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Splinder Pina Bausch

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Tese de doutorado

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    CURSO DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

    Patrcia Spindler

    Danando com Pina Bausch: experimentaes contemporneas

    Porto Alegre 2007

  • 1

    Patrcia Spindler

    Danando com Pina Bausch: experimentaes contemporneas

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional. Programa de Ps Graduao em Psicologia Social e Institucional. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES

    Orientadora Tania Mara Galli Fonseca

    Porto Alegre 2007

  • 2

    Patrcia Spindler A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao (ttulo e subttulo)___________________________________________________________ _____________________________________________________, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertao defendida e aprovada em:__/__/__ Comisso Examinadora:

    _________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)

    _________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)

    _________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)

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    Dedico este trabalho ao meu amor Rafael, companheiro de vida, que

    com sua sensibilidade, se fez presente intensamente durante toda esta jornada

    e para muito alm dela...

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Rafael, com todo meu amor, pela ateno e todos os afetos durante esta jornada. Ao meu pai Jaime, pela convivncia enriquecedora que contribui muito para que

    chegasse at aqui do jeito que sou. minha me Vera e ao Danton, pela fora sempre positiva, que me ajuda muito a

    acreditar em mim mesma. minha orientadora Tania, pela liberdade, vnculo, estmulo e conhecimento

    necessrios. minha terapeuta Maria Clia, por me ajudar a reconhecer as minhas foras e a

    potncia da nossa profisso. s grandes famlias, Berghan, Spindler e Hoffmann, sempre marcando presena

    com incentivos. Cooperativa da Dana, to viva e presente nos estudos, pesquisas e no desejo de danar a vida. Em especial amiga Denise Pacheco pela ajuda de todas as horas e

    pelo fundamental emprstimo da sua biblioteca. Aos amigos e colegas, por dividirem pensamentos e as prticas da profisso e da

    vida. Aos professores do PPGPSI, pela seriedade e dedicao.

    vida, por todas as suas possibilidades.

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    O corpo no muda apenas para se deslocar, ele se transforma por milhares de outras razes possveis; se qualquer impossibilidade surgir como obstculo, ele falha; reage a essa contingncia e se perde, resigna-se ao necessrio e sofre com

    isto, contemplando-o, ou melhor ainda, o produz. (Michel Serres)

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    Resumo

    Atravs desta pesquisa realizou-se um encontro entre a Filosofia da Diferena e a dana de Pina Bausch, recortando e problematizando na cena contempornea este modo de danar, para pensar modos de subjetivar e a experincia do corpo. A partir destes dois eixos, mapeou-se trs analisadores que foram retirados de uma leitura singular da dana-teatro e do processo criativo de Bausch, aproximando-os dos cenrios contemporneos para assim problematizar esta conexo, propondo-se a enxergar e traar alguns efeitos deste acoplamento.

    No entanto, necessrio ficar claro que a dana no o campo emprico da pesquisa. Ou seja, no se objetivou pensar a dana propriamente dita, mas pens-la como intercessora para problematizar a experincia do corpo e da subjetividade no contemporneo. Experincia esta, onde o corporal e o subjetivo no esto separados e desvinculados, mas encontram-se num regime de coexistncia, um sendo constituinte do outro e, ao mesmo tempo, se constituindo.

    Assim, objetivou-se conhecer mais a obra e o processo de criao da coregrafa em questo, para buscar o fio de Ariadne e pensar o seu jeito de danar como um modo que nos fora a pensar a experincia contempornea. Isto significa caar a linha que perpassa o autor e a obra como fora instituinte e que pode manter seu devir auxiliando a pensar um diagnstico do presente.

    Palavras-chaves: contemporneo, corpo, dana, Pina Bausch.

  • 7

    Abstract

    Through this research we made a meeting between the Philosophy of Difference and the dance of Pina Bausch, cutting and problematizing this way of dancing in the contemporary act, in order to think about ways of subjectivizing and the experience of body. From these two axles on, we mapped out three analyzers that were taken from a single reading of the theater-dance and of Bausch's creative process, approaching them of the contemporary scenery, for thus problematizing this connection, proposing to seeing and tracing some effects of this joint.

    However, it is necessary to be clear that the dance is not the empiric field of the research. That means, the goal is not thinking about the dance itself, but thinking about that as an intercessor for problematizing the experience of the body and of the subjectivity of contemporary. This experience, in which body and subjective are not separated and untied, but are part of a coexistence system, one being the constituent of the other and, at the same time, consisting itself.

    So, the goal was to better know the work and the creation process of the choreographer, in order to seek the thread of Ariadne and think about her way of dancing as a way that makes us consider the contemporary experience. That means to hunt the line that passes by he author and the work as an established force and that can keep its will to be helping to think about a present diagnosis.

    Key-Words: contemporary, body, dance, Pina Bausch.

  • 8

    Lista de Ilustraes

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  • 10

  • 11

    Sumrio

    1. Introduo...................................................................................13

    2. Contemporneo: mu-danas......................................................18

    2.1 Pesar do Mundo........................................................................................18

    2.2 As mudanas da dana.............................................................................27

    2.3 O efeito Pina Bausch.................................................................................40

    2.4 A dana alem na contaminao do ps-guerra.......................................41

    3. Modos de fazer: estratgias de pesquisa...................................53

    3.1 Formas Breves...........................................................................................54

    3.2 Pesquisar e acontecimentalizar a dana contempornea..........................61

    3.3 Pina Bausch: caso-pensamento.................................................................64

    4. O acontecimento Pina Bausch: alguns analisadores.................67

    4.1 A pesquisadora e a coregrafa..................................................................67

    4.2 Analisador 1 Problematizao do social: todo dia ela faz sempre tudo

    igual... ........................................................................................................83

    4.3 Analisador 2 A obra como plano comum e singular................................96

    4.4 Analisador 3 Da materialidade do corpo ao incorporal: o movimento

    danado....................................................................................................112

    5. Consideraes finais................................................................128

    6. Apndice Peas de Pina Bausch..........................................131

    7. Referncias Bibliogrficas........................................................134

  • 12

    Der Fensterputzer O Limpador de Vidraas (1997)

    Foto de Jochen Viehoff

  • 1. Introduo

    O objetivo primeiro deste trabalho se colocar a criar maneiras de continuar

    inventando o mundo, cavar espaos e tempos possveis de outras formas, de outros

    ventos. Ares que permitam continuar ventilando, arejando e no somente um tempo

    de espaos com atmosferas viciadas e sufocantes.

    Pensar o presente, o grande foco deste trabalho. Porm, este exerccio do

    pensar no pretende aliviar ou sanar a angstia do no saber. Esta pesquisa no se

    coloca num lugar pretensioso de consolar, objetivando terminar com a aflio do

    processo do conhecer. Ao contrrio, o que a ocasio prope sair desta estratgia

    simplista para complexificar o pensamento e o conhecimento, de maneira que

    multiplique as variaes do pensar e do viver. O saber no serve para consolar,

    escreve o filsofo historiador Michel Foucault; ele decepciona, inquieta, secciona,

    fere (2000, p. 255). Neste sentido, busca-se fazer uma travessia singular que no

    pra de experimentar e inventar a relao entre sujeito e objeto que, desta maneira,

    possuem implicaes ticas e polticas. Esta relao se d impulsionando uma

    paixo por se transformar sempre em algo diferente do que se . Ou seja, no se

    prope aqui construir verdades universais. Pelo contrrio, a inteno justamente

    sair dos universais, pois eles no explicam nada, eles prprios devem ser

    explicados, conforme os filsofos Gilles Deleuze e Flix Guattari (1992, p. 15), dois

    autores que, juntamente com Foucault, se encontram muito atuantes nesta pesquisa.

    Com o auxlio destes e de outros autores, esta pesquisa pretende fazer uma

    histria efetiva que opera em perspectiva e, por isto, no a nica, mas difere

    registrando sua relatividade. No se pode esquecer que nada est dado ou

    natural, mas sim construdo por ns, ao mesmo tempo em que nos constri. Por

  • 14

    vezes, poderamos dizer, que se naturaliza o tempo-histria limitando suas direes

    possveis e impedindo a reinveno das prticas ou das novas formas de viver e de

    se subjetivar. Desta maneira, o futuro j estaria traado no nosso passado, nos

    deixando fadados ao determinismo dos nossos destinos.

    A inteno deste trabalho no mudar um funcionamento molar, macro, mas

    tentar escavar, apontar, inventar outros espaos-tempos ainda no to

    determinados, duros e fechados. Pois, parece ser no micro, nas molecularidades dos

    processos ou nas fendas do existir que podemos nos colocar para pensar outras

    possibilidades de vida.

    Neste sentido, este estudo proporciona um encontro entre a Filosofia da

    Diferena e a dana de Pina Bausch, recortando e problematizando na cena

    contempornea este modo de danar, para pensar modos de subjetivar e a

    experincia do corpo. A partir destes dois eixos, pretende-se mapear alguns

    analisadores que foram retirados das anlises da dana-teatro e do processo criativo

    de Bausch aproximando-os dos cenrios contemporneos para assim problematizar

    esta conexo, propondo-se a enxergar e traar alguns efeitos deste acoplamento.

    Assim, objetiva-se conhecer mais a obra e o processo de criao da

    coregrafa em questo, para buscar o fio de Ariadne e pensar o seu jeito de danar

    como um modo que nos fora a pensar a experincia contempornea. Isto significa

    caar a linha que perpassa o autor e a obra como fora instituinte e que pode manter

    seu devir auxiliando a pensar um diagnstico do presente.

    Pretende-se, ento, no pensar a dana propriamente dita, ou seja, a dana

    no o campo emprico desta pesquisa, mas intenciona-se pens-la como

    intercessora para problematizar a experincia do corpo e da subjetividade no

    contemporneo. Experincia esta, onde o corporal e o subjetivo no esto

  • 15

    separados e desvinculados, mas encontram-se num regime de coexistncia, ou seja,

    um sendo constituinte do outro e, ao mesmo tempo, se constituindo.

    Em 2006, recentemente findado, foi o ano em que Pina Bausch e o Wuppertal

    Tanztheater nos visitaram em Porto Alegre. Com isto, parece surgir um certo

    modismo onde o universo pinabauschiano idealizado como produto de exportao

    alemo com receita de sucesso. preciso ressaltar que, tanto Pina Bausch e seus

    bailarinos, quanto esta pesquisa, diferem desta concepo que parte de efeitos

    instantneos com garantias de resultados. Ou seja, diferente disto, esta pesquisa se

    fortalece e ganha condies de alar vo na ocasio da qualificao do seu projeto,

    onde foi sugerido pela banca, muito bem acolhido por esta autora e sustentado pela

    orientadora a viabilidade de fazer um recorte no universo da dana contempornea

    escolhendo Bausch, seu processo e sua obra como ferramenta de trabalho,

    coincidindo com sua vinda ao pas.

    De certa maneira, isto tem facilitado determinadas buscas e encontros com as

    mais diferentes fontes de pesquisa, j que por aqui tem se falado muito neste

    assunto. Porm, isto tambm pode ser, em alguma medida, um fator que dificulta o

    processo de pesquisa. Pois, muito complicado falar ou escrever sobre Pina

    Bausch, principalmente num momento em que ela se torna celebridade em nosso

    meio cultural e, justamente, porque ela mesma verbaliza muito pouco em funo de

    que, conforme suas prprias palavras, tratar-se-ia de coisas que so impossveis de

    falar. Colocando de outra maneira, Pina quer falar o que ela diz atravs das suas

    obras. A leitura que cada pessoa consegue fazer depende do que cada um

    consegue ouvir, sentir e perceber nos espetculos.

    Seu processo artstico demonstra uma atitude coerente com estes

    apontamentos iniciais, em funo de que Bausch no vende receitas de sucesso

  • 16

    garantido. Pina Bausch e o seu teatro de dana de Wuppertal tiveram um comeo

    frgil, com enormes riscos de no acontecer, apontando uma espcie de insucesso

    que os fizeram trabalhar por muito tempo na fronteira com o abismo, na borda de

    uma estrutura frgil que poderia no se sustentar e, a qualquer momento, despencar

    e deixar de existir. Portanto, seu trabalho foi se constituindo utopicamente, se

    poderia dizer, e se refazendo at hoje, nas prprias descontinuidades dos seus

    percursos, construindo e aumentando a potncia de abrir novos espaos no

    contemporneo para andar na contramo e poder resistir. Da mesma forma, esta

    pesquisa tem trabalhado constantemente sem garantias de descobertas, mas

    fazendo tentativas de desbravar possveis invenes de si e do mundo que feito

    quando a gente se faz.

  • 17

    Para as crianas de ontem, hoje e amanh Pina Bausch em Porto Alegre (2006)

  • 18

    2. Contemporneo: mu-danas

    Para nos pensarmos atualmente, ou seja, para pensar nossas formas mais

    recentes de viver o mundo, precisamos visibilizar o que nos compem, o que est ao

    nosso redor, nos percebendo uma forma-efeito das dobraduras que compe nosso

    feitio. O pensador talo Calvino (1998) nos adverte que estamos correndo o perigo

    de perder uma faculdade humana fundamental que a de pensar por imagens, ou

    seja, dar visibilidade aos nossos pensamentos, porque estamos sobrecarregados de

    imagens clichs e do pensamento discursivo intencional que predomina impedindo

    novas estilsticas, novas fabulaes.

    Neste sentido, convidamos o leitor a nos acompanhar num certo jeito de

    construir uma leitura do plano no qual estamos inseridos, que chamamos de

    contemporneo. Este um jeito, um modo de dar visibilidade, entre tantos outros, de

    olhar para o nosso momento. Momento que no somente um aqui e agora, nem

    um determinado perodo histrico, mas um modo de habitar o mundo nas suas mais

    diversas composies temporo-espaciais criando ontologias e epistemes que nos

    abrem o leque das experincias possveis.

    2.1 Pesar do Mundo

    Msica de Jos Miguel Wisnik e Paulo Neves pesar de tudo pesar de peso

    pesar do mundo sobre si mesmo pesar de nuvem

    pesar de chumbo pesar de pluma pesar do mundo

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    desponta estrela no vo imenso por ti suspenso

    tua espera tudo se afronta

    pedra com pedra a prpria onda

    quando se quebra a melodia

    onde meleva onde alivia

    onde me pesa? tudo se agita

    durante a queda o que sustenta a nossa Terra? e nesse quando

    somente um ritmo peso e balano

    um som legtimo cano sem medo de voc para mim

    meu segredo te rezo assim:

    desde o princpio ao ponto cego eu arremesso

    um eco sem fim

    Uma das experincias contemporneas dar conta do pesar do mundo

    sobre si mesmo que os compositores ressaltam na letra da msica colocada acima.

    Algo neste tempo pesa e gera, com isto, padecimentos. O que se pode perceber

    que, para ser leve no contemporneo preciso tolerar um certo peso. Importncia

    que no pouca quando se fala em tempos de mltiplas variedades dos modos de

    viver, de consumir, de controlar.

    O controle do peso corporal objetivando o leve uma obsesso

    contempornea sem precedentes. Ao mesmo tempo em que, muitas adolescentes

    morrem pelo peso da magreza, ordenada pela boa forma exigida esteticamente, o

  • 20

    ganho de peso ameaa a aproximao da obesidade de maneira, cada vez mais

    certeira.

    A leveza subjetiva do viver, como aponta a msica, est inscrita no paradoxo

    do peso do chumbo e da pluma, da nuvem e do mundo. O etreo e o concreto,

    contrapontos que denotam a inconsistncia da leveza e a durabilidade do slido.

    Peso este que se encontra em ambas as pontas deste n, ponto cego... um eco

    sem fim. Acelerando o tempo e podendo nos impedir, ou dificultar muito, a

    possibilidade de sermos mais light. No toa que as prateleiras dos

    supermercados esto repletas de produtos deste tipo para serem ingeridos. Estilo de

    vida diet-light, algo que pesa numa proporo muito maior e veloz que a produo

    da leveza, pois esta se produz de outras formas, por outros caminhos que balanam

    num ritmo que ora quebra e queda, ora suspende e sustenta.

    Seguindo com Calvino (1998), entre os valores caros que anuncia para o

    nosso novo milnio, a leveza um dos que ele atribui estimada importncia. Para o

    literato, ela necessria para suportar o insustentvel peso do viver. H uma

    necessidade de anular o peso material da corporeidade, para se juntar velocidade

    e prometer acesso a um nvel que modifica a realidade como possibilidade de

    felicidade. Quanto mais leve, mais veloz. Quanto mais veloz, mais alternativas do

    leque podem ser percorridas. Ou seja, todas estas perspectivas, presentes no social,

    pesam no corpo, pois este tambm est inserido e, ao mesmo tempo, sendo

    construdo por este conjunto de atravessamentos que compem este momento

    histrico.

    De outra maneira, o socilogo Zygmunt Bauman (2001) descreve a passagem

    do capitalismo pesado para o capitalismo leve marcado pelo fordismo que era, mais

    do que tudo, uma engenharia social orientada pela ordem. O fordismo era a

  • 21

    autoconscincia da sociedade moderna em sua fase pesada, volumosa, ou

    imvel e enraizada, slida... O capitalismo pesado era obcecado por volume e

    tamanho, e, por isso, tambm por fronteiras, fazendo-as firmes e impenetrveis (p.

    69). A fbrica fordista reduziu as atividades humanas a movimentos simples,

    rotineiros, predeterminados, para serem seguidos mecanicamente, sem qualquer

    espontaneidade e iniciativa. A burocracia, o panptico e o Grande Irmo faziam o

    controle numa tentativa totalitria de nada deixar passar, principalmente na fronteira

    entre o dentro e o fora da fbrica.

    Conforme Bauman, a modernidade pesada foi a era da conquista territorial, o

    progresso significava tamanho crescente e expanso espacial. O tempo mtrico da

    rotinizao precisava ser amansado para que o espao tambm fosse controlado. A

    solidez da modernidade do hardware encorpou os lugares tornando-os,

    simultaneamente, viveiro, fortaleza e priso.

    No entanto, a mudana na histria moderna do tempo, da era do hardware

    para a era do software, se traduziu numa nova irrelevncia do espao, disfarada de

    aniquilao do tempo. O software substituiu o hardware na centralidade da cena

    contempornea. Da mesma maneira, a instantaneidade descreve a modernidade

    leve e lquida, como tambm constatou Bauman. A leveza, a agilidade e a

    velocidade, portanto, passaram a preponderar no tempo como atributos que levavam

    ao controle e ao comando das estratgias no processo de globalizao da economia

    na modernizao do mundo.

    O mundo se transformou no Imprio do Efmero em suas mais diferentes

    experincias, conforme Gilles Lipovetsky. Pois, a

    [...] forma moda que se manifesta em toda sua radicalidade na cadncia acelerada das mudanas de produtos, na instabilidade e na precariedade das coisas industriais. A lgica econmica realmente varreu todo ideal de permanncia, a regra do efmero que governa a produo e o consumo dos objetos. Doravante, a temporalidade curta da moda fagocitou o

  • 22

    universo da mercadoria, metamorfoseado, desde a Segunda Guerra Mundial, por um processo de renovao e de obsolescncia programada propcio a revigorar sempre mais o consumo. (Lipovetsky 1989, p. 160).

    Ou seja, toda esta acelerao criou a sociedade do consumo que insere o

    cotidiano na pragmtica do comprar, reciclando-o em kits e servios expressos. Um

    tempo contrado, onde tudo acontece com uma rapidez que cada vez mais se

    potencializa, fazendo coexistir os tempos mltiplos. Percebe-se isto na moda, nos

    comportamentos, nos objetos, no design do contemporneo. Ao contrrio de querer

    homogeneizar esta diversidade, pretende-se mostrar o quanto nossos ltimos anos

    foram transformadores tomando um carter mltiplo, complexo, rpido, e, tambm,

    ambguo, vago, plstico.

    Calvino tambm pontua a multiplicidade como elemento necessrio para

    pensar o contemporneo. Para ele, o mundo um sistema de sistemas em que

    cada sistema particular condiciona os demais e condicionado por ele. Portanto,

    uma complexidade intrnseca que no permite achar concluses, pois vai fazendo

    seu traado de maneira a esquivar-se, multiplicando os detalhes ao infinito.

    Afina-se com Calvino, Lipovetsky quando pensa a forma moda como o

    sistema das pequenas diferenas multiplicadas, engendrando universos de produtos

    microdiferenciados. Portanto, o processo de renovaes constantes produz a busca

    pelo novo, transitoriedades, frivolidades, flexibilidades, efemeridades,

    instantaneidades que fazem do tempo um click do mouse. Assim como tambm,

    instabilidade, precariedade, vulnerabilidade, insegurana, fazem parte do rol das

    experincias contemporneas. Neste contexto, h um pano de fundo chamado

    liberdade individual, que se tenta alcanar a qualquer preo, pois promete infinitas

    possibilidades. Com isto, a agonia da escolha parece ser um dos vilos do

    contemporneo, tambm porque no h tempo para perder na eleio de

  • 23

    alternativas, mas acaba-se muitas vezes, vivendo-se exatamente a, neste processo

    da ambivalncia da escolha. A vida paradoxal que joga os sujeitos de um lado ao

    outro num disparate de movimentos.

    Fazemos uma tentativa de no confundir estas diferenas multiplicadas em

    renovaes constantes que estes autores, que nos auxiliam a enxergar com maior

    visibilidade o contemporneo nos prescrevem, com o que Bergson (1964) e

    Simondon (2003) nos falam da durao do ser e da individuao do vivo que no

    param de acontecer na ordem da vida. O esforo que se est fazendo aqui para

    tentar pontuar estes processos como diferentes , justamente, porque tambm se

    entende que estas questes da evoluo do vivo se confundem com as experincias

    contemporneas, potencializando estas vivncias como este disparate de

    movimentos efmeros. No entanto, estes so sintomas do nosso tempo, onde o

    capitalismo cafetina o desejo decalcando-o, competindo em paralelo evoluo da

    vida nua, esta sim criadora.

    Vivemos em templos de consumo, com ou sem muros, como shoppings, lojas,

    nossas prprias casas servindo para comprar pela televiso, telefone, internet, ou

    circulando por onde passamos num comrcio a cu aberto. Uma cultura de

    cassino, como disse George Steiner (In: Bauman, 2001), onde o xtase d a ordem,

    para que a auto-satisfao instantnea seja constante e irrefletida. Porm, tanto a

    chegada da satisfao, quanto sua partida, esto fazendo presso na

    transitoriedade do tempo.

    As pessoas querem o mundo de maneira completa porque buscam a

    construo da identidade como uma imagem de lgica harmnica e consistente,

    para no verem a fluidez logo abaixo do fino envoltrio da forma (Bauman, 2001).

    Isto acaba gerando uma intensa angstia que leva experincia de desestabilizao

  • 24

    constante vivida no contemporneo. As infinitas possibilidades deste suposto

    mundo completo geram movimentos ininterruptos, ora contnuos, ora descontnuos,

    que fazem da rapidez de incorporar estes processos a chance de inventar um ritmo

    de sobrevivncia.

    Busca-se a identidade no imediatismo do tempo, na tentativa de no sentir os

    colapsos provocados pela experincia contempornea. Por outro lado, a vida

    provoca, o tempo inteiro, microcolapsos imanentes ao vivo. Francisco Varela (2003)

    fala de microidentidades que so uma espcie de prontido-para-ao adequada

    para cada situao especfica vivida. Estas microidentidades possuem uma

    situao correspondente que o autor chama de micromundos, ambos construdos

    historicamente. Porm, ele salienta que as maneiras novas de se comportar e as

    transies entre uma ao pronta a outra, correspondem a microcolapsos que

    sofremos constantemente, numa rapidez que parece estar em constante acelerao.

    Talvez por isto, a vida humana contempornea tornou fundamental a experincia

    das grandes velocidades, pois, neste ritmo pode-se tentar fazer com que estes

    microcolapsos no sejam sentidos e, paradoxalmente, tambm pode gerar

    sensaes que provoquem e salientem os colapsos ainda mais.

    A vertigem, a velocidade, o mergulho, a queda, os desequilbrios de todas as espcies reforam o ilinx1 esportivo, renovando-o. Eles delimitam um universo ldico que curiosamente faz das sensaes de instabilidade uma fonte de prazer, e das desordens que elas procuram uma espcie de busca paradoxal. (Pociello, 1995, p. 118).

    Christian Pociello (1995) ressalta que o paradigma de todas as dificuldades

    a libertao do peso, mesmo que por um instante. Estas sensaes so muito

    ilustradoras do contemporneo e talvez da passagem ps-modernidade. Fala-se

    da fluidez que sustenta o tempo em curto prazo da montagem e desmontagem do

    1 Pociello coloca que R. Caillois denomina ilinx o conjunto de jogos em que nos abandonamos a um estado fsico e psicolgico incontrolado.

  • 25

    mundo, assim como, se usa a metfora do surfar e do danar para apontar que se

    vive hoje no capitalismo leve. Estas metforas so bem escolhidas, de acordo com

    Bauman, pois sugerem falta de peso, leveza e facilidade de movimentos. Mas o

    socilogo ainda aponta,

    [...] no h nada de mole na dana ou no surfe dirios. Danarinos e surfistas, e especialmente os que vivem na pista do salo de baile lotado ou na costa batida por altas ondas, precisam ser duros, e no moles. E so duros como poucos de seus predecessores, capazes de ficar parados ou mover-se em trilhas claramente marcadas e bem mantidas, jamais precisaram ser. O capitalismo software no menos firme e duro que seu ancestral hardware. E lquido no quer dizer mole. Basta pensar no dilvio, numa inundao ou na ruptura de um dique. (Bauman, 2001, p. 251).

    O contemporneo, portanto, pode ser adjetivado por caractersticas como

    multiplicidade, complexidade, leveza, rapidez, agilidade, velocidade, ambigidade,

    paradoxal, difuso, incerto, catico, plstico. No se quer aqui, fazer um mapeamento

    dos valores contemporneos para apreendermos o bom e o mal, mas pensar alguns

    destes atributos que so vivenciados nas prticas deste tempo, para alm do bem e

    do mal.

    Dar formas ao vivo, nestes tempos, uma arte de viver no labirinto ou na

    corda bamba como equilibrista. As formas, portanto, so breves. E no queremos

    nos opor a estas brevidades, pelo contrrio, so nelas que precisamos operar,

    desacelerando um pouco para que possamos pensar, inventar, sem sair do fluxo no

    qual estamos imersos. Pois, neste ponto que nos encontramos, vivemos e,

    portanto, deste lugar que podemos nos apropriar para ocup-lo ou tambm, mud-

    lo.

  • 26

    Komm tanz mit mir

  • 27

    2.2 As mudanas da dana

    Intencionamos continuar utilizando o danar para prosseguir problematizando

    o contemporneo. Ser atravs de lentes de cristais que devemos olhar a dana

    contempornea: como um prisma que se abre em mltiplas cores. Ou seja, no

    podemos pensar nem ler esta modalidade artstica como se ela fosse um bloco

    homogneo. Muito pelo contrrio, a dana contempornea foi se fazendo de uma

    maneira to mltipla que as suas formas divergem bastante podendo dizer que

    fazem parte de movimentos bem diferentes. Seus criadores e bailarinos foram dando

    muitas caras dana que surgiu, de maneira geral, na tentativa de se libertar dos

    padres rgidos do bal clssico. Para a pesquisadora de dana Ciane Fernandes

    (2002, p. 36), o incio do sculo XX apresentou uma revoluo esttica que rompeu

    a barreira entre as artes em movimentos como o Dada e a Bauhaus, originando a

    dana moderna como uma rebelio contra o tecnicismo do bal clssico. Foram

    muitas formas de danar que surgiram a partir destes rompimentos que foram se

    fazendo possveis em funo de movimentos maiores que se davam nas artes em

    geral.

    No entanto, a dana moderna, mesmo criada com objetivos contestatrios, na

    tentativa de sustentar uma arte mais livre, foi se desenvolvendo com cautela ao

    longo do conservadorismo poltico e artstico da guerra fria que, nos anos 40 e 50,

    se travava tambm com o bal. Houve, ento, uma crescente especializao e

    aprimoramento tcnicos na medida em que a dana moderna fazia seu processo de

    criao e institucionalizao.

    Nos anos 60, novamente os artistas buscaram expandir as fronteiras entre as

    artes, rebelando-se contra o modernismo, gerando uma multiplicao das correntes

    da dana ps-moderna. Este movimento da contracultura na dcada de 60 foi

  • 28

    mundial, ocorrendo em parte significativa da juventude que fez eclodir na

    subjetividade da gerao nascida no ps-guerra um incontornvel movimento do

    desejo contra a cultura que se separou da vida, na direo de reconquistar o acesso

    ao corpo vibrtil como bssola de uma permanente reinveno da existncia. (Suely

    Rolnik In: Benilton Bezerra e Carlos Plastino 2001, p. 319). Com relao dana,

    isto foi marcante no que diz respeito evidncia que tomaram as diferenas entre o

    bal e a dana moderna.

    Houve de tudo em nome da vanguarda, do melhor ao pior. Estava em cena a contestao. Danou-se pois para protestar a guerra no Vietn, contra o racismo, contra o sexismo, contra o establishment. E para celebrar a paz, o amor livre, o culto do corpo. Certos espetculos foram autnticos happenings consagrando intelectuais, artistas, hippies. Alguns coregrafos declararam-se a favor do consumo de drogas para aguar a inspirao e a percepo. (Portinari, 1989, p. 161).

    Estes diversos movimentos sociais, polticos e artsticos, se multiplicavam a

    todo instante, sendo interrompidos e novamente inaugurados, de diferentes

    maneiras. Nas artes, isto ocorria medida que os artistas experimentavam uma

    liberdade para criar que foi vivenciada pelas frentes precursoras dos movimentos

    crticos da sociedade, que geraram no uma nica e grande mudana global, mas

    mltiplas transformaes nas diferentes tramas das experimentaes possveis.

    Nos Estados Unidos, vrios espaos como pequenos teatros de aluguel

    barato, salas de associao de bairro, ptios de escolas e igrejas, museus, praas,

    estdios, praias, foram palcos de danas de esprito libertrio que tentavam criar

    outras formas de se manifestar artisticamente. Foi no auditrio da igreja protestante

    Judson Memorial, no Greenwich Village, em Nova York, que muitos grupos e

    coregrafos experimentaram uma srie de trabalhos inusitados para a poca. Alguns

    que por ali estiveram foram: Merce Cunningham, Twyla Tharp, Trisha Brown, David

    Gordon, Jennifer Muller, Steve Paxton, Douglas Dunn, Meredith Monk, Yvonne

  • 29

    Rainer, Elizabeth Keen, Simone Forti, James Waring, Rudy Perez, Lucinda Childs,

    Karole Armitage. Teve de tudo, inclusive uma antidana ou no-dana liderada por

    Deborah Hay que usava artistas instantneos ou pessoas no-iniciadas, que no

    necessitavam de uma tcnica para danar. Na dana moderna made in USA,

    esteve presente a dana aleatria que normalmente no era danada no palco, mas

    ao mesmo nvel do cho e, em meio ao pblico, em lugares como galerias de teatro,

    universidades, etc, fazendo uma tentativa de se colocar no mesmo nvel de quem

    passava junto aos bailarinos sem diferenciar uns dos outros. A representante mais

    caracterstica desta nouvelle danse foi Twyla Tharp, junto com Merce Cunningham,

    que buscava composies formadas por seqncias muito elaboradas, mas que

    podem se sobrepor umas s outras, suceder-se em encadeamentos no

    obrigatrios, (Paul Bourcier, 2001, p. 286). A post modern, escola americana mais

    jovem, tambm era guiada pelo acaso, sendo priorizados os elementos brutos do

    movimento como girar, no lugar ou no, andar, correr, saltar em eixos repetitivos.

    Era a improvisao e a eventualidade que ditavam as regras, se que se pode dizer

    que havia regras.

    Para estes inovadores, trata-se de provocar nos executantes estados psicossomticos que podem atingir o espectador que os arranque s noes restritivas da vida cotidiana. Isto implica naturalmente a participao voluntria do pblico a seu condicionamento mental. o retorno dana bruta. Esta tendncia pode ser encontrada, mais ou menos marcada, em todos os danarinos americanos, de qualquer formao. Todos procuram, sem saber design-lo, o estado dionisaco. Assim, o crculo se fecha e a dana volta a seu papel primitivo de transe sagrado. (Bourcier, 2001, p. 287).

    Espetculos multimdia faziam furor, bailarinos com macaces esportivos

    danando sem msica, intrpretes literalmente subindo pelas paredes (a pea

    Walking on the Wall, de Trisha Brown), a mistura de bailarinos com esqueletos de

    animais, cactos, espantalhos, como quadros vivos inspirados em pintores como, por

    exemplo, Gergia OKeeffe (outra obra de Trisha Brown) danada na Sonnabend

  • 30

    Gallery de Nova York. Contedos erticos com pinceladas sadomasoquistas,

    misturando o clssico com o punk, simples movimentos como caminhar, sentar,

    levantar, deitar que, executados em conjunto, ressaltavam as diferenas entre cada

    executante, tambm, espetculos que procuravam focalizar uma viso potica da

    cincia, salientando estgios do pensamento que fluem entre contemplao do

    cosmo e jogos corporais e ainda obras coreogrficas usando culos especiais para o

    emprego de laser gerando efeitos visuais como se fosse um filme de fico

    cientfica.

    Nesta multiplicidade, por mais de dez anos, a vanguarda da dana nos

    Estados Unidos foi comandada pelo movimento da Judson Memorial que, entre

    incontveis propostas e resultados desiguais, alguns se tornaram menos radicais

    com o correr do tempo e sucesso conquistado, outros acharam mais cmodo aderir

    ao establishment a fim de obter subvenes para seus grupos, havendo igualmente

    aqueles que desapareceram sem deixar rastros (Portinari, 1989, p. 161). A dana

    ps-moderna norte-americana foi se tornando tcnica e especializada, de acordo

    com Fernandes, exigindo que neste novo sculo se faa uma maior reflexo a

    respeito dessas relaes, at ento dicotmicas, entre a especializao e a

    abrangncia artstica, a tcnica e a improvisao (2002, p. 36).

    Neste sentido, a dana contempornea teve uma srie de movimentos que se

    bifurcavam, ora desaparecendo, ora reaparecendo, mas de qualquer maneira,

    gerando diferentes caminhos que se institucionalizavam em territrios mais fixos e

    tambm, se desinstitucionalizavam ou se desterritorializavam, transformando-se

    numa heterogeneidade caracterstica deste perodo de efervescncia social. Isto, de

    alguma maneira, no foi somente uma caracterstica no processo da dana, mas das

    artes em geral. Enquanto alguns grupos surgiam, bailarinos despontavam como

  • 31

    coregrafos vinculando-se a uma nova formao que estava disposta a trabalhar

    com a proposta que de alguma maneira procurava se diferenciar, movimentando o

    cenrio hbrido e variado da dana contempornea.

    A dana contempornea foi se fazendo num processo que provocou o

    desmanchamento das formas, desterritorializaes, uma capacidade de fazer agitar

    o novo, de gerar uma movimentao desconhecida. Segundo Isabelle Launay,

    (2005)

    [...] se ainda pode-se ver a dana contempornea como arte ou prtica minoritria, ela tambm tem a sorte de ser, hoje, ao contrrio do que seria uma prtica de elite, o lugar de um pensamento consoante com as polticas de minorias que tentam fazer arte, e poltica, de modo diferente. Pela proliferao de suas prticas artsticas e de seus grupos de reflexo, ela no se manteve alheia emergncia de diversos movimentos sociais em todas as reas da vida poltica, que resolveram opinar tanto sobre assuntos que lhes dizem respeito quanto sobre assuntos alheios (desde as associaes ligadas luta anti-mundializao, at os ecologistas radicais, ou mesmo a luta contra os transgnicos, a do ativismo feminista americano, ou ainda os grupos de ao contra a AIDS).

    Mas, ao que propriamente a dana contempornea voltava-se contra? Esta

    dana se construiu, por todos os seus meios, na tentativa de elaborar uma crtica ao

    seu tempo social. Sua inteno, com maior ou menor conscincia, era ir contra os

    padres ideais estabelecidos na sociedade para o controle dos modos de viver dos

    homens e mulheres que queriam buscar suas prprias possibilidades de vida e que,

    muitas vezes, eram impedidos. A dana contempornea queria ir contra a captura da

    vida, para resistir aos moldes universais que forosamente eram criados para serem

    incorporados e para que a vida, digamos assim, fosse ditada fora da singularidade e

    do desejo.

    A definio da dana contempornea constitui-se em grande discusso, uma

    questo central para este domnio artstico, portanto, nos propusemos a conhec-la

    um pouco mais. A dana contempornea no deixou de ser, de uma certa forma, um

  • 32

    territrio experimental onde vale tudo, como passos e movimentaes das mais

    diferentes tcnicas avaliadas por especialistas de toda ordem. Ainda h confuso

    Regina Advento se apresenta em O Limpador de Vidraas (1997) Foto de Maarten Vanden Abeele

  • 33

    em torno do que seja esta tal de dana contempornea, conforme Airton

    Tomazzoni (2006) ressalta como ttulo do seu artigo. Para este pesquisador e

    coregrafo, a dana contempornea evidencia que escolhas estticas revelam

    posturas ticas. Numa poca de tantas barbries impostas ao corpo, preciso

    recuperar esta tica quando se escolhe fazer arte com o corpo seja o seu, seja

    (principalmente) o dos outros. Para o autor, quatro fatos auxiliam a identificar a

    dana contempornea ou, ao menos, a diferenci-la do que ela no . O primeiro,

    que a dana contempornea um jeito de pensar a dana, onde cada projeto

    coreogrfico tem que forjar seu suporte tcnico e fazer escolhas coerentes. Sendo

    assim, ela no somente uma escola ou um tipo de aula. O segundo fato que no

    h modelo ou padro de corpo ou de movimento e, por isto, na dana

    contempornea pode-se reconhecer a diversidade e estabelecer o dilogo com

    mltiplos estilos, linguagens e tcnicas de treinamento. No h corpos que so

    eleitos como os melhores para esta tcnica. Todo corpo instrumento desta dana.

    J o terceiro fato constitui que a dana contempornea reafirma a especificidade da

    arte da dana, ou seja, dana no teatro, nem cinema, nem literatura, nem msica,

    mesmo se enriquecendo muito com a contribuio destas artes. Mas, dana

    dana. O corpo em movimento estabelece sua prpria dramaturgia, sua

    musicalidade, suas histrias, no precisando de mensagens e at mesmo de trilha

    sonora. O quarto e ltimo fato compreendem o que proclamou Yvone Rainer quando

    a dana ps-moderna norte-americana abalava o establishment: the mind is a

    muscle. Neste sentido, Tomazzoni (2006) afirma que o pensamento se faz no corpo

    e o corpo que dana se faz pensamento. Da mesma forma que Katz (2005), aponta

    no prefcio do seu livro Um, dois, trs. A dana o pensamento do corpo, quando

    se entende a dana como um pensamento do corpo, este o primeiro ganho:

  • 34

    consegue-se diferenci-la de todas as outras construes que um corpo faz com o

    movimento.

    A dana contempornea conta com um perodo frtil da sua histria de

    revolues, que ocorreu num perodo igualmente frtil de movimentao social que

    foram as dcadas de 60 e 70. Neste perodo foram criadas diversas linhas que

    ganharam vrios nomes gerando muitas rupturas e tambm aproximaes ou

    reaproximaes dentro do prprio movimento da dana contempornea. Na tentativa

    de evidenciar a multiplicidade gerada naquele momento fecundo muitos nomes

    foram dados s diferentes correntes que ali surgiam ou que se configuravam, ento,

    de outras maneiras, tais como: dana moderna, nova dana, dana ps-moderna,

    espao-dana, dana-teatro, etc. De qualquer maneira, estas distintas linhas da

    dana contempornea surgiam como contestao ao rigor e s convenes do bal.

    Para as pesquisadoras de dana Aline Hass e ngela Garcia, a dana moderna

    surge

    [...] como necessidade de ser uma arte que promovesse e provocasse a liberdade e a explorao total do corpo a partir de temas abstratos ou concretos; com o despertar do homem para sua prpria natureza, diversificando novas tcnicas corporais e linhas coreogrficas que iam ao encontro das necessidades de expressar acontecimentos de sua poca, seus prprios sentimentos e no apenas de personagens fictcios; a dana da libertao do corpo e de seus movimentos; a dana que retrata todas as experincias vitais da sociedade e dos seres humanos, em que, mais uma vez, esses esto engajados e conscientes no mundo em que vivem. (Hass e Garcia, 2003, p. 101).

    Para fins deste estudo, considera-se que a dana contempornea, no

    somente o nome de todas as formas de danas existentes hoje (a dana no ou do

    contemporneo), mas principalmente nos objetivos que aqui cabem, uma das suas

    modalidades que podemos tambm chamar de dana ps-moderna. Estas

    definies, ou melhor, estes nomes, ainda carecem de maior pesquisa e

    esclarecimentos, pois suas conceituaes no esto suficientemente claras na

  • 35

    bibliografia referente ao assunto. Talvez, isto se deva ao fato do que Lia Robatto

    salienta na sua prpria concepo de dana contempornea,

    [...] as danas contemporneas, participantes que so de um processo em constante renovao, no podem ser amarradas em conceitos estticos de uma esttica com estilo formal, passos e posies corporais determinados. Cada smbolo gestual ou movimento puro que surge criado para apenas aquela determinada obra coreogrfica e, pelo fato de ser nico e original, ter, fatalmente, uma denominao inventada, de uso restrito ao trabalho em processo. Um seu eventual reaparecimento em outras circunstncias, conforme o seu novo significado, poder vir a ter at mesmo uma denominao diversa. (Robatto, 1994, p. 25-26).

    Fala-se ento, da dana contempornea no como um bloco nico e

    homogneo, mas como movimento que faz bifurcar diferentes linhas que evidenciam

    a multiplicidade dos modos de danar durante o ltimo milnio. De maneira geral,

    pretende-se tomar a amplitude destes movimentos da dana contempornea, que

    marcaram cada vez mais seu espao no social, demandando a possibilidade de

    adotar o gesto como uma ferramenta expressiva do corpo e para o corpo. Discute-se

    aqui, uma dana que se prope a novas criaes que so prprias de cada contexto,

    e so, portanto, singulares e minoritrias funcionando na lgica da inveno, da

    experimentao, na criao de elementos estticos e expressivos para dar conta do

    movimento finito-ilimitado da vida.

    De forma anloga a estas maneiras singulares da expanso da dana

    contempornea, o conceito estaria para a filosofia, nos movimentos do pensamento

    de Deleuze e Guattari (1992). Ou seja, para fazer filosofia, de acordo com os

    autores, necessrio criar conceitos. Toda criao singular, e o conceito como

    criao propriamente filosfica sempre uma singularidade. Conceitos que

    remetem a outros conceitos, ele uma heterognese, isto , uma ordenao de

    seus componentes por zonas de vizinhana... uma intenso presente em todos os

    traos que o compem. So intensidades em estado de sobrevo que se

    assemelham ao procedimento do gesto e da coreografia quando estes se

  • 36

    configuram numa possibilidade minoritria de atingir a criao e a expresso

    singular.

    Nas palavras de Hass e Garcia,

    [...] a dana contempornea, no aspecto coreogrfico, pode ser traduzida como dana que no se funde em regras, passos determinados, existentes, e tcnicas pr-estabelecidas ou fixas, embora possa ser influenciada por determinados princpios; uma dana que se cria e se elabora a partir de uma explorao de movimentos, gerada por uma enorme capacidade criativa cujo objetivo sempre a descoberta do elemento novo, esttico e condutor do que deseja exprimir, expressar. (2003, p. 104).

    Podemos entender a dana contempornea de que se fala aqui, no como

    qualquer dana contempornea, mas a que cria o gesto minoritrio, ou seja, que faz

    de si uma dana menor. Por minoritrio entende-se a criao ou o devir potencial

    que desvia do modelo, qualquer que seja seu nmero, conforme Deleuze e Guattari

    (1995b). uma variao contnua que busca sempre a fuga, mas no a morte. Ao

    contrrio do majoritrio que domina e uma constante do Universal, que se pode

    dizer que gerencia Ningum, o minoritrio o devir de todo o mundo que d

    passagem a componentes novos, sendo estrangeiro na sua prpria lngua e

    compreendendo uma capacidade muito maior de expressar os movimentos da

    criao.

    Seria como gaguejar na prpria lngua, inventar uma lngua menor dentro da

    lngua maior. Deleuze e Guattari (1995b, p. 51), nos dizem: servir-se da lngua

    menor para por em fuga a lngua maior. No fazendo desta lngua menor um dialeto

    ou novos guetos e regionalismos, pois no assim que nos tornamos

    revolucionrios, inventivos, mas, utilizando muitos elementos de minoria,

    conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especfico autnomo,

    imprevisto (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 53).

    nesta provisoriedade da dana contempornea que se pode ter um auxilio

    que contribui para pensar a experincia subjetiva contempornea, a sua relao com

  • 37

    o corpo e com a vida possvel de ser vivida no presente. Pensar uma dana menor

    exige ressaltar as operaes de um modo de subjetivao que trabalha com a

    inveno a partir da imanncia e da experimentao. Que rompe com o platonismo

    do dualismo gesto e corpo, emergindo um processo de risco que faz tentativa

    incessante de fazer da coreografia um procedimento, um caminho para conseguir se

    expressar. Fazendo tudo para que o corpo possa se expressar e expresse algo do

    seu impensado e do seu imrfico.

    Um corpo destes no se encontra nunca pronto e acabado, mas permite dar

    passagem ao potencial virtual que contm e pode possibilitar o aumento dos afectos.

    Os afectos so os atributos dos corpos que fazem entre eles conexo, associao,

    movimento, rizoma, numa espcie de zona de indeterminao, de indiscernibilidade.

    Conforme Deleuze e Guattari (1992, p. 224), o afecto no a passagem de um

    estado vivido a um outro, mas o devir no humano do homem.

    Para Artaud (In: Lins, 1999, p. 51), que criou este conceito de Corpo sem

    rgos (CsO), o corpo o corpo e ele est s / e no tem necessidade de rgo / o

    corpo no nunca um organismo / os organismos so inimigos do corpo. Deleuze e

    Guattari (1996, p. 21) apontam que percebem que o CsO no de modo algum o

    contrrio dos rgos. Seus inimigos no so os rgos. O inimigo o organismo. O

    CsO no se ope aos rgos, mas a essa organizao dos rgos que se chama

    organismo. um repdio organizao orgnica dos rgos. Criar para si um corpo

    sem rgos suportar viver na liquidez das formas, deslizar nos fluxos, deixar

    rastros, inventando movimentos na dana como prtica de fabricao do

    outramento.

    Este o movimento de diferenciao da vida, gerador da subjetividade

    interessante de ser produzida. O leve e o pesado, conforme j salientado no incio

  • 38

    deste captulo, so elementos de um mesmo paradoxo que compreende a

    experincia contempornea. Os atributos como leveza, agilidade, velocidade, geram,

    tanto o peso que podemos entender como a angstia sentida pelos viventes, quanto

    a leveza que conseguimos apreender como a constante desestabilizao da

    plasticidade do tempo atual. A vida, portanto, compreende estes dois elementos, que

    geram o paradoxo e se constituem no movimento de diferenciao que a faz

    acontecer.

    Assim como, o gesto menor tambm contm o leve e o pesado, imanentes na

    vibrao da dana para que ela possa ocorrer. Retomando a msica... pesar do

    mundo... onde alivia... onde me pesa... durante a queda..., e ainda, ...somente um

    ritmo... peso e balano... Em suma, o gesto menor e o movimento de diferenciao

    que produz subjetividade e inventa vida compreendem o paradoxo contemporneo

    da leveza e do peso.

    Esta pesquisa, portanto, trabalha na ordem de uma dana menor, uma dana

    que abarca seu paradoxo, uma dana que gagueja, que faz tropear seu movimento,

    que no faz da queda um erro. Faz da queda, do tropeo, uma dana, ao contrrio

    de encontrar-se na esteira de uma forma idealizada e homognea de danar.

    Construir um modo de danar atravs de uma poltica do tropeo onde, mesmo o

    cho que se abre num abismo, como nos terremotos subjetivos causados pelos

    choques cotidianos da contemporaneidade. Assim como se diz dancei!,

    evidenciando a instabilidade que a vida e a dana propem. Esta dana que

    menor dentro da dana maior, procura ser uma dana que no seja uma

    representao do cair, mas uma ontologia da queda, para que haja dana mesmo

  • 39

    aps o tropeo, sem medo de continuar, conforme idia de Lepecki2 (2005). Talvez

    no mesmo sentido da reflexo do artista que diz por que no ser feliz na incerteza?

    Por que no continuar danando aps o tropeo?

    2 LEPECKI, A. Tropeando a dana: para uma poltica do movimento. Conferncia apresentada no I Encontro Internacional de Dana e Filosofia O que pode a dana? Rio de Janeiro, 15 a 18 de setembro de 2005.

    A danarina Josephine Ann Endicott atua em Os Sete Pecados Capitais (1976

  • 40

    2.3 O efeito Pina Bausch

    Para o leitor que acompanha esta pesquisa, este um momento de esclarecimento.

    Esta parte que se inicia, um mapa para localizar melhor quem tiver necessidade e

    interesse na trajetria histrica de Pina Bausch e da companhia, da qual diretora, o

    Wuppertal Tanztheater. Faz-se aqui, uma tentativa de traar algumas linhas de um

    certo olhar genealgico sobre o trabalho da coregrafa alem.

    Com o objetivo de situar o leitor diante da multiplicidade de elementos que

    compe o universo pinabauschiano, o caminho que aqui se inicia, orientado por

    um mapa que se traou num esforo para elucidar algumas questes que marcaram

    o curso da artista e da sua companhia desde sua criao. Sero apontados certos

    pontos do fluxo deste movimento, de acordo com a relevncia do percurso e do olhar

    singular que esta pesquisa vem traando.

    No se pretende esgotar as possibilidades que o trabalho da coregrafa

    suscita, nem fazer uma anlise de suas obras, mas percorrer o trajeto que

    corresponde justamente aos movimentos possveis que puderam ser realizados

    neste momento por esta pesquisadora. A contribuio de autores com suas

    respectivas crticas e apreciaes da obra de Bausch serviro para auxiliar nossa

    tarefa, porm no algo que aqui se objetiva fazer, pois esta no uma pesquisa

    que se situa nas artes cnicas. No ocorrer uma anlise das obras coreogrficas,

    mas se tentar apontar as foras que se implicaram na trajetria de Bausch para

    situar a atmosfera que gera este acontecimento.

    A nfase, portanto, se localiza em suscitar o fio de Ariadne pinabauschiano e

    discorr-lo num modo de danar que conceba e nos force a pensar a experincia

    contempornea3, considerando-a como intercessora para problematizar o corpo e a

    3 Uma das finalidades principais desta pesquisa.

  • 41

    subjetividade, questo que compreende o captulo 4 desta dissertao. Assim, sero

    lanados neste momento, elementos necessrios para sustentar os efeitos do

    acoplamento dos dois eixos que compem esta pesquisa: os efeitos Pina Bausch e

    o contemporneo. Ou seja, intenciona-se deixar claro que foras operaram ou ainda

    operam para que Pina Bausch, nosso personagem conceitual, Conforme

    dissertado no captulo 3 desta pesquisa, seja considerada nesta pesquisa um

    acontecimento4.

    Este momento pode ser considerado um plat desta pesquisa, que se coloca

    atravs da singularidade de leitor. Ou seja, este mapa pode ser lido a qualquer

    momento e de acordo com a necessidade do leitor de se localizar historicamente na

    genealogia5 traada neste pesquisar.

    2.4 A dana alem na contaminao do ps-guerra

    Durante todo fervor social dos anos 60 e 70 na Europa, a Alemanha Ocidental

    tambm despontou com um movimento forte na dana. Discpula de Kurt Jooss, que

    por sua vez foi aluno de Mary Wigman, Pina Bausch e sua companhia Wuppertal

    Tanztheater primavam por um repertrio indito de dana-teatro que causou

    inicialmente, diferentes reaes tanto do pblico quanto da crtica. Assim como, dos

    bailarinos e das pessoas que sustentaram esta iniciativa, como veremos mais

    adiante.

    Mary Wigman, inspirada pelas aulas de Rudolf Van Laban, criou a dana

    expressionista, a Ausdrckstanz, enquanto as artes plsticas tambm viviam o auge

    do expressionismo na Alemanha. Wigman buscava mostrar no palco uma situao

    que estivesse alm da vida cotidiana, conforme o pesquisador Fabio Cypriano 4 Este conceito est descrito e sustentado teoricamente no captulo 3. 5 As concepes de histria e de genealogia, sustentadas aqui, esto apontadas na parte metodolgica (captulo 3) desta dissertao.

  • 42

    (2005), retratando estados emocionais primitivos. Ela primava pela dana livre

    buscando expandir todas as possibilidades dos movimentos do corpo tornando-os

    exticos, mas ficando restrita sua tcnica. Wigman gerou um antagonismo ao bal

    clssico, pois fazia uma busca pelo instintivo, construindo uma maneira de danar

    que permitisse abandonar o ego e uma estrutura de personalidade mais formalmente

    desenvolvida e civilizada, ressaltando a natureza animal e do ainda no formado no

    homem/mulher que dana.

    J Kurt Jooss, mesmo se situando num outro ramo da dana alem, tambm

    foi aluno de Laban, mas fazia sua dana-teatro dialogar com a corrente artstica da

    Nova Objetividade. Nesta linha, ainda que ele tambm tenha sido aluno de Wigman,

    tinha uma proposta diferente que era de representar o mundo exterior de maneira

    realista (Cypriano, 2005). Ele no precisou recusar o ballet clssico, fazendo um

    vnculo deste com a dana contempornea e abafando a richa que se mantinha

    quando o ballet era negado. De outra maneira, diferente do modo de Wigman, ele

    tambm tirou os movimentos do corpo do convencional sendo o fundador da dana-

    teatro que expressava muito fortemente as relaes da dana com a sociedade por

    meio da ao dramtica.

    Jooss coreografou a Mesa Verde, obra de 1932, que precedeu a II Guerra

    Mundial, mas foi criada depois da primeira grande guerra. poca em que o nazismo

    estava se formando e, portanto, com o uso de mscaras no marcante figurino

    evidenciou as relaes sociais do perodo vigente. Jooss cunhou o termo dana-

    teatro na dcada de 20 pois, para ele, dana tambm era teatro. O teatro, na forma

    mais original, dava igual importncia a todos os elementos que compunham a pea:

    o cenrio, a msica, a obra em si, etc. Por isso, sua dana, de alguma maneira,

  • 43

    precisou se aproximar do teatro para enaltecer algumas destas noes, assim como

    tambm poder utilizar a fala e enfatizar esta relao.

    Lutz Frster6, bailarino h bastante tempo do Wuppertal Tanztheater, nos

    esclarece que, hoje em dia, o que faz este grupo que Bausch coordena, se poderia

    chamar somente de dana. Todavia, fazem dana-teatro mas, ensinam dana

    contempornea. Enfim, questes de ajustes de nomenclatura. Talvez as menos

    importantes das contribuies deste domnio artstico, pois ser desta corrente de

    Jooss que Bausch se influenciou com propriedade.

    O teatro de Bertolt Brecht tambm exerceu influncia na dana-teatro alem.

    Atravs do gesto socialmente significante, no ilustrativo ou expressivo, o teatro

    pico de Brecht instigava o reconhecimento de situaes cotidianas pelo espectador

    e sua ao para mud-las (Fernandes, 2000). Diferentemente da esttica clssica, a

    subjetividade e a reflexo social-antropolgica comandavam a criao do gesto.

    Conforme a pesquisadora, bailarina e coregrafa Ciane Fernandes, o efeito de

    distanciamento, a tcnica de montagem e os momentos cmicos inesperados

    tambm so influncias brechtianas.

    Pina Bausch nasceu no dia 27 de julho de 1940 em Soligen no sudoeste da

    Alemanha. Seus pais eram proprietrios de restaurante, muito ocupados com o ps-

    guerra, o que gerou uma infncia com maior liberdade para a filha. Desde pequena,

    Pina observava as pessoas que freqentavam o restaurante da famlia,

    estabelecendo uma forma de comunicao com o mundo atravs do olhar. Este

    senso de observao foi desenvolvido ainda bem jovem fazendo a menina Pina

    intuir o que existia dentro das cabeas das pessoas. Este dentro das cabeas

    correspondia s expresses da subjetividade que fez do seu trabalho uma pesquisa

    6 Informao verbal colhida em entrevista informal com Lutz Frster, em Porto Alegre, durante o 26 Poa em Cena (14/09/2006).

  • 44

    sobre as questes existenciais do ser humano (Cypriano, 2005). Sua infncia,

    portanto, foi pautada pela atmosfera do ps-guerra, onde as pessoas provavelmente

    deveriam ainda falar disto, ao mesmo tempo em que queriam se distrair daquilo que

    tinha arrasado seu pas.

    Philippine Bausch, enquanto estudante, havia sido muito valorizada por Jooss

    como um grande talento. E foi a partir dele e da linguagem que ele inaugurou, que a

    bailarina mais conhecida como Pina Bausch, potencializou a tenso entre dana e

    teatro.

    Bausch fez formao na Folkwang Hochschule, em Essen, escola em que

    Jooss era diretor, fazendo um percurso tambm na Juilliard School em Nova York

    com professores como Jos Limon, tornando-se bailarina do Metropolitan Opera.

    Estas duas fontes permitiram sua relao ntima com a dana moderna norte-

    americana e com a escola alem de dana-teatro provocando tambm um dilogo

    entre as disciplinas, o que sustenta sua prtica multidisciplinar. A dana-teatro

    alem, portanto, se desenvolveu num contexto interativo, influenciada pelas

    experincias norte-americana e europia.

    Bausch volta Alemanha em 1962 para retornar ao bal da Folkwang,

    comeando alguns anos depois a criar suas primeiras coreografias e, em 1969,

    tornando-se diretora artstica da companhia, aps aposentadoria de Jooss. Mas, foi

    como diretora do Tanztheater da cidade de Wuppertal, em 1973, que a coregrafa

    concebeu o novo conceito de dana-teatro. Levando a dana para fora das suas

    velhas formas, no sentido de proporcionar ao corpo novas ferramentas expressivas

    menos formatadas esttica vigente, Bausch tentou em Wuppertal, agregar o que

    estava segmentado naquela poca, nos teatros estatais da Alemanha: pera, teatro

    e dana.

  • 45

    Neste ano de 2006, em que Pina Bausch e o Wuppertal Tanztheater nos

    visitaram em Porto Alegre, parece surgir um certo modismo onde o universo

    pinabauschiano idealizado como produto de exportao alemo com receita de

    sucesso. Porm, no esta a proposta artstica da coregrafa e sua companhia.

    Ao contrrio disto, esta pesquisa quer fazer uma aproximao desta obra de

    tal maneira que se faa uma tentativa de tirar deste processo as suas evidncias.

    Salienta-se a importncia de compor um caminho que permita desnaturalizar este

    sucesso garantido em funo de que no se vende receitas que comprovam ou

    universalizam estes procedimentos numa frmula nica. Faz-se necessrio ento, a

    retomada de foras outras que estavam em jogo quando o Wuppertal Tanztheater se

    formou e um certo mapeamento das linhas que se fazem at hoje ou podem estar

    por se fazer.

    Pina Bausch e o seu teatro de dana de Wuppertal tiveram um comeo frgil,

    com enormes riscos de no acontecer, apontando uma espcie de insucesso que a

    fez trabalhar por muito tempo na fronteira do abismo, na borda de uma estrutura

    frgil que poderia no se sustentar e, a qualquer momento, despencar e deixar de

    existir. Por que? Vamos adiante.

    J na poca de Jooss, ps I Guerra, os bailarinos que voltaram Alemanha,

    conforme o bailarino Frster (2006), tiveram que voltar para escolas de bal clssico,

    pois era o que poderia ser executado e mostrado naquele perodo to difcil e de

    tanto ressentimento provocado pelas batalhas ocorridas. O bal clssico, neste

    sentido, era muito menos danoso e provocativo para o que estava em vigor no

    momento: um total sentimento de destruio que deveria esconder seus estragos

    pela beleza e harmonia da maioria dos espetculos daquela ocasio.

  • 46

    No entanto, Jooss e seu sucessor acreditaram no trabalho que j ocorria em

    Essen e, portanto, foi a nica escola que no era uma companhia de bal que existia

    como alternativa para os bailarinos e para o pblico ainda bastante temeroso. De

    acordo com Frster (2006), todo movimento expressionista que havia sido iniciado

    antes da guerra foi cortado em funo de toda a tirania que se travou,

    impossibilitando que esta arte auxiliasse na restaurao subjetiva dos ferimentos

    provocados pelo desastre concreto e macio da guerra.

    Nos anos 60, perodo em que Pina Bausch voltou dos Estados Unidos, seu

    pas se encontrava no milagre da reconstruo, porque tinha sido destrudo aps a II

    Guerra Mundial. Esta reconstruo intencionava no somente levantar o pas

    novamente, mas apagar os rastros deixados pelo perodo anterior. No entanto, Pina

    como outros artistas de vanguarda, no conseguia esconder as feridas que

    acabavam vindo tona nas suas criaes.

    Conforme Portinari (1989, p. 166), Bausch terminava brigando com a esttica

    convencional, seja porque ela utilizava atores-bailarinos que no precisavam

    esconder a barriga saliente, as costas arqueadas, os cabelos do corpo e os culos

    de mope, como tambm, porque as peas criadas tratavam de temas que, de

    alguma maneira, faziam as feridas serem sentidas outra vez, pois elas no estavam

    cicatrizadas, mesmo com o esforo realizado para que isto acontecesse. Ou melhor,

    o empenho era para que estas seqelas fossem removidas num curto perodo de

    tempo retirando qualquer efeito danoso ou vergonhoso. A inteno naquele

    momento era que os ferimentos causados no deixassem rastro algum aps a

    arquitetura do pas ser renovada. Os olhos no podiam ver o que se havia

    suportado.

  • 47

    Neste sentido, nada melhor que edificar a sociedade do espetculo, conforme

    o filsofo Guy Debord (1997), com apresentaes artsticas que foram obtendo

    poder numa proposta de manter a ordem estabelecida cumprindo sua funo de,

    no somente entreter, como enredar o povo. Para Debord, a ideologia que fez a

    sociedade do espetculo imperar no s transformou economicamente o mundo,

    mas transformou policialmente a percepo. Uma tentativa de controle da percepo

    do povo, para que de alguma maneira, o poder se ramificasse mantendo os sentidos

    domesticados e os corpos docilizados. Conforme o filsofo (1997, p. 16), o

    espetculo afirmao da aparncia e a afirmao de todo vida humana isto ,

    social como simples aparncia. Mas a crtica que atinge a verdade do espetculo o

    descobre como a negao visvel da vida; como negao da vida que se tornou

    visvel. Este conceito, concebido ps-maio de 68, sustenta o quanto que os

    espetculos suscitaram a organizao consciente e sistemtica do imprio da

    passividade moderna.

    Naquele momento, os temas de Pina e a forma em que eram apresentados

    causavam uma reao do pblico que teve um alto custo para ela e sua equipe. Os

    bailarinos se queixavam que no eram entendidos pelo pblico que muitas vezes

    deixava a platia vazia antes do final do espetculo. A prpria Pina tambm foi

    vtima de ameaas que intimidavam a ela e a sua famlia pela criao e execuo

    das obras. Neste sentido, a ruptura com as tradies foi uma tarefa rdua, pois a

    ousadia da vanguarda da jovem coregrafa chocou inicialmente grande parte do

    pblico e da crtica. De diferentes maneiras, Bausch fazia ver, foi uma mquina de

    fazer ver. Contudo, atravs dela no se via as formas bem estabelecidas, mas o

    contrrio disto, as anamorfoses dos corpos e dos comportamentos do perodo

    vigente, que estavam transformando os sujeitos vertiginosamente nestes perodos

  • 48

    de reconstruo. Pina Bausch vazia ver os horrores do qual seus olhos estavam

    cheios, de tudo os sobreviventes e seus descendentes tinham visto, vivido e

    imaginado.

    Foi neste clima que, chegando em Wuppertal, Pina desabafou: O que vou

    fazer numa fbrica destas? (2002, dvd). De alguma maneira, no sabendo muito

    como fazer para iniciar seu trabalho, ela demonstrou seu parecer sobre a cidade

    enclausurada na produo fabril que anestesiava a vida lembrando mais a morte.

    Arno Weistenhofer, diretor do teatro, foi uma das pessoas que deu confiana a ela,

    porque acreditava no seu trabalho. Isto foi muito importante, pois foi o que deu uma

    proteo necessria para que pudesse comear suas criaes naquele espao,

    possibilitando tambm que ela conhecesse pessoas.

    No incio da constituio do Wuppertal Tanztheater, portanto, no havia

    evidncias do sucesso que a companhia faz atualmente. No foi um grupo que

    nasceu para entreter e brilhar, como os espetculos artsticos, um tanto romntico,

    que prevaleciam na poca. Certamente se Pina Bausch no tivesse alguns poucos,

    mas fundamentais apoiadores na poca, ela e seu grupo poderiam no ter resistido

    frente ao pblico da cidade e da poltica do Estado que subvencionava o teatro. As

    questes que predominaram e as foras que se atravessavam tendiam o trabalho a

    episdios de fracassos, de insucessos, de maneira a enfraquecer uma certa

    tentativa que resistia, se opondo esfera molar que imperava e era socialmente

    aceita.

    No seu incio, Pina tambm no tinha o objetivo claro de ser coregrafa. Este

    processo foi se constituindo como um fluxo de foras que se encaminhou para isto

    resistindo aos obstculos que apareciam a todo o momento. Com suas prprias

    palavras, afirmou:

  • 49

    Isto na verdade, nunca foi idia de que agora sou uma coregrafa. Fiz minhas primeiras peas porque eu queria danar, porque no havia ningum que fizesse algo suficiente, e eu queria danar um pouco eu mesma, por isso tentei fazer uma pequena pea, e ento outros queriam participar, e ento eu disse: sim, est bem, poderemos tentar. (2002, dvd).

    Ela sabia que queria trabalhar de um jeito diferente. Este jeito foi se ocupar de

    algo que permite ir se transformando e que vai gerando a ela outras lembranas e o

    processo ento, comea a se construir7. Pina portanto, nunca teve uma inteno,

    filosoficamente falando, de criar a nova dana alem. No entanto, foi o que acabou

    acontecendo naquele momento que as foras da guerra talvez no fossem mais to

    visveis a olho nu, porm, ainda estavam potencialmente atuantes. A arte de Pina

    Bausch denunciou que o sofrimento, o padecimento, a morte, perduravam naqueles

    que permaneceram vivos, ou melhor, que sobreviveram catstrofe.

    Neste sentido, Pina Bausch e o Wuppertal Tanztheater constituram um

    processo de trabalho que foi se estabelecendo utopicamente. Aponta-se aqui uma

    utopia do fracasso, conforme Ernst Bloch (2005), do que foi ou poderia ser

    interrompido a qualquer momento, se refazendo nas descontinuidades dos

    percursos, mas que tem a potncia de abrir novos espaos para andar na contramo

    e poder resistir. Poderamos dizer que, hoje em dia, Pina Bausch produto de

    exportao porque no conseguiram extermin-la com ela, confirmando que este

    vendvel do produto pinabauschiano foi construdo historicamente e tornou-se hoje

    uma evidncia de sucesso para pessoas que jamais teriam apostado nesta arte

    naquele momento. No s no apostado como possivelmente teriam ido contra.

    Quando se pensa no leque de patrocinadores que atualmente vemos investindo no

    mercado da arte, a obra de Bausch apontava para algo que naquele momento era

    fortemente vetado.

    7 Singular processo de criao de Bausch, j evidenciado em captulo anterior.

  • 50

    Conforme Norbert Servos (In: Carter) o debut da inovadora dana-teatro, no

    foi facilmente integrada dentro dos valores e categorias existentes. O contraste com

    a dana de costume foi fortssimo, as barreiras entre os gneros foram quebradas na

    dana de Bausch, assim como, as linhas demarcatrias que tradicionalmente

    separavam a dana, o teatro falado, o teatro musical, foram abolidas, resistindo a

    qualquer tentativa de padronizao por categorias. Admitia-se que a artista tinha

    imaginao e talento, porm, o trabalho mantinha-se misterioso e inacessvel.

    Mesmo com um certo aumento da popularidade os argumentos cresceram

    proporcionalmente na linha do apelo e da rejeio em funo de tudo que Pina fazia

    ver, de tudo que era mostrado nos seus trabalhos como as dores dos horrores da

    guerra.

    Todavia, conforme Marcus Bsch (2005), Pina Bausch no se deixou

    persuadir de sua concepo de dana, para a qual no existem instrues de uso.

    No entanto, Bsch (2005) ainda salienta,

    [...] embora a coregrafa j tenha encenado mais de trinta peas e criado uma nova linhagem da dana, seu trabalho no se torna rotineiro e sempre est ligado a um certo risco. O medo no cessa: medo de fracassar, medo de no terminar a tempo. Afinal, no princpio era o nada.

    E parece que foi mesmo de um certo nada que Pina Bausch foi traando

    seus caminhos, de intervenes marcantes com sutilezas que tambm se

    acentuavam. Somente quando Wuppertal se tornou local de peregrinao de fs e

    de pessoas famosas do teatro, que seu povo reconheceu a importncia da

    companhia (2002, dvd). No final dos anos 70, estavam comemorando triunfos em

    festivais internacionais e em inmeras turns.

    Este percurso sempre influenciou demasiadamente suas obras fazendo com

    que Bausch tornasse visvel a oscilao dos homens nos momentos crucias das

    suas existncias. Pois, nas fendas deste movimento de insucesso, de fragilidade,

  • 51

    de risco, de quedas e de tropeos, ou seja, onde as fragilidades humanas e da vida

    aparecem, que seu trabalho acontece. Ao menos foi desta maneira que Pina Bausch

    e seu grupo foram traando seu caminho e mostrando sua arte.

    Porm, de alguma maneira, Pina consegue contemplar a humanidade com

    um sorriso esperanoso, descrevendo o imperceptvel do nosso tempo. Talvez como

    Arnaldo Jabor (2006, p. 12) tenha colocado no Jornal O Sul, no seu comentrio ps-

    espetculo, neste ano de 2006 quando a companhia esteve no Brasil: Pina Bausch

    nos fortalece contra o horror... uma rara mistura de melancolia com esperana. Um

    horror vivido na guerra, mas que ressoa de outras maneiras, na experimentao das

    formas de viver atuais. O seu modo de danar e de criar, ou seja, o efeito Pina

    Bausch, a produo que a coregrafa faz a partir do seu contato com o mundo,

    amplifica certas vivncias do contemporneo, expondo contradies, paradoxos de

    um tempo que germinou pautado pela guerra.

  • 52

    3. Modos de fazer: estratgias de pesquisa

    O que fazemos depende daquilo que somos; mas necessrio acrescentar que somos, em certa medida, aquilo que fazemos, e que nos

    criamos continuamente a ns prprios (Bergson, 1964, p. 46).

    Melanie Maurin dana em gua (2001) Foto de Maarten Vanden Abeele

  • 53

    3.1 Formas Breves8

    Pensar quem somos, onde nos encontramos, como so os espaos que

    ocupamos e compomos atualmente, como estamos neste nosso momento preciso

    ou em que estamos nos tornando so tarefas que, em parte, esta pesquisa se

    ocupa. Levantar estas questes significa aproximar-se do universo que o filsofo-

    historiador Michel Foucault pontuou para pensar as condies nas quais ns,

    viventes do contemporneo, problematizamos o que somos e o que fazemos. Em

    outras palavras, para Foucault (1979), traduzir este processo fazer uma histria

    efetiva ou histria do presente. De acordo com o autor,

    [...] a histria ser efetiva na medida em que ela reintroduz o descontnuo em nosso prprio ser... ela faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de nico e agudo. preciso entender por acontecimento no uma deciso, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relao de foras que se inverte, um poder confiscado, um vocabulrio retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominao que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada mascarada. (Foucault 1979, p. 27/28).

    Conforme Foucault (1984), o papel do intelectual seria exatamente este, de

    fazer um diagnstico do presente, a partir de um ceticismo que nos previna do

    moralismo, que leva a pensar o agora como algo maior ou melhor que o passado. O

    texto do filsofo Immanuel Kant, O que o Iluminismo evidencia, para Foucault, a

    questo do presente e permite aprofundar a reflexo filosfica. Fazendo-se

    questionamentos tais como: o que que se passa hoje?, o que que se passa

    agora?, e o que este agora, no interior do qual estamos uns e outros; e quem

    define o momento em que escrevo?, Foucault constri uma percepo do presente

    8 Formas Breves foi escolhido como subttulo, pois menciona uma obra de dana contempornea da coregrafa Lia Rodrigues. Esta escolha se efetivou em funo deste ttulo fazer conexo com conceitos e idias contidos nesta dissertao que se prope a trabalhar alguns apontamentos esttica do viver no contemporneo.

  • 54

    que densa. Percepo esta carregada e saturada de variados elementos, tantos

    quanto se conseguir dar visibilidade. Sempre com a inteno de poder continuar

    problematizando ainda mais, ao invs de usar esta densidade como um imperativo

    que dita o que se deve fazer na ordem do dia ou para prever o futuro.

    Pensar o presente, mais do que fazer histria, questionar como foi que

    chegamos at aqui e tambm, refletir sobre quais so hoje as condies de prticas

    possveis. Busco Foucault e suas perguntas kantianas como um dos meus

    companheiros de jornada, permitindo-me fazer minhas tambm estas questes que

    pontuo como centrais e propulsoras desta pesquisa. O autor permite fazer um

    diagnstico que auxilia na construo no de um olhar que sobrevoa, que do alto,

    do divino, mas um olhar que tenta se desfazer do que obscurece a atualidade,

    traando um ponto decisivo que enxerga alm do que se v normalmente, fazendo

    aparecer o que est perto, imanente. Fazer pesquisa desta maneira praticar um

    trabalho intelectual onde a tica e a poltica se cruzam o tempo inteiro, permitindo

    uma crtica sobre si mesmo, sobre as nossas prprias questes. Uma anlise que

    no militante ou denuncista, mas positiva no sentido de inventar uma artesania

    que prove as mltiplas alternativas disponveis, possibilitando criar condies de

    fazer diferente, numa tentativa recorrente de se libertar das estruturas e das

    essencialidades. Conforme Gilles Deleuze e Flix Guattari a crtica implica novos

    conceitos (da coisa criticada), tanto quanto a criao mais positiva. Os conceitos

    devem ter contornos irregulares, moldados sobre sua matria viva (1992, p. 108).

    Neste sentido, pesquisar, filosofar e pensar so uma coisa s para estes

    pensadores, pois vo se fazendo numa espcie de operao-artista, tentando com

    que a vida no seja aprisionada na razo que rege o caminho da representao do

    mundo.

  • 55

    Para Deleuze (2005), pensar criar, inventar conceitos, fazer invenes de si

    mesmo e do mundo. Ele evidenciou que Foucault tambm tratou do pensamento nas

    trs fases da sua obra, retomando uma pergunta colocada por Heidegger: o que

    significa pensar? o que se chama pensar?. No percurso foucaultiano, pensar no

    comunicar, mas experimentar, problematizar. O saber, o poder e o si, so a

    tripla raiz de uma problematizao do pensamento (Deleuze, 2005). Tomando o

    saber como problema, pensar ver e falar que so mais que o olho e a linguagem,

    so as visibilidades e as dizibilidades ou os enunciados,

    [...] mas pensar se faz no entremeio, no interstcio ou na disjuno do ver e do falar. , a cada vez, inventar o entrelaamento, lanar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um claro de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visveis. (Deleuze, 2005, p. 124).

    Pensar tambm poder, se tomarmos este como problema, conforme

    Foucault fez na segunda parte da sua obra. Pensar no inato ou adquirido. emitir

    singularidades, lanando os dados para que se d relaes das foras com outras

    foras, ativas e reativas, relaes destas foras com o ser ou objeto num acaso que

    no pr-determine as condies.

    Deleuze ainda coloca que, para Foucault, pensar dobrar, duplicar o fora

    com um dentro que lhe coextensivo (Deleuze, 2005, p. 126). Este espao do lado

    de dentro est em contato com o lado de fora que por sua vez, o prprio

    impensado. Nesta fronteira, nesta zona que se do os processos de subjetivao,

    produo de novas possibilidades de vida, de modos de existncia que, para

    Foucault, vo traando um pensamento-artista que inventa uma tica vinculada com

    a esttica. Nestes movimentos, o pensamento pensa sua prpria histria (passado),

    mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, pensar de outra

    forma (futuro) (Deleuze, 2005, p. 127).

  • 56

    Foucault aponta tambm que, no advento da episteme moderna, o homem se

    problematizou colocando-se como objeto central do conhecimento. Na sua

    arquigenealogia das cincias humanas, ele assinala que Deus foi tirado desta

    centralidade acabando com a idade da representao, onde havia uma relao de

    transparncia entre as palavras e as coisas. Isto deixou de ocorrer e, desta maneira

    no contemporneo, o homem vira a ordem das coisas reivindicando o conhecimento

    total em virtude das suas prprias limitaes, evidenciando o apogeu do

    conhecimento sobre a vida. O homem fez destes obstculos, positividades que, de

    alguma maneira, tentam negar sua finitude, pois esta posio principal tambm

    anunciou sua morte. H, a partir disto, um desinteresse pela forma homem que

    comea a se desintegrar.

    No entanto, ao mesmo tempo, o homem se lana a pensar suas novas

    formas. Conforme Deleuze (2005, p. 140), Nietzsche dizia: o homem aprisionou a

    vida, o super-homem aquele que libera a vida dentro do prprio homem, em

    proveito de uma outra forma... Esta pesquisa tem em seu germe uma tentativa de

    buscar esboar novos compostos de relaes de foras que podem tentar ser

    evidenciados a partir de um diagnstico do presente.

    Quais seriam as foras em jogo, com as quais as foras do homem entrariam ento em relao? No seria mais a elevao ao infinito, nem a finitude, mas um finito-ilimitado, se dermos esse nome a toda situao de fora em que um nmero finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinaes. (Deleuze, 2005, p. 141).

    Portanto, faz-se um esforo aqui para criar estratgias de um pesquisar que

    se quer mltiplo, plural e para evidenciar as condies de possibilidade ou o campo

    de opes possveis, sempre no sentido da vida se expandir.

    No se est pretendendo, portanto, situar esta investigao numa histria

    das mentalidades ou histria das idias, ou seja, num tempo flecha, linear, pois

  • 57

    estas tm um modo comparativo e regressivo de pensar os comportamentos de hoje

    comparando-os com os do passado, desempenhando uma histria das

    representaes que acaba, muitas vezes, fazendo o julgamento moral do tempo que

    evoluiu e das ordens que progrediram. Acaba-se, nestes percursos, pensando o

    presente naturalizado, como se sua construo fosse a nica possvel, justamente

    por que chegamos aqui nesta forma ou desta maneira. Foucault (1979, p. 26), faz

    uma trajetria diferente da histria dos historiadores que constri um ponto de apoio

    fora do tempo; ela pretende tudo julgar segundo uma objetividade apocalptica; mas

    que ela sups uma verdade eterna, uma alma que no morre, uma conscincia

    sempre idntica a si mesma.

    Na ocasio desta anlise, pretende-se fazer uma histria efetiva que opera

    em perspectiva e por isto, no a nica, mas difere registrando sua relatividade e

    multiplicidade. No podemos esquecer de que nada est dado ou natural, mas sim

    construdo por ns, ao mesmo tempo em que nos constri. Muitas vezes, naturaliza-

    se o tempo-histria limitando suas direes possveis e impedindo a reinveno das

    prticas ou das novas formas de viver e de se subjetivar. Desta forma, o futuro j

    est traado no nosso passado, nos deixando fadados ao determinismo dos nossos

    destinos.

    Foucault (1979) compartilha com Nietzsche o verdadeiro sentido histrico que

    seria uma anti-histria, reconhecendo que ns vivemos em mirades de

    acontecimentos perdidos, sem referncias ou sem coordenadas originrias. A

    inteno desta pesquisa aproxima-se disto, tentando escavar, apontar, inventar

    outros espaos-tempos ainda no to determinados, duros e fechados.

    Desburocratizar o amanh (Sousa, 2006) abrindo espao para a utopia como

    necessidade tica de buscar um outro mundo a partir de uma crtica ao presente.

  • 58

    Utopia do inacabado, da reinveno permanente que abre brechas na antecipao

    cruel do tempo que se apodera e controla a vida. Este trabalho vai na linha das

    tentativas de fazer um diagnstico do presente que possa ensaiar e contribuir para

    pensar novas formas possveis ao homem.

    Neste sentido, a perspectiva genealgica do vis foucaultiano de fazer histria

    e de pesquisar os processos de subjetivao, faz uma cartografia das linhas de fuga,

    busca as descontinuidades, faz ressurgir o acontecimento, caa as foras em jogo e,

    portanto, valorizam a multiplicidade, as fissuras do percurso, os tropeos, as

    singularidades. So nestas fendas do existir que nos colocamos para pensar outras

    possibilidades de vida. Aonde a forma homem vai morrendo para poder esboar

    discretamente uma busca de transcendncia em outras formas breves que se

    compem e desmancham com a volatilidade do tempo.

    uma tentativa, portanto, de pensar o tempo. No somente cont-lo,

    comunic-lo numa concepo linear de tradio iluminista que faz progredir o

    evolucionismo, estratificando-o e classificando os acontecimentos para sair do

    primitivo em direo ao desenvolvido. Pretende-se, aqui, pensar como devir e no

    somente como histria.

    Na concepo bergsoniana o futuro s nasce no momento em que vivido.

    O futuro aparece ento como dilatao do presente. No estava portanto contido no presente sob a forma de fim representado. E no obstante, uma vez realizado, explicar o presente, da mesma forma que o presente o explicava, e mesmo mais; dever ser tido tanto e mais como fim do que como resultado. (Bergson, 1964, p. 83/84).

    Tentando fugir da imagem da ampulheta, mas buscando a do novelo de l, do

    emaranhado do tempo intensivo que jorra, que Bergson (1964), nos ajuda a

    perceber que a vida evolui em direes divergentes e no numa linha nica.

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    Aproximando-o da perspectiva genealgica foucaultiana, trata-se ento, de

    buscar problemas que emergem das prprias redes que vo se criando. No se opor

    histria, mas fazer uma meta-histria que resiste pesquisa da origem. Pois, para

    procurar uma origem, necessrio descartar tudo que acidental, tudo que no

    ocorreu, como externo ao aquilo mesmo que aconteceu (Foucault, 1979). Como se

    pudssemos contar uma nica forma de ver as coisas ou os ocorridos, porque

    estaramos falando de uma identidade fechada e acabada que permite desvelar a

    essncia da verdade em busca do paraso perdido da perfeio do incio da criao.

    Diferentemente, intenciona-se fazer aqui, uma historiografia dos

    acontecimentos no grandioso