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I;· edição - 2007 © Copyright Camille Dumoulié, Charles Feitosa, Cláudia Maria Perrone, Daniel Lins, Edson Passerti, Eduardo Diatahy B. de Menezes, François Zourabiehvili, Fredrika Spindler, Jaeques Ranciére, Jorge Vasconeellos, Luiz B. L. Orlandi, Maria Cristina Franco Ferraz, lorman Madarasz, O. F. Bauchwitz, Paulo Domenech Oneto, Paulo Germano Albuquerque, Peter Pál Pelbart, Raymond Bellour, Regiane Collares, Rosa Maria Dias, Selda Engelman, Silvia Pimenta Velloso Rocha, Sylvio de S. Gadelha Costa, Tania Mara Galli Fonseca.Walter Bruno Berg Cf p-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. N581 Nietzsche/Delcuze: arte, resistência: Simpósio Internacional de Filosofia, 2004 I organizador Daniel Uns. - Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007. Inclui bibliografia Trabalhos apresentados no V Sirnpósio Internacional de Filosofia Nietzsche e Deleuze: arte, resistência, realizado em Fortaleza, 2004 ISBN 978-85-218-0419-2 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 3. Arte - Filosofia - Congressos. 4. Arte - História - Congressos. 5. Filosofia moderna- Congressos. I. Lins, Daniel Soares, 1943-. 11. Sirnpósio Internacional de Filosofia (5: 2004: Fortaleza, CE). IJl. Fundação de Cultura, Esporte e Turismo do Estado do Ceará. 07-3170. CDD: 701 CDU: 7.01 Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, sem permissão expressa do Editor (Lei ,,"9.610, de 19.2.1998). Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Rio de Janeiro: Rua do Rosário, 100 - Centro - CEP 20041-002 Tels.lFax: 2509-3148/2509-7395 São Paulo: Senador Paulo Egídio, 72 - slj / sala 6 - Centro - CEP OI006-0 IO Tels.lFax: 3104-2005 /3104-0396/3107-0842 e-rnail: [email protected] http://www.forenseuniversitaria.com.br Impresso no Brasil Printed in Brasil

Será Que a Arte Resiste a Alguma Coisa

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arte e educação

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  • I; edio - 2007

    CopyrightCamille Dumouli, Charles Feitosa, Cludia Maria Perrone, Daniel Lins,Edson Passerti, Eduardo Diatahy B. de Menezes, Franois Zourabiehvili,

    Fredrika Spindler, Jaeques Rancire, Jorge Vasconeellos, Luiz B. L. Orlandi,Maria Cristina Franco Ferraz, lorman Madarasz, O. F. Bauchwitz,

    Paulo Domenech Oneto, Paulo Germano Albuquerque, Peter Pl Pelbart,Raymond Bellour, Regiane Collares, Rosa Maria Dias, Selda Engelman,

    Silvia Pimenta Velloso Rocha, Sylvio de S. Gadelha Costa,Tania Mara Galli Fonseca.Walter Bruno Berg

    Cf p-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    N581Nietzsche/Delcuze: arte, resistncia: Simpsio Internacional de Filosofia, 2004 I

    organizador Daniel Uns. - Rio de Janeiro: Forense Universitria; Fortaleza, CE:Fundao de Cultura, Esporte e Turismo, 2007.

    Inclui bibliografiaTrabalhos apresentados no V Sirnpsio Internacional de Filosofia Nietzsche e

    Deleuze: arte, resistncia, realizado em Fortaleza, 2004ISBN 978-85-218-0419-2

    1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 3. Arte- Filosofia - Congressos. 4. Arte - Histria - Congressos. 5. Filosofia moderna-Congressos. I. Lins, Daniel Soares, 1943-. 11. Sirnpsio Internacional de Filosofia (5:2004: Fortaleza, CE). IJl. Fundao de Cultura, Esporte e Turismo do Estado do Cear.

    07-3170. CDD: 701CDU: 7.01

    Proibida a reproduo total ou parcial, de qualquer formaou por qualquer meio eletrnico ou mecnico, sem permisso

    expressa do Editor (Lei ,,"9.610, de 19.2.1998).

    Reservados os direitos de propriedade desta edio pelaEDITORA FORENSE UNIVERSITRIA

    Rio de Janeiro: Rua do Rosrio, 100 - Centro - CEP 20041-002Tels.lFax: 2509-3148/2509-7395

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    Impresso no BrasilPrinted in Brasil

  • Ser que a arte resiste a alguma coisa?

    Jacques Rancire *

    o ttulo da minha comunicao expressa uma dvida quanto boamaneira de formular o problema que nos reuniu aqui com o tema "Arte,Resistncia". A dificuldade que esse tema implica simples de ser for-mulada: ajuno dessas duas palavras faz imediatamente sentido. Masisso ocorre no mundo da opinio. Em tal mundo, admite-se que a arteresiste e que ela o faz de modos diversos, que convergem em um podernico. Por um lado, a consistncia da obra resiste usura do tempo; poroutro, ~}o que a produziu resiste determinao do conceito. Su-pe-se que quem resiste ao tempo e ao conceito naturalmente resisteao~poderes. O clich do artista livre e rebelde uma ilustrao fcil ecorriqueira dessa lgica da opinio. O sucesso da palavra "resistncia"depende, portanto, de duas propriedades. Dessas duas propriedades,isto , por uma parte, do potencial homonmico da palavra, o qual per-

    - rnite que se construa uma analogia entre a resistncia passiva da pedra ea oposio ativa dos homens; por outra parte, da conotao positiva queela conservou em meio a tantas palavras que caram em desuso ou sobsuspeita: comunidade, revolta, revoluo, proletariado, classes, eman-~o etc. J no visto com bons olhos querer mudar o mundo paratom-lo mais justo. Mas, precisamente, a homonmia lxica da "resis-tncia" tambm uma ambivalncia prtica: resistir assumir a postu-ra de quem se ope ordem das coisas, rejeitando ao mesmo tempo ofisco de subverter essa ordem. E sabe-se que, hoje em dia, a postura he-rica daquele que "resiste" corrente democrtica, comunicacional e

    * Filsofo, professor da Universidade Paris VIII.

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    publicitria se acomoda de bom grado deferncia no que tange as do-minaes e exploraes em vigor. Conhecemos, de resto, a dupla de-pendncia da arte em relao aos mercados e aos poderes pblicos, esabemos que os artistas no so nem mais nem menos rebeldes que asdemais categorias da populao.

    Assim, chega-se ao problema: se recusamos essas falsas evidn-cias da opinio, que sentido dar conjuno dessas palavras? Que re-lao estabelecer entre a idia de uma atividade ou de um domniochamado "arte" e a de uma virtude especfica da resistncia? Quer di-zer, em primeiro lugar: que fazer com a homonmia da palavra "resis-tncia", que contm vrias idias em uma s palavra? upe-se que aarte resista segundo dois sentidos de termos que so aparentementecontraditrios: como a coisa que persiste em seu ser e como os ho-mens que se recusam a persistir na situao deles. Em que condiesessa equivalncia entre duas "resistncias" aparentemente contradi-trias pensvel? Como pode a potncia do que "se mantm em si"ser ao mesmo tempo a potncia do que sai de si, do que intervm parasubverter precisamente a ordem que define sua prpria "consistn-cia"? Um colquio que tem Nietzsche como um de seus dois santospatronos no pode, claro, deixar de transformar a questo "como po-demos pensar isso?" em uma outra questo: por que devemos pen-s-Io? Por que temos a necessidade de pensar a arte ao mesmo tempocomo uma capacidade de autonomia, de manter-se em si, e como umapotncia de sada e de transformao de si?

    Gostaria de examinar o n problemtico a partir de um texto dosegundo santo protetor de nosso encontro, Gilles Deleuze. No captu-lo dedicado arte de O que afilosofia", lemos o seguinte:

    "O escritor torce a linguagem, f-Ia vibrar, abraa-a, fende-a, para arrancar opercepto das percepes, o afeto das afeces, a sensao da opinio- visan-do, esperamos, esse povo que ainda no existe. ( ...) ... a tarefa de toda arte: ea pintura, a msica no arrancam menos das cores e dos sons acordes novospaisagens plsticas ou meldicas, personagens rtmicos, que os elevam at ocanto da terra e o grito dos homens - o que constitui o tom a sade o devi rum bloco visual e sonoro. Um monumento no comemora: no cel~bra alg~que se passou, mas transmite para o futuro as sensaes persistentes que en-carnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos homens, seuprotesto recriado, sua luta sempre retomada. Tudo seria vo porque o sofri-mento eterno, e as revolues no sobrevivem sua vitria? Mas o sucesso

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  • de uma revoluo s reside nela mesma, precisamente nas vibraes, nos en-laces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia, e quecompem em si um monumento sempre em devir, como esses trnulos aosquais cada novo viajante acrescenta uma pedra.":

    A palavra resistncia no aparece nesse texto. Contudo, podemosreconhecer nele a apresentao do problema que essa palavra reco-bre. Esse texto se aplica, com efeito, a resolver o problema: comotransformar a analogia das "resistncias" em dinmica? Por um lado,apresenta-nos uma analogia entre dois processos: os homens s.ofrem,protestam, lutam, se enlaam por um instante antes que o sofnmentosolitrio reganhe seus direitos; o artista torce e enlaa a linguagem ouextrai os perceptos plsticos ou musicais das percepes ticas e so-noras para elev-los at o grito dos homens. H analogia, mas entre osdois existe, aparentemente, uma falha a ser transposta. O artista traba-lha "em vista" de um fim que esse trabalho no pode realizar por simesmo: trabalha "em vista" de um povo que "ainda falta". Mas, poroutro lado, esse trabalho se apresenta como o preenchimento do fossoque separa o enlace artstico do enlace revolucionrio. As vibraes eo enlaces adquirem uma figura consistente na solidez do monumento.E a solidez do monumento , ao mesmo tempo, uma linguagem, o mo-vimento de uma transmisso: o monumento "confia ao ouvido do fu-turo" as sensaes persistentes que encarnam o sofrimento e a luta.Essas sensaes se transformam na vibrao e no enlace revolucion-rio que acrescentam a pedra deles no monumento do devir.

    , Um monumento que fala ao futuro e um futuro que tem ouvidos realmente um pouco demais para ouvidos habituados a entender que arecusa da metfora o alfa e o mega do pensamento deleuzeano.Ora, aparentemente a metfora reina nesse texto, e reina em s~a fun-o plena: a metfora no apenas um simples ornamento de lingua-gem; ela , como sua etimologia indica, uma passagem ou um trans-porte. Para ir da vibrao extrada pelo artista vibrao revolucion-ria, preciso um monumento que faa dos blocos de vibrao umalinguagem endereada ao futuro. Essa passagem deve por si mesmacondensar muitas passagens, vrios saltos conceituais: para operar o

    'Oque ajilosojia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Mufioz. So Paulo: Ed. 34, 1992.p. 228-229 (Q.PH?, p. 167).

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    salto da toro artstica das sensaes para a luta dos homens, ela deveassegurar a equivalncia entre a dinmica da vibrao e a esttica domonumento. preciso que, na imobilidade do monumento, a vibra-o chame uma outra, que ela fale a uma outra. Todavia, essa palavratambm dbia: ela transmisso do esforo ou da "resistncia" doshomens e a transmisso do que resiste humanidade, transmissodas foras do caos, foras captadas nele e incessantemente reconquis-tadas por ele. O caos deve tomar-se (devenir) forma resistente, a for-ma deve tomar-se novamente (redevenir) caos resistente. O monu-mento deve tomar-se revoluo e a revoluo re-tornar-se (re-deve-nir) monumento.

    Atravs do jogo da metfora, verifica-se que o fosso entre o pre-sente da obra e o futuro do povo um lao constitutivo. O trabalho daarte no somente "em vista" de um povo. Esse povo pertence pr-pria definio da "resistncia" da arte, isto , da unio dos contrrios,que a define ao mesmo tempo como enlace dos lutadores fixados emmonumento e como monumento em devir e em luta. A resistncia daobra no o socorro que a arte presta poltica. Ela no a imitaoou antecipao da poltica pela arte, mas propriamente a identidadede ambas. A arte poltica. Tal a tese deleuzeana fundamentalmenteexpressa nessa passagem. Para que a arte seja poltica, preciso queela seja a identidade de duas linguagens do monumento: linguagemhumana desses monumentos dos quais Schiller dizia que eles trans-mitem aos homens do futuro a grandeza intacta das cidades livres de-saparecidas; linguagem inumana das pedras romnticas cuja palavramuda desmente a tagarelice e a agitao dos homens.

    Para que a arte seja arte, preciso que ela seja poltica; para queela seja poltica, preciso que o monumento fale duas vezes, como re-sumo do esforo humano e como resumo da fora inumana que o se-para de si mesmo. Gostaria de me interrogar aqui sobre as condiesde possibilidade de uma tal tese. A investigao tem, para mim, doisaspectos: por um lado, gostaria de mostrar que a tese deleuzeana no uma inveno singular de um ou dois autores, mas a forma particularde um n muito mais original entre uma idia da arte, uma idia dosensvel e uma idia do futuro humano; por outro lado, gostaria deanalisar o lugar particular que essa teoria ocupa no campo de tensesdefinido por esse n original.

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  • A obra como sensvel extirpado ao sensvel, sob a forma informeda vibrao e do enlace; o instantneo da vibrao ou do enlace comomonumento persistente da arte: singulares ao ponto de aparecerem notexto de Deleuze, essas equivalncias no so uma inveno sua. Elasvm de longe. E essa provenincia mesma se desdobra. Identifica-se afiliao mais imediata: a vibrao e o enlace vm diretamente das p-ginas que Proust dedica msica de Vinteuil. O sensvel extirpado dosensvel se encontra no cerne da tese do Tempo reencontrado. Mas adescrio e a tese proustiana s so possveis sobre a base de uma for-ma de visibilidade e de inteligibilidade da experincia esttica bemmais gerais e que definem todo um regime de identificao da arte.

    A idia do sensvel extirpado ao sensvel, do sensvel dissensual,caracteriza propriamente o pensamento desse regime moderno da mieque propus chamar de regime esttico da arte. E a idia de uma formade experincia sensvel especfica, desconectada das formas normaisda experincia sensvel, , com efeito, o que caracteriza esse regime depercepo e pensamento da arte. Quando Deleuze nos fala de um traba-lho que extrai o percepto da percepo e o afeto da afeco, ele traduz aseu modo a frmula original do discurso esttico, a frmula resumidapela analtica kantiana do belo: a experincia esttica a experincia deum sensvel duplamente desconectado: desconectado com relao leido entendimento que submete a percepo sensvel s suas categorias ecom relao lei do desejo que submete nossas afeces busca de umbem. A forma apreendida pelo julgamento esttico no nem a deum objeto do conhecimento nem a de um objeto do desejo. essenem... nem... que define a experincia do belo como experincia deuma resistncia. O belo o que resiste, ao mesmo tempo, determina-o conceitual e atrao dos bens consumveis.

    Essa primeira frmula do dissenso ou da resistncia esttica foi oque, na poca de Kant, separou o regime esttico da arte de seu regimerepresentativo. Pois o regime clssico, o regime representativo daarte, era governado precisamente pela concordncia entre uma formade determinao intelectual e uma forma de apropriao sensvel. Porum lado, a arte se definia como o trabalho da forma impondo sua lei matria. Por outro, as regras da arte, definidas por essa submisso damatria forma, correspondiam s leis da natureza sensvel. O prazerexperimentado verificava a adequao da regra. A mmesis aristotli-

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    ca era isto: o acordo entre uma natureza produtora - uma poiesis - euma natureza receptiva - uma aisthesis. A garantia desse acordo atrs chamava-se natureza humana.

    A "resistncia" ou o "dissenso", dos quais Kant fornece a primei-ra frmula, a ruptura desse acordo a trs, isto , a ruptura dessa natu-reza. A experincia esttica se mantm, da por diante, entre uma na-tureza e uma humanidade, ou seja entre duas naturezas e duas huma-nidades. O problema todo ser saber como se determina essa relaosem relao, em nome de que natureza e de que humanidade. exata-mente o problema que atravessa todos os textos de Deleuze sobre aarte: de uma humanidade outra, apenas a inumanidade, para ele,constitui caminho. Mas antes de chegar a esse ponto preciso passarpor uma ou duas outras conseqncias do dissenso constitutivo do re-gime esttico da arte. A primeira conseqncia simples de ser enun-ciada: se o belo sem conceito e se toda arte a operao de idias quetransformam uma matria, segue-se que o belo e a arte esto em umarelao de disjuno. Os fins que a arte se prope esto em contradi-o com a finalidade sem fim que caracteriza a experincia do belo.Para dar esse passo, preciso uma potncia especfica. Para Kant,essa potncia a do gnio, que no um observador das regras da na-tureza, mas a prpria natureza em sua potncia criativa. Mas o gniodeve, para isso, compartilhar a inconscincia da natureza. No podeconhecer a lei que rege sua operao. Para que a experincia estticado belo seja idntica experincia da arte, preciso que a arte sejamarcada por uma dupla diferena: tem de ser a manifestao de umpensamento que se ignora em um sensvel extirpado das condiesordinrias da experincia sensvel.

    Coube, sem dvida, esttica hegeliana a mais clara formulaodessa disjuno. Conhecemos a fobia anti-hegeliana caracterstica dopensamento de Deleuze. A vibrao, a composio e a linha de fugadeleuzeanas so, porm, ao seu modo, herdeiras da grande trinca he-geliana da arte simblica, arte clssica e arte romntica. De fato, foiHegel quem fixou a frmula paradoxal da obra de arte sob o regimeesttico da arte: a obra uma inscrio material de uma diferena paraconsigo mesma do pensamento: comea pela vibrao sublime dopensamento que busca inutilmente sua morada nas pedras da pirmi-de, continua no enlace clssico da matria e de um pensamento que s

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  • consegue se realizar nela ao preo da sua prpria fraqueza: a religiogrega sendo desprovida de interioridade pode, com efeito, expri-mir-se idealmente na perfeio da esttua de um deus; enfim, a obra a linha de fuga da flecha gtica que se estende na direo de um cuinacessvel e anuncia, assim, o fim em que, o pensamento alcanandoenfim sua morada, a arte ter cessado de ser um lugar do pensamento.Portanto, dizer que a arte resiste quer dizer que ela um perptuo jogode esconde-esconde entre o poder de manifestao sensvel das obrase seu poder de significao. Ora, esse jogo de esconde-esconde entreo pensamento e a arte tem uma conseqncia paradoxal: a arte arte,resiste na sua natureza de arte, apenas enquanto no arte, enquantono o produto da vontade de fazer arte, enquanto outra coisa que aarte. Essa "outra coisa" se chama, na obra de Hegel, esprito do povo:a esttua grega, para ns, arte apenas porque era outra coisa para seuescultor: a representao do deus da cidade, a decorao de suas insti-tuies e festas. Ela se chama "mdecine" , na obra de Deleuze, o qualcita a esse propsito uma frase de Le Clzio: "um dia, talvez sabere-mos que no havia arte, mas somente mdecine".

    As duas frmulas no se opem no seu princpio: a esttua grega a sade de um povo, e a mdecine deleuzeana, como a de Nietzsche,uma mdecine da civilizao. A diferena que o representante dasade do povo grego se chama Apolo, enquanto o mdico deleuzeanoassume a figura de Dioniso. Apolo e Dioniso no so simples perso-nagens de Nietzsche. Se ele pde teorizar a bipolaridade da tragdiagrega, porque essa bipolaridade j estruturava o regime esttico daarte. Ela marca a maneira dbia pela qual se expressa a distncia daarte para com ela mesma, a tenso do pensamento e do impensado quea definem. Apolo emblematiza o momento em que a unio do pensa-mento e do impensado da arte se fixa em uma figura harmnica. A fi-gura de uma humanidade em que a cultura no se distingue da nature-za, de um povo cujos deuses no se distanciam da vida da cidade. Dio-niso a figura do fundo obscuro que resiste ao pensamento, do sofri-mento da natureza primordial debatendo-se contra a ciso da cultura.A "resistncia" da arte , com efeito, a tenso dos contrrios, a tensointerminvel entre Apolo e Dioniso: entre a figura feliz do dissensoanulado, dissimulado na figura antropomrfica do belo deus de pedrae o dissenso reaberto, exacerbado no furor ou no clamor dionisaco:

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    na vontade do nada de Achab ou no nada da vontade de Bartleby, es-ses dois testemunhos da natureza primordial, da natureza "inumana".

    aqui que a "dissensualidade" artstica vem atar-se ao tema dopovo por vir. Para compreender esse n, precisamos retomar ao quefunda o regime esttico moderno da arte: a ruptura do acordo entre asregras da arte e as leis da sensibilidade que era a marca da ordem repre-sentativa clssica. Nessa ordem, a forma ativa se impunha matriapassiva atravs das regras da arte. E o prazer experimentado verificavase as regras da poiesis artstica correspondiam s leis da sensibilidade.Tal verificao se dava pelo menos para aqueles cujos sentidos podiamser tomados por testemunhos verdicos: os homens de gosto, os ho-mens da natureza refinada oposta natureza selvagem. Isto , a ordemrepresentativa consistia em uma dupla hierarquia: comando da formasobre a matria e distino entre a natureza sensvel selvagem e a natu-reza sensvel refinada: "O homem de gosto", dizia Voltaire, "tem ou-tros olhos, outros ouvidos, um outro tato que o homem grosseiro".

    A revoluo esttica revoga essa dupla hierarquia. A experinciaesttica suspende o comando da forma sobre a matria, do entendi-mento ativo sobre a sensibilidade passiva. De modo que a "dissensua-lidade" esttica no simplesmente a ciso da velha "natureza" hu-mana. tambm a revogao do tipo de "humanidade" que ela impli-cava: uma humanidade estruturada pela distino entre os homens desentidos grosseiros e os homens de sentidos refinados, os homens dainteligncia ativa e os homens da sensibilidade passiva. O 60 da Cr-tica da faculdade do juzo, enxergando a universalidade estticacomo mediadora de um novo sentimento de humanidade,j anuncia-va o princpio de uma "comunicao" que ultrapassa a oposio entreo refinamento das classes cultivadas e a simples natureza das classesincultas. Por detrs do "monumento que fala ao futuro" de Deleuze, preciso que se oua a msica original dessa "comunicao" kantiana. preciso tambm que se lembre que a Crtica dafaculdade dojuizo contempornea da Revoluo Francesa. Pois um autor tirou todas asconseqncias dessa contemporaneidade. Schiller, em suas cartas So-bre a educao esttica do homem, trouxe tona o significado polti-co da "resistncia" ou do "dissenso" esttico. O livre jogo esttico e auniversalidade do julgamento de gosto definem uma liberdade e umaigualdade novas, diferentes das que o governo revolucionrio quis

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  • inuxu sob li forma da lei: uma liberdade e uma igualdade no maisabstratas, mas sensveis. A experincia esttica a de um sensoriumindito, em que se abolem as hierarquias que estruturavam a expe-rincia sensvel. por isso que a experincia esttica traz consigo apromessa de uma "nova arte de viver" dos indivduos e da comunida-de, a promessa de uma nova humanidade.

    A resistncia da arte define, assim, uma "poltica" prpria que sedeclara mais apta que a outra para promover uma nova comunidadehumana, unida no mais pelas formas abstratas da lei, mas pelos laosda experincia vivida. portadora da promessa de um povo por virque conhecer uma liberdade e uma igualdade efetivas, e no maisapenas representadas. Mas essa promessa afetada pelo paradoxo da"resistncia" artstica. A arte promete um povo de dois modos contra-ditrios: por ser arte e por no ser arte.

    Por um lado, a arte promete em virtude da resistncia que a cons-titui, em razo da sua distncia das outras formas da experincia sen-svel. Na dcima quinta carta sobre A educao esttica do homem,logo aps nos ter assegurado que o livre jogo esttico era fundador deuma nova forma de vida, Schiller nos instala imaginariamente diantede uma esttua grega conhecida como a Juno Ludovisi. A deusa est,nos diz ele, fechada em si mesma, ociosa, livre de toda preocupao ede todo fim. Ela nem comanda nem resiste a nada. Compreendemosque essa "ausncia de resistncia" da deusa define a resistncia da es-ttua, sua exterioridade com relao s formas normais da experin-ciasensvel. porque ela no quer nada, porque ela exterior ao mun-do do pensamento e da vontade que comandam, porque ela , emsuma, "inumana", que a esttua livre e prefigura uma humanidadeliberta como ela das amarras do querer que oprime. porque ela muda, porque ela no nos fala e no se interessa pela nossa humanida-de, que a esttua pode "confiar aos ouvidos do futuro" a promessa deuma nova humanidade. O paradoxo da resistncia sem resistncia semanifesta, ento, em toda sua pureza. A resistncia da obra de arte re-presentando a deusa que no resiste chama um povo por vir. Mas ela ochama justamente na medida em que permanece distante, afastada davontade humana. A resistncia da esttua promete um futuro aos ho-mens que, como ela, cessariam de resistir, cessariam de traduzir emluta seus sofrimentos e queixas.

    Mas a perspectiva logo se modifica e o paradoxo se apresenta deforma inversa: a arte portadora de promessa, para Schiller, na medi-da em que consiste no resultado de algo que, para os que o fizeram,no era arte. A liberdade resistente da esttua de pedra resulta de serela a expresso de uma determinada liberdade - ou, em termos deleu-zeanos, de uma sade. Ou seja, a liberdade auto-suficiente da esttuae a do povo que nela se exprimiu. Ora, um povo "livre", dessa pers-pectiva, aquele que no conhece a arte como realidade separada, queno conhece a separao da experincia coletiva em formas distintaschamadas arte, poltica ou religio. De modo que o que a esttua pro-mete um futuro em que, novamente, as formas da arte no seromais distintas das formas da poltica, nem das formas da experincia eda crena comuns a todos. A "resistncia" da arte promete um povona medida em que promete sua prpria abolio, a abolio da distn-cia ou da inumanidade da arte. A arte ganha como objetivo sua pr-pria supresso, a transformao das suas formas em formas de ummundo sensvel comum. Da Revoluo Francesa Revoluo Sovi-tica, a revoluo esttica significou essa auto-realizao e essa auto-supresso da arte na construo de uma nova vida, na qual a arte, a po-ltica, a economia ou a cultura se fundiriam em uma mesma e nicaforma de vida coletiva.

    Sabe-se que esta auto-supresso da arte na construo da comuni-dade realizou-se de forma completamente diferente do que se pensa-va. Por um lado, ela foi inteiramente tragada pela disciplina de um re-gime sovitico que no queria saber de artistas construtores de formasde vida, e queria apenas artistas ilustradores de sua prpria maneirade construir a nova vida. Por outro, o projeto de uma arte que forma asformas da vida cotidiana realizou-se ironicamente na estetizao damercadoria e da vida cotidiana do capitalismo. Esse destino dbio,trgico e cmico, do projeto de uma arte tomada vida, como reao,nutriu a outra grande forma da metapoltica esttica: a idia de umaarte que acompanha a resistncia dos dominados e promete uma liber-dade e uma igualdade por vir, na medida mesmo em que afirma suaresistncia absoluta a qualquer comprometimento com as tarefas domilitantismo poltico ou a estetizao das formas da vida cotidiana.Isso bem resumido na frmula de Adorno: "a funo social da arte de no ter funo". Nessa concepo, a arte no resiste unicamente

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  • pelo fato de assegurar sua distncia. Resiste porque seu prprio en-clausuramento se declara insuportvel, porque ela o lugar de umacontradio inultrapassvel. O que a solido da arte no cessa de repre-sentar, para Adorno, a contradio entre sua aparncia autnoma e arealidade da diviso do trabalho, simbolizada pelo famoso episdioda Odissia que separa o autocontrole de Ulisses, amarrado ao mas-tro o trabalho dos marinheiros com os ouvidos tampados e o cantodas sereias. Para melhor denunciar a diviso capitalista do trabalho eos embelezamentos da mercadoria, a msica de Schnberg deve serainda mais mecnica, ainda mais "inumana" que a linha de produofordista. Mas essa inumanidade, por sua vez, faz aparecer a operaodo reprimido, a separao capitalista do trabalho e do gozo. na repe-tio sem fim do jogo da inumanidade do humano e da humanidadedo humano que a resistncia da obra mantm a promessa esttica deuma vida reconciliada. Mas ela s a mantm ao preo de deferi-Ia in-definidamente, de recusar como simulacro toda reconciliao.

    A "resistncia" da arte aparece, assim, como um paradoxo de du-pla face. Para manter a promessa de um novo povo, ela deve ou supri-mir-se ou diferir indefinidamente a vinda desse povo. A dinmica daarte, h dois sculos, talvez seja a dinmica dessa tenso entre doisplos, entre a auto-supresso da arte e o diferimento indefinido de seupovo. O paradoxo na poltica da arte remete justamente ao paradoxoda sua definio no regime esttico da arte: as coisas da arte no se en-contram a definidas, como antes, pelas regras de uma prtica. Elas sedefinem pelo pertencimento a uma experincia sensvel especfica, ade um sensvel subtrado s formas habituais da experincia sensvel.Mas essa diferena nas formas da experincia no seria uma diferenana natureza mesma dos produtos. O sensorium esttico que torna vis-veios produtos da arte como produtos da arte no lhes concede, comisso, nenhuma matria, nenhuma qualidade sensvel que lhes perten-a propriamente. A diferena da arte s existe se ela constru da casoa caso, passo a passo, nas estratgias singulares do artista. O artistadeve fazer intencionalmente uma obra capaz de emancipar-se comopotncia do impessoal e do inumano. E deve faz-lo arriscando a cadapasso que essa impessoalidade da arte se confunda com uma outra,com a prosa ou os clichs de um mundo do qual nenhuma barreira reala separa. A diferena esttica deve ser feita a cada vez sob a forma do

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    como se. A obra a metfora prolongada da diferena inconsistenteque a faz existir como presente da arte e futuro de um povo.

    esse destino melanclico da arte e de sua poltica que Deleuzerecusa. Ele pensa, em primeiro lugar, forar o dilema que aprisiona aarte entre a auto-supresso da resistncia ou a manuteno de uma re-sistncia que difere indefinidamente o povo por vir. Ele quer que a vi-brao de um l ou o enlace de duas formas plsticas tenham a resis-tncia de um monumento. Ele quer que o monumento fale ao futuro,que uma nota de Berg, o ringue de boxe de uma tela de Bacon ou a his-tria da metamorfose contada por uma novela de Kafka produzamno a promessa de um povo, mas a sua realidade, uma nova maneirade "povoar" a Terra. Essa toro do dilema poltico da esttica supeuma outra toro na prpria definio do processo da arte. Para De-leuze, a arte no pode ficar no regime do como se e da metfora: pre-ciso que seu sensvel seja realmente diferente. preciso que o inuma-no que a separa de si mesma seja realmente inumano. Nada mais sig-nificativo, desse ponto de vista, que sua relao com Proust. To-ma-lhe emprestado a vibrao e o enlace que testemunham o confron-to de duas ordens, a do sensvel organizado pelo entendimento e a doverdadeiro sensvel. Mas, em Proust, a diferena ; em ltima instn-cia, o trabalho da metfora. A metfora forjada pelo escritor deve tes-temunhar a irrupo involuntria da verdade, isto , conferir-lhe suarealidade literria. Deleuze, por sua vez, recusa que a metfora seja,em ltima instncia, a verdade da sua verdade. Ele quer que ela sejauma metamorfose real: a literatura deve produzir no uma metfora,mas uma metamorfose. O sensvel que ela produz deve ser to dife-rente daquele que organiza nossa experincia cotidiana quanto a ba-rata no quarto de Gregrio Samsa diferente do bom filho e do hones-to empregado Gregrio Samsa. A melodia schumaniana deve se iden-tificar ao canto da terra. Achab deve ser o testemunho da "naturezaprimordial", e Bartleby deve ser um Cristo, o mediador entre duas or-dens radicalmente separadas. Para tanto, preciso que o artista tenhaele prprio passado "do outro lado", que ele tenha vivido algo de de-masiado forte, de irrespirvel, uma experincia da natureza primor-dial, da natureza inumana da qual ele retome "com os olhos averme-lhados" e marcado na carne. Assim, possvel ultrapassar o como sekantiano, a metfora proustiana ou a contradio adorniana. Resta sa-

    r

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  • ber qual o preo a ser pago por esse excesso. E o preo a pagar pro-priamente a reintroduo de uma transcendncia no pensamento daimanncia.

    Esses olhos avermelhados, essa relao com algo forte demais,de irrespirvel, nos lembram uma outra experincia filosfica de en-contro entre duas ordens. Lembram a dramaturgia kantiana da expe-rincia do sublime que confronta a ordem sensvel ordem su-pra-sensvel. Para Deleuze, a potncia do dissenso artstico no podeexpressar-se na simples distncia dapoiesis aisthesis. Ela deve ser apotncia comunicada poiesis pela superpotncia de uma aisthesis,isto , em ltima anlise, a potncia da diferena ontolgica entreduas ordens de realidade. O artista aquele que foi exposto superpo-tncia do sensvel puro, da natureza inumana, e o trabalho que extrai opercepto da percepo o efeito da exposio a essa superpotncia.Essa conceitualizao retoma, da teoria kantiana do sublime, a idiado confronto entre duas ordens. A diferena que, em Kant, o con-fronto da imaginao com uma experincia sensvel do incomensur-vel introduzia o esprito tomada de conscincia do poder superior darazo e de sua vocao supra-sensvel. J em Deleuze, o supra-sen-svel encontrado na experincia sublime no o inteligvel, mas osensvel puro, o poder inumano da vida. A imanncia deve, portanto,fazer-se transcendncia. Mas ainda, em Kant, a experincia do subli-me nos fazia sair do domnio da arte e da esttica, marcando a passa-gem da esfera esttica para esfera moral. Em Deleuze, essa diferenada autonomia esttica para com a autonomia moral reinvestida noprprio cerne da prtica artstica e da experincia esttica. A arte atranscrio da experincia do sensvel supra-sensvel, a manifestaode uma transcendncia da Vida, que o nome deleuzeano do Ser. Ela a transcrio de uma experincia de heteronomia do humano no quediz respeito Vida.

    Em que medida esse poder heteronmico da Vida pode tornar-sea potncia de um coletivo humano em luta? Para colocar essa questo,parece-me til comparar a formulao deleuzeana com a de um fil-sofo contemporneo de Deleuze que, das mesmas pressuposies,extraiu conseqncias diametralmente opostas. Lyotard deu ao subli-me kantiano o lugar de princpio da arte moderna. Para ele, a arte mo-derna inteira a inscrio de um desacordo sublime entre o esprito e

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    uma potncia sensvel excedente, uma potncia que desampara o es-prito. E, para ele tambm, essa potncia do sensvel supra-sensvel a de um Inumano. Ele procede, portanto, como Deleuze, por inversoda anlise kantiana. Como Deleuze, transforma a distncia entre duasesferas em experincia de uma transcendncia do sensvel a si pr-prio. E, como ele, faz da experincia dessa transcendncia o princpiomesmo da prtica artstica. Mas Lyotard da extrai uma conseqnciacompletamente diferente. Deleuze e Guattari escrevem um Kajkapara contrapor essa superpotncia do sensvel excepcional ao reinoedipiano paranico do pai e da lei e a partir da estabelecer o princpiode uma comunidade fraterna. Lyotard tira a concluso inversa. O cho-que do sensvel supra-sensvel no a fora desterritorializante quefaz do monumento um chamado aos enlaces fraternos do futuro. afora que separa o esprito de si mesmo, que testemunha sua aliena-o primordial e irremedivel ao poder do Outro. Esse outro recebe onome da Coisa freudiana antes de receber o nome de Lei. A arte tor-na-se o testemunho dessa dependncia imemorial do esprito em rela-o ao Outro. A utopia fraterna apenas um avatar desse sonho deemancipao surgido poca do Iluminismo, o sonho de um espritosenhor de si e de seu mundo, livre do poder do Outro. Para Lyotard,esse sonho de uma humanidade senhora de si no apenas ingnuo,mas criminoso. ele que se realiza no genocdio nazista. O exterm-nio dos judeus da Europa de fato o extermnio do povo testemunhada dependncia do esprito em relao lei do Outro. A resistncia daarte consiste, assim, em produzir um duplo testemunho: testemunhoda alienao inultrapassvel do humano e testemunho da catstrofeque surge da ignorncia dessa alienao. Por isso, Lyotard extrai dareinterpretao da distncia sublime conseqncias opostas s dopovo por vir deleuzeano. Elas so, sem dvida alguma, menos simp-ticas. Receio, infelizmente, que elas sejam mais lgicas, que a trans-cendncia instaurada no cerne da Imanncia signifique, de fato, a sub-misso da arte a uma lei de heteronomia que recusa toda transmissoda vibrao da cor e do enlace, das formas s vibraes e aos enlacesde uma humanidade fraterna.

    Talvez seja preciso escolher: ou bem a diferena sensvel que ins-t ilui a arte urna diferena sem consistncia ontolgica, uma diferen-~'IIa cada vez refeita no trabalho singular de despersonalizao pr-

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  • prio de um procedimento artstico particular. A apropriao artsticado inumano permanece o trabalho da metfora. E atravs dessa pre-cariedade que ela se liga ao trabalho precrio e sempre sob ameaa dainveno poltica, que separa seus objetos e cenrios da normalidadedos grupos sociais e conflitos de interesse que lhes so prprios. Oubem transforma-se a diferena potica em diferena ontolgica. Masessa operao significa afogar as especificidades da inveno polticaou artstica em uma mesma experincia sensvel supra-sensvel. Odevir poltico da arte toma-se a confuso tica em que ambas, arte epoltica, esvanecem-se precisamente em nome da sua unio. E o quedecorre logicamente dessa confuso no uma humanidade tomadafraterna pela experincia do Inumano, mas uma humanidade remeti-da vaidade de todo sonho fraterno.

    O tema "resistncia" da arte, portanto, no de forma alguma umequvoco de linguagem do qual poderamos nos livrar mandando aconsistncia da arte e a protesto poltico cada qual para o seu lado. Eledesigna bem a ligao ntima e paradoxal entre uma idia da arte euma idia da poltica. H dois sculos que a arte vive da tenso que afaz existir, ao mesmo tempo, em si mesma e alm de si mesma e pro-meter um futuro fadado a permanecer inacabado. O problema no mandar cada qual para o seu canto, mas manter a tenso que faz ten-der, uma para a outra, uma poltica da arte e uma potica da polticaque no podem se unir sem se auto-suprimirem. Manter essa tenso,hoje em dia, significa, sem dvida, opor-se confuso tica que tendea se impor em nome da resistncia, com o nome de resistncia. O mo-vimento do monumento ao enlace e do enlace ao monumento s ter-mina ao preo de sua anulao. Para que a resistncia da arte no es-vanea no seu contrrio, ela deve permanecer a tenso irresolvida en-tre duas resistncias.

    Arte e falsificao: cinema e potnciasdo falso em Gilles Deleuze

    Jorge Vasconcellos* r

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    TraduoMnica Costa Netto

    Deleuze construiu um pensamento e uma filosofia do cinema,mais precisamente falando, um pensamento-cinema. Um pensamen-to cinematogrfico que no privilegia pura e simplesmente o movi-mento ou a ao, nem a mais verossmil narrao ou mesmo a imagi-nao, mas, isto sim, um certo xtase. xtase, pois, pela primeira vez,trata-se da questo do corpo e de suas afeces, de seu poder de pen-sar e de ser afetado como um "autmato espiritual", e tambm pelaprpria imagem cinematogrfica tomada "cristalina". Tudo se passa,ento, como se o cinema estivesse entregue magicamente sua profu-so originria ( preciso que se diga que o cinema uma arte de presti-digitador) ,j que, para Deleuze, escrever sobre cinema nunca consis-tiu em relacionar as imagens a uma lngua ou mesmo a uma lingua-gem expressiva, mas em liberar idias, produzir conceitos, extrair umpensamento muito profundo do tempo.

    Entre duas imagens que no param de correr uma aps a outra -uma atual, outra virtual-, o que Deleuze nos d a ver o tempo, umtempo fora de seus eixos, um tempo descolado do movimento. Este,ao no mais subordinar a temporalizao, deixa, assim, de ser espa-cializado e toma-se aberrante. O tempo, para Deleuze, tem o brilho ea transparncia do cristal. Esse tempo no mais, por conseguinte, fe-chado (a flecha que vai do passado em direo ao futuro, ancorada no

    * Jorge Vasconcellos professor do Programa de Ps-graduao em Filosofia da UniversidadeGama Filho/RJ e de Teoria e Histria do Cinema da Escola de Comunicao e Artes da Univer-Cidade/RJ.