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As violências que afetam as mulheres indígenas: tipos, contextos e estratégias de proteção dentro do respeito à pauta do direito à diferença. São escassos ou inexistentes os dados disponíveis sobre os índices e as modalidades de violência sofridas pelas as mulheres das sociedades indígenas brasileiras, tanto de tipo intra-familiar como também em contextos de tipo impessoal e público, ocorridas dentro ou fora do grupo ao qual pertencem. Sabe-se, contudo, que a vitimização é crescente, se encontra em franco aumento em termos não somente do número dos casos como também da diversidade das formas em que ocorre e o grau de crueldade das agressões. As mulheres indígenas apresentam, no momento presente, crescente vulnerabilidade. Formas cada dia mais cruéis de violência doméstica perturbam seu bem-estar e colocam suas vidas em risco, assim como também agressões físicas e estupros são realizados cada vez mais freqüentemente por gangs muitas vezes formadas por homens também indígenas. Esta é uma realidade em progressivo aumento de acordo com uma variedade de denúncias e testemunhos. Não existem, contudo, registros consistentes desta situação generalizada que permitam, por um lado, traçar um quadro geral da violência contra a mulher indígena nas diversas regiões do país e, pelo outro, perceber os tipos e modalidades das agressões e os contextos que as circundam e as fazem possíveis. É esse um trabalho à nossa frente, solicitado, inclusive, pelas próprias vítimas atuais ou potenciais. Há necessidade de uma escuta demorada dos casos trazidos

Texto de Rita Segato. RELAJU Bogota 2008

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Page 1: Texto de Rita Segato. RELAJU Bogota 2008

As violências que afetam as mulheres indígenas: tipos, contextos e

estratégias de proteção dentro do respeito à pauta do direito à diferença.

São escassos ou inexistentes os dados disponíveis sobre os índices e as

modalidades de violência sofridas pelas as mulheres das sociedades indígenas

brasileiras, tanto de tipo intra-familiar como também em contextos de tipo

impessoal e público, ocorridas dentro ou fora do grupo ao qual pertencem.

Sabe-se, contudo, que a vitimização é crescente, se encontra em franco

aumento em termos não somente do número dos casos como também da

diversidade das formas em que ocorre e o grau de crueldade das agressões.

As mulheres indígenas apresentam, no momento presente, crescente

vulnerabilidade. Formas cada dia mais cruéis de violência doméstica perturbam

seu bem-estar e colocam suas vidas em risco, assim como também agressões

físicas e estupros são realizados cada vez mais freqüentemente por gangs

muitas vezes formadas por homens também indígenas. Esta é uma realidade

em progressivo aumento de acordo com uma variedade de denúncias e

testemunhos. Não existem, contudo, registros consistentes desta situação

generalizada que permitam, por um lado, traçar um quadro geral da violência

contra a mulher indígena nas diversas regiões do país e, pelo outro, perceber

os tipos e modalidades das agressões e os contextos que as circundam e as

fazem possíveis. É esse um trabalho à nossa frente, solicitado, inclusive, pelas

próprias vítimas atuais ou potenciais.

Há necessidade de uma escuta demorada dos casos trazidos pelas mulheres

indígenas a respeito das formas em que são agredidas. Aqui, torna-se

fundamental a habilidade de penetração etnográfica nas situações e

experiências tal como elas são vividas e expressadas de forma diversa por

mulheres indígenas de diversos povos e situação de vida. É preciso perceber

as diferenças das experiências de mulheres de diversos grupos étnicos;

regiões geográficas; grupos de idade; graus de escolaridade formal; ocupação;

profissão; tipos de atuação na vida doméstica, na vida política e no movimento

indígena; e tipos de participação e inserção no mundo tradicional da

comunidade e na sociedade brasileira. Somente assim é possível garantir a

presença e representação da maior variedade de tipos de experiência,

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interesses e pontos de vista, para permitir o registro das situações violentas em

meio a toda a diversidade dos modos de organização doméstica, familiar e

matrimonial dos diversos grupos étnicos; das tarefas a cargo das mulheres na

vida tradicional e em suas atividades e profissões fora da vida tradicional,

inclusive no ativismo indígena; das relações das mulheres no interior dos seus

grupos de origem, no contato com outros povos indígenas e com a sociedade

brasileira; em meio às formas de participação nos processos decisórios das

suas comunidades; na sua interação com instituições públicas, privadas e

organizações não governamentais no âmbito da saúde, educação, preservação

do meio ambiente, atividades produtivas e trabalho; no exercício da sua

sexualidade e direitos reprodutivos; e nas práticas relativas à maternidade e

criação de filhos e relações afetivas em geral.

A partir desse mapa geral das diversas circunstâncias, o passo seguinte é a

tipificação das formas em que a agressão é cometida: violências física, sexual,

psicológica ou emocional, moral, financeira, patrimonial, institucional, ou outras,

vividas pelas mulheres indígenas e de registro menos conhecido entre as

mulheres que cunharam as categorias supra-citadas.

Agressões em contextos domésticos ou intra - familiares; violência por

agressores seriais; violência institucional; violência em contextos públicos

marcados por conflitos difusos na localidade ou região: presença de gangs e

máfias vinculadas ao tráfico, desavenças entre povos, intrusão de não índios

nos territórios, assédio ou abuso de empregadores e autoridades, ou outras

formas vividas pelas mulheres indígenas e de registro menos conhecido entre

as mulheres que cunharam as categorias supra-citadas.

Por outro lado, os contatos com a sociedade nacional através da presença de

posseiros, grileiros, garimpeiros, fazendeiros, funcionários de empresas

extrativistas, militares, comerciantes e missionários que atuam na região têm

impacto sobre as mulheres indígenas causando muitas vezes imensos

sofrimentos morais, psicológicos e físicos ao recrutá-las, desde muito jovens,

para o trabalho doméstico em regime de semi-escravidão, a prostituição formal

ou informal, e até o tráfico de drogas. O estupro torna-se mais freqüente, assim

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como outras formas de agressão verbal e física. É necessário perceber o

impacto do contacto na incidência da violência contra as mulheres indígenas,

seja de forma direta a mão dos não índios, ou de forma indireta pela pressão

da intrusão do branco no mundo dos índios e a violência intra-familiar originada

nesse stress.

Nestas circunstâncias, leis estatais e leis próprias se conjugam para a

contenção da violência de gênero. A Lei Maria da Penha cria uma série de

mecanismos para coibir a violência contra a mulher, especialmente intra-

familiar, e também serviços para apoiar a mulher maltratada que fazem parte

do “Pacto Nacional pelo enfrentamento à Violência contra as mulheres”,

lançado durante a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Entre as

medidas preventivas previstas pela Lei 11.340 de 07/08/06, se encontram os

seguintes direitos assegurados à mulher agredida: de mudar-se imediatamente

do lar em que convivia com o agressor sem perder direitos sobre seus bens; ter

o agressor afastado para permitir o retorno à residência; lhe garantir seu

patrimônio de bens móveis e imóveis; ter seus prejuízos reparados pelo

agressor, incluindo o atendimento médico que se faça necessário; fazer correr

o processo em local acessível; obter apoio de advogado; ter informação sobre

o curso do processo e sobre a entrada ou saída do agressor de

estabelecimento penitenciário. Entre os serviços de apoio ou medidas

integradas de proteção está prevista a capacitação de mais de 50 mil policiais e

120 mil profissionais de educação, a realização de campanhas educativas e

culturais para a prevenção da violência de gênero, a disponibilização de

centenas de Serviços Especializados de Atendimento à Mulher em Situação de

Violência de 11 tipos diferentes: casas-abrigo, delegacias especializadas,

juizados de violência doméstica e serviços de saúde e de perícia médica

especializada. Todas estas medidas, como as mulheres indígenas já vem

notando e fazendo notar, não são de aplicabilidade direta ao mundo delas e

necessitarão adequar-se para alcançar efetividade. Será necessário indagar

quais são as adaptações necessárias, os acréscimos e as substituições de

medidas que se farão necessários para alcançar as suas demandas. Por outro

lado, também está prevista a implantação de um Sistema nacional de Dados e

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Estatísticas e de um Observatório de Monitoramento da Implementação e

Aplicação da Lei Maria da Penha. Será necessário garantir a inclusão de dados

específicos relativos à vitimização de mulheres indígenas nestas estadísticas e

no monitoramento da eficácia da Lei.

Contudo, como consta a seguir, no mundo indígena a legalidade não pode

repousar inteiramente sob a responsabilidade do Estado, a risco de infringir

outro direito igual ou mais precioso que a defesa das minorias: o direito à

deliberação interna e a construir uma história própria, que repousam

firmemente na capacidade de se reger por uma justiça própria comunitária, em

acordo com os preceitos do pluralismo jurídico. Isto se faz particularmente

importante quando avaliamos o fracasso constante do Estado Nacional em

garantir segurança à cidadania, seja esta de índios ou não índios.

É preciso, portanto, por um lado, identificar e desconstruir os elementos da

normativa tradicional ou Lei Própria que são invocados para justificar as

agressões e, pelo outro, identificar e ativar aqueles capazes de coibir a

violência contra as mulheres.

É parte de uma crença bastante generalizada, inclusive entre as próprias

mulheres indígenas e, sobre tudo, entre os homens perpetradores de violência,

que os agressores se sustentam em normas assim consideradas “tradicionais”

ou costumes.

A respeito do costume violento contra as mulheres já se pronunciou a

Convenção para a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher – CEDAW em 1979, e ratificada pelo Brasil em 1981, ao afirmar, de

forma inequivocamente revolucionária, que a lei se encontra por encima do

costume quando esta deixa as mulheres em posição vulnerável. De fato, já em

suas considerações gerais, a CEDAW reconhece “que para lograr a plena

igualdade entre o homem e a mulher é necessário modificar o papel tradicional

tanto do homem como da mulher na sociedade e na família” e logo esse ponto

é reforçado pelo menos duas vezes ao longo do texto da lei. No parágrafo f) do

artigo 1, lemos que ela exige dos estados partes signatários “adotar todas as

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medidas adequadas [...] para modificar [...] usos e práticas que constituam

discriminação contra a mulher; e no parágrafo a) do artigo 5 não deixa já

qualquer sombra de dúvidas pois exige diretamente que os Estados Partes

adotem “todas as medidas apropriadas” para “modificar os padrões

socioculturais de conduta de homens e mulheres com miras a alcançar a

eliminação dos preconceitos e as práticas consuetudinárias e de qualquer outra

índole de qualquer outra índole que estejam baseados na idéia da inferioridade

ou superioridade de qualquer dos sexos ou nas funções estereotipadas de

homens e mulheres”.

Nas sociedades indígenas existem, com efeito, normas da Lei Própria ou Lei

Interna que contêm restrições à autonomia, poder e prestígio das mulheres

como, por exemplo: restrições a respeito de com quem casar, de falar ou tomar

decisões no espaço público ou exercer autoridade política; castigo por meio de

estupro coletivo em caso de infração de certas normas; e diversos tipos de

regra de obediência. Contudo, uma falta de compreensão do mundo tradicional

nos leva a sobrevalorizar a existência dessas normas e a ignorar que nunca

como na era moderna e colonial a esfera pública subordinou e colonizou o

espaço doméstico. De fato, é a intrusão do branco o que leva a uma releitura

inflacionada das normas da supremacia masculina, sob influência de um

mundo dominado pelo Estado, que determinou a queda abrupta do valor do

espaço doméstico e as atividades produtivas e reprodutivas das mulheres.

Os diferentes padrões da vida em comunidades indígenas incluem noções,

valores e atitudes enraizados e profundos que amarram a divisão do trabalho

entre os gêneros. Embora nesse mundo as tarefas reservadas aos homens

tenham maior prestígio e aos homens seja delegada a ação pública, sobre os

homens também pesam restrições derivadas do que poderia chamar-se de

uma política doméstica. Formas de homo - socialidade entre as mulheres estão

presentes no mundo da comunidade, e a esfera doméstica e a pública com

seus agentes se encontram num equilíbrio maior. Não são desse mundo as

bárbaras agressões domésticas que as mulheres indígenas reportam hoje. A

idéia de que elas resultam do domínio tradicional do homem sobre a mulher é

falsa, porque esse domínio é limitado por resguardos, alianças nos espaços

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habitados pelas mulheres e, sobre tudo, pela política do doméstico, isto é, o

poder exercido a partir da contraprestação doméstica de trabalho.

Ao lado do recurso aos instrumentos jurídicos internacionais e estatais, como a

já mencionada CEDAW, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e

Erradicar a Violência contra a Mulher(conhecida como Convenção de Belém do

Pará) de 1994, e a Lei Maria da Penha, a forma mais eficiente de coibir a

violência contra as mulheres indígenas é promover uma reaproximação aos

mecanismos comunitários e às associações de mulheres dentro das

comunidades . O tecido comunitário deve ser recomposto, pois dele deverão

vir os mecanismos de resguardo das mulheres contra a agressão, e da

recomposição do equilíbrio entre o valor do público e do doméstico os limites

ao poder dos homens. Urge identificar e reaproximar as comunidades aos

mecanismos tradicionais de contenção da violência.

É importante frisar que só recentemente as mulheres indígenas brasileiras

começaram a se organizar no que poderia considerar-se como um feminismo

indígena incipiente no Brasil. A autora participou da primeira hora desse

processo, coordenando e elaborando as apostilas sobre Direitos Humanos e

conceitos de gênero adaptados às circunstâncias das mulheres indígenas .

Nessa ocasião, ministrou, para 41 mulheres indígenas de todas as regiões do

Brasil, a primeira Oficina de Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas

promovida pela Fundaçao Nacional do Índio - FUNAI, realizada em 2002 com

fundos da Cooperaçao Alemã. Desse evento resultou a publicação de um

pequeno manual com o conteúdo das apostilas e uma sistematização das

demandas de políticas públicas a partir da perspectiva das mulheres

indígenas .1 Mais tarde, desde 2006 e reconhecendo-se em continuidade com

aquele primeiro encontro ovular, seguiram-se as Oficinas de Discussão e

1Segato, Rita Laura 2003 Uma agenda de ações afirmativas para as mulheres indígenas do Brasil. Série Antropologia 326. Brasília: Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília/FUNAI/GTZ, 2003.

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Divulgação da Ação de Promoção das Atividades Tradicionais das Mulheres

Indígenas realizadas pela Coordenação Geral de Desenvolvimento Comunitário

da FUNAI, nas quais também a autora deu sua colaboração.

Para alcançar a compreensão mais aprofundada que necessitamos tanto das

condições que promovem a vitimização das mulheres indígenas, as formas

particulares em que essa vitimização ocorre e as possíveis medidas jurídicas e

comunitárias para conter, controlar e reduzir o problema torna-se necessário,

daqui em mais: obter um quadro aproximado dos tipos de violência que afetam

as mulheres indígenas; identificar as variedades de contextos em que ocorrem

e os fatores que aumentam os índices de violência contra as mulheres dos

diversos tipos; avaliar a eficácia e as formas possíveis de adaptação da lei

Maria da Penha à realidade das mulheres indígenas; e identificar mecanismos

comunitários, normas e idéias presentes na tradição que permitam coibir a

violência contra as mulheres.