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161 IDE SÃO PAULO, 34 [51] DEZEMBRO 2010 Edward Hopper e a imagem cinematográfica Marcos Kurtinaitis* É uma evidência para todos que já tiveram algum contato com as obras do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967) que elas guardam uma íntima relação com o cinema – ou, mais especificamente, com o que chamaríamos de imagem cinema- tográfica. Muitos de seus quadros já foram reproduzidos por cineastas e é frequente o comentário de que as cenas que eles retratam parecem “saídas de um filme”. Há uma afinidade apa- rentemente tão profunda e natural entre suas pinturas e o cine- ma que raramente são extraídas as inferências possíveis a partir dessa constatação, tida como banal. Extraí-las, portanto, é o que aqui se propõe: uma investigação um pouco mais detida dos mo- tivos pelos quais as imagens hopperianas evocam esse parentes- co. Alguns apontamentos sobre a influência do cinema sobre a sua pintura e desta sobre aquele. Sabe-se que Hopper tinha uma ligação afetiva – mais do que efetiva – com a sétima arte, mas este fato, por si só, não explica como algo de cinematográfico vem a se insinuar em seus qua- dros, nem comprova a veracidade da tese de que sua pintura é influenciada pelo cinema – não mais do que seria influenciada pela botânica a pintura de um artista apaixonado por jardina- gem. Um de seus biógrafos diz que ele passava dias seguidos as- sistindo a todos os filmes em cartaz quando vivia uma fase de pouca inspiração. Essa paixão pelo cinema – ou, pelo menos, esse hábito de frequentá-lo – se manifesta já na escolha do tema em alguns de seus quadros. N.Y. movie, certamente um dos mais famosos, e Intermission, um de seus últimos, retratam o interior de salas de cinema. Essa ambientação – menos frequente em sua obra, vale dizer, do que hotéis ou cafés – parece sugerir, como as demais, um espaço de socialização em que os indivíduos per- manecem, a despeito disso, isolados. Tanto em N.Y. movie, em que uma funcionária de cinema está em um corredor ao lado da sala de exibição, aparentemente absorta em seus problemas (e talvez até chorando), quanto em Intermission, que retrata uma mulher na primeira fila, a figura humana representada está alheia ao espetáculo – no primeiro, ela não tem acesso à projeção, pois está detrás de uma parede; no segundo, uma cortina separa a * Mestrando em Meios e Processos Audio- visuais na ECA-USP, realizador audiovi- sual, programador da Cinemateca Bra- sileira e curador de mostras de cinema para instituições como CINUSP, MIS-SP e Caixa Cultural – Brasília. Foi editor da Sinopse – Revista de Cinema, publicou a coletânea de contos O manicômio e foi o organizador de Viagens – Projeto Jovens Escritores. 161-176

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Edward Hopper e o cinema

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    IDE SO PAULO, 34 [51] DEZEMBRO 2010

    Edward Hopper e a imagem cinematogr"caMarcos Kurtinaitis*

    uma evidncia para todos que j tiveram algum contato com as

    obras do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967)

    que elas guardam uma ntima relao com o cinema ou, mais

    especificamente, com o que chamaramos de imagem cinema-

    togrfica. Muitos de seus quadros j foram reproduzidos por

    ci neastas e frequente o comentrio de que as cenas que eles

    retratam parecem sadas de um filme. H uma afinidade apa-

    rentemente to profunda e natural entre suas pinturas e o cine-

    ma que raramente so extradas as inferncias possveis a partir

    dessa constatao, tida como banal. Extra-las, portanto, o que

    aqui se prope: uma investigao um pouco mais detida dos mo-

    tivos pelos quais as imagens hopperianas evocam esse parentes-

    co. Alguns apontamentos sobre a influncia do cinema sobre a

    sua pintura e desta sobre aquele.

    Sabe-se que Hopper tinha uma ligao afetiva mais do que

    efetiva com a stima arte, mas este fato, por si s, no explica

    como algo de cinematogrfico vem a se insinuar em seus qua-

    dros, nem comprova a veracidade da tese de que sua pintura

    influenciada pelo cinema no mais do que seria influenciada

    pela botnica a pintura de um artista apaixonado por jardina-

    gem. Um de seus bigrafos diz que ele passava dias seguidos as-

    sistindo a todos os filmes em cartaz quando vivia uma fase de

    pouca inspirao. Essa paixo pelo cinema ou, pelo menos,

    esse hbito de frequent-lo se manifesta j na escolha do tema

    em alguns de seus quadros. N.Y. movie, certamente um dos mais

    famosos, e Intermission, um de seus ltimos, retratam o interior

    de salas de cinema. Essa ambientao menos frequente em sua

    obra, vale dizer, do que hotis ou cafs parece sugerir, como

    as demais, um espao de socializao em que os indivduos per-

    manecem, a despeito disso, isolados. Tanto em N.Y. movie, em

    que uma funcionria de cinema est em um corredor ao lado da

    sala de exibio, aparentemente absorta em seus problemas (e

    talvez at chorando), quanto em Intermission, que retrata uma

    mulher na primeira fila, a figura humana representada est alheia

    ao espetculo no primeiro, ela no tem acesso projeo, pois

    est detrs de uma parede; no segundo, uma cortina separa a

    * Mestrando em Meios e Processos Audio -visuais na ECA-USP, realizador audiovi-sual, programador da Cinemateca Bra-sileira e curador de mostras de cinema para instituies como CINUSP, MIS-SP e Caixa Cultural Braslia. Foi editor da Sinopse Revista de Cinema, publicou a coletnea de contos O manicmio e foi o organizador de Viagens Projeto Jovens Escritores.

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    personagem da tela, j que o quadro, como indica o ttulo, repro-

    duz o intervalo de uma sesso. Entretanto, atestando a presena

    da sala de cinema no rol de ambientes arquetipicamente america-

    nos que pintava, estas telas simplesmente demonstram sua fami-

    liaridade com uma experincia intrnseca vida em seu pas, em

    seu tempo. Para Edward Hopper, a mdia cinematogrfica fun-

    cionava ... [como] Um emblema paradigmtico da modernidade,

    ela lhe permitia acessar a modernidade tudo a uma distncia

    segura (Fischer, 1999, p. 335). Alm disso, estes dois trabalhos

    sugerem que a inspirao do artista vinha menos do filme que da

    plateia. O isolamento da espectadora e da funcionria que lhe

    chama a ateno e se converte no verdadeiro tema dos quadros.

    A julgar apenas por esses dois exemplos, pareceria que o que se

    passou do lado de c da tela era a memria mais vvida que ele

    guardava de sua experincia na sala de projeo. Apesar de assis-

    tir a muitos filmes, ele jamais tomou qualquer um em particular

    como inspirao, jamais, que se saiba, buscou intencionalmente

    reproduzir uma cena especfica de um filme o que no seria to-

    talmente incoerente nem absurdo, j que fazia profissionalmente

    ilustraes para capas de livros e que seu quadro mais famoso,

    Nighthawks, reproduz a cena de um livro que havia lido. Mas,

    ainda que nunca tenha intencionalmente pintado uma sequncia

    de um filme, seus quadros guardam semelhana com algo que

    julgamos j ter visto antes em uma cena de cinema.

    O que Hopper tem de cinematogrfico parece estar, em primei-

    ra instncia, no uso do enquadramento: na limitao de perspec-

    tiva aplicada s cenas retratadas h semelhanas evidentes com

    planos de cinema. Como uma cmera, seu olhar se posiciona em

    relao ao objeto como o de um observador diante de uma cena

    que transcorre no tempo. As suas perspectivas so muito acen-

    tuadas e os enquadramentos sempre insinuam a continuidade do

    espao para o que est alm da tela, um expediente corriqueiro

    no cinema. Recorrendo com frequncia perspectiva de baixo

    para cima o contra-plonge do cinema , o olhar-cmera de

    Hopper confere espetacularidade cinematogrfica ao banal. Do

    mesmo modo que a cmera, ele capta cada detalhe de uma cena

    corriqueira por um olhar que pode torn-lo relevante e ampliado

    da o carter cinematogrfico de seus enquadramentos.

    Mais do que apenas o enquadramento, seus quadros pare-

    cem ter tambm uma cenografia cinematogrfica, quase como

    se tivessem contado com um diretor de arte, um set designer.

    A importncia da ambientao de suas telas to grande que,

    em muitas, o cenrio o prprio assunto, a figura humana se

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    torna dispensvel. Uma rua ou um quarto de hotel vazios so si-

    multaneamente cenrio e personagem, constantemente evocando

    uma humanidade ausente. Ao contrrio de uma paisagem pura

    e simples, algo que deixara de pintar j no incio de sua carreira,

    no final dos anos 1910, suas paisagens vazias, urbanas, ou de

    lugares em que civilizao e natureza se tocam, so de locais que

    existem pelo homem e para o homem. Ambientes como aquele

    retratado em Early Sunday morning constituem uma espcie de

    cenrio prestes a receber os atores, so lugares vazios. Mesmo em

    um quadro em que a figura humana se faz presente, como Office

    in a small city, o cenrio atua como outra personagem, como

    interlocutor, nunca como mero fundo.

    A despeito de caractersticas de enquadramento e cenografia

    de seus quadros j permitirem um vislumbre de parentesco com

    a imagem cinematogrfica, o ponto fundamental a esse respeito

    relaciona-se questo da narratividade. evidente que, quando

    falamos em cinema, pensamos quase sempre no cinema narrati-

    vo. Assim, se enxergamos algo de cinematogrfico nas telas de

    Hopper porque elas sempre remetem a uma situao narrativa,

    ainda que implcita. H sempre alguma espcie de histria que se

    insinua nos detalhes da cena retratada. Frequentemente, podem

    ser tomados como imagens introdutrias a possveis histrias

    que se poderiam desenvolver a partir delas (Renner, 1992, p.

    76). Tendo sido ilustrador de capas de livros, tarefa que exige

    condensar em um desenho a histria de toda uma obra, ele certa-

    mente conhecia as possibilidades de sintetizar em uma nica ima-

    gem um contedo narrativo complexo. Se isso ocorre, porque

    Hopper consegue, da mesma forma que o cinema, investir em

    elementos da composio visual de valor narrativo.

    No cinema, em termos de construo puramente visual (ex-

    cludos, portanto, som, dilogos, interttulos), o grande elemento

    narrativo a montagem. Uma vez que um pintor no pode se va-

    ler da sucesso de planos com diferentes enquadramentos, ele lan-

    a mo de outros recursos de composio para narrar e chamar

    a ateno para determinados detalhes de uma cena: uma espcie

    peculiar de montagem interna, em que nossos olhos, passando de

    um ponto a outro do quadro, operam a delimitao dos planos,

    como cmera e editor. Em seus quadros, Edward Hopper coloca

    a totalidade de uma cena em cada tela, mas consegue substituir a

    decupagem dessa cena em planos gerais, mdios ou de detalhe, pela

    aplicao de efeitos de cor e luz que chamem a ateno para deter-

    minado ponto, guiando nosso olhar-cmera-montador. Em nome

    desse efeito, ele constantemente abre mo do mpeto de ser fiel

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    realidade tal qual ela se apresenta, rejeitando um realismo estril.

    No lhe incomoda subverter leis da fsica para assegurar que um

    feixe de luz trace uma trajetria impossvel de modo a guiar nos-

    so olhar e destacar determinado elemento da composio, como

    ocorre com o palhao fumando um cigarro em Soir bleu, um de

    seus quadros da primeira fase.

    Se o cinema deve muito de sua narratividade s possibilidades

    da montagem, o grande narrador da pintura, sem dvida algu-

    ma, a luz. Ainda que no cinema a fora narrativa da luz no

    seja considerada um fator determinante, mas um objetivo a ser

    perseguido, um bom diretor de fotografia precisamente aque-

    le que consegue garantir ao seu desenho de luz um carter no

    meramente auxiliar, mas efetivamente narrativo. A fotografia ci-

    nematogrfica, portanto, deve muito a toda a pesquisa de luz

    empreendida pela pintura.

    Em Hopper, com frequncia a luz delimita espaos diversos,

    fazendo-nos interpretar um ambiente com determinado sentido

    e outro, diferentemente iluminado, com sentido oposto: a luz in-

    terior do caf em oposio ao exterior escuro de Nighthawks;

    a luz quase sobrenatural que ilumina os produtos na vitrine de

    Drugstore, que invade a janela do quarto de uma mulher em A

    woman in the sun, que separa as figuras de Conference at night e

    at a luz-personagem de Rooms by the sea. a luz acesa da jane-

    la de um quarto que nos narra um pouco da intimidade roubada

    de uma figura annima na metrpole em Night windows. Em

    Summertime, novamente o jogo de luzes a escurido sobrena-

    tural de dentro da casa, a luz lmpida e quente de vero do lado

    de fora que nos narra alguma coisa a respeito do desejo de fuga

    daquela jovem.

    Hopper e a iconogra"a norte-americana

    Quando fazemos referncia ao parentesco entre pintura e cine-

    ma em Hopper, a preferncia pela expresso imagem cinemato-

    grfica se impe na medida em que esse carter cinematogrfico

    que enxergamos em seus quadros est vinculado a uma espcie

    de imagem de cinema arquetpica. Ao observarmos um de seus

    quadros, no pensamos em nenhuma cena de um filme especfico

    talvez apenas no caso de cenas que propositadamente emulam

    um de seus quadros , e sim em certa combinao de elementos

    tema, cenrio, luz, enquadramento que nos remete ao tipo de

    imagem que consideramos prpria do cinema. preciso deixar

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    claro, desde j, que esse cinema no qual pensamos , evidente-

    mente, o americano.

    Edward Hopper foi um americano tpico que nasceu e mor-

    reu em Nova York. Seus temas estiveram, desde sempre, intima-

    mente ligados experincia norte-americana e ao american way

    of life. Dada a imensa influncia de suas imagens sobre a cul-

    tura ocidental, no h dvida de que ele ajudou mesmo a fixar

    no inconsciente coletivo uma determinada imagem da Amrica.

    Tanto o cinema clssico norte-americano quanto sua pintura se

    fundamentam na reproduo do ambiente da vida nos Estados

    Unidos. Hopper parece ter vivido em um mundo geograficamente

    pequeno, apesar de ter viajado bastante. Seus temas so repetiti-

    vos e, a julgar pela sua obra, em que se repetem as mesmas ruas,

    as mesmas casas de campo, os mesmos hotis de beira de estrada,

    parece que no conheceu outros ambientes. Sabendo-se que ele,

    pelo contrrio, tinha ampla viso do mundo, nota-se que essa

    obsessiva repetio de temas demonstra sua inteno de pintar os

    arqutipos de sua sociedade. Das ferrovias aos subrbios, passan-

    do pelo skyline das metrpoles, Hopper representou a paisagem

    crucial da Amrica, mantendo um olhar afetuoso para o campo

    e mais cnico no confronto com a cidade, que impregnou todas

    as manifestaes da iconografia americana posterior. Assim, a

    aproximao que fazemos entre sua obra e essa imagem cinema-

    togrfica arquetpica funda-se, antes de tudo, na partilha de uma

    iconografia. Hopper pintou ao longo dos anos 1930, 40 e 50

    exatamente o perodo em que o cinema americano conquistou

    hegemonia mundial como representao da vida moderna. O pa-

    rentesco entre seu trabalho e o cinema, portanto, relaciona-se

    fixao de uma imagem icnica da Amrica. O que reconhecemos

    em seus quadros aquele universo a que o cinema americano nos

    habituou.

    Boa parte daqueles que se debruaram sobre a familiaridade de

    Hopper com o cinema tende a enxerg-la na forma como ele espe-

    tacularizava a paisagem americana. Essa espetacularizao ceno-

    grfica apresenta-se no cinema americano tanto na densidade da

    arquitetura urbana das metrpoles, os imensos corredores de ar-

    ranha-cus de Manhattan, quanto no vazio dos grandes espaos,

    a monumentalidade do Desert Valley dos westerns. No entanto, a

    interpretao particular que faz dessa paisagem garante sua origi-

    nalidade: seus lugares so no lugares. A sua pompa heroica lhes

    conferida por um vazio, por serem uma terra intermediria: um

    no lugar que aspira a uma redefinio de significado. E nenhum

    ambiente pintado por Hopper to no lugar quanto o posto de

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    gasolina de Gas, situado em um terreno vasto e ermo, distante da

    civilizao, mas marcando como que um posto avanado diante

    da natureza, de um bosque que parece pronto a engoli-lo. O olhar

    do pintor para esses ambientes associa-se a uma ideia de suspen-

    so de juzo, converte-os em lugares privados de equilbrio. Esses

    lugares no tm identidade porque nasce antes a construo fsica

    e depois a social. Desaparece a dimenso heroica e surge a bana-

    lidade, tanto na arquitetura quanto no agir social.

    Ao pintar figuras humanas isoladas, incomunicantes, em ce-

    nrios urbanos, Hopper ajudou a cristalizar como central para

    toda a cultura ocidental o tema da solido nas grandes cidades.

    Essa temtica, que podemos chamar de hopperiana sem preju-

    zo de suas demais fontes, sem dvida alguma um dos pontos

    pelos quais a influncia do pintor se fez presente no cinema. Na

    medida em que ajudou a fixar a imagem dos ambientes tpicos

    da vida americana como no lugares, como espaos de incomu-

    nicabilidade, sua pintura influenciou tanto a fotografia quanto o

    cinema, tanto a pop art quanto a arquitetura ps-moderna e sua

    fixao com o vazio. Sua obra expressa uma anteviso de ten-

    dncias cinematogrficas e urbansticas com pelo menos 30 anos

    de antecedncia em relao ao momento em que elas se conso-

    lidariam. Basta lembrar aquele tipo de road movie metropolita-

    no que eclodiu na segunda metade dos anos 1980, filmes como

    After hours, End of the night, Into the night, Something wild...

    Todos retratam a vida urbana como vazia de sentido, apontam

    para o imprevisto que se oculta sob a banalidade cotidiana, a

    fuga para longe da rotina e da metrpole. Um filme da mesma

    poca particularmente hopperiano em sua construo visual

    True stories, dirigido em 1986 por David Byrne. Trata-se de um

    pequeno tratado etnogrfico da gente do Texas, tomada como

    exemplo representativo do povo americano, em que o diretor se

    apropria de maneira irnica de toda a iconografia hopperiana,

    com suas cidades vazias tanto de lugares de verdade quanto

    de habitantes de verdade.

    O olhar de Hopper caracterizado por um sentido de atopia,

    de uma ausncia de centralidade que impregna a forma como ele

    encara a composio. Raramente ele trabalha com a centralizao

    de assuntos poderamos pensar em The girlie show, quadro de

    sua ltima fase, como exceo que comprova a regra. difcil

    determinar se o cinema, com sua famosa regra dos dois teros, su-

    geriu a Hopper os enquadramentos deslocados, mas notrio que

    em sua obra, assim como no cinema, a centralizao do assunto

    quase proibida. Em vez de simplesmente identificar como ecoou

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    no cinema esta viso hopperiana da vida americana, pode ser mais

    interessante enxergar de que forma os elementos de pura compo-

    sio visual utilizados para expressar esta viso foram imitados ou

    absorvidos por determinados cineastas, com o mesmo fim.

    Nighthawks no cinema, Wim Wenders e Antonioni

    Em termos de composio, luz, enquadramento, certamente ne-

    nhum quadro de Hopper to cinematogrfico nem foi tantas ve-

    zes emulado no cinema quanto o seu mais famoso, Nighthawks, de

    1942 auge, bom lembrar, do cinema noir, gnero cinematogrfi-

    co para o qual poderia ter servido como pster de divulgao. Esta

    tela j parte inalienvel da cultura pop mundial e a maneira como

    ela evoca uma imagem arquetpica do showbizz americano, na qual

    parecemos reconhecer quase todos os filmes policiais j produzidos

    naquele pas e quase toda sua arte urbana, foi muito bem crista-

    lizada na pardia-homenagem produzida pelo austraco Gottfried

    Helnwein, Boulevard of broken dreams, em que Nighthawks

    reproduzido com pequenas alteraes, com James Dean, Elvis

    Presley, Humphrey Bogart e Marylin Monroe povoando o balco

    de lanchonete que Hopper retratara. O casamento entre esta obra

    e o cinema americano estava ali selado: de alguma forma, essa ho-

    menagem insinua que a quele o ambiente onde vivem as lendas

    do cinema, afirma que a Amrica pintada por Hopper no exata-

    mente a real, mas a que subsiste apenas no mundo das ideias e dos

    mitos, a Amrica que existe apenas do lado de l da tela do cinema.

    Ao longo dos anos, Nighthawks foi contrabandeado para

    dentro de inmeros filmes, de diversos gneros. Foi depois de

    ler um livro policial da sua inegvel semelhana com os am-

    bientes dos filmes noir de Ernest Hemingway, chamado The

    killers, que Hopper o pintou. Quando, mais tarde, um filme foi

    realizado a partir do livro, seu diretor, Robert Siodmak, repro-

    duziu a cena a partir da pintura, com os mesmos enquadramen-

    to e composio. No apenas isso: outros ambientes extrados

    de seus quadros foram reproduzidos no filme, deixando clara a

    inteno do diretor de homenagear o pintor e o quanto sua pr-

    pria viso do li vro havia sido impregnada pela viso hopperiana

    de seus ambientes. E aquela foi apenas a primeira das muitas

    vezes em que Nighthawks viria a ser reproduzido tal e qual nas

    telas de cinema. Dario Argento criou para seu clssico Deep red

    um set que evoca o bar de longo balco e vitrine, filmando-o

    sob um ngulo e uma iluminao que emulam diretamente a

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    pintura original. Herbert Ross, em sua verso de 1981 para

    Pennies from heaven, arquitetou uma cena de jantar que igual-

    mente revisita o quadro. Em Primary colors, de Mike Nichols,

    essa mesma perspectiva do interior de uma lanchonete visto de

    fora subvertida em seu significado: o poltico que protagoniza

    a trama visto atravs da vitrine de uma loja de donuts, sentado

    no balco, exatamente como a figura do quadro. Mas aque-

    le vidro que parece nos distanciar das personagens e torn-las

    inacessveis em Nighthawks tem no filme o seu sinal simbli-

    co invertido, marcando justamente o nico momento em que o

    protagonista aparece mais prximo do espectador, humanizado.

    Apenas esses casos j comprovam a frequncia com que as obras

    de Hopper tm sido citadas por cineastas de todas as geraes,

    mas parece necessrio evoluir para a exposio do caso de um

    cinema que no apenas reproduz traos, mas que ele todo, em

    muitos aspectos, um cinema hopperiano de fato. Curiosamente,

    este cinema no foi produzido por cineastas americanos. Se

    qualquer anlise que busque aproximar cinema e pintura deve

    inescapavelmente deter-se, ainda que brevemente, sobre a ques-

    to do tempo de fruio da imagem nessas duas artes, preci-

    so ento afirmar que os quadros desse artista convidam a uma

    contemplao detida e, nesse sentido, distanciam-se do tempo

    cinematogrfico, cada vez mais ligado velocidade, sucesso

    rpida dos planos. Sintomaticamente, Hopper afirmou certa vez

    que pessoas normais no pulam e saltam como os atores nos

    filmes, seus ritmos so mais lentos (ODoherty, 1982, p. 13).

    No acidental, portanto, que sua pintura encontre paralelo

    no cinema na obras de cineastas no americanos e afeitos a um

    tempo narrativo mais lento e contemplativo. Nesse sentido,

    parece-me inegvel que no haja cineasta mais hopperiano do

    que o italiano Michelangelo Antonioni e, em igual medida, o

    alemo Wim Wenders.

    No necessrio ater-se distino entre um e outro, nem ar-

    gumentar que Wenders mais hopperiano que Antonioni, ou o

    inverso. Tendo em vista que Wenders discpulo direto e decla-

    rado tanto de Antonioni como de Hopper, talvez o mais simples

    seja enxergar uma autntica linhagem artstica, na qual o cinema

    de Wenders descendente direto do cinema de Antonioni que,

    por sua vez, tem razes na pintura de Hopper. A afinidade entre

    Wenders e Antonioni j foi declarada e atestada inmeras vezes

    pelo prprio cineasta. O cinema de Wenders pode at mesmo ser

    reduzido a um exerccio de permanente releitura dos pontos cen-

    trais da obra de Antonioni: a obsesso pelo deserto e pela estrada,

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    a incomunicabilidade e a solido da vida urbana, os enquadra-

    mentos geometrizantes e emoldurantes, o ritmo contemplativo.

    Essa simples enumerao das caractersticas partilhadas pelos

    dois cineastas j atesta tambm sua afinidade com o universo

    do pintor. Mas tambm esta j foi admitida inmeras vezes pelo

    prprio Wenders. No documentrio Der Bap film, que registra os

    bastidores de uma turn da banda alem Bap, Wenders reproduz

    intencional e fielmente luzes e enquadramentos hopperianos, in-

    cluindo encenaes literais de alguns quadros, como N.Y. movie,

    reproduzido em um teatro onde a banda se apresenta. Isso atesta

    a filiao e bastaria para legitimar a aproximao entre sua obra e

    a do pintor, tanto quanto o fascnio de Wenders pela cultura e pela

    iconografia americanas, vide a profuso de cowboys e cenrios

    tipicamente america nos em seus filmes (marcadamente em Paris,

    Texas, O amigo americano, At o fim do mundo e Estrela solitria).

    Se a influncia de Hopper sobre Wim Wenders uma autoevi-

    dncia, o mesmo no se pode dizer a respeito de Antonioni. At

    onde se sabe, e contrariamente ao seu discpulo alemo, o italiano

    jamais buscou fazer qualquer referncia em seus filmes obra do

    pintor americano. Ainda assim, a afinidade entre o trabalho de

    ambos inegvel: muitos planos isolados de filmes de Antonioni

    se parecem com quadros de Hopper e inmeros quadros do pin-

    tor parecem extrados de filmes do cineasta. Certamente, trata-se

    de um dos casos mais marcantes de afinidade estilstica e temtica

    do sculo XX. Hopper e Antonioni exprimem em seus trabalhos

    uma viso de mundo correspondente: no toa, ambos so consi-

    derados poetas do silncio, da solido e da incomunicabilidade.

    A solido, especialmente aquela vivida nas grandes cidades, exer-

    cia sobre ambos o mesmo fascnio. Em suas obras, as pessoas so

    annimas e a relao entre elas de circunstncia. Ambos eram

    bastante sensveis falta de comunicao entre o casal de classe

    mdia, o que se faz presente tanto na forma como so representa-

    das as personagens de quadros como Summer evening, Hotel by

    a railroad e Cape Cod evening, quanto de filmes como A aven-

    tura, O eclipse e A noite. Em certo sentido, como se Antonioni

    transformasse em filme aquelas histrias sobre incomunicabili-

    dade insinuadas nos quadros do americano. Os dois partilham

    a mesma viso pessimista da vida urbana contempornea e seu

    imenso tdio. Ambos so atrados pelos ambientes considerados

    no lugares, espaos sem histria e sem identidade, por onde as

    pessoas passam sabendo que nunca mais se encontraro. Ambos

    so igualmente obcecados pela viagem, pela vontade de se deslo-

    car, por personagens que buscam uma fuga da civilizao, como

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    aqueles dos filmes A aventura e Zabriskie Point, como a garota

    porta de casa em Summertime, presa entre a escurido de sua vida

    cotidiana e a promessa de luz e calor do que est alm.

    De uma perspectiva formal, ligada composio visual, as

    afinidades entre estes dois artistas so igualmente desconcertan-

    tes. Ambos partilham um mesmo ideal de economia formal, so-

    briedade, austeridade. H nos quadros de Hopper assepsia e cer-

    to tom glido que encontra paralelo na forma como Antonioni

    compunha seus planos. Do mesmo modo, as regras de enqua-

    dramento aplicadas por ambos respeitam uma composio or-

    gnica, articulada e grfica de figura e fundo. Nos filmes assim

    como nos quadros , a figura e o fundo compem um todo inse-

    parvel, so igualmente protagonistas da cena. Tudo aquilo que

    foi dito sobre a presena ou a ausncia da figura humana nos

    quadros de Hopper pode ser transposto para a anlise de um

    filme de Antonioni e em nenhum outro isso mais evidente

    do que em O eclipse. Seus dez minutos finais que esto entre

    os mais originais da histria do cinema so ocupados por uma

    sucesso de tomadas estticas dos locais que foram cenrio, ao

    longo do filme, dos encontros amorosos das personagens. Porm,

    nessa montagem final, todos aqueles espaos so revisitados em

    um momento em que esto completamente vazios. Assim como

    ocorre nos quadros, aqueles no lugares vazios constantemen-

    te evocam a presena humana que no est ali. , portanto, no

    tratamento do espao que encontramos as maiores semelhanas

    entre suas composies. Em ambos, o espao se investe de um

    valor psicolgico intrnseco, tambm expresso do interior de

    personagens presentes ou no. Os vastos ambientes ermos de

    alguns filmes de Antonioni so expresso do vazio sentimental

    e de sentido experimentado pelas suas personagens. Do mesmo

    modo, o ambiente do quadro Summertime expressa a dualida-

    de que, imaginamos, sentida pela jovem porta de casa. Essa

    psicologizao do espao no apenas permite enxergar na obra

    de ambos um parentesco com o expressionismo, como tambm

    aponta os caminhos atravs dos quais Hopper supera com seu

    estilo um simples realismo.

    Hopper e o realismo cinematogr"co

    Um caso como o de Hopper, de semelhana to profunda entre

    o trabalho de um pintor e a imagem cinematogrfica, s pos-

    svel para um artista de traos minimamente realistas. difcil

    imaginar que Klee, ou Kandinsky, pudesse evocar similaridades

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    com o cinema, porque apenas o figurativismo teria esse condo.

    De fato, o pintor americano frequentemente apontado, para

    fins de periodizao, como um representante da terceira e ltima

    fase do modernismo, marcada pelo retorno ao figurativismo e

    ao realismo. Essa classificao se faz particularmente importante

    aqui porque vincula seu trabalho diretamente ao cinema, dada a

    natureza representativa dessa arte, aquilo a que Bazin se referia

    como sua vocao realista. O fato de o cinema ter sido e

    continuar sendo a forma mais fiel conhecida pelo homem de

    representao do real tem condicionado a sua produo e apre-

    ciao desde o momento em que uma plateia, ainda iletrada no

    meios de fruio da imagem cinematogrfica, fugiu da sala de

    projeo ante a viso de um trem vindo em sua direo no filme

    dos irmos Lumire. Esperamos encontrar em um filme o mundo

    como ele se apresenta nossa percepo, imagens e sons que re-

    produzam a forma como estamos acostumados a experimentar a

    realidade. Mas, como j disse Malraux, esse realismo do cinema

    essencialmente plstico. Tem afinidade com a nsia do homem

    de reproduzir com sua tcnica o mundo como ele , a qual re-

    monta ao Renascimento. um realismo-imitao.

    O cinema, fundamentado em um processo mecnico de cap-

    tao de luz e sons, sempre ter a aparncia de realidade. talvez

    apenas nesse sentido que possa ser compreendida a tal vocao

    realista do cinema. A menos que estejamos falando de um cine-

    ma feito de imagens e sons no figurativos, como algumas expe-

    rincias do cinema de animao, do cinema experimental e da

    videoarte, todo o cinema ter mesmo a aparncia de realidade.

    J a pintura, sempre apresenta graus de realismo, que, do ponto

    de vista da plasticidade, vinculam-se apenas a simulaes da rea-

    lidade que, quanto mais precisas, mais nos iludem e mais reais

    so consideradas. Nesse sentido, as composies de Hopper so

    consideradas realistas porque fogem do abstracionismo, da dis-

    toro, e buscam retratar em tela elementos do mundo real de

    forma que simule a maneira como os percebemos.

    O outro ponto a respeito do sentido do termo realista na arte

    diz respeito ao fato de que uma obra assim considerada remete

    a um perodo histrico determinado. Realismo uma cate-

    goria sempre vinculada a um contexto especfico no caso de

    Hopper, aquele do modernismo. Em seu incio de carreira ele

    passou uma temporada na Europa, em plena ebulio de inova-

    es como cubismo, futurismo, surrealismo e outros movimentos

    rebeldes. Seus primeiros quadros so legtimos representantes do

    impressionismo, indicando que ele estava, naquele momento, co-

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    adunado com a tendncia geral das artes visuais de reproduzir

    com tinta e pincel no exatamente a realidade do mundo, mas a

    realidade da percepo. No entanto, durante o perodo verdadei-

    ramente tpico de sua produo, que se inicia a partir do final dos

    anos 1910, sua arte, assim como o modernismo como um todo,

    deu uma guinada em direo ao realismo. O modernismo, seja

    na literatura, seja nas artes plsticas, tem sempre sua trajetria

    marcada por esse arco, que parte da ecloso do inconsciente pos-

    sibilitada pela psicanlise, colocando na tela a verdade do mundo

    interior do artista, e termina com um retorno representao

    realista da vida externa, com uma volta aos valores de simulao

    da aparncia de real. Esse movimento ocorre tambm no cine-

    ma. No por acaso, o neorrealismo tido como marco inicial

    do cinema moderno convm evitar a expresso modernismo no

    cinema, j que este se manifesta igual e concomitantemente

    sua ocorrncia em outras artes.

    Simultaneamente ao boom das vanguardas no incio do s-

    culo XX, o cinema tambm passou por uma fase vanguardis-

    ta, em que as experincias de cineastas ligados ao futurismo, ao

    dadasmo e ao surrealismo prometiam tambm quela arte, to

    intrinsecamente destinada a reproduzir o mundo exterior, a pos-

    sibilidade de se tornar um espelho do inconsciente. No cinema,

    contudo, esse movimento de ecloso do inconsciente nem mesmo

    chegou a se consolidar. Ali, mais do que em outras artes, expres-

    sionismo, cubismo e abstracionismo so experincias rapidamen-

    te subjugadas e relegadas a uma categoria de obras parte, quase

    no cinemas. Com efeito, o cinema foi imediatamente alado

    condio de entretenimento popular e, dessa forma, deixou-se

    dominar pela imposio de convenes realistas de plasticidade.

    Se as artes plsticas e a literatura ditas modernas englobam

    tanto os produtos daquela primeira fase, surrealista e dominada

    pelo inconsciente, quanto aqueles do modernismo tardio, realista

    e marcado pelo retorno conscincia, o marco divisor do cinema

    clssico para o moderno se postula apenas em meados dos anos

    1940, com o surgimento do neorrealismo. curioso porque, apa-

    rentemente, o cinema, ao banir de seu repertrio aquelas formas

    inovadoras das vanguardas, parecia ter desde logo optado pelo

    realismo. Contudo, o que ocorre j nos anos 1920 e na consoli-

    dao do cinema narrativo tradicional a adoo de um realismo

    que se coloca a servio tambm da fantasia, um realismo que

    como apontado anteriormente apenas plstico, de imita-

    o do real percebido. No cinema tradicional, ainda que de apa-

    rncia realista, convenes de gnero se sobrepem a qualquer

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    pretenso de fazer dele um veculo de representao literal da

    experincia humana cotidiana da realidade. Assim, do mesmo

    modo que nas demais artes, o realismo volta a se impor no final

    do modernismo como reao ao excesso de sonho, o cinema con-

    quista sua modernidade apenas ao reagir ao excesso de fantasia

    que lhe foi imposto pelas convenes, o que explica a terminolo-

    gia utilizada a partir de 1945 para designar neorrealistas os fil-

    mes interes sados em capturar certa autenticidade da experincia

    humana, em termos agora no s de aparncia da percepo,

    mas tambm em ter mos de realidade psicolgica e social.

    O auge da carreira de Hopper, historicamente, coincide com

    a ecloso desse neorrealismo do cinema e com o fim do arco mo-

    dernista. Haveria, portanto, um paralelismo entre o carter rea-

    lista de suas pinturas e o neorrealismo? Seriam ambos aspectos

    de uma mesma reao, de uma mesma volta ao mundo exterior?

    foroso reconhecer que no.

    De fato, em termos de aparncia, a obra do pintor como

    o cinema de todos os tempos pode ser lida como realista na

    medida em que reproduz fielmente as formas, cores e propor-

    es do mundo real. Sua pintura claramente marcada pela

    conscincia da representao cinematogrfica e fotogrfica do

    mundo real e, como tal, postula um momento de exuberncia da

    tcnica, que seria o marco inicial para todas as posteriores ma-

    nifestaes realistas na arte, do realismo de um Wyeth ao fotor-

    realismo de um Estes todos, sem dvida, filhos legtimos de

    Hopper. Todavia, uma vez ultrapassadas as meras convenes

    de representao da percepo, nota-se que a obra hopperiana

    no simplesmente realista, no sentido de realismo social que

    se aplica quando falamos do cinema de De Sica ou da prosa de

    Graciliano Ramos. O realismo modernista do pintor americano

    um modernismo tardio e um realismo transformado. Depois

    de o mundo interior dos artistas ter sido representado exaus-

    to, no mais permitido captar a realidade em si, o artista no

    mais ingnuo a ponto de acreditar que pode levar s telas da

    pintura, porque o cinema durante o neorrealismo alimenta-se

    precisamente dessa iluso o mundo real tal qual ele . Hopper

    jamais colocou em seus quadros a realidade nua e crua, jamais

    evitou aplicar aos seus trabalhos a sua codificao subjetiva do

    real. Em seus escritos, ele manifesta constantemente sua posio

    de que a arte sempre o mundo real filtrado pela subjetivi-

    dade do artista e isso ntido em seus quadros. He agreed,

    not far from Zola, that art is fact seen through a personality

    (ODoherty, 1982, p. 9). O mundo real que vemos em seus

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    quadros no aquele que nossos olhos capturam, mas aquele

    que somente os olhos do artista poderiam cap turar, representa-

    do segundo sua prpria linguagem, suas prprias obsesses, seu

    prprio cdigo.

    Com efeito, uma anlise mais detida dessa pintura acaba por

    revelar que ela no , de fato, realista no sentido mais amplo e

    puro do termo, aquele que os cineastas neorrealistas buscavam

    alcanar. O mundo representado nos quadros, com toda a sua

    aparncia de realidade, na verdade marcado pela subjetivao

    e pela psicologizao do que percebido. Em uma definio ple-

    na de felicidade, ODoherty afirma que os quadros de Hopper

    so, sim, representaes de um fato que ele encarava em

    um sentido mais ou menos fotogrfico, como o momento de um

    evento isolado no tempo, apresentado percepo. Mas seus

    quadros apresentam esses fatos, guiados pela imaginao em

    direo a reas de incerteza, e ento contemplados fixamente

    (ODoherty, 1982, p. 16, traduo nossa). Suas representaes

    ultrapassam o representado: so a imposio de uma codifica-

    o e de uma subjetivao pesadas ao objeto. Afastam-se de um

    realismo-imitao rumo a uma noo que poderamos chamar

    de ultrarrealismo, realismo total, alm da percepo, que tem

    muito mais a ver com a viso surrealista do que com a dos rea-

    listas tpicos. No quadro que retrata duas pessoas em plena tar-

    de de vero, as cores ressaltam a atmosfera escura e poluda de

    uma noite triste. A cor viva do vero transformada para dar

    maior peso cena, isol-la do mundo. No importa muito o rigor

    da realidade. Importa-lhe, muito mais do que a verdade da per-

    cepo, a verdade da sua experincia. Na oposio entre a voz

    (subjetividade) e o fato (o mundo objetivo), Hopper tende muito

    mais representao da primeira do que do segundo. Seus qua-

    dros sempre representam figuras, objetos e lugares familiares, co-

    tidianos, conhecidos. Entretanto, caso se limitassem a reproduzir

    o conhecido como o conhecemos, seria absurdo atribuir-lhes a

    aura enigmtica que neles enxergamos.

    Para encerrar a questo, concentremo-nos em um quadro es-

    pecfico: Rooms for tourists. Nesta tela est representada uma ca-

    sa que serve de albergue, iluminada de dentro, no meio de uma

    noite escura. A princpio, parece tratar-se de uma representao

    naturalista. Contudo, a luz que ilumina a casa tem algo de fan-

    tasmagrica e produz um efeito sobrenatural: irradia-se por todos

    os ambientes dos dois andares do imvel como se fosse prove-

    niente de uma nica fonte de luz central e interna. Fosse exclu-

    sivamente realista e destituda de intenes psicologizantes, essa

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    pintura jamais evocaria tamanha gama de sensaes, de nsia,

    curiosidade, receio, mistrio. Com efeito, crticos constantemente

    apontam o parentesco deste quadro com O Imprio das Luzes II,

    de Magritte. Portanto, muito mais correto que aproxim-lo dos

    artistas de inteno naturalista, sejam eles pintores ou cineastas,

    enxergar um parentesco entre Hopper e este surrealista que,

    como ele, se valia da aparncia de realidade para conferir muito

    mais fora a representaes que so, na verdade, do mundo inte-

    rior do artista, no do mundo exterior. No por acaso tambm,

    sua pintura est muito mais prxima do cinema psicolgico e cheio

    de simbolismos de Antonioni que do realismo puro de Rossellini.

    Com base nesses apontamentos, chega-se constatao de

    que as construes de Hopper levam tela muito mais do in-

    consciente do que uma noo simplista de realismo poderia fazer

    supor. O seu realismo se limita aparncia e no se exaure na

    mera imitao do real, exatamente da mesma forma que o rea-

    lismo da imagem cinematogrfica. Aprendemos pela experincia

    que as imagens cinematogrficas so carregadas de simbolismos,

    de significados psicolgicos ocultos. No cinema, uma cena coti-

    diana est sempre sujeita ecloso do mgico e do sobrenatural,

    o mistrio ainda mais fascinante e real porque se oculta por

    baixo da aparente neutralidade de uma representao do mun-

    do tal qual ele exatamente como nos quadros de Hopper.

    Portanto, o que estes ltimos partilham com a imagem cinema-

    togrfica , sobretudo, a capacidade de insinuar contedos psi-

    cologicamente complexos a partir de uma figurao realista do

    mundo. A capacidade de nos oferecer o mistrio insondvel de

    nosso prprio interior sob a aparncia das imagens mais familia-

    res de nosso mundo exterior.

    Aumont, J. (2004). O olho interminvel: cinema e pintura. So

    Paulo: Cosac Naify.

    Betton, G. (1984). Esttica do cinema. So Paulo: Martins

    Fontes.

    Fischer, L. (1999). The savage eye: Edward Hopper and the ci-

    nema. In T. Ludington, A modern mosaic: Art and moder-

    nism in the United States (pp. 334-355). Chapel Hill: The

    University of North Carolina Press.

    ODoherty, B. (1982). American masters: The voice and the

    myth in modern art. Nova York: E. P. Dutton, Inc.

    REFERNCIAS

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  • 176

    IDE SO PAULO, 34 [51] DEZEMBRO 2010

    Renner, R. G. (1992). Edward Hopper: transformaes do real.

    Colnia: Taschen.

    Edward Hopper e a imagem cinematogrfica Neste artigo, o au-

    tor se prope a expor e analisar a relao de mtua influncia

    entre a obra do pintor norte-americano Edward Hopper e o ci-

    nema. A transposio de seus temas e elementos estilsticos para

    certos filmes discutida, assim como o papel de sua pintura na

    fixao de uma iconografia da realidade norte-americana repro-

    duzida pelo cinema. Uma comparao mais detida estabeleci-

    da entre elementos da pintura de Hopper e do cinema de Wim

    Wenders e Michelangelo Antonioni. Por fim, discute-se no artigo

    a pertinncia da classificao de Edward Hopper como um pintor

    realista, pondo em evidncia as implicaes de uma afirmao

    desse tipo, bem como consideraes sobre o realismo no cinema e

    a manifestao de elementos psicolgicos nos quadros de Hopper.

    | Edward Hopper and the cinematographic image In this arti-

    cle, the author sets out to expose and analyze the relationship of

    mutual influence between the work of American painter Edward

    Hopper and film. The transposition of his themes and stylistic

    elements to some movies is discussed, as well as the role of his

    painting in the setting of an iconography of American reality

    also reproduced by cinema. A more detailed comparison is made

    between elements of the work of Hopper and that of filmmakers

    Wim Wenders and Michelangelo Antonioni. Finally, the article

    discusses the relevance of the classification of Edward Hopper as

    a realist painter, highlighting the implications of such a statement

    as well as considerations about realism in the cinema and the

    emergence of psychological elements in the paintings of Hopper.

    Artes. Pintura. Cinema. Edward Hopper. Michelangelo

    Antonioni. Wim Wenders. Realismo. Surrealismo. | Arts.

    Painting. Cinema. Edward Hopper. Michelangelo Antonioni.

    Wim Wenders. Realism. Surrealism.

    MARCOS KURTINAITIS

    Rua Bandeira Paulista, 97/42

    04532-010 So Paulo SP

    [email protected]

    RESUMO | SUMMARY

    PALAVRAS-CHAVE | KEYWORDS

    RECEBIDO 10.09.2010ACEITO 25.09.2010

    161-176