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Mal-estar na Cultura / Abril-Novembro de 2010 Promoção: Departamento de Difusão Cultural - PROREXT-UFRGS Pós Graduação em Filosofia - IFCH UFRGS www.malestarnacultura.ufrgs.br 1 Gilberto Freyre Vida Social Lilia Moritz Schwarcz (professora livre-docente do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo) “Essa é uma tentativa de um brasileiro para conhecer o Brasil de meados do XIX, em sua vida quanto possível íntima”. É dessa maneira tímida que o jovem Gilberto Freyre, “um universitário de adolescência” -- como ele mesmo se caracterizava à época -- definia seu primeiro trabalho. Escrito em língua inglesa sob a forma de um mestrado, defendido na Columbia University no ano de 1922, o ensaio pretendia introduzir os estrangeiros nessa história “secreta” do Brasil: nos segredos das alcovas e das cozinhas, nas relações entre iaiás e mucamas, entre mucamas e ioiozinhos. O objetivo era entrar, de soslaio, em casa alheia: nesse grande mundo patriarcal. Esse Freyre debutante andava influenciado pela New History, que aprendera com os mestres americanos. Próxima à renovação que ocorria na França com a escola do Annales, também nessa versão anglo-americana o desafio era abrir mão dos grandes eventos e personagens, e chegar perto do cotidiano e da vida miúda. Freyre faria bom uso dos ensinamentos do antropólogo Franz Boas e escreveria essa verdadeira etnografia de tempos passados; tão romântica como melancólica. Aí está um mundo que não existiria mais, e cujas fontes seriam fartamente retiradas de entrevistas orais com parentes próximos ou referências caseiras. Relato personalíssimo, Vida social no Brasil é a expressão do neto ou do bisneto, que volta à casa cheio de saudades. Esse é o universo de Freyre, repaginado nessa obra que procura resguardar um mundo que já passou, que resiste apenas na memória, e que seria por definição -- diferente daquele que o autor conheceu nos Estados Unidos. Na obra também madrugam uma série de temas que fariam a fama de Freyre, já de volta ao Brasil nos anos 1930: o patriarcalismo, a sexualidade, a mestiçagem, o cristianismo e os rituais religiosos, o iberismo. O livro é assim quase um rascunho de assuntos e recortes frequentes nas obras futuras, e mais conhecidas, do antropólogo,

Schwarcz - Freyre Vida Social

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Artigo Lillia Schwartz Gilberto Freyre e vida social.

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Gilberto Freyre – Vida Social

Lilia Moritz Schwarcz

(professora livre-docente do Departamento de

Antropologia da Universidade de São Paulo)

“Essa é uma tentativa de um brasileiro para conhecer o Brasil de meados do XIX, em

sua vida quanto possível íntima”. É dessa maneira tímida que o jovem Gilberto Freyre,

“um universitário de adolescência” -- como ele mesmo se caracterizava à época --

definia seu primeiro trabalho. Escrito em língua inglesa sob a forma de um mestrado,

defendido na Columbia University no ano de 1922, o ensaio pretendia introduzir os

estrangeiros nessa história “secreta” do Brasil: nos segredos das alcovas e das

cozinhas, nas relações entre iaiás e mucamas, entre mucamas e ioiozinhos. O objetivo

era entrar, de soslaio, em casa alheia: nesse grande mundo patriarcal.

Esse Freyre debutante andava influenciado pela New History, que aprendera com os

mestres americanos. Próxima à renovação que ocorria na França com a escola do

Annales, também nessa versão anglo-americana o desafio era abrir mão dos grandes

eventos e personagens, e chegar perto do cotidiano e da vida miúda. Freyre faria bom

uso dos ensinamentos do antropólogo Franz Boas e escreveria essa verdadeira

etnografia de tempos passados; tão romântica como melancólica. Aí está um mundo

que não existiria mais, e cujas fontes seriam fartamente retiradas de entrevistas orais

com parentes próximos ou referências caseiras. Relato personalíssimo, Vida social no

Brasil é a expressão do neto ou do bisneto, que volta à casa cheio de saudades. Esse

é o universo de Freyre, repaginado nessa obra que procura resguardar um mundo que

já passou, que resiste apenas na memória, e que seria – por definição -- diferente

daquele que o autor conheceu nos Estados Unidos.

Na obra também madrugam uma série de temas que fariam a fama de Freyre, já de

volta ao Brasil nos anos 1930: o patriarcalismo, a sexualidade, a mestiçagem, o

cristianismo e os rituais religiosos, o iberismo. O livro é assim quase um rascunho de

assuntos e recortes frequentes nas obras futuras, e mais conhecidas, do antropólogo,

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como Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Nordeste, O negro nos

anúncios de jornais ou Ordem e Progresso.

O livro seria publicado em português apenas em 1963, e a partir de então o autor

passaria a realizar o exercício que mais apreciava: aumentar seu próprio texto, ou

introduzir novas apresentações que buscavam dar conta das críticas, ou até superá-

las. A obra sobrevive hoje, pois, como um grande documento: antes um testemunho

dos argumentos de Freyre, do que da época que procurou retratar. Mais ainda:

apresenta o frescor dos momentos iniciais quando de hábito expomos ideias sem

tantas travas ou requintes retóricos. E a leitura de Vida Social traz muitos

inesperados. Aqui está a vida “íntima” local, expressa pela descrição do vestir, comer,

descansar ou amar. Não por acaso o livro seria recebido como pura pornografia, o

que explica também a demora de quase 40 anos para a sua publicação. Além do mais,

Freyre promoveu, já com esse primeiro trabalho, uma verdadeira revolução no uso de

documentos. Longe do imperialismo das fontes oficiais impressas, o antropólogo

explorava agora a literatura dos viajantes, litogravuras, jazigos, moedas, cardápios ou

anúncios de jornais.

Mas essa obra será sempre lembrada por sua tese central, tão destacada como

criticada. Nesse livro de entrada no mundo literário, Freyre experimenta de forma

radical suas interpretações sobre a mestiçagem. Segundo ele, a mestiçagem era traço

fundamental da formação histórica brasileira; característica herdada dos portugueses.

Além do mais, representaria elemento definidor da nossa nacionalidade, refeita pela

atmosfera idílica do cotidiano escravo. Freyre chega até a comparar, sempre de

maneira positiva, o tratamento dado aos escravo no Brasil, com as condições

vivenciadas pelos trabalhadores ingleses no mesmo período, ou as dos escravos das

minas na América espanhola.

É certo que ao reescrever o texto para sua publicação em inglês e português, Freyre

relativizou as teses da benignidade da escravidão brasileira. Mas o partido está todo

lá: os escravos surgem bem alimentados e “cuidados pelos senhores”, e o autor

afirma, sem medo de errar, “que eles jamais se esfalfavam nos trabalhos”. Diz mais:

que a culpa seria dos abolicionistas, como Joaquim Nabuco ou Rui Barbosa, que

“persuadiram o brasileiro médio a acreditar que a escravidão teria sido por aqui cruel”.

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Nosso jovem intérprete defende o oposto: “O escravo brasileiro levava vida de quase

anjo, se o compararmos com a sorte dos operários do continente europeu”. Pautando-

se em relatos de viajantes, o antropólogo descreve um ambiente quase edênico, com

os escravos suspendendo o trabalho logo ao ouvir o apito amigo do engenho; tomando

uma boa refeição ao dormir; ou recebendo a benção: “Benção Nhonhô! Benção

Nhanhã”. Tudo como num bom conto, senão de fadas ao menos de ninar.

Se esse é o retrato de um certo Brasil do XIX, é sobretudo uma imagem certeira do

mundo que Freyre conheceu ou gostaria de ter encontrado quando em 1923 retornou

ao Brasil. Relato melancólico de meninice recém acabada, o livro guarda a mesma

oralidade do colega José Lins do Rego, e lembra as teses que desenvolveria tempos

depois. Onze anos mais tarde, em Casa Grande & Senzala, a mesma genialidade do

autor estaria de volta: a coragem de contar uma história sexual do Brasil, o uso de

fontes inesperadas, a verificação do mandonismo católico e patriarcal e a descoberta

da (boa e velha) mestiçagem. Mas na obra de 1933 tudo estaria devidamente

balanceado. Não há mais elogio exclusivo a uma relação pacífica, mas o desvendar de

uma realidade ambivalente feita do equilíbrio tenso entre mundos diferentes e que

experimentavam uma sociabilidade comum.

Com Freyre o Brasil se reconheceu na mestiçagem e fez dela um experimento para o

mundo. Distantes dos modelos do darwinismo social, que condenavam a mistura e a

consideravam uma evidência de nosso fracasso como nação, com o pensador

pernambucano aprenderíamos a fazer do cruzamento – de raças, costumes e crenças

– nossa mais perfeita tradução; a possibilidade de vislumbrar um mundo distante da

guerra e dos ódios de raça.

Mas tal é a versão adulta de Freyre. Essa que o leitor tem em mãos na bela re-edição

de Vida social no Brasil traz um retrato ¾ de nosso autor. É ele próprio que se

encontra lá descrito: ele e sua família; ele e seu mundo patriarcal; ele e sua

imaginação que o fez pensar, como o colega pintor Cícero Dias, que o mundo

começava e terminava mesmo em Pernambuco. E por que não?

Aí está uma obra de não ficção que pode e deve ser lida como deliciosa ficção; auto-

biografia até. Numa genuína e não intencional mistura de gêneros, Freyre leva, como

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sempre, seu leitor para onde quer e como quer. Nada como recorrer à definição do

amigo Darcy Ribeiro, que certa vez ironizou o traço auto-elogioso do mestre: “ele

gostava terrivelmente de si mesmo”.