SAUTCHUK.2007_arpão e anzol

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  • Universidade de Braslia

    Instituto de Cincias Sociais

    Departamento de Antropologia

    Programa de Ps-Gradua o em Antropologia Social

    O ARPO E O ANZOL

    tcnica e pessoa no esturio do

    Amazonas (Vila Sucuriju, Amap)

    Carlos Emanuel Sautchuk

    Braslia

    2007

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    O ARPO E O ANZOL

    tcnica e pessoa no esturio do

    Amazonas (Vila Sucuriju, Amap)

    Carlos Emanuel Sautchuk

    Orientadora: Profa. Lia Zanotta Machado Tese apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia, no dia 17 de dezembro de 2007, como um dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia.

    Banca Examinadora: Profa. Lia Zanotta Machado (DAN/UnB) (Presidente) Prof. Luiz Fernando Di as Duarte (MN/UFRJ) Profa. Maria Cristina Maneschy (UFPA) Profa. Mariza Pe irano (DAN/UnB) Prof. Paul Elliott Little (DAN/UnB) Suplente: Prof. Henyo Trindade Barretto Filho (IEB)

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    Dina (in memoriam) e ao meu pai, Jaime.

    Ao meu av, Vittorio.

    Para Sayuri.

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    Agradecimentos

    Sou grato ao sistema de ensino pblico brasileiro, onde h muitos anos desenvolvo minha formao. No Amap, vrias pessoas so responsveis pelo empreendimento da pesquisa de campo que d suporte a esse estudo. Toda minha gratido insuficiente para fazer jus ao apoio de Patrcia Pinha e Teresa Cristina Dias, do Ibama; sem seu entusiasmo, informaes e auxlio teria sido difcil chegar ao Sucuriju. No Instituto de Pesquisas Cientficas e Tecnolgicas do Estado do Amap, IEPA, sou devedor das informaes de Odete Silveira, Incia Vieira e Maria de Ftima; e em especial a Lus Maurcio Abdon e Salustiano Costa Neto, pelas informaes logsticas e o auxlio com a nomenclatura cientfica de plantas e animais. Em Macap, agradeo tambm a Benedito Pontes e Miriam Correa e Beto, admiradores e filhos do Sucuriju. Na impossibilidade de citar todas as pessoas do Sucuriju, agradeo a Geraldo Amoras Vales (Gero), Silvana Castro e seus familiares, que, mais do que me receberem em sua casa, tornaram-se grandes amigos. Assim tambm Mac, com quem aprendi tudo que pude sobre o lago, e Everaldo, Nei e Mira, companheiros de conversas e viagens pela costa amaznica. Aos participantes do grupo de pesquisa Techniques et culture e do Centre dEthno-Technologie en Milieux Aquatiques , que to gentilmente me acolheram durante o estgio na Frana. Dentre eles, Aliette Geistdoerfer, Jean-Luc Jamard, Odile Moureau, Franois Sigaut, Jacques Ivanoff e Philippe Geslin. Tambm Blandine Bril, Rmi Gouasdou e Julie Foucart, membros do Groupe de Recherche Apprentissage et Contexte, da cole dHautes tudes en Sciences Sociales, que me auxiliaram no tratamento dos dados e debateram questes relativas aprendizagem. Aos amigos, que fizeram a estadia em Paris ainda mais agradvel: Gustavo Madeiro, Diane Viana, Avais Daulat, Daphne Fayad, Josiane Martinez, Vincius Brei, Nicolas Poirier, Emilie Mariat e seu companheiro Xavier. A alguns colegas da antropologia sou especialmente grato, por terem influenciado em decises importantes a respeito dessa pesquisa. Ronaldo Lobo felizmente me convenceu a voltar esse estudo aos pescadores; Rodrigo Paranhos, sabendo desse interesse, apresentou-me o Sucuriju e indicou-me o caminho das pedras, ou das guas; Adolfo Neves ofertou-me preciosas orientaes para o trabalho de campo. Aos que dividiram comigo a angstia da escrita nos subsolos da katacumba: Soledad Castro, Elena, Jlio Borges, Carlos Alexandre, Diogo, Diego, Mariana, Josu, Cris, Odilon, Lus Cayn, Aina e Guil herme. Alm, claro, da velha guarda: Cloude Correia, Ney Maciel e Hber Grcio. Devo ao Departamento de Antropologia da UnB pela acolhida dos ltimos anos; em especial a Rosa, Adriana e Paulo.

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    Ao Henyo Barretto e ao Eduardo Di Deus, pelas indicaes bibliogrficas e conversas sempre instigantes Aos professores Mariza Peirano, Wilson Trajano e Jos Pimenta, pela ateno e confiana que me dispensaram em momentos importantes. A Lia Zanotta Machado, minha orientadora. Sou grato aos companheiros da educao fsica, que incentivaram essa passagem para a (pela) antropologia. Em especial Juarez Sampaio, Roberto Lio, Leandro Casarim, Daniel Catanhede e Alexandre Rezende. Aos amigos Renato Joo, Guilherme Sari, Sandro Ricci, Rosa Melo, Maurcio Cerri e Mrcio Guedes, agradeo pela presena constante durante minhas idas e vindas nos anos dessa pesquisa. Ao mestre Jos Yaes, El Pini . Ao pessoal de casa: dona Grazia, Anna Maria, Pia DAlto, Clarinha, Beth e o vindouro Gabriel. Por fim, agradecimentos sem limites a minha me, Vera Manzolillo. E a Joo Miguel e Maria Rosa, irmos e amigos. Durante os quatro anos de durao do doutorado, fui beneficirio de bolsa de estudos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). Salvo nos onze meses em que estive em Paris (outubro de 2005 a setembro de 2006), quando recebi bolsa e custeio do Programa de Doutorado com Estgio no Exterior da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES/MEC).

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    Viu-o, porm, ele, e, sem precipitao, calmo e forte, manda-lhe, consoante a sua expresso predileta, a pesada haste armada do penetrante ferro, que atravs da camada lquida e das duras escamas se lhe vai cravar nas carnes rijas. A sbita e trepidante parada da haste, que se levanta um momento sobre as guas para logo desprender-se e cair para ali, indica-lhe que o animal foi alcanado e deita a fugir malferido. (...) O pescador encarregado de lanar os anzis corre ao longo das bordas, rpido tirando-os das beiras em que estavam enganchados e deitando-os ao mar, um a um, metodicamente, mas presto e ligeiro. A canoa, velas enfunadas, corre. preciso que na rapidez a acompanhe e exceda ele, sem o que, se partiriam anzis ou a corda, esticada de repelo pela carreira do barco. s vezes, de sbito, um ai! doloroso corta o ar. Foi um daqueles anzis que pegou a mo que aceleradamente os ia levantando da borda e lanando ao mar.

    Jos Verssimo, A pesca na Amaznia, 1895.

    (...) entendo por uso no somente a manipulao ou a satisfao direta ou instrumental das necessidades, e sim as atividades corporais entendidas no sentido mais amplo de comportamento, no sentido em que o corpo abraa o entendimento, ou seja, as idias, crenas e valores que circundam um objeto.

    Bronislaw Malinowski , A vida sexual dos selvagens, 1929.

    preciso ver tcnicas e a obra da razo prtica coletiva e individual, l onde geralmente se v apenas a alma e suas faculdades de repetio.

    Marcel Mauss, As tcnicas do corpo, 1934.

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    Resumo

    O presente estudo aborda a pesca enquanto modo de construo da pessoa, refletindo

    sobre a relao entre o tcnico e o humano numa perspectiva monogrfica. A etnografia

    enfoca dois grupos de pescadores que habitam a Vila Sucuriju. Os laguistas dedicam-se

    predao do pirarucu (Arapaima gigas) em lagos, onde o acoplamento do arpo e da

    canoa ao pescador e a relao intersubjetiva com os animais so primordiais. Eles se

    formam atravs de um longo processo de protetizao do corpo, que condio para a

    interao pessoa a pessoa com o peixe. J os pescadores de fora atuam na regio

    costeira, onde tripulam barcos a motor e agem em coordenao com a mar e o espinhel

    (linha com centenas de anzis) para capturar a gurijuba (Arius parkeri) . Seu prestgio

    est ligado demonstrao de coragem para enfrentar os perigosos movimentos do

    anzol e vontade para suportar a rdua integrao na dinmica a bordo. Estabelecendo

    relaes distintas entre pescadores, artefatos e ambiente, as pescas lacustre e costeira

    esto associadas a modalidades prprias de subjetivao, incluindo corpos, habilidades e

    modos de socialidade especficos (formas de reciprocidade, socializao das crianas,

    participao nas festividades, organizao do espa o domstico etc.). Tomando a relao

    entre o tcnico e o humano numa perspectiva gentica, em dilogo com Mauss, Leroi-

    Gourhan e Latour, e conferindo importncia prtica, conforme as antropologias

    ecolgicas de Descola e Ingold, este estudo examina em detalhe o fato que, para alm da

    eficincia produtiva e do domnio de um saber-fazer, o engajamento em atividades

    tcnicas implica configurae s particulares da pessoa.

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    Abstract

    The Harpoon and The Hook: technique and the person i n the Amazon

    estuary (Vila Sucuriju, Amap State, Brazil)

    This study deals with fishing as a mode of person-building, reflecting on the relationship

    between technique and the human from a monographic perspective. The ethnography

    focuses on two groups of fishermen inhabiting the village of Vila Sucuriju. One group,

    the laguistas , dedicate themselves to preying on the pirarucu fish (Arapaima gigas) in

    lakes, where the attachment of the harpoon and the canoe to the fisherman and the

    intersubjective relation with the animals are of prime importance. Members of this

    group evolve through a long process of corporal prosthetization, which is the condition

    for person to person interaction with the fish. On the o ther hand, the pescadores de fora

    group operate along the coast using powered craft, the crew acting in close coordination

    between the tide and the bottom fishing line carrying h undreds of hooks (espinhel) to

    catch gurijuba fish (Arius parkeri) . Prestige as a fisherman is linked to demonstration

    of courage to face the perilous task of casting the line of hooks, and the will to bear the

    arduous integration with the onboard dynamics. Establishi ng distinct relations among

    fishermen, artefacts and the environment, the lake and coastal fishing modes are

    associated with the modalities of subjectivation themselves, including bodies, skills and

    specific sociality modes (forms of reciprocity, child rearing, participation in festivities,

    organization of domestic space etc.). Viewing the relationship between technique and the

    human in a genetic perspective, bearing in mind the discussions of Mauss, Leroi-

    Gourhan and Latour, and conferring importan ce upon the practice, in accordance with

    the ecological anthropologies of Descola and Ingold, this study examines in detail the

    fact that, besides the productive efficiency and the mastery of the required know-how,

    the engagement in technical activities entails particular human configurations.

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    Sumrio

    Prlogo Estrias e pescadores: tema, conceitos e m todos , 01

    Captulo 1 Sucuriju em trs tempos: a memria-rio, o ritmo hdrico e os

    percursos do peixe, 27

    Da boca s cabeceiras: a constituio de uma identidade fluvial , 30

    Aqui tudo por mar: das referncias temporais no Sucuriju, 43

    Pra bia e pra passar : as formas de circulao do peixe nas trocas e no sistema de

    aviamento, 56

    Captulo 2 Lago: acoplamento tcnico, comunicao e predao , 75

    Caminho atravs dos seres, 77

    Mariscar, 95

    Topar , arpoar : a relao com o pirarucu, 105

    Proeiro, individuao tcnica e predao, 123

    Captulo 3 Costa: fluxo hdrico, disposio e engajamento tcnico, 134

    Mar: tempo e espao na pesca costeira, 134

    Pesca, 156

    Barco: entre horrio e servio, 151

    Anzol: possibilidades, riscos e coragem, 160

    Pescador, engajamento e metamorfoses, 176

    Captulo 4 Buiar: palavras, humanos e artefatos entre o lago e a costa , 189

    Fundo: da situao das categorias, 190

    Trnsito humano: modalidades de insero no lago e na costa, 202

    Duas razes para rejeitar a rede: de compromissos e apetrechos de pesca, 221

    Captulo 5 Construo da pessoa e aprendizagem da pesca, 235

    Aprender a pescar: comentrio bibliogrfico, 241

    De zagaias, barcos e moleques, 265

    Gestao e metamorfoses: da formao de laguistas e pescadores, 289

    Eplogo Sobre tcnicas e humanos, 292

    Referncias bibliogrficas, 300

    Anexo 1 Nomes de plantas e animais citados

    Anexo 2 Termo de compromisso firmado entre o Ibam a e a Comunidade do

    Sucuriju para o uso dos lagos

    Anexo 3 Caderno de Fotos

  • x

    Mapas

    Mapa 1 Vila Sucuriju e regio do esturio do Amazonas, 02

    Mapa 2 Croqui da Vila Sucuriju, 41

    Figuras

    Figura 1 Relaes entre pescador (fregus) e patro, 69

    Figura 2 Campo operatrio do proeiro, 90

    Figura 3 Semitica do pirarucu, 109-10

    Figura 4 Montagem e operao do arpo, 117-8

    Figura 5 Horrio da mar, 164

    Figura 6 Servio a bordo, 164

    Tabelas

    Tabela 1 Regimes de temporalidade da vila, 47

    Tabela 2 Atividades associadas ao fornecimento de crdito, conforme os patres atuantes na

    Vila Sucuriju, 65

    Tabela 3 Exemplos de distribuio das aes entre os camarados ao posicionar a linha no

    fundo ( linhar ), 165

    Tabela 4 Exemplos de distribuio das aes entre o s camarados ao recolher a linha do fundo

    (colher), 166

    Grficos

    Grfico 1 Seqncia do lanamento de anzis, 170

    Grfico 2 Lanamento dos anzis por Everaldo (barc o Navegando com Deus). Mdia de 0,83

    segundo por anzol, 174

    Grfico 3 Seio lanado por Mira (barco Nazareno). Mdia de 0,83 segundo por anzol, 174

  • xi

    Vdeo documentrio O arpo e o anzol (6:33 minutos ).

    Link

    (http://br.youtube.com/watch?v_mGqXjz4Sqo )

  • 1

    Prlogo

    Estrias e pescadores: te ma, conceitos e mtodos

    Na vila Sucuriju, o gosto por contar os sucessos da pesca demonstrado por muitos. Nada

    incomum, se levarmos em conta que a vila, com cerca de quinhentos e vinte habitantes

    localizada na foz do rio homnimo, ao norte da desembocadura do Amazonas (vide mapa 1,

    abaixo) tem na pesca sua nica atividade produtiva, seja com fins comerciais ou para consumo

    local. Entretanto, mesmo o ouvinte mais displicente logo perceberia que h dois tipos de estrias

    bem diferentes. E no poderia ser de outro modo, pois enquanto algumas narrativas tratam da

    pesca costeira, que realizada com barcos motorizados, com trs a seis tripulantes e usando

    espinhel (linha de mais de um quilmetro, com centenas de anzis), outras tm como tema a

    pesca lacustre, efetuada em canoas a remo para duas pessoas, empregando o arpo.

    Alm da ambientao das estrias, tambm as propriedades dos seres e artefatos que nelas

    interagem so particulares. A importncia e o significado do barco para a pesca costeira no

    encontram paralelo no uso da canoa na pesca lacustre. Aquele aparece como entidade autnoma

    composta por pescadores, motor, aparelhos de pesca que se desloca pelo mar, deparando-se

    com diversas manifestaes do fluxo hdrico; no lago, a canoa e o arpo so solidrios s aes

    do arpoador. No que diz respeito aos instrumentos de captura, a desconfiana dos pescadores em

    relao aos perigos que o anzol lhes representa no se parece em nada compreenso do arpo

    como parte integrante daqueles que atuam no lago. Estes se referem sobretudo ao encontro com o

    pirarucu (Arapaima gigas)1, peixe que d mostras de refinada inteligncia, e cuja captura envolve

    estratgia e interao. A gurijuba (Arius parkeri), o peixe mais buscado na costa, que se

    movimenta rente ao fundo, tem em seu comportamento algo de imprevisibilidade, mas que no

    nasce da esperteza, como o caso do pirarucu, e sim de sua relao com a mar.

    1 A taxonomia cientfica de plantas e animais citados pode ser consultada no anexo 1.

    Ana_2UnderlineAna_2Sticky Notepeixes e indoles
  • 2

    Mapa 1 Vila Sucuriju e regio do esturio do rio Amaz onas

  • 3

    Se em tais estrias as coisas e os animais tomam formas muito particulares, eles tambm

    tm relaes peculiares com os pescadores. O artefato que executa a captura no mar o anzol

    compreendido como um parceiro imprescindvel, mas ao mesmo tempo um adversrio pronto a

    pular sobre o pescador, animado pelo sistema mecnico do espinhel e do barco. O arpo, que

    vai ao fundo dos lagos para alcanar e trazer o pirarucu, narrado como parte constituinte do

    corpo do arpoador e participa de seu prestgio. Tambm os peixes mostram particularidades, da

    astcia e intencionalidade do pirarucu, que estabelece um jogo com o pescador, caracterizao

    da gurijuba como um tesouro a pesca costeira referida tambm como uma espcie de garimpo,

    onde o pescador d com o peixe conforme perscruta a costa. As temporalidades tambm marcam

    domnios especficos. Nas estrias sobre o lago, os eventos significativos esto nos encontros

    entre os seres e suas (inter)aes, que configuram as propriedades do espao, e inclusive os

    nomeiam veja-se por exemplo o rego da cobra, a enseada do Chico Torres. Na costa, a

    relao com a mar que ordena o tempo, j que ela tem ciclos inexorveis, mas com intensidades

    at certo ponto imprevisveis, compondo o ritmo da atividade costeira, desde os momentos

    propcios aos movimentos do barco at o equilbrio do pescador sobre o convs.

    interessante lembrar, porm, que os pescadores no so apenas os que contam estrias

    sobre os ambientes e as atividades eles tambm so personagens dessas estrias. Eles se

    relacionam com esses elementos, integram-se a essas temporalidades e, como no poderia deixar

    de ser, apresentam propriedades e caractersticas particulares, associadas a cada atividade. Assim,

    as estrias no so apenas dos pescadores, mas tambm sobre os pescadores. As elaboraes

    narrativas sobre o encontro com um jacar, ou a transformao de um laguista em pirarucu, ou

    ento sobre a coragem diante do anzol ou o caso da avaria de um motor no deixam de falar

    tambm do prprio pescador. assim que, ao elogiar os dotes do pirarucu, no deixam tambm

    de tratar do pescador como um corpo-arpo, numa interao com o peixe permeada de sentidos.

    Se falam da pescaria martima em meio a um temporal ou de uma avaria mecnica na navegao

    costeira, no sem enfatizar a disposio para lidar com o anzol sob chuva, ou para saltar na

    gua e realizar um reparo.

    Se as estrias que tratam do lago e da costa colocam em ao coisas distintas, elas

    refletem tambm uma existncia muito particular dos pescadores. Aqueles que atuam nos lagos

    se consideram a partir das relaes que entretm com animais diversos e com os donos,

    espritos que controlam determinadas reas; eles ressaltam a forma como estes seres agem de

    Ana_2UnderlineAna_2Sticky NoteartefatosAna_2Underline
  • 4

    modo intencional e inteligente, de acordo com suas capacidades corporais para o deslocamento e,

    alguns, mesmo para o ataque. A efetividade da captura corresponde sempre a uma interao

    direta com o animal, que reflete um estado do pescador feliz nas boas capturas, panema quando

    a pesca no vai bem que pode ser alterado por vrios tipos de interaes ou prticas em que ele

    se envolve. J na costa a captura est vinculada a N ossa Senhora de N azar ou a Deus, que

    concedem ou no o encontro com o peixe. Os temas do catolicismo local se associam s aes do

    barco e de seus componentes frente aos movimentos hdricos; assim, a atuao do pescador ganha

    sentido no mbito das interaes a bordo, enquanto forma de contribuir ao funcionamento do

    todo, cuja ao transcende sua prpria; isto , sua atuao se relaciona com a captura atravs de

    uma srie de mediaes.

    Portanto, do mesmo modo que as estrias e as atividades, h tambm pescadores bastante

    diferentes no Sucuriju. Segundo a atividade que desempenham, eles se dividem em dois grupos

    especializados, que so chamados localmente de laguistas, os que atuam nos lagos, e pescadores

    de fora ou simplesmente pescadores, os que pescam na costa. Ambos habitam na vila e tm sua

    existncia vinculada a essa socialidade, estando, assim, inseridos na mesma situao geogrfico-

    econmica do esturio amaznico e ligados conjuntamente comercializao da pesca atravs do

    sistema de aviamento. Se os pescadores desempenham atividades e tm formas de vida at certo

    ponto especializadas, estes aspectos ficam englobados por seu pertencimento ao Sucuriju, que

    configura um contexto histrico-mtico, uma origem migratria, uma temporalidade e uma

    situao prtica e econmica compartilhadas.

    O contraste que ressalta nessas estrias uma pista com a qual esse trabalho lida. Alm da

    diferena de ambientes, seres, artefatos, saberes em suma, entre as duas atividades h outra,

    articulada a todas estas, que nos interessa mais particularmente. Tratam-se de duas formas de

    elaborao do humano, ou, mais especificamente, de dois tipos de pescadores. Essa diferena no

    est apenas nas narrativas sobre os sucessos da pesca, mas igualmente observvel na

    estruturao e importncia da unidade domstica, na forma de circulao do peixe, nas formas de

    socialidade na vila e na prpria morfologia e concepo dos corpos. Diante disso, o aspecto que

    mais interessa nesse estudo abordar a prtica da pesca nos dois domnios, considerando sua

    articulao com as pessoas que as praticam laguistas e pescadores de fora.

    Ana_2UnderlineAna_2Sticky Notediferena entre laguistas e pescadores
  • 5

    A pesca: entre tema e problema

    A mobilidade e a incerteza do acesso aos recursos que leva a um vnculo peculiar entre a

    extrao, por um lado, e a comercializao ou o consumo, de outro um problema central para

    a economia da pesca e se constitui numa espcie de prisma aos olhos das concepes tericas das

    cincias sociais. Isto porque lidando com as vrias possibilidades de interpretao desse vnculo

    que elas consideram as populaes de pescadores em diferentes contextos ora como camponeses

    (Firth 1971; Forman 1970; Diegues 1983; Furtado 1987, 1993; Maldonado 1993; Chaves 1973),

    ora como trabalhadores (Duarte 1999; Diegues 1983; Loureiro 1985; Maneschy 1993), ora como

    caadores (Diegues 1983: 06; Plsson 1994; Collet 1989). O mais das vezes, tais termos orientam

    uma preocupao em estabelecer as especificidades da pesca por meio de analogias com outras

    atividades (agricultura, indstria, predao, coleta etc.) centradas em parmetros econmicos.

    Isso no impede que se tenha tentado estabelecer uma definio prpria para a pesca

    privilegiando a anlise econmica. Luiz Fernando Dias Duarte (1999: 64-5), por exemplo, discute

    a caracterizao de certas formas de pesca frente noo marxista de pequena produo

    mercantil, atribuindo a permanncia nesse estgio do desenvolvimento das foras produtivas s

    limitaes da aplicao de capital para superar as vicissitudes prprias da submisso s

    injunes climticas e ecolgicas em geral. Por isso mesmo, Duarte no deixa de apontar as

    ambigidades e imprecises que a pesca apresenta diante do instrumental de anlise

    marxista, principalmente devido s particularidades de seu processo produtivo. Antnio Carlos

    Diegues (1983: 149-51), por sua vez, baseia-se na distino que a teoria marxista faz entre

    camponeses e artesos para defender uma classificao entre pescador-lavrador e pescador

    artesanal, formas que ele considera dentro do marco da pequena produo mercantil, mas que

    seriam distintas conforme o seu grau de dependncia do mercado. No contexto amaznico,

    Violeta Loureiro (1985) e Lourdes Furtado (1993) distinguem de modo anlogo entre os

    pescadores que tambm praticam a agricultura ou outras formas de extrativismo daqueles que so

    efetivos ou monovalentes, isto , cuja pesca a nica atividade, com produo voltada para o

    comrcio.

    As pescas lacustre e costeira no Sucuriju se enquadrariam nessa segunda situao, isto ,

    como atividades produtivas exclusivas e voltadas para o comrcio, dependentes de um saber-

    fazer especializado e de meios de produo pertencentes a pescadores ou pequenos proprietrios

    locais e estabelecendo uma prtica e uma identidade masculinas estreitamente vinculadas

    Ana_2Sticky Notepesca campones X trabalhador X caadorAna_2UnderlineAna_2UnderlineAna_2Underline
  • 6

    atuao na pesca comercial. Isto dito, importante reafirmar que laguistas e pescadores se

    diferenciam muito na relao que mantm com o ambiente e com seus instrumentos, nos tipos de

    habilidades e na forma como as reproduzem; alm do modo distinto de lidar com o que talvez

    seja o aspecto mais complexo das abordagens econmicas da pesca a imprevisibilidade da

    captura. Sendo assim considerando os pescadores numa posio intermediria entre a incerteza

    da captura e a premncia da relao comercial que sustenta a economia familiar interesso-me

    por essa questo a partir do vis das relaes com o ambiente e os instrumentos no mbito da

    atividade de captura, e como isto implica na construo diferencial dos pescadores, na costa e no

    lago.

    Mesmo ao buscar analisar as atividades a partir de suas relaes tcnicas, este trabalho

    no deixa de se alinhar com a preocupao demonstrada por Duarte (1999: 18), em relao

    relativizao da categoria pescador.2 Se o domnio tcnico privilegiado nessa anlise, porque

    considero os diferentes modos de envolvimento na atividade de captura como aspectos centrais

    na construo do pescador mais especificamente, de laguistas e pescadores de fora, os dois

    grupos especializados no Sucuriju. Esse trabalho dialoga ainda com outros desdobramentos do

    pensamento de Duarte, em especial quando, a partir de etnografia sobre uma populao de

    pescadores no Rio de Janeiro, aponta a necessidade de se tomar o tema da reproduo social do

    pescador atravs da preocupao com a composio de sua identidade no prprio processo de

    trabalho: (...) o pescador feito o resultado de um fazer paulatino que vai ao mesmo tempo

    fazendo quem faz (Duarte 1999: 95). Disto advm um segundo desdobramento, que est no fato

    de se considerar a aprendizagem como algo chave para compreender a lgica de sua gnese [do

    pescador], o processo de legitimao pela aquisio do conhecimento indispensvel construo

    do pescador feito (idem: 91).

    Nesse ponto, alis, Duarte d uma formatao prpria a uma questo que perpassa os

    estudos sobre pesca em geral. Com diferentes enfoques, os autores so praticamente unnimes em

    sublinhar a competncia (habilidade, saber-fazer, conhecimento etc.) como aspecto fortemente

    valorizado no mbito das sociedades de pescadores. Para ficar num exemplo, que guarda

    proximidade etnogrfica com esse estudo, veja-se como Furtado compreende o saber-fazer em

    2 Voltada para as discusses de gnero, Edna Alencar tambm nota que preciso que se repense o conceito de pesca e, nesse sentido, talvez o entendimento da categoria pescador seja um primeiro passo para o entendimento do que a pesca, j que imperativo distingir o conceito de pesca para os grupos pesquisados (...), do conceito do pesquisador (Alencar 1993: 71 e73).

    Ana_2UnderlineAna_2Sticky Notesaber-fazer nos estudos sobre pescaTese final_alterada.pdfprojeto final small.pdf