Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurélio garcia

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    1/13

    Opinio: Terceira Via - A social-democracia e o PT

    Teoria e Debate n 12 - outubro/novembro/dezembro de 1990

    publicado em 10/04/2006

    O dilema bolchevismo x social-democracia anacrnico. Para elaborar seu projeto socialista,

    o partido precisa manter um dilogo crtico com as duas correntes, renovando os mtodos deinterveno social e a linguagem desgastada da esquerda.

    por Marco Aurlio Garcia*

    Um fantasma parece rondar o PT - o fantasma da social-democracia. Desde seu nascimento -e no curso de sua histria - o partido foi intimado por seus atentos observadores a escolherentre o "revolucionarismo arcaico do modelo leninista" e a "moderna social-democracia".

    Este problema, porm, antecede a prpria formao do Partido dos Trabalhadores.

    Quando nos ltimos anos da dcada de 70 surgiu o novo sindicalismo, muitos viram nofenmeno a base social e poltica para o nascimento de uma social-democracia brasileira.

    To logo se frustraram tais previses, esses analistas buscaram em cada momento dedificuldade que atravessou o novo e inesperado Partido dos Trabalhadores a oportunidadepara voltar a esta quase obsessiva questo.

    Assim foi depois da derrota eleitoral de 1982, ou quando o PT, no final de 1984 e incio de1985, recusou-se a ir ao Colgio Eleitoral. Assim ocorreu, igualmente, em 1986, quando opartido colocou-se na contracorrente do Plano Cruzado e colheu magros dividendos eleitorais.Assim aconteceu, finalmente, aps a derrota de Lula na eleio presidencial de 1989.

    Os mais catastrofistas vaticinaram em cada uma dessas circunstncias o fim do PT. Outroscominaram o partido a optar pela social-democracia como forma de sobrevivncia.

    O tema no teria maior relevncia se ficasse apenas confinado s inquietaes ps-modernasde editorialistas e jornalistas polticos ou ao exame da academia. Passa a ter importncia namedida em que se transforma em preocupao para grande parte da militncia petista quevive um estado de relativa perplexidade com as aceleradas transformaes em curso naURSS e no Leste Europeu, e com as mudanas ocorridas no quadro social e polticobrasileiro aps a posse de Collor, questes cujas respostas incidiro sobre o futuro do partido.

    A discusso sobre o tema da social-democracia no PT no pode, no entanto, continuarsubordinada aos doutos conselhos que lhe so regularmente ministrados nas pginas dagrande imprensa ou nos claustros acadmicos. No pode regular-se tampouco pelodoutrinarismo de grupos e tendncias que querem aprisionar o partido em conflitos epolmicas que, rigorosamente, no fazem parte de sua histria.

    O que une aqueles que aconselham o PT a trilhar os caminhos da social-democracia e os queadvertem para os "perigos" desta parece ser o desconhecimento da histria do socialismodemocrtico, da histria do PT e, o que mais grave, da realidade brasileira.

    Estas notas procuram discutir questes que permitam colocar o debate em um patamardistinto daquele em que at agora se travou. So observaes sumrias e preliminares e seuobjetivo mais o de desencadear uma discusso do que o de encerr-la. Partem, igualmente,da suposio que o documento O socialismo petista, aprovado pelo 7 Encontro Nacional,com todos seus limites, constitui-se uma eloqente manifestao do que j se pde avanar arespeito no debate interno do PT.

    OposiesA oposio entre social-democratas e leninistas, ou bolchevistas, data do fim da 1 GuerraMundial, quando se consumou a diviso do movimento operrio e socialista, que mergulharaem grave crise a partir do desencadeamento do conflito.

    http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/opiniao-terceira-social-democracia-e-o-pthttp://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/opiniao-terceira-social-democracia-e-o-pt
  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    2/13

    Em 1914, o Partido Social-Democrata alemo (SPD) decidira apoiar o governo do Kaiser emsua aventura blica. Todos os partidos socialistas da Europa - exceo do russo e doitaliano - se solidarizaram com seus respectivos governos, arrastando o proletariado de seuspases uma luta fratricida nos campos de batalha. Uma profunda crise poltica e moral seinstaurava no socialismo europeu com o desmoronamento da poltica antimilitarista que vinhasendo construda de forma sistemtica pela II Internacional, particularmente a partir doCongresso de Stuttgart, em 1907.

    No fim da guerra, o Partido Operrio Social-Democrata Russo decidiu mudar seu nome para"comunista". O POSDR no s incorporou na sua denominao aquilo que considerava seuobjetivo estratgico, como tentava livrar-se de um rtulo indesejvel. A expresso "social-democrata" havia sido conspurcada pelo "chauvinismo" e "capitulacionismo" de seusdirigentes.

    "Traio!", bradavam os revolucionrios para caracterizar a atitude dos dirigentes social-democratas. Estes, segundo Lenin, faziam parte de uma "aristocracia operria"1 a servio daburguesia e mantida com os resultados da explorao imperialista. Mas o que acompreensvel indignao dos revolucionrios no explicava era como a "traio" havia sidoseguida pelas massas trabalhadoras de todos os pases europeus 2.

    A guerra, segundo os revolucionrios russos, mostrou at que ponto estavam criadas ascondies para abater-se o regime capitalista. O conflito era apresentado como expresso daimpossibilidade das classes dominantes continuarem a governar como antes, sem lanar mode seus exrcitos para garantir o controle de novos mercados e fontes de matrias-primas.Sem uns e outros, dizia-se, o capitalismo se inviabilizaria.

    Por considerar a social-democracia como "traidora" e "apodrecida", os bolchesistasdecretaram a "falncia da II Internacional" e decidiram formar, em 1919, a InternacionalComunista ou III Internacional, da qual deveriam ser excludos todos os social-democratas 3.

    Razes comunsPor trs desta profunda diviso que marcou nas dcadas seguintes o socialismo mundial,

    havia muito em comum entre social-democratas e comunistas. Suas origens eram asmesmas. Suas estratgias, tticas e formas de organizao e de ao convergiram mais doque fazem supor as cidas polmicas que opuseram uns aos outros neste sculo.

    A social-democracia o resultado histrico das profundas transformaes pelas quais passouo capitalismo europeu, e, com ele, o movimento operrio, nas ltimas dcadas do sculo XIX.A derrota da Comuna de Paris, em 1871, causou no s o massacre, priso e exlio dedezenas de milhares de trabalhadores franceses, como uma onda mundial de histeriaantioperria, superior quela que havia sacudido a Europa em 1848.

    A Alemanha passava a ser, no lugar da Frana, o centro do movimento operrio. A estedeslocamento na geografia poltica correspondia igualmente uma mudana no eixo de

    atuao dos trabalhadores. Ao invs das aes insurrecionais e dos grupos conspirativos dedistintas inspiraes doutrinrias, que marcaram o movimento operrio francs, surgia o cadavez mais massivo proletariado alemo, disciplinadamente organizado em seus sindicatos,dirigidos pelo SPD. A via eleitoral vinha sendo seguida desde 1866 e, em 95, pouco antes desua morte, Engels saudava o "uso inteligente" do sufrgio universal pelo proletariado daAlemanha.

    O Partido Operrio Social-Democrata Russo, dividido a partir de 1903 nos moderadosmencheviques (minoritrios) e nos revolucionrios bolcheviques (majoritrios), via na social-democracia alem uma fonte de inspirao permanente 4.

    O proletariado - dizia Lenin necessitava de um partido, distinto da classe, formado por

    revolucionrios profissionais, originrios na sua maioria de fora dela, que dominasse a teoriada histria para poder alterar seu curso e lanar-se conquista do poder.

    A teoria era o "marxismo", isto , a herana terica de Marx e Engels que resultara na maisacabada anlise crtica do capitalismo, e das possibilidades de sua transformao, que o

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    3/13

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    4/13

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    5/13

    sindicalizao, greve, liberdade de imprensa e organizao partidria, isto , o acesso cidadania, alm de conquistas materiais (inexistentes na Rssia czarista), configuravam umconjunto de valores caros ao Ocidente e haviam sido fundamentais para a classe operriaconstituir sua identidade.

    Contra a social-democracia pesavam, no entanto, durssimas acusaes. Em primeiro lugar,sua atitude frente Guerra Mundial, cujo preo foi pago essencialmente pelos trabalhadores,a grande maioria dos que morreram ou foram mutilados nos campos de batalha.

    claro que a poltica da maioria dos partidos social-democratas no pode ser sumariamentejulgada atravs de categorias como "traio", "capitulao diante da burguesia" etc. Ainda quetudo isso tenha existido e provocasse (e at hoje possa provocar) indignao, o problemafundamental o de saber por que uma fora operria da importncia do SPD (mas tambmoutros partidos socialistas) no foi capaz de conduzir o proletariado em uma direo, mesmoque no necessariamente aquela seguida pelos bolchevistas na Rssia. Trata-se, sobretudo,de examinar que antecedentes havia na poltica social-democrata que conduziram ao trgicodesfecho de 1914. evidente que este problema no pode historicamente ser capituladosimplesmente como um "erro poltico", um acidente de percurso.

    Da mesma forma, a poltica do SPD no imediato ps-1 Guerra parece ter sido mais

    dominada pelo temor que lhe inspiravam os revolucionrios espartaquistas do que por umcompromisso com as transformaes sociais que se abriam para a Alemanha com a dbcledo Imprio, em conseqncia da derrota militar. Vacilando, inclusive em seu compromissocom a Repblica, a social-democracia mergulhou numa tortuosa poltica de colaborao como conservadorismo. O episdio do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e, diasmais tarde, de Leo Jogishes emblemtico. Ele criou um litgio entre comunistas e socialistasque pesou de forma decisiva sobre as relaes futuras de ambas as foras, como bemobservou Hanna Arendt 6.

    Questes mais atuaisNos meses que se seguiram ao fim da 2 Guerra Mundial subsistiu a iluso de que o

    movimento operrio e socialista ingressaria em uma nova etapa.Mas a bipolaridade do perodo da "guerra fria", a partir de 1947, fez com que se rompessemas alianas constitudas pelo mundo afora nos marcos de governos reformistas de "unionacional", nos quais predominava a unio socialista-comunista.

    No foi a questo da "reforma" ou da "revoluo" que produziu esta ruptura, mas antes aforma pela qual incidiram sobre os partidos operrios os interesses das duas grandespotncias vencedoras da guerra: URSS e Estados Unidos.

    Os PCs do Ocidente entraram em um novo perodo de isolamento, de um marcadosectarismo pr-sovitico, enquanto nos partidos social-democratas comeavam a acontecerdois movimentos: o abandono de qualquer veleidade doutrinria que pudesse ser associada

    herana marxista e revolucionria e a definio de uma estratgia de governo a partir da qualviriam a ser aplicadas, sobretudo na Europa, polticas de welfare state, o Estado de bem-estar. Para a social-democracia alem, esta dinmica culminaria na adoo do Programa deBad Godsberg, aprovado pelo SPD em 1959.

    O balano deste perodo, no qual se do os primeiros passos para a construo de umaEuropa unida, tem sido at aqui dominado por discusses ideologizadas de ambos os lados.

    Os social-democratas insistem em destacar seu papel na reconstruo econmica de umaEuropa devastada pela guerra, na conquista de melhorias considerveis para as classestrabalhadoras e na ampliao da democracia poltica.

    Seus crticos denunciam os custos sociais e polticos da reconstruo: a subordinao aosinteresses da grande burguesia monoplica, a integrao poltica e militar com os EstadosUnidos. A poltica de distribuio de renda - prosseguem - poderia ter-se implementado deforma mais radical. No foram eliminados bolses de pobreza como aqueles representadospelos trabalhadores imigrantes. Em alguns pases - como na Frana, por exemplo -, a social-

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    6/13

    democracia aparece associada a aventuras coloniais. As reformas ocorreram, conclui-se,porque a prpria burguesia europia deu-se conta, desde o fim da 2 Guerra, que teria defazer "sacrifcios", sob pena de que novas reas do mundo fossem ganhas para o camposocialista.

    Mais contemporaneamente, os social-democratas se referem ao desmoronamento do LesteEuropeu e crise da URSS como sinais da superioridade do modelo de economia, sociedadee Estado que construram na Europa Ocidental sobre aquele do "socialismo real".

    Em apoio a suas teses mencionam o fracasso das economias estatal-burocrticas do Leste eo colapso dos regimes ditatoriais que foram derrubados e/ou esto sofrendo radicaistransformaes. Criticam a degradao ambiental provocada pelos governos destes pases, odeclnio da qualidade de vida e o sufocamento da vida cultural.

    A social-democracia europia, no entanto, no tem como ocultar suas dificuldades na atualconjuntura. Amarga um prolongado perodo de oposio em dois pases importantes como aInglaterra e a Alemanha Federal. No primeiro assistiu uma poderosa ofensiva liberal quecorroeu as reformas econmicas e sociais que o Labourhavia desenvolvido no ps-guerra.

    Na Alemanha, seus planos de volta ao governo podem estar comprometidos pela marconservadora que acompanha o processo de unificao do pas.

    Em pases em que governa, como a Frana e a Espanha, v-se muitas vezes na incmodacondio de promover polticas econmicas de combate inflao que em nada sediferenciam do figurino neoliberal de elevado custo social: desemprego (particularmente naEspanha) e concentrao da riqueza (que vem sendo registrada na Frana). Em muitospases - como na Sucia e na prpria Espanha - bases sindicais prximas da social-democracia entram em choque com a orientao do governo. particularmente agudo oconflito entre a UGT, central sindical prxima dos socialistas, e o governo de Felipe Gonzles.

    Amrica Latina significativo que toda a referncia histrica social-democracia tenha se circunscrito aexemplos europeus. Com efeito, no h registro de experincia social-democrata consistentena Amrica Latina e, particularmente, no Brasil.

    O modelo sovitico - tanto como projeto de tomada do poder, como via de desenvolvimentoeconmico e social - exerceu durante um certo perodo uma atrao maior no continente. Istose expressa menos na existncia de Partidos Comunistas (salvo excees, com pequenainfluncia) do que na forte presena de uma ideologia difusa na esquerda, que enfatiza aconquista do poder atravs de meios insurrecionais, numa viso instrumental da democraciae em um modelo de economia fortemente centralizado e estatal. bvio que os xitos que aUnio Sovitica teve - pelos menos no incio de sua histria - em superar o"subdesenvolvimento", em realizar um complexo projeto de industrializao, acabariam porexercer um grande fascnio sobre a intelectualidade revolucionria de pases que se sentiam

    muito mais identificados historicamente com a atrasada e autocrtica Rssia czarista, do quecom as democracias capitalistas da Europa Ocidental.

    Razes sociolgicas e de cultura poltica acabaram por aproximar mais as vanguardasrevolucionrias da Amrica Latina do paradigma sovitico (em suas verses maosta,guevarista e outras) do que do modelo social-democrata.

    Alguns podero argumentar que a Amrica Latina viveu importantes experincias social-democratas, como o peronismo na Argentina, o getulismo no Brasil, o battlismo no Uruguai, oaprismo no Peru etc. Enfim, todos os fenmenos que a sociologia poltica batizou depopulismo no seriam outra coisa que experincias social-democratas sui generis.

    Os prprios protagonistas destes movimentos parecem estar convencidos do argumento.Muitos so os peronistas que se consideram social-democratas e que buscam umaaproximao com a Internacional. O PDT, no Brasil, que reivindica a herana de Getlio,qualifica o varguismo como experincia social-democrata e est filiado InternacionalSocialista. O mesmo ocorre com o Apra peruano, tambm filiado IS.

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    7/13

    Sem entrar em uma discusso conceitual, no parece haver evidncias que permitamhistoricamente assimilar os fenmenos polticos anteriormente mencionados social-democracia.

    Esta supe, na sua origem, uma forte presena operria industrial na sociedade, que sedesdobra em um poderoso movimento sindical, provocando, depois, a formao de umpartido. Estas condies no estavam reunidas em nenhum dos pases latino-americanos nosanos em que as experincias citadas se desenvolveram, quando a classe operria era

    amplamente minoritria.A expanso da industrializao no acarretou um incremento crescente e orgnico dascorrentes populistas, mas seu estancamento ou retrao. O caso argentino, onde indiscutvel a vigncia at hoje do peronismo, a exceo que confirma a regra. H quereconhecer, no entanto, que a fora do peronismo se explica pelo fato deste movimentoconstituir uma verdadeira cultura de resistncia das classes trabalhadoras argentinas, frentes vicissitudes polticas que estas vivem desde os anos 50.

    A proposta social-democrata, em sua origem, e, ao menos, em sua retrica, durante dcadas,foi um projeto classista. O discurso e a prtica populistas sempre advogaram abertamente acolaborao de classes, fundamental para seu projeto nacionalista desenvolvimentista. O

    elemento chave desta colaborao foi o Estado. O populismo privilegia o conflito nao ximperialismo, negando a contradio capital x trabalho.

    A experincia brasileiraNo Brasil no se pode falar de uma tradio social-democrata. Multiplicaram-se partidossocialistas de vida curtssima durante a Primeira Repblica. sem que se tenha constitudouma organizao nacional expressiva. como ocorreu na Argentina. Uruguai ou Chile, para scitar trs casos.

    O Partido Socialista Brasileiro, surgido na "redemocratizao", em 1945, apesar de terabrigado intelectuais expressivos da esquerda brasileira, teve pequena significao social epoltica e jamais poderia ser confundido com os PS europeus. O mesmo se pode dizer em

    relao ao PSB, resultante da reforma partidria dos anos80.A formao do Partido Comunista - contrariamente ao que ocorreu em quase todo o mundo,inclusive nos trs pases antes citados - no resultou de ciso do Partido Socialista. A maioriaesmagadora dos que ajudaram a formar o PCB vinha do anarco-sindicalismo, especialmenteseu primeiro grupo dirigente. Nos anos 30 o PC recebeu um importante contingente de civis emilitares influenciados por vises reformistas e autoritrias da sociedade brasileira.

    Competindo com o PC, alm dos anarquistas, existiam correntes reformistas, muitodependentes dos favores do Estado, que dificilmente poderiam ser assimilados social-democracia.

    Estas ganharam importncia depois de 1930, quando ocorreu o enquadramento domovimento sindical autnomo que existia at ento. importante sublinhar que as novasformas de organizao sindical das classes trabalhadoras, a partir dos anos 30, longe deserem a expresso de lutas vitoriosas do movimento operrio, foram, antes, a conseqnciade importantes derrotas que ele sofreu no limiar do Estado Novo e logo depois de 1937. Apoltica seguida pelo Partido Comunista no imediato ps-2 Guerra e, posteriormente, em finsdos anos 50, at o Golpe de Estado, ao invs de constituir uma nova alternativa operria epopular no Brasil, somente reforou o projeto varguista, tornando-o mais vulnervel, como sepde constatar em 1964.

    No se pretende negar as reformas que o getulismo proporcionou ao movimento operrio,ainda que a contrapartida delas fosse o enquadramento dos sindicatos no modelo corporativo

    de inspirao fascista e, logo, sua perda de autonomia. O que se est simplesmenteressaltando aqui o abismo existente entre o varguismo e a social-democracia.

    Esta, como forma de conscincia de classe dos trabalhadores, permitiu-lhes no s o acessoa importantes vantagens materiais como uma presena relativamente autnoma na sociedade

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    8/13

    e a conquista da cidadania a partir de suas prprias lutas e de suas formas de organizaosindical e partidria.

    O varguismo foi uma operao de cooptao do movimento operrio - construda a partir daderrota de seus setores mais combativos - seguida de seu enquadramento nas estruturas doEstado e da outorga de algumas benesses prprias de um welfare state.

    As experincias da social-democracia tm como cenrio a democracia representativa, que seamplia e radicaliza com a interveno do movimento operrio. O varguismo se desenvolveu

    em perodos democrticos (1934-35 e 1951-54), mas a maior parte do tempo sob regimeditatorial aberto (1930-34 e 1937-45) ou disfarado (1935-37).

    No Brasil, possvel que a conjuntura mais semelhante do surgimento da social-democraciaeuropia seja aquela de fins dos anos 70, quando emerge o fenmeno do novo sindicalismoe, na esteira dele, o Partido dos Trabalhadores.

    PT social-democrata?A tentao de associar o nascimento do PT formao da social-democracia europia temsido, como se viu, freqente. Resultado da constituio de um movimento sindical autnomo,classista, instalado nos setores mais modernos da indstria brasileira, o PT foi capaz,igualmente, de atrair para suas fileiras, como a social-democracia o fizera dcadas antes,amplos segmentos de assalariados, intelectuais e setores populares. Em seu programa -onde o socialismo reivindicado - d-se nfase especial s conquistas das classestrabalhadoras, explicitadas em um conjunto de reformas econmicas e sociais a seremdesenvolvidas nos marcos de uma efetiva democratizao da sociedade brasileira.

    Distintamente da social-democracia, no entanto, o PT no reivindica uma filiao doutrinria,marxista ou de qualquer outro tipo. Ao contrrio, afirma seu pluralismo ideolgico, ou o seucarter "laico".

    Ainda em sua formulaes iniciais, o partido assumiu claramente sua distncia em relaotanto ao "socialismo burocrtico", dos partidos comunistas, como em relao social-democracia. Esta posio reiterada no documento O socialismo petista.

    Desta recusa de filiao doutrinria e de ligao com as correntes histricas da esquerdaneste sculo surge a tese de que o socialismo petista processual, isto , define seucontedo a partir da prpria dinmica das lutas dos trabalhadores e da conscincia que elesganham em suas experincias cotidianas.

    Mas estas declaraes seriam suficientes? Por trs desta preocupao de independncia nohaveria um esforo retrico de encobrir uma filiao a uma das duas correntes negadas emseus documentos?

    O PT no seria um partido social-democrata envergonhado? Ou um PC enrustido? "O ltimopartido comunista", sem sab-lo, como afirmam muitos de seus crticos?

    Os argumentos, mesmo sendo superficialmente defendidos, tm de ser enfrentados.

    O fato de ter surgido em um pas cujo campo cultural da esquerda era dominado pelo PC (emconcubinato com o populismo), de abrigar em suas fileiras, e mesmo nas direes, muitos ex-militantes formados na escola das organizaes comunistas, e de conviver em seu interiorcom grupos e tendncias de inspirao leninista e/ou trotskista, contribuiu para que o PTpensasse muitos de seus problemas atravs desta cultura poltica at ento hegemnica e daqual ele procurou dissociar-se j em sua fundao7.

    Esta impresso se refora cada vez que a voz ruidosa de alguns grupos e tendnciasexistentes no PT se faz ouvir mais do que a do prprio partido, produzindo uma cacofoniacomprometedora. Refora-se, tambm, sempre que o discurso petista apareceexcessivamente estatista ou complacente com algumas experincias do socialismo real.

    A contrario sensu, cada vez que os dirigentes do PT (ou da CUT) admitiram sua disposio departicipar de negociaes com o patronato ou com o governo, ou foram confrontados comresponsabilidades governamentais, ou se manifestaram sobre problemas do socialismo e da

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    9/13

    democracia com maior liberdade (ver a recente entrevista de Francisco Weffort Folha deS.Paulo), no faltou quem prognosticasse uma "virada social-democrata" do partido.

    No o caso de analisar esmiuadamente cada um desses argumentos e subargumentos.Mais importante expor algumas circunstncias que cercam a formao do PT e ver em quemedida elas podem ajudar na compreenso do problema. No se trata de saber se o PT (ouser) social-democrata ou comunista, porm de avanar na definio da natureza destepartido cuja originalidade pode escapar a muitos brasileiros, mas seguramente no a

    observadores estrangeiros.De tanto ler e ouvir, todos sabem que a histria s se repete como farsa. Como esperar,assim, que quase um sculo aps, uma fora social e poltica como o PT tivesse de refazer ocaminho da social-democracia ou do bolchevismo?

    No o caso, aqui, de exigir dos analistas do PT um pouco da "modernidade" que os fascinatanto.

    Socialista, sem querer confundir-se com comunismo e com a social-democracia, o PTenfrentou desde o incio uma dificuldade que at hoje no est resolvida: qual socialismo?

    Quando, em uma de suas mais famosas boutades, ao ser perguntado se era comunista ou

    social-democrata, Lula respondeu que era "torneiro mecnico", ele expressou de formajocosa, mas ao mesmo tempo significativa, as dificuldades e as virtudes da definiosocialista petista.

    Em primeiro lugar, reiterava a distncia em relao a alternativas que representavam umpassado com o qual o PT no queria comprometer-se. Em segundo lugar, sublinhavametaforicamente que importava menos sua definio ideolgico-doutrinria e mais suacondio operria, o que relevante em um pas sem tradio proletria de esquerda. E, porltimo, apontava para o fato de que as definies polticas do partido estavam grandementecondicionadas por sua base social e que esta noo processual de socialismo se vinculava sexperincias de luta dos trabalhadores.

    Desde seus documentos iniciais, o PT afirmou que o socialismo no apenas um horizontelongnquo a ser buscado e atingido, mas algo a ser construdo e que se incorpora nadimenso cotidiana das lutas.

    O movimento operrio, que foi e o principal componente social do partido, forjou-sedesenvolvendo articuladamente trs tipos de lutas que apresentavam contedosanticapitalistas: contra o arrocho; pela autonomia e liberdade sindical; e contra a organizaodo processo de trabalho e a disciplina patronal nas empresas.

    Os componentes sociais que aderiram ao PT e participaram de sua construo - operriosfabris e trabalhadores de reas de servios, camponeses e trabalhadores rurais, profissionaisliberais e tcnicos assalariados, pobres das periferias urbanas - garantiram um programa que

    transcendia as reivindicaes operrias.Os componentes polticos ex-militantes de organizaes de esquerda, grupos e partidos deextrema-esquerda, catlicos ligados s igrejas progressistas, personalidades vinculadas lutapelos direitos humanos, setores mais radicalizados da oposio democrtica -, permitiram queo partido ampliasse seu conceito de democracia mais alm de uma simples volta ao Estadode Direito. Eles incorporaram temas fundamentais para a renovao da cultura poltica deesquerda, que apontam para uma compreenso maior dos processos de explorao edominao e, por conseqncia, ampliam o espectro das lutas pela democracia.

    H, no entanto, outro elemento fundamental para sublinhar a especificidade do projetosubjacente formao do Partido dos Trabalhadores: a crise do socialismo como projeto e

    como realidade.Nacionalmente, as esquerdas brasileiras estavam exauridas. As foras mais tradicionais,sobretudo os partidos comunistas e o nacional-populismo tinham pequena expresso social ediminuta presena nos setores fundamentais da sociedade, alm de demonstrar escassa

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    10/13

    capacidade de elaborao terico-poltica.

    A esquerda revolucionria, como a outra, fora muito golpeada pela represso nos anos 70 ese encontrava atomizada. Encontrava-se mergulhada em um debate estril com a velhaesquerda e digladiava-se em infindveis polmicas doutrinrias.

    Internacionalmente, sobretudo a partir da evoluo poltica na Polnia, desencadeava-se umanova etapa da crise do socialismo real que culminaria com as profundas transformaes quemarcaram a URSS e o Leste Europeu neste final de dcada.

    A contemporaneidade das experincias do PT no Brasil e do Solidariedade na Polniapermitiu aos militantes do partido, sobretudo aos de origem operria, desenvolver uma crticaradical do sistema poltico vigente nos pases do chamado socialismo real. Chamou aateno, principalmente, para o problema das relaes socialismo-democracia e para aexistncia de valores democrticos que transcendiam formas especficas de organizaopoltica da sociedade, como, por exemplo, a liberdade e a autonomia sindicais, o pluralismopoltico, a liberdade de imprensa e de manifestao, o respeito aos direitos humanos, etc. Emcontextos histricos distintos, os trabalhadores poloneses e brasileiros enfrentavam o mesmotipo de problemas com suas respectivas ditaduras.

    Com isso associavam-se definitivamente no discurso petista as noes de socialismo edemocracia.

    Socialismo e democraciaEsta uma problemtica familiar para o PT, pois o partido constituiu seu espao deinterveno social e poltica lutando pela democracia e nesta luta foi tecendo uma teia derelaes entre ela e o socialismo, o que nem sempre ficou visvel at porque muitas vezesno foi suficientemente refletido.

    Ao definir sua interveno na vida poltica brasileira como de "acumulao de foras" e aodefinir um programa de reformas qualificado de "democrtico-popular", o PT resolveu umproblema e deixou em aberto outros.

    A acumulao de foras e o programa democrtico-popular chamavam a ateno para o fatode que o socialismo no era o objetivo imediato do partido. Isto bvio, pois somentecabeas muito acaloradas poderiam imaginar que o socialismo se colocava como questo deatualidade imediata. At a, porm, o PT no se diferenciava dos partidos comunistas, porexemplo.

    A questo mais de fundo est na forma pela qual se articulam a luta por este programademocrtico-popular com os objetivos socialistas. Aqui a discusso com a social-democraciae a pergunta sobre as perspectivas de sua vigncia em pases como o Brasil assumem umaconsidervel importncia.

    Desde sua matriz bernsteniana, a social-democracia associou a mudana social e poltica s

    reformas parciais do capitalismo. Sobre este ponto registram-se duas posies.Uma, mais " esquerda", segundo a qual as reformas teriam um carter cumulativo eterminariam levando ao socialismo, pensado como regime qualitativamente distinto. A polticade nacionalizaes desempenharia um papel fundamental neste modelo.

    Esta posio social-democrata foi em grande medida tambm assumida pelos partidoscomunistas, tanto nos pases capitalistas avanados, como, e sobretudo, nos pasessubdesenvolvidos.

    Outra, mais " direita" e, talvez, mais fiel a Bernstein, para qual no havia uma diferenaqualitativa entre capitalismo e socialismo. O socialismo passava a ser o prprio movimentopelas reformas. Com a crise terica e prtica do "socialismo real" esta tese ganhou muitosadeptos.

    A questo fundamental para a discusso estratgica da esquerda, para ficar fiel linguagem de inspirao militar do leninismo. A melhor maneira de abord-la no discutindoa tese geral, em abstrato, mas examinandos no contexto brasileiro.

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    11/13

    A pergunta, central para a social-democracia, sobre se as reformas tm efeito cumulativo eabrem o caminho para mudanas qualitativas ("revolucionrias") na sociedade merece umaresposta cuidadosa.

    Lula muitas vezes escandalizou a esquerda petista quando disse que, para ele, revoluo noBrasil era toda a populao tomar caf da manh, almoar e jantar. Ou ir escola. Ou ter umamoradia minimamente decente. Ou poder ser atendida com eficincia e dignidade em umhospital pblico. Ou, finalmente, ter uma parcela de terra para poder plantar e viver em seu

    estado."Revoluo? Mas isso so s reformas!", bradar um indignado guardio da doutrina. vero.Mas o que significa consegui-las?

    Basicamente um agudo processo de lutas sociais: o simples desenho de uma estratgia quepermita viabilizar cada uma destas "pequenezas" mostra os obstculos existentes nasociedade brasileira, constitudos por slidos interesses que se ramificam pelo conjunto dasclasses dominantes e que extravasam em muito qualquer "racionalidade" econmica.

    A questo prope uma rearticulao da luta pela democracia poltica com a democracia sociale destas duas com o socialismo. H muitos anos esta uma discusso importante parasetores da social-democracia e passa a s-lo igualmente para as esquerdas engajadas nosprocessos de transformao nos pases do "socialismo real".

    O "formalismo" da democracia justamente criticado quando ele se revela incapaz de dar-seuma dimenso social. Isto ocorre sempre que o princpio abstrato da liberdade se sobrepe necessidade de uma igualdade concreta e, bom no esquecer, ao da fraternidade.

    Mas esta reivindicao da democracia social no se pode fazer margem da democraciapoltica, ou, como pretendem alguns, contra ela, ainda que os conflitos sejam previsveisneste terreno.

    A democracia poltica no pode ser entendida apenas como um meio de chegar-se democracia social, ou a uma posio melhor de luta por ela.

    A democracia poltica um fim em si. Um valor estratgico e permanente. Se esta tese social-democrata, pacincia: sejamos social-democratas.

    Mas no um problema doutrinrio que est em jogo e sim questes polticas fundamentais.A luta pelo socialismo - para conduzir ao socialismo e no a estes mostrengos quedesabaram no Leste Europeu, nem a sociedades desiguais governadas por partidossocialistas - tem que levar em conta o potencial poltico-revolucionrio das reformas sociais etirar as conseqncias disto no plano da luta pelo poder.

    Um dos avanos do PT abandonar a idia do poder como um lugar a ser tomado ereformado (proposta social-democrata) ou tomado, destrudo e reconstrudo (propostarevolucionria clssica).

    Esta inovao, pelo menos para o debate poltico brasileiro, tem de ser aprofundada, sobpena de, a sim, o PT sucumbir a uma das teses mencionadas e das quais se distanciou.

    O poder algo a ser construdo e fundamental captar a complexidade das tarefas quedecorrem deste propsito.

    No se pode reduzir esta frase a sua leitura reformista: construir o novo gradualmente dentrodo velho at que, clic...

    No se pode, tampouco, transformar esta tese em uma verso da estratgia de "duplo poder".

    Construir agora o poder popular e lev-lo a um enfrentamento com o "poder burgus". Nem

    mesmo o Governo Paralelo, criado pelo PT este ano, escapou desta interpretaobolchevista. A julgar por algumas leituras que foram feitas dessa iniciativa, ela se transformouem uma espcie de Estado Maior alternativo que sinalizaria a ilegitimidade do poder atual eestaria pronto para substitu-lo to logo a "correlao de foras permita"...

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    12/13

    Articulando a luta pela democracia poltica com a luta pela democracia social, o PT busca daratualidade ao socialismo e tir-lo do campo da pura utopia. Esta articulao se desdobra emuma interveno que recobre mltiplos espaos no plano social e no plano institucional,sabendo que estes dois domnios no so estanques e se interpenetram todo o tempo.

    No plano social, o grande desafio que se coloca para o PT o da organizao dos exploradose oprimidos e do combate, onde a organizao j existe, das tendncias corporativas queatingem o movimento sindical.

    A questo da organizao da sociedade vital, sobretudoOrganizar exige mais do que voluntarismo e supe um trabalho de inveno poltica, querenove radicalmente os mtodos de interveno social e a linguagem da esquerda. Exigeigualmente um conhecimento mais profundo da sociedade, particularmente dasrepresentaes que estes milhes de brasileiros tm de sua condio social e de suasperspectivas de mudana.

    No plano institucional, o PT deve assumir decididamente um projeto de reforma edemocratizao do Estado.

    Isto significa combater ao dos grupos privados, dos oligoplios, cartis e cartrios que, a

    despeito da fraseologia liberal da burguesia brasileira, sugam o Estado e o colocam areboque de seus interesses particulares.

    Neste sentido, o partido deve assumir sem medo uma postura republicana, de defesa da respublica, da coisa pblica, buscando com esta luta uma eficcia imediata - a de colocar osrecursos pblicos a servio do povo dando a este movimento uma significao pedaggica.Nada melhor do que este tipo de ao para provar como o Estado est a servio das classesdominantes e no um instrumento de conciliao social, como pretende a ideologiadominante.

    A reforma do Estado no passa por solues tecnocrticas e gerenciais, que o faamsemelhante "eficiente" empresa capitalista, nem se resume ao combate burocracia,

    entendida apenas como uma camarilha de ociosos ou aproveitadores que se encastelaram namquina administrativa. Ela antes de tudo um processo poltico de democratizao da coisapblica, o que supe o desenvolvimento de mltiplos mecanismos de controle da sociedadesobre o Estado e suas empresas, atravs das organizaes sociais, do Parlamento etc.

    Para construir seu projeto de transformao socialista do Brasil, o PT precisa escapar dodilema bolchevismo x social-democracia. Para tanto, necessita despir-se de preconceitos quedominaram a esquerda durante dcadas e que produzem hoje, em meio crise por quepassa a idia de socialismo, efeitos opostos porm simtricos: de um lado, a defesaintransigente da ortodoxia, como se nada houvesse ocorrido; de outro, o abandono da noode socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam.

    O PT no tem que deixar de ser "radical", somente porque isto arranha os ouvidos daquelesque nunca tiveram compromisso efetivo com qualquer mudana neste pas. Mas ele no temque ser complacente com idias e prticas que, em nome do socialismo, s afastaram asesquerdas das massas pelo seu contedo e formas elitistas e autoritrias.

    A escolha de seus interlocutores nacionais e internacionais est vinculada a estapreocupao de construir um projeto socialista para o Brasil levando em conta as ricas, e svezes dramticas, experincias do socialismo internacional. Abre-se fundamentalmente parauma nova esquerda que se constitui (ou se reconstri) politicamente na Amrica Latina e queenfrenta vicissitudes semelhantes s nossas. Com ela, se dispe a construir um novocaminho no continente, como ficou evidente no Encontro de So Paulo, em julho ltimo.

    Dialoga, sem preconceitos, com a social-democracia, e com as expresses do comunismorenovado que se manifestam em pases como a Itlia ou mesmo no Leste Europeu.

    Colabora, ainda, com foras alternativas, como os verdes alemes, o SOS Racisme daFrana e outros movimentos que buscam sadas originais para a crise da esquerda, a partir

  • 7/31/2019 Teoria e Debate - Terceira Via - A social-democracia e o PT - 1990 - marco aurlio garcia

    13/13

    da luta por objetivos que tm a capacidade de questionar modelos e propor novas formas deorganizao social e poltica.

    A "reconstruo" do Leste Europeu se dar em meio a duros embates sociais e polticos,desmentindo a tese de que a luta de classes acabou. A social-democracia destes pases (epor extenso a de toda a Europa) ser confrontada com a necessidade de impulsionar lutassociais e polticas nesta regio ou perder o controle do processo para os conservadores,como j ocorreu.

    Da mesma forma, a aplicao dos programas de ajuste em quase toda a Amrica Latinacolocar a esquerda mundial diante do desafio de oferecer um programa de reformas quecompatibilize o combate a problemas emergenciais graves, como a inflao, com anecessidade inadivel de resolver questes estruturais com as quais no mais possvelconviver: a misria, a fome, o analfabetismo etc.

    O mundo no assiste ao fim da histria hoje, como pretendem alguns, mas, ao contrrio, auma acelerao sem precedentes desta. bem possvel, no entanto, que se esteja assistindoao fim de um ciclo na histria do socialismo, que tem seu incio com a formao da social-democracia e que em boa parte deste sculo foi dominado pelo conflito entre socialistas ecomunistas.

    ilusrio pensar que o PT um fenmeno isolado no mundo. Ele faz parte deste processo detransio da esquerda mundial. Neste sentido, um partido ps-social-democrata e ps-comunista. Constri sua identidade no combatendo estas correntes, mas dialogandocriticamente com elas, voltado para novos (e velhos) desafios que seus ancestrais nopuderam responder.

    Radical, de esquerda, socialista e, por esta razo, moderno. Este o PT. Sem medo de serfeliz.

    * Marco Aurlio Garcia professor do Departamento de Histria da Unicamp, membro daComisso Executiva Nacional e Secretrio de Relaes Internacionais do PT

    Notas:

    1. As consideraes de Lenin sobre a "aristocracia operria" e sua relao com a crise da social-democracia esto no captulo oitavo de seu Imperialismo, fase superior do capitalismo.2. Uma anlise sobre as ambigidades do conceito de "aristocracia operria" em Lenin, ainda que semromper com a concepo leninista da relao classe-partido, est em "Lenin e a aristocracia operria",ensaio de Eric J. Hobsbawm publicado em seu livro Revolucionrios, editora Paz e Terra, p. 126-133.O tema da "traio" social-democrata discutido por Adam Przeworski, Capitalismo e social-democracia, Cia. das Letras, p. 15 e por Fernando Claudn em sua obra La crisis del movimientocomunista Internacional, editorial Ruedo Ibrico, captulo 2, (p. 25-73).

    3. Ver a este respeito as Condies para admisso na Internacional Comunista, aprovadas em seusegundo congresso, em 1920. A tnica deste documento criar uma fronteira muito ntida entrecomunistas e social-democratas.4. o que demonstram historiadores do socialismo, como Georges Haupt, em seu livro L'historien etle mouvement social(ed. Maspero), particularmente no ensaio em que analisa a social-democraciaalem como "partido-guia" e sua influncia na Europa (p.151197), ou Claudie Weill, Marxistes russeset social-dmocratie allemande 1898-1904 (edies Maspero).5. Lembremos a frase de Lenin: "O Marxismo todo poderoso porque verdadeiro."6. Em seu ensaio sobre Rosa Luxemburgo que integra o livro Homens em tempos sombrios, Cia dasLetras.7. Os trotskistas do PT repeliro indignados sua incluso neste bloco hegemonizado pelos comunistas"tradicionais". evidente que uma diferena enorme separa estes ltimos dos trotskistas. Ambosdefendem, no entanto, pelo menos no papel, uma mesma concepo de partido - a "leninista" - e no objetivo destas notas (nem seu autor teria investidura e competncia para tanto) distribuircertificados de bom ou mau leninismo a quem quer que seja. O foro para dirimir este problema outro.Talvez o "tribunal da histria"...