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The Time Travelers:
Paradoxo Complexo
Daniel Lobão
Patrícia Figueiredo
“E se a História como a conheces fosse apenas a consequência de
ações futuras?”
Sobre os Autores:
Patrícia Figueiredo
Nascida e criada em Cascais, estuda agora
Antropologia no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa.
Com 23 anos, sempre soube querer embarcar na
aventura da escrita criativa.
Após formar a ideia para a saga The Time
Travelers, juntamente com o seu melhor amigo, Daniel, meteram mãos
à obra para trazer ao público esta aventura futurística.
Daniel Lobão
Nascido e criado em Sintra. Com 19 anos, estuda
Antropologia no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa.
Sempre foi apaixonado pelo mundo da escrita e vê
agora o realizar de um sonho com a saga The Time
Travelers, com a sua melhor amiga.
Contactos:
Nota: Este livro foi redigido segundo o novo Acordo
Ortográfico, porque apesar da nossa relutância em fazê-lo,
o word insiste em corrigir-nos.
Capa por: Patrícia Figueiredo
Sinopse
No ano de 2098, Cassia e Alastair vivem o seu pior pesadelo. A
sua cidade, Quimera, foi devastada pela guerra e agora uma nova
ameaça paira sobre a mesma, colocando a vida de todos em risco.
A agência Samsara, que rege a cidade, recruta uma equipa de
jovens deixados à mercê dos tempos na cidade. Cassia e Alastair
terão um papel central nesta equipa, que tenta lidar com a nova
ameaça terrorista.
Assombrados pelos erros do passado, terão que acatar com os
problemas do futuro: esse incerto.
Uma história de suspense e reviravoltas, passada num futuro
próximo e dedicada aos amantes de ficção científica.
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Prefácio
A escuridão da sala é interrompida pela luz que sai dos monitores
ligados à sua volta. As imagens que os percorrem não são
apropriadas para o público mais sensível. Resquícios de uma
civilização que luta desesperadamente pela sobrevivência adorna
as telas de computador. Cadáveres vestem as ruas estreitas e as
praças da cidade.
Os edifícios parecem abandonados: as suas janelas
estilhaçadas, as portas arrombadas e o seu ar sombrio e sinistro
dão um espetáculo assombroso. As poucas pessoas que se arrastam
pelas ruas, usam máscaras cirúrgicas, evitando cruzar-se com os
desconhecidos que deambulam debilmente.
As imagens, a preto e branco, mudam de minuto a minuto. O
sistema de vigilância está constantemente a atualizar, para quem
é de direito, atentar no estado da cidade estilhaçada.
Uma criança de pouco mais de três anos chora no meio de uma
praça. Pessoas passam, oblívios ao seu pânico, que continua a
chamar pela mãe. Ninguém para.
Outro ângulo; a mesma imagem. Uma jovem mulher, deitada no
chão ao lado da criança, tenta erguer uma mão para chegar ao bebé.
Sem forças, deixa a efemeridade vencer.
Dois polícias param. Um deles pega na criança, tapando-lhe
os olhos. O outro pega no corpo da mãe, atirando-o friamente para
a pilha de cadáveres no meio da praça, deitando-lhes fogo. Como
se de lixo se tratasse. Uma certa apatia pode ser sentida nos seus
gestos.
Duas silhuetas olham para as câmaras de vigilância, imóveis
e afastam o olhar quando o polícia volta a colocar a criança no
chão e dispara sobre ela, matando-a.
- Os nossos esforços claramente não estão a ser suficientes,
Ari. – A voz de uma mulher faz-se ouvir na escuridão.
- Isso não significa que recorrer a um plano extremista seja
a melhor solução. – A silhueta de um homem afasta-se da devastação
das câmaras, virando as costas à figura esguia que o acompanha. O
seu semblante, carregado pela preocupação de ver a sua cidade
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natal desfigurada, é iluminado pela pouca luz dos monitores. Os
seus olhos castanhos contemplam a mulher à sua frente.
- Admite que não estamos prontos, Kay! – Uma súplica sai dos
lábios de Ari. O seu tom um pouco mais áspero do que pretendia.
- Não importa! – Kay vira-se repentinamente para encarar
Ari. Existe uma urgência na sua voz e os seus olhos castanhos e
frios parecem agitados. O seu semblante denota cansaço, de tantas
noites sem dormir. – Olha para os monitores, Ari! O tempo de
espera chegou ao fim. É tempo de agir!
- Tu és impossível, sabes? – Ari volta a olhar para os
monitores. Ele sabe que Kay tem razão. Já não há mais nada que
eles possam fazer. A contingência chegou ao fim.
As chamas da fogueira, retratada nos ecrãs, chamam a sua
atenção. Polícias atiram corpos para o fogo. Uma nuvem de fumo
escuro invade os céus de Quimera. Pouco depois o fumo vai-se
tornando branco.
Kay suspira sonoramente. Ela sabe perfeitamente o seu lugar,
no entanto começa a duvidar se Ari sabe o seu. Por breves
instantes, a morena de olhos amendoados, observa o homem diante
de si. O vasto cabelo castanho do Comandante começa a notar os
sinais do tempo, com pequenos cabelos grisalhos aqui e ali. Ver a
barba de Ari por aparar é invulgar para Kay, mas não díspar perante
a situação que enfrentam.
Ari não pode deixar de reparar na atenção detalhada que Kay
lhe presta. Normalmente, o que Kay menos faz é prestar-lhe
qualquer tipo de atenção; para grande tristeza de Ari. Agora os
papéis que desempenham são maiores que qualquer história que tenha
existido; quando vivemos num mundo em permanente conflito, este
começa a apresentar-se no nosso imaginário como fragmentado.
Embora ajustemos as nossas ações às circunstâncias que nos são
impostas, há sempre alguma coisa que tem que ficar perdida por
entre os estilhaços e escombros da vida que já foi.
- O que é que não me estás a contar, Kay? – A voz de Ari não
é mais do que um suspiro.
Kay escarnece perante a insinuação e dá um passo ameaçador
em direção a Ari. A sua expressão é impossível de ler; Kay apenas
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olha fixamente para ele. As suas caras a milímetros de distância,
a sua respiração superficial.
- Você apenas sabe o que precisa de saber! – Kay quebra por
fim o silêncio. – Estamos entendidos, Comandante Black?
A formalidade não escapa a Ari, que ganhando coragem
endireita-se, pondo-se em sentido e recusando-se a ser intimidado
por Kay; quase em jeito de desafio à sua autoridade. Rondando os
dois a mesma altura, os seus olhos encontram-se sem serem
necessários esforços. O olhar de Kay é letal. Ari sabe estar a
brincar com fósforos no escuro, mas ainda assim, altivo, provoca-
a.
- Não; não estamos! – O seu tom alto e desafiador. – Enviar
alguém para o desconhecido naquela máquina pode significar a sua
morte. Estás mesmo disposta a viver com mais sangue nas tuas mãos?
Kay engole em seco e rompe a troca de olhares com Ari. Há
muito que Kay perdeu a força de vontade para se preocupar. A
salvação tem o seu preço e Kay finalmente percebera isso. Sente-
se entorpecida, pelo que apenas sobrevive da melhor maneira que
consegue.
- Estou, pois! Estou disposta a viver com esse peso sobre os
meus ombros. Há muito que parei de procurar redenção! As pessoas
de Quimera estão a morrer! E se não resolvermos este problema
rapidamente… - Kay não consegue acabar a frase. Respirando fundo,
continua. – As caras das pessoas que atiramos para as fogueiras,
ou daqueles que atiramos para as valas comuns, assombram-me todos
os dias, Ari. Já ninguém espera muito de nós; se é isso que te
preocupa.
O olhar de Kay mostra determinação. O fogo que Ari vê nos
seus olhos, ele nunca vira antes; sabe que será impossível demovê-
la e ainda assim não deixa de tentar a sua sorte.
Pegando em duas pastas, atira-as para os pés de Kay,
enraivecido.
- Estes miúdos são pessoas! Não são brinquedos para te
entreteres! – Kay olha para as fotografias que caíram das pastas.
Os dois jovens a olharem para ela acusadoramente. Ari avalia-a. –
Espero sinceramente que o teu plano funcione. Porque se assim não
for, esses dois têm já a sua sentença.
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As palavras de Ari ressoam na mente de Kay; no entanto, ela
já se decidiu. Não existem mais soluções. Virando as costas a Ari,
marcha rapidamente em direção à porta, fazendo-a bater atrás de
si. Ari fica sozinho na escuridão da sala. Kay cada vez mais lhe
parece indomável e perdida; num caminho que Ari não pode antever.
Suspirando, volta-se para os monitores. As labaredas
continuam a fazer os corpos contorcerem-se perante elas. O fumo
continua a invadir a cidade. A população continua a desvanecer. O
tempo continua a passar.
Com um gesto quase invisível, Ari muda a imagem dos
monitores. Um espaço atulhado de pessoas aparece a preto e branco
em todos os monitores. Diferentes espaços, diferentes ângulos.
Ari procura por alguém nas imagens; não obstante, é-lhe
custoso olhar para as pessoas, nos corredores degradados,
desesperadas por ajuda e por soluções que não vêm.
Os olhos do homem cintilam quando encontram a câmara do
quarto da paciente que tentava encontrar nas imagens do sistema
de segurança.
Cruzando os braços, avalia a rapariga que entra no quarto;
uma jovem de bata branca, que se senta junto à cabeceira da mulher
enferma.
- Lamento o que te vai acontecer, miúda. – Cerrando os olhos,
tenta conter a emoção. – Lamento mesmo.
Engolindo em seco, senta-se na cadeira, atentando nas imagens
e ouvindo o que se passa no Hospital Público de Quimera.
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Capítulo 1
Apesar de ser o início do que um dia foi designado como Primavera,
no ar o cheiro não é o das flores a desabrochar. A putrefação dos
corpos em valas comuns, à espera que um destino lhes seja dado, o
cheiro de outros a arderem nas fogueiras, misturam-se com o cheiro
dos pinheiros da floresta que ronda a cidade de Quimera.
Apesar da devastação, Quimera é privilegiada na sua condição
atual. A guerra roubou tudo à sua volta. Uma guerra que ninguém
consegue apontar as causas ou objetivos. Desde que Cassia e
Alastair têm memória que a sua cidade vive em estado de
contingência, com as suas fronteiras fechadas ao resto do Mundo.
Há Oitenta Anos que Quimera é usada como um recurso da
Guerra. Grupos de pessoas foram colocados nesta cidade, pois o
Conselho de Segurança das Nações Unidas temia o fim para o que
restava da Humanidade. Agora a sua única chance de sobrevivência
foi violada. A sombra de um vírus mortífero paira sobre a população
de Quimera. Um terço da população original já padeceu, enquanto o
que resta dela aos poucos fica doente e acamada.
O modelo de economia sustentável implementado pela primeira
vez em Quimera, de modo a torná-la autossustentável, falhou após
as Taxas de População Ativa baixarem para mínimos nunca antes
vistos. Com a economia a falhar, a comida começou a ser racionada
e a mobilidade condicionada. Ninguém pode entrar ou sair da
cidade, não importa o quão difícil a sobrevivência nela se torne.
Não que precedentemente alguém se atrevesse a passar a fronteira
para o desconhecido.
Condições básicas de vida foram implementadas pela Agência
Governamental que rege a cidade: comida, abrigo e saúde. A
segurança é cada vez mais apertada.
Existem quatro distritos: Norte; Sul; Oeste e Este. Cassia
e Alastair pertencem ao distrito Oeste. Este distrito, por sua
vez, pertencia à classe operária. O Norte pertencia ao Governo; o
Sul aos agricultores e o Este; bem: ninguém sabe realmente para
que serve o distrito Este. Estas classificações já não estão em
uso, pois toda a vida como a conheciam foi alterada radicalmente,
desde que a cidade foi atacada.
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A informação que há sobre o vírus é escassa. A população
começou a morrer de um dia para o outro. Com medo de contágio, os
corpos começaram a ser queimados e durante o primeiro ano, quem
apresentasse sintomas era colocado em quarentena. O Hospital de
Quimera tornou-se caótico; até que por fim, verificaram que o
vírus não é transmitido pelo ar. Apesar de todos os testes feitos,
a corrente do vírus é desconhecida.
Alguns cientistas de Quimera pensavam que poderia ser um
sobreaviso dos anos vindouros. Que a raça humana está a evoluir
no sentido da autodestruição. Durante anos, desde a Revolução
Industrial, que cientistas vinham a avisar sobre os efeitos
nefastos da evolução tecnológica. Talvez esses efeitos tenham
alcançado agora quem ficou. E, porque ninguém sabe o que aconteceu
fora de Quimera, as especulações são altas.
O Hospital de Quimera é agora palco das maiores atrocidades.
A eutanásia é a solução mais viável que encontraram para acabar
com o sofrimento da população, que aos poucos padece. Os gritos
são audíveis nas ruas que rondam o edifício imponente e com ar
fúnebre. Uma fila interminável de pessoas ronda o Hospital; muitos
estão doentes e procuram atenuar a dor; outros, ostracizados pela
sociedade, procuram um fim misericordioso ou por comida, que há
muito que é escassa.
Quando a cidade ainda estava operacional, os refeitórios
comuns forneciam as famílias com todas as refeições, para que a
única preocupação da população fosse o bem comum. Não havia espaço
para a vida privada; tudo era feito pela comunidade, para a cidade
prosperar. Agora, os recursos acabaram; o Sul deixou de produzir
alimentos, as bombas de tratamento de água deixaram de funcionar;
com falta de manutenção, pouco a pouco, a cidade desaparece,
juntamente com as pessoas que a habitam.
Um projeto futurístico arrasado pelas circunstâncias da
vida. Pessoas que foram colocadas na cidade para a fazer
florescer, acabam agora a sua existência em agonia. Aquelas que
vão conseguindo sobreviver segregam-se dos doentes, com medo de
apanhar o vírus e recolheram-se para o distrito Norte, construindo
muros na fronteira, não deixando ninguém passar.
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São poucos aqueles que ficaram para ajudar os que precisam.
Alguns polícias patrulham as ruas, mas apenas para manter a ordem
e limparem o asfalto de cadáveres; outras pessoas ficaram para
ajudar no Hospital, no entanto poucos podem fazer a diferença no
meio da devastação.
Cassia, uma rapariga nos seus vinte e poucos anos, percorre os
corredores indiferente às pessoas que tentam agarrá-la. O hábito
de andar pelo edifício cheio de pacientes terminais, faz com que
todo o sofrimento que vê diariamente seja colocado em
compartimentos na sua mente. De outra maneira, seria muito difícil
levantar-se todos os dias da cama, para voltar a enfrentar as
dificuldades que lhes foram impostas.
Os gritos e as súplicas dos doentes parecem já melodias bem
ensaiadas. Cassia, com uma bata branca por cima das suas roupas,
gastas do tempo e das memórias, para de frente a um quarto privado:
estes raros. Os pacientes morrem nos corredores e em enfermarias
atravancadas; poucos têm o privilégio de morrer com dignidade em
Quimera.
Colocando a mão na maçaneta, Cassia fecha os seus olhos azuis
escuros por um segundo e respira fundo. Hoje precisava de coragem
para passar aquela porta; normalmente Cassia é a primeira a correr
em direção ao caos, no entanto o papel que adotou para esta guerra,
de pouco lhe estava a servir agora. Colocando uma mecha do seu
longo cabelo castanho atrás da orelha, força um sorriso e abre a
porta.
O ar gélido do quarto faz a jovem estremecer, mas o que
realmente a assombra é a imagem da mãe na cama do hospital, em
sofrimento. O seu pai há algumas semanas que já morrera. O vírus
levou-o em poucas horas; a sua mãe não tivera tanta sorte.
Há uns dias, já cansada, Felícia pedira a Cassia para
terminar a sua vida, enquanto ainda estava na posse das suas
faculdades. Cassia hesitou, mas estava disposta a conceder o
desejo à mulher que tanto a ajudou quando ela mais precisou. Não
há maneira de tornar a situação simples; aconteça o que aconteça,
o adeus é inevitável.
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O seu irmão Alastair opôs-se, na esperança de um milagre que
conseguisse salvar Felícia. Cassia sabia que mesmo que um antídoto
fosse encontrado ou produzido, já era tarde demais para a mãe.
Sorrindo, senta-se junto à cabeceira da cama de hospital.
Felícia dorme finalmente. A manhã provara-se uma autentica
maratona. Olhando para o relógio, no topo da porta, pede um desejo
em vão. Espera que Alastair chegue rápido, pois não tem a certeza
de quanto mais tempo têm.
Para sua surpresa, Felícia começa a tossir e abre os olhos
relutantemente.
- O teu irmão, meu amor? – A sua voz rouca e cansada.
Cassia sorri, perante o som da voz de Felícia.
- Descansa, ma. – Cassia puxa os cobertores para a tapar,
mesmo sabendo que os tremores que a mãe sofre não são causados
pelo frio. – Ele deve estar a chegar.
Felícia agarra a mão da jovem e obriga-a a encará-la.
- Cassia, preciso de te confidenciar algo.
Cassia tenta repudiar a tentativa da mãe falar.
- Tenta descansar, por favor. Sabes que está quase na hora
e que o Alastair não se vai perdoar se alguma coisa acontece antes
de ele chegar. – Uma lágrima ameaça escorrer pelo rosto da morena,
mas Cassia ignora-a.
- Minha querida Cassia. – Com um sorriso amável, Felícia
acaricia a cara da filha. – És tão corajosa e resiliente. Sabes
que vais ter que tomar conta do teu irmão, não sabes? Ele é
demasiado humano para enfrentar o que se segue. Escuta-me com
atenção.
Cassia presta atenção às palavras da mulher que a viu
crescer.
Felícia fala a custo.
– Espero que encontres no teu coração lugar para me perdoar
pelo que eu te vou dizer de seguida.
- Ma, o que foi? O que tens assim de tão importante para me
dizer?
- O teu pai está vivo, filha. – Felícia pausa, sem saber
como continuar. – Quando ele te deixou com a tua mãe, ele teve as
suas razões. Não estou, de modo algum, a dizer que foram boas
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razões. Ainda assim, foi o melhor para as duas ele ter partido:
foi o melhor para ti. Não terias sobrevivido à sua ira. Agora que
já estás crescida, já te podes defender e estás no teu direito de
o procurar.
Cassia fica perplexa perante a informação; a sua mente é
inundada por todas as vezes que viu o seu progenitor. Já pouco
lhe conhece das feições: as memórias são turvas, mas as suas
cicatrizes não a deixam esquecer por completo.
- Porque é que eu haveria de o querer procurar? Ele matou a
minha mãe e quase me matou a mim. Não tenho nada para lhe dizer.
- Ele pode ter a solução para Quimera, Cassia. Lembra-te que
nem tudo é como pensamos ser.
A porta do quarto abre abruptamente, passando a corrente de
ar pelo cabelo de Cassia, fazendo-o estremecer sobre os seus
ombros. Felícia guarda silêncio, por já não estarem sozinhas e
Cassia olha para a porta para perceber de quem se trata.
Um rapaz bem-parecido aguarda, observando-as. A custo,
mostra um sorriso aberto e característico, mas os seus olhos
grandes e castanhos contam a verdade. A tristeza inunda-o, perante
a imagem da mãe naquele estado.
Alastair fecha a porta atrás de si e dá um passo em direção
às caras familiares. O seu uniforme policial está sujo de cinza e
terra. Aproximando-se da cama envolve Cassia num abraço e de
seguida verga-se para beijar a testa da mãe.
- Como te sentes? – O rapaz pergunta, com medo de saber a
resposta.
- Todos os dias te vou responder o mesmo, meu querido filho.
– Felícia olha para Cassia, na esperança de ela entender o seu
lado. – Estou pronta para morrer. Tens que me deixar. Não faz mal
morrer, é a lei da vida.
Alastair olha afligido para a irmã a seu lado.
- Eu não aceito isso. Estás a desistir! Não foi isso que nos
ensinaste, porra!
- Não, eu ensinei-vos a saberem quando devem lutar e quando
devem baixar os braços, pois já não há nada a fazer. Eu estou em
agonia, Alastair. Tens que me deixar ir. – O rosto de Felícia
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denota cansaço. A sua testa repleta de suor. – Isto vai acontecer
hoje; quer tu queiras, quer não.
Alastair leva a mão ao rosto, desesperado. Cassia sabe melhor
do que tentar argumentar contra ele. Ela entende Felícia e
reconhece o seu desejo de morrer pacificamente; não é o seu lugar
julgar as suas decisões, mas tentar compreendê-las.
- Prometam-me que vão tomar conta um do outro, por favor.
Para eu ir descansada… - Felícia olha para o relógio e sabe que a
hora está a chegar. – Não importa o que aconteça, não se esqueçam
de seguir o vosso coração. A nossa cabeça às vezes é demasiado
confusa para escolher o melhor caminho.
Alastair engole em seco e recusa-se a olhar para a mãe.
Cassia olha para o relógio e de seguida para a porta, antecipando
a entrada da equipa de limpeza, como lhe chama o governo.
Cassia afaga as costas do irmão, puxando-o para o canto. As
lágrimas escorrem pela cara do rapaz, que se liberta das mãos de
Cassia e corre para a mãe.
- Não faças isto, mãe. Ainda vais a tempo de desistir desta
loucura.
Um dos enfermeiros arranca Alastair da cabeceira da cama e
leva-o novamente para junto de Cassia. Felícia sorri para os dois
jovens que a veem partir. Cassia sabe que a mãe está pronta e dá
a ordem silenciosa para que os médicos continuem.
Cassia e Alastair caminham em silêncio em direção ao seu
apartamento. Ambos cansados dos desafios do dia, não sentem a
necessidade de trocar mais palavras do que as que já foram ditas.
Cassia pensa que as pessoas por vezes falam demais, tirando o
significado ao que é dito, por ser repetido vezes sem conta.
Alastair, por sua vez, pensa que as pessoas apenas não ouvem, ou
que dão demasiada importância ao que é dito sem significado.
Tanto Alastair, como Cassia concordaram que o que tinham
para falar sobre o passado já está falado. O passado já não existe,
por isso, já não há necessidade de reviver as memórias.
- Esta cidade cada vez mais se parece com um cemitério. –
Alastair fala pela primeira vez desde que saíram do hospital. –
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Não que nós tenhamos direito a fazer um funeral à nossa mãe; o
que não deixa de ser irónico.
A raiva é sentida na voz de Alastair que para por instantes
no corredor.
- Lamento, Al. – Cassia pousa uma mão no ombro do irmão,
tentando reconfortá-lo.
Um silêncio pesado envolve-os. Tanto Cassia como Alastair,
desde que a cidade soltou o alerta, dedicaram as suas vidas a
tentar ajudar quem resta. Por vezes, este fardo torna-se demasiado
pesado, como que olhar para o abismo do cimo de uma corda bamba.
Ainda assim, parece sempre que o que fazem não é o suficiente. E,
neste dia, tudo parece ser em vão.
- O rescaldo da guerra não pode durar para sempre… - Alastair
suspira.
- Não vai durar. – Cassia conclui rapidamente. – Em breve,
todos estaremos mortos.
Alastair olha para Cassia; preocupação enche os seus grandes
olhos castanhos. Noutra altura, Alastair contestaria o pessimismo
da irmã, mas depois do que ambos já passaram para chegar a este
dia, contrariar esta conclusão seria tolo. No entanto, o sonhador
sempre fora ele, deixando o papel de racional para Cassia.
Mesmo antes de chegarem à porta, percebem que esta foi
arrombada. Ambos retiram as suas armas antes de entrarem no
apartamento. Andar desprotegido em Quimera nos dias que correm é
pouco aconselhável, ainda que as armas que têm sejam ilegais.
- Raios mais estes miúdos de rua! – Reclama Alastair de
imediato; importunado, uma vez que já seria a terceira vez esta
semana que o seu apartamento era invadido e hoje não era um bom
dia para lhe pisarem os calos.
Caminham devagar até à porta, de modo a não afugentarem quem
quer que seja que se atreveu a entrar, à sorte, no lugar que
aprenderam a chamar casa. Cassia toma a frente, já que tem pouca
paciência para fazer fretes ou esperar por ordens de outrem: nem
mesmo do seu irmão e Alastair já está demasiado habituado à sua
obstinação e turbulência para dizer seja o que for.
Cassia sabe que Alastair está mesmo atrás dela, ainda assim
parece-lhe ouvir mais do que os passos do irmão. Numa decisão
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repentina, Cassia vira-se e aponta a arma a Alastair, apanhando-
o de surpresa.
- Baixa-te! – Cassia grita e sem pensar duas vezes prime o
gatilho, quando vê Alastair a atirar-se para o chão.
- Mas que… - Alastair perde as forças para falar. A sua
respiração acelerada e os ouvidos a zumbir, devido ao som dos
disparos. A sua mente está turva, sem entender o que acabou de se
passar.
Ao olhar para trás de si, Alastair vê o corpo, ainda quente,
de um homem de fato preto caído a seus pés. Sentando-se, traga em
seco. Cassia aproxima-se de Alastair e estende-lhe uma mão, como
que a oferecer a sua ajuda.
- Obrigado, Cass. – Alastair aceita a ajuda da irmã, mas não
tira os olhos do tiro certeiro no meio da testa do homem que o
tentava agarrar.
- Sempre que precisares, irmão!
Piscando o olho a Alastair, Cassia volta a empunhar a sua
arma e entra no apartamento, abrindo a porta abruptamente.
Alastair sacode a cabeça e volta a pegar na sua arma também,
seguindo-a de imediato. A perícia ao apartamento não demora muito,
já que é um espaço pequeno e se encontra vazio.
Desconfiado, Alastair volta para o corredor e procura nos
bolsos do casaco e calças do intruso por credenciais. Em Quimera
é obrigatório circular com identificação visível. Se alguém é
parado nas ruas por um agente policial e não tem documentos, é
detido de imediato e levado para uma cela. Aí permanece até
conseguir fornecer o seu número de identificação governamental,
providenciado pelo governo e que acompanha a pessoa desde o seu
primeiro fôlego até ao último; assim como um chip no pescoço que
informa o distrito de pertença do indivíduo.
- Ele não tem identificação. – Alastair informa Cassia ao
ouvi-la a andar impacientemente atrás de si.
- E chip? – Pergunta Cassia.
Alastair retira o leitor do seu cinto de utensílios e passa-
o no pescoço do desconhecido. Um bip audível é seguido por uma
luz vermelha no leitor. Alastair formula um não abanando a cabeça.
- Então ele não é de Quimera. – Conclui Cassia.
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- Ou apenas não querem que saibamos quem ele é. – Alastair
levanta-se e encara Cassia. – Algo não bate certo. Se ele não é
de Quimera, como é que ele passou a fronteira?
- Lá porque ninguém se aventura fora deste manicómio, não
significa que não haja mais loucos a tentar entrar.
- Não. – Alastair não se convence. – Há mais nesta história…
Antes de conseguirem resolver o mistério, sacos pretos são-
lhes enfiados na cabeça, fazendo tudo desaparecer diante dos seus
olhos.
Cassia e Alastair tentam vigorosamente lutar contra os seus
atacantes, mas a sua pujança é interrompida por seringas espetadas
nos seus pescoços. O líquido frio a entrar nas suas veias faz os
seus olhos ficarem pesados e, poucos segundos depois, os seus
corpos deixam-se ir para o conforto da escuridão.
A custo Cassia abre os olhos; a visão ainda turva dos químicos
injetados no seu corpo, as suas pálpebras ainda pesadas e uma
enxaqueca de proporções homéricas. A única coisa visível através
da sarapilheira preta são sombras fugazes. Cassia tenta mexer-se,
mas logo descobre que está incapacitada pelas algemas que lhe
prendem as mãos, na inconfortável cadeira de metal em que se
senta. O frio do alumínio a arranhar os seus pálidos pulsos,
contrastando com o quente de uma mão encostada à sua, fá-la
perceber que não está sozinha.
Um sussurro familiar chama por Cassia.
- Cass! Estás bem? – Alastair está algemado juntamente com
Cassia. O que de certo modo a conforta.
- Sim. E tu?
- Já tive dias melhores… Bondage não é propriamente a minha
cena… - Alastair brinca, fazendo Cassia soltar uma gargalhada
baixa, mas não forçada como costuma.
- Onde raio é que estamos? – Cassia pergunta retoricamente,
enquanto balança na cadeira, tentando libertar-se. A sua voz
denotando raiva. – Consegues soltar-te?
- Não sem partir um polegar…
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Um ruído alto é seguido de passos em direção aos jovens
acorrentados, o que faz a conversa cessar imediatamente. Duas
pessoas falam entre si.
- Vejo que os apanharam. – A voz de uma mulher. Áspera, algo
roca e profunda. Ela fala com determinação.
- Sim, Senhora. – A voz de um homem. Claramente que presta
vassalagem à mulher, pela forma respeitosa com que lhe responde.
– Não vieram facilmente. A rapariga matou um dos nossos melhores
homens.
- Não esperava que viessem facilmente. – Cassia vê a silhueta
esguia da mulher a aproximar-se dela.
- Tem aqui bons combatentes, Comandante.
- Assim o espero. Precisamos deles com vigor. – A silhueta
afasta-se. – Vá chamar o Comandante Black; temos bastante trabalho
pela frente.
A sala de interrogações é um espaço pequeno e confinado. O branco
das paredes reflete a luz artificial das lâmpadas, que zumbem no
silêncio do espaço gélido. A grande porta de aço abre-se, fazendo
as paredes tremer; porta essa que é a única entrada e saída da
sala de interrogações. Nem janelas existem para deixarem entrar
um pouco de luz natural. As duas cadeiras de alumínio no meio do
espaço são a sua única decoração e cumprem escrupulosamente o seu
propósito: albergar os jovens a quem se destinavam.
Ari entra na sala e fecha a grande porta atrás de si, fazendo
o caminho até Kay de imediato. Notando nas duas pessoas presas no
meio da sala, olha para a mulher à sua frente, com um ar curioso.
- Cheguei. O que vem a ser isto? – O tom de desaprovação não
passa despercebido a Kay, o que ela escolhe ignorar.
Kay não se preocupa em dar uma resposta a Ari, pois sabe que
não tem que o fazer. Caminhando na direção de Cassia e de Alastair,
retira-lhes os sacos de sarapilheira da cabeça.
- Bem-vindos, Cassia Miller e Alastair Vincent. – A morena
olha para eles e sorri. Um sorriso forçado.
Os olhos de Cassia demoram um pouco a adaptar-se à luz, mas
assim que consegue ver mais do que sombras turvas, atenta de
imediato em Kay. Claramente uma mulher nos seus quarenta anos.
19
Bonita, conclui Cassia; mas os seus olhos rasgados e redondos,
albergam tristeza. O seu rosto alongado, muito sério; mesmo quando
sorriu para eles, não perdeu a sua superioridade. O seu corpo
esguio, move-se com determinação. Os seus olhos escuros,
contrastam com a sua pálida tez e o seu cabelo liso comprido cai-
lhe nos ombros, confundindo-se com o preto da sua farda.
Cassia move a sua atenção para Ari, que se colocou no canto
da sala, como se de algum modo se tentasse afastar da situação
procedente.
- Querem explicar-nos quem são? – Cassia não se consegue
controlar mais. – Que raio querem connosco? E onde é que nos
encontramos exatamente?
- O que é que estamos aqui a fazer, pá? – Alastair não é tão
delicado na forma como fala; está vermelho de raiva, fazendo as
algemas bater violentamente na cadeira de metal, criando um ruído
que ecoa na sala praticamente vazia. Os seus pulsos a arderem da
força com que sacode os braços.
Ari dirige-se a Kay, agarrando-lhe o braço tonificado, e
puxando-a para o canto, gentilmente.
- Tens a certeza que queres fazer isto?
- Não consigo perceber a tua relutância… - Kay sacode Ari
abruptamente e volta para junto dos seus convidados. – Perdoem a
minha falta de educação; deveria ter começado por me apresentar.
– O seu tom é calmo e distante. – O meu nome é Comandante Kay Li,
da Agência Governamental Samsara. – Kay aponta para trás de si,
sem tirar os olhos de Cassia e Alastair. – Apresento-vos também o
Comandante Ari Black.
Ari acena do canto; encostado à parede, de braços cruzados,
esperando o desfecho da cena que se desenrola.
- Ainda assim é-me difícil perceber o que fazemos nós aqui…
- Cassia perde as estribeiras com facilidade e a falta de respostas
para as suas perguntas não ajuda a controlar o seu temperamento.
Se há algo que Cassia não gosta é de se sentir confusa.
- Têm razão. Passo a explicar…
Ari solta uma pequena, mas audível, gargalhada, que faz Kay
mandar-lhe um olhar ameaçador. Endireitando o seu impecável
20
uniforme, Kay volta a encarar os jovens à sua frente, não se
deixando afetar por infortúnios.
- Ambos estão aqui, pois foram escolhidos para fazer parte
de uma importante missão.
- O que a Kay está a tentar dizer é que nós precisamos da
vossa ajuda. – Ari, sabendo que o forte de Kay não é lidar com
outras pessoas, tenta ajudá-la. Embora Kay nunca admita que
precisa de ajuda.
Aproximando-se de Cassia e de Alastair, continua.
– Agora; se me prometerem que ao tirar-vos as algemas não me
vão magoar ou à Kay, sou obrigado a pedir, - Kay revira os olhos
e ergue uma sobrancelha ao comentário de Ari, mas não diz nada. –
Eu solto-vos, para que possamos falar pacificamente, está bem?
Ari espera pela resposta, retirando a chave do bolso do
casaco e abanando-as no ar, como que a tonteá-los.
Cassia e Alastair olham um para o outro, sabendo que as
algemas não são o único impedimento à sua fuga. Cassia acena
afirmativamente, pelo que Ari lhe sorri, movendo-se para os
libertar de imediato. Alastair olha para Ari com um misto de ira
e de desconfiança.
Assim que se veem livres do frio metal das algemas, levantam-
se devagar, sentindo os músculos das pernas dormentes. Massajando
os pulsos, vermelhos, das horas que passaram algemados, mantêm-se
em pé a olhar para Kay e Ari.
- Muito bem! – Ari junta as mãos no ar com tal força, que o
som do estalo paira no ar, rompendo o silêncio. – Como a Rainha
do Gelo começou por explicar, nós fazemos parte da Agência
Governamental responsável por Quimera. Samsara é uma Agência
discreta e que opera longe do olhar do público, devido à natureza
sensível do seu trabalho. – Cassia e Alastair entreolham-se. –
Como é do conhecimento público, Quimera tem passado por momentos
assombrosos nos últimos três a cinco anos. Primeiro foi a
contingência a que a população foi restringida, devido ao estado
de alerta a que fomos sujeitos e depois o vírus, que devastou mais
de metade da população.
Ari para e o seu semblante escurece.
21
– O que vos vou dizer de seguida é estritamente confidencial,
pelo que preciso que me digam se posso confiar em vocês.
Cassia suspira, desconfiada do que ouve e olha para Alastair.
Este nem nota a impaciência da irmã, tentando avaliar as pessoas
à sua frente e escrutinando cada palavra. Alastair tenta sempre
dar o benefício da dúvida às pessoas e recusa-se a ver maldade em
quem quer que seja, mas isso não o impede de sentir animosidade
por quem o acabou de raptar.
Ari apercebe-se da relutância dos dois jovens.
- Vocês não confiam em nós. – Ari sorri, encantadoramente e
aponta para a porta. – Não o tomo como sendo pessoal. Devo também
informar-vos que não os estamos a tomar cativos. São livres de
virar costas e sair. Sei que provavelmente vos assustámos com os
nossos métodos pouco ortodoxos, mas saibam que eles são
necessários para manter a anonimidade da Agência.
» Nós ainda não vos dissemos nada que não possa sair destas
quatro paredes, por isso ainda há tempo de se negarem a ter
qualquer tipo de papel nesta missão. – Um momento breve de silêncio
segue-se. – Como vai ser?
Cassia olha para Alastair e de volta para Ari e Kay. A vida
por vezes leva-nos por caminhos inesperados; nessa manhã
descobrira que o seu pai se encontra vivo. Talvez esta seja a
oportunidade de o encontrar e ajustar contas. Afinal, de que serve
estar num mundo a padecer, se não pode usufruir das regalias.
- Está bem… - Cassia responde prontamente. – Eu aceito.
Alastair olha para Cassia, surpreso pela brevidade da
resposta. Ele sabe que Cassia é precipitada; e sabe ainda melhor,
o quão difícil é demovê-la das decisões que toma. Suspirando,
acena em concordância com a resposta da irmã. De todo o modo, não
há mais nada que tenham a perder. Nem mesmo as suas vidas, neste
momento, têm algum valor.
- Ótimo! – Ari avança para a porta. – Sigam-me.
Cassia segue Ari de imediato, mas Alastair mostra alguma
hesitação. Kay aproxima-se dele.
- Não se preocupe, Senhor Vincent. Não lhes iremos fazer
mal.
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Alastair olha para Kay friamente, mas logo avança de encontro
a Ari e Cassia. Kay apaga as luzes e segue-os, mantendo-se
ligeiramente afastada. A porta de aço fecha-se atrás deles,
deixando a pequena sala escura e vazia.
23
Capítulo 2
Outra sala; outro corredor; outra pesada porta de aço. Kay insere
uma palavra-chave no painel ao lado da porta, fazendo-a abrir.
Sem grandes cerimónias, entra num novo espaço; Ari, por sua vez,
encoraja Cassia e Alastair a seguirem Kay. O que eles fazem, sem
grande alarido.
Ari segue Cassia e Alastair para o interior do laboratório
científico da Agência Samsara e estes ficam junto à porta,
observando os cumprimentos, e deixam Ari continuar.
A sala é alta e ampla. Cheia de painéis nas paredes compridas
e de monitores. As luzes artificiais que a iluminam são poucas,
pelo que o laboratório se torna algo sombrio e carregado. O ar é
frio, quase como se estivem debaixo de terra. A infraestrutura
das salas e corredores, simulam o aspeto de um bunker de guerra.
Um jovem rapaz está sentado de frente a um conjunto de
monitores interligados. Cada monitor mostra uma imagem diferente
e conjuntos de letras brancas na tela preta. Este parecem absorto
ao que se passa à sua volta, emergido no seu trabalho.
Kay balbucia uma boa noite; a primeira vez que Cassia a via
sorrir genuinamente, desde que a conhecera. Ari sorri para o rapaz
e faz o caminho de encontro à secretária onde ele se encontra.
Ari chama a atenção do rapaz que até então não se havia apercebido
que tem companhia e abraça-o.
- Boa noite! – Pronuncia-se o rapaz, que se levanta da
secretária de imediato para cumprimentar Kay. Uma cena quase
familiar, apesar de nenhuma parecença física poder ser encontrada
entre os três indivíduos que a representam.
- Hayden! Como anda o meu génio preferido?
- Bem, Comandante Black. – Hayden responde prontamente. –
Tirando as minhas alergias sazonais.
Apercebendo-se da presença de Cassia e Alastair, Hayden logo
marcha em direção a eles, sorrindo especialmente para Cassia. Ele
tem um sorriso gentil e olhos escuros bondosos. O seu cabelo
castanho escuro está atado num rabo-de-cavalo e a sua tez
acastanhada realça os seus dentes brancos.
24
- E quem é temos aqui? – Hayden pergunta fixando o olhar em
Cassia, fazendo-a sentir-se algo desconfortável com a atenção
indesejada.
- Olá… - Sussurra Cassia, clareado a garganta.
- Chamo-me Hayden. – Bem-vindos ao meu laboratório. Prazer
em conhecer-vos. – Hayden estende uma mão a Cassia em jeito de
cumprimento. Cassia cumprimenta-o de volta, ainda que
relutantemente. Apercebendo-se de que se esquecera de Alastair,
Hayden, volta a estender a mão, atrapalhado. – Prazer em conhecer-
te a ti também!
- Algo me diz que não tens muitas visitas… - Alastair, rindo-
se, cumprimenta Hayden de volta.
Sorrindo, Hayden volta para junto da sua secretária, juntando
os papéis espalhados no mogno preto. Alastair aproveita para fazer
troça da irmã.
- Parece-me que tens um fã… - Cruzando os braços sobre o
peito, Alastair sorri, vivaço, para Cassia que lhe revira os olhos
e escarnece, perante a sua insinuação.
- Será humano? – Cassia nem chega a reprimir Alastair pelo
comentário infortúnio; apenas olha para o jovem que não tira os
olhos deles e continua alegremente a sorrir-lhes. – É demasiado
alegre.
Kay decide tirar as apresentações formais do caminho, para
que possam regressar ao que os trouxe ali.
- Apresento-te Cassia Miller e Alastair Vincent. – Hayden
mostra-se surpreso ao ouvir tais nomes - O Hayden Pratt, que
acabaram de conhecer, é o nosso Físico Experimental e Engenheiro
Informático.
A tez pálida de Kay tolda-se, devido à pobre iluminação da
sala. Ari dá um passo em direção a Kay, de modo a se posicionar a
seu lado. O ambiente fica mais sério repentinamente e Cassia
apercebe-se de que chegou finalmente a hora de acabarem a conversa
que começaram há pouco.
Alastair olha muito sério para Kay e para Ari e decide entrar no
jogo.
25
- Muito bem! De volta aos negócios será. – O tom que Alastair
usa é monótono e trivial. – Você disse que precisam da nossa
ajuda. – Alastair fala para Ari, já que Kay lhe pareceu pouco
acessível. – Lamento dizer que falho em ver como. O que é que dois
jovens adultos, de uma cidade devastada pela guerra, podem fazer
por uma Agência Governamental, supostamente especializada?
» Eu sou um agente policial, que o que faz todo o dia é
transitar cadáveres entre as valas comuns e as fogueiras,
destinadas à eliminação de vestígios biológicos, e levar doentes
para um hospital atulhado; a Cassia pronúncia a hora de morte dos
pacientes do Hospital. Percebe a minha falha em perceber como é
que poderemos ser de alguma utilidade para vocês, comandantes? –
A última palavra foi mais atirada do que pronunciada. Alastair
cruza os seus braços e o seu semblante torna-se sério.
Cassia olha para o irmão e suspira. A verborreia que acabou
de atirar para o ar, apesar de com sentido, parecia-lhe inútil
face ao ar de pouca admiração de Kay a avaliá-los. Parece a Cassia
que os seus currículos são de pouco interesse para os comandantes.
Até porque eles os devem saber já de trás para a frente. Há pouca
ou nenhuma coisa que seja secreta em Quimera. A vida privada nunca
fora muito apreciada, mas o sistema de vigilância da cidade sempre
fora muito aprazido.
- Bem, Alastair… - Ari respira fundo e apoia a cara na sua
mão cruzada sobre o seu braço, em modo pensativo. – Apreciamos
certamente o breve resumo curricular, mas na verdade há pouco
sobre vocês que nós não sabemos. – Cassia garceja, sapiente. – A
verdade é que estamos deveras impressionados com a maneira como
vocês se manejaram após o ataque a Quimera. Alastair: tu entraste
para a academia. E Cassia: tu completas-te em pouco tempo o treino
médico necessário para tomar rédea das trincheiras, ajudando a
salvar milhares de pessoas. Ambos ajudaram a salvar muitas vidas.
Lamento pela vossa mãe, esta manhã.
Cassia estremece, desconfortável com as palavras de Ari, que
a olha atentamente. Quer-lhe parecer que não tem já muito neste
mundo, à exceção dos seus arrependimentos e fantasmas que a
assombram.
26
O maxilar de Alastair contrai-se e o sangue, a ferver, sobe-
lhe à cara que fica rosada. O seu corpo fica tenso e as suas mãos
contraem-se em punhos, automaticamente.
- Vocês possuem um conjunto particular de talentos que são
de valor para nós. – Desta vez quem se pronuncia é Kay.
- O que raio querem de nós? – Cassia começa a perder a sua
paciência para jogos de adivinhas. – Deixem-se de rodeios!
Kay decide ser direta, finalmente.
- Alguém está a tentar eliminar Quimera como a conhecemos.
E nós precisamos de os parar. É isso que se passa e é por isso
que precisamos da vossa ajuda.
O desespero é audível na voz de Kay. Há algum tempo que este
se apoderou dela e por alguma razão, Cassia e Alastair foram
escolhidos para ajudar a salvar as vidas que restam.
Kay sabe perfeitamente que as suas palavras soam como se
saíssem dos lábios de uma louca. Que o que dissera não faz nenhum
sentido para quem está do lado de fora. Mas a realidade nem sempre
faz sentido.
Deslizando até à secretária, Kay pega numa pasta e entrega-
a a Cassia.
- Está aqui tudo o que sabemos até agora. – Cassia abre a
pasta e começa a ler; Alastair inclina-se atrás da irmã, de forma
a tentar ver o que ela vê. – Eu percebo que seja difícil para
vocês acreditarem em nós e que isto vos possa parecer um total
absurdo. No entanto, alguém anda a tentar interferir
deliberadamente nas nossas vidas. E nós apreciávamos imenso a
vossa ajuda para salvar Quimera.
Alastair olha, cético para Kay e para Ari e faz a pergunta
que ninguém se atreve a fazer.
- Como é que alguém elimina uma cidade?
Cassia tira os olhos do ficheiro e entreolha Alastair,
desviando a atenção de seguida para os comandantes, curiosa
perante a resposta.
Kay olha para Hayden, como que a dar uma ordem silenciosa.
De imediato, Hayden levanta-se e dirige-se para os confins
do laboratório de encontro a um painel na parede. A porta ao lado
27
do painel parece a de um elevador comum, como os que se encontrava
antigamente em todos os prédios públicos de Quimera.
Cassia abandona a leitura meticulosa do ficheiro: tinham
finalmente a sua atenção individua. Alastair, por sua vez, dá um
passo em frente, intrigado com a intervenção do cientista.
Hayden escreve um grande código no painel táctil e de seguida
no aparelho portátil que leva na mão. Uma luz branca e azulada
estala no ar e um barulho de geradores começa a ressonar. As
portas do elevador abrem-se mostrando um interior completamente
vulgar.
- Alguém elimina uma cidade viajando no tempo e mudando a
História como a conhecemos.
Hayden sorri, naturalmente, perante as suas palavras. Cassia
e Alastair olham para ele confusos, esperando por uma resposta
mais concreta e plausível.
Kay e Ari olham seriamente para os jovens perplexos, que
permanecem boquiabertos a olhar para a máquina à sua frente.
Incrédulos perante o que lhes foi dito; esperam que o silêncio
seja quebrado, enquanto interiorizam este novo conceito de
realidade que lhes foi introduzido.
- O que é suposto ser isto? – Cassia não aguenta o silêncio
ensurdecedor à sua volta.
- Vamos lá esclarecer isto! – Alastair vira-se para encarar
os comandantes e o cientista que os fitam impacientemente. – Mas,
afinal, qual é que é a vossa ideia?
- Salvar a cidade é a nossa ideia, Senhor Vincent. – Kay
fala pausadamente. – Mas para fazer isso, primeiro precisamos de
parar os ataques de que vimos a ser vítimas.
- Então, a vossa teoria mais plausível é que alguém anda por
aí a viajar no tempo e a mudar a História da Humanidade? – Cassia
decide entrar na discussão, virando-se para os restantes membros
na sala.
- Infelizmente, não é apenas uma teoria, Cassia. – Ari
dirige-se ao computador e abre um ficheiro, agora visível na tela
gigante, que ocupa a parede inteira, por detrás da estação de
trabalho de Hayden. Fotografias e ficheiros com um selo
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confidencial emanam o ecrã. – Há pouco tempo intercetamos um erro
num ficheiro eletrónico de Samsara. Pensámos de início que se
tratava apenas de uma falha dos nossos serviços; porém, mais erros
começaram a aparecer.
- Que tipo de erros? – Cassia pergunta ao mesmo tempo que
tenta assimilar o que está escrito nos ficheiros que passam pelo
ecrã.
- Erros que não deveriam de existir. Datas que transitam sem
destino. Informação que vai e vem. Como que esteja intermitente:
num limbo temporal. – Ari suspira e olha para Kay. – E depois,
ameaças começaram a aparecer. Enviaram-nos esta fotografia
assinada pela Mão Negra. Um grupo terrorista Sérvio que operava
na Europa durante a Primeira Guerra Mundial. – Uma fotografia
gráfica de uma rua enche o ecrã. Um carro antigo está no seu
centro. Pessoas em pânico, olhando para os dois indivíduos dentro
do veículo, que estavam a ser alvejados por um homem num fato
preto e de chapéu, que lhe esconde as feições. – Escusado será
dizer que no ano de 2098 é pouco provável que os indivíduos deste
grupo ainda estejam operacionais.
- E como é que saltaram para a conclusão de que é possível
viajar no tempo? – Alastair fita Ari. – E mudar seja o que for na
História? Perdoem a minha ignorância.
- Estes criminosos que procuramos ainda não foram sucedidos
na sua missão. Oficialmente a História em si não sofreu alterações
significativas. Ainda assim, não os podemos deixar continuar a
tentar. Por isso, é da máxima urgência que os encontremos e os
apresentemos perante a justiça.
Kay olha para Ari, sabendo que ele não está a contar a parte
mais importante.
- O que o Ari está a negligenciar dizer-vos, é que existe a
forte possibilidade de estas pessoas serem as mesmas pessoas
responsáveis pela libertação do vírus na nossa cidade. – Kay cruza
os braços e olha para o chão. – De modo que é imperativo que sejam
apanhadas e trazidas diante de nós, para que possamos finalmente
entender melhor esta arma bioquímica.
Cassia não sabe o que pensar. Toda a teoria por detrás do
vírus sempre fora naturalista. Uma consequência da influência
29
ecológica do Homem na Natureza. Todos sabiam que a Guerra tinha
ido longe demais; que as tenções entre os países despoletaram uma
Terceira Guerra Mundial de consequências nunca antes imaginadas.
No entanto, se o que Ari e Kay estivessem a dizer fosse verdade,
isso significaria que o vírus foi deliberado. Não uma consequência
do Aquecimento Global ou dos avanços tecnológicos do Homem.
Significaria que a sua família fora assassinada a sangue frio,
tal como metade da população. Uma cidade decimada pela ganância e
por interesses políticos ou por conflitos de crenças ideológicas.
Para Cassia, nada disso justificava tirar vidas.
A raiva começava a tomar conta da rapariga, que dá um passo
para trás, como que se quisesse afastar da ideia proposta.
- Não é possível… - Cassia sussurra.
- Lamento discordar, Cassia. – Ari evita o olhar da jovem,
claramente em negação.
- Isso significa que Quimera foi vítima de Homicídio em
Massa. De um ataque terrorista e que o vírus não foi apenas uma
inconveniência, mas uma arma muito mais perigosa do que qualquer
armamento nuclear antes possuído pelos Estados.
- Sim. – Kay acaba por concordar. – É difícil de aceitar; eu
entendo, Menina Miller. Quimera tornou-se numa inconveniência para
alguém.
» Ainda assim, tempo é um luxo para quem não o tem. Sei que
isto é muita informação para digerir e de cariz muito sensível.
Mas nós temos aqui uma janela de oportunidade limitada para agir
e precisamos de nos concentrar naquilo que podemos controlar.
Cassia vira as costas e anda impaciente pelo laboratório.
Alastair olha para a irmã, sabendo que esta não iria conseguir
digerir bem o que acabaram de descobrir.
- Qual é o plano exatamente? – Pergunta Alastair, sem tirar
os olhos de Cassia.
- Encontrá-los através das pistas que nos vão deixando. –
Ari responde. – Começarmos por ir a 1914 e perceber o que é que
esta fotografia que nos mandaram significa.
- Como é que isso funcionaria? - Alastair olha para Hayden,
desconfiando de que ele seria a melhor pessoa para responder.
Cassia para e olha também para Hayden igualmente curiosa.
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Hayden avança para Cassia e Alastair, que olham fixamente para
ele.
- A explicação é bastante simples. – Hayden cruza os braços
e sorri para Alastair que olha para a máquina ao fundo do
laboratório. – Para quem está familiarizado com Física Quântica,
claro.
- Desculpa, puto. Devo ter faltado a essa aula… - Alastair
sorri sarcasticamente para Hayden, que não se apercebe do tom de
esgar que Alastair usou e continua a sorrir alegremente.
Hayden dirige-se de imediato para a frente do computador,
onde as suas habilidades podem ser melhor postas a uso. Cassia
olha para os cálculos nos ecrãs a tentar decifrar o seu
significado. Alastair, abismado, perante a quantidade
incompreensível de números e letras olha para Hayden, à espera de
uma simplificação do que estava a ver.
- Uma das teorias mais antigas acerca das Viagens no Tempo
baseia-se em Buracos Verme e Anti gravidade. – Hayden começa a
descodificar o significado das equações e esquemas que vai fazendo
aparecer, ao tamborilar os dedos no teclado à sua frente. – Todas
estas teorias pareciam fazer as viagens no tempo possíveis, mas
não viáveis, devido a alguns problemas técnicos. Até que foi
descoberta uma quinta força no Universo.
- Uma explicação simples servirá, Hayden. – Kay relembra-o,
olhando para os ecrãs. – Eles não precisam das equações.
Hayden olha para Kay e suspira, tentando controlar as suas
palavras, uma vez que estava habituado a falar maioritariamente
com as paredes do laboratório.
- Certo… - Hayden pausa antes de continuar. – Então: a região
dentro de um buraco negro está para além do fim do tempo… O que
fez com que fossem classificados como singularidades na Teoria do
Espaço-Tempo de Einstein. O fato de termos começado a entender
como a força por detrás de matéria negra funciona, proporcionou
as condições para viajar através do tempo e não apenas do espaço,
usando estes buracos negros para nossa vantagem. – Hayden sorri,
esperando uma reação.
31
- Se tu o dizes… - Alastair tenta entender o que Hayden está
a dizer e olha para Cassia que parece estar concentrada na
informação dos ecrãs. Alastair não se admira de Cassia não parecer
confusa; afinal ela sempre foi uma mente curiosa e sempre atuou
contra as políticas de Quimera no que toca à restrição do
conhecimento. Muitas vezes desafiando as autoridades locais e
metendo-se em sérios sarilhos.
- O que eu estou a tentar dizer é que um buraco negro é um
género de um rasgo na cortina do espaço-tempo. Tudo o que se
aproxima desse rasgo é sugado para dentro dele e não consegue
voltar a sair. No entanto, no fundo desse rasgo encontramos um
buraco de verme, que forma um tubo; e se pensarmos em dois buracos
negros próximos um do outro, temos dois buracos de verme, que
formariam um tubo com uma entrada e uma saída. – Hayden levanta-
se, olhando para a imagem no ecrã de um esquema de um buraco negro
e de um buraco de verme. – A partícula que carrega a matéria negra
deu-me a possibilidade de conseguir controlar alguns dos efeitos
nefastos dos buracos negros, já que todos os sistemas comunicam
entre si e interagem. Basicamente, consegui construir um atalho
entre dois pontos separados no espaço-tempo.
Hayden olha para Cassia, sorrindo, e continua a sua
explicação.
– Através das novas componentes e do entendimento das forças
que operam o Universo, foi-me possível replicar certos sistemas
na Terra que só encontraríamos no Espaço. E através de uma réplica
de anti gravidade impedi o sistema de implodir e voilá: Viagens
no Tempo!
- Hayden… - Cassia finalmente decide participar na conversa.
– Eu também adoro Física e devo dar-te os parabéns pelas equações.
É tudo bastante impressionante: como combinaste várias teorias e
componentes para conseguires o que muitos tentaram e falharam.
Parece-me que tens aqui uma boa base teórica para as viagens
através do tempo. No entanto, o fato de teres resolvido as equações
não explica como é que vamos efetivamente viajar no tempo. Tudo o
que me apresentas é a possibilidade de o fazer…
32
- E voltar! – Alastair olha para Cassia, como que ela esteja
a ser ridícula. – Tenho quase a certeza que o que ele disse para
aí, não explica como ir, mas também não explica como voltar!
- Desculpa! – Hayden leva a mão atrás da cabeça e ri para
Alastair. – Entusiasmo-me com a parte da ciência. – Rapidamente
Hayden se vira para Cassia. - Então tu gostas de ciência maluca,
hum? – O jovem cientista ri encantadoramente para Cassia,
aproximando-se dela, o que a faz rir.
Alastair olha para Cassia satisfeito por a ver a sorrir. Há
muito que isto não acontecia. Claramente, Cassia estava no seu
mundo, entre pessoas com gostos semelhantes. Talvez esta fosse a
solução para eles; talvez aqui encontrassem um novo propósito, já
que não tinham mais ninguém à sua espera na cidade.
O ambiente no laboratório estava mais leve e Ari sorri para
Kay. Até agora tudo corria pelo melhor.
Hayden volta-se novamente para o ecrã, acenando a mão à sua
frente, fazendo a página mudar e mostrando agora o esquema da
máquina ao fundo do laboratório.
– O que acontece é que, hipoteticamente, vocês entram para
dentro da máquina e através de um programa informático idealizado
e composto por mim, é possível introduzir diferenças temporais
entre a entrada e a saída dos túneis dos buracos de verme
artificiais, de modo a que viajem para pontos específicos no
tempo. - Hayden olha para Cassia, piscando-lhe o olho. – Muito
fixe, não é?
- Acho que temos definições muito diferentes do que é fixe,
Hayden. – Cassia sorri, benevolamente, para o insistente rapaz à
sua frente.
- Muito bem. Eu aceito o lado cientifico. Acho eu… - Alastair
debate-se com a decisão que lhe pedem para tomar e com a crença
da possibilidade do que lhe estão a tentar vender. Apesar de saber
que precisam de um milagre, sabe também que nenhuma boa ação fica
sem punição. – Honestamente, não percebi nada do que disseste. A
minha única dúvida é: já o fizeram? Já viajaram no tempo?
Hayden desobstrui a sua garganta e olha para Ari que por sua
vez olha para Kay, sem saberem exatamente o que responder.
33
- Conduzimos algumas experiências com espécimes, claro. –
Ari quebra o silêncio. – Tenho quase certeza que os ratos que
enviámos estão perfeitamente seguros na época medieval. Não sendo
assim tão fáceis de controlar, sabemos que é possível ir. Só não
temos tanta certeza na parte do voltar…
- Também é possível que sejamos os culpados pelos coelhos
que atacaram Napoleão Bonaparte… - Hayden lamenta. – De todas as
formas, a Máquina funciona. Disso temos certeza absoluta.
- Isso não é muito reconfortante. – Cassia suspira. – De
todo o modo, em teoria, como é que voltaríamos?
Alastair agarra o braço de Cassia, chamando a sua atenção.
- Não estás seriamente a considerar isto, pois não?
- Deixa-os explicar, Al. – Cassia sacode gentilmente a mão
do irmão.
- Eu construí uma bracelete que tem a habilidade de conservar
a energia da vossa viajem para lá e gerar condições semelhantes
para os fazer voltar. – Hayden explica.
Cassia acena em concordância e olha para Alastair que hesita.
- Esta é a única maneira de apanharmos quem está por detrás
desta confusão. – Ari volta à conversa, quando pensa que as
explicações cientificas não são suficientes para apaziguarem as
preocupações de Alastair e Cassia. – Só ao jogar o mesmo jogo que
eles, podemos alterar as regras e vencer.
Cassia atenta nas palavras de Ari e pede licença, procurando
o braço de Alastair, de modo a chamá-lo para uma conversa privada.
Alastair suspira e segue Cassia para longe dos ouvidos curiosos
que emanam pelo laboratório.
34
Capítulo 3
Alastair olha para Cassia com uma expressão vazia. Relutante em
acreditar em toda aquela conversa e a sentir o peso do dia.
Cassia parece estar noutro planeta; os seus olhos atentam no
vazio e Alastair apercebe-se, talvez pela primeira vez de que os
olhos azuis de Cassia, outrora brilhantes, agora parecem sempre
os mais tristes no meio da multidão.
Alastair sabe que Cassia não sente os acontecimentos da mesma
maneira que ele. Talvez ela não os sentisse de todo; ou talvez os
sentisse demasiado, por isso, construiu muros à sua volta e não
deixa ninguém entrar. Ainda assim, não seria a razão para entrar
numa missão suicida. Acaba de perder a sua mãe, não está preparado
para perder o que lhe resta de família.
- Cassia… - Alastair suspira. – Não sei se é boa ideia. Eles
nem têm a certeza se a porra da máquina funciona. Seriamos apenas
cobaias nesta missão de doidos.
- Eles já utilizaram cobaias, lembras-te? – Os dois ficam em
silêncio por momentos a olhar um para o outro, até que Cassia
decide falar outra vez. – Al, tenho que te contar uma coisa.
Alastair olha para a irmã desconfiado, perante o ar desta.
- O que se passa, Cass?
- Antes de entrares no quarto da mãe, esta manhã, ela contou-
me uma coisa. – Cassia suspira antes de continuar. – O meu pai
está vivo e, segundo a mãe, ele pode ter a solução para Quimera.
- Como assim? – A voz de Alastair eleva-se, porém este
arrepende-se imediatamente do ato, vendo as cabeças das outras
pessoas na sala a virarem-se para eles.
- Calma! Por favor. – Pausa. Alastair evita o olhar de
Cassia. – Esta pode ser a minha melhor hipótese de o encontrar. A
mãe não me iria dizer isto de ânimo leve.
Alastair olha para o chão e suspira audivelmente. Não precisa
de olhar para trás para sentir os olhos de Kay e Ari cravados nas
suas costas. A espera por um milagre acabou. O milagre não vem.
- Para além disso, não te esqueças da situação que
enfrentamos. Nós estamos num buraco, Alastair. Um buraco que cada
vez se parece mais com uma sepultura. Foste tu que me fizeste
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acreditar que eu tenho algo de bom dentro de mim. Ajuda-me a
prová-lo. Ajuda-me a encontrar o meu pai.
- Não sei porque te odeias tanto, Cassia… - A voz de Alastair
denota tristeza. – Não precisas de provar nada a ninguém. Não
precisas de saltar para outro tempo no espaço para provar que não
és igual ao teu pai, ou mesmo de o procurar.
- Talvez precise. E se ele realmente sabe o que se passa com
Quimera? – Cassia suspira e volta-se para Ari e Kay. – Têm mais
uma oportunidade de nos convencer. Ou vamos os dois ou não vai
nenhum.
Cassia olha para Alastair e sorri delicadamente,
assegurando-o de que não está a pensar irracionalmente, mas a
tomar uma decisão deliberada com base em todas as informações.
Alastair segue Cassia, algo contrariado.
Ari e Kay entreolham-se, cúmplices. Ambos sabem que o futuro
começa a parecer mais risonho; pelo menos para eles.
- Nós temos um plano. – Ari começa. – Mas vai requerer alguma
delicadeza.
- Delicadeza é o meu nome do meio! – O tom de Alastair é
severo. – Qual é o raio do plano? Ir a 1914 e fazer o quê?
- Seguir a linha do tempo que os nossos atacantes estão a
seguir é a melhor maneira de os apanharmos. Precisamos de garantir
que a História fica intacta, claro. De todo o modo, sabemos que
eles estarão em Sarajevo e quando eles lá estarão. – Ari parece
certo do que diz. – É uma questão de fazer a viajem até lá.
- Estão a esquecer-se que não é propriamente a mesma coisa
que chegar ali fora e apanhar o comboio. – Cassia parece ter
algumas dúvidas quanto às certezas dos comandantes. – O que é que
o início da Primeira Guerra Mundial tem a ver com Quimera
exatamente? Se como dizem, o objetivo deste grupo terrorista é
erradicar a nossa cidade, estão em contradição com o mesmo.
- Não exatamente. – Kay olha para Cassia, de braços cruzados
e com um ar superior, como quem sabe mais do que o que está a
dizer. – Quimera tem uma longa história, Cassia. As lições que
vos dão na escola, nem sempre contam tudo.
- Que quer isso dizer? – Cassia desafia Kay.
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- Quer dizer que ao aceitarem esta missão se estão a submeter
a uma hierarquia. – Kay sorri presumidamente. – E que acatam
ordens sem as questionar.
- Nós não somos soldados.
- Claramente. – Kay dá um paço em frente, como que impondo
a sua autoridade. – Nós temos soldados. Precisamos de pessoas
especializadas noutras áreas para além da guerra. Mas não de
revolucionários e insurgentes. Pergunto-me se fizemos a escolha
certa ao colocarmos a nossa confiança em vocês.
- Só o tempo o dirá. – Cassia cruza o olhar de Kay e o
silêncio desconfortável envia um arrepio pela espinha de Alastair,
que pensa em interferir nesta medição de forças silenciosa. Cassia
ri, no entanto; o que faz Alastair questionar se a irmã terá
batido com a cabeça quando a trouxeram para a Agência. – Parece
que estamos entendidas. Isto é maior que todos nós. Maior que você
até. A comandante não faz a mínima ideia do que se passa realmente,
pois não?
- Eu sigo as instruções que me dão. – Kay parece
desconfortável. Perdeu esta mão: o seu bluff não funcionou.
Ari olha para Cassia e sorri. A perspicácia da jovem
impressiona-o, já que não é fácil ler o comportamento de Kay ou
apanhá-la desprevenida.
- E nós devemos jurar fidelidade a algo que não conhecemos,
com a promessa de que talvez possamos devolver alguma dignidade à
população? Penso que aqui a palavra chave é talvez. – Cassia dá a
última tacada.
Ari decide interferir.
- Olhem… - Ari olha para Cassia, suplicante. – Nós só temos
fragmentos da história para vos contar é verdade. Mas é por isso
que precisamos da vossa ajuda. Nós estamos demasiado subterrados
em juramentos e burocracia. Vocês são neutros. Podem ajudar-nos a
construir este puzzle e ao mesmo tempo salvar milhares de pessoas.
Não podemos prometer que tenham alguma resolução quanto ao vosso
passado. Não podemos prometer que este plano resulte. Mas podemos
tentar: todos juntos é mais fácil, não?
Cassia olha para Alastair a seu lado. Ele já perdera
demasiado: seria justo Cassia pedir-lhe que entre nesta missão,
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para a ajudar a redimir-se? O que pedem deles é que acreditem.
Afinal de contas, em Quimera todos eram criados segundo a mesma
ideologia. Todos eram preparados para servir a cidade e servir os
outros.
Em Quimera todos são livres, mas todos estão numa gaiola.
Cassia sempre lutara contra a opressão do sistema. Mas era uma
luta injusta, já que ninguém se apercebia da opressão a que estavam
sujeitos. O conhecimento é poder e pessoas sem conhecimento são
mais fáceis de controlar. Constantemente vigiados, ninguém se
atrevia a desviar-se do curso a que eram sujeitos. O número que
usavam ao pescoço era o número que traçava o seu destino:
identifica não só a que distrito da cidade pertencem, mas a sua
filiação e, portanto, a sua secção. Filho de agricultor,
agricultor será. Nunca houve espaço para a mobilidade social em
Quimera. O sistema estava assim desenhado.
A devastação veio alterar os papéis de cada um. Estes
alteraram-se por necessidade. Cassia é agora uma espécie de médica
feita à pressão, porque os médicos de profissão sucumbiram ao
vírus e a falta de mão de obra para tratar dos doentes falou mais
alto. O mesmo se passou com Alastair e a sua carreira policial.
Se tudo continuasse sem perturbações, hoje, Cassia e Alastair
estariam a trabalhar em alguma oficina da cidade. A reparar as
infraestruturas modernizadas da cidade: o antigo comboio, movido
a luz solar, que agora já não funciona ou os elevadores
gravitacionais dos grandes prédios das elites.
Algures durante o início do século XXI alguém se apercebeu
de que a tendência seria a destruição do Homem às mãos do Homem e
para reverter essa tendência seriam necessários esforços coletivos
para responder às necessidades de uma população crescente sem
comprometer a vida como a conheciam. Quimera, uma cidade
totalmente autossustentável, seria a utopia idealizada por
qualquer cientista dessa época. Mas a que preço?
Salvar a cidade que a vira crescer estava agora nas suas
mãos. Mas Cassia pesa todos os fatores na sua consciência: seria
Quimera digna de ser salva? Uma cidade que se singrava mais
importante que as pessoas que nela habitavam. Afinal de contas,
para que serve uma cidade se não para servir as necessidades das
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pessoas? Apesar de em Quimera ser precisamente o oposto. As vidas
das pessoas nunca significaram nada. Quimera parecia mais uma
prisão do que uma cidade.
No entanto, Cassia nunca se iria perdoar se sacrificasse as
pessoas de Quimera, para provar que a ideologia tinha ido longe
demais. A decisão parecia-lhe um pouco como atirar dados no
escuro. O que é que estariam mesmo a salvar?
Cassia fecha os olhos num momento de indecisão. Há dias em
que a culpa que sente se torna demasiado para suportar. Terias
tanta vergonha se conseguisses ver o nada em que me tornei. Este
pensamento faz-lhe pesar o peito e uma lágrima silenciosa escorre
pelo seu rosto. Já quebrei todas as promessas que te fiz, de todo
o modo. Este último pensamento afasta a mágoa que Cassia sente e
olhando para Alastair, como que a pedir desculpa, quebra o
silêncio que se instalou.
- Todos juntos… - Cassia escarnece. – A mim parece-me que os
sacrifícios são apenas nossos.
Ari abre a boca para ripostar, mas Cassia não lhe dá a
oportunidade de o fazer.
- Podem contar comigo. – Olha para Alastair, pesarosa. – Já
não há mais nada a perder, não é verdade?
Alastair sente-se magoado com a atitude de Cassia e vê a
irmã a afastar-se para o canto do laboratório em silêncio.
Maioritariamente, por não saber o que dizer.
Cassia sempre fora a mais promissora dos dois. Quando Cassia
chegou a sua casa era apenas uma criança assustada. Envergonhada,
mas sempre muito inteligente e talentosa; no entanto, quebrada
pela vida.
A vida é o pior que pode acontecer a uma pessoa, a mãe sempre
lhe dissera quando falavam de Cassia. Ele prometeu-lhe que sempre
iria cuidar da irmã. Mas é difícil cuidar de alguém que não quer
a nossa ajuda. Cassia sempre fora muito independente e teimosa.
Fendas de um passado doloroso, provavelmente. A mãe de Alastair
nunca lhe contara toda a história do que se passara com a irmã e
ele nunca teve coragem de perguntar a Cassia, não querendo
perturbar a sua paz.
Uma voz distante chama-o.
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- Alastair? – Ari olha para o rapaz, esperando uma resposta.
– Podemos contar também contigo?
Alastair suspira e olha novamente para Cassia, sentada no
canto do laboratório. Ari volta a chamar, mas Alastair está noutro
sítio completamente diferente.
O pequeno Alastair brinca com um carrinho no meio da sala de estar
do modesto e soalheiro apartamento dos Vincent. O carrinho tem um
ar um tanto rústico e certamente estranho para quem olha para as
ruas de Quimera e não vê nenhum aparelho parecido a deambular. O
brinquedo está gasto pelo tempo e não pertence na divisão de
linhas retas, com paredes e móveis monocromáticos. Uma caixa está
aberta aos pés da mesa de café no centro da divisão. Uma fotografia
antiga espreita pela boca da caixa de papelão: um menino, não mais
velho que Alastair à frente de uma grande embarcação com o mesmo
brinquedo na mão.
A porta da entrada abre de repente, assustando o pequeno
rapazinho, que tenta esconder o brinquedo e a caixa o mais depressa
possível.
Uma mulher de meia idade, com um ar cansado entra pela casa
adentro a puxar uma menina pela mão. A menina tem ar de choro e
veste um casaco preto. Os seus olhos azuis escuros fitam Alastair
e rapidamente ela se esconde atrás da mulher que a trouxe.
- Alastair, querido! – A mulher chama-o com um sorriso
rasgado e os braços abertos.
Alastair corre para os braços da mãe, abraçando-a fortemente.
- Al, esta é a Cassia. – Cassia espreita por detrás da saia
da mãe de Alastair. A mulher põe o filho no chão e este fita
Cassia curioso. – Ela vai ficar connosco por uns tempos, sim?
A mãe de Alastair tira o casaco e dirige-se para a sala,
deixando as duas crianças para se conhecerem.
- Olá! – Sorri o pequeno Alastair para a menina de olhos
azuis à sua frente.
- Olá… - Funga Cassia, fitando o chão.
- Queres ver uma coisa?
Alastair pega na mão de Cassia e puxa-a para a sala.
Certificando-se de que a mãe não lhes está a prestar atenção,
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Alastair tira a caixa de onde a escondeu e dá o carro a Cassia,
que o examina atentamente.
Alastair olha para a irmã sentada no canto do laboratório e vira
as costas a Ari, ignorando os seus pedidos de atenção. Puxando
uma cadeira, senta-se junto de Cassia, sem dizer uma palavra.
- Eu sei que não sou uma pessoa fácil… - Cassia fala baixo,
quase num sussurro.
- Nós somos família, Cass. Mesmo nos tempos mais difíceis.
– Alastair procura a mão de Cassia, agarrando-a carinhosamente. –
Eu sei que não parecemos muito… No entanto, contra todas as
probabilidades, estamos aqui e só nos temos um ao outro.
Alastair sorri, charmoso, para Cassia e ela ri. Ambos ficam
de mão dada em silêncio, sem olhar um para o outro: fitam o chão
apenas.
Alastair retira a sua mão da de Cassia e olha para ela
seriamente. É imperativo que tenham esta conversa; por muito que
custe a Alastair ter que pôr em causa as escolhas de Cassia.
- Tu disseste-me uma vez que quando se faz uma escolha não
se pode voltar atrás. – Alastair tenta que Cassia olhe para si,
sem sucesso. – Tens a certeza da escolha que fizeste?
- Tenho, Al. Tenho que o encontrar. Eu preciso de, pelo
menos, uma explicação. – Cassia levanta-se. – Talvez morra a
tentar, mas não posso voltar atrás. Pensas mesmo que não pesei
todas as consequências?
Alastair suspira e levanta-se, com as mãos nos bolsos, a
avaliar o estado de espírito de Cassia.
- Não podes mover montanhas sozinha, Cassia. Por muito que
tentes…
- Não. Não posso… - Cassia olha para Alastair. – Sei que não
queres ouvir isto, mas parece-me que estamos todos do mesmo lado.
A população de Quimera pode ter ainda a possibilidade de uma vida
melhor… Se calhar, é aqui que pertencemos e não lá fora onde não
há nada que possamos fazer. Porque não aproveitar a oportunidade
de estar na frente de batalha?
Alastair escarnece.
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- Já reparaste que nós só falamos de guerra? Mas nem sabemos
contra quem é que estamos a lutar. Vai-se a ver e estamos a lutar
as nossas próprias sombras.
Cassia não sabe o que responder. Mas nem precisa, pois
Alastair vira as costas e dirige-se a Ari e Kay.
- Não vou deixar a minha irmã ir sozinha. – Alastair sorri
para Cassia. – Comandantes, estamos ao vosso serviço, me parece.
Kay sorri e estende a mão a Alastair em jeito de cumprimento.
- Bem-vindos à Agência Samsara. A vossa cidade agradece-vos.
Alastair retribui o cumprimento a custo. O seu maxilar
contrai-se e ele respira fundo, ainda sem certeza de terem feito
a escolha certa. Só espera que não tenham puxado a presilha de
uma granada que irá explodir mais adiante.
Cassia aproxima-se de Alastair e sorrindo passa-lhe a mão
nas costas.
- Que tal eu mostrar-vos os vossos quartos e amanhã falamos
dos pormenores? – Ari sorri e aponta para a saída do laboratório.
Cassia acena afirmativamente e Alastair concorda. Ambos se
deixam levar por Ari; cansados e sem saberem bem de que horas se
trata.
Kay vê os jovens saírem. Hayden junta-se a ela.
- Eles ainda não sabem da pior parte… - Hayden lembra Kay.
- Às vezes o melhor é omitir algumas verdades, Hayden.
Hayden sabe melhor do que tentar argumentar contra Kay. Ambos
guardam silêncio e deixam que as circunstâncias se desenrolem como
devem.
Cassia segue atrás de Ari e Alastair, que se embrenham numa
conversa acerca da infraestrutura da Agência. Mas Cassia não segue
a conversa; apenas os seus passos. Os corredores de Samsara estão
desertos. De quando em vez, lá se cruzam com um ou outro agente
vestido de preto e a carregar uma AK-47, que passa por eles de
cara trancada e a trotar pelo corredor fora.
Cassia está a tentar procurar o passado no vazio e para o
fazer puxa o seu irmão para um ciclo do qual não sabe se vão sair.
Um suspiro sai-lhe involuntariamente. Da distância a escolha
pareceu-lhe simples, no entanto lembra-se de que está a pôr à
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prova a sua relação familiar. Talvez esteja a colocar mais um
prego no seu caixão, mas agora a única coisa a fazer é preparar-
se para a guerra que comprou.
Ari e Alastair freiam gentilmente à porta de um dos
camarotes. Cassia examina o corredor. As portas são todas iguais:
de metal frio e todas albergam o correspondente número. As paredes
erguidas são cinzentas e o corredor torna-se um pouco sombrio,
com as luzes artificiais a sucumbirem de tempos a tempos.
- Estes vão ser os vossos quartos. – Ari sorri para Cassia.
– Um ao lado do outro, claro.
- Parece que vamos ser vizinhos! – Alastair graceja.
- Parece que sim. – Cassia devolve-lhe um sorriso.
Cassia abre a porta do seu novo quarto e para antes de
entrar. O quarto alberga uma pequena cama no meio e uma mesa de
cabeceira. Uma cadeira de metal e pouco mais. Erguendo uma
sobrancelha, entra para o pequeno espaço. Se há algo em que o
governo de Quimera sempre se destacara fora em tornar todos os
espaços completamente impessoais: Samsara não foge à regra.
- Parece que quem trabalha em Samsara, vive em Samsara. –
Cassia fala para o quarto vazio.
Alguém para atrás de Cassia, mas ela não se move.
- Espero que os aposentos sejam do vosso agrado. – A voz de
Kay, meia roca e funda, é inconfundível.
- Não se preocupe. – Cassia não olha para Kay. – São ótimos.
Kay aproxima-se de Cassia e entrega-lhe um caderno e um
estojo de pano. Cassia, admirada, olha para Kay antes de receber
o que esta lhe dá.
- Pensei que isto te seria útil. – Kay evita o olhar de
Cassia.
- Obrigada… - Cassia pega no material de desenho e olha para
ele intensamente, não entendendo o seu significado. – Devo recear
o presente de boas vindas?
- Como assim?
- Tudo nesta vida tem um preço.
Kay ri ao perceber o que Cassia está a insinuar.
- O sacrifício que estão a fazer, quase ninguém o faria. –
Kay vira-se para a porta, mas antes de sair, volta-se novamente
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para Cassia. – E para que conste, eu não penso que meia dúzia de
folhas brancas e um pouco de grafite sejam o suficiente para pagá-
lo.
Kay deixa Cassia sozinha, mas por pouco tempo. Alastair e
Ari aparecem pouco depois.
- Aquela era a Kay? – Alastair pergunta com um misto de
intriga e suspeita. – O que é que ela queria?
Cassia atira com o material de desenho para cima da cama e
vira-se rapidamente para Alastair, sorrindo.
- Nada. Só passou por aqui para nos desejar uma boa noite.
– Cassia assegura Alastair. – Nada mais.
- Muito bem. – Alastair abraça Cassia. – Vou dormir. Alguma
coisa, chama.
Cassia acena afirmativamente e sorri. Alastair passa por Ari
e despede-se com um abafo nas costas deste. Ari sorri e murmura
um ‘boa noite’ e tanto ele como Cassia esperam Alastair sair para
começarem uma conversa.
- Que tal irmos a um lugar mais lotado para falarmos? – Ari
pergunta a Cassia.
- Porque não? Afinal não me parece que vá dormir muito…
Ari acena com a cabeça e sorrindo, cavalheiramente, indica
a porta a Cassia para que esta saia primeiro. Concedendo-lhe o
gesto, Cassia sai e de mãos nos bolsos e segue Ari.
Ari entra na grande sala de refeições comuns seguido de Cassia e
dirige-se ao balcão que serve de bar. Não há muito que beber em
Quimera, no entanto sempre se encontram algumas reservas que
vieram do exterior. Isto quando Quimera ainda fazia trocas
comerciais.
A área comum está praticamente vazia. É tarde e muito
provavelmente mais de metade da Agência está nos seus camarotes a
dormir. Só as almas noturnas vagueiam ainda pelos corredores ou
aqueles que estão de serviço durante a madrugada.
Ari dirige-se atrás do balcão e serve dois copos de alumínio
com o líquido dourado de uma garrafa com as letras já sumidas.
Empurra uma na direção de Cassia, que se senta ao balcão fitando
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o copo pensativamente. Ari senta-se na cadeira alta ao lado de
Cassia. O silêncio rodeia-os temporariamente.
- Eu sei que estamos a pedir demasiado de vocês. – Ari
finalmente decide quebrar o silêncio, sem tirar os olhos da
garrafa que pousou à sua frente. – Não posso prometer resultados
positivos. Sei que é-te difícil confiar em alguém depois do que
passaste na tua vida…
Cassia observa Ari atentamente. Algo no homem de meia idade
lhe parece familiar.
– Como é que você pode saber o que eu passei? - A pergunta
é retórica. - Não há nada que me faça ter-vos em melhor
consideração e confiar em vocês. Espero que esteja ciente disso.
– Cassia traga a bebida. - Eu não tenho motivos para viver, mas
também ainda não tenho razão para morrer. Estou no limbo. Foi por
isso que aceitei este trabalho. Não preciso de condecorações.
Ari fica perplexo perante o discurso da jovem e observa
Cassia a tragar o resto da bebida. Olhando-a seriamente, serve-
lhe outra bebida.
- Eu entendo. – Ari deixa sair uma gargalhada tristonha. –
Mais do que possas imaginar, Cassia.
Ari traga a sua bebida e continua.
- Eu perdi a minha filhota também. - A voz de Ari falha por
um bocado. A memória difícil de reproduzir. – Ela apanhou o vírus
e esteve doente durante semanas antes de… - Ari não consegue
acabar a frase; os gritos de súplica a ecoarem na sua mente, fazem
com que deixe fugir uma lágrima.
Cassia fita o homem à sua frente. Ela nunca fora muito boa
a lidar com emoções, por isso esta situação deixa-a algo
desconfortável.
- Lamento muito o que aconteceu à sua filha. – Cassia traga
novamente a bebida e bate com o copo no balcão, levantando-se
rapidamente.
Ari agarra o braço da morena.
- Não precisas de ir. Não precisamos de trocar histórias de
guerra se não o quiseres fazer…
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Cassia olha para Ari, considerando as suas palavras. Antes
de poder responder, uma bonita rapariga de longos cabelos loiros
passa por eles, captando a atenção de Ari.
- Doutora Grant! – Ele sorri vivamente. – Que faz a pé a
estas horas?
A rapariga, que usa uma bata de laboratório e um vestido
azul, que lhe acentua todas as curvas, para ao som do seu nome e
ao ver Ari sorri cordialmente.
- Comandante! Poderia dizer-lhe o mesmo… - Os seus olhos
verdes focam Cassia. – Oh, boa noite.
- Boa noite. – Cassia sorri e estende a mão para cumprimentar
a jovem médica.
- Cassia, - Ari levanta-se para fazer as apresentações. –
Apresento-te a Doutora Laura Grant; é a médica de serviço da
Agência. Algum problema, é com ela que deves falar…
- Prazer em conhecê-la, Doutora Grant.
- Por favor, trata-me por Laura. Não sou fã de complacências.
- Laura será, nesse caso. – Cassia ri perante o desembaraço
com que Laura se apresenta.
- Posso oferecer-lhe uma bebida, Doutora? – Ari pega na
garrafa que mostra a Laura, em jeito de desafio.
Laura hesita, olhando para a porta da área comum e pensando
em todo o trabalho que ainda tem pela frente.
- Eu não devia… Ainda tenho uma longa noite…
- Ora, mais uma razão para nos fazer um pouco de companhia.
Ari não aceita um não como resposta e dirige-se para trás do
balcão para retirar outro copo. Cassia volta a sentar-se, pelo
que Ari sorri.
Laura olha para Cassia e decide ficar, sentando-se ao lado
da morena de olhos azuis, que lhe sorri. Ari serve mais três
bebidas e deixa-se ficar atrás do balcão, observando Cassia e
Laura a falarem animadamente.
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Capítulo 4
O sol já rompe nas montanhas quando a porta do quarto de Cassia é
aberta abruptamente, fazendo-a saltar da cama. A sua cabeça
lateja; provavelmente da garrafa de whiskey consumida de
madrugada. Esfregando os olhos, obriga-se a tentar decifrar de
quem é a sombra que a avalia. As luzes são ligadas repentinamente
e apanham Cassia desprevenida, que grunhindo, tapa a cabeça com a
almofada.
- Toca a levantar, bela adormecida… - A voz de Alastair é
inconfundível.
Alastair dirige-se à pequena porta do armário embutido na
parede e retira de lá o uniforme preto da Agência Samsara que
pertence a Cassia. Ele já tem o seu vestido.
- Por favor, Alastair… Cala-te. – Cassia balbucia as palavras
contra a almofada, tentando fazer com que a sua cabeça pare de
latejar e lembrar-se de como chegou ao seu quarto.
Alastair cruza os braços sobre o peito e olha para a irmã.
- Algo me diz que quando te deixei não foi para vires dormir…
Cassia atira a almofada a Alastair, que se defende, e
levanta-se que nem um relâmpago. Tirando a t-shirt, dirige-se à
pequena casa-de-banho que faz parte do seu quarto e entra para o
duche.
A água fria escorre pelas suas costas fazendo-a estremecer.
As gotas geladas a embaterem violentamente contra a sua pele de
marfim lancinam. Alastair faz-se ouvir do quarto.
- Fico à tua espera no corredor, Cass.
Cassia desliga a água e respira fundo. Quando chega ao quarto
olha para o uniforme estendido em cima da cama e fita-o durante
algum tempo, imóvel. Fragmentos da noite passada encontram-na.
- Merda… - Cassia suspira, perante a recoleção da noite.
Laura desvia o olhar do intenso azul dos olhos de Cassia e sorve
o restante da sua bebida, sem saber se está a tomar coragem para
se ir embora ou para fazer o que está a pensar desde que ficou a
sós com a rapariga à sua frente.
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- Eu devia ir… - O tom de Cassia é baixo. Ela deveria
realmente ir antes de perder o seu bom senso e das trocas de olhar
se continuarem a arrastar.
- Claro… - A respiração de Laura é superficial, sendo difícil
já manter a sua compostura. – Eu acompanho-te ao quarto.
As duas fazem o caminho pelos corredores em silêncio; não
por falta de assunto para falarem, mas por não quererem dar
demasiada importância ao que estão a sentir neste momento.
Finalmente param à porta do quarto de Cassia e olham
intensamente uma para a outra. A fraca luz do corredor apaga-se e
Cassia puxa Laura para si. Laura responde com um beijo impetuoso;
empurrando-a gentilmente contra a porta.
Cassia encontra o fecho do vestido de Laura e fá-lo correr
para baixo lentamente. Encontrando a maçaneta da porta, Laura
dirige Cassia para dentro do quarto, fechando a porta atrás de
si.
Alastair encosta-se à parede a fitar a porta do quarto de Cassia
com uma garrafa de água na mão.
A porta abre-se repentinamente e Cassia sai do quarto, ainda
a atar o cabelo.
- Então, vamos? – Ela pergunta, fechando a porta atrás de si
e tentando passar despercebida.
Alastair passa a garrafa a Cassia, em silêncio.
- Obrigada. – Cassia aceita a garrafa, apercebendo-se de que
a sua missão não fora bem-sucedida.
- Espero que a noite tenha sido divertida. – Alastair evita
olhar para Cassia. – Porque o recreio acabou, Cassia. Tu é que
escolheste participar neste circo. Lembra-te disso…
Alastair deixa Cassia no corredor e de mãos nos bolsos
dirige-se ao laboratório. Cassia suspira, irritada e segue
Alastair.
- Que se passa, Al? – Cassia tenta decifrar o irmão.
- Só penso que te devas concentrar no que temos a fazer,
mais nada. – Alastair parece aborrecido, mas Cassia não percebe o
porquê. – Não me leves a mal, Cassia. Eu quero que sejas feliz,
mas acho que não é bem isso que se está a passar.
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Alastair para e vira-se para Cassia.
- Porque é que tu queres tanto que acreditemos que não te
importas? Porque é que desde que a Tara morreu tu passas as noites
a beber, a jogar e com uma galderia qualquer, em vez de tentares
lidar com o fato de que ela morreu?
A cólera começa a subir ao rosto de Cassia.
- Alastair, não entres por esse caminho. – Cassia reprime a
sua raiva e respira fundo, mas por muito que ela tentasse, respirar
vinha a custo. – Peço-te.
- Como não queres que eu entre por esse caminho? Quantas
noites tenho esperado por ti acordado? Quantas vezes tenho corrido
as ruas de Quimera à espera de te encontrar morta em alguma valeta?
Tu estás a perder toda a noção, Cassia! – A voz de Alastair começa
a subir. – Tu quiseste isto! Tu quiseste dar a tua vida pela
cidade! Tens que começar a acatar com a responsabilidade! A mãe
acabou de morrer e tu nem fazes um mínimo esforço para mudar o
teu comportamento imprudente.
Cassia dá um passo em frente e fixa o olhar de Alastair.
- Acho que estás a ir longe demais! Eu nunca pedi nada disso!
Eu sou bem capaz de tomar conta de mim, Alastair! Sempre fui. Eu
não preciso que me salves! Eu consigo salvar-me a mim própria!
Cassia vira as costas ao irmão e dirige-se à porta do
laboratório. Alastair segue-a.
- Estás a fazer um esplendido trabalho, realmente. – Alastair
chega junto de Cassia, que está de braços cruzados à frente da
porta do laboratório. – Tu estás a tornar-te numa…
Antes que Alastair consiga terminar a frase, a mão de Cassia
vai de encontro à sua cara.
Ao ouvirem a altercação no corredor Kay corre para abrir a
porta.
- O que vem a ser isto? – Kay pergunta ao ver Cassia e
Alastair a olharem fixamente um para o outro. O ambiente que os
envolve é pesado.
- Nada. – Cassia finalmente responde. – Absolutamente nada.
Virando as costas a Alastair, Cassia entra para o
laboratório, deixando o irmão com Kay.
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Alastair olha para a porta do laboratório, como se estivesse
enfeitiçado. Não consegue perceber o que se acabou de passar.
Talvez tenha ido longe demais. Ninguém sabe a dimensão do
sofrimento de outra pessoa, por isso quem é ele para julgar Cassia?
Principalmente depois da perda que tiveram.
Alastair suspira e leva as mãos à cabeça. Kay aproximasse
sorrateiramente, não querendo sobressaltar Alastair.
- Eu não sei o que se passou, Alastair. – Kay fala baixo e
pausadamente. – Mas, o que quer que seja, não podem deixar que
afete o vosso desempenho hoje.
Alastair olha para Kay incrédulo.
- Qual é o teu problema? – Alastair deixa as amabilidades de
parte. – Como se isso fosse uma das minhas prioridades neste
momento!
- Penso não serem necessários esses modos, Alastair. – Kay
não se sente ofendida, pois entende que estes são tempos
conturbados. Suspirando, tenta articular a conversa de outro modo.
– Às vezes tudo o que precisamos é uma nova perspetiva. O que quer
que seja o motivo de discussão entre os dois, pode ser resolvido,
se se tentarem encontrar a meio do caminho.
- Eu sinto que ela está a tentar tanto compensar pelo seu
passado, que está a acabar por se tornar numa pessoa que não é. –
Alastair desabafa com Kay, mesmo não confiando nas suas melhores
intenções. – Começo a pensar que ela talvez goste de ser assim.
- Todos temos a nossa baleia branca para perseguir, Alastair.
Só quando para para pensar, Alastair se apercebe de que Kay
poderá ter razão. Por muito que ele não confie nela, não pode
deixar de valorizar as suas palavras.
O laboratório está calmo. Todos guardam silêncio, esperando que
Alastair entre. Cassia anda de um lado para o outro, nervosamente,
mantendo a distância do restante grupo de pessoas. Ultimamente
anda cansada de tudo à sua volta. Não encontra nada de errado
especificamente, mas também não encontra nada certo.
Cassia olha para a sua mão. Ela mal consegue acreditar que
bateu em Alastair. Suspirando, fecha os olhos e para. Talvez
Alastair tenha razão: ela não faz a mínima ideia do que anda a
50
fazer com a sua vida. Para além disso, quer-lhe parecer que está
a falhar a última promessa que fez à mãe.
As suas mãos fecham-se em punhos automaticamente perante
este último pensamento. Os dias nunca pareceram tão longos. Cassia
perdeu demasiado, demasiado nova. Algo que nunca esquecerá é a
imagem da sua mãe biológica a ser levada num saco preto para
dentro da ambulância, com as luzes azuis a cintilar, na noite
escura. E a história parecia ter-se repetido, apenas com contornos
diferentes.
A sua família fora considerada uma anomalia. O seu pai
deixara a sua mãe e pouco tempo depois, Cassia encontrou-a na casa
de banho dentro da banheira com o secador de cabelo. Ela tinha
seis anos.
Foi um escândalo, claro. As pessoas de Quimera não cometem
tais atrocidades. Quimera tinha uma sociedade pacífica: as pessoas
obedeciam cegamente ao regime e às regras silenciosas que lhes
foram impostas. A base de uma sociedade tão imaculada fora
arruinada, apenas, pela promessa de uma guerra, anos mais tarde.
Felícia Vincent, vizinha da Casa Miller, soube dos
acontecimentos no prédio da frente. Rapidamente se disponibilizou
para ir ao resgate de Cassia e pela primeira vez em Quimera houve
uma adoção. Cassia não poderia estar mais grata e não poderia ter
pedido um melhor irmão do que Alastair. Sempre fora tratada como
uma filha e não como alguém que foi parar a casa dos Vincent por
um acaso da vida.
Não poderiam imaginar que acabaria desta forma. Agora,
órfãos, só se tinham um ao outro; e de alguma forma estavam a
arruinar tudo. Cassia estava a arruinar tudo.
A rapariga toma a decisão de ir resolver tudo com Alastair.
Eles não podem ficar assim. No entanto, antes de Cassia conseguir
reagir, Alastair entra disparado pela porta do laboratório. Traz
a cara trancada e determinação no olhar. Nunca as discussões entre
os dois foram tão longe.
Contra o seu discernimento, Cassia vai de encontro a
Alastair, na esperança de poder falar com ele sem grande alarido.
- Podemos falar? – Cassia sussurra para Alastair ao se
aproximar deste.
51
Alastair olha para Cassia com uma expressão impassível.
- Penso que vou precisar de algum tempo… - Alastair cruza os
braços e volta-se para Kay e Ari.
Cassia morde o lábio e solta um suspiro, dando um passo
atrás, para de algum modo se distanciar das circunstâncias entre
ela e o irmão.
Pela primeira vez desde que entrou no laboratório, Cassia
toma nota da nova adição à grande sala. Uma mesa redonda, em
frente da parede repleta de ecrãs, faz agora parte integrante da
paisagem do laboratório.
- Agora que estamos todos aqui, podemos começar. – Kay aponta
para as cadeiras vazias. – Por favor, sentem-se.
Kay espera que todos se sentem nos devidos lugares para
começar a reunião.
Ari faz sinal a Hayden, que faz aparecer os documentos e
fotografias no ecrã com um simples gesto no ar. O rapaz na
fotografia a preto e branco olha para eles acusatoriamente.
Claramente um jovem, no entanto algo no seu olhar envia um arrepio
pela espinha de Cassia, que o fita com curiosidade. Ela conhece
esta cara.
- Vamos começar o briefing acerca da vossa primeira missão.
– Kay aponta para o ecrã. – O rapaz que podem ver nesta fotografia
trabalha para…
- A Mão Negra. – Cassia interrompe, inclinando-se sobre a
mesa. – O rapaz é Gavrilo Princip: o terrorista sérvio que
assassinou Franz Ferdinand em 1914. Um acontecimento que deu
início à Primeira Grande Guerra.
Ari e Kay olham para Cassia, intrigados com a intervenção.
- Como é que sabes isso? – Ari olha para Cassia, curioso.
- Por um livro de História. – Cassia olha de volta para Ari,
como que a pergunta seja absurda. – Existem livros na biblioteca
de Quimera. Para a maioria das pessoas podem ser decorativos; eu
sempre os vi como ferramentas.
Cassia cruza os braços e refastela-se na cadeira, não
estranhando de todo a pergunta.
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Desde tenra idade que as crianças em Quimera aprendem os conceitos
básicos de moralidade. Depois começam o ensino primário, onde são
ensinadas a ler, a escrever e a ter um raciocínio matemático.
Aprendem História e Ciências, mas nada muito homérico pois, quando
as crianças chegam aos catorze anos, têm uma escolha para fazer:
segundo as suas aptidões devem escolher uma habilidade que
beneficie a Sociedade, dentro do sector a que pertencem. Quem
reside no sector tecnológico, terá opções como engenharia
informática, mecânica e física, entre outras. Quem reside no
sector agrícola, poderá escolher técnicas de agricultura ou
biogenética, já que a maioria dos alimentos consumidos em Quimera
eram manipulados e produzidos em laboratórios.
Não há, portanto, lugar para o conceito de sonho de que
Cassia lê na literatura clássica. Por outro lado, seria esta
complacência com o sistema que fazia com que este funcionasse. As
pessoas não são incentivadas a serem curiosas ou a quererem
aprender para além do que lhes compete; o incentivo é apenas
dirigido ao trabalho e à produção para a comunidade. Os
ensinamentos são, portanto, os básicos, porque os básicos chegam
para se viver confortavelmente na sua posição social em Quimera.
Não há lugar para a ambição pessoal, ou mesmo para a ganância,
quando a única coisa que importa é o bem-estar social e do todo.
Só existe uma única biblioteca em Quimera: o lugar de eleição
de Cassia. Cada secção da biblioteca tinha um guarda à porta e só
a ela acedia quem tinha a documentação indicada, de acordo com a
sua especialização. De todo o modo, a biblioteca estava sempre
vazia. O conhecimento era passado de geração em geração, pelo que
os livros nunca foram considerados essenciais.
Cassia sempre teve uma mente curiosa e nunca sentiu que se
encaixasse no quadro geral da população, exatamente por esta
razão. Ela não gosta do status quo e não pensa ser justo serem
condenados logo à nascença a fazerem parte de uma realidade a que
podem ou não pertencer. Muitas vezes foi levada a casa pela polícia
por entrar nas secções alheias sem autorização ou por levar livros
que não devia ler. Cedo começou a perceber que se o conhecimento
era tão bem guardado, seria porque exerceria algum tipo de poder
na sociedade. Ninguém guarda o que não tem valor.
53
Começou a desenhar o mundo que conhecia dos livros que lia
e com isso a sua paixão pelo desenho foi aumentando, pelo que nas
suas horas livres fugia para o parque da cidade para tentar vender
o fruto do seu trabalho no papel branco. No entanto, a arte, tal
como o conhecimento, era visto como algo sem valor. Ninguém
partilhava dos mesmos interesses de Cassia. Nem a sua família,
que apesar de a apoiarem nas suas escolhas, muitas vezes também
duvidavam delas. O seu sentimento era maioritariamente de solidão
insurgente, no meio da multidão complacente.
Cassia aventurava-se cuidadosamente por caminhos nunca antes
desbravados pela sociedade de Quimera e isso assustava os seus
pais e Alastair. Todos os dias se sentava no parque a desenhar.
Todos os dias esperava que alguém a abordasse para discutir a sua
arte. Nunca ninguém o fazia. Nem um olhar vinha em direção a
Cassia; as pessoas passavam absortas no seu pequeno mundo. Até
que um dia alguém parou e pegou num desenho: Tara.
Tara fez Cassia acreditar que não estava sozinha na sua
loucura. Essa rapariga morreu alguns anos mais tarde, nos seus
braços, na primeira vaga de casualidades do vírus.
Kay olha para Cassia com admiração. Não é fácil crescer em Quimera
quando se tem uma mente curiosa e tendo acesso ao registo de
incidentes da jovem sentada à sua frente, é fácil perceber que
não foi nada fácil para Cassia construir uma vida de acordo com o
que lhe fora exigido.
- Como eu dizia… - Continua Kay. – A Mão Negra foi uma grande
organização terrorista; uma das quais prevaleceu durante muitos
anos. É possível estabelecer uma ligação entre os nossos
antagonistas e Princip através da informação que temos…
- Irão por isso viajar para 28 de junho de 1914… - Ari
levanta-se da sua cadeira e viaja para junto de Kay.
- Mas esse foi o dia em que o Arquiduque morreu… - Cassia
olha para Ari de braços cruzados e para a pose altiva de Kay.
- Exato. – Kay olha para a fotografia de Princip. – Por essa
mesma razão, pensamos que os nossos suspeitos escolheram esta data
para se encontrarem com o cabecilha da Mão Negra. Não sabemos com
que fim, mas é para isso que vocês estão aqui.
54
- Como é que vocês têm a certeza disso? – Alastair fala pela
primeira vez desde que se sentou à mesa.
- Não temos. – Ari olha para Alastair e depois para Cassia.
– Por essa razão, esta missão apenas se destina a fazer
reconhecimento do local; caso contrário, poderão alterar algo na
linha do tempo e isso é a última coisa que pode acontecer.
Cassia levanta-se prontamente.
- Estar atentos; não mexer em nada e não fazer asneira! –
Cassia dirige-se para a porta da máquina do tempo. – Entendido!
- E não morram! – Ari olha para os dois jovens prestes a
embarcar na viagem das suas vidas e sorri. Kay conseguira um
grande empreendimento com esta missão e agora chegara o momento
da verdade. – Lembrem-se: nós ainda não atribuímos uma cara às
pessoas que procuramos, portanto estejam atentos.
Alastair acena com a cabeça e levanta-se lentamente,
dirigindo-se para o lado de Cassia. Respirando fundo, de corpo
hirto e com as mãos cruzadas à sua frente, como que a colocar uma
barreira entre ele e a irmã. O silêncio grita entre eles,
incomodando descomedidamente Cassia, que fica tensa.
Kay caminha até um painel na parede e digita um longo código,
fazendo abrir uma porta oculta, que mostra um arsenal de armas.
Armas de fogo e facas completamente ordenadas. Granadas e
explosivos em perfeita harmonia. Cassia sorri ao ver a luz a ser
refletida nas armas semiautomáticas e logo se dirige para o
armamento. Alastair segue-a.
- Escolham as vossas armas sensatamente. – Kay gesticula em
direção ao armamento. A sua voz é séria, mas não deixa de fazer
transparecer alguma espirituosidade.
Alastair dirige-se ao armamento e retira uma semiautomática,
escondendo-a à cintura, debaixo do seu casaco. Olhando para Cassia
repara na quantidade de armas que ela retira e esconde no seu
uniforme. Cassia, ao se aperceber de que Alastair está a olhar
para ela, para e olha seriamente para ele.
- O que foi? – Cassia coloca uma faca no seu bolso. – Nunca
se sabe…
Cassia profere abruptamente ao se afastar.
55
Alastair começa a seguir Cassia, um tanto contrariado com a
situação. Sabe que precisa urgentemente de resolver as coisas com
a irmã, no entanto, Cassia não é a única com mau feitio na família.
Olhando novamente para o armamento, pensa duas vezes antes
de continuar o trajeto e volta atrás para colocar uma faca no
bolso.
- Mais vale prevenir. – Alastair relembra-se.
Hayden espera, entusiasmado, junto da máquina do tempo com
duas braceletes na mão. Chegara finalmente o momento da verdade.
Apesar das fracas probabilidades de sucesso, guardam a esperança
de que todos saiam desta agitação vivos.
Sem pré-aviso, ao ver Cassia aproximar-se, Hayden coloca a
bracelete metálica no seu pulso; causando uma dor aguda no seu
pescoço, fazendo-a soltar um grito abafado, quase perdendo a força
nos joelhos.
- Desculpa. – Hayden olha para Cassia, desculpando-se. – É
mais fácil quando não estamos à espera.
Cassia esfrega o pescoço e sente-se um pouco nauseada. Ainda
assim sorri para Hayden, esperando que Alastair reivindique a sua
vez.
- Não percam as braceletes. – Hayden olha para a reação
sofrida de Alastair aquando da bracelete ao conectar-se com o seu
sistema nervoso através do seu chip de identificação. – De outra
forma, não há como regressarem.
Hayden pega na mão de Alastair e aponta para o painel da
bracelete.
- Quando estiverem prontos para voltar é só colocarem a vossa
impressão digital. – Hayden suspira nervosamente.
Cassia olha para o chão e apercebe-se pela primeira vez desde
que entrou no laboratório o quão perto estão de deitar tudo a
perder ou a ganhar.
Uma questão surge-lhe repentinamente, pelo que procura a
cara de Kay no grupo.
- E se os encontrarmos? – Cassia olha para Kay severamente.
– O que é que é suposto fazermos?
Kay replica o olhar e respira fundo antes de responder,
olhando para Ari.
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- Se realmente os encontrarem; têm autorização para atirar
a matar.
Ari afirma a resposta de Kay e Cassia segue-lhes a mesma.
Alastair levanta uma sobrancelha e clareia a garganta antes de
falar:
- Eu nunca concordei em ser atirador furtivo. – Calmamente,
Alastair ajeita a sua farda e fita a grande porta da máquina. –
Não faço promessas de assassínio.
Cassia revira os olhos à diplomática resposta do irmão e
coloca-se a seu lado, olhando para a máquina. De todo o modo,
Cassia sabe que Alastair não é um assassino. Se conseguisse
evitar, Cassia não poria o irmão numa situação de confronto.
Por outro lado, Cassia não sentia nenhuma afinidade por esta
vida. Não teria problemas em premir o gatilho. Apesar de Alastair
ver a vida a preto e branco, certo e errado; Cassia vê-la em
muitas sombras de cinzento, onde não há bem, nem mal, apenas
perspetivas. Deixaria a posição de carrasco para ela, não fazendo
com que Alastair venha a decidir entre a vida e a morte.
Apesar de estar zangado com Cassia, Alastair entrelaça a sua
mão na dela.
Hayden toma a sua posição, dirigindo-se para o painel da
máquina. O código é inserido nos lugares devidos e a porta
imponente abre-se, fazendo todos suster a respiração por um
segundo.
Ari dá uma pancada seca nas costas de Alastair, como que a
desejar-lhe sorte.
- Boa viagem… - O suspiro de Ari é audível.
Cassia e Alastair olham para as pessoas que deixam para trás,
à medida que fazem o caminho para o interior da máquina que os
irá salvar ou matar. O aparelho de descontaminação faz um enorme
barulho aquando da passagem dos dois para o interior do mecanismo.
A luz estala no ar do laboratório, onde tudo costuma estar soturno,
e finalmente Cassia e Alastair estão em posição de arranque.
Alastair beija a testa da irmã. Depois de tudo o que passaram
ele sabe que a relação com Cassia não está danificada, apenas
ressentida.
57
Um barulho ensurdecedor envolve-os e ambos largam da mão que
seguram, tentando tapar os ouvidos. A porta fecha-se rapidamente
e deixam de conseguir ver. Respirando fundo, cerram os olhos, sem
ter a certeza se os voltarão a abrir.
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Capítulo 5
Alastair abre os olhos, relutante, soltando o ar que não sabia
estar a segurar nos seus pulmões. Tudo o que vê são vultos brancos
e os seus ouvidos estão a zumbir. Quando finalmente cai em si, o
espanto assalta o seu olhar.
- Conseguimos! – O desabafo que sai dos seus lábios carnudos
tem tanto de maravilha, perante o que vê, como de pavor.
Ele não reconhece o sítio que o rodeia. As pessoas passam
por ele, umas indiferentes, outras desconfiadas e outras ainda a
avaliá-lo de alto abaixo.
Observando o seu novo ambiente, Alastair apercebe-se
rapidamente que se destaca no meio da multidão; sendo que a última
coisa que quer é chamar atenção para si. O seu uniforme preto e
botas de combate contrastam com os fatos dos cavalheiros e
aprumados vestidos das senhoras.
O peito pesa-lhe. A sua cabeça anda à roda. A sensação de
estar a rodopiar no centro de um tornado, tentando agarra-se à
vida, não o deixa. Repentinamente apercebe-se de que ainda não
ouviu Cassia. O pânico assombra-o. Não conseguiria imaginar um
mundo sem a sua irmã nele.
- Então e agora? – Uma voz familiar vem detrás dele. Um
suspiro de alívio sai-lhe involuntariamente.
Alastair vira-se de imediato para encarar a irmã.
Cassia observa tudo à sua volta e não se apercebe da
apreensão infundada em que se encontra o irmão, até sentir os seus
braços a apertá-la.
- Al… - Cassia luta por respirar, tentando libertar-se do
forte abraço de Alastair. – Estás a sufocar-me.
- Oh! – Alastair rompe o abraço, permanecendo apenas com as
mãos nos ombros de Cassia. – Pensei que te tinha perdido.
- Eu não sou um relógio. – Cassia responde sarcasticamente.
– É um tanto difícil perderes-me.
O semblante de Alastair fecha-se perante a áspera resposta
de Cassia. Parecer-lhe-á que a irmã ainda está ressentida com a
sua explosão. Se bem que a este ponto já nenhum deles se lembra
59
quem disse o quê e a razão da discussão. Se bem que há muito pouco
de que Cassia se esqueça.
- A mim parece-me que precisamos de mudar de roupa. –
Alastair tenta desviar-se do olhar das pessoas e começa a andar
descontraidamente pelas ruas, com Cassia no seu alcance. – As
pessoas estão a olhar para nós afincadamente.
Alastair sorri para as senhoras que vão passando, acenando
de quando em vez com a cabeça na sua direção. Cassia escarnece
perante a ação. Há coisas que não mudam, por muito que o tempo
passe, ou que se viaje por ele.
- Achas mesmo? – Cassia coloca as mãos nos bolsos e evita o
olhar das pessoas que a fitam. – Impossível seria não olhar.
Cassia perscruta o espaço e tenta desenhar um novo plano de
ação. Claramente não tiveram em conta alguns pormenores.
Alastair avista um beco isolado da multidão e, sem hesitação,
puxa Cassia por um braço, de forma a se esconderem dos olhares
acusadores.
- Precisamos de um plano. – Alastair declara. – Tens alguma
coisa?
- Parece-me que deveríamos ter pensado melhor nisso: antes
de saltarmos dois séculos atrás no tempo, para perseguir
fantasmas!
- Claramente não pensámos nisto até ao fim. – Alastair agarra
a sua cintura e olha para o vazio pensativo. Apesar de ter sido
por vontade de Cassia estarem nesta situação, não valia agora a
pena apontar dedos.
- Estávamos demasiado focados em sobreviver à viagem… -
Declara Cassia, sem a intenção, no entanto, de fazer as suas
palavras significar algo mais do que o que representam.
Cassia suspira audivelmente. Já se encontram no beco à meia hora,
a tentar deliberar o que fazer a seguir. De bruços, encostada à
parede, leva as mãos à cabeça. Olhando para Alastair encostado à
parede de tijolo, cerra os olhos pensativa. Quando desvia o olhar
do irmão, depara-se com a imagem de uma pequena montra de roupa
do outro lado do beco. Os manequins na janela de ombreiras verdes
vestem roupa de mulher e moda masculina.
60
Sorrindo bate com as palmas das mãos nos joelhos, como que
a celebrar a sua ideia e levanta-se rapidamente, chamando de
imediato a atenção de Alastair. Este coloca-se estrategicamente a
seu lado, tentando perceber o que animou o humor de Cassia.
Finalmente, ao avistar a pequena boutique, Alastair apercebe-se
do plano de Cassia. Ludibriando, Alastair cruza os braços perante
o ridículo da ideia.
- Nós não temos dinheiro, parva! – Alastair olha para Cassia,
perturbado.
- Eu sei, idiota! – Cassia irrita-se. – Mas, mesmo que
sejamos presos, podemos sempre voltar para a nossa linha temporal!
- Qual foi a parte sobre não chamarmos as atenções para nós
que te custa compreender?
- Tens um plano melhor, génio? – Cassia olha para Alastair,
esperando uma resposta: o seu ar intransigente.
Alastair solta um suspiro audível, encolerizando. Tomando-
se como vencido, começa o caminho em direção à loja. Cassia segue-
o, rindo-se. Param em frente da pequena porta de madeira pintada
de verde e Cassia impede Alastair de entrar.
- Não podemos entrar sem mais nem menos na loja… - Cassia
agarra o braço de Alastair, fazendo-o parar abruptamente.
- A ideia foi tua, Cassia! – Alastair expira audivelmente,
aborrecido com a situação.
Cassia começa agora a enervá-lo. Se bem que poderia não ser
Cassia quem o enerva, mas a sua calma perante toda a situação em
que se encontram. Nada parecia chegar a Cassia: nem o fato de
poderem ter que matar alguém. Alastair começa agora a sentir o
peso da arma na sua cintura; especialmente tão cedo depois da
morte da sua mãe.
Sacrificar alguém é diferente; é errado. Em Quimera a moral
era imperativa para o funcionamento da sociedade. Pequenos ou
grandes crimes eram punidos com vigor e muitas vezes com pena
capital. Com o sistema de vigiar e punir, só os loucos ou suicidas
se atreviam a infringir a mais pequena lei. Ao se crescer em tal
ambiente, o compasso moral aponta sempre para a norma social,
mesmo que esta não seja admitida por todos.
61
Com ou sem punição, ninguém tem o direito de agir como juiz
da Humanidade.
Cassia olha através da janela da loja.
- Não vejo ninguém lá dentro. Achas que conseguimos entrar
sem ninguém notar? – Ela pergunta; a sua respiração a tornar-se
num misto húmido, contra o frio vidro da janela.
- Há sempre uma forma de entrar. – Alastair parece seguro
das suas palavras e olha por cima do seu ombro, para o beco ao
lado da loja.
Sem hesitação, Alastair sorri e embrenha-se pelo beco escuro,
apesar da luz do dia ser abundante.
Cassia concentra o seu foco na pequena vista ao fundo do corredor
estreito que dá para a porta traseira da loja de roupa. A Sérvia
parecia ter sido um lugar maravilhoso. Cassia sempre quisera
viajar, mas havia mais impedimentos ao seu sonho do que apenas as
paredes que se erguiam ao largo de Quimera. Quando alguém nos dá
uma vida, ela nunca é realmente nossa; e o que os Vincent fizeram
por ela, foi exatamente isso.
Os seus pais adotivos deram-lhe uma nova oportunidade, quando
o seu destino, ao abrigo do Estado da sua Cidade após o abandono
dos seus pais, teria sido a morte. A causa desta brutalidade,
prende-se no fato de uma pessoa, em idade não ativa, estar sujeita
a ajudas externas para a sobrevivência. E o Estado de Quimera não
aceita mais responsabilidades do que aquelas que se prestou a
servir desde a fundação da cidade. O que não tem valor para nós,
é descartado. Os Vincent arriscaram muito para ela não ser
descartada e Cassia sentia o peso da dívida nos seus ombros.
Cassia desvia o olhar do sol a nascer sobre o rio e volta a
concentrar a sua atenção no irmão, ajoelhado diante da porta de
madeira branca. Alastair retira um pequeno estojo do bolso e
sorri, presunçoso, para ela.
- Não és a única que veio preparada… - Gaba-se, tirando duas
pequenas ferramentas para abrir a fechadura.
Com toda a precisão e determinação de quem já fez este gesto
mais do que uma vez, Alastair destranca a porta num abrir e fechar
de olhos.
62
– Tu podes ser inteligente, Cass, mas eu não sou apenas uma
cara bonita…
Piscando o olho a Cassia, Alastair troce a maçaneta da porta,
abrindo-a lentamente.
- Sim, que alívio saber que consegues forçar ilegalmente a
entrada em qualquer parte. – Cassia pisca o olho a Alastair, num
meio-termo entre sarcasmo e brincadeira.
- Hei! – Alastair finge ofensa. – Todos temos os nossos
talentos.
Cassia passa por Alastair que nem uma flecha e, de repente,
este sente-se ansioso. Seguindo a irmã de imediato, fica alerta
para a mais pequena interferência. Caminham em silêncio,
procurando uma qualquer pista de humanidade na loja; algo que
possa implicar que não estão sozinhos.
O ambiente está soturno; os manequins a olhar em várias
direções, fazem Alastair sentir arrepios. Os expositores de roupa
estão atulhados; algumas caixas de papelão destacam-se na parede
do fundo, com roupa a transbordar. Cassia olha com espanto para
cada canto da pequena superfície, já que em Quimera nunca vira
nada que se assemelhe.
Cassia é acordada pelo sussurro vindo de trás de si.
- Penso que estamos sozinhos…
- Se calhar está fechada. – Cassia sussurra de volta. – Ainda
é cedo.
- Se calhar está fechada por causa da visita do gajo lá da
outra banda…
Cassia para e vira-se para Alastair, com a intenção de
criticar construtivamente a sua linguagem e fundamentar o seu
comentário com alguns fatos acerca do Arquiduque. Alastair sorri
para Cassia, sabendo já o que se seguiria. Cassia gosta de ordem
nas palavras e significados próprios. Nada é dito, por ela, sem
intenção; Alastair sabe que Cassia espera o mesmo das outras
pessoas e, por isso, a sua desilusão permanente com o comum mortal
que não entende o que se passa na sua cabeça.
Sem demora, a expressão de Alastair muda drasticamente. A
sua tez torna-se pálida e os seus grandes olhos esbugalham-se;
63
entre uma respiração custosa e falhas de voz, tenta chamar a
atenção de Cassia.
- Não te mexas, Cassia.
Os músculos de Cassia ficam tensos ao sentir o cano da
espingarda a pressionar contra a sua espinha. Devagar coloca os
braços no ar. Cassia podia não ter grandes esperanças para esta
vida, mas esperava que morrer nesta pequena loja de roupa na
Sérvia não estivesse nas cartas para hoje.
O homem de idade já avançada atrás dela grita algo
incompreensível em sérvio. Alastair olha para Cassia confuso e
assustado ao mesmo tempo. Queria parecer que, ultimamente, eles
se encontram ao fundo do cano de uma arma frequentemente.
- Por acaso, um dos teus talentos não é falar sérvio, pois
não? – A voz de Cassia é calma e pouco sonante. Alastair sacode a
cabeça desapontado com Cassia, por mesmo numa situação de vida ou
morte fazer piadas.
O homem, de boina, começa a ficar zangado por ver a sua loja
ser invadida por esta gente esquisita. Os novos gritos
incompreensíveis do homem só deixam Alastair mais apreensivo.
- Nós não estamos aqui para fazer algum mal, meu! – Alastair
tenta começar um diálogo. O senhor, claramente, não estava a
compreender uma palavra, pelo modo como o olha. – A porta estava
aberta e nós apenas…
Alastair não consegue acabar a frase, vendo os seus instintos
a manifestarem-se perante o estridente barulho do tiro a sair da
velha espingarda. O homem envia um olhar hostil a Alastair que
engole em seco ao ver o cimento do teto a cair em flocos em cima
de Cassia, que cobre a cabeça com os braços.
Alastair toma uma decisão nesse momento, acariciando o bolso
das suas calças; a sua respiração incontrolável. Ele olha para
Cassia, esperando que ela entenda o seu comando.
- Desvia-te! – Alastair grita, atirando a navalha com
determinação, em direção à perna do senhor grisalho que os ameaça.
Cassia sustém a respiração ao ver a faca a vir em sua direção
e desvia-se o mais rápido que consegue. As suas calças pretas
abrem um rasgão, à medida que a faca passa veloz por si. O sangue
começa a escorrer, mas Cassia não sente dor. Ela olha pela primeira
64
vez para o homem que ameaçava a sua vida, mas mais importante esta
missão. O lojista agarra a sua perna, esperneando perante a dor
causada pela navalha enterrada nela.
Sem hesitação, Cassia vai em direção ao senhor no chão e
olha para ele com curiosidade, que grita e pronúncia frases
incompreensíveis e que Cassia só pode imaginar não serem
agradáveis.
- Penso não haver necessidade para esse tipo de linguagem,
senhor. – Impetuosamente, Cassia pontapeia o homem no queixo,
fazendo-o desmaiar imediatamente.
Olhando para a sua perna, Cassia apercebe-se pela primeira
vez de que está a sangrar.
- Bolas! – Ela deixa sair perante a inconveniência. – As
calças eram novas.
Avaliando o corte, não se apercebe da aproximação de Alastair
que olha para a irmã com um sentimento de culpa.
- Estás a sangrar… - Alastair concentra o olhar nas calças
ensanguentadas de Cassia.
- Isto não é nada. – Cassia tenta assegurar o irmão, tapando
a ferida com a mão, para que Alastair desvie o olhar. – Mal é um
arranhão…
- Está a deitar bastante sangue para ser apenas um arranhão,
Cassia.
- Uns quantos pontos e fico como nova. – Cassia assegura
Alastair mais uma vez. – Podias ter apontado um pouco melhor,
sabes?
Alastair sabe que Cassia o está a provocar deliberadamente,
para o distrair e o fazer sentir-se menos culpado. Alastair decide
entrar no jogo:
- Ora, podias-te ter desviado um bocado mais depressa. –
Alastair solta uma gargalhada.
- Peço desculpa se a espingarda nas minhas costas me estava
a distrair…
O semblante de Cassia volta a tornar-se sério. A brincadeira
acabou, pois eles têm que começar a orientar-se em direção ao
propósito da sua visita à pequena loja. Um grunhido fá-los lembrar
65
que o dono da loja ainda está estendido no chão, à espera de um
destino.
Cassia olha para Alastair, não querendo tomar nenhuma decisão
precipitada e antagonizar o irmão mais do que o que tem feito
ultimamente. Alastair olha para Cassia e percebe que a bola está
no seu campo. Suspirando audivelmente, agarra no homem, içando-o
sobre as suas costas.
- ‘Bora lá, velhadas! – Alastair caminha com o homem às
costas em direção a uma cadeira no fundo da loja, junto às caixas
de papelão. – Vamos prender-te, sim?
Cassia deixa Alastair tratar do prisioneiro e dirige-se ao
balcão de atendimento, procurando linha e uma agulha para tratar
da sua ferida. Não demora muito a encontrar o que precisa e olhando
para a garrafa de vodka em cima do balcão, decide que alguma
coragem líquida será necessária.
Atrás do balcão, lentamente, Cassia escorrega até ao chão.
Olhando para os mantimentos que conseguiu arranjar pega primeiro
na garrafa de vodka despejando o conteúdo por cima da ferida. O
líquido translúcido faz Cassia estremecer quando entra em contato
com a ferida exposta. Cerrando os olhos, respira lentamente, para
se tentar recompor. Engole em seco e decide que não tem tempo a
perder. Pega na agulha e na linha e num instante está pronta para
começar a trabalhar. Algo a impede, no entanto.
Contando até três leva a garrafa à boca e traga o líquido
áspero.
- Vá lá, Cassia. Tudo é efémero… - Tenta convencer-se. Mais
uma bebida.
Pegando num pano velho, morde-o com força. Num momento
decisivo, rasga as calças e com as mãos firmes, meticulosamente,
enfia a agulha na sua pele pálida, agora coberta de sangue.
Contendo o grito na sua garganta cerra os olhos perante a dor e
deixa a sua respiração acalmar.
Alastair aproxima-se do balcão e engole em seco ao ver o que
Cassia está a fazer.
- Precisas de alguma coisa? – A voz de Alastair é baixa e
sai a custo.
66
- Não. Obrigada… - A voz de Cassia sai atabalhoada, por entre
o trapo que morde. Outra bebida.
Cassia sustém a respiração à medida que a agulha rasga a sua
pele novamente. A sua testa coberta de suor e as suas mãos a
tremelicar.
Alastair passa uma ligadura improvisada a Cassia e ajuda-a
a levantar-se. Sorrindo para Alastair, Cassia coloca a ligadura e
endireita-se.
- Obrigada, mano.
- O importante é estares bem. Consegues andar?
- Sim. Isto não é nada. – Cassia sorri.
Sem mais palavras, começam os dois a vaguear pela loja,
procurando o que vestir. Depressa Cassia prende o olhar num fato
preto e sorri.
- Olha lá, Coco Chanel! – Cassia chama a atenção de Alastair
com o fato na mão. Mal Alastair olha para ela, Cassia atira-lhe o
fato. – Vai prová-lo!
Apanhado desprevenido, Alastair deixa cair o fato no chão e
olha para Cassia indignado. Pegando nas vestes, avalia-as.
- Hei, isto parece de gosto refinado. – Alastair olha para
o fato com aprovação.
- Pode ser que te pareças com um cavalheiro. – Cassia ri.
Enquanto espera por Alastair, Cassia continua a vaguear por
entre os cabides extensíveis, procurando o que vestir.
- Gostava de saber o que é que tinham contra um bom par de
calças para mulheres nesta altura… - Cassia suspira, frustrada
perante todas as saias e vestidos.
Alastair finalmente sai dos provadores, lutando contra o nó
da gravata vermelha. Cassia sorri perante a imagem do irmão, muito
elegante nas calças de fato e colete com a camisa branca. Alastair
para em frente do espelho e Cassia aproxima-se, para o ajudar com
a gravata.
Os olhos de Alastair param no manequim feminino à sua frente.
- E que tal este vestido para ti? É preto… - Alastair aponta
para o manequim e volta a olhar para o espelho, compondo o seu
cabelo.
Cassia desvia o olhar para o vestido com escárnio.
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- Eu não vou usar um vestido…
68
Capítulo 6
O sol já vai alto na manhã de junho, quando Alastair e Cassia
descem a rua, finalmente enquadrados na paisagem cultural.
Alastair acrescentou um bonito chapéu preto ao seu elegante fato
e traz o braço entrelaçado com a irmã.
Cassia, contrariada, usa o vestido preto que tanto
desgrenhou. Enrolando um lenço no pescoço, ajeita também o chapéu
e tenta colocar a bolsa com a sua arma debaixo do braço.
- Onde é que puseste a arma suplente? – Alastair pergunta
curioso, ao olhar para o vestido apertado que a irmã traz vestido.
- Não queiras saber… - Cassia mexe-se incomodada. – Juro que
não sei como as mulheres sobreviveram a todos estes requisitos. É
exaustivo…
Alastair encolhe os ombros e sorri, descontraído.
- Pessoalmente, acho que estás bonita.
- Se fosse a ti media as palavras, Al. – Cassia parece
irritada. – Eu enfio-te um salto alto no pé!
- Calma! – Alastair para e tenta não se rir perante o embaraço
de Cassia. – Um cavalheiro já não pode elogiar uma donzela sem
ser ameaçado… Os tempos realmente mudaram!
Rindo-se do olhar hostil enviado por Cassia, Alastair olha
para a sua bracelete, consultando as horas.
– Passa um pouco das nove… Precisamos de encontrar o que
quer que seja que procuramos.
- Não precisamos todos? – Cassia suspira, fitando o chão. O
seu semblante carregado.
Alastair, com as mãos nos bolsos, sorri para duas raparigas
que passam por eles e abana a cabeça, fazendo-as ficar um tanto
envergonhadas e rir nervosamente.
- Hei! Casanova! – Cassia bate no braço de Alastair com a
carteira. – Concentra-te. O ataque começa às dez. Achas que eles
vão estar perto da devastação?
- Não sei… Mas, de todo o modo só sabemos o que está escrito
nos livros de história. – Alastair vira-se para o vidro da montra
e penteia-se. – O melhor será começarmos por aí.
- Sim. Possivelmente… - Cassia fica pensativa por um segundo.
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- Eu sou realmente elegante e bonito, não sou? – Alastair
sorri para o seu reflexo, fazendo Cassia revirar os olhos e soltar
um suspiro. Alastair sempre fora vaidoso. Não irritantemente
vaidoso; mais de uma maneira amorosa. De todo o modo, tinham
assuntos mais pertinentes a atender.
- ‘Bora lá, jeitoso… - Cassia puxa Alastair pela gravata. –
Temos criminosos para apanhar…
“Os livros de História nem sempre dizem tudo.” Cassia olha à sua
volta, no meio da multidão que se prepara para receber a comitiva
do Arquiduque, ao longo do Rio Miljacka. O seu pensamento está
turvo; precisam de um plano rapidamente, pois do que está prestes
a acontecer não poderão fugir. Talvez a solução seja encontrarem
os terroristas originais; aqueles acerca dos quais têm informação.
- Talvez precisemos de encontrar o Princip. – As palavras de
Cassia saem sem emoção, como costumam.
Alastair olha para a irmã e a sua expressão cerra-se.
- Não pareces muito certa do que dizes, Cassia… - Alastair
olha para a multidão. – Achas mesmo?
- Não. – A determinação no discurso voltara.
Cassia envolve-se na multidão e procura caras familiares.
Alastair tenta acompanhar, no entanto não tem a certeza do que
procura. Cassia leu o ficheiro; Cassia sabe as posições, os nomes
e os detalhes de cor. Alastair prefere esperar por um sinal da
irmã para agir.
- Não podem estar muito longe, certo? – Alastair pergunta
descontraidamente, consultando novamente as horas. – Consegues
encontrar alguém que não pertença aqui?
- Queres dizer para além de nós? – Cassia ri, mas logo o
humor se esvai ao reparar num homem que se movimenta nervosamente,
carregando um saco que parece guardar com a vida. – Vejo um
terrorista com uma bomba.
Cassia faz sinal a Alastair, que logo vê o homem de boina
agarrado ao saco. Alastair olha em volta, reparando em todas as
vidas que os rodeiam e que serão afetadas pelos acontecimentos
que se sucedem. Um rasgo de tristeza transparece nas suas feições.
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Desviando o olhar para o chão, não pode deixar de reparar noutro
homem com um saco idêntico uns metros à frente.
- Ele não está sozinho…
- Como já sabíamos. – Cassia suspira ao olhar para o irmão.
Talvez ela tivesse puxado Alastair para algo que ele não estava
preparado para enfrentar. Cassia estava preparada para sacrificar
a sua vida, mas esquecera-se de que onde começa a liberdade de
outra pessoa, termina a sua.
Tentando desviar o seu pensamento, Cassia volta a mirar a
multidão. Desta vez tentando decifrar cada micro expressão e cada
gesto. Por mais que tentasse, não conseguia identificar nada de
errado com a imagem à sua frente. Possivelmente, Kay e Ari estavam
errados na informação que lhes deram. Talvez estivessem no tempo
errado. Talvez fosse só a paranoia coletiva que os fizera
acreditar que havia alguém a querer a destruição de Quimera. “Se
calhar, este plano está destinado a falhar.” Cassia decide e vira-
se para Alastair que contempla um pequeno rapazinho a brincar com
um carrinho de madeira. Alastair sorri; a sombra do chapéu a
esconder a tristeza no seu olhar, enquanto se lembra da sua
infância.
- Esta gente não deveria sair lesada…
- Eles já morreram há muito tempo, Al… - Cassia coloca a mão
no braço de Alastair, em jeito de conforto.
Alastair sabe que Cassia tem razão; na sua linha temporal
esta gente, que ele vê agora a sorrir e a contemplar o sol, já
desapareceu há mais de cento e cinquenta anos. Ainda assim, é-lhe
custoso aceitar poderem viajar no tempo, mas não poderem evitar
injustiças.
- A mim parecem-me bastante vivos, Cass… - O tom de Alastair
não é agressivo ou áspero; denota apenas uma mistura de desânimo
e desespero. Do canto do olho, Alastair pode perceber que Cassia
está a lutar tanto como ele por ignorar os acontecimentos que se
seguem. Porém, Alastair sabe que Cassia conseguirá resolver melhor
a luta interna que ambos estão a ter do que ele. Alastair não
conhece ninguém que fuja tão bem dos seus sentimentos como a irmã.
Muitas vezes, chega mesmo a perguntar-se se alguma vez Cassia se
lhe dará a conhecer.
71
- Talvez devamos sair daqui antes das bombas… - Cassia ajeita
o seu lenço e começa, a passo lento, a tomar o caminho de volta
para a Ponte Cumurja.
Uma mulher bem-parecida e com as feições escondidas vem de
encontro a Cassia, fazendo-a perder o equilíbrio por uns milésimos
de segundo. A silhueta de vestido preto passa por ela que nem uma
flecha e nem faz um esforço por se desculpar pelo encontrão. A
ira que Cassia sente, pela falta de respeito demonstrada, está
prestes a ser verbalizada, quando ela se apercebe da razão da
pressa da mulher, que cedo desaparece na multidão.
Uma breve interação com o primeiro terrorista deixa Cassia
intrigada; esta apercebe-se da transação entre os dois e chama a
atenção de Alastair para a arma de fogo que o terrorista tem agora
na cintura. A arma não pertence a este tempo: é uma Glock 19 e
Gaston Glock só abriu a sua companhia em 1963.
- Eles estão aqui. – Cassia não consegue desviar o olhar do
terrorista a alguns metros de si.
- Como podes ter a certeza?
- Temos que os parar… - Cassia dá um passo determinado, mas
logo é agarrada por Alastair.
- O quê? Cassia, eu sei que tu pensas que te estás a explicar,
mas não estás!
- Aquele tipo tem uma Glock 19! Se ele usa essa arma nesta
linha temporal, quem sabe o que irá acontecer!
Alastair olha para o terrorista confuso.
- Nós temos que os impedir! – Cassia continua. – Temos que
lhes tirar aquela arma.
Cassia sacode a mão de Alastair do seu ombro e dirige-se ao
terrorista. Alastair segue a irmã, prontamente. Ambos se instalam
ao lado do terrorista de cara trancada e olham um para o outro,
para se assegurarem mutuamente de que estão na mesma página. A
comitiva real é avistada já ao fundo da rua; o carro anda a um
ritmo lento, para que o Arquiduque e a sua mulher Sofia, possam
interagir com a multidão que os espera.
A aproximação do carro põe o terrorista num frenesim, tal
como o seu colega a uns metros de distância. Cassia olha para
Alastair e faz sinal para o outro terrorista. Alastair,
72
rapidamente, corta caminho para se colocar a seu lado. Ele não
sabe ainda o que irá fazer, mas agora, também já é um pouco tarde
para tentar descobrir. Só lhe resta a lei do desenrasque.
O terrorista que ladeia Cassia prepara-se para atirar a
bomba, no entanto antes de a conseguir pôr operacional, Cassia
apodera-se da arma de fogo que lhe fora passada. Num rápido e
gracioso gesto, Cassia acerta-lhe com a pistola no queixo com toda
a força que consegue. O saco com a bomba cai, produzindo um baque
quase inaudível, no meio da multidão que aguarda ansiosa o carro
com Franz Ferdinand. O terrorista tenta recuperar a sua arma,
agarrando Cassia. Os dois lutam vigorosamente; os seus corpos tão
próximos, que ninguém se apercebe do que está a acontecer.
Alastair chega a tempo de impedir o seu alvo de alcançar o
objetivo de atirar a sua bomba. O carro do Arquiduque passa por
eles na exata altura em que Alastair agarra o terrorista pela
garganta, levando-o ao chão, juntamente com a bomba por ativar. O
homem luta por respirar, tentando tirar a mão de Alastair do seu
pescoço. Pegando numa pedra, Alastair golpeia a cabeça do homem,
fazendo-o desmaiar.
- Isto é para não andares a brincar com bombas. – Alastair
ri-se para o homem desmaiado no chão. – É para aprenderes…
Levantando-se, Alastair nota a luta que se desenvolveu entre
Cassia e o careca de boina que tenta, sem sucesso, golpear a
rapariga. Alastair corre para ajudar a irmã e mal se vira, uma
explosão ouve-se, fazendo os seus ouvidos zumbirem.
Do outro lado da estrada, um outro terrorista atirara uma
granada para o meio da rua. Uma cratera abriu-se no meio da
estrada, mas felizmente o carro com o Arquiduque conseguira
escapar.
- Vai atrás dele! – Alastair ouve a voz de Cassia e olha
para o terrorista que atirou a granada a correr em direção ao rio.
Sem demoras, Alastair corre na sua direção o mais rápido que
as suas pernas lhe permitem. O terrorista para ao lado do rio e
tira um comprimido de cianeto do bolso, dando a Alastair tempo de
o alcançar. Sem mais demoras, Alastair dá um salto em direção ao
homem, empurrando-o para o rio, quase caindo ele próprio para a
água corrente. Um agente da polícia apita e corre para eles.
73
Alastair sabe que esta é a sua deixa e volta e embrenhar-se na
multidão.
Cassia, por sua vez, baixa-se evitando o murro do terrorista
que já denota sinais de cansaço: afinal de contas, cansa menos o
impacto, do que não se acertar no alvo e Cassia conseguia ser
fugidia. Com um pontapé no calcanhar do homem, Cassia fá-lo cair,
mas não sem a agarrar por um braço e fazê-la ir ao chão com ele.
Cassia agarra a Glock e tenta dar-lhe um tiro, porém ele agarra a
arma e ambos lutam pela sua posse. Um tiro é disparado e, no
entanto, no meio da confusão, ninguém o ouve.
Cassia arranca a pistola das mãos do terrorista e acerta-lhe
com a mesma na cara, finalmente fazendo-o desmaiar. Voltando a
erguer-se, Cassia suspira e coloca uma mão nas costelas, por baixo
do casaco preto. O vermelho carmim brilha, em contraste com a sua
mão pálida. Os seus olhos azuis escuros toldam-se por um segundo
e Cassia tenta respirar fundo. A sua mão começa a tremer e a sua
visão fica turva. Nada dói ainda; provavelmente, devido à
adrenalina. Num movimento rápido e decidido, Cassia arranca o
lenço que trás ao pescoço e limpa as mãos nele.
Tapando a ferida com o casaco, descarta o lenço, mal a sua
vista deteta Alastair a correr na sua direção.
Cassia agarra Alastair, desviando-o do seu curso, sorrindo.
- Temos que sair daqui. Vamos!
Cassia lidera o caminho, com Alastair no seu alcance. Dois
polícias, em tumulto, passam por eles a correr. Acelerando o
passo, Cassia sente o vento a correr pelo seu cabelo castanho com
cada passo que dá. Depressa deixam a multidão confusa e correm
para outros perigos. Ambos sabem como termina esta história e
ainda vão na metade.
O lenço ensanguentado, deixado para trás pela morena que
corre agora na direção oposta, esvoaça para o rio. As sobras
insignificantes de uma vida vivida a correr, desaparece agora com
a água corrente.
Princip corre pelos passeios, tentando esconder-se nas sombras da
hora do meio-dia. O seu olhar decidido; os seus olhos tão escuros,
que mal se consegue perceber vida neles. Com uma arma escondida
74
no seu casaco preto, olha por cima do ombro, nervosamente, como
se alguém o perseguisse.
- Princip! – Chama uma voz feminina que o faz congelar.
O som de saltos altos no asfalto ecoa nos seus ouvidos e são
seguidos por mais um par de sapatos. Princip deixa a mão que
esconde debaixo do casaco escorregar, pondo à vista a
semiautomática FN Pattern de 1910, que carrega consigo.
Atrás de si, o som de uma arma a ser carregada é
inconfundível; no entanto, Princip não se mexe. O fato preto que
traz fá-lo parecer apenas uma sombra e o chapéu a condizer,
esconde-lhe as feições ainda jovens.
O som de passos para. O silêncio faz-se ouvir; um silêncio
inabsoluto. Os gritos da multidão ainda se ouvem ao longe e pessoas
passam por ele, aterradas sem realmente lhe prestarem atenção.
- Larga a arma! – Alastair grita, apontando a sua arma ao
jovem.
Com as mãos no ar, tonteando Alastair e Cassia com a sua
arma erguida, Princip vira-se para poder associar uma cara às
vozes que o atrasam na sua missão. A sua pronúncia sérvia é cerrada
e as palavras saem-lhe a custo.
- Não vale a pena seguirem-me! – Uma gargalhada estridente
inunda o ar. – A Mão Negra vai viver para sempre!
- Eu não gosto quando me dizem o que fazer! – Cassia dirige-
se a Princip, arma na mão, disposta a acabar já com os jogos.
- Eles têm que morrer… Para que todos os outros possam
começar a viver.
Alastair olha para Princip e apercebe-se de que este rapaz
é apenas um adolescente ainda. Mais novo do que ele e do que
Cassia.
- Ninguém precisa de morrer, miúdo! – Alastair recusa-se a
ver mais alguém morrer, se o poder evitar. – Há sempre outra
maneira!
- Terão que me matar para me pararem! – Princip graceja
perante as suas próprias palavras e olha para Alastair,
presunçoso. – Mas tu não és capaz de o fazer, pois não?
- CALA-TE! – Alastair grita, irado.
75
- Rapazinho! Não tentes a tua sorte, porque ele pode não
conseguir, mas eu gosto de um desafio! – Cassia tranca o olhar de
Princip. – Portanto, cuidado com o que desejas…
Cassia dá outro passo ameaçador em direção a Princip, que
recua imediatamente, engolindo em seco. A ferida de Cassia começa
agora a querer a sua atenção e obriga-a a respirar fundo antes de
continuar; os seus olhos começam a ficar pesados e a sua cabeça
zonza, da perda de sangue.
No espaço de segundos que Cassia leva a tentar recuperar,
Princip começa a correr desenfreadamente e dispara contra eles.
Sem hesitação, Cassia esquece a bala alojada nas suas costelas e
corre atrás do jovem anarquista, sem notar que uma das balas de
Princip acertou na bracelete de Alastair, fazendo-o ficar para
trás.
Cassia concentra todas as forças que lhe restam. Alcançando
Princip, derruba-o e os dois caem. O asfalto quente a queimar a
sua pele. Com uma cotovelada, Princip acerta na cara de Cassia e
foge para o outro lado da rua, deixando a sua pistola para trás.
A fraqueza começa a fazer-se sentir no corpo de Cassia, em cuja
cotovelada teve mais efeito do que o normal. Tonta, Cassia
levanta-se e atravessa a estrada até Princip, que procura a sua
arma, aflito.
A multidão começa a juntar-se novamente nos passeios. A
comitiva de Ferdinand está de volta à estrada: o Arquiduque acabou
o seu discurso e vira agora para a rua Franz Joseph.
Cassia atenta em Princip que, com a atrapalhação, não nota
a rapariga a aproximar-se. Sem dificuldades, Cassia subjuga
Princip por um momento. Porém, Princip não tem dificuldades em
recuperar a vantagem sobre a rapariga que já respira a custo.
Princip estrangula Cassia com o braço, mas esta já não tem pujança
para resistir.
Alastair paralisa do outro lado da rua perante a imagem de
Princip a ameaçar a vida da sua irmã. A razão abandona o corpo de
Alastair e ao ver a pistola de Princip no chão, apanha-a de
imediato e aponta-a ao jovem do outro lado da rua. Dois tiros saem
do barril da arma, sem que Alastair se aperceba que o carro de
Ferdinand está mesmo à sua frente. Ao ver o carro a passar com
76
Ferdinand e a sua mulher a sangrarem, Alastair larga a pistola de
imediato e apercebe-se dos gritos das pessoas à sua volta.
Escondendo as suas feições com o chapéu, Alastair atravessa
a rua a correr, em direção a Cassia. Princip, ao ver os
acontecimentos, larga a rapariga e tenta fugir, voltando a apanhar
a sua arma. Os polícias avistam Princip e prendem-no sem hesitar,
ao ver as parecenças com Alastair, devido ao fato preto e chapéu.
Alastair ajuda Cassia a levantar-se e arrasta-a até um beco
deslocado da confusão que se instalou na rua de Sarajevo.
Finalmente Alastair volta a respirar, embora o choque esteja ainda
instalado em si. Agarrando os seus joelhos, fecha os olhos, como
num grito silencioso por ajuda. A sua respiração é difícil de
controlar já e as lágrimas querem sair, mas não conseguem. O
pânico apodera-se dele. Alastair olha para as suas mãos
acusadoramente. Ele acabou de matar duas pessoas. Uma lágrima
escorre pela sua cara, mas chorar não o ajuda a abrandar. Ele está
a descurar alguma coisa.
O seu olhar pousa em Cassia, encostada à parede, e a sua
garganta fecha-se. Ele tenta respirar, mas não consegue ao ver a
mancha vermelha a ensopar o vestido preto de Cassia.
- Estás ferida… - As palavras saem-lhe a custo e os seus
músculos parecem paralisados.
Alastair obriga-se a mexer e ajoelha-se junta a Cassia. As
mãos de Cassia estão ensanguentadas, da pressão que ela tenta
exercer no seu ferimento. Cassia não consegue falar e sente-se
tentada a render-se à fadiga que o seu corpo apresenta. A sua boca
está seca e ela consegue sentir o sabor a metal quando tosse e
gotas de sangue são projetadas para os seus lábios.
Cassia olha para Alastair, como que a desculpar-se. Os seus
olhos estão a ficar pesados. Não importa o que o passado diga, no
fim tudo valeu a pena. Ela ainda luta e não sabe o porquê. Talvez
ela não queira que o seu irmão testemunhe a sua derrota.
- Al… - Cassia chama a custo. – Por favor, volta sem mim.
Ambos sabemos como termina esta história…
- Não! – O pânico na voz de Alastair. – Só me tens que dizer
o que fazer… Diz-me!
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Mesmo sendo meio-dia, no meio do verão, Cassia sente frio e
ela sabe o que isso significa. Alastair deita-a, devagar, no
pavimento.
- Diz-me o que fazer, Cassia. – As lágrimas escorrem
vorazmente pela cara de Alastair. – Suplico-te!
- Só precisas de aplicar pressão no ferimento… - Cassia não
consegue respirar; o seu batimento cardíaco a acelerar. – Não há
muito que possas fazer aqui, Al… Mas, não te preocupes. A bala
não acertou em nada importante…
Cassia sorri para Alastair, tentando reconfortá-lo. Ela sabe
que está a mentir, mas às vezes não podemos evitar uma mentira
para descansar outra alma.
- Eu não te vou deixar morrer…
- Al, ouve-me. Por favor, vai! Podes voltar para me vir
buscar com ajuda…
Cassia sabe que não tem tempo para que tal seja uma
possibilidade; a única coisa que ela quer é tirar Alastair deste
sítio. Ela não quer que Alastair a veja a morrer.
- Eu não te vou deixar sozinha! – Alastair grita, pegando na
mão ensanguentada da irmã. – Eu não tenho bracelete, Cass… O
Princip… A bracelete… Não…
- Está tudo bem, mano… Está tudo bem… Leva a minha…
- Não.
- Al… Espero encontrar-te outra vez. – Cassia leva a mão à
cara de Alastair, carinhosamente. – Sabes do que acabei de me
aperceber?
Cassia tenta rir, mas é-lhe custoso.
- Que passámos todos estes anos a lutar e esquecemo-nos de
quão rara e maravilhosa é a vida. Promete-me que não vais esquecer
outra vez.
Alastair não consegue responder. As lágrimas escorrem
compulsivamente e fecham-lhe a garganta. Cassia sorri e deixa a
exaustão tomar conta de si; já não consegue lutar mais contra o
inevitável. Cassia sempre quisera deixar algo de importante para
trás, quando partisse deste mundo, mas só agora se apercebeu que
em ordem para isso acontecer ela tem que partir. Talvez o Universo
faça mais sentido agora para ela. Talvez ela volte para o lugar
78
onde pertence; para junto da família que perdeu. Para junto de
Tara.
Alastair para o choro abruptamente. Ele precisa de agir.
- Eu prometo, Cassia.
Alastair sabe que Cassia já não o pode ouvir, mas ainda há
esperança para ela. Ela ainda pode viver.
Alastair olha para a bracelete no pulso de Cassia e toma uma
decisão.
- Tu és uma guerreira, Cassia. Não vais deixar que uma bala
te faça vergar. Não é assim que a tua história termina…
Alastair fecha os olhos e agarra no corpo inconsciente de
Cassia com toda a sua força. Contando até três, pressiona a
bracelete, colocando o dedo inconsciente da irmã para acionar os
comandos, e espera que o melhor aconteça.
Todas as discussões perdem o sentido; todas as ações de
Cassia já não importam. Sem a irmã, Alastair perde um pouco de
quem ele é. E Alastair recusa-se ficar em silêncio, a ver a sua
irmã perder quem é por inteiro. Perder a família que lhe resta.
- Vamos para casa. – Alastair sussurra ao ouvido de Cassia.
– Esta vida não acabou, Cass. Eu não quero ficar sozinho.
Vozes familiares começam a ouvir-se ao longe. Alastair não
tem a certeza do que aconteceu ou se ainda estão em Sarajevo. Só
quando sente a mão de Kay no seu ombro, ele volta à realidade.
- O que raio é que vos aconteceu? – A voz rouca de Kay é
inconfundível e, talvez pela primeira vez, Alastair sente-se feliz
por ouvi-la.
79
Capítulo 7
O laboratório está estranhamente calmo e, como sempre, pobremente
iluminado. Apesar da calmaria, uma tensão estranha pode-se
perceber no ar. Hayden olha para o computador como se este
estivesse prestes a atacá-lo.
- Será que eles estão bem? – Hayden pergunta, sem realmente
esperar uma resposta. Toda a gente está demasiado absorta nos seus
pensamentos para colmatar com algum tipo de garantia.
Kay anda de um lado para o outro, às voltas no laboratório,
nervosamente. Ela consegue sentir Ari a olhar para ela; no
entanto, Kay recusa-se a olhar de volta. Ari parece trazer uma
calma com ele que começa a enervá-la; por isso, esta restringe-se
de iniciar qualquer tipo de conversa com ele.
Kay para, finalmente, olhando para a máquina e suspira.
- Eles só foram há um minuto, Kay. – Ari aproxima-se da
comandante e cruza os braços, percebendo a sua preocupação. – O
que é que poderia ter já acontecido?
- Na verdade, - Hayden decide intervir. – O tempo é relativo,
lembram-se? Um segundo na Terra não é absoluto. Tecnicamente, eles
andam a viajar entre Universos, por isso não experienciam o tempo
exatamente como nós.
- Isso não ajuda. – Kay suspira.
Esta nova informação não a deixa mais paciente. Mil e um
cenários passam pela sua mente e se alguma coisa acontece, é a
sua cabeça que fica a prémio junto da direção da Agência Samsara.
Num instante de ira, Kay pontapeia uma cadeira que se encontra a
seu lado, sobressaltando os restantes membros que se encontram na
sala. Meses de pesquisa e de preparação convergem-se neste único
momento.
Kay olha para a sua aliança e fecha os olhos com pesar. As
memórias abandonam-na lentamente; especialmente as mais recentes.
Quando as falhas de memória começaram, Kay dizia para si mesma
que nós nos lembramos do que queremos e o resto esquecemos por
conveniência. A sua vida nunca fora fácil; por isso, talvez
quisesse esquecer por conta da sua própria sanidade. E, depois,
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há outras coisas que ela gostava de esquecer de todo e não
consegue. Kay escarnece e mexe na sua aliança, olhando para Ari.
O seu pensamento é interrompido pelos geradores da máquina
do tempo, cujo barulho é ensurdecedor.
- Hei! – A interjeição de Kay é quase inaudível. – O que é
que se passa?
Hayden levanta-se da secretária, atrapalhado.
- Não sei! – Hayden corre para o painel de funções da máquina.
- Eles devem estar de volta! – Hayden permanece de pé, a fitar a
máquina, à espera de algum tipo de sinal de vida.
- Não acredito que funcionou… - Ari olha para Hayden
estupefacto.
As portas da máquina abrem e logo os sorrisos de vitória, da
comitiva de espera, se esvaem. A imagem enquadrada pela porta da
máquina não é a que esperavam.
Alastair está ajoelhado com Cassia, a sangrar, nos seus
braços. O seu choro compulsivo, suplicando por ajuda, sobrepõe-se
aos geradores.
Kay e Ari correm em seu auxílio sem hesitação.
- O que raio é que vos aconteceu? – Kay olha, em choque,
para Alastair.
- Ela precisa de ajuda… Perdeu muito sangue… - Alastair tenta
erguer Cassia nos seus braços, mas as forças falham-lhe.
Ari intervém de imediato ao perceber que o jovem não está já
em condições de ajudar ninguém. Tomando Cassia nos braços, corre
para a mesa do laboratório, estendendo o corpo inconsciente da
rapariga sobre o tampo e aplicando pressão no ferimento.
- Chama a Doutora Grant! – A ordem é dada por Kay e de
imediato Hayden corre para o telefone.
Kay olha para Cassia de onde está. “Talvez seja verdade que
a salvação tenha um preço.” Apercebendo-se de que Alastair
continua de joelhos no interior da máquina, apressa-se a passar
pelo aparelho de descontaminação para o tentar acordar do transe.
Porém, Alastair recusa-se a mexer.
- Alastair! – Kay prende a cara do jovem com as suas mãos,
ajoelhando-se à sua frente. – O que é que aconteceu?
81
Sem proferir palavra, Alastair solta-se da preia de Kay e
levanta-se lentamente; o seu corpo a tremer. Passo a passo, faz o
caminho de encontro a Cassia.
Kay suspira e permanecendo de joelhos, olha por cima do ombro
para Alastair a dirigir-se, torpedo e em choque, para a irmã. Kay
teme o pior; os seus olhos agora a incindirem sobre a poça de
sangue que se formara no chão.
Tudo, a Alastair, se parece mexer em câmara lenta. Levando a sua
mão a acariciar o cabelo de Cassia, repara pela primeira vez que
está a tremer.
- Desculpa, Cassia… - A voz de Alastair vem em soluços. –
Foram só palavras vazias. Eu não acredito naquilo que te disse…
Eu bem sei que tiveste as tuas razões. Por favor, volta!
Todos param, sem saber como agir, perante as súplicas de
Alastair. O tempo parece estender-se. Hayden fita a porta do
laboratório à espera de ajuda médica.
- Onde raio estão os médicos? – Alastair grita, enraivecido.
- A doutora está a vir… - Hayden tenta assegurá-lo.
Repentinamente as portas do laboratório abrem abruptamente
e Laura entra que nem uma flecha a empurrar uma maca hospitalar.
- Cheguei! O que aconteceu? – Laura pergunta de imediato,
sem querer desperdiçar mais tempo.
- Ela levou um tiro… - Alastair suspira.
Laura fica estática ao ver quem é a paciente.
- Cassia… - O ar sai dos seus pulmões e, por milésimos de
segundo, Laura fica sem reação.
- Doutora… - Ari tenta levar Laura a agir.
- Claro. – Laura acorda da hipnose e, de imediato, tira o
estetoscópio do pescoço, avaliando o estado físico de Cassia. –
Ela perdeu demasiado sangue, mas ainda tem pulsação. Preciso de
um torniquete!
Ari passa os utensílios a Laura, auxiliando-a. Hayden tenta
desviar Alastair, mas este recusa-se, por momentos, a obedecer.
- A Cassia precisa de ir imediatamente para a cirurgia! –
Laura olha para Ari, pedindo ajuda.
82
O protesto de Laura é logo ouvido. A urgência está em levar
Cassia para o bloco operatório. Ari ajuda Laura a colocar Cassia
na maca e todos abrem caminho para elas passarem.
A preocupação no olhar de Alastair é visível, à medida que
a maca desaparece pela porta do laboratório. Kay e Ari entreolham-
se sem saber o que fazer.
Alastair senta-se a olhar para o sangue que ficou na mesa,
sem conseguir articular palavra. Hayden, sem saber o que dizer,
dispersa para a sua secretária.
Ari caminha lentamente até Alastair, afagando as suas costas,
numa tentativa de se desculpabilizar. Alastair levanta-se
repentinamente, sacudindo a mão de Ari de si; vendo o gesto como
frívolo. Caminhando em direção à porta, é imediatamente impedido
de sair por Kay, que o fita com punhais nos olhos.
- Senhor Vincent!
Alastair para e cerra os pulsos, sem olhar para trás.
- Onde é que pensa que vai? – Kay continua. Ari e Hayden
olham para ela e para Alastair, esperando ver a cena a desenrolar-
se. – Penso que nos deve uma explicação.
O tom de Kay é altivo e inquisidor; Alastair engole em seco,
cerrando os olhos e respirando fundo. O que menos necessitam agora
é uma explosão de ira da sua parte.
- Vocês não estavam lá… - O tom de Alastair é roco e baixo.
– Não sabem a primeira coisa acerca do que tivemos que fazer…
- Por isso é que é da máxima urgência que um relatório oral
tome lugar, de modo a procedermos com a avaliação da vossa
prestação.
O maxilar de Alastair contrai-se e os seus olhos perdem o
brilho; o sangue começa a subir-lhe à cara. Celeremente, Alastair
dirige-se a Kay; ela tinha passado agora das marcas.
- Como é que é possível que seja essa a sua primeira
preocupação? – Alastair grita, dirigindo-se violentamente à
Comandante. Ari intromete-se imediatamente, impedindo Alastair de
tocar em Kay. – A minha irmã está entre a vida e a morte! E a
culpa é sua! Ainda assim, tudo o que a preocupa é a merda do
relatório!
83
- Vamos lá, Alastair! – Ari permanece calmo, tentando acalmar
os ânimos. – Discutir não nos leva a lado algum… E certamente não
vai ajudar a Cassia.
Kay permanece impenetrável a olhar para o rapaz irado, nos
braços de Ari.
- Apenas precisamos de entender o que aconteceu, Alastair.
– Ari continua; prendendo os ombros do rapaz e forçando-o a olhar
para si. – É imperativo que nos contes tudo, de modo a sabermos
como melhor ajudar a tua irmã.
Alastair tenta acalmar-se. Ele sabe que a única pessoa,
agora, capaz de ajudar Cassia é a médica que a levou dali. De todo
o modo, Alastair percebe a urgência de ter que relatar os
acontecimentos. Eles podem ter alterado algo na linha temporal e,
se assim fosse, estariam em grandes sarilhos.
- Eu matei o Arquiduque e a sua mulher. – Alastair desvia o
olhar para o chão e a sua voz tem pesar.
Ari, gradualmente, larga os ombros de Alastair e deixa cair
os braços ao longo do corpo, confuso. Kay cerra os olhos e agarra
a cana do nariz, respirando fundo. Tudo o que poderia dar de
errado com esta missão, deu.
- Hayden; quero uma análise detalhada, por favor. – A voz de
Kay não denota qualquer emoção. Não há tempo para guardar
ressentimentos; precisam de controlar os danos imediatamente.
- É para já. – Hayden começa, vorazmente, a martelar no
teclado de computador à sua frente.
Kay vira-se para Alastair, indolente e cordial.
- Eu entendo que a última coisa na sua mente seja a missão.
– Alastair abre a boca para falar, mas Kay não lhe dá a chance de
o fazer. – Peço também desculpa pela minha insensibilidade perante
a situação; no entanto, espero que compreenda que estamos a lidar
com um assunto extremamente sério. A Cassia está em ótimas mãos e
vai estar a ser operada durante as próximas horas. Dito isto,
ficaríamos muito agradecidos se pudesse fazer-nos o obséquio de
nos informar dos acontecimentos na Sérvia.
Alastair pondera atentamente nas palavras de Kay.
- Está bem… - Responde finalmente, colocando as mãos nos
bolsos das calças ensanguentadas.
84
Kay indica-lhe a mesa e Alastair atende ao pedido, sentando-
se novamente. Ari e Kay seguem-lhe os passos, sentando-se os dois
de frente para Alastair. Hayden para abruptamente de teclar e
vira-se também para o jovem, que evita o seu olhar.
- Nós chegámos à Sérvia e a primeira coisa que reparámos foi
a discrepância perante nós e os outros. Tivemos que encontrar uma
solução rápida para mudarmos de roupa e podermos passar
despercebidos. – Alastair repara que Kay está a tirar notas. –
Depois de encontrarmos uma pequena loja de roupa entrámos e
tivemos um pequeno confronto com quem, posso apenas assumir, seja
o dono da mesma.
» Finalmente vestidos, dirigimo-nos para a rua onde o
Arquiduque iria passar e onde os ataques aconteceram. Foi quando
a Cassia reparou numa tipa que passou uma arma aos terroristas. A
partir daí está tudo muito confuso na minha cabeça. Houve vários
confrontos físicos, até que apanhámos o Princip e uma coisa levou
à outra. Posso apenas presumir que a Cassia tenha sido alvejada
num dos confrontos…
- Muito bem… - O tom de Kay é frio e analítico. – Disse ter
sido o responsável pela morte do Arquiduque?
Alastair mexe-se, desconfortável com a pergunta e cruza os
braços sobre o peito.
- Sim. A vida da Cassia estava a ser ameaçada pelo Princip
e a minha primeira reação foi pegar na arma a meus pés e tentar
alvejá-lo. No entanto, o carro apareceu do nada à minha frente e
eu acabei por acertar em Ferdinand e na sua mulher. – Alastair
suspira. – Foi um acidente.
- Não duvido. – Kay pousa a caneta e entrelaça as mãos sobre
a mesa, fitando Alastair. – Mais alguma coisa que devamos saber?
Alastair desvia o seu olhar do de Kay e fica pensativo. Há
momentos em que o melhor é escolhermos as nossas respostas
sabiamente. Este seria um desses momentos. Engolindo em seco,
Alastair volta a olhar para os dois comandantes.
- Não. Não há nada…
- Muito bem. – Desta vez é Ari quem fala. – Muito obrigada,
Alastair. Estás dispensado… Melhor será ires mudar de roupa,
rapaz.
85
Alastair concorda silenciosamente e sai de imediato,
deixando o laboratório para trás e dirigindo-se para o seu quarto.
Kay suspira e olha para Hayden.
- Então?
- Nada. Está tudo exatamente na mesma. Não houve mazelas ou
alterações na linha temporal.
Kay levanta-se eloquentemente da mesa, sem pronunciar uma
palavra. Ari observa a Comandante, desconfiado da sua calma.
- O que se passa, Kay?
Pegando nas suas notas, Kay sai lentamente do laboratório;
os seus pensamentos distantes.
Ari olha para Hayden sem entender o que aconteceu com Kay.
- Continua a procurar, Hayden. Pode ser que surja alguma
coisa. – Sorrindo Ari levanta-se. – Entretanto, temos que fazer
um esforço por apoiar o Alastair. O rapaz já passou por muito.
Hayden concorda de imediato e Ari deixa-o a trabalhar. Não
confiando totalmente nas ações de Kay, decide ir à sua procura;
Ari conhece Kay e sabe que há algo por contar.
O cheiro a antibacteriano paira no ar da enfermaria de Samsara.
Hayden levanta a cabeça e sustém a respiração de cada vez que as
imponentes portas da entrada se abrem. As notícias tardam em vir
e a restante equipa também. A demora deixa espaço para a paranoia
se instalar.
As portas da enfermaria voltam a abrir e desta vez passa por
elas uma cara familiar. Alastair aproxima-se a passos largos; já
não traz o fato ensanguentado vestido, mas uns simples jeans
pretos e uma t-shirt. O seu cabelo ainda molhado brilha sob as
luzes artificiais que banham a enfermaria.
Hayden levanta-se de imediato para o receber.
Alastair olha em volta, para a enfermaria. Este lugar dá-lhe
arrepios. As camas de hospital em fila pela larga sala; as cadeiras
encostadas às paredes para comodidade de quem espera por notícias
inconstantes. Os tubos e máquinas ligados em cada estação, com
destino a variadas funções.
86
A porta para o corredor cirúrgico está paralela à zona
destinada à espera dos familiares e amigos. As portas automáticas
encabeçando o cajado com a serpente, símbolo da medicina.
As cortinas esverdeadas que rondam todas as camas lembram
Alastair de todas as vezes que teve que levar um paciente ao
hospital atulhado de Quimera. Lembram Alastair de quando teve que
carregar a sua mãe, em braços, até uma dessas camas. Parece que a
história tem um ato para andar em círculos.
- Onde estão os Comandantes? – Alastair pergunta ao se
aproximar de Hayden.
- Bem… - Começa Hayden. – A Kay não é muito boa a lidar com
este tipo de situações. Quanto ao Ari não o voltei a ver depois
de ele ter saído do laboratório.
Alastair acena com a cabeça e sorri para o jovem que olha
para ele. A sua desconfiança perante os Comandantes começa cada
vez mais a aumentar; no entanto, a sua preocupação com o estado
de saúde da irmã é maior que qualquer ressentimento e desconfiança
que possa ter.
Alastair senta-se numa das cadeiras e logo Hayden se senta
a seu lado. Ficam em silêncio, pois não há muito que dizer. A
verdade é que são estranhos e apesar da preocupação por Cassia
ser o que os une neste memento, não têm pontos em comum ou
interesses.
O mundo de Alastair parece ter encolhido. Tudo à sua volta
parece gigante e cada decisão que toma parece trazer-lhe mais
preocupações e problemas. Suspirando, apoia a cabeça nas suas
mãos, tentando reter as lágrimas. Momentos para sempre congelados
no tempo voltam à sua mente. Pessoas que não voltarão jamais e
espaços que deixaram por preencher. Perguntas que não poderão ter
resposta assombram Alastair: para quê tudo isto, se deixamos
apenas de existir? “Isto nem sequer faz sentido.” Alastair afasta
o pensamento, tenta focar-se no que pode controlar.
As portas automáticas têm um som inconfundível e arrancam
Alastair e Hayden do transe, fazendo-os quase saltar das cadeiras.
Laura anda a passo rápido até eles. As vestes médicas que traz,
antes azuis, estão cobertas de sangue. Alastair sustém a
respiração. A expressão da médica é indecifrável.
87
- Ela perdeu muito sangue… - Laura olha para o chão ao falar.
- O que é que isso significa? – Alastair está impaciente; a
sua mente a ir para os lugares mais obscuros. Incomodado, olha
para o chão.
- Calma. – Laura sorri, docemente, para os dois pares de
olhos que a fitam atentamente. – A Cassia vai ficar bem.
Alastair nunca sentiu tanto alívio na sua vida. Um peso foi
retirado de cima de si: o seu mundo começa a voltar, lentamente,
ao tamanho original.
- Ela tem que recuperar, claro. – Laura continua. – O
projétil não danificou nada vital. Eu tive que reparar o seu
fígado, mas de certo modo ela teve muita sorte. Trouxeste-a de
volta a tempo, Alastair. Salvaste-a.
Laura leva a sua mão ao braço de Alastair, tentando
reconfortá-lo de alguma maneira.
- Poderão vê-la dentro de alguns momentos. Tenham em conta
que a Cassia ainda está sob efeito da anestesia, portanto vai
estar a dormir durante algum tempo.
Alastair não consegue conter a sua alegria e mal deixa Laura
acabar de falar, envolvendo-a num grande abraço. Em retrospetiva,
quando antes de partirem, Alastair viu Laura a sair do quarto de
Cassia, ele não sabia que ela era a médica de Samsara. Agora
arrepende-se de a ter chamado de galdéria.
- Obrigado, Doutora! – Alastair sorri alegremente e
finalmente larga Laura. – Muito obrigado.
- Só fiz o que me compete. – Laura retrai-se e colocando as
mãos nos bolsos da bata cirúrgica, sorri timidamente. – Um
enfermeiro irá trazer a Cassia para a enfermaria dentro de
momentos.
Laura despede-se e faz o caminho de regresso ao corredor
cirúrgico, deixando os dois a celebrar a vitória.
Kay olha para os monitores que vigiam Quimera com uma expressão
vazia. Os seus pequenos olhos castanhos a evitarem a devastação.
A sala está pobremente iluminada, como sempre, apenas a luz
proveniente das telas de computador iluminam a sua tez pálida. O
88
seu longo cabelo liso e preto, cobre os seus ombros. Suspirando,
pega nas pastas à sua frente, que a fitam há demasiado tempo.
Numa explosão de raiva e frustração, atira a cabeça para
trás e com as pastas novamente para cima da secretária, levando
as mãos à cabeça. Estará na altura de admitir a derrota? Ou será
que deverá optar por novos métodos?
Kay levanta-se, atirando a cadeira para longe. Demasiadas
decisões para serem tomadas. Demasiadas pessoas à espera de uma
solução para os seus problemas. O conselho de responsáveis
políticos à espera de respostas concretas e resultados positivos.
Kay não sabe o que desenhar desta missão.
A porta da sala abre-se, deixando a luz dos corredores
entrar, apanhando Kay de sobressalto.
- Bolas, assustaste-me… - Kay fita a figura que se encontra
à porta com desinteresse.
- Não era a minha intenção. – Ari olha para Kay, desculpando-
se. Fechando a porta atrás de si, aproxima-se da Comandante. – O
Hayden telefonou agora. A Cassia vai ficar bem. A cirurgia correu
lindamente e ela está fora de perigo. Pensei que gostarias de
saber.
Kay deixa sair um suspiro que não sabia estar a segurar. A
sensação de alívio invade o seu corpo e a emoção torna-se demasiado
real, deixando Kay desconfortável.
Ari aproxima-se mais e prolonga o olhar que cruza com Kay,
sabendo que esta baixara a guarda por um breve momento.
O desconforto de Kay é notável; ela nunca se sentira bem em
demonstrações de afeto, pelo que Ari quebra o feitiço e dá um
passo atrás. Provavelmente, Ari deveria ter evitado este momento;
porém, a nostalgia levou-o a querer estar novamente próximo da
Comandante.
Ari agarra o braço de Kay e fita-a intensamente, esperando uma
resposta.
- O que se passa? – Ari suplica.
Com um gesto cuidadoso, Ari afasta o cabelo da cara de Kay;
as nódoas negras são visíveis na sua tez pálida. As lágrimas
correm silenciosamente pela cara da morena.
89
- Não quero falar sobre isto, Ari. – Kay olha para o homem
à sua frente e força um sorriso. – Por favor.
Ari olha para o chão e novamente para Kay. Tentar respeitar
o seu desejo de silêncio torna-se difícil, sendo que as marcas na
sua cara continuam a lembrá-lo de porque não deve fazê-lo.
Cerrando os pulsos, levanta-se e vira as costas a Kay, pronto para
sair da sala.
Uma mão na sua impede-o.
- Não vás. Não quero ficar sozinha…
Kay levanta-se e aproxima-se de Ari, deitando o queixo no
ombro musculado do Comandante. Ari vira-se repentinamente e beija
Kay, que retribui o gesto.
Kay tenta chamar a atenção de Ari, que parece estar absorto à
realidade.
- Ari? – Kay olha para ele impaciente. – Precisas de alguma
coisa?
- Não. – Para quê tentar vencer, quando sabe que já perdeu?
– Isso pergunto eu.
Ari olha para as pastas em cima da secretária. Um sentimento
de déjà-vu assalta-o e fá-lo rir.
- Não percebo onde está a graça.
- Eu sei o que estás a pensar e, dados os últimos
acontecimentos, achas mesmo que vai ser aprovado pelo comité?
- O comité é a última coisa no meu pensamento, Ari. Eles não
conseguem fazer isto sozinhos. Querias provas, aqui as tens!
- E lá andamos nós às voltas para chegar novamente à mesma
discussão! – Ari leva as mãos ao ar, frustrado. – Não podes brincar
com a vida das pessoas, Kay! Não é justo para ninguém.
- Oh, por favor! Não queiras comprar uma guerra comigo, Ari.
Eu não vou apenas ganhar; vou destruir-te. – Kay dá um passo
ameaçador em frente e fica a poucos centímetros de Ari. – Isto é
maior que nós os dois. Desiste desta disputa ridícula e pensa no
que temos para enfrentar. Achas mesmo que a Cassia e o Alastair
conseguem sozinhos? Achas?
Ari sabe que Kay tem razão. Isto é um empreendimento
demasiado grande para tão poucas almas.
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- Tens que pensar que o teu plano pode não ser a melhor
estratégia, Kay!
- Estou disposta a ouvir outras sugestões.
Kay olha para Ari e guarda silêncio.
- Tudo tem um preço. Estás mesmo disposta a pagar este?
- Tudo o que oiço são palavras sem significado. – Kay cruza
os braços. – Os recursos acabaram-se. Não sobra nada. Já olhaste
à tua volta? Não há medicamentos; a produção parou; as
comunicações com o exterior acabaram. Estamos sozinhos. E agora,
no topo do bolo, alguém está a tentar apagar a nossa existência
por completo! Durante três anos temos andado a tentar sobreviver
nos recobros de uma guerra que nem era nossa para começar! Eu sou
a responsável por este programa e vou fazer dele o que me aprazer!
Estamos entendidos, Comandante?
Ari sorri, presunçosamente.
- Sim, senhora! – Num gesto de continência forçada, Ari olha
para Kay, desagradado com o tratamento. – Nunca pensaria
questionar a sua autoridade ou as suas razões, Comandante Li.
Kay arrepende-se de imediato do tom demasiado severo que
usou com Ari.
- Tu vês-me como uma vilã, Ari. Mas essa é apenas a tua
perspetiva. – Kay afasta-se de Ari. – Um dia vais perceber.
Ari não esperava esta franqueza da parte de Kay.
- Eu não…
Kay interrompe-o.
- As pessoas merecem que lhes demos a melhor oportunidade de
sobrevivência que consigamos. – Kay tenta pedir desculpa, à sua
própria maneira. – Quem quer que esta equipa seja, tem que ser
parada: se alguém vem para te matar, levanta-te cedo e mata-o
primeiro.
- Matarmo-nos uns aos outros é algo em que o ser humano tem
sido brilhantemente consistente. Mas, se conseguíssemos parar de
nos matar uns aos outros por uns míseros cinco minutos, consegues
imaginar as possibilidades que teríamos? Um milagre poderá não
nos salvar…
Kay suspira e vira as costas a Ari.
91
- Eu já me decidi. Isto vai ser feito. A ordem foi dada e
não há volta a dar.
Ari contrai o maxilar e respira fundo.
- Não sabes para onde queres ir e mesmo assim mal podes
esperar por lá chegar… - Ari lamenta. – Muito bem. Vamos buscá-
los então.
Ari sorri para Kay, o que a deixa desconfiada perante a
súbita mudança de atitude. Ainda assim, ela sabia que precisavam
de mostrar uma frente unida quando passassem as ordens para a
restante equipa.
92
Capítulo 8
Hayden entra no laboratório seguido de Alastair. Kay e Ari
conversam casualmente, mas param assim que dão pela presença de
Alastair.
Sem grandes cerimónias, Alastair puxa uma cadeira e senta-
se à mesa de reuniões. A mesa já está limpa e o laboratório
imaculado; ninguém adivinharia que há poucas horas atrás tinha
ocorrido ali um banho de sangue. Alastair fita a mesa com desdém,
como que se de algum modo pudesse dirigir a sua raiva ao objeto à
sua frente.
Olhando para Kay, Alastair questiona-se acerca de que assunto
poderão ter para tratar. A sua paciência está prestes a expirar,
principalmente porque tudo o que quer é estar ao lado de Cassia
para o caso de a irmã acordar.
Kay lê rapidamente a sala, pousando o olhar em Alastair, por
último. Puxando uma cadeira, senta-se de frente para o jovem.
- Temos uma nova tarefa. – O tom que Kay é clínico; a sua
expressão sem emoção, como sempre.
- Está ganzada? Ou apenas a gozar com a minha cara? – Alastair
pergunta, desagradavelmente.
A pergunta vem como uma surpresa, apanhando todos
desprevenidos. Kay agarra o olhar de Alastair, desconcertada
perante a resistência que Alastair está a oferecer.
- Perdão, Senhor Vincent? – Kay finge não ter percebido a
pergunta, dando a hipótese de Alastair a reformular.
- Eu perguntei se a comandante está sob o efeito de
psicotrópicos. – Alastair sorri, desafiante, para Kay, cujo fumo
se pode ver a sair pelos ouvidos.
Kay ri-se e descontraidamente levanta-se, pousando ambas as
mãos na mesa e fitando Alastair intensamente.
- Contrariamente ao que possa pensar, Senhor Vincent, a sua
atitude não me comove. E eu penso que vai a tempo de aprender que
muitas das leis de Quimera ainda são válidas hoje. A
insubordinação nunca foi bem acatada, pois não?
Alastair engole em seco, arrependendo-se logo do comentário
que fez. O olhar de Kay a engoli-lo vivo.
93
Antes de ver a tensão na sala escalar, Ari decide intervir.
- Alastair, penso não haver necessidade para esse tipo de
atitude. – O tom de Ari é calmo e compassivo. – Nem eu, nem a
Comandante Li alvejámos a Cassia. Eu percebo que estás chateado
com o que aconteceu, mas neste momento precisamos de atender aos
assuntos com uma mente aberta. Felizmente a Cassia vai ficar bem
e eu gostaria de ter tudo acertado para quando ela acordar.
- Peço desculpa. – Alastair olha para Kay, sentindo-se
arrependido pela maneira como reagiu. – Qual é a tarefa?
Kay clareia a garganta e volta a sentar-se, dando sinal a
Hayden para dar os comandos ao computador. Numa questão de
segundos, três fotografias aparecem no ecrã: dois rapazes e uma
rapariga.
- As fotografias que está a ver são de Makayla e Able Summers
e Ziyon Carter. – Kay apresenta. – Precisamos de os encontrar.
- Só isso? – Alastair mostra admiração pela simplicidade da
tarefa. – Com que finalidade?
Ari olha para Kay, comprometido.
- Novos recrutas. Para vos ajudar nas viagens… - Kay explica
sucintamente. – Tornou-se evidente que tu e a Cassia precisam de
um suporte. Esta missão é demasiado arriscada e complexa para
vocês estarem sozinhos.
Alastair observa os comandantes sem proferir palavra.
- Partimos ainda hoje para a cidade. – Ari levanta-se da
mesa, como se a discussão estivesse finalizada.
Alastair zomba a situação.
- Porque é que o melhor para vocês é sempre o pior para as
outras pessoas? – Alastair levanta-se e olha para Ari e Kay. – E
antes que tentem dar a volta à situação com palavras mansas,
saibam que não encontro fé nos vossos sentimentos forçados.
Alastair está cansado de disputas e desavenças. O seu tom é
inexpressivo e o seu ar sereno. Kay cruza os braços e Ari fita
Alastair com uma expressão em branco.
- Pensei que vocês eram os bons da fita… - Alastair vira as
costas aos comandantes e dirige-se para a porta.
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Ari olha para Kay, a tentar legitimar o seu bom senso, por
ter previsto a reação de Alastair. Kay, porém, não se dá por
vencida e antes de Alastair sair volta a falar:
- Eu comecei a perceber que há muito pouca diferença entre
o bem e o mal, Alastair. Tudo depende da perspetiva.
Alastair para, mas não olha para trás e para surpresa de
todos, começa a rir-se.
- Sabe qual é o problema aqui? É que as pessoas pensam sempre
que sabem o que é melhor para os outros! E nem sempre é esse o
caso.
Alastair sai abruptamente do laboratório, deixando todos a
olhar para o vazio.
Kay suspira e vira as costas às duas pessoas que olham para
ela à procura de uma reação.
- Já pensaste que se dissesses o que realmente queres dizer,
em vez de um discurso bem ensaiado, poderias ter outro tipo de
reação da parte das pessoas?
A voz de Ari é ignorada pela Comandante. Lições de moral é
algo que dispensa neste momento. Em silêncio e ligeira, deixa o
laboratório num ápice, sem destino em mente.
Cassia acorda, a custo, encontrando a enfermaria silenciosa. Não
reconhece o lugar onde se encontra e a sua mente está turva, com
apenas alguns fragmentos de realidade a flutuar; de resto, nem
consegue perceber se o que se lembra é apenas um produto da sua
imaginação ou se aconteceu realmente.
Cassia não vê ninguém e tenta levantar-se, mas com
dificuldade; a sua respiração começa a acelerar e o monitor que
atenta no seu ritmo cardíaco começa a apitar sonoramente. Depois
de um enorme esforço, finalmente se senta na orla da cama e
deitando a cabeça para trás tenta respirar fundo. Uma lágrima
involuntária e sem significado escorre-lhe pela cara. A dor no
seu abdómen é intensa e, olhando para a sua intravenosa, lembra
que a medicação é escassa em Quimera. Isto, de algum modo, fá-la
sorrir, pois para o bem ou para o mal, isso significava que estavam
de volta.
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Cassia estremece à medida que os seus pés tocam o chão. As
suas pernas estão fracas e mal conseguem carregar o seu peso;
ainda assim, arranca as agulhas do seu braço e, devagar, caminha
até ao espelho na parede oposta. A tremer, desata a bata hospitalar
branca que lhe vestiram, deixando-a escorregar pelo seu corpo
dorido até ao chão. A enfermaria está pobremente iluminada; deve
ser tarde e tudo o que se vê é a silhueta de Cassia, de frente
para o espelho.
Cassia atenta no curativo sobre a incisão de onde a bala
fora retirada. Levando a mão ao ferimento, lembra a sensação da
vida a sair do seu corpo. Mais uma cicatriz para se juntar à sua
antiga coleção. As suas costas estão cravejadas com velhas
lembranças dolorosas do seu passado e do seu pai.
As recordações desvanecem, quando Cassia se apercebe que não
está sozinha. Sorrindo para Laura através do espelho, tenta
apanhar a bata para se vestir, quando se apercebe de que está nua.
O seu longo cabelo castanho tapa os seus seios, mas não muito
mais. A sua boa forma física é evidente e, no entanto, o mais
simples gesto é-lhe negado pela dor que os seus ferimentos lhe
provocam.
- Devias estar a descansar. – Laura ajuda Cassia e cobre-lhe
os ombros com as vestes hospitalares. O seu tom é neutro e clínico.
– Ainda rebentas os pontos…
Cassia não discute com Laura, pois sabe que ela tem razão.
Os seus impulsos deviam ser melhor controlados. Para além disso,
Cassia sabe que não há muito a dizer, quando as pessoas esperam
ações em vez de palavras.
Laura ajuda Cassia a regressar à cama e avalia o seu estado,
começando por a auscultar em silêncio.
- Respira fundo…
Cassia não sabe o que dizer, por isso vai obedecendo às
ordens que lhe são atiradas e estremecendo à medida que o metal
frio toca na sua pele.
Laura prende o seu olhar e Cassia sustém a respiração. Não
está habituada a perder o controlo e, de algum modo, perdeu-o com
Laura. Agora, o ambiente está tenso.
- Laura…
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- Lembras-te do meu nome! – Laura brinca, aliviando um pouco
o ambiente. – É bom sinal; a memória recente está intacta.
Cassia ri-se nervosamente e fita o lençol branco da cama
desfeita. O silêncio constrangedor volta a circundá-las.
- Sei que provavelmente deveríamos falar sobre o que
aconteceu antes de… - Cassia tenta começar a conversa que sabe
que tem que acontecer, mas Laura interrompe-a.
- Cassia… - A rapariga sustém a respiração ao sentir a mão
de Laura na sua perna e tenta manter a compostura. – Eu consigo
ver a tua cabeça a andar em círculos. Não te preocupes, eu não
vou morrer só porque tivemos uma noite bem passada e tu não
telefonaste no dia seguinte.
Laura ri-se e pisca o olho a Cassia, que olha para ela
confusa, à espera da contrapartida. Laura retira a mão da perna
de Cassia e pega no dossier que se encontra na mesinha de
cabeceira, escrevinhando qualquer coisa.
Cassia tenta decifrar a médica, sem saber se há de sentir-
se ofendida ou aliviada com as palavras de Laura.
- Muito bem… - Cassia ri. – Obrigada por me salvares a vida,
de todo o modo.
- Ora, acabei de te conhecer. Não podia deixar-te morrer sem
pelo menos te dar outra oportunidade. – Laura inclina-se e beija
Cassia, suavemente, apanhando-a desprevenida.
As portas de enfermaria abrem abruptamente e Laura interrompe
o beijo, pousando o dossier novamente e colocando as mãos nos
bolsos da bata.
Alastair faz o caminho até à cama de Cassia a resmungar algo
incompreensível e a olhar para o chão, numa intensa discussão
consigo mesmo. A sua expressão muda, logo que pousa o olhar em
Cassia sentada na orla da cama, a sorrir.
- Estás acordada! – Alastair não consegue conter o sorriso.
Laura encontra a oportunidade para se retirar, com a chegada
de Alastair.
- Alastair! – Laura sorri. – Vê se tens mais sorte do que eu
a tentar convencer a tua irmã a repousar. De resto, ela está a
responder bem e o seu estado físico está a melhorar. Deixo-vos,
97
pois tenho a certeza que têm muito que conversar. Ah, e cuidado
com os pontos.
Sem mais demoras, Laura vai embora, piscando o olho a Cassia
deixando-a a olhar para o caminho que toma. Cassia escarnece e
morde o lábio, tentando perceber o que acabou de acontecer, sem
notar a forma como Alastair a fita.
- Já a fazer amizades com a senhora doutora? – O tom de
provocação amistosa não escapa a Cassia.
Cassia olha para Alastair e ri.
- Já era sem tempo, se queres que te diga. – Alastair
continua. – Desculpa eu ter-te repreendido quando a vi a sair do
teu quarto naquela manhã. Eu deixei que os padrões do
comportamento passado, toldassem o meu julgamento.
- Não é nada do que pensas. Mas agora entendo o que motivou
o teu comportamento naquele dia.
Alastair senta-se ao lado de Cassia e dá-lhe a mão.
- Eu não posso impedir-te de viveres a tua vida, Cass. E,
para ser sincero, acho que já é sem tempo começares a procurar
outro destino, mana. A Tara não vai voltar. Talvez, agora
encontres o amor da tua vida.
Alastair ri-se perante as suas palavras e Cassia deita a
cabeça no ombro do irmão.
- Eu sei, mas isso não significa que a imagem dela não me
continue a assombrar todos os dias. – Cassia respira fundo e
afasta o doloroso pensamento. – De todo o modo, eu acho que o amor
da nossa vida é sempre aquele que não podemos ter.
Alastair olha para Cassia, atentando nas suas palavras e não
querendo acreditar que o destino fosse assim tão fatídico.
- Enfim. Parece que não morri. – Cassia brinca.
- Nah, tu és demasiado teimosa para morrer.
- O que aconteceu, entretanto? Tens que me pôr ao corrente
da situação.
Alastair levanta-se e senta-se na cadeira, de modo a poder
estar de frente para a irmã.
- Não te preocupes. Não parece que a nossa intervenção tenha
afetado alguma coisa na linha temporal. Apesar de eu ter morto o
Arquiduque e não o Princip.
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Cassia fica pensativa durante uns segundos e a sua expressão
muda de repente, como que tenha chegado a uma conclusão.
- Tu e o Princip têm aproximadamente a mesma altura e estavam
a usar fatos idênticos, Alastair.
- E o que é que isso tem?
- Não percebes? – Cassia inclina-se ligeiramente para a
frente, mas retrai-se com dor. Ignorando a pontada no seu abdómen,
continua. – O Princip pode ter apenas assumido o ataque; ele não
iria retirar o foco à sua organização terrorista e muito menos
admitir o falhanço.
- Isso não é uma má teoria de todo, Cassia. – Alastair parece
abismado. – Fomos confundidos. No meio da confusão é perfeitamente
normal…
- Então e de seguida? Temos outra possível localização? Vamos
voltar à Sérvia?
- Acalma lá os cavalos, Cassia. Tu precisas de recuperar. –
Alastair repreende a irmã de imediato, perante a sua
impulsividade. – De todo o modo, temos assuntos mais urgentes, ao
que parece.
- Aconteceu alguma coisa?
Cassia estava curiosa agora e a julgar pela expressão de
Alastair, ele estava pouco ou nada satisfeito com esses novos
planos.
- Os comandantes pensaram ser imperativo trazer novos membros
para esta equipa.
- E tu pensas que isso é uma má ideia.
Alastair olha para Cassia surpreso perante a suposição, ainda
que correta. Cassia conhece-o demasiado bem, por isso nem chega a
formar uma questão, apenas afirma o que sabe ir na alma do irmão.
Cassia arqueia uma sobrancelha e atenta em Alastair,
esperando a história completa.
- Olha o que te aconteceu, Cassia! – O tom de Alastair é
apreensivo e faz Cassia suspirar. – Precisamos mesmo de meter mais
gente em risco?
- Al… - Cassia pega na mão do irmão. – O que aconteceu comigo
não é a regra. Nós temos vindo a sobreviver num mundo de loucos;
num mundo estragado. Não que ele não estivesse estragado antes da
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guerra, mas ainda assim a batalha a que fomos sujeitos só acentuou
o que havia de errado. As pessoas há muito que deixaram de ver o
mundo a preto e branco e certo e errado. Os polos opostos já não
existem. Eu percebo que te seja difícil confiar nesta gente e nas
suas intenções. Eu também não confio neles… Posto isto, não achas
que seria mais fácil enfrentá-los com outras pessoas como nós?
Forasteiros como nós?
» Não podemos controlar tudo. Mas, dentro do que podemos
controlar, não achas que podemos simplificar? Olha, nós vamos
passar muito mais tempo mortos, do que passamos vivos. Mais vale
tentarmos facilitar o tempo que realmente aqui estamos.
Alastair fita Cassia e reflete nas suas palavras. Desviando-
se do intenso olhar da irmã, olha para o teto metálico,
característico de todas as instalações de Samsara.
Levantando-se, beija a testa de Cassia e sorri.
- Ainda bem que o teu tempo não expirou, mana. Não sei o que
faria sem ti.
- Provavelmente asneira. – Cassia ri-se, tonteando o irmão.
– Fico contente de finalmente admitires que sou imprescindível.
Alastair ri.
- Isto não significa que eu confie na Kay. – Alastair avisa.
– Ela esconde alguma coisa.
- Não escondemos todos? – A pergunta de Cassia é retórica.
Alastair beija a irmã na cara e volta-se para sair.
- Onde vais? – Cassia pergunta.
- Vou procurar os nossos novos colegas! – Alastair mostra a
língua a Cassia. – Tu estás em repouso absoluto!
- Porque é que toda a gente me continua a relembrar disso?
Cassia manda os braços ao ar, desanimada e olha, chateada
para o teto, onde tubos, fios e ventilações metálicas desenham um
labirinto.
A floresta que rodeia Quimera é densa e os caminhos de terra
estreitos. O jeep preto com janelas fumadas desbrava caminho entre
as silvas e galhos de árvore, velozmente. Não existem muitos
carros em Quimera, apenas os veículos governamentais circulam,
por isso nunca houve necessidade de construir muitas estradas.
100
Alastair olha pela janela, do banco de trás, admirando a
paisagem verde. Ari, que conduz, de tempos a tempos olha através
do retrovisor para o rapaz.
A viagem é feita em silêncio absoluto. O bunker onde se
encontram as instalações de Samsara ficou para trás.
Kay, no lugar do pendura, revê as pastas referentes a cada
novo membro da equipa. Ela sabe que um bom líder deve ser sensato
e, por vezes, ela tem dificuldade em perceber o que é passível de
ser exigido dos outros; tendo em conta que muito é também exigido
dela. O conselho que rege Samsara é tudo menos sensato, o que lhe
dificulta o trabalho. No entanto, se queremos a bonança, temos
que aguentar a tempestade. Kay só já não tem a certeza dos fins
que quer atingir.
A luz do sol vai trespassando através de falhas nos ramos
muito juntos das árvores, que formam um túnel natural sobre a
estrada enlameada. A luz mistura-se com a sombra, na floresta,
que contrasta com a devastação da cidade que rodeia, onde a luz
já não entra há muito tempo.
Kay olha pela janela, agora; para as mesmas cores e formas
que Alastair e Ari olham. Mas ela sabe que as vê de forma
diferente. O seu longo cabelo preto está preso num rabo-de-cavalo
e os seus olhos, normalmente tão atentos, parecem perdidos.
Fechando as pastas no seu colo, consegue ouvir Alastair e Ari a
falarem ao longe, não tendo a certeza de há quanto tempo a conversa
tomou lugar.
- Fico enternecido de teres mudado de ideias, Alastair. –
Ari sorri para o rapaz através do espelho, que continua a olhar
através da janela, não fazendo muito caso do que lhe é dito. – A
tua ajuda é indispensável.
- Devia agradecer à Cassia. Foi ela quem me convenceu de que
isto é uma boa ideia. – A voz de Alastair não denota emoção.
- Nesse caso, lembrar-me-ei de lhe agradecer quando
regressarmos. De todo o modo, estou contente por teres vindo.
Alastair finalmente desvia o olhar da paisagem e fita os
dois Comandantes nos bancos da frente do carro.
101
- Sabem que mais? – O tom de Alastair é um tanto malicioso.
– Parece-me que vocês sabem muito: até demasiado, sobre nós. No
entanto, nós não sabemos absolutamente nada acerca de vocês.
Kay fica alerta, assim que ouve as palavras de Alastair. As
intenções do rapaz não parecem ser apenas casuais e, certamente,
que ele não pretende apenas os seus dados biográficos. Kay guarda
silêncio, olhando pela janela, secretamente desejando que cheguem
aos portões de Quimera antes da pergunta chegar a ela.
- Tens razão. É justo trocarmos histórias de guerra. – Ari
responde prontamente. – Deixa ver. Eu sou originalmente de
Quimera; distrito Oeste. Fui casado e tive uma filha. Agora já
não sou pai ou casado. A minha filha foi levada pelo vírus e o
meu casamento acabou pouco depois disso. Tenho trabalhado para o
governo desde que fiz o meu teste de aptidões e fui recrutado.
Kay olha para Ari e vê a tristeza no seu olhar. A perda da
filha afetou-o severamente.
- Lamento. – Alastair demonstra empatia pela situação e as
suas palavras denotam sinceridade. – Pela sua menina e pelo seu
casamento.
Ari sorri, mas não fala mais, concentrando-se na condução.
Alastair vira-se para Kay, a única pessoa da qual ele quer
realmente saber mais.
- Então e você, Comandante Li? É das redondezas?
- Talvez. – Kay evita respostas concretas e definitivas.
Pela reação de Alastair, ele esperava uma resposta mais
articulada.
- Só isso?
- Sim. – Kay está irritada, agora. – Uma vez que não estou
sob interrogatório ou juramento, é só isso que tenho a dizer.
Finalmente os portões de Quimera podem ser avistados no
horizonte, dando oportunidade a Kay para desviar o assunto.
Abrindo o porta-luvas, Kay retira uma arma e um distintivo e
passa-os a Alastair.
- Estamos a chegar. – Kay evita o olhar do rapaz. – Isto é
teu a partir de agora: a tua arma de serviço e o teu distintivo.
102
Alastair olha para a arma com desdém; Kay assume ser por se
lembrar da última vez que pegou numa. Ainda assim ele aceita a
oferta.
- Pensei que estávamos aqui para pedir com jeitinho…
- E estamos. – Kay parece certa do que diz, carregando a sua
arma. – Ainda assim, se bem te lembras, quando enviámos agentes
ao vosso apartamento, a Cassia matou um dos meus homens. Podes
ser simpático quanto quiseres, eu prefiro ser zelosa e não correr
riscos desnecessários.
Alastair arqueia uma sobrancelha, mas não insiste com mais
nada, recostando-se no banco. Kay olha pelo para-brisas; os
portões da cidade estão abertos e imponentes. Os prédios têm as
janelas partidas e parecem abandonados. Antes de chegar aos
portões, uma vala comum pode ser avistada: onde cadáveres estão
empilhados, aguardando a sua vez para entrar no fogareiro. Dois
agentes da polícia atiram outro corpo para a vala.
Apesar de se ter averiguado que o vírus não é transmitido
por via aérea, mas sim que é uma corrente bacterial, foi decidido
continuar-se a queimar os vestígios biológicos; não haveria espaço
para enterrar tanta gente. De todo o modo, não haveria uso para
um cemitério, já que não haveria ninguém para visitar as campas
ou lembrar os que partiram.
Os vagabundos vagueiam pelas ruas e os agentes policiais
patrulham a cidade. Ainda se tenta manter a ordem na cidade,
apesar desta parecer abandonada.
- Quimera parece cada vez mais uma cidade fantasma… -
Alastair murmura no banco de trás o que os três estão a pensar.
Kay olha para Alastair e suspira. É verdade: Quimera já viu
melhores dias.
A biblioteca de Quimera raramente era utilizada quando a cidade
estava ativa; agora, muito menos. Parcialmente abandonada, o
grande edifício que se destinava a guardar a sabedoria do Mundo
do qual se escondiam, hoje, é a casa de vagabundos e dos enfermos.
Kay, alarmante, passa velozmente entre as filas de estantes
repletas de pó e de livros que ficaram por ler, com a sua arma
empunhada. As teias de aranha, que revestem algumas partes do
103
caminho, parecem não a incomodar; já Alastair, seguindo logo atrás
de Kay, vai desviando as redes orgânicas que lhe assaltam à pele
e o fazem ficar inquieto. Ari fica ligeiramente para trás,
brandindo a sua arma ao desconhecido, tentado não encontrar
vivalma.
Mesmo com o sol a brilhar lá fora, a biblioteca não vê a luz
do dia. As janelas, algumas estilhaçadas, têm tábuas de madeira a
bloquear a entrada de luminosidade, dando um ar assombrado ao
espaço público. Barulhos estranhos perseguem os três agentes que,
a custo, se tentam concentrar no chão, para não pisarem nenhuma
cama improvisada ou tropeçarem em algum corpo inconsciente.
O seu passo é rápido, à medida que tentam fugir das sombras
e dos ruídos que os perseguem. Pisam em vidro com cada passo que
dão e o cheiro pútrido, dos cobertores velhos que se estendem ao
longo da parede de mármore brando, segue no seu encalço.
Nada disto parece atormentar Kay, que segue empenhada na sua
missão, à frente. Alastair olha para a imensidão da biblioteca
abandonada e não consegue imaginá-la de outra maneira, o que o
assusta. Esta deve ser a primeira vez que Alastair assenta os pés
dentro deste edifício da cidade. Muitas vezes esperou por Cassia
do lado de fora, mas nunca se obrigou a entrar.
Olhando atentamente para as filas de livros poeirentos,
repara nas, agora arrebentadas, fechaduras que os guardavam. Cada
seção teria o seu código de aceso, agora os painéis estão partidos.
As redomas que cercavam as estantes estão estilhaçadas no chão;
no entanto, os livros continuam intactos. Alastair tenta não
pensar na dicotomia representada pelas estantes de livros e
concentra-se no objetivo desta visita de estudo.
- Como é que podemos ter a certeza de que ele está aqui? –
Alastair sussurra, para não acordar nenhum mal maior que possa
estar escondido nas sombras da biblioteca.
Kay não olha para trás, apenas sussurra de volta.
- Samsara sabe tudo: é o nosso trabalho.
- Porque é que isso não me surpreende… - Alastair revira os
olhos e fala num tom repreensivo.
- Ele passa muito tempo aqui. – Kay ignora o comentário de
Alastair. – De acordo com o que podemos apreender, os seus
104
interesses são sobretudo Antropologia e Comportamento Humano. Pelo
que será essa a seção da biblioteca onde há mais probabilidade de
o encontrarmos.
Ari olha para Kay, surpreso.
- Nós temos uma seção de Antropologia na Biblioteca? – Ari
lembra Kay, indiretamente, que a biblioteca se destinava apenas a
guardar conhecimento prático, não conhecimento para intelectuais.
Estes últimos não eram permitidos existir.
- O que raio é Antropologia? – Alastair parece confuso.
- Se souberes bem onde procurar, tudo se torna conhecimento
Antropológico. – Kay sorri intencionalmente, como quem sabe mais
do que o que partilha e continua a marchar em direção desconhecida.
Ari suspira, descontente com o seu novo papel. Era muito
mais fácil quando enviavam agentes para fazer o trabalho sujo.
Ainda assim, segue Kay e Alastair, não querendo ficar sozinho no
antro em que se tornara a Biblioteca.
Repentinamente, o seu percurso é interrompido por um barulho
ensurdecedor atrás de si. Um a um, assustados, viram-se para trás,
encarando a imensidão escura do corredor. O silêncio começa a
circundá-los e a sua pulsação acelera o ritmo.
Bang! Outro barulho ensurdecedor; novamente atrás de si.
Alastair engole em seco e vira-se ferozmente, empunhando a arma à
sua frente. Vazio é o que encontra.
Alastair olha ao redor, ficando parcialmente sem ar,
procurando desesperadamente a fonte do barulho, que parecia estar
deliberadamente a tonteá-los. Mais silêncio.
- Mas que raio? – Frustrado, Alastair aponta a pistola a
cada sombra que o envolve.
- A Biblioteca é a casa de muitos refugiados e vagabundos.
Se calhar acordámos alguém. – Ari olha ao seu redor,
pacificamente.
A calma de Ari começa a irritar Alastair.
- Vamos continuar, meninas? – O tom sarcástico de Kay não
escapa a Ari e a Alastair. – Temos muito que fazer ainda…
Apesar do tom de chacota de Kay, Ari e Alastair entreolham-
se, incertos de deverem continuar em frente ou deixar o rapaz que
procuram em paz. Alastair pergunta-se o que viu este rapaz neste
105
sítio, para se encontrar aqui. Muitas vezes procuramos sossego
nos lugares mais estranhos. Talvez ele apenas queira um espaço
para poder descansar da vida. Ainda assim, esta biblioteca
começava a dar arrepios a Alastair.
Quando Ari se vira para seguir Kay, não consegue encontrá-
la e entra em pânico perante o corredor escuro e vazio; os mais
pequenos barulhos a ampliarem-se, de repente, na sua mente.
- Kay? – Ari começa a chamar em alta voz; sem se preocupar
mais com quem poderá ouvi-lo.
- Onde é que ela foi? – A ansiedade começa também a afetar
Alastair. – Ainda agora estava aqui…
Ari move-se rapidamente pelo corredor, sem olhar para trás.
Parando em cada enforcamento, chama pela Comandante, entre as
filas de livros. Alastair segue atrás dele, tentando acompanhar o
passo desesperado do homem.
Outro barulho estranho deixa Alastair ficar para trás,
paralisado, mais uma vez brandando a sua arma para o vazio.
Suspirando em frustração, Alastair vira-se novamente para tentar
acompanhar Ari. O pânico sobressalta-o quando não consegue
encontrá-lo.
- Ari? – Alastair sussurra para o vazio. – Fantástico. Se
isto é algum tipo de praxe, juro que me passo da marmita!
Numa decisão rápida, Alastair decide continuar pelo corredor
acima, mas quando se volta para começar o caminho, repara que já
não se encontra sozinho. As paredes da biblioteca estremecem com
o barulho que se segue e um grito viaja pelo ar trémulo do edifício
em ruínas, até às ruas solarengas de Quimera.
106
Capítulo 9
A respiração de Alastair é ofegante. Olhando para o rapaz de
descendência Africana à sua frente não sabe como reagir. A sua
expressão acusatória, no entanto, não pode controlar. O rapaz está
tão assustado quanto ele e deixara cair a pilha de livros que
trazia nas mãos.
Silenciosamente, avaliam-se mutuamente. Alastair recusa-se
a baixar a arma até perceber se é seguro. O jovem rapaz,
desesperado e assustado, olha ao seu redor como que a procurar
algo.
Alastair fica nervoso quando vê que o olhar do rapaz parou
sobre um objeto e, antes de poder fazer ou dizer alguma coisa, vê
as pontas afiadas da garrafa de vinho partida apontada à sua
garganta. Alastair sabe que, muito provavelmente, as coisas podiam
ser resolvidas com uma simples troca de palavras. A razão de o
mundo ter colapsado prende-se, talvez, no fato de as pessoas não
falarem o suficiente e partirem logo para a violência.
Alastair odeia o peso da arma e o frio metal, preso entre as
suas palmas suadas. Mais ainda, Alastair odeia quando as pessoas
o forçam a premir o gatilho. Não hesitará em defender-se, mas
também não forçará um fim violento: Alastair sempre fora um
pacifista. No entanto, alguém devia avisar este rapaz que para
uma luta de pistolas, não se traz uma garrafa partida.
Alastair suspira, esperando que Kay e Ari dessem sinais de
vida. As gotas de suor começam a acumular-se na sua testa e a sua
boca começa a ficar seca. Flashbacks dos acontecimentos na Sérvia
assombram-no; a imagem de Ferdinand, ensanguentado e a chamar pela
sua mulher, tropeçam na realidade, fazendo-o duvidar da sua
sanidade. Devagar, Alastair fecha os olhos e guarda a arma no
coldre, como que estando a render-se.
- Perdoa-me… - O seu tom é baixo e quase impercetível.
Alastair não pede perdão ao rapaz, assustado, à sua frente. Pede
perdão à memória da sua família, pelo rumo que a sua vida tomou.
O rapaz parece ficar benevolente com a expressão desolada de
Alastair e sorri-lhe, calorosamente, baixando a garrafa. De algum
107
modo, sem trocar palavras, conseguiram perceber que nenhum deles
constitui uma ameaça.
Alastair retorna o sorriso, mas logo se apercebe da
metamorfose de sombras no chão, vendo as duas sombras
transformarem-se em quatro no mármore branco. Alarmado,
repentinamente, volta-se para trás, apontando a sua arma para os
novos intrusos. O jovem assustadiço volta a brandir a garrafa, em
desespero.
Ari e Kay logo levantam os braços, anunciando que vêm em
paz. A arma regressa ao coldre, assim que Alastair se apercebe de
quem se trata.
- O que é que se passa aqui? – Ari olha para o rapaz a agitar
um pedaço de lixo à sua frente e franze a testa, olhando para Kay
e depois para Alastair. – Ziyon Carter?
Ari chama, esperando acalmar a pobre alma. Kay não tem tanta
calma e aponta a pistola a Ziyon.
- Baixa a garrafa! – Kay grita em sobreaviso. – Estamos aqui
para ajudar.
Alastair revira os olhos perante as palavras de Kay.
Certamente segurar alguém pelo cano de uma arma, não os convencerá
de que não há perigo a temer.
Ziyon parece não estar com um humor cooperante e desata a
correr, mas cedo tropeça nos livros que deixara cair. Kay suspira,
ao aproximar-se do rapaz de joelhos, a tentar levantar-se. Num
ápice, Kay espeta uma seringa no pescoço de Ziyon, fazendo-o
desmaiar.
- Não era tão mais fácil se eles cooperassem?
Kay olha para Alastair e Ari, absorta à incredulidade nas
suas caras.
- Alguém vai ajudar-me a carregá-lo? – A pose de Kay é
elegante. O uniforme preto masculino, de alguma forma dá-lhe ainda
um ar pousado e feminino; o que Kay consegue fazer acentuar, com
o seu jeito gracioso.
- Para que foi isso, Kay? – Ari pergunta, aproximando-se da
Comandante; o seu tom irritado.
- Não sejas tão condescendente. O tempo urge, meu caro.
108
- Podíamos ter apenas falado com ele… - Desta vez é Alastair
quem se pronúncia; sem denotar um tom depreciativo, apenas
cansado.
- Vocês têm as vossas maneiras. – Kay debruça-se sobre o
corpo inconsciente de Ziyon, sorrindo presunçosamente para
Alastair. – Acontece que a minha maneira é mais rápida e eficaz.
Alastair suspira, frustrado e segue para ajudar Kay e Ari
com Ziyon, que parecem estar com dificuldades em levantar o rapaz
alto e musculado. Alastair percebe que não vale a pena mostrar a
sua desaprovação perante os métodos pouco ortodoxos da Comandante
Li. Apesar de algumas vezes ela estar certa: desta forma foi mais
rápido.
O laboratório de Samsara está calmo como sempre. Hayden trabalha
em silêncio.
Um sentimento de derrota assalta-o. Quanto mais tenta
arranjar uma solução para Quimera, mais se apercebe de que as
soluções se esgotaram. Kay tinha grandes esperanças para ele e
Hayden sentia que estava a desapontar a pessoa que lhe deu a mão
quando mais ele precisou.
A porta do laboratório abre para grande espanto do cientista.
Só com o código de acesso se pode entrar no laboratório e as
únicas pessoas com acesso estavam fora de Samsara.
Hayden levanta-se abruptamente, não esperando visitas. Os
seus olhos pretos e vibrantes pousam em Cassia a tentar recuperar
o fôlego junto à entrada.
Cassia pousa a mão no seu ferimento, que com cada passo que
dá, faz ressonar uma dor aguda pelo seu corpo todo. Traz um novo
uniforme vestido, pelo que Hayden deduz que esta não foi a sua
primeira paragem. Andando a custo, Cassia tenta chegar perto da
cara familiar que olha para ela perplexo.
Hayden, num movimento determinado, levanta-se, correndo para
ajudar Cassia.
- O que fazes aqui, Cassia? – Hayden pergunta ao se aproximar
da rapariga, ainda pálida, agarrando-a gentilmente pela cintura e
apoiando-a em si. – Devias estar a repousar.
109
- Estava entediada, Hayden. – Cassia tenta justificar-se,
deixando o rapaz ajudá-la. Algo que Cassia nunca faz; pedir ajuda
ou, mesmo, aceitá-la. – Sim. Eu fugi da enfermaria, mas em minha
defesa eu estava farta de estar na cama.
- Ora, que boa defesa, Cassia. – Hayden revira os olhos
perante a teimosia da rapariga nos seus braços, claramente com
dores. – Passaste ao lado de uma grande carreira de advogada.
Cassia não pode deixar passar despercebido o tom sarcástico
de Hayden e suspira profundamente, pois sabe que ele tem razão.
Hayden ajuda Cassia a sentar-se numa cadeira e sorri-lhe,
amavelmente:
- Estou a tentar perceber, através das últimas pesquisas e
do relatório do Alastair, o que poderá ter acontecido na vossa
missão. Se calhar, podias ajudar-me…
Cassia olha para os ecrãs e a primeira imagem que a assalta
é a fotografia de Princip. As mãos dele, ainda marcadas no seu
pescoço, que Cassia acaricia, com a lembrança. O seu olhar é, no
entanto, analítico, perante as imagens que agora não fazem parte
apenas do seu imaginário, mas das suas lembranças mais íntimas.
Ao lado da fotografia de Princip, repousa uma caricatura de
Ferdinand e a sua mulher Sofia, a serem alvejados por um fato
preto de chapéu sem cara.
Sofia nunca deveria ter estado naquele carro, naquele dia.
O Arquiduque e a sua mulher não tinham autorização para viajar
juntos, em visitas oficias; porém, era a única altura em que
podiam estar juntos. Ferdinand escolheu passar um dia com a mulher
que amava e acabaram os dois por morrer.
O amor já matou mais que qualquer guerra e Cassia não pode
deixar de ver a ironia nesta constatação. Cassia sabe melhor que
desprezar as conveniências sociais, só porque a sua vida não
correu da melhor maneira; mas isso não significa que seja
hipócrita e acredite que o amor seja a solução para todos os
males, quando tudo aponta para que seja a causa dos mesmos.
O problema quando estamos apaixonados, é que perdemos todo
o sentido de razão; deixamos de conseguir pensar com clareza, pois
a nossa mente está programada para ver apenas o que queremos ver.
110
Com a eventualidade de ignorarmos o real. Ferdinand concordaria
agora com Cassia.
- Como é que te estás a sentir? – Hayden pergunta, sorridente
a Cassia, puxando uma cadeira para se sentar a seu lado.
“Desfeita e recuso-me a pedir ajuda.” Cassia pensa,
automaticamente, perante a pergunta do jovem que a fita à espera
de uma resposta.
- Sinto-me bem, Hayden. – Cassia sorri. Nem sempre há uma
correspondência entre as nossas palavras e o que sentimos; a
pequena mentira que Cassia conta, é justificada aos seus olhos,
pelo simples fato de cada pessoa saber a dimensão daquilo que a
assombra e a escolha de partilhar essa dimensão com outra alma,
não deve ser tomada de ânimo leve. Cassia tem consciência das
implicações de trazer alguém para a nossa própria sombra, quando
não temos a certeza se vamos sair dela.
- Ainda bem. – Com as mãos entrelaçadas atrás das costas e
a cabeça inclinada para o lado esquerdo, Hayden olha para Cassia
muito atentamente. – Estou feliz por estares bem, Cassia. E, como
te esquivaste do recobro, no teu estado convalescente, mais vele
ficares aqui e ajudares-me com o meu dilema.
- Claro. – Cassia sorri, desta vez genuinamente. Aquilo que
precisa neste momento são distrações para a sua cabeça e para o
seu coração. – Que dilema?
- O que me está a incomodar, é o fato da vossa intervenção
não ter mudado nada, sabes? – Hayden levanta-se e dirige-se para
o computador, mostrando filas de documentos e informações
completas acerca daquele fatídico dia na Sérvia. – Como é que o
vosso papel num evento histórico passou completamente
despercebido?
- Se calhar não passou… - Cassia levanta-se a custo.
- Como assim? – Hayden está mais preocupado com as ações de
Cassia, neste momento, do que com as suas palavras.
- Talvez o passado seja, de fato, permanente. Não podemos
salvar almas, se o seu destino é a morte; não podemos restituir a
vida, pois não é esse o nosso propósito. Não importa as medidas
que tomemos, se a linha da vida de alguém foi interrompida, essa
pessoa deixará de existir. – Cassia para e olha para o chão,
111
pensativa. – Não importa o quão superiores pensamos ser a outras
espécies; não somos os mestres do Universo, somos os seus
súbditos. Podes ter construído uma máquina que nos permite voltar
ao lugar onde já estivemos um dia, ainda assim, isso não significa
que possamos mudar a linha temporal. Tudo aconteceu como era
suposto acontecer…
Hayden olha para Cassia, cético perante um discurso tão
fatalista. O silêncio é rei na grande sala escura. Quiçá Cassia
se tenha esquecido da inocência e abertura para a vida que Hayden
apresenta com a sua imagem jovial. Possivelmente, não é a melhor
pessoa para entender o significado das suas palavras.
A expressão de Hayden muda lentamente e este agita-se num
frenesim.
- Santo Einstein! – Hayden exclama, animado.
- O que foi?
- Faz tudo sentido, agora! – Hayden bate na sua testa, em
jeito de reprimenda. – Estúpido! Como é que não me apercebi disto
antes?
- Importas-te de explicar ou esperas que consiga ler os teus
pensamentos? – Cassia senta-se novamente, tentando ignorar as
pontadas de dor que a assaltam.
- Não consegues perceber o que se passa? – Hayden atropela
as palavras, tornando o seu discurso quase impercetível.
- Se calhar se pareceres menos esquizofrénico… - Cassia não
faz de propósito, mas o seu sarcasmo às vezes leva o melhor dela.
Hayden não ouve o comentário de Cassia e continua a falar
com o mesmo ritmo, olhando para as suas equações, numa tentativa
de dar algum sentido à sua confusão.
- Não mudou nada porque não precisou de o fazer! Tudo
aconteceu como era suposto acontecer! O tempo é relativo! Tu e o
Alastair estiveram sempre destinados a viajar no tempo, lutar
contra o Princip e matar o Ferdinand. Todos os paradoxos sobre
viagens no tempo e ninguém se lembrou dos paradoxos do futuro! Se
o fizeste no passado estás condenado a repetir as tuas ações no
futuro! Ou vice-versa.
Hayden parece confuso com as palavras, sentindo-se um tanto
disléxico.
112
- Não é uma linha, mas um ciclo vicioso! – Cassia tenta
traduzir o pensamento confuso de Hayden e protesta veemente - Eu
não gosto dessa teoria, Hayden. Porque isso significaria que nós
fomos os responsáveis pelo início da Primeira Guerra Mundial.
- Não exatamente. – Hayden tenta descansar Cassia. – As
tensões estavam altas. Vocês apenas despoletaram o motivo…
- Isso faz-me sentir muito melhor. – A cara de Cassia está
trancada e o seu ânimo não corresponde às suas palavras. Hayden
percebe logo que a sua tentativa saiu falhada.
A discussão é cortada a meio: os ecrãs ficam pretos,
repentinamente e voltam a iluminar-se, de seguida. Fotografia após
fotografia é atirada para o ecrã, para desaparecer de seguida.
Diversos locais de ataques históricos vão e vêm.
Hayden entra em pânico e corre para a sua secretária, onde
Cassia está sentada a assistir ao espetáculo, tentando decifrar
todas as fotografias que aparecem. O rapaz tecla freneticamente,
tentando arranjar uma explicação para o sucedido.
- O que está a acontecer? – Cassia pergunta, levantando-se
o quão rápido os seus ferimentos lhe permitem.
- Não sei. Talvez um vírus do sistema… É um trabalho em
progresso…
Uma imagem congela no ecrã e Cassia sustém a respiração,
quando os seus olhos pousam nela. Alastair e Cassia aparecem na
fotografia, na Sérvia. Mas não é isso que a faz paralisar, mas
sim a rapariga ao fundo da rua que os fita atentamente.
- Não me parece que seja um vírus, H. – A voz de Cassia a
falhar. – Acho que acabaram de piratear a Agência.
Hayden não contesta a proposta de Cassia, pois sabe que esta
tem razão. Alguém acabou de aceder aos canais informáticos de
Samsara. E de uma coisa Hayden tinha a certeza; quem foi, não o
fez com boas intenções.
Alastair e Ari entram no único bar existente em Quimera, situado
no distrito Norte, tal como a biblioteca. O distrito Norte era
aquele povoado pela nata da sociedade: os detentores do poder.
Agora, o poder não vale de muito na cidade.
113
O bar está abandonado. As prateleiras atrás do balcão estão
cobertas de pó e teias de aranha, mas ainda contém garrafas cheias,
outras meias vazias. O vidro partido no chão cintila com o raiar
do sol a entrar pelas janelas; há cadeiras partidas e uma mesa de
bilhar coberta de teias de aranha, com um jogo ainda por acabar.
O chão preto está repleto de pegadas, a rasgar o sujo e
Alastair atenta na porta meio aberta atrás do balcão. Ari para,
olhando em seu redor, atentando no lugar onde se encontra.
Alastair para ao seu lado e procura Kay, atrás de si.
- Onde está a Comandante? – Alastair tem um ar carrancudo.
– A aterrorizar a cidade?
Ari ri, perante o comentário.
- Vá lá, Alastair. Ela não é assim tão má como tu a pintas.
A Kay teve que fazer uma chamada; já se junta a nós.
- Vocês têm a certeza que eles estão aqui? – Alastair olha
para o balcão. – A mim parece-me estar vazio.
Ari aproxima-se do balcão e repara no copo, com uma bebida
servida.
- A bebida ainda está fria. Alguém esteve aqui não há muito
tempo. – Com cuidado, espreita pela porta atrás do balcão. – Não
vejo ninguém…
Alastair senta-se numa das cadeiras do balcão e suspira.
- Provavelmente ouviram-nos e deram o baza.
Ari ergue uma sobrancelha e fita Alastair com um sorriso
comprometedor. Olhando para ele detrás do balcão, não lhe parece
muito díspar da perspetiva que teve sobre Cassia, na primeira
noite dos irmãos na Agência.
- Bem… Se calhar vão voltar. – Avaliando as prateleiras,
escolhe rapidamente uma garrafa e serve dois copos, passando um a
Alastair. – Que tal uma bebida enquanto esperamos?
Sorrindo, Ari traga a sua bebida rapidamente. Alastair olha
para Ari, desconfiado com a casualidade da situação. Ainda assim,
aceita a bebida e traga-a rapidamente, fazendo uma careta perante
o sabor amargo. Nunca gostara de bebidas alcoólicas, mas ao ritmo
dos problemas que o assaltam, estava disposto a abrir uma exceção.
- Saúde! – Alastair brinda, batendo com o copo no balcão e
tossindo.
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Levantando-se, começa a andar em redor do bar. Ari serve-se
de outra bebida e observa o rapaz a deambular.
- Este bar já viu melhores dias, não? – Ari pergunta,
tentando começar uma conversa casual.
Alastair não se apressa a responder, parando na mesa de
bilhar e olhando para o jogo no imenso verde, repleto de pó.
Sacudindo o pó de uma das bolas, começa a atirá-la ao ar,
pensativo.
- Tudo nesta cidade já viu melhores dias. – Alastair responde
finalmente. – Especialmente no distrito Norte. Não posso deixar
de sentir a ironia, no entanto. O Norte tão aclamado pelos
aristocratas, agora devastado e a servir de barreira para o resto
da cidade.
Violentamente, Alastair atira a bola contra as outras,
fazendo viajar um eco pelo silêncio do bar.
Ari parece divertido com a situação e olha para o seu copo
com um ar sombrio, como que a testar Alastair.
- Suponho que há uma razão para o nome da cidade ser Quimera…
- Ari não olha para Alastair. O seu ar carregado de lembranças. –
Sabes o seu significado?
- A Cassia explicou-me uma vez… - Alastair suspira e volta
a aproximar-se de Ari. – Uma Quimera é um monstro mítico, certo?
Um híbrido: parte cabra, parte leão e parte cobra. Cada um
representa os Poderes Divinos: criação, destruição e conservação.
Ari sorri, sapiente. Cassia esquecera-se da questão mais
importante. Como é que uma sociedade sem crença representa os
poderes divinos?
- Isso poderia ser verdade para o mundo fora de Quimera. Mas
não é essa a razão do nome da cidade. Nós não temos religião,
Alastair. – Ari pausa e, altivo, olha para o jovem rapaz, atento
a cada palavra. – Uma Quimera também pode significar uma esperança
ou sonho. Uma utopia, se quiseres.
» Quando os nossos pais fundadores criaram a cidade, fizeram-
no através de um campo de refugiados. Há oitenta anos atrás, o
mundo não era muito melhor do que é agora. Se calhar nunca o foi.
A hegemonia do mundo estava nas mãos de quem não devia. As grandes
potências lutavam pelo poder e esqueceram-se das pessoas. O lugar
115
onde a cidade está, foi uma espécie de refúgio para aqueles que
se viram perseguidas politicamente e socialmente por não
concordarem com os termos dos seus países; por terem um estilo de
vida diferente ou visões distintas do que devia ser o mundo. Essas
pessoas chegaram ao campo de refugiados, para escapar à morte no
seu lugar de origem. O mundo sempre foi um lugar confuso e nessa
altura, mais confuso se tornou.
» Construíram uma cidade para todos: onde a igualdade e o
respeito seriam a supremacia. Um lugar onde todos seriam aceites
incondicionalmente. Um novo tipo de sociedade emergiu, dentro das
fronteiras da cidade, que eventualmente foram fechadas.
Conseguiram encontrar a solução para uma sociedade totalmente
autossustentável. Algumas trocas comerciais eram feitas a
princípio, mas nada muito significativo. O objetivo sempre fora
proteger a humanidade de si própria e da destruição que criaram.
Alastair olha para Ari com admiração e um pouco de confusão.
- Como é que sabe isto tudo?
Ari sorri e traga outra bebida.
- O meu avô foi um dos fundadores de Quimera.
O breve silêncio que se instalou entre Ari e Alastair,
perante a nova informação, é logo quebrado por sons de tiros a
vir do exterior.
- Que raio é isto? – Alastair não espera por uma possível
resposta, correndo, de arma em punho para o exterior.
116
Capítulo 10
O Jeep está estacionado de frente ao velho bar. Paredes de tijolo
encarnado e uma grande placa a indicar o nome do estabelecimento,
agora já sumido, destacam o prédio de todos os outros na cidade.
As portas do carro estão abertas, a formar um escudo de
proteção entre Kay e Ziyon e o lado da estrada de onde vêm as
balas. Kay não se deixa intimidar e retribui o gesto prontamente.
Ziyon, no entanto, esconde-se mais com cada tiro disparado.
Alastair e Ari, abrigando-se o melhor possível da chuva de
balas na rua, correm até Kay.
- Que graciosidade de vossas majestades se juntarem a mim!
– Kay reclama, sarcasticamente, ao notar a companhia dos outros
Agentes.
- O que é que aconteceu? – Ari retira a sua arma do coldre.
– Pensei que estavas a fazer uma chamada.
A ira na cara de Kay não passa despercebida a Ari.
- E estava! – Kay grita, para se fazer ouvir sobre o som dos
tiros. – A Makayla e o Able saíram do bar e começaram aos tiros!
Alastair olha para a arma na sua mão e decide que, neste
momento, não estava arrependido de a ter aceite.
- Esperem lá! – Alastair interrompe. – Foram eles que
começaram o tiroteio? Pensei que ela era a especialista em
História…
- E é! O irmão, no entanto, é num ladrãozito e vigarista.
Mas não o tomava como violento…
Ari mal acaba a frase e levanta-se, repentinamente,
disparando contra o outro lado da rua, onde ninguém é visto. Kay
agarra rapidamente o braço de Ari, puxando-o e obrigando-o a
voltar a ajoelhar-se.
- Cuidado. – A voz de Kay é baixa, perante a proximidade
entre ela e Ari. – Não os podemos magoar.
Ari hesita em quebrar a troca de olhares com a Comandante,
sentindo o toque da mulher no seu braço.
Alastair, sem se aperceber do clima entre os Comandantes,
tenta chegar ao altifalante do carro.
117
- Cubram-me! – Alastair grita, fazendo os Comandantes voltar
à realidade.
- O que é que estás a fazer? – Ari pergunta, preocupado, com
o gesto arriscado.
- Vou falar com eles. – Alastair pega no altifalante. – Daqui
fala a Agência Samsara! Por favor, baixem as armas!
Dois tiros estilhaçam o para-brisas do carro, fazendo o vidro
cair sobre Alastair, que perante a repentinidade dos
acontecimentos, se tenta proteger o melhor que consegue.
Kay, enfurecida, entra para o carro e arranca o altifalante
das mãos de Alastair.
- Oiçam-me bem, seus fedelhos! Ou param de disparar contra
nós e deixam-nos falar com vocês como pessoas civilizadas que
somos; ou, eu juro, que vos bato com tanta força que vão desejar
que antes uma bala vos tivesse atravessado!
Todos esperam, cautelosamente, por sinais de paz. Devagar,
um a um, começam a levantar-se e a atentar no outro lado da rua.
Alastair retira o altifalante a Kay, olhando-a com desaprovação.
- Ok. Boa. Agora, por favor, saiam de onde estão com as mãos
no ar, atirem as armas para longe e vamos conversar. – Alastair
desliga o altifalante e olha para Kay. – A Comandante precisa de
trabalhar nesse temperamento, sabia? Com todo o devido respeito.
Kay revira os olhos, perante o comentário, virando as costas
a Alastair.
Makayla e Able saem finalmente das sombras, atirando as armas
e colocando os braços no ar, como instruído. Lentamente, começam
a andar em direção ao esquadrão que espera por eles do outro lado
da rua, junto ao bar. Ziyon sai finalmente detrás do jeep e junta-
se ao grupo.
Alastair repara de imediato nos olhos verdes da rapariga,
com calças pretas rotas e uma camisa, claramente demasiado grande
para ela. O seu cabelo loiro, repleto de caracóis cai-lhe sobre
os ombros e o sinal sobre os seus lábios carnudos, dá-lhe carácter.
O seu irmão tem o cabelo tão loiro como ela e os olhos tão
verdes, também. Mas o seu cabelo é liso e muito penteado. Ele traz
um fato castanho, com uma camisa branca e um laço vermelho. Um
estilo um tanto formal para o estado de contingência da cidade.
118
Able sorri para Alastair e pisca-lhe o olho, fazendo este ficar
um pouco atrapalhado com o gesto.
Ari pega em Able imediatamente, atirando-o contra o capô do
carro e revistando-o. Kay faz o mesmo com Makayla.
Assim que têm confirmação um do outro de que tudo está bem,
libertam-nos.
- Seria muito pedir uma explicação para toda esta
consternação? – Makayla pergunta, ajeitando o seu cabelo e as suas
roupas.
- Foram vocês que dispararam a primeira bala. – Kay cruza os
braços e olha seriamente para a loira à sua frente.
- Perdão? – Makayla parece indignada. – Nós temos todo o
direito de nos defendermos! Vocês aparecem aqui, repentinamente
e…
- Não, loirinha! – Kay interrompe Makayla. – Por acaso, nós
temos o direito de fazer o que nos apetecer, porque nós somos a
autoridade máxima de cumprimento da lei nesta cidade!
Kay e Makayla continuam a discutir, incansavelmente. Os
rapazes olham para a cena que se desenrola, divertidos.
- Boa! – Alastair suspira. – Existem duas delas!
- Isto vai ser interessante… - Ari ri-se.
Able coloca as mãos nos bolsos, casualmente, e sorri para os
três homens à sua frente.
- Desculpem lá toda a cena de tiroteio. Não costumamos ter
muitas visitas… - Olha para Kay e Makayla a discutir
freneticamente. – Isto parece que vai demorar um bocado. Que me
dizem a uma bebida, camaradas? Está a ficar um pouco fresco cá
fora, não?
Alastair e Ari entreolham-se e encolhem os ombros em
concordância, seguindo Able. Ziyon segue o grupo, sem
contestações.
Kay nota que os rapazes entraram para o bar e suspira.
- Isto não acaba por aqui! – Kay avisa Makayla, apontado
para a porta do bar de seguida. – Vamos para dentro!
Makayla revira os olhos a Kay e segue para o bar, seguida da
comandante.
119
Able coloca-se, confortavelmente, atrás do balcão a preparar as
bebidas. Alastair e Ari pegam numa mesa caída no canto do bar e
colocam-na no meio do espaço mutilado pelo tempo e pelas
circunstâncias.
Todos se juntam em redor da mesa, olhando uns para os outros,
desconfortavelmente. Pode ser palpada alguma tensão entre Makayla
e os Agentes de Samsara, porém o seu irmão assobia
descontraidamente, enquanto faz malabarismo com as garrafas e
serve as bebidas.
Ziyon senta-se, calado, à mesa. As palavras não sendo o seu
forte, observa as pessoas; observa o ambiente; observa o que é
dito nas entrelinhas.
Able finalmente se junta à mesa, trazendo as bebidas numa
bandeja e passando-as entre o grupo.
- Saúde, amigos! – Saúda Able, tragando a bebida de imediato,
divertido. – Então, parece-me que precisamos de ter uma conversa.
Able olha ao redor da mesa e ri.
- Ninguém está a guardar ressentimentos, pois não?
- Cala-te, Able! – Makayla levanta-se e bate com as mãos no
tampo da mesa. – Gostava de saber porque é que Samsara anda atrás
de nós!
Kay segue o gesto violento de Makayla, marcando a sua
posição.
- Por acaso, Samsara encontrou-vos!
- E a minha dúvida é porquê! – Makayla desafia Kay com o
olhar. – Acho que é perfeitamente…
- Minha menina, - Kay interrompe. – Eu acho que…
- Calem-se! – Alastair grita, enfurecido, fazendo todas as
cabeças rodarem na sua direção. Vendo a reação que provocou,
Alastair apressa-se a reformular a sua explosão. –
Respeitosamente, calem-se.
Um olhar de desaprovação atravessa a mesa em direção a
Alastair. Kay está prestes a abrir a boca, quando Ari decide
intervir.
- Acredito que começámos com o pé errado. – Ari clareia a
sua garganta. – Com todos os tiroteios e armas apontadas uns aos
outros…
120
- Sem falar da entrada forçada…
Makayla admira as suas unhas, desinteressada pelas desculpas
do Agente. Able, por outro lado, parece divertido com a situação.
Ari decide ser diplomático, de forma a tentarem chegar a um
entendimento. Ziyon é o único que se abstém de participar.
- Tens razão, Makayla. – Ari cede. – Pedimos desculpa pelo
ato teatral. Ziyon, gostaria também de pedir desculpa, antes de
tudo, pelos acontecimentos na biblioteca.
Ziyon força um sorriso e acena com a cabeça.
- Não há problema… - Ziyon olha para Able e sorri,
timidamente. Able sorri de volta, fazendo Ziyon corar um pouco.
- Provavelmente deveria começar por nos apresentar
formalmente. Eu sou o Comandante Ari Black, da Agência Samsara. –
Ari aponta, descontraidamente, para Kay e Alastair. Ambos com cara
trancada e braços cruzados sobre o peito. – Estes são a Comandante
Kay Li e o Agente Alastair Vincent. Uma vez que esta missão é
gerida pela Comandante Li, passo-lhe a palavra.
Alastair ri-se, disfarçadamente, perante a formalidade das
apresentações.
- Obrigada, Comandante Black. – Kay levanta-se e adota uma
pose muito formal. – Eu também gostaria de pedir desculpa, em nome
da Agência, pelas ações que foram tomadas na vossa procura. Ainda
assim, foi a maneira mais rápida de vos encontrar.
- Existem sempre telefones. – Makayla sorri, sarcasticamente
para Kay.
Kay decide ignorar as investidas para a tirarem do sério e
continua.
- Eu entendo que sintam que os tenhamos tratado como
criminosos. Não foi essa a nossa intenção, de todo. – Pausando,
olha seriamente para Able, Makayla e Ziyon. – Nós estamos aqui
para vos dar um novo propósito. A Agência Samsara gostaria de vos
recrutar para a maior e mais importante missão das vossas vidas.
Unanimemente, todos se inclinam em direção à Comandante,
interessados no discurso da conivente mulher.
Cassia está em silêncio, ainda a olhar para a fotografia no ecrã.
Hayden olha para a jovem rapariga à procura de respostas.
121
Como é que esperam que se conforme com a situação a que foram
expostos, se cada passo que dão, só a confunde ainda mais? Apesar
da confusão, Cassia sabe ter que permanecer consciente nesta luta.
Não pode perder qualquer foco, pois é isso que espera o inimigo
e, agora, esta luta acabara de se tornar pessoal.
Cassia sente uma mão a pousar no seu ombro, o quente da pele
de outra pessoa fá-la sobressaltar-se.
- Talvez se me explicares o que se passa… - Hayden olha para
Cassia afetuosamente, tentado perceber o que vai na sua mente.
- Peço desculpa. – Cassia sussurra. – Eu não queria parecer
críptica…
- Como é que passaste logo à conclusão de que tínhamos sido
pirateados? – Hayden queria saber o porquê do súbdito câmbio no
ânimo de Cassia.
Cassia abre a boca para se explicar, mas é interrompida pelo
estremecer das paredes, com as portas do laboratório a abrirem-
se.
Laura rompe pelo espaço adentro, deixando Hayden e Cassia a
olhar, perplexos, para a sua fúria.
- Laura… - Cassia atira para o ar, a sua voz a esmorecer.
- Não vale a pena vires com falinhas mansas, Cassia. – Laura
mete de imediato um travão a Cassia e olha, sorrindo, para Hayden,
que olha para ela nervoso. – Olá, Hayden!
Hayden acena, desajeitado, para Laura e de imediato finge
uma qualquer ocupação pertinente e pretextos que não podem
esperar, deixando as duas sozinhas para se entenderem.
- Eu posso explicar! – Tenta Cassia desviar o assunto a seu
favor, mas pela cara de Laura, sem muita sorte.
- Bela tentativa, menina Miller. – Laura pausa e respira
fundo, colocando as mãos nos bolsos da bata e humedecendo os
lábios, antes de voltar a olhar para Cassia. – Devias estar a
descansar; não a trabalhar.
- Aconteceram algumas coisas que não podem esperar, Laura.
– Cassia cerra os olhos e suspira. – Pronto, está bem. Não foi
exatamente essa a ordem de eventos. Eu estava extremamente
entediada e fugi do recobro; mas agora temos realmente um problema
sério para resolver.
122
Laura olha para o chão, tentado afastar-se da contemplação
de Cassia. Cassia aproxima-se de Laura, lentamente; cada passo
cada vez mais custoso. Num movimento espaçado, Cassia brandamente
afaga o braço de Laura, mas esta retrai-se.
- Tens dores? – Laura pergunta bruscamente e Cassia engole
sôfrega, não antecipando a reação da médica.
- Um pouco. – Cassia responde, confusa, perante o
comportamento metódico. – Nada que não seja sofrível.
Laura aponta para a mesa e o seu tom é impaciente.
- Encosta-te. Deixa-me examinar-te.
Cassia encosta-se à mesa e olha para lá de Laura, sem saber
como deve reagir. Laura segue-a e sem muita conversa fiada,
levanta a t-shirt de Cassia, expondo o penso que cobre a incisão
cirúrgica. Cassia clareia a garganta e suspira nervosamente,
evitando o olhar de Laura.
As mãos frias da médica fazem Cassia sobressaltar-se perante
o toque familiar. Cassia fecha os olhos e cerra os lábios, atirando
a cabeça para trás, em frustração. Cassia não sabe quem Laura é
para ela; esse sentimento vazio e por identificar fá-la ficar
incomodada. Vê-se agora a ter que desviar o olhar da loira à sua
frente, por não conseguir controlar os olhares demorados e a
contemplação das linhas do corpo de Laura.
A compostura é-lhe difícil de manter, algo que não é natural
a Cassia, e isso assusta-a. Sabia que teria que cortar
radicalmente com qualquer tipo de sentimento recíproco por parte
da médica. No entanto, não sabia o que fazer perante a estranheza
de Laura, o que a perturba de maneiras incompreensíveis.
- A incisão parece estar a curar devidamente. – Laura fala
pausadamente, sem olhar para Cassia e retira uma seringa do seu
bolso. – Sem sinais de infeção, o que é o desejado. Vou-te dar
algo para as dores. Isso não significa que eu aprove este
comportamento, Cassia. Precisas de descansar, para o teu corpo
poder recuperar devidamente.
Cassia acena com a cabeça, sem se atrever a responder à voz
autoritária de Laura. Gentilmente, a médica acaricia o braço de
Cassia, à medida que a seringa entranha a sua pele. Cassia engole
em seco e respira fundo.
123
- Parece-me que não há necessidade de estares ligada às
máquinas, pelo que podes passar já esta noite no teu quarto. –
Laura afasta-se de imediato da jovem. - Afinal de contas, isto
não são tempos idílicos, nem isto é um hospital. Eu vou ver de ti
mais logo e espero encontrar-te a descansar, sim?
- Claro… - A voz de Cassia é quase impercetível.
Laura não dá oportunidade a Cassia de dizer mais nada e,
acenando para Hayden, que finge não assistir à cena entre as duas,
sai do laboratório tão depressa como entrou.
Cassia revira os olhos e suspira frustrada, dando um grito
abafado, e quase inaudível.
- Bem, esta cena foi incómoda de se ver… - Hayden cruza os
braços e olha para Cassia, empático perante a situação.
Cassia retrai o pensamento do que acabou de acontecer; ou
antes, do que não aconteceu e vai de encontro ao cientista que
espera por si.
As portas do laboratório voltam a interrompê-los.
- Alguém que ponha um cadeado naquela porta! – Cassia
reclama, antes de ver quem entrou no laboratório.
Alastair arrasta-se pelo laboratório adentro, seguido de
três novas caras. Ari e Kay seguem atrás. Alastair sorri ao ver
Cassia, mas a irmã fica tensa perante a cara familiar, não o
esperando tão cedo.
- Cass! Estás de pé! – Alastair não contém a sua alegria ao
ver a irmã a recuperar tão rapidamente.
- Al… - A expressão de Cassia, no entanto, é de preocupação;
olhando para Alastair primeiro e para a fotografia no ecrã, de
seguida.
Alastair certamente esperava outra receção e sem perceber o
que se passa, segue o olhar de Cassia para o monitor. Ao pousar o
olhar na fotografia projetada, a sua respiração para por segundos
e a emoção assalta-o.
Alastair olha confuso para Cassia.
- Porque é que a Leah está naquela fotografia, Cassia?
Alastair olha para Cassia, à espera de uma explicação, assim
como todos os restantes membros que se encontram no laboratório.
124
Alastair parece distante e emocional; o que era o que Cassia
temia.
Os novos recrutas mantêm-se perto da porta, esperando serem
apresentados; enquanto Kay e Ari se aproximam de Cassia e de
Hayden, tentando perceber a situação.
- O que é que aconteceu? – Kay apressa-se a tentar
descodificar a exaltação de toda a gente.
- Ainda estamos a tentar perceber exatamente o que se passa,
Kay.
- Como é que te sentes? – Ari, sempre o herói, apressa-se a
perguntar a Cassia.
- Eu estou bem. – Cassia não se demora com cortesias. – Temos
assuntos mais importantes com que nos preocupar.
Os três olham para o ecrã e suspiram em simultâneo;
entretanto, Makayla, sorrateiramente aproxima-se também e começa
a examinar a fotografia.
- Posso ver que sim… - Kay vira-se para os três novos
recrutas. – São encorajados a sentarem-se connosco à mesa, por
favor. – Volta-se novamente para Cassia. – Presumo que tenham uma
pequena ideia do que aconteceu.
Cassia acena afirmativamente e coloca-se ao lado de Hayden.
Alastair finalmente se senta junto dos demais, à mesa de frente
para os grandes ecrãs que cobrem a parede do laboratório.
Antes que Cassia se possa começar a explicar, Makayla assume
o rumo da conversa.
- Detesto ser eu a dizer-vos, mas a vossa informação é
errónea. A fotografia no ecrã não é de 1914, como assumiram, mas
de 1903. – Descontraidamente, Makayla afasta a cadeira e pousa os
pés na mesa.
Curiosa, Cassia olha para a rapariga loira, de caracóis
rebeldes a olhar para si presunçosamente e sorri-lhe.
- Por acaso, alguém acabou de piratear a nossa infraestrutura
e ainda não tivemos muito tempo para processar as fotografias que
despejaram no nosso sistema. – Cassia fita Makayla, que a desafia
com o olhar. – Eu chamo-me Cassia, já agora. E vocês são?
125
- Oh, claro. Eu chamo-me Makayla Summers. – Makayla
endireita-se e sorri, apontando para Able a seu lado. – Este é o
meu irmão Able. E, sinceramente, não apanhei o teu nome.
Makayla olha para Ziyon esperando uma apresentação.
- Eu sou o Ziyon. Ziyon Carter. Prazer em conhecer-vos. –
Ziyon volta a retrair-se e a observar os seus novos colegas.
- Prazer em conhecer-vos, também. – Cassia sorri, congruente
com as circunstâncias. – Queira apresentar-vos o nosso cientista,
Hayden. – Este acena alegremente para os novos membros. – A
verdade, é que não sabemos ainda o que fazer desta nova informação.
A única pergunta na minha mente, neste momento, é o que faz a Leah
em 1903, nesta fotografia. E, connosco, em 1914 na outra.
- Se me permitem fazer uma observação. – Ziyon olha
seriamente para a fotografia e todos atentam nas suas palavras. –
Pelo que nos foi dito, vocês pensam que esta equipa que perseguem,
tenta de alguma forma alterar o passado e erradicar a nossa cidade.
O problema é que mesmo viajando no tempo, ninguém nos garante que
seja possível mudar a nossa mente coletiva para uma nova versão
da História. O conhecimento é algo trapaceiro. Conhecer é
acreditar em algo que alguém disse, mesmo sendo baseado em dados,
em vez de conjeturas. Não será possível mudar a História sem fazer
com que todas as personagens históricas, deixem de fazer a
história; se me faço entender.
Todos ponderam as palavras de Ziyon e Makayla é a primeira
a falar.
- Ele tem razão. – Makayla sorri para Ziyon e volta a olhar
para Cassia. – Para além disso, eu penso que estas fotografias
sejam apenas uma provocação. Eles sabem que não os conseguiram
travar e estão a tentar dizer-vos que não o conseguirão fazer.
Olhem os sítios por onde eles já andaram ou tentaram exercer
influência. – Makayla aponta para as fotografias.
- Como assim? – Ari olha vexado para Makayla.
- Vocês viajaram para 1914, certo? Porquê 1914?
- Porque foi a pista mais coerente que tivemos.
Makayla ri-se perante as palavras incertas de Ari.
- Porque eles vos disseram para ir para lá, portanto. –
Makayla recosta-se na sua cadeira. – O início da Primeira Guerra
126
nunca teve nada a ver com a Áustria. Esta foi apenas usada como
uma desculpa. Em 1903, a Mão Negra invadiu o Palácio de Inverno e
assassinou o Rei Alexandre I e a Rainha. Mas, toda a gente se
parece esquecer disso e foca-se nos acontecimentos de Sarajevo. O
verdadeiro evento que acumulou ainda mais tensões para a guerra
foi o assassinato de Alexandre I. Os acontecimentos de Sarajevo
foram uma desculpa para a começar oficialmente.
- Isso é muito informativo. – Hayden olha para o grupo à sua
frente e de volta para o ecrã. – Porém, isso não explica isto ser
uma provocação.
- Por acaso, até explica. – Cassia suspira e pousa as mãos
na mesa, apoiando-se, ligeiramente. – Se o objetivo for fazer-nos
andar às voltas à sua procura, enquanto fazem o que realmente
pretendem. Nós não sabemos nada sobre a edificação de Quimera.
Não faz sentido algum irmos brandir armas para um cenário da
Primeira Guerra Mundial.
Able, aproveitando a distração de toda a gente, levanta-se
e começa a andar, descontraído, pelo laboratório.
- Isso é tudo muito bonito, pessoal. – Alastair não consegue
compreender do que falam. – Nada disso explica o que a minha noiva
está a fazer numa fotografia de 1903 e em 1914!
Makayla vai para responder a Alastair, mas atenta no seu
irmão a rodopiar pelo laboratório, sem supervisão.
- Able! Para de roubar porcarias!
Able vira-se prontamente para a irmã e finge uma expressão
de angústia perante a acusação.
- Fico ofendido com a suposição! – Able volta à mesa. – Eu
fui um ladrão e vigarista, nos bons velhos tempos! Enfâse no
pretérito perfeito, mana! Estou reformado. Dito isto, - Able vira-
se para Alastair. – Chamas-te Alastair, não é mesmo? Devo dizer-
te que o meio de uma guerra é o momento ideal para se forjar uma
morte, meu amigo.
Alastair olha incrédulo para Able.
- A Leah não o faria…
- Chegaram a encontrar o corpo?
Alastair olha para Able, mas não responde.
127
- Pois. – Able suspira e recosta-se, vaidoso, na sua cadeira.
– É por este tipo de situações que precisamos de um corpo para
declarar alguém morto. A tua noiva é uma pessoa desaparecida,
caro. Até agora, pois parece que a encontraram. Mais ou menos…
Alastair olha para Cassia, mas esta mal reage. Talvez, por
falta de saber como o fazer. Há coisas na vida para as quais não
estamos preparados, pois como é que alguém se prepara para o
impossível?
Sem grande alarido, Ari e Kay afastam-se da mesa e deixam os
jovens agentes para se conhecerem melhor e discutir ideias. O
ambiente está estranho, mas pacífico. Esperavam tudo, menos uma
ressuscitação.
Kay observa Ari atentamente; na sua ótica o Comandante está
a demonstrar algum nervosismo e, por muito que tente, Kay não lhe
consegue atribuir uma causa válida.
- O que pensas? – Ari pergunta, sem realmente prestar atenção
a Kay; antes, olha para a mesa e para os seus novos aliados.
- Penso que irão fazer uma boa equipa. – Kay afirma, com um
sorriso orgulhoso, desviando finalmente a sua atenção do homem a
seu lado.
- Eu estava mais a falar sobre todas as premissas e sobre a
noiva do Alastair.
Kay olha para Ari com desconfiança e fica ligeiramente
agitada perante a urgência de Ari em querer respostas para as
perguntas que todos têm.
- Não temos, claramente, informação suficiente. – Kay
suspira. – Não sabemos quem eles são; nem as suas intenções.
Ouviste a Makayla. E se tudo isto fizer parte do plano?
- Então e… - Ari hesita. – O que propões?
- Primeiro: - Kay aponta para a fotografia de Leah no ecrã.
– Precisamos de remediar aquilo!
Ari cruza os braços e olha para a fotografia da rapariga.
Kay vira-lhe as costas e sai do laboratório, sem mais uma palavra.
Na sua mente, as ordens estavam dadas: encontraram a próxima pista
para completar o puzzle. Agora, cabe aos seus novos recrutas fazê-
la sair da toca.
128
Capítulo 11
TRÊS SEMANAS DEPOIS
A escuridão a sala é interrompida pela luz que sai dos monitores
ligados à sua volta. Imagens da Agência Samsara vão e vêm dos
ecrãs; uma sombra observa atentamente os movimentos das pessoas
que vão aparecendo.
Cassia aparece na filmagem, encostada à porta do seu quarto;
a sombra inclina-se na direção da imagem. A luz do monitor ilumina
a sua tez de marfim, o seu cabelo castanho e os seus olhos azuis
escuros. O homem, já de meia idade, usa um fato muito formal e a
sua expressão é severa ao olhar para a rapariga nas imagens.
- Não sei, senhor. – Uma voz jovem levanta-se no meio da
escuridão. Leah, sentada numa secretária, a olhar para as imagens
de Alastair, num outro monitor, vira-se para fitar Rohan.
- É uma pergunta simples, Leah. – Rohan cruza os braços e
vira-se para a rapariga, instigando-a. – Achas que o teu noivo
vai tomar ação para te encontrar?
- Provavelmente. – Leah suspira. – Eu penso que ele nunca
deixou de tentar…
- E se ele for sucedido, sabes o que tem de ser feito, certo?
Não quero que este pequeno jogo interfira com os nossos planos de
maior magnitude. Nós temos um empreendimento para preservar. –
Rohan pousa uma mão no ombro de Leah, encorajadoramente. – Se ele
começar a interferir…
- Não se preocupe. – Leah interrompe. – Eu sei o meu lugar
e a minha missão.
Rohan sorri, arrogante e conivente; os seus olhos azuis a
ficarem pretos da tempestade na sua mente. Leah engole em seco,
pois sabe o que Rohan insinua e conhece bem demais os seus jogos
mentais. Se Alastair começar a interferir, o seu destino é a
morte; com Leah a segurar a arma.
129
- Tudo vem com um preço. – Rohan ajusta a gravata, sem
realmente precisar de o fazer. – Pergunto-me se estarás disposta
a pagá-lo.
Um flash de pavor atravessa a expressão da rapariga de traços
hispânicos.
- Senhor… - A sua respiração é rápida. – Espero que não
esteja a questionar a minha lealdade a Mithras.
Rohan solta uma gargalhada audível e divertida.
- Nada disso, rapariga. Apenas questiono se tens a coragem
para premir o gatilho sobre os teus amiguinhos.
Nervosamente, Leah cerra as mãos em punhos e vira-se para os
monitores, para onde não consiga ver o olhar de Rohan a transpassá-
la que nem facas.
- Pensei que sabia. – Leah respira fundo e coloca de novo a
sua cara de jogo. – O amor é uma fraqueza.
Leah sobressalta-se ao sentir a mão de Rohan no seu ombro
novamente.
- Espero que leves essa lição contigo. – Rohan vira-se para
sair da sala, que tanto se assemelha à de Samsara. – Tenho a
sensação que vais precisar dela mais cedo ou mais tarde.
Leah volta a engolir em seco e fecha os olhos, desolada e
mexe no seu anel de noivado. Ao voltar a abri-los vê a imagem de
Alastair e Cassia a falarem num corredor deserto de Samsara. Num
golpe rápido pega na caneca de café que está na secretária e
atira-a, violentamente ao monitor, que se estilhaça, levando na
escuridão a imagem que a assombra.
Alastair puxa uma rapariga pela mão pelas ruas de Quimera. Estava
quase na hora do recolher obrigatório dos habitantes da cidade. A
rapariga de longos cabelos pretos e olhos castanho e amáveis,
sorri para Alastair.
Chegados à porta da casa de Leah, Alastair beija-a ternamente
e pede-lhe que não entre. Retirando uma caixa do bolso, apresenta-
lhe um modesto anel de noivado. Leah parece incrédula.
- Sei que não te posso dar muito, Leah Cruz. Ainda assim,
dás-me o prazer de passar o resto dos meus dias a teu lado?
130
- Levanta-te, seu tolo. – Leah obriga Alastair a levantar-
se. As sirenes soam, o que significa que têm que entrar nas suas
respetivas casas, para a inspeção diária. – Tens que ir. Vais
chegar atrasado a casa.
- Não importa. Só vou quando disseres que sim.
Alastair sorri para a rapariga.
Cassia entra no laboratório silenciosamente. Há semanas que tentam
encontrar a mais pequena pista para encontrar Leah, mas sem sorte.
Os piratas informáticos não deixaram nenhum rasto eletrónico e
Cassia estava a ficar sem ideias.
Cassia repara em Makayla e Ziyon a falarem, muito cúmplices,
num canto do laboratório e sorri. O constrangimento social leva-
nos sempre a aproximarmo-nos de alguém, pois quer queiramos quer
não, somos humanos. Há sempre alguém com quem nos conseguimos
identificar, mesmo que seja a pessoa que menos esperamos.
Hayden dá de imediato pela presença de Cassia e corre para
ela.
- Olá, Cassia! – Hayden fala atabalhoadamente. – É com prazer
que te digo que o meu programa de reconhecimento facial resultou!
Dá cá mais cinco!
Cassia ri e faz a vontade ao rapaz sorridente, à espera do
cumprimento.
- E o que encontraste?
- Não sei se vais gostar do que encontrei para dizer a
verdade.
O semblante de Hayden muda e a preocupação é visível nos
seus olhos negros a fitar Cassia. Esta última engole em seco e
segue-o até ao computador, onde este dá um comando e um vídeo de
vigilância começa a ser reproduzido.
- O bom de Quimera é que todos estão constantemente a ser
vigiados.
- Bom é discutível. – Cassia desvia o olhar para o vídeo.
Nas ruas chuvosas de Quimera uma silhueta esguia de capuz
preto vagueia. Uma carrinha branca para tão rápido como apareceu
na imagem e a silhueta dirige-se a ela, mas antes de entrar olha
para trás e a imagem para.
131
- Leah… - Cassia suspira. – Quando é que isto foi gravado?
- No dia em que deram Leah como morta. – Hayden tem uma
expressão tristonha.
- E o chip dela? Não deveria estar ativo? –
Inconscientemente, Cassia leva a mão ao pescoço, onde se encontra
o seu chip de identificação.
Hayden olha para a rapariga à sua frente e depois para o
chão. Incapaz de dar más noticias a Cassia, toma coragem para
falar.
- Eu procurei o número de identificação dela, Cassia. Mas
foi desativado…
Cassia franze o sobrolho.
- Como é que isso é possível? Retirar o chip é letal. Está
ligado ao nosso sistema nervoso…
- Ele não foi retirado, Cassia. – Hayden olha para a porta,
incerto de dever ou não divulgar a informação. Antes de dizer mais
uma palavra, o rapaz pega na mão de Cassia e leva-a para um canto
escuro do laboratório, onde nenhuma câmara ou escuta os possam
ver ou ouvir. – O chip foi apagado.
- Como? – Cassia parece confusa.
- Por alguém com acesso privilegiado. – Hayden olha por cima
do ombro, medroso. – Só alguém com um elevado cargo dentro do
governo de Quimera tem o poder de desativar os chips, Cassia. Como
fazem, por exemplo, para os Agentes de Samsara.
Cassia deixa cair os ombros e olha através de Hayden,
incrédula.
- O que é que me estás a querer dizer? – Cassia não quer
entrar em especulações.
- O desaparecimento da Leah pode ter sido um trabalho
interno.
- Mas, afinal, para quem está ela a trabalhar?
Cassia vê Hayden a afastar-se e coloca as mãos na cintura,
olhando para o chão, pensativa. Cada vez mais, pensa que o que
pensa saber pode ser um mero ato imaginativo e sem significado.
Tudo se confunde e tudo se funde em coisas sem explicação e
implausíveis. Cassia fecha os olhos, recusando-se a contemplar o
significado da nova informação, pois quanto mais olha menos vê.
132
Makayla chama Cassia para a mesa e todos se juntam rapidamente a
ela e a Ziyon. Parece que todo este tempo têm andado às voltas
atrás da própria cauda; Cassia fica esperançosa de que Makayla
tenha alguma novidade que os vá ajudar.
- Eu e o Ziyon temos estado a falar. – Makayla começa e olha
fixamente para Cassia enquanto fala, ignorando o seu irmão a andar
de um lado para o outro a brincar com uma bola de ping-pong. – Há
uma coisa que não faz sentido.
- Só uma? – Able ri e atira a bola à parede, voltando a
apanhá-la.
- Porque é que os comandantes querem que nos concentremos
tanto no início do século XX? Quimera é uma cidade que foi
construída no apogeu do início da Terceira Guerra Mundial. Se o
que estes piratas, ou como lhes querem chamar, querem destruir
Quimera, porque não apenas impedi-la de ser construída? – Makayla
olha para Cassia e esta franze a testa e aperta a cana do nariz,
tentando encontrar a lógica no meio do absurdo. – Porquê todo este
teatro?
Cassia senta-se à mesa e cobre a cara com as mãos, frustrada.
- Desde quando é que as pessoas precisam de uma razão para
fazer seja o que for? – Able senta-se e cruza as pernas. – Tudo é
uma questão de poder. O poder produz! Todas as relações e decisões
que tomamos são baseadas no poder.
- Durante a Primeira Guerra todos os governos deram como
desculpa para a mesma a segurança nacional, mas na verdade o que
queriam era expandir o seu território. – Makayla senta-se e olha
para Ziyon.
- A guerra tornou-se numa indústria e numa grande parte da
economia de todos os países; um verdadeiro complexo. – Ziyon
termina o pensamento de Makayla.
Makayla recosta-se e faz a pergunta na mente de todos, mas
que ninguém se atreve a verbalizar.
- E se o objetivo destes vilões não é acabar com Quimera,
mas sim reinventar o seu papel no mundo? – Makayla cruza o olhar
de Cassia. – Basta mudar quem detém o poder; o resto lhe segue.
133
Cassia mantém o silêncio e os seus pensamentos guardados;
algo lhe diz que a situação é um tanto mais complexa e a vida é
apenas um grande mistério nos dias que correm.
O telemóvel de satélite rompe o silêncio da sala dos monitores de
Samsara e uma sombra pega nele, mas não atende. Um grunhido é
audível por entre a escuridão e a porta abre abruptamente,
iluminando Ari, sentado à secretária.
- Pedimos desculpa, Comandante. – Cassia sorri e olha para
Ari esperando por um sinal para entrar. – Estamos a interromper?
- Claro que não, Cassia. – Ari sorri e levanta-se da sua
cadeira, descartando o telefone. – Estava apenas a adiantar
trabalho. Precisam de alguma coisa?
Alastair olha para Cassia antes de responder. Não sabe o que
se passou ao certo e, de certo modo, está curioso.
- Penso que precisamos de falar com o Ari e a Kay. – Alastair
responde sucintamente.
Ari mostra admiração.
- Claro. Mas aconteceu alguma coisa? A equipa não se está a
entender? – Ari ri, tentando fazer uma piada.
Cassia olha para Alastair e suspira. A sua desconfiança
perante tudo e todos, aumenta a cada segundo.
- Onde está a Kay? – Cassia atira, sem se lembrar das boas
maneiras.
- Numa reunião. – Ari olha a jovem com alguma reserva.
Alastair fica desconfiado de imediato; nunca confiara em Kay
e tudo estava a soar demasiado estranho para ele. Mesmo em Cassia
ele consegue ver alguma hesitação que não estava lá antes.
- Fazemos assim. – Ari continua. – Porque não vão almoçar e
à tarde encontramo-nos no laboratório. Que tal?
Cassia acede ao pedido e vira as costas, saindo prontamente
da sala e, sem grandes cerimónias, Alastair segue-a.
O telefone volta a tocar; desta vez, Ari atende.
O refeitório comum de Samsara não é muito diferente daquele que
se encontrava em Quimera. A sala ampla está cheia de Agentes;
caras desconhecidas que se confundem. As mesas compridas estão
134
repletas de comida, pronta a ser partilhada: toda proveniente do
pouco cultivo que ainda se consegue fazer em Quimera e de
laboratórios especializados em genética alimentar.
Cassia e Alastair entram no refeitório e procuram por caras
familiares. Do fundo da sala, Makayla chama a atenção dos dois,
ao vê-los parados na porta. Sem muitas cerimónias, Cassia e
Alastair alcançam a mesa e sentam-se nos lugares que foram
reservados para os dois.
Able é o primeiro a quebrar o silêncio.
- Então, os patrões, que disseram? – Pergunta, levando uma
garfada de puré de batata à boca.
- Nada. – Responde Alastair, enchendo o prato de comida. –
Reunimos depois do almoço. A Kay está desaparecida em ação.
Alastair revira os olhos e todos olham para ele.
- O que é que queres dizer com isso? – Ziyon olha para
Alastair, confuso.
- O Al pensa que a Kay é a raiz de todos os males… - Cassia
ri, não dando hipóteses a Alastair de responder.
Makayla tira os olhos do livro que está a ler e fita Cassia
com um sorriso malandro.
- Ela é pouco agradável, sim. Ainda assim, também eu o sou.
– Makayla ri. – Mas até agora, não tenho queixas a fazer.
Alastair olha para Makayla, sem emoção e agita o garfo no
ar.
- Vá lá! Não acham estranho todos os telefonemas secretos e
reuniões?
Hayden parece comprometido, perante o tom da conversa.
- A Kay não é má pessoa.
Todos param de comer e olham para Hayden, que continua a
cortar os vegetais que tem no prato.
- Ela pode ter uma personalidade difícil. – Hayden continua
a sua defesa. – Mas isso é porque ela quer resolver tudo isto e
salvar o máximo de pessoas que conseguir. Não é nada pessoal.
A mesa fica silenciosa de repente; ninguém se atreve a
ripostar. As mesas à volta do refeitório parecem competir para
ver quem faz mais barulho, mas o grupo de jovens come, agora, sem
conversas.
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Cassia brinca com os vegetais que tirou para o seu prato,
sem grande apetite, e parece absorta em pensamentos. Uma mão a
pousar no seu ombro volta a chamá-la para a realidade. Quando olha
para ver quem é, depara-se com uma Laura sorridente.
Suspirando levemente, Cassia força um sorriso e levanta-se
prontamente. Laura acena ao resto da mesa e puxa Cassia para uma
conversa privada.
Na mesa, todos fingem comer, mas o seu interesse é claramente
as duas raparigas a conversar ligeiramente afastadas da mesa.
- Olá, tu. – Laura sorri e acaricia o braço de Cassia. – Só
quero saber como te tens sentido. Não posso demorar; tenho um
paciente à espera noutra Agência.
Esta conversa tem um tom diferente para Cassia; desde a sua
discussão com a médica, que as suas conversas têm sido mais
distantes e metódicas. Todavia, Cassia não pode deixar escapar a
nova informação que Laura lhe deu: existem mais Agências.
- Espera. – Cassia tenta retirar mais informação desta
conversa. – Outra Agência?
Laura desvia o olhar de Cassia.
- Não é o meu lugar para discutir contigo esses assuntos,
Cassia.
- Claro. – Cassia compreende a posição de Laura e não
insiste, decidindo responder às suas questões, apenas. - Eu estou
bem, Doutora. Não tenho queixas.
- Estares a alimentar-te já é um bom sinal.
Cassia olha para o seu prato com culpa.
- Por acaso não estou. – Cassia decide ser franca. – Mas a
falta de apetite tem mais a ver com o psicológico, do que
propriamente com o físico.
Laura sorri docemente. Cassia pergunta-se o porquê da súbita
mudança de atitude, mas sabe melhor do que fazer a pergunta a
Laura; principalmente, por medo do que poderá ser a resposta.
Na verdade, Cassia está a ficar farta de andar às voltas em
círculos com a médica, mas também não tem certeza do que quer de
Laura. Talvez primeiro seja sábio afugentar os seus demónios e só
depois correr atrás do que quer que seja que pretende. Cassia
cruza os braços, tentando criar alguma distância entre as duas.
136
- Se precisares de falar sabes onde me encontrar, Cassia.
Um agente para à porta do refeitório e chama a atenção de
Laura, que prontamente se despede de Cassia e segue o seu caminho.
Cassia retorna ao seu lugar na mesa e todos tentam aparentar
estarem concentrados a comer; mas Makayla sorri implicitamente
para Cassia.
- O que foi? – Cassia olha para todos, tentando perceber o
porquê dos sorrisos patetas nas caras dos seus novos amigos.
- Tu e a doutora andam a brincar aos médicos, hum? – Makayla
olha para Cassia, cúmplice. – Pessoalmente, eu aprovo! Ela é
interessante, de uma perspetiva estética…
Repentinamente o foco deixa de ser Cassia; todos olham em
admiração para Makayla perante o comentário tão sincero e
inesperado.
- Que foi? – Makayla dá um golo na sua bebida. – Eu também
nunca fui a um museu; mas isso não significa que não consiga
apreciar arte!
Todos se riem e continuam a almoçar divertidos. Cassia fica
ligeiramente atrapalhada e corada.
- Oh, vá lá! Calem-se…
Kay espera, sozinha no laboratório, sentada na mesa redonda a
olhar para o vazio. Uma pilha de pastas está pousada à sua frente
e um expositor de roupa está coberto com um pano branco no meio
do laboratório.
Kay está emergida nos seus pensamentos, os dedos a tamborilar
no tampo da mesa, quando Ari entra sorrateiro no laboratório. O
tamborilar para abruptamente, quando Kay sente a presença do
Comandante atrás si.
- Chegaste, finalmente. – Ari sorri, como se nada se
passasse. – Acho que os miúdos têm alguma coisa para falar contigo.
- Sim, claro. – Kay não presta atenção ao que Ari diz. –
Onde estão eles? Tenho um comunicado.
Ari olha com suspeita para Kay.
- Estás bem? – Os olhos de Ari semicerrados a fitar a
Comandante. – Pareces distraída. A reunião não correu bem?
137
- Estou bem. – Kay evita responder à pergunta. – Apenas
preciso da equipa aqui. Tenho ordens superiores para serem
executadas o mais prontamente possível.
Kay parece dessatisfeita com as suas palavras.
- E tu não concordas com tais ordens. – Ari apanha Kay
desprevenida. Claramente a mulher não queria deixar transparecer
a sua insatisfação para com o sistema.
- Digo-te apenas que os novos acontecimentos não deixam a
desejar. – Kay ajeita o seu impecável uniforme. – Afinal não temos
assim tanta liberdade como pensávamos ter para esta missão.
Ari prefere não comentar. De todo o modo, os dois são logo
interrompidos pela equipa, a gargalhar e a brincar, a entrar pelo
laboratório dentro. Kay e Ari ficam tensos e olham para os jovens
a vir na sua direção.
Cassia para, apercebendo-se do ambiente na sala; os restantes
jovens não se apercebem de nada e continuam a falar e a rir.
- Está tudo bem? – Cassia cruza o olhar inquieto de Kay, mas
o que lhe chama a atenção é a pilha de pastas sobre a mesa.
Kay volta a ajeitar o seu uniforme, apesar de não precisar
de o fazer; tenta apenas calcular bem as suas palavras.
- Sim. Está. – Kay força um sorriso. – Por favor sentem-se.
Temos trabalho a fazer.
- Porquê tanta seriedade? – Able pergunta levianamente,
sentando-se no seu lugar e atirando com o seu chapéu para a mesa.
Todos tomam o seu devido lugar à mesa e esperam pela
explicação de Kay. O silêncio impera enquanto Kay distribui as
pastas por todos; Ari cruza os braços e observa a Comandante,
curioso acerca do que a pasta contém.
- Peço a vossa compreensão, antes de tudo. – Kay começa
pavimentando o caminho do laboratório de um lado para o outro. –
Eu sei que trabalharam incansavelmente durante estas três semanas.
O vosso esforço é reconhecido. No entanto, temo que foi em vão.
- O quê? – Makayla levanta-se rapidamente, surpresa.
Kay respira fundo antes de continuar.
- Peço-vos que abram as vossas pastas.
Um a um, abrem a pasta que Kay colocou à sua frente.
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Cassia, de cara trancada, fecha abruptamente a pasta e olha
para Kay e Ari.
- O que é que isto significa? – Cassia parece confusa.
Kay engole em seco e olha para Ari, que lê atentamente o
ficheiro.
- O que é suposto fazermos com esta informação? – Cassia
insiste. – O navio Normandie?
Kay para finalmente e encara toda a equipa, respirando fundo
e mantendo a sua pose altiva.
- Tenho ordens superiores! – Kay mantém um ar sério e
indecifrável. – A equipa vai para Nova Iorque, em 1942. Esperemos
que para parar um homicídio em massa…
Um a um, todos posam o ficheiro em cima da mesa e olham para
Kay, surpresos com os últimos desenvolvimentos.
139
Capítulo 12
O ambiente no laboratório está de cortar à faca. Todos esperam
por uma explicação da Comandante. Por fim, Cassia faz a pergunta
na mente de toda a gente.
- Há alguma coisa que estão a negligenciar dizer-nos? –
Cassia finca os pés no chão e fita os Comandantes acusadoramente.
– Vocês sabem quem são estas pessoas? Porque de algum modo,
continuam a mandar-nos para o sítio certo, à hora certa…
Alastair olha para Cassia e apercebe-se de que ela poderá
estar certa.
- Quem são estas pessoas, afinal? – O tom de Alastair é
ríspido e alto. – Mais importante, o que fizeram com a Leah?
Ari parece comprometido e olha para Kay, estudando-a. O
semblante da Comandante parece impenetrável, mesmo perante as
acusações de que é alvo. Ari pousa calmamente o ficheiro e inclina-
se sobre a mesa, em direção à pálida mulher.
- Os miúdos têm razão, Kay. – Ari contrai o maxilar. – De
onde veio esta informação? Se sabem tudo isto, para quê todo este
espetáculo?
Kay olha para Ari enfurecida; os seus olhos a projetar
punhais.
- Chega! – Kay deixa cair o seu ar coleto e sereno, alteando
a voz. – Não importa de onde vem a informação! Isso é para eu
saber. Não vocês. Estão aqui para seguir ordens! Não para as
contestar! A única coisa que precisam de saber é que Charles
Collins pode ter sido um espião dos nossos inimigos, no incêndio
que tomou lugar no cais de Nova Iorque, em 1942. Parece que estes
novos jogadores que temos em campo, querem aquecer as coisas. É
tudo o que eu sei.
- Acalmem lá os cavalinhos! – Makayla, de mãos nos bolsos,
respira fundo e revira os olhos perante o tumulto repentino no
laboratório. – Não estou a entender o que se passa! Porquê o salto
repentino no tempo? Passámos da Primeira Guerra para a Segunda
assim do nada? Alguém consegue perceber o que esta gente pretende?
- Quimera foi construída como um recurso de guerra. – Ziyon
olha para o vazio e apoia o queixo na mão. – Eles estão a intervir
140
nas maiores Guerras que o mundo viu… Certamente não é em vão.
Ambas as Guerras definiram o clima do mundo e fizeram emergir
novas potências e novas ameaças. Imaginem o que um ataque em solo
americano, em nome do Führer iria fazer ao mundo. Iria certamente
abalar o poder hegemónico dos Estados Unidos.
- Queres dizer que o que eles pretendem é contrabalançar o
poder? Com que motivo? E como é que a nossa cidade se encaixa
nisso tudo? – Cassia vira-se para Ziyon e Makayla, tentando
perceber o que eles pensam.
- Simples. – Makayla senta-se e coloca os pés em cima da
mesa, casualmente. – O Able tem razão: tudo é acerca de poder! O
poder produz tudo à nossa volta. Mas ele é difuso também. Ataca o
maior detentor de poder no mundo e o tom muda. Quimera é uma
produção americana. Nem todas as nações concordaram com a
construção da nossa Arca de Noé.
Able ri-se e olha para Cassia, divertido.
- Desde quando é que as pessoas precisam de uma desculpa
para fazer seja o que for, princesa?
- Detesto rebentar a vossa bolha intelectual, mas quem é
este gajo, Charles? – Alastair aponta para o ficheiro, aborrecido.
- Charles T. Collins deu um depoimento acerca dos
acontecimentos no navio, na altura em que o incêndio começou.
Todavia, o depoimento não fez o mínimo de sentido e tinha falhas
por todos os lados. Por isso, nunca se percebeu muito bem o que
aconteceu naquele dia. – Makayla cruza os braços e recosta-se na
cadeira a estudar Alastair. A verdade é que ela e o rapaz começaram
com o pé errado. Parece que o intelecto de um, não cruza com o do
outro. Ainda assim, Makayla não deixa de lhe achar uma certa
piada.
- Neste momento não existem certezas de nada. – Kay volta a
pronunciar-se. – Apenas que precisamos de impedir a cena de tomar
novas proporções.
Kay dirige-se ao expositor no meio da sala e, num gesto
rápido e preciso, retira o lençol, expondo uma variada escolha de
roupas de época.
- E desta vez estamos preparados.
141
Kay sorri e Ari cruza os braços, admirando a tenacidade da
Comandante.
Alastair senta-se num canto do laboratório, enquanto os restantes
membros da equipa se preparam para a missão. Pensativo, enterra a
cara nas mãos. Sem perceber como chegaram aqui; sem perceber como
chegaram a este ponto. Como é que se encontra conforto, no meio
da devastação?
Makayla apercebe-se da falta do rapaz e observa-o por
instantes. Silenciosamente, senta-se ao lado de Alastair. Por
momentos, deixa-se ficar em silêncio, escolhendo as suas palavras.
- A culpa não é tua, Alastair. – Makayla sorri ternamente
para o rapaz a seu lado, que se apercebe da sua presença.
- Ela era apenas uma rapariga comum e amável. – As lágrimas
contra que luta, fazem-lhe um nó na garganta. – Não entendo…
- Às vezes são as pessoas de quem menos esperamos, que mais
nos surpreendem. Pela positiva ou negativa.
Makayla entrelaça as mãos e olha para os seus colegas a
escolherem a roupa e a falarem entre si.
- Não sabes o que aconteceu. – Makayla olha novamente para
o rapaz. – Se calhar a Leah não teve escolha…
- Houve alguém que disse que temos sempre uma escolha. Mesmo
entre duas más opções. – Alastair está irredutível.
Makayla ri, suavemente. Um momento de silêncio envolve-os e,
num momento de inconsciência, Makayla agarra a mão de Alastair,
forçando-o a olhar para ela.
– Se calhar, não queres saber a sua outra opção.
Batendo gentilmente na perna de Alastair, reconfortando-o,
Makayla levanta-se e volta para o grupo. Alastair olha para a
loira, que se afasta e suspira.
Able, de mãos nos bolsos e voz átona aproxima-se de Alastair.
- É complicado, pá!
- O que queres dizer com isso? – Alastair levanta-se e olha
atentamente para Able.
- Olha, companheiro, eu entendo, está bem? – Able olha na
direção de Makayla. – As pessoas que amamos conseguem ser um peso,
142
por vezes. E a vida é uma coisa parva. A tua namoradinha claramente
fez uma escolha. Talvez te devas preparar para fazeres a tua.
Able começa a afastar-se de Alastair, mas antes de o deixar
sozinho, volta a encará-lo.
- Ainda a amas? – A pergunta apanha Alastair desprevenido e
este olha na direção de Makayla, sem se aperceber.
Able espera por uma resposta, mas ao se aperceber de que
Alastair hesita, ri.
- Pois é, amigo. Deve ser exaustivo andarmos sempre às voltas
sobre nós mesmos. – Able aproxima-se de Alastair e olha para a
irmã e de volta para o rapaz. – Queres um conselho? Deixa o passado
onde ele está. Pode ser que te surpreendas.
Alastair olha para Able e deixa-o partir sem lhe responder.
A culpa começa a apoderar-se dele, pois não sente a falta de Leah.
Há bastante tempo que não pensava nela e nem se lembra de como se
sentia ao lado da rapariga. Fechando os olhos, pergunta-se se foi
tudo por comodidade, esperando não ter que voltar a enfrentá-la.
A equipa, vestida a rigor, para em frente da imponente máquina.
Os nervos são palpáveis entre os seus membros mais recentes. Kay
e Ari, lado a lado, cruzam os braços e esperam que todos se
acalmem.
Hayden dirige-se para o seu lugar e espera que a ordem seja
dada.
- Penso que estamos prontos. – Kay olha para Cassia, pedindo
confirmação. – Cassia sentes-te capaz de avançar com esta missão?
- Claro. – Cassia suspira. – Estou pronta e já tive alta
médica.
- Muito bem! – Ari bate em seco com as mãos, no ar. – Desejo-
vos a todos muita sorte. Sabem o que têm a fazer.
- Foram bastante expressivos no briefing, Comandantes. –
Makayla sorri sarcasticamente.
- Não tentem ser heróis. – Kay olha para Cassia. – Deixem
que tudo se passe como na linha temporal original. O vosso papel
é encontrar o Collins e impedir extrapolações; sem chamar as
atenções.
143
Alastair estremece com estas palavras e agarra a mão de
Cassia com força.
- Por favor, certifiquem-se uma última vez que as vossas
braceletes estão a funcionar! – Hayden grita do fundo do
laboratório.
Todos obedecem e não demora muito até que as portas da
máquina abram e a luz estale no ar. O barulho ensurdecedor entra
pelos ouvidos de todos, fazendo-os encolher-se por segundos.
Ziyon olha fascinado para a máquina e sorri. Esperaram toda
uma vida por uma segunda oportunidade para terem paz e, por
momentos, Ziyon acredita que estão perto de a agarrarem.
- Estamos prestes a viajar no tempo… - Ziyon não acredita
nas suas próprias palavras. Mas, por vezes, é mais fácil acreditar
na loucura, do que na realidade. Isto certamente parece-lhe uma
grande loucura.
Alastair e Cassia já encaram esta situação como rotineira,
pelo que as suas mentes estão noutro lugar.
Um a um, passam a porta e o aparelho de descontaminação.
Lentamente as portas fecham-se, fazendo-os emergir na escuridão.
Não demora muito para as sombras serem engolidas pela luz do sol
brilhante, que passa entre os arranha céus da cidade nova-
iorquina.
O beco, na quadragésima segunda rua, da cidade de Nova Iorque
oferece o prefeito local de aterragem para os jovens viajantes.
Alastair e Cassia, já habituados à sensação encantadora de
viajar entre o tempo e o espaço, começam de imediato a tomar nota
do seu novo ambiente.
Ziyon olha à sua volta, maravilhado.
- Vocês acreditam que acabámos de fazer isto? – Ziyon olha
para Able, tentando perceber se apenas ele se sente entusiasmado
com a sua vida neste momento único.
- Isto é o meu sonho tornado realidade! – Makayla salta de
entusiasmo. – Estamos a experienciar a História em primeira mão!
Able agarra os joelhos e respira fundo.
- Mais alguém se sente um pouco tonto e nauseado? – Able
reprime o vómito. – Sou só eu?
144
Makayla atende de imediato aos cuidados do irmão e Ziyon
ajuda-a.
Cassia atenta na rua à frente do beco e suspira, entediada.
- Claro que tínhamos que vir parar à rua mais movimentada da
cidade.
Alastair olha para Cassia, cruzando os braços.
- Algum plano brilhante, Cass?
- Eu acredito veemente em ter um bom plano A, para não termos
que recorrer ao plano B.
- E quais são eles, exatamente? – Alastair arqueia uma
sobrancelha.
- Estou a trabalhar neles, Al. A sério que estou…
Alastair e Cassia viram-se para os colegas e suspiram em uni
som ao se depararem com a cena que decorre no beco. Able está
debruçado atrás de um contentor, maldisposto, enquanto Makayla e
Ziyon o tentam confortar. Olhando um para o outro, atiram a cabeça
para trás, em desespero.
Os cinco jovens adultos atravessam a rua em busca do Cais 88.
Vestidos a rigor para a época, passam despercebidos, ainda que
pareçam um pouco abismados com os arranha céus e com a energia
das ruas de Nova Iorque.
Cassia, por sua vez, parece absorta em pensamentos. Sempre
fora o seu sonho sair de Quimera e ver o mundo. Nunca pensou que
o fosse ver nas circunstâncias presentes. Cassia olha para
Alastair a seu lado, que observa tudo atentamente, com um sorriso
triste, mas esperançoso. Custa-lhe pensar no que acontecerá se
encontrarem Leah. Custa-lhe pensar na reação de Alastair,
principalmente, pois ainda não percebeu o que se passa na sua
cabeça.
- Alguma ideia brilhante? – A voz do irmão chama-a de volta
à realidade.
Cassia para e olha para trás, reparando que Able embatera
contra alguém e pedia desculpa, agora, atabalhoadamente. Sem
grande sucesso, já que o homem nem voltou a olhar na sua direção;
apenas seguiu o seu caminho.
145
- Não. – Cassia suspira, desapontada pela falta de um rumo.
– Parece que temos que improvisar.
- Com sorte, é o que fazemos melhor. – Alastair ri.
Able aproxima-se de Makayla e Ziyon, com um sorriso
comprometedor.
- Alguém quer comer alguma coisa? – Able pergunta,
descontraído, olhando ao seu redor.
- Estás a esquecer-te da parte em que por estas bandas se
usa dinheiro, maninho. – Makayla cruza os braços e ri-se. – Coisa
que nos alude.
Uma carteira é agitada no ar, em tom de troça.
- Onde arranjaste isso? – Ziyon pergunta escandalizado. Able,
por sua vez, começa a examinar cuidadosamente o pequeno pedaço de
couro preto.
- Eu sou um ladrão! É o que eu faço… Deixo as pessoas mais
leves. - Able lança um sorriso charmoso e jocoso, na direção de
Ziyon. – Vamos ver quem é que temos aqui.
Cassia e Alastair aproximam-se, curiosos.
- Antropologicamente falando, roubar pode ser visto como um
rito de passagem em muitas culturas… - Ziyon tenta justificar as
ações de Able.
- Exato! Obrigado! – Able dá uma pancada leve no ombro de
Ziyon e logo se apressa a abrir a carteira. – Vladimir Yur…
- Vladimir Yurkevich? – Makayla arranca a carteira das mãos
de Able, assim que ouve o nome conhecido.
Cassia revira os olhos e ri sarcasticamente.
- Só podem estar a brincar comigo.
Alastair olha confuso para as duas raparigas.
- Quem é esse, agora?
- O arquiteto do navio que está prestes a afundar. – Ziyon
coloca as mãos nos bolsos do casaco e arqueia as sobrancelhas,
encolhendo os ombros para Alastair.
Alastair fica surpreso e leva as mãos à cintura.
- O fogo começou às duas e meia da tarde, estou certa? –
Cassia olha para Makayla para confirmação; logo ficando com uma
expressão pensativa e absorta do mundo. – Ganha aquele que estando
preparado, espera, para que possa apanhar o inimigo desprevenido.
146
Ziyon semicerra os olhos e vira-se para Makayla, a seu lado.
- Porque é que ela está a citar Sun Tzu?
- Vá-se lá saber… Ele, realmente, escreveu um grande manual
de estratégia militar. – Makayla cruza os braços e olha para Ziyon
com preocupação. – Por outro lado, a China perdeu muitas guerras
depois dele escrever a “Arte da Guerra”.
Todos esperam pelo próximo passo de Cassia, mas esta apenas
olha em volta.
- Se eu quisesse cometer um homicídio em massa, qual seria
a minha primeira preocupação? – Cassia pergunta retoricamente.
Alastair cruza os braços e fica também pensativo.
- Esperar que a multidão se junte; preferivelmente num lugar
seguro; no entanto perto o suficiente para a poder vigiar e agir
depressa. – Alastair fala sem olhar para ninguém em específico;
como se estivesse a proferir um monólogo. – E, claro, perto de
uma saída estratégica, para poder fugir sem grandes esforços.
Cassia olha para Alastair e, repentinamente, a sua expressão
muda e ela começa a correr.
- Eu sei onde eles estão! – Cassia grita, na distância,
fazendo com que todos, atrapalhados pela brusquidão dos
acontecimentos, comecem a correr para a apanhar.
Able fica para trás, contrariado.
- Então, mas isso significa que não vamos comer?
Suspirando, começa a correr também.
Um armazém escuro e antigo parece abandonado. A equipa entra
cuidadosamente e tentando não dar nas vistas. Cassia e Alastair
são os primeiros a passar pela porta enferrujada e, de imediato,
sem ser preciso comunicação verbal, retiram as suas armas dos
coldres.
Prosseguem-lhes Makayla e Able, que lhes seguem o exemplo e
retiram as suas armas. Ziyon fica para trás e recusa-se a andar
armado, embora o ambiente do armazém convide quem entre a fazê-
lo.
Não há muito que ver, para além da escuridão, pelo que Cassia
se apressa a retirar uma pequena lanterna do seu bolso. A escuridão
deixa-a desconfortável; é onde os monstros se escondem. Mas o que
147
a assusta mais é pensar que quando a luz engolir as sombras, esses
monstros possam ser apenas o seu reflexo num espelho.
Makayla tenta alcançar Cassia e sussurra ao falar.
- O que é que te faz pensar que eles estão aqui, ao certo?
Cassia olha para Makayla, mas recusa-se a parar.
- Lembrei-me de uma foto do ficheiro…
Alastair apanha a conversa e, notando a confusão na expressão
de Makayla, tenta completar a resposta da irmã.
- Ela tem uma cena de memória… - Alastair encolhe os ombros
e continua.
Makayla para e olha para os dois irmãos a afastarem-se, com
as mãos na anca e a sobrancelha arqueada.
- E, no entanto, nada do que disseram respondeu à minha
pergunta.
Revirando os olhos, Makayla continua no alcance da restante
equipa, agora com Ziyon no seu flanco direito. Repentinamente um
estrondo rebenta no ar. A porta do armazém fecha-se e a pouca luz
que por lá entrava, é invadida pela escuridão do interior frio do
armazém velho e enferrujado. Todos são forçados a parar. Um a um,
viram-se, tentando perceber o que forçou a pesada porta de ferro
a fechar.
- Provavelmente foi o vento, certo? – Ziyon treme que nem
varas verdes.
Able aparece por detrás de Ziyon e sussurra-lhe ao ouvido,
assustando-o.
- Não havia vento, lindo! – Able gargalha, divertido.
Cassia aponta a lanterna para a entrada, mas tudo o que se
vê são velhos panfletos a cobrir o chão; sem vestígios de uma
sexta alma nas proximidades.
- Nada de entrar em pânico, por favor. – Alastair tenta
instaurar a calma entre o grupo de jovens. – Não passa de um velho
barracão! Vamos ouvir barulhos esquisitos, certamente.
Ziyon não se convence e engole em seco.
- Claro. Porque nada de mau alguma vez aconteceu em armazéns.
– Ziyon olha para Alastair. – Especialmente na época dourada da
máfia.
148
Todos decidem ignorar os medos de Ziyon e continuar a
revistar o armazém, com Cassia a tentar iluminar o caminho com a
pequena lanterna.
Conseguem dar apenas mais cinco passos, antes da lanterna
avariar, deixando-os completamente cegos e vulneráveis.
- Merda… - Cassia abana a lanterna freneticamente.
- Parece que chegou a altura de retirar a minha arma… - Ziyon
respira rapidamente, nervoso, e retira a arma que traz à cintura.
Alastair tira a lanterna das mãos impacientes de Cassia e
tenta concertá-la; apesar de não conseguir ver nada.
- Carregaste a bateria?
Antes de Cassia ter a oportunidade de mandar vir com o irmão,
o som das suas palavras é abafado pelo tiro a sair do cilindro de
uma arma.
O armazém ecoa o tiro e saúda o silêncio de seguida. Quatro
respirações aceleradas fazem-se perscrutar na atmosfera temerosa.
A lanterna volta a funcionar e Alastair aponta-a para a fonte do
tiro.
Num acesso de incompreensão coletiva, todos olham
acusadoramente para Ziyon, que ainda aponta a arma para o vazio e
parece extremamente abalado pelo sucedido.
Cassia aproxima-se calmamente de Ziyon, sem o querer
sobressaltar e retira-lhe a arma das mãos com cuidado.
- Respira, Ziyon. – Cassia nota que o rapaz está a suster o
ar, perturbado.
Alastair tenta encontrar o alvo de Ziyon e, ao dar uns
passos, debruça-se e apanha algo do chão, apontando-lhe a
lanterna.
Uma gargalhada involuntária sai da garganta de Alastair.
- Parece que podemos ir para casa! O Ziyon apanhou o
cabecilha dos piratas informáticos que querem acabar com Quimera!
– Alastair levanta-se e iça um rato no ar pela cauda, apontando a
lanterna para efeito dramático. – Parece que o Rato Mickey se
começou a dedicar ao crime!
Todos se riem e Alastair atira o rato morto para longe,
voltando para junto do grupo.
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Ziyon endireita as suas roupas, nervosamente, e engole em
seco.
- Peço desculpa. – Ziyon olha para Cassia. – Eu nunca tinha
pegado numa arma antes…
- Pinta-me chocada… - Cassia afaga as costas de Ziyon,
tentando reconfortá-lo, apesar do seu tom sarcástico.
Alastair revira os olhos e dirige-se a Ziyon.
- Tu vais fazer uns treinos comigo, quando voltarmos…
Ziyon fica para trás, sentindo-se um pouco embaraçado perante
o sucedido; enquanto os outros continuam à procura do que os
trouxe ali.
- Detesto ser desmancha prazeres… - Makayla empunha a arma
e dirige-se a Cassia. – Mas, se alguém está aqui dentro, acabámos
de matar o elemento surpresa, princesa!
- Não me chames princesa, caracóis dourados! – Cassia revira
os olhos e sorri para Makayla, que sorri de volta perante a
provocação amistosa. – E ambas sabemos que tu adoras ser desmancha
prazeres!
Cassia pisca o olho a Makayla e acelera o passo, deixando-a
para trás. Uma busca desesperada toma lugar; todos na posição
certa, no momento certo, tentando protegerem-se mutuamente.
Makayla tem razão, se não estiverem sozinhos, o inimigo já não se
encontra desprevenido.
Depressa chegam ao fim do armazém, onde uma grande janela, coberta
com tábuas de madeira, deixa entrar rasgos de luz. Cassia olha à
sua volta, desapontada. O armazém parece vazio.
- Parece que estavas errada, Cassia. – Makayla olha em redor.
– Não há nada aqui.
Cassia não se deixa convencer.
- Não percebo. Este é o lugar perfeito para eles se
esconderem. – Cassia aponta para a janela, com uma vista
privilegiada para o navio atracado no cais. – Tem janelas
discretas, uma saída do outro lado, acesso reservado…
Able aproxima-se e olha para a janela.
- Se calhar estão noutro armazém. Quer dizer, detesto indicar
o óbvio, mas estamos num cais, querida! Armazéns não faltam.
150
Able faz a sua declaração, mas rapidamente perde interesse
na discussão e deixa a restante equipa a olhar pela janela,
começando a vaguear pelo armazém sozinho. A luz da janela faz
refletir algo do outro lado do armazém, o que apanha a atenção de
Able, sempre curioso acerca de objetos que brilhem.
Ziyon, junto da restante equipa, coloca as mãos nos bolsos
e desiste de tentar olhar pelas pequenas gretas, entre as tábuas
pútridas do tempo.
- Eu cá não vejo nada, pessoal. – Virando-se para procurar
Able, engole em seco e muda drasticamente de expressão, ao se
deparar com a cena que decorre à sua frente. – Colegas…
O guincho desesperado de Ziyon chama a atenção da restante
equipa, que se vira para perceber o que despoletou esta reação.
Assim que os seus olhos se ajustam à escuridão do armazém,
sustêm de imediato a respiração e sacam novamente das suas armas,
apontando-as a Able.
Able coloca as mãos no ar, em jeito de súplica silenciosa.
Dando uns passos forçados em frente, uma jovem rapariga é
iluminada por um faixe de luz proveniente da janela. O sorriso
provocante é tão evidente, como a arma que aponta às costas de
Able.
Alastair franze a testa e dá um passo em frente, incrédulo.
- Olá, amor. – A jovem rapariga gargalha ao reparar na
aflição nos olhos de Alastair. – Sentiste a minha falta?
151
Capítulo 13
As ruas de Quimera estão enevoadas, da chuva a embater no asfalto
quente. Cinzas caem dos céus, das fogueiras que são forçadas a
cessar fogo pela tempestade repentina. Os prédios cinzentos ficam
com um ar sombrio, da penumbra que paira sobre eles.
Alastair vagueia as ruas, com a chuva a cair-lhe pelas costas
e a enxercar-lhe o cabelo. O rapaz, com um ar desesperado, tenta
parar as pessoas por quem passa, mostrando uma fotografia que se
começa a desintegrar devido à humidade e ao tempo. As pessoas mal
olham para Alastair, apenas continuando o seu caminho: a população
da cidade está enferma, fraca e deixaram de ter compaixão pelo
sofrimento alheio. Durante os anos de ouro da cidade foram
marionetas nas mãos do poder; agora, morrendo, apenas procuram um
lugar para descansar em paz, antes da morte vir para os levar para
onde pertencem.
Atabalhoadamente, Alastair vai-se tentando desviar dos
corpos que vão caindo como dominós; procurando desesperadamente
por um sinal de Leah. Lágrimas confundem-se com a chuva no seu
rosto, os seus joelhos começam a falhar e Alastair deixa-se cair
no pavimento, encostado a um prédio, desolado.
Com um gemido, chama pela namorada; a sua voz ecoa nas ruas.
A dor é evidente no rapaz e, no entanto, ninguém para. De máscaras
cirúrgicas, continuam a fugir da chuva, como se de mais um dia
normal se tratasse.
Num armazém do Cais 88, em Nova Iorque, no ano de 1942, as tensões
vão altas. Armas apontam para todos os lados e corações batem
depressa. Able, todavia, ainda que com uma arma apontada às
costas, permanece estranhamente calmo.
Leah força Able a dar um passo em frente; este obedece
prontamente e sorri, presunçoso. A expressão de Alastair é severa
a olhar para a ex-namorada, que pensava estar morta. O seu maxilar
contrai e a posse que detém sobre a arma, que aponta a Leah,
aumenta com cada passo que este dá. Cassia olha atentamente para
Alastair, engolindo em seco, tentando antecipar qualquer reação
do rapaz a seu lado.
152
- Larga a arma, Leah! – A voz de Alastair é ríspida e
autoritária. – Vamos falar!
Leah dá uma gargalhada estridente.
- Não há nada para falar, Alastair! – Com uma cara séria,
agarra em Able pelo pescoço e aponta a arma na direção de Alastair.
– Vou precisar que baixem as vossas armas, no entanto. Para que
ninguém se magoe, claro…
O sorriso presunçoso de Leah envia um arrepio pela espinha
de Alastair. Custa-lhe acreditar que é ela quem está à sua frente
neste momento, a segurar uma arma apontada a ele.
- Larga o meu irmão! – Makayla está vermelha de raiva e
coloca o dedo no gatilho, pronta a disparar, caso as suas ordens
não sejam acatadas. – Olha à tua volta! Três pistolas para uma!
Achas mesmo que consegues vencer-nos?
Leah olha para o chão com falso pesar, que logo se transforma
num sorriso ameaçador.
- Tens assim tanta certeza disso, loirinha?
Das sombras, sons de armas apanham todos de surpresa e cinco
agentes, vestidos de preto, aparecem apontando armas AK-47 ao
grupo de jovens, deixando-os encurralados. Makayla engole em seco
e olha, irada, para Leah.
- Não estamos tão faladoras agora, pois não? – Leah olha
para Makayla, em tom de provocação.
Cassia dá um passo em frente e põe os braços no ar, colocando
a sua arma de volta no coldre. Alastair olha para a irmã alarmado
pelo seu gesto, na sua opinião, idiota. Não que Alastair não
esperasse este tipo de ações da parte de Cassia, sempre
imprevisivelmente previsível.
- Leah, o que é que pensas fazer ao certo? – Cassia tenta
chamar a jovem à sua razão. – Não podes matar toda aquela gente
ali fora…
- Cassia! – Leah sorri calorosamente para Cassia. – Tenho a
dizer-te que senti imenso a tua falta! Tu sempre foste a mais
inteligente. E, todavia, estás a ficar um pouco aquém daquilo que
esperava de ti.
Leah imita um amuo e olha para Cassia, provocante.
153
- Porque é que estás a fazer isto, Leah? – Cassia continua
a tentar argumentar. – Tu não és assim.
- Lamento dizer-te que nós nunca conhecemos verdadeiramente
as pessoas a nosso lado. Podemos viver com um assassino e nem
desconfiar, não concordas? – Leah prende o olhar de Cassia. – Tu,
mais que toda a gente, deverias saber bem essa lição. Tenho a
certeza de que a Tara concorda comigo.
Cassia sustém a respiração perante a insinuação e sente o
olhar de Alastair a arder nas suas costas. Leah sorri, sabendo
que tocou num nervo.
- Vais mesmo tentar matar o teu Ex, minha? – Able olha,
curioso, para Leah. – Não estou a julgar. Longe de mim! Apenas a
admirar a ousadia.
- Claro que não! – Leah finge-se insultada. – Para que é que
achas que eu trouxe estes gajos de atrelado?
Os agentes dão mais um passo ameaçador em direção aos jovens
em desvantagem.
- Leah! O que é que te aconteceu? – Alastair suplica por uma
explicação. – Tu não eras assim… O que é que eles te fizeram?
Leah avalia Alastair com um ar severo: a zombaria chegou ao
fim.
- Já pensaste que, se calhar, nunca soubeste quem eu era? –
Leah entrega Able a um agente e dá um passo em direção a Alastair
e Cassia. – Eu não mudei quem sou; apenas a paisagem e nós somos
aquilo que somos.
- Será que somos assim tão insignificantes para ti? Eu fui
assim tão prescindível? - Alastair grita, enraivecido e Cassia
segura-o. – Eu mereço uma explicação! Estou capaz de te matar!
Cassia usa toda a sua força para impedir que Alastair faça
algo de que se venha a arrepender.
- Parece que vais ter que viver com a desilusão! – Leah
sorri. – Agora, vocês, os súbditos empecilhos que apareceram para
atrapalhar os nossos brilhantes planos para mudar o mundo… O que
fazer com vocês? Parece-me que a resposta é simples! Matem-nos!
Leah vira-se, após a ordem dada e começa a andar calmamente
pelo armazém.
154
- Porque é que estás a fazer isto? – Alastair grita,
irritado, quase derrubando Cassia.
Leah vira-se e a sua expressão denota evidência.
- Sempre me incentivaste a perseguir os meus talentos. Ao
que parece eu sou boa a matar. – Leah olha Cassia nos olhos. –
Ah! É verdade! O teu pai envia cumprimentos, Cassia.
Cassia larga o irmão e a sua respiração torna-se ofegante.
Felícia tinha razão: ele está vivo.
Leah volta-se a virar e, tão repentinamente como apareceu,
desaparece nas sombras. Os agentes começam a aproximar-se
lentamente dos jovens, encurralando-os contra a parede.
Uma parede humana forma-se entre os quatros jovens e a saída do
armazém. As armas automáticas que lhes são apontadas começam a
parecer demasiado reais, quando comparadas com as semiautomáticas
que têm na mão.
Able, esquecido do lado de fora da barreira, tenta remediar
a situação em que se encontram. Olhando para o chão encontra um
tubo de metal e, numa decisão rápida, apanha-o, acertando na
cabeça de um dos agentes. O agente cai para o chão, atordoado e
os outros viram-se para tentar perceber o que aconteceu.
A oportunidade apresenta-se para voltarem a estar em
vantagem. Tiros são disparados em todas as direções e Alastair
consegue desarmar dois agentes, encetando uma luta física. O
agente derrubado por Able volta a si e, desarmado pelo jovem,
persegue-o pelo armazém, enquanto Able tenta perceber como
desbloquear a arma que lhe roubou.
Makayla consegue alvejar um dos agentes e, prontamente, vai
ajudar Alastair a combater os dois operativos que parecem estar a
levar a melhor do rapaz. Ziyon, por sua vez, tenta evitar a
turbulência e passar despercebido num canto.
Cassia está a ter problemas em conseguir desarmar o agente
que a tenta abater. É a primeira vez desde que esteve entre a vida
e a morte, depois de ter sido alvejada em Sarajevo, que vê combate.
A arma que traz consigo parece mais pesada do que antes. O som
dos tiros a vir na sua direção mais assustadores. A destemida
rapariga está a ter alguma dificuldade em concentrar-se na cena à
155
sua frente, mas sabe que a mínima distração pode custar-lhe a
vida.
Num golpe rápido o agente desarma Cassia, que se desequilibra
e cai para o chão. O agente olha para ela do cimo; Cassia sustém
a respiração por um segundo, olhando para o cano da arma apontada
à sua cabeça. Não lhe restam muitas opções. O agente leva o dedo
ao gatilho e, decidindo que não tem nada a perder, Cassia rebola,
desviando-se do trajeto da bala e dá um pontapé na canela do
homem, que se deixa cair de joelhos.
Retirando uma faca do seu tornozelo, Cassia, levanta-se de
um salto e degola o homem, num único movimento sem hesitação.
Antes de o homem ter tempo de cair no chão, Cassia agarra na arma
que ele traz ao ombro e vira-a na direção do operativo que
conseguiu apanhar Able. Premindo o gatilho, abate o agente e
liberta Able, que lhe agradece de imediato com um gesto, do longe.
Makayla tenta subjugar o seu oponente, com o triplo do seu
tamanho; mas sem grande sucesso. Alastair repara no domínio do
agente sobre a rapariga e distrai-se momentaneamente, acabando
com o punho do seu opositor no seu maxilar. Alastair cai e agarra
o queixo, devido à forte dor, sentindo-se um pouco zonzo devido à
pancada. O operativo ri-se ao parar junto de Alastair, agarrando-
o pelo colarinho, erguendo-o no ar sem grandes esforços. Engolindo
em seco, Alastair perde alguma da esperança de conseguir soltar-
se e fecha os olhos, esperando outra pancada violenta.
Entretanto, Makayla, tenta libertar-se das garras do
operativo que a domina. De costas para o chão, tenta respirar,
debatendo-se com as mãos do homem à volta do seu pescoço, que a
sufoca.
Dois tiros certeiros, fazem com que Alastair caia para o
chão, e com que Makayla volte a respirar. O operativo que a tentava
sufocar cai para cima dela, soterrando-a e Alastair tenta
levantar-se de imediato, desarmando o agente que o segurava no
ar.
Olhando em volta para tentar perceber o que acontecera,
apercebe-se que Ziyon conseguira pegar na pistola que Cassia tinha
deixado cair e disparara sobre os agentes que os atormentavam.
156
Cassia vê Makayla a debater-se com o corpo pesado sobre si
e corre para a ajudar, retirando o agente morto de cima da
rapariga.
- Estás bem? – Cassia pergunta, ajudando Makayla a levantar-
se.
Apesar das tentativas, Makayla não consegue responder,
faltando-lhe o ar. Em vez, sinaliza que está bem e agarra os
joelhos, voltando a sentar-se. Ziyon e Able correm na sua direção,
tentado ajudá-la.
Cassia deixa Ziyon e Able a atender a Makayla e dirige-se a
Alastair, que se há deitado no chão a olhar para o tejadilho
ferrugento do armazém. Senta-se ao lado do irmão em silêncio,
dando-lhe espaço para processar as suas emoções.
- Raio de viagem até Nova Iorque… - Alastair finalmente
quebra o silêncio, permanecendo deitado a olhar para o teto.
Cassia não responde. Olha para o maxilar de Alastair e fá-
lo levantar-se para o examinar. Alastair senta-se ao lado da irmã
e deixa-a fazer o que tem a fazer. Pressionando o hematoma que se
começa a notar na tez morena de Alastair, fá-lo encolher-se com
dores.
- Não está partido; apenas uma luxação, me perece. Mas é
melhor veres isso quando voltarmos. – Cassia coloca uma mão no
ombro de Alastair. – Estás bem?
- Já tive contusões piores, Cass… - Alastair sorri, tentando
convencer Cassia do seu estado de espírito.
- Não era disso que eu estava a falar.
- Ela fez a sua escolha. – A expressão de Alastair muda,
tornando-se penosa. O rapaz levanta-se, recusando-se a olhar para
Cassia, pois por dentro está a morrer, sem conseguir acreditar no
que aconteceu.
- Não os podemos salvar a todos. – Cassia levanta-se e coloca
as mãos nos bolsos das calças. – Alastair, as coisas têm a
importância que lhes damos. Talvez esteja na altura de começarmos
a dar importância a outras coisas.
Cassia afasta-se de Alastair e dirige-se ao restante grupo.
157
O Navio Normandie afunda-se, com toda a gente a admirar a tragédia.
A polícia tenta controlar a multidão e criar um perímetro de
segurança à volta do navio.
A equipa sai do armazém para o espetáculo que decorre no
cais da cidade e para, por instantes, para tentar dar algum sentido
ao caos.
- Pelo menos não fomos nós que afundámos o navio… - Alastair
olha para Makayla a seu lado.
- Não. – Makayla leva a mão ao seu pescoço, esfregando-o. –
Apanhámos antes um enxerto de porrada. Amanhã vou estar toda
dorida.
Cassia ri e tenta consolar Makayla, com uma pancada ao de
leve no ombro da rapariga.
- De que planos é que acham que a Leah estava a falar? -
Ziyon cruza os braços e volta costas ao navio, para olhar para os
colegas.
Alastair olha para Cassia e de volta para Ziyon.
- Não sei, miúdo. – Alastair olha para o chão, tristonho. –
Ela, claramente, não está no seu perfeito juízo.
- Seja o que for, sinto que não fomos enviados para parar um
homicídio em massa; mas para cairmos numa cilada bem planeada. –
Cassia olha para todos, um a um, sombriamente. – Ouviram a Leah.
Nós começámos a atrapalhar os seus planos: quem quer que eles
sejam, querem fazer de tudo para nos tirar do seu caminho; e
acabaram de falhar a primeira tentativa.
- Penso que não preciso de vos relembrar quem nos enviou
diretamente para a boca do lobo. – Alastair olha para Cassia, com
suspeita.
- Mas não faz sentido. Porque é que a Kay nos recrutaria só
para nos mandar matar de seguida. Não me parece uma boa gestão de
recursos… - Makayla não se convence e olha para Cassia. – O que é
que ela quis dizer com o teu pai manda cumprimentos? Vocês não
são irmãos?
- Eu fui adotada, Makayla. Ando à procura do meu pai, mas
parece que ele me encontrou primeiro. – Cassia cruza os braços. –
E, quanto à Kay: não estou a defendê-la. Apenas penso que se passa
algo mais do que uma simples conspiração contra a nossa existência
158
em particular. E nós vamos ter que descobrir o quê, o mais rápido
possível.
Able abana a carteira que roubou à frente dos colegas.
- Acham que podemos ir comer alguma coisa agora? Estou
esfomeado.
Todos olham para Able e reviram os olhos.
- Acho que podemos discutir o assunto enquanto comemos. –
Cassia acaba por concordar com Able.
- Boa! – Able exclama de entusiasmo. – Milkshakes!
Todos começam a andar na direção de onde vieram.
- O que raio são milkshakes? – Makayla dá o braço a Cassia
e pergunta indignada.
- Não faço ideia. – Cassia ri. – Mas acho que vamos descobrir.
A equipa passa pela multidão e vê um homem, particularmente
agitado, a discutir com um polícia.
- Mas eu já lhe disse! – O homem tem um severo sotaque
francês e agita os braços no ar em contestação. – Mon Dieu! Eu
perdi minha carteira! Deixa-me passar, sua pessoa ignorante! Eu
posso salvar o navio!
Ao ouvir parte da conversa, a equipa não consegue conter o
riso.
- Pelo menos, agora sabemos porque é que a polícia não deixou
o Vladimir entrar para o navio! – Ziyon ri.
- Não me culpem a mim! – Able põe as mãos no ar, defensivo.
– Eu sou um artista e tenho que praticar a minha arte!
Alastair dá um sopapo na cabeça de Able, em tom de
brincadeira e continua a andar.
Leah entra no escritório, depois de bater à porta, mas sem esperar
por uma ordem para entrar. Rohan olha para a rapariga curioso e
de forma avaliativa.
- Pela tua cara, presumo que tenha corrido como planeado. –
Rohan sorri; atirando com a caneta que tinha na mão para a
secretária, levanta-se e vai em direção a Leah, felicitando-a com
um aperto de mão.
159
- Perdemos alguns agentes, mas penso que valeu o preço. –
Leah senta-se na cadeira junto da secretária e coloca os pés na
mesma. – A dúvida ficou entre eles e a Cassia levou o recado.
- Isso é bom! – Rohan demostra satisfação. – Eu disse-te que
termos um espião entre eles ia dar frutos. Vamos deixá-los chegar
bem onde nós os queremos.
- Então e depois?
- Calma. Se formos pacientes eles fazem o trabalho árduo por
nós. Deixa primeiro instaurar-se a desconfiança no grupo. – Rohan
respira fundo, sorri e olha para Leah. – Menina, se queres matar
alguém, deixa-o cavar a própria sepultura, primeiro.
Uma gargalhada enche a sala e Leah força um sorriso para
Rohan.
160
Capítulo 14
A porta do único bar de Quimera é refletida nos espelhos atrás do
seu pequeno balcão. O espaço é amplo e está cheio. O único lugar
em que gente de todos os sectores se junta, sem haver restrições
à sua socialização. Neste espaço ninguém é mais importante ou
dispensável. O que a cidade de Quimera sempre quisera implementar,
sem grande sucesso, ganha vida neste espaço: igualdade.
Able está sentado ao balcão com uma bebida na mão. Quando
olha para o espelho à sua frente, escarne, tragando a sua bebida
sofregamente. O bar está atolado e Able espera impacientemente
que Makayla chegue até ele.
Makayla finalmente consegue encontrar Able e, chegando ao
balcão, debruçasse sobre o mesmo e olha demoradamente para o
irmão.
- Pagas uma bebida? – Desviando o olhar, procura pelo
empregado de balcão.
Able traga o que resta da sua bebida rapidamente e olha para
Makayla.
- O que é que tu queres, Makayla? E eu não me refiro ao tipo
de bebida.
Makayla suspira profundamente e desiste da sua busca, olhando
para o balcão primeiro, calculando as suas palavras, e para Able
de seguida.
- Volta para casa, mano. Por favor…
Able ri estridentemente.
- Terás mais hipóteses de viajar no tempo…
O bar é barulhento e pessoas continuam a dar encontrões a
Makayla, pelo que ela olha em redor à procura de um canto
sossegado.
- Há algum sítio onde possamos falar?
Able não responde. Batendo com o copo no balcão, levanta-se
e segue caminho por detrás do bar, através de uma porta de serviço.
Makayla segue-o, prontamente, sem protestar.
Passando a porta de serviço, após atravessarem um pequeno
corredor, entram noutra porta para um espaço pequeno, que parece
servir de armazém para o bar. Makayla observa atentamente o
161
espaço. Uma almofada e um cobertor fazem uma cama improvisada num
canto; o chão está repleto de garrafas de whiskey vazias e maços
de cigarros. A preocupação é sonante no rosto de Makayla, quando
volta a olhar para o irmão já embriagado.
Able acende um cigarro e pega numa garrafa, bebendo, enquanto
espera que Makayla diga alguma coisa.
- É este o teu plano? Beberes até à cirrose e tentares
vigarizar um bilhete no próximo comboio para fora de Quimera? –
Makayla está indignada, olhando à sua volta para as condições em
que Able está a viver.
- Bem quanto à primeira questão é um firme sim. – Able volta
a levar a garrafa à boca e a beber. – Saúde! Quanto à segunda…
Able sussurra, como se o que está prestes a dizer, de um
segredo se tratasse.
- Não há caminho para fora da Cidade de Quimera! – Dando
mais um trago do cigarro. – Estamos presos num mundo onde todos
os finais felizes foram roubados, maninha… Onde o amanhã é uma
incerteza.
Able ri-se, mas Makayla não está a achar tanta piada como
ele ao rumo da conversa ou ao estado em que o encontrou. Makayla
olha para as paredes, chegando a uma conclusão rapidamente.
- Não tens aqui nenhum espelho. – Makayla dá um passo em
frente. – Parece que sempre sabes reconhecer uma causa perdida
quando vês uma.
- O papá ia ficar orgulhoso, não achas? – Piscando o olho a
Makayla puxa uma cadeira e senta-se. – Como vai o velho desgraçado?
Certamente não muito bem, para enviar a sua filhinha perfeita para
fazer o trabalho sujo por ele.
- Eu não estou aqui por ele. – Makayla aproxima-se de Able
e pega-lhe na mão. – Estou aqui por ti. A mãe tem saudades tuas…
- Eles que se lixem! – Able retrai-se e levanta-se
abruptamente, pontapeando a cadeira para trás.
- Vá lá, Able! Volta comigo… Isto não é forma de viveres!
Olha à tua volta!
- Quem é que o diz? Tu tens a tua maneira de viver e eu tenho
a minha! Não existe maneira certa de viver! Não nesta maldição de
cidade! – Able tenta recompor-se, não querendo discutir com
162
Makayla. – Dizem que nos puseram aqui para nos salvar. Passaram
setenta e cinco anos: pessoas morreram, pessoas nasceram e nós
continuamos à espera da salvação.
- Se calhar eles estavam errados e a guerra não tenha chegado
a vir…
- Se estavam errados, o que fazemos nós com as fronteiras
ainda fechadas? – Able pousa a garrafa e olha para a irmã. – Eu
penso que esta é apenas a calmaria antes da tempestade.
O laboratório de Samsara está estranhamente calmo. Able está
sentado numa cadeira, a olhar para o vazio, apático.
Cassia entra no laboratório e dá de caras com Able a
contemplar o nada; vendo Ziyon a ler, na mesa redonda, e
verificando que mais ninguém se encontra no laboratório, decide
ir ter com ele.
- O que se passa com o Able, Z.?
Ziyon sorri ao ver Cassia e, perante a pergunta, logo olha
para Able, no canto, com um ar ternurento.
– Acho que ele e a Makayla estiveram a discutir.
Ziyon volta a tentar concentrar-se no seu livro, quando
Cassia se senta a seu lado, a estudá-lo. Ziyon sente-se incomodado
com a atenção indesejada e muda de posição na cadeira.
- Há mais alguma coisa em que te possa ajudar? – Ziyon pousa
o livro e olha para Cassia.
- Porque não dizes ao Able que gostas dele?
Ziyon fica embaraçado com a pergunta e desvia o olhar da
rapariga que o interroga. Antes de Ziyon ter a oportunidade de
negar, Cassia continua:
- Não te preocupes. O teu segredo está a salvo comigo. –
Cassia sorri, achando certa piada à situação. Não lhe cabe o papel
de cupido, nem ela tem perfil para tal ou o está a tentar
interpretar. Apenas é curiosa e está entediada. – Se calhar não
me expressei da melhor maneira. As palavras às vezes não são o
meu forte. O que eu quis dizer é: porque não tentas fazer alguma
coisa em relação aos teus sentimentos? Eu vejo a maneira como
olhas para ele, Ziyon. Sabes que ele também olha para ti, não
sabes?
163
Cassia sorri ternamente para Ziyon e levanta-se, afagando-
lhe as costas. Ziyon sorri de volta para Cassia e vê-a ir-se
embora. Voltando ao seu livro, tenta concentrar-se na leitura,
mas não consegue parar de olhar para Able.
Makayla vai a entrar para o seu quarto, mas sente alguém atrás de
si e vira-se. Alastair sorri-lhe ternamente.
- Está tudo bem? – Ele pergunta, reparando no semblante da
rapariga.
Makayla desvia o seu olhar do de Alastair, não querendo
chorar à frente do rapaz.
- Sim… - Uma lágrima escorre pelo seu rosto pálido.
Alastair, sem pensar, puxa Makayla e abraça-a, tentando
reconfortar a rapariga.
- O que quer que seja, vai passar. – Alastair sorri para
Makayla que se tenta afastar dele, limpando as lágrimas.
- Isso pergunto-te eu. Com toda esta coisa da noiva que
regressou dos mortos…
Alastair ri e Makayla sente-se desconfortável com a sua
insensibilidade perante a situação do rapaz, que apenas a tenta
ajudar.
- Desculpa. Não era minha intenção…
Alastair sorri e limpa uma lágrima do rosto de Makayla,
olhando para ela demoradamente.
Vozes ao fundo do corredor interrompem-nos. Alastair pega em
Makayla e empurra-a para dentro do quarto, deixando a porta
entreaberta.
Kay fala com Laura sobre algo incompreensível. Alastair tenta
escutar atentamente, mas a presença das duas é fugaz. Desconfiado,
olha para Makayla.
No laboratório de Samsara o ânimo continua calmo. Apenas Cassia e
Able se encontram no espaço, que já lhes é tão familiar. Cassia
finge ler um livro, observando Able com atenção. O rapaz não
parece que esteja nos seus dias, e o ar meio apático, do jovem
que costuma ser tão enérgico e sarcástico o tempo todo, começa a
preocupar Cassia. Para o bem ou para o mal, agora, são uma equipa
164
e têm que se proteger mutuamente, já que forças que não conseguem
controlar operam contra eles.
A sua corrente de pensamento é interrompida pela porta do
laboratório a abrir. Hayden entra, quase a arrastar-se, e murmura
um bom dia que mal se ouve. Este comportamento atípico da parte
do técnico de laboratório alerta de imediato Cassia, que pousa o
livro e espera que ele se sente.
- Está tudo bem, Hayden? – A admiração de Cassia é audível.
Hayden espreguiçasse.
- Sim. Está. Tive uma noite comprida.
Able ri, dando sinais de vida. Voltando ao seu velho eu e
junta-se a Cassia. Virando-se para Hayden, olha-o atentamente, de
braços cruzados.
– Então que se passa, chavalo? Sem ofensa, mas estás com um
ar miserável. Carcaças à beira da estrada têm melhor aspeto.
- Como é que alguém se pode sentir ofendido com isso? –
Hayden revira os olhos e recosta-se na cadeira, arrependendo-se
de imediato da reposta dada - Oh. Peço desculpa. A falta de sono
deixou-me, algo, rabugento. Não era minha intenção responder de
forma tão ríspida. Estive a trabalhar toda a noite numa pesquisa
para os Comandantes… E, agora, nem sei onde eles estão.
A suspeita volta a atormentar Cassia que, desde que chegara
de Nova Iorque, se sente inquieta. Kay e Ari têm sido evasivos
com todas as questões que lhes colocaram desde a última missão;
Kay principalmente, já que Ari não parece saber do que se passa
na Agência a maioria das vezes, ficando tão surpreso quanto eles,
perante algumas notícias trazidas pela Comandante Li.
- Que tipo de pesquisa? – Cassia tenta perceber o que o
cientista sabe, que eles não saibam.
Hayden olha para Cassia com mais seriedade do que costuma,
respirando fundo e cruzando os braços.
- Do tipo confidencial. – Diz por fim, a medo.
Able olha para Cassia e tenta a sua sorte.
- Então, porque é que eles não nos pediram para te ajudar,
sem tem algo a ver com a nossa missão? – Able coloca as mãos nos
bolsos e espera, atento a todos os gestos do jovem à sua frente.
165
- Não sei. – Hayden parece indignado com a pergunta. – Eu
fiz exatamente a mesma pergunta aos Comandantes…
- Então, isso significa que a pesquisa tem de fato que ver
com a nossa missão? – Cassia interrompe Hayden, apanhando-o numa
encruzilhada.
Hayden olha para Cassia, zangado com o descuido. Hayden
parece desconcertado e afligido com o que escapou da sua boca.
- Vocês intrujaram-me! – Hayden levanta-se, furioso e aponta
o dedo a Able e Cassia. – Deviam ter vergonha!
Num ato de raiva, Hayden sai do laboratório que nem um
trovão.
Cassia e Able olham, pasmados, para a porta.
- Algo de muito estranho se está a passar. – Com as mãos à
cintura e olhos semicerrados, Cassia continua a olhar para o
caminho que Hayden seguiu.
Able apressa-se a concordar com a avaliação feita por Cassia.
Algo de estranho está realmente a passar-se e ele sabia exatamente
o que tinham que fazer a seguir.
Alastair entra no laboratório que nem uma flecha. Fica abismado
quando se depara com o laboratório praticamente vazio e Cassia e
Able a atacarem, furiosamente, os teclados dos computadores de
Hayden.
Apesar de estranhar a imagem, Alastair tem outra coisa na
sua mente.
- Algo de estranho se está a passar, pessoal. – Alastair
olha para Cassia, com um ar pensativo.
- A quem o dizes. – Cassia, distraída, continua a teclar,
quando se apercebe de algo e para abruptamente, olhando para o
irmão. – Espera lá. Porque é que tu dizes isso?
Também Alastair se apercebe de algo, que a princípio nem
reparara por completo.
- E vocês que fazem no computador do Hayden?
Able, a sentir-se derrotado pela tecnologia, bate no teclado,
furioso.
- Estamos a tentar passar sobre as novas medidas de segurança
que o Hayden criou para o sistema informático da Agência, desde o
166
ataque eletrónico. – Able roda na cadeira e vira-se para Alastair.
– Deixa-me que te diga que eu já pirateei o sistema informático
do Banco Central de Quimera e não tive metade dos problemas que
estou a ter com este!
Alastair franze a testa ao olhar para Able e este último
apercebe-se de imediato de que acabou de admitir um crime e, em
Quimera, qualquer crime é julgado com pena capital.
- E eu provavelmente não deveria ter admito tal coisa a um
polícia. – Able bate na sua cabeça.
Alastair ri-se da reação do rapaz.
- Não te preocupes. Acho que é seguro dizer que eu estou
reformado, puto. – Alastair olha para a irmã. – O que eu queria
perguntar é: porque é que o estão a fazer?
Cassia volta a devorar as teclas com os dedos, tentando
responder às dúvidas de Alastair à medida que trabalha.
- Queremos dar uma espreitadela ao que ele andou a fazer a
noite passada… Só por curiosidade.
Alastair suspira audivelmente, frustrado.
- Será que eu acordei a falar uma língua estrangeira e não
me apercebi? – Alastair olha para o laboratório vazio. – E, já
agora, onde é que está toda a gente?
- Não sei quanto ao resto da equipa, mas a Makayla tinha ido
à cidade.
- Ela já voltou. – Alastair cruza os braços. – Apanhei-a no
corredor.
Cassia para de escrever e olha para Able, sentindo que de
algum modo, existe mais na história que ele evita contar.
Able sente o olhar de Cassia a corroer-lhe a alma de forma
inquisidora.
- Oh, estão a perguntar-se o porquê de ela ter ido a Quimera.
– Able olha, descontraído para os dois. – O nosso pai faleceu.
Ela recebeu a chamada esta manhã.
Cassia tenta reconfortar Able, embora ele não pareça precisar
de ser reconfortado.
- Lamentamos imenso, Abe. – Cassia sorri em simpatia.
167
- Não lamentem. Ele era um estupor e nunca foi um bom pai.
– Able olha para Cassia, indicando-lhe o teclado. - Vamos
continuar a trabalhar, que tal?
Cassia atende ao pedido de Able e continua a tentar piratear
o computador de Hayden. Alastair, sentindo-se inútil nesta
situação, suspira e olha ao seu redor, reparando que alguns livros
e ficheiros estão abertos, num canto do laboratório.
Makayla entra no laboratório taciturna e vai em direção à mesa
sem proclamar palavra. Chegando a ela, senta-se na primeira
cadeira que encontra e deita a cabeça sobre o tampo da mesa.
Alastair, num canto com os livros e ficheiros abertos ao seu
redor, apercebe-se da entrada da rapariga e clareia a garganta
para chamar a atenção de Able e Cassia para a presença de Makayla.
Able, ao encontrar a irmã em tal estado, desliza a sua
cadeira até ela.
- Então, mana? Como correu na cidade?
- É oficial, Able. Somos órfãos. – As palavras saem abafadas,
pois Makayla não se move um milímetro, continuando com a testa
colada à mesa.
- Lamento imenso, Makayla. A sério que lamento. Ele podia
ser um cretino, severo e teimoso; mas era nosso pai.
- Sim. Apenas não era um bom pai. – Tomando coragem, Makayla
endireita-se na cadeira e sorri para o irmão. – A mãe foi a única
que realmente se importou connosco. A guerra levou-a e deixou-nos
à mercê da vida. O pai foi apenas alguém que nunca deveria ter
tido o dom da procriação. Eu estou bem. Não te preocupes. Pelo
menos temo-nos um ao outro.
Makayla dá a mão a Able e, pela primeira vez desde que
entrou, repara que estão praticamente sozinhos no imponente
laboratório.
- Olha, mas onde anda toda a gente? Decidiram fazer greve e
não avisaram?
Cassia levanta-se do computador para esticar os músculos.
- Esse parece ser o mistério do dia…
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Ao olhar para Cassia, Makayla repara nas telas de computador,
repletas de linguagem informática. Curiosa, levanta-se,
aproximando-se do computador.
- O que é que vocês estão a fazer? Ou, pelo menos, tentar…
Alastair levanta-se e fica de pé ao lado de Makayla, cruzando
os braços e olhando para os ecrãs.
- Eles estão a tentar invadir a privacidade dos nossos
colegas.
Makayla arqueia a sobrancelha e sorri, com presunção, para
Able e Cassia.
- Será que a palavra-passe vos ajudaria? – Cassia olha para
Makayla de olhos semicerrados, forçando-a a continuar. – O Hayden
balbucia-a quando escreve e eu presto atenção. Tenta Solvitur
Ambulando. É latim para…
Cassia apressa-se a terminar a frase de Makayla.
- É resolvido andando. – Cassia sorri para Makayla, piscando-
lhe o olho.
Não demora muito até o ambiente de trabalho abrir.
- Conseguimos! – Cassia grita de entusiasmo. – Vamos ver o
que ele nos anda a esconder…
Todos se juntam atrás de Cassia, olhando para os monitores,
enquanto Alastair guarda a porta.
No ecrã aparecem várias pastas com documentos intitulados
com o nome da cidade, o que chama a atenção do grupo de jovens
que vasculha por informação.
Cassia tenta desesperadamente perceber onde se foram, afinal
meter e com que tipo de pessoas; já que cada palavra que lhes é
dita, parece adicionar mais dúvidas acerca da honestidade da
Agência que diz tentar protegê-los.
Able, de olhos semicerrados, tenta descodificar os
documentos que Cassia vai abrindo.
- São plantas da cidade. – Able quebra o silêncio súbdito
que se instalou. – Para que precisam disto agora?
Cassia olha para Able, pensativa. Algo não está a bater
certo. Lembrando-se de algo, volta a bater nas teclas e um novo
documento aparece no ecrã. Uma lista de nomes, com o símbolo
confidencial a vermelho berrante, no topo da primeira página.
169
- Parece um manifesto de um campo de refugiados… - Cassia
cerra os olhos e aperta a cana do nariz, cansada e frustrada.
Alastair, ouvindo a conversa, deixa a sua vigia e junta-se
ao grupo de jovens.
- Quimera foi construída a partir de um campo de refugiados,
há cerca de oitenta anos atrás…
Todos olham para Alastair, curiosos e um pouco espantados
com o conhecimento da trivialidade acerca da cidade onde
cresceram. Especialmente, desde que esta era informação
confidencial e que ninguém estava autorizado a aceder ficheiros
acerca de Quimera ou a fazer perguntas sobre a mesma.
- O Ari contou-me a história por alto. O avô dele foi um dos
fundadores da cidade. – Perscrutando rapidamente o documento,
aponta para um nome familiar. – Olhem aqui. Ernest Black: deve
ser ele.
Makayla respira fundo e olha para Alastair seriamente.
- Porque razão estariam eles a pesquisar isto? Não faz
sentido os Comandantes pedirem algo que supostamente já sabem. –
Ninguém responde à questão pendente no ar. Ninguém sabe como o
fazer. No silêncio, Makayla apercebe-se pela primeira vez que está
a faltar um membro da equipa. – Onde está o Ziyon?
- Ele estava aqui esta manhã… - Cassia olha à sua volta,
apercebendo-se da falta do rapaz.
Able levanta-se abruptamente e olha para todos, de braços
abertos, em estupefação.
- Para onde é que raios está toda a gente a desaparecer? Há
alguma reunião e esqueceram-se de nos enviar o memorando?
Não escapa a ninguém que a pergunta é retórica, pois é só
mais uma das muitas perguntas para as quais ninguém tem realmente
resposta. Cassia levanta-se, inquieta, e anda pelo laboratório,
pensativa.
- Porque é que isto é importante, assim de repente? – Cassia
para e volta a olhar para os documentos, nos ecrãs, tentando
acalmar o nó que tem no estômago. – Quimera foi construída em
2017.
Makayla para ao lado de Cassia.
170
- Não há nada escrito sobre a história a partir daí. Apenas
páginas em branco… - Makayla pausa por momentos. – A luta por
diferentes ideologias deu cabo do mundo. Eleições foram forjadas,
pessoas no poder que não deveriam estar… Há rumores de que a
guerra foi tão devastadora que ninguém ficou para contar o que se
passou. E quem escapou, acabou em Quimera. Mas, parece que não
passam de rumores. Não podemos saber o que realmente aconteceu.
Cassia ergue as sobrancelhas e olha para Makayla.
- Será que não podemos?
Todos olham para Cassia, como se ela estivesse a dizer o
maior disparate do mundo. Ainda assim, o olhar da rapariga brilha
com determinação, e o sorriso maldoso na sua cara, não passa
despercebido a ninguém.
O corredor em direção aos quartos encontra-se estranhamente
deserto. As luzes artificiais parecem mais intermitentes do que
costumam e Hayden apressa-se para chegar ao seu quarto, sentindo-
se desconfortável com o silêncio arrepiante à sua volta.
Os corredores de Samsara nunca foram muito amigáveis. O aço
das paredes e as condutas de ar que passam pelo teto alto, impõem
respeito, pelo desconforto que causam. Apesar de agentes armados
andarem sempre a patrulhar e de câmaras vigiarem todos os seus
movimentos, algo no ambiente não fazia Hayden sentir-se seguro.
Finalmente chega à porta do seu quadro e tira a chave do
bolso, mas antes de chegar à fechadura, uma mão tapa a sua boca e
outra prende-lhe o pescoço, dificultando a sua respiração. O seu
corpo fraco tenta lutar contra os braços desconhecidos que o
prendem. Ciente da sua posição de desvantagem, tenta gritar, mas
não consegue; fita cola tapa-lhe a boca, agora, um saco é-lhe
enfiado na cabeça e as mãos seguras atrás das costas, dificultando
a sua fuga.
Hayden é arrastado pelo corredor fora e este volta a ficar
vazio. A porta do quarto permanece fechada e tudo calmo e
silencioso, como se nada tivesse acontecido.
171
Capítulo 15
É permitida a entrada a Ziyon, no laboratório, por Alastair, que
guarda a porta com cautela. Ziyon olha para o rapaz com admiração,
pois este comportamento parece-lhe anormal, mesmo para o grupo de
colegas que tem vindo a conhecer. Examinando a sala, atenta nas
expressões severas de Makayla e Able, guardando algo. Quando olha
com mais atenção, consegue finalmente perceber o porquê da guarda
que montaram.
Cassia olha para Alastair, confirmando se está a salvo para
tomar o próximo passo. Ziyon cruza os braços, divergente,
esperando pelas ações de Cassia. Se há algo que Ziyon tem vindo a
aprender é que Cassia é imprudente, mas que, de algum modo, as
suas ações conflituosas acabam sempre por dar frutos.
Por esta razão, Ziyon decide que, antes de se opor ao que
quer que seja que está a acontecer, dará uma oportunidade a Cassia
de resolver o conflito em que, mais uma vez, se voltaram a meter.
Makayla e Able agarram com firmeza as armas que lhes foram
confiadas. Cassia aproxima-se da cadeira posicionada no meio do
laboratório taciturno e baixa-se, colocando um joelho no chão, de
forma a ficar nivelada com a pessoa que nela se senta: encapuçada,
amordaçada e amarrada.
Suspirando, no lugar da sua expressão, encontra-se um vazio.
Os seus olhos azuis tornam-se pretos como a noite escura. O seu
maxilar contrai-se e o seu olhar, determinado, prende-se no jovem
à sua frente. Num gesto rápido, arranca-lhe o saco de sarapilheira
da cabeça e espera.
Hayden treme que nem varas verdes; a sua respiração ofegante,
denota medo e frustração, quando se apercebe de quem são os autores
do seu rapto.
- Olá, Hayden. – A voz de Cassia é átona, o seu olhar evita
o dele. – Bem-vindo de volta.
Hayden tenta libertar-se das cordas que o prendem, mas sem
sucesso. Cassia arranca a fita-cola da boca de Hayden fazendo-o
gritar.
- O que é que se passa, pessoal? Bela partida! – Hayden tenta
rir-se, mas sem sucesso. Engolindo em seco, tenta prender o olhar
172
de Cassia. – Cassia, desamarra-me agora, e logo poderemos rir-nos
todos acerca disto. Não para já, mas num futuro próximo. Vou
precisar de um momento para achar piada ao fato de me terem
raptado!
Able junta-se a Cassia e descansa o queixo na pistola, para
um maior efeito dramático.
- Ninguém se está a rir, Hayden. Isto não é nenhuma partida;
lamento.
Alastair parte o painel de acesso ao laboratório, impedido
que alguém consiga abrir a porta do exterior, barricando-os dentro
da sala. Sacudindo o pó das mãos, junta-se ao restante grupo.
Ziyon apenas observa, à distância.
- Porque é que andaste a vasculhar os ficheiros da cidade,
a noite passada? – A voz de Alastair é autoritária, fazendo Hayden
engolir em seco.
- Como é que raio vocês sabem o que andei a pesquisar? –
Hayden olha para Alastair e Cassia, com um misto de desilusão e
contestação.
- Nós temos as nossas maneiras… - Makayla sorri, provocante
e ameaçadora.
Um momento de silêncio segue-se. Cassia espera que o jovem
se perceba que está em desvantagem e confesse, sem serem
necessárias medidas extremas.
O que Cassia não está a contar é com a impaciência de que
Makayla é dotada. Suspirando, Makayla prepara-se para fazê-lo
falar, mas Cassia consegue impedi-la, agarrando-lhe um braço.
Alastair, alerta, coloca-se de imediato, protetor, entre
Makayla e Hayden. Apesar do seu desespero por respostas, não está
preparado para começar uma guerra com as pessoas que, a bem ou a
mal, se tornaram seus amigos.
Cassia, por outro lado, está preparada para utilizar meios
extremos para chegar aos fins a que se propuseram. Há mais em
causa do que a sobrevivência deles; uma civilização inteira está
em perigo e, apesar de não o terem pedido, cabe-lhes agora tentarem
salvá-la. Todavia, concorda com Alastair, na medida em que a
violência poderá ser o último recurso; até porque teve uma melhor
ideia.
173
Sorrindo, sedutoramente, Cassia ajoelha-se junto de Hayden
e pousa as mãos nas pernas do rapaz.
- Hayden, ouve-me. – A mão de Cassia passeia na perna de
Hayden e este ergue uma sobrancelha, escarnecendo. – Nós
precisamos de saber o que se está a passar. Para o bem de todos…
Hayden olha demoradamente para Cassia. Todos sabem
perfeitamente da sua paixoneta pela rapariga de longos cabelos
escuros e olhos azuis; mas, principalmente, todos sabem do efeito
que Cassia pode causar numa pessoa. O seu ar misterioso, confunde-
se com o seu charme e a intensidade do seu olhar.
- Peço desculpa, Cassia. Não te posso dizer nada. – Parece
que desta vez Hayden não ficou encantado.
Cassia sorri; um sorriso torto e característico. Levantando-
se lentamente, faz com que todos olhem para ela em antecipação. A
tensão no laboratório está explosiva. Humedecendo os lábios, olha
para Makayla e acena, discretamente com a cabeça, tirando Alastair
do seu caminho.
- Vamos fazer isto de outra maneira, então. Tens vinte dedos
e nós temos muitas perguntas.
Cassia segura em Alastair e Makayla esmurra Hayden, com a
coronha da arma.
Alastair olha para a irmã em desaprovação, mas Cassia parece
determinada, voltando para Hayden e agarrando-lhe no queixo,
obrigando-o a olhar para ela.
- Quem é que te pediu, especificamente, estes ficheiros?
Hayden olha para Cassia com mágoa e mantém o silêncio.
- Vá lá, Cassia! Nós somos todos amigos! – Hayden grita,
assustado, soluçando entre lágrimas.
- Não se trata de amizades, aqui, Hayden. Trata-se de
negócios. Não gosto que me mintam e me tomem por idiota. –
Obrigando Hayden a olhar para ela. – Ou me respondes, ou eu
prometo, que o próximo golpe não vai ser dado pela Makayla; vai
ser dado por mim…
Hayden cospe na cara de Cassia, irado. Cassia respira fundo
e fecha os olhos, afastando-se do rapaz, limpando a cara com a
manga da camisola. Num gesto rápido, vira-se para trás e dá uma
bofetada forte ao rapaz, fazendo o seu lábio rebentar.
174
Alastair agarra no braço de Cassia.
- O que é que estás a fazer? Isto está a ir longe demais,
Cassia. Ele não é o inimigo.
- Como é que podes ter tantas certezas? – Cassia sacode a
mão de Alastair do seu braço.
- O Alastair tem razão, Cassia. – A voz de Hayden é
suplicante. – Sou apenas um moço de recados, se muito!
Able junta-se a Cassia, apoiando-a.
- Infelizmente para ti, estamos dispostos a usar moços de
recados para enviarmos uma mensagem.
Ziyon coloca-se junto a Alastair.
- Eu não acho que estarmos a torturar o nosso amigo seja a
solução mais viável para descobrirmos o que seja. – Ziyon
prenuncia-se pela primeira vez desde que entrou no laboratório. –
Vamos parar com isto e fingir que nada aconteceu. Ainda podemos
voltar atrás.
Cassia olha para Makayla e Able, que cruzam os braços
determinados com o caminho que escolheram.
- Sabes qual é o problema, Ziyon? – Able olha para o rapaz.
– Nós já não temos nada a perder e, até agora, tudo o que nos têm
dado, é cerca de um milhão de razões para desconfiarmos das
melhores intenções de Samsara.
Able olha para Hayden à espera de uma confissão, mas tudo o
que encontra é silêncio. Esperando por indicações de Cassia,
carrega a sua arma, apontando-a à cabeça de Hayden.
- Não! – Ziyon grita. – Parem, por favor!
A cena de terror é interrompida por uma pancada violenta na
porta do laboratório. Alguém estava a tentar forçar a entrada. O
tempo que tinham, desaparecera já. Uma decisão teria que ser
tomada, ou todos iriam ser presos por traição nos próximos
minutos.
Cassia, irritada, pega em Hayden pelos colarinhos.
- A menos que queiras acabar a tua vida com uma bala nos
miolos, diz-nos o que sabes, miúdo! Estou farta de jogos.
Outro estrondo na porta, Cassia olha para a porta e de volta
ao rapaz, atirando-o com força. Hayden arfa e nega ao pedido de
Cassia.
175
- Muito bem. Makayla… Sabes o que fazer.
Cassia afasta-se, dando espaço a Makayla, que prontamente
aponta a pistola à cabeça o rapaz. Outra pancada na porta.
- Esperem! – Hayden suplica.
Cassia ergue a sobrancelha e olha para Makayla, satisfeita.
- A Comandante Li pediu-me os documentos. – Hayden olha para
a equipa. – Algo que ver com os fundadores de Quimera. Não há
grande informação acerca dos mesmos. As únicas pessoas que sabiam
de algo, estão mortas. É tudo o que sei; por favor, deixem-me ir…
Uma lágrima silenciosa escorre pela face de Hayden, à medida
que fica cabisbaixo. Cassia olha para o rapaz, respirando fundo,
tentando convencer-se de que o que fizeram foi o melhor para
todos.
Outro baque audível na porta chama a atenção de todos para
a situação em que se encontram. Cassia faz sinal aos seus colegas
para se afastarem de Hayden: uma nova decisão terá que ser tomada.
Kay e Ari aproximam-se da porta do laboratório em silêncio: tudo
o que tinham para discutir, já foi discutido noutra vida. Mais
vale restringirem-se à quietude.
Kay chega primeiro à porta e tenta introduzir o seu código
no painel, mas sem sucesso.
- Mas que raio? – Irritada tenta empurrar a porta.
Ari olha para Kay, intrigado.
- Havia alguma obra de manutenção marcada para esta hora? –
Ari tenta introduzir o seu código, mas o painel continua a dar
erro. – Sabes alguma coisa do Hayden?
- Não o vejo desde a noite passada… Não sei nada.
Ari fica desconfiado e bate à porta com força, esperando que
alguém responda.
- Será que está alguém lá dentro? – Ari tenta perscrutar a
porta.
Kay cruza os braços, esperando que Ari oiça algo; no entanto,
não tem que esperar muito, até que também ela consiga perceber
que o laboratório está ocupado. Um grito faz-se ressoar no
corredor, sobressaltando os comandantes.
176
- Ari, eu não gosto do que estou a ouvir. Temos que arrombar
a porta.
Ari corre para ir buscar ajuda, deixando Kay a bater à porta
do laboratório, tentando que lhe abram a porta voluntariamente.
Golpes violentos são dados na porta de aço pesada do laboratório.
Hayden permanece na cadeira atado. No queixo do rapaz marcas de
sangue seco são visíveis.
Cassia olha para o jovem destroçado e fecha os olhos por
segundos, respirando fundo. Ouvindo as vozes de Makayla e Ziyon,
desperta de novo para a realidade.
- O que sugerem de seguida? Tomar Samsara de assalto e
torturar os Comandantes? – Ziyon cruza os braços e olha para os
colegas em jeito de desaprovação. – Não sabemos porque é que a
Kay pediu os ficheiros. A causa pode ter sido totalmente
inofensiva e olhem na alhada em que nos metemos. Não sei que
disparate foi este.
O tom condescendente de Ziyon começa a enervar Makayla, que
sem autocontrolo algum, fala com um tom mais ríspido do que aquele
que pretendia.
- Não te armes em bom da fita, Ziyon! Estás tão metido nisto,
como nós. Tanto quanto sabemos, têm-nos pregado confiança,
enquanto nos mentem na nossa cara! Nós não conhecemos estas
pessoas de lado algum… Trabalhamos com elas há meia dúzia de
semanas.
- Também não nos conhecemos uns aos outros, Makayla. Não é
razão para começarmos à chapada, só porque não confiamos no que
nos dizem. – Ziyon olha para Cassia. – Não podemos julgar que
conhecemos a história toda pelo que nos diz a primeira frase do
livro. Há sempre mais para saber; há sempre o outro lado para
ouvir.
Cassia considera as palavras dos colegas e cruza os braços,
contemplando o chão. Alastair coloca uma mão no ombro da irmã.
- Por mais que me custe admitir, não sabemos as intenções da
Kay. Eu sei que tenho vindo a desconfiar dela desde o início, mas
agora já não tenho certezas de nada. – Alastair olha para Hayden.
177
– Fomos longe demais. Olha para ele… Se calhar, é melhor
perguntarmos aos Comandantes o que se passa e pronto.
Outra pancada é dada na porta do laboratório, que faz as
paredes estremecerem. Cassia suspira: estão a ficar sem tempo;
eventualmente, alguém vai conseguir abrir a porta.
- Ou podemos ir a 2017 e descobrir por nós mesmos o que se
passa. – Able olha para as suas unhas, descontraído. – Só vejo
uma saída para fora deste laboratório, amigos, e não é por onde
entrámos.
Todos olham para Able, considerando a proposta. Outro
estrondo na porta, fá-los ficar inquietos.
Able olha para a porta e engole em seco.
- Como é que vai ser, pessoal? Ir ou ficar? A qualquer minuto
aquela porta vai ser arrombada.
Cassia cerra os punhos e olha determinada para a máquina ao
fundo do laboratório.
- Que mais temos a fazer? Estou farta de ser a última a saber
o que planeiam fazer com o nosso futuro.
Cassia afasta-se do grupo e caminha em direção ao computador.
Alastair suspira e olha para a porta, desconfiando que o tempo
iria ser apertado.
Alastair segura uma arma apontada à porta: as pancadas cada vez
mais fortes e com um intervalo mais curto. Não deve demorar muito
até que consigam forçar a entrada.
Enquanto Cassia e Able tentam aceder aos controlos da
máquina, Makayla dirige-se ao painel de acesso ao armamento.
- Qual é o código de acesso? – Makayla pergunta a Hayden.
Hayden olha para Makayla, desconcertado, e guarda silêncio;
o seu corpo dorido e o seu queixo a latejar.
- Não sei. Só a Kay tem o código do armamento.
Makayla suspira e olha em seu redor. Pegando num extintor
parte o painel de acesso ao armamento, fazendo com que este abra
automaticamente. Sorrindo perante o seu feito, começa a retirar
carregadores extra para as armas que levam consigo. Hayden desvia
o olhar, transtornado com os amigos.
178
Uma pancada forte na porta avisa-os de que estão a ficar sem
tempo. Alastair começa a ficar nervoso; não estava nos seus planos
disparar sobre os Comandantes.
- Despachem-se, pessoal! Precisamos de ir!
Ao ouvir o desespero na voz do irmão e as pancadas cada vez
mais fortes, Cassia, bate com o punho no teclado do computador à
sua frente.
- Acabou-se! Não temos tempo para isto! – Que nem uma flecha,
faz o caminho entre si e Hayden num ápice, apanhando-o pelo
pescoço, quase o derrubando. – Como é que pomos a máquina a
trabalhar?
Hayden olha pasmado para Cassia e sabe que ela não está a
brincar. Cassia força a sua mão a apertar mais o pescoço de Hayden,
este já com dificuldades em respirar.
Makayla olha para a porta, apreensível.
- Nós não temos tempo para ameaças, Cassia. - Suspirando
olha para Hayden e aponta-lhe uma arma ao joelho. Alguém vai ser
obrigado a falar a bem ou a mal.
Makayla prepara-se para premir o gatilho; Hayden fecha os
olhos, assustado.
- Esperem! – Hayden grita, ofegante. – Eu ajudo-vos. Eu
ajudo. Mas alguém vai ter que ficar para trás se não quiserem
desatar-me.
A equipa entreolha-se. Ziyon dá um passo em frente.
- Eu fico. – Ziyon sorri docemente para Able. – De todo o
modo, só iria atrapalhar-vos.
Cassia acena afirmativamente e larga Hayden. Makayla vai até
Ziyon e passa-lhe a pistola para as mãos. Alastair olha para os
dois jovens, com ciúmes perante a cumplicidade, e Cassia espera
junto ao irmão, observando-o.
- Tenta não disparar sobre alguém. – Makayla brinca.
Alastair desvia o olhar da cena e olha para a porta, falando
para Cassia.
- Vá lá! Não temos tempo para isto… - Aponta discretamente
para Makayla e Ziyon.
Cassia ergue a sobrancelha e cruza os braços.
- Será que deteto ciúmes?
179
- Não… - Alastair tenta disfarçar.
- Sabes que o Ziyon é gay, certo? – Cassia ri, vendo a
atrapalhação do irmão.
Alastair olha para Cassia, embaraçado, e vira-lhe as costas,
indo ter com Able. Este junto do computador tomando as ordens de
Hayden. Cassia vê o irmão afastar-se, desconfiada e ri-se perante
a reação inesperada. Verdade que Alastair e Makayla não têm feito
outra coisa se não discutir desde que se conheceram, mas não
pensou que fosse mais do que animosidade entre os dois.
A porta impetuosa da máquina abre finalmente; as braceletes
são calibradas e distribuídas. Ziyon toma o seu lugar junto do
painel de controlo, tomando as instruções do cientista, que coage
apontando-lhe uma arma. Sem mais demoras entram para dentro da
máquina e as portas fecham-se, deixando-os na escuridão.
Todos fecham os olhos. Uma lágrima silenciosa e discreta
escorre pelo rosto de Cassia. Parece que tudo em que toco se
transforma em desastre. Esperemos que esta seja a decisão correta.
O pensamento de Cassia corre a mil à hora.
Quando volta a si, o laboratório já vai longe; abrindo os
olhos, depara-se com uma planície deserta e árida à sua volta.
Algumas árvores enquadram a imagem e ao fundo vê-se grandes tendas
e pessoas a andar de um lado para o outro. O horizonte traz novas
esperanças e é para lá que os jovens caminham.
180
Capítulo 16
A porta do laboratório finalmente dá de si e Ari e Kay conseguem
entrar. Meio aturdidos correm para o interior da sala; a imagem
que encontram toma-os de assalto. Ziyon segura uma arma à cabeça
de Hayden, amarrado à cadeira de que é prisioneiro.
Ao cruzar o olhar dos comandantes, Ziyon rende-se de
imediato, atirando a pistola para os pés de Ari. A máquina está a
trabalhar; eles chegaram tarde.
Ari olha com desaprovação para Ziyon, de braços no ar, a
evitar o seu olhar. Kay corre para Hayden começando a desamarrá-
lo.
- O que aconteceu? – Kay pergunta, avaliando as feridas de
Hayden, que começa a chorar, perante o toque de Kay.
- Desculpa… - Hayden suplica.
- Está tudo bem, querido. – Kay sorri ternamente para o
rapaz, devastado, que a abraça assim que se vê livre das cordas
que o seguravam. – A culpa não é tua.
Kay devolve o abraço a Hayden, mas o seu olhar recai sobre
Ziyon, que engole em seco ao cruzar a ira de Kay.
Ari aproxima-se de Ziyon, inquisidor.
- Porque é que a máquina está a trabalhar, rapaz? Onde está
o resto da equipa?
Hayden levanta-se a custo, após ser libertado, com a ajuda
de Kay.
- Eles estão em 2017, senhor. – Hayden esfrega os seus
pulsos, marcados das cordas.
Kay olha para Ari preocupada e cerra os olhos, num acesso de
raiva.
- Para-os! – Ari aponta para a máquina, desesperado.
- Não posso! – Hayden olha para os comandantes, suplicante.
– Parar agora a máquina, faria com que eles ficassem presos para
sempre no infinito. Eles morreriam…
Ari dirige-se a Ziyon, zangado.
- Que raio estavam vocês a pensar?
- Estamos cansados que nos mintam…
181
Dois agentes entram pelo laboratório e Kay levanta-se
determinada.
- Ziyon Carter, estás preso, sob a acusação de traição. –
Kay aproxima-se do rapaz, altiva. – Espero que valha a pena.
Os agentes aproximam-se de Ziyon e prendem-no. Ziyon, sabendo
que não há nada a fazer, não contesta a decisão da Comandante,
que lhe vira agora as costas.
Ari suspira e sai discretamente do laboratório, vendo o
desenvolvimento dos acontecimentos. Os agentes arrastam Ziyon para
fora do laboratório e Kay dá um pontapé na cadeira a seu lado,
irritada.
Não há, desta vez, como fazer com que o mau pareça melhor;
Kay fecha os olhos, com as mãos à cintura, e confessa a si mesma
que está perdida, sem saber o que vem a seguir.
A equipa dirige-se, um tanto a medo, para o campo de refugiados
que veem ao fundo do horizonte. Pessoas estão reunidas ao lado
das tendas, a preparar refeições e nos seus afazeres diários. Ao
lado de uma árvore, crianças têm aulas; uma jovem professora
ensina matemática, com um sorriso imenso.
Um pouco à frente, no que parece ser o centro do campo,
homens e mulheres trabalham na construção de casas, movendo
materiais de construção de um lado para o outro.
Uma visão um pouco dicotómica; uma revolução parece estar a
tomar lugar entre estas pessoas que não têm mais lugar para ir.
Expulsas das suas casas, tomam agora novo chão como sendo deles.
Uma nova era avizinha-se; a guerra está a chegar. Cassia olha à
sua volta, vendo as caras desconhecidas, sem nenhuma ideia do que
os espera.
Ao abrirem caminho para o desconhecido, caras viram-se para
os observar: forasteiros em território ingrato, é-lhes impossível
passar despercebidos. Maravilhada, Makayla olha ao seu redor.
- Foi assim que Quimera foi construída… - O desabafo de
Makayla é ouvido por Alastair, que sorri, perante a cara de
deslumbramento da rapariga a seu lado.
- Pessoas desesperadas por uma nova oportunidade a
entreajudarem-se. – Alastair olha para Makayla. – Parece familiar.
182
Able intromete-se entre Alastair e Makayla para os chamar à
realidade.
- O que fazemos agora? – Able coloca as mãos na cintura e
para, fazendo todos os outros parar também, formando um círculo.
– Aqui todos se conhecem certamente. Não vamos passar
despercebidos…
Cassia repara numa rapariga, ao redor da sua idade, a olhar
para eles. Able continua a falar, mas Cassia sorri para a rapariga
e vai ter com ela, deixando-os a discutir.
- Olá. – Cassia sorri para a rapariga, esguia, de grandes
olhos azuis esverdeados e cabelo escuro, apanhado num rabo de
cavalo, mal-arranjado. – O meu nome é Cassia; como é que estás?
A rapariga, muito vivaça e bem-humorada, estende a mão para
cumprimentar Cassia.
- Chamo-me Samantha Williams. Prazer em conhecer-te, Cassia.
– Demorando o aperto de mão. – Mas podes chamar-me Sam.
- Williams? – O nome é-lhe familiar. Sorrindo, charmosa,
Cassia acena em direção aos seus colegas. – Eu e os meus amigos
parecemos estar com dificuldades em encontrar uma pessoa. Não sei
se nos poderás ajudar.
Samantha olha na direção do restante grupo; o sorriso esvai-
se e desconfiança vem no seu lugar.
- São de alguma organização não governamental? Para ajudar
com os refugiados?
Cassia hesita na resposta, a pergunta apanhando-a
desprevenida. Não tinha pensado num disfarce.
- Claro que somos… - Cassia não parece muito certa do que
diz, mas passa despercebido. – Estamos à procura de Ernest Black?
Samantha sorri para Cassia e olha para os restantes jovens.
Alastair receia que a nova amizade da irmã não se mostre favorável,
pela hesitação na resposta de Samantha ao pedido que lhe fez.
- Claro; o Doutor… - Samantha indica o caminho a Cassia,
para a seguir. – Venham comigo.
Samantha começa a fazer caminho para uma tenda perto do
centro do campo. Cassia vai no seu alcance, seguida de Alastair,
Makayla e Able.
183
Kay anda de um lado para o outro no laboratório. De repente, tudo
parece ter rebentado nas suas mãos. Parte da sua equipa está
desaparecida e o único que sobra está preso. A Comandante para e
olha para Hayden, sentado com um saco de gelo no queixo,
contemplativo. Levando a mão à testa, acaba por tapar os olhos,
para tentar evitar ver mais desgraças.
- Não percebo porque é que isto aconteceu. – Hayden olha
para a Comandante, esperando que esta dê algum sentido ao que está
a acontecer. – Foi tudo tão repentino. Porque é que eles se
comportaram desta maneira?
Kay parece transtornada; gostava de ter uma resposta melhor
para Hayden, mas ela já não tem certezas de nada. Sentando-se ao
lado dele, segura-lhe na mão, confortando-o.
- Eu gostava de dizer que não compreendo e que não vejo razão
para este comportamento. Mas isso seria mentir-te. – Kay suspira
e evita o olhar do jovem, que a ouve com toda a atenção. – Nós
trouxemo-los para aqui e esperámos que eles seguissem as nossas
ordens cegamente. Nenhum deles pediu isto. Não podíamos esperar
que eles vissem em Samsara uma vocação e que não questionassem o
nosso modo de agir. Talvez o nosso erro seja nos esquecermos de
que eles são apenas humanos.
Hayden levanta-se abruptamente, escarnecendo.
- Isso não lhes dá desculpa para se comportarem como
selvagens; como bárbaros!
Kay olha para Hayden e entende o porquê da sua atitude, por
isso mantém o tom calmo quando volta a falar.
- Quando vives da maneira que eles viveram, em Quimera, a
confiança não é algo natural. – Kay tenta desculpar as ações da
equipa, mas está-lhe a ser difícil arranjar argumentos que os
favoreçam. – Todavia, eu acredito que eles tenham a sua razão;
ainda que um tanto extraviada.
- O que é que a faz pensar isso? – Hayden parece surpreendido
com a reação de Kay perante esta traição por parte da equipa. Um
pouco mais indulgente do que esperava.
- Cada passo que demos até agora fugiu do nosso controlo;
cada missão antecipada e interrompida. Esta equipa misteriosa;
sermos pirateados. Tudo parece muito estranho. – Kay levanta-se e
184
retifica que estão sozinhos, falando baixo, receando que as
paredes tenham ouvidos. – Eu acho que temos uma fuga de informação;
um traidor entre nós. Por isso é que te pedi esta pesquisa.
Esperava encontrar provas de que alguém tem interesses superiores
em ver-nos falhar. Só depois de saber a verdade, planeava falar
com a equipa. Não podia arriscar mais fugas de informação.
- Se tivéssemos falado logo com eles, teríamos evitado todo
este tumulto! – Hayden atira com o pacote de gelo para o chão,
irritado.
Kay evita o olhar de Hayden, sabendo que ele poderia ter a
sua razão. Ainda assim, Kay receava que a fuga fosse proveniente
de um deles, por isso preferiu não arriscar.
- Esperemos que a viagem da equipa se prove frutuosa. – Kay
levanta-se e começa a andar novamente de um lado para o outro,
impaciente. – Algo me diz que estamos prestes a ter maiores
problemas, porque se o traidor está entre nós, de certeza que quem
está por detrás disto já sabe do pequeno desvio da equipa.
- Então e o Ziyon? O que vai acontecer com ele?
- O Ziyon está melhor em reclusão, neste momento. – Kay olha
para Hayden. – Enquanto esperamos, melhor será prepararmo-nos para
o pior. Não devemos ter muito tempo.
Hayden engole em seco, trocando olhares confusos e assustados
com a Comandante. O seu mundo deu uma volta sobre si e não consegue
voltar ao que era antes.
Um rapaz jovem está sentado a uma mesa, no meio de uma tenda
vasta. Ele tem um caderno aberto à sua frente e ao seu redor o
ambiente faz lembrar o de um escritório improvisado, no meio de
um lugar devastado. O seu cabelo castanho e os seus olhos escuros
e profundos fazem lembrar Ari.
A sua concentração é interrompida por um militar, que anuncia
a sua presença ao entrar na tenda.
- Doutor. – O militar espera que o rapaz, certamente mais
novo que ele, reconheça a sua comparência. – Estão aqui algumas
pessoas para o ver. A Samantha está com elas.
O rapaz olha para o militar surpreso e, de seguida, para o
relógio de pulso.
185
- Não estou à espera de ninguém. – Levantando-se, coloca as
mãos nos bolsos e atenta na entrada da tenda. – Manda-os entrar.
Assim que o militar vira as costas, o rapaz retira uma arma
de um coldre, colado debaixo da mesa, e esconde-a atrás das costas.
Não demora muito até que Samantha entre na tenda, seguida de
Cassia, Alastair, Makayla e Able.
Com o mesmo charme de Ari, o rapaz sorri para os seus
convidados inesperados.
- Olá. Não esperava companhia.
Cassia para abruptamente, perante a semelhança entre Ernest
e Ari; não havia dúvida de que tinham encontrado o avô do
Comandante.
- Doutor, encontrei-os no campo, às voltas, à sua procura.
- Obrigada, Samantha, querida. – Ernest pisca o olho à
rapariga. – Eu tomo conta da situação.
Samantha acena com a cabeça e vira as costas para sair,
acariciando o braço de Cassia, ao passar por ela.
Uma vez sozinhos, Ernest avalia os jovens à sua frente com
desconfiança.
- Que posso fazer por vocês, gente?
Ernest crava os olhos em Cassia, curioso. Espera por uma
resposta; mas todos parecem estar incapacitados de falar.
O rapaz parece prestar especial atenção a Cassia, como se a
estivesse a reconhecer ou apenas curioso acerca da rapariga.
Finalmente, Able decide quebrar o silêncio, tomando as rédeas
da conversa. Sorrindo, olha para os seus amigos e para Ernest de
seguida.
- O meu nome é Able; juntamente com os meus colgas: Cassia,
Alastair e Makayla, estamos a começar um projeto de elevada
relevância para o mundo académico, no qual gostaríamos que nos
ajudasse. – Able parece ter agarrado a atenção de Ernest. – Estamos
a estudar campos de refugiados. Nós somos antropólogos e
gostaríamos de ter a oportunidade de fazer algum trabalho de campo
aqui.
Nervoso, Able sorri, esperando que o seu discurso tenha sido
credível. Ernest olha para eles com uma expressão indecifrável;
186
Cassia receia que o seu disfarce não tenha sido aceitável e
acaricia a arma presa à sua cintura.
Para sua surpresa, Ernest começa a rir-se e senta-se, com ar
recetível a olhar para eles, convidando-os a sentarem-se com ele.
Discretamente, volta a colocar a arma no coldre debaixo da mesa.
Os quatro jovens, importunadores da sua paz, cooperam e sentam-
se.
- Porque não disseram logo? – Ernest ri-se. – Posso oferecer-
vos um chá ou café?
Alastair olha para Cassia a seu lado e clareia a garganta.
- Estamos bem, obrigado. – Sorrindo, limpa o suor das mãos
nas calças, nervoso. – Como disse o meu colega, nós gostaríamos
de conhecer melhor o campo…
Ernest interrompe Alastair.
- Porquê este campo em particular? – Ernest parece
desconfiado. – Penso haver campos muito mais ricos em termos de
dados do que este…
Cassia ri e mede forças com Ernest, deixando os outros
apreensivos.
- Eu penso que isso seja para nós decidirmos. – Cassia ergue
uma sobrancelha e decide deitar as cartas do jogo. – De todo o
modo, se quer que seja sincera, o nosso interesse provém mais do
fato de querer tornar este campo numa comunidade. Está a tentar
construir uma cidade, não é verdade?
Ernest inclina-se para a frente, intrigado, fazendo Alastair
engolir em seco. Makayla lamenta a audácia de Cassia, por
momentos.
- Estamos apenas a supor. – Makayla apressa-se a retificar.
– Vimos lá fora as obras…
- Mas que grande suposição! Arrojada, atrevo-me a dizer. Sem
dúvida de que estou na presença de Antropólogos. Sempre a ver para
além do que está à vista.
Ernest dá uma gargalhada e Able junta-se a ele, rindo sem
grande vontade de o fazer. Cassia não parece estar a achar piada
à situação e interrompe o momento.
- A Samantha chamou-lhe Doutor. – Cassia cruza as pernas. –
Que tipo de Doutor é você? Dos que cura, ou apenas dos arrogantes?
187
Ernest fica muito sério a olhar para Cassia, por momentos.
A tensão sobe na tenda vasta, cheia de papéis e dossiers
espalhados. Passados segundos, que pareceram horas para Alastair,
Makayla e Able, Ernest começa a rir perante a pergunta de Cassia.
- Ora que bela piada! Tenho que me lembrar dessa. A Samantha
vai adorar. – Ernest continua a rir, levantando-se e servindo um
copo de chá, numa mesa ao canto da tenda repleta de termos e
garrafas de água. – Eu sou um psicólogo social, se querem mesmo
saber. Parece que somos irmãos académicos.
- Do tipo arrogante, então. – Cassia sorri, sarcasticamente.
– Percebi.
- A menina não acredita em psicologia? Como é que isso
funciona para um antropólogo?
Cassia revira os olhos perante o tratamento formal de Ernest,
já que este não lhe parece muito mais velho que ela.
- Não penso que as minhas crenças profissionais e as minhas
crenças pessoais tenham que ser mutuamente exclusivas.
Ernest volta a sentar-se, considerando as palavras de Cassia.
- Admiro-a. Esse é um exercício muito difícil para um
académico. – Fazendo um brinde a Cassia com a sua chávena de chá.
– Tenho que ser sincero e dizer que não esperávamos ninguém a
bisbilhotar por aí. Terei que falar com os meus parceiros, mas
desde que façam a vossa pesquisa com respeito, não vejo nenhum
impedimento à mesma.
Makayla levanta-se, animada.
- Isso é muita bondade da sua parte. Muito obrigada, senhor
Black. Importa-se que eu e o meu colega Able dêmos uma volta pelo
campo, fazendo algum reconhecimento do lugar? Sabe, para nos
ambientarmos.
Makayla sorri, agarrando no braço de Able, para que este se
levante. Ernest sorri, demasiado simpático.
- Por favor, claro. Estejam à vontade. Hoje são meus
convidados!
Makayla e Able dirigem-se para a saída da tenda, deixando
Cassia e Alastair para trás.
- Enquanto eles vão reconhecer, importa-se de conversar um
pouco connosco?
188
Ernest parece aborrecido com a pergunta de Alastair,
certamente preferia despachá-los e deixá-los andar pelo campo,
sem grandes perguntas. Ainda assim, não faz a desfeita. Sorri,
apoquentado e endireita-se na cadeira.
- Claro. Porque não?
Alastair e Cassia permanecem sentados, deixando que Able e
Makayla saiam para o campo. Ernest parece incomodado com a
perspetiva de responder a perguntas desconfortáveis, mas ainda
assim não deixa de contemplar Cassia.
Makayla e Able andam pelo campo, tentando encontrar algo de
suspeito ou que lhes dê mais informação do que a que têm neste
momento.
Andando lado a lado, permanecem em silêncio. No entanto, o
silêncio incomoda Makayla, fazendo-a sentir que quando fala com o
irmão são apenas palavras vazias, sem significado. Makayla
preferia que as coisas fossem diferentes, que a sua relação com
Able não fosse tão distante. Mas parece que a vida os colocou nas
posições que hoje ocupam; posições bipolares. Mesmo com as
tentativas de Makayla para conquistar a confiança de Able, este
parece não querer que a irmã se aproxime.
- Belo salvamento, mano! – Makayla tenta iniciar uma conversa
casual. – Não teria pensado num disfarce assim tão depressa.
Able coloca as mãos nos bolsos e não faz questão de olhar
para a irmã.
- É o que eu faço.
- Enganar as pessoas… - Makayla arrepende-se das suas
palavras assim que elas saem da sua boca, mas é tarde demais para
voltar atrás. Há coisas que não voltam; as palavras ditas são uma
delas.
- Eu ia dizer improvisar. – Able escarnece e revira os olhos
perante a mente quadrada da irmã.
- Semântica. – Makayla continua em silêncio, olhando para o
pavimento à medida que anda; sentindo-se pouco confortável com o
rumo da conversa e um tanto culpada pelas duras palavras que
lançou ao irmão. – Eu não o disse num sentido pejorativo…
189
- Eu sei… - Able continua a andar, mas é parado por Makayla
que o segura por um braço, obrigando-o a olhar para si.
- Não importa o que penses ou os disparates que eu diga,
Able. Eu irei sempre proteger-te.
Able acena e sorri ternamente para a irmã, que suspira e
deixa o braço de Able, sorrindo de volta; um sentimento familiar
assalta-a, levando-a para outros tempos.
Makayla persegue Able pela rua, tentando alcançá-lo; algo que lhe
parece impossível por momentos, já que o passo de Able é rápido e
agressivo. Able, claramente, está perturbado; a sua expressão
carrancuda faz sobressair o seu lábio ferido e queixo magoado.
- Able, espera! – Makayla grita, na esperança que a sua voz
o faça parar.
Correndo com todo o seu fôlego, os músculos das suas pernas
a arderem, finalmente consegue alcançar Able, puxando-lhe o braço
e obrigando-o a olhar para ela.
- Por favor, olha para mim! – Makayla suplica. – Porque é
que não me contaste a razão do pai te ter expulso de casa?
- Não importa. – Able atira as palavras com brusquidão.
- Importa sim! Não está correto! – Makayla limpa uma lágrima
silenciosa que escorre pelo rosto de Able, acariciando a sua face.
– Não me importa quem amas. Serás sempre o meu irmãozinho. És
perfeito para mim. Seres gay não é um defeito; não importa o que
o pai diz.
- Devias voltar para casa, Makayla. – Able retira a mão da
irmã da sua cara. – Não tens nada a ver com isto.
Makayla abraça Able, contra a sua vontade.
- Não. Nós havemos de nos arranjar. Eu irei sempre proteger-
te.
Able acaba por se render aos braços da irmã, deixando o peso
sair dos seus ombros.
Able bofeteia o braço da irmã, tentando chamar a sua atenção para
o que se passa ao fundo do campo. Pessoas vestidas com uma bata
branca entram, carregadas com pastas, num edifício meio
construído.
190
Makayla observa, desconfiada, e começa a andar na direção do
prédio que lhe parece estranho.
- Sítio pouco usual para se organizar um simpósio, não te
parece? – Comenta, sem olhar para Able, que se vê obrigado a
tentar acompanhar o passo apressado de Makayla. – Que me dizes de
irmos ver de que se trata?
Fazem o caminho até ao prédio; Makayla leva um novo
entusiasmo consigo, na esperança de que ali encontrem finalmente
as respostas para o que lhes tentam omitir.
191
Capítulo 17
Cassia levanta-se, descontraída, observando o seu redor e encosta-
se numa mesa, cruzando os braços. Todos os seus movimentos são
observados atentamente por Ernest; que por sua vez é observado
por Alastair, que não aprecia a maneira como ele olha para a sua
irmã. A expressão de Cassia, no entanto, é vazia.
- O que é que me querem, afinal? – Ernest pergunta, sem olhar
para Alastair, que cerra o punho debaixo da mesa, irritado.
Cassia sorri e toma o controlo da conversa.
- O que faz um psicólogo social num campo de refugiados? –
A sua voz átona.
- O mesmo que vocês, suponho. Vi uma oportunidade para fazer
trabalho de campo.
Alastair recosta-se, deixando Cassia perguntar o que tem a
perguntar.
- Pensei que fosse o chefe. – Cassia inclina a cabeça,
observando Ernest.
Ernest clareia a garganta e remexesse na cadeira, desviando
o olhar da rapariga.
- E sou. Mas isso não me impede de fazer pesquisa.
- Então e quais são os planos para o campo? Certamente
grandes, pelo alvoroço que está lá fora.
Ernest levanta-se e caminha em direção a Cassia. Alastair
fica alerta, de imediato, e incomodado com a súbdita ação do
rapaz.
- Oh, os meus planos são grandes. Muito grandes. – Ernest
sorri, presunçoso, parando a poucos centímetros de Cassia. Cassia
endireita-se e entra no jogo, olhando primeiro para Alastair, para
que este se acalme. – Eu e o meu parceiro, como tantos outros
antes, temos planos brilhantes. Construir uma sociedade do nada.
Como uma tábua rasa.
Ernest avança com a mão para a perna de Cassia, mas a voz
ríspida de Alastair interrompe-o.
- Como é que isso funciona ao certo? – O maxilar de Alastair
a contrair e a sua pose protetora em relação a Cassia, fazem com
que Ernest se afaste gradualmente.
192
Ernest coloca-se em posição de olhar para os dois jovens na
tenda consigo.
- Olhem para este mundo e ao que chegámos. Países à beira de
guerras sem sentido; ódio que emana por todos os cantos deste
planeta, que morre aos poucos, pela nossa própria mão. Nós
visionamos uma sociedade melhor. Uma sociedade do futuro;
autossustentável e igualitária. Uma comunidade de entreajuda, onde
os interesses sejam comuns. Onde os ricos não roubam aos pobres.
– Ernest retira um dossier pesado de uma gaveta na sua secretária
e pousa-o em cima da mesa. – O mundo, governado por leis da
natureza, já chegou onde havia de chegar. Mithras tem uma visão
diferente e uma solução para o nosso mundo. Vejam por vocês mesmos.
Ernest senta-se e aponta para o ficheiro em cima da mesa,
encorajando Alastair e Cassia a lerem-no.
Makayla e Able conseguem entrar no edifício sem grande alarido.
Andando de corredor em corredor, meio perdidos entre as paredes
cimentadas e sem vida; chegam finalmente ao que parece ser uma
entrada para algo mais que um simples escritório. Uma grande placa
à entrada deixa ler em letras berrantes vermelhas “Agência Mithras
– Ciência para a Comunidade”.
Uma grande janela deixa ver o interior da Agência, mostrando
um laboratório de videovigilância. Monitores circundam a grande
sala e pessoas vestidas com casacos brancos de laboratórios
observam-nos, tomando notas nos seus blocos.
Makayla olha à sua volta, desconfortável com o pressentimento
que tem.
- Abe, este edifício é na zona Este da cidade.
- Como assim?
- Este: onde ninguém pode entrar. Ou melhor, onde ninguém se
atreve a ir.
Able olha pela janela, intrigado.
- Então, que lugar é este?
Makayla cruza os braços.
- Demasiado importante para estar à vista de todos, com
certeza.
193
Makayla conseguiu plantar a dúvida em Able. Certamente que
o que estavam a ver não teria boas intenções, se precisou de ser
escondido.
Cassia abre o ficheiro e lê atentamente. Alastair posiciona-se
atrás da irmã, de forma a conseguir ler também. Ernest observa-os
atentamente, com as mãos entrelaçadas sob o queixo, numa posição
de avaliação.
- Mithras é um Deus Persa. O criador da luz, da verdade, da
boa vontade e da justiça. – Ernest levanta-se e começa a vaguear
pela tenda. – Um mediador entre dois mundos opostos. O céu e o
inferno; a luz e a escuridão; ou o homem e a entidade divina. Os
seus seguidores veneravam a pureza e a verdade. Pareceu-me uma
boa metáfora para o que pretendemos atingir. Também os nossos
seguidores venerarão a verdade, a justiça e a pureza.
Ernest para e olha para Cassia, que olha de volta, deixando
Alastair continuar a ler. Cassia ri-se e cruza os braços,
divertida.
- Porquê vigiar o comportamento das pessoas?
- Que outra forma há de as controlar? Como é que reforçamos
a lei e a justiça?
- Vigiar é uma forma de poder. Pensei que valorizavam uma
sociedade igualitária. O poder produz, mas também inibe. - Cassia
dá um passo em direção a Ernest, curiosa. – E, se as pessoas não
sabem porque estão a ser vigiadas, como é que controlam o seu
comportamento ao certo?
Um brilho reluz nos olhos de Ernest perante as palavras de
Cassia.
- És uma rapariga inteligente. Nós precisamos de bons
antropólogos na nossa equipa.
- Não estamos à procura de trabalho. – Alastair olha para
Ernest, intimidante, relembrando-o da sua presença.
Ernest escarnece, ignorando a atitude de Alastair.
- Cassia, nós estamos sempre a ser vigiados. Este campo é
apenas um, de uma série de experiências que pretendemos levar a
cabo.
Cassia parece incrédula.
194
- Vocês estão a realizar uma experiência social com estas
pessoas.
Cassia não fez uma pergunta, afirmou e Ernest entendeu o
porquê. Estava implícito nas suas palavras para quem quisesse
entender.
- Quimera é apenas o início, Cassia. Mithras vai construir
um futuro brilhante de aqui em diante. – Cassia olha para Alastair,
pensando no que poderá ter corrido mal para os planos de Ernest
mudarem no futuro de onde vêm. – Convido-vos a ficar connosco por
uns dias e perceberem por vocês mesmos o tipo de trabalho que
estamos a fazer. Poderá fazer-vos mudar de ideias.
Cassia e Alastair saem da tenda de Ernest pouco convencidos do
que ouviram, mas voltar para casa não é ainda uma opção. Ao longe,
veem Makayla e Able a correr, ofegantes, na sua direção.
Ao alcançarem Cassia e Alastair, Able agarra os seus joelhos,
tentando recuperar o fôlego, falando a custo.
- Há algo de estranho a passar-se naquele edifício. – Able
tenta respirar fundo, o suor a escorrer-lhe pela testa. – Eu
realmente preciso de começar a fazer mais exercício.
Makayla olha para o irmão em desaprovação. A rapariga de
longos cabelos encaracolados loiros, parece que veio a andar
calmamente todo o caminho e não a correr.
- Há ali um laboratório qualquer. Vocês repararam em que
distrito de Quimera estamos?
Alastair interrompe-a.
- Nós sabemos.
Cassia, vendo o ponto de interrogação na cara de Makayla
passa a explicar.
- O Ernest foi bastante franco connosco e contou-nos tudo.
– Cassia olha à sua volta, para as pessoas que andam na sua vida
sem perceberem o que realmente se passa à sua volta. – Todas estas
pessoas irão fazer parte de algo que está fora do seu controlo.
- Como assim? – Makayla cruza os braços.
- Quimera faz parte de uma experiência social. Tudo o que
nos disseram é mentira. Não fomos colocados lá para sobreviver a
guerra alguma. Ou pelo menos não foi essa a primeira intenção dos
195
seus fundadores. Sempre estivemos a ser vigiados; não apenas para
fazer reforçar a lei.
Able endireita-se rapidamente.
- Com que propósito?
- A criação de uma utopia. – Alastair revira os olhos perante
o absurdo das palavras de Ernest, que ainda ecoam na sua mente. –
Claramente este gajo não está bem a ver no que Quimera se vai
tornar. Sempre fomos mais oprimidos do que uma sociedade
igualitária.
Cassia ouve as palavras de Alastair e apercebe-se de algo.
- Esperem lá! Tens razão. A experiência falhou. – Cassia
agarra no braço do irmão. – A Leah faz parte da Agência Mithras.
Alguém está a tentar apagar o erro que cometeu. Todas estas
pessoas; ninguém iria aprovar este projeto. Não é ético. Alguém
está a tentar reverter a construção do Projeto de Quimera.
- Tens razão, Cassia. – Makayla vai de encontro ao pensamento
da amiga. – Se eles colocaram aqui pessoas, com o intuito de
servirem de cobaias numa experiência, vai certamente levantar
algumas questões éticas.
- Então, eles estão a tentar apagar a nossa existência por
completo?
Alastair cruza os braços e aperta a cana do nariz, cansado
das complicações.
- Isso parece uma tarefa extremamente complexa e difícil de
executar. – Able cruza os braços e olha para o vazio,
contemplativo.
Hayden está a tentar concertar o painel da porta do laboratório,
quando Kay entra disparada com caixas na mão, que pousa na mesa.
Hayden olha para as caixas curioso com o seu conteúdo.
- Quando é que vamos poder trancar essa porta?
Hayden olha para o painel em curto-circuito, atrapalhado e
ri-se.
- Em breve? – Hayden aproxima-se da mesa, tentando desviar
o assunto. – Que traz aí, Comandante?
- Arquivo morto. Consegui encontrar alguns ficheiros
antigos.
196
- Não temos isso tudo em ficheiros eletrónicos?
Kay começa por destapar uma das caixas poeirentas.
- Sabes como é isto de arquivar ficheiros. Alguma coisa acaba
sempre perdida ou alguém se esquece de digitalizar algo. –
Procurando na caixa, retirando todos os ficheiros para cima da
mesa. – Estes ficheiros têm pelo menos oitenta anos. E eu não
tenho autorização para os requisitar, por isso temos que ser
discretos.
Hayden vai em direção à porta, encostando-a. Volta de seguida
para junto de Kay, ajudando-a a remexer nas caixas.
Hayden agarra numa folha solta, que caiu para o chão.
- O que é Mithras?
Kay fica alerta perante a pergunta de Hayden e o seu
semblante escurece.
- Como é que sabes esse nome?
- Está aqui. – Hayden passa a folha a Kay, que a arranca da
mão do rapaz, como se este tivesse mencionado um fantasma. – Tem
algum significado?
- Mithras é o governo de Quimera. Samsara é apenas um ramo
de Mithras. Nós trabalhamos para eles.
- Então, historicamente falando, se Mithras fosse a Casa
Branca, nós seriamos a CIA? – Hayden tenta colocar alguma lógica
nas palavras de Kay, que claramente ficou perturbada.
- Mais ou menos; quero dizer, Mithras não é propriamente uma
entidade governamental, mas uma instituição científica que
governa, segundo o seu molde, a cidade de Quimera.
- Qual o seu propósito, então? – Hayden cada vez está mais
confuso.
- Ninguém sabe realmente. – Kay encolhe os ombros. – Samsara
está encarregue da segurança de Quimera e de fazer cumprir a lei.
Eu não tenho acesso à Agência Mithras, por isso…
Kay não acaba a frase, lembrando-se de algo importante. A
sua tez muda de cor e vê-se forçada a sentar-se. O rapaz olha para
a Comandante, preocupado.
- Como pude ser tão estúpida? – Kay discute consigo mesma,
deixando de dar conta da presença de Hayden. – Todas as ordens;
todas as reuniões. Ele sabia de tudo… Hayden! Consegues aceder ao
197
perfil do Ari? – Kay volta a remexer nas caixas à procura de mais
informação.
Hayden dirige-se ao computador, confuso.
- Claro…
Hayden senta-se ao computador, mas é parado por Kay de
imediato.
- Isto não é bom. – Kay levanta-se com um ficheiro na mão.
– Para que dia em 2017 viajou a equipa, Hayden?
O cientista bate com os dedos no teclado do computador de
imediato, apreensivo perante a reação de Kay.
- Trinta de Maio, porquê?
Kay leva as mãos à cabeça.
- Porque houve um massacre no campo de refugiados no dia
trinta de maio de 2017. No mesmo campo onde está a nossa equipa e
nós não temos meios para avisá-los.
Kay esfrega os olhos com a mão, sem conseguir processar toda
a informação nova. Levantando-se rapidamente, decide que precisam
de uma nova estratégia.
Cassia vagueia pelo campo, a falar com pessoas, enquanto Alastair
e Able jogam futebol com as crianças. Makayla observa de longe,
sentada na relva a apanhar o sol dessa tarde tranquila.
Do longe, Cassia sorri para Makayla, despedindo-se de
imediato da senhora com quem fala. Andando em direção a Makayla é
parada por uma menina de seis anos, que lhe entrega uma flor.
Ternamente, Cassia dá um beijo na testa da rapariguinha, vendo-a
voltar para os braços da sua mãe.
Olhando para o céu límpido, inspira o ar da floresta que os
rodeia e chega finalmente ao lado de Makayla, sentando-se.
Observando Alastair e Able a jogar futebol, riem-se das macacadas
que estes fazem com as crianças.
Numa decisão momentânea, Cassia levanta-se e puxa Makayla,
obrigando-a a levantar-se também. Empurrando a loira até ao campo
de futebol, juntam-se ao jogo.
Os quatro amigos divertem-se e riem, sem suspeitarem do que
os espera.
198
Kay está sentada, descansando a cabeça sobre os braços, enquanto
Hayden tenta aceder ao perfil de Ari.
Neste momento é a única coisa que conseguem fazer; esperam
ter tempo para conseguir arranjar forma de avisar a equipa do
perigo que correm, mas há que estabelecer prioridades. Precisam
de saber em quem podem confiar, para depois os poderem salvar.
Hayden chama por Kay, fazendo-a grunhir e levantar-se
lentamente da sua posição de desespero. Suspirando, Kay vai ao
encontro do rapaz sentado ao computador.
No grande ecrã aparece a fotografia de Ari: mais novo e com
um ar mais sereno e descansado do que estavam agora acostumados a
vê-lo. Ao lado, um grande selo onde se pode ler Confidencial a
letras berrantes vermelhas no relatório, editado para
impossibilitar a sua leitura. Kay cruza os braços e respira fundo.
Hayden olha para a Comandante, lamentando.
- Não tenho autorização para aceder ao relatório original.
- Consegues pirateá-lo? – Kay está desconfiada e nada parece
poder demovê-la de descobrir a verdade; nem mesmo a lei.
Hayden fica atrapalhado, pensando que Kay lhe poderá estar
a fazer um teste, ainda que a ocasião não seja a mais indicada.
- Poderia fazê-lo; hipoteticamente falando, pois estaria a
quebrar imensas leis.
Kay não vai arriscar ter um espião na sua equipa; já
enfrentam inimigos suficientes, sem lhes abrirem a porta e
deixarem-nos entram.
- Fá-lo! – A ordem de Kay é clara e Hayden engole em seco,
ficando sem reação por momentos.
Quando Kay volta a olhar para o rapaz, erguendo a
sobrancelha, Hayden percebe que a Comandante não está com
paciência para grandes esperas e põe-se a trabalhar.
Não demora muito até que Hayden consiga aceder ao ficheiro
original.
- Já está.
Kay sorri, perante o quão breve Hayden conseguiu entrar na
base de dados da Agência; não admira que sejam pirateados tão
facilmente. Kay começa a ler de imediato o ficheiro e o que vê
não lhe agrada.
199
- O Ari trabalha para Mithras. – Alguma desilusão passa pela
expressão da Comandante. Pensar que acreditou nele, começa a dar-
lhe voltas ao estômago. – Ele é o espião.
Hayden não acredita no que ouve.
- Como assim? Que prova isso?
- Mithras não é propriamente uma Agência que tem em vista os
melhores interesses da população. – O semblante de Kay é triste.
– Há muito que eles desistiram de Quimera. O melhor é pegarmos no
Ziyon e sairmos daqui. Não sei do paradeiro do Ari e dado os
últimos acontecimentos…
Hayden levanta-se, contrariado.
- Não. Então e a equipa? A máquina não é propriamente
portátil…
Os ombros de Kay descaem e um suspiro profundo sai do fundo
da sua alma.
- É melhor esperarmos que eles voltem. – Hayden não consegue
disfarçar o ar de desaprovação.
Kay sorri, para espanto do jovem, e começa a andar em direção
à saída do laboratório.
- Eu tenho uma ideia melhor.
Hayden olha para o vazio, sem compreender o comportamento da
Comandante, que saiu disparada porta fora.
200
Capítulo 18
Os quatro amigos seguem Ernest Black, numa visita guiada pelo
laboratório de Mithras, ainda a ser construído. A única sala
operacional é o laboratório de videovigilância, onde já uma equipa
de cientistas começa a tratar de pesquisa e dados.
Ernest para junto ao vidro duplo, não querendo interromper
os seus trabalhadores. Cassia ri-se ao parar junto dele, fazendo-
o olhar, curioso, para ela.
- Qual é a piada, Cassia? Não gostas do que vês?
Alastair clareia a garganta, controlando a sua ira, perante
a familiaridade com que Ernest está a tratar a irmã.
- Até os seus trabalhadores estão a ser vigiados. - Cassia
aponta para o vidro.
Ernest observa os monitores através do vidro.
- Temos câmaras em todo o campo. – Começa a explicar. – Todos
os atos de violência serão antecipados pelo nosso sistema. E a
nossa Agência de Segurança fará tudo para os impedir.
- E depois? – Alastair olha para o reflexo de Ernest no
vidro. – As pessoas não vão parar de cometer crimes. Há sempre
maneiras de fugir ao sistema.
- Não desta maneira. O que nós estamos a fazer é mais
sofisticado do que parece, Alastair. Nós estamos a tentar
modificar o comportamento das pessoas. Isso demora tempo. – Ernest
pausa e vira-se para os jovens, recostando-se no vidro, de braços
cruzados. – A evolução não tem nenhum propósito; nenhum destino
específico. Cada modificação genética que sofremos é conseguida
através do tempo; as modificações de comportamento funcionam da
mesma forma. Mithras pretende reabilitar a raça humana; dar-lhe
um novo fôlego.
Makayla escarnece.
- Estranhamente isto está a parecer-me um discurso como
tantos outros. Mais cedo ou mais tarde, são as ideias que se
tornam perigosas; não os interesses vigentes. – Makayla sorri,
incapaz de aceitar o discurso de Ernest de ânimo leve. – Mao
Zedong também pensou que conseguia construir uma nova sociedade e
quase destruiu a China no processo.
201
Ernest acena com a cabeça.
- Nós não somos ditadores, menina Makayla. Todos neste campo
estão aqui de livre vontade; procuram um futuro mais risonho. Um
lugar onde sejam aceites. Todos são livres de ir embora a qualquer
momento.
- Claro. Apenas não sabem que fazem parte de uma experiência
científica. – O tom de Makayla é reprovador. – Onde está a ética
nisso?
- Os indivíduos saberem do seu papel neste tipo de
experiência iria alterar os resultados. – Ernest tenta que as suas
desculpas façam as suas ações soar melhor, mas os jovens não
compram o que ele tenta vender. – Evolução e revolução são duas
coisas distintas. Nós pretendemos uma mudança comportamental
gradual: a evolução é espontânea e inexorável. Apenas estamos a
providenciar as circunstâncias para ela tomar lugar.
- Como se isso justificasse invadirem a privacidade das
pessoas. – Cassia revira os olhos.
- A mudança é inevitável, Cassia. Especialmente em
instituições humanas. – Ernest coloca uma mão no ombro de Cassia,
esta ficando incomodada com a invasão do seu espaço pessoal. – Se
temos um melhor caminho, porque não ajudamos a raça humana a
segui-lo?
Able, vendo a cara de Alastair a ficar vermelha, coloca-se
entre Ernest e Cassia, forçando-o a retirar a sua mão do ombro da
rapariga.
- Porque não é um caminho natural. – Able sorri e agita os
braços, ao falar. – Se me lembro corretamente das minhas aulas de
biologia, a evolução tem o seu próprio momento, acontece
espontaneamente. Vocês estão apenas a forçar esse momento.
Ernest recusa-se a ver outro ponto de vista para além do
dele.
- Estamos? Existem comunidades que operam fora da sociedade
convencional. Como é que o que estamos aqui a criar é diferente?
Só porque é baseada na ciência, em oposição a religião ou
ideologia?
Cassia desvia Able do seu caminho e dá um passo em direção
a Ernest.
202
- Pode dar-me todos os argumentos que quiser. A minha única
pergunta é: quanto tempo?
Inquisidores, todos olham para Cassia, sem perceberem a sua
pergunta ou com que intenção a colocou. Antes de alguém dizer
alguma coisa, Cassia continua:
- Quanto tempo antes de esperarem mudanças no comportamento
humano? Esperam que as pessoas parem de se matar umas às outras?
Que parem de usar violência contra outros seres vivos? Esperam
que se acabem as guerras, a destruição, os genocídios? – Todas as
perguntas de Cassia são retóricas. Ernest observa-a atentamente.
– Desde o início da nossa existência que devastamos tudo à nossa
volta por conveniência. De um ponto de vista evolucionista, somos
a raça mais jovem à face da Terra, que temos vindo lentamente a
destruir. Vida emanava este mundo muito antes de nós aparecermos.
Com isto, pergunto: quanto tempo acha que Mithras vai levar a
calibrar o desenvolvimento biológico básico da raça humana? Porque
nós somos aquilo que somos; contrariar os nossos instintos parece-
me extremamente difícil e inútil.
Cassia finaliza o seu discurso, permanecendo indiferente a
Ernest, apenas esperando uma reação. Ernest tem facas no seu olhar
quando volta a olhar para Cassia
- Não posso dizer que não me desiludes, Cassia. – A voz de
Ernest é mais ríspida agora. – Estava esperançoso que entendessem
o nosso projeto e quiçá, vos juntásseis a ele. Nós não queremos
mal destas pessoas; apenas um futuro melhor para as próximas
gerações. O mundo lá fora está a ficar um pouco confuso. A tensão
entre os países é palpável: o conselho de segurança das Nações
Unidas está de mãos atadas. O nosso pequeno projeto científico
poderá muito bem ser a última esperança para a Humanidade.
Ernest bate ao de leve no vidro e suspira, olhando para
Cassia. Dois militares saem e tapam todas as possíveis saídas.
Cassia, Makayla, Alastair e Able estão encurralados.
Ernest sorri, presunçoso, para Alastair que se contém para
não lhe bater.
- E eu a pensar que podíamos ser todos amigos. – Ernest dá
uma gargalhada e vira as costas aos quatro jovens. – Prendam-nos!
Não podemos correr o risco de eles darem com a língua nos dentes.
203
Afinal, o nosso projeto não é propriamente sancionado pelo
Governo.
Ernest sai, a rir-se, deixando os jovens com os militares.
Alastair tenta enfrentar os homens que os encurralam, mas antes
que possam fazer alguma coisa, outros dois militares saem para o
corredor. Decidindo que não conseguem lutar contra o inevitável,
rendem-se, sendo arrastados corredor fora, algemados.
Ziyon está sentado de frente a um cadeirão vazio e uma lágrima
escorre-lhe pela cara. Estava habituado a trabalhar os campos e
as plantações do distrito Sul de Quimera; não gosta da sensação
de inutilidade que está a sentir. A culpa invade-o.
Uma rapariga, ligeiramente mais velha que ele, entra na
divisão e olha-o com desaprovação.
- Espero que estejas contente. Levaram-na.
Ziyon levanta-se e tenta consolar a irmã.
- Eu fiz o que tinha que ser feito. Achas mesmo que o governo
não ia descobrir que ela estava doente?
A rapariga bofeteia Ziyon, que não se atreve a voltar a
enfrentar o seu olhar.
- Como foste capaz de denunciar a tua própria mãe?
Virando as costas a Ziyon, deixa-o sozinho, na divisão que
é banhada pelo sol da tarde de verão.
Dois agentes guardam a cela de Ziyon, que se encontra cabisbaixo,
sentado na cama a contemplar o chão. Passos ouvem-se no corredor
escuro e os dois guardas ficam alerta de imediato, sendo uma hora
em que ninguém deveria estar ativo na Agência.
A silhueta de Kay é inconfundível, o seu cabelo liso e
comprido a cair-lhe sobre os ombros. Assim que se apercebem de
quem se trata, os dois agentes, atrapalhados, endireitam-se,
saudando-a.
- Comandante! – Um dos agentes manifesta o seu apreço de
imediato.
- À vontade, agentes. – Os agentes voltam às posições
originais e esperam que Kay volte a falar. – Como é que está o
nosso prisioneiro?
204
- Bem, Comandante!
Kay olha para Ziyon, que se levanta de imediato, expectante.
- Podem libertá-lo, sob o meu comando. – Kay não desvia o
olhar de Ziyon, dando a ordem num tom seco.
Os agentes entreolham-se, sem se mexerem do mesmo sítio.
- Mas, Comandante; o prisioneiro é acusado de traição. Sabe
que não o podemos libertar sem uma ordem selada do…
- Eu estou a dar a ordem agora! – Kay levanta a voz, com uma
postura severa, arregalando os olhos aos agentes.
- Perdão, Comandante. Não era minha intenção questionar a
sua autoridade. – O agente volta a saludá-la, colocando-se no seu
lugar.
- Bem me queria parecer que não. – Kay acena com a cabeça
para Ziyon. – Agora, abram a cela.
De imediato, corroborando com a ordem, o agente abre a porta
da cela, deixando Ziyon sair. O segundo agente retira as algemas
ao rapaz, que olha para Kay, intrigado com a sua súbita liberdade.
- Obrigado. – Ziyon sorri. – Peço desculpas pelo que
aconteceu.
- Neste momento, temos assuntos mais importantes. – Kay vira
costas e começa a andar, encorajando Ziyon a segui-la. – Vamos
lá! Temos trabalho a fazer!
Cassia, Makayla, Alastair e Able são escoltados para uma cela,
por corredores escuros, numa prisão subterrânea. Os militares
empurram-nos para uma cela velha, por uma porta de ferro pesada e
ferrugenta. A cela está repleta de teias de aranha e tem palha no
chão. Não existem janelas, pelo que há pouca iluminação. Um a um,
são-lhes retiradas as algemas e colocadas outras, presas ao chão.
Able é o último a ser encarcerado, levando a situação
levianamente.
- Que aposentos chiques temos nós aqui… - Able ri-se e
levanta os braços para o militar, carrancudo, lhe tirar as
algemas.
O homem, de porte pesado, sorri de volta para Able; um
sorriso forçado que logo se esvai. Colocando-lhe as novas algemas,
205
certifica-se de que Able está bem preso, puxando as correntes com
força em demasia, fazendo o rapaz cair de joelhos no chão.
Able grunhe, com a dor.
- Não há necessidade para isto… - Able tenta levantar-se,
mas cedo desiste da ideia. – Sabe que mais? Para pessoas que estão
a tentar erradicar a violência do mundo, parecem bastante adeptos
dela.
Dando uma volta à cela, certificando-se de que estão todos
bem presos e confiscando as armas dos jovens, o militar sai
fechando a porta da cela. O trinco a fechar, juntamente com a
liberdade dos quatro prisioneiros, ressoa nas paredes de tijolo.
A sala escurece. Makayla e Alastair sentam-se, encostados à
parede. De cara cerrada, Alastair bate com a cabeça, ao de leve,
na parede e suspira, chateado. Certamente que fugir não é uma
solução ao seu alcance.
Kay entra no laboratório, seguida de Ziyon e logo se depara com
Ari, à conversa com Hayden. Assim que dá conta do rapaz a olhar
para a entrada, Ari vira-se, ficando admirado com a presença de
Ziyon.
- Ari. – Kay não sabe o que dizer. Depois das últimas
descobertas, receia falar com o homem à sua frente. Uma medição
de forças silenciosas toma lugar, com Kay a puxar para um lado e
Ari a puxar para o outro. – Por onde andaste?
A pergunta de Kay é feita com casualidade. Ari nem se digna
a responder, os seus olhos acusadores a recaírem sobre Ziyon.
- Não esperava ver o Ziyon fora da sua cela.
Um momento de silêncio constrangedor toma lugar. Ari e Kay
olham-se fixamente, até que Kay inclina a cabeça e sorri,
confiante de si mesma. Kay cruza os braços e não tira o sorriso
presumido da cara.
- Não vi necessidade de ele estar confinado a uma cela; tal
como não vejo necessidade de me estar a justificar perante ti.
- Não o mandaste prender?
- Não vais responder à minha pergunta? Passa-se algo que não
me estejas a contar?
206
Outro momento de tensão se faz sentir; o silêncio incomoda
quem os rodeia. Ari parece estar a suspeitar da atitude de Kay e
lentamente coloca a mão sobre o coldre da sua arma. Kay observa a
reação de Ari e suspira. Era a última prova de que ela necessitava
para ver confirmadas as suas suspeitas. Rindo perante o gesto
desesperado de Ari, inclina o corpo sobre a perna direita e espera
atentamente que Ari tome a sua decisão.
Escarnecendo, Ari revira os olhos e cruza os braços,
arrependendo-se de imediato da sua precipitação.
- Tens razão, Kay. Peço desculpa. – Irrealista, Ari, espera
que Kay não tenha reparado no seu gesto e tenta contornar a
situação. – Tive assuntos pessoais para tratar.
Ari sorri, charmoso para a Comandante.
- Certo.
O telemóvel de Ari toca e ao ver o identificador de chamadas,
suspira.
- Tenho que ir andando. Desculpa. – Ari sorri e olha para
Ziyon. – Ele tem que voltar para a cela em breve. Sabes as regras,
Kay.
- Claro. As regras.
Ari desaparece pela saída do laboratório e Kay fica pensativa
a olhar para o vazio. Conclui que este encontro não correu da
melhor forma. Não pretendia revelar a sua mão tão cedo; só lhe
resta esperar que Ari não tenha desconfiado de nada. Quanto mais
tarde ele descobrir que Kay já sabe da sua verdadeira identidade
melhor. Afinal, há que manter os inimigos por perto.
Makayla e Alastair estão sentados lado a lado, encostados à
parede. Paralelos a eles, estão Cassia e Able. Todos contemplam o
vazio, à exceção de Cassia, que descansa a cabeça nos joelhos.
Able boceja e tosse de seguida.
- Quanto tempo é que o Ser Humano aguenta sem água? – Able
pergunta, incomodado com a garganta seca.
Lentamente, Cassia levanta a cabeça e responde, meia
pensativa.
- Entre uma semana a dez dias, mais ou menos. Uma vez que a
água é o elemento básico de qualquer matéria orgânica e o meio
207
pelo qual ocorrem a maioria das reações bioquímicas do corpo, é
impossível viver sem ela, como é óbvio. – Cassia pausa por
momentos. – Eventualmente, vais sentir a boca seca, também a pele
e a membrana mucosa. Vais ficar irritável, possivelmente ficar
febril, com baixa pressão sanguínea e um ritmo cardíaco acelerado.
Podes experienciar delírios e ficar inconsciente. Devo continuar?
Able olha boquiaberto para Cassia e semicerra os olhos,
começando a sentir-se nauseado.
- Esquece a minha pergunta.
Cassia olha para o canto da cela e tenta decifrar o que vê.
- Aquilo é um rato?
Makayla grita de imediato e quase salta para o colo de
Alastair.
- Onde? Onde? Socorro! – Levantando-se muito depressa,
examina o chão atentamente. – Odeio essas criaturas…
Alastair olha para a irmã, franzindo a testa, desconfiado da
sua súbdita calma.
- Estás extremamente tranquila para alguém que acabou de ser
encarcerada num universo alternativo ao seu, Cassia.
Ruminante, Cassia olha para o teto.
- Ninguém planeia um homicídio em voz alta. – Cassia ri,
voltando depois a um breve silêncio. – O que acham que devemos
pensar de todas as referências mitológicas?
Makayla respira fundo, enquanto continua a examinar o chão,
recusando-se a voltar a sentar-se.
- Nem sequer fazem sentido. Para além de sermos uma
comunidade sem religião ou crenças no sobrenatural: Mithras é um
Deus persa e Quimera um monstro mitológico da Grécia Antiga, que
simboliza a criação de uma utopia.
- E Samsara é o ciclo de reencarnações na religião Hindu… -
Cassia parece distante ao falar.
- Então, mas que significa tudo isso? – Able olha para as
duas raparigas, intrigado.
- Se calhar não significa nada. – Alastair revira os olhos.
– Vocês ouviram o discurso do Ernest. Claramente, passaram ao lado
da sua vocação para o drama.
Makayla olha para Alastair muito séria.
208
- Tudo tem um significado. Só tens que estar disposto a ver
para além das cortinas de fumo.
Alastair olha para Makayla e sorri. Normalmente, teria
começado uma discussão com ela, acerca da patetice filosófica que
às vezes diz. No entanto, não era a melhor altura para stressarem
um com o outro, por isso deixa passar esta vez.
Kay e Ziyon permanecem em frente à máquina, já de portas abertas.
- Tens a certeza de que vais bem sozinho? – Kay olha para o
rapaz preocupada.
- Claro. – Ziyon acha a preocupação de Kay ternurenta. –
Vocês são precisos aqui. A situação também não está fácil por
estes lados.
- Percebeste o que tens que fazer?
Ziyon sorri, reconfortante.
- Sim. Encontrar a equipa e voltar para aqui o mais rápido
possível.
- É isso mesmo. Quero-vos aqui, aos cinco, o mais breve
possível. – Kay afaga o ombro de Ziyon. – Boa sorte. Mas, só para
o caso de a sorte não chegar.
Kay passa uma pistola a Ziyon, que este aceita a custo,
suspirando. Ziyon entra para a máquina e ao sinal de Kay as portas
fecham, transportando o rapaz para o resgate dos seus
companheiros.
Leah espera que Rohan pouse o telefone, sentando-se numa cadeira
à secretária. Eles não estão sozinhos. Nas sombras, sentada num
cadeirão virado para a janela, permanece uma silhueta feminina,
que atenta na conversa dos dois.
Rohan pousa finalmente o telefone e olha para as suas duas
convidadas, com um ar satisfeito.
- O Ari finalmente deu notícias. – Rohan esfrega as mãos e
senta-se na secretária. – Parece que Samsara está num tumulto.
Leah escarnece.
- Devíamos tê-los morto quando tivemos a oportunidade. –
Leah atira com uma caneta para a secretária, descontente.
Rohan olha para a rapariga em jeito de repreensão.
209
- Nós ainda precisamos deles. Quando já não precisarmos podes
cortar-lhes as cabeças e usá-las como troféu ao pescoço, para ver
se eu me importo.
- Não é essa a questão. – Leah levanta-se e troteia de um
lado para o outro. – Eles estão cada vez mais perto da verdade. E
se eles conseguem impedir-nos?
- Não. – Rohan levanta-se obrigando Leah a parar à sua
frente. – A questão é que a equipa está em 2017, no local de
construção de Quimera. Agora, eu gostaria muito que eles não
descobrissem nada acerca de Mithras e os nossos planos. Vocês
duas, palhaças, não acham que seria bom?
Leah vê-se forçada a concordar.
- O que quer que nós façamos?
- Deem um salto até 2017. Tragam-me a Cassia Miller, viva,
e matem os outros. – Rohan sorri, maliciosamente. – E, se alguém
vos tentar impedir, matem-nos também.
Rohan vira as costas e sai da sala. A figura feminina
levanta-se e junta-se a Leah a olhar para a porta, franzindo uma
sobrancelha. A sua pele mulata, reluz sobre a luz do escritório.
O seu cabelo ondulado cai-lhe sobre o casaco de cabedal preto.
Quando fala a sua voz é doce, mas letal.
- Ouviste o Capitão Williams, Leah. Vai ser um dia em cheio.
A rapariga avança para a porta, passando por Leah, que a
olha com desdém, suspirando.
Kay anda de um lado para o outro, com o pensamento distante, sem
se aperceber de que está a ser observada por Hayden.
Hayden avança para Kay a medo, agarrando-lhe no braço, para
tentar chamar a sua atenção.
- Comandante? O que é que vai ser feito de nós quando a
equipa chegar?
A pergunta apanha Kay desprevenida. Ainda não pensou no
futuro que se avizinha. Kay força-se a sorrir, para não assustar
Hayden.
- Penso que o melhor que temos a fazer é sair de Samsara
assim que eles cheguem, Hayden. Não sabemos com quem o Ari está a
trabalhar.
210
- Fugir parece-me um plano. – Hayden sorri afetuosamente
para Kay. – Mas é um pouco disperso, não? E o que é que fazemos
com a máquina? Não a podemos levar.
Kay ouve as dúvidas e preocupações que assaltam o jovem, sem
saber como o apaziguar.
- Não consegues construir um outro protótipo da máquina
noutro lado?
Hayden olha para Kay, cheio de dúvidas.
- Posso tentar…
- Eu aceito. – O desespero pode ouvir-se na voz da mulher.
– O cabecilha de Mithras é um tipo sem escrúpulos alguns. Temos
que ter o maior dos cuidados e sair daqui enquanto podemos. Se
queremos que isto acabe, a nossa única solução é matá-lo e para
isso precisamos de permanecer nós vivos.
Hayden receia as palavras de Kay.
- Como é que sabe isso?
Kay olha para o chão, contemplativa.
- Porque o Rohan Williams é meu marido.
Hayden fica boquiaberto, meio em choque, a olhar para Kay,
que se senta na mesa, sem saber que mais dizer.
Kay entra pela porta da sua mansão e dirige-se de imediato ao
escritório, colocando a sua arma no cofre. O dia foi longo e o
cansaço começa a afetar o seu discernimento.
Kay inclina-se sobre a secretária e fecha os olhos,
coletando-se por momentos e nem repara na presença de Rohan atrás
de si, a observá-la.
Ao ouvir outra respiração na sala, vira-se repentinamente,
assustada.
- És tu, Rohan. – Kay expira, nervosa e leva a mão ao peito.
– Não estava à espera que estivesses em casa.
Rohan aproxima-se da sua mulher e, carinhosamente, coloca um
fio de cabelo atrás da sua orelha, acariciando-lhe o queixo no
processo. Kay beija-o e força um sorriso.
- Como correu o teu dia em Samsara? – Rohan pergunta,
curioso, agarrando a cintura de Kay.
211
Kay desvia o olhar do marido e tenta afastar-se, mas Rohan
puxa-a para si, com força. Tomando coragem, Kay olha fixamente
para ele e sorri.
- Foi estranho. Tenho um novo parceiro. – Kay coloca os
braços ao redor do pescoço de Rohan. – Ari Black. Por acaso não
sabes de nada acerca disso?
Rohan ri-se e tenta beijar Kay, mas esta retrai-se. Rohan
suspira e morde o lábio, perante a provocação, desviando o olhar
da mulher.
Kay puxa o cabelo de Rohan, obrigando-o a olhar para si.
- Eu não gosto de jogos, Rohan.
- Eu gosto… - Rohan murmura no ouvido de Kay. – Porque não
jogamos um, agora mesmo?
Pegando em Kay ao colo, encosta-a, violentamente à
secretária, começando a despi-la.
- O que é que tens em mente? – A respiração de Kay é ofegante,
numa mistura de satisfação e medo.
Rohan puxa o cabelo de Kay, expondo-lhe o pescoço,
sussurrando contra a sua pele de marfim.
- Eu não gosto de ameaças, meu amor. – Rohan tira o seu cinto
e puxa Kay por um braço, fazendo-a cair no chão.
Kay olha para Rohan, divertida, tentando esconder os seus
receios. Ameaçador, Rohan segura no cinto e dirige-se para a
mulher. O coração de Kay bate violentamente no seu peito, ainda
assim, a sua voz é calma.
- Não sei que tipo de acordo tinhas com a tua ex-mulher,
Rohan. Mas eu não sou ela. – Calmamente levanta-se e vai em direção
a Rohan acariciando-lhe a cara, provocante. – Não há nada que me
possas fazer, pelo qual eu já não tenha passado.
O sorriso presumido de Kay, irrita Rohan profundamente, mas
este gargalha, não querendo mostrar parte fraca.
- Eu não sei se és corajosa, ou extremamente estúpida para
questionares a minha autoridade, Kay. – O telefone toca,
interrompendo-os. – De todas as formas, isto não fica por aqui.
Rohan sai do escritório, deixando Kay sozinha. O sentimento
de repulsa invade Kay, que se abraça, tentando confortar-se. Uma
lágrima escorre pelo seu rosto, impossibilitando-a de se mover.
212
Capítulo 19
O campo que dará lugar à cidade de Quimera está cheio de vida:
crianças brincam na relva, enquanto adultos ajudam carrinhas de
ONG’s a serem descarregadas. Voluntários distribuem comida e roupa
pelo campo. O vento está a soprar ligeiramente, trazendo o cheiro
das flores e árvores que os rodeia; a vida está a acontecer no
local que se transformará em breve.
No horizonte, tiros interrompem a alegria do campo. As
pessoas entram em pânico, tentando tirar as crianças da linha de
fogo. Leah lidera um exército pelo campo adentro, atirando sobre
todos os que cruzam o seu caminho.
Ernest sai da sua tenda, tentando perceber o porquê de tanto
reboliço, quando se depara com o banho de sangue a acontecer sob
a sua vigilância. O chão que pisa, está agora vermelho. Poças de
sangue tapam a relva verde e resplandecente. A sua gente está a
ser morta uma a uma.
Leah alcança Ernest, sem que este se aperceba e agarra-o
pelo pescoço, levando-o ao chão num movimento contínuo. Leah olha
para Ernest e mostra-lhe uma fotografia, estrangulando-o
ligeiramente.
- Onde estão eles? – A voz de Leah é firme e não tem sinais
de compaixão ou arrependimento, apenas urgência.
Ernest luta por respirar.
- Não sei do preto. – Tossindo, tenta que a rapariga retire
a mão do seu pescoço. – Os outros estão na nossa prisão.
Leah sorri e aperta um pouco mais a garganta de Ernest, vendo
a vida a sair lentamente dos seus olhos. Rindo, satisfeita, larga
Ernest, fazendo-o lutar por ar.
Leah levanta-se e ajeita o seu casaco de cabedal preto,
comprido, olhando-se ao espelho.
- Muito bem. – Charmosa, ajuda Ernest a levantar-se. –
Mostra-me o caminho.
Os quatro amigos estão sentados em silêncio, quando ouvem tiros a
serem disparados à porta da sua cela. Assustados, levantam-se,
alertas e engolem em seco, fixando a porta. A respiração dos
213
quatro está sincronizada e ofegante. Presos, sem poderem fazer
nada para se defenderem, sentem-se como presas fáceis, prestes a
serem abatidas.
A porta da cela abre e todos olham, expectantes para perceber
quem entra por ela. Um momento de silêncio passa, até que todos
deixam sair o ar que mantinham preso nos pulmões, respirando em
alivio.
- Ziyon! – Makayla sorri para o rapaz, nunca tão serena por
o ver.
Ziyon sorri para os seus companheiros, agitando as chaves
das algemas no ar, provocando-os. Apressando-se por os libertar,
aproxima-se de Able, que o beija, sem conter a felicidade por o
ver.
- Olá, também para ti! – Ziyon ri-se, ao quebrar o beijo e
lhe retirar as correntes que o prendem.
Able pega em metade do molho de chaves que Ziyon traz consigo
e ajuda-o a tirar as correntes de toda a gente.
- Como é que nos encontraste? – Cassia pergunta, espantada.
Ziyon retira as correntes a Cassia e sorri, presumidamente.
- Ora, eu sou um Antropólogo! – Ziyon diz calmamente, como
se fosse óbvio o significado das suas palavras.
Alastair olha para Cassia, confuso.
- O que raio quer ele dizer com isso?
Ziyon revira os olhos, divertido.
- Quero dizer que falo com pessoas e elas contam-me coisas.
– Ziyon pausa e olha seriamente para todos, enquanto Able acaba
de libertar Makayla e Alastair. – O inferno chegou à terra lá
fora. Mithras atacou.
Alastair agarra o braço de Ziyon, apanhado-o desprevenido.
- Como é que tu sabes da existência de Mithras.
- O inferno também chegou a Samsara. Kay enviou-me para vos
levar de volta. – Ziyon olha para a porta, ouvindo tiros a chegarem
cada vez mais perto deles. – Rápido; eu conto-vos pelo caminho.
Temos que sair daqui!
Ziyon corre para a porta, certificando-se de que é seguro
saírem. Os quatro não veem outra hipótese a não ser segui-lo às
cegas.
214
Chegados à entrada do edifício que os manteve cativos, ficam
chocados com a devastação que encontram. Ao caminharem, andam
sobre o sangue daqueles que conheceram e veem os seus corpos
abatidos, sobre a terra agora vermelha. Ziyon tenta
desesperadamente fazê-los andar, mas os quatro parecem
paralisados, como se de repente o mundo andasse em câmara lenta.
Um vazio assalta-os; os olhos de Alastair começam a ficar
vermelhos, das lágrimas que contém. Ao fundo, Leah sai da tenda
de Ernest e os seus olhos fixam-se nos cinco jovens junto ao
prédio meio construído. O exército, comandado por Leah, começa a
correr na sua direção e Ziyon, em pânico, suplica para que os
amigos comecem a correr.
Sem meios para lutar, decidem aceder ao pedido de Ziyon.
Tiros vêm na sua direção e Alastair é o primeiro alvo, sendo
atingido no ombro. Cassia para e levanta o irmão do chão, ajudando-
o a correr.
Um a um, conseguem contornar rapidamente o prédio e chegar
a um descampado. Cassia certifica-se de que todos passaram por
ela e que ninguém ficou para trás, na confusão. No entanto, ao
olhar, vê-se obrigada a parar abruptamente, quando os seus olhos
se fixam na mulher que lidera agora o exército que vem na sua
direção.
Cassia desvia o olhar, respirando ofegantemente, entrando em
pânico e quando volta a olhar, não volta a ver a mulher. Makayla
volta atrás e pega no braço de Cassia, obrigando-a a correr com
ela.
Quando sentem que é seguro, param.
- Todos têm as suas braceletes?
Todos se apressam por acenar afirmativamente, menos Cassia
que olha para o chão, pensativa. Parece distante e emocionada,
pelo que Alastair tenta chamar a atenção da irmã.
- Cassia! Que se passa?
Cassia olha para Alastair, que segura o ombro ferido, e tem
dificuldade em formar frases que tenham sentido. Respirando fundo,
angariando forças, olha para o irmão.
- Eu acho que acabei de ver a Tara.
215
Todos olham para Cassia como se esta tivesse dito um
disparate.
- Deves estar a imaginar coisas, certamente. – Alastair não
dá importância ao que Cassia diz. – Se calhar era só alguém
parecido com ela.
Ziyon agarra no pulso de Cassia, ligando-lhe a bracelete.
- O Alastair tem razão. Temos que ir!
Cassia respira fundo e concorda com Alastair, determinada a
deixar passar a angústia que sente. O sentimento que a traspassa,
faz a dor que enterrou voltar à superfície.
Alastair agarra a mão de Cassia, olhando-a preocupado, e
todos ao mesmo tempo, carregam nas braceletes, sendo levados por
um vácuo.
Leah chega ao descampado atrasada, encontrando-o vazio.
Irritada, dispara numa mulher ferida no chão, sem piedade. O
exército reúne-se à sua volta e Leah, determinada, abre caminho
entre os homens e mulheres que o rodeiam, calculando o próximo
passo.
Kay entra na sala de monitores, esperando encontrá-la vazia, mas
é surpreendida por Ari, que a olha com preocupação. Levantando-se
de imediato, atenta no queixo ferido de Kay.
- O que te aconteceu?
Kay força um sorriso e tenta desvalorizar a situação.
- Nada, Ari. – Kay senta-se à secretária, tentando esconder
o sentimento de incapacidade que a assalta; tentando enterrar as
emoções.
Ari tranca a porta e ajoelha-se perante Kay, acariciando a
cara da mulher, que o olha com curiosidade.
- Devias deixá-lo… - Ari suspira, olhando Kay nos olhos.
- Não posso. – Kay sorri e passa os seus dedos pelo cabelo
de Ari.
- Porquê? – Ari tenta compreender Kay, mas não consegue.
Parece que com cada palavra dela, vem mais uma mentira. Às vezes
custa-lhe saber em que acreditar.
Kay suspira e escolhe não responder. Ari escolhe perceber
que Kay não quer discutir mais detalhes.
216
Puxando-a gentilmente, olham-se fixamente. Kay enrola os
braços ao redor do pescoço de Ari e puxa-o para si, beijando-o
docemente.
Ari guia Kay até à cadeira e esta senta-se sobre ele,
começando a desapertar-lhe a camisa. A intensidade dos seus gestos
aumenta e beijam-se com urgência, pois sabem que apesar dos seus
mundos não colidirem, a necessidade que têm um do outro é maior
do que qualquer impedimento ao que sentem.
Kay entra na sala de monotorização de Samsara, procurando por um
lugar para descansar a cabeça. Ari está sentado numa cadeira a
olhar para o vazio, mas assim que vê Kay, olha para a mulher e
sorri. Kay senta-se junto a Ari e não olha para ele. Ari volta a
olhar para a parede.
- Tu sabes. – A voz de Ari não denota qualquer emoção.
- Sim.
Sem se mexerem, deixam o silêncio tomar lugar e por momentos
deixam as paredes que construíram à sua volta ruir.
- O que é que vais fazer? – Uma lágrima forma-se no canto do
olho de Ari; uma emoção que luta por esconder.
- Ainda não sei… - A voz de Kay sai como um suspiro, baixa
e murmurante.
A lágrima contra a qual Ari luta vence a batalha e escorre
pela sua cara.
- Eu fiz um juramento… - Ari tenta justificar as suas ações,
mas sabe que não há justificação possível para quebrar a confiança
que Kay tinha nele.
- Eu também o fiz.
Kay respira fundo e as suas paredes voltam a subir. Num
movimento repentino, tomando Ari de assalto, agarra a garganta do
homem a seu lado, virando a cadeira. Pregando Ari ao chão, força-
o a olhar nos seus olhos.
- Chegaste ao fim da estrada, Ari. – Kay aperta a garra que
tem à volta da garganta de Ari, as unhas cravadas na sua pele
morena. – Ou estás connosco ou estás contra nós. Não há lugares
intermédios.
217
Ari não luta por se libertar, deixando Kay permanecer em
controlo.
- Então parece que vais ter que me matar.
Kay escarnece.
- Estás realmente disposto a morrer por uma causa como
Mithras?
- Já não tenho nada que me prenda a este mundo.
Kay alivia a força com que agarra Ari, fazendo-o arfar.
- Tinhas-me a mim…
Os olhos de Kay parecem pretos como a noite e observam o
homem sobre o seu domínio. A decisão que toma de seguida vem-lhe
facilmente. Todas as palavras que nunca disseram magoam tanto como
as ações que tomaram. Todas as noites e todos os olhares trocados
começam a ficar ténues agora. Tudo foi deitado a perder; já só há
uma coisa a fazer e Kay sabe que apenas os loucos se deixam levar
pelo que sentem. O amor é fraqueza e apesar de ter conhecido Ari
quando estava no escuro, não pode deixar que a luz que ele lhe
prometeu tolde o seu discernimento.
Hayden espera no laboratório por algo acontecer. Kay já deixou o
espaço há algum tempo, com a desculpa de que tinha assuntos a
tratar. O rapaz olha para o relógio e fica preocupado com a sua
demora.
Uma luz estala no ar, assustando-o. Os cincos jovens por
quem espera, saem da máquina, agitados e à procura de caras
familiares.
- Finalmente. – Hayden respira de alívio por ver que a equipa
voltou sã e salva. – Voltaram… Pareceu que tiveram fora uma
eternidade.
- Isso é porque estavas nervoso, Hayden. – Ziyon tenta
reconfortar o rapaz, mas cedo se apercebe de que falta uma pessoa
no laboratório. – Onde está a Kay?
Hayden olha para a equipa carrancudo, tentando mostrar-se
magoado pelas altercações no seu último encontro.
- Não sei. – A sua voz é ríspida.
218
Alastair olha para o rapaz sentindo-se culpado pela forma
como o deixaram. Não o pode descriminar por estar a tratá-los com
duas pedras na mão.
Alastair aproxima-se de Hayden e tenta afagar—lhe o braço,
mas este afasta-se de imediato.
- Hayden, pedimos imensas desculpas. – Alastair olha para o
chão. – Sabemos que não chega, mas sentimos muito. De verdade.
Hayden reconsidera a sua atitude, vendo o embaraço na cara
de todos. Quando volta a olhar para Alastair, deixa cair a máscara,
não conseguindo permanecer zangado.
- Puto, o que é que te aconteceu? – Hayden apercebe-se da
ferida no ombro de Alastair. – Foste baleado!
Alastair olha para o seu ombro, lembrando-se da sua ferida.
- Pois foi…
Hayden caminha, com urgência, para o telefone.
- Deixa que eu chamo a Doutora Grant.
- Não! – Cassia interrompe Hayden e todos olham, espantados,
para ela.
- O Ziyon contou-nos o que aconteceu. – Cassia tenta
explicar-se. – Se o Ari é o espião, ele pode ter os telefones sob
vigilância. Fiquem aqui, que eu vou buscar a Laura.
Ziyon olha à sua volta e apressa-se a ir para junto de
Cassia.
- Não devias andar sozinha! – Ziyon sorri. – Eu vou contigo.
Cassia acena e, rapidamente, faz o seu caminho, com Ziyon no
seu alcance. Não esperava a companhia, pois decidiu que há algo
que tem a fazer. Anda assim, decide que a conversa que quer ter
com a médica pode esperar até tudo estar resolvido.
Enquanto esperam, Makayla tenta cuidar do ombro de Alastair
o melhor que consegue, até a ajuda chegar.
Cassia passa, apressada, pelo corredor deserto de Samsara.
A poucos metros da enfermaria, apercebe-se de que Ziyon parou
atrás de si. Desconfiada, vira-se e é surpreendida por uma arma a
ser-lhe apontada.
Ziyon treme com a pistola na mão e a sua expressão é
conflituosa.
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- Mas que raio, Ziyon? Que vem a ser isto?
Ziyon recusa-se a olhar Cassia nos olhos.
- Desculpa… - Ziyon sussurra.
Cassia vê a culpa no olhar do rapaz, que não baixa a arma.
Cassia tenta desarmar Ziyon, mas as suas ações são interrompidas
por uma agulha a ser espetada no seu pescoço. O líquido flamejante
a entrar na sua corrente sanguínea, faz os seus olhos ficarem
pesados e os seus músculos dormentes. Ziyon guarda a sua arma e
chega a Cassia, mesmo a tempo de a impedir de cair no chão.
Segurando o corpo inconsciente da rapariga, olha para a
câmara apontada a si, irado. O agente que apunhalou Cassia espera
que Ziyon tome uma decisão.
Pousando Cassia gentilmente no chão, Ziyon levanta-se
calmamente e vai-se embora.
O agente pega em Cassia e leva-a na direção oposta à de
Ziyon.
220
Capítulo 20
Kay finalmente volta ao laboratório e fica satisfeita por
encontrar a equipa já de volta, mas preocupada pelos preparos em
que os encontra. Alastair está sentado na mesa, sem camisola, com
Makayla a desinfetar a ferida que ele tem no ombro.
- O que é que te aconteceu? – Kay para junto a Alastair,
preocupada.
- Eu estou bem. – Alastair salta da mesa e volta a vestir a
camisola, interrompendo os cuidados de Makayla. – É só um
arranhão.
Kay olha em volta, preocupada por não ver a equipa toda no
laboratório.
- A Cassia e o Ziyon?
- Foram buscar a médica. – Makayla arruma o kit de primeiros
socorros. – O Hayden já nos contou tudo. Desculpe se desconfiámos
de si.
Makayla olha para Kay e sorri, como quem pede perdão.
- Eu também teria desconfiado de mim. – Kay afaga o braço de
Makayla. – Está tudo bem.
Alastair olha para a porta, preocupado.
- Porque é que eles estão a demorar tanto? A enfermaria é
aqui ao lado.
Kay olha para o relógio e suspira.
- Preparem-se para irmos embora! Temos que arranjar um
esconderijo. Levem o que puderem, queimem o resto! – Kay vira as
costas. – Eu vou à procura deles.
Able segue Kay.
- Eu vou consigo! É melhor não andarmos sozinhos.
Kay aceita a companhia de Able e os dois saem, apressados.
Laura está no corredor, quando Kay e Able a chamam.
- Doutora Grant! – Kay chama, ao chegar perto da médica.
Laura sorri ao ver Kay e Able.
- Comandante, como a posso ajudar?
Able mantém o silêncio, deixando Kay e Laura falar.
- Por acaso viu a Cassia e o Ziyon?
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Laura demonstra preocupação ao ouvir o nome de Cassia e se
aperceber de que não sabem do seu paradeiro.
- Não. Não os vejo há uns dias. Está tudo bem?
Kay apercebe-se de que não deveria ter alertado Laura, sem
saber primeiro o que aconteceu realmente.
- Eu preciso de si no laboratório, por favor. O Alastair foi
baleado num ombro.
- Claro!
Apressadamente, Laura dirige-se para o laboratório, deixando
Kay e Able no corredor.
Kay olha para Able, preocupada.
- Vou partir do princípio de que eles estão desaparecidos.
Able concorda.
- Vamos procurar no edifício, Comandante. É o melhor que
temos a fazer. Não podemos confiar em ninguém.
Kay concorda de imediato com Able e, juntos, começam a
procurar Samsara de uma ponta a outra.
Num quarto escuro, um agente arrasta Cassia, inconsciente, até
uma estrutura de ferro. O quarto está praticamente vazio, à
exceção de uma velha mesa de madeira. O chão tem marcas de sangue
seco e correntes espalhadas.
Colocando Cassia estendida no chão, prende-lhe as mãos com
correntes velhas e ferrugentas, passando-as pela estrutura de
ferro. Sem grande esforço, ergue Cassia no ar, fazendo-a grunhir.
Com uma faca, que tira do seu cinto, o agente rasga a camisola
preta de Cassia, expondo o seu abdómen definido e o seu sutiã. O
agente faz tudo com gestos calmos e controlados, como se de um
ritual se tratasse.
Na parede há uma torneira, onde o homem enche um balde de
água, enquanto olha para o relógio. Cassia, suspensa no ar, está
meia inconsciente, abrindo os olhos a custo e sentindo a cabeça a
latejar.
O agente coloca o balde de água em cima da velha mesa de
madeira e, de seguida, uma mala, abrindo-a de imediato. Ligando
cabos a uma velha bateria, olha para a rapariga, presa por
222
correntes e suspira. O agente coloca luvas de borracha e para em
frente a Cassia.
- Má sorte, miúda.
Num movimento rápido, atira com o balde de água a Cassia,
fazendo-a acordar.
Cassia levanta a cabeça ligeiramente, o seu cabelo a escorrer
água; o seu torso molhado. Rapidamente tenta perceber onde se
encontra, mas não tem forças para lutar contra as correntes que
fazem os seus braços latejar. Olhando para o homem, decide
rapidamente que este não lhe é familiar. Os seus olhos recaem
sobre a bateria em cima da mesa, com cabos ligados; Cassia engole
em seco de imediato e a sua respiração acelera.
O agente sorri para Cassia e pega nos cabos, que junta, para
fazer faíscas no ar, caminhando na direção da rapariga.
Alastair está sentado na cadeira, contemplativo. O seu ombro está
tratado e já não há sinais de Laura no laboratório. Makayla olha
na direção de Alastair, preocupada e toma a decisão de ir ter com
ele; no entanto, essa decisão é interrompida pelo regresso de Kay
e Able, que trazem consigo expressões de desilusão.
- Eles desapareceram. – Kay anuncia com a sua entrada.
Makayla, a meio caminho para Alastair, olha surpresa para
Kay e Able.
- Como assim desapareceram? São pessoas, não balões. –
Makayla não se conforma.
Kay para de frente à rapariga e manda os braços ao ar.
- Ao contrário do que pensa o senso-comum, as pessoas podem
apenas desaparecer. – Com as mãos na anca, Kay já não sabe que
mais fazer. – Especialmente em Quimera.
Alastair levanta-se e dirige-se a Kay, apreensivo.
- Onde raio estão eles?
Kay tenta acalmar o rapaz.
- Não sei. O Ari tinha muita gente a trabalhar com ele. É
possível que agentes de Mithras os tenham apanhado.
Kay disse o que Alastair receava desde o início. Levando as
mãos à cabeça, Alastair começa a andar de um lado para o outro,
ofegante.
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- Temos que os encontrar! – Makayla olha para o irmão, que
encolhe os ombros, desanimado.
- Primeiro temos que sair daqui. Antes que mais alguém
desapareça. – Kay pausa e cruza os braços. – Podemos procurá-los
assim que chegarmos a um esconderijo.
Alastair para e olha escandalizado para Kay.
- A minha irmã está desaparecida! Eu não vou sair daqui até
a encontrar!
- Não vamos poder ajudar a Cassia e o Ziyon se estivermos
dentro de caixões! – Kay fala autoritariamente.
Alastair sabe que a Comandante tem razão, mas recusa-se a
aceitar que Cassia poderá estar em perigo.
Able coloca-se entre Alastair e Kay.
- Para onde iriamos?
- Eu tenho um sítio. Preparem as vossas coisas; há uma coisa
que preciso de fazer primeiro. Venho-vos buscar dentro de uma
hora.
Kay espera que todos concordem antes de sair do laboratório.
Kay entra numa carrinha, estacionada na porta das traseiras da
Agência. Casualmente, procura uma música na rádio e liga o carro.
Com um ar determinado arranca pela floresta que rodeia Samsara.
Assobiando com a música que passa, abre o vidro e deixa o vento
entrar.
Na parte de trás da carrinha, o corpo de Ari está atado e
coberto com um lençol branco.
Continuando a conduzir, passa pelas árvores e deixa que o
cheiro a pinheiros emane pelo carro dentro.
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Epílogo
Cassia está cansada e deixa os seus olhos fecharem-se, apesar dos
seus músculos doridos e das queimaduras no seu torso que ardem, à
medida que as gotas de água escorrem pela sua pele. Cassia tenta
evitar todas as coisas concretas que a magoam; de outra forma não
conseguirá aguentar a tortura a que está a ser sujeita.
Tentando ficar alerta, respira fundo, controlando os enjoos
que vão e vêm; provavelmente dos choques elétricos a que o seu
corpo foi submetido pelo que lhe pareceram horas. A sua boca está
seca e os seus braços doridos, de acatarem com o seu peso suspenso.
O agente observa-a, encostado à mesa. Estava na hora da
pausa: o coração de Cassia não aguenta tantos choques seguidos.
Quando Cassia vê o homem a pegar nos cabos outra vez, sabe que o
seu descanso acabou.
- És forte, rapariga. – O agente ri-se. – A maioria dos
homens já teria desmaiado.
Cassia ignora o comentário, esperando que o homem acabasse
o trabalho.
- O que é que você quer de mim? – A voz de Cassia está rouca
e fraca.
O agente ri-se.
- Eu não quero nada, miúda. Estou só a seguir ordens. – O
homem volta a pousar os cabos, para alívio de Cassia. – Parece
que te meteste com as pessoas erradas.
Cassia atira a cabeça para trás, deixando uma lágrima
escorrer pela sua cara; cansada, deixa a sua mente divagar. Tenta
perceber como chegou àquela sala. Era um verdadeiro milagre estar
ali; estar viva e, no entanto, as condições em que se encontra
não são as melhores.
O seu pensamento é interrompido pela porta a abrir. Passado
um momento, decide olhar para a entrada, para perceber se alguém
tinha entrado ou se o agente tinha saído.
Quando vê quem está à sua frente, fica boquiaberta. Um
momento passa até que Cassia solta uma gargalhada sarcástica. Às
vezes pergunta-se se é apenas a sua má sorte, ou se o mundo está
a operar de maneiras inexplicáveis.
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- Tara… - Cassia finalmente sussurra.
- Olá, meu amor. – A rapariga, mulata, alta e de figura
esguia olha para Cassia com um sorriso aberto e bem-disposto. Os
seus intensos olhos castanhos avelã a cintilar.
Tara caminha até Cassia e acaricia a sua face, beijando-a
ternamente. Os lábios familiares de Tara, fazem Cassia voltar
atrás no tempo, esquecendo o pior. Cassia quebra o beijo,
afastando a cara.
- Senti a tua falta. – A voz doce de Tara magoa Cassia e as
suas palavras são como facas.
A fúria é visível nos olhos azuis da morena, ao olhar para
a ex-namorada, que regressa do reino dos mortos: algo que se está
a tornar irritantemente consistente com as pessoas na sua vida.
Tara sorri para Cassia e cruza os braços avaliando-a.
Cassia guardou todas as memórias de Tara, pois não esperou
que a fosse voltar a ver. Agora, ao voltar a olhar para a rapariga,
percebe que já não sabe quem ela é para si e o seu beijo é deixado
como uma ferida nos seus lábios. Tara ficará sempre como o grande
amor da sua vida e Cassia sabe que o grande amor das nossas vidas
é sempre aquele que não podemos ter.
FIM