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    A vida a arte do encontro

    (Vincius de Morais)

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    A pedagogia do abrao

    H muitos, mesmo muitos anos, conheci um professor que me afianou nunca ter

    defrontado problemas de indisciplina. Confidenciou-me que, no primeiro dia de aulas decada ano lectivo, dava toda a corda turma, esperava que a desordem se instalasse e

    que o lder da desordem se revelasse. Ento, parava a romaria e aplicava no mariola

    uma sova monumental, que era remdio santo para todo o ano (sic).

    Recentemente, foi-me concedido o privilgio de reconhecer a distncia que vai da

    violncia disciplinadora desse professor de antanho ternura dos braos de uma Ana

    (Joana de nome prprio, mas esse um segredo que fica entre ns...).

    A Ana viveu, por dentro, o quotidiano de um bairro degradado. Entre outros dramas,conheceu o de uma criana por todos considerada violenta, hspede quase

    permanente de um quarto escuro, onde cumpria longas horas de castigo. Porm,

    nem o negro isolamento domava a juvenil fria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontap,

    dentada, forava a fuga das companheiras, e abreviava o regresso ao quarto escuro.

    Recm-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele crculo vicioso de violncia,

    crime e castigo. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distraco da

    endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braos. A pequena ainda esperneou, mas semconseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de

    recolher punitiva escurido. Tremeu quando a Ana a beijou na face. Correu para novas

    tropelias, logo que a Ana a largou.

    No levou muito tempo a regressar. Ia direita ao quarto escuro, de orelha pendurada,

    quase arrastada pela vigilante que a surpreendera em flagrante delito. De novo, a Ana

    intercedeu por ela. A vigilante largou-a nos seus braos. A pequena j quase no ops

    resistncia. Sentiu o abrao como abrao e recebeu o beijo sem frmito aparente. Mas,

    sem demora, foi procurar mais sarilhos e voltouqual pssaro h muito sem ninhoao

    aconchego dos braos e ao afago dos lbios da paciente Ana. Algumas idas e vindas

    depois, o man do afecto prendeu-a definitivamente. A pedagogia do abrao vencera a

    da punio.

    A vida dos professores est recheada de acontecimentos dignos de narrar e, como no

    h duas sem trs, aqui deixo registo de outra peculiar experincia.

    O primeiro dia de escola comeou num vaivm entre vinte e tal fedelhos a chorar baba e

    ranho e meia dzia de ansiosas e renitentes mes, coladas ao umbral da porta, ora

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    espreitando a descendncia pelos interstcios, ora penetrando para assoar o nariz do

    herdeiro ou dar-lhe um beijo de despedida.

    Respeitosamente, o professor encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido da sada.

    Ao cabo de uma longussima meia hora, logrou encostar a porta: com licena,

    desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois,

    natural, coitaditos, no ? As gotas, pois, no me esquecerei, pois, d-me licena, se

    fazem favor, no custa nada, daqui a pouco j vo ao recreio, sim, minha senhora, no

    me esquecerei, concerteza... Com mo firme e jeitinho conseguiu fazer descolar da

    porta os dedos da ltima mo da ltima me, deitou um olhar quela que seria a sua

    primeira primeira classe e respirou to profundamente quanto a ansiedade lho

    permitia.

    Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaavam retomar o choro.

    Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego. Contou os gaiatos.

    Faltava um.

    - O senhor professor d licena? - e logo algumas das j aquietadas mes

    aproveitaram para ensaiar um retorno e lanar ansiosos olhares sobre a prole,

    que retomava o ritmo do soluar e desembocava numa nova e ruidosa

    choradeira.

    Apercebendo-se de que a frente de batalha no se encontrava l dentro mas fora de

    muros, o professor alterou a estratgia. Saiu da sala, fechou a porta atrs de si e a ela

    resolutamente se encostou, qual Mem Martins ao invs. O que viu fez com que o seu

    semblante no reflectisse tanta amabilidade como h meia hora atrs. Uma suposta me

    debatia-se impotente perante investidas e pontaps do seu rebento, acompanhadas de

    tais imprecaes que fariam corar de vergonha um surdo.

    - O senhor doutor do posto disse-me que ele tem sistema nervoso. O meu marido

    at ouviu no foi, Quim? que a gente no o pode contrariar. Eu aindapensei em lev-lo ao especialista dos nervos, mas tenho l posses! Inda se a

    Caixa me desse um suicdio! J entreguei a papelada h que tempos... e nada!

    - O garoto levado do diabocomentavam, entre dentes, alguns dos presentes.

    Met-lo assim na sala, nem pensar!pensou o professor. Pegou no puto ao colo e, a

    custo, foi com ele at ao alpendre das traseiras.

    Quando se encontrou a ss com o mido, sentou-o na beira do muro e falou-lhe

    baixinho e ao corao. Disse-lhe tudo o que possvel dizer-se para sossegar o espritode uma criana. E o infante presenteou-o com um chorrilho de improprios:

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    - Deixa-me, filho da p...! Deixa-me!

    O professor respirou fundo, contou at vinte, voltou a respirar mais fundo e contou mais

    uma vez. O professor no era dos que acreditava no ditado popular que diz que moo

    que no castigado no ser corteso nem letrado, mas j comeava a desesperar. O

    fedelho esperneava e gritava:

    - Deixa-me, filho da p...! Larga-me!

    A mo do professor foi mais lesta que o pensamento e s parou na face do pequeno.

    Mas foi a mesma mo que a acariciou e enxugou as ltimas lgrimas, enquanto os seus

    braos envolveram a criana num abrao penitente.

    O mido percebeu que a sua performance tinha acabado e que com aquele adulto a

    seus olhos bruto e terno a cena do grito e da canelada no surtia efeito. Por receio de

    novo tabefe ou por razes que a razo desconhece, o pequeno l foi, a par do novo

    mestre, sala adentro, como se nada de especial tivesse sucedido.

    sua passagem, uma me ainda comentou:

    - Este professor que tem jeito para as crianas!

    Equidistante dos outros dois episdios, este confirma o que j dizia um poeta: as mos

    so a guerra e so a paz.

    Juntarei ao texto algumas palavras por detrs das palavras. Se verdade que bater numa

    criana um acto de cobardia, tambm sabemos o que Anton Makarenko escreveu no

    seu Poema Pedaggico. Quem ainda o no leu, no sabe o que perde. Est l tudo.

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    A casa do filho

    H muitos anos, quando ouvia algum referir-se com desdm a uma qualquer escola ou

    a classificar um qualquer professor de lrico ou de luntico (s para referir as maisgentis e eufemsticas classificaes...), eu inquiria, discretamente e sem manifestar

    excessiva curiosidade (para no levantar suspeitas), de que escola ou professor se

    tratava. Recolhida a informao, logo preparava a viagem.

    vido de prodgios, pesquisador de almas inquietas, fui num distante dia de Outubro em

    demanda da professora Lcia e da sua to comentada escola de lugar nico, escondida

    num vale, para alm do Maro. Depois de muitas voltas por estreitas estradas com

    alguns vestgios de alcatro, estava quase decidido a voltar para trs, quando depareicom uma placa indicando a proximidade da aldeia. Segui por um caminho de terra onde

    mal passava um carro. O receio de encontrar alguma viatura em sentido contrrio foi-se

    esvaindo medida que me aproximava da aldeia e talvez por efeito do sossegado

    silncio entre montanhas, pontuado pelo chilrear dos pssaros. Ia to distrado que, no

    desfazer de uma curva, por pouco no fui de encontro a uns cornos fora de mo.

    - Ei! Ei, Bonita! Arreda! gritou uma velhinha, de aguilho em punho,

    empurrando a vaca para o rego de gua que bordejava o caminho.Pedi desculpa pela perturbao gerada e perguntei senhora se conhecia a escola e se

    ainda ficava longe dali.

    - No senhor, meu senhor, mesmo aqui pertinho. No tem nada que enganar. O

    senhor vai por aqui, sempre neste correr. Quando der com a casa do meu filho,

    meta a descer para o lado esquerdo. A escola logo ali beirinha...

    Quando der com a casa do meu filho... Retomei a marcha com o mesmo

    pressentimento de me haver perdido, mas a desconfiana desvaneceu-se ao deparar com

    a casa do filho. Era a nica, ao fundo do caminho. E l estava, efectivamente, a

    azinhaga, do lado esquerdo, envolta numa latada, uma espcie de tnel, ao fundo do

    qual vi a luz. A singela construo do plano dos centenrios iluminava-se com o

    riso das crianas. A glida sala de aula amornava-se com o calor de gestos sbios e

    transbordava de doce ternura. Havia mais pedagogia naquele lugar ermo do que em

    todos os compndios que eu j tinha lido. Em escassas horas, aprendi mais das crianas

    e dos professores do que nos cursos de formao.

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    Compreendi por que razo certos docentes recorriam a uma abundante adjectivao

    lricos, lunticos, utpicos e outros eptetos bem menos lisonjeiros... quando

    se referiam a professores como a minha amiga Lcia, a Georgina, o Lobo, a Anglica e

    muitos outros, que sinto orgulho de ter conhecido e at de contar entre os amigos.

    Alguns j faleceram, outros esto espera que algum os descubra. E eu insisto numa

    busca que no cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razes para

    me manterprofessor. A esses utpicos devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.

    Voltei da escolinha da minha amiga Lcia com mais alento e vontade de no desistir.

    Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar e do quanto teria de

    aperfeioar a minha prtica.

    Voltei minha escola com uma f pedaggica mais fortalecida. Porque, semelhana

    dos magos que se deixaram guiar por uma estrela at uma claridade que rompia as

    trevas de uma gruta ou casebre, eu mantivera a crena de encontrar a casa de um filho

    de uma velhinha, marco de referncia de uma escola que irradiava uma luz perturbadora

    das trevas em que todo um sistema estava imerso. A analogia talvez resulte da

    proximidade da quadra natalcia e do facto de estas fugazes iluminaes se

    assemelharem a estrelas cadentes que, por desistncia ou desaparecimento dos autores,

    se transformam em buracos negros. Trgica sina de um sistema que no merece os

    professores que tem e que permite que os raros focos de orientao se apaguem.

    No h semana em que no receba uma ou outra mensagem de esperana ou de

    desespero de professores que se recusam a deixar de o ser, ou resistem a ser como

    todos os outros. semelhana da Lcia e de outros lricos e utpicos, so

    depreciados, caluniados, perseguidos, ou ignorados e remetidos para uma solido

    compulsiva, em escolas de lugar nico como em escolas habitadas por dezenas de

    professores.

    Quero dar a palavra a uma Liliana, generosa professora de nova gerao, que resiste aosconvites do fcil e do cmodo. Tem a palavra a Liliana: As incertezas, as dvidas e as

    lgrimas ainda me perseguem. Os dias passam de uma forma alucinante e sinto-me

    cada vez mais infeliz. Nalguns dias chego mesmo a duvidar se esta ser a minha

    vocao... Sinto-me to insegura que na escola aparento ser mais uma "professora"

    (daquelas que tanto criticava). s vezes, no sei o que fazer: no quero continuar

    assim, mas tambm no sei como alcanar a escola dos meus sonhos. Mas no se

    preocupe, no serei daquelas professoras que lhe provocam pesadelos. O que me irritaprofundamente saber que no estou a agir da melhor forma ou como gostaria e no

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    conseguir fazer nada para o evitar. Bem, acho que ter conscincia "meio caminho

    andado". Para alcanar o sonho, basta-me ser forte, escutar o meu corao e

    sobretudo o corao dos meus meninos, no ? Obrigada por receber este desabafo.

    Espero que o prximo seja mais sorridente!

    Tem a palavra um Carlos que se espanta e alegra com o milagre da poesia a todo o

    instante: Estou vaidoso. Aqui vai um texto de uma criana sobre o que ser criana.

    por isso que vale a pena esta arte de educar. Para todos os dias sermos surpreendidos.

    E pensar que posso ter contribudo, nem que seja um pouco, para este poema...

    Tem a palavra ainda uma das muitas Lilianas cuja incerteza justifica estes meus

    exerccios de escrita penitencial: Sei que uma pessoa ocupada. Apenas lhe escrevo

    como desabafo, tal como escreve as suas histrias. No sei se, quando me conheceu,

    achou que eu seria uma boa dadora de aulas ou uma aspirante a professora. A verdade

    que cada palavra das suas histrias me faz chorar. No consigo fazer as minhas

    crianas felizes, no estou feliz com a professora que sou e no sei o que fazer.

    Professor, a realidade aqui to feia. O ano mal comeou e j me sinto "sufocada".

    Mas, graas s suas histrias, e juntamente com as lgrimas, surge a esperana e a

    vontade de fazer e ser melhor.

    Suspendo as citaes para concluir num registo que mais um solstcio de Inverno me

    inspira. Para redeno do sistema, no se pense que o caminho para a Salvao da

    Escola est feito, se o processo de converso em cada professor no se realiza. Neste

    Natal, considerai que no ser fcil a um professor alcanar a casa do Pai se, pelos

    caminhos ou descaminhos do exerccio da profisso, o professor no cuidar de procurar

    a casa do Filho...

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    A camioneta da Esperana

    Os professores so como os meles. S os conhecendo por dentro se pode avaliar da sua

    qualidade. Quando nos deixamos conduzir pela aparncia, a surpresa pode ser bemdesagradvel. Quebrado o verniz da casca, uns revelam-se maduros, outros verdes,

    outros podres... Estava cogitando sobre a matria, quando a Esperana me telefonou.

    A Esperana educadora. Faz um belo par com outro educador (ledos infantes que a

    quem tais educadores cabe em sorte!). Como no por acaso que h acasos, as palavras

    da Esperana chegaram no momento exacto de dever esquecer criaturas que, de to

    amargas, no deveriam usar o nome professor. A palavra professor s se ajusta na

    perfeio Esperana e a muitos outros que honram a sua nobre profisso e nelaexercitam a solidariedade. Felizmente para as crianas e para os apreciadores de meles,

    abundam frutos doces e maduros.

    So educadores como a Esperana e o Paulo que do sentido ao provrbio africano que

    nos diz ser preciso uma aldeia inteira para educar uma criana. So co-autores de uma

    reforma marginal, silenciosa, que vai acontecendo um pouco por toda a parte. Avessa s

    modas, imperceptvel, pressinto-a nas nossas escolas, prdigas em profissionais que

    antecipam o tempo profetizado por Tolstoi, h mais de um sculo: a Escola deixar deser talvez tal como ns a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: ser talvez

    um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa.

    medida que se aproxima o termo da minha carreira de professor, sinto-me irmanado

    com os que recusam aprender a geografia dos comboios para viver na era dos avies e

    aceitam o desafio de repensar a Escola, tarefa sempre colectiva. Sinto-me nfima parte

    de uma fraternidade de romnticos e conspiradores, co-autores de uma reforma que se

    cumpre revelia da bricolage normativa e das reformas desenhadas porengenheiros.

    A pedra de toque da suave mutao a solidariedade. A evocao da histria do molho

    de varas viria a propsito, mas escolhi uma outra metfora para enfeitar o conceito: a da

    camioneta.

    O meu amigo Ablio ajudava a organizar excurses de camioneta. Ainda o dia da

    excurso vinha longe e j um vizinho lhe batia porta, a pedir para pr a sogra junto

    cadeira do motorista, porque ela lhe dissera que, se no fosse beira do motorista, era

    melhor ficar em casa. E no queira saber os problemas que eu tenho tido coa minha

    sogra! Se ela me ficasse em casa, era mais uma carga de trabalhos coa minha patroa.

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    E o compadre Ablio que me desculpe, mas eu at sei que j fez a vontade a mais

    algum, que mo disse inda agora....

    O amigo Ablio cortava a fala ao requerente e prometia o almejado lugar. Porm, no

    tardava nova fala precatria.

    senhor Gravano, ainda bem que o encontro! O meu cunhado, o Neca... No me diga

    que no conhece! Ele pediu-me que lhe pedisse para o filho mais novo ir nos lugares da

    frente, que o catraio enjoa. Nestas ocasies, um pisco a comer e o pouco que engole

    deita-o fora logo ao chegar a primeira curva. No me diga que no! Pela sua rica

    sade!

    Despachado mais um requerente com promessas de ir ver o que se podia fazer, logo

    outro pedido o aguardava chegada ao caf.

    Deixe estar, que por minha conta!e o generoso pagante do caf com cheirinho

    despedia-se com peremptria sentena: Eu sei que posso ir sossegado minha vida,

    que o amigo Gravano no homem para me deixar ficar mal. A minha famlia vai ir

    frente, que os amigos so para as ocasies, no ? Fique sabendo que um grande

    favor que o amigo me faz e vai ver no se h-de arrepender...

    O Ablio Gravano perdia tempo e pacincia neste jogo de empenhos. E logo ele, que era

    pessoa de se perder dos carretos com facilidade! Grandes males, grandes remdios...

    E digo-lhe, professor, os que ajudei a passar a salto para Frana, coitados, gastavam

    o que no tinham e no eram to esquisitos! De maneiras que, um dia, juntei o povo

    todo na Tojela e, antes de dar ordem de partida ao motorista, fui ao micro e disse, alto

    e em bom som:para a prxima, meus amigos, escusam de me andar a pedir para ir no

    banco da frente, porque a camioneta vai de lado!

    Se h quem continue a impedir que a camioneta do nosso destino comum v de lado, se

    h quem tente conduzir os passageiros em marcha-atrs e por labirnticos caminhos, h

    tambm viajantes tranquilos (como a Esperana) que rasgam amplas avenidas desolidariedade. Na camioneta da Esperana, desde o condutor cozinha, todos vo na

    frente. E, enquanto a mudana se queda por discretos e sinuosos percursos, contornam

    (juntos!) a angstia dos indcios.

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    ET

    Eu tenho um amigo que vende livros de porta em porta. Vai de porta em porta, metendo

    conversa com eventuais compradores. um homem culto com quem aprendo da

    sabedoria que no vem nos livros. Quando me visita, eu paro tudo o que estiver a fazer.E enceto longas conversas sem assunto agendado, mas que nos conduzem sempre a

    inesperadas reflexes. Ontem, falou-me da escola dos filhos e da escola que foi sua:

    - Antigamente, era muita matria a que a gente era obrigada a aprender. Mas, vai -se

    a ver, pouco ficou. Fazamos muitas cpias, mas hoje metemos muita gua a escrever.

    Enquanto o escutava, recordava um episdio recente. Tinha minha frente cerca de uma

    centena de jovens entre os vinte e os trinta anos. Discutamos as virtudes e os defeitos

    da escola de antigamente, num ambiente de incmoda letargia. Para os espicaar,exagerei algumas posies crticas. E, talvez por ser apangio da juventude contrariar os

    adultos, um dos jovens empertigou-se e assumiu a defesa do chamado ensino

    tradicional (a seguir abreviado para ET):

    - professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu andei no ET e sa de l

    muito bempreparado!

    - Ainda bem.respondi, atenuando a irritao do meu jovem aluno.

    Ele insistiu, realando as qualidades do ET, nomeadamente,a preparao que davana Matemtica e na Lngua Portuguesa (sic).

    Eu contrapus, chamando a ateno para as concluses de estudos internacionais nesses

    domnios, que nos colocam na cauda da Europa (como, alis, costume), contrariando

    os hipotticos mritos do ET. E acrescentei:

    - Permitis que vos coloque algumas perguntas?

    - Faa o favor!disseram alguns num tom desafiador.

    Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questes muito simples, uma relacionada com a

    Matemtica, outra com o Portugus. Os jovens entupiram. Alguns ainda balbuciaram

    algo ininteligvel, depois fez-se um silncio de embarao.

    Eu rematei a discusso com crueldade. Recorri a uma pergunta matreira qual nunca

    ningum, at esta data, me soube responder:

    - Quem descobriu os Aores?

    Se nas reas nobres j estvamos conversados, a incurso na Histria de Portugal

    acabou com a resistncia daqueles jovens to combativos. Todos tinham decorado o

    sistema galaico-duriense, todos tinham decorado o a ante, aps, at, todos se

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    gabavam de saber na ponta da lngua as datas das descobertas martimas portuguesas e

    os nomes dos audazes achadores. Tudo se lhes tinha varrido, semelhana do que

    decoravam para os exames que preencheram o seu itinerrio escolar at universidade.

    Tudo tinham vomitado (sic) nos testes e frequncias da saga universitria e depois

    esquecido, para arranjar espao para o que no cabia nos copianos (sic).

    Magnnimo (como convinha circunstncia), eu l fui dizendo que nem tudo se deve

    rejeitar no ET, que falsa a dicotomia entre moderno e antigo, inovao e tradio.

    Afirmei-lhes ter testemunhado inovaes no antigamente, ilustrando a afirmao.

    Nos primrdios da dcada de setenta e nos vigiados e estreitos corredores de liberdade

    de uma escola sujeita aos ditames do Estado Novo, um professor desafiou-me para a

    aventura de um conhecimento que nos era sistematicamente ocultado. Incitou-nos a

    conduzir os nossos destinos:

    - O que quereis fazer? O que quereis aprender?perguntou logo no primeiro dia de

    aulas. E ns ficmos perplexos, receosos de uma eventual armadilha espoletada no

    discurso. Rapidamente se desvaneceu a desconfiana, e partimos na aventura de

    descobrir. No meu percurso de estudante, nunca mais ouviria da boca de um professor

    esses estimulantes desafios. Mas as palavras e os gestos desse professor ficaram a

    levedar no mais profundo do subconsciente, espera do momento propcio para se

    transmudarem em actos.

    Uma frase proferida pelo meu amigo que vende livros confirmou o que o episdio

    vivido com os jovens me havia ensinado. Mas a humildade digna e sbia das suas

    palavras contrastavam com a arrogncia de certos detentores de canudos:

    - Por exemplo, estudei a Histria todinha, de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa. A

    gente tem de ser humilde e aceitar que as coisas eram mesmo assim. Mas deixa-me

    pena! Sabe, ns ramos dez irmos e nenhum foi capaz de se agarrar aos livros. Eu

    ainda andei a estudar de noite, mas no cheguei a lado nenhum. Ningum nos dizia quepodia ser diferente e a gente no adivinhava.

    O meu amigo que vende livros de porta em porta tem algo que o distingue de muitos

    compradores: esse meu amigo l os livros que vende. E, porque l, vai preenchendo

    lacunas herdadas do ET. O meu amigo uma pessoa culta, apesar de ter perdido

    tempo numa escola de ET. Mas, se no domnio da acumulao de conhecimentos, o

    ET falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? Quem se d

    conta da falncia do ET (tambm) nestes domnios?

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    Diro alguns que a tradio j no o que era antes de Barrancos Porm, o

    tradicional alheamento da escola relativamente educao dos afectos, o tradicional

    ostracismo a que votado o desenvolvimento scio-moral dos jovens, contribuem para

    reforar a ideia de que teremos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vcios

    privados e pblicas virtudes.

    Vede o escndalo da pedofilia e o escndalo de uma comunicao social vida de

    escndalos, que macula uma informao que denuncia com exerccios de um

    voyeurismo sensacionalista e mrbido. No vemos os herdeiros do ET a consumir

    programas imbecis que uma televiso medida do gosto mdio lhes impinge? No

    vemos os herdeiros do ET incapazes de decifrar a mensagem contida na posologia de

    um medicamento ou num edital? No os vemos privados de entendimento de

    mensagens estticas que fazem os humanos mais humanos? No os vemos ao volante,

    obscenos e estultos, a ultrapassar-nos numa curva, ou chicos espertos, a ultrapassar-

    nos nas filas de espera. No os vemos a empurrar o crude para as costas dos vizinhos,

    alheios s consequncias do gesto, esquecendo a necessidade de novos cdigos morais e

    jurdicos, escamoteando a necessidade do respeito por todas as formas de vida e pelo

    patrimnio comum?

    Uma das caractersticas do ET a insistncia numa mera transmisso de contedos

    desligada da compreenso e integrao dos saberes. E o fenmeno da acumulao

    cognitiva atinge o seu clmax em exerccios de erudio balofa. Muitas publicaes

    recentes no avanam sequer uma proposta original, so alinhavos de citaes. Muitos

    cursos de formao so repositrios de citaes de citaes.

    Se j vamos na gerao dos que se citam uns aos outros, isto , dos que citam aqueles

    que citaram aquilo que outros escreveram, ho-de suceder-lhes os que faro citaes de

    citaes de citaes de citaes... H at quem no tenha conseguido alterar o ET, h

    quem se tenha furtado s agruras do quotidiano das escolas de ET, e agora venhaensinar aos prticos as prticas alternativas que no conseguiram pr em prtica.

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    O Bino Bouas

    Foi considerado aluno incapaz de se adaptar escola. O relatrio avisava: um

    aluno que apresenta dificuldades de controlo dos impulsos agressivos e manifesta omaior desinteresse pelas aprendizagens escolares, para alm de uma j evidente

    tendncia para a aproximao ao lcool.

    Pudera! O Bino fizera o tirocnio com a av. E afianava-me, muito tempo depois, que

    aquilo nem era vinho, era uma zurrapa, porque a av Zefa j tinha uma grande conta

    de assentar na mercearia, e na tasca j nem a podiam ver e muito menos lho vendiam.

    Relutante s aprendizagens escolares, o Bino aprendeu a vida na busca de

    mantimento, que a reforma da av no chegava sequer para a pinga. Especializara-seem assaltos a hortas e pomares. Aos quatro anos, era hbil na fisgada certeira e na

    ferradela pronta no brao do hortelo que o surpreendesse em flagrante.

    O Bino no conheceu pai nem me. Consumada a pario, a progenitora abalou para

    Frana, no rasto do presumvel pai. Nunca mais deu notcia. Uma av o acolheu num

    tugrio de cho de terra batida.

    O Bino cresceu entre maus-tratos e fomes de dias. Ao fim da tarde, engolia uma malga

    de sopas de cavalo cansado, enquanto aguardava a chegada da av. Vinha,invariavelmente, embriagada e de tero na mo. Avistando-a, o Bino descalava as

    botas de surrobeco herdadas do falecido av e atirava-se para debaixo das mantas.

    Ao cabo do primeiro mistrio, a av j cabeceava, arrastava a voz na ave-maria e

    acabava por sucumbir aos alcolicos eflvios, adormecendo encostada ao seu ombro. O

    Bino deixava-se anestesiar pela respirao da velha e afundava-se num suave torpor at

    de madrugada.

    A pequena leira em redor do casebre era pedregosa. Quase nem ervas cresciam, muito

    menos coisa semeada. De modo que o sustento e o aquecimento centraldo Bino, da av

    Zefa e do Malhado eram as ovelhas do pequeno rebanho que com eles coabitava.

    Sabemos que o brincar e o jogar so caractersticos de um tempo de expanso do

    conhecimento de si mesmo, do mundo e dos sistemas de comunicao. E que a infncia

    acaba quando algum reconhece que a sua vida deixou de ser um jogo maravilhoso, ou

    quando algum probe outro algum de brincar. O Bino soube-o quando a av Zefa o

    fez levantar da cama, numa frgida madrugada, aos quatro anos mal feitos.

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    -Hoje, s tu quem leva as mequinhas ao monte, que eu no me tenho de p. Deixa-te

    levar pelo Malhado, que l chegas.

    E chegou. Pelo meio da tarde, o co guiou o pequeno rebanho no regresso a casa, com o

    Bino a reboque, esfomeado e com os ps descalos fustigados pelos cardos. Nunca mais

    ficaria no aconchego das mantas para alm do nascer do sol, e o Malhado viria a ser seu

    mestre e nica companhia at aos sete anos de idade.

    Um dia, uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada (palavras que o Bino

    me ditou) espreitou para dentro daquele tugrio partilhado por animais e gente, e

    perguntou se a av se chamava Josefa da Conceio. Disse vir da parte das autoridades

    e que as autoridades tinham mandado uma carta av do neto que a escola reclamava.

    A av retorquiu que no senhor, que no tinha recebido carta coisa nenhuma e que,

    ainda que tal cousa lhe chegasse, nenhuma serventia teria por das letras nada saber.

    De nada valeu a ladainha av que das letras nada sabia. O nico proveito que a av

    Zefa obteve da senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada foi uma magra

    penso de sobrevivncia, to magra que mal dava para encomendar meia dzia de

    garrafes. Sem pastor, o que restava do rebanho foi arrematado pelo Lus Vendeiro. O

    Malhado foi servir outros senhores e o Bino transformou-se num degredado de fundo de

    sala. No dizer da mestra, o moo era coisa ruim e insubmissa e nem com porrada l ia.

    Entremeava sesses de palmatoada com fugas para o monte e para junto do Malhado,

    fugas invariavelmente interrompidas pelas frequentes visitas da senhora bem

    cheirosa.

    O Bino acabou por ser internado numa instituio da cidade. E, se a guarda conseguia

    surpreend-lo nos montes que ele to bem conhecia, mais facilmente os agentes da

    autoridade o capturavam na cidade em que se perdia em tantos lugares de se ocultar.

    Com dez anos feitos, foi transferido para uma escola de ltima oportunidade.

    semelhana de muitos outros casos de insucesso que a essa escola aportaram, o BinoBouas vinha recomendado por psiclogos e acompanhado por um grosso relatrio de

    pedopsiquiatria.

    Apesar dos dez anos feitos, o Bino aparentava no ter mais de seis ou sete. Marcado

    pelo raquitismo, baixo, franzino, atarracado, parecendo no ter pescoo (como diziam

    alguns dos seus companheiros), juntou-se aos pequenos que vinham escola pela

    primeira vez. Caminhava bamboleando-se, olhando de soslaio para tudo e para todos. A

    certa altura, um professor pensou que aquele mido de aparncia frgil estava em

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    apertos e procura de uma casa de banho. Aproximou-se e, com extrema delicadeza,

    inquiriu:

    - Precisas de alguma coisa?

    A resposta, numa voz grossa e zangada, deixou o professor estupefacto:

    - chefe, onde que se mija?

    Nos primeiros dias passados naquele novo e estranho mundo de aprender, ainda que o

    no soubesse, o Bino enfatizava o sentido ldico da escola o termo schola tem o

    significado etimolgico de cio... embora fosse notado na hora do recreio pelo

    exagero na distribuio de pontaps e cuspo.

    O seu reportrio de insultos era vasto. O improprio aplicado a preceito, na ponta da

    lngua e da caneta, era uma das suas competncias mais notadas, ainda que no

    constasse do currculo formal. Mas essa competncia foi abalada numa assembleia em

    que se provou que os palavres usados pelo Bino no constavam do dicionrio. E, se

    no constavam, no existiam, pelo que a Assembleia deliberou que o Bino teria de

    repensar o seu discurso e refazer o repertrio. O Bino esmerou-se. Passou por um

    processo de profunda reelaborao cultural e amide recorria sinonmia, para gudio

    dos companheiros e satisfao dos professores.

    Para que se perceba o trajecto de reparao dos danos por que o Bino passou naquela

    escola, transcrevo, a ttulo de exemplo e entre muitos que poderia citar, um depoimento

    deixado pelo Bino Bouas na folha afixada no mural do Acho Mal: Eu acho mal que

    os meninos vo casa de banho defecar, que faam as necessidades e depois deixem a

    sanita toda cagada.

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    O elo mais fraco

    No vale a pena fingir que no se v, tamanha a visibilidade que o debate sobre os

    rankings de escolas atingiu e quo confrangedora a leviandade com que o assunto vem

    sendo tratado.

    Santos Silva, Joaquim Azevedo e outras raras vozes lcidas so excepes regra. J

    disseram o essencial, mas no tero eco significativo nesta lia que promete manter-se

    no nvel da indigncia. O mais provvel que se continue a confundir argumentos com

    especulaes e, assim sendo, todos ralhem e ningum tenha razo. semelhana do que

    aconteceu na recente contenda entre a Espanha e Marrocos, a razo no ser exclusivo

    de uma das partes. Ou, se quisermos, razo ter a pastora que viu mergulhar de susto

    nas guas do mediterrneo quatro das suas cabrinhas, inocentes criaturas que tanto lhe

    ter custado cuidar...

    A pastora que reivindica indemnizao pela perda dos pobres animais assemelha-se a

    um compadre que eu conheo. Mora na minha rua e tem-me pedido que coloque a

    pontuao numas cartas que escreve a um seu compadre emigrado na Alemanha. Bateu-

    me porta, recentemente, com um envelope na mo, em demanda da correco. Isto

    acontece desde o dia em que um idiota com canudoou pessoa de vistas curtas,

    apesar de se dizer um setr, conforme as designou o compadre maldosamente

    criticou a escrita sem pontuao adoptada pelo compadre.

    Analisando o contedo da carta, verifiquei que o compadre no se queda pela leitura da

    Bola ou pelo xtase do folhear da Nova Gente. O compadre est atento aos telejornais.

    E no tive coragem para macular a carta com alteraes conformes arte de bem

    pontuar. Se a estas e a outras liberdades se entregam galardoados com o Nobel da

    Literatura, por que no se permite que o compadre d largas inovao? E o Habermasque me perdoe mas o estilo adoptado pelo compadre at consegue imprimir um cunho

    ps-moderno ao texto. No pressuposto de que o compadre tambm me perdoar a

    inconfidncia, aqui vos deixo alguns excertos.

    (...) Porque at lhe tinham dito que a escola onde meteu o moo no ano passado era

    das melhores e que neste ano aparece no fundo da tabela e at uma senhora que parece

    que doutora escreveu nos jornais que o sistema no presta e veja l compadre se ela

    mesmo doutora como diz e no tem confiana como que a gente a h-de ter inda pramais est aflita de os catraios no poderem ir para as universidades da europa onde o

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    compadre mora que ela at falou na Heidelberga acho que assim que se escreve que

    a pertinho e por aqui eu j nem sei se deva pr o meu ganapo na universidade dos

    pobres e remediados onde ainda me fica um gandulo ou se o meta numa particular que

    me vai custar os olhos da cara mas onde como disse a doutora mesmo os que so uma

    ndoa saem doutores (...) como uma desgraa nunca vem s o compadre neca ficou de

    cama j vai para uma semana por via de uma discusso com o toino beato que um

    vizinho temente a deus e respeitador das autoridades mas tambm um venenoso que

    j quando o catraio andava no ciclo e tirava mais quatros que o filho do neca entesava-

    se e atirava que as escolas no tinham culpa da estupidez dos filhos dos necas olhe

    compadre foi uma discusso do caraas e o neca at atirou com a do filho do toino que

    quando veio embora do seminrio j trazia vantagem como o benfica nos ranquingues

    dos futebis e que houve escolas que disseram que foram prejudicadas pelos alunos da

    consulta externa que foram esses externos que as puseram nos ltimos lugares e a gente

    ainda vai ir ver os ranquingues dos hospitais que curam mais doentes e dos lares da

    terceira idade que matam menos velhinhos e por a adiante que a gente no pode ficar

    ignorante toda a vida que eu sei que o meu ganapo me vai acabar este ano os estudos

    e pai tu nem penses que eu c precisava de mais de vinte valores e os dezanoves viste-

    os e os senhores do ministrio pensam que a gente somos todos uns analfabetos e agora

    esto sempre a malhar nuns senhores das cincias de educao ou l o que que dizem

    que os exames no servem para nada e um vizinho o zeca bife disse que verdade que

    meteu uma coisa que se chama recurso e vai-se a ver o catraio do vizinho passou de 14

    para 20 (...) de modos que a gente andamos cada vez mais baralhados e tambm veio

    um senhor doutor explicar que as notas era conforme os pobrezinhos de cada concelho

    e coisa e tal e a gente ficou a perceber o mesmo (...) vossemec nem sabe a sorte que

    teve de ir ganhar a vida nas alemanhas que eu s digo asneiras a ver o telejornal na

    televiso e a minha patroa at me disse que eu devia ter mais tento na lngua e que eunum tinha a inducao que devia ter mas eu dei-lhe a inducao que ela j nem cheirou

    a novela nem o resto daquele concurso do elo mais fraco e ela que uma vingativa at

    me virou as costas na cama mas at nem me importo que isto da desobriga como os

    ranquingues que a gente quando novo comea nos topes da qualidade do servio

    prestado e vai-se a ver no tarda j a gente est a apontar para o prego e a dar com o

    martelo no dedo mindinho mas por falar no concurso eu at dei por mim a pensar que

    os ranquingues at que poderiam servir para alguma coisa pois o que que a gente h-de fazer se h escolas que num ano esto em cima e no outro esto em baixo e eu acho

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    que o melhor o senhor ministro fazer como aquela senhora do concurso e fechar as

    escolas que so o elo mais fraco e mandar os alunos para as escolas que esto no

    ciminho da listas e eles ficavam logo espertos e os ranquingues assim j serviam para

    alguma coisa e o ministrio era assim a modos que um extintor porque se j mandou

    extinguir outras coisas (...) e por aqui me fico querido compadre que a clarinda j

    ressona e eu no quero estragar uma noite de sossego (...).

    Vox populi... Se nos abstrairmos do seu peculiar estilo, o compadre consegue ser bem

    mais coerente e explcito do que certos autores de editoriais. Piaget escreveu que as

    cincias sociais tm "o triste privilgio de tratar de matrias em que todos se julgam

    competentes". O nosso tempo no propcio reflexo fecunda, a discusso do

    essencial preterida e assistimos exibio do fcil acessrio. Os jornais so

    enxameados de tolices subscritas por polticos que se atrevem a discorrer sobre

    Educao ou por um ou outro jornalista com aspiraes a opinion maker.

    Com rankings ou sem rankings, a avaliao das escolas no pode continuar a ser um

    entretenimento de jornalistas ignorantes dos mais elementares saberes das cincias da

    educao cincias apenas ocultas para aqueles que, boal e impunemente, as

    criticam, ou nelas se aventuram como cegos num labirinto. De nada adianta querer

    transformar as cincias da educao em bode expiatrio dos males que afectam o

    sistema, porque, na realidade, essas cincias apenas ornamentam decretos e ainda no

    entraram nas escolas.

    Poder-se- dizer deste texto o mesmo que dos restantes: pouco ou nada acrescenta.

    Porque a sua modesta inteno a de propor que se vire o disco e no seja escutada a

    mesma msica. Talvez, num destes dias, algum descubra que as preocupaes com os

    rankings so migalhas, se comparadas aos problemas que, a montante do sistema,

    condicionam as notas dos exames de 12 ano. Eu no consigo entender por que razo se

    perde tanto tempo com inteis exerccios de anlise de resultados escolares dosfinalistas do secundrio aspirantes a um lugar na Universidade, quando somos postos

    perante o drama da maioria dos alunos das nossas escolas, com o drama dos que nunca

    chegaro Universidade, dos que no completam o secundrio, dos que no acedem ao

    secundrio, dos que entram desqualificados e sem um diploma no mercado de

    trabalho... porque nem sequer completaram a escolaridade bsica de nove anos.

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    Pecar por omisso

    H alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma utopia que, em equipa, vou

    ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbao que eu semeava por tudo

    o que era colquio ou congresso, lanou-me um desafio:

    - Porque no vais desassossegar espritos para uma instituio de formao

    inicial de professores?

    Eu, que sempre me dei mal com mudanas de ares e que nutro (ao que diz o meu amigo

    Lus) alguma reserva relativamente academia, acabei por aceder ao repto. Confesso t-

    lo feito por curiosidade, apenas experincia e desconfiado de que no iria manter-

    me por l por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas

    minha irremedivel tendncia de (fraternalmente) provocar.

    A primeira surpresa foi verificar que a tese do Vicente se aplica a todas as geraes.

    Aquelas que por mim passaram nos ltimos anos no so mais rascas que a minha

    gerao o foi. Havia de tudo...

    Aquelas jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de

    docncia no deixam durar muito, aderiam entusiasticamente ideia de o Freinet, o

    Dewey, o Rogers, ou Freire, no serem apenas matria a empinar para os exames ou

    mmias dissecadas em dissertaes.

    Prudente perante o seu entusiasmo, j s lhes pedia que, s primeiras contrariedades no

    exerccio da profisso, no transformassem o idealismo em pragmatismo e o

    pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a

    refugiar-se no dar aulas e manter a disciplina, mudassem logo de profisso. S desse

    modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianas e jovens que lhes coubessem

    em sorte educar.Em sucessivas fornadas, concludo o curso, l foram em busca do projecto do seu

    sonho. Foram muitos os chamados e escassos os escolhidos. Dos que se perderam em

    opes fceis no rezar a histria, nem eu... Somente lamento o tempo perdido e desejo

    que, um qualquer dia, venham a encontrar-se. Aqueles a quem os acasos da vida

    conferiram coerncia defrontaram obstculos e reveses, que as escolas no so bem

    aquilo que vem nos livros.

    Passei a receber telefonemas, cartas e, desde h algum tempo, mensagens em correioelectrnico. Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como

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    professores, outras que eram restos de uma esperana dissolvida no cido da vida real,

    outras ainda pediam conselho, davam notcia de sucessos e insucessos.

    O X um dos muitos jovens que se disps a deixar-se interrogar e que tambm teve

    acesso utopia e a viveu por dentro dias a fio. um dos meus ex -alunos que, mais

    assiduamente, d a conhecer as suas primeiras experincias como professor. Em finais

    do sculo passado, o X escreveu:

    Pois , tudo tem uma razo de ser e mesmo a minha demora em responder tem

    razo de ser. As coisas aqui esto muito piores (...) infelizmente, continua-se a

    enfardar forte e feio nos midos. A V... - uma colega nossa que est a dar apoio -

    tem que olhar vrias vezes para o lado porque dentro das salas onde d apoio os

    profes batem nos midos. Temos que continuar um bocado discretos para no

    termos problemas no final do ano.

    Toda a gente muito simptica mas s consegue ver um tipo de trabalho frente

    dos olhos: aquele que d pouco trabalho (pensam eles). Logo no incio do ano

    pude verificar algumas coisas que me deixaram muito desagradado. Os midos

    sentam-se todos virados para a frente em carteiras individuais e comea-se o ano

    com trs semanas de grafismos. No interessa se existem midos repetentes

    dentro da sala de aula. Sugeri que se fizesse trabalho diferenciado e a resposta

    foi: Nem pensenuma coisa dessas. Faa o mesmo trabalho com todos.

    Falo em criar um associao de pais: Nem pense nisso! Na escola do M... deu

    muito mau resultado. Fazemos uma reunio com eles no incio do ano, faz-se duas

    ou trs festinhas e chega..

    Falo em marcar reunies com os pais todos os meses em que no preciso mais

    ningum estar presente: No d muito jeito porque a Dona F... que fica com a

    chave... entre outras desculpas.

    Outra que tambm muita boa logo em Setembro dizerem: L para o Natalcoloca os alunos que precisam de apoio numa lista (...) porque assim depois tem

    desculpa para os chumbar no final do ano.

    (...) o que custa mais mesmo o trabalho de sala de aula onde nada se pode fazer

    de diferente (...) o que fazer ento? Tendo em conta que todos os princpio

    pedaggicos que adquiri ao longo destes ltimos anos contrariam frontalmente

    tudo aquilo que era obrigado a fazer, decidi vir embora.

    Ter a lucidez para dar conta e vir-me embora, lembra-se? O nimo com que iapara as aulas era muito pouco e penso sinceramente que para trabalhar deste

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    modo existem muitas pessoas com mais vontade e facilidade do que eu para lidar

    com esta situao. Sei que se calhar optei pela soluo mais simples e que se

    calhar deveria ter lutado mais. Ainda tentei levantar os assuntos de vrias formas

    mas o resultado foi sempre o mesmo.(...) Por outro lado, o que se ganha to

    pouco que se torna relativamente fcil conseguir o mesmo rendimento de outras

    fontes.

    Quando falou comigo j eu tinha tomado a deciso e por isso que fiquei meio

    engasgado (...)

    E a carta continua no mesmo tom. Foi o X que veio embora, foi o X que teve de

    desistir, quem optou pela soluo mais simples. Quando a mediocridade se sobrepe

    generosidade, a indignao coisa pouca. Sinto um intenso desejo de vingana.

    Sempre que me confronto com a amargura da desistncia, do insucesso de um ex-aluno,

    sinto-me o mais miservel dos professores. O insucesso de um jovem e de um professor

    jovem algo que me custa a digerir. Tanto mais que me assalta algum sentimento de

    culpa. Contribu para a tragdia. No fiz tudo o que devia. Falhei.

    Por este e por outros bons motivos venho defendendo ser inadivel criar condies para

    que aqueles que buscam fazer uma escola diferente, mais fraterna, mais digna, a

    possam concretizar. Alguma coisa ter de mudar nas escolas, para que ningum por

    ignorncia, preguia, ou acomodao, ouse no querer e possa impedir os que

    querem.

    Quantos mais verdadeiros professores tero de desistir? Quantos mais verdadeiros

    projectos sero liquidados com a chegada escola de um professor no sensibilizado

    para o trabalho cooperativo?

    Os professores envolvidos em projectos (que no sejam apenas de papel) no procuram

    a obteno de privilgios. Bem pelo contrrio: para viabilizarem a formao de equipas

    de projecto, muitos que conheo fizeram opes de vida que acarretaram prejuzos paraa sua vida pessoal e profissional. Poderei prov-lo. Muitos outros, por via de uma

    legislao obsoleta viram ser-lhe negado o direito a participar (como diria o saudoso

    Paulo Freire) nos projectos dos seus sonhos, e j se aposentaram. Viram a burocracia (e,

    por vezes, as leis) aliar-se aos que no querem... e tm o direito de no querer

    procurar e cumprir o melhor para os seus alunos.

    Em muitos casos, o carcter vitalcio das colocaes agiu como bice mudana, por

    permitir a certos professores vitalcios a recusa da cooperao com os que buscavamnovos e melhores caminhos para os descaminhos da Educao. Vi o trabalho de equipas

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    de professores construdo ao longo de muitos anos ser destrudo em escassos dias por

    outros que, por no estarem atentos necessidade de re-elaborao da sua cultura

    pessoal e profissional, se mantinham cativos de uma cultura de funcionrio pblico.

    As posies assumidas perante decises de poltica educativa iro no sentido de uma

    nova cultura profissional?Na prtica e em contradio com o discurso, rejeitar-se- a

    ideia de que as escolas podero constituir-se em espaos colectivos de criao de novas

    realidades? Presumir-se- que, por fora de atavismos e vcios, todas as escolas devem

    ser iguais face da lei? Ainda ningum percebeu onde nos conduziu essa pretensa

    igualdade? No ter sido essa igualdade plasmada num sistema de colocaes

    pretensamente cego e justo responsvel por muitos dos defeitos apontados ao

    sistema?

    Urge instituir outras vias de concurso e colocao, uma das quais permita que a seleco

    dos candidatos seja feita em funo da sua adeso a um projecto. E a estabilidade

    requerida por verdadeiros projectos poderia ser garantida pelo carcter plurianual

    (talvez por um perodo de trs ou quatro anos) das colocaes e por uma efectiva

    avaliao de desempenho dos professores (que, at prova em contrrio, considero ser

    ainda virtual...).

    A reviso (em curso) do sistema de recrutamento de docentes ser mais uma

    oportunidade perdida para a afirmao da qualidade da escola pblica? Os nichos de

    inovao e mudana, construdos custa da dedicao e sacrifcio de alguns professores

    vo permanecer dependentes de precrios destacamentos? As escolas continuaro

    expostas s vicissitudes de concursos de colocao aleatria e vitalcia, que em nada se

    distinguem de outro qualquer concurso para funcionrio pblico?

    E quem responder, mais tarde, pelo crime de omisso?

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    O burro do Manel PndegoNa falta da generosidade do Homem, o Manel Pndego aproveitava a generosidade da

    Natureza Me para atestar a pana do burro, motor do seu carrinho de ganha-po. Ao

    fim da tarde, espetava uma estaca entre as ervas, onde atava uma corda que poucas

    largas dava ao animal.

    Procurando dar tempo terra para que novos tufos verdes despontassem, talvez sem o

    saber, o Manel Pndego aplicava uma das leis bsicas da Economia, promovia um

    desenvolvimento sustentado escala do universo do burrico. Mas a alimria no lhe

    ficava atrs em esperteza, que nestas coisas da Economia e do Desenvolvimento, os

    ditos irracionais do, muitas vezes, lies aos que, por terem nascido homens e no

    asnos, se julgam mais inteligentes.A lgica do senhor Manuel era a de que, atravs da rotatividade do pasto, a erva em

    redor teria tempo para voltar a despontar. Enganava-se. No seu af de sobreviver, o

    burro desenhava crculos concntricos em torno da estaca, deixando rasa a verdura, indo

    to longe quanto lhe era permitido. E, logo que o senhor Manuel virava as costas ao

    animal, na falta de um relvado a srio, a crianada ocupava o terreno ao lado, no muda

    aos trs e acaba aos seis.

    Quando a bola ia fora (apesar da falta de marcaes visveis, os putos sabiam bem ondecomeava o meio campo e acabava a linha de cabeceira...), o jogador encarregado do

    lanamento de linha lateral nunca perdia a oportunidade de sacar de um seixo e mirar no

    pobre do burro, para o afastar da linha limite da grande rea. Por via da desleal

    concorrncia, o pobre do burro via-se confinado meia-lua e a uma consequente

    reduo drstica da rao diria.

    O Pedro era um dos matules da equipa. Lanamento que fizesse para o molho de

    jogadores junto baliza adversria, se desviado a tempo, era golo certo. Mas o burroestorvava-lhe a corrida de balano. Naquele dia, antes que a chuva aparecesse, j o

    animal tinha sido mimoseado com uma chuva de pedrinhas de impacto certeiro e eficaz.

    O burro dava dois pinotes e ia pastar para o lado oposto bancada dos scios.

    A partida foi interrompida aos quatro a trs, devido forte carga de gua que se abateu

    sobre o improvisado estdio. Os jogadores ainda aguentaram as primeiras pingas. Mas a

    btega engrossou e as equipas regressaram ao balnerio que, o mesmo dizer, ao

    alpendre da escola.

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    S a pretexto da debandada, o animal procedeu a uma breve e pacfica invaso de

    campo. Mas a chuva amainou e eis que regressavam as equipas ao terreno de jogo com

    o Pedro frente do magote.

    Em escassos segundos, o burro que era paciente mas no era estpido tinha-se

    desviado do caminho de acesso ao balnerio. Pastava junto linha de fundo com a

    corda frouxa e rente terra. passagem de um Pedro em imparvel correria, o burro do

    esticou o pescoo e a corda surgiu sbita e incontornvel, a trs palmos da relva. O

    Pedro ainda ensaiou um salto acompanhado de um golpe de rins, mas acabou por aterrar

    de cabea junto marca de grande penalidade.

    Ter o burro agido por receio de atropelamento? Ter esticado a corda por instinto? Por

    burrice? No creio.

    Diz-se dos burros que so pacientes. Mas, na minha modesta opinio, com aquele sbito

    puxo, o burro do Manel Pndego quis mostrar ao Pedro um carto amarelo. Ou (para

    escapar gria futebolstica) fez ver ao Pedro que, disciplinarmente, h momentos em

    que a corda estica...

    Porm, este burro no era apenas justo, era sbio. E um sentimental, como, mais

    adiante, iremos ver.

    Num breve parntesis, faa-se a moral implcita na parbola: que at os burros

    percebem a diferena entre autoritarismo e autoridade e sabem quando esta deve ser

    exercida; que, no domnio dos afectos, mais vale um burro sensvel e atento que muitos

    manuais de formao pessoal e social..

    Se h quem afirme ser a pedagogia uma arte e uma cincia, juntemo-lhes o q. b. de

    ternura, sem a qual o acto de educar no passa de um ritual sem sentido. O burro do

    Manel Pndego admirava a doura que a professora Joana punha nos gestos e

    compreendia que das zangas dos catraios no restava azedume que o tempo no curasse.

    Pelo facto de (na qualidade de burro) lhe ser vedado o acesso sala de aula, quedava-sepela observao de aprendizagens que a Escola produz, sem que se aperceba que as

    produz e, concomitantemente, sem cuidar de avaliar a produo. Ainda que fosse

    considerado burro, entendiabem melhor que os que tal no se consideram!que uma

    brincadeira de crianas pode ser geradora de maior desenvolvimento cognitivo, social,

    afectivo, ou emocional que muitas horas de rea de projecto, de estudo acompanhado,

    ou de direco de turma. Tanto quanto a esperteza de um burro pode discernir,

    reconhecia numa improvisada peladinha um espao de socializao por excelncia.

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    Como no por acaso que h acasos, no mesmo dia de Novembro em que o Pedro ficou

    lesionado, o Eurico chegou escola. Vinha transferido da cidade. Era miudinho,

    enfezado. Mas porque no havia outro suplente no banco, foi logo mandado para a

    baliza, a posio de jogo menos desejada.

    O recreio estava prestes a acabar e o jogo empatado. Mais empurro menos chapada, as

    equipas concordaram que a canelada que o Tnio Melro dera no Pita Borrada era digna

    de ser sancionada com pnalti.

    Remate do Neca Gaio era golo certo. A claque rejubilava. A professora Joana j

    chamava para dentro. O ambiente estava de cortar a respirao...

    O Neca Gaio tomou balano e encheu o p num tiro certeiro. Mas a trajectria da bola

    foi gloriosamente travada pelo Eurico, na sua primeira e nica interveno de uma breve

    carreira entre os postes.

    Para que a crnica respeite a verdade dos factos, acrescente-se que a defesa no foi nada

    convencional. A bola foi-lhe ao nariz e o sangue logo saltou para a camisola. Mas o

    Eurico aguentou firme que nem um heri e recebeu o aplauso dos colegas de equipa.

    A Mafalda era a nica rapariga da turma com estatuto de futebolista. To matulona e

    dura quanto o Pedro, era muito requisitada por ambas as equipas para ocupar a posio

    de defesa central. A Mafalda jogava sempre defesa (no futebol como no resto...)

    Interpretando letra a tctica que diz ser o ataque a melhor defesa, se deixava passar a

    bola, no deixava passar o adversrio. Foram muitos os joelhos esfolados e respectivas

    expulses acompanhadas de queixinhas professora.

    Temendo as represlias da mestra, a Mafalda manifestava o maior dos arrependimentos.

    Para qu, se a professora Joana a acolhia na ternura dos seus braos e trocava a

    reprimenda por um abrao? Nem uma palavra de reprovao, apenas um olhar fofo de

    esperana. A Mafalda considerada pelos vizinhos como durona e arrapazada

    acabaria por perceber que o amor e a pacincia operam milagres. Foi a primeira asocorrer o Eurico, sem se importar que o seu lencinho ficasse manchado de sangue.

    Enquanto a turma regressava ao af habitual, o Pedro e o Eurico eram acolhidos pelas

    mos carinhosas da professora Joana, que os curava das leses do corpo e do esprito.

    Testemunha discreta de pequenos dramas, logo que ficou sozinho, o burro deixou

    escapar algumas lgrimas, que deslizaram pelo plo encharcado.

    O Manel Pndego justificava o frequente lacrimejar do burro com o facto de o pasto ser

    desabrigado e facilmente o velho animal se tomar de constipaes. Enganava-se, mais

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    uma vez. A lgrima que aflorava ao canto do olho era pura emoo, reflexo da estima

    que nutria pela pequenada e, em particular, pela professora Joana.

    Que aquilo no era apenas uma escola sabia o burro (um verdadeiro doutor!) que, por

    nunca poder chegar a lugares de deciso, sabia da realidade educativa prxima muito

    mais que os que sobre ela decidem distncia. Aquilo era um hospital das almas.

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    Carta de Viena

    O vetusto edifcio havia resistido s crises do Imprio, aos bombardeamentos da

    Segunda Guerra e especulao imobiliria. As suas imponentes colunas erguiam-seacima das copas de rvores centenrias. O seu harmonioso enquadramento na verdura

    do parque, transportava o visitante Viena de Mahler e Stauss.

    No trio, trs enormes telas prenderam-me a ateno. Do lado esquerdo, a figura austera

    do Imperador Francisco Jos. Na tela da direita, a delicada fragilidade da imperatriz.

    Entre ambos, um quadro que reflectia um desgaste de sculos. A luz do sol, ainda que

    filtrada, esbatera os tons vivos, restava a plida dignidade da figura: um homem de ar

    grave e dcil postura.Quem seria? Que feitos lhe granjearam a honra de estar ladeado de imperadores? Talvez

    um relevante poltico austraco do sculo XVIII ou XIX, talvez um pedagogo austraco

    de nomeada (dado que o edifcio albergava uma famosa escola). Aproximei-me,

    coloquei-me em posio de leitura da inscrio em letras gticas douradas. E ali estava

    um nome quebrado pelas fendas que o tempo imprimiu no verniz: Jacob

    Rodrigues Pereira. Senti que um insuspeito patriotismo se apossava de mim. E

    quase entoava A Portuguesa...Ao meu lado, professores de outros pases liam a esbatida inscrio do quadro e

    interrogavam-se sobre quem seria aquela personagem. Antes que o cicerone se

    adiantasse, eu respondi confesso que com uma pontinha de orgulho... tratar-se de

    um pedagogo portugus, que viveu no sculo XVIII e que dedicou a sua vida

    investigao e educao de crianas surdas-mudas.

    Para alguns visitantes, to vidos de informao como reverentes perante o relevo

    concedido pela instituio ao dito pedagogo, acrescenteiem ingls e em francs, como

    mandava a circunstncia mais algumas curiosidades. Que, perante os prodgios

    operados por Jacob R. Pereira, o rei Lus XV lhe concedera uma penso avultada, que

    uma academia francesa se rendera aos seus mritos, que fora repetidamente elogiado

    por sbios como Buffon, que o pedagogo portugus e eu sublinhava a palavra

    portugus publicara (em 1762) o estudo Observations sur les sourds-muets, que...

    Entretanto, o cicerone referia estar Jacob Rodrigues Pereira sepultado no cemitrio

    hebraico de Villette, em Paris. E algo se partiu c dentro.

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    Talvez inconscientemente, eu ocultara a dura realidade da dispora judaica. Jacob

    Pereira, portugus, natural de Peniche, fora forado a fugir de Portugal, para escapar s

    garras da Santa Inquisio. E apercebi-me de que esta explicao estava a ser dada em

    alemo (lngua que, por mais que tente, no entendo), pelos olhares indignados que

    sobre mim pousavam.

    Calei-me. Senti-me penitente de pecados que no cometi e herdeiro de ignomnias. Caa

    inteiro sobre mim o peso do oprbrio, uma maldio que sucessivas geraes no

    apagaram. Efectivamente, o nosso pas foi bero de gnios que no mereceu, desde os

    filsofos judeus que se refugiaram nos Pases Baixos at aos que, no sendo judeus,

    foram eles prprios e pagaram pela ousadia.

    Outra dura realidade emergiu do desencanto. Ali estava eu, portugus, professor, a

    reivindicar glrias ptrias. Mas, a mais de dois mil quilmetros de distncia, quantos

    portugueses, quantos professores conheceriam sequer o nome e a obra de to insigne

    pedagogo?

    H mais de duzentos anos, Jacob Rodrigues Pereira disse, por exemplo, o que Piaget

    haveria de repetir muito mais tarde: que a inteligncia (tambm) passa pelos sentidos.

    Sem retirar importncia obra de Piaget em pormenor abordada em compndios e

    sebentasalgum saber explicar por que se ostraciza o que nacional... e bom?

    Talvez a poca estival opere tal letargia que me impea de estender por quilmetros (o

    que meu hbito...) o que pode ser dito em duas linhas. Pois por aqui me quedo, com o

    desejo de que tenhais umas retemperadoras frias. Ou como me dizia, h dias, a

    Joaninha, aluna de uma primria moda antiga:

    - A minha professora, coitadinha, est mesmo a precisar de frias. Berra tanto

    que bem precisa de descansar.

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    " Eu, com esta idade, nunca tinha visto nenhum! "

    Li num jornal o comentrio de uma professora do 1 ciclo que, ao cabo de mais de trinta

    anos de servio, se v envolvida na aventura de criar um agrupamento de escolas: "Veja

    l que, h dias, houve uma reunio e estava l um representante dos pais. Fiqueiespantada! Eu, com esta idade, nunca tinha visto nenhum!"

    A exclamao s constituir surpresa para quem no viva o quotidiano de muitas das

    escolas do (ainda e apesar de tudo...) "ensino primrio". Uma investigadora, hoje

    responsvel poltica, dizia, em 1990 que "a realidade e complexidade da escola primria

    so mal conhecidas". Por via desse desconhecimento, os legisladores sempre

    recomendaram que, ao 1 ciclo fossem aplicadas "com as devidas adaptaes...", este ou

    aquele artigo de sucessivas leis concebidas para os restantes segmentos do sistema. Aindahoje, o 1 ciclo parece constituir um apndice incmodo a montante do sistema, to

    deificado no discurso como esquecido pelas medidas concretas de poltica educativa.

    O Ensino Primrio foi o sector sujeito maior degradao, de forma assumida e

    sistemtica, pelo Estado Novo. Desde 1974, o processo de democratizao promoveu

    alteraes significativas no estatuto social dos professores e na gesto das escolas,

    excepto nas do "primrio". O que esperar do nico ciclo do bsico a quem a recusa de

    autonomia foi confirmada por decreto?1

    Perante o primeiro dos ciclos do ainda hojemtico Ensino Bsico, a atitude do Estado foi de quase total desresponsabilizao.

    O esforo dos actuais responsveis polticos e as boas intenes de alguns normativos no

    lograram ainda alterar situaes discriminatrias. Um exemplo concreto: a gesto dos

    refeitrios, que continua a no ser includo no oramento de 1999, a pretexto de ainda no

    ter sido feito um acordo com as cmaras municipais. Ainda no ser desta vez que os

    alunos do 1 ciclo iro passar a ter estmago como os dos restantes ciclos do bsico.

    Nas escolas de outros ciclos e do secundrio, desde h muito, os professores exercem o

    direito de escolha dos titulares dos rgos de direco e de gesto. No primeiro dos

    ciclos, a gesto foi sempre assegurada por controlo remoto, a partir da sede do concelho,

    por um conjunto de pessoas ali colocadas por nomeao. As professoras primrias j no

    pediam autorizao para se casarem, como no antigamente. Mas continuaram a pedir

    autorizaes que no precisariam de pedir... s para "se sentirem seguras". E os senhores

    delegados autorizavam at o que no tinham que autorizar.

    1Art 1 do Dec. 43/89, de 3 de Fevereiro

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    Ser necessrio recordar que, no decurso de mais de vinte anos de democracia, o primrio

    perdeu ou foi arredado de todas as oportunidades de afirmao e que muitas das suas

    escolas so estruturas frgeis, sujeitas a indignidades? Um exemplo, entre muitos

    possveis, dos anacronismos da gesto que tivemos/temos:

    o ofcio-circular de lanamento de um concurso saiu da instituio promotora em finais

    de Julho de 1993; as circulares saram da DRE para as DLE em 27 de Agosto; a circular

    da DLE que d conhecimento do lanamento do projecto chega s escolas em meados

    de Outubro; o prazo do concurso j tinha expirado.

    Em outros casos, as escolas tinham mais sorte, quando a circular ainda lhes chegava

    dois ou trs dias antes do fim do prazo para concurso. Mas outro problema se colocava

    pois o ofcio-circular remetia as escolas para a consulta do regulamento de concurso...

    que se encontrava afixado nas instalaes da DLE, ao dispor dos interessados, no

    horrio normal de expediente. Mas a DLE ficava situada a 10 Km de distncia e o

    expediente da DLE encerrava mesma hora em que as aulas acabavam na escola. Logo,

    a mxima sorte a que as escolas poderiam aspirar era a de nem sequer chegarem a ter

    conhecimento da existncia de tais projectos, o que, alis, era frequente (e, como diz o

    ditado, "quem no v, no peca").

    No jornal que antes referi, outra professora do 1 ciclo desabafava: "Passei anos isolada.

    Tudo o que fazia era preocupar-me com os meus meninos, receber ordens e cumpri-las.

    No podia dar um passo sem pedir autorizao."Foi este isolamento fsico e psicolgico

    que engendrou insegurana, mltiplas situaes de dependncia e fomentou o

    individualismo. E hoje, a tradio age como factor de inibio de autonomia, volta-se

    contra a escola.

    No decurso do processo de democratizao, a imposio de uma tradio de dependncia

    para alm de um prazo razovel produziu efeitos desastrosos no primrio. Como vemos,

    h razes para realar os riscos de uma transio tardia para uma gesto diferente. Sernecessrio admitir que muitos dos riscos de assuno de autonomia esto dentro de ns,

    nos indelveis traos que a tradio imprimiu na nossa cultura pessoal e profissional.

    Como afirmou o professor J. Barroso, "a autonomia tambm se aprende". Mas o tempo

    perdido torna ainda mais curto o escasso tempo de prazos impostos. Haja esperana e

    vontade de aprender. Mas que ningum espere milagres.

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    Si vivi vicissent qui morte vicerunt

    Em Agosto, fui at Cabo Verde. O embalo das mornas, o gosto da cachupa, as casas de

    rs-do-cho sem reboco e sem telhado, a misria digna de um povo sempre espera dachuva, o mesmo h trinta anos. Em 1971, na hora di bai, as saudades do que era uma

    provncia ultramarina gravaram marcas indelveis que apelavam a um regresso s ilhas.

    Mas foi um regresso amargo a lugares que guardava na memria, foram memrias

    desfeitas num regresso desencantado.

    De passagem pelo Tcho Bom, visitei o Campo do Tarrafal. L estava o mesmo banco

    de pedra da fotografia tirada h trs dcadas, o mesmo fosso, o mesmo porto de ferro,

    as mesmas barracas. Nos idos de setenta, uma mistura de curiosidade, alguma audcia einconscincia dos riscos que corria, abriu-me o acesso ao conhecimento directo (ainda

    que limitado) de tenebrosos segredos de uma ditadura mascarada de evoluo na

    continuidade de uma curta primavera marcelista. Desta vez, foi diferente. O acesso ao

    campo esteve isento de perigos.

    Na presena de lugares h muito percorridos, penetrei espaos na primeira visita

    interditos, perdi-me em deambulaes de passos e reflexes. Tudo me parecia to

    distante, to absurdo. No restavam vestgios do sofrimento. Onde se teria escondido amorte, companheira de exlio, destino do preso atirado para a caldeira hmida de uma

    cela de isolamento?

    - Mi d caneta, sior?!

    As vozes das crianas mendicantes arrancaram-me daquele torpor, e a emoo do

    reencontro cedeu lugar a uma estranha tristeza. A indiferena do grupo de turistas que

    me acompanhavam era igual indiferena dos meus companheiros de viagem de h

    trinta anos. Enquanto uns teciam comentrios boais cerca do lugar, outros

    confessavam nunca terem ouvido falar do Tarrafal... Para que o sentimento de

    intensa revolta que me assaltava no me levasse a cometer algum desmando, remeti-me

    ao silncio e afastei-me do grupo, at concluso da visita.

    Se no houvesse uma placa afixada entrada do campo da morte a evocar tempos

    sombrios, seria como se nunca tivesse existido um lugar onde o melhor deste povo foi

    sacrificado por ter alimentado ideais de liberdade e democracia. Se, como Ccero dizia,

    tivessem triunfado em vida os que triunfaram na morte ou se os vivos fizessem

    justia memria dos que condenam indiferena, talvez vivssemos hoje tempos

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    menos sombrios. Ilustrarei com um exemplo (entre muitos possveis) o paradoxo onde

    radica esta afirmao.

    Na sede do concelho em que vivo, Carneiro Pacheco nome de uma rua e de um centro

    comercial (para quem, eventualmente, no saiba quem foi a criatura, acrescento ter sido

    Ministro da Instruo, entre 1936 e 1940). Carneiro Pacheco foi personagem central da

    fase mais tipicamente fascista da ditadura. Foi um dos maiores responsveis pela

    consolidao de mecanismos de represso (citava amide o ditado que diz que o medo

    que guarda a vinha). Carneiro Pacheco celebrado na toponmia local e na cultura

    de ignorncia e indiferena que lhe sobreviveu e que se reproduz, apesar e contra

    vivermos tempos ditos de Democracia.

    Carneiro Pacheco (triste sina a de ter o mesmo apelido...) encarnava na perfeio o

    esprito do Tarrafal, nome do lugar para onde o professor Adolfo Lima foi

    degredado com outros professores que apenas cometeram um crime: o de querer

    educar pela e para a liberdade. Que eu conhea, no h uma s escola com Adolfo Lima

    como patrono...

    H dois anos, estive a trabalhar durante algum tempo em Viena de ustria. No luxuoso

    hall de entrada de uma instituio que tive oportunidade de visitar, deparei com trs

    quadros rodeados por molduras douradas com mais de um sculo. Eram imensos,

    dominavam o espao, suscitavam a contemplao. Depois de uma observao atenta das

    telas, li as inscries em gtico que davam conta dos nomes dos personagens

    representados nas pinturas. esquerda, em pose majesttica, estava o imperador

    Francisco Jos. direita, esplendorosa, a princesa sua esposa. Ao centro, numa pose

    natural e simples, um homem e uma criana. Quem seria o humano merecedor de

    figurar entre os mais amados e respeitados da ustria de um sculo glorioso? A placa

    indicava um nome: Jacob Rodrigues Pereira.

    Senti, de imediato, um assomo de nacionalismo lusitano que no suspeitava pudesseconsumir-me. Mas, tambm de imediato, cresceu em mim uma tristeza do tamanho de

    um pas em que se contar pelos dedos aqueles que saibam quem foi Jacob Rodrigues

    Pereira (o apelido ter alguma coisa de austraco?).

    Que a curiosidade conduza o eventual leitor desconhecedor do que foi o homem e a

    obra a procurar o esclarecimento. Talvez encontre, no s resposta para o meu enigma,

    mas a surpresa do (re)encontro com outros personagens que, a serem conhecidos e

    celebrados, contribuiriam para a reflexo necessria sobre os contornos da nossa culturapessoal e profissional.

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    Permiti ainda que acrescente a este texto a subtileza de um pormenor que atesta o

    quanto os portugueses so dos melhores pedagogos do mundo e que dispomos de uma

    herana cultural (por desvendar) de que nos podemos orgulhar enquanto professores.

    Na dcada de setenta, espantei-me com o gesto pioneiro de um Freinet que, no incio

    dos anos vinte, teria transformado o estrado de smbolo de poder em biblioteca. At ao

    dia em que, num outro livro, descobri que Adolfo Lima tinha feito o mesmo em... 1910.

    imperioso e urgente que os professores reelaborem culturas, reencontrem caminhos.

    Quanto mais no seja, para que os romnticos da educao do nosso tempo (que

    podero chamar-se Ana, Margarida, Lcia, Eugnia, Arlete, Palmira, Ester, Rosa,

    Alzira, Daniel, Ftima, etc., etc., etc. ...) no se vejam forados a fazer caminhadas

    solitrias e marginais.

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    A minha escola uma prostituta

    Na Segunda, hora do almoo, dei por mim a ver televiso. A filha de Viana de Lemos

    estava sendo entrevistada e citava nomes de personalidades com os quais o seu pai

    manteve contacto:- ... Ferrire, Decroly, Montessori, Freinet...

    - Alto! Alto! atalhou o entrevistadorNo conheo. Nem os telespectadores,

    certamente, l em casa! (nem a maioria dos professores, certamente, pensei

    eu...)E esse tal Freinet? Quem ?

    E ela l explicou que no , que j era. Explicou o que era a classe cooperativa, a

    imprensa Freinet...

    - Mas isso muito arrojado!Em que altura foi isso?- O Freinet, nos anos vinte e eu nos anos quarenta respondeu a professora

    aposentada, sublinhando que na sua escola de formao (que seria fechada logo

    aps a concluso do seu curso, em 1936) tinha adquirido conhecimentos que lhe

    permitiam melhorar a sua prtica profissional.

    - Mas extraordinrio!enfatizava o entrevistadorComo se fazia um trabalho

    to bom nesse tempo? preciso ver que o povo estava no obscurantismo.

    - Estava e est!rematou a idosa e sbia mestra.No Domingo, noite, o entrevistador conversava com um fora de srie:

    - Diz-me l: ento, as notas? Vo bem?...

    - Uma vezes, tenho bom grande; outras vezes, tenho um b pequeno.

    - O professor escreve um b pequeno nos trabalhos... ?

    - !confirmou o fora de srie.

    - Estou a ver que as coisas no mudaram muito desde que andei na escola

    rematou o entrevistador

    As coisas no mudaram muito na escola?

    Escreveu o meu amigo Ademar que nas escolas (e nas famlias) que se decide,

    diariamente, o futuro da humanidade. Perante esta evidncia, sobressaltei-me com o

    desabafo de um jovem professor (que, entretanto, se envolveu na actividade sindical),

    aquando de uma visita escola onde trabalhava:

    - A minha escola uma prostituta!

    - Porque dizes isso?retorqui.

    - Porque toda a gente a usa, todos se servem dela, ningum quer saber dela.

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    Sero as escolas merecedoras de to violento epteto?

    Imaginemos que um professor se atreve a sugerir aos colegas o gasto de um tempinho

    suplementar para procurar soluo para aquele problema do 6 F... Logo a maioria

    responde que tem mais que fazer; outros, que est na hora de ir buscar os filhos ao

    infantrio; safam-se alguns com o pretexto de terem de completar o magro salrio;

    rematam os mais cnicos que, se ao professor proponente sobra tempo, v para

    missionrio, que no lhe h-de faltar vocao.

    Imaginemos que uma escola procura novos e melhores caminhos de aprender. Logo a

    escola vizinha se lana numa cruzada contra a subversiva congnere. Gestores de

    escolas empart time (i. ., nas horas vagas do trabalho num gabinete de engenharia ou

    na actividade paroquial) aliam-se asetores a tempo parcial (i. , o que sobra das frestas

    do tempo investido na acumulao no colgio ou centro de explicaes), numa feroz

    campanha de difamao. E o tempo que dizem escassear para dar o programa sobra-

    lhes para urdir intrigas, criticar o que no conhecem ou no entendem, mas que os

    incomoda, por ser um perigo para o satus quo vigente. Pelo meio, a mole imensa dos

    que usufruem de um horrio com muitos dias livres e nem do pelo fenmeno, os

    que no se querem incomodar, os que marcam o ponto e vo vida... Estes so os puros

    de que feita a escola.

    Mas, como as coisas no mudaram muito na escola desde o tempo do Carlos Cruz, at

    as crianas so afectadas por sucedneos de stress e mal-estar docente. Um dador de

    aulas morre, profissionalmente, aos trinta, mas s enterrado aos sessenta. Talvez por

    essa razo, a escassos dias da interrupo de Novembro, era ouvi-la:

    - Ainda agora o ano comeou e j estou farta, saturada, pelos cabelos! Ainda

    bem que vem a mais uma pausa pedaggica. J marquei quarto no Algarve.

    - Pausa pedaggica? perguntei no querers dizer menopausa

    pedaggica? E bem precoce!...Apesar das duras evidncias, continuo a acreditar nas pessoas dos professores. Podero

    chamar-me ingnuo, que no me importo. Que nos valham aqueles a quem a vida ainda

    no roubou os sonhos, que (apesar de tudo) ainda resistem nas escolas, e os vindouros

    que nelas ho-de resistir. Atravs deles, ainda poderemos aspirar a um tempo em que as

    escolas no possam ser mais comparadas a prostitutas (sem desrespeito por estas

    profissionais, claro).

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    E agora, Pedro?

    Como costume, poderemos dar-lhe um nome e o nome poder ser Pedro.

    Finalista de um curso de formao de professores, personagem de fico ou actor de um

    drama real, o Pedro desta histria tinha conscincia de que, ressalvado o diploma que

    lhe dava acesso ao exerccio de uma profisso, tinha desperdiado quatro preciosos anos

    a copiar acetatos e a memorizar inutilidades que, depois de debitadas num exame,

    rapidamente esquecia: Chegou o fim da tormenta de quatro anos, em especial o

    ltimo. Incompreensvel estupidificao! Somos obrigados a saber tudo o que nos

    querem ensinar sobre o segundo ciclo do Bsico num s ano. Como obvio, o grau de

    exigncia mediado pela conscincia de quem ensina, que tenta, num ano reduzido a

    apenas alguns meses, dotar os seus alunos de todas as capacidades possveis para

    enfrentar... o qu? Sero os professores capazes de abandonar as sebentas e um

    palavreado com sabor a bolor? Quantas escolas inovadoras, quantos professores

    inovadores tivemos oportunidade de conhecer? O que mais me perturbou o esprito,

    nestes quatro anos, foi a repetio levada ao exagero de acetatos de livros. Dei comigo

    a pensar porque teremos ns de copiar fotocpias de livros, quando poderamos

    simplesmente ler os livros? Certamente, essa leitura nos diria mais da teoria do que as

    aulas papagueadas.

    Entre a desiluso da (de)formao e a angstia da proximidade do exerccio de uma

    docncia para que no fora minimamente preparado, o Pedro apercebe-se de outra dura

    realidade: a de que os seus colegas de curso (futuros professores) so consideradospelos seus mestres como potenciais trapaceiros. Vejamos.

    Quem copia nos testes, quem d graxa aos docentes, ou quem copia os trabalhos de

    anos anteriores, saca uma mdia de curso que lhe permitir um emprego como

    professor... e perto de casa. Num destes dias, passei por uma sala. Vi alunos serem

    obrigados a prostrar os seus pertences no cho, debaixo do quadro. Ao que parece,

    porque poderiam copiar no teste que se iria realizar. Sero estes alunos

    considerados desonestos pelos seus professoresos professores do amanh?

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    Porque (para seu infortnio) foi capaz de no ceder tentao de andar de ccoras ou de

    rastejar para sobreviver, o Pedro lamenta: Para meu infortnio, rendi-me a outras

    causas que no estas. Conclu o meu curso com uma mdia baixa e a conscincia

    tranquila, num equilbrio tnue entre o desconforto da perspectiva de meses de

    desemprego e a satisfao de ter ido mais alm.

    E admite contenes e fraquezas: E a auto-censura que me impus! Por vezes, tive de

    me baixar ao nvel rasteiro adoptado pela maioria dos meus colegas, com o nico

    objectivo de chegar ao fim do curso. Se no fosse assim, no poderia estar a escrever

    estas linhas. Da nota final dependia a minha sobrevivncia. Malditas notas, que nem

    sequer so musicais!

    O Pedro elegeu-me como confidente. No me atreverei a contar-vos tudo o que me

    disse. Mas, juntando um ltimo alinhavo, no resisto a transcrever um registo de

    impresses de uma das suas traumticas experincias de estgio: A estria que

    gostaria de partilhar , como tantas outras, passada numa caixa de beto conhecida

    por escola, por sinal, considerada uma das melhores do pas. Possuidor de um trao

    que poucos tm a sorte de possuir fazia antever um futuro promissor quele aluno.

    Mas, os nmeros, o diabo dos nmeros!... O Carlos manifestava indiferena face aos

    nmeros. Coisa grave!... Remetido ltima carteira da sala, continuava a desenhar,

    recusando tentar, sequer, compreender a importncia dos nmeros.

    Com a Pscoa porta, chegada a altura das notas quase finais: as notas que damos

    no segundo perodo so praticamente as mesmas do ltimo, diziam os nossos

    professores. A angstia do Carlos era disfarada por um sorriso tmido, que fazia

    dele um dos alunos com melhor comportamento da turma. O segundo perodo at

    tinha corrido bem. Com os estagirios por perto, vieram as positivas e um maior -

    vontade do Carlos. Com o segundo perodo veio tambm uma matria diferente, algo

    de que o Carlos gostava e fazia to bem ou melhor que os restantes elementos daturma: geometria. Os testes foram animadores. Mas o dia de dar as notas foi de

    imensa tristeza para o Carlos (que j estava habituado) e para ns, estagirios.

    A memria de um 1 bem assente na pauta povoou-me os sonhos de noites mal

    passadas. Afinal, eu era s um estagirio. Seno!... Contudo, esta minha opo arrastou

    consigo um sentimento de impotncia que ainda no me abandonou. Quando da ltima

    vez que falei com Carlos, o fantasma da reprovao levava -o a considerar a hiptese

    do abandono da escola...

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    Este Pedro apercebeu-se da tragdia. Mas quantos milhares de Pedros passam

    insensveis ao largo dos pequenos dramas que compem o imenso drama de uma

    carreira feita de indiferena? Quantos milhares de Pedros morrem, profissionalmente,

    aos vinte e cinco e apenas so enterrados quando chegam aos cinquenta e cinco?

    Foram muitos os novos professores a quem a vida roubou os sonhos. Foram muitos

    mais aqueles que, desfeito o idlio e o enamoramento dos incios, desertaram.

    Se algum cr que eu pretendo afirmar a falncia da formao inicial, se houver quem

    pense que eu insinuo vivermos uma tragdia criminosamente silenciada, engana-se. Eu

    no insinuo, eu afirmo.

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    Flexibilizaes

    Este texto funciona como vlvula de escape da perturbao que se instalou no meu

    esprito num debate sobre o projecto de "gesto flexvel do currculo". No decurso docitado debate, expus algumas preocupaes, nomeadamente, sobre a necessidade de

    aprofundar o conceito de "flexibilizao curricular". Reconheo no o ter feito da

    melhor forma. Aqui estou, qual penitente, a redimir-me do pecado... ou, porventura, a

    multiplic-lo, ainda que fraternalmente.

    Admiro a coragem de quem expe publicamente aquilo que faz e em que acredita. Sei o

    quanto custa ser "protagonista de projectos de mudana". Decidi retomar o assunto

    porque os julgo merecedores deste acrscimo de comentrio, ainda que tivesse hesitadoem rabiscar estas linhas que correm o risco de serem mal interpretadas. A sua nica

    inteno ser a de procurar evitar que a generosidade dos colegas que participam do

    projecto se converta, mais uma vez, em desiluso e em mais uma oportunidade perdida

    para a escola. E, se me permitem a imodstia, ter o mrito de expor por escrito algumas

    crticas que fui ouvindo aqui e ali e que, por serem demasiado rasteiras, no chegam at

    queles que delas mais beneficiariam. Que se h-de fazer, se eu tenho este pssimo hbito

    de escrever o que outros vo dizendo em sacristia?Causou-me grande espanto e apreenso ver uma proposta de "flexibilizao" reduzida a

    um singelo jogo de somas e subtraces de tempos lectivos. Ao cabo da segunda ou da

    terceira comunicao, apercebi-me de que a nfase na "organizao" se referia,

    estritamente fuso de tempos de cinquenta minutos num tempo s, ou a outras do

    mesmo gnero. No ser a "flexibilizao" muito mais do que simples alteraes na

    gesto de tempos, dos espaos, ou no elenco de contedos?

    Receio ser forado a concluir que se insiste nos mitos do "aluno mdio" ou da "turma

    homognea". Seno, a que aluno, em particular se destinam os cinquenta, os noventa, ou

    mais minutos? A qual dos alunos (nico, irrepetvel, dotado de ritmo prprio, de

    determinado estilo de inteligncia, de interesses e potencialidades especficas, etc, etc,

    etc!) e em que rea ou disciplina? A que aluno concreto se dirige a flexibilizao dos

    tempos? Podero argumentar que apenas um primeiro passo, ou que ainda cedo para

    extrair concluses. De acordo! Mas resta saber se o tal "passo" dado para a frente e em

    que direco. No nos esqueamos de que foi a racionalidade tcnica que conduziu

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    cristalizao outras potenciais medidas inovadoras e transformou anteriores projectos do

    M. E. em caricaturas. Que nos fique como aviso.

    O voluntarismo das escolas deve ser realado. Mas o entusiasmo, por si s, no

    suficiente. Um projecto deste tipo pressupe auto-iniciativa, no se pode restringir

    adeso a propostas ministeriais. As propostas, por mais meritrias que sejam (e creio ser

    o caso desta) tero de ser reinterpretadas, permanentemente reflectidas, no devero

    constituir rplicas umas das outras, cpias sem identidade.

    Foi o hbito de mera interpretao tcnica de directrizes, em detrimento da iniciativa das

    escolas, a mesma que condenou ao esquecimento muitas e teis iniciativas, foi essa

    adeso linear a matrizes importadas que transformou a redaco dos regulamentos

    internos das escolas numa clonagem sem nexo. A autonomia tambm condio de

    flexibilizao curricular, para que os professores ajam mais como produtores que como

    consumidoras de currculo. Refiro-me autonomia pedaggica, mais especificamente,

    pois, sem esta, as outras dimenses faro pouco sentido.2

    No decurso do debate, algum perguntou porque se tinha reduzido tempos em EVT e

    aumentado Educao Fsica. Ningum se dignou responder. E haveria resposta? A

    reflexo esteve sempre deslocada. A tnica no deveria ser posta na extenso dos

    programas, mas no modo como se gere um currcul