 80, firmeza e esperança”. Os anos 80

representaram um momento de transição e de abertura política. Para Célia, período fértil em

que finaliza seu doutorado e vai se firmando profissionalmente.

Por fim, o quarto e último capítulo “De 90 aos dias atuais: início de um novo século,

novos tempos?!”, aborda um período de intensa produção textual e de ampliação de sua

atuação como pesquisadora. A tese se encerra com as Considerações Finais, nas quais

apresentamos o ideário pedagógico de Célia Linhares.

Para mim, a produção dessa tese foi a oportunidade de fazer um mergulho instigante

na própria história recente de nosso país, reconhecendo as relações que se interpenetram entre

educação, economia, política e sociedade. Além de ter a chance de compreender a bela

trajetória de Célia e de seus pares na busca da construção de uma vida guiada pelo desejo de

contribuir para uma educação de qualidade para nosso país. A vida de uma professora.

61

CAPÍTULO 1

Década de 60, os Inícios

Give peace a chance John Lenon

Let me tell you now

Ev'rybody's talking about Revolution, evolution, masturbation, flagellation, regulation, integrations,

meditations, United Nations, Congratulations.

All we are saying is give peace a chance41

Nas palavras de Lenon, em sua conclamação pela paz, evidencia-se uma forte

característica dos anos 60: a manifestação popular, em variados âmbitos. Marcada por

tensões entre movimentos e interesses contraditórios, cresce nessa década o movimento

popular em prol de uma sociedade mais igualitária e includente, por outro lado, as ações de

coação a tais movimentos começam a tomar corpo, oriundas dos segmentos conservadores e

ditatoriais. É também um período de inquietação e mudança dos comportamentos e valores,

no Brasil e nos demais países.

No mundo, o americano Neil Armstrong pisa na lua pela primeira vez, dando início à

corrida espacial, seguido de perto pelas conquistas da Rússia; a Revolução sexual, com a

invenção da pílula anticoncepcional, ganha relevo; incrementa-se o movimento feminista na

luta pelos direitos da mulher; nos EUA o movimento negro se organiza e fortalece, tendo em

várias lideranças carismáticas seus representantes; expressam-se os protestos da juventude

contra o endurecimento dos governos. A Igreja, na figura do Papa João XXII abre o Concílio

Vaticano II, revolucionando a Igreja Católica que, dentre outras ações, incorpora os leigos em

suas iniciativas, agora mais antenadas à realidade social em que vive. Surge o movimento dos

41 Deixe-me te dizer/ todo mundo fala sobre revolução, evolução, masturbação, flagelação, regulação, integração, meditação, Nações Unidas, meditação, Congratulação/ tudo que nós estamos dizendo é “dê uma chance a paz” (John Lenon – Give a peace a chance) – tradução livre.

62

hippies, com suas roupas coloridas, drogas e sua bandeira do “Paz e Amor”, protestando

contra a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã. Na América Latina, a Revolução Cubana leva

Fidel Castro ao poder. Nas artes, a música dos Beatles, Rollings Stones, Bob Dylan e um rock

de protesto ocupam o cenário musical, que vai ganhando um sentido revolucionário e

contestador.

No Brasil, Brasília é inaugurada, a nova capital do país. Jânio Quadros sucede

Juscelino Kubitschek na presidência, renunciando sete meses depois e sendo substituído pelo

seu vice-presidente, João Goulart. Em 1964, o golpe militar depõe Goulart, instituindo uma

ditadura militar que daria início a tempos sombrios.

Nas Artes Plásticas, a exposição “Nova Objetividade”, no Museu de Arte Moderna do

Rio de Janeiro, onde Hélio Oiticica apresentou pela primeira vez sua instalação “Tropicália”,

daria origem ao movimento de mesmo nome, que ganharia força na Música Popular Brasileira

através de artistas como Caetano Veloso, Nara Leão, Gilberto Gil, Torquato Neto e outros.

Ainda sobre as Artes Plásticas, Ruberns Gerchman42, Roberto Magalhães, Carlos Vergara e

Antonio Dias seriam os protagonistas da passagem de uma arte mais acadêmica, o

concretismo, para uma arte mais acessível, com influência de elementos do pop, do cotidiano

e de questões sociais, desviando da abstração e dando origem a chamada “nova figuração”

(VELASCO, 2008).

Uma das obras de Gerchman, “É proibido dobrar a esquerda” (veja reprodução na

próxima página), dá início a um período de sua produção artística conhecida como ‘fase

negra’, a obra parece denunciar o clima de ‘caça as bruxas” que se instalaria no país após o

golpe militar de 1964. O quadro sugere uma atmosfera de tensão e nervosismo; de uma

aglomeração humana pretensamente contida pelos frágeis limites de uma situação autoritária

(PELEGRINI, 2007).

42 Vale aqui uma homenagem a Rubens Gerchman, que faleceu recentemente (29/01/2008). Artista carioca, sua produção gráfica dos anos 1960, caracterizou-se “por seu extremo vigor narrativo: por sua vontade de informar, de comunicar-se, com os milhares de Joãos, Marias e anônimos, seja da classe média ou do subúrbio carioca, mas que compartilham das mesmas alegrias e angústias, dos mesmos ídolos, símbolos sexuais ou sonhos de consumo. Como uma tentativa de refletir sobre as conseqüências alienantes dos processos de comunicação de massa no mundo contemporâneo”. (PELEGRINI, 2007)

63

No campo das comunicações e entretenimento, a TV Globo é inaugurada e a televisão

passa a se tornar meio de comunicação de massa.

É sobre esse cenário em ebulição que trataremos nesse capítulo. Na primeira parte, em

“Movimento popular e políticas públicas: tensões e conquistas dos anos 60”, “Movimento

estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento da Pedagogia Nova” e “A reforma

universitária do final da década”, traçamos um panorama das principais questões dos anos 60,

dando destaque aos aspectos ligados à educação e sua relação com o contexto social mais

amplo. A contribuição de Anísio Teixeira e Paulo Freire é ressaltada a partir de algumas das

iniciativas e movimentos educacionais em que estiveram envolvidos. Trago também aspectos

sobre o movimento das artes, tendo em vista compreendermos o imbricamento entre as

diversas expressões e as idéias-força que então circulavam. Conhecer um pouco do que

acontecia nesse campo, sem a pretensão de esgotar ou mesmo fazer uma pesquisa mais ampla,

confere um colorido especial a essa parte, resgatando e instigando curiosidades e expressões

singulares daquele tempo e alargando nossa percepção, via sensibilização estética, sobre o que

acontecia nos anos 60.

A atividade artística é entendida como um caminho de contato com o universo e

conosco mesmo. Evocar o que se produzia na época possibilita captar o momento em questão,

via sensibilidade, sentimentos, emoções, relacionando uma ordem de impressões que ampliam

nossa visão sobre determinada realidade (CANCLINI, 1980).

Na segunda parte, “Entre o dia e a noite: incertezas e confianças”, trazemos as

experiências que tiveram curso na vida de Célia nesse período, em que teve início sua

profissão docente e a formação de sua família com José Linhares. Aqui se expressa a forma

como as questões do período se evidenciam em sua trajetória: Como Célia lia e participava

64

dos acontecimentos, de que forma eles impactavam sua vida e a de seus familiares, os

movimentos dos quais ela tomou parte e como esse caldo de experiências pessoais e culturais

foi sendo vivido e elaborado por ela em seu tempo, constituindo-a em sua trajetória de vida. A

produção da professora Célia era, na época, eminentemente de caráter oral, via rádio,

docência e encontros com os grupos culturais e movimentos políticos dos quais fazia parte.

Mas, havia uma exceção. Célia escreveu textos que reuniu em apostilas para um Curso de

Formação de Professores, veiculados na Rádio Educadora e com a subvenção da Secretaria

Municipal de São Luís. Mas esses textos sumiram nos vendavais que varreram aquela Rádio e

que dilaceraram o país, depois do golpe de 64.43 Mas isso será narrado depois.

Em nossas entrevistas, realizadas com a professora Célia e seus pares, as lembranças

foram sendo convidadas a emergir à medida que eu trazia perguntas sobre as experiências de

cada década. No caso dos anos 60, tendo em vista termos pouco material escrito por ela, Célia

resgatou aspectos desse período e produziu, em 2007, um texto intitulado “Coisas Findas?”

(mimeo), retomando as idéias que a orientavam naqueles tempos (autores, tendências,

reflexões) e suas vivências (trabalhos, projetos, vida). Seu marido, José Linhares, foi

importante colaborador no rememorar da história vivida por eles e fragmentos da entrevista

que ele nos concedeu, também fazem parte desse trabalho. Basicamente, esses foram os

materiais utilizados nessa parte do capítulo.

Em seguida, em “Trilhas do pensamento pedagógico”, reunimos as principais idéias

de Célia, expressas em suas experiências profissionais e militantes (o texto referido

anteriormente, “Coisas findas?”, foi uma referência importante). Por fim, em “Voz dos

parceiros”, é o momento de “escutarmos”, numa escuta sensível, Dorothy Pritchard. Abrimos

nova janela para revisitar Célia e a década em questão pelo olhar do outro, numa dimensão

que amplia nossa compreensão a respeito, não apenas da trajetória de Célia e de seu

pensamento, mas também que nos permite conhecer esse outro a quem damos voz, como um

ator no processo de reelaboração do vivido. Movimento de reconstrução que traz, nos fios do

passado, aspectos do presente.

43 - LINHARES, Célia e NUNES, Clarice. Trajetórias de Magistério: Memórias e Lutas pela Reinvenção da Escola Pública. Rio de Janeiro, Editora Quartet, 2000, p.34/35.

65

Fechamos o capítulo com um apanhado de questões mais marcantes da década, com

enfoque no pensamento de Célia. Tal apanhado, vai constituindo a trilha maior, marcando o

trajeto de uma vida em seu palmilhar.

1.1 - Movimento popular e políticas públicas: tensões e conquistas dos anos 60

O nacionalismo é, fundamentalmente, a tomada de consciência pela nação de sua existência, de sua personalidade e dos interesses dos seus filhos (Anísio Teixeira, 1976, P.320).

PLANTIO

Cava, então descansa.

Enxada; fio de corte corre o braço de cima

e marca: mês, mês de sonda. Cova.

Joga,

então não pensa. Semente; grão de poda larga a palma

de lado e seca; rês, rês de malha.

Cava.

Calca e não relembra.

Demência; mão de louco planta o vau de perto

e talha: três, três de paus. Cova.

(...) Cova:

e não se espanta. Plantio; fé e safra sofre o homem

de morte e morre: rês, rés de fome

66

cava. (Mario Chamie in Lavra, Lavra44,1962)

Anísio Teixeira45 e a poesia de Mario Chamie abrem esse texto evocando perspectivas

marcantes da década de 60: a nova concepção de nacionalismo em elaboração, os distintos

movimentos e idéias a respeito do desenvolvimento de uma nação que se industrializava e a

voz das esferas das artes, da cultura e da educação que tematizavam as questões em ebulição.

No campo da educação, foco de nosso trabalho, a década de 60 caracterizou-se pela

crise da pedagogia nova e a articulação da pedagogia tecnicista (SAVIANI, 2007). Foi uma

década de contradições, expressas por meio das múltiplas posições, em vários campos da

atividade política, econômica e cultural, com ideologias que se opunham numa tensão

constante. Movimentos de abertura e de ação popular tiveram curso, influenciando o campo

da cultura e a sociedade de forma mais ampla.

Nas artes o Tropicalismo constituía-se em importante movimento que tinha como

objeto a realidade brasileira, associado às lutas por mudanças e traduzindo desejos de um

povo que buscava a expressão de sua voz e sua vez. Além da música popular, o teatro, a

literatura e as artes plásticas, sem esquecermos o cinema, estarão marcados pelo mesmo

tensionamento presente no cenário de contradições e diferentes ideologias circulantes

(HOHLFELDT, 1999).

Nas políticas públicas têm destaque, após 13 anos de intensas discussões, a

promulgação da nossa primeira Lei de Diretrizes e bases, em dezembro de 1961 (Lei n. 4.024)

que entraria em vigor em 1962, fruto dos debates mais amplos com relação à organização do

ensino. No rastro da vigência da lei, se instala o Conselho Federal de Educação (CFE) que

tem em sua composição Anísio Teixeira. Foi também Anísio Teixeira quem cuidou em 1962

44 Mário Chamie (1933) instaurou com seu livro “Lavra Lavra” o chamado “poema-práxis” (em 1962). Nome importante na história da vanguarda a partir do final da década de 50, foi também Secretario Municipal de Cultura de São Paulo, criando a Pinacoteca de São Paulo, Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural de São Paulo. 45 Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), advogado, intelectual, educador e escritor brasileiro é uma personalidade central na História da educação no Brasil. Difundiu nas décadas de 1920 e 1930 os pressupostos da Escola Nova, que valorizavam no processo educativo o desenvolvimento do intelecto e da capacidade de julgamente em detrimento da memorização. Exerceu diversos cargos executivos e foi um dos mais destacados signatários do Manifesto da Escola Nova. Defendida com vigor o ensino público, gratuito, laico e obrigatório. Fundou a Universidade de Brasília no início dos anos 60.(NUNES, Clarice. Anísio Spínola Teixeira in FÁVERO e BRITTO, Jader de Medeiros (orgs.), Dicionário de educadores do Brasil, 2002)

67

do Plano Nacional de Educação, homologado pelo ministro Darcy Ribeiro46 (SAVIANI,

2007).

É importante retomar alguns aspectos da presença central de Anísio Teixeira na

educação brasileira. Personalidade atuante da educação, não apenas ao longo das décadas de

50 e 60, mas também no movimento de renovação educacional da década de 30. Anísio foi

uma figura predominante desse movimento, consolidado pelo "Manifesto dos Pioneiros da

Educação Nova". Tal manifesto expressava a visão de um grupo da elite intelectual brasileira,

os renovadores. Eles afirmavam a necessidade de que o Estado organizasse um plano geral de

educação, defendendo a bandeira de uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita.

Propunham uma escola integral e única, em oposição à escola existente, chamada de

"tradicional". Tais idéias, cunhadas nas décadas anteriores, estavam em curso durante a

década de 60 e influenciavam os movimentos políticos e sociais.

Com relação a primeira LDB 4.024 é importante ressaltar que ainda que não tenha

contemplado todas as necessidades do Brasil, constituiu-se, nas palavras do próprio Anísio

Teixeira, numa “meia-vitória”, tendo em vista que sua promulgação representou uma

conquista de caráter descentralizador. Desde 1920 os renovadores aspiravam e defendiam

uma maior autonomia dos estados e a diversificação e descentralização do ensino, aspectos

que foram consagrados na LDB. Apesar disso, as concessões feitas a iniciativa privada iam

contra um outro aspecto defendido pelos renovadores, que era o da construção de um sólido

sistema público de ensino.

No campo mais amplo da problemática do desenvolvimento nacional, uma nova

conotação política se emprestava ao conceito de nacionalismo presente até então. Tal conceito

estava anteriormente ligado a uma exaltação do civismo, do nacionalismo e do patriotismo,

agora se configurava numa perspectiva internacionalista, o nacionalismo-desenvolvimentista.

46 Darcy Ribeiro (1922-1997) destacou-se especialmente por seus trabalhos nas áreas de educação, sociologia e antropologia. Foi um dos responsáveis, ao lado de Anísio Teixeira, pela criação da Universidade de Brasília no início dos anos 60. Durante o primeiro governo de Leonel Brizoloa no Rio de Janeiro (1983-1987) ele criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs), projeto pedagógico de assistência em tempo integral a crianças, que incluia atividades recreativas e culturais além do ensino formal (projeto que fora idealizado por Anísio Teixeira).Darcy Ribeiro também foi Ministro-Chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de Senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte. (MAURÍCIO, Lúcia Veloso. Darcy Riberio in FÁVERO E BRITTO(ORGS.) Dicionário de Educadores do Brasil, 2002)

68

Essa nova concepção era fruto de uma visão de desenvolvimento do país que se disseminava

ao longo da década de 50 e nos primeiros anos da década de 60. A visão ideológica que a

caracterizava era de viés progressista, industrialista, modernizadora, correspondente a uma

“burguesia que se queria esclarecida” (SAVIANI, 2007, P. 311).

Anísio Teixeira postulava que o processo de industrialização do país era marcado por

uma liderança eclética, representada pela elite aristocrática e pela classe média, que possuíam

visões distintas com relação ao papel da educação nesse processo. Para ele, a industrialização

brasileira era uma realidade que caminhava a despeito da educação e esta só poderia avançar

quando as forças da classe média democrática – que davam maior valor à educação - viessem

a exercer maior influência. Anísio acreditava que faltava à nação a consciência de que ela se

fazia moderna. A idéia de consciência emerge nesse momento, sendo posteriormente

retomada por outros educadores, com destaque a Paulo Freire. Tal consciência, na concepção

de Anísio, só seria atingida com a escola, lugar de estudo e do conhecimento do Brasil, capaz

de mostrar o caminho para emancipação nacional.

As idéias de desenvolvimento nacional, aliadas à política populista47 da época,

incitavam à mobilização popular. Os dirigentes dependiam do voto do povo para obter êxito

no processo eleitoral. O direito ao voto estava condicionado à alfabetização, o que levou então

os governantes a organizar campanhas, programas e movimentos de alfabetização de jovens e

adultos, dirigidos aos contingentes urbanos e a população rural.

Em decorrência desse movimento surgiram várias campanhas ministeriais com o foco

no ensino que se estenderam de 1940 a 1963. Tais campanhas consideravam a educação

popular abrangendo a instrução pública (educação elementar destinada às crianças e adultos).

O Movimento de Educação de Base (MEB), criado em 1961, possuía em suas origens essas

mesmas características. Tratava-se de um movimento de responsabilidade da Igreja católica,

dirigido pela Conferência nacional de bispos do Brasil (CNBB), mas cuja concepção e

execução foram confiadas a leigos. Estes, porém, distanciaram-se dos objetivos de catequese,

imprimindo ao movimento um caráter maior de conscientização e politização do povo. É essa

47 WEFFORT (1989) define o populismo como uma forma de governo que envolve algumas particularidades. Surge quando há uma massificação de amplas camadas da sociedade que desvincula os indivíduos de seus quadros de origem e os reúne na massa, relacionados entre si por uma sociabilidade periférica e mecânica, quando há uma perda da representatividade e da exemplaridade da classe dirigente. Quando há a presença de um líder dotado de carisma de massas.

69

característica que irá marcar os vários movimentos surgidos no início da década de 1960 para

os quais o conceito de educação popular assumirá conotação diversa daquela que prevalecera

nas décadas precedentes.

Anteriormente, na Primeira República, a expressão “educação popular”, estava

associada à instrução elementar que se intentava generalizar para toda a população do país,

mediante a implantação das escolas primárias. Esse era o entendimento que sustentava a

mobilização e implantação da expansão das escolas primárias e das campanhas de

alfabetização de adultos.

Assumindo outra significação, o movimento que ganha força na primeira metade dos

anos de 1960, surge da preocupação com a participação política das massas a partir da tomada

de consciência da realidade brasileira. A educação ganha caráter de instrumento de

conscientização. A expressão “educação popular” agora tem sentido de educação para o povo,

pelo povo e para o povo, contrapondo-se ao significado que a precedia, criticado como

educação das elites e dos grupos dirigentes para o povo, com objetivos de controlá-lo,

manipulá-lo e ajustá-lo à ordem estabelecida.

A ressignificação do conceito de educação popular está ligada às análises e discussões

sobre a realidade brasileira desenvolvidas, dentre outros, pelos pensadores cristãos marxistas

no pós-guerra europeu; pelas mudanças que o espírito do Concílio Vaticano II introduzia na

doutrina Social da Igreja. Das iniciativas que tiveram curso na época destacam-se os Centros

Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e o Movimento de

Educação de Base (MEB), anteriormente citado. Todos esses movimentos tinham em comum

a valorização da cultura do povo (que consideravam a autêntica cultura nacional), o objetivo

de transformação das estruturas sociais, a identificação com a visão ideológica nacionalista

que preconizava a libertação do país dos laços de dependência com o exterior.

Os CPCs48 tinham a arte como enfoque principal e o CPC da União Nacional dos

Estudantes (UNE) como referência. Multiplicaram-se por todo o país. Acreditavam que a

48 Dramaturgos como Augusto Boal, que dirigiu em 1956 o Teatro da Arena fundado em 1953 em São Paulo, na época um jovem diretor egresso dos Estados Unidos, onde conviveu com a dramaturgia de Arthur Miller; Gianfrancesco Guarnieri (Eles não usam black-tie; 1958), Oduvaldo Vianna Filho, dentre outros, integrar-se-iam ao CPC da UNE, desenvolvendo uma obra de intensa denúncia ideológica, tornando-se nomes referenciais de toda a dramaturgia brasileira ao longo das duas próximas décadas, ainda que alguns deles tenham experimentado o exílio (HOLFELDT, 1999).

70

cultura popular estava ligada diretamente à ação política, pois constituía-se em expressão

autêntica da consciência e dos interesses e necessidades do povo, preparando-o para a

revolução.

Os MCPs originaram-se do MCP criado em 1960 em Recife. O objetivo principal era

conscientizar o povo por meio de uma educação genuinamente brasileira, bem como

aproximar pela sua prática, a intelectualidade da população. O intelectual deveria aprender

com o povo, numa atitude não assistencialista. As idéias de Paulo Freire cunharam-se em

meio às experiências nos MCPs. Em Natal, a campanha “De pé no chão também se aprende a

ler49” teve grande força.

O MEB teve intensa penetração no meio rural, apoiando a sindicalização dessa área.

Tendo em vista o fato de ser um movimento da Igreja, sobreviveu ao golpe militar. As escolas

radiofônicas constituíam-se a base de operação do MEB, que se difundiu em cerca de 500

municípios. Tratava-se de uma iniciativa patrocinada pela Igreja Católica e sustentada

financeiramente pelo governo federal. Seus efeitos, cujas características podiam ser

percebidas a partir do segundo ano de atuação, trouxeram conseqüências não previstas, tanto

para o governo quanto para a Igreja. As ações do MEB acabaram por transformar as

condições de vida da população e daqueles que atuavam como agentes pedagógicos,

fortalecendo um movimento contra-hegemônico dirigido pelas classes subalternas. Tais

impactos forjaram os embriões da “Igreja popular” e de todo movimento mais radical

católico.

Paulo Freire, educador que marcou fortemente a década de 60 e cuja contribuição é

atemporal, cunhou a concepção que foi mais difundida no país e no exterior, que expressa a

orientação seguida pelos movimentos de educação da época, em que integra-se a dimensão

política à educação. A conscientização do povo é o objetivo central. Em 1960 Freire

participou no MCP de Recife, como diretor da Divisão de Pesquisa. Além de ter na mesma

década assumido a direção do Serviço de Extensão cultural da Universidade de Recife (onde

49 Com acentuada ênfase na dimensão política da educação, em Natal, no ano de 1961, o prefeito Djalma Maranhão criou a Campanha de alfabetização "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler"; Em 1961 a Prefeitura Municipal de Natal, no Rio Grande do Norte, inicia uma campanha de alfabetização. Orientada didaticamente por Paulo Freire, propunha-se a alfabetizar em 40 horas adultos analfabetos. A experiência teve início na cidade de Angicos, no Estado do Rio Grande do Norte, e, logo depois, na cidade de Tiriri, no Estado de Pernambuco (GERMANO, 1997).

71

lecionava desde 1959) e em 1963 figurado como membro do Conselho de Educação de

Pernambuco.

O êxito e repercussão da experiência de Freire com a alfabetização conduziram-no de

Recife para postos de âmbito nacional. Designado para presidir a Comissão Nacional de

Cultura Popular instituída pela portaria do ministro Paulo de Tarso em 1963, foi chamado

também a assumir a coordenação do Plano Nacional de Alfabetização, criado na passagem de

1963 para 1964. O golpe militar em 1964 interrompeu essa iniciativa, assim como toda a

mobilização que vinha sendo feita em torno da cultura popular e da educação popular.

As principais idéias de Freire giravam em torno da aposta na educação como o espaço

promotor da conscientização do homem e da mulher. Freire acreditava que a sociedade da

época, cujo processo de industrialização e urbanização trazia novas dimensões para a vida

social, levava a uma emersão do povo na vida política. Em função disso, o que ele chamava

de consciência mágica, própria de uma sociedade fechada (anterior ao período de urbanização

e industrialização) passava a uma consciência transitivo-ingênua. Para que essa consciência

ingênua se tornasse crítica era fundamental um trabalho educativo voltado intencionalmente

para esse objetivo. Para Freire, éramos inexperientes democraticamente em função da forma

como havia ocorrido a colonização no Brasil, marcada pela centralização.

Freire criticava a educação dominante que em sua visão era marcada pelo gosto da

“palavra oca” (SAVIANI, op.cit, p.321), era assistencializadora e não comunicava

efetivamente. Postulava a necessidade de uma educação voltada para a passagem da

transitividade ingênua à transitividade crítica, para a decisão, para a responsabilidade social e

política.

As linhas mestras da concepção de Freire afirmam que o processo educativo, para

efetivamente ter força instrumental como agente de mudanças sociais, precisa ter uma relação

de organicidade com a contextura da sociedade a que se aplica. Essa relação de organicidade

implica um conhecimento crítico da realidade para que só assim a educação possa se integrar

com ela e não a ela se sobrepor.

Chamava a atenção para nossa situação de economia complementar, comandada pelo

comércio exterior, de formas antidemocráticas. Acreditava que vivíamos uma transição para

uma economia de mercado, com o predomínio de um capitalismo emergente e para formas

mais democráticas.

Para ele, o processo de industrialização do país, fazia com que a emersão de seu povo

fosse mais vigorosa, fazendo-o passar de uma posição de mero expectador para posições mais

participantes. A educação para o povo deveria significar uma abertura do homem, pela qual,

72

mais lucidamente, este veja seus problemas. Posição que implica libertação do homem de suas

limitações, pela consciência de suas limitações.

Para Freire, o clima cultural da época, em plena elaboração, exigia o exercício da

participação e da decisão do homem nacional, fundamental para nosso acontecer histórico,

por esse motivo a democracia seria necessária, garantindo lugar para um intenso trabalho de

educação extra-escolar para desenvolvê-la.

É importante salientar que mais do que um método para ensinar a ler e a escrever,

Freire reúne em sua proposta uma visão de homem, sociedade e educação que está na base de

seu projeto educacional, fundamental para o entendimento do mesmo. A escuta e valorização

da realidade e da cultura do povo são marcas centrais de sua forma de compreender o ensino.

1.1.1 Movimento estudantil e organização dos empresários: o arrefecimento da Pedagogia Nova.

Um outro importante movimento que merece destaque é a mobilização dos

universitários em 1968, que teve como culminância a tomada pelos alunos, de várias escolas

superiores, em demonstrações de resistência à reforma universitária, que remodelava a

Universidade Brasileira sob a gerência de assessores dos EEUU. Mas também, não há como

negar que os tempos redesenhavam os lugares juvenis e estudantis, tão bem exemplificados

pelo movimento de maio de 1968,50 na França. Nas reivindicações da reforma universitária,

feitas pelo movimento estudantil, também ressoavam matrizes da concepção humanista

moderna.

O clima do Concílio Vaticano II e o advento da “teologia da libertação” conduziram a

uma radicalização político-social da pedagogia católica-brasileira, que já havia passado por

uma renovação metodológica. Os educadores católicos engajavam-se nos processos de

50 Em Maio de 1968 ocorreu uma greve geral na França que adquiriu significado e proporções revolucionárias. Esse movimento teve início com uma série de greves estudantis em algumas universidades e escolas de ensino secundário em Paris, após confrontos com a administração e a polícia. À tentativa de contenção das greves com ações policiais levou ao acirramento do conflito culminando numa greve geral de estudantes e em greves com ocupações de fábricas em toda a França, às quais aderiram dez milhões de trabalhadores, aproximadamente dois terços dos trabalhadores franceses. Liderada por adeptos das idéias esquerdistas, comunistas ou anarquistas, muitos viram na situação a oportunidade de confrontar os valores da sociedade de então.

73

desenvolvimento e libertação da população (os “oprimidos”). Surgia uma parcela do

movimento católico, impulsionada pelo arejamento propiciado pelo Concílio Vaticano II,

realizado em 1959 e 1965, que buscava a formulação de uma ideologia revolucionária

inspirada no Cristianismo. A Ação Popular (AP), a mais típica dessa tendência, foi criada em

1963, cujas opções fundamentais que assumiu buscavam responder aos desafios da realidade

brasileira, a partir de uma análise realista do processo social e do momento histórico que

vivíamos.

Destacaram-se a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Estudantil

Católica (JEC), grupos católicos derivados de organismos integrantes da Ação Católica que

lançaram-se em programas de educação popular, especialmente de alfabetização de adultos.

Esse movimento de radicalização das idéias renovadoras no campo pedagógico

expressou-se não apenas pelos intensos movimentos de educação popular e na pedagogia da

libertação, antes analisados; mas também, pela pedagogia tecnicista que surgia em paralelo,

sinalizando que sobrevinha a crise da pedagogia nova.

Saviani (op.cit.) atribui o arrefecimento do entusiasmo pela pedagogia nova em

função dos avanços tecnológicos e suas conseqüências nos processos de comunicação e dos

efeitos da guerra fria51. Ressalte-se, também, a influência da expansão dos meios de

comunicação de massa que reforçou a idéia de que não se devia depositar tantas esperanças

educativas na escola. Ganhava força o entendimento de que a escola não era o único e nem

mesmo o principal espaço educativo. Tais perspectivas pareciam corroborar com um

desinvestimento na educação.

Com respeito a Guerra fria, o lançamento do Sputnik pela União Soviética em 1956,

saindo à frente dos Estados Unidos na corrida espacial, provocou uma onda de

questionamentos à educação nova. O êxito científico e tecnológico dos russos contradizia a

difundida propaganda ocidental que visava convencer que a educação na Rússia possuía viés

autoritário e antidemocrático, sendo inferior a dos EUA. Associou-se o sucesso russo a uma

provável formação científica mais sólida do que a do Ocidente. Reforçaram-se, assim,

51 A Guerra Fria diz respeito aos esforços dos Estados Unidos, principal potência capitalista, para garantir seu controle e poderio, iniciada desde a década de 50 após a ameaça da Revolução Cubana, o objetivo era afastar qualquer vestígio de influência comunista nos países de economia dependente e manter-se soberana.

74

argumentos que acusavam as escolas americanas de darem pouca importância aos conteúdos

ensinados às crianças.

É importante ressaltar que no Brasil, à medida que se ampliava a mobilização popular,

com as Ligas Camponesas no meio rural, os sindicatos de operários nas cidades, as

organizações de estudantes secundaristas e universitários e os movimentos de cultura e

educação popular, mobilizou-se também a classe empresarial. O Instituto de Ação

Democrática (IBAD), primeira organização empresarial voltada para a ação política é um dos

fortes movimentos dessa categoria. Sua finalidade era combater o comunismo e o chamado

estilo populista de Juscelino52.

O IBAD, era financiado por grandes empresas nacionais e internacionais,

especialmente norte-americanas. Tinha papel influente nos bastidores da política, com ações

que se caracterizavam por intensa propaganda. Financiava candidatos para as eleições

legislativas e para os governos estaduais. Em 1963, em função da ação de deputados não

comprometidos com o instituto, este foi fechado por determinação da Justiça.

A outra investida dos empresários foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

(IPES), fundado em 1961 que permaneceu em atividade até 1971, quando se auto-dissolveu.

Envolvia empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo, articulados com empresários

multinacionais e com a escola Superior de Guerra (ESG).

Suas ações ideológico, social e político-militar desenvolviam a doutrinação por meio

da guerra psicológica, fazendo uso dos meios de comunicação em massa como o rádio, a

televisão, cartuns e filmes em articulação com órgãos da imprensa, entidades sindicais dos

industriais e entidades de representações femininas, agindo no meio estudantil, entre os

trabalhadores da indústria, junto aos camponeses, nos partidos e no Congresso, visando

desagregar, em todos esses domínios, as organizações que assumiam a defesa dos interesses

populares. Articulou-se com o IBAD na esfera ideológico-social.

52 Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 – 1976), conhecido como JK, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. Construiu em torno de si uma aura de simpatia e confiança entre os brasileiros. a grande ênfase de seu governo era a industrialização. A finalidade das metas juscelinistas era a "valorização do homem", cujo objetivo só poderia ser atingido a partir da industrialização e a atenção as necessidades infra-estruturais. Os ganhos sociais, em sua perspectiva, seriam conseqüências dos avanços. "com especial atenção para as necessidades infra-estruturais". (CUNHA, 2002)

75

O IPES era financiado por grandes empresas nacionais e multinacionais e para realizar

suas atividades se estruturava em setores de trabalho, sendo o educacional um deles. Dentre

suas ações ligadas à educação, destaca-se a organização de dois grandes eventos, cujo

objetivo era influir legislativamente e formar opinião: o “Simpósio sobre a reforma da

educação” em 1964 e o Fórum “A educação que nos convém”. No Simpósio, o objetivo era

discutir as linhas mestras de uma política educacional que viabilizasse o rápido

desenvolvimento econômico e social do país. Um documento para orientar os debates foi

produzido cujo conteúdo girava em torno do vetor do desenvolvimento econômico,

considerando os investimentos no ensino como destinados a assegurar o aumento da

produtividade na escola. Na perspectiva desse grupo, o ensino Médio teria como objetivo a

preparação dos profissionais necessários ao desenvolvimento econômico e social do país de

acordo com diagnóstico da demanda efetiva de mão-de-obra qualificada. Ao ensino superior

eram atribuídas as funções de formar mão-de-obra especializada requerida pelas empresas e

preparar quadros dirigentes do país. As orientações gerais traduzidas nos objetivos indicados e

a referência a aspectos específicos como a profissionalização do ensino médio, a integração

dos cursos superiores de formação tecnológica com as empresas e a precedência dos

Ministérios de Planejamento sobre o da Educação na planificação educacional são elementos

propostos por esse grupo que integrarão as reformas de ensino do governo militar.

No Fórum “A educação que nos convém”, se explicitavam ainda mais claramente os

aspectos constitutivos da visão pedagógica que prevaleceria na década seguinte. O Fórum

exerceu pressão junto ao Estado, apontando para algumas questões cujo sentido geral é

traduzido pela ênfase nos elementos dispostas pela teoria do capital humano53; na educação

como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos

parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o

trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante

53 Theodore W. Schultz, professor do departamento de economia da Universidade de Chicago, foi o principal formulador da idéia de capital humano. Esta liga-se a preocupação de explicar os ganhos da produtividade gerados pelo fator humano. O trabalho humano, sendo qualificado por meio da educação, seria um dos principais instrumentos para a ampliação da produtividade econômica, e, portanto, das taxas de lucro do capital. Aplicada ao campo educacional, a idéia de capital humano gerou uma concepção tecnicista sobre o ensino e sobre a organização da educação. No Brasil, a publicação de seu livro “O capital humano” em 1967, fortalece as idéias tecnicistas que então se fermentavam.(Saviani, 2007)

76

habilitações profissionais a mão-de-obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na

diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração voltados par ao

atendimento da demanda de profissionais qualificados; no destaque conferido à utilização dos

meios de comunicação de massa e novas tecnologias como recursos pedagógicos; na

valorização do planejamento como caminho para a racionalização dos investimentos e

aumento de sua produtividade ; na proposta de criação e um amplo programa de alfabetização

centrado nas ações das comunidades locais. Eis aí a concepção pedagógica articulada pelo

IPES, que veio a ser incorporada nas reformas educativas instituídas pela lei da reforma

universitária, pela lei relativa ao ensino de 1º e 2º graus e pela criação do Movimento

Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL).

Os empresários ligados ao IPES articulavam-se com os colegas americanos, contando

inclusive com sua colaboração financeira também no planejamento e na execução

orçamentária da educação. Assim, estreitou-se a relação com os Estados Unidos, realizando-

se acordos de financiamento da educação brasileira com a intermediação da Agência dos

Estados Unidos para o desenvolvimento Internacional54 (USAID). Muitos professores

brasileiros fizeram cursos em universidades nos Estados Unidos e no Brasil foram realizados

cursos supervisionados por técnicos americanos (entre 1959 e 1964). Pedagogicamente a

perspectiva que orientava a execução dos programas americanos pode ser definida como

tecnicista aonde evidenciava-se a ênfase nos métodos e técnicas de ensino, na projeção de

filmes didáticos confeccionados nos Estados Unidos e na valorização dos recursos

audiovisuais.

Vimos então nessa parte que tomavam corpo movimentos de matrizes ideológicas

opostas, ancorados em concepções de educação igualmente distintas. Tais forças viviam um

constante embate e configuravam o cenário da época. Será esse ambiente de contradições

54 As ações que compunham a ajuda internacional para a educação brasileira partiam do pressuposto que nosso “subdesenvolvimento” era uma fase anterior ao período de desenvolvimento (nos moldes dos países desenvolvidos). Atribuíam nosso “atraso” a elementos ligados a uma sociedade tida como tradicional, tais como a predominância do setor agrário sobre o industrial, a presença política de grupos sociais oligárquicos e tradicionais na estrutura do poder. Tal teoria do subdesenvolvimento era tendenciosa e inconsistente, tendo em vista que ofereciam uma interpretação parcial e distorcida do país, com o objetivo de propor estratégias de ação que modificassem os hábitos de consumo, de ação e de pensamento das populações dos países “em atraso”, como forma de colocá-los em consonância com o estágio de desenvolvimento dos países “mais avançados”. O problema do subdesenvolvimento era tratado como um problema técnico, que seria resolvido com planejamento. Daí a superioridade do planejamento sobre a ação planejada. Os problemas dos investimentos educacionais estariam ligados à falta de planos concretos, à falta de preparo de pessoal e coisas que tais (ROMANELLI, 1999).

77

entre aspectos da política e do modelo econômico, que influenciavam nos projetos para a

educação, que permeará toda a década de 60, continuando a ecoar em 70. Disso trataremos no

próximo capítulo.

1.1.2 A reforma universitária no final da década

A Reforma universitária foi realizada em função das pressões constantes das

tendências modernizadoras que partiam do interior do País, dos Estados Unidos, dos

organismos econômicos, educacionais e culturais internacionais. A rebelião estudantil era

uma ameaça às mudanças almejadas, o que fazia com que a reforma universitária se dirigisse

a uma dupla direção. Por um lado, modernizaria o sistema de ensino superior e, por outro,

controlaria as inovações expressas nas demandas estudantis. Reforma que, portanto, atendia

sobretudo aos interesses do desenvolvimento econômico, apontado pelas forças internas e

externas interessadas na modernização.

As posições assumidas pela reforma foram pautadas pelos dirigentes americanos da

Agência Internacional para o Desenvolvimento55 (AID). O papel assumido pela ajuda

internacional é preponderante nessa década (se estendendo ainda nas futuras). A AID

privilegia o ensino superior tendo em vista sua função de redefinição da situação dos

indivíduos na estrutura social. (ROMANELLI, 1999)

Valnir Chagas56 foi uma figura emblemática do final dessa década (e sobretudo nos

anos 70), integrando o grupo de trabalho57 para elaborar o projeto de reforma universitária,

que veio a converter-se na Lei n.5.540, promulgada em 1968.

55 É importante ressaltar que a educação é compreendida pela AID como um caminho para consolidar uma nova ideologia que se sintoniza com uma determinada idéia de modernidade e de desenvolvimento, já exposta por nós em outro comentário de rodapé. No caso da expansão econômica que se pretendia e da conseqüente concepção ideológica que daria condições à ela, vemos, sobretudo na segunda metade da década de 60, crescer a demanda por recursos humanos de vários níveis de qualificação e também por remanejamento das forças na estrutura do poder. Vejamos que a modernização é utilizada como ideologia de justificação, necessitando aumentar as oportunidades educacionais em determinada direção. No fim das contas, as mudanças que ocorrem nessa época não trazem reestruturações efetivas, apenas mantém-se uma estrutura, que, ainda que amplie quantitativamente a oferta de vagas no ensino, continua garantindo que parte da população fique sem acesso a esferas mais altas de formação, garantindo uma mão-de-obra de baixa escolaridade, necessária para a estrutura capitalista moderna. (ROMANELLI, 1999) 56 Valnir Cavalcante Chagas (1921 – 2006), cearense de Morada Nova, organizou o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), dirigindo-o de 1948 a 1953). Foi professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará entre 1960 e 1974, quando passou a lecionar na Universidade de Brasília, onde permaneceu até 1991. Foi membro do Conselho Federal de Educação (1962 a 1976), elaborou praticamente todos os pareceres importantes relativos às reformas do

78

A Lei nº 5540/68, ancorava-se em uma política de desenvolvimentismo, eficiência,

produtividade, por um lado e controle repressão de outro. A idéia da profissionalização

expressa na proposta de cursos de curta duração bem como a existência de cursos técnicos,

traz também nas entrelinhas a necessidade de uma mão-de-obra barata de meros executantes e

não pesquisadores, mantendo nossa dependência em relação aos países desenvolvidos

(ARANHA, 1989).

Em linhas gerais, a lei introduzia diversas modificações na LDB (no que se referia ao

ensino Superior). Extinguia a cátedra58, fez a unificação do vestibular e aglutinou as

faculdades em universidades, concentrando recursos materiais e humanos, com o foco na

eficácia e produtividade. Instituiu também o curso básico para suprir as deficiências do 2º

grau (antiga nomenclatura do atual Ensino Médio) e, no ciclo profissional, estabeleceu os

cursos de curta duração e longa duração. Além disso, desenvolveu também cursos de pós-

graduação, tendo em vista, dentre outras questões, compensar a existência dos cursos de curta

duração.

A administração também é reestruturada, visando sobretudo racionalizar e modernizar

o modelo universitário, integrando cursos e disciplinas. Passa a ser permitido a matrícula por

disciplina, instituindo-se o sistema de créditos, em função de uma nova composição

curricular. Os reitores e diretores não precisavam ser ligados necessariamente ao corpo

docente universitário, bastavam que possuíssem “alto tirocínio da vida pública ou

empresarial” Os cursos foram divididos em departamentos, que congregavam disciplinas

afins, impedindo assim a coexistência de disciplinas idênticas multiplicadas em várias

ensino, ao curso de pedagogia, assim como às licenciaturas e formação de professores, de modo geral. Em 1965 fez especialização nos Estados Unidos e em 1969 na Inglaterra. Considerava-se discípulo de Anísio Teixeira. (SAVIANI, 2007). 57 A frase entre aspas faz parte do relatório do Grupo de Trabalho (GT) que foi criado em 1968 com o objetivo de estudar a forma da Universidade brasileira, visando à sua modernização, flexibilidade administrativa e formação de recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento do país. Também foi produzido nesse período o relatório Meira Matos, que junto com o do GT, teve papel importante no delineamento objetivo da política educacional. É importante ressaltar que tais relatórios foram precedidos e orientados pelos pensamentos de John Hilliard, diretor do Office of Education and Human resources da AID e Rudolph Atcon, membro da AID, que assinaram os primeiros acordos do MEC-USAID, orientando programas através de uma publicação do MEC de 1966, em que se colocavam as linhas gerais de reformulação da Universidade brasileira. (ROMANELLI, 1999) 58 A cátedra (sg.cadeira magistral/ cadeira pontifícia), que conferia a um professor a prioridade em determinada cadeira era responsável pela existência de verdadeiros “feudos” dentro dos cursos de formação, acirrando vaidades e fazendo com que os mesmos recursos fosse utilizados para objetivos semelhantes, como por exemplo, a existência de mais de uma biblioteca sem a efetiva necessidade. Isso trazia maiores gastos, considerados desnecessários. (ROMANELLI, 1999)

79

secções ou unidades, com isso dando economia à utilização de recursos (ROMANELLI,

op.cit.).

Esta mudança, gerou a perda da autonomia da universidade, resultado do controle

externo de suas decisões tais como a decisão pela escolha do reitor, seleção e nomeação de

pessoal e divisão em departamentos, o que de certa forma fragmentou a antiga unidade. Tal

divisão também desfez grupos estáveis, uma vez que os alunos estavam divididos em função

da matrícula por disciplinas, esfacelando a interação entre as pessoas e desmobilizando

possíveis ações estudantis (ARANHA, op.cit.).

É importante, também, citar medidas anteriores à reforma, que continuaram a vigorar.

Uma delas é o Decreto-Lei 477, de 1969 que liquidou com o protesto estudantil ao proibir

movimentos de greve e agitações de caráter político.

A modernização criou uma complexidade administrativa e uma teia de mecanismos de

controle dentro e fora da Universidade, que segundo Romanelli (op.cit) a tornou mais

conservadora na sua estrutura geral. Em síntese, o que vale a pena sublinharmos é que a

pretensa modernização universitária e controle da aplicação de recursos, acarretaram perda da

autonomia universitária e mais esquemas de controle e dominação, dentro e fora da

Universidade.

Agora vejamos, por onde andava Célia durante todos esses acontecimentos.

1.2 Entre o dia e a noite: Incertezas e confianças

Tive meu primeiro filho aos 22 anos, 9 meses depois de meu casamento. Também ensinava na escola normal e num ginásio municipal que abrira num bairro popular: O Luiz Viana. Não faltava às aulas, cuidava do enxoval. Sonhava com uma vida que se alargava, que me surpreendia e perguntava pra mim mesma: “Até onde? A qualquer hora o anel que era de vidro, se quebraria?”. Conquistar uma autonomia que começava com uma casa que era minha e de um companheiro apaixonante, que como eu lutava, procurando saídas éticas para tantas opressões sociais, tantas histórias que também nos envolviam, era algo imenso, onde cabiam muitas experiências, com suas ambigüidades. (Célia em entrevista, 2007)

A década de 60 caracterizou-se pelo início de novos papéis na vida de Célia Linhares.

A graduação em Pedagogia na Universidade Federal do Maranhão (1957 – 1960), as aulas no

ginásio municipal “Luiz Viana”, o início da docência no ensino superior, a assessoria à

Secretaria de Educação Maranhense, direção da Rádio Educadora do Maranhão, obtenção de

80

título de mestrado... novas frentes que se abriam em sua vida profissional que então se

iniciava. Simultaneamente, nascia a Célia mãe e esposa. Seu casamento com José Linhares no

ano de 1959, seria brindado nove meses depois com o nascimento de Mário, primeiro filho,

em 1960.

Sobre a sua formação no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Maranhão,

Célia nos conta que no início as instituições universitárias eram separadas, ligadas à Igreja

que com um fundo específico havia erguido diferentes instituições. No prédio da Pedagogia

também funcionavam os cursos de Filosofia, Ciências e Letras. Célia sempre teve especial

atração por filosofia e o curso atendeu às suas expectativas de estudar esta área de seu

interesse.

Sobre seu casamento com José Linhares, Célia ressalta aspectos do companheiro, com

os quais se irmanava:

Em 1959, casei com José Linhares, então estudante de Direito e eu bacharel em Pedagogia. Ele era jornalista, colocou-se contra a pena de morte e defendia o nacionalismo contra as investidas do imperialismo dos Estados Unidos. Sonhávamos com o petróleo brasileiro jorrando dos fundos dos mares, para dissolver desigualdades e tiranias. (Célia Linhares em As coisas findas, 2007)

O convite para a docência no nível superior, em 1960, foi quase um “susto”. Antes

mesmo de concluir o curso na íntegra, foi selecionada para lecionar na própria universidade

em que estudava, tendo em vista suas boas notas e desempenho acadêmico, além da

necessidade da instituição de compor seus quadros. Para a jovem professora de 22 anos

ocupar esse novo lugar era um desafio e tanto, vivido por vezes com alguns sobressaltos:

(...) Numa turma em que eu lecionava, uma de minhas alunas era uma freira que era diretora de Serviço Social, uma mulher muito alta e poderosa. Eu com 22 ou 23 anos, via aquela diretora, freira, era minha estudante! Puxa! Eu tinha tanto medo dela! Veja lá, eu estudava na Universidade Federal do Maranhão, essa professora que era minha aluna, que estava terminando o curso universitário, era uma mulher muito mais velha do que eu, muito mais alta do que eu, muito mais forte do que eu, muito mais segura do que eu, era poderosa, diretora da comunidade das religiosas, que tinha faculdade de Serviço Social! Ainda por cima ela era sulista (paulista) e tinha sido formada pela PUC do Rio em Serviço Social! Ela estava fazendo licenciatura, puxa! Era um “GIGANTE” na minha frente. Enfim, isso para mim foi um impacto! (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Os três primeiros filhos nasceram, no Maranhão, nos anos 60. Mário, Paulo, Ângela e

Andréia nos Estados Unidos (para onde foram, no final dos anos 60, Célia e José Linhares

81

cursar o mestrado). A maternidade ampliava seu desejo de atuar na educação, enriquecendo

de delicadezas suas experiências afetivo-familiares.

À medida que nossas crianças nasciam fui sentindo como o choro das crianças repercutia diferente em mim. Queria intervir nas ruas, socorrendo crianças e minhas aulas passaram a ter uma atmosfera de “O pequeno príncipe”, de uma delicadeza, com as mensagens da vida, mensagens de crianças, mesmo quando engravatadas ou de salto alto como professores e professoras. Cada filho, cada filha trouxe imensidões de experiências que aumentavam meu desejo de ensinar, de educar, mesmo me sentindo muito pequena, despreparada para a proporção gigantesca daquele ofício que ia aprendendo. Fui percebendo como tinha medo dos erros, como eles me paralisavam e como nosso mundinho se interligava com muitos mundões, dos quais pouco sabia. Tinha um sentimento de estranheza diante da vida, do mundo.

Foi nesse período que algumas universidades viraram fundações. Até então havia uma

grande instabilidade financeira para quem trabalhava nas universidades. Célia nos conta que,

como professora horista, chegava a receber seu salário com atrasos de 4 a 5 meses. Como

fundação, a Universidade Federal do Maranhão em 1966-67 uma outra profissionalidade se

impôs. Célia passou a dar aulas não só na Faculdade de Educação, mas também para a

Faculdade de Serviço Social.

Outro eixo significativo de ações da professora, dizia respeito a seu vínculo com a

Secretaria de Educação do Maranhão, no então governo Sarney (que governou o Maranhão

entre os anos de 1966 a 1971). Ela foi convidada por um ex-professor seu, o Professor José

Maria Cabral Marques para assessorar a Secretaria de Educação. Logo, ela projetou ações,

visando incentivar estudos das tradições e culturas indígenas, recuperando aspectos da própria

herança cultural maranhense. Essa atenção às questões culturais, ao resgate da identidade

cultural de um povo, será mais tarde foco de pesquisas de nossa professora. Ressalte-se a sua

sintonia com as questões que se elaboravam na época e que buscavam a valorização da

expressão popular e de suas experiências.

Vendo aquela história da aprendizagem que não caminhava eu tive uma idéia muito da legal, que eu acho boa até hoje, que foi a de organizar por emulação o sistema de ensino, para participar de uma grande maratona que tivesse os índios como foco. Os estudos da cultura indígena, voltados um pouco para a grandeza de uma categoria étnico-racial que estava sendo esquecida, que era oprimida. Ali fizemos uma grande programação que saiu na televisão, muitos restaurantes passaram a ter nomes indígenas, começou de certa maneira um aproveitamento desse movimento, aquilo de certa maneira respingou na

82

sociedade. Organizamos uma equipe da universidade, os melhores professores para me ajudar a organizar as maratonas de trabalho. Era Rosa Mochel, excelente Professora de Geografia e uma mulher admirável. Ela era comunista e sabia afirmar-se, respeitando posições diversas, desde que não ameaçasse a liberdade. Mas ela não era uma exceção. A equipe era formada de professores de alta qualificação humana, cidadã e profissional. Todos pensavam com ramificações e com vôos inesperados. Lembro-me de um professor de história, outro de antropologia. Fomos com os meninos vencedores da maratona para uma tribo indígena, a dos Canelas. Era tudo tão precário... Eu tinha vinte e alguns anos e uma responsabilidade imensa, mesmo compartilhando com a equipe de professoras e professores, mas a coordenação era minha. A comida que levamos, mas das vezes, repartíamos com os indígenas a quem estávamos visitando. À noite, eles dançavam nos homenageando. Lembro que caiu uma chuva muito grande... Os caminhos ficaram interrompidos. Ficamos isolados. Fomos resgatados de lá por um helicóptero! (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Os anos 60, como já vimos, eram tempos de efervescência, no Brasil e no mundo. Por

aqui, vale ressaltar, os acontecimentos razoavelmente recentes no cenário político, tais como o

suicídio de Getúlio Vargas (em 1954), a renúncia de Jânio Quadros e a posse, na Presidência

do Brasil, de João Goulart eram emblemáticos das tensões entre as diversas esferas do poder.

As forças da direita, representadas fortemente pelos militares e aliados, mantinham uma

pressão permanente diante do que consideravam mecanismos de poder que estariam sendo

utilizados para favorecer à subversão comunista no Brasil. Tais tensões repercutiam na família

Linhares. É José Linhares quem resgata aspectos centrais que os impactavam na época:

Nos início dos anos 60, o Brasil enfrentava um profundo embaralhamento institucional, decorrente da renúncia de Jânio Quadros. Havia um forte movimento contra a posse do vice João Goulart. Os EUA vigiavam a América Latina, pois a Revolução Cubana representava um sinal inquestionável de uma caminhada para o socialismo. Na vida de nossos estudantes e de pessoas que começavam seu percurso profissional, repercutia a Revolução Cubana, de um lado nos chamando: “isso é possível!”. Vivíamos um dilema que eram duas alternativas: de um lado os “Vietcongs”, nos dizendo, “nós podemos jogar fora o Tio Sam”; Cuba também nos dizia a mesma coisa. No entanto, do outro uma força se agrandava no Brasil, cortando o nosso caminho, “por aí o Brasil não vai!”,. Tudo parecia nos dizer que não havia uma terceira via para nós! Nós só víamos essas duas possibilidades, e para nós a identificação com os pobres, com os que sofrem, com a nossa história familiar e essa busca de mais liberdade era muito mais forte. Tem uma outra coisa muito importante que era a organização dos grupos de oposição ao poderia americano, no Brasil e no mundo. Aí estavam o fascínio exercido por Cuba, as resistências do Vietnã e os grupos que se organizavam aqui. A igreja conservadora era terrível, no Maranhão ela era fortíssima, os empresários também se assustavam com possibilidades de maior compartilhamento dos poderes e se organizavam. Os Institutos de Pesquisa e

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Estudos Sociais, o IPES, IBADE59, fortaleceram a organização do golpe, partindo de seus interesses econômicos capitalistas. Sua difusão era tanto maior porque havia uma ideologia muito amedrontada em relação às mudanças no poder e, ao mesmo tempo, muito coercitiva, com os que simpatizavam e se alinhavam com os ventos de esperança que se espalhavam pela sociedade. Circulavam boatos que criavam atos cruentos dos comunistas. Dramatizavam cenas e contavam casos, confirmando expressões de pavor que até viraram anedotas, como: “comunistas comem crianças”. Enfim ser comunista, ser socialista , era identificar-se com imagens de ferocidade, de pessoas suspeitas, inimigas do Brasil e dos brasileiros. (José Linhares, entrevista, 2007)

No cenário mundial a guerra fria, dividia o mundo em dois grandes blocos

hegemônicos, liderados pelos Estados Unidos e União Soviética.

No Brasil as reivindicações trabalhistas são percebidas como uma ameaça comunista.

Em função disso os sindicatos sofrem intervenções.

À época, José Linhares tinha uma expressiva militância sindical como presidente do

Sindicato dos Bancários do Maranhão e em razão disso foi escolhido como primeiro delegado

da recém criada delegacia do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB),

em 61, no meio da crise política do país, fazendo com que acompanhasse bem de perto o

movimento de sua categoria. Ele nos conta um pouco do movimento que efervescia na época:

1964 foi um ano de muita ebulição, a renúncia do Jânio Quadros, com a ida de João Goulart (Jango) ao poder, mesmo que atravessando um contorno, via parlamentarismo, para ele poder ser aceito. O estopim da crise foi o comício das Reformas de Base na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964 . O Jânio tinha renunciado, em 61. Jango assumiu a Presidência do Brasil, sustentado por uma luta nacional, de extraordinária envergadura, comandada por Brizola, com o apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE), que, mesmo com alguma distância em relação ao Jango, endossou a Campanha pela Legalidade. Militava com os sindicalistas, com o sindicato dos bancários, que era uma força muito organizada e participava das discussões nacionais. Até havia sido indicado para delegado do Ministério do Trabalho. Por todas essas injunções, vim ao comício. Fiquei assustadíssimo com o clima geral do comício: ali estavam as mais pujantes forças nacionais, os marinheiros, os sindicalistas, todos num entusiasmo sem limites, era uma confusão. Voltei com uma sensação de susto, euforia e medo. Achei que aquilo podia não terminar bem.

59 Esses dois institutos são mencionados no item 1.1 desse capítulo.

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Houve em seguida, no dia 19 de março, a “marcha da família com Deus pela liberdade60”, organizada pela ala conservadora do clero, com um grande aval das mulheres de terços na mão, em parceria com as empresas, que temiam por seus lucros, caso as reformas se realizassem. Já de volta ao Maranhão, nós estávamos reunidos, o pessoal de esquerda, quando a programação no radinho foi suspensa e ouvimos “tropas militares se deslocam para o Rio de Janeiro, vindas de Juiz de Fora, comandadas pelo general Mourão Filho!”. Nosso primeiro movimento foi de festa, “É a revolução!”, o Bandeira Tribuzzi, um poeta maranhense, ficou alucinado, “É a revolução! É a revolução! Vamos nos preparar!”. Ficamos ouvindo, ai a gente viu que não era o nosso grupo e então nos preparamos para ser presos. Muito cedo eu fui destituído do IAPB, fui chamado ao quartel para depor, fiquei lá alguns dias, foi todo mundo preso, uma debandada geral, nos encontramos no quartel. Fui destituído do cargo de presidente do sindicato também, mas logo convidado a lecionar na universidade (José Linhares, entrevista, 2007)

Os Linhares começavam a sentir chegar mais perto o movimento repressivo, primeiros

sustos que iam vivendo.

Voltando ao cenário mais amplo, lembram da relevância da produção musical da

época, que enunciava os embates que se travavam socialmente. Especialmente na música

popular brasileira, a bossa nova afirmava-se e difundia-se músicas com forte temática de

cunho social. O movimento tropicalista, encabeçado por músicos como Caetano Veloso,

Rogério Duprat, Gilberto Gil, Júlio Medagli, incentivava a universalização da música

brasileira. Caetano, principal expoente, no campo da MPB, da Tropicália, nos brinda com

“Alegria, alegria”, emblemática dos tempos em questão. Destacamos trechos dessa canção

que expressam esse momento:

Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento

No sol de quase dezembro Eu vou...

O sol se reparte em crimes

60 A “Marcha da família com Deus pela liberdade” foi um movimento organizado no início de 1964 com o objetivo de sensibilizar a opinião pública contra as medidas que vinham sendo adotadas pelo governo João Goulart. Articulou setores da classe média, temerosos do “perigo comunista” que eram a favor da deposição do presidente da república. O movimento consistiu em uma série de manifestações organizadas sobretudo pelo clero e entidades femininas. Aconteceu inicialmente em São Paulo e depois em outros estados do Brasil.No Rio de Janeiro, a marcha levou às ruas cerca de um milhão de pessoas no dia 2 de abril de 1964.

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Espaçonaves, guerrilhas Em cardinales bonitas

Eu vou... Por entre fotos e nomes

Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores

Eu vou... Por que não, por que não...

Por entre fotos e nomes

Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone No coração do Brasil...

Sem lenço, sem documento Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor Eu vou...

Por que não, por que não... (Alegria, alegria de Caetano Veloso)

Célia reporta-se, aos já mencionados anos 60 e, nele destaca a experiência de Angicos

conduzida por Paulo Freire, e as esperanças que essas concepções de educação despertaram, a

presença do MEB no Maranhão, a destruição terrível que se estabeleceu com o golpe de 64,

mas também a força e a potência dos nossos movimentos na América Latina e no mundo.

Também se detém nos acontecimentos que levaram os jovens universitários franceses em

1968 a mostrar sua insatisfação e a levantarem-se por um outro mundo. Voltaremos a isso.

O impacto das teorizações relacionadas à fome de Josué de Castro é também

expressivo, ela nos conta. Para o autor, a fome era um fenômeno universal, do qual nenhum

país escapava. Expressão biológica dos males sociológicos, intimamente ligados às distorções

econômicas, a que dava o nome de subdesenvolvimento. Reporta-se a imagem do “homem

caranguejo”, que sobrevive no lúgrube ambiente dos mangues do Capiberibe, como um

emblema dessa questão.

Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne. A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.

São seres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo - este leite de lama

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-, se faziam irmãos de leite dos caranguejos (CASTRO in Geografia da Fome, 2002).

É, no entanto o Golpe de 6461 que provoca o maior impacto nessa década, trazendo

para todos os que lutavam por caminhos mais democráticos, uma aterrorizante vulcanização

de medos.

Mas, nenhum impacto pode ser comparado no Brasil ao golpe de 1964, que silenciou os discursos divergentes, prendendo e matando os que se opunham ao regime de força, aqui instalado, oficializando a tortura e inaugurando o desaparecimento político na história brasileira. (Célia Linhares em “As coisas findas”, 2007)

Em 1966, José Linhares foi convidado para dirigir a Rádio Educadora Rural do

Maranhão, experiência que marcaria a década dele, de Célia, de seus pares e se entrelaçaria

com a de muitos de seus contemporâneos. Embora nunca tivesse realizado algo do tipo,

Linhares foi montando uma equipe, incluindo alguns técnicos e com Célia se engajaram

firmemente no novo projeto. De vocação democrática, a Rádio configurava-se em um espaço

aberto à participação popular. Sua gestão era coletiva, onde se discutiam as pautas e o teor dos

programas por ela veiculados.

Dentro da rádio educadora foi se construindo um clima de debate geral; havia um empenho de dialogia. Às vezes, quando me lembro, me dou conta da beleza desse sonho. Bem sei que um tipo de gestão dessas é quase impossível numa instituição, num regime capitalista. Num regime de exceção, meu Deus! é quase impossível pensar. Mas é que tudo conspirava para percebermos, como nunca, a grandeza avassaladora de um autoritarismo muito feroz, que nos ameaçava, impregnando velhas práticas. Agora vejo mais claramente, que por causa de tudo isso, tentávamos um tipo de organização, onde todo mundo pudesse participar. Era um sonho, que nem sempre conseguíamos, sobretudo, quando a sobrevivência da Rádio perigou. Então este problema de mantê-la atuante, viva foi nos afligindo e tomando

61 Vale a pena destacar a criação, na mesma época do Golpe de 64, o Serviço Nacional de Informações - SNI, mediante a Lei nº. 4.341, cujo texto lhe atribuía a função de "superintender e coordenar as atividades de Informações e Contra-Informações, em particular as que interessem à Segurança Nacional". Diretamente ligado à Presidência da República, o novo órgão operaria em proveito do Presidente e do Conselho de Segurança Nacional.

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mais espaços em nossos debates. Mas tentávamos, pois era também um momento extremo de perigos e precisávamos nos abrigar uns nos outros, diante de monstros descomunais... Ah! O valor do perigo! Benjamin reconheceu as fertilizações dos perigos e fez disto um eixo de seu viver e de seu pensar! Mas tínhamos nossas concepções estudadas e compartilhadas com os que convivíamos naquela época. Por isso, acreditávamos que só assim, discutindo a toda hora, iríamos construindo uma radiofonia educadora. Era essa nossa concepção: se a rádio é educadora, ela tem que educar para dentro e para fora. (Célia Linhares, em entrevista, 2007) O importante também é que nós nos misturávamos com toda a equipe leiga, a equipe que veio de fora, como o Cresus, que era um garotão. Todo mundo. Tudo nós decidíamos em reunião. (José Linhares, em entrevista, 2007)

A Rádio pertencia à arquidiocese, representada pela figura de Dom Mota. Sempre que

eram chamados por ele para discutir diretrizes da Rádio, levavam o teor da conversa à equipe.

Certa feita, Dom Mota pediu que transmitissem a missa da padroeira da cidade, Nossa

Senhora das Vitórias. Uma das integrantes da equipe, Dorothy Pritchard (a entrevistada desse

capítulo), colocou-se enfaticamente contra, acreditando que a rádio precisava garantir um

espaço laico, aberto ao povo. A equipe posicionou-se apoiando a decisão por não transmitir a

missa, o que, podemos imaginar, desagradou Dom Mota.

É porque a gente achava que a religião não era para ser identificada com um fanatismo, com um tipo de ritual mecânico, alimentando práticas como as garantias do céu, pela compra de indulgências, ou ritos semelhantes, procedimentos contra as quais Lutero e tantos outros se bateram, há tanto tempo e tantos, tantas de nós, ainda se batem. (Célia, entrevista, 2007)

Vemos aqui que embora ligados ao movimento da Igreja, a posição do grupo rompia

com uma idéia de catequese, focalizando em sua prática a atenção às questões do povo. Isso

evidenciava-se no teor dos programas, de cuja elaboração Célia foi uma das responsáveis,

tematizando as questões populares:

Pude participar de muitos programas e sonhos que confluíam com toda a equipe da Rádio, desde o seu diretor até o faxineiro. Dorothy Pritchard viveu comigo muitos momentos especiais. Ela era a responsável por um Programa infantil, em que eu dava opiniões, o Dona Carochinha, que foi uma maravilha. Eu fazia vários programas, entre os quais, me agrada destacar um de Formação de Professores. Esse Programa penetrou nos bairros e nas localidades mais pobres, discutindo a problemática da educação, da escola, com professores em sua maioria leigos. Eles mandavam perguntas e fizeram elos intelectuais, curiosos e afetivos, conosco.

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Alguns, de uma região praiana chamada Raposo, onde a Rádio vinha contribuindo para a organização de uma cooperativa de pescadores, mandavam peixes, outros e outras mandavam patos, galinhas e ovos e uma professora me convidou para que fosse a madrinha de seu filho. Escrevia textos, que depois reuni num tipo de apostila, que a ditadura empurrou para os cantos dos perdidos. Mas, ficou essa experiência de educação à distância, feita com o “gogó”, a cabeça e suas interligações viscerais que passavam por uma enorme simpatia popular. (Célia Linhares em entrevista, 2007)

Como vimos, as rádios tiveram grande difusão na época, sobretudo em programas de

cunho educativo. A presença da Igreja e os diversos movimentos e ações populares foram

também expressivos. Interessante observar que algumas idéias que hoje nos parecem tão

contemporâneas, enraízam-se em experiências que já vão longe no tempo, como, por

exemplo, esse ensaio de uma educação à distância promovido pela rádio.

Célia estava ligada aos movimentos que se configuravam então, identificando-se com

um projeto de nação que se queria mais justa, em que a educação tinha papel de destaque.

Era tempo dos MCPs e outras associações semelhantes, da vitalidade expansiva da UNE, da JUC, das ações de Paulo Freire, da poesia de Ferreira Goulart. Queríamos um outro Brasil e os professores precisavam estar alertas para contribuir com essa Pátria que crescia dentro e fora de nós, com o sonho das Reformas de Base: a agrária, a educacional e todas as demais. Com suas contradições. (Célia Linhares em entrevista, 2007)

Além dos programas mencionados, Célia se lembra de um outro que realizava com

seu marido, que “pescava” as questões que estavam em ebulição na cidade, dando espaço para

discutir sobre elas na Rádio, exercício de olhar reflexiva e criticamente o tempo em que

viviam.

Outro programa que fazia diariamente com meu marido era o “Amanhecendo com um outro dia”. O Programa era feito ao vivo às 6:30 e versava sobre questões educacionais, familiares e políticas que sacudiam a cidade. Essa foi uma idéia do escritor maranhense, padre e romancista (autor de Maria da Tempestade, Amar e Sofrer, entre outros) João Mohana que teve uma ressonância nacional e repercutiu na geração inquieta a que pertencíamos. (Célia em “As Coisas Findas”, 2007)

O clima da Rádio era contagiante. Havia uma provocação no ar, um movimento

crítico diante das injustiças e desigualdades, expressos nos temas dos programas e nos

comentários dos locutores. Célia nos conta que era comum receberem da própria população

notícias sobre situações ligadas às questões cotidianas, de seu trabalho e vida, que na Rádio

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ganhavam voz e vez. A Rádio queria falar ao pescador, ao homem da terra, à mulher

trabalhadora, tematizando seu universo de experiências e embates.

Quer dizer, a rádio era um circuito vivo de debates e embates, o tempo todo. Então, quando foi o programa “Entre o dia e a noite” que entrava no ar às 18 horas, nossa idéia era realmente fazer um programa na fronteira, entre o mundo conhecido e o mundo não conhecido que era uma categoria que organizava muito os movimentos naquela época, “o homem novo, o homem velho...”. Escolhemos portanto um horário de fronteira. (Célia em entrevista, 2007) Uma crônica escrita por minha irmã, Yolanda Soares Freire – colocou em dúvida a própria noção de independência, face aos índices de mortalidade e fome no Brasil e, particularmente, no Nordeste. O datilógrafo pegou o texto e cada vez que tinha alguma coisa mais aguçada ele botava em caixa alta: “O BRASIL É INDEPENDENTE?!”. Quando o locutor o apresentou, o fez em tal tom, que injetou no ar uma audifonia revolucionária. Ai pronto! A leitura dessa matéria teve um impacto brutal!!!

Célia se refere à nova idéia de homem que se elaborava à época, para o qual a

conscientização da realidade social em que se vivia era fundamental (mote central das idéias

de Freire e, guardadas as diferenças de matrizes ideológicos, de Anísio Teixeira).

Embora o clima geral no país fosse de inquietação e, de certo modo, de sobressalto,

para eles, mesmo após a experiência de Linhares, como presidente do Sindicato dos

Bancários, já mencionada, não estavam ainda muito claras as possíveis pressões, censuras e

penalizações que poderiam sofrer.

(...) A gente não aquilatava o abismo em que estávamos para cair, a gente não avaliava muito bem. Não sabíamos bem como era o “pega pra capá”, a gente não sabia as imensas proporções do que tocávamos, mas sentíamos que era preciso resistir. (Célia, entrevista 2007)

No entanto, não demoraria para que sentissem de modo mais evidente as pressões. O

programa escrito por Yolanda, ao qual nos referimos anteriormente, cujo conteúdo corajoso

provocaria reações que trariam a dimensão mais aproximada do contexto em que se inseriam.

Yolanda entregou o texto manuscrito na Rádio. O datilógrafo, transcreveu o texto utilizando

caixa alta para as passagens mais contundentes. Lido de modo entusiasmado pelo locutor,

cada trecho em caixa alta era oralizado com veemência. Em seguida , a ação de um

comandante, que fazendo uso de seu poder, deixava bem clara a insatisfação com o conteúdo

do programa. Descobriram então que a Rádio já era vigiada há algum tempo. Anoitecia...

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Havia mil teorizações, mil debates. O Maranhão tão distante de tudo, que as palavras, mesmo aquelas que nos traziam mais esperanças eram seguradas como tábuas de salvação, quase dogmas... Por exemplo, acreditávamos, apoiando-nos nos nossos mais queridos autores, que a história tinha uma marcha irreversível! Tudo muito positivista e nós tão desarmados, urgindo por alguma segurança, alguma proteção, diante de infinitos fantasmas. Irreversível “coisa” nenhuma! Nós vimos que nada é irreversível. Mesmo assim, era um movimento muito coletivo que acionava uma certa audácia e nos dava algum amparo compartilhado por todas e todos nós. (Célia Linhares em entrevista, 2007) Mas, o fato era que o Batalhão ( a sede do Exercito no Maranhão) estava na escuta, com velhas desconfianças, gravando todos os nossos programas. Nós não sabíamos disso! ”. (José Linhares) “Logo que a emissão foi concluída os efeitos apareceram como de uma verdadeira explosão. O exército resolveu fechar a Rádio. O comandante, pessoalmente, comandou a operação e ao encontrar-se com o locutor bradou com a voz prepotente e vitoriosa: ‘O Brasil é in-de-pen-den-te, seu Cresus.”62

Começava um período de grande tensão. A ameaça constante pairava no ar. O que

levava aquele grupo de jovens a, mesmo diante do risco da exposição, buscar brechas de

resistência?

Era de um lado uma pressão entre resignar-nos com a ditadura, o que jamais admitimos – pois isso seria agir contra nós, contra nossos sentimentos mais e mais forjados pelas nossas vidas, sentimentos que nos irmanavam, entre nós e aos mais pobres, mais sofridos – ou andar num terreno absolutamente cheio de armadilhas e cadafalsos, de medos, muitos medos. Não tinha uma terceira via até aonde podíamos enxergar e discutir. Eu me lembro que isso era muito confuso, muito doloroso para todos nós. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Difundia-se a idéia de que o comunismo era uma força perigosa. Para o senso comum,

um sinônimo de perda de liberdade, um perigo. Célia podia sentir a presença dessa visão na

expressão de pessoas próximas e na interpretação que davam a algumas situações. Célia

lembra, como exemplo dessa questão, do comentário de um parente a respeito da distribuição

dos rádios, realizada pelo MEB e pela própria Rádio Educadora, para facilitar a audiência aos

62 LINHARES, Célia, Caminhos de Medo e Esperança, In: LINHARES, C. E NUNES, C. Trajetórias de Magistério: Memórias e Lutas pela Invenção da Escola Pública. Rio de Janeiro, Editora Quartet, 2000, p.34

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cursos ministrados e aos programas pelas populações rurais tão isoladas dos contactos

contemporâneos. O fato é que a Rádio recebeu de uma agência, “Alemanha Católica” – vários

radinhos para serem distribuídos para a população. Tratava-se, como dissemos anteriormente,

de viabilizar o instrumento técnico necessário para que fosse possível acompanhar a

programação da rádio. Esse parente, com sua importância no circuito da minha família, ao

tomar conhecimento de tal iniciativa, disparou: “esse é o comunismo, pois já tirou a

liberdade!”.

Foi como se jogasse, com sua autoridade, numa denúncia temível, fixando um rótulo que me descriminava e me fazia um ser ameaçador e, por isso, ameaçada. Entendi os processos da Inquisição e como eles me pareceram inexoráveis! Nos seus olhos faiscavam ódio, poder, triunfo e uma inveja repressiva. “Olha daí, essa filha de uma viúva, o que ela pensa que é, e que pode fazer do Brasil. Casada com um comunista, ela e essas pessoas, com quem eles andam, estão preparando o comunismo, ou a chegada do comunismo! Eles são socialistas, eles estão educando os filhos deles no socialismo”. Seu olhar faiscava, seus lábios crispavam e fui confirmando como se iam produzindo as “pessoas perigosas” que deveriam ser punidas. Um olhar do “já sei” que relampejava entre vizinhos, colegas e que vão nos cercando, com implicações de suspeitas. Então corria um sangue frio, quando colocava meus pequenos no colo e os via começando seus percursos, com as curvas, algumas herdadas de nós...Eram muitas tensões... (Célia em entrevista, 2007)

Tensões que ecoavam também na vida fora da Rádio, na preocupação com os filhos,

numa aflição que acompanhava Célia, permanentemente, e que ela não sabia como nomear.

A Rádio fechada, a atitude inibidora do comandante era só o início de pressões

maiores que incidiriam sobre essa emissora e que se avolumavam com o inquérito policial.

Eu e Linhares estávamos assistindo Gandhi no cinema Éden. Eu estava tão aflita... quando cheguei em casa nosso filho Paulo havia se machucado, brincando... Nós morávamos num prédio, num conjunto dos Bancários. Hoje é um tipo de residência popular, mas naquela época era uma coisa de classe média/média.. Paulo (uns 4 amos) caiu e machucou muito em cima dos olhos. Íamos levá-lo para o hospital, quando então, soou uma chamada telefônica. A voz apavorada encheu nossa salinha de assombro e se juntou com a figura de nosso Paulinho machucado e deitado no sofá. “Doutor Linhares, a Rádio educadora está cercada!”, e Linhares perguntou, “mas o que foi?”, “Foi o programa das mulheres!”. A rádio educadora estava cercada! A Rádio cercada pelas forças militares! Linhares pensou em me tirar do Brasil, Os temores cresciam... mas como sair?! (Célia Linhares em entrevista, 2007)

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Eram tempos difíceis. Mais de um episódio de repressão à Rádio tiveram curso. José

Linhares relembra algumas tensões:

Célia teve uma participação muito grande na Rádio educadora. Foi um período muito difícil. Para você ter uma idéia, uma vez fui a São Paulo para comprar uns equipamentos e quando eu voltei, alguém da Rádio educadora foi me apanhar numa caminhonete. Eu perguntei a ele: “como é que estão as coisas lá na rádio?”, e ele disse, “tudo bem!”, só que não estava tudo bem, a Rádio havia sido cercada pelos militares! Uma missa camponesa tinha sido o estopim da situação. Eu nem sabia pois estava em São Paulo há dez dias. Tinha sido um padre, da hierarquia da Igreja, da ala reacionária, conservadora que nos denunciou. Mas, nós chegamos a experiências tão avançadas para a época que me lembro de celebramos uma missa, em torno da mesa como fez Jesus, fizemos a missa, consagramos o pão e o vinho e distribuímos como hóstia. (José Linhares em entrevista, 2007)

A gravidade do movimento ditatorial evidenciava-se. Amigos e conhecidos

começavam a sair do Brasil, a se mudar, a desaparecer dos circuitos ou a se ajustar a outras

oportunidades. Chegavam notícias das torturas. Diante da repressão da ditadura, a Rádio foi

fechada e alguns de seus representantes, presos. Célia foi depor na polícia federal,

conseguindo ser liberada, talvez pela sua própria figura, pelo seu carisma, pela sua

popularidade. Eles sabiam muito de sua trajetória, que era querida na Universidade, que fazia

palestras em bairros, que vivia misturada com as ações populares da Igreja. Disseram que não

havia nada efetivamente que depusesse contra sua idoneidade, mas aconselharam-na a ter

mais cuidado.

O golpe foi muito terrível em 64, mas foi em 68, considerado um golpe dentro do golpe, e com AI-563 que a ditadura mostrou toda a crueldade de que ela era capaz, aquelas listas nos aeroportos, os subversivos catados, os opositores sendo presos, punidos e desaparecidos. (Célia Linhares em entrevista, 2007)

63 O Ato Institucional nº. 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. (http://www.cpdoc.fgv.br/nav_fatos_imagens/htm/fatos/AI5.htm acesso em 29 de abril de 2007)

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Outros episódios de repressão e controle de expressão davam o tom dos ‘novos’

tempos. Em 1968, Célia havia sido escolhida como paraninfa da turma de formandos da

Universidade Federal do Maranhão; ela conta que, na véspera da formatura, recebeu uma

ligação ameaçadora: “olha professora, você só vai poder falar se mostrar o seu discurso!”.

Era da parte do tal comando militar que atuava na vigília dos “militantes”. Célia conta que,

apesar dos medos e apreensões, era impossível não reagir diante de afrontas como essa, o que

fez entre sobressaltos e com o coração pulando, também de uma força que ia brotando e

revigorando-a.

Eu era novinha e embora rebelde, nunca fui do tipo de “tirar sangue da bochecha de ninguém”. Mesmo assim, respondi na mesma hora, “olha, não tem possibilidade de mostrar o que eu vou ler antes da hora, mas se o senhor estiver interessado, vá e escute!”. Não sei nem se eles estavam na hora, mas quando me chamaram, me levantei e fui. Estava todo mundo com muito medo. Embrulhada com este, há outras histórias triunfalistas, daquelas que se desfiam quando vêm o outro, no caso, a outra, prestes a cair. Lembro, por exemplo, de um episódio que envolveu uma professorinha, que foi minha professora. Dessas do tipo amável, mas que perscruta, olha, que às vezes leva e outras tantas traz, que numa ocasião difícil, chegou me advertindo: “eu te avisei, não disse?!”. O tom era ameaçador; então respondi: “Professora, a senhora me avisou e, tem mais, eu gravei tudo que a senhora disse; está tudo gravado!”. Ela mudou de cor, porque viu que aquilo era um documento; então continuei: “a senhora não avance nessa direção que já está tudo documentado!”. Mas eu nem tinha feito isso. Na hora me pareceu que aquilo poderia ser um expediente para travar aquele maquiavelismo dela. Não sei se conseguimos. (Célia Linhares em entrevista, 2007)

Célia não se reporta a seus atos de enfrentamento como quem relata uma bravura.

Antes, não se furta a comentar o medo que acompanhava suas ações, as dúvidas e

inseguranças que a acompanhavam. No entanto, quando a questionei sobre o que a motivava a

enfrentar, ainda que com tantos receios, as situações que viveu, ela ressalta seu sentimento de

que “não havia outra via”, era o que era preciso ser feito.

Nós sempre tivemos alguma noção do que acontecia, mas fomos vendo que a gravidade era ainda muito maior, e que ela podia nos tocar muito de perto. Não parecia para nós que a gente pudesse recuar. Quando levamos o Paulo para o hospital, no episódio do acidente que relatei, eu lembro de que á ia chorando; pois é muito doloroso, a gente ter um novelo de relações sociais que nos envolvem, nos formam e que não sabermos como conviver mais com tudo aquilo, que no fundo tanto amamos. Estávamos um pouco a mercê daquela situação que era maior do que nós. Não tínhamos como nos colocar com clareza e segurança.

94

A experiência na Rádio marcaria significativamente Célia, José e seus companheiros e

companheiras. Nos próximos vôos do casal, ainda seria possível ouvir os ecos da militância

na Rádio.

No ano de 1968, final da década, Célia e José conseguem uma bolsa de mestrado na

Michigan State University, após mais percalços.

No final da década dos 60 obtive o meu mestrado, através de uma bolsa mediada pela Sudene64/USAID65 e para a qual fomos selecionados, meu marido e eu, como professores da UFMA. Vejam só as ambivalências e contradições presentes na vida, na história. Foi a Sudene, com seus convênios com a Usaid que nos selecionou. Por que? Por sermos jovens, de alguma maneira promissores? Pela nossa liderança em São Luís? (Célia Linhares em entrevista, 2007)

É importante sublinhar que a aprovação para o mestrado não tinha sido imediata. O

tempo entre os primeiros contatos e a ida efetiva para os EUA foi de mais de um ano. Várias

foram as exigências e os impedimentos que se interpuseram no momento inicial para os dois,

sobretudo para José. Informações sobre suas atuações “subversivas” já eram conhecidas por

lá, o que levantava suspeitas sobre ele.

Além da atuação na Rádio e de toda polêmica que ela suscitava, um outro episódio

contribuiu para que José fosse visto com reserva pelo consulado americano. José era professor

de sociologia da Universidade Federal do Maranhão. Certa ocasião ele concedeu uma

entrevista muito polêmica à televisão, que se iniciava em São Luis, a respeito de um

programa, financiado por uma organização americana. Tal programa que estava sendo

implementado consistia na aplicação de dispositivos intra-uterino (DIU), um contraceptivo,

nas mulheres brasileiras, particularmente nas mulheres maranhenses. Linhares colocou-se

francamente contrário a essa iniciativa. Os movimentos de Linhares no Brasil eram do

conhecimento do governo americano que viam com suspeita o jovem professor.

Eu fiz referência na entrevista sobre uma organização americana que estava esterilizando as mulheres; Já disse também que fiz uma matéria na televisão,

64 Superintendência de desenvolvimento do nordeste. 65 Já mencionado na parte inicial desse capítulo.

95

criticando essa iniciativa, não foi? Encaminharam uma denúncia para o consulado dos EUA e quando eu fui me apresentar para preparar os papéis para a viagem, eles disseram, “tem uma denúncia aqui contra você!”. Eles tinham, têm uma rede forte. Logo mandaram uma notícia que estava cancelada nossa bolsa. Houve um certo impacto. Por que o cancelamento; tudo estava pronto. Na época, fazíamos aulas de inglês com uma americana que nos ajudou. (José Linhares, entrevista, 2007)

Célia, no momento do relato de José, complementa o episódio com ênfase:

Essa senhora, D.Anita colocou-se francamente revoltada contra a suspensão de nossa bolsa. Lembro, que em certa ocasião, num evento da SUDENE no Hotel Central de São Luis, ela que lá estava interpelou os gringos e disse: “onde estão os americanos? Se esse casal não for para o mestrado nos EUA, em nome da minha cidadania americana eu vou protestar, vou interpor um recurso!”. Tudo isso foi ela mesma quem nos disse. E continuou, fazendo um elogio ao nosso desempenho e aproveitamento em inglês e, ao que segundo ela, representávamos em São Luís e, ainda, como havia repercutido tudo o que Linhares dissera na televisão, pelo que Linhares era na cidade. Isso teve um impacto, os americanos diziam, “nós não estamos dizendo nada com relação ao futuro, somente ‘at the moment its not possible! Only this, at the moment!’”, ela disse: “At the moment eu não aceito!”, e fez uma enrolada forte.(Célia Linhares em entrevista, 2007)

Quando, enfim, conseguiram rumar para os EUA, receberam o aval da universidade

onde lecionavam, mantendo os vínculos institucionais pois se tratava de uma bolsa de estudos

e a instituição tinha interesse em que eles realizassem o mestrado.

A ida da família para os Estados Unidos em 1968 conjugou o desejo de aprimorar os

estudos à necessidade de afastamento do caldeirão de pressões que havia se formado em torno

deles naquele momento. Instalar-se nos EUA e efetivar o vínculo com o mestrado não foi um

processo fácil. Uma numerosa família instalava-se nos Estados Unidos. Além de José, Célia e

os filhos, com eles iam também dona Alice, mãe de Célia, sempre solidária e reforçando os

avanços dos filhos e Bibi, ajudante, amiga que atravessaria as décadas ao lado da família. Era

então a primeira viagem ao exterior para todos eles.

96

Foi uma experiência difícil, não fora pela maravilha de estudar questões como a “fabricação de desejos” e até do “consentimento de morte” (antropologia), as relações entre “Eros e Civilização”, com suas ambigüidades e paradoxos (filosofia), a potência das expectativas (currículo), educação, desigualdades e burocratização escolar (sociologia), mas pelo prazer de ver outras culturas em movimento (a negra66 lutando por seus espaços e reconhecimentos sociais, a cultura hippie67, os resistentes manifestando-se, lutando, empenhando-se por todos os meios contra à guerra do Vietnã68). Mas além de tudo isto recebi um prêmio da vida, o nascimento de minha filha Andréa. Alguns autores que li nesta época, como Max Weber, Marx, Wright Mills, Marcuse, Mc Luhan, Brokover, Bernard Show, Ângela Davis, até hoje ressoam em mim. (Célia em “As coisas Findas”, 2007)

Nos EUA, os Linhares tiveram que enfrentar diversas etapas para serem aprovados e

manterem o vínculo com o programa de lá. A partida não estava ganha. Além disso, a

definição do campo de estudos para José Linhares não se deu tranqüilamente, passando pelo

crivo dos avaliadores americanos.

Pais de uma família numerosa, imigrantes e estudantes. Novas lutas para os Linhares.

De início, ficamos dois meses em Washington fazendo um curso de cultura americana. Linhares queria estudar “PUBLIC administration”, porém lá eles propuseram “Business administration”. Eu sei que foi um parto! Eles diziam que Linhares tinha poucas possibilidades de fazer o mestrado enquanto que a

66 Nessa década ganha força o movimento dos negros nos Estados Unidos pela igualdade racial. Em 1966, o líder negro do Movimento dos Direitos Civis dos negros, que pregava a não violência, Stokely Carmichael, líder negro do Movimento dos Direitos Civis dos negros e primeiro ministro honorário dos Panteras Negras, cunhou o termo “Black Power” para fortalecer a auto-estima negra. Foi também grande crítico da guerra contra o Vietnã. Malcom X é também um ativista influente à época, um dos maiores defensores da luta pelos direitos dos negros. Martin Luther King, pastor e ativista político pelo os direitos dos negros ganhou o prêmio Nobel da Paz, sendo assassinado em 1968. Ficou conhecido pela luta de Não-violência e propagação da Paz. Outro importante movimento da época, foi o dos panteras negras, partido negro revolucionário estadunidense, fundado em 1966. Originalmente, pretendia patrulhar guetos negros para proteger os moradores dos atos de brutalidade políciais. Eventualmente, tornaram-se um grupo revolucionário que defendia o armamento de todos os negros, a libertação dos negros da cadeia, o pagamento de compensação pelos séculos de exploração branca e isenção de pagamento de impostos e de todas as sanções da chamada “América Branca”. A ala radical defendia a luta armada. O partido foi desfeito em meados dos anos 80. 67 O movimento hippie foi característico da contracultura, dos anos 60. Os hippies defendiam o amor livre e a não-violência, protestando contra o nacionalismo e a Guerra do Vietnã. 68 Conflito armado entre 1958 e 1975 no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e do Laos, e bombardeios (Rolling Thunder) sobre o Vietnã do Norte, a Guerra do Vietnã marcaram a década de 60 em função da atitude insubordinada dos vietnamitas diane da intromissão dos EUA. O conflito surgiu sob o pretexto americano de um ataque norte-vietnamita aos seus navios USS Maddox e USS C.Turney Joy enquanto patrulhavam o Golfo de Tonquim, em julho de 1964. Os EUA pretendiam intervir na política interna do Vietnã. Os americanos temiam que o líder comunista, o vietnamita Ho Chi Minh vencesse o plesbicito, em função de sua popularidade e liderança (ele havia sido um herói na resistência do Vietnã a ocupação japonesa e a luta pela independencia da França). Para os Estados Unidos, a vitória de um líder comunista poderia influenciar outros países vizinhos a seguir o exemplo da insubordinação vietnamita (AQUINO, 1989).

97

mim eles diziam que eu tinha todas. O meu mestrado acordado foi filosofia e sociologia da educação. A gente pensava em ir para os Estados Unidos e se concatenar com as forças mais revolucionárias, chegando, pensávamos, iríamos nos concatenar dentro da universidade, com professores progressistas e fora da universidade com o movimento negro, com a luta contra o Vietnã. (Célia Linhares em entrevista, 2007)

A vida nos Estados Unidos seguiu até início da década de 70, quando então, a família

retornou ao Brasil, assunto de que trataremos no próximo capítulo.

A dissertação de mestrado de Célia, intitulada “Contemporary Educational Issues

Raised By Mc Luhan, Mills e Marcuse” perdeu-se em meio as muitas mudanças de residência

que ocorreriam nos anos 70, a nosso pedido, Célia produziu um pequeno texto-resumo,

recuperando as questões centrais de que tratou.

A dissertação desenvolveu-se na confluência dos estudos então desenvolvidos nos

Estados Unidos em que se articulavam questões trabalhadas pelo Marxismo e Psicanálise (

Marcuse); aquelas outras que focavam as impregnações privatistas, isolando os indivíduos

dos interesses mais políticos (Mills) e, finalmente, os impactos das tecnologias da

comunicação que estavam criando outros ambientes sociais e planetários, que transformavam

o cenário do mundo num tipo de “aldeia global” (McLuham). (LINHARES, 2008).

Se, o encaminhamento central das questões tratadas estava ligado às possibilidades

críticas presentes na sociedade americana e mundial, Célia também procurava aproximá-las

da realidade brasileira submetida à tiranias de um ditadura que se fortalecia. Mas, talvez o

mais interessante é que todos essas problemáticas confluíam para a questão da ambiência

como conjuntos de equipamentos sociais, com potencial educador. Assim, Célia estudou a

ambiência dos bairros pobres, da juventude hippie, das lutas dos negros, dos chicanos e de

outras minorias étnicas em seus embates com o processo de educação escolar, nelas

percebendo ambivalências relativas às penetrações tecnológicas que iam transformando os

ambientes em arenas ora mais competitivas, ora com maior potencial de compartilhamentos,

trocas e alguns gestos de solidariedade. (LINHARES, 2008).

Estas discussões também tinham seus entrelaces entre a educação e a literatura,

alimentando o diálogo entre as pesquisas educacionais e a obra do ensaísta irlandês Bernard

Shaw, por exemplo. Esse autor, cuja obra o levou ao Prêmio Nobel, teve com My Fair Lady

uma expressiva repercussão, apoiada numa produção hollywoodiana (1964), multiplicando

debates e controvérsias, uma vez que colidia com tendências essencialistas da formação

individual, que atrofiavam as perspectivas educadoras.

98

Shaw mostrava como um professor rigoroso e decidido pôde transformar uma pobre

florista em uma “lady”, provocando várias controvérsias na educação americana que na

ocasião enfrentava grandes embates em que a culpabilização individual era contestada com o

reconhecimento da importância do ambiente, dos condicionamentos para a educação escolar.

A partir dessas questões, nascidas da análise crítica da obra de Shaw, Célia pesquisou

como os estudantes negros “teenagers” eram vulneráveis às expectativas de seu “peer group”,

em consonância ou dissonância com a influência dos “parents and teacher groups”,

ressaltando num caso ou noutro a ambiência social e as diretrizes políticas, hegemônicas na

sociedade.

Década de efervescência política, de começo de uma vida adulta, repleta de

experiências instigantes e também de sustos. Os anos 60 ficariam marcados como tempo de

descoberta. Descoberta da própria potência no exercício de ser mãe, mulher, trabalhadora. Em

“Trilhas”, destacamos algumas das principais idéias pedagógicas que caracterizaram esses

tempos e que se constituiriam em elementos fortes em sua trajetória educacional.

1. 3 – Trilhas do pensamento pedagógico que se construía...

Aqui, apoiadas nos depoimentos e alguns escritos memorialísticos de Célia, faremos

uma retomada de suas idéias, enfocando mais especificamente como ela via o cenário

educacional na década de 60 e de como se posicionava diante dele, elaborando suas formas de

pensar e viver a educação.

Célia nos conta que havia uma certa visão da escola como idílica. Pouco criticada, só

seria examinada em suas dimensões de autoritarismo e poder mais para frente, na década de

70, sobretudo com os estudos de Bourdieu, Passeron69 e Claparède70.

69 Pierre Bourdieu (1930), sociólogo francês, dentre outras atividades, dirige com Jean-Claude Passeron o Centro de Sociologia Européia, que pesquisa problemas da educação e da cultura na sociedade contemporânea. Focalizando a relação entre o sistema de ensino e o sistema social, sua análise preconiza que a origem social marca de maneira inevitável a carreira escolar e, depois, profissional, dos indivíduos. É essa origem que produzirá os primeiros fenômenos de seleção, a estatística das possibilidades de ascensão ao ensino superior, segundo categoria social de origem, mostra o quanto o sistema escolar elimina um forte contingente de crianças das classes populares. Para Bordieu a cultura das classes favorecidas estaria mais próxima da cultura da escola e portanto as crianças das classes populares teriam mais dificuldades em ter acesso a esta (GADOTTI, 1997). 70 Édouard Claparède (1873-1940), psicólogo e pedagogo suíço preconizava que a pedagogia deveria se basear no estudo da criança. Seu pensamento se baseava em Rousseau. Compreendia que a infância era um conjunto de possibilidades criativas

99

O ideário dos anos 60 é que a escola era magnífica e, por isso, todos a desejavam. As evasões, as não aprendizagens, os erros eram atribuídos aos métodos e suas possíveis inadequações, ou então à forma como havia sido realizado o trabalho pedagógico. A escola seria impecável. É só nos anos 70 quando irrompe na França a discussão sobre a violência simbólica e a carga ideológica na escola, encabeçados por Bourdieu, Establet71, Passeron e Althusser72 que alguns malefícios puderam ser discutidos. Então, passou-se a discutir os perigos que também habitavam a escola, encarando-a como uma instituição repressiva, opressora e continuadora, reprodutora. Finalmente, depois de um grande choque em relação à escola, vai-se aprofundando estudos que mostram a incessante dialética, com suas contradições que nos percorrem e às nossas instituições. Tudo isso levou algum tempo para entrar aqui o Brasil. Talvez tenha sido no final dos anos 70, começo dos anos 80... (Célia em entrevista, 2007)

Na formação superior em Pedagogia é possível dizer que a visão tecnicista

prevalecia73, dando valor aos objetivos operacionais, as taxionomias.

Mas, no Maranhão, na década de 50 e 60 entre os livros que formavam os professores

de Pedagogia no Brasil havia uma certa preponderância, nos conta Célia, dentre outros os

manuais didáticos, como as coleções de Theobaldo Miranda Santos74.

que não deveria ser abafadas e que todo o ser humano tem necessidade vital de saber, aprender, pesquisar. As brincadeiras, verdadeiros trabalhos em sua acepção, expressam isso. Crítico de uma escola conteudista, para ele a educação deveria ter como eixo a ação e não apenas a instrução pela qual a pessoa recebe passivamente os conhecimentos (GADOTTI, 1997). 71 Junto com Bordieu, o também professor de sociologia Roger Establet, criticavam a escola capitalista e desvendaram a ilusão da escola única, demonstrando que a escola estava atravessada pela divisão da sociedade de classes. Os fins da educação seriam, portanto, não apenas diferentes, mas antagônicos. Nessa perspectiva, a escola, o professor e o aluno não são os réus, mas sim as vítimas de uma divisão do trabalho que é responsável pelo fracasso escolar (GADOTTI, 1997). 72 Louis Althusser (1918 — 1990) foi um filósofo francês de origem Argelina. Suas posições teóricas permaneceram muito influentes na filosofia marxista. Considerado o primeiro crítico-reprodutivista. A teoria crítico-reprodutivista foi proposta (em suas várias vertentes) por teóricos franceses de esquerda, identificados com o marxismo, críticos da sociedade capitalista, defensores do ideário de Maio de 1968. Os crítico-reproduvistas fazem a denúncia do caráter perverso da escola capitalista, afirmando o caráter de inculcação da ideologia dominante, reproduzindo, assim, as contradições inerentes e necessárias ao capitalismo. As teorias crítico-reprodutivista enfatizam o aspecto político em detrimento da técnica, sublinhando o caráter reprodutor da escola. A educação nessa perspectiva, não teria o poder de determinar as relações sociais, sendo apenas reprodutora dos interesses do capital Apesar das limitações de tal teoria, ela foi responsável pelo avanço da consciência ingênua dos educadores para uma concepção mais crítica da educação escolar (SAVIANI, 1991). 72O tecnicismo diz respeito a uma visão de educação que privilegia os métodos e técnicas como centrais do processo educativo, valendo-se dos testes e tecnologias de medição para avaliar e mensurar aprendizagens ((MEC/CENAFOR, 1983, p. 28). 73O tecnicismo diz respeito a uma visão de educação que privilegia os métodos e técnicas como centrais do processo educativo, valendo-se dos testes e tecnologias de medição para avaliar e mensurar aprendizagens ((MEC/CENAFOR, 1983, p. 28). 74 SILVA E CORREIA (2004), em seu artigo sobre os manuais de Pedagogia, Didática, Metodologia e Prática de Ensino utilizados em cursos de formação de professores, citam que Theobaldo Miranda Santos integra o grupo de autores de manuais mais citado nos depoimentos de seus entrevistados (professores que se formaram na época pesquisada).

100

Tratava-se de manuais didáticos, cuja tendência era esquemática e reprodutora,

favorecendo pouco a reflexão. Essa não era efetivamente a leitura que encantava a professora.

Mesmo assim, haviam brechas, transcrições de trechos com pensamentos irrequietos que

funcionavam como janelas em que adivinhava e interligava com o que lia fora dali.

Mas, se o tecnicismo prevaleceu nos anos 70, não podemos esquecer também da

prevalência da filosofia tomista75 em muitos períodos anteriores e em suas convivências e

paralelismos com diferentes fases. Também importa lembrar uma espécie de jesuitismo muito

presente nesses cursos.

Outros autores começavam a ser difundidos no Brasil e a Célia interessavam, de modo

especial, os de abordagem filosófica.

(...) Diria, também, que na década de 60, do século passado, intensifiquei o prazer em aprender e ensinar. Introdução à Educação, Filosofia da Educação, História da Educação, todos se entrelaçavam em minha existência política e militante. Em cada disciplina discutíamos os desdobramentos da LDB/1961, o pensamento de Fernando de Azevedo76, Anísio Teixeira, Lourenço Filho77 que sobressaiam em seus sonhos e empenhos diante de nossa da realidade educacional. Eram muito usados os livros de Jacques Maritain enquanto o pensamento de Teilhard de Chardin, Emanuel Mounier, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Miguel de Unamuno y Karl Jaspers,

75 SÃO TOMÁS DE AQUINO (1224 ou 1225-1274), ingressou, contra a vontade de seu pai, na ordem de São Domingos. Natural de Nápoles, terminou seus estudos em Paris onde conheceu seu mestre Alberto Magno e se tornou professor. Filósofo, teólogo, reformador de programas de ensino, fundador de escolas superiores, deixou uma vasta obra. Seus princípios preconizavam a aversão pelo tédio e o despertar a capacidade de admirar, perguntar, como início do autêntico ensino. (GADOTTI, 1997) 76 Fernando de Azevedo (1894-1974), teve significativa atuação na educação a partir da década de 30. Foi colaborador do Estado de São Paulo onde levantou extenso inquérito sobre a instrução pública que objetivava a criação da Universidade. Tal inquérito foi publicado em 1937, incorporando-se a suas obras literárias sob o título de “A educação nas encruzilhadas”. Este levantamento contribuiu significativamente para a história educacional brasileira. Azevedo acreditava na capacidade de mudança social por meio da força das idéias. Dentre outras iniciativas, fundou a Associação Brasileira de Educação, em 1924, e deu corpo ao movimento pela reforma do ensino por intermédio das "Conferências de Educação", em 1922 e atuou nas reformas da educação pública do Rio de Janeiro, sobretudo no ensino primário e normal. Participou de manifestos e de movimentos como o da Escola Nova (1932) e o da fundação da Universidade de São Paulo, da qual foi um dos planejadores. Entre 1941/43 foi Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; foi também o primeiro ocupante da cadeira de Sociologia naquela Universidade. Foi Secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1945) e Secretário da Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo (1961). (PILETTI, Nelson. Fernando Azevedo. In FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque; BRITTO, Jader de Medeiros (orgs.), 2002. 77 Manoel Bergström Lourenço Filho (1897-1970), professor e intelectual, foi uma das figuras eminentes da Escola Nova brasileira. Catedrático em Psicologia e Pedagogia (1920) teve importante papel no campo das políticas públicas com suas idéias sobre o ensino primário e a educação normal. Seu foco era o fazer pedagógico. Foi diretor de gabinete de Francisco Campos (1931), diretor geral do Departamento Nacional de Educação (nomeado por Gustavo Capanema, em 1937) e diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938-46). Dedicou-se, sobretudo, à docência e ao estudo de assuntos didático-pedagógicos. Defendia a articulação existente entre a escola e a vida social.

101

Heidegger, Kiekegaard, Kafka e tantos outros, começavam a se difundir e serem lidos por mim.(Célia em “As coisas findas”, 2007).

Dentre os autores não brasileiros que Célia cita acima, daremos destaque nesse

capítulo a Pierre Teilhard de Chardin. Seu irmão Rui Frasão78, militante perseguido pela

ditadura que viveu na clandestinidade de 1972 até 1974, ano em que desapareceu79, havia

apresentado à Célia e a seus colegas da Rádio educadora esse autor, que seria significativo em

seus estudos.

Chardin, jesuíta e paleontologista francês, era sobrinho-neto de Voltaire por parte de

mãe. Nascido em Sarcenat, França em 1881, era filho de pai fazendeiro que colecionava

pedras, o que o levou cedo ao interesse pela Geologia. Com vasta publicação e pesquisa,

começava a ter seus estudos difundidos no Brasil no final da década de 60. Seus escritos

teológicos e filosóficos foram proibidos pela Igreja durante boa parte de sua vida e divulgados

depois de sua morte (TEILHARD, 2006; SEVERINO, 1997).

Orientado por uma concepção evolutiva do desenrolar universal, próximo de uma

visão teológica do cristianismo. Chardin (2006) acreditava que o cérebro humano tendia a

uma complexificação cerebral. Essa complexificação, teria como conseqüência o

aparecimento da consciência de si mesmo, passo necessário para o processo reflexivo do

homem e depois a uma rede mundial de comunicação dos pensamentos humanos, a que ele

chamava de “noosfera”, no coração da qual agiria o "Cristo Evolutor" aquele quem conduz a

Humanidade, de maneira imanente e transcendente, ao mesmo tempo, para o "ponto Ômega"

(Reino de Deus).

Para o autor, a Noosfera não datava da Terra Juvenil onde os primeiros animais

viviam com as plantas, árvores e os oceanos. Somente depois do aparecimento do Homem

sobre a Terra, a Noogênese começaria a existir. O termo Noogênese vem da palavra grega

noos= mente, portanto gênese da mente termo que Chardin empregou para descrever o

nascimento da mente humana. Apenas quando o homem deu “O passo da reflexão”, tornando-

78 A história de Rui Frasão receberá o destaque necessário, sendo apresentada mais detalhadamente no próximo capítulo. 79 A esse respeito foi lançado no ano de 2007 pelo Ministério de Educação do Brasil, produzido pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o livro “Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos” que traz um levantamento de todos os desaparecidos da época da ditadura no Brasil, incluindo Rui Frasão.

102

se consciente de si mesmo, começou a pensar de um modo reflexivo e então a Noosfera

começou a existir.

O autor afirma, ainda, que esse pensamento reflexivo do homem faz parte ainda de

uma reflexão primitiva. Por essa razão, Teilhard usou a palavra Noogênese para nomear a

reflexão que em seu desenvolvimento.

A Noosfera seria então o estágio de crescimento da Noogênese, a qual acompanhou

o crescimento do Homem na Natureza e que quando os homens alcançaram a etapa de

Socialização, se alimentou com o pensamento humano, sob as mesmas leis da Evolução.

Teilhard previa duas saídas para a Terra e sua população. Uma que pode-se

considerar otimista e outra pessimista. o Pleroma (palavra empregada por São Paulo) do

Amor de Cristo em Sua glória, ligando os dois pontos - Alfa e Omega -, ou a Entropia, o caos

total, dependendo da utilização, pela Humanidade, do Meio Divino.

Efetivamente a aposta de Chardin consistia em acreditar na capacidade humana de

progredir num rumo evolutivo que permitisse a que nos tornássemos mais compreensivos uns

com os outros, mais abertos frente à Criação, criando maiores vínculos econômicos, sociais e

espirituais em vez de se permitir capitular diante de forças de repulsão e

desintegração.(CHARDIN, 2006)

Célia comenta os aspectos que a atraiam no pensamento de Chardin:

O Teilhard de Chardin falava na complexidade. Ele nos fazia pensar sobre como mesmo nos momentos de aparente lentidão e de aparente inércia, os movimentos da vida, da inteligência e da sociedade não param de se processar. Depois retomo essa idéia como o movimento instituinte, movimentos que ainda não são visíveis, mas que subterraneamente eles agem. (...) Nas grandes esferas constitutivas da vida, dos vegetais, dos animais e do homem, do humano que ele chama de noosfera é que caminha o homem. É uma concepção dele muito centrada num humano que dialoga com o cosmos. Teilhard colocou um pensamento instigante para mim. (Célia Linhares, em entrevista, 2007)

Além de Teilhard, Mounier (ALVES E VANZETTO, 2005; SEVERINO, 1997) foi

outro autor significativo, que à Célia parecia capaz de um pensamento mais instigante. O

filósofo francês Emmanuel Mounier (1905 — 1950), nascido numa família de tradições

cristãs, fundou a raiz do conhecido personalismo influenciando a ideologia da democracia

cristã.

Em sua obra “O personalismo”, Mounier apresenta uma filosofia que concebe um

sujeito livre e sempre imprevisível. Afirma radicalmente “a prioridade da existência sobre a

103

essência, da condição humana sobre a natureza humana” (SEVERINO, P.129, 1997). Fez

parte do grupo de intelectuais que criaram em 1932 a revista Esprit de espírito contestador e

da ruptura com a ordem estabelecida.

As reflexões de Mounier tinham a pessoa como centro. Defendeu a idéia de uma nova

civilização na qual os cristãos e os não crentes pudessem cooperar. Foi forte combatente do

fascismo e do nazismo, considerando que ambos tinham como objetivo o fim da civilização

cristã ocidental.

É possível identificar, nos autores elegidos por Célia, a preocupação com um mundo

que se queria mais justo e fraterno. A esperança numa nova organização social, fruto de uma

ação educativa também se evidenciavam.

Outro foco das preocupações de Célia, como já citado, diz respeito à valorização da

cultura nacional. Questão em sintonia com o movimento popular mais amplo, de viés

revolucionário, da década em que vivia. Comenta sobre os embates maranhenses sobre os

livros didáticos a serem utilizados nas escolas básicas, defendendo que estes precisavam

resgatar a cultura e a história do povo.

Lá no Maranhão lutávamos muito para que tivéssemos livro de história, que contasse a histórica das lutas do Maranhão. Depois, quando eu retomo a discussão com as escolas Balaia e Cabanas80, tomando as lutas populares como um símbolo da potenciação do sonho, daquilo que não se realizou, mas também da tenacidade popular, da sua capacidade de resistir e criar.

Em sintonia com seu tempo, Célia revela em suas experiências, estudos e reflexões, a

preocupação em construir uma prática educativa que incluísse a voz dos sujeitos em questão,

valorizando suas experiências, saberes, cultura. Como professora, na Rádio-educadora e nas

outras funções que desempenhava, interessava à Célia constituir relações dialógicas com seus

pares. Os autores com o quais manteve estreito diálogo afirmavam uma compreensão de

mundo que já era forte em Célia, dando a ela maior amplitude e solidez teórica.

80 Célia desenvolve nas décadas seguintes pesquisas sobre algumas experiências em escolas, como a Escola Cabana. Nos próximos capítulos aprofundaremos esse assunto.

104

Esteve engajada nos movimentos de Igreja, fugindo a uma postura catequética e

sintonizando-se com as possibilidades de difusão de espaços de encontro, escuta e expressão

que esses movimentos propiciavam.

Em seguida, na voz de Dorothy Pritchard, conheceremos e reconheceremos algumas

das experiências citadas por Célia e José (e outras que ela não citou), agora pelo olhar de um

outro. Ao nos aproximarmos dos relatos de Dorothy, aqui transformados em narrativa,

abrimos janelas para a leitura de uma outra pessoa sobre situações compartilhadas com Célia.

Ela traz em seu olhar a sua própria história, experiências e subjetividades. Constituimo-nos,

também, por esses múltiplos olhares. É possível, e este é um dos objetivos dessa tese, que,

como quem utiliza um caleidoscópio, apreciemos as mudanças de cores, cenários, impressões

que esse novo olhar nos traz, bem como vermos confirmadas visões que se irmanam e

reforçam; aspectos de uma mesma experiência partilhada. Vamos a Dorothy!

1.4 A voz dos parceiros:

Dorothy Pritchard, Memórias de uma rádio-educadora “(...) Uma poesia que me lembre Célia... Eu gosto muito da Aninha lá do Mato Grosso. Como é no nome dela?!... ela se chamava de Aninha, mas ela tem um nome esquisito... Cora Coralina! Tenho dois ou três livros dela. Não sei por que associo essa poesia à Célia, não sei justificar”. Acho que pensei na Cora porque ela, assim como Célia, tem o pé no chão. Mas não, Célia não tem o pé no chão...afinal ela é uma filósofa! Mas pé no chão que eu chamo é por ela estar atenta ao povo, ao Brasil, de estar atenta à injustiça, à realidade,ao fato de ela querer mudar, de uma maneira simples, não fazendo agressão, alarde. (Dorothy Pritchard, 9 de maio de 2007)”. Cora Coralina - Estas e outras esperanças e certezas. Sonhos de Aninha". “Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou Ensinou a amar a vida. Não desistir da luta. Recomeçar nas derrotas. Renunciar as palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos. Ser otimista. Creio numa força imanente e que vai ligando a família humana numa corrente luminosa de fraternidade universal. Creio na solidariedade humana,

105

Creio na superação dos erros e angústia do presente. Acredito nos moços. Exalto sua confiança, generosidade e idealismo. Creio nos milagres da ciência e na descoberta de uma profilaxia futura dos erros e violência do presente. Aprendi que mais vale lutar do que recolher dinheiro fácil. Antes acreditar do que duvidar.”

A escolha do poema de Cora Coralina, feita por Dorothy, sem que ela saiba muito

como justificar, revela e sublinha muito do que destacamos sobre Célia. Luta, justiça,

esperança, generosidade e confiança são palavras fortes nesse belo poema, traduzem traços

evidentes no pensamento e ação de Célia. As palavras de Cora Coralina nos permitem,

também, compreender mais ainda a visão que Dorothy tem de sua antiga colega de rádio

educadora.

Chego à casa de Dorothy Pritchard, é a primeira entrevista ao vivo81 de minha

pesquisa. Sei, de antemão, que é parceira da década de 60 de Célia Linhares, que tem

ascendência inglesa, que juntas trabalharam na Rádio educadora de São Luís do Maranhão.

Mais de 40 anos a afastam das experiências vividas na rádio, que lembranças emergiriam?

Embora Dorothy comentasse em alguns momentos da entrevista ter dificuldades em

lembrar de experiência, já tão longe no tempo (“eu não sou uma pessoa de muita memória”,

dizia ela), à medida em que ia narrando suas memórias, as lembranças eclodiam, ricas em

detalhes e nuances. Eu, ouvidos e olhos atentos e interessados, acompanhava sua narrativa

viva, me transportava para um Maranhão de outros tempos...

Após nosso encontro continuamos a manter contatos episódicos por e-mail, tirei

dúvidas, fiz novas perguntas e a partir das instigações, Dorothy foi, generosamente, me

fornecendo novos elementos, possibilitando conhecer mais a fundo a época e o contexto a que

81 Vale ressaltar que se trata da primeira entrevista realizada em 2007. Para a qualificação eu já havia feito um conjunto de entrevistas com alguns alunos e ex-alunos de Célia, como citado na introdução.

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se reportava e a experiência maranhense em si. Como se o fato de “escavucar” o passado

fosse possibilitando um rememorar mais intenso. Talvez, como quer Ecléa Bosi (2003) ao

partilharmos nossas experiências pessoais a um “ouvido disponível”, o que vivemos ganha

uma outra dimensão, ampliando a experiência através da escuta e da palavra de um outro, pois

ganha assim “um cúmplice”.

Na década de 60, época de nossa história, Dorothy era professora da British School,

no Rio de Janeiro, quando conheceu missionários católicos canadenses que, atendendo ao

apelo do Papa para assistir à igrejas onde não havia padres nem bispos, programavam-se para

trabalhar no interior do Maranhão. Passou então a integrar a missão.

Tal iniciativa, fazia parte da abertura da igreja à participação de leigos em suas ações

sociais. Dorothy lembra-se que a impressionou a disponibilidade dos padres canadenses em

vir aprender a língua e os costumes para trabalharem numa das regiões mais pobres do

Brasil. Na missão canadense, ela era considerada uma "missionária leiga", isto é, não ligada

a uma comunidade religiosa. A missão constituía-se em uma “Prelazia”, quer dizer, uma

região que não está sob a jurisdição de um bispo autóctone (brasileiro), mas sob a

responsabilidade de um bispo estrangeiro, diretamente ligado a Roma. As regiões em que a

igreja não possui um bispo brasileiro ficam ligadas a Roma, que envia bispos e padres de

outros países (os missionários).

De início, ao ser convidada para visitar a missão, passou um mês na zona rural

maranhense. Havia uma equipe composta por alguns padres, algumas moças e um rapaz a

serviço da missão A participação de Dorothy estendeu-se por 3 anos aproximadamente. Foi

uma completa reviravolta em sua vida e na de seus companheiros. Tudo era totalmente

diferente das experiências e vivências de até então.

Não havia estradas, só caminhos para cavalos e para os bois que podiam caminhar na lama. Chegava-se lá unicamente de teco-teco. Na época de chuva ficava-se ilhado, com os campos todos em volta transformados em lagos (os igarapés, onde o solo que não absorvia a água da chuva). Viajava-se de canoa que era empurrada com uma vara comprida. A vegetação crescia boiando sobre a água e os barqueiros tinham que conhecer bem como passar entre a folhagem e as cobras nadando. Os mosquitos eram chamados de "praga" e tínhamos que dormir em rede com mosquiteiros. As despesas básicas eram pagas pela missão, passagem de avião, teco-teco, uma casa e uma ajudante. Um pequeno salário para as necessidades. (Dorothy em entrevista, 2007)

A cada três ou quatro meses os missionários eram aconselhados a ir para a capital, São

Luís, para voltar para a "civilização” e "arejar". Numa dessas ocasiões Dorothy conheceu

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pessoas que participavam das atividades ligadas ao arcebispado, conheceu também o bispo

auxiliar da região, que era muito progressista e atuante. Esse contato rendeu, para ela o

convite para trabalhar na capital no final de seu compromisso na área rural.

Já de volta ao Rio de Janeiro aceitou então o convite para ir para São Luís e morar

com um grupo de moças que estavam também a serviço da arquidiocese. As ações abarcavam

alfabetização de adultos (viajando para o interior), movimentos da igreja (com as prostitutas,

com a classe operária), dentre outros. Seu vínculo era voluntário, um contrato da

responsabilidade da arquidiocese para com ela e seus companheiros em troca da

disponibilidade em servir de acordo com as habilidades de cada um.

Dorothy, reportando-se ao clima da época, lembra:

Era uma época pré-golpe, quando havia um grande entusiasmo entre os jovens de tirar o Brasil do subdesenvolvimento. Os universitários partiam no Projeto Rondon, isto é, nas férias iam em caravanas organizadas ensinar, praticar como estagiários as disciplinas que estudavam, fazer teatro, compor música e canções, criar programas radiofônicos nas regiões mas carentes em todo o Brasil. A igreja era uma das grandes incentivadoras do movimento de conscientização. A juventude naquela época era idealista. Este reboliço todo para a elite era amedrontador. Era o tempo da guerra fria e quando houve o golpe caíram em cima dos estudantes, e dos movimentos e atividades junto aos operários e os camponeses. Tudo, diziam, era em prol do comunismo e de agitação para organizar o povo visando uma revolução popular.

Em São Luís ela não era considerada missionária leiga, pois o arcebispo era brasileiro.

Em 1965, ainda ligada ao trabalho Arquidiocese de São Luís do Maranhão na área da

educação de adultos, conheceu a professora Célia Linhares e José Linhares e foi então que se

deu o início de uma fértil parceria.

Dorothy relata que nas reuniões de planejamento e estudo da realidade do povo

maranhense com o arcebispo e os padres, foi proposta a inauguração da Rádio Educadora do

Maranhão, a cargo de uma equipe de leigos. Célia, José Linhares, o radialista Lauro Leite,

Dorothy e mais alguns colaboradores inauguraram a Rádio Educadora com muito entusiasmo

e dedicação, buscando um diferencial, tratava-se de um projeto popular, segundo ela nos

conta.

Não queríamos uma rádio piegas, nem “religiosa”, mas educadora. O grande enfoque era ser um serviço para o povo. Muito diferente das outras rádios que estavam a serviço de interesses particulares. Quase todas vendidas em função de lucro. A Rádio Educadora inovou, instituiu uma nova radiofonia no sentido de estar atenta às necessidades e aos anseios das comunidades. Como não

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estávamos submissos nem dependentes de um “dono” ou de um patrão, tínhamos toda liberdade para construirmos uma emissora à nossa maneira. Nasceu então uma rádio inovadora, participante dos acontecimentos, crítica, apoiando as iniciativas. Isto foi possível porque a equipe produtora era unida e “democrática”. Não havia entre nós uma hierarquia rígida. Todos os membros, funcionários e colaboradores eram valorizados e por isso sentiam que a Rádio era deles. Todos estavam orgulhosos do seu trabalho e respeitavam e cuidavam das coisas e do local. Até foi afirmado por um radialista: “esta rádio é decente, aqui não tem bagunça, posso até trazer minha esposa para cá. Não é como nas outras rádios.

Nossa narradora chama atenção para o momento específico em que a rádio nascia,

época de um grande movimento de abertura e incentivo para os profissionais de várias áreas e

para as pessoas em geral para debaterem, sugerirem e discutirem os problemas do

desenvolvimento e do progresso, não apenas religioso, mas também social e político.

Era uma época de muita efervescência em todas as áreas da vida e da sociedade. Os estudantes voltados para a “conscientização”, querendo contribuir para o desenvolvimento, a Igreja se renovando, desprezando o latim, as mulheres abandonando o véu, os leigos tendo voz e interferindo em assuntos reservados ao clero, os trabalhadores se fortalecendo nos sindicatos, os camponeses se organizando, os padres discutindo a possibilidade de suspender a obrigação do celibato, e a ditadura se impondo e forçando os opositores a entrar para a clandestinidade. Um clima de agitação, medo, disfarce, muita criatividade para driblar a repressão. Neste clima tínhamos que ter todo cuidado com o que ia para o ar. No entanto, neste desafiA programação tentava atingir todas as categorias da sociedade. Havia um programa para crianças (Dona Carochinha) para os jovens (Barra Limpa) para os casais, para o campo, para os pescadores, para os professores. Em vez da hora da “Ave Maria” tínhamos o programa “Entre o Dia e a Noite”. Havia outros musicais e o noticiário, e todo dia era sagrada a hora do serviço de recados e avisos para o interior. Para nós todos, que apenas tínhamos nosso salário mínimo, nosso trabalho não era encarado como árduo e “trabalhoso”. Era prazeroso, desafiante, criativo, lúdico, se bem que absorvente e de total dedicação.

Dorothy era responsável por um programa voltado ao público infantil que se chamava

“Dona Carochinha” e que foi pouco a pouco ganhando significativa expressão no Maranhão.

A forma como ela o assumiu e desenvolveu merecem destaque:

Todo dia eu tinha um programa novo, que durava aproximadamente duas horas. Fui designada para criar e apresentar uma hora diária ao vivo para crianças. No começo quando eu relutava e ficava ansiosa a Professora Célia entrava na cabine comigo, improvisando e me dando força até eu me habituar a arcar com o programa sozinha. Eu não sei por que me chamaram para fazer um programa infantil, talvez porque soubessem que eu era

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professora. No princípio, eu disse que não queria, que não sabia o que fazer! “Eu não sei o que vou fazer lá dentro!”. Célia então, cheia de entusiasmo, me empurrou para dentro da cabine, insistindo em dizer que eu conseguiria, que ela ia me ajudar, e entramos pela primeira vez na cabine, nós duas, e ela dizia: “Olá crianças do Maranhão! Aqui hoje nós temos a Dona Carochinha!”, e foi assim, falando e me provocando. Eu me lembro muito dela nesse primeiro dia. Depois disso, eu comecei a criar, eu era muito criativa! Levei minha flauta, inventei que ela era mágica, contava histórias... eu estava tão imersa naquilo, aquilo era tão real para mim que sozinha na cabine eu dançava, morrendo de calor. Aquilo foi crescendo, assim como eu estava absorvida, as crianças estavam absorvidas também.”

Esse movimento de confiança na capacidade do outro, da presença de um apoio amigo e

ao mesmo tempo capaz de favorecer o despontar da autonomia, eram aspectos da presença de

Célia, na radialista que nascia. Entusiasmo, confiança, parceria. Marcas das experiências que

ia tendo curso na Rádio Educadora. A respeito desse modo peculiar de Célia em se dirigir ao

outro, Dorothy comenta:

A Célia tinha uma maneira de falar, de conciliar as coisas. Ela busca como é que aquilo vai se resolver, ela tem uma maneira de falar diferente. O que me impressionava na Célia é como ela falava. O Linhares também. Engraçado, o Linhares e a Célia se complementavam nessa maneira de tratar as pessoas. Tinham uma visão educativa da pessoa, uma maneira de ver o outro de forma que faz ele se sentir melhor, faz o outro crescer. Se algo estava errado, eles buscavam fazer a pessoa tentar ver como é, compreender o porquê... Linhares tem um jeito... ele falava com o menino que varria, “Oh fulano! sente aqui !Isto é um serviço importante. Vocês vêem como está linda a Rádio! Vejam!” ele falava, não era para engambelar não, ele chamava mesmo, eu ficava impressionada, eu aprendi muito com a Célia e com o Linhares essa maneira de tratar as pessoas e era isso... essa era uma atitude de respeito ao outro, de valorizar o outro, da coisa funcionar junto. Não tinha um que mandava, tinha discussão com o radialista, porque ele se sentia aquele que era o profissional, ele era muito bom, agora ele não tinha essa visão nossa política social Célia tem uma posição bem firme. Ela tem os princípios que norteiam a maneira de ela pensar e agir. Agora também tem os cuidados. Ela tinha um irmão que era perseguido, então ela tinha que tomar cuidado. Todo mundo também estava um pouco apreensivo, um pouco irritado com as circunstâncias. Se as coisas estavam fora do controle, você fica preocupado.

A delicadeza de Célia no lidar com o outro aparece nas lembranças de Dorothy. Firme,

conciliadora, respeitosa, entusiasmada, instigadora. É, também, citando as idéias de Paulo

Freire que nossa narradora sublinha essas características de Célia: “Me lembra a idéia de

Paulo Freire: ‘mais importante que o discurso é a atitude’. Era isso, Célia tinha uma coerência

entre o que ela falava e fazia!”.

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A experiência era nova para quase todos que integravam a rádio. A única exceção era

um dos membros da equipe que era efetivamente radialista. Todos se empenhavam em

construir uma nova concepção de rádio, aberta, democrática na sua gestão e em permanente

diálogo com as questões do povo.

Tudo era novo para nós, até o meio de comunicação era novo, a gente não era radialista, tanto que depois que acabei o trabalho no Maranhão fui fazer curso sobre tecnologia da educação na PUC do Rio de Janeiro. Nós tínhamos o Lauro Leite que era radialista mesmo, ele era muito bom. Tínhamos também outros técnicos mais operacionais. Nessa época Lauro orientou a gente na parte de rádio. Queríamos uma rádio diferente mesmo, um serviço para o povo, queríamos falar para o campo, para as pessoas carentes que dependiam do rádio porque na época havia um alto índice de analfabetismo e não havia ainda a TV. A TV só foi entrar em São Luís no final de 67 para 68. A rádio foi um marco, tinha piques de horário nobre!

Dorothy diz que não dimensionava tudo o que estava vivendo. Hoje, compreende o

quanto inovadora foi aquela experiência nos idos de 60, reconhece sua singularidade como

espaço que travou um diálogo fecundo com as camadas populares de São Luís,

experimentando um novo modo de fazer política, dando voz às questões dos ouvintes,

adotando princípios éticos que garantiam àquele espaço legitimidade.

Ela era transmitida o dia inteiro. Tinham certos programas que ficaram muito marcados, muito conhecidos. Na hora que a gente está fazendo não conseguimos refletir, não sabemos bem o que está acontecendo, nos empenhamos! Depois, você olha para trás e vê como foi importante o que fizemos! Nossa equipe trabalhava junto, era o mesmo ideal. Embora fosse uma iniciativa da igreja, nós éramos leigos e queríamos manter a rádio como espaço de liberdade. Nada de ficar rezando a Ave Maria, hora de canto religioso, nada disso! Vamos fazer uma reflexão, isso sim, a rádio vai ser um espaço para refletir... Então aquilo foi muito uma coisa que nós nem sentíamos que estava crescendo. Célia e eu precisávamos de patrocínio e íamos buscar isso, sem nunca ter feito algo do tipo, a gente fazia aquilo pela rádio. Para mim era uma dedicação exclusiva. Só sei que na rádio ali aquilo vibrava!

A respeito da participação de Célia na Rádio e da própria concepção educadora dos

programas por elas elaborados, Dorothy nos conta ainda:

A Profa. Célia era membro entusiasmado e atuante da coordenação da Rádio Educadora. Propôs um trabalho de grupo onde todos teriam oportunidade de opinar, e tomar parte nas decisões importantes. Conseguiu que todos que trabalhavam na Rádio viessem às reuniões regulares, e sentados num grande círculo, acompanhavam o relato dos fatos ocorridos, ouviam as propostas e

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eram consultados a respeito de suas tarefas. A própria forma de lidar com os funcionários era educativa, pois se tornou um exercício de participação.

Relembra também a experiência marcante do programa voltado para professores,

também destacado pela própria Célia:

Ela empreendeu uma tarefa preciosa diretamente com a educação. Apresentava um programa de Formação de Professores. Teve uma grande aceitação. Elaborava apostilas e falava diretamente para o campo. A secretária de educação de um município ficou tão encantada que patrocinou o programa. Os professores disseram que aquilo era um milagre, que era uma mágica. Também havia um programa de orientação de uma cooperativa de pescadores.

Dorothy destaca enfaticamente o caráter inovador da Rádio. Ainda que não se dessem

conta, como ela reflete hoje, da dimensão daquela experiência, reconhece que era algo inédito

no campo da comunicação que estava se fazendo.

A Rádio Educadora nesta época foi um marco e teve uma repercussão muito grande. Era algo vivo, direto, com linguagem nova, não era uma massificação. Para a equipe que coordenava era estar sempre diante do inesperado. O povo reagia, mandava recado, informava e era informado. Um auditório invisível e, no entanto real e vibrante. Quando começamos a Rádio a Célia era nova, um de seus filhos tinha 5 anos e o outro 6, ela estava criando os meninos pequenos ainda!

Dorothy ressalta o espírito combativo da Rádio educadora, que, solidária com as

questões do povo abria seus espaços para apoiar movimentos, denunciar injustiças, dar realce

a múltiplas vozes. Chama atenção para um aspecto importante do período em que atuou na

rádio, a repressão aos movimentos populares, ainda incipiente, ia infiltrando-se no tecido

social, evidenciando-se mais fortemente em fins da década de 60 e início de 70.

Essa época ainda não era o cheio da repressão que foi em 73, 74, 72, que foi a época pior. Existia uma obsessão de comunismo, qualquer coisa que você falasse era taxada de comunista, era mal vista, todo mundo tinha cuidado, todo mundo não queria entrar em certos assuntos, tudo o que fosse incriminador, vamos dizer, se tivesse um livro que você tinha comprado sobre a revolução de Cuba, por exemplo, ou qualquer coisa assim, você rasgava, jogava fora. Havia também o perigo de uma pessoa que você achava que era sua amiga repetir alguma coisa que você disse e que ela entendeu mal em algum lugar e depois (a) você ficar visada. Era uma época assim.

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Tempos de indefinições, medos e clima ameaçador no ar. Tudo isso refletia no

comportamento das pessoas que passavam a vigiar com maior atenção o que diziam,

pensavam, faziam. Dorothy lembra, também, da presença de Rui que eventualmente visitava a

Rádio. Ela percebia que “havia algo” envolta dele, mas pouco se podia falar sobre o assunto.

O Rui, irmão dela, eu conhecia muito e o admirava. Eu sabia que envolta dele tinha algum mistério. Ele não se pronunciava em público, era bem discreto, mas tinha aquela coisa ... A gente sabia que ele tinha sido preso, que ele tinha sido visado, que ele era uma pessoa que estava sendo vigiada. Vivíamos aquele clima de não falar as coisas. Na Rádio a gente falava, a gente denunciava, sim! Estávamos atentas ao que estava acontecendo, tentando alertar para as pessoas que havia coisas acontecendo, que havia coisas concretas, reais.

Tínhamos que tomar muitos cuidados, até o próprio radialista não entendia muito bem essa história das nossas denúncias, ele achava que a gente não devia falar para a Rádio não ser visada, ele não tinha uma visão crítica. O que ele queria era uma Rádio que funcionasse, que tivesse tudo direitinho. Nós também não sabíamos de tudo o que estava acontecendo, estávamos contra a injustiça! No programa infantil, por exemplo eu ficava falando das coisas mas bem geral, com metáforas como por exemplo, “O ‘gigante Miséria’ de onde veio? Por que ele está por aqui?”, Eu inventava as coisas. No final das histórias, como por exemplo, na Bela adormecida, eu perguntava: Quem era a Bela Adormecida? Será que a Bela Adormecida não era o Brasil que estava esperando um príncipe para vir beijá-la para acordar? Todas as minhas histórias tinham esse diálogo no final. O programa de criança virou hora nobre, tocava no aeroporto de São Luís, tocava nos bares, no alto falante da praça, tinha briga porque quando começou as mães queriam ouvir novela na hora do programa e até mudaram a hora da novela!

Dorothy identifica neste movimento de instigar da Rádio, um olhar crítico diante do

contexto social, histórico e político da época, ecos de um movimento social mais amplo.

Como já mencionado, eram tempos de abertura, de participação popular, de desejos de

mudança. Começava a se difundir, mais amplamente, as idéias de Paulo Freire, com as quais o

programa radiofônico maranhense se sintonizava:

A gente tentava mobilizar, acordar, a grande palavra-chave naquela época era “conscientização”. As idéias de Paulo Freire já estavam circulando entre as pessoas que tinham contato. Mas não era essa coisa que é hoje. Ele era uma pessoa inovadora, foi visado também, mas na época, não tinha o relevo que tem hoje. As coisas acontecem e vão se solidificando depois.

A Rádio efetivava-se como um espaço político, desde a escolha das parcerias e

entidades patrocinadoras – passando por critérios relacionados ao respeito à criança

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mencionado por Dorothy, dentre outros – até a escolha das questões e assuntos que animavam

os programas. Ela comenta que ia agindo de forma bastante intuitiva, sem dimensionar o

alcance daquele projeto e se descobrindo pouco a pouco um sujeito político:

A visão política foi nascendo aos poucos para mim, através de São Luis, quando fui à uma reunião dos operários, observei a maneira deles se posicionarem. Eu tinha uma visão social, mas a visão dos direitos, da política, foi nascendo. Mesmo a Rádio não sendo diretamente política, ela era política, pois se a gente escolhe ou deixa de escolher, se cala ou se fala, é político isso. Havia uma coisa, todo mundo ali que se conhecia, estava sustentando, estava dando palpites, estava dizendo, estava trazendo coisas. Eu sentia que era uma grande novidade a Rádio Educadora. Quando eu dizia que a linguagem era nova, ela era nova, para falar com professor, quem é que na Rádio falava com professor?! Para falar com pescador, falar de coisas reais da vida dele, como é que eles se organizam, os assuntos eram pertinentes e tinham resposta, a gente perguntava o que vocês querem? E vinha, tinha um retorno. Não sabíamos disso, estávamos fazendo, a gente estava vivendo, a gente estava fazendo o que estava na nossa cabeça.

As repercussões mais concretas das políticas de controle autoritárias que começavam

a ganhar força no Brasil começavam a se aproximar da Rádio, culminando em seu fechamento

em 1967 e posterior abertura. Um dos primeiros impactos aconteceu por ocasião de um dos

programas que provocaram “a onça com a vara curta”, já relatado por Célia e Linhares e

também significativo para Dorothy:

A polêmica foi com um texto, lido com muita veemência, sobre a independência do Brasil, “O BRASIL É INDEPENDENTE MESMO?!”. Foi uma loucura, vieram, fecharam a rádio, chamaram todo mundo para ser interrogado, os nomes foram para Fortaleza, o bispo foi chamado para dirimir essa história.

Esse foi o início de tempos marcados pelo medo. Medo do que dizer, de para quem

dizer. Os ecos das perseguições da ditadura aproximavam-se. A esse respeito relembra as

fases mais tensas da ditadura.

Eu não sabia ainda desse medo, medo tive em 73/74, você via o pessoal “caindo” todo. Naquela época eram os grandes que tinham falado, eram os deputados que foram levados, eram os estudantes, que eram uma organização. O MEB foi fechado, outro comia o papel, jogava no lixo, porque ia ser registrado, tomava o nome de todo mundo. Lá no interior, tudo era um pretexto para eles irem lá interrogar, invadir. Eu lembro de nosso comportamento de muito cuidado. Algumas pessoas da Rádio foram interrogadas. Eu não fui.

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(...) Quando você começa a falar que o povo tem seus direitos, organizar o povo, mostrar que eles tinham seus direitos, ai pronto, estava visado, aí você era comunista. 74 foi o auge da repressão. Muita gente não sabia de nada, porque ninguém falava.

Dorothy conta que após essa experiência, continuou trilhando caminhos ligados à

comunicação, buscando no jornalismo e na tecnologia da informação espaços de

aprofundamento nesse campo que tanto a tinha fascinado. No entanto, após experimentar tão

intensamente a possibilidade de desenvolver um trabalho não apenas cooperativo, mas em

estreito diálogo com o povo, decepcionou-se com o que considerou uma perspectiva mais

limitada do trabalho com comunicação.

Na universidade, fui fazer jornalismo, acabei fazendo tecnologia que era voltado para rádio, televisão, educação à distancia. Eu queria isso e só na PUC que oferecia esse curso mais ligado a esta problemática. Desapontei-me muito, não era aquilo que eu tinha vivenciado. Eu vi a força do meio de comunicação, aí eu vi, a força é devida a uma pessoa que é líder, mas eles tentam diluir isso agora e você não vê um líder, você não vê. Quando tem, ele é fraco e serve ao poder, a Xuxa, por exemplo.

Vemos então a força das experiências que com seu impacto imprimem desejos,

caminhos e perspectivas que continuam a ser trilhadas dentro de nós e em nossas buscas

posteriores, marcando escolhas e apostas.

Dorothy comenta que mesmo que hoje conviva pouco com Célia, tem freqüentemente

contato com a professora, freqüentando momentos sociais e participando de lançamentos de

seus livros. Teve a oportunidade de ler alguns deles, e cita o “Formação de professores:

tradições e contradições” como uma das obras lidas. Pedi portanto que, fechando nossa

entrevista, Dorothy destacasse quais pareciam ser, para ela, as idéias mais centrais do

pensamento pedagógico de Célia Linhares e ela citou:

Sua militância no trabalho intelectual, com uma visão crítica em busca de respostas inovadoras e alternativas concretas para a realidade brasileira. Sua preocupação com a adequação da escola ao mundo contemporâneo e neste sentido a formação do professor tendo que corresponder a esta necessidade. Sua filosofia que fundamenta suas idéias, suas propostas, seus argumentos. A maneira de ver a realidade sob a perspectiva da justiça social. A Prof.ª Célia sempre foi muito sensível ao problema da desigualdade na sociedade e que se reflete acentuadamente na educação. Seu otimismo diante das dificuldades e dos desafios que a realidade apresenta. Célia acredita que apesar de não vermos resultados imediatos, que “o levedo” está fermentando. Seu empenho é movido pela esperança de uma

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sociedade que amadurece e caminha para uma dimensão mais humanizada, onde todos terão as mesmas oportunidades de realizar suas potencialidades e serem reconhecidos e respeitados como cidadãos e membros diferentes, mas iguais, numa comunidade mais fraterna. A renovação da educação formal e informal seria um grande veículo propulsor para esta utopia.

Parceira de trabalho e solidária na concepção de atuação educativa da Rádio, Dorothy

realça aspectos centrais de sua experiência com Célia, trazendo, também, as marcas que

permaneceram nela e acompanhando-a pelos caminhos que trilhou posteriormente.

1.5 O levedo está fermentando: marcando a trilha para continuar a caminhada.

A etimologia da palavra levedura tem origem no termo latino levare com o sentido de crescer ou fazer crescer, pois as primeiras leveduras descobertas estavam associadas a processos fermentativos como o de pães e de mostos (sumo das uvas frescas antes que passem pelo processo de fermentação) que provocam um aumento da massa do pão ou do volume do mosto pela liberação de gás e formação de espuma nos mostos (CUNHA, 1982).

Levare, sentido de crescer, fazer crescer, crescimento ligado aos processos

fermentativos. Para fermentar um pão - e disso sabe quem já se aventurou nas artes culinárias

-, é preciso tempo. Antes, no entanto, há que se misturar os ingredientes, sovar a massa com

vigor. Após imprimir à matéria a energia necessária para que se dê a alquimia, aí sim,

aguarda-se o tempo indicado, de preferência com a massa coberta, em lugar aquecido, ao

abrigo da luz. O pão caseiro, é bom lembrar, ainda que se repita a mesma receita, nunca sai

exatamente igual. A luz, a temperatura, os ingredientes em questão, o estado de espírito de

quem o faz. Tudo isso, confere ao alimento uma singularidade difícil de se repetir.“O levedo

está fermentando”, nos disse Dorothy. Uma muito boa metáfora para compreendermos a

trajetória de Célia na década de 60. Idéias que se cunhavam em meio a um cenário de

incertezas, tensões e embates e que, lançadas em diferentes direções, iam fermentando pouco

a pouco, ganhando força e forma, entre sustos e medos.

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Em meio a um panorama social mais amplo em que forças opostas se debatiam, Célia,

irmanada em um dos lados desse embate, ia elaborando pari passu82, sua compreensão do

mundo, sua forma de pensar a educação e militar a seu favor.

Por um lado, liderados pelos donos do poder, representados sobretudo pelos militares,

pela ala conservadora da Igreja e por boa parte dos empresários brasileiros (além da presença

das forças advindas dos países de cuja economia dependíamos e seus interesses de mercado)

havia um movimento de viés controlador, que enxergava as manifestações populares e suas

demandas como ameaças do comunismo e riscos de fechamento de um mercado que se queria

aberto.

De outro lado, parte dos educadores, representantes dos trabalhadores, intelectuais e

outros, militavam por espaços de reconhecimento de seus direitos, de expressão de sua voz, de

justiça social, garantida no direito ao trabalho, à condições dignas de exercê-lo e à educação,

considerada como instrumento de ampliação da cidadania. Dois pólos de uma tensão social

que se agrandava.

A predominância e ascendência de um dos pólos sobre o outro se fazia sentir nas

experiências que Célia ia “sentindo na pele”, nos sustos e notícias que chegavam a ela sobre

as ações de repressão e coação aos que “pensavam diferente”. Célia dizia que não tinha a

dimensão exata do que acontecia. Dorothy traz também essa impressão. Parecia como uma

sombra que se projetava sobre ela e seus pares e que, pouco a pouco, revelava sua face

sombria. O golpe de 64 dá a devida noção do que se passava, confirmando medos e ceifando

sonhos e iniciativas.

O medo acompanhava seus atos. Não é com uma aura de bravura que relata seus

momentos de firme oposição e corajosa rebeldia, pelo contrário confessa o receio e o coração

palpitante (e vacilante) que ali pulsava. Atos que podemos considerar heróicos, porque

envolviam riscos e confrontos, como as denúncias na Rádio, o enfrentamento com o

mensageiro da autoridade de plantão que a telefonou na véspera de seu discurso de paraninfa.

Porém, aqui não temos a figura do herói destemido, que não calcula o tamanho da briga.

Temos sim, um outro herói, que segue, com passos apertados, com olhos nos abismos, mas

82 Termo em latim que significa simultaneamente.

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que não pode voltar, não há uma meia volta. É preciso seguir, nos diz Célia. Não havia uma

“terceira via”.

Recém formada, professora em início de carreira, mãe em suas primeiras viagens,

esposa e dona de casa em estréia. Papéis que ia aprendendo entre encantamentos e sustos. À

medida que as experiências se configuravam, ela também ia entendendo mais quem era, o que

queria. Aqui podemos pensar que, nos fazemos mesmo é em meio ao embate entre as forças

do meio em que vivemos, carregados com nossas experiências, estudos, formação. Vamos

“nos sabendo” à medida que construímos, agimos, realizamos. Como espelhos a nos revelar

nossa própria imagem.

Das idéias que davam solidez e orientação às ações e realizações de Célia, podemos

destacar o diálogo fértil com a filosofia, campo que desde o primeiro contato, Célia antevia

como um espaço de reflexão sobre o mundo que a subsidiaria em sua leitura permanente da

realidade. Na contramão dos estudos correntes da pedagogia da época, é fora dos manuais

prescritivos e pouco afeitos a instigações reflexivas, que ela encontra seus interlocutores.

Nos autores católicos, como Teilhard de Chardin e Mounier, citados por Célia,

reconhecemos uma visão de solidariedade, de esperança que ressoam nela. Não são esses os

grandes encontros teóricos que vivemos? Quando temos a sensação de que ao lermos um

autor, ele traduz percepções, convicções, idéias que, talvez nos faltasse a clareza para elaborar

mais precisamente, mas que já estavam, de alguma forma, em nosso horizonte?! Diálogos que

permitem que elaboremos mais consistentemente nossa forma de pensar, dando concretude e

solidez a nossas idéias?!

Em suas experiências e leituras, Célia vê na educação uma forma de fazer política.

Ouvir as necessidades do povo, reconhecer o contexto atual, problematizá-lo e construir

espaços de diálogo com as pessoas para tematizar as questões do tempo vivido. Ela viveu isso

na Rádio Educadora, também na sua experiência como assessora na Secretaria de Educação

do Estado do Maranhão e como professora. É importante ressaltar, que seu envolvimento com a Igreja, via programa da

Célia entendia o reconhecimento da cultura nacional, da cultura do povo como forma

de apropriação do próprio saber, da própria história. É assim que resgata a cultura indígena e

suas tradições em sua passagem pela secretaria de educação maranhense, bem como cria

programas de rádio que trazem as histórias do povo. Uma visão não submissa a uma

mentalidade de país colonizado que confere a tudo o que é estrangeiro mais valor e

superioridade, em detrimento de seus próprios valores e de sua singular história. Disso, ela

tratará com maior profundidade na década de 70, com seu mestrado e os seus

desdobramentos.

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Célia, com os pés no chão e a cabeça nos (bons) ventos, como tão bem definiu

Dorothy, é uma “filósofa militante”, acredita que o papel do intelectual é se aproximar do

povo, aprendendo com ele, dialogando com a realidade do seu tempo e do seu país. Postura

que era preconizada por alguns de seus contemporâneos, como Paulo Freire, mas que sabemos

ainda hoje, não abraçada, pelos educadores, de forma mais ampla.

Educação e política são compreendidas por ela de forma integrada. A conscientização,

concepção que orientava as práticas mais revolucionárias da época era defendida por Célia

nos muitos espaços em que atuava.

Apesar do estabelecimento do medo e de uma política de repressão às iniciativas e

movimentos populares, Célia mantém seu levedo fermentando. Confia que os tempos trazem

novas fornadas, mantém a mão na “massa”, numa militância filosófica que segue viagem.

Dorothy relacionou à Célia, imagem de um movimento contínuo, veloz, contagiante e,

ao mesmo tempo, dotado de uma certa tranqüilidade:

Uma água correndo em cima das pedras, que não amedronta mas ela é movimentada e ela espirra para todo lado, assim, bonitinho, e ela faz um barulhinho, espalhando a água, no rio com pedras, ela vem correndo, ela não pára não. Vai respingando, molhando as coisas. (Dorothy em entrevista, 2007)

119

CAPÍTULO 2 Década de 70, Medos e ousadias

"ocupar espaço, amigo, eu digo: brechas (...). Eu acredito firme que sem malandragem não há salvação". (Torquato Neto, 1972)

Nada Será Como Antes Composição: Milton Nascimento/Ronaldo Bastos, 1972 Eu já estou com o pé nessa estrada Qualquer dia a gente se vê Sei que nada será como antes amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite um gosto de sol Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção Sei que nada será como antes, amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite um gosto de sol

“Ventania em qualquer direção”, entoa a canção de Milton Nascimento. Realmente,

entre ventos e tempestades, para citar Novaes (2005), “nada seria como antes” no Brasil pós

Golpe militar. Os ecos e forças da repressão política, iniciada em 64, se faziam sentir num

povo incitado a não se expressar.

No cenário econômico, o Brasil sentia a repercussão da crise do petróleo83 vivida

pelos Estados Unidos (EUA). Em 1973, esta crise levou os EUA à recessão, repercutindo nos

demais países de economia periférica. Por aqui, esse acontecimento daria fim ao período

83 O estopim da crise do Petróleo está ligado ao aumento do preço de venda, estabelecido pelos países árabes, quando a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) triplica o preço do barril de petróleo, em retaliação ao apoio dos Estados Unidos às guerras em Israel.

120

conhecido como “Milagre econômico”, denominação dada à época de expressivo crescimento

econômico ocorrido entre 1969 e 1973, instaurando o pensamento ufanista de “Brasil

potência”. Concorria para o clima de euforia a vitória brasileira na Copa do Mundo em 1970

no México.

A Guerra do Vietnã chegava ao fim em 1975, com a derrota dos Estados Unidos e a

reunificação do país. Economias como a do Japão começavam a crescer. As revoluções

comportamentais da década anterior se intensificavam e os movimentos artísticos e culturais

expressavam essa perspectiva (GASPARI, 2002).

Surge o movimento punk, revelando nas indumentárias e atitudes uma ideologia em

que se negava os valores vigentes. A discoteca colocava os jovens para ferver nas pistas de

dança, aos “Embalos de Sábado à noite84”. O estilo “Tony Manero”, personagem central do

filme, que de dia levava uma vida sem perspectivas e a noite era um imbatível rei das pistas,

inspirava a juventude, talvez por trazer perspectivas ascensionistas. Afinal, dançar era

possível. No Brasil, Em 1978, a novela “Dancing Day’s”, escrita pelo então iniciante Gilberto

Braga, pegava carona no sucesso do filme. Era a primeira novela que não era produzida a

partir de algum romance consagrado, iniciando assim uma nova fase na teledramaturgia.

“Dancing Day’s” trazia um painel da classe média carioca dos anos 70 e injetava um clima de

alguma esperança num Brasil que vivia o término do Milagre Econômico. Vale destacar a

força que a TV ganhava, disseminando modas e valores na década que seria conhecida como

a “Década da TV”.

Com relação à arte, o panorama brasileiro era o de busca de estratégias de resistência,

aproveitando as “brechas”, nas quais as expressões artísticas traduziam as insatisfações com o

clima de repressão. A música, na linha de frente, continuava sua tradição engajada. A

afirmação de Wisnik (1979), “A música popular é uma rede de recados”, explicita a função

que esta ocupava na cena. Era por meio dessa “rede de recados” que a música mantinha sua

militância.

84 Dirigido pelo americano John Badhan em 1976, “Os embalos de sábado a noite” foi um sucesso estrondoso no Brasil e no mundo. Tratava da história de um rapaz sem muitas perspectivas que a noite, dançando em uma boate, tornava-se uma celebridade. Eu mesma fui fã (ou sou?) do filme e eternamente admiradora de John Travolta, talvez por também eu sentir que, de certo modo, na dança os limites se alastram.

121

O imaginário da liberdade e democracia se mantinha vivo nas estratégias para burlar a

censura nessa década, conhecida como “Os anos de chumbo”. Artistas como Chico Buarque,

Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, dentre outros, negavam-se a reduzir suas

músicas a artigos de consumo, como preconizava a ideologia que então se configurava85. Por

meio de mensagens ambíguas, metáforas e alegorias, nas letras das músicas, nos espetáculos

teatrais, nos filmes e nas obras literárias, a arte convidava a uma leitura nas entrelinhas para

que sua mensagem fosse compreendida. Era necessário desenvolver táticas para atuar nas

brechas do sistema. O mesmo se dava em algumas expressões presentes nos outros campos

das artes (NOVAES, 2005).

O Estado era o mediador da produção cultural e sua intervenção pretendia estabelecer

uma organização empresarial da cultura, aos moldes do capitalismo industrial, urbano e

moderno, com o objetivo de reprimir todo e qualquer ato de rebeldia.

Novaes (op.cit) ressalta que no teatro, grupos como o Núcleo, o Teatro São Pedro,

Teatro União, Olho Vivo, e o irreverente grupo carioca “Asdrúbal trouxe o trombone”,

dirigido por Hamilton Vaz Pereira, buscavam novas formas de militância e viam nas

produções coletivas, a possibilidade de fugir ao isolamento dos jovens, comum naquele

período em que as associações ameaçavam a “paz”. O desejo de ser coletivo nasce como uma

oposição à ideologia dominante.

Na imprensa, um grupo de jornalistas e intelectuais86, se reunia no Rio de Janeiro

fundando em 1969 o irreverente jornal “O Pasquim”. Criado num momento tenso do país

constituía-se na chamada imprensa alternativa, influenciando no Brasil a grande imprensa

(BRAGA, 1991; BAHIANA, 2006).

85 Lembremos então, que no modelamento econômico, político e ideológico do Brasil à época, a expansão do poder de compra da classe média era uma das perspectivas importantes para assentar as bases para uma política de ampliação do mercado de consumo, afeita as novas diretivas de um país que se abria ao capital internacional. (SAVIANI, 2005) 86 O grupo formado inicialmente era composto por Tarso de Castro, Jaguar, Sérgio Cabral, Luís Carlos Maciel, Claudius e Carlos Prosperi. Fruto de debates nos bares cariocas a respeito das contingências do momento político do país. O primeiro número chegou às bancas o apagar das luzes dos anos 60, em plena vigência do AI-5 (26/06/1969), a tiragem de 20 mil exemplares esgotou-se. O quadro de jornalistas e colaboradores estava sempre mudando e com espantosa regularidade eram presos. Em 1970, houve a prisão coletiva da trupe em função da capa que reproduzia o quadro de Pedro Américo em que Pedro I declara a independência do Brasil, que vinha com um balãozinho em que Dom Pedro dizia “eu quero mocotó” (BAHIANA, 2006).

122

Com relação ao cinema, a Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme87, criada em

1969 e remodelada em 1975, privilegiava a questão do filme histórico pelo qual o governo

manifestava interesse. A declarada não definição governamental da perspectiva ideológica a

ser seguida deu margem a que projetos que dialogassem com o momento em que se vivia

fossem subsidiados. Por outro lado, temos a TV concorrendo com os objetivos do governo,

criando uma imagem de um Brasil marcado pela euforia consumista das classes médias, um

país moderno, em busca de desenvolvimento.

No Recife, em 1970, nascia o Movimento Armorial, movimento cultural e artístico

liderado por Ariano Suassuna. Nascido no “coração do Nordeste”, os artistas armoriais

expressavam um estreito contato com o mundo rural e suas tradições. Suas expressões, no

campo das artes plásticas, da música, do teatro e da literatura desenvolviam-se apoiadas no

imaginário popular, criando uma nova linguagem artística, uma nova arte brasileira. A relação

com a cultura oral e popular nordestina brasileira, não limitava a arte armorial a um

regionalismo, ou nacionalismo estreito, pelo contrário, incentivava uma verdadeira viagem

dentro das culturas brasileiras e universais (LINS e VICTOR, 2007).

“É um mundo de reis, cangaceiros, loucos, bispos, heróis, diabos, juízes de togas negras e vermelhas, dançarinos, palhaços, pícaros, valentões falsos e verdadeiros, com máscara de couro ou tatuada no rosto, de guerreiros brancos, negros, vermelhos e mestiços, de reis magos e pastores, onde se ouve a corneta do diabo, onde brilha a estrela do Cristo, cachorro de Deus. Será um mundo apalhaçado, violento e que parecerá mesmo, aos olhos dos refinados, elementar, pouco interior e pouco profundo” (Ariano Suassuna).

É nesse panorama geral que se inscreve a década de 70, período que enfocaremos

nesse capítulo. A primeira parte, “Segurança e desenvolvimento(?!) a desnacionalização do

Brasil” aborda o cenário brasileiro, os principais acontecimentos e forças presentes na época,

com destaque às questões ligadas à educação. Em seguida, em “De mala e cuia: Chegada ao

Rio de Janeiro” e “Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente” trazemos as

principais experiências de Célia, sua imigração para o Rio de Janeiro, os novos espaços de

87 Embrafilme foi uma empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos, criada através do decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, como Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima. Foi extinta no início da década de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo de Fernando Collor.

123

atuação que conquistou e a irreparável perda de seu irmão, Rui Frazão Soares, pelas forças da

ditadura. As entrevistas que Célia nos concedeu e alguns artigos sobre a época, lançados

recentemente88 constituem as fontes dessa parte do trabalho.

Adiante, em “Trilhas do pensamento pedagógico”, abrimos com algumas idéias e

autores mais presentes nos estudos de Célia, bem como, fazemos uma breve retomada do

panorama das idéias pedagógicas da época. Compõe, também, essa parte do trabalho a

apresentação das principais idéias presentes nas produções escritas de Célia nessa época. O

objetivo dessa parte é destacar aspectos de seu pensamento pedagógico e apontar para

características do estilo de escrita que Célia vai desenvolvendo. Em “Voz dos parceiros”,

incluem-se as narrativas desenvolvidas a partir dos depoimentos dos professores Balina Belo

e Jésus de Alvarenga Bastos. Para fechar o capítulo, “Pedra e semente: a saga do herói,

aventura de estar vivo”, destacamos as idéias-força da década apresentada. Sigamos viagem.

2.1 “Segurança e desenvolvimento(?!)”: a desnacionalização do Brasil “O que está bom para os Estados Unidos, está bom para o Brasil” (Pronunciamento à imprensa, após retornar de viagem aos EUA, do General Juracy Magalhães, embaixador do Brasil nos EUA, ministro da Justiça entre 1966 e 1967, ministro das Relações Exteriores)

Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.:5º, nas Laranjeiras. (Publicado no Jornal do Brasil, no dia seguinte à decretação do AI-5)

88 Destaco especialmente a já mencionada publicação feita em 2007 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, “Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos” (MEC, 2007) e o artigo, também de 2007, de Otávio Luiz Machado, “Rui Frazão Soares: a militância na EEP”, que faz parte do livro organizado por ele e pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco, Michel Zaidan Filho, sobre o Movimento estudantil brasileiro e a educação superior.

124

Cálice

Chico Buarque (1978) Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue (...) Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa

Chico Buarque em “Cálice”, evoca o forte movimento de repressão à expressão

popular e às idéias discordantes da ideologia dominante que caracterizou a segunda metade da

década de 60 e boa parte dos anos 70.

É na continuidade dos conflitos iniciados nos anos 60 que entramos nessa nova

década. Após o golpe e todas as conseqüências que dele decorreram no campo das forças e

ideologias circulantes, o cenário era de mudança e coação às expressões populares e rebeldes.

Com efeito, por tratar-se de um processo histórico, não há propriamente um marco inicial,

mas sim, uma série de acontecimentos e modificações no conjunto de forças e idéias presentes

na sociedade da época, que vão gerando mudanças, em um fluxo contínuo.

Nesse sentido, para compreendermos as principais questões dos anos 70 e seus

desenlaces, é necessário retomarmos aqui, movimentos que iam se configurando na década

anterior, já analisados em linhas gerais, neste capítulo dois.

É possível dizer que no período de 1930 a 1964, mantinha-se certo equilíbrio entre

uma política de tendência populista e uma economia, com seu modelo de expansão da

indústria, apesar da contradição que ensejavam. A expansão industrial apontava para uma

desnacionalização, expressa na abertura do mercado ao capital estrangeiro e às empresas

125

internacionais (sobretudo americanas), frutificando num mercado interdependente que não

combinava com as expectativas de uma política nacionalista, própria do populismo. Tendo em

vista a importância do papel do Estado nas condições mínimas necessárias para a expansão

inicial da indústria, o empresariado tolerou, em certa medida, o nacionalismo. Militares e

empresários apoiaram até determinado momento, o poder público em defesa de uma ideologia

de cunho nacionalista, em meio às tensões permanentes (ARANHA, 1989; FRANCISCO

FILHO, 2004; ROMANELLI, 1999; SAVIANI, 2007).

Com a penetração mais intensa do capital estrangeiro, que levava à expansão

econômica, o aparente equilíbrio rompeu-se. Não era mais possível que empresários e

militares coincidissem seus interesses com a política das massas e os apelos do nacionalismo

dos governos de viés populista. Assim, os rumos do desenvolvimento se definiram numa

orientação da política e da economia de forma que os obstáculos que se interpunham à

inserção definitiva do capital internacional fossem removidos. O movimento de 64, com o

Golpe de estado e as iniciativas de inibição aos movimentos dissonantes de sua concepção

ideológica, expressava essa orientação.

A criação e preservação das condições políticas e sociais para que a economia se

expandisse no sentido desejado, definia as funções do Estado que se expressavam em um

reforço do executivo e no remanejamento das forças na estrutura do poder; no aumento do

controle feito pelo Conselho de Segurança Nacional; na centralização e modernização da

administração pública e na cessação do protesto social.

A idéia de modernização se colocava como expressão do capitalismo internacional,

que compreendia uma melhor integração dos países periféricos no mercado mundial, como

era o caso do Brasil, e, ao mesmo tempo, o reforço de sua situação de periferia desse mercado.

Com a modernização, mecanismos de controle mais eficiente foram acionados, tanto no setor

da administração pública, quanto no da administração privada, pois compartimentalizavam-se

a produção e o trabalho, eliminando ou reduzindo os perigos da integração social dos

trabalhadores e a visão crítica do conjunto do sistema produtivo. Externamente, a

modernização assegurava não só a expansão de mercados, mas aumentava também a distância

entre os centros criadores de ciência e tecnologia e os países consumidores. A intenção era

aumentar os mercados de consumo dos produtos criados pelos países de economia central,

sobretudo os Estados Unidos. Nesse sentido, modernizar era, para o Brasil, sinônimo de

dominação e controle externo, impedindo um desenvolvimento autônomo (SAVIANI, 2007).

Com relação à educação, o regime percebeu que era necessário serem adotadas

medidas que adequassem o sistema educativo ao modelo de desenvolvimento econômico que

126

se intensificava no Brasil, importando o modelo organizacional das empresas para o campo da

educação. Guiados pela concepção de modernização, nos moldes dos chamados países

desenvolvidos, de aplicação racional de recursos e eficiência, os movimentos voltados para a

educação orientavam-se pela ênfase nos aspectos técnicos, sobretudo com relação ao

planejamento de metas e planos de educação. As leituras e estudos sobre os problemas

educacionais não incluíam, em regra geral, a reflexão sobre o contexto social mais amplo;

focalizando-se em aspectos isolados do comportamento humano e das questões de cunho

técnico como citado acima. A expressão “pedagogia tecnicista” sintetiza a orientação

pedagógica que então se configurava (ROMANELLI, 1999; SAVIANI, 2007).

O governo perseguia o objetivo de desenvolvimento econômico com segurança. A

educação e a baixa produtividade do sistema de ensino eram vistas como entraves para a

modernização do país (SAVIANI, 2007). Os índices de evasão e repetência e o atendimento

insuficiente da população em idade escolar, além do índice de analfabetismo, que nos 60 e 70

era praticamente o mesmo, 39,4% e 33,6% respectivamente, caracterizavam o panorama

educacional (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 114).

Estudos que focalizavam aspectos do comportamento humano e as taxionomias

ganhavam força em detrimento das concepções de consciência, tão presentes nos anos 60.

Tais estudos se caracterizavam por uma perspectiva que visava a “utilidade” operacional,

expressa na possibilidade observável das ações do comportamento e não nos subjetivos atos

de consciência. As idéias de Skinner89, com a publicação de “Ciência e comportamento

humano” foram muito difundidas nessa década, bem como os estudos de Bloom90 e seus

colaboradores. Seus dois volumes de “Taxionomia dos objetivos educacionais”, publicados

em 1972, empenhavam-se em transpor as classificações de animais e plantas para o campo

educacional, no espírito do behaviorismo. A ênfase era pesquisar a forma de o humano reagir

89 Burrhus Frederik Skinner (1904- 1990), psicólogo americano, conduziou trabalhos em psicologia experimental, ficando conhecido como principal teórico do Behavorismo, uma abordagem que busca entender o comportamento em função das interrelações entre história filogenética e ambiental do indivíduo. Advogava também o uso de técnicas para a modificação de comportamento, condicionando-o com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da sociedade (CAMPOS, 2006). 90 Benjamin S. Bloon (1913-1999) preconizava com sua Taxonomia cognitiva, que as operações cognitivas podem ser classificadas em seis níveis de complexidade crescente. Cada nível dependeria da capacidade do aluno em desenvolver-se no nível precedente. Bloom se interessava em propor uma ferramenta prática e útil que fosse coerente com as características dos processos mentais superiores, segundo se considerava na época (EISNER, 2000).

127

ao meio ambiente e ao meio natural, ou seja, seu comportamento, com vistas a produção de

um conhecimento “útil” e aplicável (SAVIANI, op.cit.).

A incorporação das idéias pedagógicas tecnicistas no sistema de ensino se deu em

virtude das iniciativas de reforma, tais como a do ensino superior, exposta no capítulo dois e a

Lei 5692/71. Esta última, dentre outras modificações, ampliou a obrigatoriedade escolar de

quatro para oito anos, aglutinando, com isso, o antigo primário com o ginasial e suprimiu os

exames de admissão, responsáveis pela seletividade. Foi também extinta a separação entre

escola secundária e escola técnica, já que era criada a escola única profissionalizante. O

supletivo, para os que não conseguiram concluir os estudos regulares, foi reestruturado

(ARANHA, 1989).

As integrações acima mencionadas com a lei 5692/71, obedeciam aos princípios de

continuidade, procurando garantir a passagem de uma série para outra, desde o 1º grau até o

2º grau; e terminalidade, o que significava que ao terminar cada um dos níveis, o aluno

estaria capacitado para ingressar no mercado como força de trabalho, se necessário.

Para Aranha (op.cit.) a reforma, apesar de ter trazido algumas vantagens, como a

extensão da obrigatoriedade do 1º grau e a superação formal da seletividade, efetivamente

configurou-se como um fracasso, trazendo prejuízos para a educação brasileira. A autora

analisa que, embora a obrigatoriedade tenha se estendido, os recursos materiais e humanos

não atendiam à demanda. Além disso, a perspectiva da profissionalização não se efetivou de

fato, pois faltavam professores especializados e infra-estrutura adequados, fazendo com que

fossem implementados os cursos de instalação mais barata. Vale ressaltar que para as escolas

destinadas às elites, era comum que estratégias para “burlar” a obrigatoriedade de ensino

profissionalizante fossem adotadas e o foco continuasse sendo um ensino propedêutico, ao

passo que para as escolas de classe popular, nem um nem outro ficavam garantidos. Cisão que

mantinha as desigualdades e descompassos educacionais.

Outras críticas à Lei são propostas por ARANHA (op.cit.), valendo para esse trabalho

destacar a que sublinha o caráter tecnocrático dessa reforma, segundo o qual a eficiência e a

produtividade têm validade por si só, terminando por se sobreporem aos valores pedagógicos.

Educação, ensino e escola passam a ser vistos como investimento, a busca era pela

produtividade, racionalização, operacionalização e plena utilização dos recursos.

Consoante com a Pedagogia tecnicista cujo elemento mais importante era a

organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno uma posição secundária na

dinâmica educativa, relegados a “executores de um processo cuja concepção, planejamento,

coordenação e controle passam a ficar a cargo de especialistas habilitados, neutros, objetivos,

128

imparciais” (SAVIANI, 2007, p. 380). A essa teoria pedagógica correspondeu uma

reorganização das escolas que passaram por um intenso processo de burocratização, em que

se apostava na planificação para que o processo se racionalizasse.

Com relação à pós-graduação, esta foi instalada também no regime militar segundo as

mesmas coordenadas da visão tecnocrática dominante. O objetivo da pós-graduação era

formar quadros de alto-nível no campo científico e tecnológico, para impulsionar o

desenvolvimento do país. Sua organização baseou-se na experiência americana dos EUA,

conforme os Pareceres do Conselho Federal da Educação de Newton Sucupira que

conceituaram e regulamentaram a pós-graduação (Parecer CFE n.997/65 e CFE.77/69). Foram

esses pareceres que desencadearam a instalação dos programas e cursos nas principais

universidades do país durante os anos de 1970 (SAVIANI, 2007).

Saviani (op.cit.) nos conta que, apesar de inspirada no modelo americano, a pós-

graduação foi muito influenciada pela experiência européia, particularmente da Europa

continental, cuja ênfase recaia mais nos aspectos teóricos. Essa influência se deu graças a

formação dos professores que compunham os programas.

Foi na pós-graduação que surgiram os estudos empenhados em fazer a crítica da

educação dominante, pondo em evidência as funções reais da política educacional encobertas

pelo discurso político-pedagógico oficial. Tais estudos críticos, podem ser agrupados sob a

denominação de “tendência crítico-reprodutivista”, que postulavam não ser possível

compreender a educação sem que se pensasse em seus condicionantes sociais. Focalizavam-se

em explicar a problemática educacional, “remetendo-a a seus determinantes objetivos, isto é,

a estrutura socioeconômica que condiciona a forma de manifestação do fenômeno educativo”

(SAVIANI, op. cit., p. 391). Autores como Bourdieu, Passeron, Althusser, Baudelot e

Establet, já referidos no capítulo anterior deste trabalho, figuram entre os principais teóricos

dessa linha.

A título de retomada, vale lembrar, em linhas gerais, a partir de Saviani (op.cit.), os

aspectos principais da produção desses autores, expressos em suas críticas à escola e à

sociedade. Bourdieu e Passeron, com o conceito de violência simbólica, alertam para a ilusão

de uma escola neutra, apontando para os mecanismos de reprodução das relações existentes

presentes nas instituições educativas. Reconhecem a ação pedagógica como imposição

arbitrária da cultura (também arbitrária) das classes dominantes aos grupos das classes

dominadas.

Althusser, em sua teoria sobre as escolas como aparelhos ideológicos de Estado,

analisa a reprodução das condições de produção que implicam a reprodução das forças

129

produtivas e das relações de produção existentes. Distingue, no Estado, os aparelhos

repressivos, que funcionam pela violência, e os aparelhos ideológicos, que funcionam pela

ideologia e repressão. No capitalismo, diz Althusser, o aparelho ideológico de Estado escolar

se converteu em aparelho ideológico dominante, assim, a escola é um instrumento de

reprodução das relações de produção capitalista. Baudelot e Establet compreendem a escola

como inculcadora da ideologia burguesa, o que o faz de duas formas, pela inculcação explícita

da ideologia burguesa e pelo recalcamento, sujeição e disfarce da ideologia proletária. A

escola seria, portanto, um aparelho ideológico da burguesia.

Sob inspiração desses teóricos, afirma Saviani (op.cit.), muitos intelectuais brasileiros

mobilizaram-se na denúncia da utilização da educação por parte dos setores dominantes e no

mecanismo autoritário de inculcação da ideologia dos grupos do poder.

As teorias crítico-reprodutivas desempenharam um papel muito importante nos anos

70, sobretudo em sua segunda metade. Suas análises constituíram-se em instrumentos teóricos

para que fosse possível municiar-se para questionar à política educacional do regime militar,

criando assim um estofo para se produzissem críticas em artigos, dissertações de mestrado e

teses de doutorado.

Sem desconsiderar o fundamental papel de tais teorias crítico-reprodutivistas para a

educação, a crítica que foi se constituindo a respeito delas devia-se ao fato de terem se

restringido ao reconhecimento dos impasses da escola, sem, contudo apresentarem

possibilidades de mudança. Foi no rastro de um desejo de alternativas e saídas para a escola

que se percebeu a insuficiência de tais teorias. (SAVIANI, op.cit.).

No jogo de forças sociais, as críticas à ditadura também apertavam o cerco. O final da

década chega com um já esgotado governo militar. A pressão aumentava por todos os lados.

Movimentos que clamavam por eleições diretas, por assembléia constituinte, pela Anistia91

dos brasileiros que viviam no exterior por conta da ditadura, ganhavam força. O governo

91 O Comitê Brasileiro pela Anistia era integrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Confederação Nacional dos Bispos (CNBB). Sua criação foi fruto dos constantes movimentos de resistência e de denúncia dos crimes da ditadura foi desenvolvido principalmente pelos grupos de familiares dos atingidos e pela União Brasileira de Mães, entidade civil cassada em 1969 (BRASIL. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007).

130

militar iria perdurar até 1985, mas as forças de oposição começam a se fazerem mais

evidentes (FRANCISCO FILHO, 2004).

É, portanto, em linhas gerais, esse o cenário dos anos 70, em que coabitam visões

tecnicistas e, simultaneamente, emergem as críticas a tais concepções. É também quando,

entre “ventos e tempestades”, retomando a idéia que abre esse capítulo, ensejam-se

movimentos contra a ditadura.

2.2 De mala e cuia: Chegada ao Rio de Janeiro

No início da década de 70, os Linhares voltam ao Brasil, diretamente para o

Maranhão. Recém titulados mestres, Célia e José retomariam o trabalho na Universidade

Federal Maranhense.

Eram agora um sexteto. Na chegada, já no aeroporto, encontraram cartazes à procura

dos dissidentes políticos. Sinais da chegada de tempos ainda mais duros. A perseguição aos

opositores do governo se acirrava. O já mencionado AI 5, ato institucional do governo de

1968, autorizava a uma verdadeira “caça às bruxas”. Constituía-se uma ditadura que prendia e

matava, cerceando a liberdade democrática e instituindo a violência política.

Se por um lado a ditadura inibia com a prisão e a morte qualquer movimento

considerado de oposição, anunciava a doutrina de segurança e desenvolvimento. Havia uma

apologia ao ufanismo, nos relata Ridenti92, em suas lembranças do AI-5, que se fazia sentir

pelas canções irradiadas pelas rádios brasileiras: “Eu te amo meu Brasil, eu te amo, meu

coração é verde amarelo, branco e azul anil...”, "esse é um país que vai pra frente, uou, uou,

uou, uou, uou!"; e ainda pelos slogans afixados nos carros: "Brasil, ame-o ou deixe-o",

"Brasil, conte comigo" (RINDETTI, 1998).

Célia relembra sua chegada ao Brasil e o clima de medo que pairava no ar:

No ano de 70 ficamos lá no Maranhão, em 71 voltamos para cá. O golpe foi muito terrível em 64, mas foi em 68, considerado um golpe dentro do golpe, com o AI-5, que a ditadura mostrou toda a crueldade de que ela era capaz.

92 Professor da Universidade de Campinas (UNICAMP).

131

Aquelas listas nos aeroportos, os subversivos catados, os opositores sendo presos, punidos e desaparecidos, foi terrível. Nós soubemos de tudo isso, chegamos ao Maranhão e vimos toda essa situação, dificílima. Quando nós voltamos a situação era absolutamente outra, para muito pior. (Célia, em entrevista, 2007).

Célia e José Linhares perceberam que não podiam permanecer no Maranhão por

muito tempo. O cerco se aproximava, evidenciado pelo números de perseguidos políticos que

pediam ajuda contra diferentes formas da repressão. Era claro que havia uma vigilância

permanente de seus passos e sentiam-se em risco. Além disso, as notícias de amigos e

conhecidos que “caiam93” não paravam de chegar.

(...) Eram muitos os jovens que estavam na luta revolucionária que nos procuravam: precisamos da ajuda de vocês, estamos sendo perseguidos, estamos com medo!”(Célia Linhares, entrevista, 2007)

O medo era um sentimento que os acompanhava desde os primeiros episódios de

repressão sofridos na Rádio Educadora, até os percalços para conseguirem efetivamente

cursar o mestrado. O cerco parecia se fechar cada vez mais. Relembram ainda dos sustos

permanentes vividos ainda nos Estados Unidos no final da década de 60:

Quando chegamos nos EUA trouxemos conosco nossos medos e encontramos fábricas de outros. Chegamos naquela sociedade policial, àqueles carros sempre girando com aquelas luzes, “será que vieram nos buscar?! Será que eles souberam o que a gente fez?” . Éramos assaltadas, assaltados por esses sustos.

Quando nós retornamos ao Maranhão, voltamos a dar aula, os esquemas de fiscalização estavam todos em ação, nos cursos tínhamos os estudantes inscritos e tínhamos os penetras, com aquelas bolsinhas e os gravadores: eram os espiões, com seus esquemas. Eu ainda me lembro de me manter permanentemente me sentindo fiscalizada. A gente alugou uma casa longe do centro, no “Tirirical”, próximo do aeroporto de São Luís. Quando nós saíamos tinha um homem de óculos escuros na porta, de óculos escuros, mesmo quando era noite. Ali, não era para ter nenhum transeunte, era o subúrbio do subúrbio, perto do aeroporto! (Célia, em entrevista, 2007)

93 O termo “cair” é uma expressão popular muito utilizada para se referir àqueles que eram capturados pela repressão. Nesse trabalho, ao longo das entrevistas, tanto Dorothy quanto Célia fizeram uso desse termo, por isso o mantenho em meu texto.

132

Lembremos então que à época o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) dedicava-se a

monitorar todos os comportamentos considerados suspeitos94. Era impossível continuar

vivendo sob a égide do medo. A família então decidiu imigrar para o Rio de Janeiro. Sem

nenhuma perspectiva profissional concreta, com quatro filhos e uma caminhonete rural, se

puseram na estrada.

Então nós vimos que era muito difícil, aquele cerco, aquele cerco... sobretudo no sentido de que não podíamos continuar com tanto medo. As pessoas caindo, a gente se solidarizando com os que caiam... Mas sabíamos nosso endereço e roteiro estava todo fichado... Resolvemos ir para o Rio, numa caminhonete rural, com os 4 filhos, com Bibi e Vilma (duas amigas ajudantes que acompanharam a família), com Andréa pequenininha no meu colo. Fizemos essa viagem, nos perdemos nos caminhos porque as estradas eram péssimas. Entramos em uma que era quase assim uma estrada de onça, subindo, descendo, com quatro crianças. Viemos com a cara e a coragem. Para nós o maior atrativo do Rio de Janeiro era ficarmos incógnitos. (Célia, em entrevista, 2007)

Chegando ao Rio de Janeiro, num primeiro momento Célia lecionou na Universidade

Santa Úrsula, ensinava “Introdução à educação” e “Currículos e Programas”.

Tinha medo. Muito medo. Medo do Rio, tão diferente de São Luís onde tudo me parecia familiar. Medo da repressão que me assustava, quando qualquer olhar mais perscrutador me seguia, dentro ou fora da sala de aula. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Não demorou muito para que fosse procurar uma conhecida maranhense, Eulina

Fontoura, que a recomendou entrar em contato com Paulo de Almeida Campos, da

Universidade Federal Fluminense (UFF). Ali iniciaria sua contribuição na UFF que já perdura 94 Fazer uma tese é mergulhar em estudos e reflexões que passam a nos habitar. Assim, muito do que tenho vivido e o que penso, sinto e reflito a partir disso, se entrelaça à produção de minha tese. É por isso que acho interessante mencionar um belíssimo filme que vi recentemente, que possui ligação com essa passagem de Célia, num convite a quem venha a ler esse trabalho. Trata-se do filme alemão em cartaz no Brasil nesse ano de 2008 (na Alemanha foi lançado em 2006) intitulado “A vida dos outros”. Dirigido Florian Henckel von Donnersmarck, o filme se passa na Berlim Oriental de 1984 que busca assegurar seu poder através de um cruel sistema de controle e vigilância sobre os cidadãos, na forma da Stasi, como é conhecida a polícia secreta. O agente da Stasi, Gerd Wiesler, recebe o encargo de coletar evidências contra o bem-sucedido dramaturgo Georg Dreyman e sua namorada, a atriz Christa-Maria Sieland. Wiesler, no entanto, envolve-se com os acontecimentos e a vida daqueles que observa e silenciosamente, burla a própria missão de vigiar, em cumplicidade com aqueles a quem devia denunciar.

133

37 anos. Na ocasião, já estavam processando a instalação de um curso de Mestrado na referida

Universidade. Na época poucos, muito poucos tinham o título de mestre no Brasil, como

Célia, o que abriu as portas para seu trabalho.

(...) O professor Paulo de Almeida campos da UFF viu meu currículo e se surpreendeu com a minha modéstia. “Você é tão nova e tem uma titulação de que o Brasil precisa tanto, você tem o Master Degree em Filosofia e Sociologia da Educação pela Michigan State University! Vamos precisar de você!”. Então ele me apresentou para Austa Gurgel e Terezinha Lankenau que coordenava o Mestrado em sua esfera acadêmica e Hilda Faria, que como diretora da Faculdade era quem assumia as responsabilidades administrativas daquele Mestrado que então se iniciava. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Célia entrou para a UFF como bolsista, sem vínculo empregatício, proferindo

conferências. Percebia que suas falas mobilizavam interesses nas pessoas, que talvez

reconhecessem que ela trazia coisas novas, reflexões instigantes e, num curto espaço de

tempo, foi contratada como auxiliar de ensino. Para isso precisava passar por um atestado de

idoneidade ideológica, exigência para a assunção de cargos públicos naqueles tempos de

controle e vigília. Suas conferências abordavam autores com os quais havia travado contato

em seu mestrado nos EUA.

Comecei fazendo conferências em que tratei de questões epistemológicas (Foucault e Bachelard); tecnológicas e culturais (Mc Luhan95 e Marcuse); tendências educacionais ( Brokover, Skinner, Piaget96 e Rogers97).

Em seguida foi indicada para coordenadora geral do mestrado. Havia insistente

pressão por parte do MEC/CAPES98, para que o Curso de Mestrado da UFF se transformasse

95 Herbert Marshall Mc Luhan (1911-1980), ex-professor de literatura inglesa no Canadá, professor em várias universidades dos EUA, é uma importante autoridade mundial em comunicação de massa. Compreendia que o homem estava imerso numa complexa rede de comunicações na era da eletrônica, da cibernética, da automação, o que afetava sua visão e sua experiência de mundo, de si mesmo e dos outros. (GADOTTI, 1997) 96 Jean Piaget (1896-1980), psicólogo suíço, tornou-se conhecido graças a seus estudos sobre os processos de construção do pensamento nas crianças. De acordo com Piaget o papel da ação é fundamental na construção do conhecimento pois a característica essencial do pensamento lógico é ser operatório, ou seja, prolongar a ação interiorizando-a. Crítica a escola tradicional que considera não contribuir para formar inteligências inventivas e críticas. (GADOTTI, 1997) 97 Carl Ransom Rogers (1902-1987), psicólogo norte-americano especializou-se em problemas infantis na Universidade de Columbia em Nova York. Seu método terapêutico, conhecido como não diretivo, preconizava que o aconselhamento tem como finalidade a eliminação da inconsciência entre o autoconceito e a experiência pessoal, que acreditava ser a raiz dos problemas psicológicos do ser humano. Tal perspectiva ajudaria no amadurecimento emocional, na aquisição da autonomia e nas possibilidades de auto-realizar-se. Rogers transporia para a educação sua concepção terapêutica. (GADOTTI, 1997)

134

em uma especialização. O credenciamento do curso seria um esforço significativo que Célia

empreenderia com vários professores, em sua coordenação.

Eu não tinha “uma liga”, um “trânsito” na instituição, além de eu ser muito nova. Da minha perspectiva de uma jovem professora, o ambiente me parecia contraditório, com algumas simpatias, mas também com figuras muito autoritárias. E eu no meio daquilo. Mas então, convivendo fui construindo relações profissionais e com confiança naquela instituição. Coordenava o Mestrado.

Primeiro a coordenação funcionava no gabinete de direção da Faculdade. Depois conseguimos uma sala onde passamos a coordenar. Ali ficávamos todos: a coordenação, os professores do Mestrado e a secretaria.

Pouco a pouco fomos ampliando espaços para o Mestrado que nascia, junto à CAPES, por exemplo, lutando e conseguindo de certa maneira, alguns reconhecimentos para o Curso, o que nos possibilitou, por exemplo, sairmos do veredicto de que devíamos aceitar o lugar de uma especialização. A direção da CAPES era de Darci Closs. descendente de alemães, que era uma autoridade e tinha toda uma vinculação com os países anglo-saxões: Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra, sobretudo Alemanha. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

A tarefa de credenciar o mestrado não foi fácil. A diretiva da Coordenação de

aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior (CAPES) de que não seria necessário abrir

mais um curso de mestrado justificava-se pelo fato de que a Universidade Federal do Rio de

Janeiro99 e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro100 já o tinham. A política à

época era de não multiplicar esforços semelhantes. Mas o grupo da UFF mobilizou-se,

defendendo a abertura e credenciamento do curso em Niterói.

Diziam que já havia o curso do PUC e da UFRJ trabalhando como Mestrado. Lutei

muito para compor um curso que pudesse ser credenciado. Contratei professores como Balina

Bello Lima , Paulo Mota, Paulo Reis Vieira. A CAPES sugeriu que contratasse professores

doutores estrangeiros e me encaminhou alguns currículos. Assim vieram professores tais

98 A coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, foi criada em 11 de julho de 1951, pelo Decreto nº. 29.741, com o objetivo de "assegurar a existência de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país". (fonte: http://www.capes.gov.br/) 99 O programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro criado em 1972 completou 35 anos em 2007. (fonte oral: professora do curso de pós da UFRJ Patrícia Corsino) 100 O programa de pós-graduação em educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro foi criado no final de 1965. (BIANCHETTI E FÁVERO, 2005).

135

como Frederic Turk, que havia trabalhado na UNESCO101, no Chile e outros dois, cujos

nomes que já se foram, pois sua passagem foi curta e minha memória já não é uma maravilha.

Conseguimos credenciar o Mestrado, com um explícito reconhecimento dos consultores da

CAPES à coordenação pela sua competência e tenacidade. Nessa ocasião o vice-coordenador

era o Antônio Puhl, com quem contei sempre com um apoio dedicadíssimo. (“As coisas

findas”, Célia Linhares, 2007)

O processo de credenciamento exigiu grande empenho de Célia e de seus

colaboradores. Exigências burocráticas, organização de documentos e uma série de tarefas

que ocuparam muito de seu tempo e investimento nos primeiros anos da década de 70. Na

publicação do Relatório da universidade de 1974/1978, que trazia as principais metas

alcançadas naquele triênio, encontramos na dedicatória do então reitor Geraldo Sebastião

Tavares Cardoso a tradução do mencionado reconhecimento pela contribuição de Célia

naquele período: “À Professora Célia Linhares o meu agradecimento e a minha admiração pela

excepcional capacidade de realizar e de amar que põe em seu trabalho admirável a frente da Pós-

Graduação em Educação.” (20/08/1978)

101 Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura.

136

Vale destacar um episódio acontecido em meio a esse processo de credenciamento,

que deixa claro a insegurança que havia no ar. Em um dos dias em que a comissão da CAPES

visitava o Programa para fins de credenciamento, a Faculdade recebeu uma ligação que dava

notícias de uma ameaça de bomba no prédio em que se encontrava. O ambiente de medo fazia

parte do contexto daquele momento.

Na época do credenciamento, eu passei uma ou duas noites dormindo lá na UFF para fechar os trabalhos, que implicavam em coletâneas de papeis infindáveis. Balina Belo Lima, Austa Gurgel, Maria Wanda Maul e Maria Helena Paes Faria emprestaram uma colaboração muito grande. Foram excessivamente solidárias com o Mestrado e comigo que o coordenava. Maria Helena pernoitou comigo, me ajudando. Entre todos e todas nós da Faculdade circulou uma vontade de apoiar o Mestrado pelo muito que ele significa. As exceções não chegaram a empanar o brilho desses movimentos que confluíram.

Tinha um vigilante no prédio em que trabalhávamos e quando eu recebi a comissão da CAPES para apresentar o Programa, telefonaram falando: “No prédio da Faculdade de Educação tem uma bomba que vai explodir”. Todos se mobilizaram. A Direção chamou a polícia. Foi um susto terrível! (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Sustos de uma época em que o clima era de ameaças. Voltando ao credenciamento do

curso, já mencionamos que o parecer de reconhecimento do mesmo, ressaltava o trabalho da

137

equipe responsável, valorizando, também, a qualidade do corpo docente, dos livros

selecionados, etc. De fato, havia sido um empenho coletivo liderado por Célia.

No parecer de reconhecimento do curso saiu um elogio para nós, dizendo que além das condições serem favoráveis - os livros, o corpo docente - que a coordenação tinha um absoluto compromisso com esse curso que o ajudava a vingar. Algumas pessoas foram muito importantes nesse processo, algumas já citei. A presença da professora Balina, o de Antonio Puhl foram também uma parceria muito próxima... Wanda Maul foi uma pessoa muito amiga. Com ela traduzi o livro “A loucura dos outros”, de Bruno Bettelheim102.

Mas, o certo é que cada um, de sua maneira, todos e todas que constituíam o corpo docente e a própria Faculdade com sua direção e professores, que na época eram Fátima Pinto e Lúcia Molina Trajano da Costa, cerraram fileiras com o objetivo comum de fazer o Nosso Mestrado reconhecido oficialmente.

Nesta frente de luta por reconhecimento, institucionalização e difusão da pós-

graduação, Célia conseguiu três bolsas de doutorado na Europa. Abriu então uma seleção para

os professores interessados. Jésus de Alvarenga Bastos e Cósimo de Ávila, ambos mestres

pela Universidade Federal Fluminense, foram os candidatos selecionados à época, que

voltaram como docentes do Programa. Mais tarde, Jésus foi sucessor de Célia na coordenação

do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.

A defesa de sua tese de livre-docência em 1976, intitulada “Introdução a ontologia da

criatividade103”, foi uma passagem marcante dessa década. Em sua tese, Célia trabalha com a

concepção de que os estudos da criatividade são fundamentais para a compreensão da

educação, entendida como projeto existencial. Fundamental na conquista do homem de sua

própria expressão e originalidade, à educação caberia, em sua proposição, assumir a

concepção de criatividade como necessidade vital para a plenificação do ser.

Na época essa produção de Livre-Docência tinha um peso semelhante – ou até mesmo

superior, nos diz Célia – às teses de doutorado. Com a diferença de que era feita sem

102 Bruno Bettelheim (1903-1990), psicólogo de origem judaica, especializou-se em psicanálise, ficando conhecido mundialmente em função de seus trabalhos sobre autismo infantil. Uma de suas obras mais célebres, The uses of Enchantement (Psicanálise dos contos de fadas ), sublinha a importância que os "contos de fadas" têm no desenvolvimento emocional das crianças. 103 Em “Trilhas do pensamento pedagógico”, nesse mesmo capítulo, dedicaremos um espaço maior para apresentar as idéias centrais dessa tese. Aqui a mencionamos brevemente apenas para contextualizar essa produção.

138

orientador. A essa altura Célia já contava com relativo reconhecimento dentro da

universidade, tanto por parte dos alunos de graduação e pós-graduação, quanto de seus pares.

O processo de livre-docência foi uma experiência árida, tendo em vista a devolutiva

por parte da banca de avaliação, cuja concepção mais tradicional levou a uma inquisição dura

da tese de Célia.

Na docência universitária, pós-graduada e a graduada ao mesmo tempo, eu fiz uma tese de livre-docência e fui para esse concurso que foi cheio de lances. Ouvi do membro e presidente da banca que havia conseguido conciliar o facismo como o comunismo, posto que me apoiava no pensamento de Heidegger para elaborar questões vivas na educação.

No final, a banca me aprovou. Mas embora tenha sido dura, foi uma experiência que me fortaleceu. Alguns professores e muitos estudantes se manifestaram. Sei que chorei dois dias sem parar, só com aquilo ressoando nos meus ouvidos. Linhares dizia: “Sai disso, nós podemos educar os filhos com o que ganho!”, eu não ganhava quase nada, mas eu sentia que era importante continuar ali.

Aprendi muito. E essa experiência, mesmo com suas cicatrizes, é sempre valiosa para minha prática pedagógica!

Após esta experiência vivida em sua defesa, Célia lembra que o reconhecimento de

alguns professores e o apóio dos estudantes encheu-a de renovado ânimo. O fato também de

sua tese ter alcançado algum reconhecimento por parte de alguns interlocutores, mesmo de

matrizes ideológicas diferentes das suas, também a revigorou. Mas sobretudo foi se

ampliando com as aprendizagens que tudo isso lhe proporcionou.

Foi lindíssimo quando voltei a dar aulas - eu era professora do mestrado- me deram flores, me deram presentes, confirmando minha trilha. Foi importantíssimo ter recebido “tapas na cara”, ter ouvido admoestações desrespeitosas, respondido com a força e a fraqueza que me constituíam, mas ter me reconstituído, aprendendo comigo, com os outros, com a vida. Mas foi muito duro. Apesar de ouvir que minha tese era de uma comunista e fascista, alguns membros da banca perceberam o meu pensamento, com suas fagulhas. Alguns disseram que ali não tinha uma pessoa que só reproduzia: “professora, esse seu pensamento, acha que pode vigorar na educação?!”, elogiaram também meu trabalho, disseram: “Você, numa época de materialismos, tem uma mística atuante!”.

Não era a primeira vez que Célia se via diante da difícil situação que era expor um

pensamento divergente diante de pessoas que ocupavam postos de poder. Essa era já uma

experiência com a qual deparava-se desde seu início profissional. De um lado a dureza desses

episódios, “tapas na cara”, ameaças e enfrentamentos que iam ferindo e ao mesmo tempo

139

possibilitando uma permanente reconstituição. De outro lado, por outras fontes jorravam

manifestações de reconhecimento, confirmando e fortalecendo sua confiança nos caminhos

trilhados. Caindo, reerguendo-se, aliando-se com alguns, diferindo de outros, ela ia

demarcando algumas fronteiras. Não sem alguns arranhões. Mas o que parecia prevalecer era

uma confiança no caminho que trilhava.

Se na vida profissional Célia vivia experiências de construção, embates, afirmações,

na vida em família seus horizontes se alargavam, literalmente. A mudança de residência em

74 trazia a perspectiva de mais espaço, os filhos cresciam. Saíram então do apartamento

alugado em Copacabana onde moravam para a Ilha da Gigóia, na Barra da Tijuca. A casa era

pequena e ia sendo construída aos poucos para ir abrigando sua família numerosa e crescida.

O acesso a ela era feito por uma pequena embarcação que atravessava a ilha, um charme,

proporcional às dificuldades de uma família em que todos precisavam ir e vir para o

continente, várias vezes por dia. Mas, havia uma outra atmosfera de aventura que passava a

colorir a vida da trupe.

Os perigos cresciam enquanto a ditadura agonizava. É preciso dedicar um tópico

especialmente para trazer uma passagem das mais significativas da década, que marcará a

trajetória de Célia radicalmente ao longo de todos os anos subseqüentes. O desaparecimento e

morte de seu irmão Rui. Esse será assunto a ser desenvolvido em nosso próximo capítulo,

mais adiante, sob o título: “Uma passagem tenebrosa- ausência sempre presente”.

Voltando às experiências profissionais de Célia, é importante citar uma outra atuação

marcante em sua trajetória. Sua participação na fundação da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)104, em 1976, o que fez junto com outros

representantes dos programas de pós-graduação da área de Educação brasileira. Célia foi da

primeira diretoria: a secretária adjunta. Em 1979, a Associação consolidou-se como

sociedade civil e independente, admitindo sócios institucionais (os Programas de Pós-

Graduação em Educação) e sócios individuais (professores, pesquisadores e estudantes de

pós-graduação em educação).A finalidade dessa Associação era/é o desenvolvimento e

104 A ANPED é uma sociedade civil, sem fins lucrativos cujo objetivo e divulgar e difundir as pesquisas realizadas nos cursos de pós-graduação em educação do Brasil e das pesquisas desenvolvidas pelas universidades. (fonte: http://www.anped.org.br/acesso : 1/10/2007)

140

consolidação do ensino de pós-graduação e da pesquisa na área da Educação no Brasil,

constituindo-se num significativo fórum de debates das questões científicas e políticas da

área, referência para acompanhamento da produção brasileira no campo educacional e uma

importante ponte de conexões com eixos expressivos do pensamento mundial desta esfera.

A participação nesse movimento foi um “arejamento” para Célia. A UFF era um

espaço em que, apesar de ser palco de muitas conquistas e aprendizados, tinha também seus

limites105. Diferente do que sentia nos encontros coletivos para pensar a ANPED. Lá parecia

haver um espaço mais acolhedor para as diferentes contribuições, isso a animava!. “Quando

fui nos anos 70 para ANPED já fiquei mais satisfeita, as pessoas falavam, se ouvia, havia

troca. Os problemas políticos apareciam, encontrava e escutava os que narravam seus

sofrimentos na ditadura. Esse tipo de papo não tínhamos na UFF, nem havia contado que

tinha um irmão desaparecido”. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Outro movimento marcante neste período de coordenação do mestrado foi sua viagem

à Alemanha para representar a pós-graduação num Seminário Internacional e falar sobre o que

representava para o Brasil nossa Pós-graduação em Educação. A marca da coordenação de

Célia era sem dúvida o movimento de ampliação e difusão do programa de pós da UFF,

tornando-o mais conhecido nacional e internacionalmente, lutando contra uma tendência mais

fechada que parecia haver na universidade.

Nessa década Célia também traduziu dois livros que trouxe de seus tempos de Estados

Unidos. “Dibs: em busca de si mesmo” (que traz o caso de uma criança autista e o bem

sucedido tratamento que a resgata para o convívio social) de Virginia M. Axline e o, já citado,

“A Loucura dos Outros” de Bruno Bettelheim (que trata de uma escola para crianças com

graves patologias). A Escola era dirigida pelo próprio B. Betheilleim, famoso psicanalista,

que havia sobrevivido aos campos de concentração nazista. Esta última tradução,

105 Trago aqui uma curiosa observação a respeito do ambiente acadêmico, escrita pelo professor e médico Julio Voltarelli quando era editor da Revista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. No editorial da revista ele comenta sobre a leitura de um artigo do “Estado de São Paulo”, na época de seu mestrado, nos idos anos 70, intitulado “O mundo acadêmico pode ser uma selva”. O artigo, ele nos conta, “descrevia a frustração de um profissional norte-americano que havia se transferido da empresa privada para a universidade e nesta havia encontrado um jogo de poder e um clima de intrigas tão ou mais intensos que em seu emprego anterior. Sua expectativa era de que as decisões universitárias sempre se pautassem pela ética e racionalidade, condizentes com o ideal acadêmico da busca da verdade a qualquer custo, contrastando com o ideal do lucro a qualquer preço na iniciativa privada”. (VOLTARELLI, 1998)

141

compartilhada com Maria Wanda Maul de Andrade, foi editada pela AGIR. No caso do livro

DIB’s, é curioso acrescentar que ele foi muito utilizado pelos cursos de psicologia durante os

anos 80. Foi assim que tive contato com ele em minha graduação em Psicologia na

Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando nem sonhava em conhecer Célia (menos

ainda em mergulhar em sua obra). Na época ele foi uma referência para estudantes de

psicologia pois trazia descrições das sessões terapêuticas do menino Dib, muito

saborosamente descritas. Ainda hoje pode ser encontrado como parte das indicações

bibliográficas em alguns cursos de psicologia.

A década de 70 foi um tempo de novos empreendimentos, abertura de novos campos

de atuação e trabalho. Foi também um período em que Célia começava a intensificar sua

produção escrita.

Partindo para novos desafios, logo no início da década de 80, após ajudar a consolidar

a posição do Jésus Bastos como coordenador do Programa de Pós-graduação da UFF, Célia

sairia do Brasil para fazer seu doutorado na Universidad Nacional de Buenos Aires.

Linhares recebeu um convite para trabalhar na Argentina. Linhares foi antes e, logo fui com as meninas. Fiz o meu doutorado. E foi interessante, porque para mim a América- latinidade já era uma dimensão do meu trabalho e eu aproveitei para explorar essa questão, mergulhando por lá. Na Argentina havia uma burocracia muito grande, a admissão como estudante de doutorado me exigiu muito esforço, muito empenho burocrático, traduções, traduções, traduções. Mas também haviam muitas censuras, controles e desaparecimentos políticos, produzidos pela ditadura! O clima era de terror. Fui me submetendo aos exames que me foram exigidos: história da Argentina, literatura da Argentina, proficiência em espanhol. Aprendi muito, até sobre a resistência das Mães de Maio. Bem sabia que os problemas de cerceamento político, de torturas e de desaparecimentos tinham usinas de fabricação nos interesses capitalistas e que os EEUU era uma das sedes. Quem podia esquecer o assassinado do Presidente Allende? Ou da cruenta e selvagem Operação Condor? (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Célia sabia que os problemas do Brasil eram também problemas da América Latina e

que as torturas eram costuradas com fios que vinham do mundo capitalista, de uma de suas

mais importantes sedes, os EEUU, por exemplo. A operação Condor é um retrato vivo dessas

coligações macabras. Por tudo isso, os anos 70 correm quebrados, seu fluxo se interrompe.

Vamos tratar sobre isso, no item 2.3 Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente. É

sobre esse acontecimento que trataremos a seguir.

142

2. 3. Uma passagem tenebrosa: ausência sempre presente.

Antígona julgava que não haveria suplício maior do que aquele: ver os dois irmãos matarem um ao outro. Mas enganava-se. Um garrote de dor estrangulou seu peito já ferido ao ouvir do novo soberano, Creonte, que apenas um deles, Etéocles, seria enterrado com honras, enquanto Polinice, deveria ficar onde caiu, para servir de banquete aos abutres. Desafiando a ordem real, quebrou as unhas e rasgou a pele dos dedos cavando a terra com as próprias mãos. Depois de sepultar o corpo, suspirou. A alma daquele que amara não seria mais obrigada a vagar impenitente durante um século às margens do Rio dos Mortos. (SÓFOCLES, 1999)

Memória

(Carlos Drummond de Andrade) Amar o perdido

deixa confundido este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis à palma da mão

Mas as coisas findas muito mais que lindas,

essas ficarão

AUSÊNCIA

(Carlos Drummond de Andrade) Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.

Tal qual Antígona, sem poder enterrar seu irmão, Célia viveria a partir de 1974,

junto com sua família, a busca por Rui, desaparecido pelas forças da ditadura. Busca que

culminaria na confirmação de sua morte. Seu corpo nunca seria encontrado. Tempos

sombrios.

143

Ausência sempre presente, tal como nos diz Drummond nos poemas que epigrafam

esse texto, o desaparecimento e perda de Rui marcariam definitivamente Célia e seus

familiares, acompanhando-os sem tréguas e, animando-os a lutar pelo alargamento da vida e

com ela da participação de todos no Brasil e no mundo.

Rui Frasão Soares era o quinto irmão na família de Célia, aquele que ainda um bebê

de colo, havia viajado de navio com a família Soares na primeira imigração para o Rio de

Janeiro. Imigração que estava ligada a embates vividos no Maranhão pelo pai de Célia.

Também essa passagem já era um prenúncio do movimento divergente e combativo dos

Soares.

Tendo em vista a falta de infra-estrutura da educação superior em seu estado natal,

Rui partiu para Recife para ingressar na Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP) e esta

oportunidade de estudo e vida foi viabilizada pela solidariedade de Adhemar e Anna Maria,

seus irmãos que na ocasião exerciam funções profissionais no IPASE. Nos anos 60, Rui era

um jovem estudante de engenharia. Na época havia uma auto-concepção profissional que

instigava a uma intervenção social dos profissionais em muitas áreas, para além das técnicas

que a acompanhava (MACHADO, 2007). Para Rui a perspectiva de se tornar engenheiro

apontava para a possibilidade mais ampla de se ligar ao campo social e político da sociedade.

À época havia duas forças políticas principais que disputavam a hegemonia do

movimento estudantil da EEP, a Juventude Universitária Católica (JUC) e o Partido

Comunista Brasileiro (PCB). Rui definiu-se pela JUC, fazendo parte do grupo de Dom

Hélder106.

Quando o golpe foi perpetrado Rui continuou sua militância, interligando ações

estudantis aos movimentos do campo. Uma das principais lutas políticas que marcaram a

atuação de Rui, neste período, consistiu na tentativa de barrar a transferência da sede da EEP

da Rua do Hospício para o bairro de Engenho do Meio. Essa transferência era entendida pelos

estudantes como uma tentativa de isolá-los em um prédio distante do povo e das ruas. Rui era

então o representante dos estudantes na Congregação da EEP.

106 Religioso cearense, destacou-se internacionalmente quando ocupava a arquidiocese de Olinda e Recife, ao sair constantemente em defesa dos direitos humanos, durante o regime militar brasileiro instalado em 1964. (PILETTI, 1997)

144

Os movimentos estudantis sofreram intervenções nos diretórios, ameaças e prisões de

alguns de seus líderes. Em 1965 Rui seria preso e torturado com choques, de tal intensidade,

que teve alguns de seus dentes quebrados.

No último ano de seu curso, tendo em vista seu bom desempenho acadêmico, Rui foi

selecionado para fazer um estágio na Companhia Siderúrgica Nacional, no Estado do Rio de

Janeiro. No entanto, ao sair do prédio da EEP foi preso, novamente torturado e isolado.

Após a soltura, em 1965, Rui foi participar de um Seminário na Universidade de

Harvard nos Estados Unidos, e durante a Assembléia das Organizações Nacionais Unidas

(ONU107), aproveitou a oportunidade para denunciar a repressão ao movimento estudantil no

Brasil e as torturas que ele e colegas haviam sofrido.

Ao voltar ao Brasil, Rui retornou ao Maranhão, seu estado natal, abandonando os

estudos. Não havia condições para a continuidade do curso de engenharia. Ele era ainda

perseguido e respondia a processos da Justiça Militar.

Assumiu então um cargo num concurso público, sendo nomeado auditor federal numa

cidade do interior chamada Vianna, nas proximidades de Pindaré-Mirim. Lá se engajou nas

atividades do Movimento de Educação de Base, ligado à Igreja Católica, junto à população

camponesa da região. Nessa época, Rui estudava a obra de Teilhard de Chardin, autor que já

comentamos no capítulo anterior, cuja confiança no processo evolutivo da humanidade

animava Rui (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos humanos, 2007). Lá, ele se

confrontou com a aristocracia rural, continuando a lidar com novas frentes de luta pela justiça.

A partir de 1967, quando já tinha se tornado militante da Ação Popular, destacou-se

na orientação política junto ao movimento dos trabalhadores do rio Pindaré. Essa luta foi se

ampliando até gerar um grave conflito armado, em julho de 1968, quando um dos principais

líderes do movimento camponês, Manoel Conceição, foi baleado e detido, tendo de amputar

uma perna por falta de atendimento médico na prisão.

107 Fundada após a 2ª Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas é uma instituição internacional formada por 192 Estados soberanos. Seu objetivo é manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover progresso social, melhores padrões de vida e direitos humanos. Os membros são unidos em torno da Carta da ONU, um tratado internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comunidade internacional. (site oficial da ONU: <http://www.onu-brasil.org.br>acesso em 14/ 11/2007.

145

Em 1968, Rui Frazão casou-se com Felícia Moraes, com quem teve o filho Henrique,

em 1972. Com a repressão generalizada que se abateu sobre o trabalho camponês

desenvolvido pela Ação Popular108 no interior do Maranhão, Rui teve de passar à vida

clandestina, adotando a identidade de Luís Antônio Silva Soares. Na disputa interna vivida

por essa organização entre 1971 e 1972, Rui Frazão alinhou-se na ala que optou pelo ingresso

no Partido Comunista Brasileiro (PcdoB). Residia, então, em Juazeiro da Bahia, na margem

direita do rio São Franciso, em frente à Petrolina (PE). Fez um curso de técnico de rádio e

televisão e, com Felícia, negociava artigos de artesanato.

Na manhã do dia 27/05/1974, Rui foi preso na feira de Petrolina, por três policiais

armados de revólveres que o agrediram, ameaçaram de morte, algemaram e o jogaram no

porta-malas de uma viatura preta, da Polícia Federal. Conseguiu gritar para uma colega

feirante, um pedido de alerta à sua esposa: “-Avisa Licinha!”. Os policiais retornaram mais

tarde para recolher as mercadorias e até a lona da barraca de Rui. A feirante Lélia perguntou

aos policiais para onde o tinham levado, recebendo como resposta que não era para se meter

porque “a boca era quente”.

Após o desaparecimento de Rui, sua esposa escreveu à Folha de São Paulo e a

diferentes órgãos da imprensa brasileira, mesmo sabendo que corria perigos com essa atitude.

A mãe de Rui, Alice, também escreveu uma carta a Armando Falcão, o então ministro da

justiça, que havia sido colega de seu marido no Instituto Nacional do Sal. Além disso, viajou

para Recife, procurou os altos comandos militares em busca de notícias de seu filho. A

resposta que recebia era desanimadora e inconsistente: “ninguém sabia de nada.”

Em setembro de 1974, o militante Alanir Cardoso foi preso em Pernambuco. Os

agentes apresentaram a ele uma foto de Rui, de perfil, que havia sido feita no cárcere, e

108 A organização clandestina denominada Ação Popular Marxista Leninista (APML), formada em 1962 em Belo Horizonte, surgiu da transformação da Ação Popular (grupo de orientação católica), em agremiação de diretrizes marxistas. Compunham essa organização grupos de operários e estudantes ligados à Igreja Católica: a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Estudantil Católica (JEC). MORAES (1989) afirma que a existência desses grupos se deve a uma tendência reformista e modernizadora do Papa João XXII e das Encíclicas Mater e Magistra e Pacem in Terris que preconizavam o ecumenismo e a independência das instituições religiosas em relação ao poder estabelecido. No entanto, essa orientação não agradava alguns setores da própria instituição católica que não via com bons olhos o envolvimento de seus membros na luta pela reforma agrária e a conseqüente aproximação com as “camadas subalternas”. Desse modo, em função dos setores conservadores da igreja, esta voltou a se alinhar com as classes dominantes. Isso fez com que a AP rompesse com a igreja. (MORAES:1989)

146

afirmaram: “O comprido já virou presunto”. (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos

humanos, 2007)

Felícia e Henrique, moveram uma ação judicial que responsabilizava a União pelo

desaparecimento de Rui, tendo como testemunha um ex-companheiro, que havia sido

torturado até falar sobre a localização de Rui. Em 26/03/1991 essa ação foi vencedora, e a

União foi responsabilizada pela prisão, morte e ocultação de cadáver de Rui Frasão Soares,

condenada a pagar uma indenização de 6,5 milhões de reais à família, o que nunca se realizou.

O corpo de Rui nunca foi encontrado.

Hoje, seu nome batizou, em vários estados, ruas, praças e escolas, e integra a lista de

desaparecidos políticos anexa à Lei nº. 9.140/95 (BRASIL/ Secretaria Especial dos direitos

humanos, 2007).

José Linhares e Célia relembram a presença de Rui e esse momento de impacto que

tocou a todos. Pelas palavras de Célia podemos conhecer um pouco mais sobre quem foi Rui,

e com José, dimensionar os acontecimentos da época, o impacto para a família. Hoje este

episódio está documentado e divulgado em textos como os que consultamos nessa parte do

trabalho.

Quando o Rui foi para clandestinidade foi muito difícil. Ele foi preso pela primeira vez em Olinda, eu fui até lá com Dona Alice, mãe de Célia, procurávamos saber de Rui, ficamos num hotelzinho chamado Nassau. Naquela época um rapaz chamado Raimundo, de quem nós éramos muito amigos, era procurado pelo exército (que seria assassinado brutalmente pela ditadura um pouco mais tarde). Quando eu fui com dona Alice eu fiz um contato com Raimundo e eu o convidei para o jantar. Nós estávamos jantando quando apareceu na televisão uma imagem do próprio Raimundo com o chamado: “Procura-se este terrorista, dá-se &&&&??? mil!” e era ele, o Raimundo, que estava ali, na minha frente. O meu sangue acabou, fiquei sem sangue. (José Linhares, entrevista, 2007) (...) Rui tinha uma imensa empatia com os pobres. ninguém gostava tanto deles quanto Rui. Nas coisas grandes e pequenas Rui enxergava seus dramas, grandezas, misérias. Quando ele chegava lá em casa - naquela ocasião ele era membro da JUC-, se referia às moças que vinham do interior para trabalhar na casa de minha mãe dizendo: “mamãe, todos somos filhos de Deus, imagina a dor que as mães não sentem de deixar essas mocinhas virem para São Luis?!”. Quando ele foi preso, as pessoas disseram: “eu salvei o meu filho por causa de seu Luís – que era o codinome dele – ele chegou e encontrou meu filho doente, há muitos dias eu pedia ao médico para vir aqui, então seu Rui chegou e pegou o meu filho de 14 anos no colo e atravessou a cidade, levou-o ao posto de saúde e disse: eu só saio com o menino atendido!” (Célia Linhares, entrevista, 2007)

147

Célia retoma também as batalhas judiciais, destaca a figura de sua mãe e a luta que

travou em busca do filho:

Mas, sempre os anos 70 representarão uma passagem tenebrosa. Em 1974 Rui foi aprisionado em uma feira de Petrolina e a despeito de muitas batalhas judiciais, presenciais, feitas com o heroísmo de minha mãe, de Felícia de todos nós irmãs e irmãos e tantas amigas e amigos e, mesmo com algumas repercussões no exterior (Sartre escreveu sobre o desaparecimento de Rui) e no Brasil (Marcio Moreira Alves denunciou a barbárie de uma ditadura terrorista que seqüestrava a inteligência brasileira), nada conseguimos saber. A dor e uma procura sem esperança sempre se faz presente, aumentando a falta e as indefinições de uma saudade que cresce enquanto o tempo vai arrastando consigo um tipo de emudecimento das testemunhas daquele tempo de tão inomináveis acontecimentos. (Célia Linhares, “As coisas findas”, 2007)

Todas as obras de Célia passam, a partir desse momento, a de alguma forma se

inspirar na vida e presença de Rui. Apesar do abismo em que essa situação a jogou, Célia

transmuta a dor em ação. A temática da memória, como aspecto fundamental para apropriação

do presente passa a habitar sua produção teórica. Lembrar, resgatar o movimento daqueles

que lutaram por um Brasil melhor, é um pensamento que, tal como uma bússola, orienta suas

ações e produções a partir de então.

Rui passou a ser emblema, escudo, memória lembrada a cada dia. A luta de Rui foi o

tempo todo em função de um país mais livre e justo, essa foi sua aposta. Célia, num tributo

contínuo a essa aposta do irmão não deixa que o esquecimento se instale. Vai cunhando

conceitos, que se entranham na sua forma de fazer política, pensar a formação de professores,

compreender nosso papel em sua dimensão mais ampla, que apontam para esses valores, caros

a Rui e a ela.

São muitas as dedicatórias a ele – diretas ou indiretas – que encontramos em seus

livros. Há também os artigos dedicados a homenageá-lo como “30 anos sem Rio Frazão

Soares?” (in ZAIDAN FILHO E MACHADO, orgs, 2007). Algumas dedicatórias se

estendem à sua esposa de ontem e sua viúva de hoje.

O tom é de uma saudade, que se faz reconhecimento, portanto, não de lamúria, mas de

chamamento, de convite a revisitar o passado, nele mergulhando para olhar mais claramente o

hoje e o amanhã. Transcrevo algumas delas para conhecermos/sentirmos um pouco a forma

como Célia vai elaborando sua perda:

- Para meu irmão Rui Frazão Soares, que, até o último momento de sua vida, afirmou, com o seu silêncio, sua convicção que também é a nossa: VENCEREMOS!. (em “A escola e seus profissionais”, 1997)

148

- Para Alice Frazão Soares, representando as mulheres caxienses que nas escolas, em casa, nas ruas, no mundo do trabalho não desistem da preparação do futuro. (em “Escola Balaia”, 1999). - Trago em mim um HOMEM GRANDE – vivo, enterrado em meu coração, que não me deixa esquecer o passado: Rui. Trago em mim um menino que cresce – dentro e fora do meu coração que não me deixa descrer do futuro: DANILO. (EM “a Crise do Político na Educação, a imposição da estratégia: espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos na construção ética”, 1993) - Este livro é um tributo àqueles que na escola e fora dela compartilham “achados e perdidos” de nossas políticas –sempre mestiças – como uma forma de concretizar sonhos e saberes plurais, expressando e intrumentalizando a afirmação da vida contra as opressões. De todas as ordens” (em “Políticas do Conhecimento, velhos contos, novas contas”, 1999) - A Rui Frazão Soares. Há trinta anos te fizeram silenciar brutalmente, esconderam seu corpo, mas jamais poderão reduzir teu clamor pela vida, nem teu afeto – uma imensidão – pela humanidade, muito menos teu zelo, cuidado e admiração pela tenacidade ética dos oprimidos-, fortalecendo sonhos e projetos de Liberdade, Justiça e Educação que dignificam São Luís, teu berço, e o Brasil, teu horizonte mais próximo de esperanças. (em “Formação continuada de professores: comunidade científica e poética, uma busca de São Luís do Maranhão”, 2004)

Até aqui vimos que a década de 70 trouxe acontecimentos de grande impacto e

intensidade para Célia. Conquistas e crescimento profissional em sua experiência de

construção do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e participação na criação da

ANPED (dentre outras mencionadas); mudanças de residência; conclusão de sua tese de livre-

docência, entre embates e reconhecimentos e a dura perda de seu irmão, que tanto a marcaria.

Adiante, apresentamos as principais idéias expressas em algumas das produções

escritas de Célia nesse período. Antes de adentrar em suas obras, fazemos no início do

próximo item, uma breve síntese das questões que interessavam Célia, destacando aspectos do

pensamento de alguns autores que a marcaram, apreendidos a partir das entrevistas que ela

nos concedeu. O propósito aqui é destacar as idéias mais fortes que iam compondo seu

pensamento pedagógico e observar características relativas ao estilo de sua escrita à época.

2.4 Trilhas do pensamento pedagógico ...

É na década de 70 que Célia incrementa mais amplamente sua produção escrita,

provavelmente por se tratar de um período em que participava ativamente da organização e

credenciamento do programa de pós-graduação da UFF, estabelecendo um diálogo ainda mais

estreito com a docência e a pesquisa. É também relevante considerar que a tradição de

publicação no Brasil também se intensifica mais notadamente nessa época.

149

Sobre o lugar que a escrita vai ganhando em sua vida e o próprio processo de

construção de seu estilo, Célia comenta:

Tenho de profissão universitária 48 anos. Essa profissão foi me fabricando o tempo todo. Cada passo foi um passo, mas num passo se faz muitos movimentos e em meio às curvas e sinuosidades foi se construindo uma outra subjetividade, deslocando interesses, abrasando paixões, ameaçando com desânimos. Acho que me imaginava tendo um amadurecimento mais tranqüilo. Sobre a escrita, de início escrever era muito difícil pois eu tinha vozes muito autoritárias dentro de mim, vozes da escola, do certo e errado, impossível e possível, modelos de escrita e de fala muito idealizados; essas fronteiras eram muito demarcadas e muito exigentes, à medida que foi passando o tempo eu fui me autorizando a relaxar mais, a experimentar mais, a me encantar mais, a ter mais prazer. Fiz análise, com Carlos Alberto Silva e fiquei deslumbrada com o poder das palavras, narrando e reconstruindo minha vida, nossas vidas, ampliando o mundo de liberdades! Também foi bom viver num tempo de tantas tecnologias, assim, por exemplo, o computador me ajudou. Não que não perceba a faca de dois gumes que essas tecnologias representam, mas o computador vem ma ajudando. Há em mim a sensação que estamos todos em oficinas abertas e que temos laços com muita gente e embates também. Quando trabalho até mais tarde, é animador ver chegar e-mails de madrugada, pessoas que como eu estão, estavam escrevendo. (Célia em entrevista, maio 2007)

É então nesse movimento de “autorizar-se” que Célia vai se constituindo uma

escritora, ampliando assim a difusão de seu pensamento. No cenário mais amplo do pensamento educacio

movimento crítico se estruturava, liderado pelos, já mencionados autores, Bourdieu, Establet,

Passeron e Althusser.

Os programas de pós-graduação eram os espaços por excelência aonde se discutiam as

questões da escola (SAVIANI, 2007). Célia nos conta que nunca foi muito capturada pela

tendência tecnicista, que com seus objetivos operacionais e as taxonomias lhe pareciam

abordagens conservadores (Célia Linhares, em entrevista, 2007). Eram outros os autores e

temas que mobilizavam seu interesse, a maioria do campo da filosofia, sua seara. Foucault110,

109 Em “Segurança e desenvolvimento(?!): a desnacionalização do Brasil”, item do início desse capítulo, analisamos a entrada do tecnicismo no Brasil e as relações político-ideológicas que a ambientaram. Na mesma parte, apresentamos as teorias críticas à Pedagogia Tecnicista. Aqui retomamos mais brevemente com o intuito de contextualizar o assunto em pauta. 110 O francês Michel Foucault (1926 - 1984), foi filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collége de France (1970 a 1984). Foucault trabalha especialmente com o tema do poder. Em sua perspectiva, o poder não se

150

os intelectuais da Escola de Frankfurt111, Heidegger, Paulo Freire, Gramsci112, Bachelard e

Dewey113 são citados em destaque por ela. Algumas idéias mobilizam especialmente o

interesse de Célia em seus estudos.

Em Heidegger, autor significativo em sua tese de livre docência, em cujo pensamento

se apoiara para elaborar uma ontologia da criatividade. Chamava sua atenção seu conceito de

linguagem, afirmando como tantos outros pensadores também o fizeram, partindo de outros

portos, sermos constituídos de linguagem. A crítica do autor sobre a “tagarelice” também a

instiga. Sobre ele Célia comenta:

Em Heidegger me interessava muito sua concepção de linguagem. Para ele, nós somos feitos de linguagem. Ele afirmara, que o falar não pode dispensar um exercício de auscultar o Ser. Sem isso, a fala desliza, facilmente, para os exercícios de tagarelice.

localiza numa instituição ou no Estado, trata-se de uma relação de forças, estando portanto em toda parte e não apenas em uma instância. Somos atravessados pelo poder e não é possível compreender o humano sem levar em consideração essa dependência. Com relação ao conceito moderno de razão, Foucault, o amplia, pulverizando-a. Assim, “distribuindo-a em múltiplos lugares para mostrar seu caráter contingente, histórico, construído e, desse modo, poder aplicá-la em múltiplas situações, deduzi-la de diferentes circunstâncias”. Coloca em xeque a idéia iluminista da razão, unificadora e totalitária. (VEIGA-NETO, p.27 e 28, 2004). 111 Autores de diferentes origens intelectuais e influências teóricas reuniram-se, a partir de 1923, em Frankfurt, empreendendo uma crítica contundente do tempo em que viviam. Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, dentre outros, foram alguns dos pensadores que participaram do círculo frankfurtiano. Em suas idéias, traduziam a desilusão de grande parte dos intelectuais com respeito às transformações do mundo contemporâneo. (MATOS, 1993) 112O italiano Antonio Gramsci (1891 — 1937), Político, filósofo, cientista político e comunista, envolveu-se ainda jovem com os movimentos sindicais das classes operárias, na época em que estudava literatura na Universidade de Turim. Foi também nessa época que integrou o Partido Comunista, tornando-se seu líder. Atuou como jornalista, escrevendo sobretudo para jornais políticos. Foi preso político durante muitos anos. Seu conhecido trabalho “Cadernos do Cárcere” (mais de trinta cadernos de análise histórica e filosófica) foi escrito durante o período em que esteve na prisão. Nesses cadernos expõe os pilares de seu pensamento. Alguns conceitos merecem destaque para esse trabalho, tais como o da Hegemonia cultural, entendida como meio de manipulação do Estado capitalista e a necessidade de educar os trabalhadores para encorajar o surgimento de intelectuais dentro da classe trabalhadora. Gramsci reputava à cooptação ideológica, por meio de uma cultura hegemônica, a manutenção do controle capitalista por parte dos burgueses. Desse modo, os valores da burguesia tornavam-se “senso comum”, difundidos socialmente como parâmetro para todos. Sua idéia de "Senso comum" entendia-a como construção mental realizada por cada indivíduo, grupo, e classe a partir das idéias recebidas e de seus projetos. Gramsci acreditava que “todos os homens são filósofos”, pensar era para ele, uma condição humana, própria da existência da linguagem. (BARATTA, 2004) 113 John Dewey (1859-1952), filósofo americano, concebia que a filosofia e a educação não poderiam desligar-se uma da outra. Um dos traços mais marcantes de sua obra é o cruzamento indissociável entre o filosófico e o político. Critica a centralização da estrutura educacional, “através da qual o professor estabelece uma relação de dependência em relação à administração e vai se degradando até converter-se em um mero receptor de ordens” (BELTRÁN, 2003, p.52). Acredita na necessidade de que haja iniciativa intelectual no magistério, aonde sejam garantidas oportunidades de discussão e decisão, numa perspectiva democrática. (BELTRÁN, op.cit.)

151

Fazermos uma escuta, sem suposições e expectativas prévias! Não era a escuta do outro, mas o que o Ser tem a nos dizer. Interessava-o conhecer como é que é essa pulsão de vida, o que pode nos comunicar o silêncio, o não dito. Isso foi algo que me pareceu muito importante. Ali na tese de Livre Docência, também há uma idéia chave que me parece fundamental, e que eu reitero hoje utilizando outros termos, como os “movimentos instituintes”. Trata-se de pensar a criatividade não como um exercício de final de cartilha, nem de final de capítulo, um faz tudo ... e “você?! qual é a sua criatividade?!”. O fenômeno criativo, como chamei, criador, como direi agora, não é uma coisa bitolada e previsível. O processo de criação, que eu trabalho em minha tese é de movimento incessante de diferir, de criar, como uma necessidade ontológica, histórica, nós fazemos permanentemente num trabalho complexo de criação em que, longe dos essencialismos, nos alicerçamos uns nos outros. Por tudo isto, não posso ter uma previsão certeira, do tipo encomendável do que será criado. Toda essa concepção se aproxima também do trabalho de Norbert Elias que vai rompendo com as idéias e práticas que sustentaram crenças em sujeitos onipotentes e em forças de vontade descomunais, para acompanhar os movimentos que vão se complexificando na história e que produzindo interdependências trazem também surpresas, frustrações de planos e expectativas. Assim, os inesperados não significam que a história seja um vale-tudo, nem que devemos deixar de nos esforçar nas direções que nos parecem mais corretas, mas o que eles sublinham é que os avanços históricos com a humanidade se recria, se reinventa não é algo manipulável, controlável. Naquela tese dos anos 70, vou na contra-mão desses determinismos e mecanicismos controladores de uma expectativa que reíficam a vida e a vida social, que fazem de um ditador o dono do Brasil, prendendo, torturando, matando ou deixando viver. Procurava contestar tudo isto, afirmando uma orientação mais larga, por isso em dialogo com a mitologia, a poesia – ainda como uma conexão com Heidegger- mas também com a filosofia oriental, contrapondo-me às arrogâncias do cientificismo de que o Brasil estava impregnado e, finalmente, me aproximando dos contos populares e infantis. “O patinho feio”, por exemplo, que aborda a dificuldade de conviver com a diferença. (Célia Linhares, em entrevista, 2007)

Célia estudou Foucault, esteve presente quando ele fez uma série de conferências na

PUC em 1973. Célia destaca a metodologia de Foucault quando ele vai se afastando de

esquemas excludentes, como ciência e ideologia para pesquisar, historicamente, a partir dos

movimentos diacrônicos e sincrônicos. Também lhe agrada o tratamento que dá ao poder por

acompanhá-lo em movimentos capilares, negando-lhe uma residência fixada em espaços

especiais, para surpreendê-lo em relações sociais tensas que vão nos produzindo e à história.

Em Bachelard, interessa-a a idéia das rupturas epistemológicas, do salto

epistemológico, do cuidado com o que nos possa parecer evidente, pois o trabalho científico

supõe uma elaboração que vai contra uma crença geral, por superá-la, tornando-a mais

152

complexa. Eram assuntos dos quais pouco se falava no Brasil, nos diz Célia. Era uma

discussão mais propriamente européia.

Célia comenta que as idéias difundidas pela escola de Frankfurt, que ganhavam força

nos EUA, traziam questões que ainda eram muito novas para o Brasil, mesmo nos programas

de pós-graduação em educação.

Eu comecei a me interessar e estudar alguns autores da escola de Frankfurt, tais como Adorno e Marcuse. O livro “Eros e Civilizácion”, que era do Marcuse, foi muito significativo. Esses estudos traziam questões que ainda estavam muito fora dos esquemas do que falavam no Mestrado. Nos Estados Unidos se estudava muito o Dewey mas aqui no Brasil ele era muito combatido. (Célia, entrevista, 2007)

Célia reconhece também a presença de Paulo Freire, que começa a aparecer com

visibilidade e potência, e Gramsci. Percebe nesses autores a entrada mais forte de um

pensamento crítico no Brasil, somando-se aos já mencionados Bourdieu e Althusser.

Certamente que não temos como objetivo abordar a fundo o pensamento de cada um

dos autores mencionados, tarefa hercúlea a qual essa tese não se pretende. Trata-se sim de

construir um cenário do momento histórico em que Célia vive, aproximando-nos das questões

que circulam e, sobretudo, captando os aspectos que a mobilizam centralmente nos estudos

que faz. O objetivo é alargar o entendimento do pensamento de Célia, buscando nas fontes nas

quais mergulha, pistas significativas.

A seguir apresentamos as principais idéias de quatro produções escritas de Célia. Na

primeira, “O poder das expectativas do self” (1972), ela aborda a influência das expectativas

que temos com relação ao outro sobre seu comportamento, dando ênfase as conseqüências

para a educação dessa questão; a segunda é sua tese de Livre-Docência intitulada “Introdução

à ontologia da criatividade” (1974), onde defende que a criação é imanente ao ser humano,

entendendo que a finalidade educativa precisa estar conectada ao estímulo do processo

criador.

A terceira produção apresentada intitula-se “Ambigüidade, androgenia e crise”

(1974), seu foco é refletir sobre a especificidade do Ser humano, compreendendo a

ambigüidade como uma dimensão que nos constitui. Por fim, na quarta, “Mestrado em

Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e pesquisa em perspectiva”, escrito

em 1978, texto de cunho informativo, ela apresenta informações sobre a história da criação do

Mestrado em Educação da UFF, elucidando as concepções teóricas que o fundaram. Vamos a

eles.

153

2.4.1 artigo: “O poder das expectativas e o self” (1972)

“Se há uma multiplicidade infinita de caminhos nos quais as pessoas encontram a satisfação de suas buscas de auto-realização, de saúde, enfim de felicidade, por que não cultivar uma atitude de otimista expectativa, plena de respeito pelo caminho próprio em que cada pessoa busca a si mesmo?” (LINHARES, 1972)

Escrito há quase 37 anos atrás, o artigo “O poder das expectativas e o self” (1972),

publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, traz

reflexões que podemos considerar bem atuais acerca do papel das expectativas que temos em

relação ao outro e do efeito que estas exercem na relação professor-estudante.

Observando o estilo de escrita de Célia nesse momento, se cotejarmos com outros

textos de sua autoria produzidos nos anos subseqüentes, sua característica forma poética de

escrita, ainda parece tímida. De fato, lembremos que, como já citamos, ela mesma reconhece

que “De início era muito difícil escrever, pois eu tinha vozes muito autoritárias dentro de

mim, vozes da escola114, de certo e errado, impossível e possível, essas fronteiras eram muito

demarcadas e muito exigentes” (Célia Linhares em entrevista, 2007).

Trata-se de um texto mais formal, o que é coerente com aquele momento de vida de

Célia e com o próprio contexto da época. Uma mulher jovem, coordenadora e professora do

curso de mestrado, no começo de sua vida universitária, ganhando espaços de visibilidade e

reconhecimento. Claro é que não se pode esquecer de todo o ambiente sócio-histórico, em que

a sombra da repressão ideológica pairava sobre todas as cabeças e pensamentos e que, no caso

114 Durante os anos 2006 e 2007 trabalhei como formadora do Programa de Formação Inicial para professores em exercício na Educação Infantil (PROINFANTIL/MEC). Um dos instrumentos utilizados por esse programa é o Memorial de Formação (sobre o qual escrevi um texto de apoio, ainda no prelo). Destaco dessa experiência, em que viajei para alguns estados do país trabalhando, dentre outras questões, a da expressão escrita, um comentário que ouvia constantemente dos formadores de professores. A grande maioria, considerava uma das maiores dificuldades do Programa o desenvolvimento da escrita, não apenas de seus estudantes (professores em formação), mas também da sua própria. Muitos atribuíam às experiências escolares os receios de exposição, de errar, de arriscar. Nas memórias evocadas pelos professores, não raro surge a escola como um espaço que intimidou a expressão, reprimindo o erro e consolidando uma postura repetidora e retraída em seus alunos. Para muitos, a escrita era um desafio abismal. Cabe refletir, temos sido convidados nas escolas que freqüentamos, a descobrir nosso próprio estilo? Ou, de outro modo, temos sido estimulados muito mais a nos conformarmos aos padrões? De que forma é possível conhecer os padrões – o que considero importante na formação escolar -, sem com isso reprimir as iniciativas de buscar novas formas de expressão e criação? O quanto a escola, ao devolver os estudantes uma visão de suas produções enquanto erros, vai contribuindo para que nos desencorajemos a criar, a pensar, a experimentar?!

154

de Célia, mais do que sombras, tinha atravessado concretamente sua vida. Refiro-me não

apenas ao episódio de Rui, mas a toda a experiência vivida na época da Rádio Educadora e na

própria história de sua família.

Em “O poder das expectativas e o self” Célia aborda questões que se confrontam com

o pensamento hegemônico da época. Vale lembrar que na década de 70 no Brasil, tendo em

vista a tendência tecnicista, testes como os de QI115 (quociente de inteligência) eram

reconhecidos como referência confiável para avaliação dos estudantes. As questões

contextuais tinham menos evidência e focalizava-se nos aspectos do comportamento,

observáveis e quantificáveis (SAVIANI, 2007). É expressivo que Célia já esteja sintonizada

com a crítica que se enuncia em algumas esferas do campo educacional, atentando para o

estigma que testes desse tipo acabam produzindo na educação, dada às suas limitações para a

compreensão das dimensões mais amplas do humano.

Em seu artigo, ela chama atenção para a contribuição crítica de Henry Deuer, que em

1971 denunciava ao mundo os testes destinados a medir o QI como “monstruosidades

psicológicas”, que aferiam apenas o nível de aprendizagem e aculturações das normas

dominantes em uma sociedade em determinada época.

O artigo busca refletir sobre o papel e o poder das expectativas que temos sobre o

outro de agirem como fatores de influência na construção do auto-conceito (self) 116, refletindo

sobre qual seria a importância do grupo social na formação do mesmo.

115 O psicólogo francês Alfred Binet (1857 - 1911) foi o primeiro a conceber, em 1905, um teste psicométrico para medir a inteligência. Seu objetivo era descobrir as razões dos problemas escolares de algumas crianças com vistas a ajudá-las. Seus testes foram adaptados por psicólogos norte-americanos e ingleses. Estes misturavam preocupações com eugenia à idéia de que a inteligência poderia ser quantificada. GOLD (1999) chama atenção para o fato de que o quociente de inteligência, respaldado muitas vezes por uma idéia de determininsmo biológico, tem sido usado, em diferentes momentos históricos, para corroborar idéias como a da hieraquização das raças humanas e a da superioridade do homem branco ocidental. Na verdade, a utilização dos testes para esse fim apenas serviu, ao longo da história, como forma de confirmação de uma mentalidade ocidental enraizada, sobretudo entre os detentores do poder. No Brasil, os testes euro-americanos chegam por volta das décadas de 60/ 70, quando já estão sofrendo críticas nos países de primeiro mundo. A concepção de medição da inteligência desconsiderava aspectos sociais. (GOULD, 1999) 116 O conceito de Self está ligado a idéia de “Si-mesmo”, como centro da personalidade. No conceito Junguiano, do self emana todo o potencial energético de que a psique dispõe, sendo responsável por ordenar os processos psíquicos. Nas palavras de Jung: “O Si-mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade. A dinâmica desse processo é o instinto, que vigia para que tudo o que pertence a uma vida individual figure ali, exatamente, com ou sem a concordância do sujeito, quer tenha consciência do que acontece, quer não.” (Ballone, GJ - Carl Gustav Jung, in. PsiqWeb, internet, disponível em http://www.psiqweb.med.br/, revisto em 2005. acesso em 20/11/2007.

155

Célia lança mão de exemplos como os do fenômeno religioso ou dos boatos

circulantes em uma bolsa de valores, capazes de influenciar as atitudes e pensamentos de

muitas pessoas. No terreno da medicina, sintomas como alergias, úlceras dentre outros

revelam, formas inconscientes de expectativa de tornar-se objeto de piedade, amor ou de se

auto destruir, cita a autora.

Menciona também os estudos de Martin Orne (1959) sobre as conseqüências da

expectativa em duas turmas de estudantes de Introdução à Psicologia, que após assistirem a

uma palestra de hipnose seguida de uma demonstração, reagiram em um experimento

posterior de modo semelhante ao que haviam presenciado na palestra.

Com a antropologia e o estudo dos possíveis efeitos psicológicos do magicismo, Célia

cita estudos realizados sobre os povos ditos “primitivos”. O medo da morte que acomete

àquele que viola um tabu, por exemplo, é seguido muitas vezes por reações físicas, relativas à

expectativa negativa, geradora de um profundo sentimento de medo.

No campo da Psicologia animal, Célia Linhares cita experiências diversas, concluindo

que a pessoa que treina ou trabalha com o animal, serve como diretriz para a busca da

realização ou confirmação do pressentido. Se o treinador espera que o animal que esta

treinando seja inferior, este reage morosamente, ao contrário, quando está convicto de que

seus animais são geneticamente superiores, a reação destes confirma esta superioridade.

Célia faz referência às demonstrações parapsicológicas como, por exemplo, a do Pe.

Quevedo117, que localiza num auditório diferentes objetos escondidos. Percebe-se que, de fato,

os guias que dão as mãos para ele, por confiar nos poderes do demonstrador, acabam

induzindo com seu toque a direção correta dos objetos.

No campo da sociologia refere-se às pesquisas de Norman Alexander Jr. e Ernest

Campbell sobre “a influência do grupo de companheiros nas aspirações e realizações

educacionais de 1401 rapazes ginasianos”. Os pesquisadores concluem que um grupo aspira ir

à universidade, por exemplo, quando seu grupo de referência planeja ir também.

117 Oscar González Quevedo, espanhol radicado no Brasil na década de 50, é um padre jesuíta e para- psicólogo. Costuma aparecer na mídia e ministrar cursos de parapsicologia.

156

No caso das expectativas dos educadores, Christopher Jenks, outro autor citado por

Célia, relaciona a expectativa com relação às raças da sociedade americana e o

comportamento de grupos minoritários. Afirma que tanto cor da pele quanto os dados do QI

influenciam educadores e administradores a rotular as pessoas e esperar pelo seu provável

fracasso.

Abordando a questão da expectativa no processo educacional, Célia considera fatores

sociais, tais como alimentação insuficiente, moradia precária, indigência de afeto, para

compreender as dificuldades escolares das crianças oriundas das camadas populares, de baixo

nível econômico.

Célia critica algumas pesquisas americanas, que fundamentam a estratificação da

posição das crianças na escola pelas diferenças sociais das crianças das classes populares.

Para ela, essa perspectiva acaba por produzir uma diferenciação, solidificando um lugar fixo

de menos valia para as crianças pobres.

Finaliza seu artigo convidando o leitor a refletir sobre os objetivos educacionais,

focalizados em acolher a diferença e promover espaços de felicidade. Sua bela citação final,

propõe que ao invés dos QIs, utilizemos os QFs – quocientes de felicidade -, traduz sua

preocupação com uma dimensão da educação que inclui um olhar mais amplo para o humano,

envolvendo o afeto como uma perspectiva fundamental. Fechemos com ela:

“Na verdade, a evidência dos fatos mostrada pelo dia-a-dia prova sobejamente que já é tempo de parar a competitiva luta em busca de QIs mais e mais altos. É sintomática de uma nova época a substituição do termo QI por QF (quociente de felicidade) que muito mais se aproxima dos verdadeiros objetivos educacionais”.

2.4.2 Introdução à ontologia da criatividade (ensaio de filosofia educacional sob a metodologia fenomenológica) – Tese de Livre docência. 1974

“A criatividade está implícita em todas as teorias do humano como mais profundo nascedouro do processo de existir como pessoa, irrepetível e original.” (LINHARES, 1974, página 97)

“Importa, no trabalho educativo, não a repetição seriada, que prioritariamente preocupa a produção em massa, mas o encontro das relações profundas estruturadas pelo ser pessoal que possibilita ao

157

homem conhecimento de sua originalidade própria e desvelamento desta unicidade em ação criativa.” (LINHARES, 1974, pág. 133)

Em sua tese de livre-docência, intitulada “Introdução a ontologia da criatividade”,

realizada em 1974, Célia enfatiza a importância dos estudos da criatividade para a

compreensão do projeto existencial humano e, conseqüentemente, do processo da educação.

Partindo da análise de uma série de conceitos sobre a criatividade, a partir de autores

como Edward Bono, Alice Miel, Maria Helena Novaes, Paul Torrance, Carl Rogers, dentre

outros, ela conclui por defini-la como um processo dialético, plenificador do Ser e revelador

do ser humano. No homem, o fenômeno da criatividade emergiria pelo exercício da

autoconsciência da responsabilidade pelo seu projeto existencial (p. 145).

Célia inclui a presença do outro no processo de criar, considerando a vivência em

grupo como constituidora do eu. Para tanto, reporta-se a definição do processo criativo de

Morris Stein, importante investigador da teoria da criatividade, ao afirmar que o processo

criativo está ligado à vivência grupal (LINHARES, 1974, p.8).

Penso que aqui se evidencia uma concepção que se presentificará ao longo da

trajetória de Célia, agregando-se à sua compreensão do humano. A idéia de criação é tomada

como auto-criação e também como efeito da relação com o outro, constituída no encontro, na

vivência do grupo. Crio e ao criar me constituo humano e me conecto com os outros. Desse

modo, destaca-se a idéia de que resultado da criatividade não apresenta, portanto um produto

da individualidade, pois está ligada à necessidade de partilhar, e resulta de outras

contribuições que se reordenam numa nova organização. A citação abaixo clarifica essa idéia:

“Como um ser em relação, o existente humano emerge como criador, a partir de uma vivência grupal rica de contribuições de diferentes pessoas”. O próprio eu é descoberto ao impacto do tu e do encontro com este. (LINHARES, 1974, página 8) “O homem feito para o amor, une-se pela criatividade a toda a raça humana. Na infinitude do criar e do Amar, o homem caminha na história, dialeticamente, gastando a matéria em favor da consciência.” (LINHARES, 1974, página 48).

Nesse processo criador, Célia considera a linguagem como fundamental, pois será via

linguagem que o fenômeno criativo eclodirá. Aqui Célia trata de um tema bastante caro à sua

obra. A linguagem como constituidora do ser. Reporta-se a Foucault, a Heidegger dentre

158

outros e destaca a idéia heideggeriana da linguagem como morada do ser (CÉLIA

LINHARES, 1974, p. 32 a 37).

Por diferentes aspectos patenteou-se a irreversível sistêmica que liga o ser da criatividade ao da linguagem, identificando-os como reveladores da existência humana, expressão da infinita doação do Ser (LINHARES, 1974, p. 37).

Pesquisa também as raízes histórias da mitologia, sublinhando a função criativa da

atividade mítica. Célia comenta sobre a profundidade mítica buscada por alguns filósofos que

não se contentaram com uma racionalidade pragmática ou tecnocrática, buscando “a grandeza

de penetração indutoras da acuidade perceptiva, reveladoras das estruturas fundamentais da

existência humana”. (LINHARES, 1974, p. 99)

“O mito é uma história sagrada e verdadeira que se refere às realidades e prende-se sobretudo ao relato de criações. Os começos, as modificações renovadoras expressam, segundo Mircea Eliade, o assumir do eterno no tempo.” (LINHARES, p.93)

É possível reconhecer, na afirmação de Célia sobre a insuficiência de um tipo de

racionalidade para compreensão do mundo, sua crítica a um modelo de ciência que privilegia

uma racionalidade estreita em detrimento de outras dimensões humanas. Lembremos que à

época, a visão hegemônica ainda era fortemente marcada por uma concepção dicotomizante

do conhecimento, o que nos permite reconhecer que fecundava ali um pensamento divergente

e insurreto.

Aqui, vale buscarmos em Morin, autor de referência nessa tese, em seus estudos da

complexidade, idéias que se afinam com as que Célia vai cunhando. No tocante à

compreensão de outras dimensões para além da racionalidade, vemos pontos de grande

convergência entre o pensamento de Célia e a complexidade Moriniana.

Para Morin (1999) “a consciência da complexidade” leva a uma tomada de

consciência da indispensável mudança de paradigma nas ciências, partindo de uma visão

simplificadora, unidimensional, parcelarizada, para um conhecimento multidimensional,

integrador, complexo. Para este autor, a visão racionalista age separando eu/mundo,

natureza/cultura, corpo/alma, inteligência/emoção, desprezando assim os sentimentos, as

emoções, a imaginação considerados hostis ao pensamento racional. Tudo o que não se

159

adequa a essa lógica tecnicista, matematizável, não ocupa lugar de validade (MORIN, 1999;

GUEDES, 2001).

Por trás dessa lógica, uma outra lógica mais estrutural vigora. O diferente é

escamoteado como o não racionalizável, fora dos padrões impostos pela tecnoburocracia

vigente.

Nesse sentido, vemos que Célia já se aproxima desse pensar complexo, integrador,

que considera/acolhe outras formas de linguagem e de conhecimento como fontes

significativas em seu trabalho. Em sua tese, inclui e legitima a mitologia; a filosofia oriental,

citando o filósofo indiano Sri Aurobindo, em sua compreensão da importância do exercício de

não conduzir o pensamento; o teatro, com a idéia de Bertolt Bretch, sobre o não-sentir como

fuga do projeto existencial; a literatura, trazendo Marina Colassanti e seu texto “Eu sei, mas

não devia”118, relacionando-o com a perspectiva da valoração do espaço físico como elemento

ampliador do espaço vital; dentre outros autores e idéias de campos variados do

conhecimento. Faz também referências a episódios acontecidos na vida cotidiana,

relacionando-os com os conceitos que apresenta.

Outro enfoque de sua tese, diz respeito à relação entre educação e criação. Célia

estabelece comparações entre o fenômeno criador e educativo, preconizando que a missão

educativa supõe uma estimulação da criatividade. Afirma que para assumir a criatividade no

processo educativo é necessário, da parte do educador, uma capacidade emancipadora

fecundante de sua própria autonomia e da autodeterminação dos seus alunos. Em última

análise, a finalidade primeira, tanto da educação, quanto da criatividade, é a expressão do Ser,

pelo assumir do projeto existencial.

Célia destaca o conceito da necessidade de independência do processo criativo,

citando para isso Paulo Torrance119 (1963), afirmando que o processo de autonomização

118 Aqui coloco apenas um pequeno trecho do texto de Marina, para ampliar o entendimento da reflexão que Célia propõe: “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas do corredor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. (...)” (Marina Colassanti in "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.) 119 O educador Paul Torrance contribuiu, desde a década de 60 até estudos mais recentes que deram continuidade a seu pensamento, para pensar o conceito de criatividade. Este autor recebeu grande influência da abordagem cognitivista de Guilford, nos seus primeiros trabalhos, ao tentar construir testes para se avaliar a criatividade verbal e figurativa (Torrance, 1966).

160

compreende a aceitação dos erros como parte integrante da aceitação dos novos

comportamentos. “Da confiança de poder escolher o seu caminho decorre a coragem de

empreendimentos criativos.” (LINHARES, 1974, página 11). Aqui também surge um ponto

sempre defendido por Célia: a formação de professores e a concepção que a orienta,

preconizando a necessidade de se levar em conta a autonomia intelectual do professor. Tal

perspectiva se contrapõe a uma política de formação que deu origem a algumas experiências

em nosso país, cuja ênfase paternalista colocava o professor num lugar passivo, baixando

pacotes de mudanças inquestionáveis e orientações “modernas” (SAVIANI, 2007).

Outro autor com o qual dialoga em sua tese é Emmanuel Mounier, especialmente com

uma de suas obras, “O Personalismo”. Para ele, ser pessoa é ser criativo, nos diz Célia,

revelando a sua originalidade tanto na cotidianidade, como na vida artística.

Para Mounier, criatividade é processo e produto. Compreender o fenômeno criativo

implica pensar essas duas instâncias não dicotomicamente. Aqui, Célia faz um paralelo entre

outros aparentes paradoxos tais como o novo e o velho; fluxo motivados do mundo subjetivo

e objetivo; entre o pensamento divergente e convergente; a contemplação e a ação; o racional

e o irracional; o pensamento lógico e a intuição. Pensar essas dimensões de forma não

dicotômica é algo pouco usual para a época. Nesse aspecto, podemos reconhecer também,

convergência com as idéias sobre o pensamento complexo de Morin. Para Morin, o

pensamento complexo não dicotomiza, mas compreende de forma integrada aspectos

aparentemente opostos.

Para Célia, a criatividade seria então esse processo dialético e plenificador do ser e

conseqüentemente revelador da unicidade existencial humana. Em sua tese, a criatividade

aparece em sua dimensão mais ampla, reportando-se ao próprio viver humano, a forma como

o homem vai percebendo o mundo e fazendo escolhas, tomando decisões. Nessa dimensão o

erro é visto como força, impulso diante da vida. “Percebendo o mundo, impulsionado pela

preocupação e interpretando suas possibilidades, cada decisão do ser humano é um ato de

criatividade.” (página 59)

“A criatividade não é o fruto exclusivo do processo intelectual mas, este como todos os componentes do projeto existencial humano vinculam-se a uma totalidade onde o sentir, pensar e o agir fundem-se numa expressão de existência.” (página 67)

É possível pensar que a reflexão e estudo sobre as relações entre criatividade e

expressão do Ser, tenham instigado Célia a ousar-se ainda mais em sua escrita. Em suas

escritas dos anos 80, e mesmo algumas do final de 70, podemos ver que seu próprio processo

161

criativo está mais evidente. A escolha das palavras e o convite das metáforas que passam a se

presentificar em suas obras, nos revelam tal perspectiva. A respeito da metáfora, figura de

linguagem da qual lançará mão com freqüência posteriormente, ela comenta em sua tese, já

nos dando pistas de uma perspectiva que passará a incorporar progressivamente em suas

escritas:

“A natureza da metáfora, definida como o traço em que a significação natural de um signo é substituída por outro, em virtude de relação de semelhança subentendida, evidencia que qualquer explicitação significativa implica em percepções e sensações. Assim, qualquer expressão mítica, lingüística ou artística só serão possíveis se precedidas da apreensão sígnica, onde sujeito e objeto mutuamente influenciam-se numa relação interacional”. (LINHARES, 1974, página 96)

Nessa citação, percebemos que ela antevê a rede de significados que o uso de

metáforas evoca, em que se incluem “percepções e sensações”, favorecendo a que o leitor e o

autor, no caso da escrita, interrelacionam-se na construção de sentidos.

Também nessa citação fica mais claro, como Célia entende as inter-relações entre

sujeitos e objetos, que ainda hoje perdura como uma polarização de antagonismos em muitas

produções educacionais e sociais.

Em sua tese evidencia alguns dos pilares que sustentam a ação de Célia em sua

militância pela formação de professores: a criatividade, a criação, como processos humanos

fundamentais para a autoconstrução do ser. Como já mencionado, ela compreende que a

criação nos conecta ao outro, pois é ao criar, e conseqüentemente expressar via linguagem

minha criação, que me ligo àquele ao qual me revelo. A criação é, portanto, um processo

humanizante.

“Todo efeito da criatividade é vivenciado como uma necessidade de comunicação” (página 49)

Conclui sua tese assumindo que a criatividade é imanente do ser humano,

manifestando-se cotidianamente no existir. A criatividade supõe a conquista pelo homem de

sua integração cósmica com o aprofundamento de sua originalidade pessoal. É uma dimensão

que precisa ser abraçada pela educação.

162

2.4.3 Ambigüidade, androgenia e crise – 1974.

“O homem é uma abertura na escuridão; é uma fronteira que participa da luz, mas continua imerso na sombra. O homem é um ser exposto a ambigüidades”.(LINHARES, 1974, p.6)

Neste pequeno livro institucional, produzido a partir de uma palestra proferida na

Universidade Santa Úrsula em 1974 (onde Célia lecionava Introdução à Educação e

Currículos e Programas), a principal questão de seu texto é pensar o que é o homem, para

tanto, Célia lança mão da filosofia. Apresenta a idéia de que o homem, por constituir-se como

uma abertura, “está exposto à vivência da ambigüidade” (CÉLIA LINHARES, 1974, p. 5).

Dada sua infinitude de possibilidades de expressão, o homem não se esgotaria num único

conceito, afirma Célia, e poderíamos defini-lo, justamente pela sua indefinibilidade e

“imprevisibilidade surpreendente e auto-criadora”(LINHARES, 1974, p.4).

Muitas vezes, nos diz Célia, ambigüamente, o homem busca separar o ordinário do

extraordinário. Quer fugir do dia a dia, para experenciar o encontro do extraordinário – a

dádiva do Ser-, ou quer submeter-se à ditadura da rotina, renunciando a procura da harmonia

do Ser.

Para ilustrar esse que seria o drama humano, Célia evoca o mito de Sísiphos. O

lendário rei Sisiphos de Corinto, é punido pelo deus da morte com a condenação de realizar

uma tarefa que nunca finda: ele deve carregar uma pedra até o topo da montanha, porém,

assim que chega próximo ao topo, a pedra rola até as fraldas da montanha. Assim como

Sísiphos, o homem vive o seu drama à medida que busca a plenitude de seu Ser, porém sem

nunca alcançá-la com sua percepção. Mas isso não o impede de tentar, nos diz Célia,

consistindo nesse “humilde e audacioso esforço, o heroísmo do homem” (LINHARES, 1974,

p. 8).

Para aproximar-se do Ser e, ao clareá-lo, clarear-se, é preciso que o homem vivencie o

desafio de usar o ordinário e com ele descobrir o extraordinário, bem como mergulhar na

rotina sem escravizar-se a ela. Reporta-se a obra do genial artista plástico Juarez Machado,

brasileiro, radicado em Paris desde 1986, que trabalha sobre a temática do homem em sua

busca do Ser, pela substituição do que o simboliza.

Abaixo incluo um de seus desenhos – que não faz parte do texto de Célia - que nos

traz essa dimensão da obra do artista, em que o dramático e o cômico se tecem

reciprocamente. Podemos pensar, observando a expressão do homem que Juarez retrata, que

163

sua decepção com aquilo que recebe (seu presente, sua busca pela verdade talvez...), revela

essa perplexidade do homem A que Célia se refere. A procura do homem pelo extraordinário

que nunca chega/chegará ao fim.

No desenho do artista, vemos que o conteúdo do presente não se encaixa nas

expectativas de seu personagem. Esta seria a contradição básica do humano, viver o cotidiano

originário, buscando o extraordinário. Para Célia, é na vivência dialética dos opostos e da

ambigüidade que o homem poderá harmonizar os dois pólos (alegria/tristeza, morte/vida).

(LINHARES, 1974, p.13)

164

Juarez Machado – 1974 – extraído do site do artista: http://www.jmachado.com/en

Célia retoma aqui a questão da linguagem para definir o que é o homem. Interessa-se,

sobretudo, em explorar a idéia de que a linguagem constitui o humano. Para tanto, cita

Heidegger, filósofo com o qual dialoga extensamente nessa década. Do autor, destaca a

concepção de linguagem, em sua afirmação de que “A linguagem é a casa do Ser”. Questões

que já expomos no resumo da tese de livre-docência de Célia.

Entende que o homem integra racional e irracional. Célia afirma que a racionalidade

do homem, no seu processo dialético, apóia-se em premissas e atitudes fundamentadas,

freqüentemente, por razões inconscientes Paradoxalmente, o irracional expressa-se por uma

logicidade específica (LINHARES, 1974, p. 13).

Célia retoma aqui os estudos dos mitos, afirmando que estes nos revelam o quanto a

ambigüidade, como a dificuldade em distinguir os contrários, tem preocupado o homem. “Os

pólos opostos e intrinsecamente relacionados em que oscila o pêndulo decisório humano

foram separados por uma correspondência mitológica”, nos diz Célia. (pg. 14).

Com relação ao conceito de androgenia, Célia afirma que no mundo ocidental

procurou-se definir o masculino e o feminino atribuindo papéis radicalmente estruturados para

um e para outro, tendência que vem sendo contestada na contemporaneidade.

“Dentro de cada ser humano mora, não somente, o princípio masculino e feminino, mas a vida e a morte, o princípio da atividade e de passividade, o apego à rotina e o fascínio do extraordinário, a

165

sedução do novo e o conformismo do habitual, uma existência finita dentro de um anseio infinito do Ser” (LINHARES, 1974, p. 22).

Remete-se ao taoísmo, filosofia oriental, que trabalha com o princípio da integração

entre os opostos, e que formaria o “tao”, traduzido como caminho da vida e harmonia

universal. Princípio feminino, o yin e o princípio masculino, yang, equilibrar-se-iam no tao.

Traz também a mitologia grega, citando a figura de Andrógino e as informações do

campo da história, que compreendiam os andróginos como seres primitivos, habitantes de um

longínquo país africano, caracterizados pela integração de dois corpos, duas faces e uma só

cabeça, os quais divididos pelos deuses ao meio, originaram os dois sexos.

Célia reporta-se a Platão, que evoca a narração mítica ao referir aos princípios

masculino e feminino. O ser total, o andrógino, era de tal modo poderoso, que os deuses

decidiram por cindi-los, pois assim sua energia seria canalizada para a procurar de seu

elemento. Cita também a Bíblia, no relato da criação do gênero humano por Deus. Traz ainda

o misticismo cabalístico com sua interpretação de que Deus seria andrógino, em cuja

existência absoluta coexiste a masculinidade e a feminilidade. Destaca em Freud sua

compreensão da sexualidade, em que é possível também encontrar um alerta à androgenia em

potencial, quando afirma que a bissexualidade é originalmente presente em crianças.

Teilhard de Chardin, outra referência citada, afirma que a vivência da integração do

masculino e do feminino seria necessária para o efetivo entendimento do ser humano. De

Jung, menciona na sua busca da alma humana, seu entendimento de que o inconsciente

coletivo é andrógino por natureza. No inconsciente pessoal cada homem vive com o feminino

(anima) e cada mulher com o masculino (animus). Numa relação homem-mulher, além

daquele que acontece no plano consciente, há outro que corresponderia ao inconsciente, no

plano de anima e animus.

O conhecimento dialogante do ser humano com os diversos aspectos de sua

personalidade permite a que ele se perceba participante do feminino e a mulher do masculino.

Vivenciando essa androgenia em seu próprio ser, é possível que o homem e a mulher

empreendam um processo de equilibração dos quatro vértices do quadrilátero proposto por

Jung. O não desenvolvimento significante da vivência andrógina faz com que se desenvolva

uma dependência patológica.

Por fim, finaliza seu artigo relacionando ambigüidade e crise a partir da idéia de que a

crise seria o movimento necessário para a ultrapassagem, provisória, da ambigüidade. É ela

que possibilita as rupturas epistemológicas. A partir do conceito de tipos de crise em relação

com a educação proposto por Brameld (estética, intelectual, ética, biológica, social,

166

psicológica e religiosa), afirma que a crise esconde um aspecto inaceito, uma ambigüidade

não resolvida de cada ser humano que por ela passa. Seria marcada por angústias, riscos,

incomensurabilidade temporal. A aproximação da crise, cheia de promessas de redenção e

síntese, e também plena de riscos e ameaças, induziria o homem a uma variedade de

alternativas decisórias: exterminá-la, por conta da ansiedade; deixar-se levar pelo desespero;

anestesiar-se (com a bebida, a diversão, a droga, etc) ou por um caminho diferente, “o ser

humano assume atravessar a crise abrindo os olhos da consciência, criticando, tentando

entender cada novo aspecto que na crise emerge, buscando a alegria da Verdade e dores que o

parto, que o seu próprio parto lhe traz”. (LINHARES, 1974, p. 25)

“Na realidade, nada conforma mais do que a honestidade, a envergadura do ser humano de assumir a Verdade. A sua fuga é incomoda, porque demissionária do humano. Qualquer que seja a Verdade, é bem mais digna de ser ouvida que a mais requintada e sofisticada mentira. Aquela liberta, esta estiola; aquela enobrece, esta envergonha.” (LINHARES, 1974, pág. 26).

Dessa visão filosófica da postura do homem diante da crise, decorre a proposição

acerca da postura do educador, nem omisso, nem paternalista, mas confiante, alimentada por

uma expectativa positiva em relação às possibilidades do educando. Vemos também o apreço

ao que ela chama de verdade e honestidade, “bem mais digna de ser ouvida que a mais

requintada e sofisticada mentira”.

O importante para o homem não é chegar a nenhum lugar, não é o produto de seu trabalho, mas é sobretudo a procura de si, incessante, persistente e reveladora: a fidelidade à sua missão, o compromisso ao seu destino de homem, que é mister encontrar no âmago do seu existir pessoal e que ele descobre referenciando-se no Ser. (...) Com este ponto referencial, o diálogo com as ambigüidades, caldeadas na crise, é altamente integrador. Então, o homem aprende a vivenciar as inusitadas alegrias do navegar, pela clarificação do seu ofício de ser gente. Percebe que navegar no azul imprevisível da sua infinita missão, é preciso. Viver na rotina mecânica, em que só a sobrevivência é garantida, não é preciso. Neste sentido, “Navegar é preciso. Viver não é Preciso” (LINHARES, 1974, p. 29)

Vemos a presença da mitologia, da arte, das perspectivas orientalistas em seu artigo.

Confiança nas possibilidades do educando, concepção de que é na busca permanente do

homem que consiste seu heroísmo e não tanto no provável ponto de chegada.

167

2.4.4 Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense: docência e pesquisa em perspectiva. 1978

No artigo “O mestrado em educação na universidade Federal Fluminense – uma

experiência brasileira do pós-graduação”, publicado pela Revista de Educação da

Universidade Federal Fluminense” em 1978, Célia Linhares reflete sobre a Universidade

Brasileira revelando os acontecimentos que levaram ao surgimento da pós-graduação no

Brasil, trazendo aspectos de sua experiência como coordenadora do Mestrado em Educação

na UFF. É um texto de caráter informativo, situando o leitor quanto às condições e contexto

que deram origem ao programa de pós-graduação da UFF e de suas bases epistemológicas.

Afirma o papel da pesquisa na Universidade, como uma vocação que precisa ser

contemplada simultaneamente ao objetivo de propiciar acesso ao saber socialmente relevante

– manifesto pelo conhecimento científico aplicado e pela prática tecnológica esclarecida e

consciente.

Célia se remete ao termo “Creative scholarship”, cunhado nas experiências de

universidades americanas e presente nos pareceres sobre o funcionamento da pós-graduação

brasileiras. Tal conceito referia-se ao desenvolvimento sistemático da pós-graduação nos

Estados Unidos que deixava de ser uma instituição apenas ensinante e formadora de

profissionais para dedicar-se às atividades de pesquisa científica e tecnológica. Isto é, tratava-

se de pensar em uma universidade destinada não somente à transmissão do saber já

constituído, mas voltada para a elaboração de novos conhecimentos mediante a atividade de

pesquisa criadora.

Neste sentido, a pós-graduação constitui-se como espaço privilegiado na medida em

que reafirma a sua própria identidade, satisfazendo as finalidades que lhe são atribuídas.

A Universidade reflete os elementos estruturais presentes na sociedade, afirma Célia.

Desse modo, a tecnologia da comunicação social que ganhava força na década de 70, tornou-

se uma das principais fontes da educação informal e difusora, também, da educação formal.

Este fator estimulou o crescimento da demanda pela universidade na medida em que a

tecnologia comunicacional foi responsável por criar um mito em torno da educação, que fez

da universidade “o agente propulsor de qualificação da força de trabalho e de promoção do

crescimento social, cultural, político e econômico” (LINHARES, 1978, p.36).

Célia afirma que apesar dessa valorização em torno da educação, a pós-graduação só

foi de fato implementada no país devido ao aumento de número de ingressantes na

Universidade no período de investimento industrial. Tendo em vista que não havia até este

168

momento um sistema formal de preparação docente, o Ministério da Educação e Cultura e o

Conselho Federal de Educação criaram em 1965, através do Parecer nº. 977/65, os cursos de

pós-graduação, visando entre outras questões, “formar professorado competente para atender

as demandas da expansão quantitativa deste nível de ensino” e “estimular o desenvolvimento

de pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores” (LINHARES,

1978, p.37).

O Rio de Janeiro, por ser uma das cidades de grande concentração populacional

acabou por sendo um dos espaços urbanos mais florescente para a germinação da pós-

graduação brasileira.

Célia nos informa que, de início, só existiam duas áreas de concentração no Curso de

Mestrado em Educação da UFF: Administração dos Sistemas Educacionais e Métodos e

Técnicas de Ensino. Mais tarde, surgiu também a área de Psicopedagogia.

O princípio básico do Mestrado em Educação da UFF era o de valorizar, no processo

educativo, o ser humano na sua completude existencial.

As turmas iniciais eram constituídas pelos próprios professores da graduação da

Faculdade de Educação da UFF, pelos docentes de outras universidades e também por

planejadores e técnicos da educação.

Para apoiar os alunos do pós-graduação, existia um Programa de “Complementação

Pedagógica” no qual estes poderiam contar com a ajuda de um profissional para atendê-los

individualmente, visando suprir as áreas que considerassem deficientes do processo de

ensino-aprendizagem.

Em 1976 houve uma ampliação do Curso de Mestrado da UFF que passou a oferecer

vagas para professores de 14 Estados brasileiros. Todos as três áreas de concentração

confluíam numa área básica a de fundamentação antropológica e filosófica da educação. Célia

destaca também que o Mestrado em Educação da UFF privilegiava a interdisciplinaridade,

oferecendo uma multiplicidade de métodos e descobertas nas mais diferentes áreas do saber.

Ainda sobre o Mestrado, Célia ressalta que existiam grandes dificuldades de ordem

material e de recursos humanos o que acarretava algumas limitações às pesquisas que estavam

sendo elaboradas.

169

Nas referências bibliográficas de que Célia lança mão para produção deste artigo,

citam os brasileiros Dumerval Trigueiro120 e Newton Sucupira, ambos envolvidos com as

reflexões sobre os cursos de nível superior na década de 60/70. Célia nos conta que,

Trigueiro e Sucupira foram conselheiros de Ensino Superior, juntamente com Alceu

Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Antonio Ferreira de Almeida Júnior, Clovis Salgado, José

Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Rubens Maciel e Valnir Chagas - na época do ministro

da Educação do Governo Castelo Branco, convocados para definir a regulamentação dos

cursos de pós-graduação nas universidades brasileiras (Parecer 977, de 1965).

Edgar Morin (1975) e Gaston Bachelard (1968) também figuram em suas referências,

dando notícias de um olhar para o fazer da ciência que se amplia. Célia afirma a sua

compreensão moriniana de educação que visa não fragmentar o conhecimento, assumindo a

complexidade como parte dos fenômenos. Para tanto privilegia a interdisciplinaridade como

“antídoto da pulverização fragmentária a que estão expostas as conquistas da ciência

moderna, impregnadas que estão ainda do determinismo analítico cartesiano.” (Célia

Linhares, 1974, página 47).

Vale ressaltar que ambos só terão maior difusão no Brasil no fim dos anos 80, início

dos anos 90.

Finalizamos aqui a apresentação das obras escritas de Célia desta década de 70. É

possível reconhecer no conjunto dos trabalhos aqui resumidos e comentados, uma visão de

conhecimento que inclui dimensões do afeto, da sensibilidade, do necessário encontro com o

outro na autoconstituição do Ser e na própria construção do saber.

Na recusa às concepções medidoras e hierarquizadoras do homem, como vimos em

seu artigo sobre os testes de QI; na valorização da criação como movimento que caracteriza o

humano e na força da linguagem como forma de humanização e expressão, Célia lança um

120 Dumerval Bartolomeu Trigueiro Mendes (1927-1987) canalizou seus esforços para o universo acadêmico ao longo de sua atuação em diversos cargos políticos e, principalmente, como professor e pesquisador na pós-graduação brasileira. Atuou como docente-pesquisador no período que se estendeu de 1970 a 1987. Em setembro de 1969, em pleno regime militar, foi atingido pelo Ato Institucional nº. 5 (AI-5), que o aposentou compulsoriamente de todas as funções públicas. Durante cerca de dez anos não exerceu qualquer atividade pública. Somente em 1980 foi reintegrado como técnico do MEC e professor universitário. Nesse período, dedicou a maior parte de seu tempo aos mestrados de educação do Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas(IESAE-FGV) e da PUC - Rio. (FÁVERO, Osmar, 2002 e FÁVERO, Maria de Lourdes, 2005).

170

olhar que compreende a educação como espaço de criação, de comunicação, de mútuo

reconhecimento entre professor e estudante, de crescimento e autonomia. Para ela, educar é

cunhar projetos de existência, em que precisam caber o afeto, o reconhecimento e a

valorização do outro.

A seguir, as narrativas construídas a partir da voz dos parceiros Balina Belo e Jésus de

Alvarenga Bastos nos abrem novos olhares.

2.5.1 A voz dos parceiros: Balina Belo Balina Belo: memórias de uma professora de didática Completaste meio século Erguendo ao mundo Leve e soberana Idéias que tivestes que Afogar na juventude Levanta-te agora Inteira contra este Nada em que Habita o teu país Arrasado de miséria e injustiça Reserva na meia idade Esta grata ousadia dos teus vinte anos Saudosos mais sempre vivos em ti. (Balina Belo, por ocasião do aniversário de Célia Linhares em 2/08/1987)

Balina e Célia se conheceram em 1974. Nessa época Célia estava às voltas com a

organização do programa de pós-graduação na UFF e selecionava professores qualificados

para compor o quadro docente. Era necessário que tivessem mestrado, o que era o caso da

professora Balina Belo.

O convite tomou Balina de surpresa, estava envolvida com a condução de família que

ia constituindo. Filhos pequenos, demandas familiares, a fizeram receber reticentemente o

convite.

Eu não a conhecia e ela me telefonou pedindo por favor que eu fosse dar aulas de Didática do ensino superior no mestrado da UFF e eu disse logo que não poderia ir porque meus filhos eram muito

171

pequenos, eram quatro! Não sei por indicação de quem ela me chamou, ela não me conhecia. A professora Célia me deu um telefonema insistente, eu dizia por que não podia ir, explicando minhas razões, e ela dizia que precisava de mim, pois faltava um professor de didática do ensino superior, e era preciso alguém com mestrado em métodos e técnicas para dar este curso. Parece que alguém que viria da América para essa função não veio ou estava interdita, qualquer coisa assim... Sei que ela insistiu tanto e de uma maneira tão bonita que eu acabei dizendo “vou, vou apenas por esse semestre para que você resolva o seu problema”, depois eu voltarei a minha vida antiga. (Balina, entrevista em 2007)

Essa insistência apaixonada, motivada pelo envolvimento com a organização do

mestrado, contagiou a professora Balina, que cedendo aos apelos de Célia, integrou-se ao

programa de pós-graduação da UFF. Embora tenha entrado com idéia de ficar

temporariamente, acabou incorporando-se definitivamente à equipe, trabalhando durante

dezoito anos na UFF. Balina nos conta que essa incorporação estava relacionada ao clima que

encontrou na universidade, em que sentia seu trabalho valorizado. A presença de Célia e a

amizade que passaram a travar foram, também, aspectos fundamentais nessa permanência.

E, assim, fui como professora visitante: foi assim que entrei na UFF, professora especialista visitante. Quando eu cheguei, ela foi me apresentar aos alunos e imediatamente eu senti por ela uma grande simpatia, usou palavras muito bonitas para me apresentar a todos, nos desejou, a mim e aos alunos um sucesso, um bom curso. Ela não foi em cima dos títulos que eu tivesse ou não tivesse, eu vi que ela valorizava o contato humano. (Balina, entrevista 2007)

Depois de um tempo, Balina foi contratada e também convidada por Célia para ser

sub-coordenadora do programa. As memórias do tempo de criação do mestrado trazem

lembranças do investimento potente de Célia no curso.

Ela era coordenadora do mestrado e eu passei a ajudá-la como sub-coordenadora. Nessa época Célia morava numa ilha na barra e era muito distante de Niterói, mesmo assim sempre chegava cedo em Niterói para inventar um Mestrado que ainda não existia. Isso para mim é inesquecível, como é que de nada se faz tudo quando se quer! Eu vi esse milagre pedagógico e pensava “esse Mestrado ainda não existe, ela chega e ele funciona, e cresce, cada dia melhor”, foi essa impressão que tive dela. Do nada fazer tudo ... e rápido! Era um idealismo, não esse idealismo tolo desse sonho que não vai para frente, era uma pessoa que tinha realmente as asas voltadas para o céu, mas tinha os pés no chão, e com isso ela construía tudo. Era uma alma cantante, afinadíssima! Talvez

172

você estranhe um pouco a minha linguagem, de uma linha poética. (Balina, entrevista 2007)

Capacidade de construção, empenho e vitalidade. Movimento que podemos

reconhecer nos tempos da rádio educadora e em outras tantas passagens de sua infância e

início de vida profissional. Nesse engajamento apaixonado, Célia ia carreando parceiros,

contagiando-os com suas propostas, convidando-os a serem também eles autores e parte deles.

Autoconstrução e co-construção permanentes, criação móvel e dinâmica, nunca solitária,

sempre partejada.

Chama atenção também esse caminho poético que a palavra de Balina nos traz e nesse

sentido sua parelha com a narrativa celiana. Lirismo, metáfora, poesia. Essa é uma marca que

habita a vida de Célia desde tenra idade e que, pouco a pouco, vai ganhando força também em

sua vida profissional. Na expressão oral, esta dimensão poética já é uma realidade, Podemos

perceber pelo relato de seus pares. Nos textos escritos, vai se esboçando, como já comentei,

nessa década em que ela avança na produção teórico-acadêmica, ainda que timidamente,

fortalecendo-se. O encontro com pensadores que abraçam a criação e a poética como

princípios norteadores do existir humano, tais como os já mencionados no item anterior a

esse, no resumo comentado de sua tese e de seus artigos (“Trilhas do pensamento

pedagógico”. Mounier, Heidegger, Bachelard, dentre outros, parecem ir dando à Célia

respaldo para o pleno exercício de sua poética.

A esse respeito, Balina afirma que “é um lirismo que nos acompanha, isso nos fez

grandes amigas e eu sou uma grande admiradora dela. Acho que ela parece uma deusa criando

do nada, como Deus teria feito”. (Balina, 2007)

E acrescenta também sobre as críticas a Célia, de que ela possa ter notícia:

Quanto ao zum zum que havia por lá, nem Cristo agradou a todos. Dizia-se que Célia era prolixa, que era tão prolixa que às vezes escondia um grande conteúdo atrás da prolixidade121, eu não concordo

121 Acredito que a crítica que atribui à Célia prolixidade, pode estar ligada a uma forma de expressão, tanto escrita quanto oral, que lhe é característica. Célia faz vôos, as questões puxam umas às outras. Acompanhar sua fala é, muitas vezes, mergulhar num fluxo de relações e intrincamentos em que não existe uma trilha reta. São desvios, paradas para apreciar a paisagem, fluxos. Portanto, penso que pelo fato dos textos de Célia não serem lineares, lhe seja feita essa crítica. Ela, com muita freqüência abre um leque de questões para abordar o tema a que se propõem enfocar em seus artigos. Remete-se a arte,

173

com isso. Eu acho que cada um tem seu estilo, e o estilo revela o que a pessoa é, eu sempre achei muito conteúdo em seu estilo. Ela sempre teve muita facilidade de dizer o que pensava, na hora que queria, ela falava muito bem de improviso, não é para qualquer um. (Balina, entrevista, 2007)

Balina foi uma grande parceira no processo de credenciamento do curso de pós-

graduação da UFF, envolvendo-se com toda a parte burocrática necessária, apoiando Célia

nessa empreitada. Nos conta que identificava nas ações de Célia o que ela chamou de

“idealismo concreto”, isto é, aquele que ultrapassa a idéia abstrata, mas engaja-se, de algum

modo, a construção de possibilidades efetivas, realizando idéias, dando forma a projetos.

(...) Chegou a hora de nós fazermos aquele Mestrado ser reconhecido, foi uma trabalheira danada, ela chegava cedo e eu também e às vezes ficávamos lá até dez e meia da noite, às vezes eu saia e ela ficava e ai eu vi o que é um idealismo, mas um idealismo concreto, um idealismo de construção, um idealismo de fé, uma guerreira da paz! Tivemos muitas dificuldades, mas os obstáculos não a impediam de nada, era sempre um incentivo, “nós vamos vencer, nós vamos vencer”, e nós vencemos. Ela, conseguiu com muita garra e com muita fé, não digo em Deus, mas no próprio trabalho, no próprio pessoal, com quem ela podia contar, e muito determinada para dar a cada uma a tarefa que poderia ser feita por aquela pessoa, isso não é fácil. Você escolher o papel bom para que aquela pessoa faça bem é difícil, pois se você der ao outro uma tarefa que ele não é capaz de fazer, vai tudo para o “brejo”. (Balina, entrevista, 2007)

Assim como nas memórias de Dorothy, aparece forte na narrativa de Balina esse

movimento agregador de Célia, que confiando na potência do outro, abre efetivo espaço para

sua atuação e colaboração. Capacidade de descentrar seu poder, dando ao outro funções

possíveis, afirmando sua confiança na capacidade de seus pares. Uma força, de guerreira,

guerreira de paz, como nos diz Balina, mas que não necessita da fraqueza do outro para se

a poesia, a filosofia. Coloca em cena exemplos de situações, aspectos ligados ao momento em que vive. Seus textos, ou boa parte deles, quase que acompanham o próprio movimento do pensamento, em que conectam-se referências, autores, exemplos extraídos da vida. Por vezes, ao fim da leitura de seus textos, nos perguntamos: “mas qual era exatamente o ponto central?”. Arrisco a dizer que ela foge do ponto central, ela convida a uma leitura que é, em si, uma experiência de pensamento em que não se entra para retirar dali uma idéia só, acabada e utilitária. Entra-se em seus textos para com eles produzir pensamentos, fazer relações, construir sentidos. Acredito também que esse movimento se solidifica com o passar do tempo, tornando a viagem cada vez mais prazerosa e fluida, pois sua escrita vai se firmando, sua confiança na escolha que faz, no estilo que assume, evidencia-se.

174

firmar. Nesse aspecto, lembremos da lição que Joseph Jacotot tira de sua experiência

lecionando literatura francesa para estudantes holandeses (no livro de Jacques Ranciére, “O

mestre ignorante”, 2005). Jacotot aponta para a necessidade que o mito pedagógico tem de,

para se firmar, estabelecer posições dicotômicas entre professor e estudante, delegando ao

primeiro o lugar daquele que sabe, e ao segundo o lugar da ignorância. Para se fortalecer

nesse lugar, o mestre arrogante precisa que o outro seja aquele que não sabe, e é a sua

ignorância que orienta a ação do professor, a quem cabe “iluminar” o caminho do outro.

Podemos aqui nos remeter ao próprio sentido etimológico da palavra “aluno”, isto é, “aquele

que não tem luz”. Lugar de impotência e fragilidade.

Célia exercitou o oposto do mestre arrogante, desde suas primeiras experiências como

professora, essa dinâmica na relação com seus pares, sejam colegas, seja equipe da rádio

educadora, seja corpo docente da pós-graduação que criou na década de 70, seja com seus

alunos. Ela autoriza o outro no seu lugar de potência. Ela instiga e anima o outro para que

este, sentindo-se convocado e incentivado a ocupar um lugar, responda ao convite que ela faz

com o seu melhor.

Lembro-me de uma passagem deliciosa e emblemática que vivi, que guarda relações

com esse aspecto em destaque: a forma como Célia vai construindo seus lugares profissionais.

Sendo eu professora de Educação Infantil e diretora pedagógica de uma pequena instituição

que trabalhava com esse segmento, estava sempre muito em contato com crianças de 0 a 6

anos. Uma delas, acompanhei desde seu primeiro ano. Como a leitura e a escrita faziam parte

diariamente de nossa “vida” na escola, era comum que as crianças fossem descobrindo como

ler de forma bem tranqüila, tendo em vista o uso social e significativo do ler e do escrever que

orientava nossa prática. Uma dessas crianças, com aproximadamente 4 para 5 anos, pegou-se

lendo um cartaz da sala. Surpresas, criança e professora, ao ser inquirida sobre como sabia ler,

a criança respondeu, “não sei, acho que aprendi sozinha!”. Certamente ela vivenciou inúmeras

situações na escola em que a leitura foi objeto de reflexões – textos escritos coletivamente,

leitura de receitas dos alimentos que preparávamos para muitos eventos, produção de bilhetes

e convites para pais e amigos, etc . No entanto, tais situações foram vividas numa concepção

didática que incluía a experiência, o prazer, o sentido e, portanto, sentida como práticas

culturais e não situações artificiais de aprendizagem da língua.

Esse exemplo, colhido de meus percursos profissionais queridos, vêem a tona para

apontar para essa dimensão do ser mestre. Mestre não é aquele que controla o quê e como o

outro vai aprender, e que precisa ter garantindo na fala do outro a “autoria” daquele

aprendizado, como que para reforçar num movimento auto centrado, o seu lugar de poder e de

175

detentor do conhecimento. Mestre é aquele que desperta no outro a confiança no seu próprio

potencial, na sua capacidade que, para Rancière e Jacotot é humana, de aprender, de

compreender, de desvendar com sua inteligência, vários novos campos (RANCIÈRE, 2005).

Balina, em seu depoimento sobre Célia, sublinha esse movimento construtor e

idealista de Célia (tomando aqui “idealismo” como produção de idéias e projetos que ganham

vida). Foi significativo para Balina o impacto de ter acompanhado e participado da criação do

programa de pós-graduação da UFF e essa experiência, que vem a tona em diversos

momentos de nossa conversa, traduz vários aspectos de sua impressão sobre a ação de Célia

no mundo.

Ela é antes de tudo uma construtora pedagógica, com alicerces muito profundos da filosofia, porque nessa época ela era professora de filosofia além de coordenar o mestrado. Mestrado que não era reconhecido mas que ela batalhou para ser reconhecido. O Mestrado quando eu entrei era recente, estavam lá como meus alunos os professores da casa que precisavam ainda tirar o título, não havia ainda ninguém defendido tese, eu acompanhei a defesa das primeiras teses. Isso foi também um acontecimento, um grande registro, o início de algo que veio do nada e que ela construiu. Ela não construiu sozinha, mas ela conseguiu contagiar a equipe com o sonho dela, isso é muito importante. E não era sonho puro, era sonho possível, utopia concreta. Vamos fazer porque queremos! (Balina, em entrevista 2007)

A professora também atuava na UFRJ há alguns anos. Lá, sentia-se menos valorizada,

bem como ali sentia uma tendência maior à conservação pedagógica. A entrada na UFF foi

também um descobrimento de si mesma, a possibilidade de encontrar espaço para

experimentar formas novas de trabalhar, engajar-se a um curso que se estruturava e que

contava com o entusiasmo de profissionais como Célia e alguns de seus pares para essa

estruturação. Em tudo essa nova experiência que Balina vivia permitia também seu próprio

renascimento.

Nesse sentido, é oportuno retomar algumas idéias que Célia publica nessa década,

para refletir sobre o quanto as respostas que damos ao mundo estão ligadas também àquilo

que esperam de nós. Lembremos que Célia, em seu texto “O poder das expectativas e o self”

(1972), mostra a sua preocupação com os testes de inteligência, que circulavam com razoável

credibilidade à época e discute a relação entre as expectativas que temos com relação ao outro

e a influência desta na formação do auto-conceito.

176

Isso parece evidenciar que as formulações teóricas de Célia alimentavam-se de suas

experiências, nascendo desse circuito vida-reflexão-estudo-vida. Efetivamente, Balina

percebia que o fato de estar num novo espaço que a via de forma diferenciada, fortalecia sua

autoconfiança, favorecendo o seu envolvimento em novos projetos.

(...) Eu não vou esquecer nunca isso, porque na UFRJ eu encontrava o contrário, um tipo de mesmice que se repetia diariamente, um acomodar-se como quem já tivesse feito o seu nome e não precisasse de mais nada. Na UFRJ, eu era vista como louca, enquanto que na UFF eu fui vista como alguém. Vê a diferença?! Então eu fui recebida na UFF e criticada na UFRJ. Mas quando a UFRJ viu que a UFF estava me dando uma oportunidade e me valorizando, quis dar também. Eu trabalhava na UFRJ, na graduação e a UFF me deu a pós. Então a UFRJ passou a telefonar para lá para me oferecer o que nunca tinha oferecido antes, a ponto de eu dizer, para o então secretário, “se o telefone tocar não me chame, eu ainda não cheguei, hoje não é o meu dia!”. Tinha que mentir para ficar livre dos telefonemas da UFRJ. Ciúme intelectual entre irmãs! Eu achei um absurdo! Nem sei se Célia soube disso. Achei isso tão pequeno da parte da UFRJ, eu trabalhava há quase 30 anos lá e, de repente, a UFF me descobriu?! De repente eu deixei de ser “pedra de escambo” para ser “quem prestava” dentro da UFRJ por causa da UFF. Então a carreira que demorei 30 anos para percorrer na UFRJ, percorri na UFF em poucos anos. (Balina em entrevista, 2007)

Balina comenta também sobre o contexto sócio-político da época, situando a

universidade:

Nós estávamos ainda no tempo da ditadura, me parece que em cada sala havia um olheiro e uma vez eu reprovei um olheiro, ele não estudou nada (risos) e nem eu sabia que ele era olheiro, afinal ele não estava lá para estudar mesmo. Como eu tenho sempre uma linguagem muito figurada, ele nunca entendeu o que eu disse, era um medíocre lá qualquer que batia palmas até quando eu fazia alguma crítica a ditadura, e eu fazia, só que em linguagem figurada, compreendeu?! Mas depois, isso foi amainando com o tempo (Balina, em entrevista, 2007)

À época, Célia fundou um centro de convivência, um espaço no qual a equipe pudesse

se confraternizar. Contagiados pelo movimento de construção imprimido pelas ações de Célia,

o clima que reinava era de amizade e entusiasmo.

O que sempre se manteve lá foi uma amizade entre os que trabalhavam juntos, parecia que o ideal percorria e contaminava a todos, havia um centro de convivência, eu acho que foi fundado pela própria Célia, era muito interessante porque a gente se encontrava, comia alguma coisa, falava sobre a vida... Havia muito trabalho, tanto que eu inventei o verbo “uffar” mas havia uma atmosfera de prazer, era muito agradável ir para lá. (Balina em entrevista, 2007).

177

Balina comenta que “(...) é claro que o tempo não pára, a vida não pára e tudo foi

mudando e eu pude acompanhar o trabalho de Célia até 1992”.

A passagem de Balina através do concurso de livre-docência merece ser comentada,

pois traz para nós aspectos da história da própria universidade e dos caminhos que percorreu.

Já aposentada, Balina fez concurso para UFF novamente. Era uma forma de garantir um

rendimento salarial maior, perspectiva importante para a profissão docente. Na época Balina

aproveitava uma reformulação legal do presidente Collor, não precisando fazer concurso para

entrar na universidade. Nestas condições decidiu fazer a Livre-docência.

Eu fiz então um concurso para UFF, mais foi de livre-docência, ou seja, não foi para entrar na UFF, eu fui aproveitada pelo Collor que mudou as regras do jogo e tornou estatutário os professores, aí uma vez beneficiada pela lei do Collor, eu resolvi fazer a livre-docência. Eu não podia sair do Brasil para doutorar-me. A Livre-docência tinha mais valor que o doutorado, pois na época, diziam que iam reprovar a todos, eu não sabia, mas também se soubesse não faria diferença. Eu sou de responder a desafios. Célia também é igual, desafiou, ela responde. Naquela ternura dela, naquela maciez dela. E ela também tem uma linguagem muito bonita, ela fala com muita fluência. (Balina em entrevista, 2007)

O concurso acontecia num movimento de “moralização” do título de Livre-docência,

pois, como Balina nos conta, o que antes era feito era reconhecido como “livre-indecência”

tendo em vista o pouco rigor com que os professores que já eram das universidades eram

avaliados. Em função disso, eram produzidas, muitas vezes, teses com pouco

aprofundamento, quase que para uma ação burocrática de oficialização da função do

candidato na universidade. Em função dessa “moralização”, o concurso tinha a promessa de

ser mais rigoroso, o que afastou um bom contingente de professores. Balina nos conta que se

inscreveram sete candidatos para o concurso, sendo quatro de Niterói e três do Rio de Janeiro.

Os quatro de Niterói desistiram “pois souberam que ira ser um massacre” (palavras de

Balina), os três do Rio de Janeiro fizeram o concurso, dentre eles, a professora Balina.

A razão do massacre é que antes havia uma livre-docência que havia sido considerada livre-indecência, não havia uma exigência equivalente ao valor do título, então eles queriam moralizar aquela situação, porque na Unicamp só se fazia livre-docência depois do doutorado. Eu peguei a última lei que permitiu que se fizesse livre-docência sem doutorado. (Balina em entrevista, 2007)

178

Nessa época Célia estava fazendo doutorado em Buenos Aires. Balina sentia sua falta

diariamente. Nos conta que Célia elogiou sua atuação quando de sua ausência, dizendo que

ela tinha conseguido segurar a universidade.

Ela fez uma falta enorme ao programa. Eu sentia a falta dela diariamente, ela disse “foi você que conseguiu segurar isso aqui!”. Não fui eu sozinha, mas eu ajudei, inspirada nela, contagiada por ela, em homenagem a ela. Ela já tinha livre-docência, mas ela foi fazer doutorado fora, depois ela fez o concurso, ou seja, é inatacável. É realmente uma guerreira da paz. (Balina em entrevista, 2007)

Guerreira, imagem que aparece novamente nos depoimentos dos pares de Célia.

Dorothy, Balina ... aqui, acompanhando a imagem da guerreira, seu aparente oposto é

colocado, “paz”. Guerra, paz, pólos opostos? Talvez aqui possamos pensar na guerra como

movimento de busca, que compreende esforços, reconstruções, tomadas de posição.

Guerreira, como aquela que “luta por uma causa”.

Célia, em seu movimento de contágio e de investimento no potencial do outro, instiga

Balina a orientar a produção das dissertações. Era uma atividade nova para ela, o que num

primeiro momento a assustou.

Há um episódio que eu quero ressaltar: na UFF não havia ainda nenhum orientador de tese, a área de métodos e técnicas não tinha ninguém para orientar nada. Célia, numa reunião me entregou seis orientandos, eu disse, “mas por que você está fazendo isso, eu nunca orientei ninguém”, e ela disse “nunca orientou? Mas você pode! E é por isso que estou dando seis!”. Comecei com seis e dei conta do recado, não sei como. Mas foi bom. Quando alguém que você sente que é do bem, acredita em você, a sua tendência é responder a altura, foi um voto de coragem dela, eu não podia nem dizer não, porque não havia outra pessoa, ou eu ou ninguém e o mestrado precisava continuar, ela já o tinha inventado, ela agora estava aprimorando-o. (Balina, entrevista, 2007)

Sobre o pensamento pedagógico de Célia, Balina reconhece como ponto forte o

engajamento político com uma marca significativa, refletido na prática.

Eu nunca fui aluna dela, mas pelo o que ela dizia em nossas conversas, nas palestras, entendo que ela é uma pedagoga engajada, politicamente engajada, interessadíssima na inclusão, no exercício democrático da cidadania. Ela não estava ali para inglês ver, estava ali para valer, essa inclusão que ela pregava e que ela perseguia é algo que ainda hoje não aconteceu, mas eu tenho certeza que ela está batalhando para que aconteça um dia. Tudo aqui demora muito, é tudo lento, começou mal, de cima para baixo, repetindo

179

modelinhos, fazendo transplantes de métodos que não se adequavam, que não eram da nossa realidade, perdeu-se muito tempo com tudo isso. Essa escola inclusiva, eu espero que ela aconteça para os meus netos, porque para os meus filhos, ela não aconteceu.

Célia é inclusiva, ela é também de um pluralismo sadio, com pluralismo sadio eu não quero dizer que ela é eclética, porque eclético faz a bagunça. O pluralismo faz associações, tira o melhor de cada fonte e percebe o fio condutor do conhecimento, que é um só. Complexidade também une, quando você divide você diminui, ela não dividia, ela incluía. E incluía com harmonia. (Balina em entrevista, 2007)

Entendo que esse aspecto não dogmático de Célia, que permite que ela dialogue com

abordagens distintas do conhecimento e possa reconhecer aspectos com os quais se identifica

é uma marca de sua trajetória. A expressão dessa perspectiva pode ser percebia nas inúmeras

publicações que ela faz com diferentes parceiros ao longo das décadas seguintes (80/90/2000)

quando se amplia sua produção textual. O fato de encontramos mais textos escritos em

diálogo com diferentes pessoas e menos livros individuais, parece revelar o gosto pelo

diálogo, pela associação, pelo ser coletivo.

A receptividade é uma marca da presença de Célia e de sua capacidade e interesse em

estar e se relacionar com seus pares, nos diz Balina:

Um lado que sempre foi elogiado nela era sua receptividade a quem chegasse, aqueles que vinham para analisar o programa, os que vinham procurar o programa, todos. Ela era altamente receptiva. Ela se abastecia de humanidade para lidar com gregos e troianos, isso é grandeza. Agora nunca perdeu o sentido crítico, a crítica é oportuna. Aí você vai dizer, “você é muito amiga, a gente vai ter que dividir por dois o que você está dizendo”, mas eu te digo, não precisa não, eu sou amiga mas eu tenho objetividade. Eu estou falando de alguém que conheço e admiro, mas não conheço e admiro a toa não. (Balina em entrevista, 2007)

Balina presenciou momentos bem distintos da vida no programa de pós-graduação da

UFF. Um primeiro, quando ele foi constituído, onde ela era um elemento importante para a

certificação de mestre de parte dos professores da casa; e outros, dentre eles, vale destacar, em

especial, o final da década de 80, quando Célia volta de seu doutoramento e encontra o

programa modificado, pois a ele foram integrados novos professores.

Lançando um olhar crítico para uma tendência que permeou a década de 80 na Pós-

Gradução – e que vamos trazer por estar presente em sua narrativa – Balina sublinha a

presença de uma forte ideologia de matriz marxista, que por vezes parecia ser excludente.

180

Na UFF, na década de 80 para 90, entrou muita gente boa, gente competente, mas entrou também um pessoal viciado numa ideologia única, ou seja, num reducionismo do pensamento. Uma coisa é você querer a inclusão, você querer a cidadania como um exercício de todos, outra coisa é você querer um único modelo político totalitário, que só valoriza a parte econômica e não valoriza o indivíduo, nem o homem, nem as personalidades. Célia ao chegar deve ter encontrado isso, mas ela não deixou de ser quem era, ela continuou a guerra da paz. Eu estava junto ainda. Primeiro a sensação é de que o buraco foi preenchido. Ela continuou a ser a mesma, claro que ela voltou maior, ninguém faz um doutorado sem crescer, mas voltou com a fidelidade as linhas de pensamento que sempre teve. (Balina, em entrevista, 2007)

É importante sublinhar nessa passagem, a visão que Balina traz sobre a forma de lutar

de Célia. Também aqui é possível perceber novamente um posicionamento singular de Célia

diante de situações de conflito, de divergência. Ainda que se mantenha em sua posição, ela

“não tira sangue das bochechas de ninguém” (palavras de Célia, de que constantemente me

lembro, ditas em uma nossa conversa informal em 2007). As posições são marcadas, de forma

que nos parece clara e firme. Ela se faz escutar, porém busca o caminho da delicadeza para

isso. Marcas de uma militância cristã? Ousadia de marcar posição, coabitando a humana

necessidade de proteção que o medo gera?

Medos e ousadias, idéias que nos parecem, numa leitura mais senso-comum,

irreconciliáveis: como ousar com medo?! Porém, não será o medo que nos humaniza? Que

nos dá a dimensão de sermos feitos de carne e sangue?! Que nos faz sentir até aonde a “faca

entra”?!

Não chegou a haver embate porque ela tem uma sabedoria, ela sabe a quem dizer o quê e quando, ela tem uma diplomacia linda. Isso pode ser lido por alguém como falsidade, mas isso é sabedoria, se o outro não é capaz de entender por que você vai falar? Eu tenho um pensamento que diz o seguinte, “se o outro não é capaz de ver, não adianta você mostrar”, é isso com os filhos também, então o que você faz? Você vai mostrando por aproximação, até que ela possa ver o que você gostaria que ela visse. Não é sabedoria? Estratégica, mas não é falsidade. (Balina, em entrevista, 2007)

Nossa conversa pareceu uma viagem ao túnel do tempo. Afastada da docência há

alguns anos, era nítido que à medida que as experiências vividas eram evocadas Balina ia

revivendo o calor de suas experiências na UFF. Sua fala solta e fluente, temperava-se com

uma entonação viva, com força e ênfase, ia discorrendo suas lembranças. A mim, esses

momentos sempre emocionam de modo especial. Me sinto colhendo delicadezas, em campo

repleto de muitas e diferentes espécies de plantas.

181

Em sua fala, ficava claro que a memória atualizava-se e “esquentava” sua narrativa,

detalhes eram lembrados e relatados saborosamente. Disse que hoje se arrepende de ter se

aposentado e que entende as doenças que a acometem como uma “indigestão intelectual”(que

termo interessante esse!). A docência era o espaço de troca e criação, de instigação ao

pensamento, de “escoamento” das idéias. O lugar do trabalho, na identidade de todos nós,

aponta para esse depositário de um sentido permanente de pertencer a algo, de produzir

diariamente, de vivenciar confrontos, desafios, embates que nos levam a uma produção

permanente. “As minhas aulas eram um escoamento de idéias e trocas com meus alunos”, diz

ela com saudade.

Outro assunto que entabulei dizia respeito dos textos escritos de Célia. Sobre isso

Balina comenta que, mesmo aposentada, acompanha a produção da colega, comparecendo aos

lançamentos e lendo as publicações que lhe caem as mãos.

Eu tenho aqui essa obra de Célia122, que ela organizou com uma pessoa que não conheço quem é. Identifico aqui toda essa beleza de estilo, toda coerência possível, toda essa concatenação de idéias e esta progressão paulatina que, às vezes você tem a impressão de que não vai ser concluído, e é. De maneira que tanto na escrita quanto na fala eu acho que ela é brilhante. E como pessoa, inatacável. (Balina, em entrevista, 2007)

Pedi a ela que destacasse um episódio que considerou mais marcante em seu contato

com Célia. Para Balina, o fato de Célia ter apostado nela, para orientar dissertações, mesmo

sem qualquer experiência, foi muito significativo. Por considerar um desafio novo e

instigante, a confiança de Célia foi uma surpresa e um “empurrão” para experimentar esse

novo lugar. Injeção de autoconfiança, estímulo encorajador para o crescimento e o risco do

novo.

O fato que mais me marcou foi esse desafio que ela me deu, com certeza absoluta de que eu daria conta. Nenhuma tese que eu orientei foi recebia com alguma restrição. (Balina em entrevista, 2007)

122 Ela se referia ao livro escrito com Clarice Nunes, “Trajetórias de Magistério: memórias e lutas pela reinvenção da escola pública”, de 2000.

182

Em sua experiência como orientadora, lembra de algumas estratégias e preocupações

que caracterizavam sua atuação. Era comum que sugerisse aos mestrandos gravarem a própria

fala, como forma de ajudá-los a desenvolver seus textos, pois muitas vezes é mais fácil para

alguns expor oralmente suas idéias. Os cuidados com a língua eram também muito presentes

em sua forma de orientar, atribuindo isso ao fato de vir das letras.

Minha primeira formatura foi em Letras neolatinas, depois eu descobri que eu poderia ajudar mais o meu país, mudando de área para a pedagogia. As Letras me ajudaram muito nessa transição. Naquele tempo havia prova de inglês e francês e havia uma prova escrita. Quem escrevia bem e estudava, não tinha como perder. Aquilo me ajudou porque a minha cultura geral forrou a Pedagogia, alicerçou a Pedagogia, e consegui ser uma grande aluna no curso de mestrado da PUC, apesar de não ser da Pedagogia. (Balina em entrevista, 2007)

A respeito das idéias fortes que identifica no pensamento de Célia, a professora

destaca a inclusão, o engajamento político, o acolhimento, a pluralidade e a persistência.

Há os que desistem, Célia insiste, persiste mesmo quando o ambiente lhe é desfavorável. Ela tem um embasamento filosófico muito grande, passeia por esse pessoal de uma maneira muito elegante, é muito bem forrada no que faz e sabe muito bem porque ela diz isso ou aquilo, com quem ela aprendeu. Tudo submetido a seu filtro pessoal interno, é isso que admiro nela. Algumas pessoas repetem as idéias dos outros, as idéias alheias passam pelo filtro de Célia e saem diferentes, e saem com a marca, Célia Linhares. (Balina em entrevista, 2007)

Essa originalidade e capacidade de dialogar com certa liberdade pelos conceitos e

autores com que se depara, revelam uma atitude intelectual que se mantém ativa, num

processo de permanente criação e recriação, que transmuta as teorias em algo pessoal, pois

passa pela própria experiência. Essa atitude intelectual, que ela efetivamente pratica como

pensadora, produtora de conhecimento e docente, é defendida por ela em muitos de seus

textos sobre a formação docente escritos, tanto nessa década de 70 (ainda de forma

incipiente), quanto nas décadas seguintes, quando essa idéia ganha mais força. Neles, há uma

insistência numa visão de professor como intelectual autônomo, que dialoga com seu tempo,

que não se submete passivamente aos ditames da moda e das orientações vindas de cima para

baixo. Um professor que processa os conhecimentos, que os compara as suas próprias

experiências, significando-as a partir delas.

Sobre seu texto escrito, Balina vê semelhanças entre sua escrita, sua expressão oral e a

forma como seu pensamento se expressa. Seu texto não é linear, sistemático: “É muito

183

harmonioso, as pessoas estão acostumadas com textos mais duros, mais didáticos123, o texto

dela não é assim”. (Balina, em entrevista, 2007)

Sendo Balina uma professora de didática, é muito interessante conhecer suas

ponderações sobre a contribuição dessa área com a Educação de forma mais ampla: “Eu fui

professora de didática e eu penso que quando a didática ajuda, ela serve, quando não ajuda

jogue fora pela janela!” (Balina em entrevista, 2007)

Balina também relatou curiosas situações vividas na UFRJ, como por exemplo,

quando montou uma feira livre em sala de aula, trabalhando várias questões e, alguém que por

ali passava, chamou o diretor, alarmado com a aparente “bagunça” daquela atividade. O então

diretor foi na mesma hora, “entrou, sentou e saiu maravilhado!” (Balina, em entrevista,

2007).

Ele era o diretor do Colégio de Aplicação nessa época. Na UFF também aconteceu que eu estava com uma vela acesa, era uma aula de revisão da disciplina, passou um contínuo e foi falar com a direção, “a professora estava fazendo macumba na sala dela!”, a vela era uma simbologia para iluminar, quando acabava a aula eu apagava a vela. Eu chamava isso de dinâmicas de didática. (Balina, em entrevista, 2007)

Balina lembra ainda do diálogo que Célia travava com as experiências das escolas

públicas, interessada nessa parceria entre a universidade e a educação praticada nas

instituições que atendiam às classes populares. Reconhece nesse ponto a importância da

produção de Célia para a educação de forma mais ampla.

Eu acho fundamental a contribuição de Célia para a educação brasileira. Uma pedra sem a qual não se pode continuar, uma pedra-exemplo e não uma pedra- obstáculo. Para isso temos que voltar a inclusão que ela pretende e busca, que ela faz. Havia um projeto na UFF em que jovens professoras da escola pública vinham receber aulas de mestrado, participavam de estudo dirigido. Era um entrelaçamento único entre o morro e a academia. (Balina,em entrevista, 2007)

123 Note-se aqui que Balina utiliza o termo didático a determinadas produções cuja organização e estilos são lineares, organizadas de forma mais sistemática. Acreditamos que há diferentes formas de pensar a didática e, nessa perspectiva, poderíamos pensar numa didática ao estilo Célia, tal como já mencionamos no início dessa narrativa, ao discutirmos a crítica que atribui à Célia prolixidade.

184

Perguntei a Balina se ela, especialmente por conviver na década de 70, quando então

Célia teve seu querido irmão desaparecido, percebia de alguma forma, o que estava

acontecendo no âmbito pessoal.

Eu demorei muito tempo para descobrir que ela carregava uma dor imensa da perda do irmão. Ele foi reabilitado e se tornou nome de rua e eu fui a essa sessão. Eu nunca consegui nem perceber nada, então é uma pessoa que é capaz de esmagar o próprio sentimento para construir outros sentimentos, isso é um benefício para ela sem dúvida, mas não é por ela que ela faz, é para os próximos. (Balina, em entrevista, 2007)

Talvez não seja exatamente um “esmagamento do próprio sentimento”, mas uma

transmutação do mesmo. Como se, alimentada pelo exemplo do irmão em sua vida militante,

Célia se tomasse de energia para construir, incessantemente, espaços de troca, partilha,

crescimento. Como quem reage diante da perda com ímpeto de homenagear a vida que falta.

Uma deliciosa descoberta no contato com Balina foi sua vertente poética. Em busca

de um texto que havia produzido para Célia, ela trouxe vários de seus cadernos de poemas e

fomos folheando e lendo alguns deles, encontrando preciosidades como uma dedicatória de

Célia em uma contra-capa antiga, acrósticos vários e outras preciosidades. Por que não

publicizar uma produção tão vasta e bela?, eu perguntei. “Não faço strip-tease da alma” me

diz Balina. Mas ali estávamos numa gostosa strip-tease de alma, num desnudamento que a

memória trazia, expondo emoções, lembranças, saudades.

Não encontramos as poesias que ela procurava no dia da entrevista, a exceção do

acróstico que abre essa narrativa. No entanto, no dia seguinte, recebo um telefonema de

Balina, que continuando seu revirar do passado, ditou-me as duas poesias que se seguem,

como emblemáticas de sua visão de Célia.

Para mim, as poesias foram surpresas, das que uma pesquisadora não prevê encontrar,

mas que, em encontrando, precisa parar para apreciar, sentir, se deixar tocar pela experiência

que ela traz. E, mergulhando na paisagem que se descortina, pescar significados, fazer pontes.

Nas poesias abaixo é possível reconhecer as idéias sobre Célia que Balina nos trouxe.

Não apenas diretamente, no que diz respeito ao pensamento de Célia, mas também sobre

temáticas que lhe são caras: A abertura de Célia para matrizes diversos, na pluralidade de

leituras e reflexões que estabelece; a presença do medo, da violência, de um país cerceador e

ameaçador; a presença da massa/povo.

185

Estas são apenas algumas relações possíveis, dentre as tantas que a leitura direta do

poema nos traz. Em parênteses, coloco as observações de Balina sobre os poemas e o motivo

de tê-los escolhido. Fecho a narrativa de Balina com sua voz presente em suas poesias.

Receita Livre (lembra a personalidade dela, da paz, de mudar o que não está bem, de ampliar espaços, de abrir fronteiras, escalar montanhas) No quadrado dos teus dias Traça círculos abertos Na rotina do teu desenho Inventa matizes diversos. E se não cabes no quadro Violenta as molduras Espraia-te nas paredes Fura tetos, quebra telhas, Veste asas, volta alto E vai completar-se no espaço. (Pg. 93 do livro Ampla didática, edição de 1994. UFF). Desgoverno (Célia gostou muito quando ouviu) A pátria apodreceu do aborto de todas as promessas Desfuturou-se o país do futuro retalhado por fraudes e desvios violentado por temporais de traições Sacudido por terremotos e inundações. O ex-paraíso continental Se fez hospital de infecção nuclear Decisões importantes Se vincularam a troca de favores E ao rodízio de cargos Crimes sem castigo forjaram novas leis Saúde, Educação, Família, Segurança, Tudo se mafiou Assassinou-se a Poesia Violentaram-se as esperanças do amanhã

186

repousadas que foram em pilastras carcomidas. “Criança, jovem, ancião não vereis nenhum país como este”! Aqui, as soluções já nascem perdidas! Aqui, os caminhos surgem impedidos! E respostas, sempre atrasadas, Erguem-se contaminadas! Em meio a tanto ranço fechemos para balanço e convoquemos o POVO! 27/01/1988 2.5.2 A voz dos parceiros: Jésus de Alvarenga Bastos, Jésus : de aluno à colega, memórias de muitas parcerias.

Há uma poesia de Cecília Meireles que me remete à Célia. Célia sempre mandava coisas muito bonitas para mim. Lembra aquela festividade que ele fez no Museu no ano passado após o acidente?! Eu dei a ela um livro de Cecília Meireles que eu achava a cara dela... (Jésus de Alvarenga Bastos, em entrevista, 2007).

Motivo (Cecília Meireles)

Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.

187

Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada.

O professor Jésus de Alvarenga Bastos tem uma longa trajetória dentro e fora da

Universidade Federal Fluminense, tendo assumido diferentes funções além da docência. Tem

também atuado em âmbitos externos, foi Vice-presidente do Conselho Superior da FAPERJ e

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFF. Atualmente, integra a Diretoria Nacional da

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) e é professor da

Faculdade de Educação da UFF.

Embora seu contato com a professora Célia tenha atravessado muitas décadas, foi na

de 70 que se conheceram. É por isso que incluo sua narrativa nesse capítulo, sem, contudo,

me limitar a destacar os depoimentos relativos ao período em questão, deixando fluir

comentários que se reportam as décadas subseqüentes. Foi na própria sede da ANPED que

conversamos, numa agradável tarde de 2007.

Jésus teve a oportunidade de ser aluno de Célia no programa de mestrado da UFF.

Primeiro vou falar do encontro com a professora Célia. Eu vou definir assim, por qüinqüênio, começando com o período de 70 a 75. Conheci Célia em dois momentos, um como colega e outro como aluno. Eu me candidatei em 1972 ao mestrado em educação da UFF no qual ela lecionava. À época, ela ainda não era coordenadora. Fui também professor na Universidade Santa Ùrsula, quando ela também trabalhava lá. (Jésus em entrevista, 2007).

Jésus foi aluno de Célia no curso de filosofia do Mestrado. As memórias que tem

dessa época destacam aspectos singulares da atuação docente de Célia, que dizem respeito a

afetividade que permeava sua relação com os alunos e a visão comprometida com o papel do

docente que ela defendia (e praticava) em suas aulas.

Na década de 70 ela estava envolvida na estruturação do programa de pós-graduação da UFF na qual ela ajudou e teve um papel importantíssimo, então eu entrei como aluno do mestrado e fui ser aluno dela de filosofia. O que ela me passou deixou marcas extremamente importante em termos de valores

188

que eu considero fundamentais. Primeiro lugar, o valor de que um mestre precisa ser competente, para ser competente ele precisa conhecer filosofia. A filosofia traria o embasamento e fundamento dos valores que o educador deveria passar na educação. Isso foi um encontro extremamente importante, eu jovem vendo uma professora que passava aquela visão da docência... Uma outra característica da Célia que sempre me marcou muito e talvez essa seja uma dimensão muito própria dela, é que ela abre espaço para uma relação que transcende simplesmente uma relação professor-aluno, passa a ser uma relação de amizade, em que entra também um dado importante na relação professor-aluno que é o afeto. (Jésus, entrevista 2007)

Jésus destaca a influência de Célia em sua compreensão sobre a docência, que inclui a

centralidade da formação filosófica e o entendimento da mesma como base, estofo

fundamental. Nas palavras de Jésus, além da perspectiva filosófica, Célia incluía a dimensão

do afeto, expressa na sua forma peculiar de se relacionar com os estudantes.

Podemos pensar que, para além de, “Uma dimensão muito própria dela”, como afirma

Jésus, Célia assume uma prática filosófica que se contrapõe a uma visão mais positivista da

filosofia, hegemônica naqueles tempos. Uma postura marginal para a época, que nos revela a

germinação de um pensamento que integra dimensões que vão para além da racionalidade

pura. Hoje, tais perspectivas têm sido mais difundidas. É relevante sublinhar o pensamento

divergente de Célia naqueles tempos.

Severino124 (1992) nos ajuda a compreender a questão que expomos acima em sua

reflexão sobre uma nova concepção filosófica atual. Para o autor, a filosofia brasileira vem

tomando uma nova orientação do filosofar, que embora nunca tenha estado de fora do

pensamento ocidental, ocupava lugar marginal, sobretudo no ambiente acadêmico brasileiro,

cuja expressão escolástica ou positivista teve forte predomínio. Severino chama essa nova

orientação de arqueogenealogia, cujo fundamento consiste na ampliação do território da

reflexão filosófica para além do universo da razão pura.

Não se trata de uma escola ou doutrina, nos alerta Severino. Trata-se sim, de uma

perspectiva de abordagem da realidade humana menos preocupada em dar a ela uma

explicação. Esta enseja um projeto que consiste na busca de um certo sentido para o existir

124 Em seu texto “Sob as asas do desejo”, Joaquim Severino aprofunda a discussão da orientação filosófica que chama de arqueogenealogia, trazendo uma análise dos principais pensadores que a forjaram. Aqui, trazemos alguns elementos no diálogo com Jésus, sem, no entanto, nos estendermos na apresentação completa do assunto, assim privilegiando não interromper a narrativa, mas também, de certo modo, enriquecê-la com essa breve reflexão.

189

humano, que deseja se “aproximar do homem por meio da discussão das condições de sua

existência na trama concreta e imediata do seu modo de ser humano no mundo da cultura”

(SEVERINO, 1999: 2).

Nessa perspectiva, a da arqueogenealogia, faz-se necessário resgatar uma nova

subjetividade em que o sujeito não é apenas a razão pura, mas sim uma sensibilidade

desejante. Passa-se a levar em conta uma economia geral do desejo e de suas expressões

concretas, superando-se a economia da razão pura. Revaloriza-se os signos, símbolos,

metáforas, experiências indivisíveis, como formas legítimas de compreensão do humano, bem

como a inventividade da imaginação, as narrativas míticas, os aforismos, a linguagem ético-

literária, os discursos singulares. Percebemos que tal orientação, converge com a expressão de

Célia, evidenciando-se na forma como atua nos espaços institucionais, nas questões que

privilegia em seus textos escritos. O olhar de seus pares reafirma tal perspectiva.

Voltando a refletir sobre as memórias de Jésus em seu depoimento, percebemos que,

para o estudante de pós-graduação, as reflexões vivenciadas nas aulas de filosofia de Célia,

traziam uma abertura de pensamento que diferia do contexto mais amplo, introduzindo uma

visão de educação que extrapolava positivismos e determinismos. Jésus lembra também do

cenário político e social dos anos 70, um tempo marcante em função dos inúmeros

acontecimentos e a peculiar rigidez do pensamento que circulava no país.

A questão da filosofia me marcou muito porque era exatamente na década de 70, época marcante, em que circulava a idéia de “Brasil Grande”. O Presidente da República era então o Médici125. Era uma época em que nós tínhamos uma situação extremamente rígida em termos de pensamento no país, rígida, fechada, e a Célia abria caminhos para gente extremamente importantes, nos quais entrava a dimensão que não era só a material. Naquela época, a ênfase era o desenvolvimento econômico, a teoria do capital humano e toda uma teoria da economia da educação e ela vinha com os fundamentos da

125 EMÍLIO GARRASTAZU MÉDICI (1905-1985), militar, nascido na cidade de Bagé, foi Tenente do 12° Regimento de Cavalaria na própria cidade em que nasceu. Apoiou a Revolução de 1930 e, em 1932, aliou-se às forças que lutaram contra a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Foi também comandante da Academia Militar das Agulhas Negras. Apoiou o golpe de 1964 que depôs o presidente João Goulart. Foi chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1967 e comandante do III Exército, no Rio Grande do Sul, em 1969. Com o afastamento de Costa e Silva, teve seu nome indicado pelo Alto Comando do Exército à sucessão presidencial. Através de eleição indireta, passou a exercer o cargo de presidente da República em 30 de outubro de 1969.

190

educação, ela vinha com toda essa linha dos fundamentos, de valores. (Jésus, entrevista 2007)

O governo do general Emílio Garrastazu Médici, que foi do período de 1969 a 1974, é

considerado o mais duro e repressivo da época, conhecido, como já mencionamos, como “Os

anos de chumbo”. A repressão à luta armada crescia e uma severa política de censura era

colocada em execução, envolvendo todos os meios de comunicação e expressões artísticas.

Foi também com a posse do presidente Médici que entrou em vigor a emenda

constitucional n° 1 que se denominou "Constituição da República Federativa do Brasil" e

incorporou as medidas de exceção previstas no ato institucional n°5 (AI-5) (já mencionada no

início desse capítulo). Efetivamente foi um período marcado pela repressão política, a

censura aos meios de comunicação e pelas denúncias de tortura aos presos políticos.

Na área econômica assistia-se a uma conjuntura internacional favorável, era o tempo

do chamado "milagre brasileiro", mencionado pelo professor Jésus como o tempo do “Brasil

grande”.

Em meio a esse cenário político de repressão aos pensamentos divergentes, os espaços

que promoviam oportunidades de refletir criticamente sobre tudo o que acontecia no país,

constituíam-se em riscos. Como esses riscos eram vividos? Quais os confrontos que eles

implicavam?

Acho interessante que Célia mesmo com sua doçura, plantava na gente germes revolucionários. Nós na UFF não podíamos nos reunir, nós nos reuníamos fora da UFF. Éramos então um grupo de professores, de várias unidades da UFF, mas que nascia da educação. Fomos a um colégio e pedimos uma sala para, todos os sábados, estudarmos juntos, pois isso na UFF não podíamos fazer. Isso era década de 70. Recordo-me de um livro chamado “Uma pedagogia para o homem”, escrito por um francês, que tinha sido professor da Universidade Federal do Maranhão e que era muito ligado à realidade social e política. O nome dele era Roberto Etienne segundo dizem ele foi morto pela revolução, só que em Paris onde foi passar férias, aconteceu um acidente e ele morreu. Por causa desse livro eu tive que ir na época, na assessoria de segurança da UFF para explicar que o livro não era comunista. Essas coisas que quando a gente conta isso, parece difícil de acreditar. Eu por exemplo, de 70 a 75, tinha sempre que arrumar atestado de idoneidade ideológica, a cada 6 meses comparecia ao DOP´s, na Praça da República e ao Forum de Niterói. De 72 a 75, eu tenho os atestados. Eu sempre tive uma curiosidade de saber aonde é que estão essas fichas, dos professores que eram fichados. Eu certamente não fui fichado, pois quem era fichado não recebia bolsa de estudos. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

191

Jésus comenta que Célia instigava à reflexão, ao pensamento crítico. Sua forma de

conduzir as aulas ia provocando nos alunos um exercício do pensar no contexto em que se

vivia.

Acho interessante que Célia fazia um processo de reflexão que nos levava a isso, a pensar criticamente no que estávamos vivendo, sem levar ao que eu chamaria assim, de confronto, ela fazia uma condução muito sábia. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Jésus destaca essa “sabedoria” como uma marca das atuações de Célia, não somente

como professora, mas na lida com as instâncias burocráticas quando da organização do

Programa de Mestrado. Uma sabedoria que consistia em marcar posições, envolver aqueles

com os quais trabalhava nos processos em curso. Mobilizar e agregar.

Uma das características que observo na Célia - e eu diria isso a ela hoje como uma pessoa que já está na chamada “feliz-idade”, (que é uma idade um pouco mais avançada) -, é que ela teve uma sabedoria desde o início como docente. A maneira como ela conduziu a turma, como ela conduziu o mestrado, aquela concretização do mestrado, a parte burocrática de papéis, da negociação que era necessária com a reitoria com outros departamentos e outros professores, ela fez isso de uma maneira muito sábia. Vou dar um exemplo concreto. Ela colocou todos, alunos do mestrado, participando na estruturação, ajudando para que aquilo se realizasse. Era uma ação que tinha a ver com a coordenação, com os professores, mas também tinha muito a ver com os alunos. Ela criou um sistema de participação discente que era uma sabedoria na época, basta lembrar que nessa década, nós alunos não podíamos fazer reuniões na universidade. Dizer isso pode até parecer uma coisa estranha, mas nós tínhamos que terminar a aula e ir embora. Era uma época de controle muito grande das questões de ideologia, qualquer tipo de reunião era reprimida, e ela teve a sabedoria de incluir oficialmente a participação de alunos. Acho que isso é um exemplo muito concreto da sabedoria dela, uma sabedoria que vinha pela parte teórica, dos fundamentos e uma teoria concreta, que vinha de prática de vida, de história de vida que naquela época ela construía. (Jésus, entrevista 2007)

Jésus destaca também uma das ações significativas de Célia em sua atuação como

coordenadora da pós, que consistiu no investimento em fazer pontes entre a UFF e outras

instituições de ensino e pesquisa, ampliando redes de troca e diálogo. Foi esse movimento de

abertura que possibilitou ao programa as bolsas de estudos para doutorados fora do país. Jésus

foi um dos primeiros professores a usufruir dessas bolsas, realizando seu doutorado em Paris

V.

192

Pessoalmente, eu tinha uma vontade muito grande de fazer meus estudos fora e achava muito inviável que a educação pudesse ter bolsa. Célia provocava, ia criando pontes de tal maneira que acaram saindo as bolsas. Não saiu só para mim não, saiu também para mais quatro pessoas. Eram bolsas para o exterior, para a Faculdade de Educação. A prioridade era conceder aos professores que poderiam trabalhar no Mestrado. Eu fui para França, experiência que marcou muito minha vida. Se olhar essa negociação como foi feita, a Célia foi uma peça chave para isso, para viabilizar essa bolsa aqui no Brasil e a licença na universidade para que eu pudesse ir.

Nessa época eu já era professor da UFF em regime de 12 horas. Naquela época era diferente, o professor novo, primeiro entrava em regime de 12 horas, se ele tivesse um bom desempenho, depois de alguns anos, ele ia para 24 horas e, depois de uns bons anos, ele poderia ir para 40 horas em dedicação exclusiva. Eu acho que é interessante resgatar essas questões históricas. Nesse momento, Célia e eu temos uma certa proximidade de idade, eu estou escrevendo meus 30 anos na Universidade Brasileira e esse qüinqüênio me marcou muito, foi de 70 a 75. (Jésus, entrevista 2007)

Jésus, assim como a professora Balina, percebia que havia um entusiasmo e

engajamento maior por parte da equipe docente com o curso à época. Refletindo sobre

algumas características próprias da década de 70, comenta:

Era um outro momento, nós não tínhamos o processo de informatização que se tem hoje. Havia também um ambiente interessante, que era importante, todo mundo ajudava a melhorar a Faculdade de Educação, havia assim mais empenho, mais alma, mais ânimo, “vamos, essa Faculdade vai ser importante!”, Célia passava isso muito pra gente. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Mais uma vez a capacidade de valorização e investimento no outro é reconhecida por

um de seus pares como uma marca da interação de Célia. Presença vitalizante:

E eu acho que outro lado da sabedoria dela, no qual eu fui contemplado, era sua capacidade de identificar pessoas que tinham potencial, e ela lutava junto! Eu fui para o meu doutorado, algum tempo depois ela ia para Argentina fazer seu doutorado - na verdade oficializar o doutorado, pois sempre considerei ela uma pessoa de notório saber -, e eu fiquei no lugar dela na coordenação do curso. Acho isso interessante porque ela teve uma visão, que no caso se concretizou não só em mim, de quem eram os pares e do que era o futuro da Faculdade. Educação não é algo de um dia para o outro, é “petit a petit”, de vagarzinho e olhando o futuro, acho que isso é importante. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Jésus comenta também sobre a passagem, de professor do curso a coordenador e de

como Célia acompanhou e apoiou esse momento. Menciona ainda os processos de avaliação

dos cursos de pós-graduação e, novamente, a criação da ANPED, com mais detalhamento:

193

No encontro que nós tivemos antes da viagem dela para o doutorado, ela me fez um relatório da situação de todo o curso, me deu dicas de várias coisas que administrativamente nomeei como minha primeira função na Universidade. No início de 79 eu retornei de meu doutorado e em julho do mesmo ano, assumi a coordenação, praticamente seis meses depois do meu retorno. Ai entrava a década de 80, com todo o processo de abertura e um movimento muito importante no qual a ANPED, essa associação, na qual hoje eu sou secretário, ganha maior expressão. Ela foi criada em 1977 e a Célia teve papel enorme nessa criação. À época eu estava fora, Célia é uma das sócias fundadoras e sempre manifestou sua consideração com essa associação: “veja isso com muito carinho porque isso é importante para a melhoria da pós-graduação na área de educação”, ela me dizia. Em 1977, em função de uma dinâmica nova da pós-graduação, induzida pela CAPES, a ANPED foi criada. Foram criadas também outras associações. Em 78-79 já começava uma certa autonomia da ANPED, nós queríamos ser autônomos, então começou um processo nessa direção com relação aos órgãos governamentais. Célia teve um papel fundamental nisso.

Entrou também um processo de avaliação dos cursos de pós-graduação em educação, já na década de 80 e eu fui uma das pessoas encarregadas de fazer a avaliação das pós-graduações do Brasil inteiro, eu era de equipe da CAPES para avaliar esses cursos todos. Isso fez com que –veja a sabedoria induzida dela – eu ficasse por dentro do assunto, conhecendo aonde é que estavam os bons cursos, o que é que os bons cursos faziam. Então eu fui construindo uma história, que não foi uma história isolada, mas que teve muito o apoio da Célia dentro da universidade, em que eu tive negociações extremamente importantes para o curso nas quais Célia me deu respaldo. (Jésus, entrevista 2007)

Estratégias políticas que implicavam envolver parceiros, conhecer os meandros e

enredamentos que estruturavam o sistema universitário de pós-graduação, para ampliar a

visão sobre o mesmo. Jésus chama a esse movimento de Célia de “sabedoria induzida”, a

sabedoria de fazer parcerias, ganhar espaços, não apenas para si mesma, mas para outros, de

modo a ampliar a rede de conhecimentos e possibilidades de atuação.

Posteriormente, Jésus recebeu novos convites que o afastaram da docência,

colocando-o em contato direto com instâncias ligadas à pesquisa e a esferas mais amplas da

universidade. Seu enraizamento com a Faculdade de Educação fazia com que sempre

buscasse um espaço especial para ela nesses novos lugares que ocupava.

Em 82 fui chamado para ser diretor convidado do Centro de Estudos Sociais Aplicados que é o Centro que envolve a faculdade de Educação, Economia, Direito, Serviço Social, na UFF. Esse centro atualmente, por decisão estatutária, está sendo extinto, mas, na época, ele era uma mini reitoria e o reitor queria que eu fosse diretor. Eu negociei com ele, “eu aceito ser diretor desde que eu possa priorizar o único curso desse Centro que tem condições de ficar muito bom, que é o da educação, eu aceito para priorizar isso!”.

194

Quando eu assumi, o reitor tinha o compromisso com a Faculdade de Educação para termos novos professores e a Célia foi fundamental nisso também, até nos convites, nos nomes que vieram a compor o quadro da Pós-Graduação. Isso foi mais ou menos em 82, não tenho a data precisa. Fiquei de 82 a 86 nesse centro. Eu sabia das necessidades da Pós. Na época, a avaliação era por letras, A, B, C, D e E, então nós saímos primeiro do D, para o C, do C para o B, depois do B para o A, nesse período até 86. Eu tinha conhecido os caminhos para se chegar a ser A. Isso foi foco importante. Depois já foi um outro momento, em que eu saí da faculdade, mas nunca deixei a Pós. Eu trabalhava com Administração dos sistemas educacionais. (Jésus, entrevista 2007).

É interessante conhecer esse caminho que se trilha fora das salas de aula, que trata das

políticas mais amplas que orientam e balizam o funcionamento dos cursos na universidade.

Lugares em que se faz a política educacional institucional, que implica, não há como ser de

outro modo, na própria estrutura dos cursos e na docência.

Jésus comenta ainda sobre uma outra atitude de Célia que foi muito importante em sua

formação. Apoiando seus interesses, Célia ajudou-o a fazer escolhas que foram muito

significativas para ele.

Eu tive uma situação provocada pela Célia, que dá uma dimensão do raio de influência dela como profissional e como docente. Eu fazia o meu Mestrado e na época haviam três áreas de concentração. Célia era a coordenadora e meu foco era a administração, mas eu gostava das outras disciplinas, então ela se virou para mim e disse “porque você não faz as três áreas?!”. Eu fiz todas as disciplinas de todas as áreas, só que o diploma só sairia em uma área. Naquela época, tinha uma área chamada Psicopedagogia, uma área de Administração dos Sistemas Educacionais e uma área que seria Métodos e Técnicas de Ensino, nome mais próximo da Didática. Essa foi uma abertura importante para mim. Eu trabalhei com pessoas muito preciosas. Minha formação foi ganhando um contorno de totalidades, não de corte, mas de totalidades, de visão mais ampla – isso foi influência de Célia. Isso me ajudou extremamente na minha vida e inclusive no meu desempenho pessoal. (Jésus, entrevista 2007)

A sugestão de Célia convidava a fugir dos especialismos limitantes e restritivos,

incentivando Jésus a conhecer outras discussões do campo da educação, oportunizando

experiências que não teriam sido vividas se ele não tivesse se permitido conhecer abordagens

diversas das que, até então, conhecia mais de perto. Célia trazia um paradigma que incluía a

abertura ao aparentemente diferente, convidando à ampliação de leituras. Visão que não

fragmentava o conhecimento em áreas rigidamente limitadas, mas que provocava o diálogo

entre elas.

195

Eu vou citar uma experiência que influenciou muito minha vida. Fui fazer Psicopedagogia, então fiz uma disciplina chamada “Laboratório de Sensibilidade”. Essa disciplina trabalhava as relações, foi extremamente difícil para mim. Eu era mais focado com a questão da administração e trabalhar com a sensibilidade, de sentir o outro, perceber o outro... era algo muito novo.

Isso me ajudou num momento pessoal extremamente importante porque forneceu novos paradigmas. Eu tinha uma visão mais restrita, pensava que alguns paradigmas eram a verdade, isso começou a cair, esse foi um momento importante para mim! Célia sem dúvida opinou, cheguei a ela e comentei: “Célia, eu estou sentindo necessidade de uma terapia”,. Aquela experiência no laboratório estava mexendo muito comigo! Entrei na terapia depois que acabei a disciplina do Laboratório de Sensibilidade. Essa disciplina foi dada por uma professora convidada na época, Terezinha Lorena, ela trabalhava uma dinâmica de grupo de encontro, a base do modelo Rogeriano. Isso ajudou extremamente na minha vida, porque me ajudou a sair de um modelo paradigmático e entrar num outro modelo mais flexível, de ver o outro. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Esse exercício de olhar para as múltiplas dimensões do conhecimento e da vida é algo

que marca a produção escrita de Célia, já evidente nas dos anos 70, perspectiva que se

intensificará nos anos subseqüentes. Essa abertura ao diferente aparece como algo que faz

parte de sua forma de lidar com o outro, como nos revelam as narrativas e depoimentos que

compõem essa tese. Entendendo que por vezes, as divergências ideológicas são vividas como

fonte de muitos autoritarismos, Célia defende um diálogo permanente com a diferença.

Uma passagem da vida de Jésus é emblemática desse movimento de abertura que ele

vive e no qual Célia foi um amparo importante:

Eu tinha um colega da UFF, que não era da Faculdade de Educação, e ele era um colega muito alternativo, andava com aquelas bolsas de couro da feira de Ipanema, cabelão grande. Nós tivemos momentos extremamente difíceis em que ele me atacou e eu ataquei forte. Me recordo que ele falou uma coisa que era exatamente a minha figura, “Jésus, você é um jovem velho”, e eu falei e “você é um velho que quer ser jovem”. Nós acabamos nos tornando grandes amigos. Nessa época, Célia me falou uma coisa muito interessante, eu estava grilado com aquilo e ela me disse, “Jésus, você sabe o que é encontro? Encontro é como se dois navios batessem um no outro, pronto, se encontraram!”, ela viu o lado positivo dessa situação. E com esse meu colega, nasceu uma amizade, das melhores amizades que eu tive na minha vida. Célia tinha esse tipo de abertura que você podia conversar com ela. Eu dizia “estou brigando muito com esse Marcos Valdemar, estamos batendo de frente um com o outro!”. Ela me ajudou a desconstrução de certas situações, para você ver como é que o processo não é construído de um dia para o outro! (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

196

Vivendo mudanças paradigmáticas, Jésus ia experimentando novas aberturas, diálogo

com diferenças. Mudanças que iam influenciando sua docência. “Petit a petit” como ele nos

diz.

Todas essas experiências me modificaram muito, quando eu fui para França, já com influências fortes de um novo momento que eu vivia, eu estabelecia diálogo com meus alunos, coisa que eu não tinha num tempo anterior, eu era bastante rígido. Vou dar uma situação concreta, na sala de aula o professor é que sabe e o aluno é que tem que aprender, depois inverteu a situação, é um aprendizado junto, conjunto. Eu acho que Célia tinha essa visão que as coisas se constroem e não é de um dia para o outro, em educação nunca é de um dia para o outro, é um processo. (Jésus, entrevista, 2007)

Jésus reconhece essa mudança que foi se dando em sua forma de ser professor e de se

relacionar com o conhecimento. A experiência do doutorado foi outra etapa muito

significativa em sua trajetória, quando travou contato com uma abordagem européia sobre seu

tema de estudos, desconstruindo um modelo americano que até então orientava suas

pesquisas.

(...) Eu aprendi administração como a ciência da eficácia, produtividade, eficiência, era isso que eu tinha aprendido aqui com as teorias americanas e a teoria do custo-benefício. Na França, eu aprendi que administração tem uma finalidade e uma ação, que visam a realização da pessoa humana naquele contexto. Ou seja, muda o foco completamente. Isso foi uma paulada na minha cabeça, não é?! Era uma maneira de viver e de ver a administração, o que é a gestão, mais humanizada. É a visão francesa da gestão. Isso ai foi uma outra pancada que eu tive na minha vida. Eu joguei meu projeto inicial no lixo, literalmente. Eu fui então, após mergulhar nos estudos, transformando minha forma de pensar. Eu lembro que meu orientador me perguntava, “Jésus, você vai ser um técnico do Ministério ou você vai ser um pesquisador, um docente da universidade?!, custo é projeto para técnico, não é projeto para você, você tem que ser uma semente, para semear outras sementes, para essa água nascer lá no Brasil, que bom que você conseguiu isso, ver que era outro o caminho!”. Meu orientador me deu uma pilha de livros. Em um mês e meio eu li esses livros todos. Apresentei o projeto que tratava dos planos existentes para a educação brasileira, analisando o que era planejado e o que era realizado. Na decalagem entre o que se propõem e o que se realiza. (Jésus, entrevista 2007)

Para o professor que ia se formando em meio a tantas “pancadas na cabeça”, para usar

sua expressão, o curso de Pedagogia ficou como um espaço caro para ele, e pelo qual nutre

especial afeto. Ainda que atuando em outros locais, a identidade professor da Faculdade de

Educação da UFF tem um peso e representatividade especial em sua trajetória.

197

Lankenau foi a primeira Coordenadora da Pós-graduação em Educação da UFF, depois foi a Célia e em seguida eu. E eu fui da segunda turma do curso de Mestrado da UFF. Existem algumas coisas que eu chamo de meus amores institucionais. Eu até recusei um convite no Governo de Estado porque eu acho importante esse meu trabalho aqui na Anped. São dois os meus amores institucionais, um é a UFF e outro a ANPED. O curso de pós-graduação da UFF me marcou e o impulso que foi dado na época em que atuei na parte administrativa foi extremamente importante. Me marcou muito pois foi notável o meu crescimento, pois eu fui mudando, abrindo espaços. (Jésus, em entrevista 2007)

Uma passagem da década de 90, relacionada a Célia, é lembrada por Jésus como algo

muito desagradável que o tocou de modo especial. Trata-se da eleição para a direção para o

Centro de Estudos Sociais Aplicados quando, apoiada por muitos colegas, Célia concorreu

para substituir Jésus. Uma manobra política interna fez com que ela perdesse. Foi um

momento muito delicado (que voltará a ser mencionado nos próximos capítulos).

Acho importante dizer uma coisa que foi extremamente surpresa e chata na vida nossa na Faculdade de Educação. Eu fui diretor de centro por indicação e para minha substituição o procedimento já era eleição. Célia, estimulada por colegas, se candidatou e perdeu pouquinha coisa para um outro senhor, que num jogo político interno, foi meu substituto. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Ainda puxando os fios das marcas da presença de Célia em sua vida e formação, Jésus

lembra, mais uma vez, das aulas de filosofia, reconhecendo que muitas questões que

emergiram nessas aulas influenciaram na escolha espiritual que fez posteriormente, ao se

tornar budista.

Hoje eu sou praticante budista, Célia não sabe disso não. As origens dessa escolha vieram das aulas de filosofia, quando ela tratava em sala de aula das “grandes filosofias” e falava das filosofias orientais, budismo, taoísmo, Confúcio, até chegar ao “Teilhard de Chardin”. Eu me recordo muito disso e hoje em dia faço um elo, como eu fui chegando nisso. Eu não sou budista, sou um praticante e um estudioso disso, tenho muitos questionamentos. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Lembrando das mudanças que ocorreram no programa da pós-graduação da UFF,

após a mudança dos quadros docentes, aproximadamente ao longo da década de 80, Jésus

comenta algo a que Balina também havia se referido: a entrada de uma tendência que

privilegiava um pensamento único, excluindo todo aquele que divergia. Jésus sublinha a

hostilidade que acompanhava essa tendência.

198

Começou a entrar todo um processo dialético, toda a visão marxista e eu acho que naquele momento foi até positivo. Nós vivemos em todas as instituições um excesso de burocracia e cobranças, e a internet trouxe uma situação que a pessoa não tem mais hora de trabalho, as pessoas são estressadas. Eu acho que, por exemplo, um dos valores que nós tínhamos naquele período, eu gostaria que pudesse ser vivido hoje. Todo esse processo que se passa na universidade é um equívoco, nós estamos descontruindo. Ter posições diferentes é normal, mas as hostilidades decorrentes das divergências são um equívoco! O que marcou muito fortemente a década de 70, aquele momento de construção do programa, foi um forte espírito de colaboração, eu vejo em pequenos detalhes que isso hoje não existe. Veja, por exemplo, não é pelo fato de ser o Jésus, mas eu sou o Jésus, eu sou uma pessoa extremamente demandada, então eu não posso estar em todas as atividades. Outro dia eu pedi a dezesseis colegas para que um deles me substituísse numa aula de graduação. Quatro me responderam, doze nem sequer responderam, era para coordenar uma atividade. Isso, por exemplo, eu conseguia num piscar de olhos antigamente, era um espírito de colaboração. Hoje é um estresse de cobranças, de relatórios. Isso aí é algo que a faculdade pode voltar a ter. Eu acho difícil essa questão da colaboração, isso eu não vejo só na Faculdade não, eu vejo nas universidades, há um baixo astral. (Jésus, entrevista 2007)

Estarão as relações atuais mais premidas por uma velocidade, que as cobranças

burocráticas e carreiristas nos colocam? Acirrou-se a perspectiva individualista, aonde “salve-

se quem puder” parece ser o lema? Ressalte-se a complexificação das exigências a que os

professores universitários precisam atender, que só tem feito crescer. Exigências que

envolvem um sem número de relatórios, textos, artigos e tais, marcadas por uma lógica da

produtividade que atropela, muitas vezes, o tempo da criação, da reflexão, do encontro e da

troca. Questões que merecem reflexão.

A respeito de como vê as mudanças no pensamento de Célia, tendo em vista que Jésus

a acompanhou desde a década de 70 até os dias de hoje, ele comenta, dentre outros aspectos, a

intensificação de sua atuação na escola básica a partir dos anos 90:

Eu acho que o trabalho de Célia, teve um crescimento enorme na relação professor-aluno, na relação com os colegas, e ela tem aprofundado a leitura da obra de Paulo Freire, a questão da participação, da pesquisa participativa, muito da história de vida. Vejo um crescimento da Célia enorme. Quando você vê os escritos dela de 70 e da década de 90, você vê que ela tem muito da situação concreta, da realidade da vida, da escola. Isso acho que foi um crescimento dela. Certamente as pessoas hoje a vêem de uma forma mais total, mais plena do que eu vi quando fui aluno dela. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

Perguntei a Jésus, como fiz com os demais entrevistados, como percebia a forma

própria de Célia lidar nos momentos de embate institucionais, que podemos imaginar não

199

serem pouco usuais. Mais uma vez surge a imagem de firmeza aliada a delicadeza, algo que

ela efetivamente professa.

Era extremamente firme e doce nos momentos de embate, a Célia tem essa característica. Ela fala de uma forma doce, mas firme. Dentro da estrutura da universidade havia embates, ela com aquela característica dela de ser extremamente educada, dizia as coisas com a maior firmeza. O efeito disso era percebido no dia seguinte, as pessoas acabavam recebendo e acolhendo, não vou dizer sem responder não, mas ela conseguia tocar as pessoas, algumas diziam: “a Célia quebrou a gente”.

Os embates tinham relação com a questão da qualidade acadêmica, a questão da visão de mundo, Célia lutava para que a Faculdade de Educação não fosse uma coisa doméstica, mas sim nacional e internacional. Isso foi um embate muito forte dentro da Universidade, pois havia coisas muito domésticas, a visão era Niterói, Niterói, e quando muito um pouquinho do Estado do Rio. Célia abria fronteiras, primeiro nacionais, estado do RJ, estado inteiro, Brasil e depois internacional. Foi uma bandeira, ela sempre foi muito firme e acho que houveram momentos muito difíceis. Recordo-me de uma vez, em uma banca de livre-docência, nós íamos recusar um trabalho, era um trabalho pequenininho, inexpressivo. Depois quem foi para banca elogiou o tal trabalho pela capacidade de síntese, e a gente achou aquilo um horror. As pessoas jogaram pesado conosco, comigo e com Célia. O trabalho era um “resumosinho” de um livro. Outras questões foram também muito duras, como os embates para credenciamento do curso, recredenciamento do curso, em que Célia foi muito firme, e ao mesmo tempo, com a delicadeza que lhe é peculiar, ela falava todas as coisas que tinha que falar com as pessoas. (Jésus, entrevista 2007)

Esse semear com a palavra parece ser uma forma/ estilo forte na presença e atuação de

Célia. Lançando mão de uma palavra que é marcada pela intensidade da poesia, pela

abrangência de um pensamento que inclui dimensões mais amplas, Célia alcança o outro com

sua palavra-semente, tocando-o.

Com relação ao pensamento pedagógico de Célia Linhares Jésus destaca a questão da

díade professor-aluno, desse movimento que é o do mestre-aprendiz e do aprendiz-mestre:

A idéia do encontro, da construção conjunta professor aluno. Eu vejo na Célia uma renovação e atualização de Paulo Freire, nesse encontro com a realidade, da conscientização, da pesquisa participativa. Os livros dela demonstram esse lado freireano, acho que esse é ponto marcante. (Jésus, em entrevista 2007).

A respeito do estilo de escrita de Célia, assim como Balina, Jésus destaca sua forma

poética. Forma que, assim como a poesia, provoca reflexões. Enraizada nas questões

200

contemporâneas, comprometida com o contexto educacional do país, faz da poesia uma forma

de afetar, ampliar o pensamento daquele que a lê:

A Célia é uma poetisa, ela tem uma maneira extremamente agradável de escrever. Algumas pessoas a acham sofisticada, eu acho que ela é uma poetisa que utiliza o conteúdo da educação para desenvolver o lado poético dela. Ela transita, o conteúdo extremamente importante, e ela põe uma casa bonita, elegante, gostosa. Eu sou fã dela. (Jésus, em entrevista, 2007).

Sobre a contribuição desse pensamento nas políticas públicas de modo mais amplo,

Jésus destaca sua preocupação em difundir o trabalho da UFF, alargando fronteiras, buscando

parcerias e redes de troca. Destaca também seu enraizamento com a questão da escola

pública, que defende como prioridade, intensificando a ligação universidade-escola:

A Célia é uma pessoa que saiu do Maranhão e veio para o Rio de Janeiro. Plantou suas raízes na UFF. Célia para mim foi primeiro uma descoberta como aluno e depois como colega. Gostaria de destacar a dimensão nacional dela, essa idéia que ela defende de que uma universidade tem que ter uma dimensão nacional. Depois a contribuição dela para as políticas públicas que se estreitou quando ela começou a trabalhar com as políticas públicas para a escola básica, formação de professores. Ela pegou o que ela tinha de academia e foi para a realidade, aonde as coisas acontecem. Tanto na escola básica, quanto na formação de professores - quando eu falo a escola básica, eu falo de todo o ensino fundamental. Foi grande contribuição dela para a política pública, tanto é que quando eu trato da reunião em Caxambu, as pessoas falam no nome dela. Ela é uma referência.

Ela foi muito importante para a fundação da ANPED. Extremamente incentivadora da ANPED. Ela sempre foi batalhadora para a construção dessa instituição, então eu acho que ela tem um marco nessa história, ela ajudou a ter uma visibilidade nacional e até internacional. Já temos escritos para a reunião desse ano cerca de 26 estrangeiros. São sempre os primeiros a se inscreverem. Por ai vai a dimensão da Célia.

Em 2002 ou 2003 eu fui fazer uma avaliação dos investimentos de pesquisa em educação em Portugal, fiquei lá um mês, eu e mais cinco professores da comunidade européia, e eu acho interessante, porque nisso ai você encontra os colegas que lêem os outros colegas. Temos alguns professores que são lidos lá e Célia é um deles. Acho que nunca dei esse retorno a ela. Essa difusão da obra dela, é bom ver essa necessidade que o mundo tem hoje, desse intercâmbio. Necessidade e riqueza. Em mais de um lugar ouvi falar do nome dela.

Essa foi uma visão que Célia passou muito para a UFF, a UFF é de Niterói para o Brasil e para o mundo. Nós falávamos, que, nós que morávamos do outro lado da ponte, pensávamos mais assim do que propriamente em Niterói. Há uma tendência mais provinciana do que o Rio. (Jésus Bastos, em entrevista, 2007)

201

Célia é uma referência, nos diz Jésus. Referência para seus alunos e ex-alunos, para

pesquisadores no Brasil126 e de outras localidades. Para Jésus, uma mestra semeadora e

competente, que instigou no jovem estudante de pós-graduação a coragem para ousar novos

comportamentos e reflexões, inaugurando mudanças paradigmáticas em sua vida. Mestre

amorosa, que amparou a trajetória de mudanças vividas por Jésus, oferecendo-lhe palavras-

sementes ao longo de seu percurso.

2.6 Pedra e semente: A Saga do herói, aventura de estar vivo.

Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo (Joseph Campbell, 1990).

Educação pela pedra(João Cabral de Melo Neto) Uma educação pela pedra: por lições; Para aprender da pedra, freqüentá-la; Captar sua voz inenfática, impessoal [pela de dicção ela começa as aulas]. A lição de moral, sua resistência fria Ao que flui e a fluir, a ser maleada; A de poética, sua carnadura concreta; A de economia, seu adensar-se compacta: Lições da pedra [de fora para dentro, Cartilha muda], para quem soletrá-la.

126 Destaco aqui que o nome de Célia Linhares foi incluído na disciplina Educação Brasileira que aborda o pensamento pedagógico brasileiro na contemporaneidade do curso de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A iniciativa da professora Profa. Dra. Regina Helena Silva Simões teve início em 2007 e alguns trabalhos já tem sido produzidos pelos alunos do referido curso.

202

Outra educação pela pedra: no Sertão [de dentro para fora, e pré-didática]. No Sertão a pedra não sabe lecionar, E se lecionasse, não ensinaria nada; Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, Uma pedra de nascença, entranha a alma. Poesia Necessária Manuel Rui Produzir na palavra É semear e colher É cumprir na escrita A produção. (...) Produzir na palavra É cantar no poema Todas as raízes Deste chão

Capturada pelo convite de Joseph Campbell (1949; 1999), recorro à Mitologia e as

infinitas revelações que os mitos evocam. Para o autor, mitologia é poesia e a linguagem

poética é muito flexível. A mitologia é algo metafórico. Os mitos nos servem, ele afirma,

primariamente, para fornecer instruções fundamentais à vida. Acedo a esse convite, pelo

sentido que encontro em buscar nos mitos, relações com as questões que desejo fazer emergir

nesse momento.

Começo apelando ao mito do herói e a sua saga. Campbell nos diz que a figura mítica

do herói é a de alguém, que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. Ao perder-se,

doar-se a algum objetivo mais elevado, ou a outrem, o herói deixa de pensar prioritariamente

em si e em sua auto-preservação. Provação suprema. Assim, nessa entrega, opera-se uma

transformação de consciência verdadeiramente heróica. Da vida sacrificada do herói, nasce

uma nova vida, um novo caminho de ser, de vir a ser. O herói humanizado, por meio do qual é

203

cumprido o destino do mundo. Por ora, fiquemos com essas imagens do herói, aquele que se

transforma e que vive um sacrifício do qual nasce o novo (CAMPBELL, 1949, 1999).

O herói pode ter “mil faces”127. A face que evoco é a de um herói humanizado, aquele

ao qual podemos nos mirar – bons espelhos. Esse herói é uma pessoa vitalista, nos diz

CAMPBELL (1999), que “sempre traz uma influência vitalizadora”. (...) (1999: 158). O herói

a que me refiro, não tem poderes supra-humanos, não voa, não possui artefatos mágicos. Ele é

qualquer um de nós, potencialmente aptos a responder aos desafios vitais. Sua proeza não é

propriamente física, como a daquele que pratica um ato de coragem durante uma batalha.

Embora envolva coragem, o heroísmo a que me reporto, envolve também medo. Esse herói

humanizado realiza a proeza de fazer escolhas, de manter-se fiel a sua consciência. Escuta

àquilo que o move, que consubstancia a experiência de estar vivo, de modo, que nossa própria

vida e nossas ações, tenham ressonância no interior de nosso ser e da nossa realidade mais

íntimos. Um tipo de proeza, a desse herói, que “é de um tempo espiritual, na qual o herói

aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma

mensagem” (CAMPBELL, 1999: p.131).

“Medo e ousadia”128 habitam esse herói. O herói precisa convencer-se de que a sombra

existe e que dela pode retirar sua força. Deve entrar em acordo com o seu poder destrutivo se

quiser estar suficientemente preparado para vencer o dragão, precisa antes subjugar e

assimilar a sombra. O domínio sobre o medo propicia coragem à vida.

Quero falar dessa mensagem que o herói traz ao retornar de seu périplo e também da

jornada empreendida por quem a trouxe. Quero falar da jornada de quem recebeu tal

mensagem e, em a recebendo, transformou-a em semente. Que espalhou, e espalha. Quero

falar da mensagem e da força que ela traz, do quanto ela oferece um guia para por em ação as

próprias energias daquele que a recebeu, confirmando sua própria força na construção de seu

caminho/ jornada pessoal. Mensagem que é fogo e fio.

127 Reporto-me ao título do livro “O herói de mil faces” de Joseph Campbell, que se refere as diversas mitologias e religiões, buscando em suas semelhanças, os mitos do herói (CAMPBELL, 1949). 128 Título que dei esse capítulo muito antes de pensar esse final. Pistas, impactos que o material que reuni me trouxe, expressas nos pensamentos e sentimentos que emergiram durante a pesquisa.

204

Mensagem que é fogo: o roubo do fogo é um tema mítico universal. É freqüente que

um animal ou pássaro ardiloso roubem o fogo e o passem a diante. Às vezes, os animais se

deixam queimar pelas chamas, à medida que o fogo vai sendo passado. Dizem que as cores

variadas dos pássaros se devem a esse chamuscar no fogo. O valor do fogo consiste em sua

capacidade de iluminar e aquecer. Em uma floresta, à noite, é ele quem manterá os animais a

distância, revelará caminhos e abrigos. (CAMPBELL, op.cit.)

Mensagem que é fio: refiro-me ao fio de Ariadne, aquele que permitiu a Teseu

encontrar a saída do terrível Labirinto do Minotauro129. Fio que é guia, bússola. Simples fio de

um novelo de lã. Labirinto que é a própria vida, em suas curvas, encruzilhadas, corredores,

cuja saída não se pode ver em estando dentro dele.

Quero também falar das jornadas do herói até que encontre a mensagem. Do abismo,

da entrada na barriga da baleia130 e de como, ao sair de lá, o viajante sai transformado. Na

história bíblica, Jonas é engolido pela baleia. Entre os movimentos de digestão do enorme

animal, ele se mantém constrito. O medo o jogou ao mar, o medo o levou à barriga da baleia.

Do medo ele renasceu, transformou-se, digeriu suas experiências. Voltou fortalecido.

O herói em sua jornada é movido por algo, ele não é apenas o aventureiro. O motivo

básico da jornada universal do herói é abandonar determinada condição e encontrar a fonte da

vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura. Périplo espiritual, no interior de nós

mesmos. Jornada que leva a transformação. “A consciência se transforma pelas próprias

provações ou revelações iluminadas”, nos diz CAMPBEL (1999).

129 A história do Labirinto do Minotauro faz parte da mitologia grega. Sintetizo-a aqui para que possamos captar a imagem do fio e do labirinto que evoco. Houve uma época, que os atenienses eram obrigados a pagar um tributo ao rei Minos. A cada ano eles deviam enviar sete rapazes e sete moças para alimentarem o Minotauro, furioso animal, metade homem, metade touro, que vivia encerrado no labirinto. O labirinto era repleto de corredores, curvas, caminhos e encruzilhadas, onde uma pessoa se perdia, jamais conseguindo encontrar a saída depois de transpor a sua entrada. O jovem Teseu, pretendendo dar fim àquela situação, ofereceu-se como voluntário para entrar no Labirinto, após receber do oráculo a informação de que, se amparado pelo amor, ele conseguiria sair bem sucedido da provação. Ariadne, filha do rei Minos, apaixonou-se por Teseu. E combinou com ele um meio de encontrar a saída do terrível Labirinto. O meio era simples: apenas um novelo de lã. Ariadne ficaria à entrada do palácio, segurando o novelo que Teseu iria desenrolando à medida que fosse avançando pelo labirinto. Para voltar ao ponto de partida, teria, apenas, que ir seguindo o fio que Ariadne seguraria firmemente. 130 Faço referência a história bíblica “Jonas e a baleia”. Jonas, profeta que viveu muitos séculos antes de Cristo, foi mandado por Deus a uma cidade chamada Nínive, para levar conselhos e ensinamentos ao povo. Assustado com a empreitada Jonas ficou com medo e fugiu no barco de alguns pescadores. Porém uma forte tempestade lançou-o ao mar. A tempestade passou, mas uma baleia imensa engoliu Jonas. Jonas foi devolvido a uma praia, são e salvo, depois três dias na barriga da baleia, rezando e se arrependendo.

205

Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da idéia-semente, a idéia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo. (CAMPBELL, 1999, p.145)

A mensagem, idéia-semente, fertiliza outros caminhos, outras jornadas. Inaugura

novas sagas, fornece estofo, luz, companhia a outros, que como o herói em sua saga,

empreendem as suas próprias.

Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial. Você deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais distante ou mais alto. Então atinge aquilo que faltava à sua consciência, no mundo anteriormente habitado. Ai surge o problema, permanecer ali, deixando o mundo ruir, ou retornar com a dádiva, tentando ser fiel a ela ao mesmo tempo em que reingressa no seu mundo social. Não é uma tarefa das mais fáceis. (CAMPBELL, 1999: 137)

Rui e Célia travaram/ travam suas sagas heróicas. Rui sacrifica a vida, em nome do

que acreditava. Célia, tomando nas mãos a “mensagem” do irmão-herói, mensagem que é

fogo e é fio, transmuta a dor e a perda em uma nova forma de viver, ainda mais vitalizada. É

preciso que o sacrifício não tenha sido em vão. É preciso avivar a chama da mensagem-fogo,

é preciso desenrolar o fio de Ariadne, sempre.

A jornada de Rui, motivada por uma militância fraterna, por uma atenção aos que o

rodeavam e por seu interesse pelo povo, tem profunda ressonância em Célia. Como um herói,

Rui colocou sua própria auto-preservação num plano de importância inferior. O apelo que

falava mais alto para ele, estava ligado à agir em prol da justiça, da igualdade, do direito dos

que viviam em condições de pobreza e abandono. Movia-se pelo amor ao outro, pela

compaixão131.

A perda de Rui poderia ter deixado o mundo de Célia ruir, desencantada com a perda,

humanamente desesperançada com a vitória da força bruta sobre a vida e sobre a luta pela

131 A palavra compaixão, nos diz CAMPBELL (1999), quer dizer sofrer com, implica reconhecer que sofrimento é vida e se solarizar com o sofrimento do outro.

206

justiça travada por seu irmão. Porém, na saga da heroína, a perda é o ápice, é o ponto de

retorno, que traz a mensagem-fogo-semente-fio. Da experiência dolorosa, abismo de trevas,

Célia sai compreendendo mais a respeito dela própria, daquilo que a move e a guia em sua

própria saga. Da morte, renascimentos. Diante da morte, a coisa a fazer é trazer vida ao

mundo, e a única maneira de fazer isso é descobrir, em você mesmo, onde está a vida e

manter-se vivo. Vital.

Não se pode dizer que uma vida seja inútil só porque acaba no túmulo. Há um verso inspirado, em um dos poemas de Pindaro, em que ele celebra um jovem que acabava de vencer a luta livre, nos jogos Píticos. Píndaro escreve: “criaturas de um dia, o que é qualquer uma delas? O que não é? O homem não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como uma dádiva do céu, um lampejo do sol, pousa sobre os homens uma luz radiante e, oh! Uma vida benigna”. (CAMPBELL, op.cit., p. 144)

É com experiência de morte-vida, luta e esperança, que Célia vai palmilhando sua

própria história, confirmando convicções e escolhas. Transforma a mensagem, idéia-semente,

em uma ação permanente de semeadura. Aqui e ali. Célia age como uma “Semente para

semear outras sementes”132, usando sua “palavra-semente”. Mais do que germinar em

terrenos férteis, cultiva o potencial poder que seus pares possuem de, também eles, semearem.

Papel do mestre, como nos disse Jésus.

A ação de Célia se constitui no dia-a-dia, nas relações que vai travando com

estudantes e colegas, nas associações, nos espaços de coletividade. A defesa do papel do

professor e da educação se evidenciam. Pensa numa educação da pedra, nas palavras de

Balina: “Eu acho fundamental a contribuição de Célia para a educação brasileira. Uma

pedra sem a qual não se pode continuar. Uma pedra-exemplo e não uma pedra-obstáculo”.

É João Cabral de Melo Neto, na epígrafe desse texto, que amplia nosso entendimento da

educação da pedra. Educação conectada ao contexto do país que vivemos, interessada em

entender os enlaces entre fracasso escolar, pobreza, política e formação de professores.

E é com essa mensagem-semente, que é fogo e que é fio, que Célia inaugura um

caminho renovado, revitalizado. Continuemos a saga/ trilha. 132 Trecho extraído da entrevista de Jésus Bastos, desse mesmo capítulo.

207

CAPÍTULO 3

DÉCADA DE 80: FIRMEZA E ESPERANÇA.

Que País é Este

Legião Urbana133

Composição: Renato Russo Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia iá, iá, Na Baixada Fluminense Mato grosso, Minas Gerais e no Nordeste tudo em paz Na morte o meu descanso, mas o Sangue anda solto Manchando os papéis e documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é esse? Terceiro mundo, se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão Que país é esse? Que país é esse?

A música que abre esse capítulo, de autoria de Renato Russo, deixa antever o clima de

expressão das insatisfações por parte do povo que permeou a década de 80. Período de maior

133 O grupo “Legião Urbana”, formado em 1983, teve grande repercussão na década de 80. Suas músicas revelavam uma juventude farta de um sistema opressor e injusto. O grupo Legião era um dos representantes de um rock nacional que incrementava-se com grupos como Capital Inicial, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Barão Vermelho, Blitz, dentre outros. O álbum que levou o nome da música “Que país é esse” alcançou sucesso nas rádios, marcando uma fase do grupo conhecida como “furiosa”.

208

abertura política, os anos 80 se caracterizaram pelo fortalecimento do movimento popular que

ganhava novos espaços de expressão, apesar das persistentes iniciativas intimidatórias das

forças militares ainda no poder. Um exemplo significativo da participação da sociedade civil

foi, dentre outros, o movimento das “Diretas Já!”, ao qual nos referiremos mais adiante.

É comum que se faça referência aos anos 80 como “A década perdida”, graças a

estagnação econômica vivida pela América Latina em função da retração da produção

industrial e de um menor crescimento da economia como um todo. No Brasil, a década de 80

trouxe o final do ciclo de expansão que tinha tido sua culminância, no período do “milagre

econômico” (RODRIGUES, 1992; SAVIANI, 2007).

No mundo, a queda do Muro de Berlim em novembro de 1989, decorrente do

esgotamento das práticas socialistas e comunistas européias, aconteceu “a força de picaretas”

(RODRIGUES, 1992, p. 8). Abria-se simbolicamente o caminho para a reunificação do país,

dividido desde a Segunda Guerra Mundial. Esse acontecimento do final da década reavivou a

discussão sobre os caminhos dos socialismos, servindo como munição para aqueles que

acreditavam na falência do corpo filosófico desenvolvido por Marx no século XIX.

Nos países pobres, afirma Rodrigues (op.cit.), o grau de internacionalização alcançado

pela economia expressava a relação de dependência econômica que se consolidava. No Brasil,

se solidificava um modelo capitalista dependente e o regime político era diretamente regido

pelas burguesias das “nações emergentes”, cúmplices e principais beneficiárias de sua

acelerada modernização.

A eficácia dos regimes socialistas era questionada no que se referia à igualdade de

direitos e à livre expressão, bem como a ineficiência da centralização e disciplinas exigidas

pelas organizações partidárias, especialmente as de esquerda. Esses questionamentos deram

espaço tanto para um combate raivoso, como para uma maior discussão dos sistemas

filosóficos que haviam orientado o ideal transformador de gerações, como o marxismo.

Rostoldo (2006) nos conta que, no campo das artes, a emblemática mostra “Como vai

você, Geração 80?”, é realizada em julho de 1984 no Parque Lage do Rio de Janeiro,

coordenada pelo artista plástico Luís Áquila. A mostra integra 123 jovens artistas – muitos

dos quais se destacam hoje no cenário brasileiro das artes plásticas - do eixo Rio-São Paulo,

aglutinando várias tendências. Movimento que oxigenou as artes naquele período, por

integrar trabalhos muito dissonantes de forma harmônica. Muitos desses artistas eram “filhos

da ‘revolução’”, ou seja, haviam nascido pouco antes do golpe militar e cresceram no regime

ditatorial. Viveram no início dos anos 80 o movimento de lutas pela abertura política, a favor

das questões dos negros, das mulheres, dos homossexuais, da casa própria, do corpo, etc.

209

A AIDS (do inglês Acquired Immunodeficiency Syndromese disseminava),

transformando-se numa verdadeira epidemia. Tal fenômeno fez surgir um crescente

conservadorismo com relação à política do corpo. Apenas em 1985 a AIDS começou a ser

considerada um caso de saúde pública. (ROSTOLDO, 2006)

Na literatura, ainda, a autora sublinha que houve uma “virada do verão 80”. As

chamadas “memórias de exílio/ poesia na prisão” surgem como um novo gênero que retratava

os anos de chumbo em livros como “O que é isso companheiro?” de Fernando Gabeira, dentre

outros, traduzindo experiências que haviam sido vivenciadas no silêncio.

A autora analisa também o cinema dos anos 80, afirmando que, apesar da crise

econômica e dos problemas com a censura, a produção cinematográfica brasileira manteve

sua tradição de abordar grandes temáticas nacionais. Questões políticas, lutas, greves dos

trabalhadores, luta armada, tortura, repressão, manifestações pelas eleições diretas para

presidente e a transição política foram os temas contemplados. Tratava-se de repensar as

relações com o Estado e identificar possibilidades de atuação diante dos altos custos da

produção e do mercado reduzido. Acrescente-se que o videocassete se disseminava, roubando

o público das salas de projeção. Produções importantes do período merecem ser destacadas,

avivando nossa memória: A idade da Terra134 (1980); Bonitinha, mas Ordinária135 (1981);

Pixote, a Lei do Mais Fraco136 (1981); Prá Frente Brasil137 (1983); Eles Não Usam Black-

Tie138 (1981); Memórias do Cárcere139 (1984); Eu Sei Que Vou Te Amar140 (1986); A Hora

da Estrela141 (1985); Com Licença, Eu Vou à Luta142 (1985); O Homem da Capa Preta143

(1986); Ópera do Malandro144 (1986); A Marvada Carne145 (1985); Brás Cubas146 (1985),

dentre outros.

134 Produzido por Glauber Rocha. 135 Dirigido por Braz Chediak. 136 Direção de Hector Babenco. 137 Direção de Roberto Farias. 138 Direção de Leon HIrzman. 139 Direção de Nelson Pereira dos Santos. 140 Direção de Arnaldo Jabor. 141 Direção de Suzana Amaral. 142 Direção de Lui Farias. 143 Direção de Sérgio Rezende. 144 Direção de Rui Guerra. 145 Direção de André Klotzel. 146 Direção de Júlio Bressane.

210

A música foi, também, um importante instrumento de contestação e reivindicação

nessa década. Movida pelo rock ela destilava o inconformismo com a situação política e

social do país (ROSTOLDO, 2006).

Esse capítulo está assim organizado: Em “Abertura política: o povo volta às ruas”,

apresentamos mais detalhadamente o cenário político da década. Em seguida, “Aberturas e

fechamentos” traz as experiências de Célia e um levantamento de algumas idéias que

circulavam nesse período. A próxima parte, “Trilhas do pensamento pedagógico” tem como

objetivo abordar as principais idéias presentes nas obras escritas por ela nos anos 80. Por fim,

chega a vez de “Voz dos parceiros”, com as narrativas produzidas a partir das entrevistas de

Heloisa Villela e Waldeck Carneiro da Silva. Em “Mestra, Mestra-mãe” fechamos o capítulo

com as idéias e imagens mais expressivas dos anos 80.

3.1 Abertura política: O povo volta às ruas.

sombras derrubam sombras quando a treva está madura sombras o vento leva sombra nenhuma dura (Leminski in “Distraídos venceremos”, 2006)

Rodrigues (1992) afirma que podemos considerar o início da abertura política no

Brasil a partir do governo Geisel (1974-79), período considerado de falência do já referido

“milagre econômico brasileiro”. A liberalização do País interessava à burguesia, fortalecida

que estava agora pela consolidação do capitalismo que a ditadura havia possibilitado. Segura,

uma vez que acreditava que a “subversão” da esquerda havia sido dominada pelo imenso

aparelho repressivo montado após 1964, a burguesia começava a não sentir-se tão ameaçada

com as expressões populares.

A frase do presidente João Figueiredo revela a postura ambígua que caracterizou essa

“abertura”, fruto de um regime autoritário: “É para abrir mesmo. Quem quiser que não abra,

eu prendo e arrebento” (RODRIGUES, 1992).

211

Na questão da abertura havia uma concordância entre militares, burguesia e a maioria

dos políticos, de que era preciso haver controle da distensão política. Aqueles que foram

chamados de desaparecidos políticos legaram aos seus contemporâneos e sucessores a herança

de seu exercício ético, indelével e pujante, por que realizado quando as palavras e as ações

democráticas estavam ameaçadoramente proibidas.

Por isso, eles, não só se constituíram como um fator fundamental para a conquista da

abertura, mas ressoavam na força e pressão exercidas pelos movimentos sociais. Greves,

organizações de bairros, entidades profissionais uniam-se na busca do reconhecimento de seus

direitos. No entanto, essa pressão não foi suficiente para garantir a condução realmente

democrática do País, nos diz Rodrigues (op.cit.), o que exigiria reformas profundas nos

mecanismos de decisão política, como a criação de canais efetivos de participação para as

classes trabalhadoras.

A campanha das “diretas já”, como nos referimos anteriormente, revelou a

potencialidade de mobilização popular, porém essa foi sendo gradativamente limitada ao voto

e às manifestações públicas. “Ao povo o seu lugar” diria a maioria dos políticos e a burguesia.

Com relação às pressões populares, um fato marcante foi a presença dos trabalhadores

em greve, na área rural e nas áreas industriais. Movimento grevista que foi fortemente atacado

com um esquema repressivo do qual resultaram prisões e intervenções em sindicatos.

A greve do Abc paulista se destacou, não apenas pelas novas formas de condução

adotadas pelo movimento – comandos de greve eleitos, finalizavam uma estrutura de

representação que se iniciava nos locais de trabalho –, mas, também, pelo amplo apoio que

obteve da população e de instituições, como a Igreja e a Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB).

A anistia de 1979, que possibilitou o retorno dos exilados ao País, reforçada pela

intensa movimentação social, provocaram reações de extrema direita. O episódio do

Riocentro, ocorrido no Rio de Janeiro em abril de 1981 dá a dimensão dessa reação. Durante

o show comemorativo ao Dia do Trabalho, duas bombas que estavam sob o poder dos

militares, explodiram “acidentalmente”, antes do tempo previsto, abortando parte de seu

efeito letal, pois ainda produziu vítimas. Esse episódio fez parte do conjunto de atentados

promovidos por grupos de militares “linha dura”. O objetivo era criar um clima de terror pelo

qual a esquerda seria responsabilizada. No caso do acontecimento do Riocentro, o fato acabou

mobilizando a opinião pública e reforçando o apoio dos empresários ao projeto de abertura do

governo Figueiredo (RODRIGUES, op.cit.).

212

Os caminhos adotados para a abertura implicavam o restabelecimento de alguns

aspectos institucionais básicos, afirma Rodrigues. Nesse sentido, tiveram importância a

reforma partidária realizada no final de 1979 – da qual resultaram partidos bem mais

definidos quanto aos interesses de grupos e segmentos de classe que representavam - e o

retorno das eleições diretas para governador, aprovado pelo Congresso em novembro de 1980.

No início de 1982 foi concedido registro ao Partido dos Trabalhadores (PT) que,

originado das experiências da luta dos metalúrgicos do ABC paulista, representava uma opção

socialista em torno da qual se agrupavam setores da classe operária, dos intelectuais e dos

sindicalistas.

Em novembro de 1983 os governadores do Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB) na Declaração de Poços de Caldas, reafirmaram seu empenho em

promover uma campanha suprapartidária em favor das eleições diretas. O PT, por sua vez,

promoveu em São Paulo uma manifestação pública com a mesma finalidade.

A campanha pelas diretas tinha como objetivo pressionar no sentido de sua aprovação.

Ela tomou corpo em meados de 1983. “Um, dois, três, quatro, mil, queremos eleger o

presidente do Brasil”, entoava a população mobilizada.

O país vivia, portanto, um momento efervescente de mudança em que a população se

organizava, participando mais efetivamente dos destinos do País, buscando intervir

diretamente em seus rumos.

Rodrigues (op.cit.) ressalta que, embora o país vivenciasse essa efervescência,

convivia e ainda hoje convive, com grandes contrastes sociais e econômicos, fruto de um

modelo de sociedade extremamente excludente, em que a maioria da população não tinha/tem

acesso aos bens sociais básicos, como a educação, a saúde, o saneamento básico e a habitação.

Emblemático desses novos tempos merece destaque o fato do primeiro presidente

não militar/civil ocupar este posto após muitos anos de hegemonia dos militares. Apesar de

indireta, a eleição de Tancredo foi recebida com entusiasmo pela maioria dos brasileiros.

Tancredo faleceu antes de assumir a presidência e em 22 de Abril, Sarney, seu vice, foi

investido oficialmente no cargo. Governou até 1990.

A Constituição Federal de 1988 foi uma importante conquista da década, assegurando

garantias constitucionais, com o objetivo de dar maior garantia aos direitos fundamentais. A

Carta Magna de 1988 qualificou como crimes inafiançáveis a tortura e as ações armadas

contra o estado democrático e a ordem constitucional. Foi também determinada a eleição

direta para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado (e do Distrito

Federal), Prefeito, Deputado, Senador e Vereador. Além disso, a Constituição retirou a

213

restrição à sindicalização de funcionários públicos, favorecendo a organização popular

(FRANCISCO FILHO, 2004; SAVIANI, 1991e 2007).

No campo educacional da década de 80, a concepção tecnicista que orientava a

educação brasileira era mais amplamente criticada, dando espaço para perspectivas que

consideravam o caráter sócio-histórico da educação e da formação do educador. Surgiam

então as alternativas pedagógicas de caráter contra-hegemônico, buscando ultrapassar a mera

crítica da educação vigente. Para a formação do professor, se preconizava a necessária

compreensão da realidade de seu tempo tendo em vista o desenvolvimento da consciência

crítica e a construção de condições que possibilitassem a interferir e transformar a situação da

escola, da educação e da sociedade.

A Pedagogia crítica, ligada às teorias crítico-reprodutivistas mencionadas no capítulo

anterior, mostraram o papel reprodutor da educação a serviço do poder e da ideologia

dominante e começavam a se difundir. Nesse contexto, a busca de alternativas intensificou-se,

surgindo concepções pedagógicas que buscavam conduzir a educação numa linha libertadora,

articulada com os interesses populares, com os interesses democráticos, com a

democratização do país. Para Saviani (1991), teríamos quatro grupos de pedagogias que se

articulariam na época. Uma ligada a Educação Popular cuja matriz principal era Paulo Freire.

Seu enfoque era a inclusão nas práticas escolares de espaços de discussão e reflexão sobre o

contexto social e seus problemas; as Pedagogias da Prática, corrente de expressão mais

anarquista; a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, proposta elaborada pelo professor

Libâneo que considerava o chamado “saber elaborado” pouco valorizado na pedagogia

libertadora e, portanto, considerava fundamental valorizá-lo e, por fim, a pedagogia

Histórico-Crítica, que surgiu concomitantemente com a pedagogia Crítico-Social dos

Conteúdos.

Nacionalmente, ganham força movimentos de educadores em defesa da formação do

professor e da construção teórica e prática de uma concepção de base comum nacional,

entendendo-a como instrumento de luta contra a degradação da profissão. Dentre esses

movimentos, citamos a Associação Nacional de Educação (Andes), Associação Nacional de

Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) que tendo sido fundada em 1976, teve em

Célia uma de suas sócias fundadoras e membro de sua primeira diretoria como ‘Secretária

Adjunta’, o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) criados no final da década de

70. Em 1983, é criada a Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do

Educador (CONARCFE) matriz da qual foi constituída a Associação Nacional pela

Formação de Profissionais da Educação (ANFOPE), num e noutro movimentos, Célia

214

participou vivamente, ajudando em seus processos de institucionalização e compondo suas

diretorias. Essas organizações associativas contribuíram com a construção coletiva de uma

“concepção sócio-histórica de educador em contraposição ao caráter tecnicista e conteúdista

que caracterizava as políticas de formação de professores para a escola básica em nosso

país” (SAVIANI, 2007; FREITAS, 1999).

As Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), organizadas pelas associações

ANDES, CEDES e ANPED, realizadas nos anos 1982, 1984, 1988 e 1991, mobilizaram

professores e pesquisadores na “produção, discussão e divulgação de diagnósticos, análises,

críticas e formulação de propostas para a construção de uma escola pública de qualidade”

(SAVIANI, 2007, P. 402). Em 1984, a CBE realizou-se em Niterói, sediada na UFF e Célia

coordenou uma das mesas polêmicas, além de outras participações.

Saviani realça que houve, também, nesse período uma significativa ampliação da

produção acadêmico-científica, divulgada por cerca de sessenta revistas de educação surgidas

nesse período e por grande quantidade de livros. As editoras grandes criaram coleções de

educação, e editoras especializadas na área foram abertas. Essa organização e aumento da

produção Científica educacional favoreceu ao reconhecimento da comunidade científica

representada pelas agências federais de fomento à pesquisa e ao ensino, tais como o Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), a CAPES e a Financiadora de Estudos e

Projetos (FINEP). O mesmo aconteceu com as fundações de apoio à pesquisa dos diferentes

estados, incrementando a pesquisa educacional no País.

É nesse cenário de abertura democrática, organização e mobilização de educadores e

demais mudanças, conquistas e transições que Célia volta ao Brasil após seu doutorado na

Universidad Nacional de Buenos Aires. Década em que intensifica sua atuação como

pesquisadora, estreitando os laços entre academia e escola básica, bem como se amplia sua

produção textual, fruto de suas experiências, estudos e pesquisas. Na volta ao Brasil, retorna à

UFF e a pós-graduação, cujo quadro de professores havia se modificado durante o período de

sua ausência. Em suas palavras, década em que se sente mais firme para os novos desafios que

se apresentam.

215

3.2 Mais firme na trilha.

"O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem". (Guimarães Rosa)

José havia sido designado pela diretoria do Banco Real para montar um grupo

financeiro em Buenos Aires, seguindo primeiramente sozinho e organizando a estrutura para a

ida da família, ou melhor, de parte dela. Célia147, Ângela e Andréa seguiram para Argentina.

Mário e Paulo, já tendo ingressado recentemente na Universidade, ficaram com Bibi no

Brasil.

As meninas foram matriculadas numa escola bilíngüe de espanhol e inglês,

adaptaram-se com tranqüilidade à vida na Argentina, fazendo logo amizades. Célia fez seus

primeiros contatos na Universidad Nacional de Buenos Aires onde faria seu doutorado em

Instituto de Filosofia Ciências e Letras, na área de Ciências da Educação, sendo aceita

mediante um processo de múltiplos exames e revalidações.

Em 1983 Célia defenderia sua tese intitulada “La Identidad cultural y el processo de

educación en la América Latina”.

De volta ao Brasil em 1983, Célia retomava suas atividades na UFF e José, após pedir

aposentadoria, lançava-se num novo empreendimento, abrindo uma agência de viagens

culturais, a ARGOS.

No Brasil Célia iniciou mais estreitamente seu vínculo com o Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tornando-se pesquisadora. Em suas

pesquisas evidencia-se uma clara vinculação entre as questões da escola pública e da

democracia, discutindo as sinuosidades da transição na formação de professores, incluindo

nesta pesquisa comparações com a Argentina e o Uruguai.

Com uma maior abertura para o campo da pesquisa, Célia pôde investigar questões

como: o discurso pedagógico: sua elaboração retórica e sua legitimidade; a relação entre o

Mestrado e a Escola Básica; A formação de professores nas sociedades em transição para a

147 Ao afastar-se da coordenação da pós-graduação da UFF, Célia deixa em seu lugar o professor Jésus Alvarenga.

216

democracia e a Autonomia Universitária e a formação docente para os trabalhadores. Tratava-

se de refletir sobre a formação sob diferentes aspectos e os rumos que esta tomava diante dos

novos tempos.

Nos anos 80, me fiz pesquisadora do CNPq, desde então até agora tenho mantido vínculos de pesquisadora, com alguns pequenos intervalos. Muitos de meus estudos dos anos 90 foram frutos desse momento mais democrático. Uma de minhas pesquisas investigava o significado da democratização, buscando compreender como ela convivia com um lastro da ditadura que não havia sido arrebentado e com novas concepções de política que rompiam com as idéias de múltiplas ações em que nos entretecemos e nos influenciamos e as diretrizes de Estado. Pensávamos as políticas que circulavam como ações intersticiais, como movimentos micro-políticos, que dispensavam tanto “residências” fixas, para o poder como esquemas de imposição e coerção, versus vitimação. Então, neste período, volto a estudar Foucault. (Célia em entrevista, 2007).

Célia, em diálogo com Foucault, parte da concepção de micro-política ou, na

expressão do próprio Foucault, da microfísica dos poderes em jogo nas sociedades modernas.

É assim que analisa em suas pesquisas a trama de poderes que circulam em todas as

instâncias, em sua capilaridade, abrangendo instituições e atingindo a todos os indivíduos

(SAMPAIO, 1994). Tal perspectiva indica a presença do poder nas múltiplas relações

humanas e nas instituições. Exemplifica como essa temática se fez presente em uma de suas

pesquisas:

Desenvolvi a pesquisa “América Latina e a transição democrática: Brasil, Argentina, Uruguai” e uma outra sobre como se constitui a validação e a legitimação dos discursos pedagógicos. Um tema que acho de uma grande atualidade ainda. Afinal, por que você escreve uma matéria e ela pouco ressoa, quase não sai da gaveta e uma outra pessoa escreve quase o mesmo e seu trabalho repercute tornando-se um instrumento potente para pensar, intervindo na sociedade? Por que alguns discursos emplacam e outros não? Claro que além das condições de circulação, condições fortemente políticas, há também condições internas ao próprio discurso, que além de políticas carregam critérios epistemológicos, também sempre em movimento. Foi uma pesquisa muito interessante. Nessa pesquisa chamou-me atenção as discussões do Bachelard sobre quando é que uma ciência consegue superar o discurso anterior por encantá-lo e transcendê-lo. (Célia Linhares, entrevista, 2007).

Interessante observar que essa é uma questão muito próxima das experiências de Célia

com o conhecimento. Ela já pesquisava nos anos 60 e 70 alguns temas e autores de menor

circulação na academia. Além disso, vivia também em sua experiência na pós-graduação da

217

UFF, um momento em que se instalavam outros modelos hegemônicos, com os que confluía,

mesmo com suas distinções (o que foi mencionado por Balina e Jésus nas narrativas dos

capítulos que antecedem a esse).

É oportuno que ela se interessasse, então, em refletir/ compreender melhor essas

condições que validam alguns discursos e outros não. Essa idéia também fundamentou sua

pesquisa sobre as disciplinas da graduação e da pós-graduação. Na graduação, Célia

considerava que havia pouca ênfase nas disciplinas de fundamentos, que possibilitasse a

construção de bases teóricas aos pedagogos. Muitas vezes, se faziam críticas a um

determinado autor, sem o devido conhecimento de suas idéias.

O pessoal saía da graduação da pedagogia e, mesmo sem entender, minimamente, o pensamento de Rousseau, de Descartes ou Dewey, por exemplo, mas, mesmo assim, já saiam distribuindo críticas. (Célia Linhares, entrevista 2007)

Reconheço nas inquietações que deram origem a essa pesquisa, uma questão de fundo

que é muito cara à Célia: a autonomia intelectual do professor. Conhecer os fundamentos de

um autor e de seu pensamento estimulando que o estudante, não simplesmente repita uma

formulação crítica de outrem, mas possa forjar as suas próprias. As preocupações que

orientam suas pesquisas deixam claro a força de sua concepção de autonomia, como um

princípio fundamental na formação do professor, no seu pensamento pedagógico.

A relação entre o Mestrado e a Escola Básica também é um foco desta pesquisadora que

defende um envolvimento recíproco, um intercâmbio permanente entre essas duas instâncias.

Célia considerava que havia um divórcio entre a escola experimentada e vivida e a pesquisa

acadêmica. Para pesquisar esse isolamento e como ele se dava, investigou o perfil daqueles

que procuravam o mestrado e as dissertações e teses produzidas no sudeste cujo tema era a

escola. Intitulada “Mestrado e educação na escola básica”, essa investigação envolveu as

professores e estudantes do Mestrado (tais como, Balina Belo, Teresinha Lankenau, Sheilah

Kelnner, Lúcia Molina e tantas outras, bem como as mestrandas Heloisa Vilella, Terezinha,

etc) A culminância da pesquisa foi feita com um encontro que reabria a investigação em outro

nível, integrando professores do Sistema Público de Ensino do Sudeste com as Professoras

pesquisadoras que haviam orientado o mais expressivo contingente de dissertações naquela

última década, representadas, algumas vezes, pelas suas ex-orientandas. A idéia era que essas

duas instâncias – Mestrado e Escola Básica – pudessem trocar e se ouvir. Uma fértil

oportunidade de diálogo.

218

Professoras da periferia de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte vieram para o Encontro e ficaram três dias conosco. Nós as hospedamos nos hotéis. Elas discutiram as dissertações, seus processos, seus achados e as linguagens com que as pesquisas eram redigidas. Levantaram questões, mostraram as complexidades da educação escolar. Foi uma oportunidade e tanta de trocas de experiências, de aproximação, em que muitas histórias do cotidiano das professoras e das pesquisadoras foram relatadas. (Célia Linhares, entrevista 2007)

Célia relembra dos casos e contos dessa ocasião. Uma história contada por uma

professora, a tocou de modo especial. Dizia respeito a uma das alunas da tal professora, uma

menina de nove anos, vinda do nordeste, “adotada148” por uma família, após ter sido

anteriormente rejeitada por outras duas. A menina, a despeito dos esforços, não conseguia

aprender. A professora então empreendeu um investimento redobrado, fazendo com que a

menina, enfim, conseguisse apropriar-se da leitura e da escrita. De posse da palavra, de posse

da possibilidade de ser menina, ser jovem, descolando-se do papel servil que ocupava fora da

escola, arriscou-se em poetizar. Palavra que resgatava na menina-poeta a possibilidade de se

dizer, de voltar a reconhecer a menina que era.

Uma das primeiras produções da menina foi feita em homenagem a um namoradinho: “Na rua, onde moro,/Não preciso candeeiro./O brilho do olhar do Gil / Alumia o mundo inteiro”. Ali ela já estava com 9, 10 anos, já na pré-adolescência, namorando, e aprendendo a ler não só os livros, mas o mundo com seus afetos. A professora trouxe a escritas da menina, comprovando o processo de aprendizagem. (Célia Linhares, em entrevista, 2007)

Célia interessava-se em dar voz aos professores, conhecer de perto suas experiências e

expectativas e estreitar os laços entre pesquisadores e professores. Sua visão de pesquisa

retirava-a das mãos de uma elite intelectualizada, desinteressada pelos problemas cotidianos

da escola. Rompia também com a idéia de que na universidade se produziam as “verdades”

148 Uma situação muito comum até hoje em várias regiões do país, é que as famílias empobrecidas entreguem suas filhas ainda bem pequenas para trabalharem nas casas das famílias abastadas. Essa prática, uma verdadeira “escravidão” moderna, traduz o dilema de nosso país. Se é muito ruim pensar numa criança tão jovem trabalhando, sem direito ao estudo, a própria família e ao brincar, a outra alternativa que muitas vezes lhe resta também não é alvissareira: passar fome numa família sem recursos.

219

para que os professores, meros aplicadores das teorias produzidas na academia, as utilizassem

na sala de aula.

A crítica à visão de professor reprodutivista ganha força especialmente nas décadas de

80 e 90 e tem sido bastante enfatizada na área da formação do profissional em educação. Célia

sintonizava com essa crítica, preconizando o investimento na formação de um professor

crítico, que refletisse sobre seu trabalho, atuando como um investigador permanente de sua

prática.

Célia reporta-se também a um encontro muito importante, que acabou transformando-

se em congresso, dada a repercussão que teve. Nele, Florestan Fernandes149 fez a abertura.

No final dos anos 80 fizemos outro encontro, I Encontro Estadual Pró-formação do Educador, com o tema,“A formação do educador na construção da democracia”. Este Encontro representava uma expansão e um revigoramento da CONARCFE, na qual exercia a Coordenação Estadual do Rio de Janeiro. Florestan Fernandes fez a conferência de abertura, o Coordenador Nacional e Regional eram respectivamente Luís Carlos de Freitas e Antônio Carlos Ronca, que participaram ativamente deste nosso Encontro. A organização foi primorosa, com representantes de cada uma das Universidades Públicas e as principais particulares, além delas os sindicatos de professores estiveram todo o tempo conosco. Novamente uma intensa rede de solidariedade se formou em torno da realização do Encontro, sustentada por professoras como Regina Leite Garcia, Lea da Cruz, Felisberta da Trindade, Martha Hees e tantos outros que os lugares para participar do Encontro, logo se esgotaram e foi necessário buscarmos outros espaços para a duplicação das atividades.

149 Florestan Fernandes (1920-1995) foi um importante sociólogo. Nascido em São Paulo, sua infância foi marcada pela pobreza e pelo trabalho precoce, o que o impediu freqüentar a escola regularmente. Já mais velho retomou os estudos, conciliando trabalho e estudo. Licenciou-se em Ciências Sociais na USP. Por intermédio de um de seus professores, após a conclusão do curso, começou a escrever no jornal O Estado de São Paulo, depois na Revista Sociologia e na Folha da Manhã, o que lhe trouxe prestígio e notoriedade. Em 1944 começou a lecionar na USP, na cadeira de Sociologia II com Fernando Azevedo. Concomitante aos estudos e trabalhos na Universidade, Florestan se envolveu nas lutas clandestinas contra o Estado, entrando em 1942 no movimento trotskista de extrema esquerda. Em suas pesquisas, embrenhou-se no conhecimento da sociedade brasileira e sua formação, aproximando-se do universo indígena e da histórias dos negros no Brasil. A partir da década de 60, respondendo a um apelo social que convocava as elites intelectuais a atuar mais diretamente nos movimentos populares, Florestan passa nuclear seu trabalho em direção a uma sociologia aplicada, comprometida com as mudanças sociais, engajando-se no movimento de defesa da escola pública, do qual foi uma liderança combativa. Após o golpe militar, em 1969, por força do AI-5, Florestan foi aposentado compulsoriamente. Após esse período ele auto-exilou-se, passando a atuar como professore de Sociologia na Universidade de Toronto, de 1970 a 1972. A partir de 1977 foi contratado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 1987 começou a atuar como Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores, reeleito em 1991, ficando do cargo até 1994. Acreditava que o papel das ciências sociais era o de contribuir com a educação, pois nela residia a possibilidade de diminuir as desigualdades. Defendia que a LDB deveria privilegiar a garantia da escola pública, laica, gratuita, universal e de boa qualidade. (MAZA, Débora in FÁVERO E BRITO, 2002).

220

Nessa época também nos articulamos com uma uruguaia que tinha nos ajudado na pesquisa sobre a transição da democracia no Uruguai, a Professora Emma Massera. Ela também falou neste Encontro, narrando as curvas, as dificuldades, deslizes e as conquistas da Democracia na Educação Uruguaia. Temos guardado esses documentos no Centro de Referência de Experiências Instituintes na FEUFF.. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

O clima que antecedeu ao encontro foi permeado por muitas tensões. Às vésperas

houve um atentado de graves proporções na Companhia Siderúrgica Nacional, nos conta

Célia. Niemeyer150 havia projetado um monumento em homenagem aos operários

perseguidos e dizimados pela ditadura. Tal iniciativa desagradara às forças conservadoras que

ainda se debatiam pelo poder. Os professores estavam em greve e as tensões estavam

crescendo!

Nesse contexto de tensões, o encontro representou um espaço de reafirmação do

desejo democrático contra as forças opressoras que se manifestavam nos episódios que

eclodiam. “Nós abrimos com Florestan Fernandes discursando sobre ‘Formação de

professores para a construção da democracia’, contando sua vida, as tentativas de cooptação

que sua geração de moços de origem pobre sofriam quando ascendiam, o que era raro, à

universidade. Olha, é difícil um evento que chame tanta gente, tanta gente interessada, com

olhos brilhando pelo que tudo ali representava!”. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Esse encontro foi precedido de uma organização esmerada, cujo planejamento,

envolveu, três meses antes, encontros quinzenais com os professores de diferentes municípios,

tendo em vista a definição dos temas de maior interesse. No encontro propriamente dito

houve também espaço de divulgação das experiências inovadoras, hoje nomeadas por Célia

como “instituintes”. Para o encontro foram convidados todos os professores do município do

Rio e de Niterói, mas também dos demais municípios que compõem o Estado do Rio de

150 O premiado arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer (1907), cujo centenário foi festejado no Brasil em 2007, desenvolveu vários projetos arquitetônicos que fazem parte do cenário brasileiro e mundial. Dentre eles, a construção de Brasília é um dos mais significativos. Foi do Partido comunista brasileiro de 1945 até 1990. Em sua atuação, sempre esteve envolvido em projetos que de alguma forma contribuíssem para os países nos quais trabalho. Com o golpe militar teve suas oportunidades de trabalho reduzidas. Na expressão de um dos ministros da época, “lugar de arquiteto comunista é em Moscou”, o que fez como que ele se instalasse em Paris em 1967. Uma de suas frases dão a dimensão do homem que Niemeyer é: “Sempre acrescentei nas minhas palestras que não dava à arquitetura maior importância e não havia nada de desprezível nessas palavras. Comparava-a a outras coisas ligadas à vida e ao homem, referia-me à luta política, à colaboração que todos nós devemos à sociedade, aos nossos irmãos mais desfavoráveis. O que se compara à luta por um mundo melhor, sem classes, todos iguais ?” (Oscar Niemeyer, http://www.niemeyer.org.br – acesso em 20/12/2007.)

221

Janeiro. Lado a lado foram convidadas todas as possíveis instituições formadoras de

professores em nível superior. As discussões versaram sobre o que se desejava para a

formação de professores que deveria estar presente na Lei de Diretrizes e Bases que então se

discutia.

Nem era Congresso, mas tomou porte de Congresso. Imagine que até deputados telefonavam aqui para casa pedindo para eu conceder uma inscrição para uma amiga professora. Foram 800 professores! Na véspera houve esse problema na Siderúrgica Nacional, um atentado das forças de direita contra os trabalhadores e uma greve de professores com uma tensão altíssima que parecia pronta a explodir. Imagina a tensão! Muita gente querendo entrar no teatro, a procura e a insistência crescendo e movimentos imprevisíveis, também eclodindo. Violência que era contra os trabalhadores, contra supostamente os comunistas e socialistas, contra o movimento de agregar, era isso. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Outro foco de atuação muito importante para Célia nos anos 80 foi a sua participação

na criação da ANFOPE e da ANPED, cuja intensidade das trocas e debates entre os

organizadores reavivava esperanças e confiança na capacidade associativa. Em outra frente de

atuação, participou a convite da professora Cecília Coimbra, da formação do grupo Tortura

Nunca Mais. 151.

Na Educação, os debates em torno da formação do professor ampliavam-se com as reuniões da SBPC152, SBF153, ABQ154, ANPED155, CBEs e até dispunha de um movimento nacional representado pela CONARCFE156, que em 1990 passou a organizar-se como ANFOPE.” (Célia Linhares, 2000, p. 65)

151 O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. Socialmente, tem assumido um importante compromisso na luta pelos direitos humanos, pelo esclarecimento das circunstâncias de morte e desaparecimento de militantes políticos, pelo resgate da memória histórica, pelo afastamento imediato de cargos públicos das pessoas envolvidas com a tortura, pela formação de uma consciência ética, convicto de que estas são condições indispensáveis na luta hoje contra a impunidade e pela justiça. http://www.torturanuncamais-rj.org.br/sa/default.asp 152 Sociedade Brasileira para o progresso da ciência. 153 Sociedade Brasileira de Física. 154 Associação brasileira de Química. 155 Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação. 156 Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do Educador.

222

A participação nesses espaços mais amplos de discussão e luta pelos direitos humanos

e pela formação de professores trouxe para Célia um sentido maior de pertencimento e maior

capacidade de pronunciar-se, como uma forma de inscrever-se na vida e nas suas histórias.

Quando fui nos anos 70 para ANPED fiquei satisfeita, por ter encontrado lá um fluxo de vida, com uma multiplicidade de grupos e interesses que debatiam, que conflitava e que também, confluíam. Gostei. Senti que a vida estava me fortalecendo com convites de participação, ouvia e compartilhava de conversas. Assisti, por exemplo, observei e admirei Luís Antônio Cunha, de quem já havia escutado um pronunciamento corajoso, conversando solidariamente com pessoas que foram ou ainda eram perseguidas. Na UFF, embora tenha e tivesse muitas pessoas amigáveis, confiáveis, queridas, mas, também, como em todas as instituições, havia pessoas hostis, que eu, de perto ou de longe, já identificava seu comportamento, seu discurso, como alinhados à ditadura. Eu era tão apavorada que nem falava de público sobre minhas experiências anteriores e sobre Rui, meu irmão desaparecido! Quando voltei da Argentina confirmei algumas conversas que havia tido com Jésus e encontrei um grupo que trouxeram uma viva contribuição ao nosso Programa. Lá reencontrei Luis Antônio Cunha que com Nilda Alves, Estela Abreu e Menga Lüdke dinamizaram nosso Programa trazendo debates, realizando eventos, estimulando nossa participação em diferentes espaços. A contribuição de cada um deles, de per si, mas também como um conjunto que entraram juntos, numa época em que a Ditadura enfraquecia, confrontada com movimentos de democratização e com uma crise econômica mundial teve um imenso e um benéfico impacto. Foi uma contribuição muito valorosa. (Célia Linhares, entrevista, 2007)

Célia não se furtou a comentar um episódio marcante nessa década: sua candidatura

para ocupar um cargo político dentro da Universidade e a posterior derrota nas eleições. Ela

conta que sua candidatura foi, vivamente, apoiada, tanto pelos antigos companheiros e

companheiras, como pelos que então entraram e, que, nesta oportunidade já estavam

acrescidos por Gaudêncio Frigotto e por Regina Leita Garcia. Esse fato, comentado por Jésus

de Alvarenga Bastos, Heloisa Villela e Waldeck C. da Silva, dá a dimensão do entusiasmo de

Célia diante de novos desafios e, ao mesmo tempo, de sua capacidade de lidar com os

desapontamentos, de modo a não deixar que estes abalassem sua tenacidade. Assim como no

episódio da defesa de sua tese de livre-docência, quando se sentiu hostilizada, essa foi uma

outra ocasião em que se viu envolta em uma situação de dureza. Parafraseando Guimarães

Rosa, que epigrafa esse texto, a vida “queria coragem”, Célia respondeu a isso.

223

Nos anos 80 eu fui candidata à Direção do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CES). Primeiro, um grupo de peso de colegas me lançou, como candidata ao Conselho de Ensino e Pesquisa. Como tive uma boa votação, ficamos todas e todos animados e aceitei sair como candidata à Direção do Centro de Estudos Sociais. Bem que achei que as forças opostas iam travar nosso lado. Mas achei bacana sonhar conjuntamente com tanta gente boa de quem eu gostava muito e realizar uma gestão que ampliasse a democracia com práticas universitárias que superassem os sectarismos, através de exercícios interdisciplinares. Sonhamos alto. Colegas, estudantes, filhas de estudantes todos e todas de nosso grupo em prestavam seu apóio, com entusiasmo. Lembro, por exemplo, de Ismênia Martins, Jorge Guimarães, Aidyl Preis, que haviam sido candidatos a reitor naqueles dias e que apoiaram nossa candidatura, ativamente. Na Faculdade de Educação, a adesão dos colegas se expressavam de mil maneiras. Lembro de Teresinha Lankenau e da Nilda Alves puxando os números para encerrar uma tômbola que foi promovida pelo nosso Grupo. Mas, se começasse a citá-los, seria um elenco de episódios animadores promovidos por cada um dos professores e estudantes. Cecília Coimbra, Ruth ----, Cláudio Considera também atuaram em espaços que nem cheguei a trabalhar. Mas não posso deixar de recordar como Heloisa Vilella, se fazia acompanhar de sua filhinha caçula, Helga, que rapidamente brincava, com uma fita na cabecinha linda, de ser o mascote da campanha. E nunca vi mascote tão bel! Foi uma empolgação, viajando para Campos, sendo recebida pela Teresa Cristina Calomeni, professora da UFF lá e como Helô, fazia o mestrado sob minha orientação,

Os Colégios Universitários ganharam a possibilidade do voto paritário dos estudantes e os Colégios Universitários votaram com a outra chapa. Enfim, também como uma mulher entendi a dificuldade que teria para ganhar. Muita gente dizia, “ah, à uma mulher... eu tenho medo de dar a direção do CES”. Aqui na Universidade eu ganhei entre os professores, estudantes e funcionários, mas nos colégios universitários eu não ganhei.

Tinha tido tantos sonhos, falava e sentia que Educação. Direito, Serviço Social, Economia e Administração e educação se aproximavam, quando perdi, senti um frio me percorrendo. Queria que o sonho acontecesse, O CES, como uma instância interdisciplinar. Acreditamos juntas e juntos e não foi assim tão fácil esquecer tudo.

Mas depois que fui caindo na real, fui vendo que se ganhasse iria me animar muito para esse lado e minhas conversas, minhas aulas, minha liberdade do dia a dia que tanto prezo como professora. Foi maravilhoso ter vivido inteira essa empolgação com tantas e tantos amigos e, sobretudo, com o apoio de meu marido e filhos. Mas pude também sentir de perto os redemoinhos de que são feitos eeses lugares. Foi uma vacina, uma doce vacina. Nunca mais aceitei concorrer a cargos eletivos. Insistiram muito para eu ser candidata a Diretora da Faculdade, vários candidatos a reitor me convidaram a ser vice e eu não quis. Mergulhei na pesquisa... (Célia Linhares, entrevista, 2007).

É interessante tomarmos conhecimento de um episódio como este que envolveu

diferentes instâncias e pessoas e com isso ter, ainda, a oportunidade de conhecê-los a partir de

pontos de vista distintos, como os dos entrevistados nessa tese. Podemos assim, não só

ampliar a compreensão sobre as formas com que Célia foi construindo seu percurso e

enfrentou dilemas e percalços (e com que idéias sustentou suas posições e se recompôs nesses

224

momentos), mas também compreendermos os meandros da vida institucional e como são

percebidos pelos sujeitos que dela fazem parte. Amplia assim nossa capacidade de visão sobre

o fato.

Ainda sobre os anos 80, Célia destaca o lançamento do livro “A escola e seus

profissionais”, obra marcante em sua bibliografia que reúne as idéias que ela foi consolidando

ao longo de sua trajetória. Sente que vai ganhando mais visibilidade e reconhecimento. Firma-

se num lugar construído passo a passo.

No próximo item, apresentamos as principais idéias de algumas das obras que Célia

escreveu nessa década.

3.3 Trilhas do pensamento pedagógico ...

Boa parte das produções textuais dessa época estão ligadas, de alguma forma, a seus

estudos de doutoramento em que as questões da América Latina passaram a ter para Célia,

com suas múltiplas conexões. O foco no fortalecimento da identidade cultural, na crítica a

uma mentalidade colonizada de desapreço à própria cultura e na própria noção de “latino-

americanidade” perpassava essa produção.

Período de intensa produção escrita, tendo em vista não apenas as muitas parcerias

que estabelece e afina, mas também o incremento de sua atividade como pesquisadora e a

necessária e desejada divulgação das pesquisas em andamento.

No primeiro artigo, “Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina”,

escrito em 1981, Célia trata das correspondências e limites entre a realidade e a imaginação,

indagando até onde a humanidade pode se mover para fazer do mundo que temos o mundo

que queremos.

Nestes percursos, aborda, dentre outras, a questão da imaginação e sua vinculação com

a ciência, defendendo a idéia da imaginação como um processo criador, inseparável da

realidade, mas também um instrumento para sua separação, capaz de forjar novas

possibilidades para a educação. Resgata a idéia de utopia, como um caminho ainda não

percorrido, ignoto mas fecundo, para a construção de futuros possíveis. Critica as ideologias e

idéias fantasiosas que, não só oprimem a educação,mas a distraem, impedindo que se

desenvolvam processos mais conectados com as possibilidades concretas da educação escolar,

em sintonia com as demandas dos distintos grupos sociais que a demandam.

No segundo artigo, “A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/

Falklands”, escrito em 1982, Célia discute a questão do dogmatismo da ciência e de seu

225

correspondente pedagógico, o autoritarismo docente. Entende que essas duas expressões

desvirtuam ciência e docência de seu papel e função principal. Ao impor uma verdade

inquestionável, como um dogma científico, trai o princípio de provisoriedade dos

conhecimentos sobre o mundo, típico da ciência. O autoritarismo docente impediria ao aluno

a vivência do processo reflexivo autônomo, traindo assim, também, a função do professor de

exercer uma autoridade cujo propósito precisa estar conectado ao desenvolvimento de um

sujeito crítico, capaz de refletir por conta própria.

A partir dessas idéias, Célia analisa a atuação da escola Argentina na questão da crise

das Malvinas, sublinhando o caráter de inculcação ideológica que a escola assumiu na

ocasião, forjando um ideário patriótico e plantando dogmas de alta densidade afetiva,

orientados pelos ideais das classes dominantes e dos interesses imediatistas dos ocupantes

arbitrários do poder. Célia confronta assim os aspectos históricos que levaram a crise das

Malvinas/Falklands, com questionamentos sobre o papel desempenhado pela escola diante de

tal fato, relacionando educação e sociedade. Fecha o texto ressaltando sua esperança numa

escola que assuma seu papel formativo, crítico, desenvolvendo ações que contribuam para a

formação de sujeitos críticos e autônomos, cujo conhecimento da ciência inclua movimentos

permanentes com que possam se aproximar da realidade, ajudando a superá-la.

O terceiro artigo “A educação e suas relações com as identidades culturais na América

Latina”, em 1983, discute a relação entre a Identidade Cultural (IC) oficial e a Identidade

Cultural oficiosa na América Latina e como as relações entre ambas repercutem no processo

educativo. Ressalta as relações de imposição da primeira sobre a segunda, considerando

também a possibilidade de resistência. Sublinha o papel da escola como inculcaldora de

valores alinhados com a IC oficial e elitista e a possibilidade de, paradoxalmente, poder

contribuir para a transformação social via apropriação do saber por parte dos segmentos

populares.

O quarto texto é a sua tese de doutorado “La identidad cultural y el proceso de

educación em la América Latina”, concluída em 1983. Nesse trabalho Célia põe em foco as

relações entre a identidade cultural latino-americana e o sistema educativo, percebendo as

influências entre essas duas instâncias e fazendo a crítica a um sistema educativo que não se

baseia na estrutura cultural e vital de seu país.

No quinto texto, o artigo “A interdisciplinariedade na psicopedagogia” publicado em

1986, Célia defende um conceito de interdisciplinaridade na psicopedagogia que se paute na

articulação entre os fenômenos psicológicos em cumplicidade com a dinâmica das relações

226

sociais, políticas, econômicas e culturais. Critica concepções que fragmentam o sujeito e a

visão da escola, e afirma a urgência epistemológica e ética que tal questão enseja.

“Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e divergências” é o sexto

texto. Editado em 1987, tem como foco a reflexão sobre a convergência dos diferentes atores

escolares em prol de uma transformação pedagógica. Nesse sentido, mais importante do que

as diferentes funções que ocupam os sujeitos é a construção de um projeto coletivo, para uma

escola com e para o povo.

O livro “A Escola e seus profissionais: Tradições e Contradições” publicado, em 1989

é composto de textos produzidos para diferentes encontros em que Célia participou,

realizados ao longo dos anos 80. Versam sobre a questão da formação e atuação dos

profissionais da educação escolar. Trata-se de um livro muito significativo no conjunto de

obras de Célia, sistematizando suas principais concepções pedagógicas.

É dividido em cinco capítulos. No primeiro, “Quem é esse, o pedagogo?”, escrito em

1984, Célia discute a formação desse profissional, incluindo a dimensão sociológica,

epistemológica e pedagógica. Defende para esse pedagogo uma sólida formação científica e

humana, enraizada na compreensão do contexto social em que vivemos, condição

fundamental para que esse profissional contribua para uma formação mais humana. O

segundo capítulo, “Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e

divergências”, escrito em 1985, discute o desafio de não fragmentar do trabalho escolar,

diante das diferentes funções e especializações dos profissionais da escola. Compreende a

necessidade de unidade e integração dos esforços, com vistas a contribuir para uma escola que

trabalhe a favor da emancipação das camadas populares do Brasil.

“Da educação à intelectualidade pedagógica: trajetória na formação do pedagogo” é

o terceiro capítulo, escrito em 1986. Partindo do conceito de pedagogo como aquele que tem a

capacidade de impregnar de sentido, construído coletivamente, suas atividades educacionais,

Célia defende o intelectual pedagógico como aquele que compreende o contexto social em

que atua, comprometendo-se com uma escola cidadã, não excludente. O quarto capítulo,

“Repensando a escola normal em tempo de constituinte”, defende a gratuidade em todos os

níveis de formação, uma vez que o saber é um direito do homem e que, um cidadão bem

formado traz benefícios mais amplos para a sociedade. Célia acredita também que é dever do

Estado financiar a formação do professor da escola básica na modalidade Normal, tendo em

vista a realidade do país.

O quinto e último capítulo, “A formação dos profissionais da escola: recorrências e

controvérsias” tem como objetivo estudar diferentes compromissos relativos à formação do

227

pedagogo, localizando as polêmicas da época sobre a formação dos profissionais da escola,

entendendo-as como expressões das contradições enfrentadas e lacunas que marcam, não só

essa categoria profissional, mas a própria sociedade brasileira.

No conjunto dessas obras, podemos reconhecer a força que a questão da Identidade

cultural ganha em suas análises. Os textos revelam uma pensadora que não se limita a olhar

apenas em uma direção, mas ousa refletir sobre temas variados, concernentes a escola e a

educação, ressaltando aí as questões políticas em suas relações com a cultura, a escola e a

epistemologia. Fortalece a sua defesa da escola pública, como um dever do Estado e como

um espaço de afirmação do sujeito, em que autonomia e criticidade são perspectivas sempre

presentes.

Desta maneira, relações múltiplas que concorrem no fenômeno educativo, ora com a

superposição, ora com a articulação de dimensões sociais, econômicas, culturais são

mencionadas em todas as suas reflexões, expressando um olhar que procura integrar mais e

mais instâncias e dimensões. O resgate cultural, da própria história, dos saberes do povo,

orienta sua confiança nos enraizamentos da experiência que precisa, necessariamente,

alimentar-se do passado para projetar futuros possíveis. Idéia que passa a habitar

definitivamente suas obras.

Em seus textos Célia abraça, cada vez com mais intensidade, temas tais como: o

reconhecimento dos saberes dos sujeitos e da vida como fonte de saberes; a crítica às

tendências dogmáticas e autoritárias que se impõem na escola e na sociedade; sua visão de

ciência em sua construção incessante, na busca de conhecimentos e de ultrapassagens de

limites, ressaltando a relatividade da verdade e suas conexões com cada época histórica e,

sobretudo nos movimentos sociais, populares.

Vejamos agora, um por um dos textos apresentados.

3.3.1 Pensamento utópico e fantasias da educação na América Latina (1981)

Neste artigo, publicado na Revista del Instituto de Investigaciones Educativas, Célia

Linhares tem como objetivo principal discutir como a realidade vai sempre sendo recriada,

não se congelando nunca em fatos e atos que dominaram a cena da ciência moderna. Por isso,

indaga desde o início, “quais são os limites entre a imaginação e a realidade?”

Continuando, Célia propõe repensar a ciência para entender a presença da imaginação

no processo científico e na prática educativa na América Latina.

228

Para tanto, ela estabelece primeiramente uma distinção entre a imaginação reprodutora

e a imaginação criativa e afirma que na imaginação reprodutora existe um predomínio dos

estereótipos aceitos pela sociedade. Isso se deve, segundo a autora, ao predomínio da

transmissão conformista cultura, que a massifica de forma reprodutora. Já a imaginação

criadora permite uma liberdade para as construções imaginárias, que perpassam e dialogam

com as ações sociais, possibilitando processos de invenção, que vão rompendo com o até o

momento era conservado e praticado culturalmente, permitindo que novas relações surjam,

sempre em movimentos de criação e re-criação.

De acordo com Célia “os processos imaginários estão cheios de relatividade. Um

mesmo feito pode ocasionar distintas imagens geradas por pessoas com diferentes ‘back

grounds’ culturais ou segundo os valores pessoais com que os mesmos feitos são

observados” (p.32).

Em relação aos dogmas produzidos pela ciência na educação, Célia afirma que estes

produzem uma alienação individual e coletiva, contribuindo para um travamento humano,

com graves impossibilidades de decidir e lançar-se na elaboração e enfrentamentos da vida e

de sua expansão permanente. Tal alienação gera, senão uma incapacidade de reflexão, pelo

menos um estreitamento desses processos, refletindo-se na qualidade das análises e relações

com as informações científicas, desencadeando uma dificuldade, tanto por parte do educador

quanto do educando, para os exercícios das aprendizagens escolares e das escolhas e

construção dos caminhos de sua vida.

Procurando entender a importância da imaginação, Célia faz um resgate histórico da

sua instauração desde a modernidade, por Descartes, até a nossa contemporaneidade. Cita a

mediação entre as modalidades sensíveis e abstratas do conhecimento, a emancipação do

homem do domínio dos fatos e dos limites das aparências e o oferecimento do prazer à

existência humana através do exercício criador.

A ampliação da atividade imaginativa compreende desde sonhos e fantasias até o

pensamento simbólico e utópico.

Neste texto Célia trabalha, principalmente, com as noções de fantasias e de pensamento

utópico, procurando distingui-los. Ela afirma que “o pensamento utópico é utilizado para se

referir ao uso intencional e consciente da atividade imaginativa de uma maneira que com ele

se possa organizar ações, projetos, com a finalidade de explorar as possibilidades do

presente em projeções futuras, passíveis de concretização ao envolver tanto os aspectos

pessoais como os sociais. Por outra parte, a fantasia se refere à atividade imaginativa

espontânea, sem o controle de uma intencionalidade consciente” (p39).

229

Célia analisa também a importância da atividade imaginativa para a investigação

científica, ou seja, para a produção do conhecimento. Para ela, a atividade imaginativa

funciona como uma veia por onde circula o sangue das possibilidades, o germe de novas

formas de conhecimento, altamente estimulador da curiosidade humana. A imaginação

ofereceu ao homem meios de responder aos riscos que o ameaçavam, dilatando as

possibilidades de sobrevivência e de vida, mas também o prazer e o encantamento

indispensáveis para o surgimento e o exercício das ciências, das artes, das técnicas.

Célia nos alerta para o fato de que no setor educativo as novidades teóricas demoram

muito para se entranharem nos processos de ensino e aprendizagem, enquanto que, na área

das ciências exatas e tecnológicas, as descobertas são absorvidas pelos processos de formação

mais rapidamente. Por tudo isso, ela conclui que as relações entre ciência e educação têm

muito que caminhar.

Neste texto, Célia procura discutir, também algumas variáveis histórico-culturais,

presentes no nascimento da nossa nação, que estimularam o emprego enfático de explorações

fantasiosas, traduzidas em promessas grandiosas que pareciam compensar os vazios e as

ausências de instituições. Assim, alguns pensadores, como Anísio Teixeira já identificaram

poderosos abismos entre os valores declarados e a prática educacional.

Portanto é preciso por em prática uma avaliação processual. Nesse sentido, os planos

educativos são tanto mais fantasiosos quanto mais distantes estão da sua realização efetiva.

Para Célia, uma das maneiras de diminuir a esperança de um povo na educação é impondo

metas suficientemente grandiosas para que o esforço por alcançá-las conduza inevitavelmente

à frustração. Por isso, pensa que a proposição de objetivos mais honestamente modestos e

abertos poderia levar a obtenção e a superação das metas desejadas, recompensando os

esforços com a aproximação dos portos demarcados, para novos arranjos e avanços.

Em relação ao poder dos métodos educativos, acredita-se que eles sejam a chave para

eficácia do ensino. Mas, por trás dessa supervalorização dos métodos está a fantasia de uma

educação que insiste em distanciar-se de seus sujeitos e a desvalorizá-los. Para Célia, “os

métodos são tanto mais eficazes na medida em que respondem às necessidades do educador e

do educando, em suas realidades históricas. Porém, a América Latina em vez de encontrar

nos novos métodos uma forma de progresso e libertação, assume uma nova forma de

colonialismo: o colonialismo tecnológico” (p.50).

Já a fantasia da imprescindibilidade dos conteúdos educativos diz respeito à imposição

dos mesmos conteúdos tomados como padrão, às populações geográfica e culturalmente

distintas. Os interesses das comunidades minoritárias em poder não são levados em conta.

230

Neste artigo, Célia dialoga com seu tempo, desmistificando a idéia da supremacia da

ciência, habitando um mundo invulnerável aos erros, e em correspondência com um mundo

que correspondia a sua apreensão unívoca pelo intelecto e, assim descolada das ciladas da

vida e das ambivalências da imaginação. Assim, reconhecendo o processo imaginativo como

eminentemente humano, Célia sublinha a necessidade de uma imaginação criadora, capaz de

forjar indivíduos e sociedades críticas, capazes de propor e negociar suas próprias escolhas.

Por outro lado, Célia resgata a idéia de utopia na educação, compreendendo-a como a

possibilidade humana de, a partir das possibilidades do presente, imaginar outras realidades,

num processo orientado e consciente, com projeções para o futuro. Utopia resgatada como

ação construtiva de desejar e criar.

3.3.2 A atuação da escola na fermentação da crise Malvinas/ Falklands (1982)

Publicado em 1982, na Revista da Faculdade de Educação da UFF, nesse artigo Célia

Linhares discute o importante papel exercido pela escola durante a crise Malvinas/Falklands

para garantir a soberania da Argentina sobre o arquipélago.

Para introduzir o tema, conceitua o dogmatismo científico e, o que seria seu

correspondente pedagógico, o autoritarismo docente. Compreendendo a ciência em seu

genuíno movimento de superação contínua de aproximações do fenômeno, ampliação

permanente de campos de verdade e aceitação provisória das explicações sobre a vida (p.67),

a postura dogmática estaria em dissonância com tal perspectiva. Com relação ao processo

escolar, o autoritarismo docente impediria a própria ação do aluno de auto conhecer-se e

conhecer o mundo de forma autônoma.

Para Célia, “ensinar uma verdade científica significa assumir uma postura

fundamentalmente oposta a defender um dogma científico” (p.67). Para ela, o processo

escolar se torna ilegítimo quando a escola procura veicular dados e “fantasias” que ocultam a

realidade. Célia nos alerta também, para o fato de que a autoridade docente perde sua

especificidade quando atua impondo pré-conceitos e pré-juízos que levam os alunos a auto

estranharem-se como ser humano, promovendo a paralisia de sua reflexão, como ação e

pensamento.

Célia vê a questão do autoritarismo docente na América Latina a partir de dois enfoques

principais: Primeiro, revelando-nos que as relações de poder, estruturadoras da ordem social,

são estabelecidas por uma elite elaboradora das normas de convivência que seleciona e

distribui o saber e os bens materiais. Para Célia, “essa elite, no que diz respeito ao saber,

231

transfere à escola, como instituição e às professoras, a tarefa de difundir as normas por ela

estabelecidas” (p.68); Segundo, nos despertando para o fato de que as nações latino-

americanas pouco têm investido em programas científico-tecnológicos, por todas as

subalternizações concretizadas. A escola fica longe das ciências e dos impactos de uma

elaboração mais comprometida com nossa realidade.

Visando exemplificar melhor o autoritarismo docente na América Latina, Célia utiliza

o episódio ocorrido no Malvinas/Falklands, recuperando uma conjuntura histórica em que se

deu a crise. De acordo com os aspectos históricos abordados por Célia, percebe-se que as

Ilhas Malvinas sempre constituíram um território muito disputado, principalmente, pela

Argentina e Inglaterra, ambas visando manter a sua hegemonia sobre a região através,

sobretudo, de negociações diplomáticas.

Diante deste contexto, Célia procura nos mostrar como a Argentina manteve a sua

soberania sobre as Malvinas e como a escola acompanhou todo esses trâmites, plantando no

alunado dogmas de alta densidade afetiva, nas diferentes etapas de escolaridade, entrelaçando-

se em graves momentos políticos com atuações de caráter totalitário. Entre suas principais

formas de atuação, pode-se citar: Os ensinamentos escolares que enfatizavam o envolvimento

dos cidadãos na reconquista e na defesa das Malvinas; seus reforços aos meios de

comunicação que veiculavam planos e estratégias militares para retomada do arquipélago e,

além disso, a atuação da escola que enviava cartas dos alunos para os soldados com o intuito

de conscientizá-los da função patriótica que exerciam ao defenderem, sobre quaisquer

circunstâncias, os territórios insulares.

Devido aos aspectos abordados pode-se dizer que Célia imprime uma certa

originalidade a este texto ao confrontar os aspectos históricos que levaram a crise das

Malvinas/Falklands com questionamentos que nos instigam a refletir sobre o papel

desempenhado pela escola diante de tal fato, ampliando a reflexão sobre as interconexões

entre educação e sociedade e vendo de forma crítica o papel do professor e da instituição

escolares as terríveis conseqüência de seu submetimento cego a qualquer instância que se faça

controladora, tal como aconteceu com a Igreja, com o Estado e como vai acontecendo com a

dominação do mercado.

Seu texto possui caráter formativo, informativo e conscientizador que busca revelar as

questões pedagógicas que estão por trás de determinados fatos históricos e sociais. Tudo isso

é tratado por Célia, a partir de um universo vocabular bastante rico, amplo e original, cujos

termos e expressões mais comuns são: unicidade, alunado, custodiar, acalentar.

232

A esperança no papel formativo da escola é ressaltada. A aposta de que os

conhecimentos das dimensões históricos favoreça a uma contextualização do vivido é mais

uma vez afirmada.

3.3.3 A educação e suas relações com as Identidades Culturais na América Latina (1983).

Neste artigo, publicado na Revista da Faculdade de Educação da UFF em 1983, Célia

Linhares aborda os abismos entre a Identidade Cultural oficial e as Identidades Culturais

oficiosas na América Latina e, as relações entre ambas e sua repercussão no processo

educativo.

De acordo com Célia, as instituições oficiais utilizam variados instrumentos para nos

impor determinadas marcas em cada cultura. O grau dessa imposição, no entanto, pode ser

mais ou menos intenso conforme a representatividade de cada sub cultura na estrutura de

governo assumida pelo Estado e de sua força como movimento social. Porém, Célia ressalta

que qualquer que seja o nível das imposições, é possível constituir grupos de resistência que

não a aceitam.

Nesse processo de relações hegemônicas o Estado utiliza-se da instituição escolar para

reforçar a Identidade Cultural oficial. Para Célia “dado ao seu caráter contraditório, a

educação ao transmitir valores, parâmetros, modelos e informações possibilita várias

combinações e arranjos de conduta, ou seja, distintas formas de organização – até aquelas

interpretáveis como desorganização” (p. 126).

Célia nos ajuda afirmando que a expressão “Identidade Cultural” tem sofrido várias

distorções que acabam por retirar-lhe sua especificidade, isto é, o caráter polissêmico que tal

termo carrega.

De acordo com a autora a Identidade Cultural não nos remete a um passado longínquo

e isolado do presente, ela reflete aquilo que acontece em um determinado tempo.

Partindo do pressuposto de que nada existe sem uma identidade que o caracterize,

Célia nos mostra que o processo educativo também possui uma identidade, na medida em que

garante a continuidade de um determinado tipo de sociedade, mas que os processos de

identidade também são feitos de contradições.

A partir do significado dos termos “identidade” e ‘cultura’, Célia chega a uma

definição para a expressão Identidade Cultural. Entendendo-a “como a estrutura de expressão

de cada grupo social, através da qual, ela manifesta suas diferentes cosmovisões e modos de

233

relacionar-se com a vida, tendendo a satisfazer – cada vez mais completamente os distintos

aspectos de suas necessidades, na busca de um sentido para sua existência” (p. 130).

Fazendo relações entre a Identidade Cultural oficial (imposta) e as Identidades

Culturais oficiosas (submetidas) Célia não fica, em nenhum momento, indiferente às enormes

desigualdades, pois “numa sociedade em que 25 % da população é analfabeta, e onde a

legislação encontra na forma escrita sua maneira mais usual de divulgação, há um evidente

conflito entre o exigido pela lei e as reais possibilidades de um amplo segmento da

população” (p.131).

Célia admite que, embora em alguns momentos a Identidade Cultural oficial e a oficiosa

possam parecer separadas, em outros, elas se interpenetram. Cabe ressaltar que a duplicidade

de Identidades Culturais, tal como a vivemos hoje, remonta à conquista da América Latina

quando uma nova cultura se sobrepôs às originárias.

Deste modo, nos alerta, também, para o fato de que a escola, modelada pela

Identidade Cultural oficial, atua distribuindo um saber classificatório que não se fundamenta

nem nos direitos, nem nas diferenças individuais e nem nos talentos pessoais e, sim, na

posição ocupada por cada um na pirâmide social, a despeito do que tanto a pedagogia

meritocrática anuncia e proclama.

Partindo de uma inconformidade com esse tipo de cultura desigual, Célia não aceita

uma escolarização que trancafie as aprendizagens escolares num corredor por onde são

reforçadas as reproduções de uma sociedade concentradora, mas afirma que importa que o

aprender leitura e escrita se possibilite saberes como ações, “onde as classes discriminadas

terão a oportunidade de ler e escrever sobre suas próprias possibilidades de realização,

apropriando-se de diferentes instrumentos que a cultura contemporânea lhes oferece para

seu auto-conhecimento, sua auto- transformação e sua auto-definição” (p. 133).

Através de um estudo sobre os diversos aspectos pedagógicos presente no processo

educativo de variados países da América Latina, Célia nos sublinha modalidades que

expressam como nossa Identidade Cultural oficial age modelando e penetrando em nossas

estruturas produtivas, econômicas, escolares, etc.

Afirma que, ainda que existam barreiras entre a Identidade cultural oficial e as

Identidades Culturais oficiosas, elas não são intransponíveis. Para ela, a Escola Pública pode

ajudar nesse sentido. Para tanto ela precisa ser “capaz de veicular um saber que retrate e

interesse aos nossos diferentes grupos, particularizando-os pelo seu auto-conhecimento e

auto-crítica, possibilitando uma articulação de ida-e-volta, onde o entendimento do nosso

possa nos introduzir ao universal e nos levar a contribuir a ele” (p.140).

234

Vale ressaltar que, neste texto, Célia dialoga com seu tempo apontando aspectos sociais,

culturais e escolares de um estudo realizado em vários países latino-americanos. Célia

acredita no poder da educação de “abrir picadas” nas barreiras existentes entre as Identidades

Culturais oficiais e oficiosas. Este assunto é tratado por Célia de uma maneira bastante

peculiar utilizando-se de um estilo textual próprio para trabalhar a relação existente entre

essas Identidades Culturais e a educação. Em relação ao universo vocabular de Célia, é

possível destacar os seguintes termos: assenhorar, interstícios, alunado, animosidade,

brechas, custodiar, grupais e sinistralidade. Tais termos são utilizados, principalmente, para

revelar aspectos da realidade social e do ambiente escolar.

3.3.4 La identidad cultural y el processo de educacion en la América Latina – tesis de Doctorado em Ciências de la Educación, Universidad Nacional de Buenos Aires (1983).

As questões que Célia aborda em sua tese de doutorado orientaram muito de sua

pesquisa na década de 80. O objetivo principal dessa tese foi discutir a Identidade cultural

(IC) latino-americana e o caldo de fraturas, como formas de opressões e submissões que a

forjaram, bem como as influências da IC nos rumos desenvolvimento educativo que foi nos

separando por hierarquias e desigualdades que se acumularam.

A falta de atenção, de consciência da identidade cultural latino-americana é para Célia

um dos aspectos que dificultam o desenvolvimento educativo, científico e social da América

Latina. O processo educativo copia os modelos estrangeiros.

Reportando-se à história da constituição de nosso país, dominado e gerido pelos

conquistadores/colonizadores, Célia reflete sobre os valores auto-depreciativos que vão sendo

inculcados via educação ao povo brasileiro. Ser negro, índio, pobre, mestiço é ser menos

valioso, menos importante, é estar fadado a posições sociais de subalternidade. Reconhece

também as estratégias políticas com vistas a facilitar a exploração material e humana

utilizadas no processo de formação religiosa do Brasil-colônia.

Nesta direção, a tese analisa as relações entre a identidade cultural latino-americana e o

sistema educativo, percebendo as influências entre essas duas instâncias. Célia acredita que

um sistema educativo que não se harmoniza como a estrutura vital de seu país enquanto

natureza e com os processos culturais, constitui-se em um processo imposto, uma ordem

artificial que ao fim e ao cabo não resulta em benefício para nenhum dos componentes da

sociedade.

235

Para explorar esse assunto, Célia levanta distintas ordens de questionamentos de ordem

filosófica, pedagógica e sociológica: Indaga-se sobre ao funcionamento das estruturas

escolares de nosso país e das pretensões das mesmas; sobre os grupos étnicos e as classes

sociais que tem acesso à escola e em que medida é garantida a permanência nelas; sobre as

populações (entre rurais e urbanas) que têm maiores possibilidades de uma preparação

profissional; sobre como as classes interdependem do mundo do trabalho e da economia e do

mundo da educação e da escola em nossa região; sobre a linguagem usada pela esfera escolar

e uma série de outras questões. Para Célia a estrutura escolar latino-americana não reflete nem

contribui para a busca e elaboração da identidade cultural de nossos povos. A partir da

reflexão sobre esse problema, faz algumas sugestões e recomendações como tentativa de

busca de solução para o problema da formação da identidade cultural.

Célia define Identidade cultural como tudo aquilo que constitui a peculiaridade de um

povo, expressos pela linguagem. Toma a linguagem de modo mais amplo, onde a língua é

uma das expressões da cultura. Propõe também a consideração dos valores universais que se

expressam de diferentes formas nas diferentes culturas e sub-culturas próprias de cada grupo

social, como o belo, a justiça e etc.

Célia considera a vida, a realidade em seu sentido mais amplo, como a fonte de todos os

saberes e a maneira como os elaboramos indispensável para uma melhor educação que possa

aspirar embeber-se na cultura, em movimento permanentes de crítica e ampliação.Por isso

mesmo, valoriza os saberes populares, reconhecendo interdependências entre a Identidade

Cultural e os saberes de um povo, com suas lógicas e formas específicas de legitimação.

Acredita que por não termos consciência de quem somos, como grupo humano nacional

e regional, bem como do que necessitamos, tomamos como referência as descobertas e

conceitos da ciência e da tecnologia sem nos advertirmos dos sérios prejuízos econômicos e

psicológicos que tal atitude acarreta a nossa gente. Afirma que a falta de uma ciência e

tecnologia endógenas, focadas na identidade cultural de um povo, gera uma produção de

saberes desvinculada das necessidades e gostos populares, que o agride de forma sutil, mas

extremamente violenta e perversa.

Afirma, também, que a defasagem entre a criação e a cultura pode ampliar-se quando

as técnicas que são construídas para responder a um contexto específico são transportadas e

usadas em outro que é distinto. A transferência de modelos de desenvolvimento serviria para

agravar nossos velhos problemas e desenvolver idiossincrasias nocivas ao desenvolvimento

de nossa identidade cultural, que a fratura, produzindo vantagens para aqueles que as

propõem, gerenciam e defendem.

236

Para que os rumos tomados pela educação garantam uma indispensável coesão social e

algum grau de felicidade pessoal há que responder às necessidades e aos valores encarnados

pelos subgrupos, constituintes da identidade cultural de um povo. Portanto as metas

educativas são intransferíveis e hão de ser o resultado de um processo de descobrimento e

elaboração do que é um povo, do que quer ser e do que pode realizar. A identidade cultural

deverá representar todos os grupos que constituem a sociedade e sua tradução oficial deverá

manter-se no contato com sua fonte: as necessidades, desejos e valores de seu povo. Sem isso,

sobrevirá a resistência e ressentimento contra versões e práticas falseadoras dessas definições

sociais e populares.

Analisa os processos de colonização da América Latina, identificando as influências

dos países colonizadores e suas culturas. A definição do que devemos produzir através do

interesse estrangeiro pertence a mais arraigada tradição conformista na América Latina. Estes

são portanto aspectos que tem mantido sujeitada a evolução cultural de nosso povo em relação

a seus próprios interesses, afirma Célia.

A partir de um estudo meticuloso da constituição dos países Latino Americanos, pela

reflexão das condições de colonização que perduram garroteando o pensamento como ações

coletivas e, portanto, com larga potência educadora, a tese de Célia, em última análise, lança

um olhar sobre a formação de nossa identidade cultural, propondo que para pensarmos uma

educação a serviço de todos é preciso nos conhecermos melhor, compreendermos tendências

opostas e elaborarmos sistemas de educação que não temam conflitos ao acolher e discutir as

reais necessidades da população.

3.3.5 A Interdisciplinaridade na Psicopedagogia (1986).

Este artigo foi publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade

Federal Fluminense, em 1986. Nesse texto, Célia contrapõe-se a uma concepção de equipe

multidisciplinar que fragmenta os elementos em partes estanques, ao estilo taylorista,

organizando o trabalho a partir da justa posição de especialistas que garantam a eficiência da

produção.

Para a autora, o conceito de interdisciplinaridade que precisa orientar a composição das

equipes interdisciplinares das escolas, não pode evadir-se de um compromisso com a

totalidade do fenômeno, que no caso das ciências humanas é a própria sociedade, se

revestindo de aspectos éticos que se endereçam a uma intervenção transformadora.

237

Nesse sentido, enfatiza a possível contribuição de uma Psicopedagogia que se oriente

por essa concepção como uma contribuição política capaz de ressoar nas condições de

aprendizagem e de vida de todos os estudantes, principalmente, os das classes populares.

Analisa a importância de considerarmos o contexto social para compreendermos as

dificuldades escolares das classes subalternas, forjando metodologias que qualifiquem e

valorizem a maneira própria de conhecer dos estudantes das classes populares.

Para tanto, é preciso que a escola brasileira conheça melhor as diferentes formas de ver

o mundo e relacionar-se com a vida dos segmentos mais pobres de nossa sociedade, bem

como os aspectos sociais e culturais que afastam as crianças da escola. Célia critica a

atribuição das dificuldades escolares, que podem ser explicadas por todo um contexto, às

debilidades patológicas, despolitizando e separando os fatores sociais que contribuíram para

sua geração e desenvolvimento.

Nesse sentido, a psicopedagogia só poderá contribuir para as populações de estudantes

que penetram nossas escolas sem aprender, se articular os fenômenos psicológicos em

cumplicidade com a dinâmica das relações sociais, políticas, econômicas e culturais, ou seja,

com o todo do processo contraditório e conflitante com que se fazem as sociedades,

instigando o entendimento e a intervenção. Urgência que Célia considera epistemológica,

política e ética.

3.3.6 Os protagonistas da Pedagogia Escolar: Suas convergências e divergências (1987)

Nesse artigo publicado na Revista Educação & Sociedade, em 1987, Célia enfatiza o

papel dos diferentes atores escolares para a transformação pedagógica. Os protagonistas da

pedagogia escolar participam como os demais profissionais ao confirmarem ou transformarem

os seus papéis nesse jogo social, que define a hegemonia política.

Ao questionar quem são os protagonistas da pedagogia escolar, é preciso saber que tipo

de sociedade desejamos, para implementar ações que correspondam à escola que

necessitamos, como um dos pontos de sustentação dessa marcha transformadora.

Os professores, com o trabalho considerado o mais exigente em termos de esforços,

nem sempre obtém o reconhecimento que conseguem o diretor, o orientador e o supervisor.

Ao definir os protagonistas na escola, podemos classificar em duas posições: a da

homogeneização das funções e da hiperespecialização das tarefas pedagógicas.

238

Ao homogeneizar os professores, não nos damos conta que existem diversos níveis de

preparação profissional entre estes, que vai desde o que não tem o curso primário completo

até os que têm doutorado. Já na questão da hiperespecialização é possível percebermos não só

a fragmentação do processo educacional, mas a sua tecnificação, que ao especificar as tarefas,

distancia-as uma das outras, além de reduzir o exercício profissional apenas ao cumprimento

de deveres.

O pedagogo escolar, antes de ser orientador, supervisor ou administrador, atuando

profissionalmente, deve ser considerado como um cidadão e participar de atividades que vão

repercutindo em sua forma de encaminhar o processo de aprendizagem, vigiar a sua

correspondência às exigências da ciência e promover sua adequação às necessidades e

expectativas sociais e políticas das maiorias. Esse ator escolar é um intelectual que colabora

com a organização de sua cultura através do seu trabalho dentro e fora da escola.

É preciso atentar para que lado os profissionais da educação vão protagonizar a

pedagogia escolar: para transformação pedagógica, com conseqüências sociais e políticas ou

para o continuísmo?

Nesse sentido, uma prática transformadora precisa integrar os diversos protagonistas

escolares que, embora tenham formações e atribuições distintas, podem e devem cooperar na

construção de um projeto coletivo de escola popular.

3.3.7 A escola e seus profissionais: tradições e contradições (1988, 1997)

O texto que se segue baseia-se na 2ª edição revista e atualizada feita pela autora.

Na apresentação, Célia esclarece seu título: Tradições e contradições. Afirma que uma

das faces da tradição escolar privilegia a escola como lugar para poucos, os ricos e as

chamadas classes intermediárias da sociedade, difundindo vulgarmente a idéia de que

fracasso escolar dos pobres é algo natural, bem como de que a educação escolar, em sua

complexidade maior, não lhes tem serventia. A autora afirma que a exclusão das camadas

populares das escolas vem sendo determinada concreta e historicamente pelos interesses

concentradores de bens e capitais que ainda dominam nossa sociedade, decorrentes de uma

intrincada rede de relações sociais, em permanente elaboração nas diferentes épocas.

A contradição presente na escola é, que se por um lado ampliaram-se as

oportunidades escolares, as escolas por sua vez, não atendem aos reais interesses das classes

239

populares, tendo em vista seus objetivos elitistas. Assim, o que temos é um ensino de

qualidade para alguns e ensino de faz-de-conta para a maioria.

Célia se reporta às contradições presentes na escola, tendo em vista que, se por um

lado a escola pública, como instituição oficial é dirigida pelo governo, representando a classe

dirigente que lhe impõe funções, demarca salários, autoriza programas, por outro, os

profissionais da escola não se dissolvem na obediência cega a essas delimitações e exercem

seu trabalho profissional a partir de uma articulação com a vivência de sua cidadania, assim

como os alunos das classes populares, como maioria que são, representam uma força da maior

importância. Poder dominante e poder latente configura a contradição que ela propõe ser

analisada.

A face hegemônica difundida pela tradição oficial, acumulou teorias e estratégias de

ensino em correspondência a uma concepção de sociedade favorável a sua permanência,

divulgando-a como a única correta para a realização do processo de ensino-aprendizagem.

Aquilo que é tido como o “verdadeiro”, o “certo”, promove a repetição, subtraindo os

movimentos inovadores do presente. Flagrar as contradições é importante pois ajuda a

promover rupturas para construir-se uma pedagogia “capaz de abrigar e promover práticas e

teorias sociais que encaminhem a emancipação da sociedade brasileira”.

“A tradição de nossa escola está grávida de contradições que contém germes de

continuidade como as sementes da transformação”.

Nesse período de transição democrática, a problemática da formação do profissional

da escola deve ter um espaço privilegiado de discussão dentro das questões relativas à

pedagogia escolar. Divulgar o que foi discutido em diferentes eventos sobre esse tema é o

objetivo desta publicação, afirma Célia.

No primeiro capítulo, “Quem é esse, o pedagogo?”, Célia aborda a questão da

preparação do pedagogo, defendendo que uma formação que simplifique os fenômenos,

deriva em reduções que estreitam a compreensão e a intervenção da realidade. Portanto,

compreende que a formação do Pedagogo precisa potencializar três dimensões: sociológicas,

epistemológicas e pedagógicas.

Refletir sobre a identidade do pedagogo faz-se necessário, tendo em vista o momento

de transição vivido na década de 80, quando a crítica ao tecnicismo e à concepção

reprodutivista da escola, convocaram a pensar novas alternativas. Faz-se necessário resgatar o

potencial pedagógico-escolar, partindo da compreensão crítica de seus limites

contextualizados e definindo sua função como a de contribuir para a realização da sociedade

humana.

240

A dimensão sociológica diz respeito às relações entre estado e sociedade.

Historicamente, os movimentos de escolarização pública têm sido sustentados pela dinâmica

da reivindicação social, que modela a função de ensino-aprendizagem que compete à escola.

No Brasil, uma série de fatores tem confluído de modo a impedir a participação social no que

diz respeito à escola. Em nossa sociedade, um grupo minoritário definiu e impôs critérios de

convivência social a toda uma maioria e, nesse contexto, a escola fragilizada tem sido

influenciada por teorias transplantadas que muitas vezes não se adequam à realidade social.

A expansão da escola brasileira nas últimas décadas, sem a necessária participação

social, transferiu para dentro da escola a discriminação que antes dominava os processos

seletivos que definiam o acesso ao escolar. Tal discriminação se evidencia via autoritarismo

escolar, que por sua vez, reforça o autoritarismo político, dificultando as tentativas de

participação social na escola. Desse modo, conhecer as demandas das camadas populares, que

têm sido silenciadas por meio de discursos autoritários, é importante para compreendermos o

tipo de educador necessário e desejado por aquelas camadas.

A dimensão epistemológica, trata das influências teóricas que vêm sustentando um

modelo ideal de pedagogo entre nós. Há uma dupla influência entre os movimentos sociais e

as chamadas ciências humanas onde as expectativas sociais são recortadas pela própria

elaboração científica. Dentre as influências teóricas, temos a tendência da escola tradicional,

do escolanovismo, do tecnicismo pedagógico e das teorias crítico-reprodutivistas.

Para as teorias crítico-reprodutivistas, o desafio que se colocava era o de pensar um

pedagogo cujas características da competência profissional sócio-política e humana

apontassem para novas possibilidades no horizonte pedagógico.

A dimensão pedagógica foi abordada, estudando as relações entre os conceitos da

educação e do que é ser pedagogo e as relações entre os cursos de pedagogia e as

universidades. No caso dos conceitos difundidos pelo ideário escola novista, Célia acredita

que havia até aquela época, uma repercussão nos cursos de Pedagogia, expressa em currículos

que absorviam todas as matérias relacionadas à educação, numa acepção social e pessoal,

como se a educação fosse exclusividade de um setor profissional. Célia problematiza tal

tendência, questionando se o pedagogo seria o educador profissional ou um tipo de educador

com uma função própria. Considerando a complexidade da educação, que envolve a dimensão

sociológica, econômica e psicológica, não seria possível circunscrevê-la a um setor

profissional. Assim, o desafio da educação consistiria em ser concebida como um espaço de

conjunção de toda a sociedade. No que tange às universidades, as ciências pedagógicas e a

241

formação básica do educador deveria constituir a base comum que habilitaria todos os

profissionais de nível universitário para o exercício de educar.

A formação do pedagogo, como a de todos os profissionais, supõe uma estrutura

humana formada pela competência pessoal e política, que o dispõe a comprometer-se com o

processo de humanização, social e pessoalmente. Compromisso humano que legitima a

preparação para o exercício profissional, por implicar em movimentos de escolhas, em

mergulhos nas multiplicidades do social em que seja possível experimentar a esfera da

liberdade, além dos limites burgueses. Supõe também o uso do acervo de informações

socialmente organizadas, em prol do benefício que esta proporcionaria. Nessa perspectiva, a

Universidade prepararia seus profissionais como elementos capazes de compreender as

diferenças culturais e sociais, incentivando aos universitários a perceberem as implicações

ético-epistemológicas do seu campo de saber.

Nesse sentido, há que se delimitar mais claramente o campo de conhecimento e a

prática pedagógica do pedagogo, deixando de atribuir a esse profissional a função

“milagreira”, reconhecendo os limites dos poderes da educação. O pedagogo, como um

intelectual, cujo espaço de atuação implica na dimensão teoria e prática como inerentes,

precisaria estar identificado com as funções da escola, além de estar preparado

cientificamente para empreender um processo educativo sistemático e durável.

Por fim, Célia ressalta as perplexidades e encruzilhadas atuais. Dentre eles, o divórcio

teoria e prática aparecem como uma fragilidade da pedagogia. Nesse sentido, a articulação

entre essas duas esferas só será factível, ela afirma, quando uma e outra estiverem referidas ao

contexto sócio-cultural. No caso brasileiro, o fato de importamos teorias inadequadas para

nossa realidade, reflete a dependência de nosso país, reforçando os atrasos para nossa

educação.

Célia sublinha também a necessidade de rever as licenciaturas, evitando a separação

entre o conteúdo e a formação pedagógica. O estágio precisaria, ir confrontando e articulando

o teórico e o prático, constituindo-se como um campo estimulante para a compreensão do

fenômeno educativo e para sua reflexão crítica. Há também necessidade de uma perspectiva

interdisciplinar, que rompa com a tendência fragmentadora dos especialismos. Fecha seu

artigo discutindo a polêmica da época que consistia na permanência ou não do curso de

Pedagogia. Grupos se dividiam sobre essa questão, parte defendia a especificidade do curso e

sua existência e, outros a extinção do curso e o incremento da Pós-Graduação como o espaço

destinado a todos os graduados que se interessavam por Educação.

242

O segundo capítulo, “Os protagonistas da pedagogia escolar: suas convergências e

divergências,” discute o desafio de não fragmentação do trabalho escolar, diante das

diferentes funções e especializações dos profissionais da escola. Compreende a necessidade

de unidade e integração dos esforços com vistas a contribuir para uma escola que trabalhe a

favor da emancipação das camadas populares do Brasil.

A escola é protagonizada, ou deveria sê-lo, não apenas por aqueles que atuam em seu

interior (professores, diretores, orientadores, pais, alunos etc.), mas também pelos políticos

profissionais, legisladores e por toda a sociedade ativamente organizada. As tensões entre as

forças e poderes que se cruzam entre as diferentes esferas que protagonizam a escola

traduzem sua complexidade.

Nos distintos momentos históricos das igualmente diversas sociedades, existem

demandas por um determinado tipo de educador, que corresponde aos vazios sociais do

momento e que são capazes de anunciar e implementar os seus projetos. Também se fazem

presentes, movimentos que representam conflito com as tendências mais hegemônicas,

polarizando presente, passado e futuro e ganhando visibilidade na consciência social. Traduz-

se nessa dinâmica, o movimento permanente e contínuo dos diferentes papéis requeridos pela

sociedade em cada época. Nesse sentido, “interfere nessa dinâmica a correlação social de

forças que define a posição, sempre provisória, do poder político” (p.50).

Depende, também, dos protagonistas da escola a leitura do momento em que se vive e

o mapeamento de nossos desejos e projetos educacionais. Nesse sentido, cabe ao pedagogo,

coordenar o projeto de escola que deseja e fazer a crítica ao Estado em matéria da educação,

posicionando-se em prol de uma escola para todos, comprometida com o acesso aos bens

culturais da humanidade à toda a sociedade. Assumir esse compromisso é romper com

continuísmos que excluem as camadas populares da escola, numa perspectiva

transformadora. Uma educação que se paute no desejo de transformar, precisa resgatar a

identidade cultural, distorcida pelas condições materiais e simbólicas de vida das populações

empobrecidas, que sem auto-estima vêem dificultado a conquista do conhecimento escolar.

Instigar a participação do homem enquanto cidadão, elucidando leis da natureza e da

convivência social é outra tarefa fundamental dos professores, orientadores, diretores das

escolas.

Os profissionais da escola situam-se em meio às correlações de forças entre as classes

dirigentes e as dirigidas, afirma Célia. Como funcionário, é vigiado e controlado, mas

também, graças a esse vínculo, convive internamente com o sistema e pode, portanto,

contestá-lo a partir de seu interior, com a perspectiva de quem tem o conhecimento de dentro

243

da escola. Colocando-se como cidadão, o professor poderá, portanto, “agir politicamente,

conjugando uma prática pedagógica eficiente a uma ação política da mesma qualidade” (p.

52).

Célia considera que há uma fragilidade da Pedagogia que pode ser constatada pela

dificuldade em construir e definir seus rumos e seus campos de atuação. Atribui essa

fragilidade ao fato do campo da educação ser muito amplo e também por tudo isso, muito

permeável ao senso comum, com seus clichês, facilitando que as confusões, divergências

penetrem nas matrizes conceituais pedagógicas, dissolvendo suas fronteiras. Defende que é

necessária uma vigilância epistemológica e política para que a Pedagogia, enquanto teoria e

prática, possa estabelecer uma correspondência com os grupos humanos aos quais se destina,

em suas urgências e desejos.

Célia aborda a hierarquia de valoração dos profissionais da escola em que o professor

de sala de aula é o que tem menos prestígio, e o diretor, o orientador e o supervisor obtém

mais reconhecimentos e vantagens.

Problematiza, ainda, os riscos da hiper-especialização que podem fragmentar o

processo educacional, que ao especificar lugares distancia-os, uns dos outros, reduzindo o

exercício profissional ao cumprimento de deveres ditados pelo poder central, dificultando a

construção de um projeto coletivo. O discurso da hiper-especialização pode acabar separando

e aprisionando o profissional numa racionalidade técnica, correndo o risco de ignorar os

problemas conjunturais e estruturais da escola e da sociedade. Ressalta também que, a ênfase

nas tarefas, típica do projeto tecnológico, subtrai da escola sua vinculação com a esfera do

público, cujos espaços de discussão e de convivência social alimentam a escola e delineiam

seu projeto cidadão.

Célia encerra seu artigo propondo a definição do papel do pedagogo como a daquele

que coordena as definições dos rumos e trajetórias para que a aprendizagem escolar se dê,

simultaneamente ensinando e produzindo o saber organizado. Tal manejo supõe a articulação

do saber especifico sobre a escola com o exercício da cidadania; intenção e ação concreta;

teoria e prática.

O capítulo 3 “Da educação à intelectualidade pedagógica: trajetória na formação do

pedagogo”, parte do conceito de pedagogo como aquele que tem a capacidade de “impregnar

de sentido, construído coletivamente, suas atividades educacionais” (p. 68), Célia define

educação como sendo um processo dotado de intencionalidade, que não é neutra mas está

conectada com o projeto de sociedade com o qual se afina. Defende que, a educação é um ato

político, pois envolve o poder de modelar e alterar condutas humanas. A Pedagogia, ao captar

244

e orientar a educação o faz de acordo com uma direção. Célia defende que se assuma a

direção crítica à organização da sociedade, que para ter conseqüências concretas, exige a

participação coletiva.

Aliada à concepção de intelectual marxiana, que propõe uma saída do filósofo de sua

“torre de marfim”, Célia compreende que não basta à filosofia interpretar o mundo, mas sim

articular teoria e prática, assumidos como pólos interdependentes para continuamente nos

expor-nos ao teste que é a vida, com suas ações e atuações. Traz também a idéia gramsciana

de que todos os homens são filósofos, embora haja limites e características entre essa

“filosofia” espontânea, própria de toda a gente, e a filosofia-ciência, que deve ter seus canais

de comunicação com aquela, mas que a supera, permanentemente.

O intelectual/filósofo percebe-se historicamente à medida que intervêm no conjunto

de relações sociais, não aceitando de fora, mecânica e passivamente, a produção da história.

Nesse sentido, o intelectual é aquele que está comprometido politicamente com o coletivo,

visando a compreensão e a participação na dinâmica social. Participando da massa, o

intelectual orgânico (conceito de Gramsci) elaborará os problemas e princípios vivenciados

pela gente simples, conferindo-lhe maior densidade de conexões, sem perder seus desejos e

objetivos primordiais, afirma Célia.

Com relação à formação da intelectualidade pedagógica brasileira, Célia preconiza

que o pedagogo intelectual conheça sua realidade local, nacional e internacional. Para tanto, é

necessário uma sólida formação histórica, que inclui uma dinâmica crítico-compreensiva.

Além de conhecer os traços de seu povo e suas demandas, é necessário definir a que

necessidades sociais devem se articular, privilegiando aquelas que contribuam para a melhoria

das condições de escolarização da população empobrecida, aliadas a educação pública, de

qualidade. Esta vivência e este conhecimento da historicidade autoconstitutiva de nosso país

mostraria ao intelectual o poder e os limites das tradições acumuladas versus o poder, e as

fronteiras da capacidade interventora do homem, consideradas de forma individual e

coletivamente (p. 77).

É também necessária ao intelectual pedagógico a formação científico-pedagógica,

uma vez que a escola lida com o conhecimento socialmente organizado, patrimônio da

humanidade; a formação pela articulação entre teoria e prática, em que a dimensão trabalho

seja incluída e acompanhada por professores, com vistas a uma permanente reflexão coletiva,

mas também, em que a teoria seja confrontada com a prática e, por fim, à formação da

vontade pedagógico-política, que articula o pedagógico com o sentido social e histórico da

educação, com vistas à transformação social.

245

Célia conclui seu artigo defendendo que a Pedagogia, como teoria e prática da

educação, deverá exercer uma dupla vigilância: a epistemológica e a política. A vigilância

epistemologia diz respeito a atenção necessária aos seguintes riscos: 1) o idealismo

pedagógico, em que pelo fato da educação abranger muitas esferas estar exposta a extraviar-

se, se traduzindo por expressões generalizadoras; 2) O mecanismo pedagógico, em que, para

fugir das generalizações, a educação é capturada por uma pedagogia redutora, aprisionada

pelos empirismos, pelo positivismos ou pelos particularismos e 3) Ao fato de que, dada a

extensão da educação, todos tem algo a falar do processo educativo e, como freqüência,

muitos o impõe como conhecimento pedagógico.

Por fim, articulando a vigilância epistemológica e política, a Pedagogia

Contemporânea, compreende um “pedagogo que não se aprisiona no racionalismo teórico da

ciência, mas que o submete e o avalia pelo ajuizamento do coletivo, como fonte legitimadora

maior da intencionalidade pedagógica” (p. 83).

O quarto capítulo, “Repensando a escola normal em tempo de constituinte”, discute a

necessidade da gratuidade em todos os níveis de formação, uma vez que o saber é um direito

do homem e que, um cidadão bem formado deve trazer benefícios mais amplos para a

sociedade.

A partir da análise da história do ensino normal no país, Célia problematiza a situação

atual (dos anos 80), em que as indicações legais apontavam a formação de professores para o

ensino primário como responsabilidade dos cursos de Pedagogia, retirando o investimento nos

cursos da modalidade Normal. Célia considera o difícil panorama atual das escolas normais,

em que se soma a uma baixa escolaridade por parte dos professores, a ausência de uma

política salarial justa que incentive o jovem ao ingresso na carreira docente. Ainda assim,

defende que o Estado deveria assumir a obrigação de qualificar as Escolas Normais como um

dos espaços privilegiados de formação dos professores da escola básica, qualificando-o com

pesquisas e atualizando-os com a atenção à realidade do país.

O quinto e último capítulo, “A formação dos profissionais da escola: recorrências e

controvérsias” tem como objetivo estudar diferentes compromissos relativos à formação do

pedagogo, localizando as polêmicas da época sobre a formação dos profissionais da escola,

entendendo-as como expressões das contradições enfrentadas e lacunas que marcam essa

categoria profissional e a sociedade civil.

Célia relata que a Universidade abandonou durante muitos anos a Escola Básica, em

função de sua preocupação de formar técnicos ajustados ao modelo de “Segurança e

Desenvolvimento Nacional”. Aponta que naquele momento ela voltava a dirigir sua atenção à

246

Escola Básica em função das forças democratizadoras da sociedade, na perspectiva de

contribuir para formar professores que apóiem a transformação de nossa sociedade.

A autora, defende a formação do professor como um dos compromissos nucleares da

Universidade em tempos de reformulação social pós-ditadura, entendendo que a ela deve se

aliar ao compromisso com a pesquisa aplicada, em prol da construção de um pensamento mais

autônomo e independente. Tal autonomia se contrapõe à dependência cultural de nosso país,

afeito a importar modelos e tecnologias. Apesar de a escola ser em parte determinada pelos

fatores econômico-sociais, Célia acredita na importância de que ela se reveste na modelação

dos condicionantes, constituindo-se numa esfera relevante para a transformação social.

Célia relaciona uma série de atividades que estavam em curso na Universidade

brasileira visando reconstruir a ligação entre a Universidade e a formação docente, questão

fundamental para a qualificação da escola básica. Discussões sobre a nova concepção de

pesquisa e extensão e a necessária reformulação dos cursos de formação dos profissionais da

escola animavam os movimentos universitários. Nessa direção, a autora destaca os debates

sobre currículo universitário que se incrementavam naquele período, buscando a saída dos

moldes da ciência positivista ou da metafísica idealista que marcavam a formação.

No Brasil, em função da contradição entre os interesses do Estado e da Sociedade, a

formação do pedagogo enfrentava o desafio de instruir professores a compreender as

injustiças sociais por meio da preparação para o exercício de ensino-aprendizagem como

instrumento de transformação em prol das classes populares. Nesse sentido, era necessário

definir a identidade do curso de formação dos profissionais da educação, questão que era

polêmica naquela época (e que perdura, de certo modo, nos dias de hoje).

Célia discute a identidade do Curso de Pedagogia, considerado por alguns legisladores

como um curso sem conteúdo próprio e, portanto, dispensável. Indicando a necessidade de

integrar a dimensão conteúdo e forma, em que se contemple o estudo da textura do processo

educacional, Célia defendia a necessidade da manutenção do Curso de Pedagogia. Tal

necessidade se justificava, em sua concepção, em função do insuficiente intercâmbio entre as

diferentes áreas do saber e dos conhecimentos pedagógicos, pois havia uma separação entre o

pedagógico e as parcelas conteudístico-metodológicas de cada região dos saber científico.

“ A totalidade do real, em que em última análise se referenciam o ensinar e o aprender, não se obtém por adição das partes mas pela força de apropriação pedagógica com objetivos científico-políticos, também claros, que geram uma interdependência das partes ao todo.” (p. 128)

247

Com relação à dimensão política da formação docente, em integração com a formação

científica, a autora preconizava o indispensável compromisso do professor de transmitir o

acervo de conhecimentos sistematizados e as metodologias científicas. Defendia também, que

tais conhecimentos precisavam ser contextualizados historicamente, possibilitando aos

sujeitos a visão crítica das ciências e a compreensão das inter-relações entre as esferas do

saber e da sociedade. Para Célia, faltava à formação do professor disciplinas que possibilitem

compreensão mais extensiva da realidade nacional e internacional, conhecimentos necessários

para uma prática desalienada.

Discute outras polêmicas da época, como a questão dos especialistas (já mencionada

em artigo anterior, nesse mesmo livro); a necessidade de solucionar o problema das diferenças

regionais, culturais e sociais num modelo de escola unitário, defendendo a articulação dos

projetos com os grupos aos quais se destinam; a questão da formação do professor nos cursos

normais versus nos cursos de Pedagogia, historicizando os movimentos em prol de uma

revitalização dos cursos normais, que considera importantes e necessários no contexto

brasileiro, dentre outras.

Em suma, Célia defende a todo o momento que a formação dos profissionais da

educação precisa necessariamente articular a dimensão política e a competência científica,

não prescindindo de habilitar o professor a analisar e compreender o contexto social e

histórico em que se dão as dinâmicas sociais. Não acredita que a escola seja o espaço da pura

determinação social e econômica, apostando na potencialidade desse espaço em modelar

também a realidade, transformando-a. Aposta na associação dos profissionais da

educação,também em espaços fora da escola, em função de assegurarem direitos e pleitear as

melhorias necessárias para uma educação pública de qualidade. Defesa que faz com ênfase

em todos os seus artigos desse livro e de outros.

3.4 A voz dos parceiros: Heloisa de Oliveira Santos Villela

HELOISA VILLELA: APRENDENDO A VIVER COM CÉLIA, MEMÓRIAS DE UM ENCONTRO DE FORTALECIMENTO E

CONFIANÇA

Yo soy del sul, chileno navegante que volvió

de los mares.

248

No me quedé en las islas, coronado.

No me quedé sentado en ningún sueño.

Regresé a trabajar

Sencillamente com todos los demás

y para todos. (Pablo Neruda)

Sempre me lembro de Neruda quando penso em Célia. Não sei se é porque ele é chileno e essa coisa assim latino-americana... Na apresentação que escrevi para o livro “Trajetórias de magistério”, sobre os memoriais de Célia e Clarice Nunes, tem um pedacinho de um poema de Neruda que eu coloquei que fala desse trabalho e sua importância. Eu a vejo sempre envolvida com o trabalho, indo para frente, caminhando. Na época me lembrei do Neruda, na época procurei alguma coisa que tinha a ver com Célia, me lembro que no final do poema tinha algo assim, “Continuamos a trabalhar com todos e para todos!” acho que isso tem muito a ver, trabalhar com e trabalhar para. (Heloisa Villela em entrevista, 2007)

Heloisa conheceu Célia Linhares em meados da década de 80 quando estava fazendo

um curso de pós-graduação lato sensu na Faculdade de Educação da UFF. Na época, Célia

estava voltando do doutorado na Argentina.

Para Heloisa era uma retomada aos estudos após algum tempo afastada. Havia

terminado a graduação, tendo sido monitora da faculdade, mas precisou parar um tempo em

função da saúde de uma de suas filhas. O curso funcionava como uma oportunidade de

“reaquecer as baterias” e amadurecer a idéia de um possível mestrado.

Em um Seminário, Célia foi falar sobre sua experiência na Argentina e sobre seu

retorno, de como ela estava vivenciando essa volta para a Faculdade de Educação. Heloisa se

lembra da impressão que Célia causou nela:

A presença dela, sua fala, foi me impressionando de tal maneira ... acho que, na verdade, eu não estava nem pensando em mestrado, eu estava fazendo aquele curso sem pensar em grande coisa. Quando eu ouvi a fala de Célia, aquilo me tocou de uma maneira que eu pensei “eu quero entender do que essa pessoa está falando, eu quero me aprofundar mais nesses assuntos”. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Com a palestra de Célia, Heloisa identificou a existência de um campo desconhecido

para ela até então, em que havia uma possibilidade de luta por condições melhores para a

249

educação, uma perspectiva democrática de escola e de sociedade e, sobretudo, uma visão

confiante nas possibilidades de atuação dos profissionais da educação.

A fala de Célia me fez pensar sobre a possibilidade de que as pessoas no país pudessem retomar uma escola que havia aumentado naquele período da ditadura em termos de número, mas que não tinha qualidade nenhuma! As pessoas estavam desinteressadas da área da educação, tinha havido um hiato, um vazio, as pessoas eram mal vistas nos lugares quando você falava que era pedagogo, “pedagogo, faz o quê?!”. Então aquela fala de Célia me jogou novamente para um campo que eu tinha escolhido lá atrás na época da graduação. Eu tinha feito uma faculdade muito fluida, muito conteúdo teórico; então o curso foi para mim uma continuação do normal e nada mais, não vi como uma vivencia acadêmica. A fala de Célia me chamou para essas questões e ai eu tive vontade realmente de aprofundar meus estudos e pensei: “Vou atrás dessa mulher, quero entrar no mestrado, vou querer saber mais disso que ela fala, vou querer compreender melhor tudo isso!”.

Muitas coisas que ela falava, não eram de uma linguagem familiar, tinha uma perspectiva bastante filosófica. Eu estava ali e decidi naquele momento e foi nesse caminho que fui seguindo. No final desse ano em que conheci Célia me candidatei para o mestrado e qual não foi minha surpresa quando cheguei na banca de argüição da entrevista e lá estava Célia Linhares e Nilda Alves! Eu já sentia aquele bem estar, aquela empatia com Célia muito forte e no mestrado escolhi, lógico, Célia para ser minha orientadora. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa revela como o mestre pode ter o papel de instigar o desejo de aprender,

impulsionando o estudante para a busca de espaços ainda desconhecidos, onde a curiosidade

antecipa alargamentos de vida, com outras aprendizagens. Nesse sentido, evidencia-se o papel

do envolvimento do mestre com o ensino, do quanto ele transmite seu interesse e com isso

desperta no outro o desejo de também aprender. A esse respeito, é oportuno trazer Morin que

nos diz:

Marx questiona: “Quem educará os educadores?” Educar é uma missão. Educar, para além da técnica, é arte. Educar exige para além da técnica, uma arte. Exige algo não mencionado em nenhum manual, mas que Platão já acusara como condição ao ensino: o Eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos educandos. O Eros permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição ligada à doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o desejo, o prazer e o amor no educando. Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para o professor; e de tédio para os alunos. A missão supõe, evidentemente, a fé: a fé na cultura e fé nas possibilidades do ser humano.

250

Portanto é missão muito elevada e difícil, uma vez que supõe, ao mesmo tempo arte, fé e amor. (Edgar Morin, 2000)

Contrariamente a uma idéia muito presente no campo da formação em que se associa

facilidade e fluidez no processo de ensino-aprendizagem com qualidade, Heloisa afirma que

“muitas coisas que Célia falava não eram de uma linguagem familiar”. O que Heloisa

encontrou não foi então a “facilidade” de compreensão das perspectivas que Célia abria para a

estudante, mas sim o desafio de aproximação de conceitos novos, um novo campo de

conhecimentos que ela não havia encontrado em sua graduação.

O mestrado foi aproximadamente em 85/86. Terminei em 90. A partir daí fiz os cursos que Célia oferecia que eram de Filosofia, Tópicos Especiais. Eu me lembro que ela já trabalhava com Gramsci e Foucault.

As experiências que eu comecei a ter de vida acadêmica, era ela que me estimulava. Eu era um pouco tímida, medrosa dessa coisa de expor um trabalho, então houve uma SBPC157 se não me engano em Curitiba e ela me estimulou: “você vai escrever!”, e foi a primeira vez que eu tomei contato com a experiência de escrever resumos. Fomos para Curitiba, na hora de falar eu estava com aquele medo e ela ali junto me estimulando. Ela sempre foi uma pessoa totalmente presente na minha vida acadêmica. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Mestre que incentiva a produção e o “passo a frente” de seus discípulos e, ao mesmo

tempo, se mantém ao lado, dando apoio e confiança. Tomamos aqui o sentido de discípulo,

como quer Dozol (2003), como aquele que tem uma dependência provisória, que tem um

ponto de partida intelectual e que caminha em direção à autonomia.

Ver seu discípulo avançando não é vivido por todos os mestres da mesma forma. A

independência e autonomia, por vezes, podem assustar ao mestre, que inseguro de seu saber,

vê no crescimento de seu estudante uma ameaça. O depoimento de Heloisa que destaco a

seguir, sobre os caminhos de sua pesquisa de mestrado, traz bem clara essa perspectiva do

mestre que permite o vôo de seu estudante e compreende seu afastamento como algo

saudável, parte do crescimento e da autonomização deste.

157 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

251

Na época de delimitar mesmo o tema de minha dissertação eu me decidi por formação de professores. Célia foi muito bacana no momento em que ela me disse, “olha, você veja o que deseja estudar nesse novo momento.” Bom, eu estava me sentindo frágil na parte histórica para poder tratar da questão da Formação, - porque no fundo a dissertação era histórica–, e ela então me permitiu que eu fizesse uma co-orientação com Ismênia Martins. Célia viajou e continuei depois com Ilmar Matos, Professor de história e foi muito tranqüilo, o que eu não vejo acontecer muitas vezes com essa coisa de co-orientação. Na verdade às vezes nem acontece e quando os alunos pedem ou precisam, é muito difícil, alguns orientadores não aceitam muito, talvez se sintam como se tivesse tirando algo deles... e ela foi super tranqüila nesse ponto e com isso meu trabalho cresceu muito pois teve a visão da história e também toda essa questão do envolvimento com a educação, da formação do educador. Pude então conhecer a visão do campo da história com relação à educação. O processo de profissionalização no século XIX, por exemplo, era visto pela história de outra forma, como um fato datado que aconteceu mas não com aquela importância que teve para nós educadores. Com esses dois aportes eu pude fazer um trabalho muito melhor. Enfim, em toda a minha carreira, como no concurso para a UFF eu fui estimulada por ela, ajudada. Então foi realmente uma orientadora de vida, não foi só acadêmica, extrapolou isso, ela foi que me segurou nesses momentos difíceis de decidir, “Mando essa aula ou aquela? Me aprofundo nesse tema ou naquele?”. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

A abertura que Célia demonstrou ao acolher as escolhas e necessidades da orientanda,

revela essa sua capacidade de reconhecer que o conhecimento é múltiplo, que não é

propriedade de um só e que, ainda que as vaidades existam, o reconhecimento da necessidade

de troca com outras fontes e profissionais é muito benéfica e ampliador das densidades

discursivas, com que tratamos cientificamente das problemáticas por nós estudadas.

Para Gusdorf (1995), ainda que haja uma relação de dependência entre mestre e

discípulo, essa não é imposta, mas sim consentida de lado a lado. Além disso, trata-se de uma

dependência provisória:

(...) O discípulo confia no mestre para que este o instrua e o conduza enquanto ele não for capaz de se conduzir a si próprio. A condição de discípulo é provisória, uma situação passageira que aguarda a habilitação que tornará o individuo apto a se conduzir a si próprio. (GUSDORF, 1995, P.81)

O entendimento dessa provisoriedade se traduz numa relação de confiança de parte e

a parte. Para o discípulo, confiança de que o mestre reúne as condições para guiar seu

desenvolvimento durante uma certa etapa da vida e para o mestre, confiança de que o

252

discípulo é capaz de conquistar a autonomia que, fatalmente, o fará avançar em sua trajetória,

modificando a relação inicial de dependência para a de referência (DOZOL, 2003, P. 11).

Célia também aparece na experiência de Heloisa como a “orientadora de vida”,

alguém com quem ela se sentia suficientemente à vontade para contar em momentos diversos

de sua vida acadêmica e da vida fora da universidade. É possível uma proximidade em que a

orientadora – Célia se separe da Célia - mulher? A mestranda/ doutoranda da mulher que é?

Justamente pela impossibilidade dessa divisão, a relação com Célia “extrapolou” a meramente

acadêmica.

Nesses momentos todos Célia estava muito presente, foi uma presença assim que até mistura um pouco com a coisa de uma mãe. Um dos fatos muito marcantes de que me lembro foi no final da minha dissertação, quando eu estava ensandecida, aquela loucura e tal, aquele monte de coisa e aparece Célia lá em casa. Então estava assim, a minha mãe e Célia (risos). Eu achei muito interessante porque a minha mãe não podia dar o que Célia podia, que era a orientação correta naquele momento, como é que eu fechava aquela dissertação e ao mesmo tempo ela completava com a minha mãe ali aquela situação. Eu me senti muito amparada pelas duas. Acho que a partir disso tudo a gente ficou mesmo com uma relação que vai além dessa coisa só acadêmica, eu tenho nela um apoio para todas as horas, uma preocupação que ela sempre tem comigo depois quando eu entrei para ser professora da UFF.

No ano de 94 tive um baque muito grande, perdi num intervalo de três meses pai, mãe e irmão. Nessa parte eu sempre conversava muito com Célia, nas questões das suas filhas, ela sempre me aconselhando e me ouvindo. Isso era muito legal eu tinha essa experiência que Célia falasse das meninas, aquele momento das indecisões que não sabe ainda o que vai fazer. Era uma troca constante. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Orientadora e mãe, mãe-orientadora. Reportando-nos ao sentido etimológico158 da

palavra mãe encontramos os termos “origem, fonte, causa”, bem como “mulher que dispensa

cuidados maternais”. Continuando a aproximação com os sentidos evocados, chegamos

também à palavra cuidado e a concepção que Boff (1999), inspirado em Heidegger, tem desse

termo. Para o autor, o cuidado é uma necessidade eminentemente humana. Nascemos

158 Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa editora Nova Fronteira 1986.

253

desprovidos de condições de viver sem que nos sejam dispensados cuidados. O cuidado

permeia o crescimento e o desenvolvimento do humano desde seu nascimento até o fim de sua

vida. É via cuidado que nos sentimos amparados, reconhecidos, é quando nos humanizamos.

Cuidados que se expressam das mais diferentes formas e que podem se traduzir por um olhar,

pela escuta atenta e interessada do outro, pela comida oferecida, pela presença física em

momentos diversos de nossa vida.

Célia foi para Heloisa um tipo de professora-amiga-mãe que dispensou cuidados,

fortaleceu a coragem para o enfrentamento do novo universo que a ela se abriu, que a instigou

a descortinar novos desafios e a caminhar com suas próprias pernas. Um tipo de mãe especial,

um tipo de mestre especial. Acostumada que sou a trabalhar com professores e pais de crianças da Educação Infantil

sai pela primeira vez do ninho de sua mãe e pai para uma creche ou pré-escola, que me era

possível reconhecer aspectos importantes dessa díade família-criança. As crianças que se

mostravam mais seguras em explorar o novo ambiente e mais curiosas em conhecer crianças e

adultos não eram, de um modo geral, as excessivamente protegidas mas sim aquelas que

sentiam a confiança estampada no rosto e na expressão de seus familiares, que para elas

significava “Vá e viva, vá que você vai gostar muito de crescer!” .

Não continuamos precisando encontrar no rosto de nossos mestres essa expressão de

confiança diante do novo que nos aguarda?! Não continuamos a nos assustar se, ao invés da

expressão de confiança, o que encontramos é o reforço de nossos medos e inseguranças?!

A entrada de Heloisa no doutorado afirmou ainda mais essa capacidade por parte de

Célia de estimular o vôo de sua estudante. Dessa vez um vôo que a levaria a fazer o curso em

outra cidade. Um vôo para mais longe.

Quando chegou o momento de fazer o doutorado eu fui conversar com Célia e vi o que era melhor para mim. Como era mesmo a questão da história da educação, a que eu daria continuidade, pedi também a Clarice Nunes que me desse um apoio e então as duas me ajudaram com todo o projeto, me dando idéias, bibliografia, etc. Eu compus o projeto e tentei para a Universidade de São Paulo (USP) e a UFF. Passei aqui para a UFF em primeiro lugar, mas decidi ir para a USP, passei lá também e não me arrependo. Eu fui muito filha da UFF, aquela coisa endógena, ai fui para outro ambiente com outras pessoas, foi importante para minha formação. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa vai reconhecendo as lacunas em sua formação e buscando espaços com os

quais pudesse dialogar ampliando sua compreensão sobre aspectos que haviam sido pouco

254

aprofundados por ela até o momento. Além disso, ousava correr o risco do novo, ampliando

suas experiências acadêmicas, conhecendo outra instituição e novos professores.

Na minha entrada para UFF fiquei muito voltada para a História da Educação. Cheguei a participar no início do Aleph, do projeto de Célia, mas eu estava precisando construir mais dentro da História da Educação porque eu sentia que tinha uma fragilidade teórica nessa área, que era aonde eu desejava lecionar. Você vê, eu vim da Pedagogia, tinha feito um mestrado hibrido, da Educação com a História, mas não foi um mestrado na História, eu estava sentido que precisava me voltar mais para a questão da história. Nesse tempo que eu já era professora, comecei a fazer cursos na História como ouvinte, fiz cursos com Leandro Konder, com César Onorato, com Edilberto que fala sobre século XIX, Margarida Neves que fala de memória, dentre outros.

Nos concursos que fiz, eu tinha entrado primeiro para Didática, depois teve a oportunidade de eu passar para a cadeira de História, e nessa passagem pensei, tenho que me aprofundar mais porque minha formação não é tão sólida assim para isso e ai comecei a fazer essa batalha. Não é que eu me afastei, mas eu tomei essa direção com a história. Continuava com essa interlocução com Célia mais sobre questões do trabalho, mais filosóficas, sobre as questões política aqui dentro da faculdade. Eu sempre estava falando com ela. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Pergunto a Heloisa sobre o estilo Célia de orientar. Bem sabemos como esse momento

pode ser vivido com extrema ansiedade por parte do orientando. Certamente é uma relação

delicada a de orientador - orientando. Como estimular a produção sem cobrar de forma tensa?

Quais as necessidades de cada orientando ao longo de seu processo? Como lidar com as

eventuais ansiedades, bloqueios e inseguranças do orientando? Por parte do orientando, como

conciliar as expectativas com relação ao orientador com as possibilidades reais do mesmo? O

quanto tais expectativas são muitas vezes fruto das próprias ansiedades e até, muito

provavelmente, impossíveis de serem correspondidas, tão grandes se colocam? Desejos

diferentes, necessidade de compreensão e aceitação mútua. Uma delicada relação que tem

merecido atenção por parte de alguns pesquisadores.

Na pesquisa “Orientação acadêmica: uma relação de solidão ou de solidariedade?” de

Vianna e Veiga (2007), cujo título merece ser citado dada a instigação que provoca, é

reconhecida a presença de sentimentos alternados de sofrimento e alegria por parte dos

estudantes durante a elaboração de suas dissertações, teses e/ou monografias. Sentimentos

ligados a responsabilidade do orientando em fazer o máximo, as condições, em muitas casos

adversas, de trabalho ou mesmo ao surgimento de problemas pessoais, acadêmicos e

255

profissionais que emergem durante esse período. As autoras identificam, portanto que é diante

do caldo dessas emoções e sentimentos por vezes contraditórios, que uma boa relação

orientador-orientando contribui de forma decisiva para a superação de dificuldades.

Nas palavras de Heloisa, Célia vai pelo caminho da solidariedade.

Ela não era de impor, mas as sugestões eram tão ricas que você queria ler tudo. Ela tinha uma sensibilidade muito grande para ver porque as coisas, às vezes, não estavam caminhando, a gente estava patinando naquele ponto, que faltava um aporte mais filosófico, um aporte teórico que desse uma certa direção. Então muitas vezes ela dizia: “você está precisando ler isso assim, assim” e aquilo deslanchava. Essa parte foi muito tranqüila e muito estimulante. Tranqüila porque não tinham pressões nem constrangimentos como eu via acontecer com alguns colegas. Via muita coisa triste no mestrado. No doutorado você já está mais criadinha, mas no mestrado é sua primeira experiência. [Heloisa relatou nesse momento uma passagem em que um professor orientador, negou a seu orientanda informação sobre um trabalho que ele mesmo havia escrito sobre o assunto que ela pesquisava. A orientanda não descobriu sozinha e, quando teve a oportunidade, o professor a cobrou, criticando sua pesquisa. Heloisa lembra que isso a deixou arrasada]. Célia não tinha nada disso, é de uma relação completamente honesta. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Outro aspecto a que Heloisa se referiu e que merece destaque, diz respeito a coerência

entre as atitudes de Célia, seu comportamento de modo geral e aquilo que ela escrevia,

preconizava em seus discursos. Muitas vezes é na universidade que vamos conhecer os

autores de muitos dos textos lidos por nós e não raro nos surpreendemos com a frustração de

uma certa expectativa que construímos a respeito desses autores em função de nosso contato

com sua obra. Heloisa chama de unidade essa coerência entre Célia-autora e Célia-professora.

Sem pretender correr aqui o risco de simplificar as complexas relações imbricadas no que

chamamos “relação teoria e prática”, bem sabemos que os caminhos de integrar nossos

projetos de vida em todas as suas dimensões não é linear, ainda assim é possível compreender

a perspectiva apontada por Heloisa.

Como nos apropriamos daquilo que discursamos? Paulo Freire, já nos últimos anos de

vida, em uma de suas palestras que tive o prazer de ver em vídeo, dizia algo que me tocou de

modo especial, pois traduz uma minha busca: “Uma das maiores satisfações que sinto hoje é

sentir que estou me tornando o homem que sempre desejei ser”. Não é pouco. Muitas vezes o

hiato entre aquilo que projetamos e desejamos ser, seja como professores, pais, orientadores,

amigos, encontra abismos no momento da experiência em que, dadas nossas limitações,

incoerências, medos e outros tais, nos vemos impossibilitados de ser.

256

Novamente sublinho que, acreditando que a incoerência e a ambigüidade são

fenômenos simultâneos e recorrentes, numa perspectiva Moriniana, também não posso deixar

de afirmar que, contrariando o ditado popular do “faça o que eu digo mas não faça o que eu

faço”, minha confiança aposta na busca permanente que empreendemos em “fazer o que

dizemos”.

A maior marca de Célia é essa unidade, ela é una, íntegra nas coisas dela, aliás, já vi muita gente falar sobre isso, “estou conhecendo a professora Célia, ela é exatamente assim como ela escreve!”, é uma coisa, ela é aquilo mesmo! Não tem falsidade, não tem escapadinha, ela fala e faz tudo o que ela realmente prega, que ela coloca nos textos. As abordagens teóricas perpassam a vida dela mesma, com os outros, com relação aos outros. Todo esse aporte que ela trás para os textos, tem relação com a vida dela e com as suas relações. Então não tem essa coisa de dizer, “fala tão bonito, mas na prática...”, com Célia não tem isso de na prática ser diferente, na prática é a prática mesmo! (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa foi bolsista de iniciação científica de Célia na pesquisa “Mestrado em

educação e escola básica, um encontro necessário”. O enfoque era pesquisar as produções

desenvolvidas nos mestrados de educação analisando como aqueles estudos haviam ressoado,

ou não, na escola básica.

Nós pegávamos a produção do mestrado em suas várias áreas, investigando o que propunham. Fazíamos um recorte dos que falavam da escola básica e quais eram as propostas que já tinham avançado. Interessava-nos saber se a escola básica estava ou não recebendo esse aporte das pesquisas. Falava-se de métodos de alfabetização e lá na escola? Ninguém estava discutindo isso! Essa experiência foi muito interessante porque depois Célia montou um seminário, convidando professores da rede para escutar as questões que os mobilizavam. Foi um seminário muito concorrido! Chamamos também as pesquisadoras, cujos trabalhos havíamos elegido como mais interessantes, para dialogar com a Escola Básica. A idéia era saber com a escola via as questões levantadas pelas pesquisas, como elas se conectavam às suas próprias questões. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa considera que essa pesquisa foi um marco importante na trajetória acadêmica

de Célia e que desde então ela vem consolidando sua atuação na escola básica, comprometida

com a formação dos professores das escolas públicas.

(...) Surgiu esse campo que ela está até hoje, enfiada lá, na ponta de lá da escola. Ela está sempre com projetos que tem que ter ressonância nos professores, nos alunos, ponte com o concreto que é justamente o que não

257

existe quase na academia, porque geralmente se acha que isso é menos e os professores que fazem isso, são sempre “menos”. Isso tem essa pecha. E Célia consegue reunir essas pontas muito bem: uma formação teórica sólida, tudo o que ela produz, os textos que ela produz e também a parte de estar lá na ponta, na escola, falando para professores, se exercitando nesse diálogo, que é difícil também. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

O compromisso da pesquisa universitária com a educação básica é uma questão que

atravessa a obra de Célia desde então. Ela retoma esse ponto em vários de seus artigos e

livros, bem como dá seguimento em suas pesquisas a temáticas conectadas à escola.

Compreende essa cisão entre produção intelectual e atuação docente reportando-se a idéia de

razão veiculada pela modernidade.

Com relação as idéias pedagógicas de Célia, Heloisa destaca a investigação sobre o

papel e a prática do pedagogo, citando alguns artigos e publicações que abordam essa questão:

Para mim o que posso destacar muito é essa parte toda que ela veio estudando que está em um artigo “Quem é esse o pedagogo?”, onde ela desenvolveu profundamente essas questões do que é a teoria e o que é a prática do pedagogo. Isso me abriu muito a compreensão sobre a pedagogia e seu papel. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa cita ainda essa preocupação sempre presente de que os espaços de formação

estejam impregnados pelas questões oriundas da escola. Nos textos que apresentamos nesse

capítulo essa idéia está presente. Célia defende que é a vida, a realidade mesma que deve

alimentar nossos projetos para a escola. Conhecer os sujeitos e sua cultura, valorizar seus

saberes, considerar o contexto em que vivem e suas peculiares formas de expressão e

aprendizado são dimensões presentes em seus escritos dessa década.

Também gosto muito daquele livro “Tradições e contradições” que aborda a escola normressonância na escola e vice-versa. Um exemplo dessa preocupação permanente entre teoria e prática e pesquisa e escola é o livro “A escola Balaia” que traz o trabalho desenvolvido por ela com as escolas lá do Maranhão. No livro se evidencia seu movimento de ver aquele tipo de escola e refletir sobre como se pode ter uma ação, uma prática que seja realmente includente, que possa ser libertadora. Ela deseja realmente que a educação, quando existe nesses lugares, seja algo que transcenda, que vá às origens e as pessoas possam superar sua situação de opressão por um processo interno. Acho que é muito nessa linha que ela trabalha, de instigar processos internos e ver como isso se dá. Sua perspectiva é democrática, inclusiva. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

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Sobre este livro, que bem retrata um lado épico da verdade, tão ressaltado por Benjamin, importa atentarmos para o que escreveu sobre este livro o memorável Barbosa Lima Sobrinho, pouco tempo antes de morrer.

A visão democrática que perpassa a obra de Célia é destacada por Heloisa com

veemência. Ela relaciona as pesquisas em que participou como bolsista e as outras

experiências de que teve notícias, reconhecendo como o foco central a confiança de Célia em

uma escola inclusiva, para todos e feita por todos, democrática, que partisse das demandas do

povo.

Toda essa perspectiva de inclusão está nesses trabalhos que ela faz, tanto lá no Maranhão quanto aqui na Baixada Fluminense, quanto no que ela fala para os alunos, para as pessoas que a ouvem nos muitos encontros de que toma parte. Sua proposta democrática e inclusiva não é coisa pró-forma que muitos falam como um conceito vazio, ela vai lá mesmo para ver como isso é possível com os professores que a gente tem, com os problemas que a gente tem, ouvir esses professores, deixar falar, ver quais são os problemas deles realmente, é muito isso que marca a obra dela, suas reflexões são sempre a partir dessas questões. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

“A minha experiência de 102 anos de Brasil é, sobretudo uma experiência marcada pelo amor e pela convicção de que é preciso cultivar este sentimento em relação à nossa Pátria. Quando menino, certa vez, ao ouvir o hino nacional, ainda meio adormecido, despertei-me para me colocar de pé. Durante minha vida pública, sempre considerei que a Nação não pode prescindir de uma construção permanente que evoque e torne viva nossa memória épica, como um herança de muito valor que precisa ser conhecida, discutida e trabalhada em suas significações e sentidos. Um dos meus livros que mais gosto é “Japão - o capital se faz em casa”que mostra a importância do país construir-se internamente, assumindo sua autonomia política e econômica. Hoje, se voltasse a escrevê-lo daria uma ênfase especial à questão educativa. Pensar e atuar na educação, vinculando-a à questão da autonomia coletiva é o que faz a Professora Célia F. S. Linhares no seu livro “Escola Balaia”, apropriando-se de um passado de lutas para relançá-lo neste solo nordestino e maranhense, como uma forma de projetar um Brasil mais conhecedor de suas grandezas, mais solidário com sua gente, mais vigoroso contra as opressões e, por tudo isso, mais comprometido com o seu futuro.”

259

Uma visão democrática que transcende o discurso, como nos diz Heloisa, que leva

Célia até a escola em busca do diálogo com os professores, abrindo espaços para que suas

questões sejam ouvidas na Universidade. O Seminário organizado a partir da pesquisa sobre o

mestrado e a escola básica, evidenciou esse interesse de Célia em escutar os professores.

Estive uma vez em um encontro com uma escola pública aqui, e pude observar o trabalho dela durante esse seminário, esse corpo a corpo mesmo! Não foi um seminário do tipo “Ah temos uma verba e vamos colocar aqui os professores”, foi um momento de estar conversando e vendo como aquelas questões que as pesquisas traziam estavam batendo para os professores. Eu me lembro que muitos grupos de professores continuaram a buscar a universidade, a querer vir fazer coisas aqui por causa disso, inclusive nessa época criou-se a possibilidade dos professores da rede cursar as disciplinas da graduação do curso de Pedagogia como ouvintes. Foram reservadas vagas para que um percentual de professores da rede pudesse vir cursar duas ou três disciplinas. Havia todo esse interesse. Depois, mais tarde, isso deu problema por que começaram a achar que como eles começavam a cursar muitas disciplinas, podiam requerer algo, então isso não foi a frente, não por causa da Célia. Na verdade não foi nem mesmo ela que propôs isso, foram os professores que começaram a procurar, procuraram essa casa porque essa casa tinha alguma coisa a dizer a eles. Eu acho que Célia foi porta-voz disso. Foi a oportunidade de se socializar as produções para os professores, diferente dos espaços restritos de eventos como Anped. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Qual o acesso que os professores da escola básica têm, efetivamente, às pesquisas

produzidas no âmbito acadêmico? Os eventos da área de Educação contam, de fato, com os

professores das redes estaduais e municipais? Ainda que me faltem dados estatísticos para

afirmar algo com relação a esse assunto, presumo, como freqüentadora que não. Esses

encontros são freqüentados, em sua maioria, por pesquisadores, mestrandos, doutorandos,

professores universitários envolvidos com pesquisas. Quais seriam então os espaços de

difusão do conhecimento que se produz nas universidades? Quem faz essa mediação? Também perguntei a Heloisa, tal com o fi

estratégias que Célia desenvolveu em diferentes momentos de sua vida para lidar com as

divergências de idéias e de diferenças de concepções presentes nos ambientes de trabalho.

Tema caro na história da professora que desde muito cedo, quando ainda não era possível a

ela compreender os meandros do mundo adulto, vivenciou momentos difíceis em que pessoas

queridas e próximas (além dela própria), se viram diante de situações de embate. Alguns

deles, como já sabemos, com duros desfechos que envolveram perdas, cisões, mudanças de

260

vida para ela e sua família de origem, assim como para ela e a família que formou com José

Linhares. A esse respeito Heloisa nos conta:

Foram muitas situações aqui na faculdade, eu fui representante dos alunos no colegiado e admirava muito esse estilo dela de sempre falar para apaziguar, mas não era uma atitude do tipo “vamos botar uma tampa em cima disso aqui”. Era aquela palavra sábia no momento certo, sempre foi assim. Sempre houve na UFF divisões, brigas horrorosas ali dentro, sobretudo no programa de pós. Eu me lembro que quando as coisas estavam tomando um rumo em que até nós alunos ficávamos desesperados pensando “o que quê vai acontecer?!”, quando parecia que ia ter uma explosão devido aos ânimos alterados, Célia pedia a palavra e vinha com aquela clareza, arrumando as coisas e mostrando os limites do ser humano, os limites da academia, como que essas coisas podiam ser superadas de outra forma que não aquela do desentendimento. O que eu sei é que sempre depois da fala de Célia as coisas começavam a tomar um rumo um pouco mais calmo, mais organizado, mais humano. “Não adianta a gente ficar se batendo!”, ela dizia, e falava isso de forma tão convincente... era sempre aquele momento em que todo mundo parava para ouvir e isso diluía muitos conflitos. Agora tem o grupo que foi se formando contra tudo que é mais civilizado, contra tudo que é mais humano, trabalho honesto, esse pessoal que é da outra banda realmente vem cada vez mais criando problemas, embates com ela, acho que não reconhecem o valor que o trabalho dela vem tendo. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloisa lembra ainda de duas passagens delicadas já comentadas em outros trechos

desse trabalho: a candidatura de Célia na eleição para o CES e a perda de Rui. Vamos

conhecê-la pelo olhar de Heloísa.

Uma experiência interessante foi quando ela se candidatou para a direção do Centro de Estudos Sociais (CES) que congrega a Economia, Direito, Serviço Social e a Educação. A gente se engajou naquela campanha, que foi muito bem feita. Tivemos a oportunidade de ouvi-la falar em vários lugares, de estar com ela em muitos momentos. Ela falou nos auditórios de todos os cursos ligados ao CES, com os outros que estavam sendo candidatos. Ela estava levando a melhor, estava muito bem, estávamos muito felizes em como as coisas estavam indo! O duro é que na verdade ela perdeu por uma rasteira da oposição, eles fizeram o seguinte: foram para as unidades da UFF em Pinheiral e Bom Jésus, que tem colégios, fazer campanha e prometeram que iam dar ônibus, camionetes, tudo para os colégios. Esse grupo de oposição, que não tinha um projeto, queria o poder de qualquer maneira! O pessoal das escolas votou em peso nesse outro grupo e desequilibrou a eleição. Aqui em Niterói nós fomos ganhando, ganhando, ganhando, ai quando abriu a urna dos colégios foi aquela queda e ela perdeu por pouco.

Esse foi um momento que me tocou muito. A forma como ela encarou aquilo tudo foi uma lição de vida para mim, não foi algo como “não estou nem ligando”, não! Ela ficou chateada, expressou isso, afinal foi uma coisa feia, uma coisa triste, mas enfim sua atitude foi de tocar para frente, tipo “vamos

261

trabalhar, não vai ser por isso que vamos desanimar!” Ela até nos deu apoio, a nós que estávamos junto com ela!, “Isso acontece, contra isso a gente não pode lutar, é uma luta que é desigual!”. Então foi uma lição da forma como ela continuou trabalhando, já no dia seguinte. Enquanto muitas pessoas ficam irritadas, amargas, destilando a mágoa pelos caminhos, pelos corredores, Célia foi trabalhar, foi resolver as coisas da vida dela. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Sobre a perda de Rui, Heloisa comenta como esse episódio foi para ela mais uma

aprendizado de vida. Tocou-a acompanhar a forma como Célia lidou com aquela dor e perda,

sem perder a confiança na vida, sem deixar a esperança de lado e “continuar vivendo e

produzindo em favor dos outros”, como o texto abaixo revela.

Eu sempre percebi isso, a perda do irmão, como fazendo parte da vida dela, essa fatalidade, essa crueldade terrível, essa passagem da família, dela mesma que também teve que sair do Maranhão. Mas também percebi como sendo um exemplo de que mesmo com essas adversidades tão graves na vida é possível se continuar vivendo, é possível se continuar lutando, é possível se continuar produzindo em favor dos outros. Eu acho que foi muito essa lição de ver como ela vêm enfrentando esse problema do assassinato de Rui. A gente sempre acompanhou muito essa questão. Por conta disso eu fui com ela aos encontros do grupo “Tortura nunca mais”, fiquei tomando conhecimento de muita coisa que eu não sabia, porque acabamos sabendo por tabela, por estar muito próxima dela, mas ouvir as pessoas darem os depoimentos é muito impactante. Fui a algumas reuniões que o grupo fazia para discutir essas coisas, fui à abertura da rua com o nome de Rui. Enfim, participei de todos esses movimentos dela em prol da memória, que não era só a memória do irmão. Acho que essa questão da memória do irmão ela vivenciou ali, intimamente com a família, mas tinha uma preocupação de mostrar para nação isso que tinha acontecido. Uma coisa é a dor, a coisa pessoal, familiar, outra coisa é a batalha dela para que não fosse esquecido, não só o Rui, mas eles todos e a situação que ocasionou tantas perdas, o que tinha acontecido naquele momento histórico.

O exemplo de Célia, bom espelho, “calçou” Heloisa em sua vida pessoal. Ela nos

relata que quando perdeu seu pai, seu irmão e sua mãe, lembrava-se da história de Célia e

pensava que, pelo menos, ela sabia como eles haviam morrido, onde eles estavam. A lição de

que mesmo assim se pode continuar vivendo a acompanhava.

Porque naquele primeiro momento da dor a gente quer sumir, morrer, depois você vai pensando, “não eu tenho isso para fazer na vida, eu tenho minha profissão, tenho minhas filhas, tenho meus alunos que estão ali esperando por mim”, e aí você vai reelaborando essas perdas e vai vivendo. São perdas grandes, são coisas trágicas, mas que podem te fazer melhorar e não piorar.

262

Acho que Célia afinou ainda mais a sensibilidade, a percepção, a identidade com o sofrimento humano, passar por essas questões, para ela foi um afinamento de vida, o que foi um exemplo para gente, para mim sempre foi muito! Quando eu estava nesses desesperos eu pensava nela.

Heloisa traz a dimensão da experiência de perda como capaz de forjar em Célia a

sensibilidade para a dor do outro, fortalecendo sua identidade com o sofrimento humano. Para

Heloisa, mesmo com a perda de seu irmão que foi trágica, vítima de um assalto, era muito

mais difícil compreender a situação que a violência da ditadura havia imposto a tantos jovens.

Meu irmão foi uma perda muito trágica e triste, pois foi um assalto com morte, foi muito duro de lidar. Mas a situação desses meninos que sumiram por conta de um ideal político, por conta de uma ditadura que faz uma coisa dessas?! É muito mais difícil de você se conformar com essa situação do que a que vivi. A morte de meu irmão retrata a precariedade da situação social que vivemos, é triste mas há um contexto social que compreendemos. Mas entender porque uma ditadura faz uma coisa dessas com seus jovens?! Porque eles têm um ideal diferente?! É difícil aceitar, vai dizer o que para os filhos?! ele tem um filho! Então essa situação em relação ao Rui foi para nós um aprendizado de vida, de como ela levou a vida com essas questões todas. E de batalha, como ela tem a capacidade de transformar o negativo, o doloroso em arma de luta para poder passar essa mensagem de vida, de democracia.

Mestre que funciona como exemplo, que ensina não apenas quando intencionalmente

empreende uma ação docente orientada, mas que, a partir da forma como vive, é um modelo.

Para Arroyo (2000, p. 124) “as lembranças dos mestres que tivemos podem ter sido nosso

primeiro aprendizado como professores. Suas imagens nos acompanham como as primeiras

aprendizagens”. Modelos de comportamento, de atitude, de ética. Exemplos para além das

lições planejadas, que escorrem pelos gestos fraternos, pela escuta atenta, pela palavra amiga

e oportuna.

A pesquisa de Cunha (2004) sobre a formação de professores e sobre as características

docentes daqueles que consideramos bons professores, identifica a importância dos modelos

na escolha profissional. Os professores entrevistados pela pesquisa destacam como foram

significativos os exemplos de dedicação aos estudos e à pesquisa e ainda atitudes de

responsabilidade, solidariedade, sensibilidade e sutileza de seus mestre.

As marcas impressas por nossos mestres “São marcas permanentes e novas, ou

marcas permanentes que se renovam, que se repetem, se atualizam ou se superam”. Arroyo

(2001, p. 124)

263

Célia para mim, daqui da faculdade, da minha vida profissional, foi a pessoa que mais marcou que me formou. Disciplinas você tem, mas formação pessoal, essa formação interna, esse exemplo de ser como ela é isso é uma coisa que me formou muito mais do que qualquer outra coisa. Hoje em dia eu tenho um jeito de lidar com meus orientandos que tem muito a ver com o jeito dela. Na vida de professora você tem práticas muito baseadas nos modelos que você teve. No caso Célia foi para mim esse grande modelo, no sentido de eu pensar assim “o que Célia faria nessa situação?”, essa coisa que a gente tem com mãe, quando tenho alguma coisa complicada que não vai indo bem, eu lembro de Célia, penso como posso tirar o melhor dessas pessoas e acabo conseguindo.

Pergunto a Heloisa sobre as críticas dirigidas a Célia e seu trabalho. Que notícias ela

tem a esse respeito?

Não tem nada concreto, nada que se diga assim “ah ela fala disso e a gente é contra isso...”. Bom, se bem que eu acho que deve ter algo ai sim, porque há uma maioria de professores ortodoxos e Célia não é nada ortodoxa. Quando só se falava em Marx ela estava discutindo Foucault, por exemplo, porque ela tem esse pensamento aberto, ela não está presa a essas amarras, “ah, aqui a academia é marxista vamos falar só de Marx!”, não! Vamos falar de Foucault! Vamos falar de Heidegger! Vamos falar de vários autores com as quais ela dialoga. Ela não exclui, considerando inclusive autores marxistas.

Naquele tempo do mestrado a gente já estava discutindo Bachelard, Foucault, e Gramsci também, fazendo alguns paralelos, foi assim uma abertura muito interessante. Acredito que, se houver alguma crítica, talvez seja alguma coisa por aí. Célia pode, talvez, provocar certa inveja por ela conseguir conquistar essas adesões, por ter pessoas sempre tão presentes perto dela. (Heloisa Villela, entrevista, 2007)

Heloísa comenta ainda da reação de seus alunos quando tem a oportunidade de ouvir

Célia em algum evento. Sua palavra mobiliza, toca, envolve a quem a escuta.

Os jovens que entram, meus alunos que ouviram a Célia falar ficaram apaixonados, “AH, quem é ela?!”, os jovens têm essa impressão dela. Agora mesmo nesse seminário do curso de pedagogia, eles adoraram o que ela falou, entendeu?

Com relação à influência mais geral de Célia para a educação no Brasil Heloisa

destaca sua visão democrática de escola e a curiosidade intelectual que a fez dialogar com os

autores diversos, antes mesmo que ficassem mais conhecidos no Brasil. Um olhar a frente,

inovador.

264

Eu acho que a produção dela foi e é um marco nos discursos sobre educação, sobre a Pedagogia. Acho que num futuro nem tão longínquo, quando as pessoas fizerem a análise do que foi produzido nesse período, do que a educação pensou, o pensamento de Célia vai chamar atenção das pessoas que dirão “nossa, mas essa pessoa já falava sobre isso, ela já pensava nisso?!”. Eu acho as vezes que está até um pouco avançado para mediocridade que acontece nos nossos cursos atualmente. Certas questões que ela coloca, não se pegou bem o sentido real da coisa. Por exemplo, essa necessidade desse engajamento, os autores que ela busca para tecer seu pensamento, são coisas novas que ela introduziu em diferentes momentos. Quando ela falava de Foucault as pessoas não o conheciam, então não compreendiam bem o que ela estava falando. Hoje ele é mais conhecido, tem vários seminários sobre Foucault, se você voltar aos textos você vai dizer, “Pôxa, como ela já estava pensando questões a partir desses posicionamentos novos!”.

Retomando o que analisamos sobre as idéias de Célia nos anos 60 e 70, é possível

compreender a colocação de Heloisa. Lembremos que questões como a criatividade, a

autonomia do pensamento necessária ao professor, a complexidade da educação já estavam

presentes em seus textos naquelas épocas. Vemos que as idéias fermentaram (o levedo ...),

atravessaram por períodos de medos, eclodiram em ousadias e, parecem agora se firmar.

Firmam-se numa proposição dirigida à escola, cunhada em meio a ações coletivas de encontro

e troca. Ações da Filósofa militante.

Então é uma pessoa que está sempre com essa curiosidade intelectual, vendo na frente. Ela traz suas idéias para construir esse pensamento de uma escola mais democrática, de uma sociedade que tenha ações, ações de grupos que se articulem para fazer uma escola de muito boa qualidade para essas multidões que está ai, nas franjas da sociedade, como ela mesmo fala. Então esse pensamento todo de Célia me parece muito novo para esse momento, a gente ainda não acordou bem para ele.

É nessa lida com a diferença que Heloisa reconhece a “mestria” de Célia. Num

movimento inclusivo, respeitoso, ético que permite a que ela dialogue e respeite o diferente.

Eu acho que essa palavra seria assim uma palavra forte: Célia sabe trabalhar com as diferenças! As pessoas não sabem normalmente trabalhar com as diferenças, ela sabe, aproveita as diferenças, valoriza aquilo que a diferença tem de interessante, porque se fosse todo mundo igual... Nós somos pessoas diferentes, e ela sabe conciliar isso muito bem, aproveitando as diferenças de cada um. Eu acho que por isso que as pessoas calavam a boca no mestrado, naquelas situações de reunião da Pós-Graduação das quais te falei e que presenciei. Célia sabe captar que nós temos um projeto maior. Ela pensa “vamos dar conta desse projeto e trabalhar essa diferença de uma outra forma, mas não aqui, dessa forma e nesse momento quando a gente tem tanta coisa para fazer”.

265

Sobre o estilo de escrita de Célia, Heloisa comenta que seus textos são “eruditos sem

ser pedantes” e que tem utilizando alguns deles com seus alunos para discutir questões como

o papel do pedagogo.

O estilo é muito gostoso de ler, um estilo erudito sem ser pedante, ela fala de uma forma com erudição, escreve textos que são agradáveis de ler. Eu conheço uma parte das obras dela. A tese de doutorado, o Tradições e contradições, o livro da Escola Balaia, alguns textos que eu li do tempo em que eu era orientanda dela e os que ela tem escrito em coletâneas que são muito bons. Uso muito aqueles artigos do “Tradições e Contradições” com meus alunos que abordam a questão do pedagogo e da escola normal. Meus alunos gostam. Uso nas disciplinas de Pesquisa e Prática Pedagógica, quando discutimos questões da pedagogia, o que é nossa formação e para pensar a pesquisa e a identidade do pedagogo. Tem um também que ela escreveu com a Professora Regina Leite Garcia, numa coletânea quando ela veio da Inglaterra. Elas fizeram uma entrevista com Chomsky e com outros pensadores de grande porte, como Michael Young, Michel Apple, dentre outros. São obras que posso referenciar, que tenho mantido mais contato. Além de alguns projetos, como o que participei, e o da escola Balaia, que ela me mostrou e o último também, sobre os movimentos instituintes, que ela fez nos movimentos do Aleph.

Para Heloisa, Célia é a figura da mestra-mãe, que ampara, instiga, encoraja o passo a

frente do aprendiz. Modelo, exemplo de integridade, de ética, de unidade, como se referiu

Heloisa a coerência entre ação e pensamento evidentes na expressão de Célia. Mestre que

apóia o crescimento, que sustenta a autonomia (e a deseja). Tal como a mãe de uma jovem

mulher, que, entre sustos e prazeres, vibra com sua independência. Independência que, por

vezes, comporta afastamentos. Se suportados, não significarão rompimentos. Apenas o

encontro de novos veios de um rio que não pára de correr.

266

3.4 A voz dos parceiros: Waldeck

WALDECK: MEMÓRIAS DE UM HOMEM POLÍTICO159

RECEITA LIVRE

No quadrado dos teus dias traça círculos abertos

Na rotina dos teus desenhos

inventa matizes diversos

E se não cabe no quadro violenta as molduras,

espraia-te nas paredes, fura tetos

Quebra telhas e vai completar-te no espaço

(Balina Belo)

Essa poesia é uma elegia a liberdade. È como sinto Célia, meio que ela desliza, tem uma certa leveza, tem um certo frescor. (Waldeck Carneiro, entrevista 2007)

Apesar do relacionamento entre Waldeck e Célia Linhares ter efetivamente se

estreitado na década de 90, incluo sua narrativa nesse capítulo tendo em vista o fato de que

sua vivência na UFF se iniciou na década de 80. Dessa forma, Waldeck traça um panorama

sobre o programa da pós-graduação desse período, e também dos subseqüentes, que nos

159 Aqui se faz necessário ressignificar o sentido com que a palavra “político” é tomada para qualificar Waldeck. Atualmente, associada a sentidos múltiplos, dada as seguidas decepções que a política e quem a faz em nosso país nos trazem, tendemos a, muitas vezes, associar “político” a sentidos nem sempre tão qualificados. Aqui, a partir de Hanna

Arendt, assumimos que "A política baseia-se no fato da pluralidade dos homens", devendo organizar e regular o convívio dos diferentes e não dos iguais. Para os antigos gregos não havia distinção entre política e liberdade e as duas estavam associadas à capacidade do homem de agir em público, que era o local original do político. O homem moderno não consegue pensar desta maneira pelas desilusões em relação ao político profissional e a atuação desse no poder. Porém, Arendt, judia, que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial, acreditava na ação do homem e na sua capacidade de "fazer o improvável e o incalculável". Waldeck é esse homem político, que tem uma visão aguda do contexto mais amplo de nossa sociedade e sempre buscou espaços de atuação voltados para as políticas públicas. Um bom exemplo de homem político.

267

parece ampliar o conhecimento de seus meandros. Aborda as mudanças que o programa

sofreu, as idéias que circulavam e que se modificaram ao longo dos anos 80 e 90,

especialmente.

Entrevistando Waldeck, hoje Secretário Municipal de Educação de Niterói, descubro

que ele formou-se em Biblioteconomia, entrando logo em seguida para a pós-graduação em

educação na UFF. O mestrado constituía-se para ele em oportunidade de aprofundar

inquietações nascidas em sua graduação.

Fiz o mestrado em educação na Faculdade de Educação da UFF, vindo de uma espécie de reconversão acadêmica. Eu havia feito uma graduação muito novo, entrei na universidade muito cedo e meio “desbussolado”. Fiz um curso de graduação (1981-1985) que não me desafiou muito. Foi um curso de graduação em biblioteconomia e documentação da UFF, no Instituto de Arte e Comunicação Social. Apesar de não ter me sentido desafiado, o curso despertou um interesse muito grande por discutir temas que eu achava importantes e que não eram absolutamente discutidos na graduação. Um deles era a questão das bibliotecas escolares e as bibliotecas públicas, sobre o papel que esses espaços podiam desempenhar no acesso e democratização dos bens culturais. Eram temas marginalizados no curso, de abordagem muito residual. Isso me preocupou e comecei a ler por conta própria. No caso das bibliotecas escolares eu comecei a perceber que seria muito difícil compreender melhor essa situação, esse tema, sem compreender a questão da escola mais amplamente e aí eu pensei que tinha que estudar um pouco a escola, e então quis fazer o mestrado em educação. Fiz a seleção em 1986 e entrei na turma de 87, ainda na Faculdade de Educação que funcionava na Drº Celestino onde tem ali a escola de enfermagem. Eu tinha 21 anos e estava só querendo entender mais a escola pois eu achava que assim poderia entender melhor a questão da biblioteca escolar.

Waldeck relata que na época, meados de 80, poucos eram os que cursavam o

mestrado. Nesse sentido, vale abordar uma mudança razoavelmente recente com relação a

procura pelos cursos de pós-graduação. Nos últimos 10 anos aproximadamente, vimos correr

aos mestrados e doutorados uma grande quantidade de pessoas, muito em função das

demandas de um mercado de trabalho que cada vez mais se mostra restrito. Cresce também

nos editais dos concursos, exigências de altas titulações. Atualmente, para a grande maioria

dos concursos de professores titulares das universidades estaduais e federais, a titulação

exigida costuma ser a de doutor, a exceção das seleções para professores substitutos e

universidades particulares.

Ronca e Costa (2002) ressaltam que, se aliam à necessidades do mercado questões

como as desordens da economia e o ritmo precipitado das evoluções científicas e técnicas

268

contemporâneas que acabam por determinar uma aceleração geral da demanda por

conhecimentos na sociedade.

Mais do que nunca, a produção de conhecimentos diz respeito à vida de todas as pessoas. Deve-se reconhecer, no entanto, que há uma crescente dificuldade em se prever o curso atual dos saberes, tal a quantidade de inovações que chegam cotidianamente. (1999, p. 24)

Os autores chamam atenção ainda ao fato de que se soma a esses as próprias diretivas

da LDB 9394/96160, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, também chamada de

Lei Darcy Ribeiro, que abrange todos os níveis de ensino, da educação infantil ao ensino

superior. A Lei exige que um terço do quadro docente das instituições de ensino superior

tenha título de mestre ou doutor. Isso, logicamente, ampliou a procura por cursos de mestrado

e doutorado por parte de muitos professores de cursos de graduação, sobretudo das

instituições de ensino superior privadas. Por outro lado, existe também uma nítida questão

competitiva e de mercado quando nos referimos ao aumento do número de professores

titulados no ensino superior privado, expresso numa demanda crescente por esse tipo de

profissional.

Waldeck entrou no programa no final da década de 80, quando este passava por uma

transição importante. Reconfigurava-se o quadro de professores. Ele traz uma visão

panorâmica desse processo muito interessante, que nos favorece o entendimento das

mudanças no campo das idéias e da própria vocação da UFF enquanto curso de formação de

professores.

Fui me aproximando da Faculdade de Educação. Naquela época fazer mestrado era muita coisa, era absolutamente raro e o programa era bem conceituado. O programa surgiu aproximadamente em 75, ele tinha então 12 anos. A avaliação do programa não era por nota, era por conceito e o mestrado tinha conceito A junto com a Universidade Federal de Santa Maria, com a PUC de São Paulo e outras. Enfim, tinham seis programas com nota mais elevada. Atuando neles haviam alguns nomes mais consagrados e alguns que estavam começando a se consagrar. O programa sofreu uma

160 No próximo capítulo, que abrange as décadas de 90 até os dias atuais, abordaremos essa lei e o contexto de sua promulgação.

269

mudança muito grande em meados dos anos 80. De 75 a 85 funcionou com um corpo de professores num contexto em que a titulação de nível de doutorado era raríssima. O primeiro programa de doutorado em educação era o da PUC de São Paulo que começou em 80 com Luis Antonio Cunha, Neidson Rodrigues, Ezequiel Theodoro da Silva, dentre outros. Muita gente que lecionava no programa era mestre, ou tinha feito algum curso de pós-graduação no exterior. Havia muita revalidação de diplomas.

Waldeck traz a tona também questões epistemológicas, ligadas às concepções teóricas

desse novo corpo docente. Identifica que, embora se enraizassem numa visão semelhante,

sobretudo no que diz respeito ao papel da escola e da educação num contexto social de

desigualdade, metodologicamente, havia muitas diferenças. Antes dessa mudança nos quadros

de docentes, Waldeck reconhece que o grupo era influenciado por uma tendência mais

conservadora. Uma abordagem de caráter mais sócio político pouco aparecia.

A avaliação era medida, a abordagem mais avançada da avaliação era a da psicologia. De um modo geral o que orientava era uma linha muito tecnicista. A didática era instrumental. Eram pessoas boas que compunham o programa. Em meados dos anos 80, a Pós começava a receber quadros de uma nova safra que vai se formando, vai se titulando na área de educação. A Célia já estava lá desde os anos 70, ela tinha uma outra vertente filosófica. Naturalmente, ela não engrossava essa fileira majoritária conservadora, mas tinha boa relação, era uma pessoa diplomática, afável. Mas foi chegando um grupo com o qual a Célia passou a ter mais identidade ideológica, de princípios fundamentais, mas que depois se revelou uma diferença enorme de método, de trato com as coisas. Um grupo da Nilda Alves, do Gaudêncio Frigotto, da Regina Leite Garcia um pouquinho depois o do Luis Antonio Cunha, principalmente. Esses quatro professores, nos anos 80, foram responsáveis por uma importante reconfiguração do programa de pós-graduação da UFF. O programa assumia um viés cada vez mais progressista (e encontrando eco em algumas pessoas de lá, inclusive Célia), mais sintonizado com a discussão sobre a escola pública, com a educação das classes populares, com relação à discussão da construção coletiva de políticas públicas educacionais. O viés era principalmente inspirado num referencial do materialismo histórico dialético, com diferentes traduções para ele, mas essa era uma matriz hegemônica e então o programa se reconfigurou.

Waldeck dá notícias de uma reconfiguração, já mencionada por Balina, Jésus e

Heloisa, que, trazia novos influxos ao pensamento pedagógico da UFF, mas que em sua forma

de expressão parecia comportar exclusões e hostilidades aos que não partilhavam daquela

perspectiva.

Inclusive teve um certo expurgo, os professores que estavam antes foram mais ou menos, descaradamente,expurgados, alguns por exigências de maior

270

titulação, que de fato começaram a ser necessárias e eles não tinham (isso era um pretexto formal para expurgá-los) e por outro por que foram ficando sem espaço. Outros se acomodaram a esse novo, ou começavam a fingir que eram materialistas histórico dialéticos ou ficavam sem espaço. Aconteceu um pouco de tudo. (Waldeck, entrevista, 2007)

A entrada de novos membros em um Programa é sempre acompanhada de

movimentos de estranheza e de reconhecimentos recíprocos que tendem a reorganizar

hierarquias.

Eu fui chegando em 1987, no segundo semestre, já percebendo isso. Nilda Alves era coordenadora do programa, tinha sido a primeira vez que esse grupo assumiu a coordenação do programa. Nilda é assim uma pessoa de viés autoritário, muito presente, uma presença muito forte, muito dura no comando. Já se percebia que o Programa estava mudando. Essa mudança trouxe perspectivas interessantes, não só sob o ponto de vista teórico-político, mas também por que eram pessoas muito mais atualizadas em relação à literatura educacional e a pesquisa educacional. Eles tinham inserção em pesquisa, o que não era o caso do programa até então, não tinha essa tradição de ter professor pesquisador, todos eles estavam desenvolvendo projetos, começando a publicar ou já tinham publicado. Luis Antonio já tinha publicado em 75 “Educação e desenvolvimento social no Brasil” que é um clássico dele, então, estava começando a publicar aquela trilogia sobre o ensino superior, já tinha feito os dois primeiros números. Gaudêncio estava publicando “Produtividade da escola improdutiva”, primeiro livro dele. Nilda Alves demorou mais a publicar, isso foi criando um caldo novo, instigante. (Waldeck, entrevista, 2007)

Curiosamente, Waldeck não foi aluno de Célia na época do mestrado mas a conheceu

em um lançamento de livros, inaugurando uma primeira aproximação mais estreitas das

questões de que ela tratava.

Conheci a Célia na época do mestrado, embora não tenha sido aluno de Célia, por diferentes circunstâncias. Uma única vez estive na antiga escola da educação pois ela estava lançando aquele livro “Formação de professores: tradições e contradições”, ainda aquela primeira edição, capinha preta, editora Agir, então fui lá ao auditório, ouvi a fala dela sobre o livro. (Waldeck, entrevista, 2007)

Nos encontros entre os personagens dessa tese, Waldeck nos conta um pouco sobre o

seu próprio mestrado e sobre sua orientadora, a professora Balina Belo, sublinhando a

semelhança que identifica entre Célia e Balina (a que a própria Balina já havia se referido).

São os caminhos que vão se enlaçando a partir das escolhas que fazemos e vão abrindo novas

271

possibilidades. A respeito de sua dissertação, vale a pena destacar a observação que faz de

Balina, nossa entrevistada do capítulo anterior desta tese, bem como as conexões que se

estabelecem entre o jovem pesquisador e os estudos que Célia desenvolvia nessa época.

Eu acabei pesquisando mesmo a biblioteca escolar no Brasil Publiquei em 95 um livro sobre este tema intitulado “A miséria da biblioteca escolar”. Foi meu primeiro livro. Então acabou que de fato eu fui atingir esse objetivo. Minha orientadora foi Balina Belo Lima. Aliás, ela tem características muito semelhantes a Célia, em alguns aspectos.

Vivendo no mestrado o ambiente da Faculdade de Educação, comecei a perceber que lá era muito forte a discussão da formação de professores. Célia mesmo foi uma das pessoas que, no início dos anos 90, começou a se destacar no debate de viés mais nacional. Ela foi sócia fundadora da ANPEd, e logo que voltou do seu doutorado atuou nos movimentos pró-formação dos educadores que impregnavam a Comissão Nacional de Reformulação dos cursos de formação dos educadores (CONARCFE), tendo participado de sua diretoria, coordenando o Estado do Rio de Janeiro. Depois, ela foi uma das fundadoras da ANFOPE e membro de sua diretoria.. A Faculdade tinha ai uma movimentação interessante. Eu me interessei muito por esse tema, ia a muitos seminários, ouvia gente falar, lia por minha conta. Terminando o mestrado, fiz o concurso de seleção para professor auxiliar e passei, fiz com mestrado ainda. Fui me impregnando desse debate sobre a formação de professores e terminando o mestrado eu sabia que já queria me aprofundar mais nessa discussão. Comecei a ler sobre formação de professores e a encontrar alguns artigos de Célia. Foi um dos meus primeiros contatos. Sai do Brasil em 1993, continuava sem grandes contatos com a Célia. Pedi afastamento da UFF para meu doutoramento. No meio do ano o CNPQ me deu a resposta e fui para a França.

Curiosamente, foi durante o afastamento do Brasil que Waldeck se aproximou mais

um pouco da obra de Célia, em função de sua pesquisa, para a qual fez uma varredura das

principais publicações brasileiras sobre formação de professores disponíveis até então.

Fui para França e não tive contato com a Célia. Mas como eu estava afunilando a pesquisa sobre formação de professores fiz, modestamente, - talvez seja o vício de bibliotecário-, um levantamento bibliográfico muito exaustivo. O período que eu cobri foi dos anos 70 até o início dos anos 90. Devo ter deixado passar pouca coisa relevante sobre formação de professores. Fiz um levantamento muito bom e atualizado para a época, encontrei alguns textos de Célia, alguns me interessaram mais, outros menos. Esse foi o primeiro contato maior. (Waldeck, entrevista, 2007)

Esse contato se estreitaria ainda mais quando de sua volta ao Brasil. O cenário era

outro e Waldeck encontraria em Célia uma parceira e aliada de trabalho.

272

Em 1997, recém chegado ao Brasil, de volta ao programa de Pós da UFF, ele

encontraria o corpo docente muito mudado. Waldeck se surpreenderia com a demanda do

grupo para que ele assumisse a chefia departamental. O livro escrito em função de seu

doutorado havia circulado no programa e as pessoas o conheciam. Para ele, o movimento de

cooptá-lo para chefe de departamento vinha num momento difícil, que lhe parecia apressado.

Além da inexperiência com os meandros institucionais, ele ainda voltava a se familiarizar

com o Brasil e sua antiga/nova rotina.

A experiência na França tinha sido muito significativa, Waldeck havia se adaptado

muito bem à vida no país, adorado morar lá e se engajado em diversas experiências que o

mobilizaram. Voltar era difícil, ele não queria. Porém, o compromisso com o investimento

que havia sido feito nele ecoava forte. Era preciso voltar.

Apesar da discussão sobre a sucessão de chefia departamental ter se intensificado nas

reuniões de colegiado, uma greve interromperia esse processo. O tempo necessário para que

Waldeck, já mais ambientado, pudesse examinar a possibilidade de aceitar sua

indicação.Célia então o encorajou, decisivamente.

Mas começamos o ano com uma greve, de março de 98 a julho de 98 e essa discussão ficou congelada, as chefias departamentais tiveram seus contratos prorrogados. Em julho, após a greve, os colegas falaram, “Waldeck, você não vai dizer que está se readaptando ainda, você já está aqui há quase nove meses, você é brasileiro pô!”. Houve um movimento pela minha candidatura. Eu sempre gostei da gestão, eu tinha vivido uma experiência na França na Casa França-Brasil como conselheiro de administração, enfim, eu falei, “quer saber, eu acho que vou pegar!”. A Célia foi uma das pessoas que me encorajaram. (Waldeck, entrevista, 2007)

Essa atitude de Célia, que mesmo sem o conhecer, apostou e confiou em seu trabalho,

os aproximou. Era então o momento de estreitar aquela relação que se iniciava. Novas

perspectivas de parceria se abriam em função da aproximação e encontro de ideais.

Em 98 fizemos um encontro, Célia e eu, decidimos almoçar juntos no Rio, num restaurante chamado Gioto, na Praia de Botafogo, um restaurante de massas que eu recomendei por ter trabalhado ali perto. Marcamos uma hora lá, almoçamos e fomos nos conhecendo, depois fomos na casa dela. Ela me deu alguns livros e conversamos mais um pouco. Esse almoço foi o encontro mais marcante que eu tive com Célia, pois sem que nós disséssemos isso, decidimos ali que íamos trabalhar juntos. Desde então tem sido assim, em alguns momentos mais perto, outros menos perto, mas desde esse momento que nós compartilhamos sentimentos, vontades, pontos de vista sobre o mundo, nos mantivemos sempre próximos. Acho que encontramos muitas

273

identidades, apesar das diferenças de gerações, de formações e tudo o mais. Esse almoço foi muito longo, com muita contação de histórias, muito agradável, engraçado. Ficamos juntos em muitas jornadas desde então: orientando as mesmas pessoas, indicando bolsistas um para o outro, montando o ALEPH em 1999, fazendo publicações juntos, nas lutas políticas na faculdade e na universidade, enfim. Temos também muita participação juntos em eventos, na Anfope, tentando encaminhar posições, articulando coordenações que não queríamos que caíssem nas mãos de quem considerávamos muito ruins, então é isso.

Agora estamos juntos novamente, ela está ajudando nessa reta final na questão do Plano Municipal de Educação de Niterói. Além disso, estreitaram-se nossas alianças familiares, eu freqüento as festinhas dos netos dela e ela dos meus filhos, tenho uma amizade muito grande, um carinho muito grande. (Waldeck, entrevista, 2007)

Esse afeto que se estabeleceu a partir da identidade de projetos e idéias profissionais

estendeu-se às relações familiares. Waldeck fala adiante que tem Célia como “uma mestre,

mesmo sem ter sido aluno dela”. Isso nos faz pensar sobre quem são nossos mestres e o quão

múltiplos são os espaços de aprendizagem e formação, para além dos bancos das salas de

aula.

Eu a tenho assim como uma mestra, mesmo sem ter sido aluno dela. Eu tive um grande mestre, de quem eu fui aluno de verdade que foi o professor Luis Antônio Cunha, com ele eu aprendi muita coisa, enfim, tive também a Balina que me incentivou muito no trato com a língua portuguesa, que era algo de que eu já gostava. E sem que tivessem sido minhas professoras a Célia e a Felisberta eu tenho como referências docentes. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck evoca, assim como outros entrevistados nessa tese, a imagem de Célia-

mestra. O fato de ele não ter sido seu aluno, faz pensar no que afinal caracteriza um professor

como mestre, que o torna referência e exemplo, imprimindo marcas em nossa trajetória. Pode

se explicar por algo que encontramos nas aulas por ele ministradas? É um conjunto preciso de

ações e procedimentos? Não são poucas as pesquisas161, algumas de caráter mais prescritivo,

que analisam as qualidades típicas de um bom professor, assunto que já mencionamos, mas

161 O precioso livro de Eliane Marta Teixeira Lopes, “Da Sagrada Missão pedagógica”, explora os discursos sobre a tarefa de ser professor, pesquisando como a “missão” de como o professor deve ser tem sido transmitida ao longo da história. A autora propõe uma leitura nada convencional sobre o assunto, muito instigante, recorrendo à psicanálise, a religião, a literatura e aos estudos da língua e da palavra.

274

que volta a tona, num oportuno retorno. Acredito que a definição do que é um bom mestre não

cabe em esquemas prescritivos, o que podemos fazer é aproximações com aquilo que é mais

pregnante nos mestres que nos mobilizam. É Freud, em 1914, por ocasião da comemoração

do 50º aniversário da fundação do colégio em que estudara quem diz algo que muitos de nós

poderíamos dizer (LOPES, 2003):

Minha emoção ao reencontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. (FREUD, 1976)

Pergunto a Waldeck qual sua impressão sobre o estilo Célia de fazer política. Tendo

em vista a sua convivência com Célia nos espaços da mesma universidade e na lida com

situações de embates e divergências entre os grupos, conhecer sua visão sobre esse tema é

bastante interessante.

No caso da Célia, não só no caso de fazer articulações políticas, mas de um modo geral, ela tem horror à truculência, seus movimentos são sempre feitos com certo charme, com certo cuidado, com certa elegância, sem necessariamente deixar de ter contundência e firmeza. Eu já vi Célia fazer duros embates em certas situações, seja academicamente seja em reuniões em que se discutia candidatura para isso ou para aquilo. Ela era muito firme mas sabendo a justa medida entre firmeza, deselegância e a virulência. Acho que isso é uma marca importante, tem uma certa poesia na ação dela, um certo lirismo. A Clarice Nunes fez um livro sobre Anísio Teixeira, a tese de doutorado dela, chama-se “Anísio Teixeira poesia da ação” e eu sinto um pouco isso na ação político pedagógico da Célia, tem uma certa poesia, tem um certo cuidado com o outro, com o ser humano, com a pessoa, isso é uma marca forte dela não só nas articulações. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck associa a forma firme, porém delicada com que Célia lida com os diferentes

espaços políticos a uma preocupação constante que orienta as atitudes da mestra: o respeito ao

outro. O respeito para ela é um dos pilares da educação e é vivido, por Célia, cotidianamente.

É em suas relações que a professora exercita o caminho do diálogo respeitoso, do

275

reconhecimento do outro em sua diferença como algo que faz parte do humano,

compreendendo que a diferença não justifica tratamentos hostis. Um aprendizado dos mais

difíceis.

Em minha atuação em diferentes espaços institucionais162 e lidando com equipes

igualmente diversas, poderia elencar inúmeras situações de conflitos que vivenciei/ presenciei

entre as pessoas. Nos cursos de graduação, as polêmicas situações geradas por trabalhos em

grupo, quando estudantes hostilizam-se mutuamente; nas escolas, professores que não se

falam amigavelmente, que pouco partilham uns com os outros, se envolvendo igualmente

pouco com a vida coletiva; nas formações, grupos que se dividem, que se criticam

mutuamente e de forma velada, se boicotam. Esses desencontros, carregados de hostilidade,

reportam-nos a um tema discutido acaloradamente nos dias de hoje: a violência escolar,

sobretudo quando nos referimos a escola pública e seus “nós”. Usualmente, a

responsabilidade recai nos alunos e seus ambientes familiares.

Pobreza e marginalidade são associados não é de hoje. Magda Soares, em seu livro

clássico “Linguagem e escola – uma perspectiva social” (1986) aborda esse assunto,

analisando as relações entre as dificuldades do aprendizado da língua materna e as concepções

que subsidiavam as políticas traçadas para enfrentar tais dificuldades. Concepções que, regra

geral, depositavam na conta da criança e de sua origem social a responsabilidade pelo fracasso

escolar.

Com relação à violência não tem sido diferente. A “culpa” também costuma ser

atribuída ao contexto cultural das famílias de classe popular. Sem querer ignorar o impacto

que situações de miséria e pobreza têm sobre a vida humana, não podemos nos furtar a

examinar outros aspectos aí imbricados. Um deles diz respeito aos pequenos e sutis atos de

violência cotidianos.

Charlot (2002) lança luz sobre as tensões presentes nas práticas cotidianas da escola,

como por exemplo, nas regras de convivência e nas formas dos professores lidarem com

alunos como possíveis municiadoras de situações de violência. Trata-se, podemos dizer, de

162 Além de ter atuado como professora em diferentes segmentos, da Educação Infantil ao Ensino Superior, exerci também a função de coordenadora e diretora pedagógica durante muitos anos em uma Instituição de Educação Infantil. Soma-se a essas experiências, minha atuação como consultora do MEC que me possibilitou atura com diversas equipes de trabalho em vários estados do Brasil. É desse lugar que trago exemplos desses (tão humanos), desencontros.

276

considerar a violência simbólica, conceito cunhado pelo pensador francês Pierre Bordieu

(1992). Tal conceito descreve o processo pelo qual a classe que domina economicamente

impõe sua cultura aos dominados. Processo que se expressa pelas diferentes máquinas sociais,

como a escola, os meios de comunicação e a família, que agem no sentido de favorecer a

introjeção dos valores e conceitos da classe dominante.

Pensando nas sutis violências do dia-a-dia na escola, poderíamos nos perguntar: de

que forma os próprios professores se tratam mutuamente? Como nos dirigimos aos pais e

familiares dos estudantes (agimos da mesma forma quando lidamos com a classe popular e a

chamada classe média?) E, como os funcionários que ocupam as posições mais baixas das

hierarquias institucionais são tratados? Lembro da curiosa experiência da publicitária

Fernanda da Silva Alves que foi morar um tempo na Austrália e, em função de um inglês

sofrível, só conseguiu emprego como faxineira. Ela relata que o uniforme a tornou invisível!

(site da Abril, 2007). No exemplo de Fernanda, se evidencia as sutis relações de exclusão e,

por vezes, de hostilidade, presentes nas relações cotidianas. Relações atravessadas por, dentre

outros elementos, valores e pré-conceitos.

Cabe aqui uma breve digressão que me parece oportuna. Trata-se de refletir sobre a

relação entre ética e violência. Trata-se de pensar sobre a violência que ocorre na vida

institucional, em sua cotidiana virulência, expressas nas alianças excludentes, nas

hostilidades, nos abusos de poder, nos esquemas de exclusão. Nessa perspectiva, pensar um

mestre guiado por uma ética, é levar em conta seu papel de exemplo, referência de

comportamento e atitude. Mestre ético.

Examinando um pouco mais a questão da ética, citamos Tigre (2002) e Osório (1999)

em suas pesquisas sobre a ética que o mundo moderno transmite aos jovens. Para eles, tal

ética não é uma ética de reflexão alicerçada na responsabilidade e sim na ação inspirada no

oportunismo, na qual meios e fins estão confundidos e a violência encontra seu habitat ideal.

Os jovens aprendem a não sacrificar o prazer de hoje pela segurança de amanhã, pois esta

carece de fundamentação num mundo em que o futuro deixou de ser previsível e, quiçá, até

mesmo de se fazer possível; igualmente apreendem que a violência é a única forma de nivelar

privilégios.

Poderíamos considerar tais reflexões para pensar na violência cotidiana presente nas

relações interpessoais das instituições? De que forma interesses políticos, vaidades pessoais,

vão modelando as dinâmicas das relações, tornando-as menos éticas, se tomarmos ética em

sua concepção de respeito ao diferente?

277

Ainda sobre situações de embate que exigiram posicionamentos de Célia, Waldeck se

reporta à ocasião da tese de livre-docência e as situações difíceis que envolveram esse

momento. Não é a toa que muitos dos entrevistados que partilharam daquele momento se

reportam a ele quando perguntados sobre “situações de embate”, de alguma forma o episódio

marcou.

Lembrando desse momento, Waldeck traz reflexões sobre sua orientadora Balina

Belo, figura que esteve próxima de Célia ao longo das décadas de 70 e 80 especialmente e que

também se ressentiu com o episódio da “livre-indecência”, como ambos se referiram. Balina,

já personagem dessa tese, aparece aqui nas memórias afetuosas de seu ex-orientando.

Waldeck percebia em Balina, como já citado, traços comuns com Célia.

Eu percebia na Balina e na Célia traços muito comuns embora Célia tenha avançado mais na carreira acadêmica, científica. Balina teve outro tipo de carreira universitária, muito bem sucedida. Foi professora universitária da UFRJ, se aposentou, e depois na UFF, fez um concurso de Livre-Docência. Hoje esse concurso não existe mais, em algumas universidades ele faz parte da carreira, nas universidades paulistas. Mas na época, a Livre-Docência era no Brasil, sobretudo numa época em que doutorado era raridade, um título altamente valorizado, tanto quanto ou mais que o doutorado. O problema é que, contradições desse nosso país maravilhoso, a Livre-docência acabou se transformando em “Livre-Indecência”. Houve casos antológicos de professores que fizeram vinte e trinta páginas e conseguiram defender como tese de livre docência, ganhando título de livre-docente, com todas as prerrogativas que o título conferia. Correspondia ao grau de doutor, habilitando a lecionar em programa de pós-graduação e a chegar ao nível de professor titular em universidades.

Waldeck reporta-se também a Balina como precursora de uma crítica a Didática e seu

enquadramento limitante, muito singular para a época. Também reconhece no espírito

insurreta de sua mestra Balina, ressonâncias com Célia.

Em 1982 Balina fez uma tese de livre-docência, na área de didática, campo forte dela. Ela tinha formação em língua francesa, português-francês, sempre avançou e se aprofundou no ensino da didática e ela sempre foi uma crítica insurreta contra aquele modelo bitolante e enquadrador que prevaleceu na didática desde o início dos anos 80. Ela publicou pela EDUF um livro que se chama “Ampla didática, crítica ao ensino brasileiro”. Nele ela faz uma crítica arrasadora e fundamentada ao status quo, ao estado da didática naquele momento, faz uma crítica acadêmica e poética ao mesmo tempo. Portanto eu vi um pouco dessa característica da Balina, essa abordagem meio lírica, meio poetizada, muito insurreta, muito apegada a liberdade. Ela achava que alguns rituais na universidade eram uma quadratura. Na defesa de Balina, foi um processo que marcou muito, a banca era muito conservadora, foi gerando uma tensão antológica. (Waldeck, entrevista, 2007)

278

Voltando a Célia, Waldeck ressalta também uma certa jovialidade na forma como ela

se engaja em novos projetos, mantendo um frescor e vigor entusiasmados. Uma vitalidade

contagiante.

Acho também que ela fica muito excitada nas articulações políticas, ela fica muito agitada, eu falo “vamos lá Célia, vamos mais de vagar!”, ela tem essa agitação, meio teen-ager, o que é interessante, isso dá vivacidade, dá um vigor, ela é uma senhora de quase 70 anos! São marcas que mantém esse romantismo, esse lirismo, essa poesia, tem essa coisa meio menina, essa meninice, que não é algo forçado que ela joga para parecer mais jovem, de forma piegas, não, acho que é característica dela mesmo, é autêntico, genuíno. (Waldeck, entrevista, 2007)

Outro aspecto que merece destaque diz respeito à capacidade de Célia em dialogar

com diversas questões. Na contramão da perspectiva dos especialismos, que por vezes

obnubilam a capacidade que possuímos de pensar o mundo de forma mais ampla e integrada,

a mestra autoriza-se a afirmar seu olhar sobre as questões que a cercam. Não sem que para

isso lance mão de seu referencial teórico. Também aqui, essa abertura de Célia é reconhecida

por outro de seus pares.

Ela tem densidade. É uma pessoa que tem muita erudição, que é capaz de fazer articulações entre uma questão concreta, cotidiana, sobre uma polêmica qualquer que a prática política faça emergir e fazer articulação entre isso e o pensamento de um filósofo que, de repente, ela cita. Ela cita um filósofo, um conceito, faz costuras, ela tem essa capacidade, eu sempre vi Célia, de um modo geral, muito respeitada. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck dá também a sua própria versão da passagem sobre a candidatura de Célia ao

CES, já relatada por Jésus Bastos, Heloisa Villela e pela própria Célia. Vale incluí-la mesmo

assim, pela riqueza de conhecer uma mesma situação sobre diferentes ângulos. Para cada um

que relatou esta história, o acontecimento teve um impacto sutilmente diferente, ainda que

todos tenham destacado a forma elegante e, de certo modo, otimista e positiva com que Célia

enfrentou a situação, bem como a dureza desta experiência.

Célia teve certas frustrações. Nos anos 90 ela teve participação no conselho universitário da UFF e chegou a haver forte articulação para que ela fosse diretora do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CES) que é o centro ao qual está vinculado a Faculdade de Educação, mas ai teve uma movimentação contra. Célia é genuína e autêntica e tende a não ser matreira.

279

Não que ela seja uma pessoa ingênua, que ingênua ela não é, mas tem umas articulações políticas que beiram a sacanagem e isso ela não pratica, isso escapa a ela, ainda bem. Nesse contexto ela foi “sacaneada” mesmo, ela ficou muito frustrada e tomou uma atitude de não mais se envolver com política dentro da universidade com o intuito de ocupar espaço propriamente para ela. Não deixou de se envolver em várias articulações, mas ela mesma não se colocou mais a disposição para ocupação. (Waldeck, entrevista, 2007)

Ainda sobre as questões que permeiam as obras de Célia e sobre seu estilo de escrita,

Waldeck comenta a presença de um jeito muito singular de compreender a política, que

transcende às discussões partidárias para considerar aspectos mais amplos.

Também tem uma parte interessante dos estudos dela, uma abordagem da política educacional meio fora de prumo para muitos. Os textos sobre política educacional de Célia não são textos convencionais sobre o assunto, a tal ponto que muitos de seus críticos chegam a dizer que ela não discute política educacional. Ela entende a política como uma atividade que antes de tudo é atravessada pelo humano, pelas contradições do humano. É um texto que não se transformou no que boa parte da literatura sobre política educacional se transformou, beirando o panfletário. FHC contra pro FHC, Lula contra Lula, você pega hoje vários autores, que discutem política educacional, alguns até da UFF, e as produções não têm mais nenhuma diferença essencial em relação aos textos sindicais, como se a produção acadêmico-científica tivesse perdido sua identidade. Nós não produzimos textos sindicais, nosso papel é outro, temos o compromisso de gerar reflexões sobre políticas educacionais. Muitas instituições, muitas pesquisas, se transformaram em trincheiras para atacar ou defender governos. Obviamente com isso, eu não estou defendendo nenhum tipo de neutralidade, mas penso que o texto acadêmico precisa cumprir um outro papel. A construção de Célia certamente não se prestaria a esse formato. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck destaca também a contribuição de Célia para o âmbito mais amplo das

políticas de formação de professores, relembrando alguns de seus movimentos mais

significativos:

Célia participou da ANFOPE. Num primeiro momento ela ajudou a estruturar o movimento, depois ela passou a participar de maneira menos estruturante e mais dos debates. Em 78, nós tivemos o I Seminário de

280

Educação Brasileira163 na UNICAMP que foi o primeiro grande evento educacional pós-ditadura militar, primeira vez que o campo acadêmico se reuniu para um evento de dimensão nacional. O evento tinha como tema central a formação de educadores, como se dizia na época, hoje falamos mais de formação de profissionais da educação. Um dos encaminhamentos desse evento foi constituir no Brasil estruturas que viabilizassem o debate nacional sobre políticas de formação de professores e sobre currículo de formação de professores. Constituiu-se então, em 80 na I Conferência Brasileira de Educação em São Paulo, um Comitê Pró-Formação do Educador. Célia, voltando do seu doutorado em 1983 passou a participar do movimento Pró-formação do educador, participando da Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores. Esses movimentos e comissões foram, durante algum tempo, o grande insumo para os debates de políticas de formação de professores no Brasil.

Nas faculdades, os primeiros movimentos de mudança curricular que se esboçavam nos cursos de pedagogia, têm essa inspiração, têm essa referência. Depois em 83 esse Comitê pró-formador vai se transformar na Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação dos Educadores (CONARCFE), isso acontece em Belo Horizonte. Em 89 se transforma na Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação, ANFOPE que existe até hoje. A Célia foi fundadora desses movimentos, nunca presidiu a ANFOPE, mas esteve em várias diretorias. Ela contribuiu tanto do ponto de vista da organização desses movimentos, sobretudo nos anos 80, e como intelectual, mais nos anos 90. Participante muito ativa e presente nesse debate da ANFOPE. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck continua, expondo sua avaliação- crítica dos caminhos que a ANFOPE vem

trilhando:

A Anfope também viveu nos anos 90 uma espécie de crise de identidade, leitura minha, talvez. Às vezes, se parecia mais com um movimento acadêmico, às vezes se parecia mais com um movimento sindical. Enfim, isso também afugentou os intelectuais da ANFOPE que vieram buscar uma reflexão mais acadêmica da formação de professores e não uma trincheira política contra o neoliberalismo. (Waldeck, entrevista, 2007)

163 Pino nos conta que o 1º Seminário de Educação Brasileira, acontecido na UNICAMP de 20 a 22 de novembro de 1978, foi o primeiro encontro nacional pós-golpe de 64. O clima político que envolvia o evento – a intensificação da luta pela redemocratização e por reformas em amplos setores da sociedade – acabou atraindo 600 professores de todos os Estados. Havia ainda a esperada volta do educador Paulo Freire do exílio, inclusive como professor da Unicamp. Ele não conseguiu visto de entrada no país, mas abriu o seminário com um depoimento gravado por telefone. (Jornal da UNICAMP, 2007).

281

Na formação da ANPED, Célia também teve uma importante contribuição, Waldeck

não esquece disso.

Na ANPED ela também contribuiu embora nem sempre participando da diretoria, mas sobretudo no momento em que a gente estava organizando as formas de discutir currículo, discutir formação de professores e algumas formas também de luta acadêmica, de luta política.

Para ele a formação de professores era e é um tema muito caro e relembrando a

atuação de Célia na ANPED revê o seu próprio percurso com relação ao tema164, resgatando

movimentos históricos e políticos recentes sobre os parâmetros legais para a formação do

professor da escola Básica. Célia seria sua companheira pela defesa da universidade como

lócus privilegiado da formação do professor:

Estudei muito sobre o tema e comecei a viver isso, participando de eventos, discretamente. Quando viajei para França me debrucei muito sobre esse assunto. Minha tese foi sobre a universitarização da formação de professores no Brasil. Um dos focos era pensar sobre a formação de professores de 1ª a 4ª. Foi uma luta muito grande, pois não havia consenso em torno disso. Era muito forte a tese defendida, principalmente, pelo departamento de Educação da PUC-Rio, sobre a revitalização da escola normal. Eles achavam que não tinha que formar professores na universidade, nada de formar no ensino de educação superior, na Pedagogia. Para eles, o que cabia às universidades fazer era ajudar a revitalização da escola normal. Esse foi um debate muito intenso nos anos 80 e que só teve seu desfecho a partir do final dos anos 80 e início dos anos 90, quando muitos cursos de Pedagogia assumiram de forma mais ou menos clara a formação de professores de 1ª a 4ª e alguns da Educação Infantil, também no curso de pedagogia. Esse processo a rigor, só se consolida em 2006 com as Diretrizes da Pedagogia, aí não há bem a possibilidade de que o curso de Pedagogia não forme professores.

Sobre esse assunto, Waldeck escreveu diversos artigos e lançou um livro em 1988, do

qual compartilhou a autoria com Célia intitulado, “Formação dos profissionais da educação, o

novo contexto legal e os labirintos do real”. Parte desse movimento político sobre a legislação

164 Essa é, penso eu, uma das preciosidades dessa pesquisa, a instigação que leva os entrevistados a resgatar a própria história.

282

da pedagogia foi discutida nessa publicação. Waldeck relembra a força que esse tema passou

a ter em sua militância no campo da educação.

Fiz uma pesquisa de campo em três Universidades no Rio de Janeiro. Fiz toda uma discussão sobre a trajetória política e histórica do movimento e a história política em torno da discussão sobre a formação de professores no Brasil e, ao voltar ao Brasil tive uma participação que foi frenética de 99 a 2004, foi muito intensa. Na ANFOPE também ajudei, coloquei no centro da cena a FORUNDIR (Fórum de Diretores das Faculdades de Educação), uma outra entidade nesse debate, que hoje, com a ANFOPE, ANPED E ANPAI, são as entidades que fazem a discussão sobre a política educacional de formação de professores. Presidi o Fórum de Diretores durante um bom período e fui acrescentando o que eu tinha estudado e o que tinha vivido preliminarmente. Eu sempre fazia menção ao trabalho da Célia e estávamos juntos em eventos. Nos anos 90 ela também foi a várias reuniões da ANFOPE, participou, debateu, fazendo parte de todos os movimentos. (Waldeck, entrevista, 2007)

Waldeck nos dá um vivo relato panorâmico do cenário político da formação de

professores no Brasil das décadas de 80 e 90. Fala como alguém que está por dentro das

dobras dos movimentos.

Pergunto sobre os textos de Célia a que teve acesso e sua impressão sobre eles.

Também aqui Waldeck revela sua prodigiosa memória e comenta sobre o contexto de

produção de algumas das publicações de Célia. Conhecer esse contexto é muito interessante,

pois nos possibilita vislumbrar a vida que cerca aquele pensamento, dando ao mesmo um

sabor de experiência e história.

Esse livro de Célia, A Escola e seus Profissionais: tradições e contradições” é um livro marcante porque confirma o espaço dela na discussão sobre a formação de professores no Brasil. Na verdade, é um livro que reúne várias conferências, palestras e algumas publicações que ela já havia feito. É um livro importante na história desta professora, como uma interlocutora no debate nacional sobre a formação de professores. Ela tem algumas publicações menores, mais rápidas. Uma com Nilda Alves, publicada em 92 pela editora Cortez, que tem um artigo intitulado “Formação de professores, pensar e fazer”. Ela tem uma coleção dos anos 90, em que ela reuniu um grande debate que fizemos no cinema da UFF, eu Gaudêncio e ela e outros. Fizemos, também, um livro sobre “Reformas educacionais no Brasil e na Espanha”. Há um livro que ela escreveu junto com a Clarice Nunes sobre as memórias docentes, textos produzidos por essas professoras como memorial para concurso de professor titular. Este é interessante para ver como que ela mesma narra seu processo de constituição como professora na UFF.

O livro que fiz com ela teve muita circulação no meio educacional. Teve um papel e tem ainda no debate sobre formação de professores.

283

Percebo também que a partir dos anos 90 Célia passou a anifestar mais claramente o intereque me ocorre de memória. (Waldeck, entrevista, 2007)

Em suas memórias, Waldeck vai traçando o panorama político que emoldurava os

diferentes momentos históricos vividos, não apenas na UFF, mas, também, em outras

instâncias no tocante às políticas de Formação de Professores e ao campo das idéias que se

faziam presentes no ambiente acadêmico. Polarizações, divergências de posicionamentos,

disputas, encontros e desencontros. Cenário de ambigüidades, conquistas, recuos. Nesse

movimentado contexto, vivo e em permanente transição, Waldeck destaca a figura de Célia,

em sua firme atuação, compromisso político e vitalidade.

Compromisso e prática políticos, que, nas palavras de Waldeck, eram atravessados

pelo humano, pelas contradições do humano. Engajando-se com jovial entusiasmo nas ações

que julgava importantes.

Firmeza dotada de charme, de delicadeza, de uma certa poesia na ação, um certo

lirismo. Traduzida num cuidado com o outro. Sem ingenuidade, nos diz Waldeck, mas com a

saudável capacidade não fugir do prumo ético, que a sustenta, para enfrentar embates.

3.5 Mestra-mãe “Cristo nasceu de uma virgem, de acordo com a doutrina católica romana. A referência simbólica não é ao nascimento físico de Jesus, mas à sua significação espiritual. Eis aí o que o nascimento virginal representa. Heróis e semideuses, nascem como seres motivados pela compaixão e não pela vontade de domínio (...)”(CAMPBELL, 1990)

“Na Índia, existe um sistema de sete centros psicológicos, ao longo da espinha. Eles representam planos psicológicos de interesse, consciência e ação. O primeiro se localiza no reto e representa a alimentação, função básica, sustentadora da vida. O segundo centro psicológico é simbolizado pelos órgãos sexuais, o que significa dizer a urgência da procriação. Um terceiro centro se localiza na altura do umbigo e é o centro da vontade e do poder, domínio e realização, ou em seu aspecto negativo, conquistar, subjugar, esmagar, refugar os outros. Essas três funções – alimentação, procriação e domínio e conquista – são todas de instinto animal. O quarto centro está a altura do coração e é o da abertura para a compaixão. Aqui você transita do campo da ação animal para um campo que é propriamente humano e espiritual. Em cada um desses centros é imaginada uma forma simbólica. Na base, aonde se encontra o primeiro centro, o símbolo é o do lingam e yoni, os órgãos masculino e feminino em conjunção. No centro do coração, aparecem outras vez esses símbolos, mas aqui representados em dourado, para simbolizar o nascimento do homem espiritual a partir do homem animal.” (CAMPBELL, 1990)

284

Mestra, Mestra-mãe. Imagem evocada por Heloisa e Waldeck. Mãe, origem, fonte,

causa. Nascimento, vida, morte. Alimento, proteção, segurança, alguns dos significados

dicionarizados. Que outras imagens estão associadas à Mãe? Idéia que ficou ressoando em

mim, me convidando a explorar, para além do referencial religioso cristão tão arraigado em

minha/nossa civilização ocidental. O que nos dizem as sociedades primitivas e orientais?

Ainda que não exaustiva, essa aproximação instiga e traz sentidos convergentes com as

imagens que emergem nesse capítulo

Na Índia, nas religiões consagradas à Deusa, o feminino representa as formas de

sensibilidade. A Deusa-mãe, que é espaço e tempo, e o mistério para além dela é o mistério

para além de todos os pares de opostos. Assim, não é masculina nem feminina. Tudo está

dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos (CAMPBELL, 1990, p.178). Deuses, que

como nos diz Campbell, somos nós, todos nós. Também na Índia considera-se que existem

sete centros psicológicos ao longo da espinha, referentes a consciência, interesse e ação.

Dentre eles, alguns estão ligados ao instinto animal – procriação, vontade, realização e

alimentação e, na altura do coração, se localiza o centro da compaixão, ligado ao homem

espiritual. Compaixão, com-paixão, sofrimento partilhado: participação efetiva no sofrimento

de outra pessoa (1999, p.184). Aí esta o início da humanidade, nos diz Campbell. É na

presença dessa dupla dimensão, animal e espiritual, que nasce o homem espiritual.

Nos diversos sistemas religiosos a figura da Mãe sempre esteve presente. Nas

sociedades primitivas agrárias, especialmente na antiga Mesopotâmia e do Egito, a Grande

Deusa, a Mãe-Terra estava associada à agricultura. Mulher que dá à luz, assim como a terra de

onde se originam as plantas. Mãe que nutre e sustenta. A própria personificação daquilo que

dá origem às formas e as alimenta.

Ser mãe está ligado ao próprio princípio feminino. As imagens associadas a mulher-

mãe remontam a diversas e distintas matrizes enraizadas na cultura ocidental e oriental, como

as que abrem essa parte do capítulo. Grande-Deusa, Deusa Mãe-Terra, Mãe-Céu, Virgem

Maria, Madona...

Mãe é o primeiro continente da criança, vínculo vital sem o qual a vida não floresce.

Calor, alimento, afeto. Reconhecimento, confiança, encorajamento. Célia é essa Mestra-Mãe,

Mulher-Deusa, que nutre, alicerça.

Alimentação, procriação, vontade de realização, sentidos vitais que nos ligam a vida, a

criação de mundos possíveis, ao trabalho, as idéias. Aliados pela compaixão, que no dizer de

285

Campbell (1999, p. 170), evoca o cuidado com o outro, o compartilhamento solidário e

efetivo com nossos pares.

Célia surge pelo olhar de seus pares, como essa mestra que nutre, com idéias, apoio,

encorajamento. Que é capaz de gerar/procriar, numa incessante e vital busca por associações,

encontros e trocas, numa efervescente produção de idéias e projetos. É também mestra cuja

vontade é férrea. Vontade que é férrea e forte, sem, no entanto sucumbir ao possível aspecto

negativo da vontade, que seria o de subjugar, oprimir, “tirar sangue das bochechas”, para

usar uma expressão sua tão peculiar (permitam-me, vou repeti-la, incontáveis e incontroláveis

vezes. Não é descuido, é gosto).

Mestra-mãe, que sustenta seus filhos mas também os encoraja a abrir novas “trilhas”.

Nas epopéias, freqüentemente quando o herói nasce, o pai morreu ou está em algum outro

lugar, então o herói tem que partir à procura do pai. Na Odisséia, o filho de Ulisses,

Telêmaco, recebe de Atena a orientação: “Vá encontrar seu pai!”. Simbolicamente, a mãe

nutre, nascemos dela, ela nos educa, acompanha o crescimento até a idade em que devemos

encontrar o pai. O pai, representando aqui o encontro com você mesmo. Com seu próprio

mestre, que escolhe caminhos, que atravessa fronteiras. Descolado fisicamente da mãe-

origem, o “herói” leva a mãe dentro de si mesmo.

Fiquemos com essa imagem da mestra, que nutre e fortalece e que agora caminha com

mais firmeza, ampliando seus espaços de ação, criando laços e associações em que se

conjugam solidariedade, militância e compromisso com o outro e com a educação.

286

CAPÍTULO 4 De 90 aos dias atuais: início de um novo século, novos tempos?! Pela Internet Gilberto Gil Criar meu web site Fazer minha home-page Com quantos gigabytes Se faz uma jangada Um barco que veleje ...(2x) Que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante Da infomaré Que leve um oriki Do meu velho orixá Ao pôrto de um disquete De um micro em Taipé... (...)Que leve meu e-mail lá Até Calcutá Depois de um hot-link Num site de Helsinque Para abastecer Aihê! Aihê! Aihê!... Eu quero entrar na rêde Promover um debate Juntar via Internet Um grupo de tiétes De Connecticut... De Connecticut de acessar O chefe da Mac Milícia de Milão Um hacker mafioso Acaba de soltar Um vírus prá atacar Programas no Japão... Eu quero entrar na rêde Prá contactar Os lares do Nepal Os bares do Gabão...

Época de muitas transformações em que novas estruturas emergiram no interior das instituições, entre instituições, nos países e no mundo.

287

A chamada "sociedade global" se delineia cada vez mais, propulsionada principalmente pela rede telemática que multiplica e acelera a intercomunicação dos fatos no momento de seus acontecimentos (ROSETTO, 1997). A popularização do computador pessoal e do uso da internet, ainda que caibam aqui muitas reflexões sobre o que tal popularização provou em termos culturais, é inegável reconhecer, ampliou a circulação da informação, “para o bem e para o mal”165. A charge de Dan Perjovschi instiga a refletir sobre essa difusão por vezes indiscriminada, refletindo sobre o estatuto de “verdade” que alguns veículos de informação ganharam:

Dan Perjovschi

No campo tecnológico de um modo geral, há um crescimento de invenções que

passam a fazer parte da vida cotidiana. Telefone celular, CD, DVD, processadores, redes de

internet cada vez mais velozes, TVs com resoluções refinadas, dentre outras, configuram uma

165 A esse respeito, a instigante charge do artista plástico Dan Perjovschi, traduz o estatuto de aparente “verdade” conferido a informação circulante na internet, sem que se questione as fontes de origem e os critérios considerados para difusão das informações que ali se encontram. Na educação, uma situação que tenho, enfrentado como professora universitária, lamentavelmente, é a enxurrada de alunos que utilizam a internet para seus trabalhos acadêmicos de forma pouco crítica e reflexiva, por vezes, repetindo sem mudar vírgula, textos inteiros que de lá extraem. “Para o bem e para o mal”, é nesse sentido que uso essa expressão. O Artista Plástico Dan Perjovschi (1961) é romeno, seus desenhos aliam a tradição dos cartoons com uma crítica social marcada pelo humor. Suas instalações revelam uma observação atenta e penetrante dos contextos políticos, sociais e culturais em que o artista desenvolve os seus projetos. Em 2007, o MOMA abrigou um enorme mural com seus desenhos que podem ser vistos no próprio site do MOMA (http://www.moma.org/exhibitions/exhibitions.php), vale conferir.

288

cultura que incorpora a tecnologia ao modo de vida, num movimento incessante em que,

muito rapidamente, uma nova invenção desponta no mercado, tirando das prateleiras e dos

planos de consumo da população, os “velhos” artigos, que passam a ser “ultrapassados”.

No mundo, o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria foram movimentos

emblemáticos de um período em que a democracia se expandiu. Mas importa perguntar: para

onde se expandiram? A que preço o fizeram? A União Soviética se desfez e os EUA se

tornaram a única grande potência. Países como Taiwan, Chile, África do Sul e Indonésia

saíram de regimes totalitários para governos eleitos.

Na África, inúmeras guerras e o aumento nos casos de AIDS trouxeram uma

significativa diminuição da expectativa de vida, para muitos e graves problemas econômicos.

Guerras como a dos Balcãs, a Guerra do Golfo, dentre outras, refletiam o choque de

civilizações.

Cresce a preocupação de vários segmentos da sociedade com as questões ecológicas,

que confrontam o custo de uma “modernização” que até então, não levava/leva em conta a

necessidade fundamental de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. A

reciclagem e os biodegradáveis se tornam mais difundidos e a pesquisa de soluções

alternativas de energia e tecnologia não agressivas ao ambiente incrementam-se, ainda que a

hegemonia e força de muitas grandes indústrias se mantenha, cuja prioridade lucrativa, regra

geral, desconsidera tais preocupações. O filme de Al Gore, “Uma verdade incoveniente”

esquenta o debate sobre a urgência de tomar as rédeas de um desenvolvimento agressivo,

deixando claros os riscos para a sobrevivência humana do progresso irresponsável.

Nas ciências, as pesquisas genéticas ganham força, a “Ovelha Dolly”, a perspectiva de

clonagem humana e os alimentos genéticamente modificados trazem a tona acirrados debates

sobre os limites entre ciência e natureza, entre ciência e ética. A mortalidade pela AIDS

diminiu com a descoberta de inibidores de protease; figuras públicas divulgam sua condição

de portadores, levando a discussão sobre a doença e favorecendo a diminuição do preconceito

contra o aidético.

Foi também um período marcado pelos conflitos militares entre os Estados Unidos e o

Oriente Médio, desencadeados pelos atentados terroristas do World Trade Center em Nova

York. A tragédia da queda das Torres gêmeas coloca a questão do terrorrismo no centro da

discussão e dá início (ou continuidade) a uma série de invasões americanas pela “paz”. Outra

fatalidade, O Massacre de Columbine, em que dois estudantes de uma escola no Colorado

mataram 12 colegas e depois se suicidaram, traz à tona a reflexão sobre a violência praticada

289

numa sociedade rica e “desenvolvida”, evidenciando as complexas relações culturais ali

imbricadas. A esse respeito, o filme “Tiros em Columbine” do americano Michael Moore vai

à raiz dos problemas de seu país, apontando para a questão cultural como um fator-chave para

a compreensão do violento panorama social americano.

No Brasil, no campo da arte, há uma valorização internacional da cultura brasileira,

expressa no fortalecimento do cinema nacional e na excelente recepção no exterior de nossos

músicos. Lenine, Joice, dentre outros difundem uma sonoridade que ganha cada vez mais

visibilidade. O RAP, do inglês Rhythm and Poetry/ritmo e poesia, ganha força como expressão

musical-verbal da cultura Hip Hop, aqui e no mundo. Aborda temas como a violência, a

situação política, sexo e drogas, dentre outros mais prosaicos. No Brasil, esse ritmo se

popularizou com Planet Hemp, Mv Bill e uma profusão de rappers, alguns mais, outros menos

engajados com a denúncia e a crítica social. O funk com sua batida forte e letras de intenso

apelo erótico, sacudiu as cidades, conquistando fãs entre os jovens de todas as classes sociais.

Pilagallo (2006) apresenta o panorama político desde o início dos anos 90. Tivemos

Fernando Collor de Mello na presidência, durante o período de 1990 a 1992, primeiro

presidente da República eleito pelo voto direto após o Regime Militar. Seu governo foi

marcado pela implementação do polêmico Plano Collor, pela abertura do mercado nacional às

importações e pelo início do Programa Nacional de Desestatização. Após acusações de

corrupção, renunciou ao cargo, na tentativa de evitar o processo de impeachment. Itamar

Franco, o vice-presidente, tomou posse, exercendo o cargo de 1992 até 1995. Ao longo de seu

mandato, Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, pondo em pé o Plano

Real, que alcançou relativo sucesso, garantindo sua eleição para presidente, durantes os anos

de 1995 a 2002.

Após três sucessivas derrotas eleitorais em 1989, 1994 e 1998, Luiz Inácio Lula da

Silva, co-fundador do Partido dos Trabalhadores e nosso atual presidente da República,

assumiu o cargo em 2003. É o primeiro presidente oriundo das classes trabalhadoras e sua

eleição encarnou os desejos de um grande contigente de pessoas esperançosas em ver suas

demandas reconhecidas.

Com relação à educação, a partir da década de 90 tem início um período de

descentramento e desconstrução das idéias das décadas anteriores. As mudanças não

acontecem numa data certa, tampouco são lineares, trata-se, no entanto, nesse estudo, de

lançar um breve olhar panorâmico para o movimento desse período entre a década que

encerra o século XX e o início de um novo século, compreendendo algumas dinâmicas que se

instauram, seus imbricamentos e as marcas que imprimem ao pensamento pedagógico, as

290

relações socioeconômicas e políticas. As “novas idéias” efetivamente já circulavam nas

décadas anteriores, mas é nos anos 90 e no início de 2000 que se tornam hegemônicas e, de

certo modo, sofrem remodelações - sobre isso vamos tratar mais à frente -, afeitas aos novos

tempos.

As “velhas idéias” passam a povoar esses tempos com nova roupagem, remodelando-

se em função de uma estrutura social, política e econômica que modifica as relações de

trabalho, trazendo para a escola e para a sociedade de forma mais ampla, um rol de

expectativas e demandas que sopram para novas direções. Tema de que trataremos no

próximo item.

Esse capítulo está organizado da seguinte forma: “Novas idéias, velhas raízes” situa o

campo das idéias pedagógicas que tem curso no período, relacionando-as com o contexto

social, político e econômico. Em seguida, “Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços”,

apresentamos Célia e os caminhos que trilhava. Após esse item, dividimos o restante do

capítulo em duas partes. Em Parte I, incluímos “Trilhas do pensamento: anos 90”, onde

apresentamos as principais idéias dos textos produzidos por Célia na década de 90, seguida

por “Vozes dos parceiros: anos 90”, com as narrativas produzidas a partir das entrevistas com

as professoras Clarice Nunes, Valdelúcia Alves da Costa e Inês Bragança. Na Parte II,

“Trilhas do pensamento: anos 2000”, com algumas das obras de Célia nesse período, “Voz

dos parceiros: Anos 2000”, com os professores Maria de Jesus Gaspar Leite, Ney Luis

Teixeira de Almeida e Ramofly Bicalho dos Santos e, por fim, “Outras vozes”, trazendo

trechos de depoimentos de outras pessoas que estudaram/ trabalharam ou mesmo conheceram

Célia, que contribuem com relatos de experiências vividas com a mestra e suas impressões

sobre a obra e a vida com/de Célia. São eles: Ana Heckert, Andréia Reis, Bruna Molissani,

Dagmar Canella, Eliana Yunes, Estela Scheivar, Lúcia Fidalgo, Luiz Sangenis, Mônica

Corbucci, Raimundo Palhano, Patrícia Porto, Rosane Marendino, Rose Clair, Thereza

Pflueger e Tereza Cristina Calomeni.

4.1 NOVAS IDÉIAS, VELHAS RAÍZES:

Saviani (2007) afirma que “o final da década de 1980 já prenunciava as dificuldades

crescentes enfrentadas pelas correntes pedagógicas ‘de esquerda’ no contexto brasileiro” (pg.

423). O intenso movimento dos educadores, cuja manifestação mais expressiva era dada pelas

bienais Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), entravam em refluxo. A última

conferência, que deveria ser realizada em 1990 e acabou acontecendo em 1991 encerrou uma

291

fase de maior efervescência das idéias pedagógicas no Brasil, em que havia uma certa

organização de caráter mais visível, marcada por definições ideológicas mais precisas e por

adesões mais numerosas.

Os trabalhos apresentados nessa última Conferência foram posteriormente publicados,

integralmente, pela Editora Papirus em cinco volumes, cujos temas foram “Escola básica”,

“Estado e educação”, “Sociedade civil e educação”, “Trabalho e educação” e “Universidade e

educação”.

Para Saviani é no âmbito dos temas “Estado e educação” e “Trabalho e educação” que

podiam se encontrar as análises explicitadoras da nova fase que caracterizou a década de 90.

Em “Estado e educação” a problemática do neoliberalismo aparecia fortemente em diversos

dos trabalhos apresentados. A questão das mudanças das bases produtivas, abordando o

impacto da tecnologia na educação apareceu mais fortemente em “Trabalho e educação”.

Também nos demais temas as problemáticas dos anos 90 apareciam166.

O termo “pós-moderno” era muito próprio dessa época, inspirado pela publicação de

Lyotard167 intitulada “A condição pós-moderna” (de 1979). Se a entrada das máquinas

mecânicas na produção de novos objetos dão o tom do que era considerado “moderno”, o pós-

moderno é ligado ao mundo da comunicação, da informática e das máquinas eletrônicas, na

produção de símbolos.

A idéia da eficiência e eficácia, trabalhada pela psicologia behaviorista, se faz

presente de outra forma nesse momento. Passa a se considerar que a legitimação da pesquisa

e do ensino só poderiam ocorrer pelo desempenho, pelas competências que forem capazes de

instaurar.

O neoliberalismo denominava as questões de ordem econômico-políticas, reflexo das

políticas internacionais e das reformas que os organismos internacionais e os intelectuais da

economia que atuavam nos diversos institutos de economia, consideravam necessárias para a

166 Saviani cita vários desses trabalhos fazendo uma varredura bastante abrangente das temáticas discutidas na época. 167 Jean-François Lyotard, filósofo francês, foi um expressivo pensador na discussão sobre a pós-modernidade. Autor dos livros como A Fenomenologia, A Condição Pós-Moderna e O Inumano.

292

América Latina. Esse novo pensamento hegemônico convergia em torno de um denominador

comum, “o ataque ao estado regulador e a defesa do retorno ao estado liberal idealizado pelos

clássicos” (FIORI, 1998, P.116 apud SAVIANI, 2007, P. 426). A reordenação empreendida

consistiu, no plano econômico, em elevar ao status de valor universal, políticas como a do

equilíbrio fiscal, a desregulação de mercados, a abertura das economias nacionais e a

privatização dos serviços púbicos. No campo político, a crítica às democracias de massa se

evidenciava.

Na América Latina, as reformas pretendiam em primeira instância empreender um

programa de rigoroso equilíbrio fiscal, por meio de reformas administrativas, trabalhistas e

previdenciárias, fazendo para isso um corte profundo nos gastos públicos. Em segundo lugar,

uma rígida política monetária visando à estabilização e em terceiro lugar a desregulação dos

mercados tanto financeiro como do trabalho, privatização radical e abertura comercial. As

agências internacionais tiveram que, a princípio, impor tais políticas, porém elas foram

gradualmente sendo assumidas pela elite econômica e política dos países latino-americanos.

As idéias pedagógicas passam nesse período por uma mudança expressiva. O fracasso

escolar é assumido em seu próprio discurso, computando na conta do Estado sua decadência,

em função da incapacidade do mesmo de gerir o bem comum. Com isso, também na educação

valoriza-se a iniciativa privada regidas pelas leis do mercado como mais competente para

educar.

Saviani (op.cit.) define quatro categorias que ordenariam as principais idéias

pedagógicas da época, a saber: neoprodutivismo, neo-escolanovismo, neoconstrutivismo e

neotecnicismo. Observemos que o prefixo (neo) nos remete a categorias precedentes às quais

as novas idéias se remetem. Reconfiguradas, refuncionalizadas, mantém, no entanto,

proximidades com essas “velhas categorias”.

A década de 90 funciona numa lógica econômica pautada na satisfação de interesses

privados, “guiada na ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no

mercado educacional, para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho” (GENTILI,

2002). A idéia do Estado como instância responsável por preparar a mão-de-obra para o

mercado do trabalho é substituída pela do indivíduo, que terá de ser capaz de escolher tendo

em vista adquirir os meios que lhe permitam ser competitivo no mercado de trabalho. Da

escola, agora, não se espera mais o acesso ao emprego, mas apenas a conquista do status de

293

empregabilidade. A educação passa a ser vista como um investimento em capital humano

individual que habilita as pessoas para a competição pelos empregos disponíveis. O acesso

aos níveis mais elevados de educação amplia as possibilidades dos indivíduos de conseguirem

um emprego. No entanto, não há garantias.

Efetivamente, na forma atual de desenvolvimento capitalista não existem empregos

para todos. A economia começa a conviver com altas taxas de desemprego e com um grande

número de pessoas excluídas do processo. Trata-se do crescimento excludente. Aqui, portanto

a teoria do produtivismo que predominou nos anos 60 ganha um novo sentido na década de

90, assumindo a forma de neo-produtivismo.

A ordem econômica atual assenta-se, portanto na exclusão. Não há emprego para

todos. Um outro sentido ligado a essa questão diz respeito a crescente automação no processo

produtivo que acaba por dispensar mão-de-obra, estimulando a competição e buscando

maximizar a produtividade, conduzindo à exclusão deliberada de trabalhadores.

Nesse contexto, configura-se, portanto uma “pedagogia da exclusão”. Trata-se de

preparar os sujeitos para, mediante sucessivos cursos se tornarem cada vez mais empregáveis,

visando escapar da exclusão. Caso sejam excluídos, fará parte desse ideário a introjeção da

idéia de que a responsabilidade por isto é deles próprios, uma vez que não se municiaram para

enfrentar o competitivo mercado de trabalho, dadas suas “limitações” pessoais.

Saviani (op.cit.) comenta que um lema também bastante difundido a partir da década

de 90 é o “aprender a aprender”. Essa idéia remeteria ao núcleo escolanovista. A concepção

era de que “mais importante do que aprender algo” era efetivamente aprender a estudar e

buscar conhecimentos, lidar com situações novas. Nessa visão o professor passa a ser não

aquele que ensina, mas o que auxilia o aluno no seu próprio processo de aprendizagem. Vale

ressaltar, que no escolanovismo, o foco incidia sobre a valorização dos processes de

convivência entre as crianças, seus relacionamentos (criança-criança, criança-adulto) e em sua

adaptação à sociedade. Tratava-se de uma concepção cheia de otimismo, próprio do contexto

da década de 60/70 em que a economia em expansão e a industrialização apontavam para

mudanças constantes em direção ao pleno emprego.

Na situação que tratamos aqui, os anos 90, o “aprender a aprender” liga-se à

premência de constante atualização exigida pela necessidade de ampliar a esfera da

empregabilidade. A idéia estava, portanto, associada ao sucesso e a adaptação à sociedade que

exigia novos tipos de raciocínio, novas habilidades comunicativas, etc. Era, portanto um “neo-

294

escolanovismo”, baseado em novas perspectivas para o sujeito e sua formação, nos diz

Saviani.

Essa visão propagou-se amplamente na década de 90 e foi assumida como política do

Estado por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) elaborados por iniciativa do

MEC para servir como referência à montagem dos currículos de todas as escolas do país e que

vigoram até os dias de hoje. Tal inspiração neo-escolanovista delineou as novas idéias que

orientaram reformas educativas em diferentes países e no Brasil em especial, sustentando

práticas educativas que vêm sendo desenvolvidas desde a década de 1990. Práticas que se

espraiam por diferentes espaços, desde escolas a ambientes empresariais, organizações não

governamentais, entidades religiosas e sindicais, academias e clubes esportivos, sem maiores

exigências de precisão conceitual ou rigor teórico.

A Pedagogia das competências e o neoconstrutivismo, bases psicopedagógicas da

educação, ganham força no ideário pedagógico dos anos 90 e 2000, orientando reformas de

ensino em vários países. Saviani utiliza o prefixo neo ao construtivismo postulando que este

também ganha nova formulação nos anos 90, entendido agora como núcleo convergente de

diversas contribuições, que teriam em comum a atividade mental construtiva nos processos de

aquisição de conhecimentos.

O discurso do professor-reflexivo, ainda acompanhando as oportunas aproximações

de Saviani (2007), também se afina com o discurso neo-construtivista (a que o autor chama de

“retórica reformista”), que valoriza os saberes docentes centrados na pragmática da

experiência cotidiana. É possível também fazer uma ligação com a “pedagogia das

competências”. Tais competências aparecem assimiladas aos mecanismos adaptativos do

comportamento humano ao meio material e social. As competências cognitivas entrariam em

cena para a adaptação ao meio natural e material e os mecanismos de adaptação ao meio

social seriam constituídos preponderantemente pelas competências de ordem afetivo-

emocionais.

A pedagogia das competências conecta-se com a pedagogia do aprender a aprender à

medida que ambas têm como foco dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes

permitam ajustar-se às condições da sociedade e às suas demandas. A ênfase é dada à

satisfação individual, sob responsabilidade do próprio sujeito, obscurecendo o compromisso

social da educação.

Nas escolas, introduzir a pedagogia das competências objetivava ajustar os indivíduos

como trabalhadores e cidadãos às demandas de uma sociedade que se organizava

produtivamente de uma nova forma. Tornar o indivíduo produtivo, nessa perspectiva,

295

significava ser capaz de valorizar o capital. Aqui vemos o corolário da pedagogia tecnicista da

década de 70, remodelando-se e ganhando uma conotação que advoga a valorização dos

mecanismos de mercado, o apelo à iniciativa privada e às organizações não-governamentais, a

redução do tamanho do Estado e das iniciativas do setor público. Nesse sentido, as diversas

reformas educativas que foram empreendidas em diferentes países tinham em comum o

empenho em reduzir custos, encargos e investimentos públicos, transferindo-os ou dividindo-

os com a iniciativa privada e as organizações não-governamentais.

Uma outra característica desse neo-tecnicismo – mais uma vez enfatizando no prefixo

a remodelação desse conceito – é o novo papel que o Estado assume. Diferente do tecnicismo

dos anos 70 que preconizava um controle rígido do processo por parte do Estado, este

processo se flexibiliza e o novo papel que lhe cabe é funcionar como avaliador dos resultados,

visando garantir a eficiência e a produtividade.

Um outro termo, também muito em voga – “qualidade total” – integra essa

perspectiva produtivista do neo-tecnicismo, sintetizando a busca máxima da educação. Esse

termo liga-se também ao modelo empresarial, em que a frase a “satisfação do ‘cliente’”

expressa o fim que conduz a força de trabalho. A transposição desse conceito para a educação

trouxe a tendência de considerar aqueles que ensinam como prestadores de serviços, os que

aprendem como clientes e a educação como produto que pode ser produzido com qualidade

variável. O método da “qualidade total” garantiria então o máximo de satisfação para seus

“clientes”. O processo de adoção do modelo empresarial na organização e funcionamento das

escolas se disseminou principalmente no nível superior.

Em suma, as idéias pedagógicas que se disseminam na década de 90, que perduram

ainda nos dias de hoje, surgem em função das transformações materiais que marcaram e

influenciaram a organização social, econômica e política do país. Um mercado mais fechado,

a escassez de trabalho e a perspectiva da educação como uma conquista individual para

competir nesse mercado que se apresenta, trouxeram a pedagogia da exclusão. Orientando

essa demanda por adequar-se à nova sociedade, idéias como “aprender a aprender” e

“pedagogia das competências” concorrem visando qualificar os indivíduos para “tentar”

ganhar espaços profissionais. As conseqüências para a educação podem ser sentidas tanto no

que se configura o senso-comum com relação à expectativa sobre a escola, quanto nas muitas

iniciativas de reformas educacionais.

Vejamos por onde andava/anda Célia nesses últimos anos.

296

4.2 Novos rumos, novos ares: tempo de recomeços. (...) esperança esperânsia experança esperiência esperança: esp herança (Élson Froés – Poemas de AD miragens)

No poema de Froés, misturam-se palavras e sentidos que traduzem a trajetória de

Célia. Esperança, ânsia, experiência, herança, espera. Sua vida foi se dando num fluxo em que

esses elementos se fizeram presentes em contextos diversos, com significados também

diversos. Vamos destacar, dentre eles, a esperança, que em sua força propulsora, vai

imprimindo esse jeito de apostar na vida a cada dia, tão próprio de Célia Linhares, com uma

curiosidade, que em suas palavras, “a fazem levantar da cama todos os dias”.

Nos anos 90, após mais de 30 anos de trabalho acadêmico Célia fez sua primeira

aposentadoria. Ao mesmo tempo em que via positivamente a possibilidade de afastamento da

universidade, pela grande atração que a escola pública e o desafio de escrever literariamente

sobre as experiências escolares exerciam sobre ela. Mas, o gosto pelo espaço de convivência

com os estudantes e colegas, o movimento permanente de troca e aprendizado a mobilizavam

muito. Não era algo do qual ela desejasse se distanciar.

Fiquei muito confusa, não via bem como o futuro se delineava em minha frente. Tinha

decepções que me pediam para que me mantivesse fora da Universidade, mas tinha também

muito gosto e atração crescente pelo que cada dia gostava mais, de aprender, ensinando e

ensinar, aprendendo. O desafio se inscrevia em mim, pedindo mais e mais tempo para

dedicar-me a velhos sonhos, como mergulhos mais continuados na escola pública, com que

pensava entranhar-me num tipo de autoria literária em que fosse traduzindo problemas e

esperanças, sonhos e travas, frustrações e surpresas em contos escolares.(LINHARES, “As

coisas findas, elas ficarão?”, mimeo, 2007)

Um novo concurso para a própria UFF, no qual ela se inscreveu na última hora, para a

disciplina “Educação comparada”, fez com que ela se mantivesse na docência, reafirmando

esse como um seu espaço privilegiado de atuação.

297

Em 91 me aposentei, pensava em não trabalhar tanto na Universidade, abrindo outras frentes. Então, foi instalado um concurso na UFF e outro na UERJ. Os colegas e amigos me perguntaram por que não me candidataria. Gaudêncio, depois me contou, que quando em reunião do departamento falaram que havia me inscrito, já na última hora, rolaram umas palmas. Assim, acabei entrando na UFF de onde nunca chegara a sair. Foi muito bom porque em função do concurso tive uma avaliação de cinco professores daqui e de fora, de São Paulo, de Minas, professores e professoras acreditados por mim e que valorizaram muito meu desempenho nas provas e minha trajetória. Isso me encorajou e me organizei para ir fazer o pós-doutorado, o que fiz, numa “arrancancada” sensacional, pois fui sozinha, sem meu maridinho e meus filhos, que já estavam independentes. Embora ele tenha ido me visitar, cada vez que podia, e as minhas filhas estarem, uma na França, a outra na Alemanha, fazendo seus doutorados, senti que rompia um ciclo muito antigo e bom, mas que precisava ultrapassar: era uma espécie de “juntos venceremos, que já praticávamos, desde que meu pai morreu e que consolidamos um a roda entre todos nós: minha mãe e nós sete. (Célia Linhares, em entrevista, 2007)

Para os Linhares, os anos 90 foram efetivamente muito ricos. Além do referido

reingresso na própria universidade em que lecionava, Célia viajou para Espanha e Londres

para seu pós-doutoramento, primeiro na Universidad Complutense de Madrid e

posteriormente, na University of London (1992-1993). Primeira viagem longa sem o marido,

a experiência significou para ela a possibilidade de aprendizagens que envolviam mais

autonomia. Para José Linhares, o marco foi a conquista de sua anistia, em 1992, após muitas

lutas.

Foi algo surpreendente que se repetia com recorrência: me ver sozinha sem Linhares, sem os filhos, sem Bibi, em terras estrangeiras. (Célia em entrevista, 2007)

Era então a primeira vez, desde 1946, quando seu pai partiu? Ou deste 1959 quando

casou? É difícil e desnecessário precisar. Mas, de repente, Célia fazia tudo sozinha,

administrando sua vida prática, seu tempo, seus rumos, fazendo novos laços e enfrentando a

adaptação aos países novos e seus desafios. Gostosas passagens dessas viagens são lembradas,

evocando memórias de encontros e oportunidades, coincidências e curiosidades:

Quando propus a pesquisa de pós-doutorado e consegui a bolsa, foi um troféu! Era a primeira saída do Brasil, em que fazia tudo só. Tinha medo de chegar, de o dinheiro não dar até o fim do mês, essas coisas... eu fiz um acordo com Deus, “não quero nem que falte dinheiro e nem que eu deixe o gás da minha casa aberto”, pois sempre tive a Bibi atrás de mim. Mas nada

298

disso aconteceu. A pesquisa foi muito rica em inesperados e quando voltei também estava mais fortalecida.

Quando eu cheguei à Espanha, inicialmente, não sabia bem onde ficar, tudo era muito caro. Com a mediação de uma amiga, Maria Helena Leitão, fiquei na casa da sobrinha do Garcia Lorca.. Lembro-me que ela era surda, ela tinha uma lâmpada que acendia quando o telefone tocava. A casa era quase um museu, mas um museu vivo, por onde circulavam memórias de lutas e resistências, de beleza e de sofrimentos, mas sobretudo de muita dignidade e criação.. Foi excelente, eu fui em maio e depois em agosto fui para Inglaterra.

Com relação às experiências acadêmicas e os encontros intelectuais mais

significativos, Célia escreveu um expressivo capítulo168 no livro que editou com Clarice

Nunes, mas nada pode roubar o prazer de voltar aos anos 90, nas palavras desta nossa

pesquisadora:

Na primeira parte em Madri, meu contato maior foi com o Mariano Enguita169, mas logo fui ampliando meus contactos e conhecendo investigadores tão instigantes e, até então pouco conhecidos, como Francisco Varela170, explorando e voltando a ler autores do tipo de Foucault, Norbert Elias171 e Bourdieu. Conheci também Manuel Castells172 e seus debates sobre

168 LINHARES, Célia: Caminhos de Medo e Esperança. In, LINHARES, C. e NUNES, Clarice, Trajetórias de Magistério: memórias e lutas pela invenção da escola pública. Rio de Janeiro, Quartet, 2000, p.23 -87. 169 O professor Mariano Hernandez Enguita é catedrático de Sociologia na Universidade de Salamanca. Enguita tem se dedicado à investigação na área da Sociologia da Educação, das Organizações e da Cidadania. Para Enguita, vivemos mudanças “difíceis de entender e que requerem análise”. Acredita que numa sociedade de mudanças a escola tem um papel fundamental, já que enfrenta as transformações das formas de convivência em sociedade. Neste sentido, afirma, a escola precisa aprender a conviver com as famílias e com as cidades. 170 O biólogo e filósofo chileno, Francisco J. Varela (1946-2001), escreveu sobre os sistemas vivos e a cognição. Nos anos 70, durante o período em que a biologia da cognição foi formalmente elaborada, desenvolveu em parceria com Humberto Maturana a teoria da autopoiese. Autopoiesis, termo originariamente de origem biológica, passou a ser utilizado em áreas como a neurobiologia e a sociologia. Fundido dois termos, “auto”, que refere-se ao próprio objeto, e “poiese” que tem a ver com reprodução/criação, o termo foi criado para designar os elementos característicos de um sistema vivo e sua estrutura. A partir daí o conceito avançou para as considerações sobre o fenômeno da percepção. (MATURANA E VARELA, 2001). 171 O sociólogo alemão Norbert Elias (1897 a 1990), estabeleceu-se na Inglaterra a maior parte de sua vida adulta. Suas obras focalizavam-se na relação entre poder, comportamento, emoção e conhecimento na História. Em seu livro mais conhecido, “O processo civilizador”, Elias apresenta seu conceito de civilização, que para ele “resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’” (ELIAS, 1995). Elias questiona a crença no progresso e na ‘civilização’ européia, problematizando a própria definição, assim como a de cidade e cortesia. Sua sociologia preconiza também os seres humanos são interdependentes e são em grande parte moldados por figurações sociais que formam uns com os outros. Outra característica importante da sociologia eliasiana diz

299

as tecnologias comunicacionais. Mas também foi muita rica minha participação em Congressos na própria Espanha, tendo ido a um Congresso de Educação Comparada na ex Tchecoslováquia. Em Madrid aconteceu uma das Cúpulas das Nações Ibero-americanas” e, ao seu lado uma outra que abrigava as organizações dissidentes. Pude de diferentes maneiras atentar, assistindo partes de uma e outra, graças a contactos interessantes que consegui fazer.. Depois fui para Londres, onde continuei a pesquisa sobre O Trabalho do Professor na Construção da Identidade da Escola Pública, onde pude enfatizar as questões tecnológicas, com M.Young e M. Barnett. Mas no livro em que Clarice e eu transcrevemos nossos memoriais há toda uma narrativa de talhada de um e outro mergulho em Madri e em Londres. Talvez, o que não esteja lá registrado sejam os livros que deste período se derivaram O primeiro, pela ordem de importância e hierarquia de afetos é o “ Dilemas de um final de séculos: o que pensam os intelectuais” constituído por entrevistas de grandes intelectuais europeus e estadunidense. Foi uma produção prazerosa que implicou em viagens, que compartilhamos Regina Leite Garcia e eu. Foram pensadores como N.Chomsky, A.Lipietz entre outros que debateram conosco as perspectivas do século XXI, aproximando-a das realidades brasileiras e latino-americanas. O outro, Da Escola ao Desemprego,faz parte de uma Coleção, A Escola e as Outras Vozes que publiquei pela Agir, onde como tradução, esse interessante livro do Eric Sanchez, professor de economia da Universidad de Valencia, Este é um livro valioso, não só pela inversão desse caminho que ele inverte e problematiza, mas pelo seu trabalho metodológico fantástico. O Eric me visitou recentemente, interessado em manter viva as relações entre sua Universidade e a nossa.

Toda essa fertilidade de contatos e convívio com autores, idéias e espaços de reflexão

foram vividos com entusiasmo crescente por Célia. Simultaneamente, ia enfrentando os

desafios de encontrar residência, sobreviver num clima tão diverso do brasileiro e ir tecendo

novas relações. A ida para Inglaterra, após esse primeiro período em Madrid, foi um novo

desafio. Graças aos laços com amigos brasileiros encontrou acolhimento. A esse respeito ela

conta uma passagem acontecida ainda no Brasil, antes de sua viagem, quando um pedido de

uma de suas ex-orientandas, Tereza Cristina Calomeni a levaria a conhecer uma pessoa

respeito ao desenvolvimento do conhecimento. Para Elias, o conhecimento não é estático tampouco pode ser entendido em separado da sociedade. Mudanças nos processos de conhecimento afetam a sociedade e vice-versa (LANDINI, 2005). 172 Sociólogo espanhol, Castells, tornou-se pesquisador da Universidade Aberta da Catalunha em Barcelona em 2001. Em 2003, juntou-se à Universidade da Califórnia Meridional, como professor de Comunicação. Desde a década de 80 começou a se concentrar no papel das novas tecnologias de informação e comunicação na reestruturação econômica.

300

especial em sua viagem. Para Célia, essa situação reforça sua impressão da força das palavras

e de como elas podem trazer mudanças, abrir fronteiras.

Eu pensava na ida para Inglaterra com muito medo, eu estava tão apavorada... eu pensava no frio ... Mas algo curioso aconteceu, Antes de minha saída do Brasil para Madrid eu conversava sobre a viagem com uma orientanda, muito inteligente e muito amiga que tenho no Brasil, Tereza Cristina Calomeni. Ela é uma pessoa apaixonada pela filosofia, Ela fez comigo uma dissertação, trabalhando a arqueologia e a genealogia de Foucault, depois ela se doutorou na PUC. Pois bem, nessa conversa que tivemos, Tereza e eu, ela me perguntou, “Célia, tudo bem?!” e eu disse, “tudo bem Tereza só que eu estou com tanto medo...não tenho ninguém em Londres”. Ela então disse, “Célia, olha ai esse endereço que vou te dar, eu vou te levar uma encomenda para tu levares para essa pessoa”. Menina, esse contato foi muito bom. Era uma jovem senhora de extrema experiência e sensibilidade: Lúcia Helena Geary. Entrei em contacto com ela, por telefone, logo que cheguei em Madri e quando cheguei em Londres, ela estava no aeroporto me esperando! Fui muito bem recebida!

Ainda sobre seus contatos e experiências de viagem, lembra da parceria com Regina

Leite Garcia, dos Museus e do encontro com Michael Young. A parceria com Regina, que

também estava se pós-doutorando, rendeu a produção de um livro de entrevistas “Dilemas de

um final de século: o que pensam os intelectuais”.

No Brasil, já nos primeiros anos da década de 90, Célia percebe que seu trabalho vai

ganhando maior visibilidade. Certamente o pós-doutorado concorreu para uma ampliação de

seu raio de ação, novos contatos, novas produções teóricas, novos diálogos que se abriram.

Essa difusão maior de sua produção favoreceu ainda mais a consolidação de seu lugar

como pesquisadora e são férteis os projetos que tem curso nessa época. Algumas de suas

pesquisas: “Experiências instituintes em Escolas públicas e formação Docente: Brasil e

Portugal” (2006); “Experiências instituintes em Educação Pública: memórias e narrações para

formação de professores II” (2003); “Experiências instituintes em Escolas públicas e

formação de professores: pontes com múltiplas mãos (2003); “Experiências instituintes em

Educação Pública: memórias e narrações para formação de professores I (2001-2003);

“Navegantes e internautas – 500 anos de aprendizagens a desafiar a formação de professores

desenvolvida em cooperação com a Universidade do Minho (1999-2001); “Destruição e

Reinvenção da Escola Pública: tensões na formação dos professores” (1997-1999) e “Políticas

de Formação de Professores nas Novas Configurações Sociais” (1994-1996).

301

Importante sublinhar que é também nesse momento que ela incrementa sua presença

de forma mais sistemática nos sistemas públicos de ensino, perspectiva que a alimenta

fortemente, aliando sua atuação acadêmica com uma militância na escola, palco de seus

interesses mais imanentes. “No final desta década intensifiquei minha presença nos sistemas

públicos de educação, como consultora. Foi 10 para o meu coração”. (Célia em entrevista,

2007)

4 . 3 Parte I: Trilhas do pensamento, anos 90.

Os anos 90 foram de uma intensa produção textual. É interessante observar que Célia

tem muito mais artigos em diversas revistas e coletâneas do que livros individuais. Esses são

poucos. Acaso? Oportunidade? Arrisco reafirmar que, mais do que um acaso, isso reflete seu

gosto pelo diálogo coletivo e sua participação ativa em diferentes espaços de discussão.

Nesse capítulo, assim como nos demais que tratam das outras décadas, ressalto que o

objetivo não é o de fazer uma varredura de toda a sua obra, cujo número é muito extenso.

Pretendemos destacar aquelas que, de alguma forma, trazem as idéias centrais de Célia em

determinados períodos e, portanto, nos permitem uma aproximação do temário de que trata,

de seu estilo e dos autores com o quais foi dialogando privilegiadamente. Conhecer seus

textos é também perceber como ela vai dialogando com o tempo que passa, com as questões

mais amplas da sociedade em suas dimensões políticas, econômicas, ideológicas.

Nessa primeira parte, apresentamos as idéias centrais dos textos dos anos 90. O

primeiro, é a tese para professor titular, escrita em 1993, “A Crise do Político na Educação: a

imposição da estratégia como espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos

na construção ética”. Seu foco é discutir a concepção de política que anima o pensamento de

Célia Linhares.

O segundo, “Tecnologias inteligentes x juventude desempregada”, de 1995,

questiona, tanto a idéia de que a tecnologia constitui uma força tão poderosa que contra ela

não seria possível reagir, como também as ambivalências da tecnologia e de sua falsa

neutralidade.

O terceiro texto, “Sujeitos históricos: seus lugares na escola e na formação de

professores”, produzido em 1996, aborda a necessidade do resgate histórico na elaboração dos

projetos pedagógicos, favorecendo aos sujeitos acederem à palavra e construírem uma escola

em diálogo com a realidade social.

302

“Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores” publicado em

1997 é o quarto texto. Nele, Célia Linhares defende a necessidade de que a aprendizagem

escolar envolva o esforço de descoberta e elaboração própria por parte dos sujeitos, criticando

a concepção de conhecimento como bagagem a ser adquirida. Preconiza que tanto a atuação

do supervisor escolar quanto a formação do professor precisam compreender essa dimensão

do conhecimento, que envolve alegria, sabor e fomento à curiosidade. A autora acredita que a

memória e a narração podem ajudar a redefinir os rumos da escola, por permitirem que os

sujeitos se apropriem de suas próprias histórias. O quinto texto, “Terremotos na pedagogia:

perspectivas da formação de professores”, escrito em 1998, chama a atenção para as variadas

questões que atravessam a Pedagogia, passando pela discussão da dinâmica social, da

valorização da força da coletividade em detrimento do individualismo, da presença do uso da

sedução para a manipulação dos desejos, da violência das injustiças sociais, dentre outras,

traçando um panorama da educação e seus “terremotos”.

“Escola Balaia, um convite para a reinvenção de Caxias”, sexto texto é na verdade um

livro. Escrito em 1999, apresenta o projeto elaborado por Célia para a Educação Municipal de

Caxias. Nele, Célia Linhares sintetiza os princípios que sustentam a escola na qual acredita.

“O pensamento pedagógico crítico: a presença de Paulo Freire” é o sétimo artigo, feito

em 1997. Nele Célia resgata as principais formulações de Freire para pensar uma escola em

que a liberdade é um princípio fundamental.

No oitavo artigo, “Medos e violências nas escolas: e a educação com isso?”, de 1999,

Célia compreende que para lidar com a violência é necessário ouvir e valorizar os desejos dos

estudantes e não apenas punir e corrigir, apostando numa escola que estabeleça uma rede que

fortaleça as pessoas e seus vínculos de interdependência.

O nono e último texto, “Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos” foi escrito

em 1999. A autora critica o abismo entre o que se produz na academia e o que se pratica na

realidade das escolas brasileiras, convocando a pensar a respeito do lugar do intelectual e em

como ele pode, efetivamente, contribuir no combate a ditadura neste período neoliberal.

Linhares defende a necessidade de que as pesquisas das experiências e necessidades sociais.

Vamos a eles.

303

4.3.1 A Crise do Político na Educação: a imposição da estratégia como espaço de servidão versus a emancipação de sujeitos históricos na construção ética. Tese para Concurso de Professor Titular de Política Educacional (1993)

Célia Linhares realça em sua tese o caráter essencialmente político da escola moderna,

tendo em vista seu compromisso de desenvolver a racionalidade humana e atuar na

preparação para a cidadania. Escola que, em seus ideais de “igualdade, liberdade e

fraternidade” seria acessível a todos.

Paradoxalmente, sublinha a autora, o projeto da escola de atender a todos se

antagoniza com os interesses econômicos do capitalismo industrial em ascensão e a efetiva

falta de empregos, moradias e demais condições dignas de vida para a população, decorrentes

de um sistema político que se sustenta na desigualdade. Nessa perspectiva, a pseudo-força de

equalização social propugnada pela escola é posta por terra. Deste modo, a promessa que

fazia da escola um instrumento privilegiado de revolução que se propunha formar cidadãos

decaiu, vertigionosamente em valões de baixa visibilidade, em que o exercício prioritário

passa por mecanismos de fabricar ninguéns.

Enquanto a instituição escolar cresce, conquistando dimensões numéricas expressivas,

no entanto, sua identidade se dissolve, afirma Linhares. Outras funções como as de cuidados

de saúde, alimentação, disciplinamento e controle moral ou até policial vão se embaralhando e

substituindo suas funções específicas. Os que atravessam a escola não têm garantias de

emprego, nem do exercício efetivo de participação nem dentro nem fora dela.

Mas todos esses processos que parecem expandir a escola, mas que vão configurando

uma sub-escola se corresponde com uma democracia que cresce ao preço de uma redução,

assombrosamente contrária a tudo que foi sonhado como uma política de todos e para todos,

nos diz Linhares. Afinal, continua nossa autora, a democracia vem sendo apertada por regras

processuais e, assim, atrofiada em decisões de gabinete, que se fazem não somente sem as

classes populares, trabalhadoras, mas contra elas.

Respaldada em autores como Hans Jonnas, Linhares ressalta que no mundo complexo

em que vivemos, o exercício da ética não pode estar fundado apenas na lei moral, mas requer

o domínio do conhecimento. No entanto, o acesso ao conhecimento é obstaculizado numa

política de hierarquização e negação do que é historicamente esperado de escolas, no mundo

contemporâneo: uma aprendizagem política, social, humana e vital que seja vivamente

impregnada de conhecimentos, favorecendo à vida, às relações de amorosidade e respeito

entre os viventes e capacidade de reinvenção da cultura e da educação difundidas. A grande

304

maioria das escolas estão tratadas de maneira a servir mais às diferentes formas de

manipulação do que a um real esclarecimento.

Célia Linhares acredita que, se por um lado há todo um aprofundamento das

fragmentações das instituições sociais, que convivem com mecanismos de massificação, por

outro, há também pluralidades e conexões. Assim, forjam-se sujeitos sociais xenofóbicos e ao

serviço de interesses privilegiados, mas também se forjam os que se empenham com

compromisso com a emancipação individual e coletiva, plantando suas lutas num espaço

instituinte de uma nova concepção democrática. Pistas de um outro caminho estão abertas na

sociedade atual.

A escola pública, quando submetida à servidão, volta-se para conformação e

servilismo, nos mais altos níveis. Seu projeto deveria estar voltado a conter a barbárie, o caos.

Porém, para isso é preciso inventar, participando, forjando projetos que envolvam fazer

ressoar o poder de uma racionalidade política maior contra a força policial, realça a autora.

Concluindo este pensamento, Linhares afirma que “A escola ao invés de (...) um

instrumento privilegiado da revolução que se propunha formar um povo de ‘alguéns’ –

cidadãos que iriam vencer na vida’ – passa a puro mecanismo de formar ninguéns, com

único enraizamento na mesma luta titânica pela sobrevivência.” (p.4).

Célia Linhares indica que a complexidade atual do mundo de hoje, em que a divisão e

hierarquização da escola e o controle e manipulação dos conhecimentos obstaculizam o

próprio acesso ao conhecimento de grande parte do povo brasileiro. Precisamos constituir

uma identidade, sintonizando-se com compromissos éticos de construir uma sociedade com

sujeitos capazes de “instituir um tempo novo, no qual a solidariedade encontre expressão

nos sistemas políticos e no cotidiano social(p.6). Uma escola cuja (...) luta é travada contra a

mediocrização e a pausteurização do ser formatado na repetição e na subserviência.” (p. 6).

Célia Linhares chama atenção para os movimentos instituintes de sujeitos históricos,

que ensaiam projetos de escola e que, por representarem ameaça, são reconhecidos muitas

vezes como agentes da barbárie. “Potencialmente criativo, singularmente revolucionário (...)

representam uma ameaça à ordem empresarial. Ei-los, portanto, assimilados, de pronto, à

barbárie – quando a rigor, indicam pistas para um novo tipo de democracia.” (p.8).

Em sua tese, a autora toma o Político como espaço de emancipação dos sujeitos,

implicando “não na defesa do constituído, mas, antes, na permanente busca de criação de

valores; esfera de atuações éticas, em que os sujeitos, ao se constituírem a si mesmos

enquanto indivíduos e coletivos vão-se libertando de processos de opressão”. (p.8) Linhares

afirma que compreender a política como espaço de interlocução de sujeitos, exige a eleição de

305

categorias de análise que apontam para a reformulação do próprio exercício do pensamento, a

fim de que o conhecimento possa se encarnar na realidade que reflete e que projeta, instalando

na sociedade novas aberturas.

O objetivo central de sua tese é estudar os extravios políticos de nosso país, revendo

contradições que caracterizam a passagem da transição para a democracia, investigando de

que forma as políticas públicas para a educação mais das vezes reforçam desigualdades que

marcam nossa trajetória.

Nesse sentido, Linhares busca o desocultamento do político e a construção do sentido

com que a política educacional poderá se orientar como um espaço ético, em prol de uma

educação contra a subalternação, que responda aos interesses de um povo que precisa

constituir-se como cidadão. Perspectiva que vai contra a tendência concentradora de

conhecimento, afirma Linhares, presentes no trabalho, na escola e na ideologia dominante. A

autora busca “pistas de construção de saberes que sirvam para despertar o potencial criador

dos sujeitos coletivos do conhecimento, embasar a exploração permanente de novas vias que

finalmente introduzam à prática do político, como, antes de tudo um exercício ético” (p.10).

Célia critica uma idéia de política concebida apenas como um campo de estratégias,

em que:

“ a plena realização do político se esgota na programação rigorosa, na administração quantificada das etapas e do recurso aos meios que permitirão a consecução de objetivos pragmáticos previstos. Para a autora, o campo político é o da atuação de sujeitos históricos, de interlocutores em trabalho de construção ética, de participantes que intervêm concretamente na sociedade, no mundo do trabalho, no mundo da escola e que, por conseguinte, realizam novas relações e configuram os verdadeiros espaços de decisão política; vale dizer, daqueles que engendram novas possibilidades de vida por serem instituintes de novas formas de vida. (...) O que se ganha com essa perspectiva, é – sobretudo- o firme compromisso com a construção verdadeiramente democrática da sociedade (p. 13).”

Nessa perspectiva, a política constitui-se como um livre exercício de dialogia,

“prática instaurada pela democracia e instituída entre sujeitos engajados na busca de

constante apropriação e redefinição de valores fundamentais como Justiça, a Verdade, o

Bem, o Belo, a Liberdade”(p.15).

Linhares reconhece que no discurso pedagógico-político, muitas intenções elitistas e

conservadoras encontram-se camufladas. Por vezes, expressas numa linguagem manipuladora,

306

encontramos ideologias conservadoras, tal perspectiva tem marcado nosso percurso, como um

obstáculo que a autora sublinha como sendo necessário enfrentar.

Continuando nessa direção, a autora critica as teorias conformistas, que negam ações

instituintes de novas formas de convivência social, afirmando a falta de alternativas diante do

panorama atual, como exemplo cita a teoria do “fim da história” de Fukuyama. “Arautos do

pânico”, nas palavras de Célia Linhares. Célia insiste em reunir evidências de que:

“o sonho de liberdade e de solidariedade não consegue ser substituído pelo desvario da competição e da servidão ilimitadas, ou pela promessa ilusória das recompensas reservadas aos bons tarefeiros; de que o controle da opinião pública não consegue destituir a busca de um sentido histórico da experiência social; de que o agenciamento planificado dos desejos consumistas jamais esgotam a paixão humana de criar o novo. (p. 17).

A respeito do campo da Política Educacional, Linhares afirma que, ainda que muitos

avanços tenham sido proclamados como conquistas na ampliação e melhorias da educação,

estes tem sido demarcado por ênfase no que vêm de cima, atos do governo, decisões do MEC

etc. Para grande parte de nossos professores, é apenas essa política que referencia suas

práticas, expressas nos documentos e parâmetros produzidos pelos sistemas. Linhares

reconhece que, embora o movimento que se coloca na linha de frente do diálogo com tais

instâncias se mantenha ativo, por meio das organizações dos professores, é preciso ainda

garantir mais e mais a voz do professor na esfera política.

Célia Linhares ressalta também a necessidade de que não se registre apenas a história

oficial, mas que se valorize a memória popular de lutas pela escola pública. Nessa direção,

Linhares sinaliza a necessidade de que professores se apropriem de seus saberes e

conhecimentos, que tem ficado muitas vezes relegado aos especialistas.

Na conclusão de sua tese, a autora afirma a necessidade de que a Política Educacional

Brasileira seja conduzida e partilhada por sujeitos, num processo de identificação recíproca.

Ela reconhece que o momento atual é repleto de ameaças, riscos, contradições e

possibilidades, em função da emergência de sujeitos históricos que articulam eticamente seus

desejos individuais aos coletivos e vice- verso. Reconhece também que não é possível

resolver problemas que são comuns a todos por meio de iniciativas isoladas, como por

exemplo, as situações como a questão ecológica, a problemática da saúde, do

emprego/desemprego, e da escola, da escola pública sem a qual a democracia perde suas

pilastras de sustentação e seus fluxos de construção.

307

Afirma que o verdadeiro legislador é a sociedade como sujeito coletivo e que projetos

de lei, como a Lei de Diretrizes e Bases, só ganharão densidade e expressão política se

referido a esta exigência ética que emerge de toda a sociedade. O caráter verdadeiramente

concreto das leis, continua Linhares, “vem do próprio processo de sua elaboração, ao

conjugar realidade e utopia no exercício da invenção e da simbolização coletiva e individual.

(p. 177)”.

Tal projeto de participação social não exclui riscos e não apresenta garantias, pois são

inerentes ao próprio processo instituinte, sublinha Linhares.

Célia finaliza seu trabalho relembrando o "impeachmeant" de Collor, que evidenciou

um país indignado diante dos que “insistem em nos roubar o futuro”, e convida: “Vamos tirar

o Brasil a limpo?” (p. 178).

4.3.2 Tecnologias inteligentes x juventude desempregada: desafios da história. (1995)

Publicado em 1995 na revista Tecnologia Educacional, o artigo, “Tecnologias

inteligente x juventude desempregada: desafios da história, inicia discutindo as imagens

antagônicas com que a tecnologia vem sendo identificada, que atribui seus efeitos a uma força

tão grande que nos impediria de reagir a ela, como que submetidos inexoravelmente a sua

soberania.

Os argumentos que se entrelaçam a essa imagem associam, segundo nossa articulista,

a busca de soluções imediatistas aos “destroços das vidas perdidas” pelo desemprego, fome,

negação à terra, à moradia, à saúde”, eximindo os governantes de suas responsabilidades ao

debitar as catástrofes cotidianas, na conta do progresso inevitável das tecnologias.

Políticas, econômicas, sócio-educacionais e comunicacionais, em nome da

modernização investem e exacerbam a imagem do aprendiz de feiticeiro, ou seja, aquele que

para roubar o segredo do mestre desencadeia forças que não é capaz de compreender e

controlar.

São argumentos desses tipos que vestem e potencializam imagens que contribuem

para que os impactos tecnológicos, não só sejam aceitos como óbvios e evidentes,mas que

conjugando fatos e ficção científica vão protegendo com um signo de quase sacralidade e,

portanto, indiscutíveis.

308

Célia Linhares põe em discussão o fato de que a ciência, cuja promessa era a

libertação e a vitória sobre o terror do desconhecido, passou a escravizar e pressionar com

suas criações àqueles que, supostamente, teria libertado.

Célia discute o imaginário político relacionado às tecnologias inteligentes. Cita

imagens de repercussão recorrentes entre nós, que poderiam ser organizadas como otimistas e

pessimistas.

As otimistas atribuem à tecnologia uma capacidade ilimitada de organização e

eficiência que, comparativamente fazem os seres humanos parecerem obsoletos. Essas

imagens carreiam um apoio popular aos altos investimentos em programas de “modernização”

da escola (computadores, televisores, dvds etc.), mesmo em detrimento do aperfeiçoamento

docente. Divulga-se que, nessa perspectiva, a partir de uma educação compreensiva, com

estímulo à capacidade criadora e à iniciativa própria, o espaço para a participação da classe

trabalhadora estaria garantido.

Para as pessimistas, as máquinas seriam as vilãs da espoliação e penúria da classe

trabalhadora. Célia comenta em rodapé os estudos de alguns autores, destacando Marx,

Braverman, Harrt, e Enric Sanchis, que refazem o percurso da produção humana, desde o

artesanato até a automatização, ressaltando que esta concorreu para a destituição do

trabalhador e do controle de seu trabalho. Levando ao limite extremo esta hipótese, o

trabalhador passaria a realizar, cada vez mais, tipos de trabalho autômato, reduzindo seu

trabalho a uma vigilância e operação do maquinário.

A autora situa a questão sobre autonomia e neutralidade tecnológica no interior das

discussões da Filosofia Política e da Teoria do Conhecimento, problematizando assim uma

visão de que tecnologia seria neutra, que dependeria do uso de que dela se faz. Para Célia é

possível que o conhecimento mais divulgado das relações entre tecnologia e política ainda não

tenha se aproximado de um tipo interacionismo cognoscitivo que nos permita entender e valor

categorias marxianas, “como o trabalho morto”.

Lançando mão da poesia de Chico Buarque, “Morena de Angola”, Célia afirma que,

assim como a morena que “não sabe se mexe o chocalho ou se o chocalho é que mexe com

ela”, nós também usamos a tecnologia e por ela somos usados, constituídos, numa perspectiva

interacionista cognoscitiva.

Chama atenção a ligação de Célia para as questões atuais, não só do cenário social e

político, mas também para os conceitos e estudos contemporâneos. De Vygotsky, as questões

atuais relativas à tecnologia, de Chico Buarque a Amacord, ela está sempre atenta ao

movimento de produção cultural e de conhecimento que circula no mundo. Não vê

309

impedimento em convidar atores de diferentes campos para o diálogo. Músicos, cineastas,

poetas, educadores habitam seus textos.

A questão da solidariedade, tão presente na obra de Célia, surge nesse artigo associada

à necessária apropriação de uma esfera pública constituída com responsabilidade e

conhecimentos científicos, amplamente difundidos e apropriados sob a meta da solidariedade

(p. 31). A solidariedade implica, assim, uma dimensão política, envolvendo, no caso da

tecnologia, o reconhecimento das relações entre estas, a sociedade e o trabalho, com o

máximo de responsabilidade social.

Célia insiste na importância da memória e do risco de perder o presente e o futuro

quando não olhamos o passado. Os impasses que ela identifica não a paralisam, também não

sinalizam exclusivamente aspectos críticos em seus textos. Seu Interesse é cotejar distintas

faces das questões em debate, reconhece necessárias reflexões, busca caminhos, sem

“demonizar” nem “sacralizar” idéias, conceitos e pontos de vista. O contraditório, a

ambigüidade, as divergências fazem parte dos aspectos que explora nos diversos temas que

abraça.

4.3.3 Sujeitos Históricos: seus lugares na Escola e na Formação de Professores. (1996)

“Uma educação escolar que não atinge os sujeitos históricos obstrui nossa participação nacional nesse processo de interdependência da cultura e da economia, que nos vem sendo imposto num circuito homogeneizador e opressivo”. (1996, p. 140)

No artigo “Sujeitos históricos: seus lugares na Escola e na Formação de professores”,

publicado em 1996 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Célia aborda a chamada

crise de escola pública, refletindo sobre a construção histórica de valores e significados

comuns que interferem na elaboração do projeto pedagógico, relacionando tais questões com

a crescente exclusão social, para ela principal entrave da educação. Não será qualquer escola

que pode fazer frente a esta crise, afirma Célia Linhares. É necessário que a escola permita

310

aos sujeitos aceder à palavra, desnaturalizando iniqüidades com que fizemos nossa história e

elaborando projetos coletivos e individuais, isto é, sonhando com outros mundos.

Célia cita Roberto da Matta173, antropólogo brasileiro cuja obra ganhou maior

visibilidade na década de 90. Da Matta, explorando em um de seus artigos a expressão

popular muito comum “Sabe com quem está falando?!”, traz a baila a questão do o

escalonamento de privilégios muito comum em nossa estrutura social.

Com relação às questões entre escolaridade e violência envolvendo a criminalidade é

possível levantar hipóteses de que, regra geral, os que tem os níveis mais altos de

escolaridade, com concentração nas classes dirigentes não se isentam de comandar crimes

contra à humanidade, porém a imagem de malfeitor, ladrão ou deliqüente é mais facilmente

atribuida aos pobres, negros, mestiços e gays. A estes é empurrada toda a culpa dos problemas

da sociedade como a violência urbana, o desemprego, epidemias, entre outros. Portanto aos

triunfos da escola de mercado, destinada aos herdeiros das classes dirigentes, se pode

contrapor os infortúnios da escola mínima , também chamada de sub-escola, mantidas para

preparar as “formigas” que engrossarão as filas dos que disputam uma vaga no mundo dos

empregos e que muitas vezes são catapultados para os lugares de sobrantes.

O conformismo da sociedade com a negação escolar é grave porque vai fazendo a

permanência de uma opção de escola que marca a sociedade brasileira: uma escola fraturada e

distanciada em suas partes por abismos que não param de se aprofundar. A escola tem se

mostrado arrogante, pedante, distante da realidade social, dos pais e de seus alunos, sobretudo

os mais pobres. Isso tudo para não admitir seu próprio e incômodo vazio.

Enquanto a sociedade brasileira não assumir a escola como questão fundamental,

escreve Célia, vamos continuar sem direção para o sistema de produção e para o sistema

173 Roberto Da Matta, antropólogo brasileiro é hoje considerado um nome importante nas Ciências Sociais brasileiras. Realizou pesquisas etnológicas entre os índios Gaviões e Apinayé. Foi pioneiro nos estudos de rituais e festivais em sociedades industriais, tendo investigado o Brasil como sociedade e sistema cultural, pesquisando o carnaval, o futebol, a música, a comida, a cidadania, a mulher, dentre outras peculiaridades de nossa cultura. Estudioso dos dilemas e contradições brasileiros, além de antropólogo, atua como professor, colunista de jornal e produtor de TV. Em seu original trabalho sobre a conhecida e ameaçadora pergunta: “Você sabe com quem está falando?”, Da Matta marca uma clara distinção entre indivíduo e pessoa. Os seres humanos, diz ele, que se sentem autorizados a se dirigir dessa forma aos outros, colocam-se na posição de pessoas: são titulares de direito, são alguém no contexto social. Os seres humanos a quem tal pergunta é dirigida são, para as pessoas, meros indivíduos, mais um na multidão, um número.

311

político. As instituições escolares têm se tornado um tipo de confinamento onde a única

vantagem seria ocupar as crianças, transmitindo-lhes um “saber sem sabor”.

A escola estaria funcionando como uma “usina de moer sonhos e fibras de sujeitos”,

já que os professores apenas transmitem o conhecimento para fazer dos seus alunos seres

“educados”. Desta maneira que vem sendo ensinado, o conhecimento atrofia o pensamento e

amordaça a voz, e desta forma o saber se torna amargo.

Paulo Freire é citado, destacando sua concepção de conhecimento que entende que

quando a curiosidade é sua força motriz, inserimo-nos num nível de prazer que não significa

facilidade e conforto. Esse é um ponto muito importante a ser ressaltado. Pois Célia, quando

defende a idéia do “saber com sabor” não faz uma ode ao conhecimento como puro deleite,

pois compreende os processos de aprender como desafios que exigem investimento por parte

daqueles que aprendem e dos que ensinam, porém inclui desejo, curiosidade, interação, como

dimensões significativas desse processo.

No fim de seu artigo Célia faz uma breve biografia da escola, chamando atenção para

o fato de que nos anos 70 ocorreu uma alarmante evasão dos alunos. Nos anos 80, deu-se uma

evasão dos professores (que continua aumentando) e que nos anos 90, a violência urbana se

intensificou, com situações extremas como as que ocorrerram em várias escolas do Rio de

Janeiro em que as quadrilhas decidiam sobre o fechamento da escola, e os crimes e mortes

convivem e agravam os problemas já existentes na escola.

Célia acredita que para se redefinir os rumos da escola, seria necessário, entre tantas

outras providências que lhe garantam uma sustentação, entranhá-la de memória e narração,

que lhe propicie exercícios continuados de ir significando e ressignificando sua prática e,

assim, reinventado outros lugares para a escola. Este entramento “poderia fazer a escola

recriar-se como uma comunidade narrativa em que a biografia de cada instituição escolar

servisse de fio condutor, para que professores e alunos fossem tomando contacto com as lutas

desde a instalação da escola e com aquelas que vão incrementando o seu desenvolvimento”(p.

161).

Célia portanto, defende que para enfrentar a crise é necessário pensar numa escola que

favoreça aos sujeitos o incessante exercício de pronunciarem a sua palavra, na qual a

curiosidade seja alimentada num processo de conhecimento vivido com sabor e liberdade.

312

4.3.4 Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na escola pública. (1997)

O artigo “Direito ao saber com sabor: supervisão e formação de professores na escola

pública” foi escrito em 1997 e publicado no livro “Nove olhares sobre a supervisão”,

organizado por Celestino Alves e May Rangel. Célia inicia seu texto citando o escritor Robert

Krutz que aponta que o colapso da modernidade vai arrastando um esgotamento de sonhos, de

expectativas, de esperanças com que se alimentou a vida social.

A escola parece agora não ter espaços para os sonhos de universalidade, interação

com processos de democratização, ampliação de direitos civis e políticos e participação

cidadã, afirma Célia. Para sobreviver, a escola cedeu aos apelos capitalistas, imposições

burocráticas, tecnicistas, imediatistas, particularistas, abdicando de perspectivas utópicas.

Célia afirma que a aprendizagem escolar implica transmissões e aquisições que só são

consolidadas mediante práticas que mobilizem o esforço e o empenho do estudante na

descoberta e na elaboração própria.

Não podemos perder de vista que são os projetos, portanto as referências que

ultrapassam o presente, que dão sentido e organização à experiência escolar. Alerta, ainda,

para os riscos de uma asfixia no presente, pois só mergulhados no sonho, podemos escapar da

realidade para melhor enfrentá-la; mas há riscos também se exagerarmos esta opção, tal

como, ao prolongarmos, ou melhor,radicalizarmos ausências da trama histórica, acabarmos

por perdê-la. Sonhar impede que o hoje nos asfixie, nos projeto para o amanhã. Célia trata

portanto de uma idéia de sonho fortalecedora e não escapista, no que se irmana como o

conceito freireano de utopia, “Sonho possível”, lastreado por uma ação transformadora da

realidade.

Refletindo especificamente sobre a função da supervisão na escola, tema central de

seu artigo, Célia faz uma alerta sobre o risco de que a divisão das funções técnicas, dentro da

escola, traga enfraquecimento do sentido coletivo da educação. A divisão na escola brasileira

só tem sentido se usada para fortalecer o trabalho.

Há um processo sutil de exclusão, presente no próprio processo de inclusão, que vai

demitindo e amortecendo alunos e professores: o engessamento dos sujeitos na escola, sua

paulatina reificação, sua redução a objetos repetidores. Isto é, ainda que incluído na escola, as

práticas educativas, quanto não envolvem a criação e o fomento à curiosidade, acabam por

gerar uma desapropriação do sujeito de seus próprios recursos, gerando exclusão.

313

Para abordar a questão do sujeito e a questão do conhecimento escolar Célia analisa a

busca da verdade e do sujeito da verdade, reportando-se à Grécia de Péricles (IV a. C.),

passando pelos conceitos dos sofistas (“O Homem é a medida das coisas” – Protágoras).

Sublinha os antagonismos entre os sofistas que afirmavam ser o conhecimento relativo e os

filósofos que acreditavam na existência da VERDADE.

Ressalte-se que é muito usual na obra de Célia seu mergulho na história para

compreender questões atuais, aspecto que é coerente com sua visão, repetida em diversos de

seus trabalhos, de que apropriar-se da história é fundamental para que se possa efetivamente

compreender melhor o presente. Esse é, de fato, um caminho que ela nos convoca a fazer em

muitos de seus escritos.

Célia levanta uma série de interrogações e reflexões sobre o conhecimento e suas

dimensões tais como: o que é conhecer, para que procuramos conhecer, como entender a

curiosidade que move o desejo de conhecer, quais as relações entre conhecimento e poder,

quais as suas dimensões éticas e como o desejo de conhecer abre caminhos de descoberta,

potencializadores da ação humana.

O capitalismo industrial reforça a concepção de conhecimento como bagagem, algo

que devemos adquirir. Para a grande maioria dos professores a concepção interacionista não

ultrapassa a esfera cerebrina.

A idéia de bagagem como concepção de conhecimento carrega a idéia de uma

neutralidade do conhecimento, de promessas de um progresso sem limites, investimento em

projetos onipotentes de domínio da natureza, para um possível e sempre transferido benefício

da humanidade como um todo, foram marcos no desenvolvimento modernos dessa concepção.

Com a complexidade social, que implica mediações e afastamentos entre os que

produzem conhecimentos e os grupos que os absorvem e os consomem, o retorno à filosofia

aparece como urgência para desfetichizar as ciências sociais.

É preciso discutir as relações entre conhecimento e verdade, defende a autora, assim

podemos argüir os programas escolares, refletindo sobre os critérios que os definem e os

sujeitos que tem a autoridade para fazê-lo. Célia nos instiga a refletir sobre a conexão entre os

programas escolares e as questões sociais, bem como sobre o compromisso dos mesmos com

os “projetos de esperança que animaram a história”(p. 76).

Afirma que a elaboração de conhecimentos se faz num campo de batalhas onde os

interesses de classe e de grupos se confrontam em conflitos abertos ou camuflados.

314

A ciência e a filosofia não são captação de essência mas sim produção histórica, que

envolve processos de racionalização e abstração e que, portanto não pode prescindir da prática

social, da ação coletiva. As certezas absolutas são um mito ultrapassado.

As verdades e os conhecimentos são produzidos socialmente, dentre das lutas nas

quais as condições da existência são engendradas.

Na página 81 está explícita a concepção de conhecimento da autora, que afirma a

alegria, o fomento à curiosidade, a leveza e o sabor como aspectos indissociáveis do ato de

conhecer.

A memória e a narração podem ajudar a redefinir os rumos da escola. A partir das

narrativas os sujeitos se apropriam da história, projetam, se organizam. Conceito sempre

presente nos escritos de Célia, o resgate da história está ligado à possibilidade de refletir sobre

os próprios caminhos do futuro.

4.3.5 Terremotos na pedagogia: perspectivas da formação de professores.

O artigo “Terremotos da pedagogia: perspectivas da formação de professores” foi

publicado em 1998 no livro Formação dos profissionais da educação: o novo contexto legal e

os labirintos do real, organizado por Waldeck Carneiro da Silva Niterói: EdUFF, 1998.

Produzido em função de uma aula inaugural realizada sob a forma de uma mesa com a

participação de uns 5 professores, Célia iniciou sua fala reafirmando a importância dos rituais

escolares, como veículos capazes de apoiar o esforço coletivo de ressignificar as experiências

vividas pelos sujeitos pedagógicos. Nesse sentido, a aula inaugural constitui-se em um espaço

de narrar vicissitudes do aprender e ensinar e elaborar questões e caminhos esperançosos.

Chama atenção para as vozes que sintonizam com o esforço de combater as

desigualdades e injustiças que variam suas formas de excludência dos sujeitos: negações de

empregos, hierarquização dos saberes, coisificando os que aprendem e ensinam pelas

renúncias de suas singularidades e diferenças.

Cita Norbert Elias em sua compreensão da dinâmica social. Esta se complexifica com

o avanço da civilização, escreve Célia, constituindo-se em um tecido de interdependências

que envolvem indivíduos e organismos sociais produzindo uma “ordem sui generis”, uma

ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão dos indivíduos que a

compõem. Essa valorização da força política, dos fios que nos tecem e com os quais nos

tecemos e aos nossos coletivos é uma tônica do pensamento pedagógico de Célia.

315

Apoiando-se em Elias, nossa articulista afirma que a história não se faz nem através

do acaso, nem através de uma lógica única e muito menos daquela que é comandada pela

eficácia dos planejamentos. A vida transborda, transborda sem parar e não pára de nos

surpreender, nos diz Célia.

Ressalta que as imposições e o uso da força se articulam e se complementam com a

manipulação dos desejos.

Chama atenção para a necessidade de analisar as novas reformas educacionais

considerando os subterrâneos das decisões políticas e econômicas que fazem confrontar a

pluralidade com a homogeneização sob a provocação de mutações da própria cultura.

Reafirma, assim, que os processos sociais deviam ser compreendidos como uma síntese de

alta complexidade, em que é impossível dicotomizar as relações econômicas daquelas que

chamamos de culturais, com suas elaborações de significados, símbolos e valores, nutridos

por afetos e emoções.

As reformas educacionais que desembarcaram em nossos portos, tão abertos a novas

conquistas e colonizações, vêm sancionadas como sinais de tempos globalizados.

Célia reconhece que há uma demanda por educação escolar. As classes dirigentes

passaram a entendê-la e proclamá-las como uma sustentação para o exercício da política e da

economia. As classes subalternizadas também intensificam seu apelo à escola como chave de

participação social. Há uma unanimidade em relação à importância da escola.

No entanto é necessário reconhecer que há uma diferença entre a escola freqüentada

pelo pobre e a pelo rico. Escolas mínimas – um pouco de conhecimento, só o “suficiente” -

para as classes populares em que a aprendizagem difundida é a da própria desvalia dos

sujeitos pedagógicos e as escolas de mercado, destinadas às elites, primando por oferecer

aprendizagens e conhecimentos e habilidades requeridas para o sucesso e para a competição.

Política tomada desde suas origens na Grécia como uma construção que implica não

só a constituição de um coletivo e de um público como um exercício de uma razão que não

dispensa a ética.

Há infinitas possibilidades de autonomia pedagógica que podem ser exploradas

contribuindo para a reinvenção dos processos escolares.

Ao invés de lamentarmos as pasmaceiras da escola e da universidade, contrapondo-as

às denúncias raivosas, contra o sistema e aos que estão nos cargos de poder, que acabam por

nos fazer abstrair e subtrair a nós próprios como sujeitos, Célia entende que é importante

visitar o aquém e o além desta problemática, feita com saturações de histórias. Nesse sentido,

ressalta novamente o papel do rememorar e narrar, como uma reapropriação viva de um lugar

316

de espera amorosa, tal como Penélope174 do clássico “Odisséia”, criadora, criativa. Caminho

de invenção de novos lugares para nós e nossos projetos escolares.

Célia reflete sobre o solo em que a LDB vinha sendo plantada, reportando-se a

acontecimentos emblemáticos que ajudariam a discernir sobre os paradoxos e contradições

precipitados pela lei Darcy Ribeiro (lei nº. 9394).

Cita aspectos da precariedade do panorama da escola de hoje: a questão da saída dos

professores da rede estadual no Rio de Janeiro (48 por dia letivo); o fechamento de unidades

escolares; a instalação de esquema de dias de aulas alternados; a admissão de professores

substitutos sem concurso e sem direitos trabalhistas e com formação precária e o advento da

TV Escola, compreendido como uma panacéia.

Com relação às universidades, destaca que, contraditoriamente, na lei aparece a

exigência de habilitação em nível superior para os professores, mas a universidade vem sendo

atacada com um orçamento constrangido, poucos profissionais para muitas demandas,

congelamento de salários, redução de prazos para os trabalhos acadêmicos, bem como de

bolsas e similares tipos de subvenção.

Enfatiza a necessidade de acadêmicos capazes de pensar em atuar política e

eticamente para ultrapassar as barreiras das reproduções e dogmas, nos ajudando a definir

nosso lugar como uma nação entre as nações.

Denuncia as penetrações velozes e a contaminação da lógica utilitária e privatista que

faz do mercado e do lucro os grandes deuses, contra os quais qualquer sonho ou utopia é tido

como demonstração de irracionalidade e convite à desordem e ao caos.

Critica a visão fatalista, preconizada pelos “príncipes da sociologia” que reverberam

que todos têm que aceitar uma sociedade sem empregos e sem lugar, entregando-nos às

urgências e miopias do hoje, como tarefeiros da subserviência.

Cita a Reforma universitária de 68 que retirou o curso de Pedagogia da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras, passando para um curso isolado na Faculdade de Educação.

174 No poema clássico “A Odisséia”, Penélope é a esposa do guerreiro Ulisses, que aguarda o retorno de seu marido tecendo uma enorme rede. Compromete-se com seus novos pretendentes a desposar um deles ao término de seu trabalho, porém, esperançosa de reencontrar seu amado marido, passa as noites a desfazer as rendas que faz durante o dia. Metáfora da espera amorosa e esperançosa, da resistência estratégica e silenciosa.

317

Comenta, também, que em 1971 com a reforma do 1º e 2º graus, o curso Normal degradou-se

pala falta de clareza definitória de sua própria funcionalidade e lugar.

Enfatiza que para a sociologia, uma sociedade quando se modifica, modifica suas

escolas. Portanto, refletir sobre as mudanças na escola e na sociedade é fundamental para que

se possa projetar mudanças desejadas.

Reflete sobre o estatuto da Pedagogia, que tomada como um espaço de aplicação das

outras teorias, acaba por dotar-se de uma certa fragilidade, gerando dependências dos centros

de poder.

Para ela é impossível para a Pedagogia ater-se a um centro pois tenta apreender

conceitualmente um processo tão diverso e plural como é a educação, que de tão extensivo

abarca todas as dimensões humanas. Preconiza que o curso de Pedagogia deveria chamar a si

as questões teóricas relacionadas com a formação humana, confluindo com Arroyo. “Não

tenho dúvidas de que a escola vem agrandando sua especificidade no que se refere aos

processos de conhecimento, isolando-os da vida e nesse caminho vem subalternizando a

própria educação”(p. 27).

Chamando atenção para os abismos entre ciências e existências, Célia evoca um

poema de Drummond para, novamente, enfatizar as Memórias como necessárias para

reinvenção da escola. Vale incluí-lo:

“Os homens pedem carne.

Fogo.

Sapatos.

As leis não bastam

Os lírios não nascem das leis”.

(Carlos Drummond de Andrade)

É preciso conhecer as leis para fazê-las crescer e alimentar os direitos já constituídos e

esticá-las para acolher aqueles que vão se constituindo como tal. Por isso não podemos nos

descuidar das palavras com que cada lei é tecida.

Sublinha a importância do uso das palavras pois no uso “inocente” das mesmas

operam-se requalificações perigosas dos conceitos. “Flexibilidade” vem sendo empregada

como auto-regulação, conectada com ideologias que dão supremacia ao mercado. À

“autonomia” os legisladores emprestam significados que tendem a liberar crescentemente o

Estado de suas responsabilidades econômico-financeiras, acrescentando mais uma tarefa às

318

instituições escolares: a busca de apoios perigosos que acabam por comercializar as

finalidades da própria instituição.

Em suma, para realçar aspectos distintos que permitem refletir sobre os “terremotos”

da pedagogia, Célia destaca as questões legais e o panorama social mais amplo, refletindo

sobre as inter-relações entre essas dimensões.

4.3.6 Escola Balaia – Um convite ao Debate para a Reinvenção de Caxias. (1999)

Seu livro “Escola Balaia – um convite ao debate para reinvenção de Caxias”,

publicado pela Prefeitura Municipal de Caxias em 1999, é resultado do trabalho de assessoria

que prestou nessa época à Prefeitura de Caxias, apoiando a reestruturação das escolas

municipais.

É oportuno comentar, mais uma vez, que os textos de Célia não são lineares. Isto é,

embora o título, como se espera usualmente aponte um tema central, Célia aborda muitos e

diferentes assuntos, tecendo idéias e conjugando sentidos. Retomo esse aspecto de seu estilo

por estarmos agora apresentando um dos livros que escreveu sozinha. Isto é, ele não está em

nenhuma coletânea, isso permite uma visão interessante sobre aspectos de sua produção

textual. Nessa perspectiva, a de sua permanente intertextualidade, reforça a concepção teórica

de Vygotsky que salienta que a palavra sozinha não é suficiente para produção do sentido. É

preciso compreender o contexto mais amplo daquele que a enuncia e as relações que produz.

O sentido está então ligado às conexões singulares que aquele que diz estabelece entre

diferentes idéias.

Célia tampouco dá “receitas” para a prática, embora aqui se trate de um texto que

pretende balizar a educação do Município de Caxias. Sua preocupação é em abordar aspectos

filosóficos que podem nortear a prática. Coerente com sua defesa da autonomia, interessa-se

mais em promover reflexões acerca dos fundamentos da educação. Para instigar a reflexão

sobre as conseqüências para a prática de suas colocações, Célia se utiliza de perguntas que

acompanham todo o seu texto. Essas sim, apontando para questões bem concretas,

desdobramentos significativos dos temas abordados.

Outra peculiaridade de seus textos – e esse não é diferente nesse sentido– são os pés

de página que indicam caminhos para o aprofundamento das questões tratadas, abrindo um

leque de autores com os quais ela trava diálogo. Sublinhe-se que tal diálogo não exclui

autores que trazem abordagens distintas e que numa visão radical talvez não pudessem sentar

319

“na mesma mesa”. Marx, Morin, Norbert Elias transitam em fértil diálogo em suas obras,

sobretudo as datadas dos anos 90. Nos pés de página refere-se, também, a outras produções

suas sobre aquele tema, indicando uma recursividade em sua obra.

À época da escrita de “A Escola Balaia” Célia Linhares era consultora da Secretaria

de Educação de Caxias. Nesse livro ela sintetiza o sentido filosófico e político do trabalho que

se propõe a desenvolver pela educação municipal de Caxias, mapeando o contexto local,

situando o que considera as temáticas mais candentes na educação brasileira e caxiense em

particular.

Ela inicia contextualizando a realidade de Caxias, trazendo aspectos de sua história e

analisando sua realidade e futuro imediato.

O livro se divide em 6 partes. A 1ª introduz os temas tratados no livro; a 2ª,

“SINTONIZANDO COM UTOPIAS QUE NÃO ENVELHECEM”, apresenta reflexões sobre a educação

de forma mais ampla e os desafios de projetar mudanças, onde enfatiza as relações entre

memória e história e reflete sobre o panorama da educação Caxiense; a 3ª “DECIFRANDO

DESEJOS E NECESSIDADES SOCIAIS”, dedica-se a captar na “leitura” da realidade caxiense as

verdadeiras demandas de mudança; a 4ª, “TRADUZINDO PISTAS DE ATUAÇÃO PARA AS ESCOLAS

MUNICIPAIS DE CAXIAS” valendo-se da metáfora pedagógica do “balaio” Célia discorre sobre

aspectos que reputa indispensáveis para o trabalho nas escolas, estabelecendo alguns

princípios a partir desse exercício metafórico; por fim, na 6ª e última parte, “PRÉ-PROPOSTA

PARA A ESCOLA BALAIA DE CAXIAS”, sintetiza sua proposta para o Município.

Na introdução Célia discorre sobre o sentido de escolher um novo caminho para a

educação de Caxias, apontando para a vinculação entre esse novo sentido com “as antigas

tradições populares impregnadas de valores de solidariedade e justiça” (p. 21). Ressalta,

ainda, que é fundamental que os sujeitos se reconheçam nos projetos políticos-pedagógicos.

Esse tema, da necessária e fundamental autonomia do professor, aparece em muitas obras de

Célia sublinhando a força que essa questão ganha em seu ideário (p. 21).

Também na introdução e nas epígrafes, a presença da poesia e da literatura está

garantida, como em quase todas as obras que tive oportunidade de travar contato, evocando

sentidos em sintonia com os temas enfocados. É assim que Saramago, Clarice Lispector

dentre outros povoam as páginas dos livros em diálogo com o texto e suas idéias (“O destino

dos lugares é como uma carta fechada à espera do gesto único que um dia dará a conhecer”

– José Saramago em Évora: patrimônio da humanidade. Évora, Litografia, Tejo, 1997).

320

Célia retrata o panorama da situação escolar, enfatizando a contradição que consiste

em, por um lado termos hoje um contingente maior freqüentando a escola e, por outro, termos

a “quase unanimidade nacional voltando-se contra ela, denunciando a sua inoperância”.

Trata-se, como ela enfatiza, de uma relação ambígua com a educação escolar, “uma relação

de amor e ódio” (p. 22).

Reconhecendo “a alta tensão, entre as necessidades que urgem e frustrações que se

arrastam em nossa formação social e educacional” ela propõe que “insistamos em penetrar,

para exercermos a responsabilidade política dos que pensam e fazem a educação, como um

empenho permanente na luta contra as opressões” (p. 22) Tal perspectiva aponta para seu

entendimento de que ser educador é uma militância, envolve um sentido político de

posicionamento e de enfrentamento diante das situações de desigualdade e injustiça social.

Podemos dizer que essa é uma idéia que perpassa toda a sua obra apontando para a educação

como espaço de luta.

Na seqüência comenta que a crítica à escola pública tem gerado ações autoritárias, de

controle dos professores, sempre responsabilizados pelo dito “fracasso escolar” (kits

tecnológicos, cursos de treinamento e reciclagem dos professores). Vale ressaltar aqui a

crítica que faz com relação à terminologia utilizada como referência aos espaços de formação,

tais como “reciclagem”, que revelam sentidos pejorativos e equivocados. Tal visão crítica não

leva em conta que a escola foi “alvejada no período ditatorial, para ir fabricando uma quase

‘unanimidade’ – ainda que meio camuflada – de que seriam as professoras e os professores os

responsáveis por essa situação.” (p. 23). Ou seja, à situação crítica da escola se atribui ao fato

dos professores serem supostamente mal formados, mal pagos e mal controlados. Ela

pergunta então: “Um e outro procedimento poderiam ser configurados como uma cassação

branca das vozes e dos pensamentos dos professores? Uma violência à autonomia do

professor?” (p. 23).

Novamente a questão da autonomia vem à tona, dessa vez a partir da leitura crítica

com relação a como socialmente se compreende as dificuldades da escola, revelando que é

preciso compreender as razões que efetivamente produzem o fracasso e não mascará-lo

fazendo do professor o vilão. Nesse sentido vale ressaltar que tal prática foi ganhando espaço

no Brasil desde a década de 70 quando então a idéia de “deficiência cultural”, importada

tardiamente dos Estados Unidos, responsabilizava os estudantes pobres por suas dificuldades

em aprender nas escolas modeladas para as crianças de classe média (Soares, 1989). A culpa,

321

oscilando entre a criança pobre, o professor mal formado e as condições da escola, têm tirado

o foco do fato de que, na base do fracasso escolar temos uma sociedade fortemente

hierarquizada que dificulta o acesso a população empobrecida, bem como nega seu saber e

sua cultura.

Célia aponta para uma dupla questão. A escola, apesar de seus dilemas, não é o espaço

da desesperança. Ela afirma que “a escola é querida, é acreditada, é demandada, como um

bem indispensável e um direito que precisa ser exercido por todos. A escola é considerada

majoritariamente, como uma instituição que acena com a possibilidade de contribuir para

refundirmos os significados sociais, numa perspectiva de maior liberdade e solidariedade.” (p.

25). Mesmo identificando uma crítica aguda diante de todas as dificuldades e dilemas da

educação no Brasil, Célia não é “fatalista”, isto é, ela não acredita que não existem caminhos

possíveis. Nesse sentido, comunga da esperança freireana, uma esperança sem ingenuidade,

uma utopia possível. É com Quintana que ela epigrafa esse capítulo, reforçando sua

concepção de utopia.

“Se as coisas são impossíveis ... ora! Não é motivo para não querê-las! Que triste os caminhos se não fora a Mágica presença das estrelas! (Mário Quintana)

Nesse sentido é possível encontrar claramente sua irmandade com Paulo Freire. Trago

para dialogar com as idéias de Célia um pequeno trecho de “Pedagogia da Esperança”:

“(...) É a compreensão da história em cujas tramas o livro procura entender o de que fala, é a recusa a posições dogmáticas sectárias, é o gosto da luta permanente, gerando esperança, sem a qual a luta fenece. É a oposição já nele embutida contra os neoliberalismos que temem o sono, não o impossível, pois que esse não deve ser sonhado, mas o sonho que se faz possível, em nome das adaptações fáceis às ruindades do mundo capitalista” (Freire, 1992: p.180)

Em “SINTONIZANDO COM UTOPIAS QUE NÃO ENVELHECEM”, Célia abre

o capítulo indicando o sentido de construção de projetos que imaginam outros mundos

possíveis. Se não o fazemos “estaremos destinados a uma trilha de tarefeiros, míopes que só

enxergam a lista das obrigações e deveres imediatos, cumpridores apavorados de tarefas da

sobrevivência, incapazes de vislumbrar o fluxo do tempo histórico.” (p. 33)

322

Reconhecer e conhecer o movimento histórico é para a autora fundamental para que

sejamos sujeitos críticos, possamos efetivamente nos apropriar do presente e projetar o futuro.

“Por isso penso uma educação como uma ponte por onde trafegam as cargas do passado –

com seus tesouros e entulhos – que vão sendo reapropriados pelos trabalhos do presente,

movidos por necessidades, sonhos e esperanças, para reencaminhá-los ao futuro. É graças a

este trabalho de afirmação dos desejos que a história caminha, com suas contradições”. (p.

33).

Sublinha que embora tenhamos nas últimas décadas assistido a um aumento da

matrícula escolar no Brasil, esta é acompanhada de um enfraquecimento da escola. Este

enfraquecimento está relacionado ao deslocamento da capacidade de ensino-aprendizagem, a

medida que a escola foi acolhendo segmentos da população até então discriminados

socialmente. Para tanto Célia apresenta dados estatísticos sobre crescimento e a “destruição da

escola pública” (como o pequeno índice das crianças que conseguem concluir o ensino

fundamental).

Abordando especificamente a situação da educação no Município de Caxias, Célia

comenta que além do crescimento da oferta de matrículas e de professores, o interesse de

alunos e professores no processo escolar é impressionante. A questão central para Célia é o

desafio de ampliar a escola questionando a possibilidade de promover uma aprendizagem

mais qualificada, maior interesse social, maior aprofundamento no patrimônio cultural da

humanidade e com instigação do potencial criador. Defende que o ensino-aprendizagem se faz

mais vigoroso e duradouro quando um projeto endossado pela comunidade o sustenta, quando

há atenção às atividades dos alunos e professores.

Em sua esperança por uma escola melhor Célia não deixa de ressaltar que o desprezo

pela educação pública, traduzido pelos baixos salários dos professores e péssimas condições

de trabalho com que muitas escolas são mantidas, são problemas significativos. Nesse

sentido, denuncia problemas desse tipo em Caxias e também ressalta gestos de “um tempo

mais promissor” (concurso público para professor, reformas em prédios escolares, cuidados

com a merenda, dentre outros). Evoca passagens da história de Caxias e dados de sua

distribuição rural – 70% das terras nas mãos de 1% de proprietários rurais. Ressalta que “o

apoio e estímulo social para aprender e ensinar na escola não são processos espontâneos,

323

mas construídos política e economicamente.” Mais uma vez apontando para o movimento

social como alavanca de mudanças e revelando um olhar que, sem deixar de indicar pontos

críticos da situação retratada, busca olhar para as brechas e espaços de construção existentes.

Ressalta-se aqui também o papel político da memória, como capaz de favorecer aos homens

apropriarem-se de sua própria histórica, tomando conhecimento de projetos, fatos, aspectos

gerais do contexto social em que vivem e, com isso, possibilitar uma visão crítica do hoje e

projetar um possível amanhã.

Ao pensar nas mudanças para a educação Caxiense Célia confronta os caminhos da

aprendizagem, reforçando questões como a afetividade e a solidariedade como fundamentais.

Mais uma vez, tece relações entre memória, narrações, história, referindo-se a distinção feita

por Walter Benjamin entre “o mundo veloz da informação e o mundo fértil das narrações”

para “valorizar as memórias que se respaldam em lutas honrosas, que alimentam o orgulho,

espelhando a humanidade de nossos antepassados que souberam ampliar a vida, como seus

legados de liberdade” (p. 48). Benjamin é um autor com quem dialoga fertilmente em sua

obra dos anos 90. Destaca de sua contribuição o papel da narração como possibilidade de

construção da subjetividade, do tornar-se sujeito. Para Célia os espaços de narração são

fundamentais para a construção individual e coletiva. Via narração histórias são partilhadas,

sentidos são comungados. Este espaço encontra-se cada vez mais exíguo no mundo

contemporâneo quando a cultura da superficialidade dos contatos e de outras tantas mazelas

que os tempos de um capitalismo massacrante trazem.

Ressalta a necessária retomada das histórias Caxienses, suas tradições épico-culturais,

favorecendo a que seus habitantes possam reconhecer-se, ganhando assim respeito e

credibilidade, apropriando-se de sua história. Nesse sentido, conhecer a própria história,

retomar as tradições e sabedorias de seu contexto social são movimentos ligados a perspectiva

da cidadania, daquele que toma nas mãos o seu lugar na sociedade, se reconhecendo com

sujeito de direitos, de valor, dignificando-se.

Termina essa parte inicial desejando que a Escola Balaia possa ser este “sistema de

irrigação a estimular a capacidade de rememorar e projetar um futuro em que Caxias possa

definir com autonomia seu lugar neste Brasil feito de complexidade e interdependências, que

se intercruzam com outras relações polarizadas neste momento de tantas globalizações” (p.

49) Sublinhe-se, mais uma vez, o destaque da autora para as questões da MEMÓRIA,

AUTONOMIA, HISTÓRIA. Vale também chamar atenção para a metáfora de que ela se vale

324

para pensar seu projeto. “Sistema de irrigação”, água que remete ao simbolismo

bachelardiano de movimento, de origem. A água, como afirma Bachelard "é um símbolo

materno, pelo seu movimento rítmico, que embala, que sentimentalmente nos transporta para

as origens", para as estruturas arcaicas pré-uterinas. Nesse sentido, pensar em uma água que

irriga é pensar na perspectiva de movimento, nascimento, identidade (Bachelard, 1989).

Em “DECIFRANDO DESEJOS E NECESSIDADES SOCIAIS”, Célia realiza uma

leitura ampla do contexto de Caxias a fim de reconhecer as necessidades sociais efetivas. Esse

movimento revela a preocupação dela em que empreendimentos como os que ela encabeça, o

de prestar consultoria à um município, precisa obrigatoriamente dialogar com as demandas

reais daqueles a quem se dirige. Movimento que revela uma postura anti-autoritária e crítica

com relação a inúmeros projetos e/ou experiências de formação que partem do princípio de já

conhecer do que o outro precisa. Célia não acredita nisso e faz o exercício de olhar para

muitos aspectos de Caxias a fim de perceber sua situação atual, suas marcas histórias, seus

entraves, suas necessidades.

É assim que ela observa na arquitetura, nas tradições locais, na sabedoria popular, nas

lendas, na história e em seus fatos e personagens significativos elementos importantes a serem

considerados. Levanta também aspectos quantitativos relativos aos avanços no atendimento às

crianças pela escola pública, nas iniciativas de contratação de professores e no nível de

escolaridade dos mesmos.

Aponta também aspectos com a questão da banalização da violência, o

encarceramento, da problemática dos jovens sem empregos, do abuso do trabalho infantil e do

desaparecimento das experiências de narração, “Teria secado este rio de narrações ou

simplesmente a sintonia maciça se deslocou para os programas globais e sentimentais da

TC?” (p. 56), ela pergunta.

Finaliza esta parte de seu livro enfatizando que o momento de Caxias é oportuno para

realizar uma escola que se articule econômica e culturalmente.

Em “TRADUZINDO PISTAS DE ATUAÇÃO PARA AS ESCOLAS MUNICIPAIS CAXIENSES” ,

num exercício de diálogo com a metáfora do Balaio ela propõe alguns possíveis

“desdobramentos” da palavra, entrelaçados uns aos outros que materializam idéias, conceitos

e pensamentos sobre a concepção escolar que anima sua proposta para Caxias:

I – Histórias rememoradas: remetendo-se as Balaiadas – revolta histórica ocorrida no

Maranhão e que é emblemática das lutas contra as desigualdades sociais, aponta para o

sentido de instigação ao rememorar, às narrações como forma de compreender os sentidos

ocultos nos diferentes movimentos sociais e históricos.

325

II – Trabalho manual x trabalho intelectual: O balaio que envolve simultaneamente

“as mãos que trabalham, realizando o modelo guardado na mente do artesão.” (p. 70).

Propõe que a escola atente para essa dupla dimensão que tem sido vista dissociadamente.

III – Retomada das tradições: a cestaria é uma produção artesanal que remete a

tradições antigas, de várias origens. Nessa direção Célia pensa a presença da tradição na

escola, instigando a que ela seja revista, despida de sua dimensão conformista e dogmática

mas que possa resgatar a perspectiva do conhecimento popular criador.

IV – Memória e criação: O balaio envolve um trabalho de recuperação feito pela

memória e ao mesmo tempo a possibilidade de criação. Célia destaca em várias de suas obras

a importância do espaço da criação humana como possibilidade de reinvenção. Diz que “Na

rememoração os acontecimentos são reinterpretados à luz dos projetos que os evocam. A

histórica e a escola se fazem instituintes quando bebem do passado, animados e

comprometidos com o futuro. (...) Olhar para ontem com os olhos no amanhã.” (página 71) O

movimento instituinte, pensamento que ganha força em sua obra a partir dos anos 90/ 2000

aponta para a possibilidade de renovação da escola.

V – Balaio é uma obra aberta, um “continente traçado”: Como obra aberta pode ser

“preenchido” pelas necessidades e desejos coletivos e individuais, ritmadas pelo tempo

histórico. Essa idéia põe em cena os desejos de aprender, os processos de aprender e seus

caminhos mais efetivos para todos e cada um.

VI – Tecendo balaios, narrando vida: Os balaios são feitos geralmente no interior das

casas, diz Célia, coincidindo com momentos de narrativas, em que “ficção e realidade se

interpenetram” (p. 73). Instiga-nos a pensar nas histórias que cada escola lembra, nos

aprendizados advindo das histórias que ouvimos, na vida como espaço de aprendizado. Célia

ressalta em sua obra a necessária atenção aos aprendizados não escolares, atenção que urge

abrir espaços de narrativa no interior das escolas para que possam legitimar-se, socializar-se.

VII – Entrelaçamento de tiras de palha e múltiplas relações políticas: relações

políticas, econômicas e culturais influem na escola. Entrelaces que trazem complexidade e

supõem tensões, embates, conflitos e contradições.

VIII - Escola pública e polifonia: O balaio ajudaria a entender a trans e a

interdisciplinariedade, compreendendo a escola como cenário de múltiplos conhecimentos e

saberes.

IX – Espaços entre as brechas do balaio e entrada de oxigênio: o oxigênio da escola é

a PALAVRA que precisa ser mais compartilhada, circular para fazer-se forte e compreendida.

Espaços de discussão e diálogo, estímulo ao pronunciar-se favorecem a expressão dos sujeitos

326

e possibilitam que apropriem-se do conhecimento e de si mesmos. A força da palavra na obra

de Célia é contundente. Ela reputa a palavra a possibilidade de autoconstrução e afirmação da

identidade, resgate da própria história, afirmação de si como sujeito de direitos, de valor. No

tocante ao ser professor, vê a palavra como uma ferramenta crucial no sentido de instigar à

reflexão.

X – Leveza do balaio: Célia remete a leveza do balaio e a facilidade com que o

transportamos a questão da agilidade da produção do conhecimento na contemporaneidade,

“sempre em mudança e sempre sendo capaz de transferência”.(página 75). Tal leveza é

também entendida como prazer de aprender, de ser desafiado como sujeito de aprendizagem.

A concepção de aprendizado é destacada como possibilidade de instigação, de prazer, de

busca de sentido. Entrelaça-se com a presença do desejo, da criação, da condição dos

estudantes de escolher, opinar, interferir nos processos de ensino-aprendizagem. Ela destaca,

também, a necessária presença do “saber com sabor” – termo que utiliza em alguns de seus

artigos como o mencionado no ponto 4.3.3, da curiosidade.

Após o exercício metafórico, que aborda em síntese aspectos cruciais em seu projeto

de educação, Célia apresenta princípios curriculares norteadores, articuláveis e

complementares uns aos outros:

Princípio da emancipação pela autonomia dos sujeitos:

Este é um princípio dos mais caros no pensamento pedagógico de C. Linhares. Na

verdade ela reputa como “prioridade absoluta” (p. 77) para a educação. A escolarização, em

suas palavras, pode se realizar de duas formas: coisificando/ massificando, formando assim

“seres domesticados e submissos, homogeneizados na reprodução das lições de viça” (p. 77 e

78) ou para “a autonomia, fortalecendo sujeitos, como seres capazes de recriar o mundo,

como solidariedade” (p. 78).

Prossegue fazendo a crítica ao individualismo contemporâneo e ao narcisismo dele

proveniente, movimento que vai contra a construção de laços de coletividade e solidariedade

tão caros a escolarização.

Afirma também que há a escola para pobres aonde é recorrente a aprendizagem da

desvalia, levando os indivíduos a uma espécie de “invisibilidade social só rompida, quando

suas presenças destacam-se nos noticiários policiais” (idem) e uma escola para ricos,

cultuando o individualismo e distante da realidade social.

Refletindo sobre a relação entre escola e tecnologia, critica a visão de professor como

aplicador ou mantenedor das tecnologias em funcionamento, afirmando a idéia de que a

educação atual deve participar da apropriação e redirecionamento das racionalidades

327

tecnológicas, contrapondo-se a direção concentracionista do capital e excludente do trabalho

que acirra competições e fomentando uma visão de tecnologia que possa contribuir para um

estilo de produção mais humano,voltado para a riqueza cultural,humana, social, apoiadas por

elos vivos de solidariedade (p. 79).

Propõe que, tendo em vista a tendência contemporânea a desinstitucionalização, em

que se concentram interesses nos próprios desejos e prazeres, formemos sujeitos históricos –

coletivos e individuais. Célia reconhece a positividade que um olhar mais individualizado e

crítico com relação as institucionais outrora inquestionáveis é importante porém não prescinde

da devida atenção a coletividade, ao social.

Retoma a contribuição das teorias críticas, movimento próprio da sociologia da

educação nos anos 70, que possibilitou questionar a escola. Cita Bourdieu (violência

simbólica), Althusser (aparelhos ideológicos), Baudelot e Establet (inculcação da ideologia

burguesa em detrimento da proletária) como emblemáticos de tais teorias. Pensa que

redimensionar a escola implica em nem considerá-la “vilã” nem benemerente.

Aponta para a necessidade de os professores partilharem seus problemas, visando

maior autonomia individual e pedagógica. Acredita que atualmente seja mais comum que os

mesmos se isolem em suas salas de aula, trocando muito pouco e se alienando do entorno.

Reputa tal alienação do professorado às contradições sociais, passando pelas

desigualdades econômicas, hierarquização de sexo, desprestígio do professor. Nesse sentido,

afirma que os professores precisam, “para serem alimentados como sujeitos, recolocarem-se

no fluxo da vida, apropriando-se de suas vozes e saberes, de seus passados e de seus projetos

pedagógicos para escreverem, com os estudantes, uma outra história de dignidade para a

escola pública brasileira” (p. 82).

A autonomia escolar precisa se alimentar da cultura popular e teórico-tecnológica,

aproximando conhecimento da vida. Nesse sentido critica a aridez do conhecimento escolar,

que se baseia muitas vezes em repetição de conceitos já prontos abrindo pouco ou nenhum

para aproximações da terra, da história, da cultura, não recebem “a seiva da vida” (p. 83).

Conhecimento é visto muitas vezes como bagagem, remetendo a algo externo que precisamos

adquirir. No entanto, é preciso estabelecer uma relação íntima entre conhecimento e nossas

vidas, apropriando-nos dos saberes. Os conteúdos e procedimentos metodológicos precisam

incluir os interesses dos professores e estudantes.

328

A esfera familiar e doméstica é vista como campo fértil de conhecimentos que podem

ser melhor articulados com os escolares, colaborando para a constituição de um projeto

coletivo de educação, envolvendo escola e comunidade.

Mais uma vez Célia retoma a questão da memória e dos projetos compartilhados,

afirmando que “sem lembrar o passado, sem concurso das memórias históricas e sem

perspectivas futuras, os sujeitos não crescem.” (p. 86). É interessante, diz Célia, que

processos de rememoração institucional, política envolvam as trajetórias dos alunos e

professores, permitindo que seja dada atenção as próprias histórias de vida.

Nesse sentido, rememorar a própria trajetória e história de vida leva a revisitarmos

nossas cidades e lugarejos, e a “reencontramos as circunstâncias – sua materialidade e

simbolismos – com que foram forjados canais de opressão ou de liberdade, que habitamos e

que nos habitam” (p. 86).

Numa sugestão prática, Célia indica que “ocupemos pedagogicamente a cidade e todo

o município, com visitas guiadas, recuperando percursos históricos que, como freqüência,

correm paralelos e entrecortados por lendas e ficções de vários matizes.” (idem).

Finaliza a abordagem desse princípio com uma concepção de aprendizagem que

envolve o “saber com sabor” (p. 87), perspectiva que tem também muita força em sua obra.

Aponta para a necessidade de a escola se abrir para “um novo padrão de beleza e de

felicidade. Aprender não pode ser sinônimo de sacrifício, embora passe por um esforço do

qual alunos e professores até podem se orgulhar, quando assumido como um desafio

compartilhado que nos faz crescer.” (idem).

Destaca também a importância de estabelecermos vínculos de pertencimento a um

mesmo grupo, o que pode desencadear forças de solidariedade, intensamente

potencializadoras da aprendizagem (idem). A participação de alunos, professores e

comunidade nas reflexões sobre a escola é sugerida como caminho necessário para a

construção de uma escola autônoma e participativa.

Princípio do atendimento da dignidade escolar:

Nesse tópico Célia chama atenção para as violências em suas múltiplas formas que

vão sendo fortalecidas no cotidiano social. Relações em que as crianças e jovens muitas das

vezes são dominados por professores e inspetores em atitudes autoritárias.

Aponta para o desejo de uma escola sem burocratismo e tecnicismo, mas que possa

praticas a inter e a transdisciplinariedade, que aproximem professores e estudantes “aos

processos da vida, de suas vidas, de nossas vidas” (p. 89).

329

No final desse tópico, Célia remete ao simbolismo do uniforme escolar, que traduz o

teor do princípio em questão. Ela diz:

“(...) Nesse entrelaçamento entre a cidade, o município e a escola, o uniforme dos estudantes tem um especial lugar: oficializando a presença da escola na cidade e apoiando os estudantes no seu esforço diário de pertencer a uma categoria que não quer abrir mão de seu futuro e nem do futuro de Caxias” (p. 93)

Sua ênfase é na importância de reconhecer a educação como espaço de direito e de

formação do cidadão. Entende por cidadão aquele que se apropria de sua história, do valor de

sua terra, que tem seus direitos vitais garantidos – educação, saúde, moradia, respeito.

Nesse sentido, a escola precisa ser o lugar que investe na aprendizagem escolar,

“envolvendo todas as forças vivas da sociedade em favor da escola no empenho de desativar

violências” (p. 90). Ressalta que tudo isso não depende só da escola – sua visão não de escola

redentora – mas não pode dispensar sua ajuda.

Mais uma vez ressalta “o papel da memória, na perspectiva de reeditar acontecimentos

de intenso poder político, econômico e cultural como aqueles já vivenciados e registrados

historicamente” (p. 90). Nesse sentido, de apropriação da própria história, propõem que as

crianças conheçam por meio das narrativas as tradições e histórias da cidade, das primeiras

escolas e professoras e professores que ali trabalhavam, que seja compartilhado retratos de

jornais, lembranças da cidade e da escola.

Por fim, Célia aponta para a visão da escola como espaço público e de sua necessária

articulação com outras esferas produtivas – econômicas e culturais - , num sentido de

colaboração, como a saúde, a reurbanização, as tecnologias, agronomia, etc. Entrelaçamentos

– termo que ela utiliza para reportar-se a essas relações escola-sociedade - , contribuiriam para

construir “pontes onde por tanto tempo se aprofundaram abismos” (p. 93).

Em “PRÉ-PROPOSTA PARA A ESCOLA BALAIA DE CAXIAS” Célia faz uma síntese de todas

as questões abordadas ao longo do livro, reafirmando que sua tentativa é a de sistematizar

necessidades e desejos histórico-pedagógicos para provocar e ‘precipitar’, no sentido químico

deste termo.

Investir na escola é “espelhar os interesses e zelos de uma sociedade para com suas

crianças, jovens, adultos e velhos, na busca da compreensão do mundo, da participação da

vida, através da cultura letrada” (p. 90).

330

Reconheço na produção “A escola Balaia” um investimento muito intenso de Célia.

Seja pela própria implicação com a cidade, com a escola pública, seu livro condensa seu

projeto de escola, em que se tecem as idéias nucleares de seu pensamento sobre a função do

conhecimento, da Identidade cultural, dentre outras. Pessoalmente, uma de suas obras que

mais me tocam, seja pela forma como constrói sua proposta com a imagem do balaio, seja

pela generosidade e seriedade com que se esmera em pensar na realidade do Município de

Caxias. Tive dificuldades em resumir, tudo me parecia tão importante... Escutei minha

dificuldade e dei o espaço que considerei devido às idéias essa pequena grande obra.

4.3.7 O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: A presença de Paulo Freire. (1997)

“O Pensamento Pedagógico crítico no Brasil: a presença de Paulo Freire” foi

publicado pelos Cadernos do Centro de Estudos Sociais (CES), nº. 1, da Universidade Federal

Fluminense em 1997. Nele, Célia ressalta aspectos centrais da obra de Paulo Freire e a

capacidade de seu pensamento em “fecundar a Pedagogia com sementes de esperança”

(p.19).

Célia, dando continuidade a um movimento de escrita em que se apropria mais e mais

de um estilo singular, faz elos que surpreendem pela sua não obviedade, convidando o leitor a

perceber conexões entre os conteúdos a que ela pretende tratar com os diversos campos da

existência. Esse estilo, marcado por uma permanente intertextualidade, confere a suas

produções um ritmo poético e nada linear, como já mencionamos.

Neste artigo em questão, Cartola, Roas Bastos (poeta paraguaio), Erich Fromm e

tantos outros desfilam suas músicas, poesias e idéias, no garimpo poético de Célia, pescadora

que é.

Cheio de idas e vindas, desvios e voltas, seu texto é polifônico. Não é simples, por

exemplo, fazer um “resumo” dos textos de Célia, pois ela nos leva a olhar para tantas

direções, que nos parecem instigantes, que fica difícil encontrar um fio único que orienta seus

textos. Rios caudalosos, com muitos braços. Imagem que surgiu no depoimento de uma de

suas ex-orientandas e que nesse momento parece oportuna para margear essa conversa. O fio

que conduz o texto é mais o mergulho que o tema lhe provoca, sem objetivismos restritivos,

ela permite que a provocação a leve a fazer tantas viagens quantas sua bússola permite. Não

331

se perde, não nos perdemos, pois o que conta é menos o tema específico do texto, que também

importa, é claro; e mais as idéias , sentidos, costuras que vão se tecendo.

Célia destaca a simplicidade de Freire e o sentido inaugural de seu pensamento no

campo da Pedagogia, afirmando que ele traz uma estruturação conceitual singular que enfatiza

a partilha permanente, uma relação amorosa com o saber e o reconhecimento de nossa

incompletude, em contraposição a postura arrogante dos que “sabem-tudo” e que tentam

controlar saberes e poderes.

Ressalta também a importância de Freire para reinventar a escola, compreendendo a

liberdade como um princípio fundamental na prática educativa. A luta de Freire para afirmar a

vida, a existência e a sua busca permanente de liberdade exigiu confrontos com conflitos

históricos acirrados, com interesses econômicos estabelecidos e com uma cultura classista,

exploradora e controladora dos sujeitos das classes menos favorecidas.

Célia chama atenção para o pouco espaço que os currículos universitários dedicam aos

estudos da obra freireana. Em sua crítica da universidade e da produção intelectual, chama

atenção para as contradições presentes mesmo entre aqueles que professam serem inspirados

pelas idéias de freire e suas ações. Para ela, essa contradição parece ter “velhas raízes num

tipo de tradição cultural brasileira (...) em que é destacado um desacordo entre palavras –

escritas e faladas – e a prática cotidiana em nossa sociedade.” (p.22). Um abismo se

aprofundaria entre essas duas dimensões.

Para Célia, não é suficiente que Freire receba palmas e louvores, mas o que de fato é

necessário é que a convocação maior de pensar e reinventar a escola popular seja atendida.

Essa convocação tem ficado apertada, nos diz Célia, entre os “embates de uma política que

alterna a cobrança de resultados com os brilhos do espetáculo.” (p. 21). Nos espaços de

debate, as diversidades e divergências próprias do pensamento são afastadas, preponderando

uma repetição doutrinária e o cumprimento de estratégias com vistas a controlar pensamentos

e ações.

O compromisso com a classe trabalhadora, tônica da obra de Freire, requer um

enfrentamento das estruturas do poder. Em sua obra ecoam as vozes e os desejos dos

oprimidos, alimentando sonhos que nos convidam a desejar um mundo novo, como um

projeto de instituir novas formas de existência social, nos diz Célia concluindo seu artigo.

332

4.3.8 Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso? (1999)

“O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e quanto maior a força do pulso, mais nos cortamos.” (Mia Couto – citado por Célia Linhares)

Em “Medos e Violências nas Escolas: E a educação com isso?”, artigo de 1999,

publicado pela Revista do SEPE-RJ, Célia aborda a questão da violência, refletindo

inicialmente sobre a importância de compreendermos o sentido do que ela nos diz. Sem a

devida compreensão, afirma Célia, acabamos por fazê-la piorar.

Buscando nas palavras de uma das canções de Gonzaguinha, cuja crítica social dá o

tom de suas composições, Célia cita o trecho de uma de suas músicas: “fazer uma nação,

viver uma nação...”, afirmando a necessidade de se construir uma nação a partir de um

trabalho de frentes múltiplas.

Segundo a autora, para lidar com a violência não adianta punir e corrigir, mas sim

ouvir e valorizar os desejos dos sujeitos.

Célia compreende a educação como uma grande rede, que precisamos ir inventando e

entrelaçando-a com uma rede de interdependências sociais, históricas, etc. Valoriza a

perspectiva da coletividade, como um espaço de fortalecimento, em que a possibilidade de

reinvenção esteja presente. Entendo os sujeitos em sua dupla dimensão individual e coletiva

nos aproximamos de uma sociedade mais abrangente.

Cita Victor Hugo, que há dois séculos atrás afirmou a importância da escola como

esperança para o homem ao escrever que “se não quisermos viver em prisões, precisamos

ampliar as escolas”. Célia se alinha com essa confiança na educação, acreditando que é

necessário levantar a Educação como um movimento instituinte e entendendo-a como

possibilidade para que o ser humano reinvente o futuro e dê dignidade ao presente.

4.3.9 Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos. 1998

“Los lugares de cambio de los sujetos pedagógicos” foi publicado na Revista

Kirikiki,Barcelona, nº. 51, em 1998.

Célia afirma em seu artigo que a ampliação do pensamento pedagógico dos últimos 30

anos se deve a fatores como o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação, o aumento das

matrículas escolares, dentre outros. Com relação aos cursos de pós-graduação, entende que

333

estes podem ser vistos como alicerces para a reinvenção da democracia, rompendo com

tradições estabelecidas com o intuito de construir novos laços instituintes.

Existe um abismo entre a produção acadêmica e a realidade das escolas brasileiras –

afirma Célia. Tal abismo nos convoca a pensar a respeito do verdadeiro lugar do intelectual e

em como se situam no combate contra a ditadura neste período neoliberal. Os pesquisadores

da educação, mesmo diante das desigualdades e diferenças sociais, precisam estar sempre se

indagando sobre os problemas educacionais, que são humanos, sociais e políticos. Levanta

diversos questionamentos sobre a forma como os sujeitos sociais e coletivos tem sido tratados

nas pesquisas, dentre elas se teórica e praticamente, os sujeitos pedagógicos têm sido mais

idealizados e estudados do que efetivamente respeitados. Nessa perspectiva, Célia nos aponta

para o fato de que temos dado pouco espaço para os sujeitos pedagógicos individuais e

coletivos. Ela propõe que façamos uma ruptura com esse tipo de prática, promovendo

encontros com os sujeitos e seus projetos elaborados, vividos e compartilhados.

As pesquisas da pós-graduação defendem a escola pública porém, ao mesmo tempo,

denunciam problemas existentes na escola sem considerar as dificuldades concretas existentes

em seu interior. Com isso, ela afirma, lançando mão de um conceito de Bourdieu, que

acabamos impondo “imagens e espelhos desanimadores infiltrados de um tipo de ‘fatalismo

econômico’” (p.28)

Célia sugere que compreendamos o significado interior das aprendizagens e

exploremos um pouco mais a nossa prática pedagógica, ampliando o que entendemos como

conhecimento e particularmente como conhecimento escolar.

A respeito das concepções que balizam o exercício do magistério, Célia cita a

pesquisa da Alicia Entel cujos resultados apontam para uma visão dos professores que

identificam o conhecimento como bagagem que deveria ser adquirido em livros a partir de

conhecimentos já estabelecidos.

As concepções de conhecimento que herdamos estão ligadas a múltiplas influências

históricas, culturais e sociais, nos diz Célia. Nossa formação histórica é marcada por uma

herança colonial baseada em relações escravistas e machistas, que geraram uma série de

desigualdades raciais, étnicas, sexuais e religiosas. Apesar disso, foram se criando múltiplas

formas de resistência com forte capacidade inventiva. No entanto, Célia afirma que “pouco

conhecemos das batalhas pela liberdade e dos silêncios que falam” (p.29) e afirma que isso

deveria ser ensinado nas escolas, e não a usual escolha arbitrária e hierarquizada de

determinados fatos históricos.

334

Não podemos esquecer que, como instrução social, a escola participa dos problemas de cada tempo em cada sociedade e, portanto, não escapa do jogo de poderes que tanto acionam sobre ela e atuam em seu interior, sobre os quais a escola também atual, conformando-os ou tratando de contribuir para sua alteração. (1998: p. 29)

O conhecimento que temos é marcado pelos fatos históricos e se reflete nos atos

pedagógicos e acadêmicos, nas diretrizes e investigações e nos exercícios de ensino e

aprendizagem.

Citando Adorno175, Célia afirma a importância de renovar os pensamentos verdadeiros.

Recorre também a Ivani Fazenda para sublinhar que na produção de conhecimentos é

fundamental que se aproprie da experiência e das necessidades sociais.

4.4 Voz dos parceiros PARTE I: anos 90. 4.4.1 A voz dos parceiros: Clarice Nunes, uma parceria de confiança.

Eu acho que é um companheirismo, é a marca que eu vejo na Célia, me vejo de mãos dadas com ela. Eu sinto assim, que posso ficar longe de Célia, sem falar, porque a vida vai carregando a gente assim para lá e pára cá pelos compromissos, mas se eu precisar, ela está lá. Uma âncora, eu sei que vou recorrer a ela, eu sei que posso falar com ela, eu sei que posso me abrir com ela. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)

Na verdade Clarice já conhecia Célia Linhares desde a década de 1970, quando,

chegando de São Paulo em 1974 para seu mestrado176, deu início a sua atividade docente no

Rio de Janeiro. Já ouvira falar no trabalho de Célia além de comumente encontrá-la em

eventos como as reuniões anuais da ANPED e outros tantos ligados à educação.

175 O alemão Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903 – 1969), filósofo, sociólgo, musicólogo e compositor alemão foi membro da Escola de Frankfurt, juntamente com Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Habermas e outros. A filosofia de Adorno fundamenta-se na perspectiva dialética. Critica a civilização técnica e a sociedade de mercado que persegue apenas o progresso técnico. O domínio da natureza e do próprio homem derivariam do conceito de razão surgido do iluminismo. 176 Clarice Nunes iniciou seu mestrado em Educação no Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE) da Fundação Getúlio Vargas.

335

Nos conta Clarice que estreitou contato especial com Célia quando de sua defesa de

doutorado, na qual ela esteve presente. O ingresso de Clarice na UFF em 1991 viria a

aproximar ainda mais essas duas trajetórias.

(...) Eu vim trabalhar com ela quando ingressei na UFF, em 1991. Desde o momento que antecedeu meu concurso, na defesa da minha tese de doutorado na qual ela esteve presente, já havia ali uma afinidade em termos pessoais, uma atitude de olhar o mundo, olhar a educação que nos aproximava. Minha entrada na UFF foi um pouco amparada pelos contatos com a Célia, me dando dicas, me apresentando pessoas, sempre muito gentil, muito agradável.

Clarice rememora as experiências significativas vividas na UFF, destacando o

processo de reformulação curricular do curso de Pedagogia177 em 1993, movimento intenso

que envolveu ampla discussão interna na universidade, mobilizando os departamentos e a

comunidade acadêmica. Lembra, também, dos concursos para professores titulares dos quais

ambas participaram. Momentos de efervescência institucional, com enfrentamentos decisivos,

que exigiram posicionamento e tomada de atitudes.

Vivemos muitas experiências marcantes, importantes. No momento em que eu entrei, nós tivemos toda uma nova discussão sobre o currículo de pedagogia, nós tivemos toda uma discussão e deliberação sobre a reestruturação da Faculdade através dos departamentos, tivemos os concursos para professores titulares, inclusive nós fizemos, Célia e eu, estes são, por exemplo, três momentos marcantes, sem considerar o momento em que eu vou para a coordenação do mestrado em educação – que para mim é um momento marcante – e posso contar com o apoio da Célia. Nós tivemos nesses momentos, sobretudo de discussão do curso de Pedagogia e de reestruturação da faculdade, enfrentamentos bastante decisivos, aonde a questão que se colocava era a da democracia institucional.

177 A esse respeito dedico um capítulo inteiro em minha dissertação de mestrado intitulada “Cultura e ideário pedagógico do curso de Pedagogia da UFF – Niterói”, defendida em 2002, aonde apresento o Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense, abordando a história de sua criação até o cenário que possibilitou a reformulação curricular em 1993. Avaliações iniciais da implementação do novo currículo são também citadas.

336

Clarice fala dos impasses e confrontos vividos pelo corpo docente e da tensão dessa

época. Em jogo, estavam interesses que extrapolavam os de natureza mais teórica, pondo as

polaridades políticas em cena e as disputas por poder, peculiares da vida das instituições.

Naquele momento nós nos digladiamos muito como corpo docente internamente e é claro que essa luta estava atravessada por interesses que não são só interesses teóricos, mas são também interesses partidários, interesses de distribuição do poder interno na instituição, foram momentos muito difíceis, em que basicamente no meu caso e no caso de Célia também, nós lutávamos pela manutenção do Departamento de Fundamentos Pedagógicos que era consistente. Era importante que não fosse descaracterizado. Fomos incompreendidas algumas vezes mas mantivemos nosso ponto de vista, inclusive sobre o processo de condução da reestruturação. (Clarice Nunes, entrevista, 2007)

Irmanadas no desejo de práticas democráticas de reflexão e decisão dentro da

universidade, Clarice e Célia estiveram lado a lado na defesa de muitas das idéias postas em

cheque. Para Clarice, a luta “árdua” foi também muito fortalecedora tendo em vista que

possibilitou a tomada de posição e, conseqüentemente, a boa sensação de não ter se omitido

diante do panorama que se colocava. Nesse processo sentiu-se fortemente apoiada por Célia.

Foi uma luta árdua, seja em assembléia de professores, seja em reunião interna de departamentos, seja na reverberação que essa luta teve dentro da universidade (no conselho universitário fora da universidade, junto a outras instituições). (Clarice Nunes em entrevista, 2007)

A atitude de Célia, de posicionar-se em defesa do espaço democrático, em que todos

tivessem o direito a expor suas idéias e opiniões, permite que tomemos pé da dimensão da

contribuição de Célia na UFF. Essa é efetivamente uma marca peculiar em sua trajetória, uma

luta sem descanso, que atravessa permanentemente sua reflexão sobre as políticas

educacionais.

Eu acho que isso conta um pouco da importância de Célia e como a gente nesse processo também afinou a compreensão do que ocorria e como nos aproximamos, criamos um vínculo maior por conta de tentar defender um espaço em as pessoas pudessem se posicionar e que não houvesse monopólio de alguns, que pudéssemos fazer um confronto limpo, sem puxadas de

337

tapete. Eu aprendi muito. Foi duro, mas aprendi muito. (Clarice Nunes, entrevista, 2007)

Esse momento relatado não era o primeiro em que a força combativa de Célia

era clamada. Em diferentes momentos de sua vida, como vimos até aqui, ela havia

sido provocada a tomar atitudes diante de panoramas de inquietação e divergência.

Seu estilo combativo, mestiço, como ela mesma diz, de “medos” e premências, era

posto a prova. O medo, como diz Célia, acompanhou toda a sua vida como uma

sombra a que não se pode desviar. No entanto, ao lado do medo, uma sensação de

que “não queria se omitir, não desejava recuar” ia impelindo Célia a agir, enfrentar, a

lutar. Contundência e doçura marcam sua forma de enfrentar os impasses. Doçura

que podemos associar a sua forma elegante e cuidadosa de ser, mas que também está

de certo modo, ligada a um tempero que a prudência e o reconhecimento dos perigos

trazem, mesmo quando mestiçadas com os medos. Medos entranhados pelos sustos e

pelas perdas de sua trajetória, atravessadas pelos terrorismos da ditadura. Medos

que contraditoriamente também provocaram um tipo de coragem que a fez diferir

dos prepotentes e arrogantes, enquanto foi aproximando Célia dessa humana

vitalidade que prima por ser frágil e potente.

Eu acho que a Célia leva para a vida pública um comportamento que mesmo na vida privada eu acredito que ela tenha, que é a suavidade e a firmeza. Célia é uma pessoa suave, mas ao mesmo tempo é uma pessoa firme. Ela esta sempre atenta a conseqüência do que defende, a busca da coerência com aquilo que defende. Ela lida com o enfrentamento com vivacidade, com presença, com ética, sempre o desejo maior não é da separação, é o da união. Eu vi na Célia, sempre vejo na Célia, uma liderança que aglutina, não que divide. Para que você aglutine você tem que ter a humildade, não a humilhação e olhos para perceber os valores do outro, no quê que o outro contribui, de que maneira ele contribui e, ao mesmo tempo, qualificar essa contribuição do outro. (Clarice Nunes, entrevista 2007)

Clarice destaca, também, a abertura ao diálogo e à diferença. Quando afirma que Célia

se interessa mais na união do que na separação, refere-se a capacidade que ela tem em

dialogar com a diferença, entendendo-a não como trincheira, mas como peculiaridade do

humano. Como quer Morin, a visão da complexidade é inclusiva e Célia pratica uma postura

aberta, que inclui e dialoga. Não é o mesmo que dizer que ela é “eclética”, mas sim que ela,

338

ao possuir suas próprias perspectivas teóricas e formas de pensar o mundo, contempla a

diversidade como parte imanente do mesmo. Vocacionada para o encontro com o outro, lida

com tal diversidade com uma curiosidade amorosa.

Clarice se reporta ao que chama de “boa vontade” de Célia, uma disposição para lidar

com os problemas e embates que revela uma flexibilidade para olhar sob a perspectiva do

outro, que favorece a uma visão caleidoscópia:

Poderia dizer que vejo no estilo da Célia uma grande boa vontade. Considero que muitos de nossos problemas, em qualquer instância e instituições seriam resolvidos com a boa vontade. Célia tem isso, ela não é uma pessoa que assume um ponto de vista e se fecha em seu ponto de vista. Ela é capaz de mudar se convencida a fazê-lo racionalmente, é uma pessoa de confiança, uma líder que inspira confiança. E uma líder que é capaz de ver além da frustração momentânea, que às vezes a gente tem nesses processos. Ela tem ideais. A questão da esperança está sempre colocada, eu acho que isso tudo faz dela uma liderança muito atraente. Confiável, atraente, humana. (Clarice Nunes, entrevista, 2007).

A questão da confiança traz uma imagem muito significativa para pensarmos nos elos

que se constroem nos ambientes acadêmicos. Não seria ela, a confiança, o sentimento que

viabiliza a abertura para o outro? Ao confiar, é possível expor, se expor, pois na confiança

residiria a tranqüilidade de se sentir aceito em sua diferença, em sua singularidade. Confiança

que se traduz no companheirismo, na escuta atenta, na reflexão a partir da fala do outro (e na

possibilidade de, em refletindo sobre essa fala, rever a própria posição).

O que realmente me marcou é o companheirismo da Célia. Realmente ela é uma companheira com quem você pode contar, isso está ficando cada vez mais raro hoje em dia. Então nesses episódios todos, eu sentia que ela era uma pessoa em quem eu podia contar, acho que isso diz tudo dela, ela é uma pessoa em quem eu tenho a máxima confiança. A quem eu posso me expor com toda a abertura, de quem eu posso receber críticas que eu sei que serão bem vindas, no sentido de que ela me mostra pontos que eu não vi ainda. Eu acho que é um companheirismo, é a marca que eu vejo na Célia, me vejo de mãos dadas com ela. Eu sinto assim, que posso ficar longe de Célia, sem falar, porque a vida vai carregando a gente assim para lá e pára cá pelos compromissos, mas se eu precisar, ela está lá. Uma âncora, eu sei que vou recorrer a ela, eu sei que posso falar com ela, eu sei que posso me abrir com ela. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)

339

Clarice sublinha a contribuição de Célia na ANPED. Destaca sua fala poética, densa

de significados e de concepções de mundo, de educação. Célia é bem recebida em muitos

ambientes, ressalta Clarice, algo que, nós que transitamos pelos meios acadêmicos, sabemos

não ser tarefa das mais fáceis, haja visto as vaidades e as diferenças de posição que geram,

com freqüência, hostilidades, rejeições, afastamentos. Mesmo quando combatida, Clarice

percebe que Célia é respeitada. Perguntei para muitos dos entrevistados sobre como viam as

oposições à Célia. Com freqüência essa era uma questão difícil de ser respondida pela grande

maioria (e que portanto, não incluo em todas as narrativas). As respostas traziam essa

dimensão de que ainda que existam/ existissem opositores, Célia de alguma forma sempre

inspirou respeito. Acredito que seja reflexo do respeito que também dirige ao outro e de uma

conduta que mesmo frente a embates tensos e árduos, se manteve sempre ética.

Sua presença na ANPED sempre foi muito marcante, porque a Célia cativa pela sua fala poética, ao mesmo tempo carregada de significados que não são apenas poéticos, que são significados de vida, de posicionamento político, sempre uma pessoa muito bem recebida em vários ambientes e muito combatida também, não seria diferente, tanto aqui quanto fora. Mas é uma pessoa que eu acho que consegue despertar o respeito dos opositores.

A respeito das idéias emblemáticas da obra de Célia, ela destaca a concepção de

política e sua estreita relação com a escola.

Tem um alcance do trabalho da professora Célia que eu acho que tem a ver com a concepção de política que extrapola a universidade, que vai para outros ambientes institucionais, escolarizados ou não. Célia participa de movimentos de formação docente, de reorganização de escolas, de movimentos instituintes. São outros locais onde a produção e pensamento da Célia circulam concretamente. (Clarice Nunes, em entrevista, 2007)

Sublinha também o movimento permanente de diálogo que Célia estabelece com os

professores, buscando uma efetiva cooperação entre universidade e escola básica. Isso se

reflete em suas pesquisa e textos.

Ela tem escrito muito para professores. As idéias da Célia procuram atingir esses professores em ação, nas salas de aula. Ela tem atingido não só pelos trabalhos críticos, os artigos, os capítulos de livros, mas também pela trajetória que ela tem, dentro da escola pública. Creio que essa trajetória fala muito alto, quando as pessoas lêem os textos da Célia. É alguém que está falando porque viveu, não apenas porque leu. Então tem esse dado da experiência pensada, reelaborada, ela faz isso com muita facilidade nos textos que escreve. Esse é o fio condutor desse contato permanente que os professores sentem, dessa necessidade que tem dessa Célia, que é não só

340

uma intelectual, mas uma intelectual educadora. Eu vejo um pouco por aí. Enraizada na escola.

Parceria, confiança, ética. Aspectos ressaltados por Clarice em seu contato com Célia.

Uma educadora intelectual, que escreve com vitalidade, fala do lugar da experiência.

Enraizada na escola, Célia mantém um diálogo intenso com as questões que atravessa o

processo educativo brasileiro.

4.4.2 A voz dos parceiros: Valdelúcia, memórias de vôos em parceria:

Três obras me lembram Célia: O livro de Neruda, “Confesso que vivi”. No início Neruda afirma que naquele livro seu compromisso é com suas memórias e que, ao narrar as memórias não tem o mesmo compromisso do memorialista, que descreve com cuidado e rigor o vivido, a proposta dele é ser um narrador-poeta. Isso me lembra Célia que consegue narrar poeticamente. Outro livro interessante é o penúltimo de Gabriel Garcia Márquez, “Viver para contar”, acho que a obra-vida de Célia é muito isso, aonde ela vai ela está sempre narrando, sempre contando um tanto de sua própria história de vida que se confunde também com a sua história profissional. Lembro também do livro, “Fernão Capello Gaivota”, de Richard Bach em uma passagem mais ou menos assim: “Há tanto que aprender, quero me dedicar a desenvolver meu vôo, e como tenho muito que aprender, não quero ficar buscando alimento, quero alçar maiores vôos”. A mãe de Fernão reclamava de que ele não se preocupava em voar para buscar alimentos, pois ele só almejava ir até o horizonte. Essa coisa de poder voar mais alto, Célia ensina isso, que a gente pode voar mais alto do que muitas vezes as condições objetivas nos permitem. “Há muito que aprender a voar, o tempo de voar é aquele.” Célia é um a pessoa que voa, mas que também permite que outras pessoas possam voar.

“Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.”.

Valdelúcia conheceu Célia antes mesmo de trabalhar com ela na UFF. Chama

atenção para o reconhecimento da obra, importância política e educacional de Célia

não apenas no Rio de Janeiro, mas também no Maranhão:

341

Antes de começar a trabalhar com a professora Célia Linhares eu a conhecia pelo conjunto de sua obra, pela importância política e educacional que ela tem não só no Rio de Janeiro, mas também no Maranhão aonde eu também tenho uma interface com a Universidade Federal e o sistema de ensino, tanto Estadual quanto Municipal, em São Luís e Imperatriz, onde ela é muito conhecida. (Valdelúcia, em entrevista, 2007)

Comenta que após seu ingresso na UFF, em 1992, teve a oportunidade de aproximar-

se mais estreitamente de Célia, inicialmente de forma um tanto tímida e cerimoniosa, tendo

em vista a admiração que nutre por ela:

Eu a conheci antes daqui da UFF, fora do Rio de Janeiro, por sua obra. Com meu ingresso na Faculdade de Educação eu pude me aproximar um pouco mais dela, mas é interessante destacar que a minha aproximação com Célia era uma aproximação muito cerimoniosa, até tímida de minha parte. Eu sempre achei Célia Linhares uma pessoa muito especial, não seria de maneira simples que eu poderia me aproximar dela. Eu pensava que tinha que me preparar mais para chegar perto dela. Então, a admirava com certa distância, mas ao mesmo tempo com uma aproximação subjetiva, amorosa por gostar do trabalho dela, da maneira dela ser. (Valdelúcia, em entrevista, 2007)

Destaca a elegância e delicadeza da maneira de ser de Célia, ressaltando o respeito

como uma característica marcante de sua forma de se relacionar com o outro. “Quando tive

oportunidade de maior aproximação, sempre a achei uma pessoa muito elegante na maneira

de ser, muito respeitosa. Essas são características que se destacam nela”, lembra-se

Valdelúcia.

Valdelúcia nos conta que Célia foi uma pessoa importante para sua inserção na Pós-

graduação na UFF e pelo convite para participar no seu grupo de pesquisa, o Aleph e

incentivando-a a entrar no programa de pós-graduação. Esse movimento acolhedor e

integrador relatado por muitos dos entrevistados, aparece aqui como marca da generosidade e

acolhimento de Célia:

Quando eu voltei do meu doutorado em 2001 ela começou a falar do meu trabalho aqui, que eu deveria me preparar para entrar no programa, e então foi a partir desse ano que comecei a me aproximar mais de Célia Linhares e ela me convidou para fazer parte de seu grupo de pesquisa. Hoje tenho maior aproximação dela e tenho por ela muita deferência. Eu a admiro e escuto muito, penso que ela é uma pessoa extremamente generosa. Então é isso, que percebo nela. Célia é uma pessoa singular e ética.

342

Sobre o grupo de pesquisa Aleph, ela comenta o espaço de troca e de exposição da

diversidade de referenciais teóricos que nele circulam. Multiplicidade e riqueza caracterizam

esse espaço:

O Aleph é um espaço múltiplo e Célia nos dá liberdade para apresentar nossos referenciais teóricos. É um grupo de pesquisa, de estudos, de extensão. É um espaço múltiplo, muito rico. Eu comecei a fazer parte em 2004 e para mim tem sido um espaço de formação. A voz dela é sempre o melhor momento dos encontros. A pauta de discussão não é proposta fechada a princípio. Célia sempre quer discutir, acolhendo o que todos querem falar.

Mesmo considerando o reconhecimento e importância na história da formação de

professores e da educação, Valdelúcia destaca a postura sempre curiosa e desejosa de

aprender mais de Célia. Algo que a distingue como mestre em contínuo movimento, pouco

acomodada e arraigada a verdades absolutas:

Isso sempre me chamou atenção em Célia Linhares. Uma pessoa que ocupa um lugar na história da educação no Brasil, com o conjunto da obra dela e sempre com a postura de aprendiz, de iniciante, postura sempre respeitosa com os que estão chegando, os mais novos, professores e estudantes. Todos nós aprendemos muito com ela. Não é fácil falar de maneira mais objetiva, pois eu sou aprendiz de Célia Linhares. Quando estamos enfrentando qualquer situação, penso assim junto com Iduina, “Vamos falar com Linhares!”, ela sempre nos dá preciosas orientações com sua sábia experiência. Assim sempre afirmo “Vamos falar com ela, vamos ouvi-la”.

Sobre passagens marcantes vividas com Célia, Valdelúcia destaca o momento de

ingresso no programa de Pós-graduação em Educação da UFF, quando foi convidada por

Célia a participar com ela de uma disciplina obrigatória, oferecida por cada campo de

confluência do mestrado. Sentir-se integrada, ouvida, encontrar espaço para apresentar seu

trabalho e estabelecer suas primeiras experiências no programa foi algo fortalecedor que

contribuiu para seu desenvolvimento intelectual no novo espaço acadêmico que ocupava na

universidade:

Lembro, dentre tantos momentos, daquele quando ingressei no programa de pós-graduação em educação. Ingressei em 2003, no segundo semestre, estávamos vivendo uma greve que se prolongou até 2004, ano de minha primeira experiência. Célia me convidou a participar junto com ela de uma disciplina obrigatória que cada campo oferece no mestrado, eu achei isso grandioso: ela me convidou?! Isso me chamou muito a atenção. No segundo momento, na disciplina, durante todo o tempo ela tinha sempre o cuidado de preservar o espaço de minha voz. Outro fato que me chama a atenção é o quanto Célia é respeitosa com os mestrandos que estão chegando. No

343

primeiro período de aulas ela sempre orienta e apóia os projetos em sua fase inicial, qualificando-os e prestigiando-os. Em geral, Célia Linhares não fala que algo está errado, ela aponta, recomenda, ela oferece um livro, indica a literatura, se disponibiliza. (Valdelúcia, em entrevista, 2007)

A respeito das principais idéias pedagógicas de Célia, Valdelúcia destaca a coerência

sempre presente entre aquilo que ela escreve e a forma como ela vive. Evitando

maniqueísmos que dividem prática e teoria de forma simplista, Valdelúcia destaca a práxis de

Célia como sua marca mais contundente. Desafio de apropriar-se do próprio discurso como

algo que sustenta as ações, escolhas, formas de ser e de agir:

Uma coisa interessante na maneira de Célia ser, escrever e viver é que ela tem uma coerência que me agrada sobremaneira. O que ela escreve e desenvolve expressa isso, como na sua pesquisa sobre experiências instituintes e a possibilidade de não se submeter ao que está instituído, de por uma formação crítica você poder resistir pelas experiências instituintes. Às vezes temos acesso a obras de autores de inquestionável valor, mas que a prática não converge! Não quero reproduzir esse maniqueísmo de que o “discurso é uma coisa e a prática é outra”, isso não é tão simples – mas o fato é que ela consegue ter o que denomino como práxis coerente. Então, Célia é no cotidiano do trabalho acadêmico e fora dele de uma coerência muito forte. Célia é o que escreve, o que fala e o que vive.

Pergunto a Valdelúcia a respeito do estilo combativo de Célia. Ela destaca sua

capacidade de ser contundente e delicada ao mesmo tempo. Na verdade, Valdelúcia

problematiza até a própria questão do embate, chamando atenção para uma atitude dialógica

da parte de Célia, que acaba por transformar, com freqüência, possíveis enfrentamentos em

diálogos:

Ela consegue ser, de maneira revolucionária, coerente e delicada. Ela é contundente sem perder a ternura. Célia participa dos espaços da pós-graduação de maneira política nos debates e discussões de maneira ética. No programa de pós-graduação Célia Linhares consegue marcar seu lugar ao apresentar suas idéias sem rejeitar o que os demais dizem. É como se ela dissesse “Estou falando e dizendo do lugar onde estou, mas estou aberta ao debate. Estou aqui para dizer o que penso, mas eu não estou contra ninguém, estou discutindo no campo das idéias e falo desse lugar”. Ela é uma formadora também de pessoas políticas, de educadores políticos. E isso é uma qualidade humana preciosa e rara!

A questão dos embates não me parece que se aplique nas participações de Célia, porque ela tem uma maneira de ser, de discutir politicamente que não permite o embate. Ela é dialógica, respeitosa. Ela se conduz com autonomia, não abre mão de suas concepções democráticas, é muito respeitosa. Ela sabe lidar com a diferença, com a diversidade de todos de maneira respeitosa, sem se confundir.

344

Sobre o significado mais amplo para a educação brasileira da obra de Célia Linhares,

Valdelúcia sublinhou o seu significado político, reconhecendo em Célia uma pessoa

consciente das demandas sociais e políticas atuais. “Ela tem uma preocupação com as

questões da história da educação no contexto da história do Brasil. Célia Linhares é

pesquisadora estudiosa da alma do povo e dos pensadores brasileiros”, afirma Valdelúcia.

Ao mesmo tempo em que tem essa ligação estreita com seu país e extrema valorização

de nossa cultura e do conhecimento que produzimos, ela prestigia não apenas os autores

brasileiros, afirma Valdelúcia, mas não deixa de estudar vários estrangeiros, autores clássicos

e contemporâneos.

Valdelúcia ressalta a preocupação política de Célia com relação a formação de

professores, acrescentando que a forma poética de sua expressão alia-se a sua atenção a essa

dimensão, provocando impacto em quem a ouve.

A história de vida de Célia tem uma contribuição importante para a formação política dos professores. Destaco o aspecto político por ser considerado uma questão central na formação dos professores. Sua preocupação com a formação política dos colegas e alunos é aliada à poesia. Célia tem uma maneira de ser poética, que também é filosófica. Ela consegue aliar política e rigor teórico com a poesia e filosofia. Para você ter idéia a respeito disso, conto uma experiência vivida há duas semanas. Célia esteve em minha sala de aula para uma participação na turma do mestrado. Após sua saída, alguns alunos falaram: -“Como ela é sensível, como afirma a importância da nossa formação política no curso de mestrado”, que é a questão central no nosso campo de confluência.

Com relação ao referencial teórico de Célia, Valdelúcia reconhece a sua abertura para

dialogar com diferentes perspectivas. Ela possui seus autores preferidos, isso é evidente em

sua fala, como Walter Benjamin, mas com freqüência convida colegas para participarem de

suas aulas contribuindo com seus referencias, trazendo outros autores para o diálogo,

completa Valdelúcia.

Temos um autor em comum que é Walter Benjamin, mas ela me convida, por exemplo, para discutir o pensamento de Adorno nas aulas de nossas disciplinas no mestrado. Ela dialoga muito bem porque, em primeiro lugar, ela é boa interlocutora, por ser estudiosa. Então, ela nunca nega as idéias de outros pensadores. Antes, escuta e discute com muito respeito com o pensamento de diversos autores fazendo contraponto, de forma firme e elegante, mas sempre dialogando com diferentes pensares.

345

Coerente com a própria concepção de movimento instituinte, Célia se contrapõem ao

pensamento único, engessado. Mantém-se aberta aquilo que emerge, aos novos pensares que

se produzem no fluxo da vida e da produção cultural.

Célia fala sobre a possibilidade das “fagulhas”, afirmando que “Buscando encontramos as fagulhas” nos autores com os quais dialogamos. Sua erudição contempla uma formação política e filosófica significativa. Célia está sempre atenta ao seu entorno e para além dele. É curiosa, com espírito sensível e desenvolvido. Por isso, seu espírito conserva o frescor e o vigor da infância e juventude. Seus olhos sempre brilham. Célia é uma menina, no melhor da meninice.

Talvez eu tenha revelado a você muito não revelado à Célia por mim. Talvez por respeito cerimonioso. Até hoje ainda tenho um tanto de cerimônia ao seu lado. E gosto disso. Até cultivo mesmo.

Por último, acho interessante uma tese de alguém em vida. Em geral a obra é estudada após a morte. Parabéns pela iniciativa, sua e de sua orientadora Prof.ª Iduina, em estudar a vida e a obra de Célia Linhares em vida. Eu faço questão de estar lá na defesa de sua tese ao lado da Prof.ª Célia Linhares.

Novamente surge a coerência como marca da presença de Célia, convergência entre

obra e vida, fala e escrita, ação e reflexão. Valdelúcia tem em Célia uma referência de mestre

a quem admira, de quem busca conselhos.

4.4.3 A voz dos parceiros: Inês Bragança, memórias do convite para um piquenique-pedagógico

(...) Tivemos a felicidade de um encontro em Lisboa, Célia e eu, e abaixo cito o texto que escrevi em meu “livro da vida”, naquela ocasião:

“Após deixar Célia e Sr. Linhares no Hotel, disse a Júnior que momentos como aqueles, são presentes que a vida nos dá, presentes de uma “vida estrangeira”. O vazio pela mudança da Lia, pela partida de Denise, deixaram-me o sentimento de solidão, quase de isolamento, já o encontro com os amigos fez-me sentir, não só a intensidade da “companhia” como também fortalecer o sentido de minha presença aqui e da pesquisa. Conversamos sobre a vida em Portugal, Caio, a escola portuguesa, dilemas e caminhos da pesquisa, os principais temas do debate do campo educativo por aqui e, enfim, as tranças e articulações entre vida e trabalho. As experiências

346

de Célia e Sr. Linhares com quatro filhos em outros países, os desafios enfrentados e o grande envolvimento na vida e em projetos de futuro, trouxeram grande inspiração e força. Força que impulsiona o caminho que tenho trilhado na busca de intensificar meu processo de formação, de ter, aqui em Portugal, um espaço/tempo de aprofundamento, de diálogo interno e profundamente coletivo. Lembro a síntese feita por Célia, durante nosso café, ontem, com referência à Conferência que vai fazer na Universidade do Minho: se em Benjamin encontramos um tom nostálgico frente à possibilidade de experiências plenas e partilhadas por meio da narração, ela afirma a confiança na comunicação humana, na construção coletiva e em um conhecimento mais humano, poético e sensível. (Inês Bragança em seu Livro da Vida, 18 de maio de 2005).

A lembrança desse encontro trago como símbolo de dimensões importantes do caminho de aprendizagem que pude trilhar com as contribuições de Célia: a importância da afetividade, da comunicação humana como referências fundamentais de sustentação de nossos projetos e sonhos. (Inês Bragança em entrevista concedida em 2007)

A proximidade de nosso relacionamento me faz perceber como vida, pensamento e trabalho se articulam de forma intensa - a mesma amorosidade e afeto, compromisso e ética que envolvem os relacionamentos pessoais transbordam em sua elaboração filosófica e política sobre a sociedade e os processos educativos. Tudo com muito “saber e sabor”. Retomo, então, como imagem metafórica de seu pensamento e de suas contribuições, o “piquenique pedagógico”, piquenique como espaço/tempo marcado pelo encontro, pela partilha de diferentes saberes e sabores, pelo rigor necessário que envolve toda a preparação e o desenvolvimento, pelo prazer e afetividade. (Inês Bragança em entrevista concedida em 2007)

Esta narrativa foi produzida a partir de uma entrevista por escrito concedida

por Inês. Inês atendeu a meu convite para conversarmos sobre Célia prontamente.

Por dificuldades em conciliar horários acabamos optando por uma entrevista por

escrito em que enviei a ela o roteiro com algumas questões (em anexo) orientando-a

que ficasse inteiramente à vontade para extrapolar o roteiro e tomar esse convite

como oportunidade de refletir sobre a presença e influência de Célia em sua trajetória

profissional-pessoal. O tom de resgate de memórias é dado desde o início:

Escrevo esse texto como carta, memorial, testamento..., como documento e registro de aprendizagens construídas em partilha com Célia; professora e amiga querida que conheci no ano de 1993 e que, a partir de então, tem acompanhado, de perto, minha trajetória pessoal, acadêmica e profissional.

347

(...) depois da última reunião do ALEPH, voltei para casa pensando em escrever sobre as experiências com Célia. O convite de Adrianne para contribuir com seu trabalho sobre o pensamento da professora Célia confirmou esse desejo. É esse, então, o sentido do presente registro, sentido que busca na rememoração a força dos caminhos construídos, caminhos que se abrem e se reconstroem na narrativa.

Inês reflete sobre a rede de experiências que concorrem para a formação do professor, reconhecendo a importância das relações e pessoas com as quais convivemos. Célia é citada como “presença inspiradora de reflexões críticas e poéticas sobre a vida”.

A formação, enquanto movimento vital liga-se às nossas experiências, envolve pessoas, lugares, contextos e, quando retomo o processo vivido nos últimos anos, a presença da professora Célia é significativa e inspiradora de reflexões críticas e poéticas sobre a vida, a educação e a formação de professores.

Após meu retorno de Portugal, a proximidade de seu aniversário e aposentadoria tem trazido muitas reflexões sobre as aprendizagens que construí em nossa relação de amizade e de formação (...).

Inês resgata as lembranças de como se conheceram.

Foi por meio de Cipriano, um ex-aluno, por quem Célia sempre demonstrou especial carinho e atenção, que nos conhecemos. Eu havia concluído o curso de Pedagogia na UFF, estava cursando a especialização e trabalhava com Cipriano no Curso de Formação de Professores, do Colégio Cenecista Lara Vilela. Conversamos sobre a UFF, sobre o curso, sobre Célia... Desejos e motivações se encontraram, pois eu queria convidá-la para orientar minha monografia, por outro lado, ela precisava de alguém para ajudar na organização de materiais de seu escritório178 e, assim, o encontro foi marcado e iniciamos nossa interlocução. Toda sexta-feira, à tarde, ia para Botafogo trabalhar em seu escritório. Desse tempo, guardo a presença de pessoas queridas como Sr. Linhares, Bibi e a mãe de Célia; guardo o carinho do chá com biscoitos, as conversas, a orientação da monografia...; tempo de uma menina, ainda, muito tímida, que apesar de, naquela época, não gostar de chá, o tomava religiosamente sem se manifestar.

No depoimento de Inês, se revela a abertura de Célia com relação a seus estudantes.

Rituais de proximidade e prazeroso convívio vão consolidando essa relação orientando -

orientador, num elo de parceria, de afetuosidade e amizade. Ambiente propício à criação, tal

178 Célia contratou Inês para ajudá-la na organização de seu material, trabalho que contou com uma forma de remuneração (bolsa financiada por Célia).

348

elo confirma o outro em seu lugar de valor e importância, favorece um estar a vontade que

provavelmente ameniza a tensão, que acompanha uma produção intelectual como a de uma

dissertação/ monografia ou tese. A esse respeito vale lembrar o que afirmam as pesquisadoras

Queixidá Viana e Veiga (2007), já mencionadas nesse trabalho, sobre a relação de orientação:

Para nós, a base da relação deve ser a cumplicidade regulada pelo respeito ao papel de cada um, pelo cumprimento dos deveres de ambos. Assim, deve haver uma parceria, na qual as experiências de cada um devem ser valorizadas. Para que isso ocorra, o entendimento entre orientador e orientando acontece, como dizia Freire (1996), por meio do diálogo, pautado no respeito à autonomia do orientando e à personalidade de cada um, na troca de opiniões. (QUEIXIDÁ VIANA E VEIGA, 2007)

Célia constrói essa cumplicidade a partir de pequenos rituais com seus pares. Rituais

que envolvem dúvidas, perguntas, curiosidades, prazer em aprender, perspectivas do que vai

se movendo em devires, partilha de afetos, de interesses, enfim, momentos de alegria co-

participados. Não foram poucos os entrevistados que citaram momentos vividos em volta das

mesas de almoço, do chá com biscoitos em sua casa e outros tantos.

Isso nos remete a sala de convivência para professores, espaço que ela criou na época

em que coordenou o programa de pós-graduação na UFF. O quanto experiências como essas,

que favorecem uma convivência amigável e acolhedora concorrem para um bom andamento

também nas relações de trabalho?! Como e por que se divorciam em regra geral, a afetividade

e a racionalidade, como que associando a necessidade de garantir a seriedade de uma relação

de cunho mais profissional, na demarcação de determinadas fronteiras?!

A esse respeito vale citar um texto recente da própria Célia que indica a necessária

dimensão de afetividade que precisa estar envolvida nos processos de ensino-aprendizagem.

“Interessa-nos, sobretudo, ir encontrando com as forças que desestabilizam velhos esquemas, forças que não dispensam um pensamento apaixonado, que irrompem, muitas vezes, coladas nas que lhes são opostas, a elas se contrapondo e que os vão minando, subvertendo aquelas e até vitalizando-as, em outras direções. Mas também, o contrário vem acontecendo, com as massificações dos caminhos, que propalam um estilo consumidor, em que a pressão dos padrões é um argumento de venda e de procedimentos imbatível”.

Uma frase que se ouve, com grande freqüência, quando reclamamos de algo, é: ‘O

senhor é o primeiro a reclamar’. Vocês nunca ouviram isso? Há um totalitarismo na vida

cotidiana, que inclui o trabalho intelectual. Não é só no trabalho não-intelectual, não é só na

fábrica que o totalitarismo está presente. Também no setor de serviços. E a universidade é um

349

exemplo formidável desse totalitarismo. (...) Há, portanto, um novo totalitarismo que, todavia,

se apresenta como um convite a fazer as coisas bem-feitas, ordenadas. É um ritmo infernal

que se impõe”. (Célia Linhares, artigo escrito para o Simpósio do II Congresso Internacional

do Cotidiano” na UFF, 2008)

Ramirez, Oliveira e Tojal (2004), pesquisando o “entre - dois” no processo

monográfico dos cursos de pós-graduação, afirmam que, no que se refere à qualidade

representada pelo processo de orientação, tal processo é calcado no “entre – dois”, ou seja,

entre orientador e orientando (não de um para o outro), entre palavras e através do discurso

produzido entre eles. Não se produz conhecimento sem interlocução. Tal perspectiva põe em

cena o encontro com o outro como fundamental nas pesquisas.

(...) O fato é que não se produz conhecimento sem interlocução, qualquer que seja a representação para isso. Um pesquisador solitário, por exemplo, envia seu artigo a uma comissão científica e fica a espera do parecer. Está aí a interlocução. De outro modo, boa parcela dos pesquisadores apresenta e discute seus temas em ambientes específicos para só depois os submeterem à publicação, o que significa estarem envolvidos não apenas em um, mas em vários processos interlocutórios que desafiam o conhecimento, significando e ressignificando-o, levando-o adiante. (RAMIREZ; OLIVEIRA E TOJAL, 2004)

Essa interlocução, apontada pelos autores, se constrói nessa cumplicidade e parceria

solidária. Não apenas entre orientador e orientando, mas também entre os colegas. Na mesma

pesquisa citada, estudantes de pós-graduação entrevistados afirmam a importância do trabalho

solidário como facilitador e enriquecedor do processo monográfico. A superação de uma

postura solitária é apontada como um caminho necessário para o crescimento de todos. Ainda

sobre a relação orientador-orientando, Mezan (1999) traz oportunas reflexões:

O fato é que se trata de uma relação sui generis, de grande intimidade por um lado e de necessária distância por outro; às vezes o orientador é o ombro amigo, às vezes o confidente das divagações do orientando; às vezes precisa ser firme e restaurar a disciplina da pesquisa – mas é sempre o interlocutor privilegiado, o primeiro leitor de escritos que significam bastante para seus autores e sobre cujo valor estes têm dúvidas muitas vezes justificadas. O tato e a capacidade de julgamento são as qualidades requeridas deste personagem, bem mais do que o conhecimento do assunto específico sobre o qual versa a pesquisa do orientando, embora este tampouco possa ser excessivamente pequeno. Tato quer dizer aqui possibilidade de avaliar quais críticas podem ser ouvidas pelo aluno, e quais outras teriam o efeito de desestimulá-lo ou de humilhá-lo. Por todos estes motivos, o trabalho do orientador se desenvolve sempre sobre uma estreita faixa de manobra. Um bom guia para realizá-lo é manter em mente que o orientando deve ser auxiliado a desenvolver as suas idéias, a

350

realizar a sua pesquisa, e não aquela que o orientador produziria se estivesse estudando o mesmo tema. (MEZAN, 1999)

Retomando as memórias de Inês, ela recupera, novamente, a lembrança do momento

em que encontrou Célia pela primeira vez e do impacto que esse encontro gerou.

(...) guardo também, a lembrança de sua participação no concurso para professora titular, os muitos textos e livros sobre a mesa, a bibliografia que ajudei a conferir, o envolvimento e a contribuição constantes do Senhor Linhares na organização dos documentos. A elaboração da tese varando madrugadas e a força ao longo de todo processo.

Mas preciso dizer que meu primeiro encontro com Célia foi anterior a nossa apresentação pessoal. Lembro de uma conferência que proferiu no Encontro Estadual dos Estudantes de Pedagogia, em 1989, quando a Faculdade de Educação ainda funcionava na Rua Dr. Celestino. Foi uma manhã bonita de sábado e guardo a memória de sua presença marcante pelo vigor intelectual, pela alegria que tinha de estar com os estudantes; lembro de suas palavras iniciais, fazendo referência a um verdadeiro “piquenique pedagógico”, expressão que, para mim, ficou como marco da alegria que envolve “saber e sabor” no pensamento e na ação de Célia. Estar, em uma manhã de sábado, na Faculdade, com os alunos, trazia sentimentos e emoções que envolvem um “piquenique”, metáfora viva do prazer, do sabor, da partilha coletiva, da generosidade que traduzem, para ela, a construção do conhecimento.

Muito semelhante ao primeiro encontro de Heloisa Villela com Célia, também Inês

relata que antes mesmo de um conhecimento mais formal, a audiência de uma de suas

palestras provocou o primeiro impacto-convite. Inês destaca uma expressão utilizada por

Célia, evocando a força das palavras, idéia tão cara para Célia: “Piquenique-pedagógico”,

integrando ao pedagógico uma palavra ligada ao campo do lazer, do prazer, da festa e da

alegria. Palavra-convite, metáfora tradutora de uma concepção de conhecimento e de

pedagogia aonde “saber e sabor” encontram-se associados. Outras memórias são evocadas a

respeito de passagens que iam dando notícias dos focos de interesse que Célia cultivava:

Mas lembro, ainda, de sua liderança na organização do I Encontro Estadual Pró Formação do Educador, realizado no UFF, em maio do mesmo ano. Naquela época, como estudante de Pedagogia, sentia a importância do acontecimento, mas não podia ter noção do lugar de marco que aquele encontro teria para a história da formação de professores no Brasil. Década de 1980, articulação dos professores/as na luta por uma nova sociedade e nas tramas que envolviam a escola e a formação docente.

Inês volta a lembrança do primeiro encontro com Célia e das afinidades com relação

aos campos de pesquisa de ambas.

351

Voltando ao nosso primeiro encontro pessoal, levei as questões que motivavam o desenvolvimento da monografia e ali, na sala de sua casa, partilhamos um interesse comum pelas articulações entre escola e universidade, pensamento e prática educativa. Considero esse um fio condutor importante do pensamento de Célia, suas reflexões tomam como referência o atravessamento concepção e ação, academia e escola. Hoje, na liderança do ALEPH, a preocupação com as práticas instituintes acentua, mais uma vez, centralidade da prática educativa, dos fazeres de professores/as e alunos/as, nas brechas potentes de revitalização da escola e da formação docente.

Em destaque a preocupação sempre presente em diversas das obras de Célia com as

relações entre universidade e escola. O interesse em pensar numa formação que qualifique a

prática docente, que dê ouvidos as experiências pedagógicas e que reflita sobre a contribuição

das pesquisas da pós-graduação e da universidade enquanto lócus de formação do professor,

enquanto espaços que precisam necessariamente alimentar-se do diálogo com o movimento

vivo da escola. Pesquisas menos prescritivas e enunciadoras de “verdades absolutas a serem

seguidas” e mais conectadas com as questões de interesse da vida da escola, seus dilemas,

seus nós, suas demandas.

Inês continua a puxar os fios de sua memória, retomando autores apresentados por

Célia e a forma peculiar com que ela orientava o grupo de orientandos da pós-graduação. O

acolhimento ao diverso, a abertura para perspectivas distintas eram a marca da mediação de

Célia:

Do período de realização do Mestrado, entre 1994-1998, trago a seriedade de suas aulas, as contribuições das reflexões sobre Walter Benjamin, Norbert Elias, Passolini; a leitura do livro “O queijo e os vermes” de Ginzburg, feita em uma semana, as discussões filosóficas e políticas... A condução do grupo de pesquisa, trazia a marca do compromisso com os diferentes processos de construção do conhecimento, materializados na experiência dos alunos e colegas que participavam do grupo, bem como pela firmeza e amorosidade nas palavras e no olhar. Sempre admirei a capacidade de acolhimento e articulação de uma diversidade de temas de pesquisa. Foi com esse grupo que desenvolvemos o trabalho acadêmico que considero especialmente significativo: o Pólo de Memória e Narração.

A respeito desse trabalho de pesquisa mencionado, Inês relata aspectos de processo de

desenvolvimento do mesmo:

Inicialmente fomos unidos por um projeto comum escrito pela professora Célia Linhares e submetido ao CNPq. Com a aprovação e financiamento, o projeto ganhou um caráter de “contrato”. Isso não impediu um processo onde a construção da pesquisa contasse com a contribuição de cada participante. Esse trabalho teve como marca a produção coletiva, o

352

conhecimento produzido na rede de interdependência com nossos pares. Tínhamos o projeto que ao mesmo tempo demarcava limites e se mostrava aberto à pluralidade das inquietações de cada participante e foi nesta relação que vimos nosso objeto se construir com seus caminhos metodológicos.

Ainda sobre essa pesquisa, Inês nos relata a dinâmica de trabalho desenvolvida, que

implicou pesquisa empírica dentro de uma escola. Esse diálogo próximo com professores e

instituição tinha como objetivo construir espaços de narrativa para que os professores

pudessem, por meio de suas memórias, reconhecerem-se autores e sujeitos de sua história e de

seu conhecimento. Tratava-se, portanto de uma pesquisa que visava a autonomização e o

fortalecimento dos docentes, valorizando suas práticas, suas experiências por meio da palavra

escrita e narrada. Eixo que articular toda a obra e pensamento pedagógico de Célia.

Este grupo tomou como desafio o trabalho junto a uma escola pública estadual de Niterói: um CIEP. Desenvolvemos a dissertação tendo o dia-a-dia desse CIEP como lócus do trabalho empírico da pesquisa, onde procuramos criar um “Pólo de Memória e Narração”. Essa perspectiva aponta para a realização concreta de uma interlocução permanente entre o coletivo e a nossa elaboração do projeto de dissertação.

Tínhamos como objetivo constituir, no cotidiano da escola, mais um espaço formativo para as professoras, onde o saber pedagógico fosse sendo construído/reconstruído pela troca de experiências, pelo resgate da história de vida. Experiência plena, no sentido de uma construção coletiva, partilhada. Reconstruir a história do CIEP, de seu nome, a história de vida das professoras, na perspectiva de uma história aberta a um fazer junto. Resgate histórico do “tempo de agora”, voltar o olhar para o passado, capturando os lampejos de perigo, as lutas não resolvidas que se reapresentam no presente. Fazer um movimento de volta a origem, interrompendo o desenrolar da história para libertar o passado. Dar voz à professora da escola fundamental, reconhecendo seu saber sobre o ensino.

Diferente da grande maioria das intervenções “sofridas” pela escola (me parece aqui

que a palavra sofrida cai bem...), a pesquisa não tencionava contribuir com estudos de novos

autores, métodos ou qualquer coisa na direção de um cunho mais teórico. O movimento

parecia ser o inverso: a partir da própria experiência e reflexão do corpo docente, construir e

reconstruir o saber que circulava por ali, dando realce e visibilidade a ele.

A proposta do grupo não era desenvolver um “treinamento” ou “capacitação”, no sentido de estudar textos ou ter palestras sobre o construtivismo ou qualquer outro assunto. Era possibilitar um movimento dialético entre teoria e prática a partir da troca de saberes entre as professoras, que fossem referidos pelos movimentos da memória: pessoal, profissional, institucional e pela política. Partíamos da concepção que quanto mais “ligado” a sua vida (o que implica as dimensões já

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mencionadas) tanto melhor poderiam buscar as fontes do enriquecimento do ensino e da aprendizagem. Partíamos da concepção de formação em que a ênfase seria o próprio cotidiano como a matéria para a memória e a narração. Ao colocar canais abertos à história das professoras, entendíamos que uma nova dinâmica marcada pela ação de sujeitos do conhecimento seria construída, aliando o prazer ao processo de conhecer o mundo e apreendê-lo para nele intervir. (Bragança, 1998) 179

A dissertação de Inês se construiu a partir da participação nessa pesquisa,

constituindo-se em uma produção marcada pela coletividade e solidariedade que deu corpo a

essa experiência, reafirmando a força do trabalho partilhado e sua capacidade de produzir um

conhecimento plural.

Assim, pude desenvolver a pesquisa da dissertação em um processo coletivo, cada componente do grupo deu sua contribuição, no planejamento e no desenvolvimento do trabalho na escola. Fui reafirmando, assim, em nossas discussões e na prática de pesquisa, que o conhecimento se faz no grupo, na partilha. Desse trabalho, ressalto a centralidade da articulação entre Universidade e escola básica, da memória e da narração, até hoje presentes como referências importantes em meu caminho de pesquisa.

É muito interessante conhecer os caminhos que os pares de Célia trilharam após esse

período de mais intensa convivência entre eles e reconhecer nesses caminhos as marcas da

presença das experiências partilhadas. É a própria Inês quem reconhece na continuidade de

seu trabalho em outros espaços, o cerne do que foi construído coletivamente no trabalho de

pesquisa de seu mestrado na UFF. “Semente”, como ela mesma diz, trazendo a idéia de

fertilidade e multiplicação dos aprendizados vividos:

Mas a semente plantada por Célia, na coordenação do grupo, floresceu também na Faculdade de Formação de Professores, em São Gonçalo. Fazia parte do nosso grupo de pesquisa a Profª. Martha Hees, professora que viveu conosco a intensidade do trabalho e de nossa inserção no CIEP e foi ela, juntamente com outras professoras pesquisadoras da FFP, que organizaram o Núcleo de Pesquisa Vozes da Educação: Memória e História das Escolas de São Gonçalo. Nos objetivos do trabalho do Núcleo encontramos as sementes

179 BRAGANÇA, I. F. S. (1998). A produção do saber na escola: possibilidades emancipatórias da narração na formação permanente do educador. Contexto e Educação, v.13, 97 – 124.

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plantadas: a centralidade da articulação entre Universidade e escola, a memória e a história das escolas, a formação de professores ancorada no diálogo e na narração. Posteriormente, fiz concurso público para essa faculdade e lá tive a alegria de reencontrar Martha e trabalhar com ela e com um grupo de professores/as no Núcleo Vozes.

O período de mergulho em minha trajetória como professora universitária teve também a presença inspiradora de Célia, bem como o acompanhamento de meu processo no doutoramento, desde os primeiros movimentos: o retorno ao grupo, os rascunhos de projetos, as primeiras iniciativas, o contato com a professora Nazaret, a ida para Portugal. Lembro de ter ligado para ela da estação de comboio de Massamá, logo depois de minha chegada, para dar as primeiras notícias...

Instigo Inês a destacar as idéias que considera nucleares no pensamento pedagógico

de Célia Linhares, desafio e tanto, ela pondera: “As idéias são inúmeras, cada livro, cada

texto, cada artigo, assim como as comunicações nos mais diversificados eventos, consistem

fonte intensa e extensa de reflexão sobre a vida, a sociedade, a escola e a formação de

professores”. Fechamos essa narrativa com o belo olhar panorâmico que Inês lança sobre a

obra de Célia, em que esperança, brechas, ética, escola básica são palavras centrais que ela

pesca, em sintonia com sua mestra e orientadora.

Destaco, então, aquelas que me parecem apresentar ressonância na educação brasileira. A formação de professores/as apresenta-se como uma preocupação recorrente em seus trabalhos, nessa reflexão Célia situa a formação em suas articulações entre os macros movimentos da sociedade e a capilaridade de seus processos. Seu pensamento crítico traz, assim, a centralidade dos movimentos da sociedade, da política, da economia e da cultura, em suas mediações e tensões com as vozes que vêm da escola. Observo uma perspectiva que enfrenta a racionalidade técnica e busca a afirmação de outras lógicas, lógicas singulares e instituintes. A formação de professores coloca-se, tal como vejo em seu pensamento, como filosofia e política; filosofia, porque sempre prenhe de reflexividade e política, pois afirma a luta emancipatória. A escola também encontra centralidade em suas reflexões, escola como lugar de muita reprodução do instituído, mas, de forma esperançosa, como lugar de brechas, de alternativas, de curiosidades. Lugar de alunos e alunas, professores e professoras, de múltiplas vozes. Os trabalhos de Célia sobre os professores/as enfatizam o lugar que ocupam como sujeitos históricos, a trajetória de luta dos anos de 1980, a organização de associações, mas traz também as histórias do cotidiano, as histórias de vida e de luta que se fazem no dia-a-dia. Observo, também, em suas idéias, uma forte dimensão epistemológica, a busca por uma racionalidade que se contrapõe às direções e saberes únicos e se coloca na tessitura plural de homens e mulheres no mundo.

Das experiências partilhadas com Célia e anteriormente sinalizadas, registro como princípios de seu pensamento e ação: o atravessamento entre reflexão e ação, a criticidade política e instituinte, a importância da polifonia de vozes e de experiências na construção do conhecimento, o sentido de partilha e de

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construção coletiva da vida, a amorosidade e a afetividade aliadas à firmeza e ao compromisso ético.

O pensamento de Célia dialoga com seu tempo de forma dialética. Se na década de oitenta sentimos a força das contribuições marxistas e das análises amplas das relações entre escola e sociedade e, por outro lado, a não expressão significativa das singularidades, suas reflexões caminharam no sentido da mediação, em uma abordagem crítica não ortodoxa, acolhendo a subjetividade e os afetos. Sempre vi em Célia a leitura atenta do seu tempo, leitura no sentido estrito, acompanhando a construção do pensamento educacional e político, mas também a leitura do mundo, das imagens, dos gestos, do cotidiano, leituras que sempre traz para a sala de aula, para os encontros do grupo de pesquisa e que instigam e convidam a nossa participação. Um pensamento que se afirma em bases e princípios, mas que se abre em um permanente refazer dialógico.

4. 5. Parte II: Trilhas do pensamento, anos 2000. A Verdadeira Dança do Patinho Composição: (Letra: Bnegão/ Base: Rodriguez e Bnegão) Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA) Você que assina contrato sem ler Acha que a O.N.U. se importa com você Você que acredita no ouro nacional Chegou a sua hora isso é fenomenal Você que acredita no que falam na tv Dá seu dinheiro pro pastor pra fazer sua fé valer (eh, eh…) E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!) Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil vai tá ganhando com a ALCA Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego Mas não viu que o governo tava botando no seu … Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso Pra dançar a dança, a verdadeira… DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!) Você que toma volta quando quer ficar ligado Acredita no bicho papão e no aumento de salário Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum dia uma aposentadoria decente Você que acredita em alguma punição pros que roubam e colocam no… da população E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo esse hino, esse é o meu recado: braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança DANÇA DO PATINHO ( A VERDADEIRA!).

356

Abrindo essa parte, que aborda as produções de Célia Linhares nos anos 2000,

trazemos a letra de um HAP brasileiro. Se o cenário dos anos 90 até os dias de hoje já foi

apresentado no início do capítulo, nesse momento pelas palavras de “BNegão”, sublinhamos o

clima de insatisfação popular com uma política (econômica, cultural, educacional) em que

muitos de nós nos sentimos como “patos”. Nas manchetes diárias uma profusão de escândalos

envolvendo a corrupção de nossos políticos reforça essa sensação.

As idéias de Célia contidas nos textos dos anos 2000 dialogam com esse cenário. No

primeiro artigo, “Pesquisas Educacionais podem romper com profecias de nascimento?

Memórias e projetos do magistério no Brasil”, de 2001, Célia retoma aspectos da história da

educação no Brasil desde os tempos coloniais para compreender como nasceu em nosso país a

divisão entre aqueles que pensam e aqueles que fazem. Preconiza uma pesquisa que se alie às

questões ligadas a escola que temos, rompendo com elitizações e idealizações. Indica a

palavra e a memória como caminhos de construção de uma escola e de uma sociedade mais

justa e solidária.

O segundo artigo, escrito em 2002, “De uma cultura de paz e justiça social:

movimentos instituintes em escolas públicas como processos de formação docente”, defende

os caminhos do diálogo e do afeto na construção de uma escola não violenta. Preconiza que os

espaços de formação, ao valorizarem as narrativas de vida dos seus profissionais, contribuem

para a construção de uma escola nessa perspectiva da cultura de paz.

O terceiro artigo, “liberdade, uma busca nossa de cada dia”, escrito em 2003 é na

verdade a introdução de um livro que organizou com Maria de Nazaret Trindade sobre Paulo

Freire, escrito em co-autoria com Trindade. Nesse texto introdutório, defendem a palavra,

aspecto central na obra freireana, em sua dimensão constitutiva do ser humano, bem como em

sua possibilidade de intervir na realidade.

“Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire” é o quarto

artigo, também de 2003, do mesmo livro organizado com Trindade. Nele, Célia discute a

transposição de Paulo Freire de suas próprias trajetórias de vida em sua teorização, refletindo

essa dinâmica da criação em que nossas narrativas vão se impregnando com as nossas

múltiplas experiências, imersas no contexto social, histórico e cultural que vivemos.

“Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos” é

o quinto artigo, escrito em 2003. Nele Célia afirma que fomos forjados numa sociedade

constituída numa racionalidade e política que tem a guerra como metáfora, “pilastra onde a

idéia de estado se apoiava e expandia”. Hierarquias, excludências e diferentes ordens de

357

violência permearam nossa história. Para contrapor-nos a essa perspectiva, é preciso fomentar

a curiosidade como uma dimensão ética, instigando o conhecimento como uma aventura

responsável e prazerosa, afirma Célia. Assim é possível construir conhecimentos que nos

fortaleçam como sujeitos históricos, coletivos e individuais, de modo a que possamos

construir novas lógicas e sentidos.

O sexto artigo, de 2004, “Formação continuada de professores: Como? Para quê? Para

quem?”, convida a práticas de convívio e formação permeadas pela solidariedade e

compartilhamento, em contraposição a práticas opressoras e excludentes. Trata-se de um livro

produzido a partir de reflexões sobre a rede educacional maranhense, que aborda, portanto,

questões dirigidas a essa realidade. Defende uma formação que envolva o professor como

sujeito autônomo, incluindo espaços de narrativa, de escrita de sua própria trajetória e que se

beneficie com a presença da poesia como fomentadora da possibilidade de evocar memórias e

sensibilizar.

Por fim, o sétimo e último artigo, “Movimentos instituintes na escola pública”, escrito

em co-autoria com Ana Heckert em 2005, debruça-se inicialmente na explicitação do conceito

de movimento instituinte com a qual trabalham. As autoras o compreendem como aquele que

representa ações alinhadas com uma preocupação com o respeito à vida e à dignificação

humana. As experiências instituintes, afirmam, buscam traduzir sonhos, utopias e lutas para

ampliar a intensidade de saberes. O artigo traz também notícias sobre algumas experiências

instituintes pesquisadas por elas no âmbito do grupo Aleph. Vamos a eles.

4.5.1 Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento? Memórias e Projetos do Magistério no Brasil. (2001)

“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agora”. (Benjamim, 1993)

O artigo “Pesquisas Educacionais podem romper com Profecias de Nascimento?

Memórias e Projetos do Magistério no Brasil” foi incluído no livro “Os lugares dos sujeitos

na pesquisa educacional”, organizado por Célia Linhares, Ivani Fazenda e Vitor Trindade e

publicado em 2001 pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A 2ª edição,

revista e ampliada foi publicada em 2001.

Célia inicia este artigo afirmando que nos tempos atuais abdicamos da definição ou

descobrimento das verdades absolutas.

358

Para compreender aspectos da educação brasileira, desde como nasceu a divisão entre

os que pensam e produzem conhecimentos e os que aplicam, até movimentos mais amplos em

prol da formação e fortalecimento da educação, Célia retoma elementos da história do Brasil,

passando pelo Brasil colônia, Brasil império e o tempo da República. Reporta-se às relações

complementares e antagônicas entre os mestres jesuítas e os meninos língua típicas do Brasil

do tempo colonial, a distância entre as elites do império e as camadas sociais, dentre outras.

No Brasil-colônia, tínhamos os jesuítas como primeiros mestres e a presença dos

menino-língua, curumins que eram “colhidos” pelos jesuítas para viverem nas missões. A

função desses meninos era, pela convivência, aprenderem português com o objetivo de

facilitar a comunicação entre a cultura forânea e a dos nativos; funcionavam como línguas

vivas e encarnadas entre os jesuítas e os índios. O contrário também acontecia, os órfãos

portugueses, trazidos de Portugal eram soltos em comunidades indígenas para a aprendizagem

das línguas e expressões autócnes, com o objetivo de facilitar intercâmbios necessários.

No Brasil Imperial, definições educacionais que ao se contraporem também se

complementam, aprofundam o abismo entre a elite intelectual e as grandes maiorias sociais.

Dentre elas Célia cita a proibição de abrir universidades empurrando os filhos das elites para

Coimbra e a organização das primeiras Escolas Normais.

O Brasil Republicano caracterizava-se pela alternância entre ditadura e democracia, a

institucionalização e desenvolvimento da pesquisa educacional e os momentos de arbítrio.

Célia destaca a criação do Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira (INEP) no período ditatorial do Estado Novo e a implantação e desenvolvimento da

pós-graduação em educação em plena ditadura militar iniciada em 1964. O INEP, dirigido por

um período por Anísio Teixeira, após o golpe de 64 foi burocratizado e configurado como

agência de financiamento e pesquisa.

A Pós-Graduação, com mais de 30 anos de existência, tem trajetória rica e

contraditória afirma Célia, alternando movimentos contra a ditadura e ampliações das cisões

entre a produção intelectual e os processos populares de educação e escola, mesmo sob

declarações retóricas que afiançavam o seu oposto.

Célia cita Clarice Nunes em suas reflexões sobre o ensino e a pesquisa no Brasil:

“A pesquisa em educação no Brasil (...) é, portanto, herdeira de uma tradição que, de um lado, separou o ensino da pesquisa e, de outro, desarticulou o diálogo entre os educadores e cientistas políticos e sociais. Uma herança (...) marcada mais por traços conservadores e autoritários do que por perspectivas democráticas” (Clarice Nunes, 1996).

359

A respeito da relação entre a produção acadêmica das pós-graduações, Célia afirma

que, apesar da quantidade crescente das mesmas, que vêm ultrapassando 10.000 títulos

(ocupamos o 7º lugar segundo as agências financiadoras), há um abismo entre tais produções

e realidade escolar brasileira, questão que ela aborda em outros artigos e que retoma aqui com

contundência. Ela nos alerta para a necessidade de assumirmos esse abismo como matéria

prioritária para estudos, pesquisas e reflexões.

Em forma de questionamento, recurso de que se utiliza recorrentemente em seus

textos, num franco movimento de diálogo com o leitor, ela problematiza o lugar dos

intelectuais combatentes da ditadura diante desse período neoliberal. Inquieta-se a respeito da

pouca reflexão sobre as tensões concretas entre as coletividades e as individualidades que

percorrem e constituem os sujeitos e também sobre a idealização prática e teórica dos sujeitos

pedagógicos, pouco estudados e respeitados.

Célia afirma que apesar da defesa da escola pública ser uma unanimidade,

conhecemos muito pouco essa escola. Proclama-se um discurso de denúncia e combate sem

considerar as possibilidades e dificuldades concretas que a constituem. Dessa forma impomos

“imagens e espelhos desanimadores”, infiltrados num tipo de “fatalismo econômico” que

acaba fortalecendo nossos adversários e fazendo-nos percebê-los como invencíveis.

A escola particular é pouco comentada em suas dimensões ético pedagógicas. Pais e

avós apenas nos preocupamos com os códigos de defesa do consumidor, com sua perspectiva

utilitária e individualista, envolvendo-nos pouco com sua dimensão mais ampla.

Destaca os mecanismos de excludências que vêm alargando o espectro dos que

sobram em nossas sociedades que cada vez mais produzem, acumulam, concentram bens,

sofisticando mecanismos de sedução para o agenciamento de desejos.

Afirma a importância da escuta de nossas práticas de ensinar para entendemos nossa

concepção de conhecimento e, particularmente, do conhecimento escolar.

Somos herdeiros das idéias difundidas ao longo da história de nossa civilização. A

Grécia (século IV a.C.) trazia imagens magnificadoras do mundo das idéias, pensadores como

Platão, Sócrates, Aristóteles marcaram e influenciaram nossa forma de pensar o mundo e a

vida.

No Brasil nossa formação histórica modelou a produção, a sistematização e a difusão

do conhecimento. Imposições e coisificações colonialistas, relações escravagistas,

entrelaçadas com formas de patriarcado e patrimonialismo machista, preconceitos raciais e

étnicos, sexuais e religiosos fizeram parte de nossas experiências culturais.

360

Tais autoritarismos e elitismo se conjugaram com a esfera da produção material e

econômica, consolidando-se em estruturas de poder e saber hierarquizadas e fechadas. Tais

questões foram enfrentadas em todas as épocas. Célia alerta para o fato de que precisamos

atentar para o legado ético, para as vozes abafadas dos vencidos. Tais vozes evidenciam a

tenacidade e desejo de participação popular no Brasil. Aqui, como em muitos outros artigos,

Célia dignifica a memória das lutas travadas em nossa história, evocando a necessidade de

reconhecermos e nos reconhecermos nessas passagens.

Com relação à escola, comenta que esta é marcada nos séculos XVI e XVII por um

viés industrial ou republicano, configuração que traz, na concepção de Célia, uma dupla

ruptura com a vida, nas suas dimensões de troca cotidiana e popular, dificultando a

convivência entre gerações, sexos e outros grupos sociais e naquelas outras em que a

mediação da realidade era trabalhada via ciências, filosofias, tecnologias e artes.

Célia discute que há uma uniformidade de um saber declamatório, custodiada por

controles políticos que se dão há muitos anos, cerceando atuação, pensamento, pesquisa.

Assim, a separação entre intelectual e manual concorre para firmar esse lugar do valor da

retórica em detrimento da intervenção.

Para escrever e produzir conhecimento é fundamental inscrever-se, apropriar-se de sua

experiência, das necessidades sociais e de seus próprios desejos.

Nessa perspectiva, aponta a memória e a narração como pontes entre esses abismos de

que fala.

Comenta que somos todos inexoravelmente analfabetos em algumas dimensões do

conhecimento e muito ignorantes em relação à vida; precisamos um dos outros para cobrir a

complexidade com a qual o real se reveste, exigindo-se sempre a criação e a recriação de

instrumentos para mediá-lo.

Este reconhecimento, não tem como escopo nem a formação de um professor

consumidor obsessivo de informações, nem muito menos a garantia de uma harmonia, em si

impossível. Conviveremos sempre com a ignorância e o analfabetismo como condição de uma

época como a nossa, afirma. Isso pode nos levar a um exercício de humildade posto que

conviveremos sempre com o que nos falta, com os vazios, com as necessidades como

instigação e cobrança para eticamente superarmos as mesmices e imaginar e criarmos mundos

novos. Este reconhecimento pode nos levar a entender a permanência dos conflitos como

matéria a ser tratada pelo exercício da palavra e não pelo abuso da força.

361

4.5.2 De uma cultura de paz e justiça social: movimentos instituintes em escolas públicas como processos de formação docente.

As decisões humanas dependem das lembranças do passado e das expectativas do futuro.

Ilya Prigogine

Publicado em 2002, o artigo “De uma cultura de paz e justiça social: movimentos

instituintes em escolas públicas como processos de formação docente”, faz parte do livro

“Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas”, organizado por

Célia Linhares e Maria Cristina Leal e publicado pela Editora D, P&A.

Nesse artigo Célia faz, logo de início, uma referência à poesia como recurso para

apreender e expressar o movimento da vida, no rastro da descoberta de que não há verdade

única e de que o pensamento racionalista e dicotomizante não dá conta da realidade múltipla.

Nessa perspectiva, sua escrita poética expressa a confiança na mesma como um caminho

metodológico, que ao provocar no leitor uma leitura polissêmica, abre perspectivas amplas de

compreensão.

O compromisso com a justiça e a liberdade é sempre presente em suas reflexões sobre

o papel da escola. Seu olhar crítico com relação a cultura de debitar na conta da escola e dos

professores os ditos “fracassos escolares”, aponta para a necessidade de olhar para a escola

que somos e não a que queremos ser ou que devemos ser. Desse modo, questiona o que ela

chama de um fatalismo econômico que tende a ver a escola criticamente pela sua falta com

relação a um suposto modelo de eficiência e perfeição. Nas brechas do possível Célia instala

sua curiosidade de pesquisadora, atentando para os movimentos que existem e buscam novas

possibilidades de ser e fazer escola.

Enfatiza a idéia de intervenção responsável, que leva em conta a historicidade, a

cultura e contextos da escola.

4.5.3 Liberdade: uma busca nossa de cada dia. (2003).

“... nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. (Walter Benjamin)

Escrito em co-autoria com Maria de Nazaret Trindade, o artigo “Liberdade: uma

busca nossa de cada dia” introduz o livro organizado também pelas duas autoras e intitulado

362

“Compartilhando o mundo com Paulo Freire”, publicado em 2003 pelo Instituto Paulo Freire/

Editora Cortez em 2003.

Célia destaca o contexto mais amplo em que este livro circulou. Tratava-se do ano da

eleição de Lula, que carregava com o seu partido grandes esperanças nacionais e

internacionais.

Na introdução do livro, Célia e Trindade, afirmam o lugar da palavra e sua capacidade

de transformação. As palavras constituem-se em uma ação interventora. “Somos corpos,

comportamentos e palavras. E quando os corpos se vão, suas ações, suas palavras continuam

ressoando em nós como um convite a movimentos de apropriação, como que fazemos e

refazermos a vida” (p. 14).

Benjamin e sua concepção sobre memória é mencionado, ressaltando sua visão da

rememoração como um exercício ético, que não pode prescindir de uma direção a

“contrapelo”, na busca de sintonizar com desejos de emancipação, ainda não realizados,

contrapondo-se aos continuísmos dos vencedores que se exibem com seus triunfalismos.

Acrescentam as autoras, que é Importante constituir processos educacionais que

valorizem o poder criador da vida humana, inseparável de sua dimensão de responsabilidade.

Interessa, afirmam, “alimentar resistências que ultrapassem um sentido reativo, desdobrando-

se em processos de reinvenção da vida” (p.15).

As palavras são também, reafirmam, instrumentos para religar saberes, pare negociar

conflitos, buscando uma construção de felicidade humana e social. Afirmação de

generosidade, na teorização de Freire, como forma de escaparmos dos procedimentos

devolutivos da violência. A busca das autoras é a de que a educação atinja a todas e todos em

suas inteirezas, possibilitando aos sonhos éticos, ter espaços, com diferentes sujeitos para

fazer dos processos escolares, movimentos permanentes de participação na vida.

Reconhecem, também, em várias tendências instituintes, confluências com a

Pedagogia Freireana, a Biologia do conhecimento, a física das estruturas dissipativas e, enfim,

a ciência da complexidade. Todas investem fortemente na autonomia e nos intercâmbios,

como garantias de uma construção interminável da história, como caminhos para superarmos

fragmentações e hierarquias que nos oprimem.

As autoras fecham o artigo apresentando os textos que compõem o livro, destacando

os aspectos centrais dos mesmos.

363

4.5.4. Memórias e narrações como leitura e releitura do mundo em Paulo Freire. (2003)

Escrito apenas por Célia Linhares, o texto em questão faz parte do mesmo livro

apresentando no item anterior (4.5.3). Nele Célia discute como Paulo Freire, ao transpor suas

trajetórias políticas, pedagógicas e existenciais, vai traduzindo-as nas trajetórias de sua

própria teorização. Isto é, enfatiza como Freire foi forjando suas narrações, alimentando

palavras com uma dinâmica conceitual sem descolá-las das práticas vividas, experimentadas e

acolhidas, estudando o lugar que ele conferiu para memórias e narrações em sua Pedagogia.

Célia ressalta que o movimento de Freire foi o de romper com isolamentos e

separações, tais como as que se evidenciam entre próprios sujeitos e seus objetos de pesquisa;

entre os processos de aprendizagem e ensino e entre teorias e práticas. Freire faz um

permanente convite aos oprimidos a buscarem suas memórias – coletivas e individuais –

como uma forma de ajudá-los a ler o mundo, avaliando matizes históricas que produzem

opressões e oportunidades de autonomia.

Freire vitalizou memórias épicas, políticas, culturais, que foram oxigenadas, para abrir

espaços a novos enredos e novos lugares, onde os oprimidos pudessem se tornar credores da

vida, da sociedade e da história da qual precisavam e precisam se apropriar, sublinha a autora.

Célia cita um trecho da obra de Freire, destacando que ele insiste em praticar a palavra

como “um conjunto solidário de duas dimensões indicotomizáveis: reflexão e ação. Daí que

toda palavra verdadeira é práxis.” (FREIRE, 1967, apud LINHARES, 2003).

A Comunicação, afirma Célia, é uma busca que se confunde com a elaboração do

sentido da experiência – própria e coletiva – exigindo de cada sujeito, uma franquia cada vez

mais radical, para recriá-la, recriando-se com ela.

Memórias e narrações têm implicações diretas com o processo de conhecimento da

vida e de elaboração da história e podem, ao alimentar as linguagens, ampliar esperanças e

possibilidades de intervir no mundo. Por isso a problemática das memórias e das narrações

incide no processo educacional-escolar, que apesar das grandes questões que o estremecem,

continua se expandindo mundialmente e exportando o seu modelo para uma série de novas

organizações.

Célia afirma que é necessário juntar o texto escolar ao contexto social, cultural e

histórico. Os opressores sempre organizaram o mundo segundo seus interesses, impregnando

a linguagem com seus valores e hierarquias. Portanto, se a escola popular não está

comprometida em manter e ampliar as excludências, as aprendizagens precisam romper com

364

este tipo de idéias prontas, externas, fabricadas alhures e isoladas das buscas populares, para

se fazer colada aos seus problemas do povo, num empenho de pensá-los e gestá-los, com a

participação a mais ampliada possível.

Nesse sentido, ressalta Célia, as lições de Freire nos trazem “seu legado de memórias

narradas sempre de modo a nos mostrar que estas são drenos e canais que poderão fazê-las

fluir numa direção que amplie o humano na humanidade”. (2003, p. 166)

4.5.5 Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos. (2003).

“Órfãos de guerra? A educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos”,

faz parte do livro organizado por Maria dos Anjos Viella cujo título é “Tempos e espaços de

formação”. Foi publicado em 2003 pela Editora Argos de Santa Catarina.

Célia inicia seu artigo afirmando que somos constituídos por uma racionalidade e

política que tem na guerra uma metáfora construída como uma pilastra onde a idéia de estado

se apoiava e se expandia. Afirma que nossa civilização se ergueu através de hierarquias,

excludências, diferentes ordens violência.

Para contrapor a essa perspectiva ela preconiza que é necessário fomentar a

curiosidade como dimensão ética instigando o conhecimento como uma aventura responsável

e prazerosa.

Célia critica as formas de racionalidade e política da escola de hoje e considera a

necessidade de revisá-la. A escola hierarquiza, pelo estudo parcelado de dimensões da vida e

do mundo, organizando os conhecimentos como uma série de seqüências artificiais que

parecem estranhas ao fluxo das aprendizagens vitais. Dessa forma, o conhecimento

assemelha-se mais a um produto do que a um processo, como uma bagagem.

A autonomia da escola é sempre reforçada como foco em Célia Linhares. Critica a

entrada da tecnologia na escola como salvadora, afirmando que apenas a presença das

máquinas não muda concepções e a tendência é a reprodução de comportamentos já

familiarizados na sociedade, como os autoritários e os machistas. Dessa forma, confirma-se a

escola como um campo de aplicação, sem portanto, exercícios de pensamento e criação.

Há uma distância entre a intelectualidade pedagógica e a escola popular. No que se

refere aos professores, a distância entre quem produz conhecimento e quem os “aplica” se

configura como um processo em que o professor não relaciona o conhecimento com sua

365

cultura, sua história e suas experiências. Célia ressalta a importância da conexão do

conhecimento com a história de cada um em diálogo com a cultura.

Precisamos construir saberes e conhecimentos que nos fortaleçam como sujeitos

históricos – coletivos e individuais – de modo a que não sejam reduzidos a aplicadores ou

mantenedores das tecnologias em funcionamento, mas que possamos nos apropriar e

redirecionar nossas próprias lógicas ou inventar e afirmar outras.

Célia se afina com o pensamento complexo, contrapondo às idéias de cisão entre

racionalidade e imaginário destacando, por exemplo, a idéia de que é preciso olhar para o

improvável. Reporta-se a Morin, Bachelard, Norbert Elias para corroborar esse pensamento

complexo.

A presença da arte e da cultura também aqui se faz presente, permeando a obra de

Célia. Poesia, literatura, cinema, música são citados e com eles ela dialoga. Jorge Luis

Borges, George Méliès, Fritz Lang, dentre outros, agregam às suas reflexões leituras de outras

formas de linguagem, ampliando a visão sobre o tema de que trata. Ao comentar, por

exemplo, o filme “Tempos Modernos” de Chaplin, diz, entre outras coisas, que Carlitos não

abre mão da linguagem poética como uma dimensão participante da comunicação.

Conclui seu artigo, sublinhando a necessidade de organizar nossas práticas

pedagógicas e escolares, políticas, culturais e econômicas, como uma ampliação de debates e

“como um processo de articulação com os movimentos sociais que vêm impregnando com

uma ética de includências e amorosidade seus enfrentamentos contra as desigualdades

crescentes que atingem formas várias de exclusão” (2003, p. 45).

4.5.6 Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem? (2004).

“Formação continuada de professores: como? Para quê? Para quem?”, foi publicado

em 2004 no livro organizado por Célia Linhares “Formação continuada de professores:

comunidade científica e poética”, pela D,P&A do Rio de Janeiro.

Célia inicia seu artigo fazendo um apelo para que possamos identificar entre nós

outras possibilidades de convívio, afirmando que “os movimentos necessários para forjarmos

outras formas de conviver, produzir, pensar e compartilhar a vida mais solidariamente se

encontram entre nós” (p.16). Célia está se referindo ao fato de que tanto os processos que

sustentam desigualdades e massificações, como outros que favorecem includências (palavra

366

muito peculiar de seu vocabulário) não são isoláveis, mas sim coexistem, formando

intercâmbios permanentes, como “interfaces produtoras de uma mesma realidade” (p.16).

É necessário ressaltar que o livro reflete as ponderações de um grupo de autores sobre

a educação pública de São Luís do Maranhão, estado natal de Célia e aonde tem atuado desde

o início de sua trajetória profissional. Embora levante questões que podem ser generalizadas

para a educação de forma mais ampla, em determinada altura do texto focaliza,

especialmente, na realidade do estado do Maranhão.

Ela reafirma a importância da autoria e da escrita do professor, sem que se prescinda

das teorizações já feitas mas sim fazendo outras com hipóteses ainda abertas, como um

empenho permanente de apropriar-nos e superarmos desafios, os conceitualizando.

Questiona sobre como, para quê, para quem vão se desenvolvendo os diversos tipos de

escola que temos. Afirma que essas não vivem separadas, mas que convivem, sob embates e

com prevalências de escolhas, em nossa realidade cotidiana, histórica.

É preciso, como Freire nos indicou, alerta Célia, ultrapassar os processos de opressão

por reconhecê-los, nomeá-los e a eles resistir, instituindo alternativas, afirmando outras

possibilidades, enfim, concretizando outras experiências. Nessa perspectiva, ela aposta na

necessária tomada de consciência dos muitos processos do contexto histórico, político e

econômico que permeiam nossa existência como forma de construir outros caminhos

possíveis.

Comenta que o objetivo imposto às escolas pelo neoliberalismo é subordiná-las às

questões pontuais e utilitárias, inscritas nos programas de salvação de uma economia

capitalista, que também vive uma gravíssima crise em busca da ampliação de capitais e de

investimentos. Os conhecimentos são reduzidos a mercadorias, passando a ser submetidos ao

mercado num alinhamento servil aos interesses dos “senhores do mundo” (expressão que ela

toma emprestado de Chomsky) e às instituições que os representam (FMI, Banco Mundial,

Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, etc). Nessa educação escolar

prevalecem imposições e controles – disfarçados ou explícitos – que minam a autonomia de

professores e estudantes, fortalecendo tanto os processos concentradores de saberes e poderes

como aqueles outros hierarquizadores de grupos, classes, raças e etnias para estimular uma

competição em que, com cartas previamente marcadas, os mais oprimidos são levados a

culpabilizar-se pelos seus fracassos e pelas exclusões que os penalizam.

Os conhecimentos quando descolados da vida dos estudantes e professores, tornam-se

fetiches que parecem valer por si, tendendo a ver seus valores apregoados e desmesurados

como bagagens externas para cuja obtenção todo esforço seria recompensado, por seus efeitos

367

assombrosos que embora lhes sejam associados e prometidos são também cada vez mais

incertos e improváveis.

Célia chama atenção para a divulgação de estatísticas catastróficas da escola pública

que acaba por nos dar a impressão de que estamos submetidos às velhas “profecias de

Cassandra” (profecias que minam a esperança, mesmo quando não são de todo credíveis).

Questiona sobre os motivos que fazem a escola pública ser alardeada como uma usina de

fracassos e pondera sobre a razão da existência de poucos espaços instituintes reconhecidos

que poderiam abrir possibilidades para uma outra cultura escolar.

A problemática social é aguda, diz Célia – desemprego, delinqüência, criminalidade,

trabalho infantil, questões agrárias – é portanto compreensível que a escolaridade seja precária

diante de tudo isso: marcada pelo signo de interrupções que atingem professores e alunos.

O atarefamento do professor segue de mãos dadas com diretrizes de formação que

abastardam qualquer esforço de vincular os saberes escolares à formação social e política do

Brasil.

Há uma cultura de culpar as próprias vítimas afirma Célia. Os alunos são burros,

incapazes, promíscuos, preguiçosos, desatentos e os professores são despreparados, não

sabem ensinar.

Mais ético do que distribuir culpas é socializar, expandir as discussões da vasta

problemática educacional e escolar como uma das temáticas públicas de mais alta relevância,

afirma a autora. Assim, Célia sustenta, com teorizações compartilhadas e responsabilizações

mais claras poderemos tentar um movimento nacional cujo empenho social gere escolas em

que as aprendizagens possam nos ajudar a sair desse estado de privação, com processos de

publicizar nossos saberes, os conhecimentos e a própria racionalidade política que os sustenta.

Com relação especificamente à educação municipal de São Luís, Célia elenca o que

seriam os traços contraditórios de sua realidade, expondo aspectos da situação maranhense.

Destaca o grande êxodo rural, gerando crescimento vertiginoso, decorrente de

facilidades políticas de empresariamento das terras e da proteção oficial que vem garantindo o

fortalecimento de latifúndios.

A condição de vida nas cidades é precária. Maranhão é um dos estados de mais baixos

níveis de desenvolvimento, com uma das populações rurais das maiores do país, sustentando

uma economia com uma base na produção primária e, portanto, de caráter agrário.

Compreendendo esse contexto mais amplo, Célia segue o resto de seu artigo explicitando seu

projeto para o estado, retomando aspectos da “escola sonhos do futuro”.

368

Célia sublinha a todo o momento a idéia hegemônica que faz parecer que não existem

outras opções de vida que não a que a globalização capitalista propõe, se autoproclamando a

via única e absoluta de expansão e intercâmbio planetário. Isso seria a “ditadura do presente”

que não abriria espaço para outras formas de pensar, para outras brechas e movimentos

instituintes.

Todo trabalho humano quando aprisionado na mesmice produz um intenso

sofrimento. A autonomia do professor tem sido apontada em várias pesquisas com fator

fundamental para o desenvolvimento do trabalho docente. Autonomia que se expressa numa

relação autoral com seu trabalho, criadora e apropriada de seus saberes.

Altos investimentos na formação de professores nem sempre se traduzem em

melhorias em sua atuação, tendo em vista o fato de estarem desapropriados de seus saberes.

Isso se deve a concepção de formação que orienta tais formações, diz Célia.

Nossa racionalidade ainda se caracteriza como fragmentária, dicotômica e

hierarquizada, regendo de forma hegemônica nossa forma de pensar. É a partir da vigência

dessa razão que dicotomiza, que se opera na educação um tipo de separação dos saberes e

conhecimentos da própria vida e, conseqüentemente, da vida dos ensinantes e aprendentes.

Como se os conhecimentos fossem constituintes de uma bagagem a ser carregada e mantida

como algo externo. Célia acredita que é importante rever tal concepção, construindo uma

concepção de conhecimento que inclua a dimensão da experiência e dos saberes populares,

cunhados na própria vida.

Encerra seu artigo defendendo a presença da poesia na formação de professores, como

forma de sensibilizar. Célia aborda a ênfase na leitura de poesia presente em seu projeto de

formação de professores em São Luís, explicando o sentido dessa escolha como um espaço de

resistência às padronizações, trazendo a sensibilidade e apreciação estética como experiências

formadoras. Sua abordagem sobre poesia leva também a idéia de poesia como evocação de

memória, como caminho de lembrar. A poética dá notícias de nossa própria impossibilidade

de captar o mundo por inteiro. Nessa perspectiva, ela possibilita a compreensão de que o

mundo é complexo e é nos espaços de troca coletiva que podemos compor as várias visões e

saberes em prol de uma construção tecida junto.

369

4.5.7 Movimentos instituintes na educação pública.

Escrito em co-autoria com Ana Lúcia Heckert, o artigo Movimentos instituintes na

educação pública foi publicado na Revista Presença Pedagógica, pela editora Dimensão de

Belo Horizonte, em 2005.

As autoras compreendem as experiências instituintes como aquelas que representam

ações políticas, produzidas historicamente, que se endereçam para uma educação e uma

cultura, marcadas pela construção permanente do respeito à vida. Tal construção se

caracteriza também pela dignificação permanente do humano em sua pluralidade ética, numa

afirmação intransigente da igualdade humana, em suas dimensões educacionais e escolares,

políticas, econômicas, sociais e culturais. As experiências instituintes não se encontram

isoladas do que já está instituído, elas coabitam, em litígio.

O artigo traz experiências do ALEPH, destacando as pesquisas-intervenção realizadas

em três sistemas municipais: A Escola Plural em Belo Horizonte, a Escola Cidadã em Porto

Alegre e a Escola Cabana em Belém. O foco são os movimentos instituintes que são tecidos

na escola e que expressam formas insurgentes – marcadas por exercícios de resistência, que

interrogam o padronizado e regulado, expandindo o campo das ações educacionais.

A escola pública brasileira, com a ampliação da matrícula nos anos 90, tem se tornado

um organismo assistencial, afirmam as autoras. Ameaçada cotidianamente com a

possibilidade de ser considerada um espaço empobrecido de cultura e conhecimento e um

lugar onde a população infanto-juvenil marcada para sobrar, precisa ser confinada.

Afirmam que a crise que vivemos não é apenas econômico-financeira, mas representa

uma produção da qual não escapa sequer uma das dimensões civilizatórias. A escola como

uma instituição social, vem sendo obrigada a refazer-se e repensar-se para que os saberes e os

trabalhos escolares façam sentido para professores e estudantes, como instrumentos para uma

existência feliz, uma escola e uma sociedade mais emancipável.

As vias que se insinuam para outro tipo de políticas públicas em educação são as que

potencializam a ampliação dos campos de diálogo com as demandas sociais – principalmente

daqueles grupos historicamente desqualificados e negligenciados pelas elites dominantes,

defendem Linhares e Heckert.

É necessário partir da escola que somos pois não existem soluções mirabolantes e

técnicas modernas que indicarão pistas para criar outros processos escolares, afirma Célia. É

preciso partir das memórias de resistências, narrativas dos saberes e fazeres dos trabalhadores

370

e estudantes, para fabricar cotidianamente significações que lhes facultem a legitimação de

espaços sociais.

Memória, para Benjamin, na sua dimensão irrequieta, é um dispositivo de

estranhamento do passado e do presente, acentuando virtualidades que não se atualizaram.

As autoras reconhecem que o olhar hoje se dirige para um fatalismo econômico que

entende ainda a escola como uma correia de transmissão das tramas do capitalismo,

minimizando a potência dessas experiências. Pouco conhecemos dos processos instituintes,

afirmam.

Há uma herança ética a ser contemplada, que se reafirma nas históricas lutas

populares por participação no Brasil e que ainda é silenciada e desqualificada no espaço

escolar. Historicamente, aponta Célia, a escola esteve divorciada da vida – não só com relação

a troca cotidiana e popular mas também com relação as produções das ciências, filosofia, da

tecnologia e da arte.

O interesse das autoras é conhecer como os movimentos instituintes se apropriam da

memória dos sonhos, utopias e lutas para ampliar a intensidade dos saberes. Superar esses

conflitos não é um ato individual, é preciso construções coletivas.

Interessou às autoras identificar como essas experiências instituintes em destaque,

apropriam-se de saberes e fazeres, de aprendizagem e ensino, para entender como se realizam

as aquisições de conhecimento e como elas são fortalecidas pelo respeito aos seus sujeitos –

com suas experiências e saberes – e pelos exercícios de compartilhá-los, e de como se

relacionam com o reavivamento de uma memória coletiva.

As autoras avaliam a qualidade das experiências citadas desde que não utilizado o

padrão mercadológico da produção em massa. Destacam na pesquisa sobre tais experiências

instituintes, alguns aspectos que consideram indicativos instigantes, tais como: O processo

escolar mantém os professores permanentemente em equipes de trabalho, que discutem e

decidem sobre questões que vão desde a enturmação dos estudantes até as habilidades e

conhecimentos necessários para cada faixa etária, organizando-as em ciclos em

correspondência às fases da vida. Quebra-se a noção de série e de turmas homogeneizadas. Os

interesses em comum são aglutinadores das diferenças e garantem uma coesão capaz de

sustentar a organicidade dos ciclos. Há a noção de transdisciplinaridade, indagando acerca da constituição

É decisivo o número de professores por turma, na Escola Plural a proporção é de 1,5

por turma. Nas outras é diferente, depende do ciclo ou ainda está sendo definida. A ampliação

do número de professores permite a constituição de iniciativas de reforço e complementação

necessários à participação desses profissionais em atividades de formação e sua atuação em

371

formas diversificadas de pesquisa na escola, valorizando espaços de discussão e

compartilhamento de experiências no espaço escolar. A participação em seminários, cursos de

formação, aperfeiçoamento e as reflexões elaboradas conjuntamente só são possíveis sem

prejuízo das aulas, graças a esse dimensionamento do corpo docente.

Afirmam, ainda, que precisamos formar professores no exercício de religar os saberes,

interligar os saberes da escola com os saberes da vida, como ferramentas de construção de

solidariedades e de encorajamento de processos de singularização, que não podem se deslocar

do empenho para superar desigualdades de todas as ordens.

A pesquisa comprova que embora essa reinvenção da escola já sinalize seus

movimentos de concretização, ela não prescinde de movimentos situados tanto no campo

popular e educacional, com suas conjugações com os espaços de gestão oficial, como de

avanços científicos e tecnológicos que abram possibilidades de ampliar conceitos e práticas,

forjando novos discursos e ações.

Sublinham, também, o aspecto da participação dos professores nos rumos da escola

para seu aperfeiçoamento contínuo. Mesmo assim as licenças médicas não parecem menores

do que antes do desenvolvimento dessas experiências.

O incentivo da participação dos familiares e da própria comunidade nos rumos da

escola é destacado. Como exemplo, citam o orçamento participativo. Ressalta-se, ainda, a

busca de aproximação da escola com a vida e a vida social. Concepções permeiam as práticas

e são citadas como o respeito a vida, à diversidade cultural, à produção popular, a

aproximação da escola com as famílias dos estudantes e com a própria comunidade,

revigorando os processos de aprendizagem social ao desenvolverem saberes escolares

conciliados com os desafios da vida.

Fortalecimento do protagonismo dos docentes na elaboração dos programas, no

processo de organização do trabalho, na atenção compartilhada no cotidiano escolar, lendo

suas questões e suas indicações de encaminhamento de problemas, das decisões pedagógicas

colegiadas e, principalmente, da criação de oportunidades para formação permanente. Os

processos democráticos na escola se expressam nas formas da gestão escolar, conectadas às

concepções e práticas epistemológicas que tendem a pluralizar os saberes – relacionando-os à

memória das lutas, aos projetos e necessidades populares – e no incremento do diálogo e do

debate dos conflitos que irrompem a escola.

Indicam um problema social importante, o da evasão de horizontes de futuro. Nesse

sentido, reconhecem a urgência em captar os mecanismos sociais que “inocentemente” se

instalam e permanecem como se fossem os mais naturais e familiares possíveis, que subtraem

372

os direitos das classes populares. Com a expansão desses processos que minam nossa

capacidade de diferir, criar, também se expande um mundo, cada vez mais desenraizado, sem

vínculos afetivos com a vida, com a sociedade, com a humanidade. Nessa perspectiva, os

sujeitos são empurrados para um cortejo de espetáculos e triunfos, cujo preço é a rendição

progressiva aos processos de reificação do mercado.

Encerram o artigo ressaltando a necessidade de valorizar o movimento instituinte e as

pistas que estes nos trazem para construção de uma educação includente.

4. 6. Parte II: A Voz dos Parceiros, anos 2000.

Neste item, incluem-se as narrativas dos professores Maria de Jesus Gaspar Leite, Ney

Luiz Teixeira de Almeida e Ramofly Bicalho dos Santos.

4.6.1 A voz dos parceiros, anos 2000:

MARIA DE JESUS GASPAR LEITE SONHANDO COM UM FUTURO PARA A ESCOLA: DE

MÃOS DADAS COM CÉLIA.

Maria de Jesus Gaspar Leite ocupa atualmente o cargo de secretária adjunta da

Secretaria de Educação do Estado do Maranhão. O contato de Maria de Jesus com a

professora Célia se deu quando esta prestou consultoria a Secretaria Municipal do Maranhão,

no programa “Escola Sonhos do Futuro” implementado no período de 2001 a 2004. Maria de

Jesus ocupava a época o cargo de secretária adjunta da Secretaria Municipal de Educação do

Estado do Maranhão, depois assumindo a diretoria do Centro de Formação de Professores,

também no município. Ela comenta que desde então “tenho realizado leituras sobre suas

publicações e a tenho como referência na área de formação docente e pesquisa”. (Maria de

Jesus Gaspar Leite, 2007).

Comenta também sobre os objetivos do projeto mencionado:

O Projeto “Escola Sonhos do Futuro”, desenvolvido junto às escolas públicas municipais de São Luís, constitui-se em um programa de formação continuada de professores, cuja proposta é reinventar a escola. Consiste em utilizar a pesquisa intervenção, criando uma comunidade ampliada de pesquisa cujo objetivo maior é a apropriação da escola por seus profissionais de forma mais competente , garantindo aos educandos a construção do

373

conhecimento, instrumentalizando-os para a convivência em sociedade de forma mais digna e participativa. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

Maria de Jesus destaca o entusiasmo de Célia e sua luta permanente por uma educação

pública de qualidade. Enfatiza, também, a valorização dos profissionais da escola e a

necessidade de que estes se apropriem da mesma, com autonomia e confiança em sua própria

potência.

A profa. Célia passa um entusiasmo muito grande para seus alunos, no sentido de estimular de forma crescente a luta por uma escola pública que utiliza a pesquisa intervenção como forma de apropriação dessa escola por seus profissionais, na busca de garantir a aprendizagem de todos. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

Sublinha, também, o que denomina de “simplicidade e humildade” de Célia,

reconhecendo que, mesmo com uma cultura expressiva, ela não se utiliza de seus

conhecimentos para se distanciar do outro, julgando-se superior. Ao contrário, coloca-se

sempre muito aberta, interessada e próxima, reconhecendo os múltiplos saberes daqueles com

os quais se relaciona.

Ela se destaca pela sua simplicidade, humildade e acolhimento de todos. A sua excepcional competência e cultura não são motivos de superioridade. O caráter humano e científico com que conduz a sua prática educacional representa motivo de aproximação e de inclusão de todos os educandos na garantia de proporcionar a construção do conhecimento.

A mestra que, nos últimos tempos, tem influenciado significativamente a minha vida profissional, de forma a me tornar mais reflexiva e convicta que o caminho para a escola competente é reinventá-la com seus profissionais e alunos (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

Cita algumas das leituras que tem realizado da produção escrita de Célia, tais como

"Escolas Aprendentes e Autonomia Pedagógica”; “Medos e Violências nas Escolas: E a

Educação com isso?”; “Bons Espelhos custam caro”; “Literacia Poética e Educação Política”

e “A Escola e seus profissionais: tradições e contradições”. Sobre o estilo de escrita de Célia

comenta:

A professora Célia tem um estilo de se pronunciar que encanta o leitor. A forma contundente, real e ao mesmo tempo poética com que aborda a problemática educacional, revela, na maioria de seus textos, a necessidade de tratar a educação como um movimento instituinte que busca criar

374

alternativas de alimentar esperanças, reinventando o futuro ao mesmo tempo em que trabalha o presente potencializando as possibilidades e capacidades da escola.

Estudar Célia é estudar história, filosofia, dialética. É entender o hoje passeando pelo passado, bastante perceptível no texto “Escola e seus Profissionais”. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

A dimensão da esperança é reconhecida em sua centralidade na obra de Célia, bem

como sua forma poética de escrever. Identifica também o mergulho na história, uma constante

nos escritos, que busca nas raízes de nossa vida cultural o entendimento da atualidade.

Maria de Jesus comenta sobre o lançamento do livro “Compartilhando o Mundo com

Paulo Freire” realizado na Universidade Federal do Maranhão. Chamou-lhe atenção o pedido

de Célia, que incluía a escola pública de Ensino Fundamental, integrando assim produção

acadêmica e escolar, numa fecunda e desejada proximidade.

Me lembro do lançamento do livro “Compartilhando o Mundo com Paulo Freire”, aqui em São Luís, cujo discurso dela encantou a todos. Aconteceu na sede da Reitoria da Universidade Federal do Maranhão e, a pedido dela, transformou-se em uma cerimônia não só de autógrafos, mas em um espaço em que a escola pública de Ensino Fundamental se fez representar por alunos e professores que apresentaram um belo número artístico da cultura popular maranhense. A mestra não só fala sobre a escola, mas oportuniza possibilidades para que a mesma revele a sua produção, cultura e arte. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

Maria de Jesus destaca que um dos aspectos expressivos da contribuição de Célia foi

sua visão da importância de ter a escola como foco central em uma pesquisa intervenção,

escutando-a, valorizando-a, compreendendo suas demandas reais.

A presença da Profa. Célia foi de grande contribuição, pois ela fundamentou o nosso entendimento de que um programa de formação só tem significado quando a escola é o foco principal e a pesquisa intervenção parece ser a melhor estratégia para a construção do conhecimento. Com ela, compreendemos que pesquisa não se faz só na academia e que a escola básica é uma grande fonte produtora de conhecimento. (Maria de Jesus Gaspar Leite, entrevista 2007)

Simplicidade aliada à erudição, conhecimento compartilhado com generosidade;

valorização dos profissionais da escola e confiança em suas potências; história e memória

como caminhos de apropriação e construção do presente, esses são alguns dos aspectos

375

destacados por Maria de Jesus, que reconhece a contribuição de tais perspectivas para a

educação de um modo geral e, em especial, para a do Maranhão.

4.6.2 A voz dos parceiros:

Ney Luiz - lembranças de um encontro que trouxe mudanças.

Alguma poesia que te lembre Célia...(entrevistadora)

Célia é uma poesia que precisa ser escrita, e ela seria muito bem escrita se dois poetas pudessem escrever juntos. Ela é uma mistura de Mario Quintana com Fernando Pessoa, se os dois se reunissem daria uma boa poesia. Ela é uma poesia viva e a melhor imagem que eu tenho dela é essa conversa no telefone, ela falando do acometimento dela, do acidente, de uma forma poética, sobre a vida, sobre a morte, sobre as esperanças, eu fiquei impressionado. (Ney Luiz)

Inicio essa narrativa com a associação que Ney fez sobre sua relação com Célia,

evocando o sentimento de afeição que se instalou entre eles muito imediatamente. Como esses

sentimentos se constituem? O que exatamente – palavra que realmente não se aplica no que

tange aos sentimentos, mas que deixo aqui para provocar reflexões – nos aproxima ou

distancia das pessoas? Afinidades? Bem estar? Acolhimento mútuo? Proximidade de idéias?

Nem sempre... Trago o mote do filme citado por Ney para refletir sobre esse impacto inicial

que temos do outro e que provocamos no outro. No filme, os personagens, que se conhecem

apenas por cartas, aonde compartilham a sensibilidade que a literatura provoca em ambos, traz

personalidades muito distintas. Frank, um londrino, homem sóbrio e sério; Helen, americana,

uma mulher mais irreverente, espirituosa. Diferentes em suas formas de expressão, irmanados

na sensibilidade à literatura. Não seriam essas sensibilidades compartilhadas, em que as

diferenças não nos separam e dicotomizam, unidades de aproximação e afeto? É dessa afeição

que se dá logo de início que Ney nos fala ao se referir ao modo como conheceu Célia

Linhares. Vamos a ela.

Para Ney, conhecer Célia foi retomar uma oportunidade que escapou de suas mãos

quando fez seu mestrado em Educação na UFF, no período de 92 a 96 quando, por limitações

376

de horário, não pode aproveitar o curso na UFF para aproximar-se dos professores que

desejava conhecer. Professor assistente do Departamento de Fundamentos Teórico-Práticos

do Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da UERJ e do Curso de Serviço Social da

Universidade Castelo Branco, Ney ingressou no doutorado em Educação pela UFF em 2007.

Formado em Serviço Social e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

(...) Eu tenho uma formação em Serviço Social e fiz o meu mestrado na UFF no período de 92 a 96, fui orientado pela professora Maria Cristina Leal. Na época eu não pude fazer todas as disciplinas que eram do meu interesse porque eu estava na vice-direção da faculdade de serviço social da UERJ, então eu só podia cursar as disciplinas que coincidiam com a minha liberação de horários, então eu fiz um mestrado muito capenga, eu não conheci os principais professores da época. Os professores que eu queria ter contato como a Célia e o Gaudêncio Frigotto180 eu não tive oportunidade naquela ocasião. Então eu fiquei com um grupo muito restrito de formação, muitas disciplinas de psicologia da educação que não tinha nada a ver com o que eu queria fazer. A ênfase era muito maior para área da Educação infantil que não era meu campo de atuação, minha discussão era sobre a universidade. (Ney Luiz, entrevista em 2007)

Foi o contato com a professora Maria Cristina Leal181, por meio de participação

conjunta em uma pesquisa (à época ela era professora visitante na UERJ), o que aproximou

Ney da professora Célia. Maria Cristina Leal, nos conta Ney, fazia um trabalho de assessoria

através do Instituto Paulo Freire com Célia Linhares em Nova Iguaçu.

Foi ela, Maria Cristina Leal, quem me fez a referência à Célia quando pensei em fazer o doutorado. Ela achava que a pessoa mais indicada para me orientar era a professora Célia Linhares por ela fazer essa discussão das experiências instituintes em educação e que tinha uma interface com outros campos de atuação profissional. Antes de fazer o contato com a Célia eu entrei no site do Aleph eu vi que de fato as publicações, os profissionais que estavam participando tinham formações diferenciadas, e me senti mais próximo dessa temática. Eu não tinha muita noção do significado desse

180 Gaudêncio Frigotto, formado em filosofia e pedagogia no Rio Grande do Sul, é um dos expressivos educadores contemporâneos que tem discutido extensamente as relações entre trabalho, educação e sociedade. Crítico ferrenho das políticas neoliberais. É professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 181 Maria Cristina Leal é doutora em Educação Brasileira (UFRJ) e Professora titular de Sociologia da Educação (aposentada da UFF).

377

conceito (movimento instituinte), mas me interessei pelo fato de ela lidar com o campo da educação não de forma restrita, vinculado exclusivamente a atuação de professores, mas também de outros profissionais. Então li um texto dela organizado no livro de Ivani Fazenda sobre interdisciplinaridade, fui lendo a produção da Célia sobre a formação de professores, o próprio livro que ela organizou com Maria Cristina Leal da crítica a razão hegemônica, e comecei a me familiarizar com as idéias dela e gostei muito, achei que seria bem acolhido em termos do meu interesse temático. (Ney Luiz, entrevista em 2007)

É interessante acompanhar esse interesse que mobilizou Ney. Talvez esse seja um dos

poucos entrevistados que não conheceu Célia primeiro pessoalmente, ou impactou-se com seu

discurso em alguma palestra. Foi seu conhecimento via texto escrito – de seu grupo de

pesquisa (Aleph) e de artigos e produções coletivas – que o aproximou de Célia. É, portanto,

um vínculo que inicia pela afinidade de pensamentos e o reconhecimento de que Célia parecia

estar aberta a dialogar com perspectivas diferenciadas, pessoas com formações e enfoques

distintos. Célia-autora e pesquisadora convida Ney a uma aproximação. O contato pessoal,

que ocorreria um pouco mais a frente, traria novas impressões sobre Célia e a parceria que se

iniciava:

(...) Em 2005, foi quando eu a conheci de fato, tive um primeiro encontro. Ela estava indo para uma reunião, não podia me dar tanta atenção. Em 3, 4 minutos que ela me ouviu eu tive a impressão que ela entendia melhor do meu projeto do que eu mesmo. Ela me deu algumas sinalizações acerca do que ela vinha estudando, de Benjamin, de Paulo Freire, de Maturana e um pouco das questões que ela achava que um projeto deveria conter e eu sai dali para escrever o projeto. Agendei com ela aquele encontro, e aquele encontro que muda a vida da gente. Foi uma passagem marcante da nossa relação porque eu tive impressão que ela já me conhecia há muito tempo e tinha uma clareza muito grande sobre o que eu queria, e eu não cheguei com o projeto escrito, cheguei com idéias. E as orientações dela tem validade até hoje. (Ney Luiz, entrevista em 2007)

Essa capacidade de escuta de Célia, reconhecida por Ney, dá a dimensão da abertura

para o outro e da potente reflexão que ela se dispõe a fazer a partir do que é apresentado a ela.

Também eu como pesquisadora experimentei momentos como esse que Ney relata, em que

expus questões para Célia e recebi comentários e observações cuidadosos, que denotavam que

ela havia se comprometido com a questão que havia sido apresentada a ela. Mas uma vez,

surge a imagem do mestre ignorante de Ranciére (2005) que faz da escuta do aprendiz um

exercício intelectual de valorização e reconhecimento do outro. Dimensão educativa

fundamental, que qualifica e fortalece a autoconfiança na capacidade de pensar e criar do

aprendiz. Como é comum que, antes mesmo de ouvirmos o que o outro tem a falar, nos

378

arvoremos a fazer comentários, com o intuito de parecermos inteligentes, mas sabedores. Por

vezes, comentários que pouco ou nada dialogam com o que o outro de fato disse. Penso que a

escuta é um exercício de abertura ao outro dos mais fecundos e generosos.

Ney nos relata novas impressões que foi tendo de Célia, a partir do estreitamento de

seu contato com ela.

Quando eu passei no processo seletivo e eu fui ter o contato com ela, aí é que eu fui de fato conhecer a Célia e aí tive a oportunidade de conhecer essa pessoa tão especial que ela é. Eu fiquei com uma impressão muito forte a respeito do jeito com que ela aborda as questões e o jeito que ela fala. A impressão que eu tenho é que ela está o tempo todo fazendo uma palestra, cativando o público e aquilo me chamou a atenção, foi diferente, eu venho de uma área em que o discurso é muito rígido, muito duro, muito hermético, e ela ao contrário, tem um discurso cheio de poesia, entremeado de uma bagagem filosófica densa. (Ney Luiz, entrevista em 2007)

O discurso científico foi e é muito marcado pela idéia de que para ser legítimo precisa

cercar-se de uma certa rigidez e dureza, em que não cabem aspectos de ordem afetiva,

poética. Tais dimensões são associadas ao erro, a desordem, a irracionalidade. Fruto da cisão

entre razão e emoção, ciência e poesia, corpo e mente típicas da modernidade, a que Célia

critica em muitos de seus artigos. Aqui, vale reconhecer que para além da crítica “por dentro”

da própria produção científica com relação à ciência, Célia assume metodologicamente a

poesia e a arte como dimensões da formação. Mais do que tratar abertamente dessa

metodologia – o que de fato faz em trechos de alguns de seus artigos – ela assume como

forma de discurso tal perspectiva, na forma como fala, escreve, escuta e pensa sua prática

pedagógica.

Uma passagem marcante do ano de 2007 foi o acidente que Célia sofreu. Estava

entrando em um táxi e quando ainda estava colocando uma perna para dentro do veículo, o

motorista deu a partida, arrastando Célia por um pequeno trecho. Como conseqüência,

fraturou perna e bacia, ficando convalescente durante um bom período do ano. Ney relata a

forte impressão que causou nele a forma como Célia lidou com essa situação:

(...) Até o dia que ela sofreu o acidente no ano passado e eu não pude estar presente numa orientação e eu a telefonei e ela falava comigo do acidente pelo telefone, assim como se estivesse recitando uma poesia sobre a vida e sobre a morte para mim. Eu desliguei o telefone e fui falar com minha esposa, fiquei impressionado com aquilo, foi meu segundo contato com ela, foi bem no começo, teve o acidente, teve a cirurgia... E eu não tive contato com ela. Fiquei impactado com a situação e com a forma como ela

379

apresentou a situação, fui convivendo mais com ela e fui entendendo que o jeito de ela falar, de lidar com as questões da orientação, com as questões educacionais, com as questões relativas à realidade hoje, não se diferenciavam da forma escrita para forma falada. Ela é integral nesse sentido, isso foi um grande encantamento de minha parte, me apaixonei muito por esse jeito, estranhei no início, mas comecei a prestar atenção. (Ney Luiz, entrevista em 2007)

Ney percebe em Célia a integração entre vida e obra, já mencionada por outros tantos

entrevistados. Usa a palavra “integral”, cujo sentido traduz essa idéia muito bem, trazendo o

sentido de inteiro, inteireza. Sobre a estilística de sua escrita, podemos evocar Nietzsche,

autor referência para Célia, que em “Do ler e escrever” 182, diz: “escreve com sangue; e

aprenderás que o sangue é espírito”.

A idéia de uma escrita com sangue, isto é, com o espírito, pode ser entendida como

um estar por inteiro, uma conciliação entre as palavras e a vida – entre corpo e alma.

Nietzsche parece afirmar que escrever com sangue é viver cada palavra. Essa relação vital

entre escrita e vida emana da obra de Célia.

Ney comenta que se sentiu acolhido por Célia, escutado e valorizado. Tal

receptividade influenciou sua forma de atuar como docente. Passar pela experiência, como

estudante de doutorado, e reconhecer o impacto da valorização de sua própria voz por Célia,

favoreceu a que ele repensasse aspectos de sua docência.

Fui muito bem recebido por ela, uma pessoa que valoriza – acho que isso é um componente do pensamento pedagógico dela que é valorizar o interlocutor, o sujeito com quem se dialoga, não importa que seja um professor universitário, como é o meu caso, mas que ela deve ter com todos os alunos que ela teve contato, com todos os professores do ensino fundamental com os quais ela se relaciona e trabalha, com os netos dela... Ela vive contando histórias fantásticas da relação dela com os netos, então a pedagogia está entranhada na vida, na alma, na fala da Célia e acho que isso é ímpar para quem vivencia essa experiência. Eu compartilho muito disso com meus alunos do Serviço Social, com a minha família, enfatizando a importância para mim da oportunidade de conhecer uma pessoa que não se esfacela nesse cotidiano todo recortado que nós temos, onde a gente em casa é de um jeito, na escola é de outro, no trabalho é de outro. Acho que ela

182 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

380

permeia isso com uma certa unicidade que é muito característica de pessoas com uma coerência de vida, coerência política e com a bagagem que ela tem. (Ney Luiz, entrevista, 2007)

A respeito do processo de orientação, Ney comenta as referências mais fortes da

professora e seu estilo de acompanhar a produção do orientando:

Eu percebo que Célia tem duas grandes referências teóricas, políticas, filosóficas na formação dela. Uma é Benjamin e outra Paulo Freire. Não posso dizer que são referências de há muito tempo mas parecem as mais marcantes hoje. Ela tem essas influências como se fossem encontros e não como apropriações, acho que ela encontrou nesses autores possibilidade de experimentar a vida profissional, a vida afetiva, a vida familiar a partir de alguns conceitos que esses eles trabalham e a orientação dela é isso. Então ela consegue com muita facilidade, com muita sensibilidade, trazer situações que são do cotidiano, por exemplo, as histórias que ela conta da relação com os netos dela. Como temos orientação sempre as segundas, sempre tem uma história. E quando ela conta aquelas histórias, eu lembro da relação com meus filhos, fico impressionado com a sensibilidade. Ela não menciona um conceito, mas estão todos presentes lá, naquela história, naquela narrativa: o significado da infância, o processo de socialibilidade, a questão inter-geracional, então tem uma série de elementos que são de natureza teórica e que é possível perceber na fala dela embora ela não precise enunciar e ao mesmo tempo, cada vez que ela discute conceitualmente, trabalha um texto, dos autores que agente discute, ela começa a abrir, a descortinar possibilidades daquele conceito na realidade.

Em outros trechos desse trabalho afirmo, no que diz respeito aos textos de Célia, que

ela se “autoriza” em sua escrita a fazer conexões entre diversos conceitos que lhe parecem

afins sem necessariamente fazer um caminho que me parece muito comum nas produções

acadêmicas (e até mesmo, esperado), em que se apresenta alguma teoria para depois refletir

sobre ela. Essa desenvoltura para lidar com a teoria, relacionando-a com a vida, evidencia a

concepção de conhecimento que a anima. Um arcabouço que tem como função ampliar nosso

entendimento da vida e não ser posto em jaulas de ouro. Não é conhecimento para ser

reverenciado como verdade intocável. A aproximação entre vida e teoria, conhecimento e

sabedoria, ciência e vida são perspectivas que sua prática evidencia. Ney nos conta mais sobre

esse ponto:

Isso vai nos envolvendo, nos colocando próximos daquelas referências teóricas sem ser de uma maneira mecanicista, sem ser no sentido fechado, de uma identificação do conceito com a realidade, mas do cotejamento da realidade pelo conceito, como se fosse uma provocação à reflexão. E isso é muito interessante, porque desperta nos participantes do grupo o resgate de experiências que possam ser acompanhadas, apreendidas a partir daquelas

381

referências teóricas. Às vezes o conceito não está nem assimilado por nós, isso leva um tempo. Eu, por exemplo, venho de uma outra área, nunca tinha estudado o Benjamin, estou há um ano e meio estudando-o, hoje que começo a entender. Agora é que estou assimilando, porque esse processo não se esgota.

Acho que isso é que ela revela para gente quando ela fala dos conceitos abertos, um conceito não enclausura a realidade, ele é instigado pela própria dinâmica da realidade. Então o processo da orientação é muito rico (agora ele esta estudando um curso com ela que aborda os autores Benjamin e “Giorgio Agamben”). Interessante isso, ela tem esse aspecto que é muito caro a uma tradição intelectual a qual eu me filio, que é a tradição marxista, que é você poder não fragmentar a relação ente a dinâmica da sociedade e as suas expressões e construções do cotidiano.

Célia se autoriza a pinçar com desenvoltura e liberdade os conceitos que elege para

dialogar. Nesse sentido, é mesmo como “um encontro”, como nos diz Ney. Um encontro com

autores, idéias, mas que é vivido com porosidade, com proximidade. O autor não é colocado

no pedestal, mas sim convidado a passear pelos seus textos. Isso se evidencia, penso eu, num

estilo que menciona aspectos das teorias de alguns autores para refletir sobre questões

diversas, sem a preocupação em apresentar primeiramente e exaustivamente183 a concepção

do referido autor.

Outro aspecto ressaltado por Ney, diz respeito ao compromisso de Célia com as

questões da escola, seu engajamento em projetos. Essa dimensão nos integra a ação de Célia

num sentido mais amplo, em que sua forma poética de agir revela-se também política e

filosófica.

Ney destaca a sensibilidade de Célia para perceber aspectos da realidade mais ampla

que ainda não têm uma difusão. Não apenas com relação a novos autores e pensamentos, mas

também a experiências pouco valorizadas, que ela traz para a luz. Sensibilidade que existe em

função de um estofo intelectual, da formação de Célia. “Ela faz isso poeticamente e faz isso

183 Acredito que os textos que, diferentemente dos de Célia, debruçam-se sobre os conceitos de alguns autores, com o intuito de explicitá-los mais detidamente, são também muito importantes. Não se trata de polarizar preferências e importâncias: “este é melhor, aquele não tanto...”. Defendo a diversidade de estilos, por provocarem igualmente, diversas leituras. É fundamental travarmos contato de forma mais estreita com o pensamento dos teóricos que desejamos conhecer. Porém, acredito que estilos diferentes de textos trazem perspectivas igualmente diferentes. Nesse sentido, o estilo Celiano, convida a fazer pontes, instigar curiosidades, levantar “a ponta da palavra”. Um estilo que provoca reflexões e abre um leque de possibilidades, aguçando desejos de aproximação com campos por vezes não percorridos, das artes, das ciências e outras mais.

382

filosófica e politicamente. Eu falo politicamente porque ela não interpreta apenas, ela age, ela

dá assessorias, ela participa, constrói”, nos diz Ney.

A própria pesquisa que ela desenvolve sobre o campo das experiências instituintes é uma bela intervenção no sentido de buscar, através da sua inserção acadêmica, uma articulação entre experiências que estão em regiões muito distantes no país, mas que expressam um movimento que só a sensibilidade intelectual dela ou de pessoas próximas ao que ela faz são capazes de identificar. Normalmente a gente estuda aquilo que está mais visível na sociedade, quando o movimento social já ganhou maior notabilidade, maior expressão, e ela percebe isso ainda quando está germinando. Esse é o olhar especial que ela tem e que é partilhado nessas experiências de orientação coletiva. Ela tem uma capacidade de ao mesmo tempo dar conta disso, mostrando para gente como é o processo dela, sem ter uma conotação de exemplo, mas ao mesmo tempo ir nos envolvendo e abrindo a possibilidade e a capacidade de a gente fazer o mesmo movimento. Hoje eu me percebo fazendo isso e acho que tem muito a ver com essa convivência com a Célia, talvez eu conseguisse fazer isso daqui há alguns anos por outros caminhos, mas com ela foi mais instigante. Foi difícil, mas também está sendo mais profundo. (Ney Luiz, entrevista, 2007)

Ney reconhece em Célia aspectos de um referencial marxista, pois Célia preocupa-se

com a relação de classes e as tensões entre poderes ai engendradas. No entanto, reconhece que

não é para ela um referencial fechado, ortodoxo.

Ressalta a capacidade de Célia em fazer uma análise que não fragmenta a relação

entre a dinâmica da sociedade e as suas expressões e construções do cotidiano, evidente em

sua ação docente e seu discurso. Ney percebe que Célia tem uma perspectiva plural, que não

pode ser confundida, afirma, com ecletismo. Identifica também uma tendência a filiação ao

marxismo que se fecha a outras perspectivas e vê Célia como uma crítica enfática aos

dogmatismos enclausurantes, a esse respeito comenta:

Quando falamos da filiação ao marxismo é comum pensarmos num marxismo muito fechado. Isso não tem nada a ver com Célia. Ela dialoga com campos mais abertos, a proximidade que ela tem com esse campo tem a ver com uma perspectiva crítica da sociedade, com uma proposta de mudança, de transformação social e com todas as possibilidades abertas por esse campo em termos de vislumbrar possibilidades novas de compreensão da dinâmica da sociedade. Porém tudo o que tem a ver com essa tradição, que tem a ver com essa tradição que encerra alguma perspectiva enclausuramento, de fechamento, de dogmatismo, ela se afasta. Ela tem uma proximidade, mas tem uma crítica. Ela trilha um caminho que eu identifico que poucos intelectuais no Brasil fazem. Eu identifico no Leandro Konder, no Michel Lowy, que é um caminho de ter uma fundamentação, um enraizamento numa perspectiva crítica mas estar extremamente aberto ao

383

diálogo com outras perspectivas. Então quando você lê um texto de Konder e Lowy sobre diferentes autores, eles não fazem isso com desdém, ainda que não seja do campo do conhecimento deles, eles se interessam. Isso é rico na Célia e é difícil na minha área. No campo da educação e trabalho é onde tem a ortodoxia marxista. Parece que ler algum autor fora daquele leque significa que você está vendendo seu pensamento, traindo uma filiação. Ela faz isso sem representar uma traição e nem uma perspectiva eclética. Ela tem uma perspectiva plural, que é aberta, que é democrática e que é típica de um grande intelectual. A influência que ela tem no campo pedagógico é muito por essa perspectiva, ela resgata para o campo da educação duas questões que eu vejo que estão continuamente sendo distanciadas que é sua dimensão filosófica e sua dimensão política.

Ney reconhece que Célia compreende a educação de forma ampliada, que, embora

focalizada na escola básica e na formação de professores, envolve a dimensão mais ampla da

própria vida, “transborda”, reportando ao um termo que Célia tanto gosta. Destaca também a

perspectiva política que abrange vida e obra de Célia.

Célia traz para a discussão do que é a educação um forte componente filosófico, do que é pensar a educação não no seu sentido prático, pragmático, da construção das experiências cotidianas como uma profissionalização mais restrita, com uma ênfase muito técnica. Ela alarga isso, ela “transborda” – um termo que ela gosta muito – para além da escola, para além das disciplinas. Para a vida, para a família. Isso é uma coisa que tenho aprendido e que tem reforçado muito uma concepção de educação que eu tenho. Outra questão cara a ela é o componente político. Que não importa que prática seja essa, ela tem uma conotação política que precisa ser explicitada, conhecida, debatida, instigada. Essas são duas contribuições que eu vejo que ela traz.

Ney ressalta que identifica que as questões caras à Célia, como as mencionadas no

depoimento acima, não se encontram presentes no campo da educação. Ele se ressente de uma

certa fragmentação entre os conhecimentos, de uma leitura que estabeleça um diálogo mais

interdisciplinar, algo que ele reconhece na produção de Célia.

Vejo que as questões de Célia são preocupações que não estão exatamente na ordem do dia na produção intelectual na área da educação. Uma coisa que estranho na área de educação é a fragmentação dos campos do conhecimento. Como eu tenho uma marca, uma trajetória muito forte no Serviço Social que é a relação do Serviço Social com a Educação, muitos alunos do Brasil inteiro me pedem para indicar uma boa publicação na área de educação. Tenho indicado Célia Linhares pois é para mim a que mais se aproxima do que eles estão querendo. Por quê? Porque o assistente social atua em todos os níveis da área e a obra de Célia trava um diálogo mais amplo.

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Perguntei a Ney sobre a perda que Célia viveu de seu irmão e como ele via essa

experiência presente em sua obra e vida.

Ela é uma pessoa, que por conta dessa formação bastante filosófica e dessas experiências que ela reúne de vida, lida de uma maneira não ocidentalizada com essa relação da vida e da morte. Isso é diferente no nosso meio. A temática da morte e da finitude humana de vez em quando comparece nas nossas discussões, nos nossos debates. Até pela própria característica que envolveu, por exemplo, a morte de Benjamin, ela traz isso de uma forma muito interessante.

Na seqüência de sua observação sobre a forma como percebe Célia lidar com a

questão da morte, Ney retoma o conceito de experiência instituinte, a reflexão que tal conceito

traz e considera essa, a experiência instituinte, uma das referências mais marcantes do

pensamento pedagógico de Célia para ele:

(...) Eu tenho uma referência forte na minha experiência com a Célia por conta dessa marca das experiências instituintes. Ela fala que instituinte não é novo, vivemos numa sociedade que tem um forte apelo para que tudo seja novo, que é a necessidade de você gerar novos artefatos de consumo, que só podemos consumir mais se as coisas trouxerem alguma novidade. Ela fala assim com muita propriedade, muito sentimento da vida dela, dos seus 70 anos, sobre parar de trabalhar, continuar trabalhando, continuar trabalhando sob uma lógica produtivista... mas ao mesmo tempo não se vê também totalmente distante do trabalho. Esse momento de vida dela me fez pensar a velhice – ela não gosta dessa palavra, ela sempre fala que é muito jovem, para uma instituinte ela tem uma contradição ai (risos) – e eu comecei a assumir isso, como é bom envelhecer vendo a Célia. Envelhecer mesmo, saber que envelhecer é constituir experiência, é valorizar o que você construiu e eu falo para os meus alunos hoje, que o que eu mais gosto na minha vida é saber que eu estou envelhecendo, que eu estou vivendo, e isso é um aprendizado muito forte com ela. É lógico que se eu puder chegar aos 70 com a capacidade dela, fantástico! Mas eu percebo assim que eu estou redescobrindo.

É importante ressaltar que em 2007 Célia esteve às voltas com o processo de

aposentadoria. Em nossas primeiras conversas mais extensas, esse tema mobilizava sua

atenção e percebi nela a dificuldade que essa perspectiva instalava em seu horizonte. Ney

captou essa questão, talvez até por ter sido tematizada nos encontros de doutorado e de

orientação. Hoje, a medida que fomos nos envolvendo e que tantas outras demandas surgiram,

inclusive o acidente de que foi vítima no início do ano de 2007, percebo que não é mais esse

tema – o de final de um ciclo e apreensão com o que virá – que aparece com força em suas

preocupações. De alguma forma, talvez essa tese tenha modestamente contribuído, assim

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como tantas outras novidades que têm surgido em sua vida nesse novo milênio, como mais

fonte de movimento, de nascimento, de olhar para trás numa perspectiva de ressignificar o

passado, exercício que ela tem aceitado com alegria e companheirismo. O apelo do

movimento tem impactado mais e incentivado seu “frescor adolescente” (Waldeck).

Ney comentou que a experiência com Célia vinha influenciando na sua forma de ser

professor. Hoje, se vê dando um espaço maior à escuta de seus estudantes. Relata, também, o

trabalho com a terceira idade que está desenvolvendo e reconhece nele, as questões que têm

refletido em seu doutorado:

(...) Eu comecei nesse meio tempo fazer um trabalho com a terceira idade, no Serviço Social, muito bonito. Ele se orienta pela filosofia de Paulo Freire, que é também do Benjamin. Isso foi muito inspirado na experiência com a Célia. São oficinas que a gente chama de “tempo de aprender” e que são abertas para a comunidade da terceira idade, mas que não só, tem gente de 40, 50 que vai, e nós misturamos com os adolescentes. São oficinas cuja trajetória é construída a partir dos interesses que eles tenham e que então nós combinamos como vai ser. São temas como, por exemplo, o conhecimento da cidade, o lazer, o resgate da trajetória de vida. Eles produzem CDS, vídeos, cartilhas, produzem vídeo, etc. Ela já existe há dois anos e mudou de curso quando eu entrei no doutorado. Eu tenho um senhor de 80 anos que vai apresentar a oficina, pega seu papelzinho e vai ler. Eu acho bonito isso, colocar o desafio que é você estar em um espaço, o espaço de uma universidade, onde muitos não conseguiram estudar por conta de emprego, por conta da família, por conta de um machismo muito forte, e essas pessoas terem a oportunidade de produzir um olhar sobre a própria condição que eles tem hoje de velhos na sociedade, mas com uma possibilidade de reconstruir esse lugar com o qual eles estavam familiarizados. Então eles gostam de falar “eu estudo aqui, essa é a minha universidade, eu não pago para estar aqui”, está entendendo?! Isso traz um sentido pleno da educação. Quando estávamos fazendo um seminário eu pensei, puxa não vejo outra pessoa na minha frente que não Paulo Freire, que trabalhou com a Educação de Adultos. (Ney Luiz, entrevista, 2007)

4.6.3 A voz dos parceiros: Ramofly.

Um filme, uma poesia, uma música que lembre Célia:

Um filme brasileiro de que gosto muito é Olga Benário. Uma bela mulher, que enfrentou as dificuldades e impurezas de seu momento histórico, resistindo bravamente a toda e qualquer forma de violência física e simbólica. Célia, guardando as devidas proporções, também vem, em seus textos, palestras e, principalmente, atitudes, enfrentando esses projetos de educação voltados apenas para o mercado de trabalho, para a exclusão, o preconceito, a negação da diferença e a conseqüente e exagerada defesa da supremacia do neoliberalismo na sociedade contemporânea. (Ramofly Bicalho)

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Ramofly Bicalho graduou-se em 1999 em História pela UFF, fez seu mestrado em

2003 em educação na mesma universidade e concluiu recentemente, em 2007, seu doutorado

na UNICAMP. Atua na área de formação de jovens e adultos e é professor em universidades

particulares.

Conheceu Célia no mestrado de Educação da UFF, contando com a participação dela

em algumas de suas bancas. Identificou na leitura da professora sobre a obra de Freire uma

afinidade especial, reconhecendo a sua preocupação com a ética e os valores nas relações

educacionais.

As experiências vividas com a professora Célia Linhares giram em torno das questões educacionais, do seu envolvimento com as leituras de Paulo Freire e de uma proposta de educação que priorize a autonomia de educadores e educandos no processo de ensino-aprendizagem. A ética e a preocupação em lidar com essas questões, talvez tenha sido o que mais me impressionou positivamente, num mundo tão carente de valores e compromissos. (Ramofly, entrevista, 2007)

Ramofly responde a meu pedido para que relate uma passagem significativa de seu

contato com Célia. Reporta-se, então, ao momento em que ela tomou parte de sua banca.

Sublinha o cuidado com que Célia abordou os pontos frágeis de seu trabalho e se sentiu

gratificado com essa delicadeza. Bem sabemos, envoltos nesses rituais acadêmicos, que o

convite para que um professor integre a banca examinadora de nossas monografias,

dissertações e teses é cercado de alguns temores. Como esse professor intervirá? Que questões

apontará? Como nosso trabalho, árduo e feito em meio a tensões e dúvidas, será enfim

recebido e lido por um outro? Pessoalmente, já participei de inúmeras defesas de colegas (o

próprio nome já é curioso, se nos “defendemos” supõe-se que seremos atacados?!). Não raro

presenciei comentários por vezes muito rígidos, ditos de forma dura. Sentir na pele o olhar do

outro, tão necessário e tão temido, nos dá a dimensão da delicadeza envolvida na escolha de

quem estará examinando nossas produções. Sobre a experiência de ter Célia como banca

examinadora Ramofly comenta:

Jamais esquecerei a maneira coerente, delicada, responsável e solidária com que se envolveu e participou na minha banca de doutorado. Em momento algum, na sua fala, deixou de ser crítica e questionadora. O diferencial é a maneira como se posiciona. Sabe chamar a nossa atenção para os problemas de um parágrafo mal formulado e a superficialidade na implementação de conceitos, sem denegrir a nossa imagem, sem baixar a nossa auto-estima,

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sem viagens mirabolantes e deslocadas da relação teoria e prática. (Ramofly, entrevista, 2007)

A respeito do pensamento pedagógico de Célia, Ramofly destaca a presença de uma

esperança por uma escola includente, a preocupação com uma sociedade atravessada por

desigualdades e injustiças:

Vejo em Célia a intensa preocupação com a dialogicidade, os temas geradores, os círculos de cultura e a relação teoria e prática, tão bem trabalhada por Paulo Freire e, fundamentalmente, na construção de uma nova sociedade, onde as injustiças, o analfabetismo, a evasão escolar e tantos outros problemas possam definitivamente ser superados.

Penso que Célia Linhares nos permite trabalhar vários aspectos de um eficiente Projeto político-pedagógico, analisando primeiro, as urgências educacionais sob o viés do coletivo; valorizando a realidade e o cotidiano das crianças, jovens e adultos; fortalecendo a auto-estima dos envolvidos nesse processo sempre muito difícil de educar na perspectiva da autonomia e de fazer lembrar pela poesia, a história de nossas lutas pela terra e pela justiça. Célia em sua extensa produção convida, a todos nós educadores, para uma aventura em torno da aprendizagem e do ensino ético, que respeite e envolva os sujeitos em lições de prazer e esperança. Acredito que a supremacia e importância dessas sugestões e contribuições ocupam um espaço de alto nível e sustentabilidade no pensamento e na educação brasileira.

Sobre as obras escritas de Célia, Ramofly reconhece a presença forte de idéias como a

da necessária autonomia dos sujeitos; da memória como caminho de resgate da experiência e

da valorização da própria história como elemento fundamental para a construção de um

projeto educativo e da identidade cultural. Menciona os textos que teve oportunidade de ler,

destacando os aspectos que considerou essenciais.

Já tive o privilégio de ler inúmeros textos da professora Célia Linhares, dentre eles: Os Professores e a reinvenção da escola: Brasil e Espanha; Sem Terra, mas com educação; Saberes docentes – da fragmentação e da imposição à poesia e à ética; A escola e seus profissionais: Tradições e contradições; MST: um projeto de Brasil, um projeto de escola. Gosto destes textos, pois, afirmam que na construção do conhecimento, o envolvimento dialógico entre educadores e educandos é essencial, as aprendizagens múltiplas devem ser partilhadas. Aprende-se na relação de gênero estabelecida, através das memórias de sujeitos com diferentes idades, na participação e construção dos valores. Célia defende a autonomia do sujeito para falar e reivindicar, sejam quais forem os seus direitos, sendo protagonista de sua própria história, articulada aos seus conhecimentos e vivências.

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4.7 Outras vozes: depoimentos.

“Os olhos dos alunos são as mais sérias, rigorosas e generosas bancas examinadoras” Beatriz Fétizon

No início de 2006 realizei entrevistas com um grupo de dezesseis pessoas das relações

de Célia Linhares. Sendo nove orientandos ou ex-orientandos de Mestrado, três de

Doutorado, uma da graduação em Pedagogia, uma da Secretaria de Educação do Maranhão,

uma do grupo de pesquisa ALEPH e uma dos seus tempos de estudante universitária.

As entrevistas foram realizadas por escrito e tinham como disparador um conjunto de

questões que elaborei, a saber:

1) Qual foi (ou é) o seu vínculo com a professora Célia Linhares? Como ele aconteceu

(você a procurou de modo especial ou a conheceu já durante o curso de

graduação/mestrado/doutorado ou outro espaço ?; 2) A partir de seu contato com a prof. CL

destaque quais os aspectos mais chamavam sua atenção na forma como ela estabelecia relação

com seus alunos/orientandos/parceiros? Quais as características que se sobressaíam no modo

como ela mobilizava o grupo, lecionava, orientava?; 3) Se você pudesse definir a presença de

CL em sua vida, como o faria?; 4) Com quais textos da prof. CL travou contato? Comente sua

impressão sobre as idéias da autora que aparecem de forma mais recorrente em seus textos.

Comente também o estilo de seus textos ; 5) De modo mais imediato, quando você lembra na

prof. CL, qual imagem poderia associar a ela? (tente não racionalizar muito a imagem, deixe

que ela venha a tona e me diga qual a primeira imagem que emerge); 6) Relate alguma

passagem marcante/interessante que você viveu com a prof. CL; 7) Relate algo sobre o

projeto no qual você teve a oportunidade de trabalhar com ela, destacando a presença dela no

mesmo.

Os depoimentos revelaram preciosas experiências e impressões vividas entre os

entrevistados e Célia Linhares e lamentamos não incluí-los na integra no anexo desse

trabalho. Nesse momento, interessa-nos destacar delas aspectos relacionados ao que

consideramos ser o núcleo do pensamento pedagógico de Célia Linhares, num exercício que

vai nos conduzindo ao fechamento dessa tese. Para tanto, estabelecemos cinco temas

recorrentes em volta dos quais gravitaram os depoimentos, são eles: Ética; Da Mestra; Da

narrativa poética e da Palavra; da humanização e da solidariedade; do pensamento complexo.

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Organizaremos assim trechos das entrevistas em que se confirmam tais aspectos, trazendo-os

da forma singular e diversa como foram vividos pelos entrevistados, ampliando e

enriquecendo nossa compreensão da obra/vida de Célia Linhares. Vale dizer que ainda que

separadas, tais categorias são claramente interdependentes.

Ética em Célia Linhares

Tomamos nesse trabalho a ética como a capacidade humana de resistir a barbárie e

crueldade que fazem parte de nossa história e que, como afirma Morin (2007, p. 202) habita

todos nós. Ética que se expressa numa postura diante do mundo que valoriza a solidariedade,

o afetual, a compreensão e luta pela justiça.

É Tereza Cristina Calomeni quem afirma ter presenciado em várias das situações

vividas ao lado de Célia sua defesa da dignidade humana.

De 1985 até hoje, muitas foram as situações expressivas e singulares vivenciadas ao lado de Célia. Em todas elas, a defesa e o testemunho da dignidade humana em seu sentido mais inteiro e pleno. (Tereza Cristina Calomeni).

Ação ética que se expressa num movimento de luta contra o autoritarismo, a

desigualdade social a injustiça, como nos diz Calomeni:

Não por acaso, todas as circunstâncias de que me lembro foram marcantes: em aulas, textos, discursos, palestras, opiniões, comentários, observações, conversas informais, em tudo Célia deixava o sinal de uma profissional séria e dedicada e se distinguia e se expressava como uma pessoa rara. Na espontânea nobreza do andar, na música da voz, na delicadeza dos gestos, na firmeza das atitudes, na determinação e na clareza das palavras apareciam -- e aparecem -- o apego à causa da Educação e o compromisso com o ensino; inscrevia-se – e ainda se inscreve -- a inconfundível luta contra o autoritarismo, a arbitrariedade, a submissão, a subserviência, a injustiça, a desigualdade social; emergiam -- e ainda emergem --, sempre renovados, o interesse pela vida, o entusiasmo em face da riqueza da existência, a disponibilidade para o abrigo do novo, do múltiplo e do diverso, a obstinação pela pesquisa, a saúde da curiosidade intelectual, nunca perdida; mostrava-se em cena -- e ainda se mostra -- a sábia percepção de que convém olhar tudo de todas as maneiras ou a partir de múltiplos ângulos e perspectivas. Em tudo, a seriedade, a entrega, a dedicação, a acuidade no trato das questões pedagógicas e o cuidado em examinar os mais diversos aspectos da Educação. Em tudo, a inquietação e a angústia de quem reconhece que não é fácil lutar, teimosamente, para impedir o arrefecimento ou a diluição do mais puro ideal de uma vida mais justa, mais fértil, mais criativa e mais leve; em tudo, também a ousadia e a expectativa de quem

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ousa subverter, transgredir, ultrapassar o supostamente último, inquestionável e definitivo. (Tereza Cristina Calomeni).

Tal perspectiva ética é reconhecida não apenas em seu discurso, mas faz parte das

ações que envolvem o movimento coletivo, como as que tem curso nos grupos de pesquisa

que fomenta. É Matela quem realça esse aspecto do trabalho em coletividade:

Creio que a característica mais marcante da professora para mim é a crença, a esperança nos pequenos gestos e ações daqueles que têm um compromisso com uma educação voltada para os valores da liberdade e da justiça social. Além disso, ressalto o trabalho coletivo desenvolvido no Aleph. (Rose Clair Matela).

Ética que envolve a propagação de uma cultura da paz, sublinhando a necessária

ampliação das redes de solidariedade, nos diz Pflueger:

Propaga uma cultura de paz e de justiça social que não gera incertezas mais sejam explicitadas de forma clara superando a cultura de guerra. Ressalta a necessidade de construir instrumentos instituintes conseqüências da aproximação uns dos outros e da apropriação das múltiplas conexões com a vida sem perder a solidariedade. (Thereza Pfilger).

Da Mestra

Conheci Célia Linhares no mestrado em educação da UFF por volta de 1987, ela ministrava Filosofia da Educação e ali já me chamou atenção o modo libertário com que lidava com alunos e com as questões da educação. Estávamos na chamada transição democrática com os movimentos sociais se reinventando pelo Brasil ao mesmo tempo em que se começava a tornar público alguns dilemas como a tortura. Célia nos falava nas aulas de filosofia da criação do grupo Tortura Nunca Mais e nos instigava para outros pensamentos no campo da filosofia. Em seu programa de disciplina figurava um autor ainda pouco conhecido no campo da educação, como Michel Foucault. A dignidade do humano era um tema muito presente nas aulas e ela abria espaço para dissertações que fugiam ao arcabouço teórico-político vigente no campo da educação. (Ana Hecket) Célia na verdade foi um acontecimento em minha vida, no sentido Deleuziano da palavra. Daquele tipo de mestre que é uma raridade sempre e mais ainda nos dias atuais. Por que? Sua preocupação não é com a lógica produtivista e mercantilista da produção de teses em série. Ao contrário, no lugar de mandar fazer como o mestre faz ou

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acha que deve ser feito, abre caminhos para novas produções de sentido. Vou trazer um exemplo: minha tese falaria das resistências e ela propôs que eu criasse não só na forma de análise usando autores como Deleuze, Foucault e outros, mas que também inovasse na forma de escrita. Eu fiquei desesperada, pois acostumada que estava com uma escrita linear não me via escrevendo com intensidades uma tese de doutorado. Expus para Célia minhas limitações e afirmei categoricamente que não conseguiria. Ela levantou-se suavemente da cadeira, talvez por perceber que pela via do convencimento racional não chegaríamos a lugar nenhum, sorriu-me e disse: tente minha querida, você é capaz de criar. E foi por isso que a tese pode ser entremeada com alguma poesia, ou seja, com a expressão das intensidades vividas no percurso de feitura da tese. As aulas no doutorado aglutinavam doutorandos, mestrandos e as meninas da graduação em meio a uma variedade de questões que era infinita. Uma usina de discussões que trazia muitas inquietações e quando imaginávamos que ela fecharia com chave de ouro uma discussão trazendo as contribuições teóricas para ‘iluminar’ nossos trabalhos, o que ela fazia era abrir com chave de ouro outras trilhas e picadas com mais questões. A aposta sempre era de que conseguiríamos, mesmo nos momentos mais difíceis ela estava até segurando literalmente a mão de cada um de nós, mostrando-nos que era possível fazer nosso trabalho. Penso que alguns acreditam que há nesse pensamento e nessa prática pouco rigor teórico. Imagina! É justo o contrário. Na suavidade com que discutia nossos trabalhos ia mostrando nossos ‘nós’ e as vaciladas. Assim íamos percebendo que não aceitaria qualquer coisa, qualquer discussão, qualquer trabalho requentado; cobrava rigor ético-político. Nunca nos ofertou um pensamento mastigado, traduzindo autores, mas os trazia para a aula e/ou orientação como um desafio para que mergulhássemos nos autores e deles nos apropriássemos. Uma tese feita com a orientação de Célia é um exercício de autoria vivenciado concretamente. Muitos são os bilhetinhos e e-mails que ainda guardo e que chegavam nas horas mais difíceis seja do trabalho ou dos dilemas da vida de cada um de nós. Célia exerce nas aulas aquilo que Freire falava que mestre é aquele que quando ensina aprende. Um mestre profano, mestre ignorante que se preocupa em fazer o pensamento/prática fagulhar. Seus alunos são tratados como aliados, iguais no diverso. As características que mais chamam atenção é a suavidade, o carinho e o companheirismo. Mas essa suavidade não dispensa enfrentar embates com muita firmeza e rigor. Percebia e demorei até para entender que sua aposta não era ter ao seu lado gente que fala a mesma língua, mas gente que partilha dos mesmos princípios falando línguas diferentes. Há uma ‘cobrança’ permanente de socializar o que pensa e sabe, de ampliar espaços de discussão, de construir junto. Em alguns momentos a aula torna-se pura poesia sem deixar de lado as durezas da vida. Dignidade e poesia são dois componentes que se destacam em Célia. Impressiona a sua inquietude, estreando sempre e de novo de um outro jeito. Sempre querendo aprender outra coisa que

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ajude a realçar os processos instituintes na vida e na escola. É assim que Célia passa a estudar outros autores, acompanhando seus orientandos e alunos, mas sem abrir mão de seus princípios e sem se deixar levar pelas modas de última hora. (Ana Hecket) A profa. Célia sempre esteve muito atenta ao modo particular de cada orientando se expressar. Também, sempre se mostrou solidária não só as demandas acadêmicas de seus colaboradores, bem como uma preocupação especial com suas dificuldades no âmbito pessoal. Acho que é isso, a capacidade de externar solidariedade pelos seus outros sociais, independentes de serem seus orientandos ou não. (Andréia Reis) Aprendi muito com ela. Vivi experiências de muita autonomia, de liberdade, de incentivo. Mais do que influência na minha vida profissional, com ela, cresci como ser humano. Aprendi a olhar, viver e sentir o mundo, as pessoas, a educação buscando neles o que há de vivo, pulsante, belo, transformador, mais do que procurando as fôrmas, os erros, os defeitos. (Bruna Molissani) os encontros coletivos que Célia proporcionava em suas atividades acadêmicas se constituíram momentos de grande importância na minha formação pessoal e profissional. Lá nós exercitávamos a prática da alteridade e do respeito ao outro mesmo nas divergências. Aprendi a escutar e ser ouvida, pois Célia tem a capacidade de reunir em torno dela pessoas que consideram especiais e que atualmente se tornaram grandes amizades em minha vida. (Dagmar Canella)

O Olhar atento, agudo ao que ouvia e lia se destacava. Ela não dialogava com papéis, mas com idéias, com projetos, com possibilidades e com a história que eu lhe apresentava. Ao mesmo tempo que com um posicionamento muito sério em relação ao que levávamos, sempre investiu na autonomia do aluno no sentido mais pleno. Afirmava o que percebia como contribuição ou rota do texto que lhe apresentava e, a partir daí, sugeria vôos, percursos que sempre eram discutidos, argumentados, seja para que fossem seguidos, abandonados ou deslocados. A sua generosidade se dava através do diálogo franco e aprofundado com a produção e, nessa medida, potencializava o projeto que o aluno apresentava. Por outro lado, vim a saber pelos colegas do programa que o compartilhamento de textos que conseguia de outros países, de lançamentos, de materiais que nos seriam inacessíveis naquele momento, era uma característica considerada pouco comum entre os professores. (Estela Sheivar)

Nessa aula, valores se fazem matéria. Desperta-se a atenção no sentido de criar uma ambiência que favoreça o exercício da troca e da agudez reflexiva, que se entrelaçam fiando com o outro confianças. E são

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estas que possibilitam o desnudamento de fragilidades e forças, peculiares ao processo de construção de uma pesquisa; próprias do viver. Em algumas aulas tenho ficado quieta por perceber meus olhos brilharem molhados quando me deparo com uma professora que traz um conhecimento denso: uma voz de quem estuda, reflete, cria e se difere não apenas na sua suavidade e cuidado, mas na construção atenta à voz e silêncios de cada estudante. Professora que costura, que assinala, que amplia e nos convida – insistente – a fiar e desfiar nosso bordado. Professora que pacientemente instiga o aluno e aguarda – numa espera dinâmica – o momento em que cada um possa colocar suas indagações. (Isabel Reis) Agradeço a Célia por conviver com sua generosidade, coerência, humildade, sabedoria e delicada firmeza que tanto me apontam o que é essência. Por me possibilitar o aprendizado de escutarmo-nos em construção de compartilhas e solidariedades políticas e éticas. Por captar-me em alma, atenta às estéticas que me movem... e em aguda delicadeza, instigar-me, complementar-me. Agradeço à professora por possibilitar o fortalecimento do que há de mais precioso em mim, alargando-me comigo mesma e além de mim. (Isabel Reis) Célia é a professora mais generosa com seus alunos que conheci. Sua forma poética de relacionar-se faz com que sua presença seja densa, crítica e ao mesmo tempo respeitosa e carinhosa. Encontrei abrigo e acolhimento nos encontros que tive com ela, assim como indicações precisas e críticas contundentes, que me foram muito úteis. (Mônica Corbucci). . Em 1985, de imediato, foi exatamente o que percebi em Célia: no exercício da docência, no traço de seus planos de cursos, na escolha dos textos indicados aos alunos, na promoção e na orientação das discussões em sala, no modo de se relacionar com os alunos e com os orientandos, nos gestos e nas palavras pronunciadas dentro e fora de sala de aula, nas escolhas teóricas, na participação da vida acadêmica e, particularmente, da vida da UFF, em tudo pude registrar o gosto pelo saber, o prazer da descoberta e, mais que isto, a presença de uma franca preocupação com o ensino, a força de um comprometimento visceral com a Educação e, neste caso, o invencível respeito pelo humano e pela vida. (Tereza Cristina Calomeni).

Da narrativa poética e Da Palavra

Tal como o narrador benjaminiano, Célia faz de sua narrativa poética, seu olhar na busca pelo instituinte nas relações que englobam não só a educação mas, os movimentos da própria vida, uma forma de transmitir histórias sejam

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ficcionais ou não, em que a capacidade de humanização é sempre uma evidência na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. (Andréia Reis)

Eu percebo a PALAVRA no trabalho da Profa. Célia Linhares como instrumento de mediação para toda e qualquer prática educativa. Mediação para a construção de ações educativas, mediação para construção de espaços de diálogo – a PALAVRA sempre numa dimensão política. 2) Reportando-se especificamente ao texto escrito de Célia e a forma como ela se comunica oralmente (seu "texto oral"), o que você pensa da linguagem que ela utiliza (me refiro aqui ao estilo de sua escrita, as palavras que seleciona e como constrói seus textos e a forma como comunica oralmente suas idéias). Conhecendo a força das PALAVRAS, a professora Célia, busca cuidadosamente, entrelaçar em seu texto escrito, as experiências que a “cultura oral-popular” pode acrescer a sua prática educativa. Penso que ela pretende com isso, construir pontes entre o universo tipicamente “formal” da escola e o mundo da criatividade e do imaginário que se fazem circulam no cotidiano da família, da rua, do meio rural, enfim, nos espaços reconhecidos como extra-escolares. (Andréia Reis) Por um momento, lembrei-me de algo que li em uma das obras do Larrosa que fala a respeito do modo como damos ou recebemos a palavra. Eu acho que o que diferencia, ou melhor, o que caracteriza Célia e, portanto, reflete em sua proposta de estudo e de pesquisa, é a forma como ela dá a palavra; aberta, porosa, poética, capaz de ser ressignificada, desfeita, reconfigurada; uma palavra, que ao ser recebida, se torna instituinte em seus sentidos possíveis, já que Célia não toma a palavra para si ou se apropria dela, Célia doa a palavra para que esta possa desdobrar-se. Célia é um patrimônio discretíssimo na pedagogia brasileira. A mim me encantam suas conexões com a poética, que são exemplares do modo como pensa a educação. Sucesso! (Eliana Yunes) Talvez o marcante tom poético e o resgate de cenas afetivas da vida educacional possam inscrever os seus textos em uma "literatura menor" na área, nos termos em que Deleuze entende as "práticas menores". Sim, menor porque não é o que se costuma ouvir, não corresponde a um modelo pronto que nos ajuda a abrir um livro e a achar quase que mecanicamente um relato factual, a definição de um conceito ou a apresentação de um percurso histórico. Não! Nos seus textos a gente tem que mergulhar, pensar, viajar, sentir e dialogar. Eles rompem, de alguma maneira, com uma produção maquínica que nos faz sentir certos, confortáveis, seguros. Célia está sempre nos

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deslocando, precisamente porque nos coloca no meio da trama e, como boa leitora de Benjamin, nos retira do lugar dos "outsiders". (Estela Sheivar) Como esquecer a importância do cuidado com a linguagem e com a beleza da simplicidade, capazes de aproximar o texto a muitos, sem no entanto, esvaziá-lo, linearizá-lo. Penso então, na força da ousadia; do risco; da disciplina e da criticidade que não nos permitem ser rasos e inoperantes. (Isabel Reis) Quando se trata de Célia Linhares, acho que é, sobretudo, a palavra enquanto metáfora e poiesis - o fazer sentido e o fazer sentir pela palavra sendo palavra, palavra encarnada. É mais que o uso - é entrega. Os poetas fazem isso, são artífices da palavra. Na minha rasa opinião, a Célia faz "sociologia poética", analisa a realidade social pelo filtro da sensibilidade e da sua própria subjetividade. Célia é uma intelectual e pelo que conheço do seu pensamento, o encontro entre objetividade e subjetividade não se dá de forma harmônica, porque é dialético prescinde movimentos, de elevações e quedas d'água. Rio é mar. Utilizando mais uma metáfora e uma imagem desse "manancial humano" que ela própria é, pensaria na pororoca, encontro contínuo de águas distintas, revoltas, inquietantes - mas sempre encontro. Maranhão e Rio. Somos maranhenses, eu e a Célia, e por essa mesma identidade em comum, sei o quanto o simbólico da água, que gira, que entorna, que se avoluma – em águas doces e salgadas, nos fala profundamente. (Patrícia Porto). O pensamento pedagógico de Célia Linhares é um composto que envolve arquitetura e fundamentos. Na dimensão arquitetural destaco o engenho e a arte com que constrói, com que elabora sua escritura e o seu discurso sonoro, o áudio de sua fala. Há uma sensação de que a cabeça da autora não descansa nunca, que se entrega de corpo e alma à paixão pelo ato criador. Quando escreve ou quando discursa Célia encanta porque compartilha com os outros uma nova estética do ser, incomum, invulgar, colhida e recolhida a todo o momento dos materiais da vida, que suas mãos de artista selecionam e ressignificam como poucos. O outro composto, o que envolve a dimensão filosófica, teórica e metodológica, emerge de modo sólido, sem superficialidades e concessões, vindo associado a uma cultura humanista ampla e sintetizadora ao mesmo tempo, que dão aos seus escritos o rigor da ciência e a singularidade da beleza literária. (Palhano). Célia Linhares me lembra uma “alquimista da palavra”. Literalmente, Alquimia seria a busca do entendimento da natureza, a busca da sabedoria, dos grandes conhecimentos. O alquimista é um andarilho a percorrer as estradas da vida, é um iluminado, um sábio

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que compreende a simplicidade do nada absoluto. Ela está pautada na energia espiritual, na alma, no sensível e não somente no materialismo. Portanto, vejo a Célia fazendo isso com as palavras: entrelaçando saberes, gerando desejos de busca pela “pedra filosofal”, captando com uma sensibilidade incrível as realidades e entornos, utilizando-se de jogos de palavras que lhe são peculiares. Uma alquimista. (Rosane Marendino). O texto da Célia tem esse poder de nos mobilizar. Poder esse que nos tira da sombra e nos oferece a luz. E, assim como nos fala Platão, a única forma de atravessar para o mundo inteligível é passando pelo mundo sensível. A Célia faz isso. Seus textos percebem todos os movimentos minúsculos, entre coisas que não perceberíamos se ela não estivesse “por perto”. Sua escrita consegue ser simples e complexa ao mesmo tempo e depois nos deixa a pensar: “-como ela percebeu isso com tanta sensibilidade???”. Observações ricas, deduções que vão da emoção à razão, ligados ao cotidiano, aos pequenos eventos, mas que produzem intensas desvelações. (Rosane Marendino).

Da solidariedade e da humanização

Tive uma defesa de dissertação bastante conturbada, estava grávida e com problemas na escola onde trabalhava. Ela foi solidária e atenta. Quase sete anos depois, ao reencontrá-la, ela não só lembrou de mim, mas do nome de minha filha. Fiquei muito emocionada. (Mônica Corbucci).

Em 1986, já ensinando Filosofia da ciência numa Faculdade particular desde o início de 1984, ingressei na UFF como professora. Mais uma vez, vi Célia torcer por mim, alegre e francamente. Em 1987 e durante os três anos subseqüentes, convivi com sérios problemas de saúde em minha família e, com isto, não pude evitar o atraso da redação do texto da Dissertação. Num gesto de rara solidariedade e sem abdicar do rigor profissional e acadêmico, Célia foi excepcionalmente compreensiva e demonstrou, muitas vezes sem palavras, a confiança que em mim depositava. Finalmente, em 1990, defendi a Dissertação sobre Foucault. (Tereza Cristina Calomeni). Conviver com Célia me lembrava – e me lembra ainda -- a régua e o compasso que me foram concedidos como instrumentos para que eu pudesse traçar as escolhas, medir os gestos, definir o verbo, desenhar o silêncio, eleger o terreno, cultivar o solo e me empenhar em tentativas constantes de compreender o humano, sempre tão rico e, ao mesmo tempo, tão limitado e precário. Por isto, posso dizer que, num tempo tão estranho como o nosso, num tempo em que, a cada dia, nos ronda o cinismo e nos ameaçam o ceticismo e a aridez, num tempo em

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que, sobre uma retórica vazia e perversa, se edifica um jogo improdutivo de palavras, num tempo de desconforto e desesperança, do império da lógica mercantil e do consumismo cego e irrefletido, de manutenção de desigualdades inaceitáveis e preconceitos perversos, da diluição da solidez das relações humanas, num tempo da fugacidade e do efêmero, num tempo em que nos assusta o descaso com a causa alheia, nada mais consolador do que a certeza da companhia, do companheirismo e da cumplicidade.

Do pensamento complexo

Também como bolsista, fui aluna da Prof.ª Célia, porque freqüentava suas aulas no mestrado e no doutorado (outra coisa nada comum entre os professores de Pós-graduação - levar graduandos para suas aulas). Nesses espaços, sempre vi a abertura para diferentes pensamentos e formas de ser e viver, o diálogo, o carinho, o respeito. E nós, bolsistas, tínhamos sempre tudo isso também. A prof.ª Célia nos incentivava a participar das aulas, apresentar textos, etc., sempre nos dando a liberdade de escolher. (Bruna Molissani)

Célia sempre buscou a pluralidade, a diversidade, os diversos olhares possíveis para a compreensão de um determinado aspecto ou realidade, portanto suas escolhas de leituras são bastante amplas sem ser incoerente ou “infiel” ao seu referencial teórico. Quanto ao estilo de seus próprios textos acho que a palavra que ao mesmo tempo em que sintetiza amplia uma descrição estética de suas obras é a palavra “Poiesis”. (Dagmar Canella)

Normalmente se chega à academia carregando a experiência que se quer colocar em análise como se esta fosse acessória ao que parece ser o eixo dos trabalhos acadêmicos: a análise conceitual. Com Célia não há a possibilidade da experiência pessoal ser acessória; é absolutamente central e ela vai puxando-a dos exemplos "menores" para o lugar central de nossos trabalhos. Torna o que seria uma explicação acessória no coração das análises. Esse exercício de tornar o afeto o centro dos textos é o que nos afeta em seu trabalho. Ela não se contenta, não aceita explicações frias, perfeitas, distantes. As transporta para a sua dimensão humana. Assim, quando eu relatava alguns fatos deixando-os perdidos de forma quase escondida e apressada, ela os convocava para que ocupassem o seu devido território; eram elas que teciam as análises e não o contrário. Lembro-me de quando depois de muita discussão em relação aos afastamentos da escola vividos pelos alunos, em função de certas práticas pedagógicas, descrevia eu um incidente que se repetia a cada ano quando do fim do ginásio em uma escola: a queima de uniformes e livros em uma fogueira que se fazia com eles no meio da rua. O que era "apenas" um exemplo Célia me fez ver a sua potência, o seu

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significado, a tragédia que podia ser lida nesse fato, em função dos sentidos pregados pela concepção clássica de escola. Um exemplo, um relato se tornou um potente analisador, que saiu de sua condição subalterna para ocupar o lugar que a academia tem negado às vidas. (Estela Sheivar). Atenta ao humano por crenças que se mostram vitais para suas veias de professora, Célia traz os teóricos num pensar que se busca liberto de dogmas. Em movimentos dinâmicos e sem filiar-se aos teóricos como partidos aprisionantes, Linhares conversa com eles, consigo mesma e conosco aprofundando questões com a leveza e a densidade de uma poesia. Nesse posicionamento fertilizador da professora Célia, vou me reconhecendo e aos colegas como pensadores complexos que somos. Aos poucos me encorajo a poder estar nesta casa que se propõe acolher-nos para que possamos todos – inclusive a própria UFF – crescer em nossa humanidade subjetiva e crítica. (Isabel Reis). Durante todo o tempo em que acompanho Célia, ainda que à distância, vejo que nela se mantém presente uma das dimensões daquilo que antigos gregos chamavam de parrhesia: a coragem de dizer, o falar francamente, apesar dos riscos e do perigo. Como uma espécie de tesouro valioso, Célia mantém viva e vigorosa a capacidade de se indignar diante dos muitos absurdos e abusos que, infelizmente, desenham o triste traço de nossa era. No entanto, intelectual que não se encerra nos limites de uma racionalidade abstrata, fria e desinteressada, mantém, igualmente viva e vigorosa, a convicção de que, a despeito deste tempo de homens partidos, como diz Drummond, não convém desanimar ou se deixar abater: caso nos alcance o desânimo, importa resistir para retomar a imperiosa disposição, a necessária coragem e a insubstituível esperança, por vezes extraviadas. (Tereza Cristina Calomeni).

Tempo de tecelagem

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. (Maria Colassanti in A Moça tecelã).

O fio é o grande agente que liga todos os estados da existência entre si. Nos Upanixades, o fio (sutra) liga os mundos e os seres, é ao mesmo tempo atman (o si mesmo) e prana (o sopro vital). As Moiras são fiandeiras que tecem os destinos. Tecer é reunir realidades diversas, é criar, fazer sair de si inéditas configurações, como as aranhas e suas teias. Fiandeiras e tecelãs abrem e fecham os ciclos individuais, históricos e cósmicos. Láquesis (o passado), Cloto (o presente), Átropos (o futuro) são as Parcas, as três filhas

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da Necessidade que fiam e desfiam o tempo e a vida. (Chevalier, Dicionário dos Símbolos, 1999).

Dos anos 90 até os dias atuais, Célia tem produzido intensamente, numa tecelagem

sem descanso. Em sintonia com o tempo que passa, observa a “modernidade” criticamente,

questionando suas promessas e emblemas. Modernidade que difunde falsas propagandas,

como as de uma ciência que ignora a natureza e suas necessidades; uma tecnologia toda

poderosa, compreendida como sinônimo de pura ascensão; uma “qualidade total” que passa a

ser objetivo e desejo do mundo do trabalho e da escola, dentre outras. Num tempo em que os

interesses econômicos ditam os caminhos da própria educação e permeiam idéias e

instituições (“tempo é dinheiro”, diz o ditado popular).

Nesse contexto Célia Linhares se empenha em retirar os véus que cobrem e encobrem

a realidade por trás da “aparência” da realidade, convidando a refletir sobre outras dimensões

que escapam a visão mais imediata, propagandeada. Defende também a necessidade de

questionarmos o discurso que leva a postura cômoda, afirmando que diante de uma realidade

que não se pode mudar, nada teríamos a fazer. Busca nas memórias das lutas e dos

movimentos contemporâneos, pistas e brechas para construir outros possíveis. Tecnologias

inteligentes e estudantes não? Ciência “neutra”, sem limites éticos? Educação produtiva com

professor sem autonomia? Qualidade total na educação, sem saber com sabor? Políticas que

excluem os sujeitos históricos? , são algumas das inquietações que ela vai ruminando e

provocando a refletir.

É também tempo de espalhar suas teias – aqui prosseguindo na metáfora da tecedura/

tessitura de Célia. Suas pesquisas se incrementam, ampliando redes de diálogo com a escola

básica de modo cada vez mais intenso, articula-se com universidades de outros países e

intelectuais estrangeiros, não apenas em seus textos, mas nos eventos de que toma parte e que

empreende.

Para sintetizarmos o movimento dessas últimas décadas, com ênfase no pensamento

pedagógico de Célia Linhares, remetemo-nos ao mito de Arácne que em virtude de seu

enfrentamento à deusa Minerva, recebe como punição passar o resto da vida a tecer, sob a

forma de uma aranha. Tal qual Arácne, Célia tece com um movimento forte de sua lançadeira,

um fio sem fim, construindo um mundo de açores (variados pontos do tear), no enfrentamento

do pensamento único, que desvela as aparências de um tempo cujos valores dados como

imponderáveis, precisam ser questionados. Tal qual Arácne, seu tecer incessante enfrenta os

“deuses” arrogantes. Deuses que se incorporam em valores e idéias que tem se difundido no

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mundo da educação (e não apenas ele...) com hegemonia. Deuses, todos poderosos, que

fomentam idéias contrárias ao sentido da solidariedade, da afetuosidade, do direito à educação

de qualidade para todos, da justiça, do conhecimento como possibilidade de reconhecimento

da própria identidade rumo a uma cidadania plena.

Mas, retomemos a história de Arácne em mais detalhes, com a qual fechamos esse

capítulo. Envolvidos nas teias das histórias mitológicas, é possível perceber a tecedura de

Célia Linhares, que - e aqui ela se distingue de Arácne -, faz de sua tecedura o próprio

enfrentamento dos deuses.

A origem do mito de Arácne relaciona-se ao fato de que nas indústrias athenienses, os tecidos constituíam um dos ramos mais importantes. Porém as fábricas da Ásia, produziam tecidos mais delicados e mais sólidos, sobrepujando as cidades gregas. Arácne, embora não fosse ilustre pelo nascimento, tinha grande reputação pelo seu especial talento como tecelã. Seus belos trabalhos eram conhecidos em todas as cidades da Lídia e até mesmo as ninfas do Tmolog e do Pactolo abandonavam as águas para lhe admirar os trabalhos da agulha. Arácne sabia fiar e fazer a lã, embelezando seus tecidos com as cores do arco-íris. Confiante de seu trabalho, afirmava que tinha coragem de desafiar a própria Minerva.

A deusa, ofendida com o atrevimento da mortal, assumiu o aspecto de uma anciã e foi procurá-la. Lá chegando, censurou Arácne pela incoveniência e pretensão de, em sendo uma simples mortal, comparar-se à uma deusa. Aracne, ofendida, enfrentou a anciã, afirmando que estava disposta a desafiar a própria deusa Minerva. Minerva então reassumi seu verdadeiro aspecto, declarando que aceitava o desafio. As duas então passaram a preparar seus trabalhos. Já corre a lançadeira com incrível rapidez, e o desejo que ambas experimentam de vencer redobra a atividade. Cada uma delas desenha velhas histórias, para que o trabalho ficasse ainda mais perfeito. Minerva representou no seu a disputa mantida com Netuno em torno do nome que deveria ser usado pela cidade de Atenas. Arácne decidiu por contar as histórias em versões que certamente desagradariam às divindades do Olimpo grego, revelando suas intrigas amorosas e questionando seu pretígio. Porém, o trabalho de Aracne foi executado com tal delicadeza e tão incrível perfeição que Minerva não pode descobrir o menor defeito. Despeitada por ser igualada a uma simples mortal, Minerva rasgou o tecido da rival, que imediatamente se enforcou de desespero. Minerva, tomada de piedade, sustentou-a no ar, para impedir que se estrangulasse, e disse-lhe: "Viverás, Aracne, mas ficarás para sempre pendurada desta maneira; será o castigo teu e de toda a tua posteridade." Ao mesmo tempo, Aracne sentiu que a cabeça e que o corpo lhe diminuíam de volume; minguadas patas lhe substituíram os braços e as pernas, e o resto do corpo se transformou num enorme ventre. A partir de então, as aranhas sempre continuaram a fiar, e a indústria

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humana até hoje não conseguiu igualar a finura dos seus tecidos. (KURY, 2003).

No mito, ainda que tecendo um belo tapete, as histórias que Arácne conta desvelam

aspectos das divindades que contrariam suas imagens de pura perfeição. Em belos trançados,

impossíves de serem criticados tal a beleza e perfeição, revelam-se aspectos das ambigüidades

dos deuses. Reporto-me aqui a depoimentos como os de Jésus Bastos e Balina Belo, relativos

a década de 70, em que diziam o quanto Célia, em momentos de embate, conseguia lançar

mão da palavra de forma a toca o outro. Ela era respeitada pela sua palavra, era/é uma palavra

que afeta, que inclui, que rasga véus de incompreensão, ainda que fale do que não é fácil

ouvir.

Tecedora de palavras, tecedora de histórias, a tecelã Célia Linhares, “reúne realidades

diversas, cria, faz sair de si inéditas configurações, como as aranhas e suas teias” Fia e desfia

o tempo e a vida, com fios de história, fios das narrativas dos muitos que escuta, fios dos

conhecimentos que enreda. (CHEVALIER, op.cit).

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FECHAMENTO/ABERTURA:

UMA MESTRA DA PALAVRA: ÉTICA, MEMÓRIA, POÉTICA E COM-PAIXÃO OU (COM)PAIXÃO NA OBRA DE CÉLIA LINHARES

As palavras são como peixes abissais que só nos mostram um brilho de escamas em meio às águas pretas. Se elas se soltarem do anzol, o mais provável é que você não consiga pescá-las de novo. São manhosas as palavras, e rebeldes, e fugidias. Não gostam de ser domesticadas. Domar uma palavra (transformá-la em clichê) é acabar com ela. (Montero, 2004)

(...) A literatura é um caminho de conhecimento que precisamos percorrer carregados de perguntas, não de respostas. (...) escrever é uma maneira de pensar; e deve ser o pensamento mais limpo, mais livre e rigoroso possível. (idem)

Acredito que hoje seja necessário dizer: sejamos irmãos porque estamos perdidos num planeta suburbano, de um sol suburbano, de uma galáxia periférica, de um mundo desprovido de centro. Mesmo assim, possuímos plantas, pássaros, flores, assim como a diversidade de vida, as possibilidades do espírito humano. Doravante aqui residirão nosso único fundamento e nosso único recurso possíveis. (Morin, 1998b)

Mergulhar na obra/vida de Célia Linhares foi uma aventura intelectual das mais

instigantes. Convidou-me, como mencionei na introdução, a me aproximar de um outro

tempo, o que vivi intensamente, embebendo-me da arte, da cultura, do movimento social e

político expressos nas pesquisas e estudos que fiz e nos depoimentos de meus entrevistados.

Confirmo as palavras de Bosi (2004), de fato “a memória dos velhos desdobra e alarga de tal

maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a sociedade

onde se insere” (p. 69). Com a ressalva de que, diferentemente de Bosi que trabalhou apenas

com velhos nas duas obras184 com que travei contato, escutei pessoas de variadas idades. O

ponto de semelhança é que, independente do fator idade, escutar experiências diferentes da

nossa própria, que nos reportam a outros tempos, outras realidades, formas singulares de ver o

184 “Tempo da Memória”(2003) e “Memórias de velhos” (2004).

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mundo a partir de outras perspectivas, constitui-se em uma vivência de alargamento de

horizonte, sem dúvida. Para quem pesquisa e para o campo das ciências humanas.

Ainda com Bosi, reafirmo que uma história de vida não é feita para ser arquivada ou

guardada como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu (2004, p. 60).

Talvez o principal mérito dessa obra seja: dar visibilidade a uma trajetória, que se cruza com

tantas outras, que revela tempos, movimentos, história. A história de uma vida, de um país e

no caso de nosso interesse específico, da própria educação – seus movimentos, embates,

idéias e caminhos. Uma trajetória que vale a pena ser contada e conhecida, guardada, no

sentido que Antonio Cícero nos indica:

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordando por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que pássaros sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que quer guardar. (Antônio Cícero)

O título desse fechamento/abertura carrega aspectos, princípios, que reconhecemos

como o coração da obra de Célia Linhares: palavra, ética, memória, poética, compaixão,

humanidade, conciliação dos contrários. Idéias força, recorrentes em seus textos escritos, em

sua narrativa oral e nos depoimentos de seus pares. Princípios que orientam seu pensamento

pedagógico e sua prática, como pesquisadora e docente.

A palavra em Célia, para retomar uma de suas metáforas em “A escola Balaia”, é

oxigênio que circula por entre as brechas do trançado do balaio (Célia Linhares, 1999).

Palavra que permite a que os sujeitos se reconheçam uns aos outros, que se constituam como

sujeitos que se dizem, cuja autonomia se constrói no próprio ato de narrar-se, forjando o

reconhecimento de si mesmo como sujeito, cidadão, a quem a voz não pode ser silenciada. Na

404

escola, a palavra é o oxigênio, que precisa ser compartilhada e circular entre todos, fazendo-se

compreendia.

Nessa perspectiva, a promoção do diálogo nos espaços educacionais é o que favorece

a que estes sejam espaços de pertencimento – incluindo a Educação Infantil, a Escola Básica,

a Universidade e demais segmentos de ensino. Ao reconhecer nestes locais a possibilidade do

diálogo vivo, da escuta da própria vida e história, se reforça a confiança no outro de sua

importância como sujeito, se fortalece a autoconfiança. O estímulo ao pronunciar-se

possibilita assim, a que os sujeitos apropriem-se do conhecimento e de si mesmos. A força da

palavra na obra de Célia é contundente, a ela reputa a possibilidade de autoconstrução e

afirmação da identidade, resgate da própria história, afirmação de si como sujeito de direitos,

de valor.

No tocante ao ser professor, vê a palavra como uma ferramenta crucial capaz de

instigar à reflexão. Apropriar-se da palavra é fundamental para a construção da autonomia. A

autonomia é outro conceito de relevo para Célia Linhares. Autonomia que se evidencia na

capacidade humana de criar, de gerir nosso próprio cotidiano, de reconhecer caminhos

singulares na tessitura de nosso trajeto e fazer escolhas. Apropriar-se da palavra compreende,

portanto, afirmar a própria capacidade de pensar e agir com autonomia, negando-se a:

“Aceitar uma posição de “formiga” que trabalha sem indagar os porquês, que agüenta em silencio sua condição de pouca visibilidade e nenhuma importância social ou treina-se para entrar no rol dos sobrantes da sociedade, uma vez que o desemprego, as excludências, as concentrações de bens tendem a permanecer”. (Célia Linhares, 1997, p.34)

O que está em pauta, quando Célia Linhares aborda a questão da autonomia e da

palavra, é a não massificação dos sujeitos, negando a que a escola forme “seres domesticados

e submissos, homogeneizados na produção das lições de vida”(Célia Linhares, 1999, p.77-

78). Aposta, portanto numa educação que não perca de vista “a autonomia, o fortalecimento

dos sujeitos, como seres capazes de recriar o mundo, com solidariedade”(op.cit. 1999, p. 78).

A professora não apenas compreende a palavra como um eixo orientador da profissão

docente, como ela mesma, assume sua própria palavra como uma ferramenta, uma forma

pessoal e singular de pronunciar-se. A palavra de Célia tem força de alcance, de afetar o

outro, entendendo aqui afetar como a capacidade de mobilizar os afetos e de por eles ser

mobilizado, de tocar o outro e por ele ser tocado. Podemos reconhecer tal força de sua palavra

405

não apenas por meio da leitura de seus textos, mas pela forma mesma como ela constrói seu

discurso em aulas e palestras. Sua fala no simples cotidiano, fora das salas de aula e

auditórios, é também prenhe de força e poesia, uma palavra que, ao ser aberta, convida o

outro a se inscrever e que revela seu incessante processo de auto-análise-ética das

experiências vividas e de seu em torno.

Tomo aqui a idéia moriniana de auto-análise. Morin afirma que a auto-análise é um

exercício permanente de auto-observação, que suscita a uma nova consciência de si que nos

permite nos descentrar com relação a nós mesmos, reconhecendo nossos egocentrismos,

carências, lacunas, fraquezas. É também via auto-análise que integramos o olhar do outro em

nosso esforço de autocompreensão. Um trabalho permanente de pensar a si e ao mundo

(Morin, 2007, p. 93-94). Nas entrevistas que realizei com Célia ela revelava um olhar atento

para a atualidade e seus dilemas, sem proferir análises maniqueístas ou simplistas. Sua leitura

trazia com freqüência a presença dos contrários: ao lado do medo a esperança; ao lado da

coragem de enfrentar, o sentimento de fragilidade; ao lado da visão crítica de uma educação

em crise o reconhecimento do valor das experiências instituintes e de seus movimentos que

revelam brechas e caminhos possíveis. Isso atestam os depoentes dessa tese e eu mesma, a

pesquisadora, no contato estreito que travamos ao longo desses anos de meu doutoramento.

Questão que me saltou aos olhos de imediato.

Retomando a idéia da palavra poética de Célia Linhares, vejamos em sua própria fala

o sentido de abertura que ela encarna:

A forma poética sempre transfere para o outro a última palavra, a palavra fica suspensa, você instiga, você oferece, mas não tem o fechamento do dogma, do pensamento único. (...) Eu sinto que o que eu falo ressoa. Eu não tenho nenhum poder formal, mas tenho um poder que é a minha vida. (Célia Linhares entrevista com a pesquisadora, fevereiro, 2006).

Palavra poética, militante, polifônica. É a própria Célia que, respondendo a minha

curiosidade sobre o tema, traduz essa palavra poética que é forma, método, porque atinge o

outro, alcançando o interlocutor e mobilizando reflexões. Palavra de mestre, que provoca,

aguça, fermenta o desejo de saber mais em seus discípulos. Vale lembrar que tomo aqui a

palavra discípulos no sentido que Rancière (2005) confere ao termo: não aquele que segue

cegamente a um mestre arrogante, mas sim aquele que o toma – ao “mestre ignorante” -

como modelo provisório, cujo necessário desprendimento faz parte do desenvolvimento da

própria mestria do discípulo. Célia, apostando na criação e na necessidade de se comunicar do

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homem, compreende o próprio discurso como algo que não se pretende completo e

totalizante. O discurso é uma instigação a que outros pensamentos e expressões se produzam.

(...) Estou absolutamente convencida de que a arte é essencial, que a pedagogia precisa ser mais poética, não como uma fuga, porque a poesia não é uma fuga, mas como um método. Falar, dizer e deixar entreaberto para que se prossiga. O desejo primordial do ser humano é se comunicar. (Célia Linhares entrevista com a pesquisadora, fevereiro, 2006).

Em sua concepção, a palavra do mestre é aquela que provoca no outro o desejo de se

inserir no diálogo, o que nos reporta mais uma vez a lição do mestre ignorante de Rancière,

“O mestre interroga, provoca uma palavra, isto é, a manifestação de uma inteligência que se

ignorava a si própria, ou se descuidava.”(2005, p.51). Em Célia Linhares, a instigação é uma

metodologia, sua palavra é aberta, busca indagar. Em seus textos, muito freqüentemente, as

questões são introduzidas por meio de perguntas, que também acompanham o desenho do

texto, num franco movimento de convidar o leitor a se incluir na discussão. Palavra

provocativa, que tange muitos sentidos possíveis. Palavra que não vive sem o outro.

Eu gosto muito de pensar o pensamento apaixonado, sempre irreverente, sempre dizendo a tua palavra (...). Palavras não são a cereja do bolo, como as flores de um banquete, como as flores de uma mesa de conferências, “lindas palavras, palavras poéticas para abrir e fechar o discurso”, a poesia no meu entendimento não é uma palavra de abertura e fechamento de discurso é uma metodologia pedagógica, investigativa. Ao narrar eu trago minha experiência articulada com a experiência do mundo, da vida, dos livros, das teorias, mas eu não dou o ponto final, a narração como ela está impregnada, grávida da experiência eu convido meus interlocutores a darem a sua palavra, a sua contribuição, uma palavra pede sempre uma outra palavra. Uma palavra puxa a outra. As narrações pedagógicas são tão mais férteis na medida em que elas convidam para que o outro conte o seu outro conto. (Célia Linhares entrevista com a pesquisadora, março, 2006).

Célia se contrapõe à idéia que pode ser associada a sua fala poética a um “falar

bonito” pura e simplesmente. Sua fala, reconheço, é entrelaçada com suas teorizações, com

os valores que cunhou ao longo de sua trajetória.

“Muita gente diz, ‘você é uma poeta, fala bonito’, eu odeio isso, eu não sou uma poeta desconhecendo meu tempo, as teorias de meu tempo, pelo contrário, eu tenho um diálogo intenso com tudo isso, o desafio da experiência é ela se passar para um tipo de abstracionismo idealizado. (...) Tomo a poesia como método de trabalho, em que as palavras ficam suspensas, eu não dou a última palavra, e mesmo que eu não conte a minha vida, minha vida está presente na maneira de eu respeitar o outro, de

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compreender o significado da liberdade.” Célia Linhares entrevista com a pesquisadora, março, 2006).

Quando Célia se reporta a sua infância, ela reconhece que a palavra era para ela uma

forma de encontrar um lugar em meio a numerosa família, buscando atenção de seus pais.

Primeiro com o pai, tão querido, cuja presença e proximidade eram sempre desejadas. Fazer

poemas e versinhos, escutar a prosa das visitas e, em havendo uma oportunidade, adentrar nas

conversas, ouvir as histórias de todos os que passavam pela sua vida, eram seus prazeres.

Menina de palavras, mulher de palavra. Com a perda de seu pai, a mãe surgia como esperança

de vida, com sua palavra que clamava a sobrevivência, que buscava, tenazmente, construir

com seus filhos o enfrentamento da perda. Pai-poesia, Mãe-prosa, referências

complementares na vida de Célia que, se é uma pensadora capaz de sonhar poeticamente,

enraíza seus sonhos no chão da escola e do mundo, prosaicamente. É Morin quem nos fala da

complementaridade entre prosa e poesia:

(...) Então, podemos compreender a complexidade humana através da literatura, enquanto que a poesia nos ensina a qualidade poética da vida, essa qualidade que nós sentimos diante de fatos da realidade. Como, por exemplo, os espetáculos da natureza: o céu de Brasília que é tão bonito. É essa poesia que nos dá força e nos ensina a qualidade poética da vida, porque ela não é somente uma prosa que se deve fazer por obrigação. A vida é viver poeticamente na paixão, no entusiasmo. Para que isso aconteça devemos fazer convergir todas as disciplinas conhecidas para identidade e para a condição humana, ressaltando a noção de homo sapiens; o homem racional e fazedor de ferramentas, que é, ao mesmo tempo, louco e está entre o delírio e o equilíbrio no mundo da paixão em que o amor é o cúmulo da loucura e da sabedoria. O homem não se define somente pelo trabalho, mas pelo jogo. Não só as crianças gostam de jogar, os adultos também gostam e por isso vemos partidas de futebol. Nós somos homo ludens pois não existe apenas o homo economicus que só vive em função do interesse econômico. Há, também o homo mitologicus, isto é, vivemos em função de mitos e crenças. Enfim, há o homem prosaico e poético, como dizia Hölderling: “O homem habita poeticamente na terra, mas também prosaicamente e se a prosa não existisse, não poderíamos desfrutar da poesia”. (Morin, 2000)

Os acontecimentos de sua vida adulta, sua trajetória, escolha profissional foi firmando

as palavras como um continente de descobertas, de encontros com o outro, artesã de palavras

que era. Em meio a suas experiências, a perda de seu irmão Rui, levaram-na a usar da

ferramenta que tanto a nutria em sua vida, a criar vida a partir da perda e da morte, fazendo do

dizer uma forma permanente de manter as chamas da memória sempre acesas (1993, p.50).

408

(...) É preciso atentar para as ruínas, escondidas sob os monumentos que o projeto capitalista foi produzindo, de forma a arrancar, das e nas catástrofes, a reversão do sentido histórico por meio do “despertar dos mortos”, com os seus sonhos de solidariedade e emancipação soterrados pela corrida do progresso; e recompor essas imagens do passado, integrando-as, conscientemente, no processo de construção de uma nova história, nova autopercepção, nova modalidade de vida. (Célia Linhares, 1993, p. 50)

Célia é uma “catadora de palavras”. Faço aqui uma alusão ao livro “O catador de

pensamentos185”. Trata-se da história do senhor Rabuja, que percorre as ruas a procura de

pensamentos, para depois plantá-los e vê-los sair voando, colorindo o céu. Assim, os

pensamentos se renovam e nunca deixam de existir. Assim como o Sr. Rabuja, Célia vive uma

constante semeadura, impedindo que os silêncios deixem as histórias desconhecidas.

O papel que a memória ocupa em sua obra, também bastante nuclear, está ligado a

essa palavra que semeia e impede o esquecimento, mantêm cinzas quentes, chamas acesas,

que faz circular a experiência e convida à partilha. É via narração que mantemos essa

memória atualizada, defende Célia. Uma memória que não é retomada para ser guardada, mas

para promover movimento, alimentando esperanças, relativizando as interdições atuais e

permitindo que possamos aprender com o conhecimento do passado, com vistas a construir

um futuro e um presente. Uma memória que nos humaniza, pois faz com que reconheçamos

as identidades que mantemos com diversas lutas e trajetórias, fortalecendo as nossas próprias

lutas, as nossas próprias trajetórias. Célia a este respeito (re) afirma:

“Por isso penso uma educação como uma ponte por onde trafegam as cargas do passado – com seus tesouros e entulhos – que vão sendo reapropriados pelos trabalhos do presente, movidos por necessidades, sonhos e esperanças, para reencaminhá-los ao futuro. É graças a este trabalho de afirmação dos desejos que a história caminha, com suas contradições. (1999, página 33).

Nessa perspectiva, Célia assume uma visão de história não linear, em contrapelo à

oficial. Inquieta-se com o desconhecimento dos saberes daqueles que ficaram a margem, dos

185 De Antonio Boratynski e Monika Feth (ed. Brinque-Book, 2000).

409

“vencidos”, o enorme contingente de negros, indígenas, imigrantes, desaparecidos, Joãos e

Marias que constituíram nossa história, que investiram força de vida, com seus saberes, sua

cultura, no trabalho na terra, na política, no país. Ela compreende que é uma das tarefas da

escola dar voz a essa massa à sombra, conhecendo e re-conhecendo suas lutas, sua cultura,

seus fazeres e saberes. Para tanto, analisa em várias de suas obras a história da própria

educação e da hierarquização secular que a forjou, ampliando a reflexão não só para a nossa

própria história brasileira, mas para a do mundo, cujo movimento tem, desde o século das

“luzes”, apagado tudo o que não é a “luz da razão”. Critica tal dimensão que coloca em lados

opostos da balança os saberes valorizados da racionalidade (e todos seus ditames) e os saberes

da vida, da intuição, do afetual. Célia, contrapondo-se a essa visão dicotomizante, lança um

olhar complexo, que reconhece o homem em suas múltiplas dimensões.

O afeto – afetar, ser afetado – é um elemento também fundamental em sua obra-vida.

Afeto que promove identificações, forjando, portanto, identidades. Afeto que implica o

reconhecimento do outro e da necessidade de importar-se com ele, solidarizando-se com sua

dor e sua alegria. Com paixão, que coloca Célia ao lado dos homens, todos os homens, como

uma cúmplice em suas lutas e seus sofrimentos.

Tal perspectiva está ligada a própria ética que baliza a vida de Célia Linhares, e que se

desdobra em sua forma de compreender a política e a educação. Como Morin (2007)

compreendemos a ética como a resistência à crueldade do mundo e à barbárie humana. Tal

resistência à barbárie humana, no sentido complexo da ética moriniana, reconhece que a

barbárie está dentro do homem. Sem dividir em pólos distintos, bem e mal, Morin afirma que

a crueldade é algo que tem feito parte de nossa história, expressa nos tantos atos de violência,

tais como os extermínios dos índios na América, a criação da escravidão, a utilização de

técnicas modernas como meio de aumentar desmesurada mente seus estragos, as guerras

étnicas e as guerras de religião. Resistir a esse lado humano, ligado à barbárie e a crueldade, é

o desafio da resistência ética. A ética para Morin, é, portanto, a resistência à barbárie que está

em nós, remetendo-nos a tolerância, a compaixão, a mansidão e a misericórdia (2007, p. 200).

É no exercício ético que podemos encontrar esperanças e novas possibilidades de convivência

fraterna e solidária:

Podemos resistir à crueldade do mundo e à crueldade humana pela solidariedade, pelo amor, pela religação e por comiseração pelas infelizes vítimas. O combate essencial da ética é a dupla resistência à crueldade do mundo e à crueldade humana. “É impossível que o mal desapareça”, dizia

410

Sócrates em Teteto. Sim, mas é preciso tentar impedir o seu triunfo. (Morin, 2007, p.193)

Tal concepção moriniana de ética converge com a ética de Célia Linhares. Toda a sua

obra ressalta a necessidade de agirmos contra a barbárie, convocando a educação a constituir-

se como uma promotora da solidariedade, do sentimento de pertença nos estudantes, no

exercício da escuta e do diálogo, no acolhimento e no estabelecimento de relações pautadas

pelo amor e pelo afeto.

Sua visão de ética, deságua no sentido de esperança que defende em suas obras. Para

Célia Linhares, ter esperança e, conseqüentemente, constituir um pensamento utópico exige

engajamento, conhecimento, luta. “As decisões éticas não podem, em muitos casos, prescindir

de conhecimentos”, afirma a autora. (Célia Linhares, 1997, p.17). Para ela, a utopia não é o

sonho trivial, descolado de uma realidade, mas justo o contrário, é o sonho que reconhece que

a realidade tem muitas dimensões, e que historicamente, foram os movimentos inesperados e

considerados impossíveis, que construíram o possível. Para reconhecer na aparente fixidez da

realidade que está dada, as brechas para o surgimento de novos possíveis, é necessário

conhecer criticamente o tempo em que vivemos, desvendando as aparências e as idéias

absolutas e mantendo vigilância permanente. Nesse aspecto, reconhecemos em várias obras de

Célia sua crítica veemente a idéia difundida de que o capitalismo, por exemplo, e todo o modo

de funcionamento social e político que se sintoniza com ele, é algo que “não tem jeito”,

viveríamos “o fim da história”. Célia realça em muitos textos a necessidade de desvelarmos

esses discursos cegos, afirmando que só é possível pensar uma nova possibilidade se

compreendemos que o movimento da história é permanente, nutrindo-nos dos exemplos do

passado, nas mudanças que ensejaram e no sentido que possuem de resistência às imposições.

Nessa perspectiva, Célia Linhares convida a tomarmos os “bons espelhos” dos

movimentos e lutas que se insurgiram contra as aparentes “realidades imutáveis”, como

emblemas da capacidade concreta de mudança que podemos perpetrar. Nesse sentido, ética,

esperança e utopia são dimensões interdependentes na obra de Célia Linhares. Morin (2007)

ajuda a alargar a compreensão dessa idéia de utopia como crítica às aparências de uma

realidade contra a qual não se poderia lutar, crítica que também Célia faz. O autor afirma que

a ética complexa é de esperança ligada à desesperança, conservando a esperança quando tudo

parece perdido. Ela não é prisioneira do realismo que ignora o trabalho subterrâneo, minando

o subsolo do presente, a fragilidade do imediato, a incerteza encoberta pela realidade

aparente, rejeita o realismo trivial que se adapta ao imediato, assim como o utopismo trivial

411

que ignora os limites da realidade (2007, p. 198). Para Morin, a ética complexa sabe que há

um invisível no real. A esperança apega-se ao inesperado, ela não é certeza, dizer que se tem

esperança é afirmar que existem muitas razões para desesperar. A esperança do possível é

gerada sobre o impossível. (Morin, 2007, 198)

Assim, penso, é a ética de Célia Linhares. Aposta no possível ancorada no

conhecimento da realidade do mundo e do país, fruto de estudo e de visão crítica. Ética que

reconhece os movimentos que emergem na contramão das hegemonias (os movimentos

instituintes) e os valoriza, dando visibilidade a eles nos espaços de pesquisa e na universidade;

que se orienta por uma esperança permanente, que se forjou no reconhecimento e no

conhecimento, na própria carne, da potência destrutiva do homem, na injustiça, na crueldade.

Sua esperança não é ingênua, otimista, pueril. Ela é uma luta contra a morte, ela é a afirmação

da vida e do amor diante da força bruta e da capacidade que temos, todos nós, de nos

hostilizar, de fazer guerras. É uma ética-esperança que sonha outros mundos, que investe na

força do encontro, da solidariedade, da arte, da possibilidade e de tudo que surge daí.

É sua ética-esperança-utopia, que permite a que ela compreenda a possibilidade de

viver mais humanamente (Morin, 2007), assumindo as três dimensões da identidade humana:

a identidade individual, a identidade social e a identidade antropológica, dimensões que nos

permitem nos reconhecer nos laços da coletividade. Viver humanamente, é também viver

poeticamente a vida, numa fé ética que inclui razão e emoção, incertezas, inquietudes, como

nos diz Morin:

Viver poeticamente (...) acontece a partir de um certo patamar de participação, na excitação, no prazer, estado que pode ser alcançado na relação com o outro, na relação comunitária, na relação estética. É vivido com alegria, embriaguez, comemoração, gozo, volúpia, delícia, encantamento, fervor, fascinação, beatitude, deslumbramento, adoração, comunhão, entusiasmo, exaltação, êxtase. Produz satisfação carnal e espiritual. Leva-nos a alcançar o sagrado, um sentimento que aparece no apogeu da ética e do poético. O máximo da poesia, o máximo na união da sabedoria com a loucura, como o máximo da religação, é o amor. A fé ética é o amor. Mas é um dever ético proteger a racionalidade no coração do amor. Amor/racionalidade estão ligados um ao outro, é o amor que nos ensina a resistir à crueldade do mundo, que nos dá coragem, permite que vivamos na incerteza e na inquietude. É resposta para a morte, remédio para angústia. (Morin, 2007, p.202)

Para despedir-nos, vale relembrar o sonho de escola de Célia Linhares: A escola

Balaia. Nele encarnam-se todas as dimensões que abordamos até aqui. É uma escola de

412

esperança, de compromisso ético, de invenção do possível (utopia), do afeto e do

conhecimento. Retomemos, portanto, aspectos nucleares dos princípios da Escola Balaia:

Princípio da emancipação pela autonomia dos sujeitos, que busca o fortalecimento dos

sujeitos, reconhecendo a necessidade de que a autonomia escolar se alimente da cultura

popular e da teórico-tecnológica, aproximando conhecimento da vida e, ao mesmo tempo,

dando acesso à classe popular aos conhecimentos socialmente organizados. Autonomia que se

estende para a escola – que precisa ser participativa e vida, e para o indivíduo, que implica

em participação e fortalecimento dos vínculos da coletividade.

Princípio do atendimento da dignidade escolar, em que Célia chama atenção para as

violências em suas múltiplas formas que vão sendo fortalecidas no cotidiano social,

repudiando-as e conclamando para uma educação mais sensível, que contribua para um estilo

de produção mais humana.

Princípio da cidadania como aprendizagem escolar, em que afirma a importância de

reconhecer a educação como espaço de direito e de formação do cidadão. Entende por cidadão

aquele que se apropria de sua história, do valor de sua terra, que tem seus direitos vitais

garantidos – educação, saúde, moradia, respeito. Concebe o conhecimento, o “saber com

sabor” é um direito do cidadão e uma necessidade na construção de indivíduos capazes de

intervir na sociedade de forma potente, plenos de seus saberes. Acredita também nas relações

entre escola e comunidade, como vias de fortalecimento de ambas as instâncias.

Fechar essa tese não foi tarefa das mais fáceis. Quase como se despedir de um amigo

querido que vai se ausentar. Foram anos convivendo com essas idéias, articulando-as com a

minha própria vida e as experiências que, paralelamente, vivi. Tudo me parecia relevante e

construir um texto em que era necessário fazer escolhas foi um desafio. Desafio instigante

pois me permitiu compreender que ainda que Célia tenha uma fértil capacidade de criar e um

pensamento inquieto que discorre e discorreu sobre tantos assuntos, nos muitos textos que li,

o coração de sua obra ficou claro para mim. Tudo o mais, todas as outras reflexões, idéias,

discussões, me parecem nascer dessa mesma fonte: amor, esperança, ética.

Uma Grande Mestra, que lança palavras a seus discípulos e pesca as que eles

proferem, que aposta na autonomia e na potência do outro, reconhecendo seus saberes e suas

diferenças. Uma Mestra que vive permanentemente a própria luta e esforço para cunhar

esperanças, para pensar com sabedoria. Uma sabedoria, que como nos diz Morin, implica na

auto-ética, evitando a baixeza, evitando ceder às pulsões vingativas e maldosas (2007, p. 202).

Para isso, ele nos diz, é preciso muita autocrítica e auto-exame. “A auto-ética é antes de tudo

413

uma ética da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos são seres instáveis,

nos quais há possibilidades do melhor e do pior”. (Morin, 1998b, p. 61). Mestra do amor, que

se deixa contaminar pela verdade do outro, não impondo a sua própria, encontrando a sua

própria através da alteridade.

Que essa tese possa constituir-se em, pegando emprestado mais uma vez expressão tão

cara à Célia Linhares, “um bom espelho”, em que possamos, por meio do conhecimento e

compreensão da trajetória de uma Mestra em seus tempos, repensarmos a nossa própria

trajetória, os nossos próprios tempos e concepções sobre educação.

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