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Texto: Gerson Raugust (7º semestre) Fotos: Gabriela Cavalheiro (4º semestre) NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2012 | PÁGINA 10 cidadania Travestis e transexuais lutam por empregos Mesmo com formação superior e qualificação, preconceito impede a inserção no mercado de trabalho Peso do estigma A os 23 anos, Priscila Fróes têm dúvidas sobre o seu futuro profissional. A menos de um ano para se formar, a estudante de licenciatura em Artes Visuais de uma universidade privada ainda não sabe qual caminho seguir. Ela se divide entre lecionar em escolas ou se dedicar às aulas particulares, que considera mais rentável. Priscila está consciente de que suas dificuldades no início da carreira são maiores do que a de seus colegas. Ela faz parte de uma nova geração de transexuais que não quer ter no concurso público sua única possibilidade de trabalho formal. Apesar de não haver um levantamento oficial, a população de travestis e transexuais no Estado é superior a 5 mil pessoas, conforme estimativa da Igualdade RS. A ONG atua na luta pelos direitos, visibilidade e respeito à diversidade sexual e tem em seu cadastro profissionais da saúde, comunicação, direito, contabilidade entre outras. Entretanto, a presidente da entidade, Marcelly Malta, desconhece que um dos cadastrados trabalhe na iniciativa privada. Ela acrescenta que essa realidade não se restringe ao Estado. No encontro nacional realizado em janeiro em Porto Alegre, apenas uma participante tinha situação diferenciada. Uma enfermeira que trabalha em um hospital particular em Pernambuco. A própria Marcelly não conseguiu fugir a regra. Aposentada desde 2011, ela é técnica em enfermagem e trabalhou por 31 anos em um posto de saúde na Vila Cruzeiro do Sul, dentro da Fundação de Assistência Socioeducativo (Fase). O serviço público foi sua única alternativa. Porém, isso não significou tranquilidade no exercício da função. Conta que sua dedicação tinha que ser maior do que a dos colegas. “Foi muito difícil. Sempre tem que mostrar o melhor, não para competir, mas para mostrar que tu tens competência e merece estar ali.” Ela completa: “as pessoas têm muito preconceito, não aceitam que uma travesti seja colega deles, até mesmo as mulheres nos discriminam”. Do esforço veio o reconhecimento. Após 15 anos atuando na enfermaria, foi transferida para a área administrativa, onde era responsável pelos procedimentos e controle dos atendimentos até a sua aposentadoria. Seu desempenho rendeu homenagens, como medalhas e certificados pelo serviço prestado. Atualmente, além do trabalho na Igualdade RS, Marcelly preside o Conselho Municipal dos Direitos Humanos e é vice-presidente do Comitê Estadual Contra a Tortura. A experiência junto aos movimentos sociais faz com que a técnica de enfermagem não acredite na mudança imediata do quadro. Para ela, travestis e transexuais só estarão inseridas no mercado de trabalho em um futuro muito longo. Muitas já desistiram de procurar emprego, Marcelly argumenta que as transformações dependem dos empresários. “A gente precisa ser muito persistente. O mercado de trabalho só vai mudar depois que a sociedade mudar. É preciso ser pioneiro, dar o primeiro passo e abrir portas”, sustenta. Marcelly fala que a história da maioria das travestis e transexuais é semelhante. A família não aceita a escolha e as expulsa de casa ainda muito jovens. Como não conseguem completar os estudos e tampouco arranjam trabalho, acabam se prostituindo. A situação é agravada no Interior, principalmente em cidades menores. A alternativa é sair à noite, andar pelos guetos e frequentar a casa uma das outras. Poucas conseguem escapar deste destino, mas esbarram na dificuldade em conseguir outra forma de sustento. Joice Silva conseguiu. Natural de Santa Cruz do Sul, antes de se transformar trabalhou em duas indústrias de fumo na cidade. Na segunda, foi demitida por ser homossexual. Isso aconteceu há cerca de 30 anos e a solução foi se mudar para Porto Alegre. Na Capital, fez curso para cabeleireira e atuou na área da beleza por 25 anos até se aposentar. Neste período nunca teve sua carteira profissional assinada. Nos encontros nacionais foram apresentadas estimativas de que apenas 2% das travestis e transexuais não atuam como profissionais do sexo. Esse contingente divide-se entre o funcionalismo público, área da beleza como autônomas ou profissionais liberais. Atualmente, Joice é militante da Igualdade. Ela relata que ouve de muitas o desejo de deixar a prostituição. “Muitas meninas querem deixar de ser profissionais do sexo e arranjar emprego formal, mas não têm oportunidade. Você preenche um currículo e, ao chegar à empresa, se eles identificam que é travesti, barram na frente, ali na mesma hora”, denuncia. Ela reclama que é difícil ter acesso a uma disputa por vagas em decorrência do estigma. “As pessoas acham que somos somente profissionais do sexo, hoje é preciso ter outra visão. Existem pessoas capacitadas, com potencial para se desenvolver em qualquer área, só precisamos de uma chance, que é algo que a gente não tem”, completa. A crítica ao estereótipo é endossada por Marcelly. “Parece que a sociedade sempre nos vê como prostitutas, a questão da sexualidade acima de tudo, sempre”. Joice Silva é uma das poucas bem sucedidas, mesmo sem carteira profissional assinada

Travestis e transexuais lutam por emprego

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Reportagem publicada na versão impressa do Editorial J (1º edição de 2013)

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Texto: Gerson Raugust (7º semestre) Fotos: Gabriela Cavalheiro (4º semestre)

NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2012 | PÁGINA 10

cidadania

Travestis e transexuais lutam por empregosMesmo com formação superior e qualificação, preconceito impede a inserção no mercado de trabalho

Peso do estigma

NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2012 | PÁGINA 11

A os 23 anos, Priscila Fróes têm dúvidas sobre o seu futuro profissional. A menos de um ano para se formar, a estudante de licenciatura em Artes Visuais de uma universidade privada ainda não sabe

qual caminho seguir. Ela se divide entre lecionar em escolas ou se dedicar às aulas particulares, que considera mais rentável. Priscila está consciente de que suas dificuldades no início da carreira são maiores do que a de seus colegas. Ela faz parte de uma nova geração de transexuais que não quer ter no concurso público sua única possibilidade de trabalho formal.

Apesar de não haver um levantamento oficial, a população de travestis e transexuais no Estado é superior a 5 mil pessoas, conforme estimativa da Igualdade RS. A ONG atua na luta pelos direitos, visibilidade e respeito à diversidade sexual e tem em seu cadastro profissionais da saúde, comunicação, direito, contabilidade entre outras. Entretanto, a presidente da entidade, Marcelly Malta, desconhece que um dos cadastrados trabalhe na iniciativa privada. Ela acrescenta que essa realidade não se restringe ao Estado. No encontro nacional realizado em janeiro em Porto Alegre, apenas uma participante tinha situação diferenciada. Uma enfermeira que trabalha em um hospital particular em Pernambuco.

A própria Marcelly não conseguiu fugir a regra. Aposentada desde 2011, ela é técnica em enfermagem e trabalhou por 31 anos em um posto de saúde na Vila Cruzeiro do Sul, dentro da Fundação de Assistência Socioeducativo (Fase). O serviço público foi sua única alternativa. Porém, isso não significou tranquilidade no exercício da função. Conta que sua dedicação tinha que ser maior do que a dos colegas. “Foi muito difícil. Sempre tem que mostrar o melhor, não para competir, mas para mostrar que tu tens competência e merece estar ali.” Ela completa: “as pessoas têm muito preconceito, não aceitam que uma travesti seja colega deles, até mesmo as mulheres nos discriminam”.

Do esforço veio o reconhecimento. Após 15 anos atuando na enfermaria, foi transferida para a área administrativa, onde era responsável pelos procedimentos e controle dos atendimentos até a sua aposentadoria. Seu desempenho rendeu homenagens, como medalhas e certificados pelo serviço prestado. Atualmente, além do trabalho na Igualdade RS, Marcelly preside o Conselho Municipal dos Direitos Humanos e é vice-presidente do Comitê Estadual Contra a Tortura.

A experiência junto aos movimentos sociais faz com que a técnica de enfermagem não acredite na mudança imediata do quadro. Para ela, travestis e transexuais só estarão inseridas no mercado de trabalho em um futuro muito longo. Muitas já desistiram de procurar emprego, Marcelly argumenta que as transformações dependem dos empresários. “A gente precisa ser muito persistente. O mercado de trabalho só vai mudar depois que a sociedade mudar. É preciso ser pioneiro, dar o primeiro passo e abrir portas”, sustenta.

Marcelly fala que a história da maioria das travestis e transexuais é semelhante. A família não aceita a escolha e as expulsa de casa ainda muito jovens. Como não conseguem completar os estudos e tampouco arranjam trabalho, acabam se prostituindo. A situação é agravada no Interior, principalmente em cidades menores. A alternativa é sair à noite, andar pelos guetos e frequentar a casa uma das outras. Poucas conseguem escapar deste destino, mas esbarram na dificuldade em conseguir outra forma de sustento.

Joice Silva conseguiu. Natural de Santa Cruz do Sul, antes de se transformar trabalhou em duas indústrias de fumo na cidade. Na

segunda, foi demitida por ser homossexual. Isso aconteceu há cerca de 30 anos e a solução foi se mudar para Porto Alegre. Na Capital, fez curso para cabeleireira e atuou na área da beleza por 25 anos até se aposentar. Neste período nunca teve sua carteira profissional assinada. Nos encontros nacionais foram apresentadas estimativas de que apenas 2% das travestis e transexuais não atuam como profissionais do sexo. Esse contingente divide-se entre o funcionalismo público, área da beleza como autônomas ou profissionais liberais.

Atualmente, Joice é militante da Igualdade. Ela relata que ouve de muitas o desejo de deixar a prostituição. “Muitas

meninas querem deixar de ser profissionais do sexo e arranjar emprego formal, mas não têm oportunidade. Você preenche um currículo e, ao chegar à empresa, se eles identificam que é travesti, barram na frente, ali na mesma hora”, denuncia.

Ela reclama que é difícil ter acesso a uma disputa por vagas em decorrência do estigma. “As pessoas acham que somos somente profissionais do sexo, hoje é preciso ter outra visão. Existem pessoas capacitadas, com potencial para se desenvolver em qualquer área, só precisamos de uma chance, que é algo que a gente não tem”, completa. A crítica ao estereótipo é endossada por Marcelly. “Parece que a sociedade sempre nos vê como prostitutas, a questão da sexualidade acima de tudo, sempre”.

Joice Silva é uma das poucas bem sucedidas, mesmo sem carteira profissional assinada

Diversidade em sala de aula

Os desafios de Priscila

NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2012 | PÁGINA 11

A professora Marina Reidel concorda com Joice e Marcelly. “O problema é o estigma de que tu tens que estar na (Avenida) Farrapos se prostituindo, se estás em outros lugares causa estranhamento. Quando descobrem que tu és transexual e professora cai o mundo. As pessoas ficam impressionadas porque parece que a gente é um objeto sexual o tempo inteiro e está ali só para isso. Quando comento que faço mestrado, aí sim é o fim do mundo para muita gente”.

Marina é professora da rede pública estadual com carga de 30 horas, sendo 10 horas ministrando aula de educação artística em uma escola de ensino fundamental de Porto Alegre e as outras 20 horas na Secretaria de Educação com treinamento sobre Direitos Humanos aos professores do Estado. Também leciona em uma fundação de Montenegro, sua terra natal, para jovens e adultos. Além disso, ela é a primeira transexual do estado a

iniciar o mestrado. Seu objeto de estudo é

exatamente os professores transexuais, suas histórias e a organização da vida profissional. Até o final do primeiro semestre de 2012, ela já havia localizado 55 professores no Brasil, sendo 12 no Rio Grande do Sul. As experiências se assemelham, como agressões enquanto estudante, olhar atravessado de diretores e colegas e o positivo na relação com os alunos.

A realidade de Marina não é muito diferente. Após uma rápida passagem pela sala de professores, onde parecia invisível ao olhar dos colegas, tem dificuldade para percorrer o curto percurso até a sala de aula. Os alunos a abordam o tempo inteiro com abraços, beijos, acenos e sorrisos. No quadro seu nome estava escrito em letras garrafais, com o ponto da letra “i” substituído por um grande coração.

A professora conta que, há dois anos, foi

Até falar com Marina, Priscila teve diversas dificuldades. Mesmo sem repetir a trajetória tradicional das transexuais, não teve facilidades. Priscila não foi expulsa de casa, porém seus pais nunca aceitaram a situação. Apenas nesse ano pode levar suas roupas para casa. Até então tinha algumas peças, o guarda roupa ficava na casa da madrinha que servia como um vestiário. Somente seus primos a chamam de Priscila, os outros parentes pelo nome de batismo.

Na escola vivia dois ambientes distintos. Com os colegas de turma não tinha problemas de relacionamento, entretanto sofria perseguições dos outros alunos. “Ou me odiavam ou me amavam. Na minha turma não tinha tanto

problema. No começo eu era amiga só das gurias, mas comecei a jogar RPG e os guris começaram a me aceitar e me tratar como menina. Para mim isso foi fundamental. Hoje tenho mais amigos homens do que mulheres. Foi muito bom eles terem me aceitado, mas sofri bastante na escola. Teve quem me jogou pedra, fui humilhada publicamente. O pai de um aluno parou o carro para que o filho e os amigos pudessem me ofender”, lembra.

Ela denuncia que a escola sempre se omitiu quanto à questão. “Quando assumi na escola que seria Priscila, a orientadora me botou na frente de um espelho e perguntou, de forma agressiva, o que eu via ali. Nunca parou para conversar ou perguntar como me sentia. A escola nunca teve um programa

que trabalha a diversidade. Isso não existe em escolas particulares, pelo menos na minha época, é um tabu para eles”, reclama.

Mesma assim, planejava realizar seu estágio na antiga escola. Conseguiu fazer no local as observações da parte preparatória. Porém, quando chegou o período de ministrar as aulas, aconteceu uma mudança na direção e ela foi barrada. A supervisora informou que era política interna e que mesmo antes não eram realizados estágios. “Eu não quis questionar, mas sei de colegas meus que fizeram estágio lá. Isso me machucou. Foi quando eu conheci a Marina”, relata.

Priscila teve uma experiência anterior também com alguns dissabores.

Conseguiu um estágio na Casa de Cultura Mário Quintana, quando iniciou sua transformação. O processo já levava nove meses quando houve uma cerimônia no local. “No evento, uma funcionária falou para que tivesse cuidado com a minha postura, pois eu representava o Governo do Estado. Eu me senti como se estivesse vestida de palhaço. Aquilo me fez voltar a vestir roupas de menino, só retomei as mudanças depois que ela saiu da Casa”, conta.

Determinada a não aceitar o concurso público como única alternativa profissional, conseguiu o emprego em um Call Center, onde trabalhou por dois anos. Ela comenta que esse tipo de empresa não se opõe a contratação de travestis e transexuais. Entretanto, não se passa da área de atendimento. “Eu tentei uma vez ser supervisora e óbvio não fui

aprovada”, comenta. Atualmente faz estágio

obrigatório no Ensino Médio em uma escola estadual. Para isso utilizou a estratégia de somente revelar que é transexual após tudo acertado para iniciar as atividades, se houvesse a negativa seria por preconceito. Acredita que toda a situação seria facilitada com a alteração de registro civil. Para ter maior chance de êxito, o ideal seria a realização da cirurgia para mudança de sexo, o que, para ela, é um procedimento de custo muito alto e que pelo SUS a espera é longa. Mesmo assim Priscila não desiste de seus objetivos e acredita que a qualificação irá ajudá-la na iniciativa privada. Além da faculdade, realiza cursos, fala inglês e se programa para iniciar aulas de alemão. Sabe que as dificuldades serão grandes, mas não se arrepende de suas escolhas.

conselheira de uma turma do último ano. Os alunos escolheram o parque Beto Carreiro World, em Santa Catarina, como destino da viagem de formatura. Foram diversas reuniões com os pais para a organização, sem nenhum tipo de problema. Porém, ela lembra do questionamento dos colegas sobre a aceitação dos pais ao fato de seus filhos viajarem com uma transexual. “Os colegas perguntavam, será que os pais vão deixar? Como se questionassem se permitiriam que os filhos viajassem comigo. Duas mães me acompanharam e fomos com 15 alunos e não teve nenhum problema. Ninguém virou trans, gay ou lésbica”, comenta rindo.

A experiência e visibilidade conquistadas por Marina fazem dela uma referência. A professora é procurada por diversas transexuais que vêm nela uma inspiração para retomada dos estudos ou para pedir alguma ajuda ou orientação, como fez Priscila Fróes. Ela procurava um lugar para realizar o estágio obrigatório de seu curso no Ensino Fundamental. Marina auxiliou-a e conseguiu que fosse feito na escola em que leciona. Contrato de trabalho, entre as aspirações de Priscila