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A A s s n n o o v v a a s s d d e e m m o o c c r r a a c c i i a a s s n n a a s s o o c c i i e e d d a a d d e e - - e e m m - - r r e e d d e e

A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

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Livro de Augusto de Franco (2013)

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A terceira invenção da democracia

Augusto de Franco, 2013

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

A terceira invenção da democracia / Augusto de Franco. – São Paulo: 2013

133 p. A4 – (Escola de Redes; 15)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving. http://escoladeredes.net

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5

"¿Qué sucedió con los gobiernos? Según la tradición fueron cayendo

gradualmente en desuso. Llamaban a elecciones, declaraban

guerras, imponían tarifas, confiscaban fortunas, ordenaban arrestos

y pretendían imponer la censura y nadie en el planeta los acataba.

La prensa dejó de publicar sus colaboraciones y sus efigies. Los

políticos tuvieron que buscar oficios honestos; algunos fueron

buenos cómicos o buenos curanderos. La realidad sin duda habrá

sido más completa que este resumen.“

Personagem Eudoro Acevedo no conto “Utopia de un hombre que

está cansado” de Jorge Luis Borges (1975) que integra El libro de

arena.

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PREFÁCIO

Parece evidente que a democracia representativa - a democracia

reinventada pelos modernos - vem sendo questionada em muitos lugares

neste dealbar do século 21. O aumento do descontentamento com os

sistemas políticos representativos vem abrindo possibilidades para uma

nova reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia.

Não é de hoje que se apontam vários problemas na democracia inventada

pela segunda vez pelos modernos. Ficou tão célebre quanto batida a frase

de Winston Churchill, pronunciada em 11 de novembro de 1947, na House

of Commons: "Democracy is the worst form of government, except for all

those other forms that have been tried from time to time."

A questão é saber quais são esses problemas, se eles podem ser

resolvidos, se eles podem ser resolvidos com a abolição da democracia

representativa ou se eles podem ser resolvidos nos marcos da própria

democracia representativa.

Dentre os vários problemas detectados na democracia representativa,

pelo menos dois - talvez os dois problemas principais - são de difícil

solução nos marcos da própria democracia representativa, mas também

não podem ser solucionados com a abolição da democracia

representativa.

Esses problemas são:

Page 8: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

8

a) a democracia representativa acaba sendo confundida pelos seus atores

- para todos os efeitos práticos - com sistema eleitoral, não tendo

proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições)

contra a própria democracia; e

b) a democracia representativa, ao virar um modo político de

administração de uma estrutura desenhada para a guerra (o Estado-

nação), adotou, ela própria, uma dinâmica adversarial (dita competitiva)

que dificulta a constituição de um sentido público.

Remanesce ainda um terceiro problema, herdado da primeira invenção da

democracia pelos atenienses: a democracia não tem proteção eficaz

contra o discurso inverídico, sobretudo contra o populismo, o que

realimenta o primeiro problema mencionado (o do uso das eleições contra

a democracia).

Como esses problemas refletem falhas estruturais (vale dizer, "genéticas")

e se constituem como erros de projeto, não é possível resolvê-los

aperfeiçoando os mecanismos da democracia representativa. São limites

ao processo de democratização entendido como movimento constante ou

intermitente de democratização da democracia ou de desconstituição de

autocracia.

Se os problemas apontados acima não podem ser resolvidos

satisfatoriamente nos marcos da própria democracia representativa,

então é sinal de que sua solução só poderá ser alcançada nos marcos de

uma nova democracia; ou melhor: de novas experimentações - no plural -

de democracia.

Page 9: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

9

A julgar pelos questionamentos que vêm sendo feitos nas duas últimas

décadas, espera-se experiências de democracia que sejam: mais

distribuídas, mais interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis,

regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais

vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos

projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não

admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas

experimentações glocais).

Este livro é sobre isso. E a isso se chamou de terceira invenção da

democracia. Mas não se trata de um novo modelo, de uma fórmula

aplicável à várias circunstâncias: a terceira invenção da democracia é

apenas a continuidade do processo de democratização nas condições da

sociedade em rede. E isso exige a desinvenção das fórmulas de

democracia.

São Paulo, 18 de dezembro de 2013

Augusto de Franco

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ÍNDICE

PREFÁCIO

APRESENTAÇÃO

Sobre a presente abordagem

Do que se trata

As evidências

Questionamentos à democracia realmente existente

O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões consteladas

A democracia nunca nasce da violência

INTRODUÇÃO

É possível reinventar a democracia?

A primeira invenção da democracia

Depois da primeira invenção da democracia

A segunda invenção da democracia

As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da democracia

A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada

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A confusão da segunda democracia com regime eleitoral

A terceira invenção da democracia

Inventando a terceira democracia

CAPÍTULOS

1 - Democracia distribuída

2 - Democracia interativa

3 -Democracia direta

4 - Democracia com revocabilidade

5 - Democracia com lógica da abundância

6 - Democracia de multidões e comunidades

7 - Democracia cooperativa

8 - Democracias glocais

9 - Zilhões de sociosferas democráticas

10 - Ilhas democráticas na rede

NOTAS E REFERÊNCIAS

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APRESENTAÇÃO

Sobre a presente abordagem

Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm

imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as

conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se

pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram.

Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento

da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo

que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das

populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da

convivência social.

Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o "gene" (ou o

meme) original democrático - como John Dewey, Hannah Arendt e

Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude

Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) - mas a maioria dos teóricos

da política ficaram presos aos esquemas explicativos da modernidade que

replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na

verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o

Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos

recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de

regulação.

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Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix.

Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado

de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de

alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que

nela se conformou um espaço público.

Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar

com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação

de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz

iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que

está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás

do que acontece na vida fenomênica. Dessarte, por não encontrar o

mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria

determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda

não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes

de revelar que estamos diante de um esgotamento da democracia dos

modernos e da possibilidade de emergência de uma nova democracia. Há,

ademais, um problema de pressupostos.

Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de

pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades

evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é

inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas

evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo

status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas

racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas

(quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos - e

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até dos mamíferos em geral - está mais uma emotional motivation do que

uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode

mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado

fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos,

enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais

frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada

pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não

estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que

centralizadas).

Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises

no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a

"realidade" (o que acontece), confundindo informação (mensagem

transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe

de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da

interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência

não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos

graus de distribuição e conectividade da rede social).

Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando

descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia são

acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia. A

democracia pode se democratizar (ou se radicalizar, a ponto de ser

considerada uma pluriarquia) em redes com alto grau de distribuição (e,

consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade).

Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão

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a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem

adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.

Porque a democracia é uma espécie de "metabolismo" da rede social, cujo

"corpo", a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas

esse "metabolismo", essa dinâmica do modo de regulação, não é uma

imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu

padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e

distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são

fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro,

mas não causados um pelo outro.

O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais

centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de

democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos

do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para

instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações

políticas democratizantes, entretanto - eis o ponto - ou serão

acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais

distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar). Ora,

tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir

hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido "forte"

do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes

distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de

hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade

direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.

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Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da

cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais

distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam

(e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir

automaticamente liberdade sem política. É o processo político de

desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo

de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.

Dito isto, podemos passar aos resultados da minha reflexão sobre a

terceira invenção da democracia.

Do que se trata

Da democracia, como se sabe, houve uma primeira invenção (dos antigos)

e uma segunda invenção (dos modernos). A segunda democracia

reinventou a primeira, não apenas a reformou. Era mesmo impossível

fazer uma reforma da democracia ateniense de sorte a adaptá-la ao

Estado-nação europeu moderno. Nas condições da modernidade era

impossível fazer isso, quer dizer, manter a democracia como modo de

regulação de uma comunidade política (local), porque o Estado-nação era

uma unidade política que agregava diversas comunidades poucos

conectadas entre si.

E não somente em razão - como se alega frequentemente - do grande

número de pessoas envolvidas (a população de um país), que habitavam

comunidades subordinadas a uma nova unidade nacional e sim em virtude

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das características da clusterização havida: sem atalhos e sem meios de

comunicação suficientes e adequados para permitir interação em tempo

real ou sem distância entre os vários clusters de parentesco e vizinhança,

de trabalho e de lazer, de aprendizagem, de prática e de projeto (que

continuaram existindo, sim, mas perderam grande parte da sua condição

de sujeitos políticos, players coletivos válidos e necessários do jogo

democrático). As condições de conectividade e interatividade das novas

unidades nacionais impediam procedimentos diretos de regulação como

os adotados pelos antigos.

Nasceu assim uma democracia indireta, chamada democracia

representativa, nas quais as unidades passaram a ser os indivíduos

arrebanhados no Estado-nação e não mais as comunidades ou os clusters

convivenciais emergentes da interação social. Tendo como sujeito o

indivíduo, a democracia dos modernos só conseguiu se instalar a partir de

um conjunto de proteções instituídas para os indivíduos contra a sua

própria unidade política, quer dizer, contra o seu próprio Estado. Como

instituição desenhada para a guerra, o Estado também se armou contra o

cidadão e era necessário que os cidadãos se "armassem" igualmente

contra o Estado.

Eis a razão pela qual a democracia dos modernos surgiu nos marcos do

liberalismo e não pode vicejar a não ser onde se constituiu, com alguma

legitimidade, um Estado que não invadia a esfera dos direitos dos

cidadãos: o chamado Estado de direito. Ora, tal construção não teria sido

possível a partir de uma reforma da primeira democracia. Os modernos

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tiveram, portanto, que reinventar a democracia e por isso pode-se dizer

que a democracia representativa foi a segunda invenção da democracia.

Fala-se agora em terceira invenção da democracia porque o que está em

curso não é, igualmente, uma reforma, em termos clássicos, da segunda

democracia (a democracia dos modernos) e nem, muito menos, da

primeira democracia (a democracia dos antigos). É ainda democracia, sim,

porque a natureza da democracia como movimento de desconstituição de

autocracia permanece, mas as formas pelas quais o processo de

democratização pode avançar (ou pelas quais a democracia pode se

democratizar mais) - alargando a brecha democrática - vão muito além de

uma reforma, apontando para uma reinvenção mesmo da política.

Pode-se dizer que estamos na antessala de uma nova reinvenção da

democracia - e, portanto, diante da possibilidade concreta de uma terceira

invenção da democracia - porque o sistema representativo instituído pela

democracia dos modernos não pode mais ser reformado, conquanto

continue oferecendo as condições necessárias (ainda que não suficientes)

para o avanço do processo de democratização (ou de alargamento da

brecha democrática).

Os sintomas mais visíveis de que isso está ocorrendo são as manifestações

que constelam multidões convocadas peer-to-peer (ou seja, em rede

distribuída, por fora do broadcasting das instituições centralizadas), como

os swarmings civis que ocorrem com cada vez mais frequência no mundo

contemporâneo. Mas esses são apenas sintomas e não os únicos

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processos pelos quais a democracia poderá ser reinventada uma segunda

vez.

Depois das primaveras e dos breves verões de alta efervescência popular,

poderemos ainda caminhar para invernos mais ou menos obscuros. O

processo não é linear e não acontece da mesma maneira em todo lugar.

Em muitas localidades poderemos assistir a volta do domínio de

organizações autocráticas ou o retorno ao poder de velhos atores estatais

que foram apenas temporariamente desalojados. Mas isso também não

durará muito em uma sociedade cada vez mais conectada e interativa.

O importante é perceber que uma nova democracia não nascerá apenas

de manifestações. Tudo indica que serão necessárias muitas experiências

glocais, de ensaios cooperativos de democracia como modo-de-vida, na

base da sociedade e no cotidiano das pessoas.

As evidências

Várias evidências de mudanças profundas (e até certo ponto

subterrâneas) que estão se processando na sociedade, com inevitáveis

repercussões na esfera da política, começaram a surgir na primeira década

deste século, com a emersão de fenômenos interativos – swarmings civis

– como o 11M (aquela extraordinária manifestação, em várias cidades

espanholas, a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de

Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004 em Madri,

atribuindo-a falsamente ao separatismo basco). Nos anos seguintes,

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21

movimentações mais ou menos semelhantes começaram a surgir, quase

sempre gestadas de forma subterrânea na sociedade, destoando dos

padrões clássicos das mobilizações organizadas centralizadamente por

hierarquias políticas e sindicais.

Em 2011 esses movimentos eclodiram no que ficou conhecido como

"revolução árabe", começando pelo 14 de janeiro na Tunísia, passando

pelo 2 de fevereiro no Iêmen, pelo 11 de fevereiro no Egito (dia decisivo

para a queda do ditador Mubarak), pelo 14 de fevereiro do Bahrein, pelo

17 de fevereiro na Líbia, pelo 9 de março em Marrocos e pelo 18 de março

na Síria.

Outra incidência importante foi o 15M espanhol (que ficou conhecido

como a manifestação dos indignados com a velha política, em maio de

2011 em Madrid, espalhando-se por outras cidade). Vieram também em

seguida uma série de movimentos do tipo Occupy inspirados pelo 17S (o

Occupy Wall Street no Zuccotti Park, em Nova York, em 17 de setembro de

2011).

Em 2013 tivemos outra eclosão, com o #DirenGezi na Turquia e as

manifestações de junho de 2013 no Brasil (sobretudo as que ocorreram

nos dias 17 e 18 de junho). Em 30 de junho de 2013 tivemos a maior

manifestação da história, com 20 milhões (ou mais) de pessoas nas ruas e

praças de várias cidades do Egito.

Em tudo isso a grande novidade não está nos protestos em si (eventos

populares massivos, aparentemente semelhantes, já ocorrem há muito no

mundo), mas na manifestação de uma até então desconhecida

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fenomenologia da interação. Uma parte dessas manifestações, sobretudo

o 11M e o 15M espanhol, o 11F egípcio, o 17S americano, o 17-18J

brasileiro não foi convocada e organizada de modo centralizado por algum

líder ou entidade hierárquica. Foram processos P2P (peer-to-peer),

emergentes, surgidos a partir de um alto grau de conectividade da rede

social e da disponibilidade de mídias interativas em tempo real (o telefone

celular, a internet e as incorretamente chamadas “redes sociais”, como o

Twitter e o Facebook).

O caso brasileiro merece atenção especial pelo seu caráter, dimensão,

capilaridade e abrangência. O que ocorreu naqueles dois dias de junho de

2013 (o 17-18J) no Brasil não foi uma dinâmica de luta contra um inimigo

concreto, objetivo (como no 30 de junho no Egito, em que dezenas de

milhões saíram as ruas para derrubar o hierarca da Irmandade

Muçulmana): não havia um poderoso para tirar do poder (como ocorreu

nas manifestações pelo impeachment do presidente Collor de Mello em

1992), não havia uma lei para ser aprovada (como nas manifestações das

Diretas Já em 1984).

O que ocorreu foi a expressão molecular de um incômodo, de uma

insatisfação difusa com o sistema (as pessoas sentiram que há algo muito

errado com o sistema, embora não soubessem explicar o que é

exatamente "o sistema"). Mas a vibe não era guerreira. As emoções

predominantes não eram adversariais. As multidões não procuravam um

inimigo para destruir. Simplesmente diziam: nós existimos, nós agora

acordamos, nós queremos enfim declarar que não estamos satisfeitas com

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o que está acontecendo e nós não nos sentimos representados por vocês

(os que estão no poder).

Tudo indica que os processos das grandes manifestações vão continuar a

despeito de um refluxo no segundo semestre de 2013. Em 8 de dezembro

a Ucrânia explodiu (com 1 milhão de pessoas na Praça da Independência,

em Kiev, contra a subordinação do país ao governo de assassinos da FSB -

ex-KGB - chefiado por Putin, que pretende recriar uma espécie de União

Soviética para reeditar a guerra fria). Mas milhares de outras

manifestações menores também ocorrem neste exato momento em

numerosas localidades do mundo. E milhares de experimentos glocais de

novos modos de vida e convivência social estão sendo ensaiados.

O que se está vendo são as manifestações que constelam multidões

imensas (maiores do que em qualquer outra época da história) em praças

e ruas e são televisionadas e transmitidas por outros meios (sobretudo

pela Internet). Mas há também o que não se está vendo.

Do que não se está vendo há uma mudança molecular, profunda,

comportamental, em curso agora na intimidade do multiverso de

conexões ocultas que chamamos de social. As correntes interativas nas

timelines estão ficando caudalosas como nunca - e não apenas no Twitter,

no Facebook e nas demais plataformas interativas, mas no espaço-tempo

dos fluxos (que é o que conta). Trilhões de novas sinapses estão

ocorrendo e, para usar uma belíssima frase de Pierre Levy (1998), estão se

configurando como um "imenso ato de inteligência coletiva sincronizado,

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convergindo para o presente, clarão silencioso... explodindo como uma

ramada de neurônios" (1).

Sim, o processo continua e se tornará mais visível em breve. Com o

aumento da interatividade, fenômenos como clustering, swarming,

cloning e crunching podem se contrair no tempo a ponto de ser

percebidos. Processos típicos de redes distribuídas foram detectados na

esfera da política, ainda que não tenham sido compreendidos pelos

analistas que permanecem ignorando a nova fenomenologia da interação.

Esses analistas – mesmo percebendo o fenômeno – se recusam a acreditar

que seja possível mobilizar e organizar a ação coletiva sem líderes

destacados e sem um mínimo de hierarquia responsável pela promoção e

condução dos eventos de massa.

Questionamentos à democracia realmente existente

Os novos movimentos emergentes vêm questionando, em alguma

medida, o velho sistema representativo, independentemente da

consciência de seus participantes ou interagentes. Em alguns casos –

como o 15M – os manifestantes chegaram a expressar elementos de um

programa de reinvenção da política ao declarar que seus sonhos não mais

cabiam nas urnas dos velhos representantes, agitando palavras de ordem

como "Democracia real já! Não somos mercadorias em mãos de políticos e

banqueiros", "Outra política é possível", "A revolução estava em nossos

corações e agora enche as ruas" e "Não sou contra o sistema, o sistema é

que é contra mim".

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Tudo isso surgiu misturado com questionamentos à democracia. E não

poderia ser de outro modo de vez que a democracia representativa, a

democracia no sentido “fraco” do conceito, como modo político de

administração do Estado ou sistema de governo, é a democracia

realmente existente nos países (quer dizer, nos países que a adotam com

a maior parte dos seus requisitos, o que corresponde, na verdade, a

menos de 50% dos países do globo). Tal contingência tem dificultado que

esses novos atores entendam quais são os problemas da democracia que

temos.

No plano teórico não conseguiram ainda ver que uma democracia

realizada como modo de administração política do Estado-nação carrega

uma contradição fundamental que limita o processo de democratização.

Pensam que a democracia realmente existente (a democracia

representativa, formal e política que vigora nos países que a adotam) não

é direta, participativa e social para satisfazer interesses das elites (o tal

1%, o alvo identificado por alguns manifestantes). Não percebem que a

estrutura centralizada onde se aplica a democracia realmente existente

não pode se deixar pervadir continuamente por uma dinâmica distribuída

(mesmo que tal estrutura estivesse a serviço dos 99%).

Ora, o Estado-nação tem uma morfologia hierárquica porque é um fruto

da guerra, foi desenhado para a guerra, foi gerado para um mundo em

que a coexistência só podia se dar nos marcos do equilíbrio competitivo.

Mas a democracia é um "metabolismo" de redes com graus de

distribuição maiores do que aqueles que podem ser alcançados pelo

Estado-nação. Esta é a razão - incompreendida - dos limites que a

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democracia dos modernos impõe à continuidade do processo de

democratização.

No plano político, alguns atores das novas manifestações democráticas

não perceberam ainda que o problema não é o que há de democrático nas

democracias realmente existentes e sim o que não há. Ou seja, não

perceberam que o problema não é a democracia e sim a sua

autocratização (promovida pelas protoditaduras ou pelas democracias

formais em processo de autocratização) e a sua manipulação (promovida

pelos governos neopopulistas que parasitam regimes democrático-

formais, usando as eleições contra a democracia para degenerar as

instituições e permanecer indefinidamente no poder).

Nessas circunstâncias eles não podem compreender que a democracia

que temos – com todas as suas imperfeições – é condição necessária para

a democracia que queremos. E não chegam sequer a se perguntar por que

movimentos como esses (como os Occupy, por exemplo) não acontecem

na Coréia do Norte, em Cuba ou na China, ou em Teerã, na Guiné

Equatorial, em Angola, no Zimbabwe, em Camarões, no Sudão, no Chade,

na Etiópia, em Gâmbia, no Uzbequistão, no Cazaquistão, no Tadjiquistão...

para não falar de regimes como o que vige na Rússia de Putin, onde os

movimentos de contestação são duramente reprimidos e seus

participantes são perseguidos, encarcerados e mortos por um governo de

assassinos (da FSB, ex-KGB).

Por essas e por outras razões, os novos atores têm dificuldade de

perceber que “o inimigo” não é a democracia (a democracia política,

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formal e representativa ou qualquer forma imperfeita e limitada de

democracia) e sim tudo que impede ou enfreia o processo de

democratização, ou seja, tudo que tenta fechar a brecha democrática por

meio da autocratização dos modos de regulação de conflitos e da restrição

das liberdades.

Não deixa de ser curioso o fato de que existam movimentos como esses

que, a julgar pelas declarações de alguns de seus manifestantes, às vezes

dão a impressão de querer detonar as pouquíssimas 25 democracias

representativo-formais plenas que existem no mundo e não existam

movimentos semelhantes para abolir as mais de 50 ditaduras (e

assemelhadas) e os 70 regimes restritivos à liberdade que ainda

remanescem nesta segunda década século 21...

A despeito, porém, da consciência de seus atores sobre o que está

realmente em jogo, o sentido geral desses movimentos é o da reinvenção

da política. O sentido é correto, pois da evidência de que a democracia

representativa (estabelecida sob um Estado de direito) seja condição

necessária para o ensaio de formas políticas mais democráticas capazes de

superá-la, não se pode inferir que isso acontecerá por uma reforma do

velho sistema representativo. Em suma, o juízo de que a democracia que

temos é condição necessária para a democracia que queremos não

significa que a democracia que queremos será gerada a partir (ou como

um desenvolvimento interno) da democracia que temos.

Nos últimos anos, a partir das descobertas da nova ciência das redes,

pode-se chegar à conclusão de que o velho sistema político não poderá

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ser reformado, nem por dentro (por uma progressiva democratização

capaz de “aperfeiçoá-lo”, como julgam tolamente os liberais), nem por

fora (por uma espécie de revolução global capaz de substituí-lo de modo

abrupto por outro sistema, supostamente mais democrático, com a

adoção de novos procedimentos mais diretos, participativos e

deliberativos, como advogam alguns dos novos teóricos da democracia

que são, sem o saber, teóricos da autocracia). E isso, simplesmente,

porque, ao que tudo indica, não haverá mais um sistema.

O fim das massas arrebanhadas e o início das multidões

consteladas

Multidões de pessoas conectadas - e formadas a partir de miríades de

micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) - não são

massas arrebanhadas. Bem... é aqui que começa uma (nova) conversa

logo após o fim do (velho) mundo (único).

Uma multidão de milhões não pode ser convocada centralizadamente,

nem mesmo descentralizadamente. Ela acontece por um mecanismo

distribuído próprio da rede. Ela é a manifestação de uma fenomenologia

da interação, um swarming (enxameamento). Felizmente, swarmings -

como os que aconteceram em Madri (2004 e 2011), no Egito (2011) e no

Brasil (2013) - não podem ser planejados por um grupo centralizado, não

podem ser urdidos por um comitê central e nem podem ser convocados

por meios broadcasting. Só ocorrem quando se trafega pelos canais

próprios das redes, por meios P2P, ou seja, quando o fluxo percorre os

Page 29: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

29

múltiplos caminhos de topologias distribuídas. São necessários muitos

feedbacks, muitos laços de retroalimentação de reforço, muitas

reverberações, para que pequenos estímulos provenientes da periferia

dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio, possam se

amplificar de modo a modificar o comportamento dos agentes do sistema

como um todo. Só quem pode fazer isso é a rede, não hierarquias.

Pode-se, no máximo, tentar clonar as estruturas distribuídas das redes

sociais realmente existentes (e é bom não confundir as redes sociais, quer

dizer, as pessoas interagindo segundo determinado padrão mais

distribuído do que centralizado, com as mídias sociais, as ferramentas

interativas - como o Facebook e o Twitter) e procurar atuar de modo

coerente com elas. Atuar de modo coerente com a estrutura e a dinâmica

de mundos distribuídos significa fazer netweaving: mais do que cortar e

quebrar (to hack e to crack), tecer, alinhavar. Ou seja, ser mais

interativista do que ativista (militante).

Nada de organizar destacamentos. Interagir para clusterizar (sim, tudo

que interage clusteriza). Distribuir para enxamear (sim, tudo que interage,

a partir de certo grau de distribuição, conectividade e interatividade, pode

enxamear). Conectar para contrair o tamanho social do mundo, quer

dizer, para ensejar e acelerar o crunching (o amassamento que ocorre em

Small Worlds Networks) que está mudando não apenas a estrutura e a

dinâmica, mas a natureza daquilo que chamamos de sociedade humana.

Mesmo assim, não se sabe - e é bom que não se saiba de antemão - se os

fenômenos mencionados vão acontecer. Eles podem acontecer e podem

Page 30: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

30

não acontecer. O importante é não tentar instrumentalizar os outros,

mobilizá-los para o confronto, insuflar um ânimo adversarial, construir e

demonizar inimigos. Os recentes eventos no Brasil mostraram que o

importante é não iniciar uma espiral de violência. O importante é construir

a paz e não a guerra.

A democracia nunca nasce da violência

Não há um caso, um único caso na história. A primeira democracia, a

democracia dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses

frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano

Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma

rebelião popular. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática

foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente

proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata.

Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo

da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer,

recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso,

precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia).

A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de

nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar

em (e a se rebaixar a) um modo de administração política do Estado-

nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra.

Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente

existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que

Page 31: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

31

isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da

sociedade-em-rede.

A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma

guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das

relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base

na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar

que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer

para derrotar inimigos (reais ou construídos como pretexto para justificar

uma estratégia de poder).

As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções entendidas

como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de

poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que

foram assim desencadeados produziram mais autocracia, não mais

democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou

outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e

guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades.

As primeira medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder

pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e

da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção

de monstruosos aparelhos estatais de espionagem interna e repressão.

Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem

notícia na história.

As democracias não são originadas em eventos épicos, em grandes

batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de

Page 32: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

32

rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com significativo

grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem

à primeira democracia não teria acontecido). As democracias não são

regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir

rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas

fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie humana por meio

de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas. A democracia é lírica,

é um modo de convivência pacífico e pacificante, voltado para

transformar inimizade em amizade política e - para lembrar John Dewey

(1939) - praticado pelas pessoas comuns (2).

Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito - na verdade proferido por Abraham

Johannes Muste (1885-1967) - de que não existe um caminho para a paz, a

paz é o caminho. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização

do ideal de liberdade como autonomia e da democracia como modo

pazeante de regulação de conflitos. Não existe caminho para a

democracia: a democracia é o caminho. Se queremos uma nova

democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho

senão a democratização.

A terceira invenção da democracia trata disso: da continuidade do

processo de democratização nas condições de uma sociedade-em-rede.

Page 33: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

33

INTRODUÇÃO

É possível reinventar a democracia?

Sim, é possível reinventar a democracia. Se a democracia não pudesse ser

reinventada, ela não poderia ter sido inventada. Ao dizer que a política é o

que é, não havendo condições de mudar sua natureza (a relação amigo-

inimigo), o realismo político está, na verdade, inoculando uma vacina

contra as mudanças políticas democratizantes: está dizendo que a política

será sempre o que foi e sempre como foi; ou como se avalia que sempre

foi. Ora, na maior parte do tempo a política não foi democratizante:

apesar da onda democrática mundial do último século, nos últimos seis

milênios a democracia não passou de uma experiência localizada, frágil e

fugaz. Depois da sua invenção pelos gregos, a tendência que vigorou

amplamente foi a da autocratização e não a da democratização. Por isso

teve razão Amartya Sen (1999) quando, perguntado sobre qual teria sido o

acontecimento mais importante do século 20, respondeu de pronto: a

emergência da democracia (3).

Em virtude de uma conjunção particularíssima – provavelmente fortuita –

de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade lograram abrir

uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e guerreira),

ensaiando pactos de convivência estabelecidos em redes de conversações

entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam sua

opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber

Page 34: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

34

científico ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu

em cidades gregas, a partir de 509 antes da Era Comum, mas não é

improvável que tenha ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras

ocasiões e lugares (o relato profético da chamada Assembleia de Siquém,

ocorrida na Palestina entre os séculos 12 e 11 (?) a. E. C., talvez constitua

um indício importante nesse sentido). Assim surgiu a democracia como

uma experiência de conversação em um espaço público, quer dizer, no

caso de Atenas, não privatizado pelo autocrata.

Circunstâncias históricas peculiares – que possibilitaram as reformas de

Clístenes, de Efialtes e o início do protagonismo Péricles – geraram uma

configuração singular, uma constelação particularíssima de fatores que

permitiu a abertura da brecha democrática. O fato é que, do ponto de

vista do padrão de organização, a democracia não teria surgido sem a

formação de uma rede local com significativo grau de distribuição em

Atenas. Em Atenas, as instituições democráticas foram criadas para

afastar qualquer risco de retorno do poder exercido pelo tirano Pisístrato

e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um

espaço (que se tornou) público.

A primeira invenção da democracia

A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 a. E. C. A

democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de "metabolismo" da

rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na

Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia.

Page 35: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

35

Mas os historiadores não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as

guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram

vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos

de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas

que impulsionaram ou tentaram evitar.

Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo

a instituição da Ecclesia (assembléia) e da Boulé (conselho) por volta de

590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como

desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da

intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania

em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos

Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder

até 510 e foi destituído por Clístenes.

Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho

para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado

em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo

político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o

século 5 foi também chamado de século de Péricles.

Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de

Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o

início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas.

Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense

porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro,

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36

regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de

Demóstenes (384-322).

É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de

culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo

revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.

A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que

já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma

invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no

firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no

abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).

Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não

tinham a menor consciência das implicações e consequências do que

estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem,

simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em

consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar,

sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de

senhores).

Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos

atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido

apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um

senhor.

Page 37: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

37

Depois da primeira invenção da democracia

É surpreendente que, depois da experiência dos gregos, a democracia

tenha retrocedido, não avançado. E que isso tenha ocorrido tanto na

prática quanto na teoria.

Sobre o tema há, por certo, muitas controvérsias. Alguns, como Dahl

(1998), tentam interpretar a República romana como uma versão (latina)

da democracia (grega) (4). Mas, ao que tudo indica, não se trata

exatamente da mesma coisa, visto que o sistema de governo com

participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de

isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da

comunidade (koinonia) política de Atenas e de outras cidades gregas do

período democrático (509-322).

Se encararmos a democracia, no seu sentido “fraco”, apenas como

sistema de governo (popular) – e não, em seu sentido “forte”, como

sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio da

política praticada ex parte populis, regula a estrutura e a dinâmica de uma

rede social – perceberemos que várias outras experiências surgiram

concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final

do século 6 até meados do século 2), governos locais em cidades italianas

(como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até meados

do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que

admitiam alguma forma de assembleia com participação mais ou menos

popular (na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em

Page 38: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

38

outros pontos ao norte do Mediterrâneo). De qualquer modo, foram

experiências insuficientes diante da tendência autocrática predominante.

A rigor tivemos um interregno autocrático de dois mil anos (de 322 a. E. C.

até o século 18; ou, com alguma boa vontade, até o século 17).

A segunda invenção da democracia

Depois da experiência fundante da democracia grega, ou seja, da primeira

invenção da democracia, os modernos reinventaram a democracia e

tentaram ensaiá-la no Estado-nação europeu: um fruto da guerra, da paz

de Westfália (1648-1659). O Pacto do Livre Povo Inglês (1649) é as vezes

tomado como um marco do início da extensão dos direitos políticos a

todos os cidadãos. Mas existiram muitos antecedentes e consequentes.

A segunda invenção da democracia foi logo influenciada pela concepção

do Estado liberal. Mas se tomarmos a democracia como movimento de

desconstituição de autocracia e não como forma de governo, então as

tentativas dos modernos de limitar as atividades do Estado, como queria

von Humbolt (1792), inserem-se no mesmo movimento iniciado pelos

atenienses contra a tirania (5). O sentido desse movimento é a liberdade e

esse movimento é o que podemos chamar propriamente de política na

acepção democrática original do termo.

Não importa se a primeira democracia foi inventada contra o poder

tirânico de Psístrato e seus filhos em Atenas ou se a segunda democracia

foi, em parte, inventada contra a monarquia absolutista de Carlo I na

Page 39: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

39

Inglaterra. A despeito das teorias liberais do Estado, que tentaram

interpretar a reinvenção da democracia pelos modernos do ponto de vista

da liberdade do indivíduo perante o Estado, a democracia continuou

sendo um movimento de desconstituição de autocracia.

Do ponto de vista dos sistemas autocráticos, amplamente predominantes,

a democracia – para usar uma expressão de Saint-Exupery (1929),

empregada em outro contexto (no livro “Correio Sul”) – foi “um erro no

cálculo, uma falha na armadura...” devidamente corrigida nos dois mil

anos seguintes à experiência dos gregos (6). Quando os modernos

tentaram reinventá-la, só então se pôde perceber toda a força da tradição

autocrática. Nos dois séculos posteriores às ousadias teóricas de Althusius

(1603), Spinoza (1670) e Rousseau (1762) – que lançaram os fundamentos

para a reinvenção da democracia pelos modernos: a ideia de política como

vida simbiótica da comunidade, a ideia de liberdade como sentido da

política e a ideia de democracia como regime político capaz de

materializar o ideal de liberdade como autonomia –, os pensadores

políticos posicionaram-se, em sua imensa maioria, francamente contra a

democracia.

O juízo de Burke (1790), segundo o qual “a democracia é a coisa mais

vergonhosa do mundo”, é emblemático desse ânimo autocratizante que

vigorou nos dois milênios anteriores à época em que a democracia foi

reinventada pela primeira vez (7).

Page 40: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

40

As diferenças entre a primeira e a segunda invenções da

democracia

A democracia surgiu como um projeto local, não nacional. O grupo de

Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não

foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer povo da

liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter

indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim para

realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do

cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um

projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-

Estado). Mas na sua forma originária ela só poderia se materializar

plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no

local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-

vida compartilhado (8). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de

projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma

comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares

ou para satisfazer seus interesses (uma definição nua e crua de partido).

A polis grega do período democrático não era a cidade-Estado e sim a

koinonia (comunidade) política. Como percebeu a argúcia de Hannah

Arendt (1958), "a polis não era Atenas e sim os atenienses" (9). Isso, é

claro, faz toda a diferença.

O Estado liberal ideal sintetizado por von Humbolt (1792) era o Estado-

nação europeu moderno, um fruto da guerra, da paz de Westfália (1648-

Page 41: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

41

1659). Ocorre que guerra é sempre, em qualquer circunstância, um

movimento de autocratização. Os gregos democráticos também se

comportavam de forma apolítica (não-democrática) quando guerreavam,

por certo, mas isso não era constitutivo do seu modo de vida democrático.

Há uma diferença, tão sutil quanto crucial, aqui: enquanto a democracia,

para os gregos, era um modo de regulação da comunidade política (a polis

democrática), os modernos transformaram a democracia numa forma de

administração política de uma entidade estruturada pela e para a guerra

(o Estado-nação). É claro que ambos os movimentos são de

democratização, mas o primeiro era contra a instalação (ou melhor, a

reinstalação) de um Estado como entidade privada (privatizada pelo

autocrata) enquanto que o segundo era uma espécie de tentativa de

convivência com uma entidade que não poderia se publicizar

suficientemente pelo processo de democratização que os modernos

experimentaram.

Mesmo democratizado, o Estado-nação moderno não poderia adquirir

uma estrutura e uma dinâmica comunitária semelhante à da polis

democrática. Essa "falha genética" da segunda invenção da democracia

impediu que ela realizasse a democracia no seu sentido "forte", como

modo de vida, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. De sorte

que o arcabouço institucional das sociedades democráticas modernas

decalcou sempre, em alguma medida (e em grande medida), o modelo de

uma estrutura desenhada para a guerra e, por isso, inevitavelmente,

autocrática. É assim que as instituições políticas (como os governos e os

partidos) e, também, muitas outras instituições da democracia dos

Page 42: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

42

modernos, continuaram, em grande parte, apresentando uma estrutura

hierárquica e uma dinâmica autocrática.

A democracia dos modernos não pode ser mais democratizada

O que não se percebe é que autocracia e guerra estão coimplicadas. E

que, portanto, movimentos de desconstituição de autocracia (isto é,

movimentos de democratização), são movimentos de instalação de modos

de regulação de conflitos que desconstituem a guerra por meio do

pazeamento das relações. Nenhuma autocracia se sustenta sem guerra:

seja a guerra propriamente dita, contra um inimigo externo ou interno

configurado como grupo (organizado top down), seja a estado de guerra

interno instituído a pretexto de combater um inimigo externo ou interno

(ou dele se defender), seja a política praticada como arte da guerra (a

política como continuação da guerra por outros meios, na formule inverse

de Clausewitz-Lenin).

Ora, se o contrário da guerra não é a paz, mas a política (democrática),

então nenhuma democracia pode continuar sendo democratizada

enquanto prevalecer a construção de inimigos e a luta contra eles. Esta é a

razão pela qual a segunda democracia (a democracia dos modernos) não

pode ser mais democratizada na medida em que se instala em (e se

circunscreve às) estruturas desenhadas para a guerra (lato sensu, ou seja,

a guerra "quente", fria, o estado de guerra ou a política pervertida como

arte da guerra) e fortemente influenciadas por sua dinâmica.

Page 43: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

43

Os modernos nunca chegaram a entender plenamente que o processo de

democratização é limitado pela sua convivência com a guerra. Talvez

porque, condenados a administrar estruturas desenhadas pela guerra (o

Estado-nação moderno) não tenham conseguido captar, no plano

conceitual, a contradição fundamental entre democracia e guerra.

Na verdade, nem os antigos democratas tiveram um entendimento

adequado dessa contradição ou incompatibilidade original entre guerra e

democracia. Sua compreensão de que a guerra era uma realidade apolítica

se deu mais no plano factual do que conceitual.

Muito antes dos gregos, o principal movimento autocratizante foi a

guerra. E depois dos gregos, a guerra foi o meio universal de acabar com a

política (democrática) ou de estreitar a brecha por ela aberta nos sistemas

de dominação. Guerra como modo de regular conflitos e de alterar a

morfologia e a dinâmica da rede social para se preparar para o conflito

externo (por meio do chamado “estado de guerra”, instalado

internamente) foi o meio pelo qual a tradicionalidade política pôde se

prorrogar, não apenas derrotando inimigos de modo violento, mas

também construindo continuamente tais inimigos com o intuito de

preservar uma morfologia e uma dinâmica social que, erigida em função

da guerra, constituiu-se como um complexo cultural. Usando-se uma

metáfora contemporânea, trata-se de um programa (software) que foi

instalado na rede social e adquiriu capacidade de modificar essa rede

(hardware) para se auto-replicar.

Page 44: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

44

Quando reinventaram a democracia os modernos não perceberam que o

grande problema para a política democrática não é prioritariamente a

guerra propriamente dita, a guerra "quente" – conquanto ela continue

sendo promovida por quistos autocráticos instalados em países

democráticos contra países não-democráticos, por países não-

democráticos contra países democráticos e por países não-democráticos

entre si – mas o exercício da política como “arte da guerra” (esta sim,

praticada universalmente como realpolitik). O que os modernos não

entenderam? Os limites ao processo de democratização colocados pela

sua convivência com a guerra, no caso, com a política praticada como uma

espécie de continuação da guerra.

A questão de fundo é que a regulação da esfera pública (sem a qual não

pode haver qualquer tipo de democracia) não pode se dar por meio de

uma guerra (ou da política praticada como arte da guerra) entre grupos

privados, como imaginaram os modernos. Os processos de competição

política legalizados e institucionalizados pela democracia representativa

não dão conta de construir uma governança democrática. Na falta desta,

as suas instituições conseguem, no máximo, estabelecer uma

governabilidade (em grande parte autocrática), dedicando-se a manter as

regras de uma luta , de um combate permanente entre grupos privados,

assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública

de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre

uma disputa pelo butim, na base do spoil system).

A principal instituição política não estatal da democracia dos modernos -

senão a única - é o partido. Mas tal como o Estado-nação, partidos são

Page 45: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

45

instituições guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito

violento, operam a política como arte da guerra, como uma continuação

da guerra por outros meios. Nesta exata medida, são organizações

antidemocráticas. É difícil acreditar que o resultado desse embate

constante, dessa interação adversarial permanente entre organizações

privadas, conseguirá constituir um sentido público. Mas os modernos

acreditaram nisso, talvez porque tenham se deixado influenciar pela

autorregulação mercantil, que se dá por meio da competição entre atores

privados. Mas a lógica e a racionalidade do mercado não são as mesmas

da esfera pública. Sociedades competitivas, aliás, não constituem bons

ambientes para mercados competitivos. Quem tem que ser competitivo é

o mercado, não a sociedade.

Se não havia derramamento de sangue, pensaram os modernos: tudo

bem. Mas não, não estava tudo bem para a continuidade do processo de

democratização.

A confusão da segunda democracia com regime eleitoral

O processo de democratização é sempre um processo de publicização. Os

modernos tiveram imensa dificuldade de entender isso, talvez porque

vivessem em mundos fracamente conectados. Em mundos de alta

interatividade, nos quais já estamos vivendo, outras categorias são

necessárias (por exemplo, os conceitos de emergência ou complexidade)

para entender o público (cujo processo de formação é cognato ao

Page 46: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

46

processo de democratização). O resultado é que os modernos acabaram

maltratando o conceito de público (e de opinião pública).

Para a democracia representativa (sobretudo quando confundida com um

processo meramente eleitoral, o que não é raro) opinião pública

confunde-se com a soma das opiniões privadas da maioria da população.

Ora, se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a

opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Na maioria

dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas

opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma

ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso,

intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores

anunciados pelos defensores da democracia.

A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o

mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a

população de um país, mas que é composta a partir dos inputs fornecidos

por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião

pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a

acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A

opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são

voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são

arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta, nos telefona ou

corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que

arrancou porque perguntou, mas que nós não estávamos dispostos a

submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas dos

séculos 6 a 4, a democracia certamente não seria escolhida como forma

Page 47: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

47

preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era

favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime

militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e,

ainda assim, expressavam a opinião pública da época.

Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não

pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é

exatamente o mesmo que chamamos de sociedade civil (sobretudo não é

nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil).

Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém

quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações

complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de

construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de

formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido

John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (10).

Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros

processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos

conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar

descrever a formação do público. Hoje podemos dizer que a diversidade

das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E

que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas

privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando

milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se

constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos

motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua

constituição.

Page 48: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

48

No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é

muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode,

portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e

intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de

constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que

reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos

pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica

que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando

pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como

válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos

chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo

Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.

Mas há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que

estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um

grupo em interesse público é magia negra. Seria, mal comparando, como

querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia

de contribuintes.

Não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em

que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se

somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria

base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de

taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto

privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se

comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser

considerado um ente público). Por outro lado, há uma razão eloquente

Page 49: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

49

para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois

também não fica assegurada a formação do público pela simples soma –

ou a totalização ex post e inorgânica – de inputs privados, mesmo que as

parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma

população.

No caso da chamada opinião pública, não basta somar (ou juntar e

totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se

combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo

de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá

ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a

opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras

dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente

minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do

século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa

população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo

podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões

privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).

Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua

falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por

fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa

senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto

democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os

processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a

partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto,

escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que

Page 50: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

50

impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (ou

de comunicação).

Em países em que as condições de interação política estão mais bem

distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião

pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas

isso explica por que a vitalidade da segunda democracia está sempre

associada à existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe

média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos

clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de

acumulação do capital seja determinante, como julgaram todas as

vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a

determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação

impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma

racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao

campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em

relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito

ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e,

ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos

que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer

terapêutico).

Tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta o

processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da

complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem

de compreender a fenomenologia a ele associada.

Page 51: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

51

De modo geral confundimos o público com o estatal, quando,

originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as

suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano,

passando pelas Cidades-Estados monárquicas da antiguidade e pelos

Estados reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos

assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi

o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo

autocrata passaram a ser discutidos por todos (os iguais que quisessem

discuti-los) na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público

é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinonia)

política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao

Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim

dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).

Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas

públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas

públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma

desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo,

alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é,

ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política

segundo seus próprios interesses que não são públicos.

O fato de estar escrito em uma Constituição que uma coisa é pública, não

significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas

contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos

indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um

critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é

Page 52: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

52

declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses

privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por

interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e

clientelistas). É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em

saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se

ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é

democratizante. E isso vale também para a chamada opinião pública.

A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo

de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um

processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de

interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião

pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como

um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o

exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la privatizando a esfera

pública das opiniões.

A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma

privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio

de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de

transmissão. Na Rússia de Putin e na Venezuela herdeira do chavismo

estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo

de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da

perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países

da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião

pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal

totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são

Page 53: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

53

proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex post e

inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.

Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população –

aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião

ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à

democracia, então isso coloca um enorme problema para a segunda

democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a

reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem

decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com

ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade

que o motivou. Esse problema tem a ver com as relações entre o processo

de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da

chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos

deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.

Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a segunda democracia é a

confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e

alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as

pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).

Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Já se disse aqui,

mas não custa repetir: se a soma das opiniões privadas pudesse ser a

mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo

político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem

submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do

entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de

tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna. Mas - já

Page 54: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

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havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia” - a

democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de

Estado submetida à regra da maioria (11). Como observou Axel Honneth

(1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de

formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra

de maioria... Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser

uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão

incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser

descoberta aritmeticamente (12).

A segunda democracia nunca conseguiu reparar essa incompreensão do

sentido de público, permitindo que a confusão entre democracia e

eleições (como forma de pesquisa de opinião) conspirasse contra a

essência da democracia como movimento de desconstituição de

autocracia. Isso revelou outra falha "genética" da segunda democracia: a

democracia representativa, ao se confundir, via de regra, com um

processo meramente eleitoral, fica sem proteção eficaz contra o uso das

eleições contra a democracia. Os populismos, por exemplo, se aproveitam

dessa falha, usando a democracia contra a democracia.

A terceira invenção da democracia

Quando a democracia começou a ser reensaiada para valer pelos

modernos, a política tornou-se palco de uma tensão permanente entre

tendências de autocratização e de democratização da democracia. Nada

indica que essa tensão tenha desaparecido na contemporaneidade. Ainda

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55

que este seja um esquema explicativo, pode-se escrever a história da

democracia como a história de um confronto, em que, de um lado,

remanesciam as atitudes míticas, sacerdotais e hierárquicas que

mantinham a tradicionalidade e, de outro, surgiam atitudes utópicas,

proféticas e autônomas que fundaram a modernidade.

Toda vez que a rede social é obstruída, toda vez que se introduzem

centralizações na teia de conexões ou de caminhos que ligam os nodos

dessa rede distribuída, gera-se uma configuração mais favorável ao

crescimento e a manifestação do poder vertical que está no “DNA” da

civilização patriarcal e guerreira.

A democracia, como percebeu Humberto Maturana (1993), é uma brecha

nesse paradigma civilizatório (13). Mas a brecha é a rede. Toda vez que

uma rede distribuída se forma surge uma brecha, introduzindo um erro no

programa de controle. Portanto, independentemente de se querer chamá-

la simplesmente de democracia, de democracia radical, de democracia

democratizada, de holarquia ou de pluriarquia, o fundamental é que a

brecha está lá.

A brecha democrática não foi aberta de uma só vez. Ela foi aberta e

fechada várias vezes. E continua, nos últimos dois ou três séculos, sendo

alargada e estreitada de modo intermitente. Desse ponto de vista, o que

chamamos de democratização nada mais é do que o processo de

alargamento dessa brecha. Mas percebe-se que há um limite estrutural ao

alargamento da brecha nos marcos da segunda invenção da democracia.

Page 56: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

56

É a impossibilidade de continuar democratizando a democracia dos

modernos que coloca na ordem do dia a possibilidade de reinventar, pela

segunda vez, a democracia. A terceira invenção da democracia nada mais

é, portanto, do que a continuidade do processo de democratização nas

condições da contemporaneidade.

Mas é preciso entender bem o que são as condições da

contemporaneidade. Não é mais conviver em um mundo único: agora

serão Highly Connected Worlds (no plural mesmo); ou seja, em termos

sociais, à medida que aumentam os graus de distribuição, de

conectividade e de interatividade, a ilusão do mundo único criada pelo

broadcasting (pela transmissão centralizada um-muitos das estruturas

hierárquicas) vai se desfazendo e miríades de mundos sociais vão

surgindo, sociosferas cada vez mais tramadas por dentro e conectadas

para fora, porém peculiares. Assim, não teremos um tipo ou uma forma

de democracia (como fizeram os antigos em Atenas ou como pretenderam

fazer os modernos: exportando-a para todo o mundo na esteira da

exportação do modelo europeu de Estado-nação).

A primeira democracia foi local. A segunda democracia tentou ser global

(mas mal conseguiu se realizar plenamente em três dezenas de países e

nunca logrou vigorar no plano internacional - onde impera a realpolitik do

equilíbrio competitivo - a despeito da promissora evidência de que países

democráticos não guerreiam entre si). A terceira democracia será glocal e

isso significa dizer que não será "uma" democracia, não será "a"

democracia. Não teremos uma fórmula aplicável a várias circunstâncias e,

portanto, não será possível exportá-la, como tentaram os modernos.

Page 57: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

57

Somente será possível reinventá-la em cada glocalidade. E mesmo assim

será possível chamar todas essas invenções de democracia (ou de

democracia radicalizada, de democracia democratizada, de democracia

cooperativa, de democracia interativa, de holarquia ou de pluriarquia) a

não ser enquanto - e na medida em que - estiver em curso algum

movimento de democratização ou de desconstituição de autocracia como

elemento essencial da constituição das formas políticas concretas que

cada glocalidade inventou.

Surpreendentemente a terceira invenção da democracia é a desinvenção

das formulas de democracia.

Inventando a terceira democracia

Não se trata de adivinhar como será a terceira democracia. Trata-se de

inventá-la.

É claro que tal invenção se dará dentro dos horizontes de possibilidades

dos novos mundos altamente conectados que estão emergindo no dealbar

deste terceiro milênio.

Observando as tendências contemporâneas, alguns fenômenos, eventos,

experimentos e configurações emergentes (novas formas de organização

e convivência que começam a surgir em profusão por toda parte) podem

estar indicando o seguinte sobre a terceira democracia:

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58

I - Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão

de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que

de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

II - Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou

adesiva.

III - Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas

(abertos à interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-

participacionistas (seguindo pautas previamente estabelecidas por

alguma coordenação centralizada).

IV - Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos

com procedimentos representativos (porém transitórios, com

representações revogáveis a qualquer momento).

V - Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela

lógica da escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de

regulação de conflitos que introduzam artificialmente escassez:

como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e

o sorteio).

VI - Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões

consteladas e em comunidades configuradas para a convivência do

que indivíduos figurando em massas arrebanhadas ou sendo

chamados periodicamente a influir na vida política como eleitores

solitários.

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59

VII - Que a formação democrática da vontade política terá mais

como fonte originária a cooperação voluntária, com a convergência

comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou

realizar um projeto, do que a liberdade individual de opinar

protegida da interferência do Estado (segundo a visão liberal) ou do

que o reino público constituído pela argumentação discursiva

(segundo as visões do republicanismo político e do

procedimentalismo democrático).

VIII - Que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única

fórmula pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com

a segunda democracia).

IX - Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em

apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais

centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações).

X - Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado

com as democracias realmente existentes (incluindo as democracias

plenas, as democracias parasitadas por regimes manipuladores e as

democracias em processo de autocratização) e também com

protoditaduras florescentes e ditaduras remanescentes.

Para teorizar sobre essas tendências e experimentá-las em ensaios

concretos de novos modos de convivência social, vários campos de livre-

invenção - ou de cocriação - estão sendo abertos neste momento. Ora,

isso já faz parte da terceira invenção da democracia.

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CAPÍTULO 1

DEMOCRACIA DISTRIBUÍDA

Que a organização de suas instituições espelhará mais um padrão de rede

(estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que de hierarquia

(estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

Ninguém pode entender o que é rede se não entender a diferença entre

descentralização e distribuição. O melhor caminho para entender tal

diferença é ler o velho artigo On distributed communications, de Paul

Baran (Santa Mônica: Rand Corporation, 1964) (14). No mencionado paper

sugiro espiar diretamente a figura abaixo:

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Entre a monocentralização (o grau máximo de centralização, que no

diagrama de Baran aparece como rede centralizada) e a distribuição

máxima (todos os caminhos possíveis, correspondendo ao número

máximo de conexões para um dado número de nodos - que não aparece

no terceiro grafo do diagrama de Paul Baran, por razões de clareza de

visualização), existem muitos graus de distribuição. É entre esses dois

limites que se realiza a maioria das redes realmente existentes.

Os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que

podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a

conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais

centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. O segundo

corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a

distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede,

menos interatividade ela possui.

Pois bem. Ainda que o modo de regulação não seja uma consequência

automática do padrão de organização e sim fruto de invenção política,

pode-se afirmar que a democracia expressa um metabolismo de redes

mais distribuídas do que centralizadas. Na Atenas do século 5 tal

aconteceu: configurou-se uma rede de conversações na praça do mercado

com significativo grau de distribuição: sem isso a democracia não poderia

ter sido inventada e não teria perdurado por dois séculos (entre 509 e 322

a. E. C., conquanto que só por isso ela não surgiria, já que foi uma

invenção mesmo, uma "obra de arte" como observou Humberto

Maturana em 1993) (15).

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No entanto, após a experiência fundante dos atenienses tivemos um

interregno autocrático de praticamente dois milênios. Quando a

democracia começa a ser reinventada pelos modernos, a partir de meados

do século 17, o ambiente social estava configurado de forma muito

diferente. A Europa vinha de séculos de guerra contínua ou intermitente e

os fluxos da convivência social tinham sido obstruídos, capturados,

deformados e verticalizados a tal ponto que os graus de distribuição da

rede social eram baixíssimos em quase todo lugar. O movimento de

desconstituição de autocracia que pode florescer teve que se conformar

às estruturas fortemente centralizadas de então, sobretudo à estrutura

que já era, há milênios, o principal tronco de programas verticalizadores: o

Estado. A nova forma do Estado-nação, que surgiu na Europa como fruto

da paz de Westfália (1648-1659), não pode escapar dessa contingência

genética: era um Estado, mais uma forma de Estado que sucedia às formas

pretéritas homólogas do ponto de vista do padrão de organização e dos

modos de regulação (o Estado-Palácio-Templo mesopotâmico, proto-

Estados e Estados erigidos por hordas de predadores e senhores e por

impérios do chamado despotismo oriental, as cidades-Estado monárquicas

da antiguidade, os Estados feudais antigos e modernos, os Estados reais e

principescos).

Mais do que isso, porem: toda a realidade política era o Estado, a tal

ponto que política era praticamente sinônimo de Estado e quando Spinoza

quis falar propriamente da política, no final do seu célebre Tratado

Teológico-Político (1670), ou seja quando quis afirmar que o fim (ou o

sentido) da política não é a ordem, mas a liberdade (ao contrário do que

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pensava Hobbes), teve que falar de Estado para se fazer entender (só com

o tempo surgiria uma politics relativamente independente da policy na

percepção dos atores políticos) (16).

Não havia algo como uma koinonia política (como na Atenas do século 5),

composta por pessoas livres (ainda que só algumas pessoas o fossem) e

livres o suficiente para estabelecer relacionamentos horizontais e

conversar num espaço público quando lhes desse na telha (e... para fazer

politics). A política não era o metabolismo de uma comunidade e sim

apenas o catabolismo e a exsudação de uma estrutura que extraía sua

energia das pessoas nela inseridas como peças de uma máquina e em

seguida as descartava.

A máquina que funcionava para a guerra foi (parcialmente) domesticada,

por certo, quando se tentou regular seu funcionamento para proteger os

"de dentro" (os arrebanhados no Estado-nação) dos seus próprios chefes

(a realeza e a nobreza e, depois, os príncipes plebeus: presidentes e

primeiros-ministros). A essa proteção se chamou direitos (dos "de

dentro"), preservando-se entretanto a sua capacidade letal (para a guerra

contra os "de fora": os outros Estados-nações).

Parece óbvio que num ambiente assim configurado a democracia não

poderia fazer muito mais do que fez. E ela fez muito, se considerarmos

que, nos séculos 18, 19 e 20, aumentou consideravelmente o número de

países que adotaram a democracia reinventada pelos modernos. Um de

seus principais feitos, além do chamado Estado democrático de direito, foi

desativar as guerras, ao menos entre os países que a adotaram. Ora,

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65

desativar guerras é desconstituir autocracia, ou seja, é fazer democracia

no sentido forte do conceito, ainda que - na ausência de guerras

"quentes" ou "frias" - modos de regulação autocráticos (e compatíveis

padrões de organização hierárquicos) tenham remanescido na política

praticada como "arte da guerra" (a política como continuação da guerra

por outros meios, na formule-inverse de Clausewitz-Lenin) entre os "de

dentro".

Aqui então chegamos ao ponto. Em virtude dos condicionamentos

presentes em sua origem, a democracia reinventada pelos modernos

baseou-se em instituições com estrutura mais centralizada do que

distribuída. O Estado, mesmo a nova forma Estado-nação mitigada por

todos as normas e procedimentos que a habilitam a ser reconhecida como

Estado democrático de direito, continuou sendo uma pirâmide, um tipo de

estrutura que não se pode regular a não ser com o auxílio de modelos de

gestão baseados em comando-e-controle. Mas como o novo modo de

regulação (a democracia) deveria se exercer na "comunidade política"

válida na época (o Estado-nação), ela virou um modo de administração

política dessa nova forma de Estado emergente (em grande parte,

remanescente e persistente).

Poder-se-ia retrucar que com os gregos deu-se a mesma coisa. Após a

primeira invenção da democracia, a cidade-Estado de Atenas continuou

sendo um Estado e se comportando autocraticamente em relação aos

outros Estados ao travar guerras contra eles, mas a diferença está no fato

de que - como percebeu Hannah Arendt (c. 1950) (17) - os gregos sabiam

que se comportavam de forma apolítica (ou não-democrática) quando

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66

guerreavam e, talvez por saberem disso, estabeleciam uma separação

mais ou menos clara entre - para evocar dois conceitos de Platão em As

Leis - o governo para dentro (a "arte do tecelão") e a conquista de

hegemonia para fora (a "ciência do estrategista"). A comunidade política

ateniense (uma comunidade concreta) podia zelar por tal distinção de

modo mais efetivo do que as instituições inauguradas pela democracia

dos modernos.

O governo na democracia dos modernos adotou, em relação aos próprios

cidadãos, uma postura autocrática, quer dizer, não se armou apenas para

se proteger dos "de fora", mas também contra os "de dentro" (não raro

em nome da ordem e da paz social). Porque não havia e não podia haver,

na grande "comunidade política" do século 17, uma regulação efetiva do

poder para dentro capaz de alterar a forma vertical como ele se exercia. A

grande comunidade política dos modernos era uma comunidade abstrata,

um arrebanhamento - não raro artificial, quer dizer, demarcado manu

militari e não socialmente configurado - de diversas comunidades

concretas, clusters sem muitos atalhos entre si e, portanto, com baixos

graus de interatividade. A relação política do Estado com a nação passou a

ser feita com os (ou através dos) indivíduos (eleitores) e essa atomização

do ator político social retirou parte da sua capacidade de interferir a

qualquer tempo na vida do ator político institucional (que, por sua vez,

exacerbou o seu papel de "estrategista" em detrimento do seu papel de

"tecelão").

Há diferenças, portanto. A democracia inventada pela primeira vez pelos

atenienses surgiu, de certo modo, contra a privatização dos assuntos

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comuns pelo autocrata; isto é, surgiu contra o Estado (a cidade-Estado

monárquica de então); embora fosse obrigada a conviver com ele, alterou

radicalmente a estrutura e o funcionamento de suas instituições (a partir

da reformas de Clístenes e Efialtes). A democracia reinventada pelos

modernos surgiu para mitigar o poder do Estado para dentro (protegendo

os cidadãos do seu Leviatã: o Estado-nação) mas não questionou

fundamentalmente a estrutura e a dinâmica das instituições que exerciam

esse poder. Eis o ponto!

Em consequência, as instituições da democracia dos modernos foram

estruturadas hierarquicamente e continuaram apresentando padrões de

organização bem semelhantes às instituições pré-democráticas (e não-

democráticas). Para citar os exemplos mais óbvios: os tribunais

continuaram muito parecidos com o que eram antes (e prosseguiram

sendo chamados de "cortes" até hoje), os exércitos sobreviveram

intocáveis e os órgãos executivos de governo também (escapando da

reprodução quase que apenas os parlamentos).

Novas experiências de democracia deverão se exercer em ambientes mais

distribuídos do que centralizados. Acompanhando a transição da

sociedade hierárquica para a sociedade em rede, as instituições de uma

nova política também deverão ser cada vez mais em rede. Ou seja, mais

democratização do modo de regulação (o que se chama hodiernamente

de radicalização ou democratização da democracia) deve significar mais

distribuição do padrão de organização. Não porque o modo de regulação

seja função (ou dependa) do padrão de organização (no sentido de ser por

este último determinado), mas porque modos de regulação não

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compatíveis com padrões de organização não podem perdurar. É como

uma relação entre software e hardware: programas de rede não podem

rodar bem em hierarquias: mais cedo do que mais tarde a máquina acaba

travando.

Não se pode saber como serão as instituições de uma terceira invenção da

democracia. Como serão múltiplas as experimentações na transição -

muitos modelos emergentes de democracia - surgirão também miríades

de instituições diferentes. Transição não é substituição. Não há um

formato novo para colocar no lugar do velho. Não se trata de substituição

de um modelo de gestão por outro, de um modo político de administração

do Estado ou de regime político por outro. Trata-se de um processo de...

democratização!

O que se pode afirmar é que a democratização dos modos de regulação

será acompanhada da distribuição dos padrões de organização (de

qualquer estrutura ou instituição, seja ela qual for). E que, portanto, a

organização das instituições da terceira democracia espelhará mais um

padrão de rede (estruturas mais distribuídas do que centralizadas) do que

de hierarquia (estruturas mais centralizadas do que distribuídas).

É meio inútil - e até certo ponto prejudicial, na medida em que a previsão

de caminhos reduz a imaginação de caminhos - encontrar exemplos

viáveis ou factíveis de instituições mais distribuídas do que centralizadas

acordes a modos de regulação mais democratizados. Mas bastaria

examinar algumas tendências emergentes nas diversas propostas que têm

surgido de democracia digital por meio de mídias sociais (transitivas e em

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tempo real) que se deslocam de dinâmicas adesivas e participativas para

dinâmicas mais interativas, como veremos nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 2

DEMOCRACIA INTERATIVA

Que sua dinâmica será mais interativa do que participativa ou adesiva.

Interação é um gradiente: adesão-participação-interação. Na verdade,

tudo é interação, mas quando predominam a adesão ou a participação a

livre-interação diminui. Tanto a adesão quanto a participação impõem

restrições à interação (obstruindo, condicionando, direcionando ou

capturando fluxos). Redes sociais acontecem quando as pessoas

interagem, mas quanto mais distribuídas forem as redes mais livre-

interação haverá (18).

Autocracias apresentam pouca interatividade em razão dos altos graus de

centralização de suas instituições (e procedimentos, entendidos como

metabolismos acordes à estrutura ou ao corpo dessas instituições).

Democracias são sempre mais interativas pela razão inversa (suas

instituições e procedimentos são mais distribuídos). Mas mesmo nas

democracias a interatividade varia. A democracia dos atenienses era mais

participativa do que a dos modernos. O sistema representativo funciona

por adesão, não raro compulsória (por exemplo, quando o voto passa de

direito à dever).

Não houve nada como uma evolução na passagem da democracia dos

antigos para a democracia dos modernos. Aliás, não houve nem uma

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passagem. A democracia foi simplesmente reinventada em outro mundo.

Reapareceu, sob outra forma, dois milênios depois.

Sim, foram mundos diferentes (em termos sociais). A experiência da

democracia grega, ensaiada entre 509 e 322 a. E. C., foi um mundo que se

abriu e fechou e só a análise posterior pode encontrar um liame entre

aquela experiência e a da sua reinvenção pelos modernos, dois mil anos

depois. Não houve continuidade, não houve qualquer evolução; pelo

contrário, o que tivemos depois do ensaio fundante da democracia foi

retrocesso. Por dois mil anos foi – para todos os efeitos – como se aquele

mundo que atingiu seu apogeu no chamado “século de Péricles” não

tivesse existido. No entanto... após milênios, eis que surge um modo de

regulação de conflitos baseado no mesmo fundamento básico: a liberdade

de opinião. Só podemos chamar as duas invenções com o mesmo nome

(democracia) porque foram ambas movimentos de desconstituição de

autocracia (não importa se representada pelo filho restante de Psístrato

ou por Carlos I).

Da mesma forma, não haverá propriamente uma passagem (que expresse

continuidade) entre a segunda democracia e a terceira. A terceira

invenção da democracia não será um aperfeiçoamento da democracia dos

modernos. Antes de qualquer coisa porque ela só existirá se for inventada

(não há qualquer imanência histórica nos levando à ela). Mas se não

quisermos viver um longo interregno autocrático (que se imporá com a

falência da segunda democracia) é melhor reinventá-la dentro do

ambiente de relativa liberdade por ela oferecido. Em democracias em

processo de autocratização, protoditaduras e ditaduras, será muito mais

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difícil reunir as condições favoráveis à uma nova reinvenção da

democracia (inclusive porque a experimentação de novas formas de

democracia será proibida ou restringida nesses regimes).

O ambiente social da sociedade-em-rede é favorável à uma nova invenção

da democracia. Mas isso não significa que ela ocorrerá de qualquer modo,

por força dos graus maiores de distribuição das redes que estão se

configurando. Significa apenas que ela pode ocorrer: se for

experimentada!

Novas experiências de democracia, nas circunstâncias de uma sociedade

em rede, poderão ser mais interativas do que as experiências anteriores.

Por isso se diz que a dinâmica de uma terceira invenção da democracia

será mais interativa do que participativa ou adesiva.

Quanto mais livre for a interação, mais fortuita ela será e menos baseada

em coletivos conformados antes da interação ela será (ou seja, com base

na exigência de pertencimento a um cluster configurado por razões extra-

políticas, que tenha poderes regulatórios aumentativos em relação aos

demais; por exemplo, com direitos exclusivos ou mais direitos de decidir

do que os que não pertencem ao coletivo). Portanto, uma democracia

interativa não poderá ser assembleísta. De uma democracia interativa não

poderão participar apenas os que se tornarem partícipes de uma estrutura

já erigida e que aceitarem se submeter a um modo de funcionamento pré-

estabelecido (ou estabelecido antes da interação).

A terceira invenção da democracia não pode ser uma volta ao caráter

participativo da primeira invenção da democracia. Não podemos - e não

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devemos, se não quisermos retrogradar em termos de interatividade -

reeditar as instituições da velha Grécia do século 5, simulando a Ecclesia

(assembléia) ateniense, muito menos a Boulé (uma espécie de conselho

que pautava a assembléia) ou o sistema de Prutaneis (comissões de

administradores ou executivos de governo). Várias propostas de

democracia que têm surgido nos últimos vinte anos tentam fazer isso ao

mostrar que podemos voltar a uma democracia tão direta quanto a dos

gregos com o auxílio das ferramentas digitais que, agora afinal,

viabilizariam a participação geral (antes impedida pela falta de

instrumentos eficazes para reunir grandes contingentes de pessoas - o que

é, note-se, uma falsa razão). A questão não é o número de pessoas a

reunir: a questão é que não precisamos re-unir o que já está conectado:

como escreveu Frank Herbert (1969) em O Messias de Duna, "não reunir é

a derradeira ordenação" (19). Pois não se trata de voltar ao

participacionismo (ou nele estacionar, como se fosse a maior maravilha do

mundo) e sim de caminhar para o interativismo.

As experiências ocorridas na segunda metade do século 20, consideradas

de radicalização ou democratização da democracia, foram mais

participativas do que interativas. Foram - quase todas - experiências

assembleístas, baseadas em estruturas e procedimentos mais

descentralizados do que distribuídos (e, portanto, hierárquicas). Alguém

(os bouleutas modernos) fazia previamente (quer dizer, antes da

interação) a pauta das assembléias. Alguém (os oradores conhecidos

como "os políticos", os hoi politeuomenoi modernos) monopolizava a

palavra nas reuniões. Formavam-se, em todas elas, oligarquias

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participativas compostas pelos profissionais de reunião, muitas vezes por

"pescadores de aquário" ("fishers in the barrel"): militantes cuja função

era recrutar nas assembléias populares novos membros para suas

organizações hierárquicas. Os procedimentos adotados nesses ensaios de

democracia participativa geravam artificialmente escassez - e, com isso,

verticalizavam o campo social limitando o processo de democratização -

como veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3

DEMOCRACIA DIRETA

Que ela adotará procedimentos diretos mais interativistas (abertos à

interação fortuita, em tempo real) do que assembleístas-participacionistas

(seguindo pautas previamente estabelecidas por alguma coordenação

centralizada).

Os defensores da democracia representativa argumentaram ad nauseam

nos últimos séculos sobre a impossibilidade da democracia direta nas

sociedades modernas. Sua justificativa era baseada na impossibilidade de

reunir presencialmente as pessoas em sociedades muito populosas para

compor uma instância deliberativa direta (numa espécie de assembléia,

como aquela dos antigos gregos). Dever-se-ia, portanto, eleger

representantes (em número factível) para poder caber em uma

assembléia presencial. É claro que apareceram também outras

justificativas mais sofisticadas, avançando para fora do âmbito da

democracia (por exemplo, aquelas baseadas em alguma teoria das elites,

de necessária especialização para tratar de assuntos complexos como a

administração do Estado - todas, porém, meritocráticas, de fundo

platônico e, portanto, anti-democrático).

Mas a justificativa principal mesmo, da qual se vem lançando mão há pelo

menos dois séculos, é de natureza técnica, não política; em uma

expressão: não cabe! Todavia, como já foi dito na Apresentação deste

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livro, o problema não está no número de pessoas: as poleis gregas

também não eram tão pequenas assim. Segundo Finley (1981), “ao eclodir

a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu

auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e

escravos, homens, mulheres e crianças... Corinto talvez tenha atingido 90

mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada

uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente...” (20) – ou

seja, o tamanho dos nossos atuais municípios. O problema está nas

características da clusterização havida, que têm a ver com a unidade

política escolhida: o Estado-nação, que aglomerou vários clusters de modo

apolítico, em geral em razão de guerras que demarcaram fronteiras

artificiais (no sentido de não resultantes de processos sociais). Em

consequência, não haviam atalhos e meios de comunicação suficientes e

adequados para permitir a interação em tempo real ou sem distância

entre esses vários clusters (de parentesco, vizinhança, trabalho, lazer,

aprendizagem, prática, projeto etc.). Parece óbvio que essas condições

precárias de conectividade e interatividade impediam procedimentos

diretos de regulação como os adotados pelos antigos gregos.

A primeira democracia era um projeto local, comunitário. A segunda

democracia foi um projeto nacional (quer dizer, estatal, posto que é o

Estado que representa a nação e fala por ela: ele é o sujeito político

válido, em grande medida porque invalidou todos os demais). Ora, como o

Estado era autocrático, tudo continuaria como antes se ele fosse

representado apenas pelo príncipe ou pela aristocracia. Então foi preciso

eleger a nova aristocracia (política) a partir do povo. Mas quem é o povo

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(um conceito, ademais, muito problemático do ponto de vista da

democracia, já que a palavra populus, no contexto europeu onde foi

inventada a segunda democracia, designava originalmente "contingente

de tropas")? Ora, o povo é a soma dos indivíduos que compõem a

população do país, ou melhor, a parte desses indivíduos que, segundo

critérios que foram sendo modificados ao longo do tempo, poderia ter o

direito de escolha pelo voto (inicialmente e por muito tempo - tal como

em Atenas - excluía-se desse contingente os estrangeiros e as mulheres e

os escravos; e depois, no lugar dos antigos escravos, os que não tinham

posses suficientes).

Quando o povo arrebanhado no Estado-nação deixou de ser as

comunidades ou os clusters convivenciais emergentes da interação social

e passou a ser a soma dos (de alguns dos) indivíduos, a única maneira de

regular politicamente a sua soberania para se governar (já que democracia

é o governo do povo) foi lançar mão de meios indiretos: através de seus

representantes. O resultado foi que o indivíduo ficou indefeso diante do

Estado e então foi necessário instituir um conjunto de proteções

destinadas a salvaguardar seus direitos contra seu próprio Estado. É assim

que o instituído virou constituído e surgiram as constituições e o chamado

Estado democrático de direito na democracia indireta, representativa, dos

modernos.

Mas indivíduos isolados, chamados periodicamente a opinar, tiveram

alguma dificuldade de constituir um sentido público (por várias razões,

dentre as quais a mais óbvia é que a opinião pública não é a soma das

opiniões privadas da maioria da população). Encarar o indivíduo como

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átomo do processo democrático, como o player em primeira instância do

jogo democrático, é problemático porquanto o indivíduo é uma abstração:

os seres humanos concretos são pessoas, quer dizer, são entroncamentos

de fluxos, emaranhados de relacionamentos. E somente nesses

relacionamentos pode ser construído o commons (que consubstancia a

esfera pública). Como não pode existir democracia sem esfera pública (são

realidades coetâneas e emergiram coevamente), o player da democracia é

sempre molecular, não atômico.

Com tudo isso, agora já se sabe que a justificativa (técnica) dos defensores

da democracia representativa para a impossibilidade de uma democracia

direta não se aplica mais às sociedades contemporâneas, nas quais estão

disponíveis meios (técnicos) de interação em tempo real ou sem distância.

Se não se pode fazer uma assembléia presencial de milhões, porque não

cabe nem no maior estádio de futebol do mundo, isso não importa mais:

pode-se fazer tal assembléia virtualmente.

Entretanto, novamente, a questão não é a tecnologia (a mídia), nem a

tecnologia social (assembléia). A questão é o padrão de interação.

Uma terceira invenção da democracia, se não quiser ser uma reforma da

segunda ou uma tentativa de volta à primeira (com mais tecnologia), não

poderá adotar procedimentos assembleístas-participacionistas. Ela poderá

sim, adotar procedimentos diretos, porém mais interavistas do que

participacionistas, ou seja, abertos à interação fortuita em tempo real.

Não há uma relação necessária entre procedimentos diretos e

participação em assembléias: nem em termos presenciais, nem em termos

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virtuais. Procedimento direto é, simplesmente, o que não é indireto,

aquele em que não há delegação de "poder" a outrem (o que é sempre

uma denegação do próprio "poder"). Qualquer pessoa pode opinar em

tempo real sobre os assuntos que lhe dizem respeito ou dizem respeito às

comunidades às quais está conectada: quando não for possível

presencialmente, então virtualmente, mas sem que se conforme uma

instância válida antes da interação (que invalide as demais instâncias

formadas na interação). Opina ou não opina se quiser (o que refuga

qualquer obrigatoriedade). Opina quando lhe aprouver (o que dispensa os

calendários político-jurídicos fechados, estabelecidos antes da interação

pelos bouletas modernos). E opina de onde puder (o que dinamita a

exigência de base territorial fixa).

Como um sistema assim poderá admitir governança? Não sabemos,

sobretudo porque não haverá um sistema assim que exija governança

entendida como governabilidade estatal (diga-se o que se quiser dizer, a

governabilidade é sempre uma remanescência autocrática nas

democracias). Enquanto as novas experiências da terceira democracia se

realizarem no âmbito de Estados-nações elas não poderão ter a pretensão

de servir como modo político substituto para a administração do Estado

ou para o regime de governo (do Estado).

O governo na polis ateniense era a Ecclesia. Não que houvesse um

governo exterior à assembléia, um governo que usasse a assembléia. Não:

ele, o governo (kibernesis) era um atributo da assembléia, os fluxos

interativos - embora de média intensidade - que a percorriam, o seu

"humor" variável, as tendências que a conversação apontava e as decisões

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que reverberavam (ou não), cujas consequências retroagiam gerando não

raro novas decisões, inclusive opostas às anteriores, o comportamento

adaptativo que era obrigada a desempenhar nessas circunstâncias fluidas,

um pouco semelhante mesmo ao metabolismo de um organismo. A

assembléia detinha todos os poderes de governação: relativos à

legislação, às questões judiciais e executivas, inclusive no que tange à

política externa. Podia destituir magistrados e fiscalizar todos os cargos

que nomeasse. E tudo isso não era feito por pouca gente: estima-se que,

no século 5, 43 mil pessoas participavam da Ecclesia que, em alguns

períodos, chegou a se reunir semanalmente.

O governo no Estado-nação europeu moderno, após a segunda invenção

da democracia, já não era nada disso e sim uma delegação, uma espécie

de Boulé estável com muito mais autonomia em relação aos seus

constituintes, que não existiam mais como organização social, como

instância concreta e sim apenas como derivação - e totalização aritmética

- das opiniões dos cidadãos e que não podia, portanto, captar o fluxo da

convivência social, quer dizer, a rede = o que estava entre-eles. A

democracia dos modernos perdeu substância social em comparação com

a dos antigos.

Entraram em cena então os representantes, que se comportavam, para

todos os efeitos práticos, como uma espécie de aristocracia política. Em

alguns casos, quando não cabia a tais representantes (legislativos) eleger

os chefes (executivos) do Estado ou do governo - quando estes passaram a

receber a delegação diretamente dos indivíduos (eleitores) - a figura do

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príncipe (não dinástico, com mandato temporário e submetido às leis) foi

re-entronizada. O que trouxe um sem-número de novos problemas.

De qualquer modo, já havia problemas semelhantes com a assembléia dos

gregos. O primeiro deles é que a Ecclesia era vulnerável ao discurso

inverídico. Um orador jactante, por exemplo, podia levá-la a tomar

medidas inconsistentes com as possibilidades reais de ação da polis.

Ademais, os próprios oradores - os hoi politeuomenoi - eram um problema

quando se perpetuavam, adquirindo a condição de políticos profissionais.

A retórica, neste caso, para além da lógica discursiva e de qualquer razão

comunicativa, influenciava decisivamente a formação da vontade política

coletiva: os que possuíam o "dom" (como se acreditava e, em parte, ainda

se acredita) ou os que estavam mais treinados na arte de conduzir

assembléias, acabavam tendo um papel desproporcional em relação aos

demais. Foi em parte por isso, pode-se presumir, que Péricles conseguiu

manter seu protagonismo por tanto tempo. Tudo isso, porém, não pode

ser explicado adequadamente pela vontade deliberada de alguns agentes

de praticar a demagogia ou de conduzir a assembléia. Pois nada disso

poderia acontecer se... não houvesse a assembléia e os seus

procedimentos participativos dirigistas. Como se sabe, a pauta da Ecclesia

era feita pela Boulé (um conselho menor, mais facilmente controlável, que

acabava tendo grande influência nos resultados da assembléia).

O processo era bem parecido com o das assembléias ensaiadas

hodiernamente sob o nome de democracia participativa, no qual direções

de instituições centralizadas elaboram a ordem do dia dos debates que

ocorrerão, estabelecem as regras desse debate, concedem e cassam a

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palavra, abrem e fecham os trabalhos e privilegiam os participantes

alinhados à sua orientação política. Tais procedimentos manipuladores

acabam se transformando em estratégias de conquista de hegemonia, de

"ganhar" a assembléia, de impedir que outros participantes alinhados a

orientações políticas concorrentes adquiram notoriedade ou sejam

escolhidos para as direções. Toda assembléia é manipulável porque a

participação reflete graus baixos de interação: na participação a interação

não é livre o suficiente para evitar o controle de uma oligarquia (ainda que

seja uma oligarquia participativa e, no caso, trata-se disso mesmo). Como

na Wikipedia, quem participa mais, tem mais chances de conduzir (porque

tem poderes ou privilégios regulatórios aumentativos em relação aos

demais).

A terceira democracia pode ser mais direta sem ser assembleísta. Basta

que os sistemas admitam a interação fortuita, ou seja, que não

conformem colégios decisórios válidos antes da interação; ou melhor:

basta que o colégio válido seja composto por todos aqueles que se

conectam e interagem e sejam validados pela interação. Ferramentas

virtuais com funcionalidades semelhantes às do BetterMeans podem ser

desenvolvidas. Não há uma fórmula, porém. Até porque a terceira

democracia não é um modelo de democracia, como já foi mencionado e

ainda veremos mais adiante e sim miríades de experimentações.

Em uma democracia interativa mais direta, nada impede, entretanto, que

se combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não

sendo necessário que a instância que delega (em alguns casos o colégio

eleitoral) seja conformado previamente com base em critérios extra-

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políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas), como

veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 4

DEMOCRACIA COM REVOCABILIDADE

Que ela poderá combinar procedimentos diretos interativos com

procedimentos representativos (porém transitórios, com representações

revogáveis a qualquer momento).

A questão é saber o peso da renúncia ou até que ponto a alienação do

próprio "poder" - nos processos indiretos de democracia - predominará

em relação ao exercício direto desse "poder".

Antes de qualquer coisa é bom assinalar que a palavra poder (empregada

entre aspas acima) pode levar a graves equívocos. Do ponto de vista social

- que caracteriza a presente abordagem (como foi assinalado na

Apresentação deste livro) - poder é uma relação, não uma coisa que se

possa possuir e transferir. Neste sentido só há poder na medida em que

há centralização e todo poder é uma medida de não-rede (distribuída).

Uma relação de poder (stricto sensu) se realiza quando há obstrução

(seleção ou filtragem, direcionamento ou captura) de fluxos (o que

corresponde à eliminação de conexões ou caminhos), separação (ou

desatalhamento) de clusters ou exclusão (desconectação) de nodos. Isso

só pode ser feito em função da centralização da rede.

A questão da chamada "alienação do poder" foi um problema maior para

a democracia dos modernos do que para a democracia dos antigos. Como

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a fórmula dos modernos baseou-se no indivíduo, ao não exercer

diretamente seu "poder" o indivíduo alienava esse "poder" a terceiros: os

representantes. Para os antigos, o problema era menor porque a fonte

originária do governo confundia-se de certo modo com o próprio governo:

era a assembleia formada pela participação das pessoas livres. O lugar do

governo propriamente dito era a assembleia (de todos) e não um colégio

de (alguns) representantes ou uma instância formada por delegação pelo

representante eleito (no caso da eleição direta de chefes executivos de

governo ou de Estado). Em certa medida, como vimos, na primeira

democracia havia também delegação (ou alguma forma de

representação); por exemplo, para a formação da Boulé (o conselho que

pautava a assembleia), ou para a designação dos prítanes (os

administradores ou executivos, ainda que os presidentes das Pritanias

fossem escolhidos por sorteio e apenas formalmente nomeados pelo

Epistata).

Em redes distribuídas (mais distribuídas do que centralizadas) as pessoas

em geral assumem funções sem necessidade de delegação ou

representação. A questão é que nem todo processo direto é participativo.

Por exemplo, se um ator assume determinada função com o assentimento

(ou o não questionamento) dos demais membros da comunidade política,

isso também é um processo direto. Na assumpção as pessoas se oferecem

voluntariamente para desempenhar determinadas funções contando com

o assentimento dos demais sem a necessidade de uma designação

expressa (enquanto não houver questionamento). Não se poderia

qualificar a assumpção como um processo indireto (de vez que a pessoa

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assume diretamente a função que pretende e, portanto, não delega nada

a ninguém), a menos se considerássemos que os que não assumem a

função, ao assentirem que ela seja exercida por outrem, estariam

conferindo uma espécie de delegação implícita ou representação passiva;

mas este é um sentido fraco dos conceitos de delegação e representação.

Em geral a assumpção reflete um processo emergente da rede, ainda

quando apareça como desejo de um indivíduo de assumir uma função. Tal

se dá, por exemplo, com o novo papel social - próprio de redes

distribuídas - do "guardião do kernel" (quando alguém assume a função de

zelar pela integridade do coração de um sistema operacional, sem

indicação de ninguém). Mas existem outros processos emergentes de

indicação informal de alguém para desempenhar determinado papel. Um

caso bem conhecido é quando o nome de uma pessoa surge como

candidato "natural" para realizar alguma atividade e há prontamente a

concordância de todos, sem a necessidade de administrar a construção do

consenso. Processos emergentes em redes mais distribuídas do que

centralizadas são mais interativos do que participativos.

Por outro lado, não há - do ponto de vista do sentido forte da democracia

(como desconstituição de autocracia) - nada de errado com processos

indiretos eventuais. A questão é saber se o kernel do modo de regulação

será predominantemente baseado em (ou constituído por) procedimentos

indiretos (como fizeram os modernos). Não há, nem mesmo, nenhum

problema com a representação (desde que ela não predomine no

conjunto de procedimentos; ou, é claro, não se torne o único

procedimento válido).

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Em uma democracia interativa mais direta, nada impede que se

combinem procedimentos diretos e procedimentos indiretos, não sendo

necessário que o sujeito (o emaranhado que compõe a comunidade

política configurada pela interação, não o indivíduo) que delega (ou se faz

representar) seja conformado previamente com base em critérios extra-

políticos (como, por exemplo, as bases territoriais ou setoriais fixas). A

base é sempre a comunidade política que interage, não importa se

radicada em um mesmo território ou demarcada a partir das atividades

semelhantes de seus membros. Pessoas que habitam um mesmo território

não constituem necessariamente comunidades políticas. Moradores de

uma localidade e trabalhadores de um mesmo ramo ou categoria

profissional são redes tão abstratas quanto o conjunto de pensionistas da

previdência social. Este é um dos principais problemas da democracia dos

modernos: o Estado-nação é uma rede abstrata que, como tal, não pode

conformar uma comunidade política concreta. Redes sociais concretas

acontecem quando (ou enquanto) as pessoas interagem. O que faz a rede

é a interação e não o pertencimento a alguma classe (no sentido

matemático do termo, equivalente, no caso, ao de coleção) definida antes

ou independentemente da interação.

Uma democracia interativa privilegiará procedimentos diretos em relação

aos indiretos simplesmente porque a interação é direta. Uma democracia

mais interativa do que delegativa ou representativa, portanto, diminuirá o

peso dos processos de designação (nomeação) e de representação

(eleição). O que não significa que não possa haver também algum

processo indireto.

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Para uma terceira invenção da democracia, o que realmente importa é

que, além de transitórias, todas as funções sejam revogáveis a qualquer

momento pela comunidade política, tanto as funções assumidas em

processos emergentes (ainda que apareçam como ato de vontade de

sujeitos individuais), quanto as funções delegadas por designação

(nomeação) ou constituídas por representação (eleição). E que isso não

seja feito, predominantemente, por processos que gerem artificialmente

escassez, como veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 5

DEMOCRACIA COM LÓGICA DA ABUNDÂNCIA

Que ela se guiará mais pela lógica da abundância do que pela lógica da

escassez (ou seja, utilizará cada vez menos modos de regulação de

conflitos que introduzam artificialmente escassez: como a votação, a

construção administrada de consenso, o rodízio e o sorteio).

Redes (mais distribuídas do que centralizadas) podem ser definidas como

múltiplos caminhos. Em geral ambientes sociais são caracterizados por

abundância de caminhos (e, consequentemente, de opções) a menos

quando há obstrução ou eliminação de caminhos (conexões) introduzidas

de modo artificial. De modo artificial, sim, porque a obstrução (ou a

eliminação) não emerge da dinâmica própria da rede (distribuída): ela é

operada top down por alguma hierarquia que deforma (verticaliza) o

campo social. Essa é, aliás, a forma pela qual a hierarquia se reproduz,

transformando tudo que toca em ambiente hierárquico ou centralizando a

rede. Se não produzimos artificialmente escassez quando nos pomos a

regular qualquer conflito, "produzimos" rede (distribuída); do contrário,

"produzimos" hierarquia (centralização).

Todo processo delegativo ou participativo gera artificialmente escassez. A

designação (nomeação), assim como a votação, a construção administrada

de consenso, o rodízio e até mesmo o sorteio, não são procedimentos

adequados a ambientes onde há abundância de caminhos. Ou melhor,

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quando aplicados, tais procedimentos reduzem o número de caminhos e

são, portanto, geradores de escassez.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se

estabelece pode ser pluriárquica. Maiorias que não aderem a uma

proposta não poderão evitar a sua realização (ao contrário do que prevê a

forma de verificação da formação da vontade política coletiva por meio de

processos aritméticos de contagem de votos, que obriga a coletividade a

escolher entre uma coisa e outra, entre uma proposta e outra, entre um

representante e outro, entre um delegado e outro).

Na pluriarquia (que é apenas um nome para a democracia democratizada

em redes distribuídas), o que está em jogo é a funcionalidade do

organismo coletivo e não o poder de mandar nos outros (a capacidade de

exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes) a partir da

regulação majoritária da inimizade política. Assim, se uma pessoa propõe

alguma coisa, aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. Os

que não concordarem não devem aderir e podem sempre propor outra

coisa; os que concordarem com a nova proposta aderirão a ela e assim por

diante.

Tanto os antigos quanto os modernos democratas adotaram modos de

regulação de conflitos geradores de escassez. Mas os que questionam a

democracia representativa porque querem que ela seja mais participativa,

podem introduzir ainda mais escassez do que os adeptos do liberalismo

político.

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O participacionismo dos contemporâneos é tão vulnerável à manipulação

quanto o representacionismo dos modernos e o assembleísmo dos

antigos. Quando tudo termina no voto, é tão fácil manipular assembléias

quanto manipular eleições para obter decisões favoráveis a uma instância

centralizada (e não há como evitar o empobrecimento político pela

redução da abundância de caminhos e opções). O que há de comum a

todos esses procedimentos é a regulação majoritária da inimizade política.

Ou seja, a votação para tomada de decisões e a capacidade de maiorias

verificadas aritmeticamente de impedir a realização de propostas

minoritárias (ou invalidá-las) - o que é um absurdo.

Na participação em assembléia, por certo, pode haver mais discussão ou

debate, mas nem todo debate é democratizante, nem sempre ele é capaz

de facilitar a consumação do commons ou a constituição de um sentido

público. Quando o debate vira uma guerra entre lados, tendências ou

facções, por exemplo, dificilmente o seu resultado contemplará a

diversidade dos desejos, dos projetos, das ênfases dos atores políticos

arrebanhados (na assembleia). Além disso, o debate, em geral, não é

criativo: convoca das pessoas o passado, não o futuro. Então aparece

sempre alguém levantando a mão (como já acontecia na Ecclesia) para

dizer que concorda ou discorda de alguma opinião proferida por outro

(com base em suas convicções pretéritas), mas não para polinizar a ideia

do outro ensejando a construção de novas propostas.

Todavia, nem mesmo os demais procedimentos introduzidos já pelos

antigos (como o rodízio e o sorteio) ou acrescentados pelos

contemporâneos (como a construção administrada de consenso)

Page 92: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

92

conseguiram evitar a produção artificial de escassez. O centro da questão

é que, em todos eles, obriga-se sempre alguns (via de regra, as minorias) a

aceitar o resultado de um processo cujas regras já foram determinadas

antes da interação (e são melhor usadas por alguns, a seu favor).

Ademais, em alguns desses procedimentos - como a busca do consenso -

exige-se a condução centralizada: há sempre uma oligarquia que

administra a construção do consenso, impondo a todos uma metodologia,

um conjunto de passos obrigatórios para se alcançar determinado

resultado esperado. E o consenso administrado - a não ser quando haja

espontânea unanimidade (o que dispensa administração) - é sempre um

consenso majoritário (quem não concorda com o consenso produzido

deve acatar o resultado obtido pela... maioria!). Ao fim e ao cabo, mesmo

quando todos pareçam dedicados à construção do consenso, o ethos é

competitivo. Compete-se, quando menos, pela maior habilidade de extrair

o consenso, pela capacidade de melhor expressar os desejos da maioria,

pelo domínio de uma técnica mais aperfeiçoada de prorrogar determinada

liderança (como ocorreu com Péricles, como ocorreu com Lula). Grande

parte das pessoas ainda pensa que a isso se reduz o fazer político

(politics).

Os modernos resolveram achar que a competição - em si - é uma boa

coisa: em parte com razão, pois em autocracias não há competição,

prevalecendo a vontade do soberano (ou da oligarquia) e a democracia é

mesmo um movimento de desconstituição de autocracia; mas em parte

não, pois os modernos se deixaram seduzir pela competição do mercado

como modo de autorregulação de um sistema complexo, operando um

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93

deslizamento indevido de procedimentos adotados em âmbitos de

diferente natureza e confundindo racionalidades distintas. Como os

liberais não acreditavam que pudesse existir qualquer coisa como uma

sociedade (a rede social) - a qual seria, para eles, no máximo, um

epifenômeno - e sim apenas conjuntos de indivíduos, então, pensaram:

por que não aplicar também à política um modo de regulação que

funciona tão bem quando se trata de coordenar (sem autoritarismo) o

entrechoque de uma multiplicidade de interesses de agentes (ofertantes e

demandantes) privados de produtos e serviços?

É claro que não é a mesma coisa. O funcionamento do mercado a partir da

interação de agentes privados (e existe de fato autorregulação mercantil,

a ponto de causar terrível incômodo nos estatistas) não pretende

constituir um sentido público, nem quer estabelecer resultados gerais

para os que entram (ou não entram) no jogo. Uma sociedade não é uma

economia (e, como já se disse, é a economia que tem que ser de mercado,

não a sociedade).

O rodízio (para a ocupação de cargos ou para delegação de

representações) e o sorteio (para os mesmos fins ou para tomada de

decisões sobre a implementação de qualquer proposta) são melhores do

que a votação e o consenso pois não admitem manipulação (a não ser em

caso de fraude) ou condução por uma instância centralizada (ou

oligarquia). De todos os procedimentos introduzidos pelos antigos e pelos

modernos, o sorteio é o que melhor respeita a natureza da comunidade

política democrática (isológica, isegórica e isonômica). Se o player

(molecular) é a própria comunidade política, então é irrelevante (e, a

Page 94: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

94

rigor, antidemocrático) decidir quem é o melhor: todos os membros da

comunidade política têm, em princípio, o mesmo valor; ou - como iguais

que são, como seres igualmente capazes de conceber e proferir uma

opinião (doxa) e não de deter ou saber aplicar um conhecimento

específico (techné ou episteme) - devem ser (todos) igualmente

valorizados (em princípio) para qualquer função coletiva.

De qualquer modo, ambos (rodízio e sorteio) introduzem escassez onde

não seria necessário. Quando se remove um sujeito político de

determinado lugar ou função para obedecer a regra do rodízio obrigatório

ou quando se pretere alguém que queria ocupar um lugar ou

desempenhar uma função porque não foi sorteado, estamos reduzindo a

abundância. Mais atores no jogo significa mais possibilidades de realização

de novas realidades políticas.

Em todo caso, o procedimento padrão na democracia realmente existente

é o votação: a imposição da vontade da maioria às minorias (a tal ponto

que a democracia acabou sendo definida como o regime da maioria

quando deveria ser o regime das múltiplas minorias). E a votação

estabelece como estado natural a concorrência quando a competição pelo

voto (e pela formação da maioria) acaba se tornando o centro do fazer

político (inclusive nos modelos de democracia participativa propostos

pelos novos teóricos contemporâneos da autocracia, tudo sempre começa

e acaba em alguma votação para escolha de direções ou delegações

(sendo que os eleitos são, a despeito de qualquer justificativa,

representantes - o que, curiosamente, é um processo indireto e não mais-

direto como proclamam).

Page 95: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

95

Em vez de regular majoritariamente a inimizade política, procedimentos

democratizantes deveriam ensejar a conversão de inimizade em amizade

política. Isso não pode ser feito pela disputa baseada na força, nem pela

disputa oratória, nem pela disputa pelo voto (que são formas de guerra:

quente, fria ou de política praticada como continuação da guerra por

outros meios) e sim na conversação amistosa (e toda conversação só se

realiza a partir de uma emoção amistosa e pressupõe cooperação). De

qualquer modo, somente a livre interação pode constituir (por

emergência) um sentido comum à todos os envolvidos, como veremos nos

próximos capítulos.

Page 96: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

96

CAPÍTULO 6

DEMOCRACIA DE MULTIDÕES E COMUNIDADES

Que seus atores serão mais pessoas interagindo em multidões consteladas

e em comunidades configuradas para a convivência do que indivíduos

figurando em massas arrebanhadas ou sendo chamados periodicamente a

influir na vida política como eleitores solitários.

Nos sistemas representativos dos modernos os atores (informais)

coletivos da democracia eram as massas arrebanhadas em comícios e

concentrações pré-eleitorais. Depois que esses coletivos se desfaziam,

entrava então em cena o ator (formal) individual - o eleitor solitário - com

a cabeça feita pelo magnetismo dos líderes que do alto dos seus

palanques mesmerizavam as massas (além, é claro, pelos contatos

pessoais dos cabos eleitorais locais ou setoriais e pela propaganda política

massiva e intrusiva via broadcasting). Era massa e indivíduo.

É claro que havia a mediação das instituições hierárquicas, como as

instâncias do Estado e os partidos (organizações privadas, formadas na

sociedade mas com padrões organizativos decalcados do Estado e

finalidades proto-estatais). Neste texto, porém, pelas razões que já foram

expostas na Apresentação, na Introdução e no Capítulo 1, estamos

considerando apenas aquelas conformações sociais compatíveis com a

democracia (no seu sentido "forte" de desconstituição de autocracia) -

seja na antiga Grécia, seja na Europa moderna, seja no mundo

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97

contemporâneo - e não as remanescências ou revivescências autocráticas

que interpõem obstáculos ao processo de democratização. Neste sentido

social, stricto sensu, atores coletivos cuja topologia é mais centralizada do

que distribuída (como as instituições hierárquicas) não são, a rigor, atores

democráticos (porque a dinâmica ou o "metabolismo" compatíveis com

sua estrutura ou "corpo" não são democratizantes). Este é um

pressuposto conceitual sem o qual tornar-se-ia inútil a presente

abordagem.

Sim, havia atores coletivos hierárquicos mas, no que concerne aos atores

em rede (mais distribuída do que centralizada), não contava para quase

nada a convivência política das pessoas em suas diversas comunidades de

vizinhança, de prática, de aprendizagem, de projeto. E também não

contava para quase nada - inclusive porque não eram percebidos - os

fenômenos que se manifestavam espontaneamente quando essas pessoas

interagiam em multidões que se constelavam por emergência.

Todavia, nos grandes swarmings deste século percebemos a diferença

entre multidões (consteladas) e massas (arrebanhadas). O indivíduo que

comparece a um comício convocado pelo seu candidato ou pelo seu

partido não está na mesma condição daquela pessoa que resolve ser, ela

mesma, a sua própria manifestação numa multidão sem palanque, sem

líder e sem coordenação centralizada. A multidão, embora possa juntar

muita gente, não é um rebanho: podem ser milhões de pessoas, porém

não acarreadas e sim convergidas uma-a-uma, cada qual caminhando no

seu próprio passo e com seus próprios pés. Como disse James Hillman

(1993) - no insight talvez de todos o mais luminoso, como jamais surgiu na

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98

história da chamada ciência política - cada pessoa acha a si mesma "ao

entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis: fluxo e

muitos" (21).

As maiores multidões já reunidas em toda a história humana constelaram-

se no dia 30 de junho de 2013 no Egito. É claro que havia um objetivo

geral (conter a marcha fundamentalista para uma insensata subordinação

do país à Sharia, sob o comando da Irmandade Muçulmana), mas os

motivos pelos quais as pessoas não queriam a continuidade do governo de

Morsi eram muito diversos. Foram milhares de micromotivos diferentes

que, de repente, se combinaram e não um único motivo diretor que se

difundiu a partir de um centro. Assim ocorreu com todos os grandes

swarmings do terceiro milênio.

Também estamos percebendo nos últimos anos a proliferação de

comunidades de muitos tipos. Na democracia dos modernos só se levava

em conta a "comunidade" desenhada pela geografia política (a região

eleitoral), baseada, ao fim e ao cabo, na velha comunidade territorial de

herança. Também era assim na democracia dos atenienses, mas porque a

primeira democracia era um projeto local mesmo e, naquele caso, a

comunidade política - a polis - confundia-se com o território (conquanto a

polis não fosse Atenas e sim os atenienses).

No dealbar de uma sociedade em rede, entretanto, surgem múltiplas

comunidades (de aprendizagem, de prática, de projeto etc.) que não têm

necessariamente uma base territorial previamente delimitada. O local

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99

passa a ser o cluster, produto de uma fenomenologia da interação

(clustering): tudo que interage clusteriza. E agora?

Ah! Agora se constata que democracia dos modernos não tem

mecanismos para incorporar os novos atores políticos compostos por

pessoas interagindo em multidões ou convivendo em comunidades. Os

participantes e organizadores de comícios (e de outros atos pró ou proto-

eleitorais assemelhados) assim como os integrantes de qualquer audiência

(expectadores de palestras, leitores de folhetos e panfletos, ouvintes e

telespectadores de propaganda eleitoral em rádio e televisão) eram pré-

atores: os candidatos e os eleitores propriamente ditos eram os atores

válidos. E nem podiam ser mesmo válidos esses outros participantes ou

interferentes, de vez que tais eventos, ocorridos em torno do fugaz e

assistêmico processo eleitoral, não constituíam qualquer tipo de ator

coletivo com organicidade suficiente para ser um player do jogo dentro

das regras adotadas (que exigiam alguma estabilidade ou duração do

sujeito, identidade inequívoca para evitar fraudes et coetera).

Na democracia dos antigos o problema estava resolvido pela presença

física das pessoas em um local e tempo determinados, ainda que o ator

propriamente dito fosse coletivo (a Ecclesia) e não individual, de vez que o

processo participativo - abrindo um campo para a argumentação

discursiva - fazia parte organicamente do resultado, que não se resumia à

contagem de votos, à liturgia formal dos rodízios ou à loteria dos sorteios.

Numa terceira invenção da democracia, entretanto, deverão ser

incorporados os novos atores compostos por pessoas interagindo em

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100

multidões consteladas e em comunidades configuradas para a

convivência. E esses atores deverão ser incorporados simplesmente

porque passaram a existir como tais, com organicidade suficiente para

tanto, conferida pelos altos níveis de interatividade alcançados por suas

performances. Não se trata de especular como seria. Eles já existem, só

não são levados em conta.

Mas como não levar em conta as vontades expressas pelas multidões? É

necessário notar que isso nada tem a ver com reivindicações de massas

arrebanhadas ou arregimentadas para defender uma pauta de propostas e

nem com a chamada democracia plebiscitária e sim com a combinação

emergente ou a composição fractal - e não unitária, verificada por

qualquer mecanismo de referendo ou plebiscito - de miríades de desejos.

E como não levar em conta os resultados das cocriações de uma variedade

de comunidades configuradas para a convivência? Desprezada essa parte -

da democracia criativa, prenunciada por John Dewey (1939), já no ocaso

da vida, como a principal "tarefa diante de nós" (22) - não poderá ter

continuidade o processo de democratização nas condições de uma

sociedade em rede: a democracia na base da sociedade e no cotidiano dos

cidadãos, a democracia como expressão da vida comunitária. Para quem

quer democratizar a democracia, eis o ponto.

Poderá uma nova democracia (uma democracia mais democratizada) não

ser mais responsiva às manifestações das multidões e aos projetos

comunitários?

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101

Parece que não, assim como também parece óbvio que isso exigirá novas

regras e, mais do que isso, novos procedimentos de verificação das

vontades políticas coletivas (no plural).

É inútil tentar estabelecer de antemão qualquer conjunto de regras e

procedimentos capazes de dar conta desse enorme desafio de captação -

de modo mais criativo (como queria Dewey) - de vontades políticas

coletivas. A terceira democracia não é um modelo para colocar no lugar da

segunda. É apenas - não custa repetir - a continuidade do processo de

democratização nas condições da sociedade em rede. Os novos desenhos

(no plural) de democracia surgirão a partir da cocriatividade dos seus

reinventores. Em rede.

De qualquer modo, uma democracia mais criativa será, necessariamente,

uma democracia mais cooperativa, como veremos no próximo capítulo.

Page 102: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

102

CAPÍTULO 7

DEMOCRACIA COOPERATIVA

Que a formação democrática da vontade política terá mais como fonte

originária a cooperação voluntária, com a convergência comunal de

desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto,

do que a liberdade individual de opinar protegida da interferência do

Estado (segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela

argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e

do procedimentalismo democrático).

A segunda democracia (reinventada pelos modernos) só pode ser

chamada de democracia porque se constituiu para desconstituir

autocracia. Surgida a forma Estado-nação (como qualquer outra forma de

Estado: uma formidável estrutura desenhada para a guerra, um tronco

gerador de programas verticalizadores da rede social, com terrível

capacidade coercitiva e cujo poder não podia ser contrabalançado por

nenhum outro tipo de organização) era preciso proteger as pessoas desse

monstro (o "seu" Leviatã). A visão liberal que visava proteger um conjunto

básico de direitos dos cidadãos - em especial a sua liberdade de opinar -

da interferência desse Estado foi o modo pelo qual o processo de

democratização pode ter continuidade nas condições da modernidade.

O liberalismo político não deve ser desvalorizado porque, uma vez

existindo o Estado-nação, a democracia liberal torna-se condição

Page 103: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

103

necessária (e indispensável) para a continuidade do processo de

democratização e, inclusive, para qualquer reinvenção da democracia;

embora ela mesma - eis um quase-paradoxo - seja incapaz de levar a isso

(quer dizer, continuamente à mais-democracia nos seus próprios marcos

ou à uma outra-democracia mais-democratizada) e, a partir de certo

momento - como o que já vivemos agora - torne-se um obstáculo à

democratização.

De qualquer modo, a liberdade de opinar protegida (modus in rebus) do

poder estatal que foi instituída - e depois constituída - como fonte

originária da formação da vontade política na democracia dos modernos,

representou toda democracia possível nas condições em que surgiu.

Logo se viu, porém, que tal fundamento não era suficiente no que tange

às condições para a formação da vontade política coletiva, dado o

mecanismo de verificação que foi acoplado pelo sistema representativo.

Se se tratasse apenas de recolher e totalizar opiniões individuais o

processo político poderia ser substituído por uma pesquisa de opinião (ou

por qualquer consulta censitária). E não se constituiria a esfera pública

sem a qual, como se sabe, não pode haver democracia.

Teóricos como Hannah Arendt e Jurgen Habermas evidenciaram que esse

reino público só poderia ser constituído pela argumentação discursiva,

evocando talvez o velho processo da Ecclesia ateniense. Lá havia de fato

um campo da argumentação discursiva (conquanto de baixa intensidade

porque a interação foi limitada pelo participacionismo assembleísta). Na

democracia representativa, porém, a república propriamente dita (em

Page 104: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

104

termos políticos) ou os processos intersubjetivos envolvidos ou refratados

pelos procedimentos políticos (presididos por uma razão comunicativa)

garantiriam que a formação da vontade política coletiva se desse sob um

modo de regulação que fosse mais ex parte populis (tudo que não é

Estado) do que ex parte principis (tudo que é Estado).

Havia porém um outro problema que não poderia ser resolvido pelo tal

reino público constituído pela argumentação discursiva, quer na visão do

republicanismo político de Arendt, quer na visão do procedimentalismo

democrático de Habermas: será realmente possível constituir um reino

público a partir da competição entre organizações privadas?

Para responder essa questão é preciso, antes de qualquer coisa,

reconhecer que as formas de democracia liberal, que tentam materializar

a democracia no sentido “fraco” do conceito (como modo político de

administração do Estado ou regime de governo), não estimulam a

cooperatividade e sim a competitividade. Talvez se encontre aqui uma

razão para explicar por que a democracia (representativa) foi

frequentemente associada ao capitalismo ou, pelo menos, a uma visão

mercadocêntrica do mundo.

No sistema representativo moderno, constituído com base na competição

entre partidos, imagina-se que a esfera pública possa ser regulada pela

competição entre organizações privadas (como os partidos). É difícil

engolir todos os pressupostos dessa convicção, que vêm juntos no pacote.

Quando explicitados, tais pressupostos revelam certa confusão entre tipos

diferentes de agenciamento.

Page 105: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

105

É possível conceber formas de autorregulação econômica a partir da

concorrência entre empresas ou, mais genericamente, entre agentes

econômicos, porquanto a racionalidade do mercado é constituída com

base na competição entre entes privados e não há aqui nenhuma

pretensão de gerar um sentido público. Também é possível admitir que a

diversidade das iniciativas da sociedade civil acabe gerando uma ordem

bottom up. A partir de certo grau de complexidade, a pulverização de

iniciativas privadas acabará gerando um tipo de regulação emergente.

Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, pode

se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos

motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua

constituição. No entanto, isso não é possível quando o número de agentes

privados é muito pequeno e, menos ainda, quando eles detêm em suas

mãos – como ocorre no caso dos partidos – o monopólio legal das vias de

acesso à esfera pública (no caso, confundida com o Estado). Nestas

circunstâncias, não há como concluir – em sã consciência – que a

competição entre uma dúzia de organizações privadas possa ter o condão

de gerar um sentido público.

Estabelece-se então, na democracia dos modernos, um dilema que

poderia ser descrito assim:

Não podemos ajudar um governo dirigido por um partido adversário

a melhorar seu desempenho porque se assim fizermos

diminuiremos nossas chances de conquistar o governo para o nosso

partido. Logo (mesmo declarando publicamente o contrário), temos

Page 106: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

106

que torcer e até contribuir para piorar o desempenho do governo

dirigido pelo partido adversário. Porque quanto pior for o

desempenho desse governo “dos outros”, maiores serão as chances

de substituí-lo por um governo “nosso”. Ocorre que um governo,

seja ele qual for, é uma instituição pública e seus problemas,

portanto, dizem respeito a todos nós. Como um bem comum da

nação, o governo, de certo modo, nos pertence. Se o seu

desempenho for ruim, as consequências serão ruins para todos.

Contribuir para o seu fracasso significa, em alguma medida,

prejudicar o país. Por outro lado, contribuir para o seu sucesso pode

significar mantê-lo no poder e, ao fazermos isso, estaremos

trabalhando, portanto, objetivamente, para o insucesso do nosso

partido.

Para sair desse dilema seria preciso desconstituir a lógica competitiva

entre os partidos – ou, pelo menos, não conferir a essa lógica um papel

tão central e exclusivo na regulação da política institucional – ou seja,

seria preciso desconstruir o sistema de partidos tal como se conforma na

atualidade (inclusive desfazendo a confusão entre democracia e

partidocracia). Ao que tudo indica essa proposta, se quiséssemos

incorporá-la em um programa de reforma da democracia representativa,

para usar uma expressão de Bobbio, ainda estaria “na categoria dos

futuríveis” (23).

Uma alternativa seria aumentar a participação política dos cidadãos,

incluindo novos atores no sistema político em uma quantidade tal que os

liames entre seus motivos privados originais e o resultado final da

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107

interação de todos os motivos acabassem se perdendo ou não podendo

mais se constituir. De um modo ou de outro, isso vai acabar acontecendo

na medida em que a sociedade adquire a morfologia e a dinâmica de rede

cada vez mais distribuída. Mas, quando acontecer, será sinal de que nosso

sistema representativo, tal como existe hoje, também já terá sido

aposentado por obsolescência e o será pela dinâmica social e não em

virtude de uma reforma política feita pelos próprios interessados (que não

a farão, com a profundidade desejada, pois sabem exatamente o que está

em jogo e o que têm a perder). Ainda estamos aqui na categoria dos

futuríveis, mas de um futuro que está chegando bem depressa. E que,

quando chegar, será surpreendente (e até certo ponto decepcionante)

para seus promotores, uma vez que a participação estimulada a tal grau

não é mais participação e sim interação (já que o público propriamente

dito só pode ser constituído a partir da emergência e não como plano ou

desiderato de qualquer grupo participativo).

O fato, muitas vezes pouco percebido, é que o sistema concorrencial de

partidos não é essencial para a democracia, nem mesmo no seu pleno

sentido “fraco”. No entanto, como as coisas funcionam assim na

totalidade das democracias realmente existentes, tem-se a impressão de

que tal mecanismo é, de alguma forma, necessário para realizar a

democracia como sistema de governo nos países contemporâneos.

Todavia, quanto mais competitiva for a democracia, menos democratizada

(ou mais autocratizada) ela estará (inclusive na base da sociedade e no

cotidiano do cidadão). Mais uma vez (é quase impossível não repetir):

quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser

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108

de mercado), não a sociedade. Mercados competitivos, ao que tudo

indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões

econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas no tocante aos

investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de

transação e, inclusive, da insegurança jurídica).

Associado à visão mercadocêntrica de uma sociedade competitiva parece

estar um novo tipo de fundamentalismo de mercado, que pode até ser

democratizante em relação ao estadocentrismo que, em geral,

acompanha as autocracias, mas, se for, manifesta-se apenas no tocante à

democracia como sistema de governo e não à democracia na sociedade. É

claro que é melhor ter vários partidos – legal e legitimamente –

disputando o poder de Estado do que apenas um partido (em geral

confundido com o Estado) autorizado a empalmá-lo (em uma espécie de

regime de monopólio político). No entanto, vários partidos também

podem constituir um oligopólio político, como, aliás, ocorre

frequentemente, expropriando a cidadania política, sendo que, nesse

caso, não há nenhuma instância “acima” capaz de regular a competição

(de vez que o Estado, nessas circunstâncias, já teria sido ocupado e

dividido ou loteado pelo oligopólio partidário).

Por outro lado, o Estado autocrático também não pratica uma democracia

cooperativa, mas se organiza, de certo modo, contra a sociedade para

controlá-la. O seu padrão de relação com a sociedade é competitivo

(mesmo na ausência de concorrentes políticos autorizados) e adversarial.

É um Estado que compete com a sociedade pela regulação das atividades

e que, assim, não permite, sequer, a autonomia associativa.

Page 109: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

109

Tal como ainda se estrutura e funciona, o Estado, autocrático ou

declaradamente democrático, não é capaz de assumir uma democracia

cooperativa. A razão básica é que uma democracia cooperativa não pode

mesmo funcionar em estruturas piramidais, verdadeiros mainframes,

como são o Estado, suas instituições hierárquicas e seus procedimentos

verticais, baseados no fluxo comando-execução. Do ponto de vista da

democracia no sentido “forte” do conceito, a diferença está em que um

Estado democrático de direito permite ou enseja o processo de

democratização da sociedade, enquanto que o Estado autocrático não.

Essa é a razão pela qual a democracia no sentido “forte” do conceito, a

democracia radicalizada (no sentido de mais democratizada) na base da

sociedade e no cotidiano do cidadão, depende da democracia no sentido

“fraco” do conceito, da democracia como sistema de governo ou modo

político de administração do Estado.

Uma democracia cooperativa (que é sempre uma democracia radicalizada)

exige um padrão de organização em rede. E poderá ser tão mais

cooperativa quanto maior for a interatividade, quer dizer, quanto maior

for a conectividade dessa rede e quanto mais ela apresentar uma

topologia distribuída (ou quanto menos centralizada ela for).

Isso significa que a democracia em seu sentido “forte” não é um projeto

destinado ao Estado-nação, às suas formas de administração política (tal

como até hoje as conhecemos), e sim à sociedade mesmo, ou melhor, às

comunidades que se formam por livre pactuação entre iguais,

caracterizadas por múltiplas relações horizontais entre seus membros. E

que, portanto, não se pode pretender simplesmente substituir os

Page 110: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

110

procedimentos e as regras dos sistemas políticos democráticos

representativos formais pelas inovações políticas inspiradas por

concepções democráticas radicais.

Por outro lado, a emergência de inovações políticas na base da sociedade

e no cotidiano dos cidadãos, inspiradas por concepções radicais de

democracia cooperativa, pode exercer uma influência no sistema político,

de fora para dentro e de baixo para cima, capaz de mudar a estrutura e o

funcionamento dos regimes democráticos formais. Ou seja, por essa via, a

democracia no sentido “forte” acaba democratizando a democracia no

sentido “fraco”, mas não exatamente para tomar seu lugar e sim para

democratizar cada vez mais a política que se pratica no âmbito do Estado

e das suas relações com a sociedade. Parece claro que isso implica uma

nova reinvenção da democracia (e não apenas uma reforma da

democracia atual). Não podemos saber – e seria inútil tentar adivinhar

agora – como serão os novos regimes políticos mais democratizados aos

quais caberá administrar as novas formas de Estado que surgirão no

futuro (quem sabe o “Estado-rede”, como Castells propôs em 1999) (24).

Mas já podemos saber o que fazer, a partir da sociedade, para

democratizar mais tais regimes, sejam eles quais forem ou vierem a ser.

O caminho é mais democracia na sociedade, mais interação cooperativa

dos cidadãos, o que, obviamente, só é viável na dimensão local (entendido

o local como cluster) e sob regimes políticos que não proíbam nem

restrinjam seriamente tal experimentação inovadora: daí a necessidade da

democracia liberal.

Page 111: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

111

É bom ver o que os pioneiros da democracia cooperativa, como John

Dewey, pensavam sobre isso. Comecemos resgatando a sua percepção de

que toda democracia é local, no sentido de que a democracia é um

projeto comunitário; ou, como ele próprio escreveu, de que “a

democracia há de começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal”

(25).

A formação democrática da vontade política não pode se dar apenas por

meio da afirmação da liberdade do indivíduo perante o Estado, mas

envolve um processo social. A atividade política dos cidadãos não pode se

restringir ao controle regular sobre o aparato estatal (com o fito de

assegurar que o Estado garanta as liberdades individuais).

A liberdade do indivíduo depende de relações comunicativas (cada

cidadão só pode atingir autonomia pessoal em associação com outros),

mas o indivíduo só atinge liberdade quando atua comunitariamente para

resolver um problema coletivo, o que exige – necessariamente –

cooperação voluntária. Há, portanto, uma conexão interna entre

liberdade, democracia e cooperação. Isso evoca outro conceito

(deweyano) de esfera pública, como instância em que a sociedade tenta,

experimentalmente, explorar, processar e resolver seus problemas de

coordenação da ação social. Assim, é somente a experiência de interagir

voluntária e cooperativamente em grupos para resolver problemas e

aproveitar oportunidades, que pode apontar para o indivíduo a

necessidade de um espaço público democrático. A pessoa como

interagente ativo em empreendimentos comunitários – tendo ou não

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112

consciência da responsabilidade compartilhada e da cooperação – é o

agente político democrático (no sentido “forte” do conceito).

A concepção de esfera pública democrática como meio pelo qual a

sociedade tenta processar e resolver seus problemas (como Dewey já

havia proposto no final da década de 1920) permite a descoberta de uma

conexão intrínseca entre democracia e cooperação.

Dewey elabora uma idéia normativa de democracia como um ideal social.

Se quisermos inferir consequências dessa concepção, devemos explorar a

conexão entre esse seu conceito de democrático-social e o papel

regulador da rede social.

Rede social (distribuída) é um meio pelo qual (ou no qual) a cooperação

pode se ampliar socialmente (inclusive, em certas circunstâncias especiais,

convertendo competição em cooperação). A democracia que casa com a

idéia de rede social é a democracia cooperativa ou comunitária. Logo, a

democracia pode então ser vista como uma espécie de “metabolismo”

próprio de redes sociais (e será uma democracia democratizada na razão

direta do grau de distribuição dessas redes). Pelo que se pode inferir das

tendências atuais, essa é a democracia radical – desejável e possível – e

não o retorno às concepções assembleístas, sovietistas, conselhistas,

praticadas como “arte da guerra”, segundo as quais caberia a um

destacamento organizado, um partido de intervenção, “acarrear” gente

para vencer os inimigos de classe e para “acumular forças” em prol da

tomada (legal ou ilegal) do poder e instaurar o paraíso na Terra depois de

ter conquistado hegemonia sobre (ou destruído) as elites supostamente

Page 113: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

113

responsáveis por todo o mal que assola a humanidade. É à isso -

infelizmente - que tem nos levado as reflexões dos chamados novos

teóricos da democracia que são, na verdade, novos teóricos da autocracia.

Deixando de lado, porém, esses teóricos contemporâneos da autocracia, a

terceira invenção da democracia, assim como não poderá se basear em

von Humbolt (para não ficar aprisionada na fórmula dos modernos),

também deverá se apoiar menos em Arendt ou Habermas e mais em

Dewey. Porque para Dewey uma prática democrática radicalizada –

tomando-se a democracia no sentido “forte” do conceito – deveria ser,

necessariamente, cooperativa (26).

Aqui se diz que uma terceira invenção da democracia caminhará

necessariamente para uma democracia mais cooperativa, na qual a

formação democrática da vontade política terá mais como fonte originária

a cooperação voluntária, com a convergência comunal de desejos pessoais

para contender com um problema ou realizar um projeto, do que a

liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado

(segundo a visão liberal) ou do que o reino público constituído pela

argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político e

do procedimentalismo democrático).

Cabe notar que o esforço de Dewey para buscar uma nova noção de

público desemboca no comunitário. Não importa o que se diga para tentar

reinterpretar as ideias deweyanas à luz de qualquer visão particular

hodierna centrada na legitimação ou na negação dos sistemas

representativos açambarcados pelo Estado. Acrescente-se que não se

Page 114: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

114

trata daquele grande e talvez demasiadamente vago conceito de

comunidade dos alemães (com o qual, aliás, já trabalhava Althusius, desde

o dealbar do século 17) (27) – da grande comunidade – e sim da pequena

comunidade mesmo (em termos sociais e não necessariamente

geográfico-populacionais).

Sim, Dewey percebeu que toda democracia é local, no sentido de que a

democracia é um projeto comunitário (28). Ele não tinha, como é óbvio, as

palavras atuais para descrever o que pensava, mas farejou os conceitos –

como se ouvisse ecos do futuro – de rede comunitária e de rede social

distribuída, antevendo talvez os processos de disseminação viral que só

podem se efetivar pelos meios próprios de redes P2P (peer-to-peer). E

não poderia ter também, como é óbvio, a visão do glocal, como veremos

no próximo capítulo.

Page 115: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

115

CAPÍTULO 8

DEMOCRACIAS GLOCAIS

Que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única fórmula

pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda

democracia).

A democracia dos antigos foi um projeto local (no sentido de ter sido uma

realidade configurada por um comunidade local: a polis). Os outros locais

não estavam nem aí para a inusitada experiência dos atenienses (que foi

uma espécie de ilha num mar de cidades-Estado autocráticas). Dois mil

anos depois os modernos pretenderam chegar a uma fórmula global de

democracia, tendo conseguido, entretanto, apenas ensaiar algumas

experiências nacionais. Não conseguiram nem fazer valer a democracia no

plano internacional (que continuou sendo regido pelo realismo político e,

como se sabe, toda realpolitik é autocrática). Não podia mesmo haver - e

nunca haverá - uma única fórmula global de democracia (até porque o

global não existe a não ser como abstração para designar o que não é

local). Agora porém abre-se a possibilidade de reinventar a democracia

novamente em localidades (no plural) do mundo globalizado (ou melhor:

glocalizado). Nos novos mundos altamente conectados que estão

emergindo o local conectado é o mundo todo e pode passar então a se

chamar glocal. O glocal se constela quando a globalização do local

encontra a localização do global, como está ocorrendo.

Page 116: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

116

Tal reinvenção dará origem a várias "fórmulas" de democracia. Tantas

quantas forem as experimentações. Chama-se reinvenção (no singular)

porque todas elas - as novas "fórmulas" de democracia - tendem a

apresentar certas características comuns: serão mais distribuídas, mais

interativas, mais diretas, com mandatos revogáveis (quando for o caso,

quer dizer, quando houver representação ou delegação - porque em

muitos casos não haverá), regidas mais pela lógica da abundância do que

da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais

responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e

plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas

múltiplas experimentações glocais). E chama-se ainda de democracia

porque todas elas poderão ser olhadas como fazendo parte de uma

mesma corrente ou movimento de desconstituição de autocracia (ou

então não serão democracias).

Assim, a terceira invenção da democracia é uma desinvenção da fórmula

(única) ou uma abertura para múltiplas experimentações. Por isso se diz

que ela terá diversas "fórmulas" glocais e não mais uma única fórmula

pretensamente global (ou internacional, como ocorreu com a segunda

democracia).

Isso significa que teremos zilhões de sociosferas democráticas, como

veremos no próximo capítulo.

Page 117: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

117

CAPÍTULO 9

ZILHÕES DE SOCIOSFERAS DEMOCRÁTICAS

Que ela será realizada em miríades de sociosferas e não em apenas menos

de duas centenas das unidades político-territoriais centralizadas

(chamadas de países ou Estados-nações).

A democracia inventada pela segunda vez pelos modernos, conquanto

tivesse sua origem na desconstituição das monarquias absolutistas (a

autocracia européia do século 17), acabou virando um modo político de

administração da nascente estrutura do Estado-nação e de mitigação de

seu poder em defesa do cidadão (impedindo que esse poder avançasse

sobre ele de modo a restringir sua liberdade individual básica, daí o seu

caráter liberal). Surgiram então os Estados democráticos de direito. Mas a

estrutura desses Estados não se deixou alterar, ela mesma, por padrões de

organização mais distribuídos do que centralizados e, como resultado

dessa resiliência hierárquica, tivemos modos de regulação democráticos

de baixa intensidade (porque de baixa interatividade).

Ora, a forma Estado-nação se reproduziu em quase duas centenas de

nações, constituindo os 193 países atuais e foi tentada (ainda que sem

sucesso em muitos casos) a carregar consigo o seu modo de regulação

democrático formal. Mas a democracia não tem a ver com as exigências

de governança desse novo modelo de dominação sobre as sociedades que

se espalhou pelo mundo (o Estado-nação). As unidades político-territoriais

Page 118: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

118

centralizadas chamadas de países continuaram, não obstante as tentativas

de democratização ensaiadas no seu interior, em grande parte infensas (e

avessas) à democracia. Além disso a segunda democracia não conseguiu

atingir, ao final da primeira década do século 21, cerca de 57 países, que

remanescem como autocracias (ou ditaduras, regimes autoritários ou

países não-livres, como Cuba, China ou Coréia do Norte). Além disso,

remanescem também: regimes em transição autocratizante ou

protoditaduras (como Venezuela e Rússia); regimes em transição

democratizante ou protodemocracias (como a Tunísia e, quem sabe, o

Egito e outros países atingidos pela chamada Primavera Árabe, mas tudo

isso ainda é muito incerto); democracias formais parasitadas por governos

manipuladores (como Argentina ou Brasil); democracias formais

representativas não-plenas ou flaweds (como Grécia ou Índia); e

democracias formais representativas plenas (como Noruega, Finlândia ou

Japão). No grupo destas últimas - que representaria a democracia dos

modernos em sua plenitude - não temos mais do que 30 países (se tanto).

O fato é que, mais de três séculos depois de ter sido reinventada, a

democracia - em todas as suas formas (plenas e não plenas, aperfeiçoadas

ou defeituosas) - não atinge a maior parte da população do planeta: 3,9

bilhões de pessoas que vivem sob cerca de 60 regimes não-livres. As

tentativas de democratização dos regimes políticos não foram assim tão

bem-sucedidas como se propaga e o número de regimes democráticos

não está crescendo no mundo: em dados de 2011, entre 51 e 57% da

população mundial não vivem em regimes livres e esta porcentagem já foi

menor!

Page 119: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

119

Isso para não falar de democracias mais substantivas e interativas. Não há

nenhum país que apresente essas formas de democracia democratizada

porque elas não se aplicam às estruturas centralizadas do Estado-nação,

conquanto já possam ser ensaiadas em comunidades que apresentem

topologia mais distribuída do que centralizada, desde - é claro - que as

pessoas que compõem tais comunidades queiram experimentá-las.

Mas essa democracia na sociedade também não poderá ser

experimentada se imaginarmos a sociedade como dominium do Estado.

Sociedades nacionais, além de serem redes abstratas (compostas pela

população de um país), são campos conformados artificialmente (inclusive

cercados por fronteiras) pelo poder estatal.

Concretamente não existe "a sociedade", nem "as sociedades"

configuradas pelo Estado e sim uma diversidade de sociosferas. As novas

formas democráticas emergentes (as novas Atenas do terceiro milênio)

serão zilhões de comunidades políticas. Por isso se diz, sobre à terceira

invenção da democracia, que ela se realizará em miríades de sociosferas e

não em apenas menos de duas centenas das unidades político-territoriais

centralizadas (chamadas de países ou Estados-nações). Essas sociosferas

serão glocais, ou seja, locais (no sentido de cluster) altamente tramados

por dentro e conectados para fora. E não serão exclusivamente de base

territorial. Serão comunidades de vizinhança, sim, mas também de

aprendizagem, de prática, de projeto etc.

As diversas formas da terceira democracia serão experimentadas - já estão

sendo, aliás - nesses diversos mundos glocais em rede, que tendem a

Page 120: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

120

surgir em profusão com o estilhaçamento do mundo único hierárquico.

Serão modos de regulação (mais democráticos) compatíveis com padrões

de organização em rede (mais distribuída). Não poderão vicejar em

hierarquias (ou redes mais centralizadas do que distribuídas) de nenhum

tipo: estatais, mercantis ou sociais. E não serão, portanto, substitutos para

a democracia realmente existente nos países (a democracia

representativa dos modernos) nem para qualquer outro tipo de regime.

Elas coexistirão com o amplo espectro de regimes democráticos ou não-

democráticos que existem hoje e que tendem a perdurar ainda por tempo

indeterminado, como veremos no próximo capítulo.

Page 121: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

121

CAPÍTULO 10

ILHAS DEMOCRÁTICAS NA REDE

Que ela coexistirá marginalmente e por tempo indeterminado com as

democracias realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as

democracias parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em

processo de autocratização) e também com protoditaduras florescentes e

ditaduras remanescentes.

Todo esforço para gerar um novo modelo de democracia é inútil. Em

primeiro lugar porque democracia é uma dinâmica, um modo de

regulação e não um modelo de gestão, uma fórmula de regime político

(apesar das tentativas dos modernos de exportar o sistema representativo

no plano internacional dos Estados-nações). Em segundo lugar porque,

com a emergência de uma sociedade em rede, os lugares onde se pode

experimentar processos de democratização vão se multiplicando

rapidamente e inumeravelmente.

A terceira invenção da democracia não é a substituição da segunda

democracia por outra fórmula qualquer, nem uma volta à democracia

participativo-assembleísta dos atenienses, nem a aplicação de um novo

arranjo urdido por alguém antes da interação. Porque não há nada para

colocar no lugar da democracia dos modernos (assim como os modernos

não colocaram nada no lugar da democracia dos antigos). Ela continuará aí

por algum tempo e esse tempo é indeterminável nas circunstâncias atuais.

Page 122: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

122

Só não terá mais o poder de impedir que aconteçam novos processos de

democratização que passem ao largo de suas regras. E, ao que tudo indica,

não terá mais a relevância que teve nos últimos dois séculos.

Novas experimentações democráticas acontecerão por três motivos

básicos: porque a democracia representativa não atende mais a variedade

sociopolítica e ao metabolismo interativo das sociedades contemporâneas

(como vêm revelando todas as pesquisas sobre a credibilidade das

instituições políticas e as manifestações deste século, nas quais as

pessoas, invariavelmente, declaram que o sistema político não mais as

representa); porque ela não pode mais ser reformada nos seus próprios

termos ou dentro do âmbito conformado por suas regras (e começou a

obstruir a continuidade do processo de democratização); e porque,

simplesmente, elas já podem acontecer (desde que existam pessoas -

novos atores políticos emergentes - dispostas a fazer-acontecer tais

experiências).

Não é, portanto, de substituição que se fala aqui e sim de esgotamento da

segunda democracia e de superação (da segunda democracia e, inclusive,

da primeira). Fala-se de abundância de processos e ensaios de democracia

mais democratizada. Uma nova fórmula, mesmo que fosse possível

concebê-la antes da interação, geraria artificialmente escassez. E por que

precisaríamos disso?

É claro que os Estados-nações continuarão com suas velhas fórmulas (de

democracia e autocracia). Mas o mundo não é feito de Estados-nações,

como os governos querem que acreditemos.

Page 123: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

123

Com o estilhaçamento do mundo único hierárquico tendem também a se

pulverizar os padrões de organização e os modos políticos de regulação

congruentes com esses padrões. Teremos muitos mundos sociopolíticos,

não apenas os atuais, que não chegam a duas centenas de Estados-nações

onde cerca de 140 sistemas representativos (dos quais 25 ou, num juízo

menos rigoroso, não mais do que 30, podem ser considerados

democracias formais plenas) coexistem com mais de 50 regimes

francamente autoritários (29).

Qualquer pessoa inteligente pode perceber que não é mais possível

manter por muito tempo a situação atual, na qual 7 bilhões de pessoas,

crescentemente conectadas entre si, continuem arrebanhadas e

dominadas por apenas 193 unidades políticas centralizadas

remanescentes, com fundamentos que ainda permanecem em algum

lugar do passado.

Essas formas pretéritas – que são, todas, sem exceção, sistemas de

privatização da política – cujas estruturas e dinâmicas seguem princípios

organizativos fundeados no velho mundo hierárquico, persistirão por

muito tempo ainda, mas acabarão se tornando obsoletas diante das

infinitas possibilidades de interação – e, por conseguinte, de regulação –

que estão emergindo. Ocorrerá simplesmente que as pessoas se

importarão cada vez menos com elas. Porque cada vez menos precisarão

delas para viver sua vida, regular sua convivência social, tocar seus

negócios e desenvolver seus projetos.

Page 124: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

124

Os novos caminhos, porém, serão os da inovação, os da emersão e

multiplicação de novos mundos políticos glocais e não o da abolição dos

poucos regimes democrático-formais que remanescem nos Estados-

nações por efeito de uma mega-explosão das massas, de um evento épico

universal ou uma de revolução global.

Quem está acreditando nisso, pode esperar sentado. Não vai acontecer. E,

se acontecesse, seria ruim, regressivo, tenebroso, tão tenebroso quanto

seria um governo mundial (já pensaram o que seria viver sob uma

burocracia global única?) e outras fantasias autoritárias arcaicas, heranças

de uma tradição hierárquica que, como um pesadelo, continua oprimindo

nossas mentes e assombrando nossas consciências.

Teremos, portanto, cada vez mais ilhas democráticas na rede. Os

resultados da terceira invenção da democracia coexistirão - em princípio

marginalmente - por tempo indeterminado com as democracias

realmente existentes (incluindo as democracias plenas, as democracias

parasitadas por regimes manipuladores e as democracias em processo de

autocratização) e também com protoditaduras florescentes e ditaduras

remanescentes.

Essas ilhas não serão países (a não ser, talvez, em alguns casos

especialíssimos). Poderão ser cidades inovadoras que se libertam do jugo

do poder central dos Estados-nações que as satelizam (retirando-lhes a

governança dos seus processos de desenvolvimento), subordinam (como

instâncias subnacionais) e espoliam (devolvendo a elas apenas migalhas

dos impostos arrecadados), mas isso também deve ser raro. Serão,

Page 125: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

125

outrossim, comunidades de todo tipo, inclusive territoriais, mas não

somente. Onde houver rede (mais distribuída do que centralizada) pode

haver democracia (mais democratizada do que autocratizada), desde que

haja ação política nessa direção. Teremos, assim, muitas experimentações

democráticas: em comunidades de vizinhança, em ambientes de livre-

aprendizagem, em empresas não-hierárquicas ou em empreendimentos

em rede; enfim, onde houver pessoas interagindo na ausência de

obstruções significativas de fluxos que verticalizem o tecido social, poderá

acontecer a terceira invenção da democracia. Isto é disrupção por

irrupção. Isto é revolução, quer dizer, não a substituição de uma ordem

por outra ordem (top down) e sim abertura para novas ordens emergentes

(bottom up).

É claro que muitos chamados revolucionários, ensinados e dirigidos por

organizações hierárquicas e autocráticas, não concordarão com isso. Mas

apenas porque - a despeito do que declaram sobre si e sobre o mundo -

eles não são realmente revolucionários e sim o oposto. Os que acham que

revolução significa instaurar uma nova ordem análoga (em termos de

estrutura e dinâmica) à velha ordem, substituindo os ocupantes dos

velhos cargos (que sempre são mantidos, às vezes com outros nomes) por

novos ocupantes; ou seja, competindo para tomar o lugar de quem está

no poder (mas não querendo mexer na topologia centralizada que

permite que esse poder se exerça verticalmente, nem no modo de

regulação autocrático que viabiliza sua reprodução) constituem forças da

manutenção da ordem, não da mudança e são, portanto, reacionários,

não revolucionários.

Page 126: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

126

Pessoas possuídas por aquilo que se chama de "espírito prático" ficarão

decepcionadas com a conclusão de que uma nova invenção da democracia

não terá um novo modelo para colocar no lugar do antigo. Elas querem

saber como vão salvar as estruturas que atualmente são mal-geridas

politicamente pelos arranjos da democracia realmente existente. Elas

estão buscando uma resposta para dar às multidões que não acreditam

mais no sistema representativo. Elas estão preocupadas com a

governabilidade das estruturas e não com a governança das novas

configurações sociais emergentes. Mas o fato é que essas estruturas

envelheceram e o sistema político que permitia o seu controle apodreceu,

vítima das consequencias acumuladas das falhas "genéticas" da segunda

democracia.

Novas estruturas surgirão e novos modos de regulação compatíveis com

tais estruturas se multiplicarão. Se essas novas estruturas forem

organizadas segundo um padrão de rede (mais distribuída do que

centralizada) os modos de regulação serão mais democráticos (em várias

experiências de democracia mais distribuída, mais interativa, mais direta,

regida mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulnerável

ao metabolismo das multidões e mais responsiva aos projetos

comunitários, mais cooperativa, mais diversa e plural).

Enquanto isso, porém, a tarefa fundamental dos democratas é impedir

retrocessos na democracia realmente existente nos países que a adotam:

conquanto limitada, essa democracia é o único tipo de regime político que

permite que surjam na sociedade experiências publicizantes e

democratizantes. Em ditaduras, protoditaduras e regimes democráticos

Page 127: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

127

em franco processo de autocratização isso não pode acontecer. Portanto,

o obstáculo a ser removido não é a democracia representativa e sim a

não-democracia. Ademais, tais experiências - a despeito de não ser este

seu objetivo - serão capazes de exercer uma pressão ambiental sobre a

própria democracia representativa de sorte a permitir o surgimento de

mais experiências semelhantes, multiplicando ambientes favoráveis à

continuidade do processo de democratização.

É isso, nada mais do que isso. Pois aqui se disse, o tempo todo, que a

terceira invenção da democracia nada mais era do que a continuidade do

processo de democratização nas condições da contemporaneidade.

Page 128: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

128

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:

15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p. 5-3). O

texto está disponível em:

http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-neuronios

(2) Cf. John Dewey: “Democracia criativa: a tarefa diante de nós” (1939) que

pode ser encontrado no original “Creative Democracy: the task before us” in The

Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy (existe edição em

espanhol in Liberalismo y Acción Social y otros ensayos. Valência: Alfons El

Magnànim, 1996); e existe também tradução brasileira com o título

“Democracia criativa: a tarefa diante de nós”, no livro de FRANCO, Augusto e

POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos

escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008.

(3) Cf. SEN, Amartya (1999). A democracia como um valor universal. Disponível

em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/democracia-como-um-valor-universal

(4) DAHL, Robert (1998). Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade

de Brasília, 2001.

(5) von HUMBOLT, Alexander (1792). Ensaio sobre os limites da atividade do

Estado.

Page 129: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

129

(6) SAINT-EXUPERY, Antoine (1929). Correio Sul. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1981.

(7) Cf. ALTHUSIUS (1603). Política; SPINOZA (1670). Tratado Teológico-Político; e

ROUSSEAU (1762). O Contrato Social. Cf. ainda: BURKE (1790). Reflexões sobre a

Revolução Francesa.

(8) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books,

1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid:

Morata, 2004). Existem alguns excertos traduzidos deste livro no livro de

FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia

cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:

ediPUCRS, 2008.

(9) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

(10) DEWEY; op. cit.

(11) DEWEY, John (1888). Ética da Democracia; apud Honneth, Axel

(1998).“Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria

democrática hoje”, (publicado originalmente em “Political Theory”, v. 26,

dezembro 1998) traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia

hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 2001.

(12) Idem.

(13) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego:

fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia.

Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. Cf. também

Page 130: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

130

MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte. Bogotá:

Cooperativa Editorial Magistério, 1993.

(14) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to

distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August

1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.

(15) MATURANA; op. cit.

(16) SPINOZA; op. cit.

(17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?

(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(18) Cf. FRANCO, Augusto (2011). É o social, estúpido: três confusões que

dificultam o entendimento das redes sociais. Disponível em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/o-social-estpido

(19) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1985.

(20) FINLEY, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade

de Brasília, 1998.

(21) HILLMAN, James (1993). Psicologia, Self e Comunidade. Discurso proferido

durante o jantar do Prêmio Cambridge em 17 de novembro de 1993. Disponível

em:

http://pt.slideshare.net/augustodefranco/psicologia-self-e-comunidade

(22) DEWEY; op. cit.

Page 131: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

131

(23) BOBBIO, Norberto (1985). Estado, governo, sociedade: para uma teoria

geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

(24) CASTELLS, Manuel (1999). “Para o Estado-rede: globalização econômica e

instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e

Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.

(25) DEWEY, John (1927). The Public and its Problems; ed. cit.

(26) De John Dewey pode-se talvez inferir uma democracia cooperativa; ou uma

“democracia como cooperação reflexiva”, como sugeriu Axel Honneth (1998) -

ed. cit - , professor da Universidade de Frankfurt; ou, ainda, uma democracia

valorizada em seu aspecto comunitário, como já havia proposto Hans Joas

(1994) em “O comunitarismo: uma perspectiva alemã”, traduzido na coletânea:

Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria

democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

(27) ALTHUSIUS; op. cit.

(28) DEWEY, John (1937). “Democracy is radical” in The Essential Dewey: Vol. 1 –

Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press,

1998. Com o título “A democracia é radical”, há uma tradução desse texto no

livro de FRANCO, Augusto e POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia

cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:

ediPUCRS, 2008.

(29) Em dados de 2011: entre 51% (Democracy Index 2011 Economist

Intelligence Unit) e 57% (Freedom in the World 2012) da população mundial

(quase 4 bilhões de pessoas) não vivem em regimes free. O que é mais

assustador? Esta porcentagem já foi menor! Segundo o Democracy index 2011:

a report from the Economist Intelligence Unit, temos: 25 full democracies - 15%

Page 132: A TERCEIRA INVENÇÃO DA DEMOCRACIA

132

dos países - 11,3% da população mundial; 53 flawed democracies - 31,7% dos

países - 37,1% da população mundial; 37 hybrid regimes - 22,2% dos países -

14,0% da população mundial; 52 authoritarian regimes - 31,1% dos países -

37,6% da população mundial. Segundo o Freedom in the World 2012 da

Freedom House, temos: 87 Free Countries - 45% dos países; 60 Partly Free

Countries - 31% dos países; 48 Not Free Countries - 24% dos países. Os critérios

são diferentes, mas os resultados são semelhantes. O mais assustador é que se

observa um declínio da democracia. Segundo dados da Freedom House,

comparando 2006 com 2011 temos: Países Livres: 2006 = 90 - 47% / 2011 = 87 -

45%. Países Parcialmente Livres: 2006 = 58 - 30% / 2011 = 60 - 31%; Países Não

Livres: 2006 = 45 - 23% / 2011 = 48 - 24%; Democracias Eleitorais: 2006 = 123 -

64% / 2011 = 117 - 60%. Segundo dados da Economist Intelligence Unit ,

comparando 2008 com 2011 temos (para o mesmo total de 167 países e, assim,

as porcentagens são as mesmas): Full Democracies: 2008 = 30 / 2011 = 25 - 15%

dos países - 11,3% da população mundial; Flawed Democracies: 2008 = 50 /

2011 = 53 - 31,7% dos países - 37,1% (Idem); Hybrid Regimes: 2008 = 36 / 2011 =

37 - 22,2% - 14,0%; Authoritarian Regimes: 2008 = 51 / 2011 = 52 - 31,1% -

37,6%. O fato é que - em 2011 - segundo dados da Economist Intelligence Unit,

51% da população mundial não vive em democracias (nem full, nem flawed); e

segundo dados da Freedom House 57% da população mundial não vive em

regimes free (o que perfaz um total de 3,95 bilhões de pessoas). Os dados da

Freedom House para 2008 (universo de 193 países) mostram também a queda

(comparada com 2011): Free Countries = 89 - 46% / Partly Free Countries = 62 -

32% / Not Free Countries = 42 - 22%. Cf. Democracy índex 2011. Democracy

under stress. A report from The Economist Intelligence Unit http://goo.gl/11FjX.

Cf. também Freedom in the World 2012. Freedom House http://goo.gl/Pd4MY.

Em suma, quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade)

não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se

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desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das

localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de

“evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos.

Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse

número tinha subido para 119. Mas nos últimos anos o crescimento da

democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não

tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo,

com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios

(como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como

consequência de todos esses, a legitimidade).

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