Upload
lunaf
View
42
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
As violências que afetam as mulheres indígenas: tipos, contextos e
estratégias de proteção dentro do respeito à pauta do direito à diferença.
São escassos ou inexistentes os dados disponíveis sobre os índices e as
modalidades de violência sofridas pelas as mulheres das sociedades indígenas
brasileiras, tanto de tipo intra-familiar como também em contextos de tipo
impessoal e público, ocorridas dentro ou fora do grupo ao qual pertencem.
Sabe-se, contudo, que a vitimização é crescente, se encontra em franco
aumento em termos não somente do número dos casos como também da
diversidade das formas em que ocorre e o grau de crueldade das agressões.
As mulheres indígenas apresentam, no momento presente, crescente
vulnerabilidade. Formas cada dia mais cruéis de violência doméstica perturbam
seu bem-estar e colocam suas vidas em risco, assim como também agressões
físicas e estupros são realizados cada vez mais freqüentemente por gangs
muitas vezes formadas por homens também indígenas. Esta é uma realidade
em progressivo aumento de acordo com uma variedade de denúncias e
testemunhos. Não existem, contudo, registros consistentes desta situação
generalizada que permitam, por um lado, traçar um quadro geral da violência
contra a mulher indígena nas diversas regiões do país e, pelo outro, perceber
os tipos e modalidades das agressões e os contextos que as circundam e as
fazem possíveis. É esse um trabalho à nossa frente, solicitado, inclusive, pelas
próprias vítimas atuais ou potenciais.
Há necessidade de uma escuta demorada dos casos trazidos pelas mulheres
indígenas a respeito das formas em que são agredidas. Aqui, torna-se
fundamental a habilidade de penetração etnográfica nas situações e
experiências tal como elas são vividas e expressadas de forma diversa por
mulheres indígenas de diversos povos e situação de vida. É preciso perceber
as diferenças das experiências de mulheres de diversos grupos étnicos;
regiões geográficas; grupos de idade; graus de escolaridade formal; ocupação;
profissão; tipos de atuação na vida doméstica, na vida política e no movimento
indígena; e tipos de participação e inserção no mundo tradicional da
comunidade e na sociedade brasileira. Somente assim é possível garantir a
presença e representação da maior variedade de tipos de experiência,
interesses e pontos de vista, para permitir o registro das situações violentas em
meio a toda a diversidade dos modos de organização doméstica, familiar e
matrimonial dos diversos grupos étnicos; das tarefas a cargo das mulheres na
vida tradicional e em suas atividades e profissões fora da vida tradicional,
inclusive no ativismo indígena; das relações das mulheres no interior dos seus
grupos de origem, no contato com outros povos indígenas e com a sociedade
brasileira; em meio às formas de participação nos processos decisórios das
suas comunidades; na sua interação com instituições públicas, privadas e
organizações não governamentais no âmbito da saúde, educação, preservação
do meio ambiente, atividades produtivas e trabalho; no exercício da sua
sexualidade e direitos reprodutivos; e nas práticas relativas à maternidade e
criação de filhos e relações afetivas em geral.
A partir desse mapa geral das diversas circunstâncias, o passo seguinte é a
tipificação das formas em que a agressão é cometida: violências física, sexual,
psicológica ou emocional, moral, financeira, patrimonial, institucional, ou outras,
vividas pelas mulheres indígenas e de registro menos conhecido entre as
mulheres que cunharam as categorias supra-citadas.
Agressões em contextos domésticos ou intra - familiares; violência por
agressores seriais; violência institucional; violência em contextos públicos
marcados por conflitos difusos na localidade ou região: presença de gangs e
máfias vinculadas ao tráfico, desavenças entre povos, intrusão de não índios
nos territórios, assédio ou abuso de empregadores e autoridades, ou outras
formas vividas pelas mulheres indígenas e de registro menos conhecido entre
as mulheres que cunharam as categorias supra-citadas.
Por outro lado, os contatos com a sociedade nacional através da presença de
posseiros, grileiros, garimpeiros, fazendeiros, funcionários de empresas
extrativistas, militares, comerciantes e missionários que atuam na região têm
impacto sobre as mulheres indígenas causando muitas vezes imensos
sofrimentos morais, psicológicos e físicos ao recrutá-las, desde muito jovens,
para o trabalho doméstico em regime de semi-escravidão, a prostituição formal
ou informal, e até o tráfico de drogas. O estupro torna-se mais freqüente, assim
como outras formas de agressão verbal e física. É necessário perceber o
impacto do contacto na incidência da violência contra as mulheres indígenas,
seja de forma direta a mão dos não índios, ou de forma indireta pela pressão
da intrusão do branco no mundo dos índios e a violência intra-familiar originada
nesse stress.
Nestas circunstâncias, leis estatais e leis próprias se conjugam para a
contenção da violência de gênero. A Lei Maria da Penha cria uma série de
mecanismos para coibir a violência contra a mulher, especialmente intra-
familiar, e também serviços para apoiar a mulher maltratada que fazem parte
do “Pacto Nacional pelo enfrentamento à Violência contra as mulheres”,
lançado durante a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Entre as
medidas preventivas previstas pela Lei 11.340 de 07/08/06, se encontram os
seguintes direitos assegurados à mulher agredida: de mudar-se imediatamente
do lar em que convivia com o agressor sem perder direitos sobre seus bens; ter
o agressor afastado para permitir o retorno à residência; lhe garantir seu
patrimônio de bens móveis e imóveis; ter seus prejuízos reparados pelo
agressor, incluindo o atendimento médico que se faça necessário; fazer correr
o processo em local acessível; obter apoio de advogado; ter informação sobre
o curso do processo e sobre a entrada ou saída do agressor de
estabelecimento penitenciário. Entre os serviços de apoio ou medidas
integradas de proteção está prevista a capacitação de mais de 50 mil policiais e
120 mil profissionais de educação, a realização de campanhas educativas e
culturais para a prevenção da violência de gênero, a disponibilização de
centenas de Serviços Especializados de Atendimento à Mulher em Situação de
Violência de 11 tipos diferentes: casas-abrigo, delegacias especializadas,
juizados de violência doméstica e serviços de saúde e de perícia médica
especializada. Todas estas medidas, como as mulheres indígenas já vem
notando e fazendo notar, não são de aplicabilidade direta ao mundo delas e
necessitarão adequar-se para alcançar efetividade. Será necessário indagar
quais são as adaptações necessárias, os acréscimos e as substituições de
medidas que se farão necessários para alcançar as suas demandas. Por outro
lado, também está prevista a implantação de um Sistema nacional de Dados e
Estatísticas e de um Observatório de Monitoramento da Implementação e
Aplicação da Lei Maria da Penha. Será necessário garantir a inclusão de dados
específicos relativos à vitimização de mulheres indígenas nestas estadísticas e
no monitoramento da eficácia da Lei.
Contudo, como consta a seguir, no mundo indígena a legalidade não pode
repousar inteiramente sob a responsabilidade do Estado, a risco de infringir
outro direito igual ou mais precioso que a defesa das minorias: o direito à
deliberação interna e a construir uma história própria, que repousam
firmemente na capacidade de se reger por uma justiça própria comunitária, em
acordo com os preceitos do pluralismo jurídico. Isto se faz particularmente
importante quando avaliamos o fracasso constante do Estado Nacional em
garantir segurança à cidadania, seja esta de índios ou não índios.
É preciso, portanto, por um lado, identificar e desconstruir os elementos da
normativa tradicional ou Lei Própria que são invocados para justificar as
agressões e, pelo outro, identificar e ativar aqueles capazes de coibir a
violência contra as mulheres.
É parte de uma crença bastante generalizada, inclusive entre as próprias
mulheres indígenas e, sobre tudo, entre os homens perpetradores de violência,
que os agressores se sustentam em normas assim consideradas “tradicionais”
ou costumes.
A respeito do costume violento contra as mulheres já se pronunciou a
Convenção para a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher – CEDAW em 1979, e ratificada pelo Brasil em 1981, ao afirmar, de
forma inequivocamente revolucionária, que a lei se encontra por encima do
costume quando esta deixa as mulheres em posição vulnerável. De fato, já em
suas considerações gerais, a CEDAW reconhece “que para lograr a plena
igualdade entre o homem e a mulher é necessário modificar o papel tradicional
tanto do homem como da mulher na sociedade e na família” e logo esse ponto
é reforçado pelo menos duas vezes ao longo do texto da lei. No parágrafo f) do
artigo 1, lemos que ela exige dos estados partes signatários “adotar todas as
medidas adequadas [...] para modificar [...] usos e práticas que constituam
discriminação contra a mulher; e no parágrafo a) do artigo 5 não deixa já
qualquer sombra de dúvidas pois exige diretamente que os Estados Partes
adotem “todas as medidas apropriadas” para “modificar os padrões
socioculturais de conduta de homens e mulheres com miras a alcançar a
eliminação dos preconceitos e as práticas consuetudinárias e de qualquer outra
índole de qualquer outra índole que estejam baseados na idéia da inferioridade
ou superioridade de qualquer dos sexos ou nas funções estereotipadas de
homens e mulheres”.
Nas sociedades indígenas existem, com efeito, normas da Lei Própria ou Lei
Interna que contêm restrições à autonomia, poder e prestígio das mulheres
como, por exemplo: restrições a respeito de com quem casar, de falar ou tomar
decisões no espaço público ou exercer autoridade política; castigo por meio de
estupro coletivo em caso de infração de certas normas; e diversos tipos de
regra de obediência. Contudo, uma falta de compreensão do mundo tradicional
nos leva a sobrevalorizar a existência dessas normas e a ignorar que nunca
como na era moderna e colonial a esfera pública subordinou e colonizou o
espaço doméstico. De fato, é a intrusão do branco o que leva a uma releitura
inflacionada das normas da supremacia masculina, sob influência de um
mundo dominado pelo Estado, que determinou a queda abrupta do valor do
espaço doméstico e as atividades produtivas e reprodutivas das mulheres.
Os diferentes padrões da vida em comunidades indígenas incluem noções,
valores e atitudes enraizados e profundos que amarram a divisão do trabalho
entre os gêneros. Embora nesse mundo as tarefas reservadas aos homens
tenham maior prestígio e aos homens seja delegada a ação pública, sobre os
homens também pesam restrições derivadas do que poderia chamar-se de
uma política doméstica. Formas de homo - socialidade entre as mulheres estão
presentes no mundo da comunidade, e a esfera doméstica e a pública com
seus agentes se encontram num equilíbrio maior. Não são desse mundo as
bárbaras agressões domésticas que as mulheres indígenas reportam hoje. A
idéia de que elas resultam do domínio tradicional do homem sobre a mulher é
falsa, porque esse domínio é limitado por resguardos, alianças nos espaços
habitados pelas mulheres e, sobre tudo, pela política do doméstico, isto é, o
poder exercido a partir da contraprestação doméstica de trabalho.
Ao lado do recurso aos instrumentos jurídicos internacionais e estatais, como a
já mencionada CEDAW, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher(conhecida como Convenção de Belém do
Pará) de 1994, e a Lei Maria da Penha, a forma mais eficiente de coibir a
violência contra as mulheres indígenas é promover uma reaproximação aos
mecanismos comunitários e às associações de mulheres dentro das
comunidades . O tecido comunitário deve ser recomposto, pois dele deverão
vir os mecanismos de resguardo das mulheres contra a agressão, e da
recomposição do equilíbrio entre o valor do público e do doméstico os limites
ao poder dos homens. Urge identificar e reaproximar as comunidades aos
mecanismos tradicionais de contenção da violência.
É importante frisar que só recentemente as mulheres indígenas brasileiras
começaram a se organizar no que poderia considerar-se como um feminismo
indígena incipiente no Brasil. A autora participou da primeira hora desse
processo, coordenando e elaborando as apostilas sobre Direitos Humanos e
conceitos de gênero adaptados às circunstâncias das mulheres indígenas .
Nessa ocasião, ministrou, para 41 mulheres indígenas de todas as regiões do
Brasil, a primeira Oficina de Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas
promovida pela Fundaçao Nacional do Índio - FUNAI, realizada em 2002 com
fundos da Cooperaçao Alemã. Desse evento resultou a publicação de um
pequeno manual com o conteúdo das apostilas e uma sistematização das
demandas de políticas públicas a partir da perspectiva das mulheres
indígenas .1 Mais tarde, desde 2006 e reconhecendo-se em continuidade com
aquele primeiro encontro ovular, seguiram-se as Oficinas de Discussão e
1Segato, Rita Laura 2003 Uma agenda de ações afirmativas para as mulheres indígenas do Brasil. Série Antropologia 326. Brasília: Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília/FUNAI/GTZ, 2003.
Divulgação da Ação de Promoção das Atividades Tradicionais das Mulheres
Indígenas realizadas pela Coordenação Geral de Desenvolvimento Comunitário
da FUNAI, nas quais também a autora deu sua colaboração.
Para alcançar a compreensão mais aprofundada que necessitamos tanto das
condições que promovem a vitimização das mulheres indígenas, as formas
particulares em que essa vitimização ocorre e as possíveis medidas jurídicas e
comunitárias para conter, controlar e reduzir o problema torna-se necessário,
daqui em mais: obter um quadro aproximado dos tipos de violência que afetam
as mulheres indígenas; identificar as variedades de contextos em que ocorrem
e os fatores que aumentam os índices de violência contra as mulheres dos
diversos tipos; avaliar a eficácia e as formas possíveis de adaptação da lei
Maria da Penha à realidade das mulheres indígenas; e identificar mecanismos
comunitários, normas e idéias presentes na tradição que permitam coibir a
violência contra as mulheres.