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Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais

Sistema Acusatorio a Conformidade Constitucional 3 Ed-libre

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Sistema Acusatorio a Conformidade Constitucional 3 Ed-libre

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  • Sistema Acusatrio A Conformidade Constitucional

    das Leis Processuais Penais

  • EDITORA LUMEN JURIS

    EDITORES

    Joo de Almeida Joo Luiz da Silva Almeida

    CONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Cmara Antonio Becker Augusto Zimmermann Eugnio Rosa Firly Nascimento Filho Geraldo L. M. Prado J. M. Leoni Lopes de Oliveira Letcio Jansen Manoel Messias Peixinho Marcello Ciotola Marcos Juruena Villela Souto Paulo de Bessa Antunes

    CONSELHO CONSULTIVO lvaro Mayrink da Costa Aurlio Wander Bastos Cinthia Robert Elida Sguin Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho Jos dos Santos Carvalho Filho Jos Fernando C. Farias Jos Maria Pinheiro Madeira Jos Ribas Vieira Marcellus Polastri Lima Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton

  • GERALDO PRADO

    Sistema Acusatrio A Conformidade Constitucional

    das Leis Processuais Penais

    3a Edio

    EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro

    2005

  • Copyright 2005 Geraldo Prado

    SUPERVISO EDITORIAL Antonio Becker

    EDITORAO ELETRNICA Maanaim Informtica Ltda.

    Telefone: (21) 2242-4017

    CAPA Mrcia Campos

    A EDITORA LUMEN JURIS

    no aprova ou reprova as opinies emitidas nesta obra, as quais so de responsabilidade exclusiva do seu Autor.

    proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas

    grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no

    6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

    ISBN 85-7387-029-X

    Todos os direitos reservados

    Editora Lumen Juris Ltda. www.lumenjuris.com.br

    Rua da Assemblia, 10 grupo 2.023 Telefone (21) 2531-2199

    Fax (21) 2531-1126 Rio de Janeiro, RJ - CEP 20.011-000

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • O teu silncio uma nau com todas as velas pandas Brandas, as brisas brincam nas flmulas, teu sorriso E o teu sorriso no teu silncio as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao p de qualquer paraso.

    Para Giselle, com amor.

  • Sumrio

    APRESENTAO ....................................................................... PREFCIO.................................................................................. NOTA DO AUTOR 1 EDIO ................................................ NOTA DO AUTOR 2 EDIO ............................................... NOTA DO AUTOR 3 EDIO ............................................... 1. INTRODUO ........................................................................ 2. -O DIREITO PROCESSUAL PENAL E A CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL .................................................................... 2.1. Introduo .......................................................................... 2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais ........ 2.3. Direito, Processo e Democracia ........................................ 2.4. Constituio e Processo Penal .......................................... 2.5. Sistema e Princpios: Uma Aproximao Tipolgica ...... 3. SISTEMAS PROCESSUAIS ..................................................... 3.1. Histrico: mtodo aplicado ao objeto. Um acerto semntico

    3.1.1. Situao na Antigidade ............................................ 3.1.2. Direito Medieval e da poca Moderna ..................... 3.1.3. O Common Law ........................................................ 3.1.4. O Direito da poca Contempornea ........................

    3.2. Caractersticas do Sistema Acusatrio ............................. 3.2.1. Princpio e Sistema Acusatrio: Diferenciao........ 3.2.2. Caractersticas do Princpio Acusatrio ..................

    3.2.2.1. Da Perspectiva Esttica do Processo: Poderes, Deveres, Direitos, nus e Faculdades dos Sujeitos Processuais............................................. I. Do Juiz ..................................................................... II. Da Acusao ........................................................... III. Da Defesa ..............................................................

    3.2.2.2. Da Perspectiva Dinmica do Processo: Da Atuao dos Sujeitos Processuais ........................ I. O Estatuto da Defesa em Movimento: O

    Conflito entre os Interesses do Defensor

  • e do Acusado e o Limite s Solues de Consenso .................................................................

    II. O Estatuto da Acusao em Movimento: A Oportunidade Regulada na Ao Pblica e a Vedao Ordinria Investigao Direta .............

    A. A Oportunidade Regulada na Ao Pblica .. B. A Vedao Ordinria Investigao Direta ..

    III. O Estatuto do Juiz em Movimento: Livre Convencimento e os Poderes de Investigao do Juiz A Mutatio Libelli ...................................

    A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigao do Juiz ........................................

    A.1. Do livre convencimento e a confisso do acusado solues consensuais ...............................................

    A.2. Das Provas Legais Negativas ............... B. Alterao dos Fatos ........................................

    3.2.3. Caractersticas do Sistema Acusatrio ..................... 3.2.3.1. Da Oralidade ...................................................... 3.2.3.2. Da Publicidade ...................................................

    I. Da Publicidade Tradicional .................................... II. Dos Juzos Paralelos da Imprensa ........................

    3.2.4. A Ttulo de Concluso ............................................... 4. A ELEIO CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ACUSATRIO 4.1. Breve Histrico do Processo Penal Brasileiro .................. 4.2. Caractersticas do Sistema Processual Brasileiro ............ 5. -O SISTEMA ACUSATRIO E A LEGISLAO PROCESSUAL POSTERIOR CONSTITUIO ................................................. 5.1. A Lei de Controle do Crime Organizado e a Lei das

    Interceptaes Telefnicas ................................................. 5.2. A Lei dos Juizados Especiais ............................................

    5.2.1. Da Transao Penal .................................................... 5.2.2. Da Suspenso Condicional do Processo ...................

    5.2.2.1. Da Natureza Jurdica (Primeira Parte) ............. 5.2.2.2. Da Natureza Jurdica (Segunda Parte)............. 5.2.2.3. Da Natureza Jurdica (Terceira Parte) .............

  • 6. A EXECUO PENAL E O SISTEMA ACUSATRIO ........... 7. CONCLUSO ......................................................................... REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................. ANEXO: Da Lei de Controle do Crime Organizado: crtica s

    tcnicas de infiltrao e escuta ambiental.................

  • Apresentao

    H boas razes para festejar o lanamento deste livro.

    Em primeiro lugar, ele se inscreve afirmativamente na militante produo terica atravs da qual os juristas brasileiros efetivamente comprometidos com o estado de direito democrtico, vencendo a perplexidade pela crtica, resistem desafortunada conjuntura poltico-criminal que a implantao do projeto neoliberal estabelece entre ns.

    Em segundo lugar, ele se incorpora a um renascimento dos estudos processuais penais no Rio de Janeiro. Com efeito, e sem embargo de valiosas contribuies individuais que mantiveram aceso o fogo votivo, o processo penal a gata borralheira que Carnelutti entreviu humilhada entre suas irms, o direito penal e o processo civil no atraiu em terras cariocas, logo aps a Constituio, o interesse imediato dos jovens juristas, com o entusiasmo e a intensidade que, por exemplo, observou-se em So Paulo. Hoje, constata-se que a gata borralheira vem sendo aqui perfilhada por inmeras e capacitadas vocaes acadmicas.

    Em terceiro lugar, o livro merece ser festejado por seu prprio contedo e mtodo; ia escrever carter. Sim, de carter que se fala quando a investigao define claramente seu marco terico, e a ele guarda fidelidade em todos os seus passos. Sob a generosa influncia do pensamento ferrajoliano, Geraldo Prado se filia ao garantismo, e a partir da pode questionar tanto a legitimidade do decisionismo judicial, este fmulo de chapa-branca do eficientismo penal, quanto a lenda da verdade real, cuja overdose costuma despertar o inquisidor que ainda dormita sob a toga de tantos magistrados.

    No opera o Autor, contudo, com um garantismo de fachada, conceitualmente reconstrudo a partir da sonolncia dogmtica. Nas fundaes constitucionais do processo penal, descarta os pilares puramente ideolgicos de uma

  • democracia qualquer, fulcrada na mera declarao formal de respeito aos direitos fundamentais, e busca a referncia de uma real democracia participativa, integradora e solidria; interessa-lhe, portanto, a prtica e o discurso dos operadores poltico-jurdicos que, na (des)proteo daqueles direitos fundamentais, se comprazem com sua positivao, atuando precisamente sem implement-los (s vezes mesmo negando-os). No por acaso, a histria dos sistemas processuais ocupa um precioso captulo.

    No eixo da investigao est o princpio acusatrio, com todas as suas mltiplas consequncias, que vo das provas at a sentena, resultante final das equilibradas e sincrnicas contribuies do autor da ao penal, do ru e do juiz. Num escrito admirvel, no qual preconiza o retorno a uma concepo substancialmente jurisdicional e no meramente instrumental do processo penal, Gaetano Foschini recusava a tradio que restringe o ofcio judicirio apenas ao juiz ou, pior ainda, ao juiz e ao ministrio pblico, numa autoritria contraposio ao ru e a seu defensor. Este o tema central que Geraldo Prado, com argcia e probidade intelectual, retoma e estuda a partir do quadro normativo e das prticas judiciais brasileiras.

    Apesar de clara opo constitucional, ainda estamos distantes de uma acusatoriedade mxima, assinala lisamente o Autor. No s no campo do processo penal, vivemos a contradio entre um texto constitucional democrtico formal e procedimentos reais que respiram a cultura discriminatria, racista e exterminadora da caracterstica de nossa formao social. O projeto neoliberal requer um sistema penal capilarmente repressivo, para o controle dos contingentes humanos que ele mesmo massivamente marginaliza. A legitimao dessa repressividade tem nos mtodos investigatrios arbitrrios e invasivos um ingrediente estratgico, como se pode ver nos meios de comunicao ou na indstria cultural do crime. A pesquisa do ponto diablico, continua seduzindo a alma ocidental, e um bom inquisidor seja este Kenneth Star das manchetes obscenas, seja aquele juiz-verdugo do

  • seriado Justia Final alcana em segundos a fama que Nicolau Eymerich angariou em sculos.

    Na eleio de seu objeto, todo pesquisador se revela de corpo e alma e, portanto, cabe, por fim, festejar que Geraldo Prado oferea ao juristas brasileiros a oportunidade de refletir, nesses tempos difceis, sobre o princpio acusatrio e as mltiplas opresses que, no espao processual, decorrem de sua violao.

    Nilo Batista

  • Prefcio

    Em boa hora, o amigo Geraldo Prado publica sua

    excelente dissertao de mestrado, onde estuda profundamente a estrutura acusatria do processo penal. Talvez em razo da inflao legislativa dos ltimos anos, muitos importantes autores de Direito Penal e Processual Penal tm se limitado produo de obras de cunho meramente exegtico, procurando, j num primeiro momento, dizer qual a melhor interpretao para este ou aquele novo dispositivo legal.

    Na verdade, esta dcada no tem sido muito frtil para a doutrina penal e processual penal no Brasil, fazendo-nos lembrar a ultrapassada poca do procedimentalismo. Principalmente no processo penal, sentimos falta de novas obras de cunho mais sistemtico, doutrinrio e, especialmente, crtico. Parece que o livro de Geraldo Prado rompe com este ciclo e nos apresenta trabalho acadmico do mais alto valor cientfico.

    Consoante o leitor comprovar, cuida-se de uma monografia que, praticamente, esgota o tema pesquisado. Restou demonstrada a excelncia do sistema acusatrio moderno, que consegue criar condies que preservam a imparcialidade do juiz sem prejuzo do carter publicstico do processo penal, como instrumento da atividade jurisdicional do Estado. As caractersticas deste processo e os princpios que o fundamentam so estudados de forma densa e moderna, buscando-se sempre uma interpretao que incorpore os valores que se possa extrair do nosso sistema constitucional. O chamado Juizado de Instruo no tem guarida em nosso sistema constitucional.

    Desta forma, Geraldo Prado critica vrios diplomas recentes que se apresentam em descompasso com as premissas tericas que so estabelecidas durante o desenvolvimento do trabalho. Faz uma verdadeira filtragem constitucional das novas leis que regulam matria

  • processual penal. J na leitura dos originais dos primeiros captulos desta excelente dissertao de mestrado, percebi que seria produzida uma obra importante para a compreenso de nosso sistema processual penal. Sua leitura se apresenta til no s para os estudantes, mas tambm para os especialistas da matria. Muito lucrei em l-la, por isso ouso recomend-la.

    Por derradeiro, quero dizer que fiquei honrado com o convite de Geraldo Prado para ser o prefaciador de mais um de seus livros. Cuida-se hoje de magistrado criminal que, novo ainda, j ingressava no Ministrio Pblico, sempre atravs de disputados concursos pblicos. Professor j experiente, Geraldo Prado tem se salientado como conferencista admirado. Assim, esta minha tarefa somente se justifica em razo de ter comeado primeiro, j que possuidor de mais idade. Temos muitos pontos em comum, inclusive na forma de pensar o Direito e a sociedade em geral. Invocando o direito de resposta para que o leitor possa, desde logo, perceber quem Geraldo Prado, quero publicamente rebater ofensa que recentemente ele me fez, chamando-me afetivamente de conservador, aps painel de que participamos na Escola da Magistratura do RJ. Em verdade, Geraldo e eu desenvolvemos uma viso crtica em face do sistema penal, apenas me afasto um pouco de seu pensamento mais liberal na medida em que, ideologicamente socialista, caminho na direo do chamado uso alternativo do Direito. Sem me afastar da perspectiva garantista, percebo a dimenso poltica do sistema penal e quero us-lo tambm politicamente na busca do socialmente justo. Julgo, entretanto, que os nossos caminhos chegam ao mesmo lugar, vale dizer, a busca de uma sociedade e, por conseginte, de um Direito radicalmente democrtico.

    E isto est retratado no livro que o afortunado leitor ora comea a ler.

    Rio de Janeiro, outubro de 1998

    Afrnio Silva Jardim

  • Nota do Autor 1 Edio A primeira reao dos operadores jurdicos, logo em

    seguida edio de uma lei processual penal, consiste em examinar-lhe a conformidade constitucional, investigando as concordncias e harmonias entre seus sentidos e formas e os princpios e normas que constituem o ponto mais alto do ordenamento jurdico.

    Concluda a tarefa de exame da constitucionalidade do novo diploma, passam os operadores pesquisa da concordncia com o sistema. Diz-se de uma lei processual penal que ela pode estar de acordo ou divorciada do sistema processual no qual, inserida, est destinada a atuar.

    Articular a conformidade constitucional com a simetria do sistema processual penal, em face do fundo cultural sobre o qual se erguem ambos os valores, a pretenso deste trabalho. A hiptese sobre a qual se baseia a obra pressupe a tenso real entre normatividade e facticidade do sistema jurdico processual penal, em virtude da qual so perceptveis dimenses reais e contraditrias de atuao de atores e funcionamento de instituies, cujo fim consiste na adjudicao de solues tanto quanto possvel legtimas aos conflitos de interesses travados no ambiente do direito penal.

    O permetro traado, porm, no exaure todas as possveis faces da aproximao constituiosistema, mas se inclina, to-somente, ao exame dos laos entre a Constituio e o Processo Penal, naquilo que resume a sua vocao comum, isto , o equilbrio no exerccio do Poder e a tutela de direitos e garantias indispensveis considerao da dignidade do ser humano. Alinha estas duas grandes vertentes direitos fundamentais e princpio da separao dos poderes vista da conformao de um processo penal inspirado no princpio democrtico, fundado na soberania popular e na legitimidade no s das instituies como dos

  • procedimentos eleitos, em virtude do que, no seu aspecto mais doloroso, qual seja, o do processo penal condenatrio, sustenta-se como nica estrutura condizente quela pertinente ao sistema acusatrio.

    A afirmao da eleio constitucional do sistema acusatrio, contudo, no suficiente, haja vista a polissemia que envolve a expresso e os limites mais ou menos estreitos que se verificam na prtica, determinados pela herana histrica romano-cannica.

    Por essa razo, o trabalho evoluiu em direo ao estudo do encadear histrico dos sistemas processuais, a validade constitucional deles a partir de consideraes de um sistema geral de garantias, e definio dos seus elementos essenciais, concluindo, no tocante ao sistema acusatrio, que a sua base est fincada sobre um princpio do qual recebe a designao e que representa o mnimo redutor, na linha perspectivada na obra, passvel de engendrar a ligao entre o modelo normativo de processo penal e o modelo democrtico de Estado e sociedade. As expectativas de uma confluncia ideal entre o sistema processual preconizado e aquele efetivamente adotado, pelo primado do direito, ou, em outras palavras, pela crena no primado do Estado de Direito Estado Constitucional Democrtico est em que, como salienta Habermas, o direito extrai a sua fora muito mais da aliana que a positividade do direito estabelece com a pretenso legitimidade,1 mas pode muito bem, havemos de recear, conferir aparncia de legitimidade ao poder ilegtimo.

    Portanto, compreender a peculiar realidade do processo penal brasileiro, que, a par das influncias externas, diz muito do jeito de um povo ser e estar no mundo e de projetar valores e expectativas, como afirmam os portugueses, o resultado natural do desenvolvimento do estudo, sem perder de vista, todavia, a noo exata das relaes que vo se estabelecendo entre a promessa de democracia, inclusive no

    1 Habermas, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 60.

  • processo, elaborada pelos constituintes de 1988 e a viso da persecuo penal entranhada na alma da maioria dos operadores jurdicos. Essa a razo de compararmos as concluses que nos pareceram naturais, sobre o modo como se expressa a fidelidade ao princpio e ao sistema acusatrios e a forma pela qual, principalmente, os dois mais expressivos tribunais do pas, o Supremo Tribunal Federal, guardio da Constituio, e o Superior Tribunal de Justia, enfrentam a questo, ainda que de maneira discreta se comparados a tribunais de outros lugares, como o caso dos espanhis, norte-americanos e alemes.

    De tudo restava, por derradeiro, afastarmo-nos do leito do processo penal ordinrio e, com o instrumental tcnico deduzido ao longo da obra, a conscincia da relevncia das inclinaes culturais e a crena nas promessas constitucionais, comparar recentes disposies especiais do Processo Penal, nascidas para cuidar de manifestaes diferentes da criminalidade, com o princpio e o sistema acusatrios.

    O resultado, a nosso juzo, exprime o reconhecimento de que h grandes espaos a percorrer, muita disposio cultural estranha Constituio a ser enfrentada e um aparente sistema acusatrio operando, aguardando o esforo da doutrina e da jurisprudncia para vencer esta etapa e transformar-se em um sistema acusatrio real, capaz de articular segurana e direitos fundamentais, controle social e dignidade humana.

    Quero expressamente agradecer a Afrnio Silva Jardim pela oportunidade de desfrutar de sua amvel e profcua companhia intelectual na composio da dissertao de mestrado que deu origem ao livro. Dos eventuais acertos o crdito, por justia, pertence ao excepcional processualista e amigo. Agradeo tambm, expressamente, aos juristas Luiz Flvio Gomes e Alberto Silva Franco pelas oportunas indicaes bibliogrficas; a Weber Martins Batista, este por haver despertado em mim, com suas aulas inesquecveis, a paixo pelo estudo do Processo Penal; e ao corpo docente do curso de mestrado em Direito da Universidade Gama Filho.

  • Dedico o trabalho aos estagirios da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro EMERJ, onde certamente aprendo mais do que ensino, aos estudantes dos cursos de graduao em Direito das Universidades Gama Filho e Veiga de Almeida, aos queridos advogados Marcia Dinis, Carlos Roberto Barbosa Moreira, Ildio Moura, Luiz Guilherme Martins Vieira e Jos Miranda de Siqueira, a meus filhos, Gabriela e Felipe, e meus pais, todos cotidianos habitantes do meu corao. Por fim, mas no por ltimo, agradeo paciente Emlia, da Universidade Gama Filho, s funcionrias da biblioteca do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro e aos companheiros do Instituto Carioca de Criminologia e do Frum de Execues Penais da EMERJ.

  • Nota do Autor 2 Edio Certamente distante de ter conseguido realizar o

    propsito anunciado na primeira edio, de submeter ao teste de conformidade ao sistema acusatrio parte da legislao processual penal brasileira, apresento esta segunda edio.

    Os leitores logo percebero que se trata de trabalho modificado e acrescido, com nfase especial s questes que atormentam o profissional do direito em seu cotidiano. Os acrscimos no afetam seu contedo original e as idias que sigo defendendo ou perturbam sua forma acadmica. Pelo contrrio, marcam a aliana que reputo indispensvel entre teoria e prtica, a fim de demonstrar que o mito, fraco em todos os sentidos, de que h um abismo entre a academia e o foro, nada mais do que posio ideologicamente orientada no campo do processo penal a fomentar a descrena na validade das garantias fundamentais conquistadas e mantidas a duras penas por nossos antepassados.

    Insisto em reafirmar os postulados do Garantismo, muito embora reconhea, em trabalhos mais recentes, a necessidade de pensar uma teoria do processo penal voltada realidade brasileira e latino-americana. As linhas mestras dos princpios liberais dos sculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, no devem ser abandonadas. Porm, a articulao das garantias aos projetos de emancipao das sociedades perifricas certamente no poder ter lugar sem adaptaes e sem o reconhecimento das peculiaridades das nossas sociedades no tabuleiro ps-moderno imposto no jogo (jugo?) da globalizao.

    O Garantismo no uma religio e seus defensores no so profetas ou pregadores utpicos. Trata-se de um sistema incompleto e nem sempre harmnico, mas sua principal virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade,

  • baseada em procedimentos que tm em vista o objetivo de conter os abusos do poder e criar condies para que este mesmo poder possa integrar as pessoas, eliminando dentro do possvel todas as formas de discriminao.

    Na era ps-moderna, o processo penal vai cada vez mais assumindo posturas pr-modernas e, por essa razo, a anlise crtica das categorias processuais indispensvel. Este continua sendo o meu objetivo.

    Em vista disso, aceitei o desafio de tratar da oralidade e da publicidade, enfrentando os problemas derivados da forte interferncia dos meios de comunicao de massas nas questes relativas ao crime e punio de seu autor. Sobre o tema havia muito mais a dizer, no entanto preferi restringir a abordagem aos pontos de conexo com o sistema acusatrio.

    Acrescentei um captulo, dedicado ao processo de execuo, zona sombria onde o que acontece parece no interessar comunidade. A medida da nossa civilizao ser futuramente apreciada pelo modo como, no presente, cuidamos do controle social punitivo.

    Pesei longamente as crticas e, salvo pela intransigente defesa da imparcialidade do juiz como premissa de que a ele compete julgar as causas e no tomar a si a aplicao do direito penal, procurei aperfeioar o texto e corrigir eventuais equvocos.

    No seria sincero se dissesse que no estou feliz com o resultado. Muitas vezes nos colocamos um desafio superior s nossas foras justamente para tentarmos nos superar e oferecer aquilo que h de melhor em ns. Penso que, no meu caso, a profisso de f que me anima e me faz juiz e professor consiste em acreditar que, por meio do meu trabalho, presto contribuio para tentar melhorar a vida das pessoas.

    Devo muito ao Curso de Mestrado em Direito da Universidade Estcio de S UNESA, pois as pesquisas que desenvolvi no projeto Defesa Penal, incentivado pela referida Instituio, foram incorporadas ao texto desta segunda edio, lanando luz sobre aspectos fundamentais do trabalho.

    Por fim, anoto uma correo necessria e uma enorme

  • frustrao. Ao dedicar a primeira edio deste livro mulher que amo, aconteceu de serem omitidas as aspas poesia de Fernando Pessoa. Muitos imaginaram em mim uma veia potica que, lamentavelmente, no possuo. Eduardo Galeano, frustrado por no saber pintar, registrou um dia que lhe deram o dom de escrever para que pudesse pintar em forma de prosa. Gostaria de ser msico mas me faltam as qualidades para isso. Escrevo inspirado em harmonias ideais e ritmos imaginrios, intuies que s conhece quem verdadeiramente ama. E isso eu devo a Giselle.

    Nota do Autor 3 Edio

    O leitor tem em mos a terceira edio do Sistema Acusatrio.

    Trata-se de uma obra concebida originalmente em circunstncia precisa: a defesa de uma dissertao de

  • mestrado, ao fim dos anos 90, dez anos depois da promulgao da Constituio da Repblica de 1988.

    Toda a estrutura do livro foi pensada no contexto criado pela tenso entre uma Constituio rica em garantias no processo penal e a realidade de uma sociedade ainda no acostumada com os ares da liberdade conquistada com o fim do regime militar.

    A experincia acadmica e a prtica cotidiana, como juiz criminal no Rio de Janeiro, foram decisivas na fixao das fronteiras do trabalho. A certeza de que s muito timidamente a doutrina do Processo Penal no Brasil conseguia empreender vos tericos audazes, enquanto em outros lugares a reconquista da liberdade poltica vinha associada a mudanas estruturais do processo penal, principalmente atravs do abandono dos modelos inquisitrios, motivou a escolha do tema e a eleio do orientador, Afrnio Silva Jardim, a quem at hoje sou grato por tudo.

    Sistema Acusatrio, portanto, tinha tudo para ser um livro datado. E em alguma medida ainda tem. H captulos que investigam o Direito estrangeiro e tambm algumas leis penais especiais brasileiras. No ficaram congelados nesta terceira edio. Por bvio que no tocante ao direito de fora h um limite de atualizao, estabelecido por diversas razes. E neste particular sou grato a Aury Lopes Jr., que me sugeriu investiir em uma ltima e moderada atualizao, advertindo o leitor interessado neste aspecto da matria para que sempre confira o estado do tema em fontes atualizadas do Pas escolhido.

    Sobre as leis especiais brasileiras o que posso dizer que de tal modo a pesquisa empreendida para apreender-lhes o contedo foi estimulante que, posteriormente, no doutorado e em outras atividades da vida acadmica, terminei produzindo obras centradas com exclusividade nelas. Estas obras so citadas no livro, todavia mesmo neste tpico o Sistema Acusatrio mantm interesse, pois permite a quem se inicia em processo penal ter viso panormica da matria, abragente de algo maior que o Cdigo de Processo

  • Penal brasileiro, hoje de aplicao quase residual. Estes pontos foram profundamente modificados, assim

    como tudo o que compreende os cinco primeiros captulos, em suma, o cerne da obra.

    No se trata de um livro novo, muito embora quem o tenha escrito seja hoje algum bastante diferente do autor da edio original. O importante que a linha mestra, a espinha dorsal, consistente na compreenso do sistema processual penal eleito em 1988, pelos constituintes, tenha sido mantida.

    O aprofundamento da abordagem tem vrios motivos. A comear pelo sucesso da obra, que motivo de

    orgulho para mim. Adotado em cursos de ps-graduao stricto sensu, o livro abriu espao para dilogo entre escolas brasileiras de processo penal que coexistiam, porm no conviviam.

    E foi um dilogo rico, retratado, por exemplo, no debate acerca da existncia de um terceiro gnero: o sistema adversarial, defendido por aqueles doutrinadores que reconhecem a existncia de poderes supletivos de investigao judicial (o juiz estaria autorizado a produzir provas de ofcio e isso no afetaria a natureza do sistema acusatrio). O sistema adversarial seria uma espcie (remanescente) de sistema acusatrio puro, em que o juiz permanece inerte, isto , no produz provas. O leitor ter a oportunidade de acompanhar esse debate, que central quando se pensa na reformulao completa ou mesmo na substituio do quase-morto Cdigo de Processo Penal de 1941.

    Alm do(s) dilogo(s) flagrado(s) nas pginas dessa nova edio, sempre com respeito pelos pontos de vista contrrios aos que se defende aqui, houve tambm alguma mudana de conceitos.

    A constituio nos ltimos anos de uma espcie de Escola Crtica de Processo Penal brasileiro, integrada por juristas de vrias partes do pas, sem lideranas intelectuais verticalizadas, mostrou como possvel avanar em temas difceis e tentar descomplic-los, recorrendo a outras

  • disciplinas. Nesta Escola Crtica possvel identificar muitos pontos de partida diferentes e perceber a convergncia do destino: melhorar o processo penal do Brasil para que ele no seja instrumento de perpetuao da desigualdade e da injustia.

    E vrios conceitos foram aperfeioados graas a essa extraordinria (para mim) convivncia. Ao jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, do Paran, eu devo a apresentao a Franco Cordero (falha grave em minha bibliografia original, que assumo integralmente, porque Afrnio j chamara ateno para a singularidade da tica de Cordero).

    Pelo menos uma conseqncia deriva disso: quando passei a trabalhar tambm com Michele Taruffo e Alberto Binder pude divisar diferenas funcionais entre o processo penal fundado na apurao do fato (e soluo do caso) e o processo penal, dirigido pela idia de composio de conflitos, que permeia o modelo de justia penal consensual. As concluses so minhas, com os riscos de erro e acerto inerentes. A matriz terica sofreu, todavia, influncia desses autores e, por certo, Cordero foi um dos mais importantes.

    Garantindo desde logo aos no versados em filosofia que isso no impede a leitura e o aproveitamento da obra, quero ressaltar ainda a importncia dessa invaso (limitada, infelizmente) da histria e, principalmente, da filosofia.

    Com efeito, no prlogo da edio argentina do trabalho extraordinrio de James Goldschimidt, denominado Problemas Gerais do Direito, obra publicada postumamente, Eduardo Couture chama ateno para o estado de angstia que atinge o jurista, quando percebe as limitaes de uma cincia construda sobre bases estritamentes dogmticas. So palavras de Couture, traduzidas livremente: que na vida de todo jurista h um momento em que a intensidade do esforo em torno aos textos legais conduz a um estado particular de insatisfao. O direito positivo se vai despojando de detalhes e fica reduzido a uma cincia de grandes planos. Por sua vez, estes grandes planos reclamam um sustento que a prpria cincia no lhes pode dispensar. O

  • jurista adverte ento, como se a terra lhe faltasse aos ps e clama pela ajuda da filosofia. A maior das desditas que pode ocorrer ao jurista a de no haver sentido nunca sua disciplina em um estado de ansiedade filosfica.

    O encontro com a interdisciplinaridade facilitou a minha forma de lidar com o processo penal. Creio que ser igualmente til ao leitor.

    No plano da simplificao devo ao prof. Dcio Alonso Gomes e a pesquisadora Laila Guimares Ferreira talvez a mais importante contribuio desta terceira edio. Ambos mostraram a penetrao do livro junto ao pblico de estudantes de graduao e identificaram trechos em que a linguagem pesada das teses dificultava a compreenso. Alis, Giselle j me havia advertido para isso e nesta terrceira edio eu me dediquei a aliviar o peso da escrita mais hermtica, na tentativa de fazer chegar aos alunos da graduao as razes do meu entusiasmo, quanto vezes identificado por eles em palestras e conferncias.

    Espero ter atingido o objetivo, at porque as maiores alegrias que o magistrio me proporcionou eu devo aos alunos da graduao. Nestes ltimos anos so os da Faculdade Nacional de Direito e da Universidade Estcio de S. Em outras pocas foram os da UNIG, Universidade Gama Filho, Veiga de Almeida e Cndido Mendes, sem contar os do CEPAD. E pelo Brasil afora h os de Campos dos Goytacazes, Recife, Curitiba, Porto Alegre...

    Laila Guimares Ferreira e Aline de Souza Siqueira, ambas da Escola da Magistratura do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, cooperaram, ainda, na atualizao da pesquisa de jurisprudncia e doutrina. Sou muito grato a ambas.

    Entre me decidir por reeditar o Sistema Acusatrio e traz-lo de volta s livrarias quase dois anos se passaram. Muitas histrias tambm. Desde a histria da namorada, que no da rea do direito, mas extraiu de mim o ltimo exemplar da segunda edio para presentear o namorado paranaense, estudante de graduao da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran (essas coisas de corao

  • sempre produzem efeito, espero que o presente tenha agradado!), at a dos dias que eu, Giselle, Gabriela, Felipe e Luis Fernando (o Lula, de nove anos, primo do Felipe) passamos em Bzios, no nicio de 2005, hospedados pelo estimado Fbio Andrade, quando pude (quase) concluir essa terceira edio de frente para o mar e em paz com Deus.

    O que posso dizer que fiquei muito feliz com o resltado e espero que voc tambm fique.

    Geraldo Prado [email protected] www.direitosfundamentais.com.br

    1. Introduo No julgamento do Habeas Corpus no 73.338-7, no

    Supremo Tribunal Federal, em deciso publicada no Dirio da Justia de 19 de dezembro de 1996, assinalou-se, enfaticamente, que a persecuo penal rege-se, enquanto

  • atividade estatal juridicamente vinculada, por padres normativos, que, consagrados pela Constituio e pelas leis, traduzem limitaes significativas ao poder do Estado.1 Assim que, contemporaneamente, no mais se concebe a atuao do Estado em busca da imposio da sano penal aos autores das infraes penais, fora dos marcos processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela Constituio. Nulla poena sine judicio.

    Trata-se, pois, de assegurar que o exerccio legtimo do poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja implementado de acordo com princpios ticos adotados expressa ou implicitamente na Carta Constitucional2. Dessa maneira, o que se pretende fazer valer em concreto os direitos e garantias proclamados pelo legislador constituinte e evitar, justamente no exerccio daquela expresso de poder mais danosa ao conjunto das mnimas condies de dignidade da pessoa humana, que se opere indevida e desproporcional limitao aos denominados direitos fundamentais. O princpio mencionado nulla poena sine judicio no se exaure assim na mera legalidade dos procedimentos penais, como ser visto adiante, fundamentando-se, para alm da simples legalidade formal dos modos de proceder, em uma perspectiva tica que vai cimentar-se na legitimidade constitucional da atuao dos principais personagens envolvidos com a persecuo penal e na estrutura e funcionamento das instituies prprias desta atividade.

    Tal ordem de coisas no , certamente, nova, pois pelo menos desde a Magna Charta, de 1215, que inspirou o

    1 Habeas Corpus n 73.338-7, impetrado em favor de Jos Carlos Martins Filho em face do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Celso de Mello. Acrdo da 1 Turma, publicado no Ementrio n 1.855-02, do Supremo Tribunal Federal.

    2 Ada Pellegrini Grinover salienta, em O Processo Em Evoluo (Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1996, p. 9), que os processualistas da ltima gerao esto hoje envolvidos na crtica sociopoltica do sistema, que transforma o processo, de instrumento meramente tcnico, em instrumento tico e poltico de atuao da justia substancial e garantia das liberdades.

  • princpio do due process of law, ou, antes, o julgamento conforme s leis da terra, segmentos significativos da comunidade, do ponto de vista poltico, econmico ou cultural, tm se preocupado com a limitao ao arbtrio dos governantes e a proteo e preservao da dignidade da pessoa humana.

    A questo que se impe investigar, neste trabalho, diz respeito aos aspectos normativos da estrutura sobre a qual se estabelece e desenvolve a atividade persecutria, conforme a Constituio e a realidade do processo penal. Exame dessa natureza considera em que medida a prpria Constituio confrontada com a legislao ordinria e com a ao concreta de juzes, membros do Ministrio Pblico, advogados e acusados, e integrantes das foras pblicas de perseguio penal. Salienta Ferrajoli, a propsito da ingente tarefa que culminou com a constituio terica de um Sistema Garantista, que o exame do sistema penal (no caso o italiano) h de considerar uma trplice diferenciao interna, que corresponde a uma trplice divergncia entre princpios garantistas codificados e constitucionalizados e seu modelo terico e normativo, alm do modo efetivo como se apresenta em considerao s realidades legislativa e jurisdicional.3

    Tambm aqui ser perspectivada essa trplice diferenciao, em relao ao Sistema Penal e, em particular, ao sistema processual vigente, porque importa ressaltar o confronto entre idias e prticas funcionalistas voltadas cultura da eficincia punitiva, como propsito da atuao dos agentes do Estado, e a doutrina e as prticas garantistas, herana do Iluminismo, que relevam os vnculos estabelecidos para tutelar as pessoas frente ao arbtrio punitivo.

    Logo na introduo importante destacar que as ferramentas tericas a serem empregadas combinam a metodologia da anlise funcional e, em parte, da teoria dos

    3 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razn: Teoria del Garantismo Penal, Madrid: Trotta, 1997, p. 25.

  • sistemas com categorias e conceitos desenvolvidos pela dogmtica do processo penal e pelas diversas correntes da criminologia crtica.

    curial colocar em relevo os mtodos e instrumentos da pesquisa. No estudo cotidiano do Direito, no Brasil, no comum encontrar indicaes de mtodo nos manuais adotados nas Faculdades e usados pelos profissionais. Pode parecer questo menor, cujo conhecimento perfeitamente dispensvel.

    No assim! O estudioso das questes penais deve saber, desde o incio, que no h neutralidade em termos de Direito e Processo Penal. Estas matrias so atravessadas pela poltica e quando os procedimentos tomam corpo nas Delegacias de Polcia e nos fruns a teoria neutra da maioria dos Manuais no reflete os conflitos apreciveis a olho nu.

    Conhecer, portanto, o processo penal implica conhecer as razes de fundo, polticas, que orientam escolhas tais como no termos Juizados de Instruo, preferindo atribuir ao Ministrio Pblico a tarefa de acusar. Isso aspecto manifesto de um sistema que traz latente, fora do campo de viso da simples prtica forense, outras tantas escolhas acertadas ou no -, como, por exemplo, facultar-se ao juiz produzir provas de ofcio.

    Para o estudioso responsvel, que almeja exercer com competncia qualquer profisso na rea penal, afigura-se obrigatrio estar dotado de conhecimento terico que o torne apto a entender o funcionamento do aparato repressivo do Estado.

    Este um livro de processo penal. Trata-se de obra elaborada a partir da dogmtica jurdica. Da dogmtica crtica, certo, pois sem os intrumentos da crtica a iniciao ao processo penal levaria o estudioso a ficar perdido em um mundo de teorias desencontradas da prtica. Porm, a dogmtica jurdica que possibilita a investigao do sistema de justia penal e esta dogmtica jurdica bastante diferente do conjunto de conceitos e categorias que os autores brasileiros se acostumaram a produzir nas dcadas

  • de 70 e 80 do sculo XX. O que, afinal, o leitor pode esperar? Caso seja estudante de direito, acostumado a aprender pela leitura e interpretao do Cdigo de Processo Penal, este estudante

    ir se deparar com uma forma completamente distinta de compreenso do Direito Processual Penal.

    O leitor ver que somente o contexto histrico permite entender porque o processo penal de cada pas tem as caractersticas que tem e, ainda, porque a Constituio e as leis dizem uma coisa e a prtica mostra outra.

    Saber, tambm, que h modelos diferentes de Processo Penal, que o prprio modelo em vigor no Brasil balana entre exigncias normativas garantistas e prticas autoritrias e que leis editadas basicamente na mesma poca, depois da Constituio de 88, reproduzem esta contradio.

    Para tanto este leitor exigente entender que h nova dogmtica jurdica, isto , que o conjunto de conceitos e categorias empregados pelo jurista no mais o mesmo das dcadas precedentes.

    Esta dogmtica crtica que na atualidade, vale repetir, deve ser conhecida pelo profissional competente, fruto da combinao, do dilogo, entre diversas disciplinas.

    A malograda separao entre disciplinas, que relegava a sociologia e a filosofia, sem falar na criminologia, a postos secundrios na estrutura do aprendizado do Direito, pois que, supostamente, no futuro no serviriam ao profissional dessa rea, ruiu. A anlise jurdica dos fenmenos s obtm status de apreciao cientfica quando considera a relao inevitvel entre o que se quer conhecer o funcionamento do Sistema de Justia Penal e quem quer conhecer. No existe conhecimento objetivo e assptico dos fenmenos da vida em sociedade.

    A escolha do Sistema Acusatrio clara! Introduzir o estudo do processo penal por meio da investigao do funcionamento concreto dos sistemas. A isso a doutrina chama anlise funcional.

    Para os que esto mais avanados no estudo jurdico preciso ter cuidado com os preconceitos. No Brasil, durante

  • os anos 90 e mesmo no incio deste sculo XXI, um determinado tipo de funcionalismo esteve em voga.

    Mais precisamente no mbito do Direito Penal importaram-se conceitos funcionalistas herdados, porm nem sempre fiis, ao pensamento de Niklas Luhmann. No que a fidelidade s posies originais de Luhmann represente qualquer garantia de acerto terico. No isso. O que se deseja sublinhar a existncia de interpretaes funcionalistas de variada espcie, centradas em uma ideologia: a ideologia funcionalista.

    Em sntese, nesta introduo, necessrio frisar que por ideologia funcionalista entende-se uma filosofia social ou uma teoria global da sociedade, que tende a formular explicaes ontolgicas, apriorticas e at metafsicas, no que diz respeito s funes desenvolvidas num sistema social por seus elementos4. Esta ideologia como outra qualquer, tomada a palavra ideologia em sentido negativo (encobrimento da realidade), impe: a) certo grau de adeso acrtica aos conceitos e valores revelados pela ideologia; b) o convencimento (muitas vezes a f mesmo) de que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da ideologia o sistema social funcionar adequadamente.

    A conseqncia prtica disso colocar o sistema acima das pessoas, na realidade acima do interesse da maioria das pessoas. E esta maioria formada por pessoas que no se beneficiam da manuteno do status quo. A ideologia funcionalista a ideologia da manuteno das coisas como esto, ou, de acordo com Zaffaroni e Nilo Batista, a ideologia da estabilidade5.

    Para o leitor eventualmente satisfeito com o estado atual das coisas, trata-se da ideologia ideal. Para aquele leitor, porm, convicto de que a ordem constitucional brasileira est orientada a melhorar a condio de vida da

    4 ARNAUD, Andr-Jean e DULCE, Mara Jos Farinas, in Introduo anlise

    sociolgica dos sistemas jurdicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2. 5 BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Ral, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,

    Alejandro in Direito Penal Brasileiro I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622.

  • maior parte das pessoas, parece bvio que h de se rechaar esta ideologia.

    Esta ltima a posio adotada no Sistema Acusatrio. Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia funcionalista. Sistema Acusatrio serve-se, to-s, da anlise funcional para entender o Sistema de Justia Penal.

    preciso, pois, distinguir anlise funcional de ideologia funcionalista.

    Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por anlise funcional: uma forma ou mtodo de conhecimento cientfico que, concretamente e para o que aqui nos interessa -, analisa e explica o direito assim como outros fenmenos normativos -, estudando as funes ou as tarefas que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria realizar, e como ele as realiza ou deveria realiz-las6.

    Assim, nem toda anlise funcional devedora da ideologia funcionalista. Pelo contrrio, possvel trabalhar com esta ferramenta para negar a validade da ideologia funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o Sistema de Justia Criminal. Novamente Nilo Batista e Zaffaroni iro nos lembrar que at certos textos marxistas podem corresponder a este tipo de anlise. Assinalam os mencionados autores que disso resulta que, embora toda concepo orgnica de sociedade tenda a ser antidemocrtica e reacionria, no possvel dizer a mesma coisa das anlises funcionais, que representam apenas um mtodo paralelo s explicaes causais e intencionais nas cincias sociais7.

    Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano de fundo da investigao normativa, a fora desta investigao deve residir na disposio de elabor-la criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos doutrinariamente, denunciam posies apriorsticas nem sempre compatveis com o modelo real da base de sustentao institucional do processo penal vigente. A

    6 Op. cit., p. 141.

    7 BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.

  • incoerncia de determinadas explicaes acerca do Direito Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar o inconcilivel, de conferir s prticas processuais penais, ao menos no mbito do discurso, foro de legitimidade constitucional quando algumas no o tm, escondendo-se desse modo a verdadeira tenso estabelecida em razo da discrepncia entre o preceito jurdico e a sua implementao.

    Com efeito, cumpre fazer da crtica o predominante mtodo deste trabalho, assim entendida a expresso, na concepo de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de fazer aparecer o invisvel.8

    Significa dizer no apenas que o objeto do nosso estudo, tal seja, o sistema acusatrio, conforme posto pela Constituio9 e a estrutura processual estabelecida nas principais leis que se seguiram promulgao da Carta, deve ser visto na perspectiva do seu dever ser mas,

    8 Miaille, Michel. Introduo Crtica ao Direito. 2 ed. Lisboa: Estampa, 1989, p. 21.

    9 Em um dos seus ltimos artigos, o eminente professor Jos Frederico Marques assinalou que a nova ordem constitucional optou pelo sistema acusatrio, salientando que a estrutura processual fundada em um contexto de relaes jurdicas entre pelo menos trs sujeitos autor, ru e juiz prestigia o fundo poltico democrtico-liberal de suas origens, de sorte a constituir a essncia do processo penal atual, na linha de pensamento coerente com aquela modelar, paradigmada nas lies de Giuseppe Bettiol (Marques, Jos Frederico. O Processo Penal na Atualidade, in Processo Penal e Constituio Federal. So Paulo: Acadmica, 1993, p. 17). Assim tambm entende o culto professor e Promotor de Justia Afrnio Silva Jardim, como se vislumbra da seguinte passagem da sua conhecida obra Direito Processual Penal (6 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 197), comentando acrdo da 4 Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro: Destarte, podemos asseverar que, pelo sistema processual acusatrio, adotado pelo vigente Cdigo de Processo Penal e depurado pela nova Constituio, descabe ao Poder Judicirio determinar ao Ministrio Pblico quando e como deve ser proposta a ao penal pblica. E. Magalhes Noronha (Curso de Direito Processual Penal, 25 ed., atualizada por Adalberto Jos Q. T. de Camargo Aranha, So Paulo: Saraiva, 1997, p. 307), Jos Lisboa da Gama Malcher (Manual de Processo Penal Brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 68), Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal, So Paulo: Atlas, 1993, p. 42) e, naturalmente, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I, 18 ed., So Paulo: Saraiva, 1997, p. 90) sustentam que o sistema processual em vigor no Brasil o acusatrio.

  • principalmente, na tica do seu ser real, verdadeiro. Por isso, no se abrir mo da incurso histrica e seu componente ideolgico que, no Brasil de 1988, fundaram o pensamento dos que produziram a Constituio,10 ultimando a transio em direo democracia.

    curial assinalar de incio que a estrutura processual penal est inserida no s em um contexto normativo, cujas linhas mestras so ditadas pela Constituio da Repblica, como tambm se encontra situada em um plano poltico integrado a todo o sistema penal.

    Por sistema penal entendemos, como Sandoval Huertas, al conjunto de instituciones estatales y a sus actividades, que intervienen en la creacin y aplicacin de normas penales, concebidas estas en su sentido ms extenso, valga decir, tanto disposiciones sustantivas como procedimentales.11 Saliente-se por oportuno que este entendimento de sistema penal no concebido exclusivamente luz das pretenses normativas e das regras programticas que o ordenamento jurdico consagra. Antes, pelo contrrio, como perseguida a viso crtica, preciso ter os ps na terra e a vista posta nas aes institucionais dos organismos de represso penal para, deste modo, atestarmos quanto implementao verdadeira das balizas legais e constitucionais e no ficarmos presos a estreis e infundadas suposies.

    Por isso Nilo Batista e Zaffaroni falam em agncias penais. Os gestores da criminalizao, os entes encarregados de levar ao termo a seleo penalizante, funcionam de uma

    10 Salienta Miaille que o mtodo crtico est alicerado no pensamento dialtico, tal seja, parte-se da experincia de que o mundo complexo: o real no mantm as condies da sua existncia seno numa luta, quer ela seja consciente quer inconsciente. Destaca o pensador portanto que um pensamento dialtico precisamente um pensamento que compreende esta existncia contraditria e conclui dizendo que o pensamento crtico ou dialtico dinmico, apreendendo a realidade no s no seu estado actual, mas na totalidade da sua existncia, quer dizer, tanto naquilo que o produziu como no seu futuro. (Miaille, ob. cit., pp. 21-22).

    11 Huertas, Sandoval Emiro. Sistema Penal y Criminologa Crtica, Bogot: Temis, 1994, p. 6.

  • determinada maneira, com independncia de como os professores e doutrinadores de Processo Penal imaginam a atuao do processo penal luz da Constituio e das leis12.

    Zaffaroni,13 a propsito, aduz que o sistema penal deve ser entendido como controle social punitivo institucionalizado, atribuindo-se expresso institucionalizado, como ressalta Nilo Batista, a acepo de concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que no legais.14

    Portanto, no bastar ao estudo definir em que consiste um sistema acusatrio e depois sublinhar que a nossa Constituio o adotou se, confrontada a Constituio com a estrutura processual ordinria, resultante das novas e velhas leis, concluirmos que na prtica muitas vezes no se observam os elementos essenciais do sistema acusatrio.

    No custa lembrar a advertncia de Ferrajoli, para quem, considerando a diferenciao dos vrios nveis de normas agregadas no ordenamento jurdico (leis, regulamentos, resolues etc.), comum observar no nvel normativo superior (a Constituio da Repblica) um estado de coisas refutado por disposies de nveis normativos inferiores (leis e at regulamentos) e da prtica judicial, ensejando a tendncia de no efetividade do primeiro e ilegitimidade dos segundos.15

    evidente que da problemtica proposta algumas questes antecedentes e conseqentes devero ser necessariamente extradas, enfrentadas e vencidas, isto , se h realmente uma estrutura normativa acusatria no processo penal brasileiro, como frisamos, e, em caso afirmativo, se essa estrutura revela um princpio de natureza constitucional e/ou um sistema.

    Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, em obra versando

    12 Idem, p. 43.

    13 Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25.

    14 Idem. 15 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razn: Teoria del Garantismo Penal, p. 104.

  • sobre Direito Penal, Estado e Constituio,16 assinala com razo que a estipulao das categorias jurdicas submetidas ao trabalho de classificao do jurista no deve desvincular-se por completo dos parmetros normativos institudos especialmente pela Constituio. Assim que, salienta o doutrinador, se reconhecemos que no h consenso classificatrio na doutrina e preciso terminolgica dentro da prpria Constituio, tambm verdade que pelo menos cinco categorias jurdicas bsicas so identificveis luz do texto maior: direitos, garantias, normas, princpios e remdios.17

    necessrio debater a questo delicada da afirmao da existncia de uma outra categoria,18 isto , daquela definida como sistema, com todas as conseqncias derivadas desta positivao, sem olvidar que em diversas hipteses possvel enquadrar o mesmo instituto jurdico em modelos diferentes.

    Alm disso, releva destacar a premissa de uma eleio constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que resultam predominantes ou devem predominar no contraste entre a Constituio jurdica e a Constituio real,19 uma vez

    16 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituio, So Paulo: Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, n 3, 1997.

    17 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Ob. cit., p. 73. 18 Aproprio-me, aqui, da definio de categoria jurdica utilizada por Lopes

    (ob. cit., p. 71), tal seja, conhecimento no hermtico. Vale frisar que a expresso ser empregada com objetivo descritivo, conforme opera a Sociologia do Direito, e no visando alguma identificao ontolgica, tpica da filosofia jurdica, embora no haja como distinguir por completo os dois campos e no se olvide que o conjunto de significados idealizados pelos vocbulos caractersticos de uma poca serve igualmente ao propsito cognitivo e aos de ordenao e orientao da realidade. Acresa-se a isso que tambm a expresso estrutura, j diversas vezes mencionada, tem seu sentido cientfico fortemente determinado. Para Verd, a cujo pensamento nesse tpico vamos aderir, compreende-se por estrutura o conjunto de elementos interdependentes que configuram, organizam e produzem, com relativa permanncia, os diferentes procedimentos (Verd, Pablo Lucas. Princpios de Ciencia PolticaI, tomo II, Madrid: Tecnos, 1979, pp. 24 e 21).

    19 Constituio real aqui mencionada vista da definio que lhe atribui Konrad Hesse, in A Fora Normativa da Constituio, traduzida por Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

  • que, como se sabe, a realidade da persecuo penal pode distanciar-se concretamente da promessa constitucional. Isso acontece, por exemplo, no s quando a tortura empregada como mtodo de investigao, na busca da to propalada (profanada) verdade real, como ainda quando os tribunais admitem a aplicao de institutos jurdicos incompatveis com o paradigma constitucional da estrutura processual.

    Para ilustrar, resgatando nossa histria recente, vale dizer que, em pesquisa que resultou na publicao do livro Brasil: Nunca Mais,20 constatou-se, apesar dos imperativos da ordem constitucional ento vigente no regime autoritrio 1964 a 1988 , que em vrios julgamentos dos tribunais superiores, princpios como o da imparcialidade do juiz, da presuno da inocncia (versus in dubio pro condenao), do contraditrio (versus deciso calcada exclusivamente em elementos de convico colhidos no inqurito policial) e motivao das decises de natureza jurisdicional21 foram repudiados, pura e simplesmente.

    Fica portanto a interrogao: correto afirmar que h um princpio acusatrio a inspirar a ordem constitucional? E, em caso afirmativo, tambm correto dizer que do confronto entre a estrutura processual desejada pela Constituio da Repblica e aquela disposta nas leis ordinrias que sero examinadas, o princpio ou sistema acusatrio est realmente assegurado?

    Finalmente, convm ainda explicitar em que circunstncias histricas, determinados valores estruturantes do processo penal constituram objeto da ateno e da regulao constitucional, em contraposio ao fundo cultural que posteriormente veio alicerar a maior parte das leis processuais, densificando-se interpretaes doutrinrias aparentemente distintas dos caminhos apontados pela Lei Maior. A anlise crtica conecta ao estudo jurdico das diversas categorias processuais o exame das

    20 9 ed. Petrpolis: Vozes, 1985. 21 Idem, pp. 176-199.

  • condies historicamente verificadas por ocasio da edio das normas. Fora do contexto histrico no se explicam eleies de instituies, que se expressam sempre por meio de uma estrutura, institutos e valores, em detrimento de outros da mesma natureza ou no, porm de contedo diferenciado ou at mesmo oposto.22

    Este , pois, nosso plano de trabalho, voltado ao final aspirao de que o momento constitucional de 1988 no pode nem deve ser esquecido ou amesquinhado por uma interpretao da Constituio Jurdica conforme modelos criminais dela divorciados mas aparentemente consagrados na Constituio real.

    22 O direito, enquanto fenmeno cultural, de certa forma vassalo da histria e no pode ser compreendido como algo (a)histrico. Novamente, cumpre realar a lio de Miaille (ob. cit., p. 55), na refutao prtica de reduo da importncia da Histria para o Direito: Assim, apesar de algumas tentativas para situar as questes de direito historicamente, raramente os juristas falam uma linguagem histrica. Ainda acrescenta o pensador que, no fundo, a histria no interessa realmente o jurista, porque uma ptica idealista-universalista precisamente oposta a uma tal reflexo.

  • 2. -O Direito Processual Penal e a Conformidade Constitucional 2.1. Introduo

    Afirma Luhmann que toda convivncia humana direta ou indiretamente cunhada pelo direito.1 As implicaes do direito na sociedade, particularmente desde o sculo XVIII, sero observadas mais frente, porm, sem dvida, possvel dizer que dos primrdios da socializao do ser humano, com seu agrupamento em comunidades rudimentares, at os dias de hoje, nos quais no se concebe a vida isolada, havendo o homem se envolvido em tramas de diversa natureza, especialmente determinadas pela diviso do trabalho social, o direito marca a nossa existncia, regulando a variedade de relaes sociais, econmicas, polticas, familiares, patrimoniais e educacionais.

    No se contesta a importncia do direito enquanto fenmeno, muito embora a realidade do mundo globalizado haja relativizado o seu papel como conjunto de tcnicas para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma vida to pacfica quanto possvel entre homens propensos s paixes2. Isso decorre da superao progressiva das caractersticas inerentes ao Estado-nao de base territorial, praticamente ultrapassado pelo conceito quase universal da predominncia do sistema econmico, na sua essncia capitalista transnacional, subordinado lex mercatoria, como assinala com preciso Jos Eduardo Faria.3

    1 Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito, vols. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

    2 Miaille, ob. cit., p. 25. 3 Faria, Jos Eduardo. Direitos Humanos e Globalizao Econmica: Notas para uma Discusso, in Revista do Ministrio Pblico, Lisboa, n 71, jul-

    set/1997, pp. 33-46. A superao do tradicional conceito de Estado de base territorial, sustentculo da representao constitucional do Estado-Nao, no desfigura a prpria representao das constituies como ponto de legitimao, legitimidade e consenso autocentradas numa comunidade

  • Ainda assim, por igual, no se controverte sobre haver sido o direito como de resto continua sendo instrumento simblico de limitao do Poder,4 estabilizando as expectativas dos integrantes da sociedade. No passado, a dimenso religiosa conferida ao Poder subordinava a sociedade autoridade de um direito sagrado e, dessa forma, considerando os restritos papis sociais disponveis, era possvel ao direito garantir sua fora rigidamente integradora e de regulao. Eliminado, porm, o respaldo religioso, com o advento da era contempornea partiu-se de premissas deduzidas mais enfaticamente pelos jusnaturalistas, baseadas na idia de um conjunto de direitos inerentes ao homem, inalienveis e oponveis at mesmo aos detentores do poder secular, para erigir-se o moderno conceito de constitucionalismo, em virtude do qual, tomando por pilar a idia do pacto social, construiu-se um novo

    estadualmente organizada (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1992, p. 18), embora acresa ao sistema jurdico uma rede cooperativa de metanormas e normas oriundas de outros centros transnacionais e infranacionais.

    4 Certamente, a reorganizao da sociedade e do Estado contemporneos, possvel a partir da predominncia do sistema econmico capitalista e do papel no s econmico mas social e poltico do mercado, consoante assinalado por Faria, no artigo mencionado, afetou conceitos tradicionais da democracia poltica. exemplo o do controle da regra de maioria, disposto evitao da tirania da maioria, quer atravs da delimitao do espao inquebrantvel dos direitos fundamentais, quer pretendendo impedir a concentrao de poderes polticos e econmicos, malgrado a reserva dos setores polticos, o que tem demonstrado o valor deste complexo sistema de vnculos e de equilbrios que o direito e, mais precisamente, a Constituio, reconhecendo-se a sua importncia funcional como garante no s das formas como dos contedos da democracia poltica, social e cultural. Essa situao ser vista adiante, primorosamente ressaltada por Ferrajoli (O Estado Constitucional de Direito Hoje: O Modelo e a sua Discrepncia com a Realidade, in Revista do Ministrio Pblico, Lisboa, n 67, jul-set/1996, pp. 39-56). evidente, como destacou Canotilho, referindo-se a G. Teubner (Direito Constitucional, p. 13), que o direito s regula a sociedade, organizando-se a si mesmo, o que o dispe, modernamente (ou ps-modernamente), como direito reflexivo ou de mediao, auto-limitado ao estabelecimento de processos de informao e de mecanismos redutores de interferncias entre vrios sistemas autnomos da sociedade (jurdico, econmico, social e cultural), segundo o prprio Canotilho (ob. cit., p. 13).

  • direito, direito moderno, absorvendo o pensamento democrtico e valores da cultura jurdica que prestigiavam o nexo entre legalidade e liberdade, a separao entre direito e moral, a tolerncia religiosa, a liberdade de expresso e igualdade entre as pessoas.5

    Cumpre dizer, todavia, que, por mais paradoxal que possa parecer, o constitucionalismo moderno, nascido das revolues americana e francesa do sculo XVIII, representa o momento nico e mpar da convergncia entre o pensamento jusnaturalista e a necessidade de positivao do direito, pressupondo um rol de interesses indisponveis para a vida digna do ser humano, os quais, como o esprito em busca de um corpo, vagaram pela Histria at encontrarem os documentos escritos originados nos marcos revolucionrios.

    Na segunda metade do sculo XIX, no entanto, consolidado na Europa o Estado liberal, desenvolveram-se prticas institucionais tecnicistas e baseadas na eficincia do controle social pela coero inerente ao direito penal positivado, com orientaes expressa ou tacitamente autoritrias, que romperam a unio entre o direito penal, e por igual o direito processual penal, e a filosofia poltica reformadora.

    Para entender isso preciso compreender como se desenvolveu o fenmeno da positivao do Direito. Luhmann destaca, com razo, a respeito deste fenmeno, vindo luz exatamente quando as sociedades simples comearam a ser sucedidas por outras, complexas, qualificadas pela diviso do trabalho social, que em concreto no havia outra alternativa. Com efeito, em uma abordagem sistmica acentua-se que sociedades simples, integradas em um sistema da mesma natureza, tm necessidades estruturais diferentes daquelas mais complexas.

    Por isso, o direito das sociedades simples pode ser concebido em termos relativamente concretos, fundado na tradio e na religio, com o que concorda Habermas,

    5 Ferrajoli, Derecho y Razn, p. 24.

  • enquanto a diversidade derivada de uma complexidade mais elevada, fruto da multiplicidade de funes sociais, exige um direito que tem de abstrair-se crescentemente, tem, nas palavras de Luhmann, que adquirir uma elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situaes heterogneas, e que deve ser modificvel por meio de decises, em suma, tem que tornar-se direito positivo.6

    A partir da perspectiva histrica, Manoel Gonalves Ferreira Filho7 vincula o surgimento do Estado contemporneo embasado no desejo de evitao do arbtrio dos governantes ao estabelecimento de um governo de leis e no de homens (como consta assinalado na Constituio de Massachussets), afirmando o primado da Constituio sobre as leis por ser aquela a expresso do Justo, fruto da prpria natureza das coisas, consoante declarava Montesquieu, inspirado no jusnaturalismo.8

    certo que a consolidao do direito positivado, em substituio ao modelo anterior, personalista, porquanto alicerado na pessoa do dspota, foi governada na Europa pela crena racional na autonomia da pessoa humana e na sua responsabilidade, pela qualidade de cidado de que passou a desfrutar, por influir na determinao do conjunto de regras pelo qual aceitar a supresso de parte da sua liberdade pessoal em favor da regulao das relaes de todo o grupo social.

    A racionalidade do direito, que desempenhar a nosso juzo papel fundamental na escolha do sistema acusatrio, toma o lugar das concepes tradicionalistas e religiosas na chamada baixa modernidade, quando a estabilidade social ditada exclusivamente pela fora cede estabilidade pela razo, sem embargo da articulao de um pacto jurdico cujos pressupostos de coeso so a ameaa das sanes

    6 Luhmann, vol. I, p. 15. Habermas, ob. cit., pp. 45 e 59. 7 Ferreira Filho, Manoel Gonalves. Direitos Humanos Fundamentais. So

    Paulo: Saraiva, 1995. 8 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Baro de. Do Esprito das Leis.

    Trad. Fernando Henrique Cardoso e Lencio Martins Rodrigues. So Paulo: Abril Cultural, 1979.

  • externas, liberadas pelo Direito, e a suposio de um acordo racionalmente motivado.

    Por outro lado, convm remarcar que o processo de modificao do eixo do Poder, que postulou a positivao do Direito em virtude da sua racionalizao e da possibilidade de fixar as expectativas das pessoas, tornou-se possvel em conseqncia do grau maior de legitimao que passou a revestir o prprio Direito.

    Nestas circunstncias o Direito tornou-se carecedor da democracia, pois, nas condies da poca, o pensamento democrtico representava, na sua expresso legislativa e de governo, a fora socialmente integradora da vontade unida e coincidente de todos os cidados livres e iguais.9 Habermas chama ateno para o fato de a positivao do Direito vir acompanhada da expectativa de que o processo democrtico de edio das normas jurdicas fundamente a suposio da aceitabilidade racional das normas estatudas,10 razo por que, acrescentaria Hannah Arendt, sob condies de um governo representativo, supe-se que o povo domina aqueles que governam11 e as instituies polticas petrificam-se e decaem to logo o poder do povo deixa de sustent-las.

    possvel enxergar na transformao produzida na origem do constitucionalismo uma mudana do paradigma jurdico-poltico, que passar, na via da racionalidade, do humanismo e das projees inerentes ao prestgio assumido pelas liberdades pblicas, a constituir o designado paradigma da modernidade.

    Salientar esse ponto importante, na medida em que o novo paradigma substituiu o anterior porque este estava em crise, sendo de supor, para alguns, que a eventual crise do prprio paradigma da modernidade conduza sua superao por outro modelo, que se convencionou chamar paradigma

    9 Habermas, ob. cit., p. 53. 10 Idem, p. 54. 11 Arendt, Hannah. Sobre a Violncia, Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994,

    p. 35.

  • da ps-modernidade.12 Para ns o que importa, no entanto, que a crise de um paradigma no se expressa pela quebra da continuidade do conhecimento absorvido at ento pelo grupo social, mas antes leva apropriao deste conhecimento de forma nova, de acordo com os valores que emergem da transformao.

    Darcy Ribeiro acentua exatamente que, ao contrrio da natureza, que evolui por mutao gentica, a cultura em cujo campo est inserido o Direito segue evoluindo por adies de corpos de significado e de normas de ao, difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se permanentemente, compondo configuraes cada vez mais inclusivas e uniformes.13

    O desenvolvimento do paradigma da modernidade radicou-se no ideal democrtico, de modo que nada mais natural que o relevo dado Constituio entre as demais leis, decorrente do convencimento de que aquela assegura a diviso dos poderes do Estado, mediante sistema de freios e contrapesos, bem como tutela os direitos fundamentais,14 conformando toda ordem jurdica.

    12 A mudana do paradigma da modernidade para o da ps-modernidade (expresso cunhada por Jean Franois Lyotard, em 1979, in A Condio Ps-Moderna, Lisboa: Gradiva, 1989) discutvel, sendo razovel sustentar que a modernidade est longe de ter cumprido, no universo da sociedade humana, integral-mente o que dela se espera. Antes, o universalismo caracterstico da prpria racionalidade da modernidade, pelo que de subversivo e emancipatrio tm os direitos fundamentais, exige a permanente disposio para implement-la completamente.

    13 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatrio Etapas da Evoluo Sociocultural, So Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 45.

    14 Eusebio Fernandez (Teoria de La Justicia y Derechos Humanos, Madrid: Debates, 1991, p. 77) alude com clareza existncia de inmeras denominaes para essa categoria jurdica, direitos fundamentais, tais como direitos naturais, inatos, individuais, do cidado, do trabalhador, pblicos, subjetivos, liberdades pblicas, nem sempre afetados ao mesmo fenmeno, concluindo que a mais adequada consiste em denominar-se direitos fundamentais do homem, com isso manifestando-se o fato de que toda pessoa possui alguns direitos morais pelo fato de ser pessoa e que isto deve ser assegurado pelo Estado e pela sociedade. Mesmo a nossa Constituio no uniformiza o tratamento designativo da categoria, ora mencionando direitos e garantias fundamentais (Ttulo II), ora direitos e deveres individuais e coletivos (Captulo I do mesmo ttulo).

  • Tal a importncia da Constituio nessa tica, porque fixa com clareza as regras do jogo poltico e de circulao do poder e assinala, indelevelmente, o pacto que a representao da soberania popular, e portanto de cada um dos cidados. Sabemos todos, mesmo diante de pactos de direitos fundamentais aos quais significativo nmero de Estados vm aderindo paulatinamente, que at hoje o direito interno propugna sempre a sua sufragao, ultrapassando em larga medida a tenso existente no passado, que concebia distintamente, do ponto de vista poltico e conceitual, as declaraes de direitos e la Constitucin propriamente dicha, de forma a estabelecer um vnculo entre la enunciacin de grandes principios de derecho natural, evidentes a la razn, y la concreta organizacin del poder.15

    A ttulo de ilustrao, valem as lies das polticas brasileira e espanhola, da ltima extraindo-se, da doutrina de Retortillo e Otto y Pardo, que o significado do intento de construo do regime constitucional e do regime jurdico do Estado, no tocante aos direitos fundamentais, depende basicamente de como tais direitos tenham sido assumidos, uma vez que por mais prestgio que tenham determinadas Declaraes, por forte que seja o impulso internacionalizador que dimana da necessidade de reconhecimento internacional dos governos, preciso no esquecer que o ponto de partida a realidade prpria e original do direito interno.16

    Nem mesmo o paradoxo determinado em virtude de as limitaes decorrentes dos direitos fundamentais terem por destinatrio principal o prprio Estado ou de ser o Estado o

    15 Bergalli, Roberto. Los Derechos Humanos en el Estado Democratico de Derecho, in Justia e Democracia, vol. II, So Paulo: RT, 1996, p. 81. Canotilho (ob. cit., p. 19) acentua que a idia dos direitos fundamentais constitui a raiz antropolgica essencial da legitimidade da Constituio e do poder poltico, ainda quando no se possa falar em universalidade absoluta de alguns valores, muito embora o processo comunicativo intersubjetivo radique dimenses de princpio que implicam ordinariamente comensurao universal.

    16 Retortillo, Lorenzo Martn e Otto Y Pardo, Ignacio. Derechos Fundamentales y Constitucin. Madri: Cuadernos Civitas, 1988.

  • devedor das providncias inerentes implementao dos direitos fundamentais de cunho social, afeta a imprescindibilidade de a ordem interna sufragar tal categoria jurdica, em nvel normativo superior, na Constituio, sob pena de cancelar sua validade pela perda da dimenso prtica de efetividade.

    A assuno da Constituio como o locus de onde so vislumbrados os direitos fundamentais compartilha, portanto, a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da existncia de um nexo indissolvel entre garantia dos direitos fundamentais, diviso dos poderes e democracia, de sorte a influir na formulao das linhas gerais da poltica criminal de determinado Estado.17

    Veremos, no tpico pertinente a Direito, Processo e Democracia, como se articulam e interpenetram estas diferentes instituies, bastando, por enquanto, lembrar que o espao comum democrtico construdo pela afirmao do respeito dignidade humana e pela primazia do Direito como instrumento das polticas sociais,18 inclusive a Poltica Criminal.

    Nosso estudo inicial est centrado na tradicional diviso de cunho exclusivamente metodolgico19 dos direitos fundamentais em trs categorias: as liberdades pblicas; os direitos sociais; e os direitos de solidariedade, cujo desenvolvimento ser apreciado no prximo tpico. Reitera-se aqui o aludido a princpio, tal seja, que a persecuo penal

    17 Ferrajoli, Derecho y Razn, p. 10. 18 Binder, Alberto M. Poltica Criminal: de la formulacin a la praxis,

    Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 53. 19 Antonio Augusto Canado Trindade relembra o fato de os direitos

    fundamentais fazerem parte de uma grande categoria comum, de caractersticas universal e integral, de maneira que esto interligados e so interdependentes, condicionando o sucesso concreto da Constituio condio de ser humano digno sua implementao conjunta. Por isso, devem dar lugar a uma interpretao funcional interdependente e somente do ponto de vista metodolgico os direitos fundamentais devem ser apreciados em grupos de geraes separados (Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1997).

  • se expressa atravs do conjunto de atividades estatais juridicamente vinculadas, limitando-se o poder do Estado em prol da garantia dos direitos fundamentais, assim referenciados a todas as pessoas, inclusive aos acusados da prtica de infraes penais.

    Antecipando, em homenagem necessria clareza, valioso perceber como a doutrina de um modo geral relaciona os direitos fundamentais.

    Jos Alfredo de Oliveira Baracho indica um rol de direitos fundamentais, que enumera, explicitando os direitos de locomoo, manifestao do pensamento, reunio, associao, culto, direitos atividade profissional e econmica e ao matrimnio,20 enquanto Jos Eduardo Faria, em sntese iluminada, sublinha que ao longo dos dois ltimos sculos consolidaram-se justamente trs geraes de direitos humanos, denominao que prefere, assim dispondo sobre eles:21

    Os relativos cidadania civil e poltica, concebidos, reconhecidos e protegidos para um homem abstrato, destacando-se pelo direito s liberdades de locomoo, de pensamento, de religio, de voto, de iniciativa, de propriedade e de disposio da vontade; os relativos cidadania social e econmica, baseados no mais numa concepo de homem visto como ente genrico, mas encarado na especificidade de sua insero nas estruturas produtivas, e que se expressam pelos direitos educao, sade, segurana social e ao bem-estar tanto individual quanto coletivo concedidos a classes trabalhadoras; e, por fim, os relativos cidadania ps-material, que se caracterizam pelo direito qualidade de vida, a um

    20 Baracho, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: A Plenitude da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, So Paulo: Saraiva, 1995, p. 7.

    21 Faria, ob. cit., p. 42.

  • meio ambiente saudvel, tutela dos interesses difusos e ao reconhecimento da diferena, da singularidade e da subjetividade.

    Norberto Bobbio cita ainda os direitos de quarta

    gerao,22 determinveis em vista de carecimentos e interesses especficos, tais como as reivindicaes referentes ao tratamento da pesquisa biolgica. Esta ltima categoria, no entanto, necessita de uma maior investigao cientfica para fixar claramente as fronteiras com os denominados direitos fundamentais de terceira gerao.

    Finalmente, convm explicitar que os limites do trabalho que se desenvolve no incluem a determinao da natureza jurdica dos direitos fundamentais. Pretende-se to-s definir no continente da obra um contedo mais modesto, contudo importante, que a medida do princpio ou sistema que realiza a estrutura do processo penal em confronto com as principais leis processuais penais editadas principalmente depois de 1988, poca da promulgao da vigente Constituio da Repblica.

    Porm, no se deve descuidar do estudo da natureza e fundamento destes direitos, uma vez que se projetam nas vias da persecuo penal, impondo pelo menos sublinhar que a doutrina constitucional lhes dedica intenso labor, oscilando entre base-los, de acordo com Bckenfrde,23 numa tentativa de estabelecimento de uma teoria geral, talvez incompleta mas bastante aproximativa, a partir das perspectivas liberal ou do Estado de Direito burgus, institucional,24 valorativa, funcional-democrtica e social,

    22 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6. 23 Bckenfrde, apud Gavara de Cara, Juan Carlos. Derechos Fundamentales

    y Desarrollo Legislativo: La garanta del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994, pp. 75-79.

    24 Vale dizer, precisando termos, especialmente quando utilizados de forma polissmica, como ressalta Gavara de Cara (ob. cit., p. 89), que a expresso instituio tem para o nosso estudo o significado que lhe atribui Miaille (ob. cit., p. 98), qual seja, de conjunto coerente de normas jurdicas

  • nem sempre necessariamente excludentes. Por razes que mais adiante sero expostas, nos

    interessar de perto a abordagem funcional-democrtica, que certamente se conjugar com a valorativa e a institucional. Antes releva visualizar a histrica conformao dos direitos fundamentais, cuja inegvel ligao com o tema proposto mais adiante poder ser observada.

    2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais

    As subseqentes mutaes operadas na concepo e contedo dos direitos fundamentais demandam sua apreenso no contexto histrico, ao qual com freqncia nos referiremos, de sorte a viabilizar a observao e insero em seu adequado ambiente dos paradigmas estabelecidos e fixar as circunstncias determinantes das suas alteraes. Percorrer este caminho necessrio, na medida em que o sistema processual vigente h de, alm de receber os fludos da legitimao da prpria ordem jurdica, predicar-se como opo legtima, por si s, para adjudicar solues imperativas, com fora de coisa julgada, aos conflitos de interesses de natureza penal ou a resolver os casos penais.

    Por isso, permitimo-nos, a princpio, a apropriao do esquema histrico de Manoel Gonalves para desenvolver resumidamente o tema da evoluo dos direitos fundamentais.

    Com efeito, a doutrina dos direitos fundamentais desponta j na Antigidade, fundada, como certo, na conscincia de um Direito Superior, no estabelecido pelos homens. Manoel Gonalves a tal propsito aponta a pea Antgona, de Sfocles, e chama ainda a ateno para as lies de Ccero, que soube, em Da Repblica, bem sintetizar a idia da predominncia da lei sobre a vontade do

    relativas a um mesmo objeto, abrangendo uma srie de relaes sociais unificadas pela mesma funo.

  • soberano.25 certo que a cultura escravista helnica no pode

    fundamentar um preceito absoluto de igualdade, inerente ao conceito de direitos fundamentais, pois que relativo a todos os homens, sem qualquer distino, mas no se deve negar que a partir da Grcia so envidados os primeiros empreendimentos filosficos cujo objetivo consistiu em lidar com esta situao de princpios ideais.

    Em Roma, salienta Pedro Pablo Camargo,26 com o florescimento da filosofia estica que se forja una idea universal de la humanidad, es decir, de la igualdad esencial de todos los hombres en cuanto a la dignidad que corresponde a cada uno.27

    Foi o cristianismo, contudo, que, sem dvida, iniciou a era da promoo dos direitos fundamentais, evidentemente no liberado das contradies histricas determinadas pelo modo de produo cujo embrio j se encontrava na sociedade feudal. Disso decorre que a doutrina sofreu forte impacto em face da projeo das declaraes de licitude condicional da escravido, principalmente de ndios e negros, e da inflio de tormentas. O pensamento bsico da igualdade de todas as pessoas perante Deus enseja, todavia, a era del resguardo a los derechos fundamentales del hombre con base en la dignidad de la persona humana y su destino trascendente,28 de tal sorte que Toms de Aquino29 e sua

    25 Ccero, Marco Tlio. Da Repblica. Trad. Amador Cisneiros. Rio de Janeiro: Ediouro. Sendo a lei o lao de toda sociedade civil, e proclamando seu princpio comum igualdade, sobre que base assenta uma associao de cidados cujos direitos no so os mesmos para todos?, perguntava-se o filsofo.

    26 Camargo, Pedro Pablo. La Proteccion Juridica de Los Derechos Humanos y de La Democracia en America, Mxico: Excelsior, 1960, p. 6.

    27 Idem. 28 Idem. 29 A importncia de Toms de Aquino salientada por Antonio Truyol y Serra

    (Los Derechos Humanos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 12), que destaca a sensvel inclinao filosfica no sentido do reconhecimento de que todo homem correspondia imagem e semelhana de Deus, como recurso proclamao de que mesmo os infiis possuam um direito natural que os punha em tese a salvo do suposto direito de conquista dos cristos.

  • escola retomam o pensamento doutrinal. A partir da segunda metade da Idade Mdia,

    difundiram-se documentos de incipiente reconhecimento dos direitos fundamentais forais e cartas de franquia , merecendo especial destaque a Magna Charta Libertatum, outorgada por Joo sem Terra aos bares, na Inglaterra, em 1215, cujo carter estamental no impediu, depois, a ampliao das suas disposies a favor de outras categorias de sditos. No mesmo ano, o Papa Inocncio III proibia, no Conclio de Latro, as ordlias, reduzindo-se, embora ainda insuficientemente para os padres atuais, o sofrimento causado pelo modo de persecuo e expiao das infraes penais.30

    Tambm na Baixa Idade Mdia, nas comunas e burgos livres da Europa Ocidental, difundiu-se a conscincia de direitos bsicos, relacionados liberdade do indivduo e condio no estamental em que se viam inseridos, na prtica, nesses lugares, em oposio radical fragmentao social e s servides feudais. Conforme Fbio Konder Comparato, as cidades medievais eram verdadeiros centros de libertao: a condio servil perdia-se, com a estada ininterrupta do servo no interior do burgo durante ano e dia.31

    Convm sublinhar que a forte ligao entre a Igreja e o Estado, observada durante boa parte da Idade Mdia como fator de certo modo condicionante da estabilidade dos grupos sociais, acabou sendo solapada pelos movimentos de tolerncia religiosa, decorrentes da pluralidade que naturalmente se seguiu Reforma, sendo, pois, a liberdade religiosa, fruto da quebra do vnculo entre Estado e Igreja, o

    30 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, Barcelona: Bosch, 1994, p. 28. Saliente-se, todavia, que coube tambm a Inocncio III a iniciativa de introduzir de modo oficial na Igreja o procedimento penal de forma inquisitria, procedimento mais tarde regulado em alguns decretos de Bonifcio VIII (Pietro Fredas, na introduo 3 edio de De las Pruebas Penales, de Eugenio Florian, Bogot: Temis, 1990, p. 7).

    31 Comparato, Fbio Konder. Para Viver a Democracia, So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 40.

  • primeiro grande passo dado na direo do reconhecimento dos demais direitos fundamentais da primeira gerao, assinalados no Petition of Right (1628), no Habeas Corpus Act (1679), nas declaraes de independncia dos Estados Unidos da Amrica e de Direitos de Virgnia (1776), alm da declarao francesa (1789).

    Do Direito ingls, na vanguarda, e dos iluministas, cumpre frisar, vieram as principais inspiraes das revolues americana e francesa, no tocante ao estatuto das liberdades que ousaram exprimir poca. Salienta Manoel Gonalves o papel que os ingleses e, depois deles, os norte-americanos desempenharam na histria do desenvolvimento da doutrina dos direitos humanos, e que, por fora das disposies das Declaraes, que ensaiaram o novo modelo constitucionalista, afinal seguramente presente nos sculos seguintes, este papel influenciou a Constituio de Cdiz (1812) e a declarao de independncia da Blgica (1831):32

    Common law, rule of law, due process of law, equal protection of the laws, essas expresses e as idias que exprimem passaram com os ingleses para a Amrica do Norte. Essa herana no foi esquecida, ao contrrio. Os tribunais americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte, souberam usar dessas frmulas que flexibilizam as decises, dando uma importante contribuio para o desenvolvimento da doutrina dos direitos fundamentais, nos sculos XIX e XX.33

    bem verdade que os predicados histricos de uma

    poca nica, quando burguesia e proletariado se uniram para retirar do poder a classe aristocrtica dominante, acabaram

    32 Truyol y Serra, ob. cit., p. 17. Ada Grinover (Direitos e Garantias Individuais, in Constituio e Constituinte, Faoro, Raymundo (coord.). So Paulo: RT, 1987, p. 123) relembra que foi a Constituio Brasileira do Imprio 1824 que pela primeira vez no mundo ofereceu um rol de direitos e garantias individuais, assim concretizadas.

    33 Ferreira Filho, Manoel Gonalves, ob. cit., p. 13.

  • por fortalecer a idia dos direitos fundamentais, essenciais dignidade da pessoa, com marcantes caractersticas individualistas, configurando, nessa atmosfera, a primeira gerao de direitos humanos. Os direitos fundamentais sofreram neste momento de inicial positivao a influncia da ideologia peculiar ao direito privado, cuja consistncia estava determinada pela idia de direito subjetivo.

    O padro de direito subjetivo est ditado por uma compreenso funcional, em virtude da qual se aceita que este direito estabelea os limites em cujo interior um sujeito est justificado a empregar livremente a sua vontade.34

    No se discute que a fixao do direito subjetivo, para assegurar um grau mnimo de aceitao social, indispensvel a qualquer tempo e mais ainda em pocas politicamente conturbadas, suponha um processo legislativo democrtico, capaz de atender s expectativas dos membros da sociedade a respeito do entendimento possvel consenso das pessoas sobre as regras de convivncia.

    A moldura poltica na qual seriam gerados os direitos fundamentais nessa primeira etapa, apesar do predominante pensamento democrtico, cuja virtude para o mbito do nosso estudo est em determinar a legitimidade como pressuposto para o exerccio do poder, em quaisquer das suas manifestaes (a incluindo o exercido pelo Judicirio), concebia o indivduo como cidado, o