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Edward Hopper e o cinema
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Edward Hopper e a imagem cinematogr"caMarcos Kurtinaitis*
uma evidncia para todos que j tiveram algum contato com as
obras do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967)
que elas guardam uma ntima relao com o cinema ou, mais
especificamente, com o que chamaramos de imagem cinema-
togrfica. Muitos de seus quadros j foram reproduzidos por
ci neastas e frequente o comentrio de que as cenas que eles
retratam parecem sadas de um filme. H uma afinidade apa-
rentemente to profunda e natural entre suas pinturas e o cine-
ma que raramente so extradas as inferncias possveis a partir
dessa constatao, tida como banal. Extra-las, portanto, o que
aqui se prope: uma investigao um pouco mais detida dos mo-
tivos pelos quais as imagens hopperianas evocam esse parentes-
co. Alguns apontamentos sobre a influncia do cinema sobre a
sua pintura e desta sobre aquele.
Sabe-se que Hopper tinha uma ligao afetiva mais do que
efetiva com a stima arte, mas este fato, por si s, no explica
como algo de cinematogrfico vem a se insinuar em seus qua-
dros, nem comprova a veracidade da tese de que sua pintura
influenciada pelo cinema no mais do que seria influenciada
pela botnica a pintura de um artista apaixonado por jardina-
gem. Um de seus bigrafos diz que ele passava dias seguidos as-
sistindo a todos os filmes em cartaz quando vivia uma fase de
pouca inspirao. Essa paixo pelo cinema ou, pelo menos,
esse hbito de frequent-lo se manifesta j na escolha do tema
em alguns de seus quadros. N.Y. movie, certamente um dos mais
famosos, e Intermission, um de seus ltimos, retratam o interior
de salas de cinema. Essa ambientao menos frequente em sua
obra, vale dizer, do que hotis ou cafs parece sugerir, como
as demais, um espao de socializao em que os indivduos per-
manecem, a despeito disso, isolados. Tanto em N.Y. movie, em
que uma funcionria de cinema est em um corredor ao lado da
sala de exibio, aparentemente absorta em seus problemas (e
talvez at chorando), quanto em Intermission, que retrata uma
mulher na primeira fila, a figura humana representada est alheia
ao espetculo no primeiro, ela no tem acesso projeo, pois
est detrs de uma parede; no segundo, uma cortina separa a
* Mestrando em Meios e Processos Audio -visuais na ECA-USP, realizador audiovi-sual, programador da Cinemateca Bra-sileira e curador de mostras de cinema para instituies como CINUSP, MIS-SP e Caixa Cultural Braslia. Foi editor da Sinopse Revista de Cinema, publicou a coletnea de contos O manicmio e foi o organizador de Viagens Projeto Jovens Escritores.
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personagem da tela, j que o quadro, como indica o ttulo, repro-
duz o intervalo de uma sesso. Entretanto, atestando a presena
da sala de cinema no rol de ambientes arquetipicamente america-
nos que pintava, estas telas simplesmente demonstram sua fami-
liaridade com uma experincia intrnseca vida em seu pas, em
seu tempo. Para Edward Hopper, a mdia cinematogrfica fun-
cionava ... [como] Um emblema paradigmtico da modernidade,
ela lhe permitia acessar a modernidade tudo a uma distncia
segura (Fischer, 1999, p. 335). Alm disso, estes dois trabalhos
sugerem que a inspirao do artista vinha menos do filme que da
plateia. O isolamento da espectadora e da funcionria que lhe
chama a ateno e se converte no verdadeiro tema dos quadros.
A julgar apenas por esses dois exemplos, pareceria que o que se
passou do lado de c da tela era a memria mais vvida que ele
guardava de sua experincia na sala de projeo. Apesar de assis-
tir a muitos filmes, ele jamais tomou qualquer um em particular
como inspirao, jamais, que se saiba, buscou intencionalmente
reproduzir uma cena especfica de um filme o que no seria to-
talmente incoerente nem absurdo, j que fazia profissionalmente
ilustraes para capas de livros e que seu quadro mais famoso,
Nighthawks, reproduz a cena de um livro que havia lido. Mas,
ainda que nunca tenha intencionalmente pintado uma sequncia
de um filme, seus quadros guardam semelhana com algo que
julgamos j ter visto antes em uma cena de cinema.
O que Hopper tem de cinematogrfico parece estar, em primei-
ra instncia, no uso do enquadramento: na limitao de perspec-
tiva aplicada s cenas retratadas h semelhanas evidentes com
planos de cinema. Como uma cmera, seu olhar se posiciona em
relao ao objeto como o de um observador diante de uma cena
que transcorre no tempo. As suas perspectivas so muito acen-
tuadas e os enquadramentos sempre insinuam a continuidade do
espao para o que est alm da tela, um expediente corriqueiro
no cinema. Recorrendo com frequncia perspectiva de baixo
para cima o contra-plonge do cinema , o olhar-cmera de
Hopper confere espetacularidade cinematogrfica ao banal. Do
mesmo modo que a cmera, ele capta cada detalhe de uma cena
corriqueira por um olhar que pode torn-lo relevante e ampliado
da o carter cinematogrfico de seus enquadramentos.
Mais do que apenas o enquadramento, seus quadros pare-
cem ter tambm uma cenografia cinematogrfica, quase como
se tivessem contado com um diretor de arte, um set designer.
A importncia da ambientao de suas telas to grande que,
em muitas, o cenrio o prprio assunto, a figura humana se
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torna dispensvel. Uma rua ou um quarto de hotel vazios so si-
multaneamente cenrio e personagem, constantemente evocando
uma humanidade ausente. Ao contrrio de uma paisagem pura
e simples, algo que deixara de pintar j no incio de sua carreira,
no final dos anos 1910, suas paisagens vazias, urbanas, ou de
lugares em que civilizao e natureza se tocam, so de locais que
existem pelo homem e para o homem. Ambientes como aquele
retratado em Early Sunday morning constituem uma espcie de
cenrio prestes a receber os atores, so lugares vazios. Mesmo em
um quadro em que a figura humana se faz presente, como Office
in a small city, o cenrio atua como outra personagem, como
interlocutor, nunca como mero fundo.
A despeito de caractersticas de enquadramento e cenografia
de seus quadros j permitirem um vislumbre de parentesco com
a imagem cinematogrfica, o ponto fundamental a esse respeito
relaciona-se questo da narratividade. evidente que, quando
falamos em cinema, pensamos quase sempre no cinema narrati-
vo. Assim, se enxergamos algo de cinematogrfico nas telas de
Hopper porque elas sempre remetem a uma situao narrativa,
ainda que implcita. H sempre alguma espcie de histria que se
insinua nos detalhes da cena retratada. Frequentemente, podem
ser tomados como imagens introdutrias a possveis histrias
que se poderiam desenvolver a partir delas (Renner, 1992, p.
76). Tendo sido ilustrador de capas de livros, tarefa que exige
condensar em um desenho a histria de toda uma obra, ele certa-
mente conhecia as possibilidades de sintetizar em uma nica ima-
gem um contedo narrativo complexo. Se isso ocorre, porque
Hopper consegue, da mesma forma que o cinema, investir em
elementos da composio visual de valor narrativo.
No cinema, em termos de construo puramente visual (ex-
cludos, portanto, som, dilogos, interttulos), o grande elemento
narrativo a montagem. Uma vez que um pintor no pode se va-
ler da sucesso de planos com diferentes enquadramentos, ele lan-
a mo de outros recursos de composio para narrar e chamar
a ateno para determinados detalhes de uma cena: uma espcie
peculiar de montagem interna, em que nossos olhos, passando de
um ponto a outro do quadro, operam a delimitao dos planos,
como cmera e editor. Em seus quadros, Edward Hopper coloca
a totalidade de uma cena em cada tela, mas consegue substituir a
decupagem dessa cena em planos gerais, mdios ou de detalhe, pela
aplicao de efeitos de cor e luz que chamem a ateno para deter-
minado ponto, guiando nosso olhar-cmera-montador. Em nome
desse efeito, ele constantemente abre mo do mpeto de ser fiel
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realidade tal qual ela se apresenta, rejeitando um realismo estril.
No lhe incomoda subverter leis da fsica para assegurar que um
feixe de luz trace uma trajetria impossvel de modo a guiar nos-
so olhar e destacar determinado elemento da composio, como
ocorre com o palhao fumando um cigarro em Soir bleu, um de
seus quadros da primeira fase.
Se o cinema deve muito de sua narratividade s possibilidades
da montagem, o grande narrador da pintura, sem dvida algu-
ma, a luz. Ainda que no cinema a fora narrativa da luz no
seja considerada um fator determinante, mas um objetivo a ser
perseguido, um bom diretor de fotografia precisamente aque-
le que consegue garantir ao seu desenho de luz um carter no
meramente auxiliar, mas efetivamente narrativo. A fotografia ci-
nematogrfica, portanto, deve muito a toda a pesquisa de luz
empreendida pela pintura.
Em Hopper, com frequncia a luz delimita espaos diversos,
fazendo-nos interpretar um ambiente com determinado sentido
e outro, diferentemente iluminado, com sentido oposto: a luz in-
terior do caf em oposio ao exterior escuro de Nighthawks;
a luz quase sobrenatural que ilumina os produtos na vitrine de
Drugstore, que invade a janela do quarto de uma mulher em A
woman in the sun, que separa as figuras de Conference at night e
at a luz-personagem de Rooms by the sea. a luz acesa da jane-
la de um quarto que nos narra um pouco da intimidade roubada
de uma figura annima na metrpole em Night windows. Em
Summertime, novamente o jogo de luzes a escurido sobrena-
tural de dentro da casa, a luz lmpida e quente de vero do lado
de fora que nos narra alguma coisa a respeito do desejo de fuga
daquela jovem.
Hopper e a iconogra"a norte-americana
Quando fazemos referncia ao parentesco entre pintura e cine-
ma em Hopper, a preferncia pela expresso imagem cinemato-
grfica se impe na medida em que esse carter cinematogrfico
que enxergamos em seus quadros est vinculado a uma espcie
de imagem de cinema arquetpica. Ao observarmos um de seus
quadros, no pensamos em nenhuma cena de um filme especfico
talvez apenas no caso de cenas que propositadamente emulam
um de seus quadros , e sim em certa combinao de elementos
tema, cenrio, luz, enquadramento que nos remete ao tipo de
imagem que consideramos prpria do cinema. preciso deixar
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claro, desde j, que esse cinema no qual pensamos , evidente-
mente, o americano.
Edward Hopper foi um americano tpico que nasceu e mor-
reu em Nova York. Seus temas estiveram, desde sempre, intima-
mente ligados experincia norte-americana e ao american way
of life. Dada a imensa influncia de suas imagens sobre a cul-
tura ocidental, no h dvida de que ele ajudou mesmo a fixar
no inconsciente coletivo uma determinada imagem da Amrica.
Tanto o cinema clssico norte-americano quanto sua pintura se
fundamentam na reproduo do ambiente da vida nos Estados
Unidos. Hopper parece ter vivido em um mundo geograficamente
pequeno, apesar de ter viajado bastante. Seus temas so repetiti-
vos e, a julgar pela sua obra, em que se repetem as mesmas ruas,
as mesmas casas de campo, os mesmos hotis de beira de estrada,
parece que no conheceu outros ambientes. Sabendo-se que ele,
pelo contrrio, tinha ampla viso do mundo, nota-se que essa
obsessiva repetio de temas demonstra sua inteno de pintar os
arqutipos de sua sociedade. Das ferrovias aos subrbios, passan-
do pelo skyline das metrpoles, Hopper representou a paisagem
crucial da Amrica, mantendo um olhar afetuoso para o campo
e mais cnico no confronto com a cidade, que impregnou todas
as manifestaes da iconografia americana posterior. Assim, a
aproximao que fazemos entre sua obra e essa imagem cinema-
togrfica arquetpica funda-se, antes de tudo, na partilha de uma
iconografia. Hopper pintou ao longo dos anos 1930, 40 e 50
exatamente o perodo em que o cinema americano conquistou
hegemonia mundial como representao da vida moderna. O pa-
rentesco entre seu trabalho e o cinema, portanto, relaciona-se
fixao de uma imagem icnica da Amrica. O que reconhecemos
em seus quadros aquele universo a que o cinema americano nos
habituou.
Boa parte daqueles que se debruaram sobre a familiaridade de
Hopper com o cinema tende a enxerg-la na forma como ele espe-
tacularizava a paisagem americana. Essa espetacularizao ceno-
grfica apresenta-se no cinema americano tanto na densidade da
arquitetura urbana das metrpoles, os imensos corredores de ar-
ranha-cus de Manhattan, quanto no vazio dos grandes espaos,
a monumentalidade do Desert Valley dos westerns. No entanto, a
interpretao particular que faz dessa paisagem garante sua origi-
nalidade: seus lugares so no lugares. A sua pompa heroica lhes
conferida por um vazio, por serem uma terra intermediria: um
no lugar que aspira a uma redefinio de significado. E nenhum
ambiente pintado por Hopper to no lugar quanto o posto de
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gasolina de Gas, situado em um terreno vasto e ermo, distante da
civilizao, mas marcando como que um posto avanado diante
da natureza, de um bosque que parece pronto a engoli-lo. O olhar
do pintor para esses ambientes associa-se a uma ideia de suspen-
so de juzo, converte-os em lugares privados de equilbrio. Esses
lugares no tm identidade porque nasce antes a construo fsica
e depois a social. Desaparece a dimenso heroica e surge a bana-
lidade, tanto na arquitetura quanto no agir social.
Ao pintar figuras humanas isoladas, incomunicantes, em ce-
nrios urbanos, Hopper ajudou a cristalizar como central para
toda a cultura ocidental o tema da solido nas grandes cidades.
Essa temtica, que podemos chamar de hopperiana sem preju-
zo de suas demais fontes, sem dvida alguma um dos pontos
pelos quais a influncia do pintor se fez presente no cinema. Na
medida em que ajudou a fixar a imagem dos ambientes tpicos
da vida americana como no lugares, como espaos de incomu-
nicabilidade, sua pintura influenciou tanto a fotografia quanto o
cinema, tanto a pop art quanto a arquitetura ps-moderna e sua
fixao com o vazio. Sua obra expressa uma anteviso de ten-
dncias cinematogrficas e urbansticas com pelo menos 30 anos
de antecedncia em relao ao momento em que elas se conso-
lidariam. Basta lembrar aquele tipo de road movie metropolita-
no que eclodiu na segunda metade dos anos 1980, filmes como
After hours, End of the night, Into the night, Something wild...
Todos retratam a vida urbana como vazia de sentido, apontam
para o imprevisto que se oculta sob a banalidade cotidiana, a
fuga para longe da rotina e da metrpole. Um filme da mesma
poca particularmente hopperiano em sua construo visual
True stories, dirigido em 1986 por David Byrne. Trata-se de um
pequeno tratado etnogrfico da gente do Texas, tomada como
exemplo representativo do povo americano, em que o diretor se
apropria de maneira irnica de toda a iconografia hopperiana,
com suas cidades vazias tanto de lugares de verdade quanto
de habitantes de verdade.
O olhar de Hopper caracterizado por um sentido de atopia,
de uma ausncia de centralidade que impregna a forma como ele
encara a composio. Raramente ele trabalha com a centralizao
de assuntos poderamos pensar em The girlie show, quadro de
sua ltima fase, como exceo que comprova a regra. difcil
determinar se o cinema, com sua famosa regra dos dois teros, su-
geriu a Hopper os enquadramentos deslocados, mas notrio que
em sua obra, assim como no cinema, a centralizao do assunto
quase proibida. Em vez de simplesmente identificar como ecoou
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no cinema esta viso hopperiana da vida americana, pode ser mais
interessante enxergar de que forma os elementos de pura compo-
sio visual utilizados para expressar esta viso foram imitados ou
absorvidos por determinados cineastas, com o mesmo fim.
Nighthawks no cinema, Wim Wenders e Antonioni
Em termos de composio, luz, enquadramento, certamente ne-
nhum quadro de Hopper to cinematogrfico nem foi tantas ve-
zes emulado no cinema quanto o seu mais famoso, Nighthawks, de
1942 auge, bom lembrar, do cinema noir, gnero cinematogrfi-
co para o qual poderia ter servido como pster de divulgao. Esta
tela j parte inalienvel da cultura pop mundial e a maneira como
ela evoca uma imagem arquetpica do showbizz americano, na qual
parecemos reconhecer quase todos os filmes policiais j produzidos
naquele pas e quase toda sua arte urbana, foi muito bem crista-
lizada na pardia-homenagem produzida pelo austraco Gottfried
Helnwein, Boulevard of broken dreams, em que Nighthawks
reproduzido com pequenas alteraes, com James Dean, Elvis
Presley, Humphrey Bogart e Marylin Monroe povoando o balco
de lanchonete que Hopper retratara. O casamento entre esta obra
e o cinema americano estava ali selado: de alguma forma, essa ho-
menagem insinua que a quele o ambiente onde vivem as lendas
do cinema, afirma que a Amrica pintada por Hopper no exata-
mente a real, mas a que subsiste apenas no mundo das ideias e dos
mitos, a Amrica que existe apenas do lado de l da tela do cinema.
Ao longo dos anos, Nighthawks foi contrabandeado para
dentro de inmeros filmes, de diversos gneros. Foi depois de
ler um livro policial da sua inegvel semelhana com os am-
bientes dos filmes noir de Ernest Hemingway, chamado The
killers, que Hopper o pintou. Quando, mais tarde, um filme foi
realizado a partir do livro, seu diretor, Robert Siodmak, repro-
duziu a cena a partir da pintura, com os mesmos enquadramen-
to e composio. No apenas isso: outros ambientes extrados
de seus quadros foram reproduzidos no filme, deixando clara a
inteno do diretor de homenagear o pintor e o quanto sua pr-
pria viso do li vro havia sido impregnada pela viso hopperiana
de seus ambientes. E aquela foi apenas a primeira das muitas
vezes em que Nighthawks viria a ser reproduzido tal e qual nas
telas de cinema. Dario Argento criou para seu clssico Deep red
um set que evoca o bar de longo balco e vitrine, filmando-o
sob um ngulo e uma iluminao que emulam diretamente a
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pintura original. Herbert Ross, em sua verso de 1981 para
Pennies from heaven, arquitetou uma cena de jantar que igual-
mente revisita o quadro. Em Primary colors, de Mike Nichols,
essa mesma perspectiva do interior de uma lanchonete visto de
fora subvertida em seu significado: o poltico que protagoniza
a trama visto atravs da vitrine de uma loja de donuts, sentado
no balco, exatamente como a figura do quadro. Mas aque-
le vidro que parece nos distanciar das personagens e torn-las
inacessveis em Nighthawks tem no filme o seu sinal simbli-
co invertido, marcando justamente o nico momento em que o
protagonista aparece mais prximo do espectador, humanizado.
Apenas esses casos j comprovam a frequncia com que as obras
de Hopper tm sido citadas por cineastas de todas as geraes,
mas parece necessrio evoluir para a exposio do caso de um
cinema que no apenas reproduz traos, mas que ele todo, em
muitos aspectos, um cinema hopperiano de fato. Curiosamente,
este cinema no foi produzido por cineastas americanos. Se
qualquer anlise que busque aproximar cinema e pintura deve
inescapavelmente deter-se, ainda que brevemente, sobre a ques-
to do tempo de fruio da imagem nessas duas artes, preci-
so ento afirmar que os quadros desse artista convidam a uma
contemplao detida e, nesse sentido, distanciam-se do tempo
cinematogrfico, cada vez mais ligado velocidade, sucesso
rpida dos planos. Sintomaticamente, Hopper afirmou certa vez
que pessoas normais no pulam e saltam como os atores nos
filmes, seus ritmos so mais lentos (ODoherty, 1982, p. 13).
No acidental, portanto, que sua pintura encontre paralelo
no cinema na obras de cineastas no americanos e afeitos a um
tempo narrativo mais lento e contemplativo. Nesse sentido,
parece-me inegvel que no haja cineasta mais hopperiano do
que o italiano Michelangelo Antonioni e, em igual medida, o
alemo Wim Wenders.
No necessrio ater-se distino entre um e outro, nem ar-
gumentar que Wenders mais hopperiano que Antonioni, ou o
inverso. Tendo em vista que Wenders discpulo direto e decla-
rado tanto de Antonioni como de Hopper, talvez o mais simples
seja enxergar uma autntica linhagem artstica, na qual o cinema
de Wenders descendente direto do cinema de Antonioni que,
por sua vez, tem razes na pintura de Hopper. A afinidade entre
Wenders e Antonioni j foi declarada e atestada inmeras vezes
pelo prprio cineasta. O cinema de Wenders pode at mesmo ser
reduzido a um exerccio de permanente releitura dos pontos cen-
trais da obra de Antonioni: a obsesso pelo deserto e pela estrada,
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a incomunicabilidade e a solido da vida urbana, os enquadra-
mentos geometrizantes e emoldurantes, o ritmo contemplativo.
Essa simples enumerao das caractersticas partilhadas pelos
dois cineastas j atesta tambm sua afinidade com o universo
do pintor. Mas tambm esta j foi admitida inmeras vezes pelo
prprio Wenders. No documentrio Der Bap film, que registra os
bastidores de uma turn da banda alem Bap, Wenders reproduz
intencional e fielmente luzes e enquadramentos hopperianos, in-
cluindo encenaes literais de alguns quadros, como N.Y. movie,
reproduzido em um teatro onde a banda se apresenta. Isso atesta
a filiao e bastaria para legitimar a aproximao entre sua obra e
a do pintor, tanto quanto o fascnio de Wenders pela cultura e pela
iconografia americanas, vide a profuso de cowboys e cenrios
tipicamente america nos em seus filmes (marcadamente em Paris,
Texas, O amigo americano, At o fim do mundo e Estrela solitria).
Se a influncia de Hopper sobre Wim Wenders uma autoevi-
dncia, o mesmo no se pode dizer a respeito de Antonioni. At
onde se sabe, e contrariamente ao seu discpulo alemo, o italiano
jamais buscou fazer qualquer referncia em seus filmes obra do
pintor americano. Ainda assim, a afinidade entre o trabalho de
ambos inegvel: muitos planos isolados de filmes de Antonioni
se parecem com quadros de Hopper e inmeros quadros do pin-
tor parecem extrados de filmes do cineasta. Certamente, trata-se
de um dos casos mais marcantes de afinidade estilstica e temtica
do sculo XX. Hopper e Antonioni exprimem em seus trabalhos
uma viso de mundo correspondente: no toa, ambos so consi-
derados poetas do silncio, da solido e da incomunicabilidade.
A solido, especialmente aquela vivida nas grandes cidades, exer-
cia sobre ambos o mesmo fascnio. Em suas obras, as pessoas so
annimas e a relao entre elas de circunstncia. Ambos eram
bastante sensveis falta de comunicao entre o casal de classe
mdia, o que se faz presente tanto na forma como so representa-
das as personagens de quadros como Summer evening, Hotel by
a railroad e Cape Cod evening, quanto de filmes como A aven-
tura, O eclipse e A noite. Em certo sentido, como se Antonioni
transformasse em filme aquelas histrias sobre incomunicabili-
dade insinuadas nos quadros do americano. Os dois partilham
a mesma viso pessimista da vida urbana contempornea e seu
imenso tdio. Ambos so atrados pelos ambientes considerados
no lugares, espaos sem histria e sem identidade, por onde as
pessoas passam sabendo que nunca mais se encontraro. Ambos
so igualmente obcecados pela viagem, pela vontade de se deslo-
car, por personagens que buscam uma fuga da civilizao, como
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aqueles dos filmes A aventura e Zabriskie Point, como a garota
porta de casa em Summertime, presa entre a escurido de sua vida
cotidiana e a promessa de luz e calor do que est alm.
De uma perspectiva formal, ligada composio visual, as
afinidades entre estes dois artistas so igualmente desconcertan-
tes. Ambos partilham um mesmo ideal de economia formal, so-
briedade, austeridade. H nos quadros de Hopper assepsia e cer-
to tom glido que encontra paralelo na forma como Antonioni
compunha seus planos. Do mesmo modo, as regras de enqua-
dramento aplicadas por ambos respeitam uma composio or-
gnica, articulada e grfica de figura e fundo. Nos filmes assim
como nos quadros , a figura e o fundo compem um todo inse-
parvel, so igualmente protagonistas da cena. Tudo aquilo que
foi dito sobre a presena ou a ausncia da figura humana nos
quadros de Hopper pode ser transposto para a anlise de um
filme de Antonioni e em nenhum outro isso mais evidente
do que em O eclipse. Seus dez minutos finais que esto entre
os mais originais da histria do cinema so ocupados por uma
sucesso de tomadas estticas dos locais que foram cenrio, ao
longo do filme, dos encontros amorosos das personagens. Porm,
nessa montagem final, todos aqueles espaos so revisitados em
um momento em que esto completamente vazios. Assim como
ocorre nos quadros, aqueles no lugares vazios constantemen-
te evocam a presena humana que no est ali. , portanto, no
tratamento do espao que encontramos as maiores semelhanas
entre suas composies. Em ambos, o espao se investe de um
valor psicolgico intrnseco, tambm expresso do interior de
personagens presentes ou no. Os vastos ambientes ermos de
alguns filmes de Antonioni so expresso do vazio sentimental
e de sentido experimentado pelas suas personagens. Do mesmo
modo, o ambiente do quadro Summertime expressa a dualida-
de que, imaginamos, sentida pela jovem porta de casa. Essa
psicologizao do espao no apenas permite enxergar na obra
de ambos um parentesco com o expressionismo, como tambm
aponta os caminhos atravs dos quais Hopper supera com seu
estilo um simples realismo.
Hopper e o realismo cinematogr"co
Um caso como o de Hopper, de semelhana to profunda entre
o trabalho de um pintor e a imagem cinematogrfica, s pos-
svel para um artista de traos minimamente realistas. difcil
imaginar que Klee, ou Kandinsky, pudesse evocar similaridades
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com o cinema, porque apenas o figurativismo teria esse condo.
De fato, o pintor americano frequentemente apontado, para
fins de periodizao, como um representante da terceira e ltima
fase do modernismo, marcada pelo retorno ao figurativismo e
ao realismo. Essa classificao se faz particularmente importante
aqui porque vincula seu trabalho diretamente ao cinema, dada a
natureza representativa dessa arte, aquilo a que Bazin se referia
como sua vocao realista. O fato de o cinema ter sido e
continuar sendo a forma mais fiel conhecida pelo homem de
representao do real tem condicionado a sua produo e apre-
ciao desde o momento em que uma plateia, ainda iletrada no
meios de fruio da imagem cinematogrfica, fugiu da sala de
projeo ante a viso de um trem vindo em sua direo no filme
dos irmos Lumire. Esperamos encontrar em um filme o mundo
como ele se apresenta nossa percepo, imagens e sons que re-
produzam a forma como estamos acostumados a experimentar a
realidade. Mas, como j disse Malraux, esse realismo do cinema
essencialmente plstico. Tem afinidade com a nsia do homem
de reproduzir com sua tcnica o mundo como ele , a qual re-
monta ao Renascimento. um realismo-imitao.
O cinema, fundamentado em um processo mecnico de cap-
tao de luz e sons, sempre ter a aparncia de realidade. talvez
apenas nesse sentido que possa ser compreendida a tal vocao
realista do cinema. A menos que estejamos falando de um cine-
ma feito de imagens e sons no figurativos, como algumas expe-
rincias do cinema de animao, do cinema experimental e da
videoarte, todo o cinema ter mesmo a aparncia de realidade.
J a pintura, sempre apresenta graus de realismo, que, do ponto
de vista da plasticidade, vinculam-se apenas a simulaes da rea-
lidade que, quanto mais precisas, mais nos iludem e mais reais
so consideradas. Nesse sentido, as composies de Hopper so
consideradas realistas porque fogem do abstracionismo, da dis-
toro, e buscam retratar em tela elementos do mundo real de
forma que simule a maneira como os percebemos.
O outro ponto a respeito do sentido do termo realista na arte
diz respeito ao fato de que uma obra assim considerada remete
a um perodo histrico determinado. Realismo uma cate-
goria sempre vinculada a um contexto especfico no caso de
Hopper, aquele do modernismo. Em seu incio de carreira ele
passou uma temporada na Europa, em plena ebulio de inova-
es como cubismo, futurismo, surrealismo e outros movimentos
rebeldes. Seus primeiros quadros so legtimos representantes do
impressionismo, indicando que ele estava, naquele momento, co-
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adunado com a tendncia geral das artes visuais de reproduzir
com tinta e pincel no exatamente a realidade do mundo, mas a
realidade da percepo. No entanto, durante o perodo verdadei-
ramente tpico de sua produo, que se inicia a partir do final dos
anos 1910, sua arte, assim como o modernismo como um todo,
deu uma guinada em direo ao realismo. O modernismo, seja
na literatura, seja nas artes plsticas, tem sempre sua trajetria
marcada por esse arco, que parte da ecloso do inconsciente pos-
sibilitada pela psicanlise, colocando na tela a verdade do mundo
interior do artista, e termina com um retorno representao
realista da vida externa, com uma volta aos valores de simulao
da aparncia de real. Esse movimento ocorre tambm no cine-
ma. No por acaso, o neorrealismo tido como marco inicial
do cinema moderno convm evitar a expresso modernismo no
cinema, j que este se manifesta igual e concomitantemente
sua ocorrncia em outras artes.
Simultaneamente ao boom das vanguardas no incio do s-
culo XX, o cinema tambm passou por uma fase vanguardis-
ta, em que as experincias de cineastas ligados ao futurismo, ao
dadasmo e ao surrealismo prometiam tambm quela arte, to
intrinsecamente destinada a reproduzir o mundo exterior, a pos-
sibilidade de se tornar um espelho do inconsciente. No cinema,
contudo, esse movimento de ecloso do inconsciente nem mesmo
chegou a se consolidar. Ali, mais do que em outras artes, expres-
sionismo, cubismo e abstracionismo so experincias rapidamen-
te subjugadas e relegadas a uma categoria de obras parte, quase
no cinemas. Com efeito, o cinema foi imediatamente alado
condio de entretenimento popular e, dessa forma, deixou-se
dominar pela imposio de convenes realistas de plasticidade.
Se as artes plsticas e a literatura ditas modernas englobam
tanto os produtos daquela primeira fase, surrealista e dominada
pelo inconsciente, quanto aqueles do modernismo tardio, realista
e marcado pelo retorno conscincia, o marco divisor do cinema
clssico para o moderno se postula apenas em meados dos anos
1940, com o surgimento do neorrealismo. curioso porque, apa-
rentemente, o cinema, ao banir de seu repertrio aquelas formas
inovadoras das vanguardas, parecia ter desde logo optado pelo
realismo. Contudo, o que ocorre j nos anos 1920 e na consoli-
dao do cinema narrativo tradicional a adoo de um realismo
que se coloca a servio tambm da fantasia, um realismo que
como apontado anteriormente apenas plstico, de imita-
o do real percebido. No cinema tradicional, ainda que de apa-
rncia realista, convenes de gnero se sobrepem a qualquer
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pretenso de fazer dele um veculo de representao literal da
experincia humana cotidiana da realidade. Assim, do mesmo
modo que nas demais artes, o realismo volta a se impor no final
do modernismo como reao ao excesso de sonho, o cinema con-
quista sua modernidade apenas ao reagir ao excesso de fantasia
que lhe foi imposto pelas convenes, o que explica a terminolo-
gia utilizada a partir de 1945 para designar neorrealistas os fil-
mes interes sados em capturar certa autenticidade da experincia
humana, em termos agora no s de aparncia da percepo,
mas tambm em ter mos de realidade psicolgica e social.
O auge da carreira de Hopper, historicamente, coincide com
a ecloso desse neorrealismo do cinema e com o fim do arco mo-
dernista. Haveria, portanto, um paralelismo entre o carter rea-
lista de suas pinturas e o neorrealismo? Seriam ambos aspectos
de uma mesma reao, de uma mesma volta ao mundo exterior?
foroso reconhecer que no.
De fato, em termos de aparncia, a obra do pintor como
o cinema de todos os tempos pode ser lida como realista na
medida em que reproduz fielmente as formas, cores e propor-
es do mundo real. Sua pintura claramente marcada pela
conscincia da representao cinematogrfica e fotogrfica do
mundo real e, como tal, postula um momento de exuberncia da
tcnica, que seria o marco inicial para todas as posteriores ma-
nifestaes realistas na arte, do realismo de um Wyeth ao fotor-
realismo de um Estes todos, sem dvida, filhos legtimos de
Hopper. Todavia, uma vez ultrapassadas as meras convenes
de representao da percepo, nota-se que a obra hopperiana
no simplesmente realista, no sentido de realismo social que
se aplica quando falamos do cinema de De Sica ou da prosa de
Graciliano Ramos. O realismo modernista do pintor americano
um modernismo tardio e um realismo transformado. Depois
de o mundo interior dos artistas ter sido representado exaus-
to, no mais permitido captar a realidade em si, o artista no
mais ingnuo a ponto de acreditar que pode levar s telas da
pintura, porque o cinema durante o neorrealismo alimenta-se
precisamente dessa iluso o mundo real tal qual ele . Hopper
jamais colocou em seus quadros a realidade nua e crua, jamais
evitou aplicar aos seus trabalhos a sua codificao subjetiva do
real. Em seus escritos, ele manifesta constantemente sua posio
de que a arte sempre o mundo real filtrado pela subjetivi-
dade do artista e isso ntido em seus quadros. He agreed,
not far from Zola, that art is fact seen through a personality
(ODoherty, 1982, p. 9). O mundo real que vemos em seus
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quadros no aquele que nossos olhos capturam, mas aquele
que somente os olhos do artista poderiam cap turar, representa-
do segundo sua prpria linguagem, suas prprias obsesses, seu
prprio cdigo.
Com efeito, uma anlise mais detida dessa pintura acaba por
revelar que ela no , de fato, realista no sentido mais amplo e
puro do termo, aquele que os cineastas neorrealistas buscavam
alcanar. O mundo representado nos quadros, com toda a sua
aparncia de realidade, na verdade marcado pela subjetivao
e pela psicologizao do que percebido. Em uma definio ple-
na de felicidade, ODoherty afirma que os quadros de Hopper
so, sim, representaes de um fato que ele encarava em
um sentido mais ou menos fotogrfico, como o momento de um
evento isolado no tempo, apresentado percepo. Mas seus
quadros apresentam esses fatos, guiados pela imaginao em
direo a reas de incerteza, e ento contemplados fixamente
(ODoherty, 1982, p. 16, traduo nossa). Suas representaes
ultrapassam o representado: so a imposio de uma codifica-
o e de uma subjetivao pesadas ao objeto. Afastam-se de um
realismo-imitao rumo a uma noo que poderamos chamar
de ultrarrealismo, realismo total, alm da percepo, que tem
muito mais a ver com a viso surrealista do que com a dos rea-
listas tpicos. No quadro que retrata duas pessoas em plena tar-
de de vero, as cores ressaltam a atmosfera escura e poluda de
uma noite triste. A cor viva do vero transformada para dar
maior peso cena, isol-la do mundo. No importa muito o rigor
da realidade. Importa-lhe, muito mais do que a verdade da per-
cepo, a verdade da sua experincia. Na oposio entre a voz
(subjetividade) e o fato (o mundo objetivo), Hopper tende muito
mais representao da primeira do que do segundo. Seus qua-
dros sempre representam figuras, objetos e lugares familiares, co-
tidianos, conhecidos. Entretanto, caso se limitassem a reproduzir
o conhecido como o conhecemos, seria absurdo atribuir-lhes a
aura enigmtica que neles enxergamos.
Para encerrar a questo, concentremo-nos em um quadro es-
pecfico: Rooms for tourists. Nesta tela est representada uma ca-
sa que serve de albergue, iluminada de dentro, no meio de uma
noite escura. A princpio, parece tratar-se de uma representao
naturalista. Contudo, a luz que ilumina a casa tem algo de fan-
tasmagrica e produz um efeito sobrenatural: irradia-se por todos
os ambientes dos dois andares do imvel como se fosse prove-
niente de uma nica fonte de luz central e interna. Fosse exclu-
sivamente realista e destituda de intenes psicologizantes, essa
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pintura jamais evocaria tamanha gama de sensaes, de nsia,
curiosidade, receio, mistrio. Com efeito, crticos constantemente
apontam o parentesco deste quadro com O Imprio das Luzes II,
de Magritte. Portanto, muito mais correto que aproxim-lo dos
artistas de inteno naturalista, sejam eles pintores ou cineastas,
enxergar um parentesco entre Hopper e este surrealista que,
como ele, se valia da aparncia de realidade para conferir muito
mais fora a representaes que so, na verdade, do mundo inte-
rior do artista, no do mundo exterior. No por acaso tambm,
sua pintura est muito mais prxima do cinema psicolgico e cheio
de simbolismos de Antonioni que do realismo puro de Rossellini.
Com base nesses apontamentos, chega-se constatao de
que as construes de Hopper levam tela muito mais do in-
consciente do que uma noo simplista de realismo poderia fazer
supor. O seu realismo se limita aparncia e no se exaure na
mera imitao do real, exatamente da mesma forma que o rea-
lismo da imagem cinematogrfica. Aprendemos pela experincia
que as imagens cinematogrficas so carregadas de simbolismos,
de significados psicolgicos ocultos. No cinema, uma cena coti-
diana est sempre sujeita ecloso do mgico e do sobrenatural,
o mistrio ainda mais fascinante e real porque se oculta por
baixo da aparente neutralidade de uma representao do mun-
do tal qual ele exatamente como nos quadros de Hopper.
Portanto, o que estes ltimos partilham com a imagem cinema-
togrfica , sobretudo, a capacidade de insinuar contedos psi-
cologicamente complexos a partir de uma figurao realista do
mundo. A capacidade de nos oferecer o mistrio insondvel de
nosso prprio interior sob a aparncia das imagens mais familia-
res de nosso mundo exterior.
Aumont, J. (2004). O olho interminvel: cinema e pintura. So
Paulo: Cosac Naify.
Betton, G. (1984). Esttica do cinema. So Paulo: Martins
Fontes.
Fischer, L. (1999). The savage eye: Edward Hopper and the ci-
nema. In T. Ludington, A modern mosaic: Art and moder-
nism in the United States (pp. 334-355). Chapel Hill: The
University of North Carolina Press.
ODoherty, B. (1982). American masters: The voice and the
myth in modern art. Nova York: E. P. Dutton, Inc.
REFERNCIAS
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Renner, R. G. (1992). Edward Hopper: transformaes do real.
Colnia: Taschen.
Edward Hopper e a imagem cinematogrfica Neste artigo, o au-
tor se prope a expor e analisar a relao de mtua influncia
entre a obra do pintor norte-americano Edward Hopper e o ci-
nema. A transposio de seus temas e elementos estilsticos para
certos filmes discutida, assim como o papel de sua pintura na
fixao de uma iconografia da realidade norte-americana repro-
duzida pelo cinema. Uma comparao mais detida estabeleci-
da entre elementos da pintura de Hopper e do cinema de Wim
Wenders e Michelangelo Antonioni. Por fim, discute-se no artigo
a pertinncia da classificao de Edward Hopper como um pintor
realista, pondo em evidncia as implicaes de uma afirmao
desse tipo, bem como consideraes sobre o realismo no cinema e
a manifestao de elementos psicolgicos nos quadros de Hopper.
| Edward Hopper and the cinematographic image In this arti-
cle, the author sets out to expose and analyze the relationship of
mutual influence between the work of American painter Edward
Hopper and film. The transposition of his themes and stylistic
elements to some movies is discussed, as well as the role of his
painting in the setting of an iconography of American reality
also reproduced by cinema. A more detailed comparison is made
between elements of the work of Hopper and that of filmmakers
Wim Wenders and Michelangelo Antonioni. Finally, the article
discusses the relevance of the classification of Edward Hopper as
a realist painter, highlighting the implications of such a statement
as well as considerations about realism in the cinema and the
emergence of psychological elements in the paintings of Hopper.
Artes. Pintura. Cinema. Edward Hopper. Michelangelo
Antonioni. Wim Wenders. Realismo. Surrealismo. | Arts.
Painting. Cinema. Edward Hopper. Michelangelo Antonioni.
Wim Wenders. Realism. Surrealism.
MARCOS KURTINAITIS
Rua Bandeira Paulista, 97/42
04532-010 So Paulo SP
RESUMO | SUMMARY
PALAVRAS-CHAVE | KEYWORDS
RECEBIDO 10.09.2010ACEITO 25.09.2010
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