Thulio Caminhoto Nassa

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  • 8/15/2019 Thulio Caminhoto Nassa

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    THULIO CAMINHOTO NASSA 

     A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO

     ADMINISTRATIVO

    MESTRADO EM DIREITO

    SÃO PAULO

    2010

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    THULIO CAMINHOTO NASSA

     A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

    MESTRADO EM DIREITO ADMINISTRATIVO

    Dissertação apresentada à Banca

    Examinadora da Pontifícia Universidade

    Católica de São Paulo / COGEAE, como

    exigência parcial para obtenção do título de

    MESTRE em Direito Administrativo, sob

    orientação do Prof. Doutor Clovis Beznos.

    SÃO PAULO

    2010

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    BANCA EXAMINADORA

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     AGRADECIMENTOS

     À Marlene Caminhoto Nassa (mãe), Fernanda Nogueira Silveira Nassa (esposa),

    Giulia Silveira Nassa e Beatriz Silveira Nassa (filhas), mulheres da minha vida, grandes

    estrelas que me inspiram, guiam, incentivam e compreendem com esperança as horas

    que me dedico ao Direito. Não fossem elas, eu certamente não seria ninguém. Tudo

    faço em seus nomes. Com todo meu amor.

     Agradeço ao meu pai, Sandoval Antonio Lappa Nassa, jornalista e exemplo de

    cidadão, que durante toda sua vida lutou pela democracia e pela defesa dos direitos

    individuais e coletivos. Paradoxalmente fez despertar em mim o desejo pela carreira

     jurídica, e, em especial, pelo Direito Público.

     Agradeço também aos meus irmãos, Thiago Caminhoto Nassa, jornalista, e

    Thalissa Caminhoto Nassa, médica veterinária, que compartilharam comigo todas as

    descobertas da vida com imensa fraternidade, fortalecendo-me contra os medos e

    confortando-me contra as angústias.

     Agradeço, de maneira impenhorável, ao meu grande amigo, mestre e exemplo

    de vida, Professor Clovis Beznos, que, além da orientação deste trabalho, plantou em

    mim e noutros alunos do Mestrado o interesse apaixonado pelo estudo do regime

     jurídico de direito administrativo e de seus princípios informadores. Certamente destas

    generosas mãos surgirão administrativistas que farão eternos seus ensinamentos, os

    quais servem, e muito, ao direito hodierno.

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     Agradeço ao Professor Marcio Cammarosano, pelas contribuições oferecidas a

    este trabalho e, sobretudo, por me fazer enxergar o Direito além do horizonte, fruto de

    sua visão aguçada.

     Agradeço também ao Professor Fernando Dias Menezes de Almeida,

    componente da Banca Examinadora representando a Faculdade de Direito do Largo

    São Francisco (USP/SP), o que só me honra, sobretudo por ter fornecido valiosas

    contribuições sobre os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança.

    Por fim, agradeço a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a

    realização deste trabalho, como os Professores da PUC/SP Silvio Luis da Rocha

    Ferreira, Celso Antônio Bandeira de Mello, Lucia Vale Figueiredo, Maria Garcia, Ricardo

    Marcondes Martins, Maria Helena Diniz, Paulo de Barros Carvalho, dentre tantos outros.

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    RESUMO

    O objetivo deste trabalho consiste em revelar a boa fé diante do regime

     jurídico de direito administrativo, que a contamina e que lhe confere especial

    concepção.

    Justifica-se a necessidade científica de sua análise pelo fato de que,

    muito embora se apresente como princípio fundamental desse ramo do direito,

    não recebe da doutrina especializada um tratamento sistemático.

    A metodologia empregada caminha no sentido de identificar a origem da

    boa fé, analisar seu processo de transposição ao direito administrativo,

    conceituá-la, estabelecer suas diferenças com outros institutos jurídicos para

    que, ao final, seja possível descrever sua aplicação nas diversas atividades

    administrativas.

    É tratada nos aspectos subjetivo e objetivo, e também abordada como

    fenômeno jurídico da proteção à confiança na tutela do interesse público pelo

    administrador, conforme os padrões de conduta exigidos pelo Direito.

    Do desenvolvimento desta dissertação, resultou que a boa fé consiste

    num princípio dotado de autonomia científica no direito administrativo, e que

    incide em praticamente todas as espécies de atividade do Estado, além de

    receber da jurisprudência hodierna grande encampação.

    Palavras chave: boa fé, boa-fé, confiança, princípio, direito administrativo.

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    RESUME

    The objective is to prove the good faith before the legal system of

    administrative law, which infects and that its special design.

    Justifies the need for its scientific analysis by the fact that, while

    presenting himself as a fundamental principle of this branch of law, the doctrine

    does not receive specialized treatment routine.

    The methodology goes to identify the source of good faith, consider the

    process of implementing administrative law, its concept and identify differences

    with other legal institutions so that in the end, it is possible to describe its

    application in various administrative activities.

    It is treated in the subjective and objective aspects, and addressed as

    legal phenomenon of intellectual confidence in the protection of the public

    interest by the administrator, as the standard of conduct required by law.

    Developing this thesis, which resulted in good faith is a principle of

    scientific freedom endowed on administrative law, and deals on virtually all kinds

    of activity of the state, and receive the case today's big takeover.

    Keywords: good faith, confidence, principle, administrative law.

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    Capítulo III – A boa fé adminis trativa. 

    1 – Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus

    Gonzáles Peres).....................................................................................60

    2 - Análise do conceito na doutrina nacional..........................................69

    3 - Conceito próprio de boa fé administrativa.........................................81

    4 – Boa fé administrativa objetiva e subjetiva........................................85

    5 – Relações e diferenças com outros termos do direito

    administrativo.........................................................................................89

    5.1 - Desvio de poder.....................................................................90

    5.2 -. Proporcionalidade.................................................................93

    5.3 - Moralidade administrativa.......................................................97

    5.4 – Improbidade administrativa..................................................104

    5.5 – Segurança Jurídica .............................................................106

    5.5 - Dever de “boa administração”..............................................109

    Capitulo IV – Aplicação do princípio da boa fé administrativa.

    1. Introdução.......................................................................................112

    2. A boa fé e o ato administrativo........................................................113

    2.1. Sujeito...................................................................................115

    2.2. Motivo....................................................................................121

    2.3. Causa....................................................................................123

    2.4. Finalidade..............................................................................124

    2.5. Formalização.........................................................................127

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    3. A boa fé e o processo administrativo..............................................132

    3.1. Processo e procedimento......................................................132

    3.2. A boa fé no processo administrativo federal.........................133

    4. A boa fé em face do exercício de competência vinculada e

    discricionária.......................................................................................140

    5. A boa fé e os contratos administrativos..........................................147

    5.1. Contratos da Administração e contratos administrativos......147

    5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93...................149

    PARTE III – CONCLUSÃO

    PARTE IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    PARTE I – INTRODUÇÃO

    Após o reconhecimento de que o Direito, como sistema, não contém

    apenas regras literais, mas, especialmente, que também seleciona e positiva

    valores da experiência humana, e assim o faz exatamente para preencher o

    sentido e a finalidade das normas jurídicas, passou a fazer parte da rotina do

    cientista o papel de investigar o elemento comumente denominado princípio

     jurídico.

    Isto porque, numa visão dinâmica, sistemática, e ao mesmo tempo

     juspositivista do direito (ao menos numa concepção mais atual do positivismo

     jurídico), regra (lei stritu sensu) e princípio (valores juridicizados) precisam se

    interagir constantemente, numa relação lógica entre a positivação legal dos

    comandos permitidos, proibidos e obrigatórios (que são as regras), com o

    sentido e a finalidade que o Direito atribui a mesmos comandos (aferíveis pelos

    princípios).

    Nesse linha, o presente trabalho tem por finalidade o estudo mais

    aprofundado do princípio da boa fé no direito administrativo e não apenas de

    uma ou outra norma legal que sobre ela eventualmente viesse a dispor.

    Inicialmente será abordada a origem da boa fé (ainda que forma

    sintética), já que, na medida em que o Direito seleciona e recolhe da realidade

    humana um objeto que lhe é externo, se afigura adequado que a ciência do

    direito, para melhor descrevê-lo, possa conhecer a realidade na qual se

    configurou.

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    Em outras palavras, ao conhecer melhor a boa fé em si mesmo, será

    possível descrever sem grandes distorções aquilo que o Direito resolveu colher

    de fora para dentro de seu sistema.

    Nesse sentido, o objeto de estudo será, num primeiro momento,

    identificar o princípio na sua origem, especialmente no campo da filosofia (o que

    será feito, frisa-se, de forma resumida, tendo em vista o escopo do trabalho),

    para depois analisarmos sua evolução na história, e, ao final, ser possível

    enxergar seu processo de positivação pelo direito atual.

    No entanto, ao mesmo tempo em que se justifica a importância desta

    metodologia cognitiva, alerta-se para o fato de que, ao jurista importará, no final

    do processo de escolha, o princípio projetado pelo Direito e não o princípio

    enquanto mera realidade exterior.

    Ou seja, o estudo do princípio anterior ao sistema será útil para

    apreendermos seu conceito, mas por óbvio não poderá fundamentar, por si só,

    sua aplicação jurídica.

    Isto porque, nesse processo de passagem, o princípio que está dentro do

    campo do Direito sofre alterações em relação ao valor original, e isso ocorre

    exatamente pela carga de influência que recebe de outros valores juridicizados,

    que também gravitam a mesma órbita jurídica.

    Será possível perceber que a boa fé projetada no Direito, muito embora

    concebida fundamentalmente pela filosofia grega, apresentará alguns contornos

    peculiares, os quais se tornam ainda mais sensíveis em face do direito hodierno.

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    Nesse trecho do trabalho, procuraremos demonstrar que a boa fé,

    atualmente, emergiu no sistema como princípio geral, aplicável portanto a todos

    os ramos do direito.

    Conhecida originariamente e explicitada sua positivação jurídica, a

    proposta do trabalho passa a ser, a partir de então, descrever a boa fé

    especialmente no regime jurídico de direito administrativo, a fim de que

    possamos visualizar a projeção do princípio que nele se delineia de forma ainda

    mais categórica (razão pela qual passaremos a denominá-la como boa fé

    administrativa).

    Diante deste objetivo, o presente trabalho buscará superar uma sensível

    dificuldade, qual seja, o fato de que a doutrina nacional e quiçá internacional,

    infelizmente, não se dedicaram com o devido mister no delineamento do regime

     jurídico de direito administrativo, isto é, tomado como objeto principal do estudo

    científico (ou seja, tomado em si mesmo, e não apenas pelo estudo das normas

    que dele se projetam) - tal registro, aliás, pode ser constatado na monumental

    obra de Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo 1.

    Não obstante, sabe-se que a análise de um regime jurídico seria o

    método científico-descritivo que permitiria conhecermos sua estrutura e seus

    elementos formadores, isto é, que possibilitaria identificar o conjunto que faz

    emanar sentido próprio às normas  (princípios e regras). Assim, tal lacuna

    doutrinária tem provocado, em muitos casos, a inadequada percepção dos

    princípios que deveriam ser desenhados especialmente no âmbito do direito

    administrativo.

    1 Bandeira de Mello, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 22ª Edição, p. 51.

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    Por isso mesmo, o espírito desse trabalho consiste em revelar a boa fé

    diante de um regime jurídico próprio, que a contamina e que lhe confere especial

    concepção, já que referido princípio vem sendo relegado, muitas vezes, à

    doutrina civilista, a qual, muito embora forneça valiosos estudos, é filiada a outra

    ramificação sistemática, e, portanto, não poderia ter o papel de esgotar o tema

    para o direito administrativo.

    Ademais, a boa fé, quando é tratada no campo do direito administrativo,

    freqüentemente aparece, sem muita precisão, como simples referência de

    moralidade administrativa ou de desvio de poder (muito embora possa existir

    relações íntimas de implicação e aproximação entre os termos jurídicos

    assinalados), ou seja, como se o estudo destes dois institutos pudesse, de forma

    oblíqua, suprir os reclamos jurídicos para a compreensão daquela.

    Acredita-se, assim, que essa dissertação poderá contribuir modestamente

    para a ciência jurídica, como uma simples semente na missão muito maior de

    identificar corretamente um dos princípios que reputamos como relevante no

    regime jurídico de direito administrativo, estando positivado pela Constituição da

    República, e que, portanto, em razão da existência de um Estado Democrático

    de Direito, ainda devemos respeito, independentemente de ser ou não o mais

    desejável para determinados setores sociais, e por mais sedutoras que sejam as

    razões de ordem meta-jurídica invocadas.

    Ainda, ao contrário do que se possa imaginar, entendemos que a

    aplicação dos princípios positivados contribui sensivelmente para afastar o

    cidadão do risco de interpretações judiciais pessoais e arbitrárias, pois vinculará

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    o juiz a decidir de forma racional, isto é, conforme uma pauta de valores que não

    foram eleitos pessoalmente por ele, mas sim por meio de um processo

    democrático constituinte e legislativo.

    Da mesma forma, pode tornar mais efetivo o controle dos atos

    administrativos, uma vez que propicia aos administrados o conhecimento dos

    valores que a sociedade, expressada no direito, espera na conduta do

    administrador, muito além do simples respeito à formalidade da lei.

    Daí que a boa fé administrativa possa funcionar como elemento

    importante de controle dos atos administrativos, como verdadeiro princípio

     jurídico solucionador de causas judiciais nas quais a “letra fria” da lei (isto é, a

    regra isolada do princípio) seria por si só insuficiente - nesse sentido, lembremos

    dos êxitos logrados pela razoabilidade no controle do ato administrativo em

    competência discricionária, ou da impessoalidade, no caso do nepotismo, dentre

    tantos outros.

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    PARTE II - DESENVOLVIMENTO

    Capítulo I – O instituto da boa fé.

    1. Origem filosófica na Grécia. 2. Origem no direito romano. 3. A boa fé no direito

    alemão. 4. A boa fé no direito civil brasileiro. 5. A boa fé como princípio geral no direito

    brasileiro.

    1. Origem fi losófica na Grécia.

    A expressão exata ou o signo específico denominado boa fé, atualmente

    utilizada em termos semânticos para expressar o princípio jurídico que é objeto

    deste trabalho, aparece como tal, e originariamente, no direito romano (o que

    será tratado no item 2 deste capítulo).

    Assinala-se, por isso, que a remissão grega é pouco mencionada nos

    estudos a respeito da matéria.2 

    No entanto, a par do seu significado etimológico, veremos que os ideais

    da boa fé, antes dos romanos, já haviam sido detectados pelos filósofos gregos,

    sobretudo no campo das regras morais 3.

    2  Nesse sentido, vide na literatura brasileira, José Guilherme Giacomuzzi, em “A MoralidadeAdministrativa e a Boa-Fé da Administração Pública”, Malheiros, 2002, e, na literatura estrangeira,Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, em “Da Boa Fé no Direito Civil”, Coleção Teses,Almedina, 2007. Ainda, a ausência da remissão grega também é sentida na festejado obra de JesusGonzáles Peres, quando trata “El Principio General de La Buena Fe en El Derecho Administrativo, 3ª Ed,Madrid, Editora Civitas, 1999.3 Tomamos a expressão regras morais no sentido que lhe atribui Hannah Arendt, em “Algumas questões defilosofia moral”, p. 113, isto é, como sendo aquelas que dizem respeito à conduta e ao comportamentoindividual, às regras e aos padrões segundo os quais os homens costumam distinguir o certo e o errado esão invocados para julgar ou justificar os outros e a si mesmo.

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    Com efeito, a antiguidade anterior à filosofia grega era marcada pela

    reunião da moral em torno da religião, a qual era a fonte criadora dos deveres de

    comportamento. Logo, o homem, inserido nesse contexto, deveria se comportar

    de acordo com um mandamento divino ou sagrado, ou seja, na obediência pura

    a seres supremos, mitológicos, símbolos ou outras coisas imateriais.

    Ocorre que os gregos, preocupados em romper com estas tradições,

    passaram a estudar, por meio da natureza humana (e não sobre-humana),

    padrões de comportamento que pudessem ser racionalmente identificados como

    certos ou errados, como virtuosos ou desvirtuosos.

    Encontraram, pois, na própria realidade humana de viver em sociedade,

    parâmetros objetivos de conduta (standards) que eram necessários para manter

    o convívio entre seus indivíduos, tais como aqueles relacionados ao bom pai de

    família, ao bom amigo, ao bom cidadão, dentre outros modelos que serviam aos

    interesses da sociedade grega, em detrimento da mera vontade individual ou

    egoísta de seus membros, ou ainda da vontade arbitrária dos Deuses 4.

    Logo, é a partir da razão, ou seja, da observação dialética sobre a

    realidade social do homem (e não mais da obediência ao mítico), que os gregos

    passam a identificar um conjunto de comportamentos dotados de

    perceptível constância na consciência social  e que, por isso, deveriam ser

    seguidas como certos, virtuosos.

    4 Dentre as obras de filosofia grega que tratam da busca das regras de comportamento pela observação darealidade humana, nos baseamos em Platão, por meio da dialética ou técnica de investigação conjunta (“ARepública”) e Aristóteles, segundo o qual a construção das virtudes se dá pelo hábito, entendido como aação humana repetida (“Ética a Nicômaco”).

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    Como bem disse Hannah Arendt, esse processo de identificação de

    comportamentos humanos objetivados por uma sociedade, e de forma racional,

    ocorre pela existência da chamada “teia de relações humanas” 5, ou seja, num

    processo de exteriorização das ações e discursos de cada indivíduo perante um

    grupo ou conjunto social, compondo um conteúdo histórico, concreto e

    materializado, da realidade humana, a que todos integrantes, pelo registro

    gerado, podem consultar.

    Trata-se, portanto, de uma teia, de uma verdadeira e concreta trama

    social, na qual os indivíduos deixam sua marcam quando agem e quando falam.

    Marcas estas que, ao longo do tempo, demonstrarão a coerência do

    comportamento com o discurso de cada indivíduo, bem como os padrões de

    comportamentos adotados numa sociedade.

    E, exatamente diante deste modelo filosófico, surgem as primeiras idéias

    da boa fé, as quais estavam ligadas inicialmente à necessidade da promessa,

    ou melhor, da necessidade da coerência entre a palavra e a ação futura de

    cada membro da sociedade, o que era registrado exatamente pela “teia de

    relações”.

    Isto porque, para que se pudesse controlar ou minimizar os riscos da

    imprevisibilidade do comportamento humano - o que atentava contra a

    subsistência da unidade social  - se fazia necessário colher do indivíduo a

    palavra da conduta futura segundo a qual se comprometeria a exercer, pois

    apenas assim a sociedade poderia dele esperar algo e cobrá-lo nesse sentido.

    5 Arendt, Hannah. A condição humana, p.189-191.

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    Assim, ao registrar sua promessa na “teia de relações humanas”, tornar-

    se-ia possível aferir, concreta e objetivamente, a coerência de sua intenção com

    a ação produzida.

    Surge, destarte, o que chamamos do dever da boa fé, como condição

    necessária para a manutenção do convívio social. Ou seja, torna-se fundamental

    que o cidadão cumpra com a conduta prometida ou com a intenção declarada, e,

    portanto, nessa medida esperada pela sociedade, sob pena de provocar

    verdadeira insegurança contra o “pacto social”.

     A boa fé relaciona-se, nesse mister, com a vi rtude da verdade em

    cada pessoa (promessa versus uma ação coerente). Daí fala-se em boa fé

    subjetiva.

    Além do mais, a partir do registro histórico e continuado das promessas

    e das ações realizadas pelos indivíduos componentes na mencionada “teia de

    relações”, a própria sociedade (e não mais o indivíduo isoladamente) passa a

    escolher aqueles padrões de comportamento (standards) que se mostraram

    reiteradamente, e conforme os diversos processos de eleição, mais virtuosos

    para a vida social, e que, portanto, todos deveriam adotar daqui para frente, e

    isto tudo independentemente da vontade ou da intenção de cada um.

    Eis que, de forma concomitante e da mesma raiz filosófica, emerge a

    boa fé também no aspecto objetivo. Diz respeito ao dever de exercer a

    conduta futura de acordo com padrões eleitos de forma convencional, de

    maneira objetiva, e, portanto, independentemente da vontade ou da

    promessa específica (traços subjetivos) de um determinado indivíduo.

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    Sobre esse processo de eleição de comportamentos esperados, que a

    torna objetiva, interessante anotar as idéias já percebidas por Aristóteles e

    citadas de forma muito bem garimpada por Camilla de Jesus Mello Gonçalves,

    em valiosa obra sobre referido princípio 6 (obra esta com enfoque prevalente no

    campo da filosofia e do direito civil).

    Vejamos, pois, seu precioso registro:  “Aristóteles reconhece que as

    ações belas e justas investigadas pela “ciência política não são passíveis de

    raciocínios precisos por igual, devendo-se admitir uma variedade e uma

    flutuação de opiniões. Diante disso, concluiu que as ações belas e justas não os

    são por natureza, mas sim por convenção, devendo-se contentar com a

    indicação da verdade por aproximação e em linhas gerais. Essa idéia aplica-se

    ao conceito de boa-fé objetiva, pois os parâmetros de conduta são

    estabelecidos, por convenção, a respeito do que é desejado e admitido e do que

    não é. Por outro lado, a mesma concepção pode ser dirigida as criticas à

    utilização de cláusulas abertas, baseadas em sua definição imprecisa, pois a

    impossibilidade de exatidão do conceito não o torna maléfico, sendo possível

    construir uma idéia de boa-fé "por aproximação e em linhas gerais". Assim,

    evita-se a insegurança e permite-se a consideração de elementos importantes

    na formulação de respostas pelo Direito.” 7 

    E, assim, a partir da objetivação convencional dos standars, ocorrida

    inicialmente no campo social e antropológico da “teia de relações” (como visto),

    é que a boa fé passará para o campo do direito, na medida em que o homem,

    6 Princípio da Boa-Fé, Perspectivas e Aplicações, Campus Jurídico, 2008.7 Idem; cit. p. 14.

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    futuramente, positivará padrões sociais de comportamento virtuosos na “teia de

    relações” como normas jurídicas, isto é, dotadas de coercibilidade estatal (o que

    veremos a partir do item 3 deste Capítulo).

    Logo, nesse momento é importante registrar que as primeiras idéias

    relevantes da boa fé surgem na Grécia, sendo relevante para esse trabalho fixar

    que referido valor aparece na qualidade de espécie de regra moral de

    comportamento, que é necessária à manutenção da unidade ou “pacto” da vida

    social, e que especialmente se relaciona com o dever de coerência da promessa

    de cada indivíduo com sua ação (boa fé subjetiva), bem como do dever de

    exercer a conduta futura independentemente de sua vontade, mas de acordo

    com standards objetivamente eleitos pela sociedade (boa fé objetiva).

    Aí estão, efetivamente, os elementos de formação inicial da boa fé e que

    o direito, mais para frente, resolveu encampar, ainda que sobre ela tenha

    atribuído especial coloração num dado momento histórico.

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    De outro lado, ao analisar a boa fé pelo Direito e não meramente pela

    Etimologia, verificar-se-á, em Roma, a presença dos mesmos elementos

    apreendidos pela filosofia grega, mas agora transportados para o campo do

    direito. E, por essa razão, foram os romanos quem efetivamente desenvolveram-

    na, pois produziram sobre ela normas jurídicas (regras e princípios) que até

    hoje, sobretudo no direito civil, aplicamos quase que integralmente.

    Daí haver igual relevância analisar, ainda que de forma sintética

    (reconheça-se), a boa fé no direito romano.

    Para o estudo do tema, encontrar-se-á na magistral obra “Boa-Fé no

    Direito Civil Português”, de Menezes Cordeiro, uma consistente e abrangente

    visão de seu aparecimento e evolução, razão pela qual a ela recorremos 10.

    Com efeito, referido autor relata que a boa fé romana surge com a idéia

    de fides, a qual continha três enfoques distintos.

    (a) Fides-sacra, documentada em diversas normas religiosas: (a1)

    extraída na Lei das XII Tábuas, quando esta prescrevia sanções religiosas

    contra o patrão que defraudasse a fides do cliente (Patronus si clienti fraudem

    fecerit, sacer esto); (a2) no culto à deusa Fides, que solenizava o ritual da

    entrega da palavra e da lealdade pelo homem diante desta entidade divina 11;

    (a3) na análise de poderes extensos atribuídos, pela Igreja, ao pater   sobre a

    família, e nas fórmulas iniciais de sua limitação.

    (b) Fides-facto, assim denominada por apresentar-se autônoma em

    relação às regras religiosas ou puramente morais. Tal acepção também

    10 Da Boa-Fé no Direito Civil. Coleção Teses. Almedina, p. 53/70.11 Vide nota 6.

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    compreendia a fides  como uma espécie de garantia, relacionada ao instituto

     jurídico da clientela. No entanto, citando a leitura Beseler (ACI Roma I, 1934,

    133-167 e 141), Menezes Cordeiro aponta que a fides-facto  concebida pelos

    romanos trazia a idéia de ligação entre os indivíduos por um fato humano, qual

    seja, o empenhamento da palavra, que os uniria exatamente por essa ocorrência

    (um fato), tal como o faria a lótus grega (flor de origem indo-européia utilizada

    para atar coisas).

    (c) Fides-ética, concebida desde o momento em que a garantia

    expressa pela fides  passou a residir na qualidade de uma pessoa, e, portanto,

    ganhando coloração moral. Mais do que em simples fato, a fides implicaria agora

    o sentido de dever. 12 

    Diante desta panorama, mister reconhecer que o direito romano, muito

    embora fosse excessivamente formalista, adota a fides para permitir ao pretor,

    no julgamento do caso concreto, uma investigação além da simples letra da lei,

    mas também comprometido em assegurar o respeito dos deveres assumidos

    pelas partes, pelas crenças depositadas e pelas promessas feitas. Exemplos

    desta positivação tem-se claramente no surgimento, pelos romanos, dos

    institutos da boa fé contratual, ou da boa fé  do possuidor , como condição de

    aquisição de bem imóvel por usucapião.

    Desta feita, o direito romano encampa a boa fé, sobretudo no aspecto

    subjetivo, e lhe confere positivação jurídica, relacionando-a, portanto, com o

    dever de lealdade de uma parte para com outra, quer seja numa relação

    obrigacional, quer seja numa relação de direito real.

    12 Idem nota 8, p. 55/56.

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    Posteriormente, os romanos também percebem que, no comportamento

    leal à parte contrária, não poderia ser levado em conta apenas o compromisso

    assumido pela palavra dada por alguém (subjetivo), uma vez que este mesmo

    compromisso poderia ser injusto.

    Assim, pela insuficiência da fides  isolada para o alcance da justiça,

    acrescentam-lhe o qualificativo bonna (bonna fides), no sentido de que a palavra

    assumida não deveria apenas ser honrada, mas, antes disto, deveria ser justa,

    ou seja, conforme a pauta de valores aplicada no caso concreto por quem

    detinha o papel de dizer o direito (daí um exemplo magno da importância da

    construção da jurisprudência romana; daí a intimidade da boa fé com a

    necessidade de introduzir valores no ordenamento jurídico, ainda que emergidos

    pelo pretor).

    Tem-se, portanto, pontuadas as primeiras positivações jurídicas do valor

    da boa fé, mantendo-se, como evidenciado, os principais elementos de sua

    formação filosófica.

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    3. A boa fé no Direito Alemão.

    Nesse tópico, dedicaremos algum esforço para tratar da boa fé no

    direito alemão, o que faremos em razão de sua peculiar formação e

    desenvolvimento, os quais, de certa forma, influenciaram a encampação do

    princípio jurídico no Brasil.

    A “boa fé” no Direito Alemão, segundo Staudinger (citado por Karina

    Nunes Fritz 13), não teria relação de descendência direta com a bonna fides do

    Direito Romano, mas seria proveniente das expressões Guten Glauben (boa fé

    subjetiva) e Treu und Glauben (boa fé objetiva), as quais teriam suas raízes nas

    tradições medievais dos “juramentos de honra dos cavalheiros”, impregnados

    pelas idéias de lealdade, retidão de conduta, honra, fidelidade à palavra dada e

    consideração pelo outro.

    Nessa linha, treu significava, segundo Heinrich Dorner, “um

    comportamento que compreendesse confiança, sinceridade e consideração na

    relação dos participantes.” E glauben significa  “a confiança nesse tipo de

    comportamento da outra parte. A combinação das palavras contém, com isso, a

    necessidade de um comportamento honesto e leal, com justas considerações

    aos interesses legítimos do outro. Essa necessidade compreende a idéia de

    proteção da confiança”. 14 

    No entanto, a par das diferenças culturais, etimológicas e influências

    que receberam, evidente reconhecer que, em ambos os casos (romano e

    13  Julius Von Staundinger aparece citado por Karina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 89/91.14 Citado por Karina Nunes Fritz. “Boa-Fé Objetiva na fase Pré-Contratual”. p. 90.

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    germânico), o núcleo central da boa fé seria semelhante, pois diz respeito à

    proteção jurídica da confiança, do cumprimento da palavra, ou seja, dos valores

    “verdade”e “coerência” , fazendo crer que esta realmente afigura-se como

    objeto inerente e essencial para a segurança dos indivíduos ao viver em

    sociedade, independentemente do momento histórico-cultural.

    Destarte, a diferença mais sensível entre o conceito da boa fé romana e

    da germânica pode ser encontrada no fato de que a bonna fides se propagava

    na Idade Média de forma distinta daquela que surgia com os povos germânicos.

    A primeira passava por uma forte influência do cristianismo, o qual unificou o

    conceito de boa fé em torno do pecado, retrocedendo-a, portanto, ao aspecto

    subjetivo 15.

    Por sua vez, a Treu und Glauben germânica, exatamente por se manter

    imune à influência cristã, foi concebida, naquele momento, com significação

    distinta, desprovida, pois, do elemento subjetivo pecaminoso.

    Logo, o que sobreleva anotar no Direito Alemão é que, a partir da Idade

    Média, foram os germanos quem melhor desenvolveram a boa fé no aspecto

    objetivo, enquanto Roma mergulhava no chamado “período das trevas”,

    queimando livros, fazendo cruzadas, perseguindo cientistas e, de forma geral,

    cegando os olhos dos cidadãos para o conhecimento científico que fugisse à

    doutrina religiosa.

    Com efeito, os germanos passaram a reconhecer que numa relação

     jurídica existem deveres (de boa fé) que dizem respeito estritamente às

    15 A influência cristã sobre a bonna fides romana, na Idade Média, e sua distinção com a Treu und Glauben germânica, também é abordada por Menezes Cordeiro, em “A Boa-Fé no Direito Civil”, bem como deKarina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”.

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    obrigações recíprocas entre as partes, da mesma forma em que há deveres (e

    também de boa fé) que não se relacionam estritamente às obrigações das

    partes, mas sim a deveres secundários, anexos, correlatos, e até mesmo

    sociais, ou ainda que possam atingir terceiros, externos ao pacto obrigacional.

    Esta seria, pois, a feição objetiva da boa fé de maior intensidade que a

    história do direito concebeu, isto é, no dever de cumprir regras objetivadas pela

    sociedade e que são externas à simples promessa feita pelas partes, o que o

    direito hodierno passou a encampar.

    Assim, por exemplo, o Código Civil do Estado de Baden, de 1810,

    prescrevia, no art. 1134, III, que os contratos deveriam ser executados

    honestamente.”  Ademais, no art. 1135, que os contratos vinculam também a

    tudo aquilo que decorre da “equidade, dos usos e das leis”, o que fora

    reproduzido, em essência, nos Códigos da Renânia (1814), da Saxônia (1863) e

    de Dresden (1866).

    Ou seja, a proteção jurídica não se limitaria aos sujeitos ou as

    obrigações principais pactuadas por eles, mas incluiria deveres anexos, como os

    de equidade e honestidade, entre eles e com terceiros.

    Proteger-se-ia, em última analise, a própria sociedade em geral,

    fazendo com que o direito alemão atingisse notável grau de abstração e

    objetividade no que tange à aplicação da boa fé.16 

    16   Nesse particular, convém transcrever trecho do estudo de Karina Nunes Fritz (“Boa-Fé Objetiva na fasePré-Contratual”. p. 47 e 51), a qual, pelo escopo de seu trabalho, faz longa pesquisa sobre a boa fé noDireito Alemão: “Percebe-se do exposto que a noção de relação obrigacional na Alemanha – melhor seria falar em fenômeno obrigacional – tem uma dimensão muito ampla e abrangente que supera muito a visãode obrigação como vinculo jurídico entre devedor e credor em função do qual pelo menos um deve uma prestação ao outro, cuja origem repousa na concepção romana de obrigação, difundida no Ocidente com arecuperação do direito romano. O primeiro golpe desferido no sólido conceito de obrigação foi obra da

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    Não obstante, para justificar a pertinência da realidade germânica no

    estudo da boa fé no direito brasileiro, bastaria verificar que o direito civil

    contratual encampou tais deveres de conduta em relação aos contratantes

    reciprocamente, mas também destes em face da chamada “função social” do

    contrato.17 

    É o que se colhe dos artigos 2421 e 422 do CC Brasileiro de 2002, in

    verbis:  Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

    função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na

    conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

    Posto isto, tem-se, por essas simples assertivas, desde já justificada a

    proposta de trazer à colação um panorama, ainda que resumido, da boa fé no

    direito germânico, na medida em que, de forma íntima, influenciou o direito

    nacional com a teoria objetiva que especialmente cuidou de talhar.

     jurisprudência alemã que, logo após a Primeira Guerra Mundial, deixou de considerar a obrigação comouma prestação do credor – superando a própria visão do direito das obrigações como o estatuto do credor – e passou a concebê-la como um processo ou organismo, dinâmico, no dizer de Heinrich Siber, composto por uma gama de direito e deveres.”E ainda, citando Clóvis de Couto e Silva e Martins-Costa, referida autora relata: “Clóvis de Couto e Silva,

    amparado na doutrina alemã, defendeu pioneiramente a compreensão da obrigação como um processoteleológico composto por um conjunto de direitos e deveres dirigidos a uma finalidade comum e issoinfluenciou sensivelmente o pensamento brasileiro. Seguindo seus ensinamentos, a doutrina maisatualizada postula a superação da concepção tradicional de obrigação como vínculo estático em funçãodo qual apenas o sujeito ativo tem direitos. ... (Martins-Costa) Arremata, porém, que a imagem de uma pessoa a que incumbem os direitos e outra obrigada ao dever de cumprimento é, na verdade, umaconcepção demasiadamente simplista para ser real. Em torno de cada u dos intervenientes da relação secompõe um feixe de direitos, obrigações, deveres secundários, anexos, poderes formativos, ônus etc.,articulados dinamicamente.”.

     No esmo sentido, confira Arnold Wald, em “Direito Civil - Direito das Obrigações e Teoria Geral dosContratos”, p. 212.17  Interessante anotar que a boa fé contratual do Código Civil é aplicável nos contratos administrativos

     brasileiro, por força do art. 54 da Lei Federal 8.666/93.

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    4. A boa fé no direito civil brasileiro.

    O primeiro ramo que se ocupou do instituto da boa fé no direito brasileiro

    foi, efetivamente, o direito civil, e talvez por isso o desenvolvimento do tema e

    sua positivação, nele, ocorreram de forma mais notável.

    No entanto, o que mais nos interessará, para o objeto deste trabalho,

    passa a ser a influência e a penetração da boa fé civil no direito administrativo, e

    não preponderantemente o estudo completo dela própria (o que certamente

    demandaria uma dissertação específica e à parte).

    Por isso mesmo, procuraremos traçar de forma resumida suas bases no

    direito civil para depois meramente projetá-la no direito administrativo (aliás,

    anote-se que o Capítulo III, 1 e 2, tratará da boa fé administrativa  como figura

    própria e diversa).

    Com efeito, sobre o surgimento da boa fé civil, convém registrar que o

    civilista Adalberto Pasqualatto anotara que o Direito Civil Brasileiro já havia

    positivado-a pelo Código de 1916, ainda que de forma implícita e na sua forma

    subjetiva – reconheça-se. 18 

    Destacou na ocasião o art. 120, pois tal dispositivo conferia

    conseqüências diversas segundo o “mau comportamento” das partes numa

    relação obrigacional. Isto porque considerar-se-ia verificada a condição cujo

    implemento fora maliciosamente  obstado pela outra parte; e não verificada a

    condição maliciosamente  levada a efeito por aquele a quem seu implemento

    18 “A boa-fé nas obrigações civis”. In: O ensino jurídico no limiar do novo século. Edição comemorativa docinqüentenário da Faculdade de Direito.

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    aproveitava, ou seja, a norma determinava nitidamente a inversão do efeito da

    condição contra aquele que atuasse de má fé.

    Além das observações de Pasqualatto, ainda podemos citar ainda outras

    passagens no Código Civil de 1916, o que se mostrará suficiente para

    sintetizarmos uma idéia de seu conceito. Talvez, o exemplo mais categórico

    estivesse no art. 85, que assim dispunha: “Nas declarações de vontade se

    atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”.  Nele, fica

    evidente que a boa fé civil consiste num importante princípio de interpretação,

    prevalecendo, inclusive, sobre o sentido da escrita contido no documento.

    Nota-se, pois, que a boa fé estava ligada à intenção do agente, ou seja,

    consiste no comportamento que o indivíduo, no seu interior, desejava com a

    prática do ato, e não meramente a tradução fria e literal do instrumento que

    declara seu ato.

    Logo, tem-se que a boa fé introduzida pelo Código Civil de 1916 é

    subjetiva, podendo ser conceituada como a proteção jurídica da intenção

    interior do agente contra os defeitos da linguagem (art. 85) ou contra os defeitos

    de lealdade praticados pela parte contrária numa relação obrigacional (art. 120).

    Já a boa fé objetiva no direito civil, inspirada plenamente pelo Direito

    Germânico (Cap. I.4), foi positivada apenas pelo recente Código Civil de 2002,

    com a inserção das seguintes normas: “Art. 187. Também comete ato ilícito o

    titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

    impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons

    costumes.” (...) “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos

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    limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a

    guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios

    de probidade e boa-fé.” 

    Neles, a presença do caráter objetivo estaria no fato de que o exercício

    de um direito ou a celebração e execução de um contrato devem ser realizados

    não apenas para respeitar a intenção subjetiva de cada parte, mas, extrapolando

    a relação interna dos membros da relação jurídica, devem respeito às normas e

    padrões exigidos e em favor da sociedade, como verdadeiros modelos,

    arquétipos ou standards  de comportamentos, objetivados no ordenamento

     jurídico (no caso a função social do contrato, os fins econômicos, os bons

    costumes, etc.).

    Hodiernamente, o desenvolvimento da boa fé objetiva é notável e já

    penetra diversas espécies de relações jurídicas no direito civil.

    Destarte, para o eminente prof. Silvio Luis Ferreira da Rocha “o princípio

    da boa-fé também informa todo o direito obrigacional. A boa-fé que hoje

    influencia grandemente o direito obrigacional é a boa-fé objetiva, e não a boa-fé

    subjetiva.”, concluindo ainda que a boa-fé objetiva desempenha três importantes

    funções no sistema jurídico civilista: “(...) a de cânone hermenêutico-integrativo;

    a de norma de criação de deveres jurídicos; e a norma de limitação ao exercício

    de direitos subjetivos.” 19 

    Deveras, pode-se notar – a par do modesto resumo  – que os

    ensinamentos fornecidos pelo direito civil brasileiro são importantes e relevantes.

    19 Direito Civil 1 – Parte Geral, Malheiros, 2010, p. 23 e 25.

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    Contaminam, efetivamente, o direito administrativo de duas maneiras: a)

    direta, quando a Administração Pública está submetida à relações jurídicas cujo

    regime privado e civilista a ela se aplica (por exemplo: nos contratos de compra

    e venda, locação, contratos, etc.); b) indireta, quando as fontes doutrinárias do

    direito civil fornecem elementos de compreensão para institutos próprios do

    direito administrativo, ou quando as normas civilista se aplicam de maneira

    subsidiária (tal como nos casos do art. 54 da Lei Federal 8.666/93, que trata da

    incidência das normas das teoria geral dos contratos nos contratos

    administrativos).20 

    5. A boa fé como princípio geral no direito brasileiro.

    Para alguns civilistas brasileiros21, a positivação da boa fé, como

    princípio geral do ordenamento jurídico, se operou conseqüentemente à

    positivação do princípio da “dignidade da pessoa humana” e da finalidade

    fundamental da República em construir uma sociedade não apenas baseada na

    liberdade, mas na liberdade regrada pela justiça e solidariedade, o que está

    estampado no art. 1º, III, e 3º, I, da Constituição República de 1988. 22 

    20  “ Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratose as disposições de direito privado.”21 Nesse sentido, vide: Claudia Lima Marques, em “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, p.417; e Claudio Luis Bueno de Godoy, “Função Social do Contrato”, p. 129.

    22 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e doDistrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III - adignidade da pessoa humana;...

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    Nesse sentido, Larenz (citado por Karina Nunes Fritz), enxerga que a

    raiz do princípio da boa fé encontrar-se-ia no chamado personalismo ético, cujas

    raízes  decorrem da necessidade elementar de respeito à pessoa e à sua

    dignidade” 23. 

    Tal assertiva, efetivamente, pode ser considerada no âmbito do direito

    brasileiro. Isto porque a conduta exigida do homem, inserido numa comunidade

    solidária e que respeita a dignidade do outro (artigos 1º, III e 3º, I, da CF), jamais

    poderá ser absolutamente livre.

    Deve, em verdade, agir sempre de acordo com os valores sociais

     juridicizados, na qual a idéia de cooperação e respeito ao próximo são deveres

    de comportamento necessários à subsistência deste modelo constitucional.

    Aí está, desde logo, notada a boa fé como princípio jurídico (agir

    conforme o comportamento esperado   pelo Direito), bastando para tanto

    relembrarmos sua significação construída ao longo da história da filosofia e do

    direito (vide Capítulo I.1, I.2, I.3 e I.4).

    Por tal razão, notaremos que o exercício da liberdade ou da propriedade

    - como o de formar contratos, o de empreender atividade econômica  – pelo

    Direito, jamais são absolutos ou totalmente livres, desprovidos de qualquer

    obrigação de boa fé.

    Ao invés disto, apenas poderá ser exercitado conforme os padrões de

    comportamento objetivos e esperados pelo corpo social.

    Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... I - construir umasociedade livre, justa e solidária;

    23 “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 105.

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    Exemplo fértil desta positivação ainda podemos detectar no caso do

    exercício do poder de polícia administrativa, no qual, segundo o magistério do

    eminente administrativista Clovis Beznos, caberia ao Estado verificar se a

    liberdade e a propriedade, pelo cidadão, estariam exercitados conforme seu

    desenho social, isto é, pelos contornos já delimitados no ordenamento jurídico. 24 

    Nesse sentido, o cidadão não poderia, jamais, empreender atividade

    econômica livremente sem respeitar os padrões de comportamentos sanitários

    ou ambientais, ou ainda não poderia edificar propriedade imóvel sem respeitar

    as posturas e a política de desenvolvimento urbano. O desenho que o

    ordenamento jurídico confere ao exercício de um direito jamais tem contornos ou

    fronteiras infinitas, de acordo com a mera vontade de seu titular.

    Assim é que, diante do pacto social, o ordenamento jurídico não

    concedeu o exercício de liberdade, da vontade, da propriedade, ou dos demais

    valores individuais, como absolutos. Com efeito, se a Constituição positivou que

    a vida em sociedade exigirá solidariedade, a qual limita a liberalidade do homem

    por meio de padrões objetivos de conduta, a fim de evitar comportamentos

    inesperados pelo ordenamento jurídico, tutelando a confiança social desta

    maneira, inexoravelmente introduziu a boa fé em sua máxima expressão, qual

    seja: tipicamente objetivada e, assim, desvinculada da vontade individual de

    cada um.

    Pela preconização dos referidos artigos constitucionais, tem-se a

    positivação da boa fé, ora tratada como “princípio geral de direito”.

    24 “Poder de Policia”, Ed. RT, 1979, p. 46/60.

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    Muito embora voltaremos ao tema (Cap. II.6), diz-se, aqui, “princípio

    geral de direito” conforme a definição empregada por Miguel Realle, a qual, por

    retidão teórica, convém transcrever ipsis litteris 25: “Nosso estudo deve começar pela

    observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou cientifico implica a

    existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base

    de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber. É claro que estamos

    cuidando da palavra “princípio” apenas em seu significado lógico, sem nos referirmos à acepção

    ética desse termo, tal como se dá quando demonstramos respeito pelos “homens de princípios”,

    fiéis, na vida prática, às suas convicções de ordem moral. Restringindo-nos ao aspecto lógico da

    questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de

    conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas

    também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos

    pelas necessidades da pesquisa e da práxis. A nosso ver, princípios gerais de direito são

    enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão

    do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de

    novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o

    de sua atualização prática. 

     Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força

    de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe

    a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de

    irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc. A maioria dos princípios gerais

    de direito, porém, não constam de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou, de

    conformidade com a terminologia assente no Capitulo XIV, são modelos doutrinários ou

    dogmáticos fundamentais. Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são princípios,

    eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força

    cogente, mas não lhes altera a substancia, constituindo um jus prévio e exterior à lex. Nem todos

    25 Miguel Reale, em, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição, p. 314.

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    método dedutivo, a boa fé com o colorido especial que esse trabalho pretende

    alcançar.

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    Desta feita, entende-se que é de suma importância descrever, mesmo

    resumidamente (reconheça-se), o direito administrativo e seu regime, pois

    são eles que conferem um conjunto, uma unidade da qual, como conseqüência

    lógica, emergirá a boa fé sobre a forma de princípio geral (classificação esta que

    adiante será explicada).

    A seguir, passaremos, então, a analisar panoramicamente o regime

     jurídico de direito administrativo, o que faremos – insista-se – de forma limitada e

    resumida, mas, por outro lado, certo de que revelará, ainda assim, a importância

    metodológica para que o estudo da boa fé possa se tornar mais adequado.

    2. Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de

    Direito.

    Diz-se que o direito, numa visão genérica a abstrata, pode ser concebido

    como objeto de construção do homem que, por viver em sociedade, pretende

    ordenar coercitivamente o comportamento. E esta coercitividade (emprego da

    força estatuída para o cumprimento da norma), segundo Miguel Reale, é

    exatamente o que diferencia-o do campo da moral, que apenas cuida de regular

    o comportamento humano sem o emprego desta força estatuída.27 

    de câmbio, da falência, da apropriação indébita. Os institutos representam, por conseguinte, estruturasnormativas complexas, mas homogêneas, formadas pela subordinação de uma pluralidade de normas oumodelos jurídicos menores a determinadas exigências comuns de ordem ou a certos princípios superiores,relativos a uma dada esfera da experiência jurídica.” (p. 191)27 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Ed., p.1/2e 46.

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    Desta feita, somente seria possível falar em direito quando houvesse a

    existência de deveres de conduta, e, portanto, que pudessem compelir alguém,

    sob pena de sanção, a um comportamento obrigatório, proibido ou permitido.

    Assim, se o direito administrativo é um ramo do direito que se ocupa de

    regular a atividade administrativa (conceito que melhor trataremos a partir do

    item seguinte28), tem-se que sua formação somente ocorreria, como

    conseqüência óbvia, quando o Estado passasse a se submeter a essa mesma

    organização coercitiva da conduta, da qual seu conjunto objetivo se denomina

    ordenamento jurídico.

    Por tudo isso, pode-se deduzir que a formação do direito administrativo,

    tal como concebemos na atualidade, é recente, na medida em que até o século

    XVII a história nos mostra um Estado que não se submetia efetivamente ao

    ordenamento jurídico, isto é, ao conjunto de regras jurídicas de comportamento

    sob pena de sanção.

    Lembremo-nos que Maquiavel, numa concepção acentuada do Estado-

    Poder, mas reveladora de sua linha filosófica empírica, aconselhou Lourenço de

    Médicis no século XVI ao afirmar que a única atividade típica do governante, e

    que ele tinha que se preocupar, era manter seu comando através da guerra, da

    organização, e das disciplinas militares.29 

    28 Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, a função administrativa consiste no “cumprimentodo dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmentenecessários conferidos pela ordem jurídica” ob. cit. p. 27.29  Nicolau Maquiavel aconselhou Lourenço de Médicis afirmando: “Preconizo que um príncipenão tenha outro objeto de preocupações nem outros pensamentos a absorvê-lo, e que tampoucose aplique pessoalmente a algo que fuja aos assuntos da guerra e à organização e à disciplinamilitares, porquanto apenas estes concernem à única arte atinente ao seu comando .”  OPríncipe, Traduzido do Italiano por Antonio Caruccio-Caporale, L&M Pocket, vol. 110, p. 69.

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    Esta, e não outra, seria a tarefa do Estado, isto é, a de fonte e de

    preservação de poder .

    Ademais, se afirmava na França que “Le roi ne peut mal faire”, ou na

    Inglaterra, “The King can do not wrong”, expressões que, em ambos os casos,

    podem ser interpretadas como o rei nunca erra, sintetizadas, pois, na idéia de

    que o Poder Governamental não estaria sujeito a controle ou imposições.

    Somente com a Revolução Francesa, fundada em parte nas teorias de

    Montesquieu sobre a virtude da democracia 30, é que nasce o chamado “Estado

    de Direito”, expressando que o governo democrático, em contraposição ao poder

    monárquico que se encontrava acima e à margem do ordenamento jurídico,

    deve, ao mesmo em que executa as leis, suportar seu peso, ou seja, submeter-

    se aos seus mandamentos.

    Tais ideais, consolidados (bem verdade) pela jurisprudência francesa

    posterior à Revolução (o chamado Conselho de Estado), foram objeto de

    positivação posterior pela maioria das Constituições dos países ocidentais, tal

    com ocorreu no Brasil.

    Assim sendo, diante desta nova concepção, na qual o Estado, além dos

    poderes e prerrogativas instrumentais que continuava diferenciando-o dos

    administrados, passaria a se sujeitar ao ordenamento jurídico que lhe impunha

    30  Montesquieu, em sua obra Do Espírito das Leis, Coleção Universidade de Bolso, EditoraEdiouro, cit. P. 52, escrevera que “Não é preciso muita probidade para que um governomonárquico ou um governo despótico se mantenha ou se sustente. A força da lei, no primeiro, nosegundo o braço do príncipe sempre erguido, regulam e abrangem tudo. Mas, num estadopopular, torna-se necessário um dispositivo a mais, que é a virtude.Isto que eu digo acha-se confirmado em toda a contextura da história, e acha-se muito conformea natureza das coisas. Porque é claro que, em uma monarquia, onde aquele que faz executar asleis se julga acima das mesmas, necessita de menos virtude do que em um governo popular,onde aquele que faz executar as leis sente que ele próprio a estas se acha submetido, e delassuportará o peso.” 

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    deveres de conduta, surge, como conseqüência natural, a necessidade de se

    estabelecer um conjunto de normas e regras peculiares, as quais, concatenadas

    em torno de uma unidade própria, pudesse regular o exercício da função

    administrativa.

    Daí que, por meio da criação sucessiva e fértil desse conjunto de regras

     jurídicas que se faziam úteis para regular de forma peculiar a atividade

    administrativa, emerge o que denominamos de “direito administrativo”. E assim

    ocorre na qualidade de ramo especial do direito que, ao mesmo tempo, se

    inseria como parte integrante do sistema jurídico unitário.31 

    Frisa-se, portanto, que o surgimento do direito administrativo, originado na

    França como conseqüência do “Estado de Direito” (em oposição ao Estado-

    Poder, como visto), é fenômeno da história recente nos países ocidentais,

    valendo a pena conferir, em rodapé, o relato contido nas obras de Renato Alessi

    e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, retratando o ocorrido na Itália e no Brasil,

    respectivamente32.

    31  Lembremo-nos, sempre das lições de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação doDireito, Rio de Janeiro, 1957, n. 274, PP. 284285), quando afirma que: “De fato, o direito especialabrange relações que, pela sua índole e escopo, precisam ser subtraídas ao Direito Comum.Entretanto, apesar desta reserva, constitui também, por sua vez, um sistema orgânico, e, sobcerto aspecto, geral.”32  Na Itália, vale transcrever Renato Alessi, que, ao estudar o surgimento do Direito

    Administrativo naquele país, fez a seguinte observação:  “Se comprende, por lo tanto, que elDerecho Administrativo tanga, en todo ordenamiento, un carácter relativamente reciente,posterior a la aparición de los regímenes constitucionales, com los cuales se dio nacimiento (almenos en la Europa continental) a un sistema de normas jurídicas obligatorias para la

     Administración, reguladoras del ejercicio de la función administrativa y que constituyen unagarantía para los intereses y los derechos de los súbditos que pueden ser lesionados por elejercicio de la citada función.Por lo que respecta as Derecho administrativo italiano, es evidente que el mismo se remonta a laformación del Reino. Dado que el nuevo Estado italiano que se formó por la anexión al Reino dePiamonte de las otras regiones italianas, no es más que la continuación de este Reino, según laopinión que nos parece acertada, es asimismo evidente que los orígenes de nuestroordenamiento administrativo han de encontrarse en el ordenamiento administrativo sardo-piemontés, el cual, a su vez, surgió gradual y profundamente influido por el ordenamiento francés

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    3. Relação de administração.

    No ciclo de formação do direito administrativo, pudemos observar que o

    Estado deixou de ser fonte de poder absoluto, acima e à margem do

    ordenamento jurídico. As Constituições de grande parte dos países ocidentais

    passam, destarte, a estabelecer como preceito fundamental e positivado nas

    Constituições dos países o Estado Democrático de Direito, no qual o poder

    estatal provém do povo e em seu nome será exercido.33 

    Nesse contexto, pois, interessante anotar que a relação de poder entre

    Estado e cidadão passa, agora, a subsistir por mera delegação deste, ou seja, o

    Estado passa a ser uma espécie de representante do povo, recebendo, assim,

    poderes limitados que esse especialíssimo mandato lhe confere (mandato, aqui,

    em sentido lato), isto é, com o único fim de cumprir, de representar e de dar

    concretude a um processo democrático explicitado nas leis.

    de la época napoleónica y postnapoleónica, aun después de la Reestructuración, si bien,naturalmente, de manera más acusada después de la introducción del régimen constitucional.

    ...Em 1865 podemos considerar finalizado el primer período de la historia de nuestro Derechoadministrativo, durante el cual, al tiempo en que se llevó a cabo sustancialmente la unificaciónadministrativa Del Reino, se levantaron los cimientos Del ordenamiento administrativo.”Trad. espanhola de Instituciones de Derecho Administrativo, Tomo I, Bosch, Casa Editorial,Urgel, 51 bis, Barcelona, cit. p. 20/21.

     No Brasil, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao tratar do surgimento do Direito Administrativo,reconheceu que ele “só surgiu no século passado, embora sempre tenham existido normas

     jurídicas ordenando a atividade do Estado-Poder.” Princípios Gerais, Editora Forense, de DireitoAdministrativo, 2ª Ed., 1979, cit. p. 51. 

    33 A Constituição Brasileira de 1988 encampou referido mandamento no art. 1º, Parágrafo Único.

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    relação de propriedade ou de domínio, aí sim, prevaleceria a vontade do titular,

    que da coisa poderia livremente dispor. 35 

    4.- O “ dever-poder” no exercício da função administ rativa.

    Ao lado e à frente da relação de administração como corolário da

    expressão constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome será

    exercido (art. 1º, Parágrafo Único), e com a finalidade de consolidar a existência

    35 Rui Cirne Lima, em Princípios de Direito Administrativo, Malheiros, 7ª Edição, p. 105/106, assim seexpressou: “Concebe-se geralmente a relação jurídica como expressão de um poder do sujeito de direitosobre um objeto do mundo exterior, seja aquele uma cousa existente per se, seja uma abstenção ou um fato, esperados de outro sujeito.(...) À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, chama-se relação deadministração. Chama-se relação de administração, segundo o mesmo critério pelo qual os atos deadministração se opõem aos atos de propriedade (Código Civil Frances, art. 1988). Na administração, odever e a finalidade são predominantes. Esse traço característico da administração é salientado no Códigodo Imperador Justiniano, quando afirma que ‘aquele que é administrador e senhor de sua cousa, nemtodos os negócios realiza, mas a maior parte por sua vontade própria. Os negócios de outrem, porém,devem ser administrados com a maior exatidão; a esse respeito nada do que foi negligenciado ou maladministrado se isenta de falta’.(...) No domínio a vontade é predominante. Na definição do Conselheiro Lafayte Rodrigues Pereira, o‘domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisacorpórea, na substancia, acidentes e acessórios’.(...) É no direito administrativo, porém, que a relação de administração adquire a plenitude de suaimportância. Avulta essa importância quando se consideram, comparativamente, no direito privado e nodireito administrativo, os efeitos da relação de administração sobre a relação de direito subjetivo, comosujeito diverso, acaso existente sobre o mesmo objeto júris. A relação de administração coexiste, não raro, sobre o mesmo objeto, com um direito subjetivo, do titulardiverso do daquela. Os bens dos filhos são propriedade destes, embora administrados pelos pais (CódigoCivil, art. 1689, II). O bem de família pode ser propriedade do marido, se o regime dos bens do casamento

     for o da comunhão, ou, ainda, da mulher, no regime de separação (Clóvis Bevilacqua, Código CivilComentado, t. I, Rio de Janeiro, 1921, p. 301). Dentro do direito privado, os conflitos entre a relação de administração e a de direito subjetivo, resolvem-se em favor desta última. Ao pai ou à mãe, que arruína os bens da família, suspende-se, com o pátrio poder, a administração, a este inerente (Código Civil, art. 1637, caput). Quanto ao bem de família, lícito éao instituidor, revogar-lhe a vinculação à finalidade legal (Decreto-lei 3.200, de 19.4.1941, art. 21. Oinstituidor, se não tem a propriedade, tem, entretanto, sempre a disposição do bem quoad institutionem). Diversamente, no Direito Administrativo, a relação de administração domina e paralisa a de direitosubjetivo. Relação de administração, exempli gratia, é a que se estabelece, segundo o Direito Administrativo, sobre os bens destinados ao uso público. ‘Desde a data do registro do loteamento, passama integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo’ (Lei 6.766, de19.12.1979, art. 22). 

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    do interesse público”, ou seja, “sendo interesses qualificados como próprios da

    coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de

    quem quer que seja, por inapropriáveis.” 38 

    Com esta visão mais ampla do “Estado do Direito”, da relação de

    administração e do exercício da função administrativa (que pressupõe

    indisponibilidade do interesse público) - todos concatenados logicamente -,

    identificam-se, finalmente, as bases para a concepção de um ramo do direito

    peculiar (Direito Administrativo), o qual, a partir desta estrutura criada,

    necessitará de regras e princípios próprios para regulação da atividade estatal

    que se subsume a essa nova realidade.

    E, dentre as regras e princípios que emergirão deste novo ramo do

    direito, conferindo-lhe um regime jurídico peculiar, finalmente encontrar-se-á a

    boa fé.

    Vejamos.

    5. O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé.

    Como visto, a partir da identificação da fundação do direito

    administrativo e de seus elementos mais fundamentais, enfim, pode-se traçar

    um contorno, ainda que sintético, de seu regime jurídico, isto é, do conjunto de

    formação e orientação das regras e princípios nele inseridos, para que, na exata

    38 Curso de Direito Administrativo. Citação extraída da14ª Edição, p. 45.

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    medida do método dedutivo lógico, possam ser feitas assertivas sobre a boa fé

    que nele se insere. 39 

    Seu conceito decorre, pois, dos elementos de formação do direito

    administrativo vistos nos tópicos anteriores, e são: conjunto de regras e

    princípios que partem da existência de um Estado de Direito e, com ele, do

    dever da atividade administrativa de se submeter ao ordenamento jurídico

    e de buscar o interesse público positivado por meio de um processo

    formal-democrático.

    Esta seria, para os fins deste trabalho, a melhor concepção do regime

     jurídico de direito administrativo, o que, para melhor compreensão, assim pode

    ser decomposto:

    a) emerge a partir da existência do chamado “Estado de Direito”, no

    qual o Estado se encontra submetido ao ordenamento jurídico;

    b) afigura-se como regime jurídico pela existência de um conjunto de

    normas jurídicas peculiares (regras e princípios) que tem por objeto regular a

    função administrativa;

    39  Nesse sentido, vide Miguel Reale; Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição: “Jádissemos que o ordenamento jurídico nacional se distribui em “faixas normativas” ou sistemas de modelos

     jurídicos distintos, correspondentes às diferentes regiões ou esferas da realidade social. Se assim é, cada“região jurídica” pressupõe, por sua vez, diretrizes ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógicados institutos e figuras que a compõem. É mister, por conseguinte, estudar os princípios gerais do DireitoCivil, do Direito Processual, do Direito do Trabalho etc., e, mais particularmente, do Direito de Família, doDireito Cambial etc.

    Os princípios gerais de Direito põem-se, destarte, como as bases teóricas ou as razões lógicas doordenamento jurídico, que deles recebe seu sentido ético, a sua medida racional e a sua força vital ouhistórica. A vida do Direito é elemento essencial do diálogo da história.”

    Aliás, já ensinava Carlos Maximiliano que “Descobertos os métodos de interpretação, examinadosem separado, um por um; nada resultaria de orgânico, de construtor, se os não enfeixássemos em um todológico, em um complexo harmônico.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1957, p. 156)

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    c) a partir da concepção de que todo poder emana do povo e em seu

    nome será exercido (art. 1º, Parágrafo Único, da CF), tem como elemento

    axiológico fundamental deste conjunto de regras o princípio da tutela

    indisponível do interesse público, na qual a atividade administrativa, numa

    relação de administração, se preordena ao alcance do interesse público

    previsto pelo ordenamento jurídico.

    No entanto, parece restar inquieta a seguinte indagação: afinal de

    contas, qual a relação específica de toda esta construção do regime jurídico de

    direito administrativo com a aparição da boa fé?

    A resposta, por sua vez, consiste numa relação de total pertinência e

    relevância, a qual se mostrará crucial para o desenvolvimento do tema ora

    proposto.

    Deveras, se o direito administrativo hodierno (e positivado pela

    Constituição da República) funda-se na delegação de poder do povo para o

    Estado numa perfeita relação de administração (como visto, pelo art. 1º,

    Parágrafo Único, da CF), inegável reconhecer que, nessa situação de mero

    representante e guardião do interesse coletivo, o dever de boa fé, isto é, o de

    corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe

    pertence,  consiste num princípio fundamental  para o exercício da atividade

    administrativa.

    Por certo, é da essência do Estado de Direito que a coletividade delega

    ao Estado (como instituição) a tutela dos interesses tidos como públicos

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    Logo, como admitir-se o exercício da função administrativa pelo Estado,

    que a exerce apenas para corresponder à confiança juridicamente depositada

    pela coletividade, sem a presença da boa fé?

    Evidentemente, pois, que a boa fé é um princípio fundamental do direito

    administrativo e decorre duma positivação já implícita nos elementos formadores

    do seu regime jurídico (Estado de Direito, relação de administração e

    indisponibilidade do interesse público).

    Por isso, funciona nesse sistema da mesma forma que o princípio da

    legalidade (dever da atividade administrativa se sujeitar à lei e ao direito, e não à

    vontade do administrador); que o princípio da responsabilidade do Estado (dever

    de se submeter às conseqüências do ordenamento jurídico); ou até mesmo que

    o princípio da impessoalidade (proibição de conferir tratamento pessoal, numa

    relação de administrar interesse que não lhe pertence); dentre outros de igual

    escalão que gravitam em torno dos elementos estruturais do regime de direito

    administrativo tal como os planetas gravitam em torno do sol.

    Daí decorre que a boa fé - imbricada com a idéia do exercício de um

    mandato do interesse público, nos termos do art. 1º, Parágrafo Único, da CF –

    também implica como corolários o dever de prestar contas da atividade

    administrativa realizada, o de publicar os atos administrativos, o de motivar o ato

    administrativo, dentre tantos outros que demonstram que a atividade

    administrativa deve ser conduzida de acordo com padrões de comportamento

    previamente exigidos pela sociedade ao confiar na tutela do interesse público

    pelo Estado.

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    econômico da população, e, assim, o comportamento esperado, ou melhor, a

    boa fé subjetiva ou objetiva do administrador recomendaria outra conduta

    exatamente porque a pauta de valores referencial não é mais o aumento da

    “receita”, mas sim a melhora da condição de vida das pessoas administradas, o

    que pode ser alcançado com a diminuição, e não com o aumento, da carga

    tributária.

    Ademais, a boa fé inserida e impregnada pelo regime jurídico é capaz de

    nos fornecerá, deveras, a segurança necessária para evitar a discricionariedade

    ou o abuso que freqüentemente são cometidos pelo aplicador do Direito. Ora,

    diante de conceito tão fluido, vago e indeterminado, a pauta de valores

     juridicizada evitaria a substituição por aquela preferida subjetivamente pelo juiz,

    com sua visão muitas vezes autoritária das coisas, ou por aquela que

    pretenderia impor o promotor de justiça, movido por suas sanhas pessoais,

    ideológicas ou até mesmo políticas, ou ainda por aquela que julgasse mais

    conveniente o administrador, movido pelas mais diversas razões (algumas

    absolutamente inconfessáveis).

    Logo, a boa fé para os fins deste trabalho nasce e se forma como tal

    rigorosamente dentro do regime jurídico de direito administrativo, e assim deve

    ser fruída, da mesma forma que a maçã nasce e se forma como tal por

    intermédio da macieira, pois somente assim forneceria seu peculiar sabor.

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    6. Classificação principiológica no regime de direito administrativo.

    Entende-se que a boa fé administrativa consiste num princípio

    positivado na Constituição da República, o qual, muito embora não esteja

    explicitado de forma expressa, deve ser reconhecido na forma implícita como

    emergente lógico do regime jurídico de direito administrativo (o que já foi

    explicado no tópico anterior), sobretudo a partir do elemento “confiança” extraído

    do especialíssimo mandato conferido pelo citado Parágrafo Único de seu artigo

    1º. 42 

    E, sobre o reconhecimento de princípios implícitos no ordenamento

    constitucional, valemo-nos do escólio do eminente Canotilho, segundo o qual:

    “Os princípios se beneficiam de uma objetividade e presencialidade que os

    dispensam de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito

    particular.” 43 

    Classificamos a boa fé, destarte, como “princípio” por entendermos

    que consiste numa norma axiológica de conteúdo aberto e genérico, que se

    irradia e orienta a interpretação de todas as demais normas do regime jurídico

    de direito administrativo.

    Por isso, a boa fé de quem cuida de interesse alheio (no caso o

    interesse público), como nítida razão lógica da expressão de que o poder emana

    42 Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente, nos termos desta Constituição. 

    43 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição; Livraria Almedina, 3ªEdição, Coimbra, 1999.

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    do povo e em seu nome será exercido (base teórica do Estado de Direito), deve

    permear toda atividade da Administração Pública, assim como deve orientar a

    exegese do jurista em tese, e, por fim, vincular a jurisdição no caso concreto. 

    Contudo, ao entender que ela incide como norma de otimização, isto é,

    em graus de ponderação e sopesamento quando em colidência com os demais

    princípios de igual hierarquia, adota-se a rotulação de “princípio” traçada por

    Robert Alexy, o que se faz para diferenciá-la do que o referido autor chama de

    “postulado” - e ainda que existam inúmeras formas científicas de classificarmos

    o fenômeno principiológico. 44 

    44 Sobre a classificação adotada (princípio geral), deixa-se registrado que a ciência adota diversas formasrefinadas e controvertidas de denominar as expressões que servem para designar as premissas que, nãosendo normas jurídicas explícitas, compõe a estrutura do sistema jurídico como ponto de partida para ainterpretação do sentido e alcance destas mesmas normas (meta-norma).

    Destacamos, a priori, Humberto Ávila, que, apoiado nas idéias de Robert Alexy, faz uma distinção entre princípios e postulados, asseverando que estes correspondem às “condições de possibilidade do fenômeno jurídico”, ou seja, explicam o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido, e, portanto, nãoadmitem flexibilização e nem incidiriam em graus, tal como os princípios incidiriam. Humberto BergmannÁvila;(A Distinção entre princípios, regras e a redefinição do dever de proporcionalidade; RDA 215:151-179, p.165).

    O próprio Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, Malheiros, 2008, traduzida porVirgílio Afonso da Silva, cf. p. 90, explica que a terminologia princípio deve ser empregada como“mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e

     pelo fato de que a medida devida de sua atuação não depende somente das possibilidades fáticas, mastambém das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios eregras colidentes.E sobre “regras” (como outra espécie de norma, além do princípio; e ao lado de postulado), o autor ainda

    dispõe: “Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então,deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras conte, portanto,determinações daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e

     princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é uma regra ou princípio.”

    Sobre a diferença entre regras e princípios (deixando, aqui, os postulados de fora), muito clara e precisa é adefinição de Wilis Santiago Guerra, para o qual regras são estruturas lógico-deônticas, constituídas peladescrição de uma hipótese e a previsão de uma conseqüência, a realizar-se quando da ocorrência damoldura fática nela prevista. Já os princípios, longe de fornecerem tratamento para situações assemelhadas,emanam a prescrição de um valor que, pela sua inclusão no sistema, adquirem positividade (Notas emTorno do Princípio da Proporcionalidade, artigo publicado em Perspectivas Constitucionais nos 20 anos daConstituição de 1976, Coimbra Editora, 1996, v. I, p. 249).

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    Daí porque são estruturas formais em termos absolutos, chamadas de

    “postulados” e não admitindo ponderação.

    Já o princípio da boa fé, em nítida distinção, contém carga axiológica

    pura, e por isso mesmo incide em graus de ponderação com demais princípios

    que também veiculam valores igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico.

    Vejamos, como exemplo categórico, o terrível caso do apossamento de

    fato pela Administração Pública, isto é, a chamada vulgarmente “desapropriação

    indireta” que nada mais é do que a invasão ou o esbulho possessório de área

    que não lhe pertence, a fim de edificar obra pública e nela instalar serviços

    essenciais, como uma escola ou um hospital público. Evidentemente que nesses

    casos não há justa e prévia indenização e sequer o respeito ao devido processo

    administrativo (previstos como obrigatórios no instituto jurídico da

    desapropriação, em nível constitucional inclusive). Tem-se, pois, uma hipótese

    de máxima violação do dever de boa fé, já que a própria Administração Pública -

    de quem mais se esperaria o comportamento fiel aos meios legais  - age em total

    afronta e deslealdade com as instituições jurídicas.

    Contudo, a par desta tremenda violação ao dever de boa fé, é fato que a

    doutrina em geral e os Tribunais vem reconhecendo, inspirados na doutrina

    francesa segundo a qual l’ouvrage public mal plante ne se detruit pás 47, que não

    se deve desfazer o ato (considerando a obra pública edificada) com efeitos ex

    47 A tradução corresponde, em português, a “não se desfaz obra pública mau plantada”.

  • 8/15/2019 Thulio Caminhoto Nassa

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    tunc, concedendo ao proprietário esbulhado apenas o direito a uma

    indenização.48 

    Em outras palavras, equivale dizer, precisamente, que a boa fé,

    exatamente por desempenhar a função comum aos princípios, foi relativizada 

    ou ponderada  no caso concreto em favor do princípio da “continuidade do

    serviço público”.

    Sem prejuí