349
F Fi il lo os so of fi ia a M Mo od de er rn n B B B r r r a a a s s s í í í l l l i i i a a a , , , v v v . . . 7 7 7 , , , n n n . . . 2 2 2 , , , a a a g g g o o o . . . 2 2 2 0 0 0 1 1 1 9 9 9 R R e e v v i i s s t t a a d d e e e e C C o o n n t t e e m m p p o o r r â â n n e e a a a a D D o o s s s s i i ê ê E E s s p p i i n n o o s s a a

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Page 1: RReevviissttaa ddee FFiilloossooffiiaa MMooddeerrnn aa ee

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Equipe EditorialEditorial Team

Editor ChefeEditor in ChiefAlexandre Hahn(hahnalexandregmailcom)

Editores AssociadosAssociated EditorsMaacutercio Gimenes de PaulaPriscila Rossinetti RufinoniRodrigo Freire

Editores de SeccedilatildeoSection EditorsFabio Mascarenhas NolascoGiovanni ZanottiIsabella HolandaJoatildeo Renato Amorim FeitosaLorrayne ColaresEditores de TextoText EditorsAgnaldo Cuoco PortugalAlex Sandro Calheiros de MouraClaacuteudio Arauacutejo ReisErick Calheiros de LimaHerivelto Pereira de SouzaMarcos Aureacutelio FernandesMaria Ceciacutelia Pedreira de AlmeidaPhillipe Lacour

Conselho CientiacuteficoScientific CouncilAdriana Veriacutessimo Serratildeo (Universidade de Lisboa)Alessandro Pinzani (UFSC)Alvaro Luiz Montenegro Valls (UNISINOS)Ceacutesar Augusto Battisti (UNIOESTE)Daniel Omar Perez (UNICAMP)

Elisabete M J de Sousa (Universidade de Lisboa)Joatildeo Vergiacutelio Gallerani Cuter (USP)Joatildeosinho Beckenkamp (UFMG)Jon Stewart (Universidade de Copenhagen)Maria das Graccedilas de Souza (USP)Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)Todd Ryan (Trinity College)Zeljko Loparic (UNICAMP)

Editores de DiagramaccedilatildeoLayout EditorsAlan Renecirc AntezanaGregory Wagner Carneiro

CapaCover(Benedito de Espinosa)Alexandre Hahn

Universidade de BrasiacuteliaUniversity of BrasiacuteliaReitoraRector Maacutercia Abrahatildeo MouraVice-reitorVice Rector Enrique Huelva

Instituto de Ciecircncias HumanasInstitute of Hu-man SciencesDiretorDirector Neuma Brilhante RodriguesVice-diretorVice Director Herivelto Pereira de Souza

Departamento de FilosofiaPhilosophy Depart-mentChefeHead Andreacute LeclercVice-chefeVice Head Agnaldo Cuoco Portugal

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em FilosofiaGraduateProgram in PhilosophyCoordenadorCoordinator Rodrigo Freire

Contato ContactRevista de Filosofia Moderna e ContemporacircneaUniversidade de BrasiacuteliaDepartamento de FilosofiaPrograma de Poacutes-Graduaccedilatildeo em FilosofiaICC Ala Norte - Bloco B - 1ordm Andar (B1 624)Telefone (61) 3107-6677 6680 6679Campus Universitaacuterio Darcy Ribeiro70910-900 ndash Brasiacutelia ndash Distrito Federal ndash BrasilE-mail rfmcunbbr

Indexaccedilatildeo Indexed inCiteFactor CLASE Diadorim DOAJ DRJI Latin-dex Sumaacuterios Perioacutedicos PhilBrasil PhipapersSHERPARoMEO

Qualis CAPES ndash B2

DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i2

A Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea eacute umapublicaccedilatildeo quadrimestral do Departamento de Filosofia e doPrograma de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia (UnB)The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a

triannual publication of the Department of Philosophy and theGraduate Program in Philosophy of the University of Brasiacutelia

Brasiacutelia volume 7 nuacutemero 2 2ordm quadrimestre de 2019ISSN 2317-9570 (publicaccedilatildeo eletrocircnica)

httpperiodicosunbbrindexphpfmc

Pareceristas desta EdiccedilatildeoReviewers of this Issue

Andreacute Luis Muniz Garcia (UnB) Antocircnio Maacuterio David Siqueira Ferreira(USP) Ericka Marie Itokazu (UnB) Fran de Oliveira Alavina (UFVJM)Giorgio Gonccedilalves Ferreira (UEBA) Giovanni Zanotti (UnB) Henrique

Piccinato Xavier (UFABC) Homero Santiago (USP) Jarlee Oliveira SilvaSalviano (UFBA) Jonas Roos (UFJS) Joseacute Miranda Justo (Universidade deLisboa) Leon Farhi Neto (UFT) Lorrayne Colares (UnB) Luis Cesar Oliva

(USP) Luiz Carlos Montans Braga (UEFS) Luiz Manoel Lopes (UFC)Malcom Guimaratildees Rodrigues (UEFS) Marcos Aureacutelio Fernandes (UnB)

Marilia Pacheco (UnB) Philippe Claude Thierry Lacour (UnB) Roberto deAlmeida Pereira de Barros (UFPA)

Sumario

i Paginas Iniciais 01

ii Editorial 07

iii Dossie Espinosa 17

Notas Sobre os Instrumentos Cientıficos em GalileuCristiano Novaes de Rezende 17

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e EspinosaVittorio Morfino 43

Dramas da Imanencia Gebhardt Deleuze Benjamin e o Infinito Bar-roco de EspinosaHenrique Piccinato Xavier 71

Ha Abstracao de Si na Origem de toda a Abstracao na Filosofia deEspinosaRafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende 89

Seguranca Liberdade e Concordia no Pensamento Republicano de Es-pinosaStefano Vinsentin 123

Comunicacao e Silencio na Experiencia Polıtica EspinosanaDaniel Santos da Silva 137

Sobre o Desespero Sao Paulo Junho de 2013Fernando Bonadia de Oliveira 147

iv Artigos 189

A Influencia de Schelling sobre SchopenhauerHelio Lopes da Silva 189

De Dicto and De Re A Brandomian experiment on KierkegaardGabriel Ferreira da Silva 221

Introduccion Historica al PsychologismusstreitMario Ariel Gonzalez Porta 239

A Antiguidade um Erro Profundo ndash Foucault a Filosofia e suas Ati-tudesJean Dyego Gomes Soares 271

Sobre a centralidade e a estrutura do capıtulo ldquoOs corpos doceisrdquo doVigiar e PunirKleverton Bacelar 293

Subjetividade e Formas de Vida em FoucaultLara Pimentel Figueira Anastacio 327

v Normas para Publicacao 345

DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228228

Editorial

Apresentaccedilatildeo do Dossiecirc Espinosa

No fio do tempo e da histoacuteria

A violecircncia nas palavras Defamiacutelia portuguesa escolhido onome de Bento (ou Baruch) aonascer na comunidade judaicade Amsterdatilde ningueacutem imagina-ria que Espinosa ainda na tenrajuventude e neste mesmo lugardela seria excomungado sob amais violenta acusaccedilatildeo que in-verteria o sentido de seu nometransformando-o sob a pecha deldquoMalditordquo Proscrito uma vez elogo depois mais uma vez acu-sado de herege pela Santa Seacute Es-pinosa seraacute o primeiro filoacutesofode origem judaica a ser incluiacutedono Index Mais ainda ningueacutemimaginaria que um seacuteculo de-pois a palavra ldquoespinosistardquo seriausurpada de seu sobrenome paratornar-se sinocircnimo de grave acu-saccedilatildeo da qual muitos tiveram quese defender e que contudo natildeose encerrou no seacuteculo XVIII pelocontraacuterio persevera nas polecircmi-cas das tantas querelas dos espi-

nosimos dos seacuteculos seguintesContudo se no fio da histoacute-

ria a filosofia de Espinosa eacute cons-tantemente retomada no turbi-lhatildeo por vezes ensurdecedor demuacuteltiplas acusaccedilotildees daqueles to-mados pelo horror frente ao seusistema eacute preciso ressaltar to-davia que sua retomada nuncaeacute consensual e que simultane-amente apresentaram-se inten-sos elogios por dissonantes vo-zes em reinterpretaccedilotildees por ve-zes divergentes que procuraramdefendecirc-lo muitos dos quais neleidentificaram o seu proacuteprio pro-jeto filosoacutefico e por isso de seaproximaram ou inversamentepor nele encontrarem um cami-nho sem volta rumo a uma filoso-fia encerrada em si mesma delaafastaram-se vigorosamente paraevitar o perigo de serem engolidosem sua trama geomeacutetrica aquelaldquomaacutequina infernalrdquo de proeza de-monstrativa inescapaacutevel

7

EDITORIAL

Satildeo tatildeo conhecidas as ima-gens do espinosismo quantosatildeo diversas e contraditoacuterias1ldquoMonstruoso ateu de sistemardquoou ldquofiloacutesofo eacutebrio de Deusrdquoldquopanteiacutestardquo ou ldquoateiacutesta virtuosordquodefensor de um ldquofatalismoinexpugnaacutevelrdquo onde a liberdadenatildeo tem lugar ou o maior ldquofiloacutesofoda liberdaderdquo ldquocartesianordquo ldquoanti-cartesianordquo ldquoultra-cartesianordquofortaleza de um ldquoidealismoabsolutordquo em que o indiviacuteduonatildeo tem lugar ou responsaacutevelpela mais potente ldquorefundaccedilatildeo domaterialismordquo num realismo po-liacutetico radical cravado no fulcro damodernidade enfim a lista se-gue indefinidamente Malebran-che Leibniz More Jacobi KantHegel Schelling Nietzsche Berg-son Einstein Deleuze Negri Ma-chado de Assis Jorge Luis Bor-ges Clarice Lispector Nise da Sil-veira Nenhum de seus leitoresparece ter permanecido incoacutelumeapoacutes atravessar o seu sistema filo-soacutefico

Perante tantas e diversas lei-turas possiacuteveis pelo menos em

um aspecto seriacuteamos obrigados aconcordar para lembrar em outrocontexto as palavras de J Israelldquoningueacutem nem mais remotamentechegou a rivalizar a notoriedadede Espinosardquo2 E se com essa brevedescriccedilatildeo antevemos o eterno re-torno ao espinosismo com issotambeacutem concluiacutemos que mesmono seacuteculo XXI haacute ainda algo revo-lucionaacuterio a ser pesquisado nestafilosofia que teima em nos esca-par Tal fenocircmeno talvez ocorraporque especificamente seja estauma filosofia que levou a termoa difiacutecil tarefa de fundamentar-se exclusivamente no difiacutecil con-ceito do absolutamente infinito ouinfinito positivo como causa de si eda natureza inteira mantendo comisso em seu interior aquele mis-teacuterio ao qual se referia Merleau-Ponty

O seacuteculo XVII eacute o momentoprivilegiado em que o conhe-cimento da natureza e a meta-fiacutesica julgaram encontrar umfundamento comum Criou

1Sobre as diversas imagens do espinosismo recomendo o beliacutessimo capiacutetulo ldquoA construccedilatildeo do Espinosismordquo inA Nervura do Real Imanecircncia e liberdade vol 1 Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 pp 113-330

2Israel J Radical Enlightenment Philosophy Making of Modernity 1650-1750 Oxford University Press 2001

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uma ciecircncia da natureza e noentanto natildeo fez do objeto daciecircncia o cacircnone da ontolo-gia Admite que uma filoso-fia sombranceie a ciecircncia semser uma rival para ela ()Essa extraordinaacuteria harmoniaentre o exterior e o interior[da filosofia] soacute eacute possiacutevel pelamediaccedilatildeo de um infinito posi-tivo ou infinitamente infinito() Eacute nele que se comuni-cam ou se unem uma agrave outraa existecircncia efetiva das coisaspartes extra partes e a exten-satildeo pensada por noacutes que pelocontraacuterio eacute contiacutenua e infi-nita Se haacute no centro e comoque no nuacutecleo do Ser um in-finitamente infinito todo serparcial estaacute real ou iminente-mente contigo nele3

Eis porque Merleau-Ponty tomade empreacutestimo o ceacutelebre moteseiscentista ndash que visava explici-tar o desafio de compreender umuniverso aberto e infinito poacutes re-voluccedilatildeo galileana ndash deslocando-odo campo da Nova Ciecircncia para

aplica-lo agrave sua compreensatildeo dehistoacuteria da filosofia ldquoNatildeo haacute umafilosofia que contenha todas as fi-losofias a filosofia inteira estaacute emcertos momentos em cada umadelas Repetindo a famosa expres-satildeo seu centro estaacute em toda partee sua circunferecircncia em parte al-gumardquo4

Se concordarmos com Merleau-Ponty que o conceito fundadordo sistema de Espinosa eacute o ab-solutamente infinito a partir doqual emerge uma extraordinaacute-ria harmonia entre o ldquointeriorrdquoe o ldquoexteriorrdquo da filosofia tam-beacutem neste mesmo conceito pode-remos encontrar aquilo que numafilosofia escrita e datada no seacute-culo XVII ou seja escrita a par-tir da e contra as miseacuterias e vio-lecircncias de seu tempo pode atin-gir para utilizar uma expressatildeoespinosana ldquoum certo aspecto daeternidaderdquo no interior do qualfora de seu tempo ele dialoga tatildeointensamente com as filosofiasposteriores e natildeo somente issomas tambeacutem dialoga com aquiloque supostamente eacute exterior agrave fi-

3Merleau-Ponty M ldquoEm toda parte e em parte algumardquo in Signos Satildeo Paulo Martins Fontes 1991 p 1634Idem p 140

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EDITORIAL

losofia a saber as artes as ci-ecircncias as poliacuteticas enfim a his-toacuteria Mais ainda natildeo se res-tringindo ao campo acadecircmicoe transitando no campo da cul-tura e da literatura contra ou a fa-vor o ldquoespinosismordquo foi ganhandoterreno e certa popularidade quetanto o invade quanto o faz in-vadir a proacutepria vida Para lem-brar novamente as palavras deMerleau-Ponty

Assim os partidaacuterios de umafilosofia ldquopurardquo e os da ex-plicaccedilatildeo socioeconocircmica tro-cam de papel diante dos nos-sos olhos e natildeo devemos en-trar em seu perpeacutetuo debatenatildeo devemos tomar partidoentre uma falsa concepccedilatildeo deldquointeriorrdquo e ldquoexteriorrdquo A fi-losofia estaacute em toda partemesmo nos ldquofatosrdquo ndash e natildeopossui em parte alguma umcampo em que esteja preser-vada do contagio da vida5

2019 Brasiacutelia entrando na trama tecida pelo espinosismo

Dentre as diversas retomadasdo espinosismo um periacuteodo e lu-gar se destacam particularmenteem Paris e Vincennes nos anos 60do seacuteculo passado diversos estu-diosos voltam a estuda-lo muni-dos de novas ferramentas inter-pretativas como a anaacutelise estru-tural de sistemas filosoacuteficos golds-chmiditana a anaacutelise filosoacutefico-filoloacutegica e a anaacutelise filosoacutefico-histoacuterica A partir do trabalhodeste grupo o espinosismo ga-

nhou forccedila renovada e novas te-ses foram surgindo nas matildeos deM Gueacuteroult A Matheron P Ma-cherey G Deleuze L AlthusserEacute neste contexto que no calor de1968 parisiense uma jovem es-tudiosa brasileira que na eacutepocafazia seus estudos de doutoradona Franccedila com V Goldschmidt efrequentando Vincennes decidededicar-se tambeacutem agrave filosofia deEspinosa Marilena Chaui

Quase meio seacuteculo depois

5Idem p 141

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tornando-se reconhecidamenteuma das maiores estudiosas dofiloacutesofo holandecircs uma rede es-pinosana fortaleceu-se no Bra-sil sobretudo em grupos de SatildeoPaulo no Rio de Janeiro no Ce-araacute Tocantins Paranaacute com sin-gular importacircncia para o Grupode Estudos Espinosanos da USP(GEE-USP) ainda hoje sob a co-ordenaccedilatildeo de Marilena Esta redebrasileira fortemente articuladamuito colaborou para a constru-ccedilatildeo de um grupo ainda maiorcontribuindo para o desenvolvi-mento do espinosimo na AmeacutericaLatina e que no ano de 2018 co-memorou seus 15 anos de traba-lho contiacutenuo realizado em encon-tros anuais dos Coloacutequios Inter-nacionais de Espinosa na AmeacutericaLatina e que atualmente confi-gura o maior coloacutequio no mundodedicado ao filoacutesofo

Ora foi justamente neste anocomemorativo de 2018 que a Uni-versidade de Brasiacutelia conferiu agravefiloacutesofa Marilena Chaui o tiacutetulode doutora Honoris causa promo-vendo um coloacutequio em sua ho-menagem Devido agrave organiza-ccedilatildeo da vinda de Marilena agrave UnBe dos conferencistas que discuti-riam sua obra a UnB pode contar

naquele ano com a vinda de diver-sos estudiosos de Espinosa do Bra-sil e do exterior o que promoveuo coletivo esforccedilo por finalmentedar iniacutecio aos trabalhos do Grupode Estudos Espinosanos da UnBque integrando-se agrave rede brasi-leira celebrou a sua fundaccedilatildeo comrealizaccedilatildeo da I Jornada de Estu-dos Espinosanos na UnB Foi noclima celebrativo deste primeiroencontro intensa e afetivamentepotente que nasceu natildeo somenteo Grupo de Estudos Espinosanos daUnB (GEE-UnB) mas tambeacutem oprojeto para o Nuacutecleo de EstudosSeiscentistas do Cerrado O pre-sente ldquoDossiecirc Espinosardquo portantocontando a oportuna presenccedila einterlocuccedilatildeo com diversos especi-alistas do Brasil e do exterior con-gratula a criaccedilatildeo de duas institui-ccedilotildees que permitiratildeo participaccedilatildeode docentes e discentes pesquisa-dores da UnB e do Centro-oestepara continuar o trabalho de per-seguir atravessar reinterpretar erefletir a partir dessa filosofia tatildeouacutenica quanto histoacuterica e potente-mente revolucionaacuteria

Entre a Primeira Jornada Espi-nosana na UnB quando a maioriados textos que compotildeem este Dos-siecirc foi escrita e o presente ano de

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EDITORIAL

2019 muito se sucedeu na histoacute-ria poliacutetica brasileira um movi-mento histoacuterico ainda inconclusose pensarmos nos rumos do traba-lho universitaacuterio na fragilidadedo apoio ao desenvolvimento filo-soacutefico cultural e cientiacutefico Faz-senecessaacuterio portanto e novamenteperguntar-se sobre a filosofia apartir do seu interior levando-aao limite do entrecruzamento en-tre a ldquofilosofiardquo e seu ldquoexteriorrdquocomo diria Merleau-Ponty Narelaccedilatildeo da problemaacutetica conjun-tura que atualmente enfrentamoseacute preciso natildeo apenas voltar aosestudos filosoacuteficos mas tambeacutemvoltar a defender a sua importacircn-cia soacutecio-cultural pela relaccedilatildeo in-terna (partes intra partes) entre afilosofia e as ciecircncias entre a filo-sofia e as artes entre a filosofia eo mundo Mais uma vez precisa-mos retomar a defesa fundamen-tal da liberdade de pensamento eexpressatildeo ndash adaacutegio espinosano porexcelecircnciandash e talvez imbuiacutedos decerto espinosismo renovado en-contremos um caminho de umafilosofia contagiada pela vida

Ora o leitor encontraraacute no pre-sente Dossiecirc a proposta de re-flexatildeo destas mesmas relaccedilotildeesseja no interior dos artigos seja

no tema nele diretamente abor-dado seja na verve que o animae inspira Pensando nisso pro-pusemos um percurso temaacutetico-cronoloacutegico os temas tratam deentrecruzamentos notadamenteno diaacutelogo entre filosofia e ciecircn-cia (Cristiano Novaes de Rezende- UFG) metafiacutesica e histoacuteria (Vit-torio Morfino ndash Univ Milano-Bicocca) filosofia e as artes (Hen-rique Xavier - USP) ontologia eeacutetica (Rafael Teixeira - UFG) eacuteticae poliacutetica (Stefano Visentin ndash UnivDe Urbino e Daniel Santos Silva ndashUnespar) filosofia e ciecircncias poliacute-cias e sociais (Fernando Bonadia -UFRRJ) a cronologia segue prin-cipiando por artigos que tratamespecificamente do seacuteculo XVIIseguindo para a recepccedilatildeo do es-pinosimo nos seacuteculos posteriorespara finalmente propor o exerciacute-cio da reflexatildeo poliacutetica dos temposatuais numa perspectiva espino-sana

Que o leitor possa neles en-contrar na singularidade de cadaartigo o entrelaccedilamento das no-ccedilotildees comuns que os percorrepermitindo-se vivenciar e numpequeno passeio pela filosofia deEspinosa vislumbrar parte daimensa multiplicidade natildeo uniacute-

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voca muito menos uniacutessona depensamentos que ao olhar atentoperfazem um conjunto em mo-saico composto por distintas co-res formas texturas estilos e vo-zes numa articulaccedilatildeo interna so-mente possiacutevel porque todos com-partilham de um fundamento co-mum um conceito filosoacutefico uacutenicocapaz de produzir a partir de sium infinito de pensamentos dis-tintos e singulares mas interna-mente articulados num universode trabalhos intelectuais indivi-duais e coletivos tais como os queapresentamos neste Dossiecirc O con-ceito mesmo de substacircncia uacutenicaabsolutamente infinita ndash potecircn-cia infinita da natureza inteira daqual somos parte finita muacutelti-

pla e complexa entrelaccedilada en-tre outros tantos modos finitosndashportanto propotildee uma nova praacutexisfilosoacutefica que nascida no interiordesta filosofia nos conduz parafora dela e inversamente eacute estemesmo conceito que numa filo-sofia da imanecircncia natildeo permiteque o ldquoexteriorrdquo da filosofia lhepermaneccedila alheio e muito menosdeixe de contagiar tanto a filosofiacomo a proacutepria vida

Que este Dossiecirc seja tam-beacutem o convite permanentementeaberto para o leitor participar doGrupo Espinosano receacutem inaugu-rado na UnB e de tantos outrosencontros inspirados nessa filoso-fia

Ericka Marie Itokazu

Coordenadora do Grupo de Estudos Espinosanos da UnBMembro co-fundador do Nuacutecleo de Estudos Seiscentistas do Cerrado

(Organizadora do Dossiecirc)

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EDITORIAL

Aleacutem dos trabalhos que compotildeemo Dossiecirc o presente nuacutemero tam-beacutem conta com outras contribui-ccedilotildees recebidas em fluxo contiacutenuo

(1) Helio Lopes da Silva profes-sor da UFOP investiga as influecircn-cias legadas pela filosofia schel-linguiana no pensamento schope-nhaueriano Com isso procuramostrar que apesar do Schope-nhauer maduro ter rejeitado a fi-losofia de Schelling o jovem Scho-penhauer pode ter reformulado eincorporado algumas ideias desteuacuteltimo

(2) Em seu De Dicto and DeRe A Brandomian experimenton Kierkegaard Gabriel Ferreirada Silva professor do PPGFIL daUNISINOS expotildee o meacutetodo dereconstruccedilatildeo racional de RobertBrandom e em seguida o aplica aKierkegaard Esse exerciacutecio buscaexplicitar os compromissos on-toloacutegicos de Kierkegaard quantoexemplificar o valor dessa ferra-menta metodoloacutegica para a histoacute-ria da filosofia

(3) Mario Ariel Gonzaacutelez Portaprofessor titular da PUC-SP emseu artigo ldquoIntroduccioacuten Histoacutericaal Psychologismusstreitrdquo combate

a convicccedilatildeo de que a disputa emtorno do psicologismo foi uniacutevocateve seu epicentro nos ldquoProlegocirc-menosrdquo husserlianos e se concen-trou na loacutegica Em vez disso de-fende que essa disputa foi um pro-cesso com diferentes etapas ten-decircncias e nuacutecleos temaacuteticos

(4) A Antiguidade um ErroProfundo ndash Foucault a Filoso-fia e suas Atitudes artigo de JeanDyecircgo Gomes Soares doutor emfilosofia pela PUC-RJ e professordo Centro Universitaacuterio Unihori-zontes apresenta uma interpreta-ccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo foucaultianade que a Antiguidade teria sidoum erro profundo Para tantobusca explicitar o deslocamentoteoacuterico executado por Foucault naproblematizaccedilatildeo do sujeito

(5) Em seu ldquoSobre a centrali-dade e a estrutura do capiacutetuloldquoOs corpos doacuteceisrdquo do Vigiar e Pu-nirrdquo Kleverton Bacelar professorda UFBA propotildee uma hipoacutetese deleitura na qual o mencionado ca-piacutetulo cumpre uma funccedilatildeo centralno principal argumento foucaulti-ano da obra em questatildeo

(6) Por fim Lara Pimentel Fi-gueira Anastacio doutoranda em

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filosofia na USP defende que anoccedilatildeo foucaultiana de ldquosubjetivi-daderdquo tambeacutem deve ser entendidacomo uma criacutetica da razatildeo gover-namental Para tanto apoacutes ana-lisar a produccedilatildeo de subjetividadedos antigos argumenta que a no-ccedilatildeo de subjetividade m Foucaultestaacute necessariamente vinculada agravecriaccedilatildeo de um governo das proacute-

prias condutasGostariacuteamos de aproveitar o en-

sejo para agradecer a todos os au-tores por terem honrado a nossaRevista com as suas produccedilotildeesbem como aos membros do corpoeditorial avaliadores editores eleitores de provas pela funda-mental colaboraccedilatildeo na confecccedilatildeoda presente ediccedilatildeo

Os Editores

Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 7-15ISSN 2317-9570

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225738

Notas sobre os Instrumentos Cientiacuteficos em Galileu[Notes on Scientific Instruments in Galileo]

Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Na primeira parte deste artigo procuramos caracterizaro conceito de instrumentalismo a partir dos problemas astronocircmi-cos poliacuteticos e teoloacutegicos que levaram agrave contraposiccedilatildeo desse pro-grama epistemoloacutegico mdash que limita a ciecircncia ao trabalho de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo mdash agrave concepccedilatildeo de ciecircncia que culminou na Revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVII Na segunda parte mostramos quehaacute certa concepccedilatildeo do conhecimento matemaacutetico que se alinha como instrumentalismo mas que tambeacutem haacute uma outra concepccedilatildeo sus-tentada por Galileu que considera a matemaacutetica como expressatildeo derelaccedilotildees estruturais constitutivas da proacutepria realidade fiacutesica Na ter-ceira parte defendemos que contra a ideia de instrumento contida noprograma instrumentalista Galileu entende seus instrumentos cien-tiacuteficos como teorias em estado concreto e operante Para demonstrarisso examinamos algumas posiccedilotildees de Galileu sobre o uso de algunsinstrumentos cientiacuteficos que ele proacuteprio confeccionou a saber o com-passo geomeacutetrico militar a balanccedila hidrostaacutetica e o telescoacutepioPalavras-chave realismo instrumentalismo ciecircncia teologia poliacute-tica

Abstract In the first part of this paper we try to characterize theconcept of instrumentalism analyzing the astronomical political andtheological problems that led to the contraposition of such episte-mological program mdash that reduces science to the work of savingappearances mdash to the conception of science that culminated withthe Scientific Revolution of the sixteenth and seventeenth centuriesIn the second part we show that there is a certain conception ofmathematical knowledge that aligns with instrumentalism but thatthere is also another conception supported by Galileo that considersmathematics as an expression of structural relations constitutive ofphysical reality itself In the third part we defend that against theidea of instrument contained in the instrumentalist program Galileounderstands his scientific instruments as theories in concrete andoperant state To demonstrate such interpretation we have examinedGalileorsquos positions on the use of some of the scientific instrumentshe has made namely the military-geometric compass the hydrostaticscale and the telescopeKeywords realism instrumentalism science theology politics

Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Doutor em filosofia pela USPE-mail cnrz1972gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0002-4935-629X

Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 17-41ISSN 2317-9570

17

CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

Para Marcelo Moschetti

1- Instrumentalismo Teologia epoliacutetica

O caso da condenaccedilatildeo de Ga-lileu Galilei pela inquisiccedilatildeo ro-mana articula de forma emblemaacute-tica um problema epistemoloacutegicoe um problema teoloacutegico-poliacuteticoUma defesa realista do coperni-canismo como a pretendida porGalileu no Diaacutelogo sobre os doisMaacuteximos Sistemas de Mundo Pto-lomaico e Copernicano de 1632exigia uma correlata interpretaccedilatildeonatildeo-realista mas sim metafoacutericadas passagens da Biacuteblia que pare-cem corroborar um sistema plane-taacuterio geocecircntrico e com uma Terraestacionaacuteria No entanto no con-texto da Contra Reforma onde omodo de interpretar as SagradasEscrituras dividia catoacutelicos e pro-testantes a admissatildeo de interpre-taccedilotildees do texto biacuteblico alternati-vas agraves autorizadas como seriamas interpretaccedilotildees metafoacutericas erauma questatildeo extremamente deli-cada Mormente se lembrarmosque de ambos os lados o poderpoliacutetico pretendia-se fundado naautoridade religiosa a qual porsua vez encontrava fundamentonas escrituras e em uacuteltima instacircn-cia na revelaccedilatildeo divina

Na ceacutelebre Carta a Foscarinide 1615 isto eacute antes da publica-

ccedilatildeo do Diaacutelogo e da consequentecondenaccedilatildeo de Galileu o Car-deal Belarmino mdash intelectual or-gacircnico da inquisiccedilatildeo romana mdashrecomendara aos adeptos do co-pernicanismo que por prudecircn-cia fizessem o contraacuterio deixas-sem a verdade ao encargo da au-toridade religiosa e reduzissem osistema copernicano natildeo propri-amente a uma metaacutefora mas sima um mero instrumento matemaacute-tico de reproduccedilatildeo e prediccedilatildeo dasposiccedilotildees observaacuteveis dos planetasBelarmino estaacute longe de ser umtolo Ele reconhece que o sistemacopernicano eacute superior em simpli-cidade e comodidade no niacutevel doscaacutelculos mas tambeacutem sabe que orealismo tem uma tarefa demons-trativa precisa primeiro mostrarque a teoria proposta eacute capaz dereproduzir os fenocircmenos passa-dos coincidir com os fenocircmenospresentes e predizer os fenocircme-nos futuros Para usar o jargatildeo daeacutepoca a tarefa liminar de uma te-oria eacute mostrar-se capaz de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo Mas isso emboraabsolutamente necessaacuterio para averdade natildeo eacute suficiente Leia-mos as palavras de Belarmino nasquais ele aceita inclusive que sejadada outra interpretaccedilatildeo das pas-sagens biacuteblicas relevantes desdeque uma verdadeira demonstraccedilatildeo

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seja apresentada

Dizer que se salvam melhoras aparecircncias de acordocom a suposiccedilatildeo de a Terraser moacutevel e o Sol imoacute-vel do que supondo osexcecircntricos e os epicicloseacute falar muito bem mdash natildeohavendo nenhum perigonisso e por ser isso sufi-ciente para o matemaacuteticoMas afirmar que na rea-lidade o Sol eacute imoacutevel nocentro do universo eacutearriscar-se natildeo somentea irritar todos os filoacuteso-fos escolaacutesticos e teoacutelogosmas tambeacutem a ofender aSanta Feacute tornando fal-sas as Sagradas Escrituras[ ] Se existir uma verda-deira demonstraccedilatildeo de queo Sol estaacute parado no cen-tro do mundo de que aTerra estaacute no terceiro ceacuteue de que o Sol natildeo cir-cula em torno da Terramas a Terra em torno doSol afirmo que deveremoscomeccedilar a trabalhar commuita ponderaccedilatildeo paraexplicar as Passagens dasEscrituras aparentementecontraacuterias a essa opiniatildeoe que deveremos dizernatildeo termos entendido es-sas passagens em vez desustentar ser falso o que

foi demonstrado Con-tudo natildeo acreditarei queexista tal demonstraccedilatildeoantes que algueacutem a mos-tre a mim pois demons-trar que supondo o Sol imoacute-vel no centro e a Terra semovendo pelo ceacuteu podere-mos salvar as aparecircnciasnatildeo eacute o mesmo que demons-trar que assim eacute na verdadeAcredito que a primeirademonstraccedilatildeo possa serdada mas tenho as mai-ores duacutevidas em relaccedilatildeo agravesegunda e em caso de duacute-vida natildeo devemos aban-donar a interpretaccedilatildeo dasSagradas Escrituras dadapelos Padres da Igreja [ ](BELARMINO apud LO-PARIC 2008 p 240 itaacute-licos nossos)

Para explicitar plenamente porque salvar as aparecircncias natildeo eacute omesmo que demonstrar que as-sim eacute na verdade cabe remetera expressatildeo ao seu contexto deorigem Ela deriva da criacutetica deAristoacuteteles aos arroubos teoacutericosdo pitagorismo (Metafiacutesica A 5985b 23ss apud KIRK RAVEN ampSCHFIELD 1994 p 347) cu-jos partiacutecipes diante de discre-pacircncias entre a teoria (logos) eos dados observacionais (phaino-mena) conservavam a teoria e mu-davam os dados forjando obje-

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tos exigidos pela teoria mas ja-mais observados (ou ateacute mesmojamais observaacuteveis) Contra issoo sensato Aristoacuteteles propotildee emcaso de discrepacircncia entre a te-oria e os fenocircmenos ldquoconservaros fenocircmenosrdquo (sozein ta phaino-mena) isto eacute literalmente ldquosalvaras aparecircnciasrdquo num uso do verboldquosalvarrdquo que significa mais pro-priamente manter guardar con-servar Ora muitos astrocircno-mos gregos mdash de Eudoxo e Ca-lipo no seacuteculo IV aC a Ptolo-meu no seacuteculo II dC mdash leva-ram agraves uacuteltimas consequecircncias essepreceito aristoteacutelico Diante dealguns fenocircmenos astronocircmicostradicionalmente desafiadores talcomo o chamado movimento re-troacutegrado aparente dos planetas1esses astrocircnomos propuseram ar-tifiacutecios geomeacutetricos2 artifiacutecios queeles nunca pretenderam que des-crevessem a real estrutura do uni-verso mas que ainda assim erameficazes justamente em ldquosalvar asaparecircnciasrdquo Ou seja uma teoriaassumidamente falsa mdash no sen-tido de jamais haver pretendidoque esses ciacuterculos matemaacuteticos emque os planetas eram colocadosdurante o caacutelculo existissem na re-alidade mdash pode perfeitamente re-produzir os fenocircmenos passados

coincidir com os fenocircmenos pre-sentes e predizer os fenocircmenos fu-turos Logo fazecirc-lo natildeo eacute condi-ccedilatildeo suficiente para afirmar a ver-dade da teoria embora natildeo fazecirc-lo seja suficiente para afirmar suafalsidade

Eacute nesse mesmo espiacuterito que oluterano Andreas Osiander mdash quesupervisionara a publicaccedilatildeo do DeRevolutionibus Orbium Coelestiumde Copeacuternico em 1543 mdash tentarapossivelmente proteger o autoradicionando a esta obra um pre-faacutecio apoacutecrifo com um programainstrumentalista de matriz pro-testante que constituiacutera quaseum seacuteculo antes um precedenteateacute mais radical que o da inquisi-ccedilatildeo romana

Com efeito eacute proacuteprio do as-trocircnomo compor por meiode uma observaccedilatildeo diligentee habilidosa o registro dosmovimentos celestes E emseguida inventar e ima-ginar as causas dos mes-mos ou melhor jaacute quenatildeo se podem alcanccedilar demodo algum as verdadeirasquaisquer hipoacuteteses queuma vez supostas per-mitam que esses mesmos

1 O movimento retroacutegrado corresponde ao fato de que em dado momento de sua trajetoacuteria anual os planetasparecem lsquoandar para traacutesrsquo para depois retomarem o sentido original

2 Por exemplo o artifiacutecio do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando natildeo diretamente aoredor da Terra mas ao redor de um ponto que este sim orbitava ao redor da Terra

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movimentos sejam corre-tamente calculados tantono passado como no fu-turo de acordo com os prin-ciacutepios da geometria Oraambas as tarefas foramexecutadas com excelecircn-cia pelo autor Com efeitonatildeo eacute necessaacuterio que essashipoacuteteses sejam verdadeirase nem mesmo verossiacutemeisbastando apenas que for-neccedilam caacutelculos que concor-dem com as observaccedilotildees ( )Pois eacute mais do que patenteque essa arte ignora sim-plesmente e por completoas causas dos movimen-tos aparentes irregularesE se inventa algumas naimaginaccedilatildeo como certa-mente inventa muitas de-las todavia natildeo o faz demodo algum para persu-adir quem quer que sejade que assim eacute mas tatildeosomente para estabelecercorretamente o caacutelculo Ecomo agraves vezes vaacuterias hipoacute-teses se oferecem para ummesmo movimento ( )o astrocircnomo de preferecircnciatomaraacute aquela cuja compre-ensatildeo seja a mais faacutecil Ofiloacutesofo talvez exigisse antesa verossimilhanccedila contudonenhum dos dois compre-enderaacute ou transmitiraacute nadade certo a natildeo ser que lhe

seja revelado por Deus Per-mitamos pois que juntocom as antigas em nadamais verossiacutemeis faccedilam-se conhecer tambeacutem es-sas novas hipoacuteteses tantomais por serem elas aomesmo tempo admiraacuteveise faacuteceis e por trazeremconsigo um enorme te-souro de doutiacutessimas ob-servaccedilotildees E que ningueacutemespere da astronomia algode certo no que concerne ahipoacuteteses pois nada dissoprocura ela nos oferecer(OSIANDER 1980 - itaacuteli-cos nossos)

Eacute com base nesse prefaacutecio queBelarmino comeccedila sua argumen-taccedilatildeo na Carta a Foscarini di-zendo que para este uacuteltimo assimcomo para Galileu seria prudentecontentar-se em falar ldquopor suposi-ccedilatildeo (ex hypothesi) e natildeo de modoabsoluto como eu sempre cri quetenha falado Copeacuternicordquo (em GA-LILEU 2009 p 131 - itaacutelicosnossos) Assim a manutenccedilatildeo dosistema astronocircmico heliocecircntricona condiccedilatildeo de uma hipoacutetese eficazgarante que o direito ao discursorobusto sobre como as coisas efe-tivamente satildeo permaneccedila mdash porimpossibilidade do contraacuterio (Osi-ander) ou por prudecircncia (Belar-mino) mdash sob a guarda da religiatildeodireito no qual em uacuteltima anaacute-

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lise funda-se o poder teoloacutegico-poliacutetico Ora como se vecirc um pro-grama que trata o trabalho cien-tiacutefico como a mera elaboraccedilatildeo deinstrumentos eficazes de reprodu-ccedilatildeo e prediccedilatildeo de fenocircmenos em-piacutericos presta-se portanto a ope-rar como correlato epistemoloacutegicodo fundamentalismo religioso noplano poliacutetico Amansado cogni-tivamente o copernicanismo po-deria ser empregado como sendoapenas uma nova tecnologia decaacutelculo mais leve e aacutegil do que amaquinaria geomeacutetrica de Ptolo-meu mas em nada ameaccediladora noacircmbito do discurso sobre como ascoisas realmente satildeo E mdash supos-tamente mdash nada haveria de vergo-nhoso nessa deflaccedilatildeo epistemoloacute-gica nessa reduccedilatildeo instrumentalvisto que tantos outros do mesmomodo se resignaram

Nesse sentido o realismo deGalileu defendido no Diaacutelogo so-bre os dois Maacuteximos Sistemas deMundo e responsaacutevel por sua der-radeira condenaccedilatildeo eacute a reivindi-caccedilatildeo do direito ao discurso sobrea realidade desde fora dos par-ticulares grupos agraciados pelarevelaccedilatildeo divina ou fundados naautoridade dos mesmos

2 - Instrumentalismo e Matemaacute-tica

Em seu artigo ldquoDescartes e Gali-leu copernicanismo e o funda-mento metafiacutesico da fiacutesicardquo MFriedman (2011) apresenta umenunciado especialmente claro dorealismo de Galileu Trata-se doseguinte trecho da Primeira Cartasobre as Manchas Solares de 1612

os astrocircnomos filosoacuteficos[satildeo aqueles] que indoaleacutem da exigecircncia de dealguma forma salvar asaparecircncias procuraraminvestigar a verdadeiraconstituiccedilatildeo do universomdash o problema mais im-portante e admiraacutevel queexiste Pois esta consti-tuiccedilatildeo existe ela eacute uacutenicaverdadeira real e natildeo po-deria ser de outra formaE a grandeza e a nobrezadeste problema lhe con-fere o direito de ser co-locado agrave frente de todasas questotildees suscetiacuteveis desoluccedilatildeo teoacuterica (FRIED-MAN 2011 p 82)

Como explica Friedman nestacarta Galileu distingue osldquoastrocircnomos filosoacuteficosrdquo daquelesque o proacuteprio Galileu chama deldquoastrocircnomos matemaacuteticosrdquo sendo

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estes uacuteltimos os que usam quais-quer instrumentos que possam fa-cilitar seus caacutelculos De nossaparte gostariacuteamos de notar quea bem dizer desde os pitagoacuteri-cos o que estaacute em questatildeo eacute o es-tatuto da relaccedilatildeo entre matemaacute-tica e realidade fiacutesica A criacuteticade Aristoacuteteles aos pitagoacutericos jaacuteera precisamente uma recusa decerto realismo matemaacutetico ldquooschamados pitagoacutericos dedicaram-se agraves matemaacuteticas foram eles osprimeiros a fazer progredir estesestudos e tendo sido criados ne-les pensaram que seus princiacutepioseram princiacutepios das coisas (archastocircn ontocircn)rdquo (Metafiacutesica A 5 985b23ss apud KIRK RAVEN amp SCH-FIELD 1994 p 347) Osian-der por sua vez coloca ldquoos prin-ciacutepios da Geometriardquo sob regimede completa recusa natildeo soacute da ver-dade mas ateacute mesmo da verossi-milhanccedila bastando a uma teoriareduzida agrave condiccedilatildeo de mera hi-poacutetese fornecer caacutelculos que con-cordem com as observaccedilotildees JaacuteBelarmino recomenda muita pru-decircncia aos copernicanos mas issojustamente em razatildeo da profundadiferenccedila que haacute entre a demons-traccedilatildeo ldquosuficiente ao matemaacuteticordquoe a ldquodemonstraccedilatildeo verdadeirardquo E o proacuteprio Galileu como se viutambeacutem reconhece tal diferenccediladefendendo consequentementeao contraacuterio de Osiander uma as-tronomia filosoacutefica que sem dei-

xar de salvar as aparecircncias fossealeacutem disso

Mas entatildeo cabe perguntar seo realismo possui duas tarefasdas quais apenas a primeira eacute sal-var as aparecircncias qual seraacute a se-gunda Isto eacute nas palavras de Fri-edman ldquocomo pode um sistemaastronocircmico ir aleacutem de salvar asaparecircncias de modo a capturar oucorresponder agrave lsquoverdadeira cons-tituiccedilatildeo do Universorsquordquo (FRIED-MAN 2011 p 83) Ora o modocomo o comentador reconstroacutei aresposta galileana eacute bastante elu-cidativo pois mostra que a con-cepccedilatildeo de conhecimento matemaacute-tico sustentada pela tradiccedilatildeo cien-tiacutefica em que se alinham GalileuDescartes e Newton eacute considera-velmente mais forte tanto frenteao instrumentalismo antigo e mo-derno quanto frente ao contem-poracircneo meacutetodo hipoteacutetico dedu-tivo limitado a cotejar os dadosobservacionais com as hipoacutetesesteoacutericas e suas consequecircncias

Segundo [a concepccedilatildeo ga-lileana] a matemaacutetica natildeoapenas poderia ser usadapara modelar os fenocirc-menos como haacute muitojaacute vinha sendo feito naastronomia tradicionalcomo poderia tambeacutem serempregada progressiva-mente para analisar asaccedilotildees das causas dos fenocirc-

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menos Quanto a isso aceacutelebre anaacutelise feita porGalileu da queda dos cor-pos e do movimento dosprojeacuteteis foi paradigmaacute-tica [ ] [No caso dos pro-jeacuteteis] a trajetoacuteria paraboacute-lica resultante natildeo eacute ob-tida somente pela adap-taccedilatildeo da curva aos dadosobservados ela eacute matema-ticamente derivada de umaanaacutelise das accedilotildees causais re-levantes [ ] Visto quenossa descriccedilatildeo proposita-damente abstrai de todasas outras accedilotildees (atrito re-sistecircncia do ar etc) este eacuteapenas um primeiro passoda anaacutelise Uma teoriamatemaacutetica completa iraacuteportanto proceder pro-gressivamente agrave medidaque formos capazes de in-corporar essas accedilotildees cau-sais adicionais [ ] Emconsequecircncia o resultadoseraacute muito mais que ummodelo entre outros parasalvar as aparecircncias [ ]Em vez disso a interaccedilatildeocontiacutenua e progressiva en-tre anaacutelises causais mate-maacuteticas e evidecircncias empiacuteri-cas resultaria esperava-seao final em um modelouacutenico - que entatildeo teria oestatuto de uma conclusatildeomatematicamente demons-

trada a partir dos fenocircme-nos (FRIEDMAN 2011 p83 - itaacutelicos nossos)

Haacute portanto um uso da mate-maacutetica que eacute puramente instru-mental e que como tal compotildee-se tranquilamente com o funda-mentalismo religioso tanto da Re-forma quanto da Contra Reformamas haacute tambeacutem uma outra atitudematemaacutetica de ascendecircncia pita-goacuterica que encontra-se ao contraacute-rio afinada com os anseios filosoacute-ficos que impulsionaram a Revo-luccedilatildeo Cientiacutefica dos seacuteculos XVI eXVII Ambos os usos da matemaacute-tica consistem na produccedilatildeo de ins-trumentos de caacutelculo Mas a proacute-pria concepccedilatildeo de instrumento aiacutepresente varia assim como varia oestatuto epistemoloacutegico da mate-maacutetica

3 - Os Instrumentos cientiacuteficosconstruiacutedos por Galileu

O que haacute de ser um instrumentocientiacutefico para Galileu Certa-mente natildeo parece equivaler agravemesma concepccedilatildeo de instrumentoque preside a proacutepria elaboraccedilatildeodo conceito de instrumentalismoEsse termo foi empregado porKarl Popper para designar um dostrecircs pontos de vista sobre o conhe-cimento humano apresentados emConjecturas e Refutaccedilotildees (POPPER

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1982 p 125-246) a propoacutesito dasdiferentes apreciaccedilotildees que podemser feitas sobre a ciecircncia de Gali-leu embora digam respeito agrave ci-ecircncia em geral A concepccedilatildeo deinstrumento que parece ter levadoPopper a usar precisamente essenome para designar uma tal ma-neira de compreender a ciecircncia eacutea de um meio de caacutelculo que en-quanto hipoteacutetico eacute literalmentesub-posto posto embaixo e depoismdash isto eacute como um sustentaacutecuload hoc mdash dos fenocircmenos observa-dos Um instrumento na acep-ccedilatildeo instrumentalista eacute algo pro-duzido lsquosob encomendarsquo para fun-cionar para salvar os phainomenacuste isso o que custar ao logosAssim como um homem venal esem princiacutepios tal instrumentonatildeo tem por assim dizer escruacute-pulos proacuteprios faz qualquer ne-goacutecio teoacuterico para sustentar os da-dos observacionais numa perfeitainversatildeo dos excessos dos pitagoacute-ricos que faziam qualquer negoacute-cio para salvar sua teoria (comoforjar sob encomenda da teoriarealidades inobservaacuteveis) Os uacuteni-cos princiacutepios a que o instrumen-talista obedece satildeo justamente osprinciacutepios da matemaacutetica (comodizia Osiander) Mas tais prin-ciacutepios natildeo passam disso mesmoou seja de princiacutepios da matemaacute-tica sem nenhuma conexatildeo comos princiacutepios que presidem a proacute-pria natureza Portanto o que ca-

racteriza o instrumento evocadopelo instrumentalismo eacute sua ex-terioridade independecircncia e se-cundariedade frente ao objeto aque ele portanto simplesmentese sub-mete Para o instrumenta-lismo o logos deveacutem assim umservo invertebrado das evidecircnciasempiacutericas pode ser usado e abu-sado vergado do jeito que fordesde que produza caacutelculos queconcordem com as observaccedilotildees

Uma criacutetica desse desrespeitopara com o logos pode ser lidanuma importante passagem daCarta-Prefaacutecio do proacuteprio Copeacuter-nico ao Papa Paulo III para a edi-ccedilatildeo do De Revolutionibus e quefora substituiacuteda agrave revelia de Co-peacuternico pelo prefaacutecio apoacutecrifo deOsiander

Assim natildeo quero escon-der de vossa Santidadeque nada mais me mo-veu a pensar a respeitode uma outra maneira decalcular (alia ratione sub-ducendorum) os movimen-tos das esferas do mundosenatildeo que entendi (intel-lexi) que os proacuteprios Ma-temaacuteticos natildeo satildeo consis-tentes consigo proacuteprios(sibi ipsis non constare) aoinvestigaacute-los [sc tais mo-vimentos] ( ) Tambeacutem aforma do mundo (mundiformam) e a exata sime-

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tria de suas partes (par-tium eius certam symme-triam) eacute a coisa principal(rem praeligcipuam) que elesnatildeo conseguiram encon-trar nem inferir (invenirevel colligere) ( ) Aocontraacuterio aconteceu-lhescomo se algueacutem tomasse(sumeret) de diversos lu-gares (agrave diversis locis) peacutescabeccedila e outros mem-bros pintados (depicta)ateacute mesmo de maneiraperfeita (optime quidem)mas sem comparaccedilatildeo comum corpo uacutenico (sed nonunius corporis comparati-one) de modo algum corres-pondendo reciprocamenteentre si (nullatenus invi-cem sibi respondentibus)de sorte a compor comeles (ex illis componeretur)mais um monstro do queum homem (monstrum po-tius quagravem homo) (COPEacuteR-NICO 2008 pp 262-263)

Mas aleacutem desse ldquoservil instrumen-tordquo meramente acoplado agrave Na-tureza mesmo que ao preccedilo doesquartejamento da organicidadedo logos parece-nos haver em Ga-lileu um pensamento do instru-mento ativo no qual se constatauma verdadeira unidade entre ologos e as operaccedilotildees teacutecnicas decaacutelculo sem que estas uacuteltimas cor-

rompam a dignidade daquele pri-meiro Enquanto por exemploo instrumentalismo reduz as te-orias a meros instrumentos natildeoestaria Galileu pensando seus ins-trumentos como teorias em estadoconcreto e operante Procurare-mos a seguir responder afirmati-vamente a essa questatildeo buscandojustificar tal resposta atraveacutes depassagens textuais de Galileu so-bre o uso de alguns instrumentoscientiacuteficos que ele proacuteprio confec-cionou a saber o compasso geomeacute-trico militar a balanccedila hidrostaacuteticae o telescoacutepio

31 - O Compasso Geomeacutetrico-Militar

Comecemos pelo Compasso geomeacute-trico e militar Tratava-se de algoque ldquono seu tempo correspondiamais ou menos agrave reacutegua de caacutelculoou agrave minicalculadorardquo (THUIL-LER 1986 p 139) ou nas pa-lavras do proacuteprio Galileu um ins-trumento que ldquoem pouquiacutessimosdias ensina tudo aquilo que da ge-ometria e da aritmeacutetica para usocivil e militar natildeo sem longuiacutes-simos estudos pelas vias ordinaacute-rias se receberdquo (GALILEU 1649p 369) Pode-se com ele porexemplo aplicar de diversas ma-neiras as regras de trecircs transporem proporccedilatildeo figuras semelhan-tes realizar divisotildees iguais e de-

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siguais no ciacuterculo extrair as raiacute-zes quadrada e cuacutebica estabelecerproporccedilotildees entre pesos de diver-sos materiais fazer medidas trigo-nomeacutetricas com a vista e inuacuteme-ras outras operazioni que satildeo ex-plicadas no manual de instruccedilotildeesque ensina o uso do instrumentoE de fato o que eacute mais relevantepara o nosso tema eacute justamente aexistecircncia desse manual mdash talvezum dos primeiros no gecircnero mdash eas consideraccedilotildees que nele Gali-leu faz a seu respeito e a respeitodo instrumento

Natildeo eacute pois de pouca relevacircnciaque neste manual de instruccedilotildeesGalileu se refira ao proacuteprio ma-nual e ao sentido de fazecirc-lo acom-panhar o instrumento soacute com issoGalileu jaacute nos daacute indiacutecios de queem tal instrumento encarna-se umcerto saber mdash o qual natildeo se li-mita ao mero manuseio da peccedilaparticular mas como dito acimaldquoinsegna tutto quello che dalla geo-metria e dallrsquoaritmetica [ ] si ri-ceverdquo Eis o que promete no pre-faacutecio do manual a i discreti let-tori ldquopoder seja qual for a pes-soa resolver em instantes as maisdifiacuteceis operaccedilotildees de aritmeacuteticadas frequentemente acontecemrdquo(idem ibidem)

Se por um lado o compassoeacute um instrumento de caacutelculo anecessidade da presenccedila de seumanual por outro diz respeito agraveproacutepria aquisiccedilatildeo da geometria

pensada de modo que pudesseser aprendida por aqueles quecomo os militares no campo debatalha ldquoestando em tantos ou-tros misteres ocupados e distraiacute-dos natildeo podem exercitar nestesaquela assiacutedua paciecircncia que aiacuteseria necessaacuteriardquo (idem ibidem)Mas leiamos tambeacutem por outrolado as seguintes palavras de Ga-lileu

Lamento somente be-nigno leitor que por maisque eu tenha engenhadoem explicar as seguintescoisas com toda a clarezae facilidade possiacutevel to-davia a quem as teraacute deextrair dos escritos perma-neceratildeo envoltas em al-guma obscuridade per-dendo por isso muito da-quela graccedila que ao vecirc-las operar atualmente e aoaprendecirc-las de viva voz astorna maravilhosas estaeacute poreacutem uma daquelasmateacuterias que natildeo supor-tam ser descritas com cla-reza e facilidade e enten-didas se antes de viva voznatildeo se as auscultam e no atomesmo natildeo se veem exerci-tar E esta teria sido po-derosa causa que me te-ria feito abster-me de im-primir esta obrardquo (GA-LILEU 1649 p 370 mdash

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itaacutelicos nossos)

Devemos portanto com tais pala-vras reforccedilar a ideia de que a com-preensatildeo que Galileu tem de seuCompasso Geomeacutetrico e Militar eacutetal que nem o instrumento podeser usado e atingir seus propoacutesi-tos sem o manual e toda a geome-tria mdash a ser ensinada mdash que eleconteacutem nem o manual seraacute sufici-ente a quem natildeo dispuser do ins-trumento para vecirc-lo ldquooperar atual-menterdquo A matemaacutetica aqui natildeovecircm de fora Muito pelo contraacuterioexiste de modo concreto como quenas inscriccedilotildees das linhas feitas nometal desse compasso a geome-tria aiacute presente natildeo eacute a dos astrocirc-nomos gregos instrumentalistasmas sim a de uma tradiccedilatildeo queassim como se passa nos pitagoacuteri-cos considera que os princiacutepiosda matemaacutetica eram princiacutepiosverdadeiros do comportamentodas coisas Nessa tradiccedilatildeo insere-se tambeacutem Arquimedes nominal-mente citado por Galileu no ma-nual do compasso como seu inspi-rador E com tal referecircncia a Ar-quimedes passamos diretamenteao contexto da tradiccedilatildeo em que seinscreve aquele outro instrumentode Galileu a balanccedila hidrostaacutetica

32 - A Balanccedila Hidrostaacutetica

Em La Bilancetta Galileu (1986pp 105-107) pretende resolvercom exatidatildeo o famoso problemada coroa de Hieron que aqui des-crevemos atraveacutes das palavras dePierre Lucie

Cerca de 250 ac Hie-ron rei de Siracusa en-comendou uma coroa deouro a seu ourives En-tregue a coroa Hierondesconfiou que o ouriveso tinha roubado mistu-rando prata ao ouro Cha-mou entatildeo Arquimedese o encarregou de apu-rar a possiacutevel fraude Ar-quimedes de fato confir-mou o roubo mas o len-daacuterio ldquoHeurekardquo eacute pra-ticamente tudo o que co-nhecemos do processo uti-lizado pelo ceacutelebre ma-temaacutetico para resolver oproblema (LUCIE 1986p 96)

Nesse pequenino texto sobre aconstruccedilatildeo da balanccedila hidrostaacute-tica Galileu afirma que ateacute seusdias natildeo se sabia exatamentecomo teria procedido Arquime-des para descobrir o furto do ou-rives e a quantidade exata de ourosubtraiacuteda e substituiacuteda por prata

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

Galileu frisa que mdash a despeitoda informaccedilatildeo histoacuterica muito di-fundida de que Arquimedes te-ria posto a coroa na aacutegua depoisde haver mergulhado separada-mente ouro puro e prata puradeduzindo atraveacutes das propor-ccedilotildees de aacutegua deslocada em cadacaso a composiccedilatildeo da liga de quea coroa se compunha mdash isto se-ria no entanto ldquocoisa muito gros-seira e longe da perfeiccedilatildeordquo se tiver-mos em conta ldquoas mui engenhosasinvenccedilotildeesrdquo de Arquimedes (GA-LILEU 1986 p 105) Pierre Lu-cie mostra em seu artigo sobre LaBilancetta (LUCIE 1986 p 95)que o paradigma arquimedianopermanece em Galileu como basepara a geometrizaccedilatildeo de proble-mas fiacutesicos de maneira que a refe-recircncia agraves ldquoinvenccedilotildees engenhosasrdquode Arquimedes feita pelo proacuteprioGalileu poderia ser um exem-plo relevante da maneira especiacute-fica pela qual este paradigma ope-rava em seu pensamento paraconseguir ldquoa precisatildeo requeridanas coisas matemaacuteticasrdquo (GALI-LEU 1986 p 105) natildeo bastariano caso simplesmente ldquoutilizara aacuteguardquo mdash que era ldquoo pouco que[os contemporacircneos de Arquime-

des] haviam entendido de sua so-luccedilatildeo do problemardquo Era pre-ciso antes elaborar um instru-mento3 Contando com um ins-trumento Galileu pocircde acrescen-tar em seu texto agrave expressatildeo ldquopormeio da aacuteguardquo a expressatildeo ldquodemodo rigorosordquo

Eacute conhecido de toda a tradiccedilatildeointerpretativa focada na revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVIIo texto de Aristoacuteteles na Eacutetica aNicocircmaco em que ele diz que ldquoaprecisatildeo natildeo deve ser procuradaigualmente em todas as discus-sotildees como natildeo deve ser procu-rada por exemplo na demiurgiardquo(ARISTOacuteTELES 1948 1094b ess) Ora tomando a falta de ri-gor e precisatildeo do procedimentovulgarmente considerado o de Ar-quimedes no caso da coroa de Hi-eron como sendo a principal mo-tivaccedilatildeo para a construccedilatildeo de suabalanccedila hidrostaacutetica Galileu estaacuterompendo com essa tradiccedilatildeo aris-toteacutelica que separa poieacutesis (produ-ccedilatildeo saber fazer com que algo ve-nha a ser) e episteacuteme (ciecircncia co-nhecimento do necessaacuterio) Des-tarte Galileu mdash como no caso docompasso geomeacutetrico e militar mdashsugerindo novamente que a exati-

3Cf Clavelin (1986 p 39) onde se demonstra que se eacute verdade que Galileu natildeo dispunha de todos os conceitose pressupostos dos quais depende o meacutetodo experimental moderno natildeo eacute menos verdade poreacutem que nele haacute ldquoummeacutetodo determinado mdash ou se preferirmos uma visatildeo coerente e estaacutevel das condiccedilotildees que uma teoria ou modeloexplicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros intrinsecamente conformes agrave realidaderdquo Denossa parte pretendemos apenas propor que a construccedilatildeo do instrumento parece ser um dos pontos centrais dessemeacutetodo

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datildeo do procedimento depende deum uso apropriado dos elementosmateriais e de uma consequenteproduccedilatildeo de instrumentos mastambeacutem em contrapartida de umconhecimento teoacuterico nos contaque reviu ldquocuidadosamente os tra-tados de Arquimedesrdquo (GALILEU1986 p 105) e assim adverteque ldquoo meacutetodo [para resolver oproblema] procede por meio deuma balanccedila cuja construccedilatildeo e usoseratildeo expostos depois que se te-nha explicado o que eacute necessaacuteriopara entender o assuntordquo (idem su-pra itaacutelicos nossos) E o que eacute ne-cessaacuterio saber eacute primeiramente oPrinciacutepio de Arquimedes ou lei doempuxo

um soacutelido mais pesadoque um fluido quandoposto nele desce para ofundo do fluido e o soacute-lido pesado no fluido seraacutemais leve que seu ver-dadeiro peso [no ar] [deuma quantidade igual ao]peso do fluido deslocado(ARQUIMEDES Sobre oscorpos flutuantes Livro Iproposiccedilatildeo 7 apud LU-CIE 1986 p 98 - itaacuteliconosso)

Numa linguagem atual todocorpo mergulhado em um fluidosofre a accedilatildeo de um empuxo ver-

tical para cima igual ao peso doliacutequido deslocado de modo que opeso do corpo imerso eacute igual aoseu peso no ar menos o peso noar do volume de fluido que essecorpo deslocou Galileu assimnos propotildee

suspendamos entatildeo ummetal em uma excelentebalanccedila e no outro braccediloum contrapeso de mesmopeso no ar que o metalSe agora mergulharmos ometal na aacutegua deixando ocontrapeso no ar teremosde aproximar este uacuteltimodo fulcro [o ponto fixo en-tre os braccedilos da balanccedila]a fim de continuar equi-librando o metal (GALI-LEU 1986 p 106)

Explica-se tambeacutem que o pesoespeciacutefico do metal seraacute tantas ve-zes maior que o da aacutegua deslocadaquantas vezes a distacircncia inicialentre o contrapeso e o fulcro formaior que essa distacircncia no equi-liacutebrio hidrostaacutetico (que eacute quandoaproximamos o contrapeso do ful-cro a fim de manter os braccedilos dabalanccedila na horizontal) Trata-seagora do chamado princiacutepio da ala-vanca ou seja nas palavras doproacuteprio Galileu em Le mechaniche

pesos desiguais suspen-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

sos em distacircncias desi-guais pesaratildeo igualmentequando essas distacircnciasestiverem [em relaccedilatildeo aofulcro] em proporccedilatildeo in-versa agrave de seus pesos(GALILEU Le mechanicheOpere v 2 161 apud Lu-cie 1986 p 99)

Desse modo combinando a lei doempuxo e o princiacutepio da alavancaeacute possiacutevel pois calcular a partirdas diversas posiccedilotildees do contra-peso nos diversos equiliacutebrios hi-drostaacuteticos os pesos especiacuteficosem relaccedilatildeo agrave aacutegua do ouro daprata e da liga composta dos doisna coroa bem como a exata pro-porccedilatildeo desses primeiros nesta uacutel-tima

Algumas implicaccedilotildees dessesdois princiacutepios nos satildeo particu-larmente sugestivas A lei do em-puxo como nota Lucie ldquoconvenceGalileu de que natildeo haacute corpos pe-sados em si ou corpos leves emsirdquo (LUCIE 1986 p 98) massim dizendo em termos contem-poracircneos corpos que dispondo-se como corpos imersos ou comomeios de imersatildeo encontram-seem diferentes relaccedilotildees de densi-dade relaccedilotildees estas que variamconforme o caso de modo quemudada a relaccedilatildeo com o meio re-ferencial um mesmo corpo podeldquoflutuarrdquo ou ldquoafundarrdquo Con-sequentemente ldquoser pesadordquo ou

ldquoser leverdquo natildeo eacute uma qualidade docorpo tomado em si mesmo Natildeohaacute pois aquilo que Arquimedeschamava de ldquoo verdadeiro pesordquode um corpo Ora isso eacute o contraacute-rio do que supunha a fiacutesica aris-toteacutelica para a qual materiais in-trinsecamente pesados como se-ria a terra possuem seu lugar na-tural embaixo e por isso tendema descer enquanto materiais in-trinsecamente leves como seria ofogo possuem seu lugar naturalem cima e por isso tendem semprea subir O sistema aristoteacutelico aosupor corpos naturalmente levesou pesados pressupunha uma or-dem coacutesmica com seus lugares fi-xados ldquoem cimardquo e ldquoembaixordquo se-parando regiotildees qualitativamentedistintas no espaccedilo Assim aleacutemda jaacute comentada recusa galileanada epistemologia aristoteacutelica queseparava ciecircncia e demiurgia epis-teacuteme e poieacutesis essa pequena ba-lanccedila hidrostaacutetica atraveacutes de umproblema que parecia ser mera-mente teacutecnico (a coroa de Hieron)permite que Galileu a partir dosentido especulativo que ele ex-traiu do princiacutepio de Arquimedesrecuse juntamente com a episte-mologia de Aristoacuteteles tambeacutemsua cosmologia composta de dife-rentes lugares naturais para obje-tos feitos de diferentes materiais

Mas esse sentido especula-tivo do princiacutepio de Arquimedesajuda aleacutem disso a compreender

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melhor a proacutepria epistemologiagalileana Com efeito natildeo se tratade dizer que o ldquoser pesadordquo e oldquoser leverdquo sejam considerados porGalileu como qualidades secundaacute-rias que satildeo aspectos que parecempertencer aos objetos mas satildeo narealidade os efeitos que o objetoproduz em um sujeito percipientecomo as cores os odores os sabo-res etc que natildeo estatildeo nas proacute-prias coisas mais do que a dor oua coacutecega estatildeo na agulha que nosfere ou na pluma que nos toca (CfGALILEU 2013) Entre as quali-dades primaacuterias de um corpo istoeacute entre as coisas que satildeo necessa-riamente pensadas ao ser conce-bida uma substacircncia corpoacuterea emgeral encontra-se por exemploo ldquomover-serdquo e o ldquoestar paradordquo(idem ibidem) os quais sabemospor outro lado que para Gali-leu tambeacutem natildeo eram proprie-dades absolutas mas estados quese determinam num sistema de re-laccedilotildees4 Tambeacutem nos parece sereste o estatuto do pesado e do leveNo caso da gravidade dos corposassim como no estatuto do movi-mento temos algo que nem estaacuteobjetivamente na coisa tomada emsi mesma e isoladamente como

alguma sua qualidade intriacutensecanem estaacute em noacutes como se fossemera aparecircncia subjetiva o mo-vimento e a gravidade satildeo reaise natildeo fenomecircnicos mas natildeo satildeorealidades absolutas Isso mostracom efeito que a separaccedilatildeo entrequalidades primaacuterias matemati-camente apreensiacuteveis e qualida-des secundaacuterias sensiacuteveis natildeo eacutesuficiente para atribuir a Galileuuma ontologia de caraacuteter platocirc-nico que afirmaria o real comoessecircncias absolutas ocultas portraacutes das aparecircncias As qualida-des primaacuterias nos parecem an-tes algo que seria imanente aomundo justamente na medida emque existem no interior de um sis-tema de relaccedilotildees Em linguagemanacrocircnica diriacuteamos talvez quesegundo as articulaccedilotildees entre aepistemologia e a ontologia de Ga-lileu natildeo conhecemos tais essecircn-cias mas sim estruturas

[Galileu] manteacutem-se den-tro da perspectiva rea-lista pois a estrutura douniverso eacute dada objetiva-mente e cabe ao homemapenas desvendar partedessa estrutura Esse des-

4Abstemo-nos de explicar a superaccedilatildeo galileana da oposiccedilatildeo ontoloacutegica afirmada por Aristoacuteteles entre movi-mento e repouso bem como toda a concepccedilatildeo de Galileu sobre as condiccedilotildees de operatividade (mecacircnica eouoacutetica) do movimento pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema Limitamo-nos a sugerir quea retirada do movimento e da gravidade da condiccedilatildeo de realidades isoladas mas por outro lado sua qualificaccedilatildeocomo qualidades primaacuterias isto eacute como propriedades reais tende a indicar que a proacutepria natureza para Galileueacute precisamente um sistema de relaccedilotildees seu relativismo natildeo eacute uma negaccedilatildeo da realidade dos eventos naturais porele visados

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

vendamento se faz atraveacutesde demonstraccedilotildees neces-saacuterias cujo o protoacutetipo eacuteprecisamente a Geometria(NASCIMENTO 1986 p58 itaacutelicos nossos)

Ao mostrar que ldquoser pesadordquo eldquoser leverdquo eacute algo derivado de umsistema de relaccedilotildees e mais aindaao mostraacute-lo justamente produ-zindo esse sistema sob a forma deum instrumento material real eindicando a possibilidade de comele calcular tais relaccedilotildees Galileunos permite pensar os instrumen-tos natildeo como algo que o homemusa como um reles meio de repre-sentar a natureza distante Em vezde um sustentaacuteculo matemaacuteticoextriacutenseco acoplado desde fora agravenatureza os instrumentos cientiacutefi-cos galileanos parecem ser antespartes da natureza

Assim aproveitando uma se-gunda consideraccedilatildeo especulativados princiacutepios empregados na bi-lancetta poderiacuteamos fazer um usoalegoacuterico do princiacutepio da alavancapara responder por exemplo aDescartes que o ponto fixo arqui-mediano procurado nas Medita-ccedilotildees o fundamento para a ciecircn-cia e que ele julgava encontrarapenas no cogito Galileu o en-contra na possibilidade de fixarsob a forma de um instrumentoas relaccedilotildees matemaacuteticas operan-tes no seio da natureza Diriacutea-

mos tambeacutem ainda nesse regis-tro alegoacuterico que a proacutepria con-figuraccedilatildeo de uma balanccedila sugerede modo privilegiado a noccedilatildeo deestrutura que empregamos acimapara indicar a concepccedilatildeo de co-nhecimento envolvida nos instru-mentos galileanos eacute apenas na re-laccedilatildeo entre dois objetos colocadosnos pratos da balanccedila que tais ob-jetos se definem reciprocamentequanto agravequilo que se procura me-dir isto eacute no caso os pesos Osobjetos natildeo podem pois ser to-mados separadamente ou fora doinstrumento capaz de coordenaacute-los o instrumento como esta-mos tentando sugerir deve serpois a proacutepria existecircncia mate-rial de uma lei ou princiacutepio peloqual a natureza age Acrescen-tamos ademais que etimologi-camente tanto a palavra instru-mento quanto a palavra estruturaderivam do mesmo verbo struocujo sentido natildeo eacute outro senatildeoo de arranjar dispor ordenada-mente (eg as tropas militaresou as palavras numa frase) mastambeacutem construir produzir ouainda arquitetar maquinar pla-nejar Ora neste uacutenico verbo jaacutese conjugam a mutabilidade dasaccedilotildees e geraccedilotildees e a estabilidadeda consistecircncia interna o aspectopoieacutetico da construccedilatildeo e o epistecirc-mico da ordem e da inteligibili-dade

Vale lembrarmos tambeacutem a tiacute-

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tulo de breve exemplo algumaspassagens dos Discorsi circunja-centes agrave demonstraccedilatildeo do prin-ciacutepio do movimento uniforme-mente acelerado depois que Sim-pliacutecio o aristoteacutelico diz que ldquoteriasido oportuno apresentar neste lu-gar alguma experiecircnciardquo Salvi-ati o galileano responde

Voacutes como verdadeirocientista fazeis pedidomuito razoaacutevel [ ] e as-sim conveacutem nas ciecircnciasque aplicam agraves conclusotildeesnaturais as demonstraccedilotildeesmatemaacuteticas [ e] confir-mam com experiecircncias sen-siacuteveis os seus princiacutepios quesatildeo o fundamento de todaa estrutura subsequente(GALILEU 1988 p 174e ss - itaacutelicos nossos)

E a proacutepria teoria galileana mdash ex-posta previamente sob a formade definiccedilotildees axiomas teoremasproposiccedilotildees etc mdash eacute entatildeo des-crita como uma ldquo imensa maacute-quina de infinitas conclusotildeesrdquo(idem ibidem) Ora das citaccedilotildeessupra decorre que os princiacutepiosque por um lado jaacute haviam sidoformulados de acordo com todaa parte teoacuterica precedente da ter-ceira jornada dos Discorsi seriampor outro lado inconfirmaacuteveis evirtualmente externos agrave natureza

das coisas se natildeo fosse feita essaaplicaccedilatildeo mdash a qual haacute de ser por-tanto coisa muito diferente daaplicaccedilatildeo instrumentalista que natildeose comprometia com o valor deverdade das teorias (Cf NASCI-MENTO 1996) E se nos dois ca-sos mdash por exemplo em Osiandere em Galileu mdash as teorias mesmaspodem ser de algum modo chama-das de instrumentos a profundadiferenccedila entre suas concepccedilotildeesde conhecimento deve residir pre-cisamente no que se pode conside-rar como instrumento nos dois ca-sos em Osiander trata-se de merosinstrumentos de caacutelculo em Gali-leu trata-se de uma maacutequina teoacute-rica de conclusotildees verdadeiras quese prolonga em maacutequinas men-tais tais como no caso dos Dis-corsi o dispositivo do plano incli-nado mas tambeacutem como preten-demos haver mostrado aqui emmaacutequinas materiais tais como abilancetta e o compasso geomeacute-trico e militar

33 - O Telescoacutepio

Resta portanto que nos encami-nhemos ao telescoacutepio Tentar en-contrar nesse instrumento par-ticularmente os traccedilos da uniatildeoentre especulaccedilatildeo filosoacutefica e pro-duccedilatildeo teacutecnica que viemos apon-tando nos demais seraacute algo bas-tante significativo visto que dife-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

rentemente do compasso e da ba-lanccedila ligados diretamente agrave tra-diccedilatildeo pitagoacuterica e arquimedianao telescoacutepio foi construiacutedo de ummodo bastante peculiar envol-vendo controveacutersias desde a eacutepocamesma de Galileu A controveacuter-sia histoacuterica diz respeito ao fatode que Galileu natildeo foi o inventorda ideia do telescoacutepio tendo sa-bido de sua existecircncia por meiode relatos de amigos numa via-gem a Veneza em 1609 mas ha-vendo segundo alguns de seuscontemporacircneos feito do telescoacute-pio um ldquofilhordquo seu Jaacute uma ou-tra controveacutersia epistemoloacutegicadiz respeito agrave questatildeo de saberse Galileu produziu o telescoacutepioprocedendo dentro dos cacircnonesracionalistas isto eacute partindo depremissas teoacutericas gerais e de-las deduzindo necessariamenteconsequecircncias particulares ouvalendo-se de um procedimentoeminentemente empiacuterico ou sejapor tentativa e erro Nossa lei-tura que pretende mostrar natildeo aperfeita conformidade da produ-ccedilatildeo deste instrumento com as de-mais mas sim uma mesma com-preensatildeo geral sobre a relaccedilatildeo en-tre racionalidade e teacutecnica procu-raraacute justamente coordenar as duascontroveacutersias a histoacuterica e a epis-temoloacutegica

Em Sidereus Nuncius Galileuescreve

Haacute cerca de dez meseschegou aos meus ouvi-dos a notiacutecia que certobelga tinha construiacutedo umpequeno telescoacutepio pormeio do qual objetos vi-siacuteveis embora muito dis-tantes dos olhos do ob-servador eram vistos cla-ramente como se estives-sem perto Desse efeitoverdadeiramente notaacutevelvaacuterias experiecircncias foramrelatadas agraves quais algu-mas pessoas davam creacute-dito enquanto outras recu-savam Uns poucos diasmais tarde a notiacutecia me foiconfirmada [ ] o que memotivou a dedicar-me sin-ceramente agrave investigaccedilatildeodo meio pelo qual eu po-dia chegar agrave invenccedilatildeo deum instrumento similaro que consegui pouco de-pois baseando-me na dou-trina das refraccedilotildees (GA-LILEU Sidereus Nunciusapud EacuteVORA 1994 p 37itaacutelicos nossos)

Todavia Faacutetima Eacutevora (1994Caps 2 e 3) mostra-nos que mdasha julgar seja pelos procedimentosapresentados pelo proacuteprio Gali-leu seja pelas teorias oacuteticas a queGalileu poderia ter tido acesso mdasha afirmaccedilatildeo de que o instrumentofoi produzido com bases na dou-

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trina da refraccedilatildeo deve ser tomadacomo deveras problemaacutetica5 Aargumentaccedilatildeo teoacuterica minuciosa ea ampla investigaccedilatildeo documentalde Faacutetima Eacutevora nos eacute completa-mente persuasiva e sua conclusatildeose nos impotildee de modo inelutaacutevel

A descoberta de Galileudo telescoacutepio nem foi obrado acaso nem simples re-produccedilatildeo de um disposi-tivo cuja as partes e dis-posiccedilotildees se conhecia pre-viamente Poreacutem tambeacutemnatildeo foi feita a partir deum raciociacutenio loacutegico de-dutivo [ ] Galileu conse-guiu o progresso graccedilas atentativa e errordquo (EacuteVORA1994 p 81)

Resta-nos poreacutem refletir umpouco sobre o que poderiam signi-ficar para nosso cientista-filoacutesofoessas investidas concretas e tate-antes que ele realizou mdash certa-mente sem seguir nenhum a pri-ori ou melhor nenhum a prioriparticular sobre oacutetica e produccedilatildeo deimagens atraveacutes de lentes O que se-ria afinal isso que se encontra en-tre o raciociacutenio loacutegico dedutivo epuro acaso sem se confundir com

ambos Eacute para tentar respondera essas perguntas que atentamosagraves controveacutersias histoacutericas sobre aautoria do instrumento

Respondendo em Il Saggiatoreagrave acusaccedilatildeo de plaacutegio feita porSarsi Galileu escreve que vistoque jaacute avisara no Sidereus Nun-cius ter sabido da existecircncia dotelescoacutepio antecipadamente res-taria somente explicar que espeacuteciede auxiacutelio podia lhe ter represen-tado esse conhecimento preacutevioReconhecendo que sem essa in-formaccedilatildeo talvez natildeo houvesse sequer pensado no assunto e ten-tado construir o aparelho Galileuno entanto adverte

que tal notiacutecia tenhafacilitado invenccedilatildeo natildeocreio e digo mais que en-contrar a soluccedilatildeo de umproblema marcado e no-meado eacute obra de muitomaior engenho do queaquela necessaacuteria paraencontrar a [soluccedilatildeo] deum problema ainda natildeopensado nem nomeadopois neste caso pode havergrandiacutessima influecircncia doacaso mas naquele eacute tudoobra do argumento (dis-

5ldquo os estudos existentes no seacuteculo XVI e comeccedilo do seacuteculo XVII sobre a formaccedilatildeo de imagens em lentes ousistemas de lentes natildeo ofereciam bases para a construccedilatildeo do telescoacutepio com exceccedilatildeo talvez do Ad VitellionemParalipomena quibus Astronomia pars Optica Traditur de Kepler (1604 Frankfurt) o qual Galileu ateacute outubrode 1610 natildeo havia conseguido lerrdquo (EacuteVORA 1994 p 43)

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

corso) (GALILEU SidereusNuncius apud EacuteVORA1994 p 44-45 - itaacutelicosnossos)

O que temos aqui Mais uma ale-gaccedilatildeo da qual devemos suspeitarTalvez natildeo Afinal o que Galileunos diz eacute que a certeza da existecircn-cia do instrumento afasta o acasoe torna a situaccedilatildeo um problemapara o engenho do cientista Natildeoera uma hipoacutetese a ser testadaempiricamente era uma certezaque a construccedilatildeo do telescoacutepio erapossiacutevel afinal ela era um fatoela era real e o que eacute real devepoder ser demonstrado com basena ciecircncia6 Este seria o a priori deGalileu um a priori geral que nadatem de platocircnico de idealista oude solipsista porque muito pelocontraacuterio diz respeito agrave inteligibi-lidade dos eventos empiacutericos con-siderados em seu acircmbito proacuteprio

Natildeo poderia ser essa uma ex-plicaccedilatildeo mais justa para com oilustre filoacutesofo e matemaacutetico doque a que supotildee que estaria men-tindo para garantir a legitimidadecientiacutefica do seu equipamento aodizer que fundava-se na doutrinada refraccedilatildeo Ora jaacute poderiacuteamoscom efeito perceber estas mesmas

ideias que julgamos encontrar noII Saggiatore quando no Side-reus Nuncius Galileu dizia quededicou-se sinceramente agrave inves-tigaccedilatildeo e que soacute o fez depois que anotiacutecia foi confirmada e natildeo en-quanto algumas pessoas davamcreacutedito eacute experiecircncia mas outrasnatildeo Talvez nessa sinceridade algoinsuspeitado se encontre natildeo es-tando as fontes de Galileu a in-ventar ficccedilotildees fabulosas sobre ummaravilhoso instrumento a exis-tecircncia do telescoacutepio passa a serpois de direito mateacuteria da ciecircn-cia e o procedimento tateante ocorrer sucessivo das tentativas dealgueacutem que no entanto sabe comcerteza que eacute realizaacutevel seu pro-jeto bem poderia constituir umadas conotaccedilotildees da expressatildeo dis-corso Se a existecircncia do telescoacute-pio natildeo era uma fantasia como oseventos narrados nas obras dos li-teratos entatildeo a empreitada de Ga-lileu para produzir o instrumentoainda que de modo tateante eratarefa a exigir-lhe engenho e argu-mento e ao senhor Sarsi que lheacusava de plaacutegio tambeacutem nessecontexto Galileu poderia dizer SrSarsi a coisa natildeo eacute assim Porqueum telescoacutepio existia tentativa eerro para encontraacute-lo jaacute natildeo era

6Natildeo se deve entender aqui o contraacuterio do que jaacute disseacuteramos a saber que Galileu recusa o conhecimento deessecircncias ldquoO que eacute acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico satildeo os acidentes as propriedades ou sintomas Estes agravemedida que revelam o real satildeo os acidentes primaacuterios isto eacute o que pode ser tratado geometricamenterdquo (NASCI-MENTO 1986 p 57) Eacute preciso simplesmente que natildeo esqueccedilamos que estes acidentes satildeo ldquoacidentes primaacuterios ereaisrdquo (Galileu 2013 p 13)

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vaguear inutilmente num escurolabirinto

Conclusatildeo

() A filosofia estaacute escritaneste grandiacutessimo livroque aiacute estaacute aberto continu-amente diante dos olhos(isto eacute o universo) masnatildeo se pode entendecirc-lo seprimeiro natildeo se aprendea entender a liacutengua e co-nhecer os caracteres nosquais estaacute escrito Eleestaacute escrito em liacutengua ma-temaacutetica e os caracteressatildeo triacircngulos ciacuterculos eoutras figuras geomeacutetri-cas meios sem os quais eacutehumanamente impossiacutevelentender-lhe sequer umapalavra sem estes trata-se de um inuacutetil vaguearpor um obscuro labirinto( ) (GALILEU Il Saggia-tore sect6 apud MOSCHETTI2013 p 56)

Quando Galileu diz na supraci-tada frase do paraacutegrafo 6 de Il Sag-giatore (Cf MOSCHETTI 2013)que o universo estaacute escrito em liacuten-gua matemaacutetica revela que o logos

encarna-se no seu tatear e no ins-trumento assim encontrado a ci-ecircncia natildeo estaacute fundada nos livrosescritos pelos homens nem no elu-cubrar subjetivo estaacute fundada nascoisas7 Assim eacute possiacutevel a umcientista ldquoapoacutes haver cuidadosa-mente revisto o que Arquimedesdemonstra em seus tratadosrdquo (GA-LILEU 1986 p 105) ir em direccedilatildeoda natureza e produzir uma ba-lanccedila hidrostaacutetica mas tambeacutemem contrapartida sabendo queexiste um telescoacutepio colocar-se aproduzi-lo consciente de que estaacutelidando na praacutetica com a dou-trina da refraccedilatildeo mdash a ser escritatalvez com mais perfeiccedilatildeo do queno momento podia secirc-lo por suasmatildeos num outro tratado pelasmatildeos de um outro cientista

Jaacute se pode portanto compre-ender quatildeo significativa eacute estacaracterizaccedilatildeo dos instrumentospara a mudanccedila na concepccedilatildeo ge-ral acerca da ciecircncia Por tudoque dissemos parece natildeo estar-mos muito enganados se reco-nhecermos em tais instrumentosa siacutentese entre a instrumentaccedilatildeomdash que valoriza o trabalho em-piacuterico e a tentativa de dar contados fenocircmenos particulares mdash ea postura ativa do homem dianteda natureza que valoriza o re-

7 Confira-se tambeacutem em Moschetti 2013 pp 92ss especialmente o trecho ldquoA famosa frase de Galileu pareceenunciar um princiacutepio natildeo apenas metodoloacutegico mas tambeacutem ontoloacutegico assim deve ser a fiacutesica porque a mateacute-ria eacute ela mesma estruturada geometricamenterdquo Tal leitura confirma por assim dizer o que noacutes aqui estamosapresentando quase como uma ldquorevancherdquo moderna da ontologia pitagoacuterica

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

torno ao proacuteprio intelecto para en-contrar os princiacutepios do conheci-mento Os princiacutepios da matemaacute-tica satildeo os princiacutepios da naturezaqualquer transcendecircncia de estiloplatocircnico eacute aqui excluiacuteda

Para salientar apenas uma dasimplicaccedilotildees dessa investigaccedilatildeopara a compreensatildeo do pensa-mento de Galileu e da proacutepriaRevoluccedilatildeo cientiacutefica dos seacuteculosXVI e XVII cabe salientar que elaincide diretamente na mdash jaacute umtanto envelhecida mdash polecircmica en-tre Alexandre Koyreacute e StillmanDrake reportada e resumida porTHUIILER (1994) no capiacutetulocujo tiacutetulo enuncia a perguntaao redor da qual polemizaram osdois primeiros comentadores ldquofezGalileu experiecircnciasrdquo A respostade Koyreacute eacute negativa ao passo quea de Drake eacute afirmativa Drakeanalisando por exemplo anota-ccedilotildees manuscritas de Galileu tentademonstrar que elas seriam me-diccedilotildees de dados concretos reco-lhidos em efetivos experimentos(THUIILER 1994 p 130) Koyreacutesublinhando entre outras coisasa impossibilidade de mediccedilotildees su-ficientemente precisas bem comoum possiacutevel fundo platocircnico parao estabelecimento das teorias ga-lileanas procura provar que esseestabelecimento em nada depen-deu de experimentos concretosos quais portanto poderiam natildeohaver sequer existido reduzindo-

se aqueles experimentos descri-tos nos livros de Galileu a merosexpedientes de pensamento As-sim se por um lado natildeo acei-tamos completamente a tese deKoyreacute mdash de que Galileu natildeo fezconcretamente seus experimentosmdash por julgaacute-la natildeo como sendofalsa mas como sendo difiacutecil deser demonstrada por outro ladoqueremos crer que mesmo queGalileu tenha efetivamente feitoexperimentos algo da concepccedilatildeobaacutesica de Koyreacute mdash ao menos na-quilo que concerne ao caraacuteter es-sencial da postura ativa da ciecircnciagalileana mdash pode ser mantido seatentarmos agrave maneira pela qualos instrumentos satildeo pensados porGalileu Se natildeo eacute certo que expe-rimentos existiram natildeo se podedizer o mesmo dos instrumen-tos Assim repetindo a questatildeoque se encontra no tiacutetulo do ca-piacutetulo de Thuillier mdash ldquofez Gali-leu experiecircnciasrdquo mdash poderemosarriscar uma conclusatildeo dizendonatildeo sabemos mas sabemos queem sua oficina ele construiu re-almente inuacutemeros instrumentoscomo o compasso geomeacutetrico mi-litar a balanccedila hidrostaacutetica e o te-lescoacutepio E tais instrumentos satildeoeles proacuteprios as concretizaccedilotildeesmateriais de certas leis da natu-reza legiacuteveis apenas matematica-mente Natildeo se tratam de arma-duras extriacutensecas ou armadilhaspara capturar e aprisionar os da-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

dos observacionais em uma relesldquoregra de caacutelculordquo mas uma realarticulaccedilatildeo inteligiacutevel no seio danatureza sensiacutevel

Ora natildeo eacute pouco o que ficaposto em jogo trata-se naquelemomento histoacuterico de fundaccedilatildeode um novo modo de pensar ldquodeuma determinada imagem da ci-ecircncia uma determinada maneirade interpretar o trabalho cientiacuteficordquo(THUIILER 1994 p 117) Hojeem 2019 mdash quando a poliacutetica ci-entiacutefica brasileira exibe uma ima-gem da ciecircncia que a recoloca naservil posiccedilatildeo de teacutecnica solucio-nadora de problemas praacuteticos (es-pecialmente daqueles necessaacuteriosagrave induacutestria e ao mercado de ser-

viccedilos) sem potecircncia para questio-nar o poder teoloacutegico-poliacutetico quepor natildeo haver sido superado mastatildeo somente recalcado calamito-samente retorna com tal reediccedilatildeodo programa instrumentalista mdasheacute imperioso portanto diferenciara despotencializadora instrumen-talizaccedilatildeo da ciecircncia limitada asalvar as aparecircncias de sua de-sejaacutevel instrumentaccedilatildeo Esta uacutel-tima com seus instrumentos si-multaneamente corporais e inte-lectuais recoloca um brado quepensaacutevamos havia sofrido sua ob-solescecircncia junto com as promes-sas natildeo cumpridas do iluminismomas que mostra hoje sua renovadaimportacircncia Sapere Aude

Referecircncias

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Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228164

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e Espinosa

[The Game of Darkness Heidegger Schelling and Spinoza]

Vittorio Morfino

Resumo Este artigo visa analisar em primeiro lugar a problemaacute-tica do panteiacutesmo relativa ao determinismo e agrave liberdade tratada porSchelling quando este se posiciona sobre o erro de Espinosa Emsegundo lugar procuraremos entender tanto no pensamento schel-linguiano quanto na sua interpretaccedilatildeo heideggeriana a afirmaccedilatildeo deHeidegger de que haveria em Schelling um ldquotratado que abala a Loacute-gica de Hegel antes mesmo dela aparecerrdquo Em terceiro lugar se-guindo o percurso da linhagem Descartes-Kant-Hegel na histoacuteria dametafiacutesica procuraremos elaborar a trajetoacuteria do problema da ldquoliber-dade e do caraacuteter inteligiacutevelrdquo confrontando-a com a soluccedilatildeo schellin-guiana a fim de analisa-la mediante o conflito da origem do mal e aimpossibilidade da liberdade Finalmente procuraremos responderagrave acusaccedilatildeo de ldquoerro de Espinosardquo e com isso propor a abertura parainterpretaccedilotildees ulteriores de Espinosa principalmente no que diz res-peito ao problema de liberdade humanaPalavras-chave Schelling Heidegger Kant Espinosa Liberdade oMal

Abstract This article aims to analyze first the problem of pantheismconcerning determinism and freedom treated by Schelling when hedefines a position concerning Spinozarsquos error Secondly we will seekto understand both in Schellingian thought and in his Heideggerianinterpretation Heideggerrsquos statement that there would be in Schellinga treatise that shakes Hegelrsquos Logic even before it appears Thirdlyfollowing the path of the Descartes-Kant-Hegel lineage in the historyof metaphysics we will seek to elaborate the trajectory of the problemof ldquofreedom and intelligible characterrdquo confronting the former onewith the Schellingian solution in order to analyze it through theconflict of the origin of evil and the impossibility of freedom Finallywe will endeavor to respond to the accusation concerning ldquoSpinozarsquoserrorrdquo and thereby propose the opening for further interpretations ofSpinoza especially with regard to the problem of human freedomKeywords Schelling Heidegger Kant Spinoza Freedom Evilness

O presente artigo eacute uma versatildeo para o puacuteblico brasileiro de um texto originalmente publicado como capiacutetulodo livro Il tempo della moltitudine Materialismo e politica prima e dopo Spinoza Roma Manifestolibri 2005 pp149-172 A traduccedilatildeo do italiano foi realizada por Daniel Santos Silva [notaccedilatildeo de tradutor identificada como ldquoNotaDSSrdquo] a traduccedilatildeo das citaccedilotildees e filoacutesofos alematildees foram feitas por Fabio Nolasco [notaccedilatildeo de tradutor identificadacomo ldquoNota FNrdquo] revisatildeo geral feita por Ericka Marie ItokazuProfessor da Universitagrave degli Studi di Milano-Bicocca Doutor em Ciecircncia Poliacutetica pela Universiteacute de Paris VIII

(Vincennes - Saint-Denis) E-mail vittoriomorfinounimibit ORCID httpsorcidorg0000-0003-4512-9759

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VITTORIO MORFINO

() uma paixatildeo eacute para noacutes como um caraacuteter temporaacuterioe diferente que substitui o outro e elimina os signos

ateacute entatildeo invariaacuteveis pelos quais ele se exprimia(Marcel Proust Du cocircteacute de chez Swann)

Schelling na histoacuteria da metafiacute-sica

Em 1936 quando Heidegger in-troduz aos estudantes a obra deSchelling nas liccedilotildees dedicadas agravesInvestigaccedilotildees filosoacuteficas sobre a es-secircncia da liberdade humana eleapresenta-a nestes termos ldquo()eacute o que de maior fez Schellinge ao mesmo tempo uma dasobras mais profundas da filoso-fia alematilde e portanto da filosofiaocidentalrdquo1 Natildeo seria este poisum tratado que tem em mira umaquestatildeo particular como haviapensado Hegel mas sim uma obrafilosoacutefica fundamental dedicadanatildeo agrave questatildeo do livre-arbiacutetrio dohomem mas agrave liberdade do Serldquoao qual o homem tem de ser re-conduzido para que se torne ver-dadeiramente homemrdquo2 Entre-tanto em vez de restituir o con-junto da interpretaccedilatildeo heidegge-riana de Schelling como cume

e naufraacutegio do idealismo alematildeoou ainda apenas colher delaseu sentido no quadro da histoacute-ria da metafiacutesica tentarei inter-rogar o texto nas suas margenslaacute onde Heidegger desenha rela-ccedilotildees de oposiccedilatildeo ou de continui-dade com algumas figuras funda-mentais do pensamento modernoEspinosa Kant Hegel E talvez eacutedesses acenos marginais que seraacutepossiacutevel aceder agrave compreensatildeo da-quilo que estaacute em jogo na inter-pretaccedilatildeo heideggeriana de Schel-ling

1) Espinosa A proximidade deSchelling com respeito agrave filosofiaespinosana foi sublinhada por elemesmo (na ceacutelebre carta a Hegelde 1795 em que declara ich binindessen Spinozist geworden3)por escritos polecircmicos (primeiroentre todos como natildeo o de Jacobi)e por uma ininterrupta seacuterie de ar-tigos e ensaios ao longo de todo oNovecentos A afirmaccedilatildeo de Hei-

1HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) hrsg von H FeickTuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 p2 [lowast As traduccedilotildees de Heidegger foram feitas a partir do italiano por Da-niel Santos e revisadas em cotejo com o alematildeo por Fabio Mascarenhas Nolasco a natildeo ser quando especialmenteindicado Nota FN]

2 Ibidem p 11 Acrescenta Heidegger Note-se natildeo a liberdade como propriedade (Eigenschaft) do homem esim o homem como propriedade (Eigentum) da liberdaderdquo (Ibidem)

3 Carta de Schelling a Hegel em 4 de fevereiro de 1795 em Briefe von und an Hegel Bd I hrsg von J HOFF-MEISTER Hambruf Meiner 1952 p 22

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

degger tem entatildeo a forccedila de umtiro de canhatildeo para o senso co-mum filosoacutefico

O fato que a filosofia deSchelling tenha sido to-mada por espinosismo re-cai naquela histoacuteria curi-osa de malentendidos quetodos os filoacutesofos sofremda parte de seus contem-poracircneos Se haacute um sis-tema que Schelling com-bateu de modo radical[von Grund aus bekaumlmpfte]eacute propriamente aquele deEspinosa E se houve umpensador que reconheceuo verdadeiro erro de Espi-nosa este eacute Schelling4

Duas indicaccedilotildees fundamentais 1)natildeo somente Schelling natildeo eacute es-pinosista mas pelo contraacuterio sese quer ler Schelling de modo cor-reto deve-se colher na sua filo-sofia esta oposiccedilatildeo radical ao sis-tema espinosano que por assimdizer o atravessa 2) no sistemaespinosano existe segundo Hei-degger um erro fundamental queSchelling especificou da melhorforma

2) Kant A relaccedilatildeo Kant-Schelling vem caracterizada porHeidegger em termos de con-tinuidadeaprofundamento Seidealismo em sentido amplo sig-nifica interpretaccedilatildeo da essecircn-cia do Ser como lsquoideiarsquo comoser-representado pelo ente emgeralrdquo5 para entender a linhada metafiacutesica moderna Descartes-Leibniz somente com Kant o eurepresentativo ele atinge sua es-secircncia a liberdade abrindo cami-nho ao idealismo entendido emsentido histoacuterico6

Kant sobre a via que oleva da Criacutetica da razatildeopura agrave Criacutetica da razatildeopraacutetica reconhece todaviaque a essecircncia autecircnticado eu natildeo eacute o eu penso maso eu ajo dou-me a mimmesmo a lei trazendo-ado fundamento da essecircn-cia eu sou livre Nesseser-livre o eu estaacute verda-deiramente consigo natildeodistante de si mas ver-dadeiramente em si Oeu como eu representoa ideia vem entatildeo con-

4 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) FEICK H (org)Tuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 tr it MAZZARELLA E e TATASCIORE C (orgs) Naacutepoles Guida 1998p 41

5 Ibidem p 1106 ldquoO idealismo como sistema foi fundado pela Doutrina da Ciecircncia de Fichte completado de maneira essencial

pela filosofia da natureza de Schelling elevado a um niacutevel superior pelo seu Sistema do idealismo transcenden-tal consumado por seu Sistema da identidade e fundado propriamente num movimento conclusivo apenas pelaFenomenologia do espiacuterito de Hegelrdquo ibidem p109

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cebido a partir da liber-dade O idealismo comointerpretaccedilatildeo do Ser en-tende entatildeo o ser-em-si doente como ser-livre o ide-alismo eacute dentro de si idea-lismo da liberdade7

Enquanto partiacutecipe do idealismoSchelling eacute segundo Heideggerprofundamente devedor de Kantpelo conceito de liberdade comoldquosubsistecircncia proacutepria e autodeter-minaccedilatildeo na proacutepria lei essencialrdquo(Eigenstaumlndigkeit und Selbstbestim-mung im eigenen Wesengesetz8) aoexceder esse movimento de pen-samento ele aprofunda o conceitode Kant mudando sua filosofia deterreno ldquoo idealismo alcanccedilou defato o conceito formal da liber-dade () mas ainda natildeo compre-endeu o fato [Tatsache] da liber-dade humana na sua facticidade[Tatsaumlchlichkeit]rdquo9

3) Hegel A perspectiva a par-tir da qual o senso comum filo-soacutefico considera a relaccedilatildeo Hegel-Schelling foi imposta pelo ceacutelebremovimento teoacuterico do Prefaacutecio daFenomenologia do espiacuterito o abso-luto de Schelling eacute a noite em quersquotodos os gatos satildeo pardosrsquo comose costuma dizer10 Quer se re-

fira ao amigo de um tempo oua seus maus divulgadores comolhe assegura em uma carta certoeacute que esse juiacutezo tem a forccedila deuma sentenccedila de condenaccedilatildeo quetransforma a filosofia schellin-guiana em um momento do pro-cesso histoacuterico-filosoacutefico que de-veria conduzir ao idealismo ab-soluto de Hegel Que Schellingcontinue a viver e a escrever apoacuteso florir daquele botatildeo tardio deSuaacutebia eacute uma pura contingecircnciasem significado algum do pontode vista da weltgeschichtlich Hei-degger distancia-se precisamentede uma perspectiva de tal gecircneroO simples movimento de dedicarum curso agrave uacutenica obra publicadapor Schelling em vida depois dosurgimento da Fenomenologia (sesatildeo excluiacutedas obras de caraacuteter po-lecircmico) eacute suficiente para mos-trar que existe um pensamento deSchelling para aleacutem de Hegel ouseja para aleacutem da filosofia schel-linguiana como posiccedilatildeo subordi-nada agravequela do saber absolutoLonge poreacutem de limitar-se a umavalorizaccedilatildeo somente impliacutecita dopensamento de Schelling Heideg-ger afirma explicitamente a forccediladesse pensamento proacuteprio em re-laccedilatildeo agravequele de Hegel

7 Ibidem p 1118 Ibidem p 1099 Ibidem

10 HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes in GW Bd 9 hrsg von W Bonsiepen - R Heede HamburgMeiner 1980 p 17 [Nota FN trad em portuguecircs de Paulo Meneses Parte I Petroacutepolis Vozes 1992 p 29]

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

Quando se cita o tratadoschellinguiano sobre a li-berdade apenas ocasional-mente a fim de assim do-cumentar uma certa vi-sada de Schelling sobre omal e a liberdade natildeo setem desse tratado conceitoalgum Torna-se agoratambeacutem visiacutevel em quemedida a avaliaccedilatildeo de He-gel sobre esse tratado em-bora reconhecedora eacute fa-lha trata-se apenas deuma questatildeo particularO tratado que abala [ers-chuumlttert] a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela apare-cer11

Natildeo apenas pois o pensamentode Schelling natildeo desvanece emfrente ao surgir do pensamentohegeliano mas potildee em questatildeoante-litteram os fundamentos deseu sistema (erschuumlttern significaabalar fazer tremer mas tambeacutemromper) a grande loacutegica laacute ondeos pensamentos de Deus satildeo reco-lhidos antes de tornar-se mundo

Antes de aproximarmo-nos doconteuacutedo verdadeiro e proacutepriodo tratado reassumamos breve-

mente as coordenadas atraveacutes dasquais Heidegger nos permite si-tuar o pensamento de Schelling nahistoacuteria da metafiacutesica modernaSchelling refuta Espinosa apro-funda Kant faz vacilar Hegel Re-tomaremos analiticamente essespontos contudo em ordem in-versa

O tratado sobre a liberdade

As Investigaccedilotildees12 schellinguianaspartem da polecircmica com algumasdas ceacutelebres teses de Jacobi pre-sentes em Sobre a doutrina de Es-pinosa em cartas ao Senhor MosesMendelssohn nas quais se conec-tavam de modo estreito raciona-lismo panteiacutesmo e fatalismo (bemresumida na ceacutelebre frase de Les-sing ldquonatildeo haacute outra filosofia senatildeoa de Espinosardquo13) Numa deta-lhada anaacutelise dos diferentes sen-tidos que se pode atribuir ao con-ceito de panteiacutesmo Schelling de-dica a primeira parte de sua obrapara mostrar como em realidadedo panteiacutesmo natildeo segue necessa-riamente a negaccedilatildeo da liberdadeAo contraacuterio se o compreende-mos corretamente o panteiacutesmoimplica liberdade

11HEIDEGGER M Schellings Abhandlung op cit p 11712 SCHELLING F W J Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die dammit

zusammenhaumlngenden Gegenstaumlnde in SW Bd 4 pp 238-23913 JACOBI FH Uumlber die Lehre des Spinoza hrsg von Hammacher et alii Hamburg Meiner 2000 p 23

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Se jaacute natildeo fosse vivente[por si] aquilo que eacute com-preendido em outro en-tatildeo haveria uma compre-ensibilidade sem compre-endido ie nada seriacompreendido Um pontode vista muito mais altoeacute assegurado pela consi-deraccedilatildeo da proacutepria essecircn-cia divina cuja ideia con-tradiria completamenteuma sequecircncia que natildeoeacute produccedilatildeo ie o pocircrde um autossubsistenteDeus natildeo eacute um Deus dosmortos mas dos viven-tes Eacute incompreensiacutevelcomo a essecircncia comple-tamente perfeita se apra-zeria mesmo que em faceda mais completa das maacute-quinas Como quer quese queira pensar o tipode sequecircncia das essecircn-cias a partir de Deusela nunca pode ser umasequecircncia mecacircnica demodo algum um mero efe-tuar ou colocar em queo efetuado natildeo eacute nadapor si proacuteprio tampoucouma emanaccedilatildeo em queo que emana permaneccedilao mesmo que aquele do

qual emanou portantonada proacuteprio autosubsis-tente A sequecircncia dascoisas a partir de Deuseacute uma automanifestaccedilatildeode Deus Deus contudopode se manifestar a siapenas naquilo que lhe eacutesemelhante em essecircnciaslivres que agem a partirde si proacuteprias para cujoser natildeo haacute nenhum outrofundamento senatildeo Deusas quais poreacutem satildeo talcomo Deus eacute Ele fala eaiacute estatildeo elas Mesmo sefossem todos os seres cri-ados apenas pensamentosdo iacutentimo divino jaacute porisso haveriam de ser vi-vos14

Assim o panteiacutesmo natildeo implicade maneira alguma conclusotildeesespinosistas como consideravaJacobi mas pelo contraacuterio se-gundo Schelling soacute internamenteao panteiacutesmo eacute possiacutevel pensar aliberdade ldquoimanecircncia em Deuse liberdade contradizem-se tatildeopouco que unicamente o livre ena medida em que eacute livre eacute emDeus o natildeo-livre e na medidaem que natildeo eacute livre [eacute] necessa-riamente fora de Deusrdquo15

14 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zu-sammenhaumlngenden Gegenstaumlande in Saumlmtliche Werke (SW) vol 4 pp 238-239 [Nota FN as traduccedilotildees para oportuguecircs a seguir foram feitas diretamente do alematildeo por Faacutebio Nolasco]

15 Ibidem p 239

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

Uma vez estabelecido que liber-dade e sistema podem conviverSchelling enfrenta a questatildeo fun-damental qual seja o problemada liberdade de que o idealismoteria fornecido apenas um con-ceito formal (forma no sentidodaquilo que determina a essecircn-cia anota Heidegger) mas natildeovivente que residiria em umaldquofaculdade do bem e do malrdquo(Vermoumlgen des Guten und des Bouml-sen)16 Aqui contudo um novoproblema para o panteiacutesmo jaacute queldquoou se concede um mal efetivo eassim eacute inevitaacutevel implicar o malna substacircncia infinita ou na proacute-pria vontade originaacuteria e com issoo conceito de uma essecircncia suma-mente perfeita eacute completamentedestruiacutedo ou eacute preciso que de al-guma maneira a realidade do malseja negada com o que no en-tanto o conceito real da liberdadeao mesmo tempo desaparecerdquo17Perde-se pois ou Deus ou a li-berdade ndash ao menos se natildeo nosabandonamos agrave teoria dos doisprinciacutepios (que Schelling chamano tratado de dualismo) e nestecaso perde-se entretanto a razatildeo(ldquoo dualismo eacute apenas um sis-tema do autodilaceramento e de-sespero da razatildeordquo18) A soluccedilatildeoschellinguiana pela qual procura

salvar Deus a razatildeo e a liberdadeno seu panteiacutesmo encontra-se emuma distinccedilatildeo que ele pocircs na fi-losofia da natureza ldquoa filosofia danatureza do nosso tempo estabele-ceu na ciecircncia em primeiro lugara diferenciaccedilatildeo entre a essecircnciaenquanto existe e a essecircncia en-quanto eacute mero fundamento [blosGrund] de existecircnciardquo19 Por essadistinccedilatildeo entre existecircncia e funda-mento Schelling chegaraacute a expli-car o mal

Deus deve ter em si mesmo ofundamento de sua existecircncia eesse fundamento se se quer tornaacute-lo humanamente compreensiacuteveldeve ser pensado como o desejoque o eterno experimenta ao gerara si proacuteprio um querer no qualnatildeo haacute intelecto mas um que-rer do intelecto (genitivo objetivo)pressaacutegio do intelecto Esse desejofoi desde muito tempo suplantadopelo ser mais alto surgido dele etodavia embora natildeo perceptiacuteveleacute concebiacutevel pelo pensamento

Segundo o ato eternoda automanifestaccedilatildeo nomundo tal como o vi-samos agora tudo eacute re-gra ordem e forma masno fundo subjaz sempre

16 Ibidem p 24417 Ibidem p 24518 Ibidem p 24619 Ibidem p 249

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ainda o sem-regra [Regel-lose] como se ele pudesseirromper mais uma veze em lugar nenhum pa-rece que a ordenaccedilatildeo ea forma seriam o origi-naacuterio mas que um sem-regra inicial teria sido or-denado Isso eacute nas coisas abase inapreensiacutevel da rea-lidade o resto que nuncase esvai aquilo que natildeose deixa dissolver no en-tendimento mesmo como maior esforccedilo mas quepermanece eternamenteno fundo [im Grunde]Dessa ausecircncia de enten-dimento nasceu em sen-tido estrito o entendi-mento Sem essa escuri-datildeo antecedente natildeo haacutequalquer realidade da cri-atura a treva eacute seu neces-saacuterio legado20

A partir pois da distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia em DeusSchelling desencadeia o processoatraveacutes do qual Deus mesmo segera gerando a natureza e a his-toacuteria Frente a essa verdadeirateocosmo-gonia combateu-seentre uma atitude de admiraccedilatildeo

agrave criativiadade filosoacutefica de Schel-ling e agrave ironia de Schopenhauerque diante de um ldquorelatoacuterio de-talhado sobre um Deus do qual osenhor autor daacute a entender pos-suir conhecimento iacutentimo postoque nos descreve ateacute mesmo o seusurgimentordquo deplora o fato deque ldquoele natildeo gaste uma soacute palavrapara mencionar como teria entatildeoalcanccedilado tal conhecimentordquo21Em tal contexto talvez seja maisinteressante tomaacute-la como puraestrateacutegia verdadeira e proacuteprialuta filosoacutefica para salvar a razatildeoDeus e liberdade22

Ora em cada ser da naturezaem cada graduaccedilatildeo sua estatildeo pre-sentes os dois princiacutepios mas ape-nas no homem de forma plenaldquono ser humano estaacute o poder in-teiro do princiacutepio tenebroso etambeacutem nele simultaneamentetoda a forccedila da luz Nele estaacute omais profundo abismo e o maisalto ceacuteu (der tiefste Abgrund undder houmlcheste Himmel) ou ambosos centrosrdquo 23 O mal entatildeo natildeopode ser compreendido como ma-lum metaphysicum como limita-ccedilatildeo (ou seja como privaccedilatildeo) mascomo positiva perversatildeo dos doisprinciacutepios

20 Ibidem p 251-25221 SCHOPENHAUER A Preisschrift uumlber die Freiheit des Willens in Werke (W) vol 4 p 8422 ldquoQuiccedilaacute derradeiramente e pos isso com extrema fuacuteria Schelling luta para ganhar a batalha da razatildeordquo (G

ALBIAC La sinagoga vaciacutea Madrid Ediciones Hiperioacuten 1987 p 337)23 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen cit p 255

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Pois jaacute a simples ponde-raccedilatildeo de que o ser hu-mano a mais perfeita detodas as criaturas visiacuteveiseacute a uacutenica capaz do malmostra que o fundamentodisso natildeo poderia de ma-neira alguma dever-se agravefalta ou privaccedilatildeo O diabosegundo a visada cristatildenatildeo era a mais limitadadas criaturas senatildeo quemuito mais a mais ilimi-tada A imperfeiccedilatildeo nosentido metafiacutesico geralnatildeo eacute o caraacuteter usual domal posto que ele fre-quentemente se mostraunificado a uma excelecircn-cia das forccedilas singularesas quais com muito menorfrequecircncia acompanhamo bem24

Schelling explica pois o mal pelofundamento o qual natildeo estaacute forade Deus mas eacute em Deus mesmoMas o mal natildeo eacute o fundamento jaacuteque contrariamente ldquoa vontadedo fundamento jaacute na primeira cri-accedilatildeo coexcita a vontade proacutepria da

criatura a fim de que quando sur-gir o espiacuterito como a vontade deamor este encontre algo que lheresista no qual possa se efetivarrdquo25 (e isso possa ser apreendido se-gundo Schelling no irracional eno acaso que se encontra conec-tado com o necessaacuterio especial-mente nos seres orgacircnicos signode uma individualidade ativa26operando neles) Sobretudo nofazer da individualidade mesmao mal consiste no perverter a re-laccedilatildeo entre os dois princiacutepios emvez de base e oacutergatildeo da espiritua-lidade um princiacutepio ldquodominantee vontade-total () e em contra-partida do espiritual em si ummeio ()rdquo 27 Uma perversatildeo dessegecircnero eacute possiacutevel somente no ho-mem ou seja no reino do espiacuteritoda histoacuteria enquanto no animal oviacutenculo entre os dois princiacutepioseacute determinado e natildeo passiacutevel deperversatildeo (o animal natildeo eacute assimcapaz de mal o ser capaz do mal eacutepropriamente aquilo que constituia essecircncia do homem)

Trata-se de compreender nessequadro em que sentido a liber-dade consiste em uma faculdadedo bem e do mal Schelling re-

24 Ibidem p 260-26125 Ibidem p 267-268 A propoacutesito escreve Parayson ldquoA impossibilidade de separar a liberdade humana da

liberdade divina implica que o mal posto que eacute o resultado da liberdade humana e dela apenas tem uma prehis-toacuteria sobrehumana um fundo metafiacutesico um pressuposto [antefatto] escuro e abissal Isso tem a sua origem remotano fundamento obscuro da essecircncia divina que o proacuteprio Deus supera e vence no evento portentoso do seu devire a sua causa proacutexima e imediata na liberdade humanardquo (Introduzione a FWJ Schelling Scritti sulla filosofia dellareligione la libertagrave op cit p 15)

26 Ibidem p 26827 Ibidem p 281

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cusa de modo preciso tanto a con-cepccedilatildeo da liberdade como liberumarbitrium indifferentiae quanto aconcepccedilatildeo determinista ou comoele a chama preacute-deterministaldquoem ambas eacute igualmente desco-nhecida aquela necessidade supe-rior () necessidade que brota daessecircncia do proacuteprio agenterdquo28 Aliberdade se identifica pois comessa mais alta necessidade quecoincide com a accedilatildeo que segue daproacutepria essecircncia O problema sedesloca entatildeo para a liberdade daessecircncia E eis a resposta schel-linguiana ldquoo ser humano eacute nacriaccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () mas ele proacute-prio pode decidir-se No entantoessa decisatildeo natildeo pode ocorrer notempordquo29 O homem eacute pois livrepara escolher o bem e o mal natildeono tempo mas na eternidade an-tes que o tempo seja escolhe suaessecircncia no eterno e dessa escolhaseguem necessariamente todas assuas accedilotildees no tempo o agir dohomem por assim dizer natildeo setorna mas eacute por natureza eterno

Para retomar o principal do tra-tado eis os dois movimentos teoacute-ricos fundamentais

- a liberdade como autodeter-minaccedilatildeo intemporal da sua proacute-

pria essecircncia- o mal como perversatildeo da re-

laccedilatildeo entre os dois princiacutepios co-originaacuterios em Deus

Estamos agora em condiccedilotildeespara retornar ao texto de Hei-degger e procurar compreendermelhor o sentido dessa relaccedilatildeode continuidade e de oposiccedilatildeoque ele estabeleceu com EspinosaKant Hegel

O princiacutepio das trevas e a trans-parecircncia do conceito

Assinalamos para o fato de queHeidegger potildee em discussatildeo a re-construccedilatildeo hegeliana da histoacuteriado idealismo na qual Schellingnatildeo seria senatildeo um momento ne-cessaacuterio (a reequilibrar o subjeti-vismo fichteano) mas parcial e su-bordinado ao idealismo absolutoEm realidade Schelling longe deser um momento do desenvolvi-mento em direccedilatildeo ao saber abso-luto eacute o pensador que ldquoempurrao idealismo alematildeo desde o seuinterior para fora e aleacutem de suaproacutepria posiccedilatildeo fundamentalrdquo30Aqui o que estaacute em jogo eacute a rela-ccedilatildeo com Hegel como mostra estaexclamaccedilatildeo de Heidegger ldquoo tra-

28 Ibidem p 27529 Ibidem p 27730 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 4

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tado que abala a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela aparecerrdquo

Em que sentido o tratado deSchelling abala a Loacutegica A loacute-gica de Hegel eacute a completude dametafiacutesica moderna daquele mo-vimento filosoacutefico posto em atopela primeira vez por Descartespara quem a medida do ser estaacuteno pensamento no sujeito A loacute-gica eacute a ciecircncia da ideia natildeo maisentendida como o conteuacutedo men-tal cartesiano mas como cora-ccedilatildeo mesmo da totalidade comoaquele processo de pensamentoque no seu fazer-se institui aomesmo tempo as estruturas fun-damentais do ser da natureza e dahistoacuteria Costuma-se citar a desca-rada imagem hegeliana segundo aqual a loacutegica seria ldquoa apresentaccedilatildeo(Darstellung) de Deus tal como eleeacute em sua essecircncia eterna antes dacriaccedilatildeo da natureza e de um es-piacuterito finitordquo 31 Aqui eacute possiacutevelcompreender naturalmente soba condiccedilatildeo de renunciar a todatranscendecircncia de Deus e a todaanterioridade entendida em sen-tido temporal Natildeo se pode defato separar a ideia do processopelo qual ela continuamente potildeediante de si uma alteridade (o ou-tro do pensamento do conceitoou seja o acidental o contingente

o acaso) e continuamente a superadando-lhe forma

A identidade da ideia con-sigo mesma ndash escreve He-gel ndash eacute um com o pro-cesso o pensamento queliberta a efetividade daaparecircncia [Schein] da al-terabilidade sem finali-dade e a transfigura [ver-klaumlrt] em ideia natildeo tem derepresentar essa verdadeda efetividade como o re-pouso morto como umamera imagem fraca semimpulso e movimentocomo um gecircnio ou um nuacute-mero ou um pensamentoabstrato a ideia em vir-tude da liberdade que oconceito alcanccedila nela temtambeacutem a oposiccedilatildeo maisdura dentro de si seu re-pouso consiste na segu-ranccedila e na certeza com asquais ela eternamente agera e eternamente a su-pera e nela junta-se con-sigo mesma32

Em que sentido entatildeo o Schellingdo tratado abala a loacutegica de HegelEnquanto em Hegel Deus eacute o lu-

31 HEGEL GWF Wissenschaft der Logik in GW Bd 11 hrsg Von F Hogemann ndash W Jaescke p 21 [Nota FNtraduccedilatildeo portuguesa a cargo de Ch Iber F Orsini M Miranda vol 1 Petroacutepolis-Braganccedila Paulista Vozes 2016p 52]

32 Ibidem Bd 12 p 177 tr Br citada p 242 (grifos do autor)

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gar das puras estruturas loacutegicasdo ser que encontram a opacidadeda contingecircncia e da acidentali-dade no fazer-se mundo mas so-mente no caminho para a trans-parecircncia do espiacuterito (isto eacute deum Deus que enfim se sabe comotal) em Schelling a luz do pensa-mento eacute em Deus precedida emum sentido intemporal por umprinciacutepio tenebroso que a deseja eao mesmo tempo a individualizae assim natildeo eacute de modo algum a elaredutiacutevel Trata-se daquele con-ceito que Heidegger denomina deSeynsfuge encaixe do ser articula-ccedilatildeo do ser Como escreve EugenioMazzarela

o fundamental do tratadoschellinguiano de 1809consiste em ter levado aproblemaacutetica da dialeacuteticaespeculativa do idealismosobre um terreno a li-berdade de onde lsquosaltarsquo asoluccedilatildeo integralmente loacute-gica do nexo ontoloacutegico areinvindicaccedilatildeo de que nolsquoconceitorsquo o ser e o pen-sar se convertem integral-mente e que a participa-ccedilatildeo nessa compreensatildeo

reciacuteproca integral [seja]completamente atualizaacute-vel no sentido de uma suatranslucidez sem resiacuteduopara o pensamento hu-mano sub specie do traba-lho filosoacutefico do espiacuterito33

Em substacircncia Schelling faria va-cilar a concepccedilatildeo hegeliana da li-berdade como processo histoacutericode autoapropriaccedilatildeo da totalidadendash liberdade que nessa oacutetica natildeopode senatildeo ser coletiva inseridanas instituiccedilotildees poliacuteticas

Em Schelling a impossiacuteveltransparecircncia imposta pela Seyns-fuge mostra o limite do conceitoidealista de liberdade como au-todeterminaccedilatildeo a partir de umaessecircncia proacutepria a liberdade vi-vente necessita de uma definiccedilatildeomais profunda a liberdade vi-vente eacute faculdade do bem e domal Schelling faria assim vacilaro inteiro sistema hegeliano pen-sando a liberdade como poten-cialidade de transgressatildeo contraDeus o mal natildeo se cura sem ci-catrizes como na Fenomenologiahegeliana34 mas eacute o sintoma daexistecircncia do conflito no ser di-

33 MAZZABELLA E Presentazione a M Heidegger Schelling opcit p 3134 ldquoAs feridas do espiacuterito curam sem deixar cicatrizes O fato natildeo eacute o impereciacutevel mas eacute reabsorvido pelo espiacute-

rito dentro de si o que desvanece imediatamente eacute o lado da singularidade presente no fato ndash seja como intenccedilatildeoseja como negatividade e limitaccedilatildeo aiacute-essente do fatordquo (HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes opcit p 360)[Nota FN trad brasileira opcit p 444]

35 Sobre o mal fiacutesico e o mal moral cf MOISO F Vita natura libertagrave Schelling (1795-1809) Milatildeo Mursia 1990pp 294-335

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vino mesmo35

A liberdade e o caraacuteter inteligiacute-vel

No percurso da metafiacutesica mo-derna que conduz de Descartes aSchelling sem duacutevida em Kantestaacute o noacute fundamental eacute Kant defato que ndash segundo Heidegger ndashformula o conceito formal de li-berdade como ldquoautossubsistecircnciacomo subsistecircncia proacutepria na proacute-pria lei essencialrdquo 36 Haacute um evi-dente deacutebito no tratado sobre a li-berdade nos confrontos de Kantque todavia Schelling natildeo su-blinha de modo suficientementeclaro e que mesmo Heidegger emcomentaacuterios natildeo contribui parailuminar Escreve Schelling

O ser humano eacute na cria-ccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () masele proacuteprio pode decidir-se No entanto essadecisatildeo natildeo pode ocor-rer no tempo ela ocorrefora de todo tempo eportanto coincide coma primeira criaccedilatildeo (em-bora enquanto um ato di-verso dela) O ser hu-mano embora nasccedila no

tempo foi no entantocriado no comeccedilo da cri-accedilatildeo (o centro) O atomediante o qual sua vidaeacute determinada no temponatildeo pertence ele mesmoao tempo mas agrave eterni-dade ele natildeo antecede agravevida tambeacutem segundo otempo mas decorre atra-veacutes do tempo (inapreen-dido por ele) como umato eterno segundo a na-tureza Mediante esse atoa vida do ser humano al-canccedila ateacute ao comeccedilo dacriaccedilatildeo por isso ele me-diante tal ato e mesmofora do criado eacute livre e eleproacuteprio comeccedilo eternoEmbora essa ideia possaao modo comum de pen-sar parecer tatildeo incompre-ensiacutevel em cada ser hu-mano poreacutem haacute um sen-timento concordante comisso [Schelling se refere aosentimento de responsabi-lidade que sentimos pelasnossas accedilotildees VM] comose ele jaacute tivesse sido o queeacute desde toda eternidadee de modo algum apenasveio a ser no tempo Porisso a despeito da ine-gaacutevel necessidade de to-das as accedilotildees e mesmo que

36 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 109

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cada um quando atenta asi proacuteprio tenha de con-ceder que de modo al-gum eacute bom ou mau poracaso ou arbitrariamenteo mal pex aparece a sicomo nada menos que co-agido (posto que a coa-ccedilatildeo pode apenas ser sen-tida no devir natildeo no ser)mas faz suas accedilotildees comvontade natildeo contra suavontade Que Judas te-nha se tornado um trai-dor de Cristo natildeo o po-dia alterar ele proacuteprio ouqualquer criatura mudare ainda assim ele natildeo foicoagido a trair Cristo maspropositadamente e comtotal liberdade37

Schopenhauer sustenta que essapaacutegina natildeo seria nada mais queuma paraacutefrase explicativa ndash apre-ciaacutevel exclusivamente por seu tomvivaz ndash da teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel Ora na Criacutetica darazatildeo pura Kant estabelece umadupla causalidade operante nosatos de escolha humanos umacausalidade natural e uma por li-berdade De uma parte ldquotodasas accedilotildees do homem no fenocircmeno

se determinam segundo a or-dem da natureza pelo seu caraacutec-ter empiacuterico e pelas outras causasconcomitantesrdquo38 de outra tantoesse caraacuteter quanto as causas coo-perantes seriam a manifestaccedilatildeo deum ato uacutenico de escolha originaacute-rio e intemporal precisamente ocaraacuteter inteligiacutevel Malgrado algu-mas oscilaccedilotildees39 essa teoria vemretomada tambeacutem na ldquoElucidaccedilatildeocriacuteticardquo que conclui o primeiro li-vro da Criacutetica da razatildeo praacutetica

Nessa consideraccedilatildeo [comocoisa em si VM] o ser ra-cional pode agora dizercorretamente sobre cadaaccedilatildeo contraacuteria agrave lei prati-cada por ele que poderiatecirc-la omitido mesmo queela esteja enquanto fenocirc-meno suficientementedeterminada no passadoe seja nessa medida infali-velmente necessaacuteria poisessa accedilatildeo com todo o pas-sado que a determina per-tence a um uacutenico fenocirc-meno de seu caraacuteter queele [o ser racional VM]fornece a si mesmo e se-gundo o qual ele imputaa si mesmo enquanto

37 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit pp 277-27838 KANT I Criacutetica da Razatildeo Pura A549 B577 [Nota FN trad de M P dos Santos e A F Morujatildeo Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001]39 Cf a sismografia detalhada de LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 pp 251-266

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uma causa independentede toda a sensibilidade acausalidade desses fenocirc-menos40

Para reassumir a terminologiaproposta por Schopenhauer no es-crito sobre a Liberdade da Vontadea liberdade natildeo consiste no operarmas acima de tudo no ser comono mito platocircnico de Er uma vezescolhida uma dentre as vidas te-cidas pelas Moiras a alma natildeopode mais modificar o proacutepriodestino

Em que sentido Schelling apro-funda o discurso de Kant Ele fazemergir a teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel de uma teogoniade origem boumlhmiana fundada so-bre aquilo que Heidegger chamade Seynsfuge A distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia permiteexplicar a origem do mal e as-sim fundar ontologicamente a li-berdade como vivente faculdadedo bem e do mal Todavia a pre-senccedila da teoria de Kant tem con-tornos vagos tanto na argumen-

taccedilatildeo de Schelling quanto no co-mentaacuterio de Heidegger41 Isso im-pede que se volte contra essa teo-ria a objeccedilatildeo fundamental que natildeoreside mais em conciliar a liber-dade de Deus com aquela do ho-mem (a ceacutelebre pergunta do Da irade Lactacircncio Si Deus unde ma-lum) mas em conciliar a plura-lidade das escolhas humanas en-tre si encontramo-nos frente auma pluralidade de centros livrescada um dos quais deveria fazer-se mundo (ainda que como su-blinha Landucci limitadamenteagraves seacuteries causais pertinentes agravesaccedilotildees do sujeito42) uma espeacutecie demonadologia sem harmonia preacute-estabelecida A resposta de Hegela essa objeccedilatildeo consistiraacute precisa-mente na re-instituiccedilatildeo de umaharmonia preacute-estabelecida a as-tuacutecia da razatildeo que tece a tramada histoacuteria com os fios das paixotildeese dos interesses individuais nessesentido a liberdade eacute sempre his-toacuterica e coletiva o indiviacuteduo quepossui o grau de liberdade queeacute dado a seu proacuteprio tempo natildeopode ser livre ndash quando o eacute ndash senatildeo

40 KANT I Criacutetica da Razatildeo Praacutetica A175 [Nota FN trad de M Hulshof Petroacutepolis ndash Braganccedila Paulista Vozesp 131]

41 Assim Heidegger retraduz na sua terminologia a teoria do caraacuteter inteligiacutevel ldquoeste ponto profundiacutessimo damais alta amplidatildeo do saber a si proacuteprio na decidibilidade [Entschiedenheit] da sua mais proacutepria essecircncia esteponto alcanccedilam apenas alguns poucos e raramente E se [alcanccedilam] entatildeo apenas enquanto esse piscar de olhos[Augen-Blick] do mirada mais iacutentima na essecircncia tambeacutem eacute instante [Augenblick] estritiacutessima historicidade Istoquer dizer a decidibilidade natildeo recolhe a essecircncia proacutepria num ponto vazio da mera contemplaccedilatildeo ociosa do eu[Ichbegaffung Nota FN] mas a decidibilidade da essecircncia proacutepria eacute apenas o que ela eacute como resolutidade [NotaFN Entschlossenheit] Com isso queremos dizer o estar dentro no aberto da verdade da histoacuteria a insistecircnciaque antes de toda contagem e inacessiacutevel a todo caacutelculo leva a cabo o que haacute de levar a cabordquo (HEIDEGGER MSchellings Abhandlung opcit p 187)

42 LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 p 254

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dentro do processo histoacuterico e daproacutepria comunidade poliacutetica Aresposta de Schopenhauer consis-tiraacute inversamente na negaccedilatildeo detoda forma de harmonia o caraacuteterinteligiacutevel eacute sim ldquoum ato de von-tade extratemporal e indivisiacutevelrdquocujo caraacuteter empiacuterico natildeo eacute ou-tro que ldquoseu fenocircmeno [Erschei-nung] no espaccedilo tempo e causa-lidade (essas figuras do princiacutepiode razatildeo suficiente da forma dofenocircmenordquo43) mas esse ato que eacuteldquomanifestaccedilatildeo imediata [unmittel-bare Erscheinung] da vontaderdquo44natildeo eacute escolha tambeacutem das causascooperantes dos motivos45 e as-sim de um mundo (embora limita-damente agraves seacuteries causais que con-cernem agrave accedilatildeo do sujeito) Perde-se pois ou a Liberdade ou o Sen-tido natildeo eacute claro como Schellingpossa salvar a ambos

O erro de Espinosa

Resta agora enfrentar a questatildeodecisiva que consiste na tentativade compreender de que maneiraSchelling teria mostrado o errofundamental da filosofia de Espi-nosa Heidegger parece referir-

se a uma passagem do tratadode Schelling que nesse sentido eacuteinequiacutevoca

E aqui de uma vez por to-das portanto nossa opi-niatildeo determinada sobreo espinosismo Esse sis-tema natildeo eacute um fatalismoporque ele deixa as coi-sas serem conceituadasem Deus pois como mos-tramos o panteiacutesmo natildeotorna impossiacutevel pelo me-nos a verdade formal Es-pinosa haacute de ser por-tanto fatalista em virtudede uma razatildeo completa-mente diferente e inde-pendente dessa O errodo seu sistema natildeo estaacutede modo algum no fato deque ele potildee as coisas emDeus mas no fato de quesatildeo coisas ndash no conceitoabstrato dos seres criadossim ateacute mesmo substacircn-cia infinita que para eletambeacutem eacute uma coisa Porisso seus argumentos con-tra a liberdade satildeo com-pletamente deterministase de maneira alguma pan-

43 SCHOPENHAUER A Die Welt als Wille und Vostellung in Werke (W) vol II p 34144 Ibidem p 38845 O caraacuteter atinge pelo conhecimento os motivos segundo Schopenhauer Por essa razatildeo a conduta de um

homem (isto eacute a manifestaccedilatildeo do caraacuteter) pode mudar com base no grau de conhecimento ldquosem que seja liacutecitoinferir-lhe uma alteraccedilatildeo do caraacuteterrdquo pois o conhecimento natildeo pode exercitar alguma influecircncia sobre a vontadeldquomas [apenas] segundo o modo com o qual a vontade se revela nas accedilotildeesrdquo (ibidem pp 347 e 350)

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teiacutestas Ele trata tambeacutemda vontade como um fatoe demonstra entatildeo muitonaturalmente que ela ha-veria de ser determinadaem qualquer caso da efe-tuaccedilatildeo por um outro fatoo qual por sua vez eacute de-terminado por um outroe assim em diante infi-nitamente Daiacute a faltade vida do seu sistemaa falta de sentimento in-terno] da forma a cares-tia dos conceitos e expres-sotildees a intragaacutevel auste-ridade das determinaccedilotildeesque tatildeo bem coaduna coma forma de consideraccedilatildeoabstrata por isso e de ma-neira completamente con-sequente a sua visatildeo me-cacircnica da natureza46

O erro de Espinosa consiste emuma generalizada reificaccedilatildeo deDeus da natureza da vontadeHeidegger se deteacutem somente no

juiacutezo de Schelling glosa-o sim-plesmente afirmando que o errodo espinosismo natildeo eacute teoloacutegicomas ontoloacutegico o ente eacute conce-bido como coisa como presente(Das Vorhandene) jaacute que ele natildeoldquonatildeo conhece o vivente e nemmesmo o espiritual como modosproacuteprios e talvez mais originaacuteriosdo serrdquo47 Contudo Espinosa natildeoentra nunca realmente em jogo notexto de Heidegger quando eacute ci-tado o eacute de modo superficial e natildeosem uma ponta de desprezo (paradizer a verdade jamais racistacomo no Schmitt daqueles anosainda que seja difiacutecil natildeo percebero orgulho alematildeo que perpassaseu texto)48 Entretanto pelo me-nos em um caso a total ausecircnciade qualquer discussatildeo natildeo podenatildeo ser relevada Heidegger citaeste trecho de Schelling

A filosofia da natureza donosso tempo estabeleceupela primeira vez na ci-ecircncia a diferenccedila entre

46 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24147 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 10748 Relato em seguida algumas passagens de Heidegger ldquoo uacutenico sistema completo construiacutedo ateacute o fim em seu

nexo fundacional eacute a metafiacutesica de Espinosa [] Jaacute o tiacutetulo traz agrave tona o domiacutenio da exigecircncia cientiacutefica matemaacuteticandash ordine geometrico Que essa metafiacutesica ie ciecircncia do ser total se designa por ldquoEacuteticardquo isso traz agrave tona que o agire o comportamento do ser humano tem um significado determinante para o tipo de procedimento no saber e defundamentaccedilatildeo cientiacutefica Esse sistema poreacutem apenas se tornou possiacutevel com base numa singular unilateralidadesobre a qual falaremos mais tarde ademais porque os conceitos metafiacutesicos fundamentais da escolaacutestica medievalforam simplesmente acoplados no sistema com uma rara ausecircncia de criacutetica Para se levar a cabo o proacuteprio sistematomou-se a mathesis universalis a doutrina do meacutetodo cartesiana e o conceito metafiacutesico propriamente fundamen-tal adveacutem em todos os seus detalhes de Giordano Brunordquo (Ibidem p 40-41) ldquoPara evitar aqui um equiacutevoco estejaenfatizado que a filosofia de Espinosa natildeo pode ser igualada com a filosofia hebraica Jaacute apenas o fato conhecido deque Espinosa foi expulso da comunidade hebraica eacute significativo Sua filosofia eacute essencialmente determinada peloespiacuterito da eacutepoca Bruno Descartes e a escolaacutestica medievalrdquo (Ibidem p 80)

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a essecircncia enquanto elaexiste e a essecircncia en-quanto ela eacute apenas fun-damento de existecircnciaEmbora esse seja preci-samente o ponto em queela desvia da maneira amais determinada do ca-minho de Espinosa aindaassim se pocircde na Ale-manha ateacute hoje ser afir-mado que seus princiacutepiosmetafiacutesicos eram os mes-mos que os de Espinosae apesar de que precisa-mente aquela diferencia-ccedilatildeo eacute o que simultanea-mente conduz agrave diferen-ciaccedilatildeo mais determinadaentre natureza e Deusisso no entanto natildeo obs-tava a que se a acusasse demisturar Deus com a na-tureza49

Heidegger cita integralmente essapassagem Trata-se de uma pas-sagem fundamental na sua inter-pretaccedilatildeo jaacute que Schelling nela ex-prime a Seynsfuge que estaacute no cen-tro de toda leitura heideggerianaNela Espinosa desempenha umpapel central eacute a teoria da qual

Schelling se distancia no Kampf-platz filosoacutefico poderiacuteamos di-zer que Schelling identifica aquia proacutepria filosofia diferenciando-adaquela de Espinosa Ora mesmoreportando fielmente a referecircnciaa Espinosa Heidegger ignora-ocompletamente em seus comen-taacuterios Desde esse ponto o nomeEspinosa desaparece do texto porcerca das cem paacuteginas que se-guem Seriacuteamos tentados a atri-buir a essa ausecircncia uma signi-ficado sintomaacutetico de ver nela oaflorar de um problema para areflexatildeo heideggeriana como fezBalibar em um belo ensaio dedi-cado a Heidegger e Espinosa50Mas talvez seja suficiente pro-curar explicar o passo schellin-guiano para tentar compreenderse Espinosa com respeito a estepossa constituir um simples erro

O problema do mal

A passagem que citamos das In-vestigaccedilotildees sobre a Liberdade eacute achave teoacuterica que permite a Schel-ling resolver o problema do malsobre a Seynsfuge se constroacutei a te-oria schellinguiana do mal como

49 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24950Balibar defende que o silecircncio de Heidegger sobre Espinosa seja sintomaacutetico do puissant finalisme qui para-

doxalement ne cesse de hanter la penseacutee rsquoneacutegativersquo de Heidegger [Nota DSS ldquopotente finalismo que paradoxal-mente natildeo cessa de assombrar o pensamento lsquonegativorsquo de Heideggerrdquo ] (BALIBAR E Heidegger et Spinoza inSpinoza au XX siegravecle BLOCH O (sous la direction de) Paris PUF 1993 ps 327-343 343 Cf tambeacutem VAYSSE J-M Totaliteacute et finitude Spinoza et Heidegger Paris Vrin 2004

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perversatildeo da relaccedilatildeo entre os doisprinciacutepios

A pergunta fundamental nesseponto diz respeito ao sentido da-quela referecircncia a Espinosa trata-se isto eacute de compreender em quesentido Espinosa negou a distin-ccedilatildeo entre fundamento e existecircn-cia Heidegger sobre tal pontonatildeo nos ajuda de fato simples-mente natildeo explica a referecircncia seentretanto tivesse que traduzir nasua filosofia a acusaccedilatildeo de Schel-ling teria talvez dito que Espi-nosa nega a diferenccedila ontoloacutegicaSchelling parece afirmar a ausecircn-cia de fundamento em Espinosaou seja daquele princiacutepio tene-broso que embora natildeo sendo maisperceptiacutevel no mundo da formae da ordem eacute todavia pensaacutevelPara Espinosa tudo eacute luz mas luzprivada de vida e de liberdadeporque eacute luz geomeacutetrica em queDeus o mundo e ateacute a vontadesatildeo petrificados satildeo tomados porsimples coisas Quando Schellingexpotildee a teoria espinosana do malparece-me que essa interpretaccedilatildeovenha perfeitamente agrave luz

[] a forccedila que se mostra

no mal [seria] de fato com-parativamente mais im-perfeita que aquela que semostra no bem mas con-siderada em si ou fora dacomparaccedilatildeo seria ela proacute-pria todavia uma perfei-ccedilatildeo que portanto comoqualquer outra precisaser derivada de Deus Oque chamamos nisso demal eacute apenas o menorgrau da perfeiccedilatildeo o qualaparece como uma faltaapenas para a nossa com-paraccedilatildeo natildeo sendo faltaalguma na natureza Natildeose deve negar que essa se-ria a verdadeira assunccedilatildeode Espinosa51

A luz da necessidade geomeacutetricailumina embora de modo dife-rente os graus do ser tornando defato impossiacutevel a liberdade

Alguns anos depois nas Liccedilotildeesde Munique Schelling rejeitaraacuteem Espinosa precisamente esse li-mite ou seja o fato de que neleo ser existe sem sujeito excluindotodo natildeo ser toda potecircncia todaliberdade trata-se pois de um ser

51 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 246 Heidegger ao comentar tal passagem as-sente plenamente agrave interpretaccedilatildeo schellinguiana de tal aspecto sobre a teoria espinosana ldquoConcede-se que o malvalha como o natildeo-bom como falta como imperfeito o que falta natildeo estaacute aiacute natildeo-estar-aiacute natildeo estar presente -mdashassim chamamos o natildeo-ente Daquilo que segundo sua essecircncia eacute o que natildeo eacute natildeo pode contudo ser dito queseja um ente Assim a efetividade do mal eacute apenas uma ilusatildeo Aquilo que sempre eacute efetivo soacute pode ser o positivoE o que haacute pouco chamamos de mal e jaacute por nomeaacute-lo falseamo-lo em positivo esse imperfeito eacute na medida emque eacute sempre apenas um grau em cada caso diferente do bem ndash assim ensina Espinosardquo (M Heidegger SchellingsAbhandlung op cit p 122)

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VITTORIO MORFINO

impotente que natildeo tem em si o po-der de ser diverso daquilo que eacute52E na Filosofia da Revelaccedilatildeo (liccedilatildeoVII) faraacute dele o campeatildeo da fi-losofia negativa a que contraporaacutesua filosofia como filosofia posi-tiva

se no entanto Espinosausa aquela verdade ge-omeacutetrica como exemplopara elucidar como se-gundo a sua opiniatildeo ascoisas singulares seguemda natureza de Deus asaber de uma maneiraigualmente atemporaleterna entatildeo a sua expli-caccedilatildeo do mundo eacute bemanti-histoacuterica e em opo-siccedilatildeo a ela ao contraacuterio adoutrina cristatilde pela qualo mundo seria efeito deuma livre decisatildeo de umfato haveria de ser cha-mada uma explicaccedilatildeo his-toacuterica53

Se entatildeo a filosofia de Schellingfaz vacilar a loacutegica de Hegel jaacuteque mostra a impossibilidade doconceito de retraduzir-se sem re-siacuteduos no tempo de permear de sia temporalidade e a histoacuteria nelaanulando de fato a eventualidade

ela reconhece o erro fundamentalde Espinosa na ausecircncia total dehistoacuteria de um acircmbito humanoque de algum modo exceda a luzda necessidade geomeacutetrica Masse trata realmente de um erroOu existe no pensamento de Es-pinosa alguma coisa que perturbaa posiccedilatildeo da simples alternativaSchelling-Hegel

Coisas e pessoas

Antes de passar agraves conclusotildees al-guns breves pontos sobre a leituraschellinguiana de Espinosa Se-riacuteamos tentados a dizer que natildeo eacutetanto Espinosa que reifica Deusos modos e a vontade quantoprincipalmente Schelling que rei-fica uma palavra de Espinosa (eacutecerto pode-se reificar tambeacutem otermo res) fixando o seu conteuacutedo(de modo abstrato) exteriormenteagrave estrateacutegia teoacuterica na qual estaacuteinserida Eacute verdade que Espinosaassocia o termo res tanto a Deusquanto aos modos (natildeo agrave vontadeporque esta se trata de um ensrationis) e contudo natildeo se podeesquecer o fato de que no escoacute-lio I da proposiccedilatildeo 40 da segundaparte da Eacutetica haja uma criacutetica aostranscendentais

52 SCHELLING FWJ Muumlnchener Vorlesung in SW vol 5 pp 104-10553 SCHELLING FWJ Philosophie der Offenbarung in SW vol 6 pp 138-139

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

() a Mente humana po-deraacute imaginar distinta-mente em simultacircneo tan-tos corpos quantas ima-gens possam ser forma-das simultaneamente emseu proacuteprio corpo Oraquando as imagens seconfundirem completa-mente no corpo tambeacutema Mente imaginaraacute confu-samente todos os corpossem qualquer distinccedilatildeoe os compreenderaacute comoque sob um uacutenico atri-buto a saber sob o atri-buto do Ser da Coisa etcIsso pode tambeacutem ser de-duzido de que as imagensnem sempre tecircm o mesmovigor e de outras causasanaacutelogas a estas que natildeoeacute preciso explicar aquipois para o escopo ao qualvisamos basta considerarapenas uma Com efeitotodas se reduzem a queestes termos significamideias confusas em sumograu54

O termo res indica uma ideia con-fusa que deriva tanto da incapa-cidade do corpo de conservar os

traccedilos de um nuacutemero indefinidode encontros com os corpos ex-ternos quanto de traccedilos de con-tornos indefinidos efeitos de en-contros receacutem mantidos trata-sepois de uma noccedilatildeo que perdeuou nunca possuiu o seu objetocomo escreve Macherey eacute umaquase-noccedilatildeo uma maneira defalar que se serve de articulaccedilatildeono discurso sem deter uma sig-nificaccedilatildeo racional nela mesmardquo55Natildeo haacute sentido algum assim emfixar a atenccedilatildeo sobre ocorrecircnciasdo termo res na escrita espino-sana perdendo a estrateacutegia teoacute-rica que a comanda56 para darapenas um exemplo se tomarmosem consideraccedilatildeo as duas primei-ras proposiccedilotildees da segunda parteda Eacutetica (Cogitatio attributum Deiest sive Deus est res cogitans Ex-tensio attributum Dei est sive Deusest res extensa) seria de todo ilu-soacuterio pocircr o acento sobre a reifica-ccedilatildeo de Deus ndashextrapolando o frag-mento () Deus est res () ndash semapreender a estrateacutegia que aiacute estaacuteoperando um trabalho de redefi-niccedilatildeo da linguagem cartesiana dastrecircs substacircncias agora no sentidoda teoria da substacircncia uacutenica daqual pensamento e extensatildeo satildeoatributos

54 Eth in G Bd II pp 120-121 [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira da Eacutetica doravante tr br Grupo de EstudosEspinosanos da USP Satildeo Paulo Edusp 2015 p 199]

55 MACHEREY P Introduction agrave lrsquoEacutethique de Spinoza II Paris PUF 1997 p 30756 Trata-se para ser exato de 893 ocorrecircncias (M Gueret ndash A Robinet ndash Tombeur Spinoza Ethica Concordances

Index Listes des freacutequences Tables comparatives Louvain-la-Neuve Cetedoc 1977 pp 289-298)

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Voltemos agrave leitura de SchellingQue coisa ele entende por coisaUma unidade fechada e privadade relaccedilotildees com o externo A=ANesse sentido em Espinosa natildeoexiste coisa alguma Deus eacutecausa de si no mesmo sentido emque eacute causa imanente dos modos(a sua essecircncia eacute pois potecircnciaprodutiva) os modos satildeo compos-tos instaacuteveis cuja essecircncia residena complexidade das relaccedilotildees ins-tituiacutedas entre suas partes e como ambiente externo (e Jonas com-preendeu com agudeza a origina-lidade da teoria do organismo es-pinosana) a vontade enfim natildeopassa de um puro ens rationis de-fronte agraves voliccedilotildees singulares (quesatildeo ao mesmo tempo intelecccedilotildees)e elas mesmas longe de seremcoisas satildeo o lugar de condensa-ccedilatildeo de complexas tramas relaci-onais que natildeo apenas natildeo reifi-cam o indiviacuteduo mas impedemque este seja pensado como tal emsentido estrito (como ao contraacute-rio o fazem tanto Schelling comoHeidegger) abrindo-o a uma di-nacircmica transindividual57 Talvezentatildeo a acusaccedilatildeo schellinguianade reificaccedilatildeo deva ser compreen-dida no seio da ideologia juriacute-dica (burguesa certamente - como

sublinha Althusser58 - mas reto-mada do direito romano e em par-ticular das Istitutiones de Gaio)res eacute aquilo que natildeo eacute personaaquilo que natildeo eacute dotado de li-berdade e assim de responsabi-lidade Natildeo eacute por acaso que a in-dicaccedilatildeo do erro fundamental deEspinosa faccedila um conjunto emSchelling com uma teoria do in-diviacuteduo humano entendido comopersona que eacute enquanto tal res-ponsaacutevel pelas proacuteprias accedilotildees natildeoporque seja livre no tempo (todaaccedilatildeo singular eacute de fato determi-nada por motivos e entatildeo ne-cessaacuteria) mas porque pocircde an-tes que o tempo fosse determi-nar a proacutepria essecircncia (tanto Kantquanto Schelling e Schopenhauerinsistem sobre a responsabilidadeque sente o homem por aquilo queeacute e por aquilo que faz como sin-toma desse ato originaacuterio de es-colha do proacuteprio caraacuteter inteligiacute-vel) Talvez entatildeo a identificaccedilatildeodo erro espinosano por parte deSchelling natildeo aponte tanto a rei-ficaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto prin-cipalmente a impossibilidade desua classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave tra-diccedilatildeo teoloacutegico-juriacutedica da identi-dade pessoal que vecirc sua primeiragrande expressatildeo moderna no ca-

57 Cf MORFINO V Ontologia della relazione e materialismo della contingenza in ldquoOltrecorrenterdquo 6 2002 pp129-144 Cfr tambeacutem MONTAG W Chi ha paura della moltitudine in ldquoQuaderni Materialisttirdquo 2 2003 pp63-79 Inspiraccedilatildeo de ambos BALIBAR E Spinoza il transindividuale tr it di MARTINO L Di PINZOLO LMilatildeo Ghibli 2002

58 ALTHUSSER L Reacuteponse a John Lewis Paris Maspero 1972 p 73

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

piacutetulo sobre Identidade e diferenccedilados Essay de Locke59 Nesse sen-tido o problema eacute sim o deter-minismo mas talvez de modoainda mais radical a natildeo impu-tabilidade juriacutedica de uma accedilatildeo auma multidatildeo60 que coisa eacute comefeito o indiviacuteduo na teoria de Es-pinosa se natildeo a configuraccedilatildeo de-terminada de uma multidatildeo (deideias e de corpos)

Aleacutem do bem e do mal

Voltando agrave questatildeo do mal comoprivaccedilatildeo eacute verdade que Espinosaparece autorizar uma tal leituraespecialmente nas cartas a Blyen-berg61 Trata-se poreacutem a meumodo de ver da necessidade decolocar-se sobre o terreno linguiacutes-tico do correspondente62 Pode-sereencontrar em seu pensamento

uma teoria bem mais profundado bem e do mal segundo a qualestes natildeo corresponderiam a umgrau maior ou menor de perfei-ccedilatildeo do ser mas principalmente aum efeito imaginaacuterio do precon-ceito antropocecircntrico a necessi-dade natural se encontra em re-alidade aleacutem do bem e do mal ea ontologizaccedilatildeo desses conceitosnatildeo eacute outra coisa senatildeo a con-sequecircncia da potecircncia da imagi-naccedilatildeo que potildee o homem comocentro e medida do ser63 QuandoEspinosa depois na quarta parteda Eacutetica define positivamente obem e o mal pode fazecirc-lo apenasem termos plurais e relativos ouseja natildeo como escolha intempo-ral e absoluta entre amor cristatildeo eegoiacutesmo (isto eacute a alternativa pro-posta por Schelling) mas na di-mensatildeo conjuntural do encontrodos corpos as coisas que fazem

59 Neste capiacutetulo satildeo perfeitamente compreensiacuteveis os enjeux teoloacutegico-juriacutedicos do conceito de identidade pes-soal a possibilidade da consciecircncia de redobrar-se sobre a linha tempo reconhecendo no passado aquele mesmoself que eacute agora presente garante a infalibilidade da justiccedila divina que pode perscrutar nos coraccedilotildees embora natildeodaquela terrena que pode ser enganada pela linguagem

60 Eacute ceacutelebre o passo hobbesiano em que a discriminaccedilatildeo entre povo e multidatildeo passa precisamente por esseponto O povo eacute uno tendo uma soacute vontade e a ele pode atribuir-se uma accedilatildeo mas nada disso se pode dizer deuma multidatildeo (Hobbes T De cive XII 8 in M vol II p 291) [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira de Renato JanineRibeiro Satildeo Paulo Martins Fontes 2002 p189]

61 Esta passagem [de Espinosa] parece ser particularmente relevante na leitura de Schelling seguida por Heideg-ger ldquo[] a privaccedilatildeo natildeo eacute o ato de privar mas simples e mera carecircncia a qual natildeo eacute em si nada outro que umente de razatildeo ou seja uma espeacutecie de pensamento que formamos quando confrontamos as coisas entre si Diga-mos por exemplo que o cego eacute privado da vista porque somos levados a imaginaacute-lo como vidente por efeito doconfronto que fazemos seja com os outros que vecircem seja com o seu estado precedente E porquanto consideramoseste homem deste modo isto eacute comparando a sua natureza com aquela dos outros ou com aquela que perdeupor isso afirmamos que a visatildeo pertence agrave sua natureza e que portanto dela ele foi privado Mas se se considerao decreto de Deus e a sua natureza natildeo podemos afirmar daquele homem mais que a pedra que tenha lhe sidoretirada a vistardquo (Espinosa a Blyenberg XXI in G Bd IV p 128 tr it DROETTO A (org)Turim Einaudi 1938pp 133-134)

62 Eacute um dado de fato relevante que as 11 ocorrecircncias do termo privatio na Eacutetica natildeo digam respeito nunca agravequestatildeo do mal mas exclusivamente agrave da falsidade (GUERET M e ROBINET A Spinoza Ethica ConcordancesIndex Listes des freacutequences Tables comparatives p 275)

63 Eth I app pp 81-82 [Nota DSS trad br op cit pp 109-121]

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com que se conserve a proporccedilatildeode movimento e repouso que aspartes do Corpo humano tecircm en-tre si satildeo boas e maacutes ao contraacuterioas que fazem com que as partesdo Corpo humano tenham entresi outra proporccedilatildeo de movimentoe repouso64

Para Espinosa o homem temtanto direito a existir e a agirquanto o tem o leatildeo e o gato odireito equivale agrave sua potecircnciaMas ele natildeo pode escolher parasi sua essecircncia (em uma atempo-ralidade que ainda que natildeo pre-cedendo o tempo deve ser mesmoassim um lugar outro com rela-ccedilatildeo ao tempo) tanto quanto natildeopode escolher para si um corpo(satildeo ou doente) uma mente (satilde oudoente) um sexo uma cor de peleum ambiente um clima uma fa-miacutelia uma sociedade uma liacuten-gua um periacuteodo histoacuterico Maisnatildeo existe na filosofia de Espinosauma essecircncia feita de tal modoque preceda a existecircncia e nessesentido talvez ganhe pleno sig-nificado o silecircncio de Heideggersobre a ausecircncia da Seynsfuge Aessecircncia se faz na complexidadedas relaccedilotildees (dos corpos das men-tes com o ambiente com a famiacute-lia com a liacutengua com o proacutepriotempo) sem que tais relaccedilotildees to-

mem a coloraccedilatildeo do Zeitgeist quereduz sua complexidade e anula acontingecircncia As paixotildees natildeo satildeopropriedade do indiviacuteduo que satildeoativadas por motivos mas verda-deiras e proacuteprias forccedilas que exis-tem entre o indiviacuteduo e a causaque o gerou como aparece nasproposiccedilotildees 5 e 6 da quarta parte

Proposiccedilatildeo V A forccedila e ocrescimento de uma pai-xatildeo qualquer e sua per-severanccedila no existir natildeosatildeo definidos pela potecircn-cia pela qual nos esforccedila-mos para perseverar noexistir mas pela potecircn-cia da causa comparada agravenossa ()

Proposiccedilatildeo VI A forccedila deuma paixatildeo ou afeto podesuperar as demais accedilotildeesou a potecircncia do homemde tal maneira que o afetoadere pertinazmente aohomem65

Como escreve Montag ldquoos encon-tros com outros corpos necessaacuteriopara a conservaccedilatildeo da coisa singu-lar inclui simultaneamente inte-raccedilotildees regulares e lsquofortuitasrsquordquo 66

64 Eth IV pr 39 p 239 [Nota DSS trad br op cit p 439]65 Eth IV pr 5 e 6 p 214 [Nota DSS trad br op cit p 389]66 MONTAG W Bodies masses power Spinoza and his contemporaries London-New York 1999 p 3467 As ocorrecircncias do termo occursus satildeo extremamente raras sob a pena de Espinosa Uma entretanto eacute demais

66 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 43-69ISSN 2317-9570

O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

O occursus67 o encontro torna-se entatildeo o conceito chave na de-terminaccedilatildeo da forccedila (vis) de umapaixatildeo encontro entre potecircncias(causae externae potentia cum nos-tra comparata) cujas despropor-ccedilotildees podem produzir a dominacircn-cia pertinaz (pertinaciter) de umapaixatildeo concernente ao comporta-mento complexivo de um homemsem que isso seja atribuiacutedo agrave imu-tabilidade de seu caraacuteter (isto eacutese natildeo a uma escolha intempo-ral pelo menos a uma constitui-ccedilatildeo essencial) Mas natildeo somenteo encontro pode inclusive mudara identidade mesma de um ho-mem o seu caraacuteter (na termino-logia kantiana) precisamente por-que a identidade natildeo reside emuma escolha intemporal mas emuma determinada proporccedilatildeo demovimento e de repouso entre aspartes Eacute o caso do ceacutelebre exem-plo de Gocircngora citado por Espi-nosa

Pois natildeo ouso negar queo Corpo humano manti-das a circulaccedilatildeo do san-gue e outras coisas pe-las quais se estima que oCorpo vive contudo possa

mudar para uma natu-reza de todo diversa dasua De fato nenhuma ra-zatildeo me obriga a sustentarque o Corpo natildeo morre se-natildeo mudado em cadaacutevere mais a proacutepria expe-riecircncia parece persuadir-me do contraacuterio Comefeito agraves vezes ocorre aum homem padecer taismudanccedilas que natildeo eacute faacute-cil dizer que continue omesmo como ouvi contarsobre um Poeta Espanholque fora tomado pela do-enccedila e embora se tenhacurado ficou poreacutem tatildeoesquecido de sua vida pas-sada que natildeo acreditavaserem suas as Faacutebulas eTrageacutedias que escrevera ecertamente poderia ser to-mado por um bebecirc adultose tambeacutem tivesse esque-cido a liacutengua vernaacutecula68

Nesse contexto teoacuterico a liber-dade toma duas faces 1) a liber-dade como idecircntica ao grau de po-tecircncia e como contraacuterio de coaccedilatildeo2) a liberdade como causalidadeadequada da accedilatildeo A primeira

significativa no escoacutelio da prop 29 da segunda parte da Eacutetica quando satildeo conectados conhecimento confuso epercepccedilatildeo da coisas ex communi naturae ordine hoc est () ex rerum () fortuito occursu (G BdII p 144) A im-portacircncia do tema do occursus em Espinosa foi sublinhado por DELEUZE G Spinoza Philosophie pratique ParisEditions de Munuit 1981 passim cf tambeacutem MARCUCCI M Occursus rsquoCosmologia negativarsquo e terzo genere inDEL LUCCHESE F MORFINO V (a cura di) Sulla scienza intuitiva in Spinoza Ontologia politica estetica MilanoGhibli 2003 pp 137-153

68 Eth IV prop 39 schol p 240 [Nota DSS trad br op cit p 441]

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diz respeito a todos os seres natu-rais quanto mais estes satildeo poten-tes mais satildeo livres A segunda eacutea liberdade da razatildeo enquanto co-nhecimento que nos permite agirndash sempre de forma parcial e confli-tiva poreacutem de outro modo umaparte da natureza se faria o todo ndashna complexidadde de relaccedilotildees quenos constitui A segunda concep-ccedilatildeo que para os corpos poliacuteticosse identifica com um processo dedemocratizaccedilatildeo estaacute todavia im-plicada na primeira enquanto arazatildeo natildeo eacute outro da natureza masum grau de potecircncia seu

O erro de Espinosa consistepois natildeo tanto na reificaccedilatildeoda vontade quanto na refutaccedilatildeomais precisa de toda forma de an-tropocentrismo que procure atri-buir a ela um impeacuterio no impeacute-rio da natureza E se esse erro

fosse precisamente o ponto cegodo idealismo e natildeo tanto a ne-gaccedilatildeo da histoacuteria (seja entendidacomo marcha da ideia ou comoadvento do Cristo) mas precisa-mente a desconstruccedilatildeo ante litte-ram da dupla natureza-histoacuteriaNesse sentido abre-se talvez umaulterior via de interpretaccedilatildeo qualseja ler o espinosismo natildeo tantocomo filosofia da luz em que anecessidade geomeacutetrica petrifica avida como Medusa sob seu olharmas como filosofia de um princiacute-pio tenebroso jamais sobrepujadopela luz em que a luz (ou seja aordem e a forma) e o espiacuterito (ouseja a razatildeo humana) natildeo satildeo se-natildeo efeitos aleatoacuterios ndash em nadadesejados porque a treva natildeo eacutedesejo mas potecircncia ndash do com-plexo jogo das trevas

Referecircncias

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

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Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225619

O Drama da Imanecircncia Gebhardt Deleuze Benjamin eo Infinito Barroco de Espinosa

[The Drama of Immanence Gebhardt Deleuze Benjamin and Spi-nozarsquos Baroque Infinite]

Henrique Piccinato Xavier

Resumo Investigando a filosofia de Espinosa visamos atravessar odrama da imanecircncia elaborado por Walter Benjamin em Origem dodrama barroco alematildeo isto eacute atravessar a peculiar interpretaccedilatildeo me-lancoacutelica que relaciona a ideia de imanecircncia presente na filosofia mo-derna agrave arte de sua eacutepoca ou seja a barroca Mais que um dramapara um olhar espinosano tal interpretaccedilatildeo eacute uma trageacutedia pois pro-duz uma teatralidade aporeacutetica que dilapida a positividade da ideiade imanecircncia Para compreendermos esta trageacutedia seraacute preciso pas-sar por dois preacircmbulos filosoacuteficos ao drama Rembrandt e Espinosade Carl Gebhardt e A dobra Leibniz e o barroco de Gilles Deleuze Damelancoacutelica trageacutedia para algo mais feliz reelaboraremos o dramaprocurando desfazer tais aporias conduzindo-nos agrave compreensatildeo dapositividade da imanecircncia ldquobarrocardquo em EspinosaPalavras-chave Espinosa Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter Ben-jamin Arte Barroca

Abstract With Espinosarsquos philosophy we aim to confront the dramaof immanence developed by Walter Benjamin in his The Origin of theGerman Tragic Drama in other words we aim to confront a peculiarmelancholic interpretation that relates the idea of immanence presentin modern philosophy to the art of its time that is baroque art Morethan a drama in a Spinosist perspective such interpretation is atragedy because it produces an aporetic theatricality that demolishesthe positivity in the idea of immanence To understand this tragedyit will be necessary to go through two philosophical preambles to thisdrama Rembrandt and Spinoza by Carl Gebhardt and Fold Leibnizand the Baroque by Gilles Deleuze We will rework the drama fromthe melancholic tragedy to something happier trying to undo theseaporias leading us to an understanding of the positivity of thebaroque immanence in SpinozaKeywords Spinoza Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter BenjaminBaroque Art

Doutor em Filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) E-mail henriquexavier0gmailcomORCIDhttpsorcidorg0000-0001-7325-0252

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HENRIQUE PICCINATO XAVIER

I - Preacircmbulos ao drama

O absolutamente infinito ou sejaa substacircncia (ou a natureza) nafilosofia de Espinosa eacute ordenadasegundo leis eternas universaise imutaacuteveis como nos afirma acada passo da Parte I da EacuteticaMas o que de fato satildeo estasleis eternas senatildeo a pura movi-mentaccedilatildeo da transformaccedilatildeo deauto-diferenciaccedilatildeo infinita de simesmo uma atividade infinita deuma essecircncia atuosa Lembremosda Proposiccedilatildeo 16 da parte I daEacutetica ldquoDa necessidade da natu-reza divina devem seguir infini-tas coisas em infinitos modos (istoeacute tudo que pode cair sob o inte-lecto infinito)rdquo (ESPINOSA 2015p 75) Assim a substacircncia pro-duz infinitas coisas sob infinitosatributos seus modos infinitos emodificaccedilotildees finitas Ademais sa-bemos que esta essecircncia atuosanatildeo age segundo um fim mas fluiabsolutamente livre pois a essecircn-cia atuosa da substacircncia conce-bida como causa sui radica na suacompleta liberdade afinal a subs-tacircncia eacute a causa de si ou seja suaexistecircncia exprime a si mesma eque por sua vez natildeo eacute limitadapor nada e nem por si mesmasendo ela mesma a abertura deuma transformaccedilatildeo infinita semteleologia e sem finalismo Defato pela relaccedilatildeo de imanecircncia dasubstacircncia infinita ateacute suas modi-

ficaccedilotildees finitas na natureza natildeohaacute nenhum evento excepcionalpara aleacutem de suas leis eternas porisso nela natildeo pode haver o mi-lagre como evento que se sairiada ordem da natureza pois nestecaso a natureza deixaria de sera natureza Exatamente por suaessecircncia atuosa radicar na maiscompleta liberdade em Espinosahaacute uma natureza absolutamenteinfinita que em sua imanecircncia eacutenecessariamente e por completosempre renovada ou seja temosuma natureza que apenas produzcoisas ideias e essecircncias singula-res

Se a passagem do infinito aofinito eacute deduzida como afirmar-mos a partir da Proposiccedilatildeo 16 daParte I da Eacutetica a operaccedilatildeo in-versa ou seja a passagem entreo finito (modos finitos) e o infinito(a substacircncia uacutenica) seraacute realizadapela siacutentese dinacircmica como lei deinteraccedilatildeo entre partes que natildeo se-gue uma finalidade preestabele-cida ou um modelo exterior masconstitui um infinito de relaccedilotildeesque produz a si mesmo em umaordenaccedilatildeo imanente este e umdos pontos centrais da filosofia deEspinosa Contudo ela nos co-loca diante do seguinte problemacomo agir individualmente nointerior da finitude sendo partede um fluxo dinacircmico e absoluta-mente infinito Como desde seuinterior natildeo apenas ser uma parte

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O DRAMA DA IMANEcircNCIA GEBHARDT DELEUZE BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DEESPINOSA

mas ao se-la tambeacutem jaacute tomarparte ativa neste infinito Cremosque o grande problema reside nadificuldade para entender a po-sitividade de um sistema abertoainda mais quando este e absolu-tamente infinito

Heinrich Woumllfflin em Renas-cenccedila e barroco1 (1888) e em Con-ceitos fundamentais da histoacuteria daarte2 (1915) textos fundantes dosestudos contemporacircneos acercada pintura claacutessica e barrocamostra-nos como o estilo barrocoproduz a liberaccedilatildeo das formas deseu isolamento o princiacutepio da re-presentaccedilatildeo barroca sendo a subs-tituiccedilatildeo da composiccedilatildeo de formasfechadas da arte claacutessica por ummovimento visual em direccedilatildeo a umaunidade entre parte e todo queem uma visualidade fluida dis-solve a anterior estrutura riacutegidados contornos das figuras do es-tilo claacutessico Woumllfflin afirma oentendimento da experiecircncia dapintura do XVII como um orde-namento que se transforma diantedos olhos do observador

Se consideramos a passagementre finito e infinito um dos gran-des desafios que a filosofia de Es-pinosa enfrenta como emendar

(ou seja curar) um melancoacutelicoproblema matemaacutetico epistemo-loacutegico e ontoloacutegico produzindoa continuidade na passagem en-tre noacutes seres limitados (ou sejamodos finitos da substacircncia infi-nita) e o absolutamente infinitoindivisiacutevel (ou seja a substacircnciauacutenica) A emenda da incomensu-rabilidade numeacuterica e imaginaacuteriado infinito iraacute garantir ao enten-dimento a conduccedilatildeo a uma novasiacutentese intelectual de um infinitopositivo este natildeo mais definidoem termos negativos indefinidosou potenciais (que se contentamem delinear a constacircncia ou in-constacircncia de relaccedilotildees truncadasna justaposiccedilatildeo de partes) massim como um absolutamente infi-nito real em ato positivo e indi-visiacutevel

Ao abordarmos portanto apassagem entre finito e infinito3

na filosofia de Espinosa e as afir-maccedilotildees de Woumllfflin acerca do bar-roco surge-nos a pergunta comoconceber ordem em uma naturezaque mescla a parte e o todo e pre-servar uma identificaccedilatildeo sem queesta se torne uma identidade es-tanque tanto na filosofia que ex-pressa o absolutamente infinito da

1 WOLFFLIN H (2005) Renascenccedila e barroco Satildeo Paulo Perspectiva2 WOLFFLIN H (1984) Conceitos fundamentais da Histoacuteria da Arte Satildeo Paulo Martins Fontes 19843 O presente artigo faz parte de um conjunto maior de trabalho e pesquisa Assim as questotildees aqui propostas

podem ser lidas em continuidade agraves questotildees trabalhadas no artigo lsquoEspinosa melancolia e o absolutamente infi-nito na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrsquo (XAVIER 2016) que tematiza a passagem entre finito e infinitona filosofia de Espinosa

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substacircncia como no rompimentoda forma pela visualidade infini-tamente aberta do barroco Cre-mos que esta questatildeo constitui umdos problemas centrais de umaaproximaccedilatildeo criacutetica da filosofia deEspinosa agrave arte de sua eacutepoca Pararespondecirc-la iremos nos contrapora uma das mais ceacutelebres e histoacuteri-cas interpretaccedilotildees da relaccedilatildeo en-tre arte barroca e filosofia da ima-necircncia o drama da imanecircncia cu-nhado por Walter Benjamin Vere-mos que em uma perspectiva es-pinosana para aleacutem de um merodrama tal interpretaccedilatildeo seraacute umamelancoacutelica trageacutedia produzindouma teatralidade aporeacutetica quedilapida toda e qualquer positi-vidade para a ideia de imanecircnciaPara darmos conta deste dramaprecisaremos antes passar breve-mente por dois preacircmbulos duasinterpretaccedilotildees contemporacircneasuma de Gebhardt outra de De-leuze que relacionam a filosofiado seacuteculo XVII agrave arte seiscentista

Preacircmbulo I - Gebhardt Rem-brandt e Espinosa 1927

Em seu claacutessico texto intitu-lado Rembrandt e Espinosa CarlGebhardt em uma aproximaccedilatildeoentre a obra do filoacutesofo e a do pin-tor barroco afirma que

barroco daacute-lhes a inqui-etude de esboccedilos pri-vados de ordem e natildeofecha o ponto de vistaque devemos ter sobreeles a fim de que ainfinidade da obra dis-forme natildeo seja restrin-gida pela limitaccedilatildeo deuma forma (GEBHARDT2000 p106)

Gebhardt entende a composiccedilatildeoaberta barroca como algo privadode ordem cujo efeito produziriauma obra que natildeo seria restrin-gida pela forma fechada Prosse-guindo o autor extrapola tal ideiade matriz woumllffliniana ateacute chegaragrave radical conclusatildeo de que ldquoo Re-nascimento definiu a beleza comoa conspiraccedilatildeo das partes e a en-controu realizada na razatildeo natu-ral contudo a beleza do barrocoenquanto uma forma natildeo limi-tada eacute irracionalrdquo (GEBHARDT2000 p107) Gebhardt concluialgo sobre o barroco que buscaraacuteaproximar de Espinosa mas quecontradiz a proacutepria letra do filoacute-sofo De fato Gebhardt afirmaque algo por natildeo ser limitado seriairracional quando em Espinosaverificamos claramente o contraacute-rio pois de um lado a substacircn-cia ou o absolutamente infinito eacuteilimitado (em contraposiccedilatildeo ao li-mite que define o finito) mas eacute omais inteligiacutevel ou o mais racional

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de todos os seres (como vemos de-monstrado na Parte I da Eacutetica) suapotecircncia eacute livre porque determi-nada apenas por si mesma sendopor isso causa de si que flui na-turalmente por si mesma despro-vida de uma causa externa ou umlimite externo Por ser causa de siabsolutamente infinita eacute inteligiacute-vel pois a inteligibilidade decorredo conhecimento da causalidade ede suas accedilotildees ou seja a ausecircnciade limites conveacutem perfeitamentecom a razatildeo Contudo cremosque Gebhardt associa a deformi-dade e o irracionalismo agrave filosofiade Espinosa pois estaacute influenci-ado pela leitura de tradiccedilatildeo alematildeque vecirc em Espinosa uma opera-ccedilatildeo de dissoluccedilatildeo do singular noseio do absoluto como fora alme-jada pelos romacircnticos (Schellingprincipalmente) e que a partirde Hegel (inspirado em Bayle)toma a forma negativa de um acos-mismo4 Considerando na filoso-fia de Espinosa o absoluto comoindiferenciaccedilatildeo e indeterminaccedilatildeoabsolutas faltaria a essa filoso-fia um princiacutepio de identidadepara os modos finitos existindo

entatildeo realmente apenas a subs-tacircncia desprovida de qualidadese de diferenccedilas ndash portanto inde-terminada donde impensaacutevel ouirracional Em outras palavraso infinito eacute irracional e o finitoimpensaacutevel Gebhardt reproduzquase literalmente o texto hege-liano alegando que em Espinosaldquoabertura ao infinito da substacircn-cia acabaria com a possibilidadede existir identidadesrdquo e aindamais ele redobra essa afirmaccedilatildeopara o barroco de Rembrandt cujaobra seria uma arte espinosistaacosmista ldquoa categoria do bar-roco eacute a da substancialidade se-gundo a qual tudo o que eacute particu-lar possui apenas uma existecircnciarelativa tanto que a existecircncia ve-rificaacutevel pertence apenas agrave totali-dade infinita eis o que custo a di-zer (em relaccedilatildeo agraves coisas particu-lares) que soacute existe a substacircnciardquo(GEBHARDT 2000 p107)

4 Eacute vasta e complexa a criacutetica que Hegel faz a Espinosa contudo gostaria de insistir que um de seus pontos altoseacute identificaccedilatildeo da filosofia de Espinosa ao acosmismo Segundo Hegel na demonstraccedilatildeo espinosana da unidadeabsoluta da substacircncia o sujeito necessariamente se perderia se diluiria neste absoluto excluindo a possibilidadedo principio ocidental da individualidade Em grande parte a proacutepria dialeacutetica hegeliana e sua ontologia seriama tentativa de superar este dilema Nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de 1825-26 Hegel escreve no paraacutegrafode abertura de seu artigo sobre Espinosa ldquoEsta profunda unidade de sua filosofia [de Espinosa] tal como ela foiexpressa na Europa ndash o espiacuterito o finito e o infinito idecircnticos em Deus e natildeo mais como um terceiro termo[]rdquoe mais adiante no mesmo paraacutegrafo ele explicita o acosmismo de Espinosa ldquoo modo como tal [definido por Espi-nosa] eacute justamente o natildeo-verdadeiro e somente a substacircncia eacute verdadeirardquo (HEGEL 1970 Leccedilons sur lrsquohistoire dela philosophie Paris Gallimard verbete sobre Espinosa)

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Preacircmbulo II - Deleuze A dobraLeibniz e o barroco 1988

Gilles Deleuze na conclusatildeo de ADobra Leibniz e o Barroco segue eamplia uma ideia central no livrode Gebhardt de que obra de artebarroca opera a interaccedilatildeo ativa deuma continuidade entre o internoe o externo em um turbilhatildeo demovimentos que parece natildeo se de-limitar por nada nem por si sendocomo um gesto que se expandepara aleacutem de si mesmo em umamultiplicidade de relaccedilotildees simul-tacircneas5

O quadro eacute uma parte doinfinito que transborda damoldura a estaacutetua eacute umturbilhatildeo do rio infinitoque uiva por atraveacutes daigreja barroca e o espaccedilomesmo da igreja se cons-titui num quadro de altare uma estaacutetua natildeo eacute nadaoutro que a nave do infi-nito (GEBHARDT 2000p107)

Na versatildeo desdobrada de Deleuzeem uma das passagens mais belasdo livro

Se o Barroco instaurouuma arte total ou umaunidade das artes issose deu primeiramente emextensatildeo tendendo cadaarte a se prolongar emesmo a se realizar na se-guinte que a transbordaObservou-se que o Bar-roco restringiria frequen-temente a pintura e a cir-cunscreveria ao retaacutebulosmas isso ocorreria porquea pintura sai da sua mol-dura e realiza-se na es-cultura em maacutermore po-licromado e a esculturaultrapassa-se e realiza-sena arquitetura e a arqui-tetura a sua vez encon-tra na fachada uma mol-dura mas essa proacutepriamoldura desloca-se do in-terior e coloca-se em re-laccedilatildeo com a circunvizi-nhanccedila de modo que rea-liza a arquitetura no urba-nismo (DELEUZE 1991p187)

Ainda que o livro de Deleuze sejasobre Leibniz e o barroco a forccedilade tal ideia ndash que apresenta nas

5 Esta caracteriacutestica torna-se extremamente patente na produccedilatildeo artiacutestica seiscentista por exemplo no dramaem que palco fictiacutecio era posto no proacuteprio palco ou quando o auditoacuterio era incluiacutedo na cena (BENJAMIN W Ori-gem do drama barroco alematildeo Satildeo Paulo Brasiliense 1984) nas pinturas que possuem molduras pintadas dentroda sua representaccedilatildeo ou quando as proacuteprias molduras se tornam tatildeo importantes quanto as obras de arte por elascercadas no uso de espelhos da que refletem espaccedilos para aleacutem da proacutepria superfiacutecie da tela como nas Meninas deVelaacutezquez ou ainda na inacreditaacutevel dinacircmica dos movimentos em todas as direccedilotildees nas esculturas de Bernini

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obras de arte seiscentistas umacausa atuosa que faz com que elasse expandam tanto internamentequanto externamente em um con-tiacutenuo como uma multiplicidadede relaccedilotildees ativas ndash iraacute abalar aargumentaccedilatildeo deleuziana acercade Leibniz Ora a tal ideia natildeonos afastaria de Leibniz pois aforccedila desta poeacutetica que nos levaa interpretaacute-la como expressatildeo daideia de um infinito em ato ou ab-solutamente infinito que nuncapoderia ser a decorrecircncia de umapredeterminaccedilatildeo mas se consti-tui exatamente como a proacutepria or-dem de interaccedilatildeo e de transfor-maccedilatildeo de uma realidade conce-bida em ato a partir de partes in-tra partes6 Natildeo haveriacuteamos nosaproximado de Espinosa De fatoa ideia de uma ordenaccedilatildeo comouma abertura para uma multi-plicidade simultacircnea se aproximamuito da imanecircncia em EspinosaAssim a despeito da intenccedilatildeo deuma leitura leibniziana do bar-roco vemos Deleuze em sua do-bradura necessariamente chegara uma conclusatildeo que o distancia

de Leibniz Neste sentido o espi-nosismo influecircncia inegaacutevel nasobras de Deleuze ainda que natildeoseja mencionado explicitamentefaz sentir-se em sua presenccedila ma-ciccedila natildeo teriacuteamos em sua conclu-satildeo um barroco espinosano Eisque na conclusatildeo de A dobra Leib-niz e o barroco apoacutes uma longaaproximaccedilatildeo sistemaacutetica entre aharmonia preacute-estabelecida das mocirc-nadas e a harmonia da muacutesicabarroca em acordosacordes mocirc-nadas tocircnicasdominantes Deleuzefaz o inesperado e rompe a basemais elementar do pensamento deLeibniz abre as mocircnadas Es-tas que necessariamente sempreestariam submetidas agrave clausuraem cujo interior se incluiria o uni-verso inteiro (natildeo podendo haverexistecircncia fora delas) ao seremabertas romperiam diretamentetanto com a filosofia de Leibnizquanto com a proacutepria sistemati-zaccedilatildeo entre a harmonia musical ea harmonia metafiacutesica que o au-tor acabara de propor SegundoDeleuze a seleccedilatildeo que as mocircna-das operam acabaria por desapa-

6 Tanto Espinosa como Leibniz operam com a ideia de absolutamente infinito ou infinito em ato uma ideia quese contrapotildee agrave noccedilatildeo de um infinito potencial e acumulativo ou seja composto pela adiccedilatildeo de partes discretas Oinfinito em ato faz com que as partes sejam partes intra partes em que cada parte se prolonga ao tomar parte emnovas relaccedilotildees com outras partes constituindo dinamicamente um novo indiviacuteduo ainda mais complexo (ou am-plo) o que tambeacutem exige que cada pequena parte seja constituiacuteda tambeacutem de partes intra partes ainda menoresPor um lado natildeo existe algo como um aacutetomo ou uma unidade discreta miacutenima por outro tudo estaria ao mesmotempo em uma relaccedilatildeo que constitui sempre algo maior lembremos como Espinosa define a proacutepria noccedilatildeo do li-mite como isso que podemos conceber no interior de outro ainda maior e que o envolve o que nos levaria ao limitede conceber a natureza como um uacutenico indiviacuteduo isso eacute a ldquofisionomia total do universordquo como escreve Espinosa aOldenburg (na carta 32) Contudo Espinosa demonstra que ambos limites (tanto o atocircmico como a natureza comoum uacutenico individuo) satildeo entes abstratos sem realidade concreta na imanecircncia da substacircncia ou melhor satildeo apenasauxila imaginari auxiliares imaginaacuterios ou entes de razatildeo de nossas operaccedilotildees intelectuais

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recer e assim a harmonia univer-sal perderia todo o seu privileacutegiode ordenaccedilatildeo e as dissonacircnciasagrave harmonia jaacute natildeo teriam de serldquoresolvidasrdquo e as divergecircncias po-deriam ser afirmadas em seacuteriesque escapariam agrave predetermina-ccedilatildeo e assim dissolver-se-ia a proacute-pria harmonia preestabelecida Se-gundo Deleuze

dir-se-ia que a mocircnada ocavaleiro de vaacuterios mun-dos eacute mantida semiabertacomo que por pinccedilasUma vez que o mundo eacuteagora constituiacutedo por seacute-ries divergentes (caosmos)ou que o lance de dadossubstitui o jogo do Plenoa mocircnada jaacute natildeo podeincluir o mundo inteirocomo um ciacuterculo fechadomodificaacutevel por projeccedilatildeomas ela se abre a uma tra-jetoacuteria ou espiral em ex-pansatildeo que se distanciacada vez mais de um cen-tro Jaacute natildeo se pode dis-tinguir entre [] o estadoprivado de uma mocircnadadominante (que produzem si mesma seus proacute-prios acordosacordes) eo estado puacuteblico das mocirc-nadas em multidatildeo (que

seguem linhas de melo-dia) mas as duas entramem fusatildeo numa espeacutecie dediagonal em que as mocirc-nadas interpenetram-semodificam-se [] consti-tuindo outras tantas cap-turas transitoacuterias A ques-tatildeo eacute sempre habitar omundo mas o habitat mu-sical [] e o habitat plaacutes-tico [] natildeo deixam sub-sistir a diferenccedila entre ointerior e o exterior en-tre o privado e o puacuteblicoeles identificam a varia-ccedilatildeo da trajetoacuteria e dupli-cam a monadologia comuma ldquonomadologiardquo (DE-LEUZE 1991 p 208)

Assim as mocircnadas satildeo desdobra-das em uma atividade muito proacute-xima agrave nossa concepccedilatildeo de ima-necircncia Leibniz ficaria horrori-zado mas a despeito de suas in-tenccedilotildees Deleuze estaacute correto poispara tornar a monadologia ade-quada ao que houve de mais radi-cal na arte do XVII esta teria quemudar a sua base mais elementara proacutepria mocircnada aproximando-se ao que com maior intensidadeprocurou negar a filosofia de Es-pinosa7

Neste turbilhatildeo imanente de

7 Cabe lembrar que em uma carta a Bourget Leibniz afirma que se natildeo fossem as mocircnadas sua filosofia cairiano espinosismo

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uma arte que cada gesto semqualquer predeterminaccedilatildeo trans-borda a si mesmo em um extremoimaginaacuterio onde o pintor se tornaurbanista e vice-versa eis queneste limite da imanecircncia ldquoas es-culturas satildeo aiacute verdadeiros perso-nagens e a cidade eacute um cenaacuteriosendo os proacuteprios espectadoresimagens pintadas ou esculturas Aarte inteira se torna socius espaccedilosocial puacuteblico povoado de baila-rinos barrocosrdquo (DELEUZE 1991p 187) como escrevera DeleuzeNesta arte em que a imagem deum desenho transborda-se na ar-quitetura naturalmente acaba-mos por atingir a proacutepria cidadeem sua realidade soacutecio-histoacutericaenquanto mais um limite destaldquorepresentaccedilatildeordquo poeacutetica Nestesentido temos uma arte que in-clui o espectador real em seu atopoeacutetico de transformaccedilatildeo (cria-ccedilatildeo) uma arte que natildeo se con-tenta em ser a mera representaccedilatildeode um modelo de beleza abstratoideal ou transcendente mas buscamesclar-se agrave proacutepria realidade vi-vida na e pela proacutepria cidade As-sim muito distante da busca deum ideal externo que transcendaa proacutepria realidade do artista te-mos uma arte que natildeo mais podeser tomada enquanto mera repre-sentaccedilatildeo ideal mas eacute efeito da eprocuraraacute voltar-se para a proacutepriarealidade em que toma parte nainterioridade de um discurso e de

uma accedilatildeo histoacuterica em pleno de-senvolvimento Assim chegamosa uma arte que sequer representaa realidade mas eacute parte de seuproacuteprio discurso social poeacuteticoe histoacuterico Contudo devemosnos lembrar que a multiplicidadedestes artistas-atores bailarinos-espectadores (e demais variaacuteveisatuantes) neste teatro vivo dan-ccedilam uma muacutesica imanente semuma harmonia preestabelecida quelhes fornecesse uma continuidadelinear e simples de suas tramasnarrativas

II - Drama da imanecircncia - Ben-jamin Origem do drama barrocoalematildeo 1928

O drama da imanecircncia seraacute figu-rado em uma das leituras filosoacute-ficas mais famosas e instigantesacerca do universo da arte seis-centista a Origem do drama bar-roco alematildeo de Walter Benjaminfazendo com que a multiplicidadesem predeterminaccedilatildeo da imanecircn-cia assuma um contorno comple-tamente contraacuterio ao espinosanopois esta seraacute tomada negativa-mente como um saldo de aleato-riedade e melancolia

Pretendemos mostrar como asprincipais ideias presentes nosdois preacircmbulos tambeacutem estatildeode certo modo articuladas e de-senhadas por Benjamin ao relacio-

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nar a imanecircncia a mais uma formade arte barroca o teatro Noprimeiro preacircmbulo vimos comoGebhardt concebe a imanecircncia ea visualidade da pintura barrocaenquanto formas natildeo limitadas eportanto irracionais No segundopreacircmbulo analisamos que paraDeleuze a imanecircncia e a muacutesicabarroca satildeo compreendidas comoaberturas para uma multiplici-dade de relaccedilotildees simultacircneas queem ato negam qualquer predeter-minaccedilatildeo proveniente de uma har-monia metafiacutesica transcendenteNesta uacuteltima parte analisaremoscomo tais teses encontram-se en-trelaccediladas na imanecircncia articu-lada entre irracionalidade e a ne-gaccedilatildeo de qualquer predetermina-ccedilatildeo transcendente que constituema chave da compreensatildeo do filoacute-sofo alematildeo acerca o luto que re-cobre a essecircncia mais iacutentima dodrama alematildeo seiscentista que en-contraraacute no solo histoacuterico sob o re-gime da imanecircncia um dos prin-cipais motivos se natildeo o proacutepriopara o desacerto do mundo

Benjamin conceberaacute a imanecircn-cia como um poccedilo de melancoliaque contrariamente agrave vitalidadeda proposta por Espinosa seraacute fi-gurada eminentemente na alego-ria de um cadaacutever assim con-duzimos nossa anaacutelise natildeo exa-tamente para uma obra de artemas para o interior de uma dasleituras mais melancoacutelicas acerca

do periacuteodo barroco onde vemoso drama da imanecircncia na expres-satildeo concebida Benjamin se trans-formar em uma pilha de corposA consequecircncia radical da assi-milaccedilatildeo da imanecircncia agrave cena te-atral alematilde seria o efeito quaseimediato da accedilatildeo histoacuterica de ummundo religiosamente incapaz deascender ao plano transcendentepois o misteacuterio da crocircnica cristatildeque abrangia a totalidade da his-toacuteria universal natildeo poderia maisser encontrado quando segundoBenjamin

a cristandade europeia es-tava dividida numa mul-tiplicidade de reinos cris-tatildeos cujas accedilotildees histoacuteri-cas natildeo mais aspiravama transcorrer dentro doprocesso de salvaccedilatildeo Oparentesco entre o dramabarroco e o misteacuterio eacuteposto em questatildeo pelo de-sespero radical que pare-cia ser a uacuteltima palavrado drama cristatildeo secula-rizado (BENJAMIN 1984p101)

De fato vaacuterios seacuteculos de cristia-nismo que precederam o XVII ti-nham no misteacuterio transcendenteda Graccedila Divina a garantia do seusentido uacuteltimo por uma histoacuteriauniversal ideal e revelada que nos

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conduziria em direccedilatildeo a nossa re-denccedilatildeo e assim todas as accedilotildeesdas mais simples na vida cotidi-ana ateacute as decisotildees mais contun-dentes e complicadas do Estadoteriam os seus papeacuteis justificadosainda que em um horizonte paraaleacutem de uma histoacuteria empiacuterica eprincipalmente para aleacutem do en-tendimento humano SegundoBenjamin o drama alematildeo aocontraacuterio do barroco literaacuterio ibeacute-rico teria se perdido inteiramentena desesperanccedila da condiccedilatildeo ter-rena e mesmo a renascenccedila comseu intenso desenvolvimento hu-manista em comparaccedilatildeo agrave condi-ccedilatildeo alematilde natildeo apareceria comouma eacutepoca increacutedula de paga-nismo mas como uma era profanae de grande liberdade miacutestica e re-ligiosa (BENJAMIN 1984 p 102)

Vemos entatildeo configurar-se noXVII alematildeo a origem do dramada imanecircncia expressatildeo cunhadapor Benjamin como a imanecircnciaque em si mesma nunca poderiaser aceita como um bem mas simentendida como um castigo neces-saacuterio enviado por Deus devido aomais antigo dos pecados o ori-ginal cometido por Adatildeo Nestaperspectiva a imanecircncia seria acondenaccedilatildeo de uma vida longe deDeus o personagem barroco re-baixado agrave mera condiccedilatildeo humanaseria completamente incapacitadoda existecircncia sacra e mesmo omundo que o cerca estaria aban-

donado por Deus constituindo-se como uma physis cega a proacute-pria natureza em um estado depura aleatoriedade Eis que maisbaixo que os animais que habita-riam um estado de ignoracircncia ino-cente restaria ao personagem bar-roco apenas o martiacuterio da culpa dehaver se perdido de Deus O bar-roco teria se perdido das leis queordenariam a vida mundana es-sas completamente derivadas deuma causa transcendente isto eacuteda vontade divina Leis que nainterpretaccedilatildeo de Benjamin fariamcom que a accedilatildeo humana carecessede qualquer poder efetivo e tam-beacutem de qualquer contingecircnciapois todas as accedilotildees seriam no maacute-ximo um produto secundaacuterio se-guindo a predeterminaccedilatildeo da von-tade divina no maacuteximo as suasaccedilotildees teriam um papel acessoacuteriocomo no ocasionalismo de Male-branche Esta causalidade trans-cendente que fornecera o sentidocomum a todos os seres humanosseria irreparavelmente fraturadanum seacuteculo XVII reformado emque o avanccedilo da ideia de imanecircn-cia irremediavelmente se propa-garia com sua exigecircncia de umavida em todos sentidos terrena eprofana

A imanecircncia nos forccedilaria aabandonar a imagem da ordemuniversal e predeterminada a par-tir de um aparato transcendenteEssa seria a velha imagem de or-

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dem transcendente que seria di-lapidada em prol de uma novaordem imanente como nos de-monstra a filosofia de Espinosapor um lado com esta na ausecircn-cia de qualquer transcendecircnciateriacuteamos que abandonar a ideiade uma predeterminaccedilatildeo em umavontade divina assim como a pos-sibilidade de que a Terra se es-pelhasse em leis divinas e tam-beacutem abandonar qualquer possiacute-vel redenccedilatildeo escatoloacutegica extrater-rena aleacutem disto a proacutepria ciecircn-cia que conceberia uma naturezahierarquizada dividida nas opo-siccedilotildees reais de categorias e gecircne-ros herdadas de Aristoacuteteles quepercorreriam toda a Idade Meacute-dia torna-se apenas um aparatoimaginaacuterio assim como os con-ceitos transcendentais como uni-dade ser verdade etc capazesde identificar qualquer objeto ourealidade tomados apenas comoentes de imaginaccedilatildeo e por fimmas natildeo por uacuteltimo em sua listade efeitos hereacuteticos qualquer fi-nalismo no seio da natureza de-veria ontologicamente ser aban-donado Como resultado da ima-necircncia chegariacuteamos agrave anulaccedilatildeo dequalquer teologia e mesmo tele-ologia Assim instala-se o malverdadeiro neste mundo barrocoreformado pois julgando o sen-tido da imanecircncia a partir dos en-raizados paracircmetros imaginaacuteriosda antiga ordem transcendente

fazemos da imanecircncia a imagemde algo absolutamente caoacutetico esob tais termos o drama da ima-necircncia barroca eacute necessariamentecompreendido como o efeito dacataacutestrofe de uma natureza abso-lutamente aleatoacuteria e desprovidade sentido E segundo Benjamin

se e homem religioso doBarroco adere tanto aomundo eacute porque se sentearrastado com ele em di-reccedilatildeo a uma catarata Obarroco natildeo conhece ne-nhuma escatologia o queexiste por isso mesmo eacuteuma dinacircmica que junta eexalta todas as coisas ter-renas antes que elas se-jam entregues agrave consuma-ccedilatildeo (BENJAMIN 1984 p89)

Contudo veremos que a grandecataacutestrofe melancoacutelica do dramada imanecircncia natildeo estaacute na ima-necircncia mas em um contraditoacute-rio sentimento barroco que porum lado exclui a transcendecircn-cia e por outro negativamenteainda a tem como um impossiacute-vel horizonte desejado Nestedrama a imanecircncia contraditori-amente apenas existe em relaccedilatildeo aaquilo que lhe eacute exterior ou sejaesta se apresenta como negaccedilatildeo datranscendecircncia Assim a imanecircn-

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O DRAMA DA IMANEcircNCIA GEBHARDT DELEUZE BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DEESPINOSA

cia eacute dada exclusivamente pelaperspectiva saudosista da trans-cendecircncia perdida Natildeo por acasoesta dramaturgia tem a imanecircnciaalegorizada no emblema do cadaacute-ver e a base de sua trama ocorresob o sentimento do luto diriacutea-mos que seria o luto de haver per-dido a proacutepria sacralidade trans-cendente Assim a vida nestedrama natildeo excederia ao estado deluto da lembranccedila do corte como divino o que provocaraacute o rei-nante sentimento de melancolia ea obsessatildeo pelo cadaacutever que mo-vem o drama alematildeo8 A proacuteprianoccedilatildeo da natureza imanente comouma physis cega e desgraccedilada poisaleatoacuteria soacute pode ser compreen-dida como a ideia de uma ima-necircncia incompleta e constituiacutedaapenas como a carecircncia da velhaordem predeterminada pela von-tade ou por um ideal transcenden-tes9 Ou seja a ordem imanenteeacute tida por aleatoacuteria pois a com-plexidade de sua ordem eacute a aber-tura para uma multiplicidade si-multacircnea que se desdobra no novoe excede a perspectiva restritae uniacutevoca de uma linha teleoloacute-gica desde sempre e para semprepredeterminada pela velha ordem

transcendente Por outro ladopara se encarar a imanecircncia com-pleta ou seja em sua plena po-sitividade seria preciso realmenteabandonar a velha ordem trans-cendente e natildeo fazer como a con-traditoacuteria maneira do drama bar-roco alematildeo que a nega somentepara interiorizaacute-la disfarccedilada soba forma de uma imanecircncia in-completa e melancoacutelica Con-tudo para a religiosidade aindaque reformada do barroco ale-matildeo seria quase impossiacutevel acei-tar um Deus realmente imanenteque natildeo fosse provido do atributohumano da livre escolha e da von-tade para realizar uma accedilatildeo lem-bremos como Espinosa na parte Ida Eacutetica demonstra como na ima-necircncia a espontaneidade da accedilatildeodivina na verdade segue de umanecessidade absoluta nunca preacute-refletida nem premeditada nemdecidida segundo uma escolha ar-bitraacuteria e esta seraacute a perfeiccedilatildeode uma accedilatildeo que decorre da ne-cessidade intriacutenseca da identidadeimanente entre essecircncia e existecircn-cia entre natureza naturante e anatureza naturada

8 Lembremos que em sua argumentaccedilatildeo Benjamin trabalha a gravura Melencolia I de Duumlrer como uma anteci-paccedilatildeo da amputaccedilatildeo do espiacuterito barroco expresso pelo drama da imanecircncia

9 Acompanhando Espinosa veremos justamente o contraacuterio do que propotildee o drama alematildeo pois se levarmosa rigor a possibilidade do mundo ser criado e ordenado por uma causa voluntaacuteria que lhe seja externa aleacutem deinuacutemeros problemas teoloacutegicos que restringem a proacutepria perfeiccedilatildeo de Deus teriacuteamos uma natureza desregrada econtingente como demonstra Marilena Chaui em lsquoOntologia do necessaacuteriorsquo quarto item do capiacutetulo 6 do Nervurado Real (CHAUI 1999 pp 901-918)

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Lembremos que para Espinosaum dos momentos cruciais davida eacutetica eacute afastar a tristeza so-bretudo a mais terriacutevel de todasas tristezas a melancolia e quepara ele ldquonatildeo haacute nenhuma coisaem que o homem livre pense me-nos do que na morte e sua sa-bedoria natildeo eacute uma meditaccedilatildeo so-bre a morte mas sobre a vidardquo(ESPINOSA 2015 p 483 EacuteticaIV P67) Natildeo poderia ser maiora distacircncia em relaccedilatildeo agrave concep-ccedilatildeo benjaminiana na qual a ima-necircncia eacute transformada na obses-satildeo com a morte sequer tratando-se da obsessiva reflexatildeo sobre ofim da vida mundana e os seusdesiacutegnios futuros no eterno aleacutemtuacutemulo (Inferno Purgatoacuterio e Pa-raiacuteso) mas como uma operaccedilatildeoque consiste em encarar a vida emsi mesma em seu estado presentee terreno jaacute como a encarnaccedilatildeoda morte Neste sentido o bar-roco de Benjamin sempre contraacute-rio agrave filosofia de Espinosa nuncaseraacute uma meditaccedilatildeo sobre a vidae ldquose os personagens do dramabarroco morrem [] se eles satildeodestruiacutedos natildeo eacute para que ascen-dam agrave imortalidade mas que as-cendam agrave condiccedilatildeo de cadaacuteverrdquo(BENJAMIN 1984 p241) As-sim em oposiccedilatildeo agrave vitalidade daconcepccedilatildeo espinosana o dramaalematildeo em sua imanecircncia nega-tiva produziria inuacutemeras coisasque ateacute entatildeo natildeo tinham entrado

em qualquer estruturaccedilatildeo artiacutes-tica como por exemplo as di-versas praacuteticas de martiacuterios cor-porais enumeradas por Benjaminnas quais fica expliacutecito o prazerda crueldade do dramaturgo e daspersonagens (que se deliciam como despedaccedilar da carne humana)Pois aos personagens de uma na-tureza desgraccedilada restaria da ima-necircncia somente o peso de seuscorpos cabendo-lhes apenas o lu-dismo sadomasoquista do martiacute-rio Dentre os diversos exem-plos citados por Benjamin saltaaos olhos a tentativa impossiacutevelde ascender a alguma significa-ccedilatildeo sacra por meio da ldquodissecaccedilatildeoanatocircmica em que as diversas par-tes do corpo satildeo numeradas comuma insofismaacutevel alegria na cru-eldade desse atordquo (BENJAMIN1984 p242) Pois se o corpohumano enquanto um organismovivo (em sua opulecircncia imanente)natildeo cabe na estreiteza de um iacuteconesimboacutelico que prometeria uma as-censatildeo as suas partes amputa-das classificadas e inertes talvezcoubessem Assim a imagem docorpo humano despedaccedilado seraacutemais uma das alegorias da ldquovidardquobarroca que no mais primoroso esaacutedico dilaceramento apenas pro-duz a dispersatildeo do corpo em umainuacutetil fragmentaccedilatildeo classificatoacuteriaem que inumeraacuteveis cortes apenasreconduzem agrave falta de sentido ao

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nada ao vazio10

lsquoIn Occasionemrsquo emblema CXXI do livro Emblemata de Andrea Alciato ediccedilatildeo de 1548

10Mais ainda para Benjamin o estado de exceccedilatildeo na poliacutetica seria fruto desta imanecircncia negativa que naturalmentelevaria agrave contraditoacuteria soberania dos tiranos Pois uma vez que a realidade natildeo possui uma ordem ao soberanoseria designada uma tarefa impossiacutevel dar ordem a isso que essencialmente eacute necessariamente desprovido delaAssim restar-lhe-ia um contraditoacuterio e inexoraacutevel papel tambeacutem de maacutertir pois sendo o soberano parte destamesma natureza as suas accedilotildees tambeacutem seriam desprovidas de ordem e somente pela violecircncia ele estabeleceriauma ordem social que contudo seria apenas a contingecircncia melancoacutelica redobrada Por outro lado em Espinosaa democracia eacute o mais natural dos regimes sendo explicado como um fruto da proacutepria imanecircncia Assim umdesdobramento futuro a ser desenvolvido por nossa pesquisa tem como horizonte a compreensatildeo da positividadeda imanecircncia na poliacutetica Gostariacuteamos de seguir as demonstraccedilotildees de como uma ontologia imanente eacute a causa daestruturaccedilatildeo da democracia real entendida por Espinosa como o mais perfeito dos regimes poliacuteticos e assim daruma resposta agrave equivocada aproximaccedilatildeo entre imanecircncia e estado de exceccedilatildeo

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Vimos como a experiecircncia hu-mana regulada pela imaginaccedilatildeoao buscar na natureza uma or-denaccedilatildeo preestabelecida linear euniacutevoca (como no drama de Ben-jamin) ao confrontar-se com amultiplicidade de uma ordena-ccedilatildeo imanente parece nos conde-nar a viver em um labirinto decontingecircncias de muacuteltiplas cau-sas simultacircneas em muacuteltiplos pla-nos de acontecimentos que estatildeoainda por cima em constantesmutaccedilotildees11 Como se estiveacutesse-mos obrigados a viver agrave mercecircda velha imagem feminina da for-tuna12 uma das alegorias mais fa-mosas da literatura barroca queno girar em falso de sua rodade uma mesma maneira arbitraacute-ria distribui e tira bens Con-tudo a Eacutetica de Espinosa vemjogar luz e reforccedilar o contrastedesta imagem desafortunada dolabirinto de contingecircncias produ-zindo um claro contraste em queo proacuteprio labirinto se desfaz aoexpor frente agrave multiplicidade doente absolutamente infinito umaacuterduo e complexo embora inequiacute-voco caminho rumo ao seu enten-dimento A Eacutetica sua obra maacute-xima nos fornece um claro exem-plo de como penetrar na ordem

imanente desta multiplicidade emato que imaginariamente tantoinspira o medo de nossa fragi-lidade frente agrave fortuna Pene-trar neste caminho implica ementender a proacutepria liberdade deuma natureza em um movimentoconstante de auto-diferenciaccedilatildeoou seja natildeo se busca simplificaacute-la ou estagnaacute-la mas reconhecera ordem desta transformaccedilatildeo in-cessante que apenas imaginaria-mente pode ser tomada enquantoaleatoriedade Entender acimade tudo seria um respeito ao queirredutivelmente eacute sempre com-plexo (e nunca poderia ser redu-zida a uma perspectiva simplesem uma linearidade predetermi-nada) Entender a sua complexi-dade eacute deslocar-se movimentar-se expandir-se e no interiordesta multiplicidade eacute conscien-temente ligar-se ao mundo o queao mesmo tempo significa agir ra-cionalmente pois eacute encontrar apotecircncia da mente humana imersano conhecimento da ordem fixa eimutaacutevel da natureza

Neste caso tambeacutem natildeo pode-mos cair no equiacutevoco da maacute e su-perficial interpretaccedilatildeo acerca doque seria ldquoa ordem fixa e imu-taacutevel da naturezardquo que nos leva-

11 Como Espinosa escreve na Eacutetica no escoacutelio da Proposiccedilatildeo 42 da Parte V ldquoCom efeito o ignorante aleacutem de seragitado pelas causas externas de muitas maneiras e de nunca possuir o verdadeiro contentamento do acircnimo vivequase inconsciente de si de Deus e das coisas[]rdquo (ESPINOSA 2015 p 579)

12 Como ilustrada no famoso emblema CXXI lsquoIn Occasionemrsquo do livro Emblemata de Andrea Alciato cuja pri-meira publicaccedilatildeo eacute de 1531

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ria a crer em um determinismo ndashou como se diz no XVII um fata-lismo ndash que impossibilitaria conce-ber a liberdade no interior da fi-losofia de Espinosa13 muito pelocontrario quando nos voltamoscom o filoacutesofo para a ordem e co-

nexatildeo necessaacuterias que definem anatureza imanente e que determi-nam a inteligibilidade de sua com-plexa atividade de transformaccedilatildeovemos que nesta se radica a maiscompleta liberdade

Referecircncias

ALCIATO A (1548) Emblemata PDF digital da ediccedilatildeo de 1548 obtidona internet

BENJAMIN W (1984) Origem do drama barraco alematildeo Satildeo Paulo Bra-siliense

CHAUI M (1999) lsquoOntologia do necessaacuteriorsquo quarto item do Cap 6do Nervura do Real Vol I Satildeo Paulo Companhia das Letras pp901-918

DELEUZE G (1991) A dobra Leibniz e o barroco Campinas PapirusESPINOSA B (2015) Eacutetica Satildeo Paulo EduspGEBHARDT C (2000) Spinoza judaisme et barroque Paris Presses de

lrsquoUniversiteacute Paris-SorboneHEGEL G W F (1970) Leccedilons sur lrsquohistoire de la philosophie Paris

GallimardWOLFFLIN H (2005) Renascenccedila e Barroco Satildeo Paulo Perspectiva_________ (1984) Conceitos fundamentais da Histoacuteria da Arte Satildeo

Paulo Martins FontesXAVIER H (2016) ldquoEspinosa melancolia e o absolutamente infinito

na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrdquo In Cadernos Espi-nosanos nordm 35 pp 295-347

Recebido 02072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

13 O equiacutevoco imaginaacuterio de um fatalismo apenas ocorre quando supomos a ordem natural como linear e aliberdade como escolha voluntaacuteria em vista de fins

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225586

Haacute Abstraccedilatildeo de Si na Origem de Toda a Abstraccedilatildeo naFilosofia de Espinosa

[Is There an Auto-Abstraction within All Abstraction in Spinozarsquos Philo-sophy]

Rafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Inserido no contexto histoacuterico de criacuteticas agrave abstraccedilatildeo Espinosaretoma o tom de sua eacutepoca e faz severas advertecircncias contra as abstraccedilotildeesEntretanto a criacutetica espinosana difere de outras da mesma eacutepoca Acredi-tamos que a distinccedilatildeo de Espinosa ocorre porque para ele a abstraccedilatildeo natildeo eacuteapenas uma metodologia epistecircmica (o ato de separar e fragmentar os obje-tos do conhecimento) nem eacute o estabelecimento arbitraacuterio de princiacutepios paraconhecimento por meio da interferecircncia da vontade no intelecto Nossa hipoacute-tese eacute que para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorre quando a forccedila mental produtivanatildeo se encontra enquanto tal em outros termos quando a mente natildeo temconsciecircncia do seu proacuteprio produzir mdash eacute precisamente isso o que chamamosde abstraccedilatildeo de si Nosso artigo visa abordar essa hipoacutetese e apontar comoo conceito de abstraccedilatildeo de si pode auxiliar na interpretaccedilatildeo de algumas tesesespinosanas Ao final deste artigo analisaremos como o conceito de abstra-ccedilatildeo de si oferece uma chave interpretativa para a hipoacutetese-retoacuterica que abre oTratado Teoloacutegico-PoliacuteticoPalavras-chave abstraccedilatildeo Espinosa

Abstract Spinozarsquos criticism of abstraction retakes the common toneof his own time warning against etc Nevertheless the spinozistic critiquedifferentiates considerably from his contemporaries whereas he also criticizesome of the philosophers that stand against the concept of abstractions Webelieve that Spinozarsquos distinctiveness occurs because he consider abstractionnot only as some epistemic methodology (the act of select divide anddisintegrate the objects of knowledge) neither the arbitrary foundation ofprinciples for knowledge through the interference of Will in the Intellect Butrather as the productive mental force when it is not within itself thereforewhen the productive mental force isnrsquot what it should be as it naturally isIn other words when the mind has not the counscioness of its own work mdashitrsquos precisely this what we call auto-abstraction Moreover our article aimsto approach this hypothesis and elaborate how exactly the concept of self-abstraction can help us understand some of the spinozian thesis so that wemay focus on the rhetorical hypothesis that opens the Theological-PoliticalTreatiseKeywords abstraction Espinosa

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Atualmente realiza poacutes-graduaccedilatildeo latu sensu em Do-cecircncia do Ensino Superior (pela FARA - Faculdade Araguaia) Tambeacutem eacute membro do Programa de Direitos Humanos daPUC-Goiaacutes (extensatildeo) E-mail rarcanjo32gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-5359-885X

Professor da Faculdade de Filosofia da UFG Doutor em filosofia pela USP E-mail cnrz1972gmailcom ORCID

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Em uma conceituaccedilatildeo geral abstrairconsiste em considerar a parte predi-cativa de uma sentenccedila separada desua parte nominal Em outras pa-lavras trata-se de tomar os predica-dos de maneira isolada desconside-rando que por definiccedilatildeo um predicadovincula-se a outra coisa sobre a qualele predica algo Podemos tambeacutemrecorrer agrave etimologia para compreen-dermos o que eacute uma abstraccedilatildeo Apalavra abstraccedilatildeo eacute a traduccedilatildeo por-tuguesa para o termo latino abstrac-tio que eacute originaacuterio de abstrahere eeste por sua vez eacute fruto da junccedilatildeodo prefixo ab (que tem o sentido deafastamento e distacircncia mdash como nocaso de abstinecircncia) com trahere (quesignifica puxar como no caso de ex-traho mdash extrair) Assim abstrahereem sua literalidade significa puxarpara longe separar e extrair algo dotodo ao qual pertence Abstracte eacute oque foi separado isolado ou afastadoAinda no niacutevel da linguagem valelembrar que os gramaacuteticos dividemos substantivos em abstratos e con-cretos Joseacute Vicente Ceacutesar comentaque satildeo considerados abstratos aque-les substantivos que natildeo subsistemsozinhos ndash em geral satildeo qualidadesde seres concretos como amor jus-ticcedila beleza etc Para Ceacutesar expres-sotildees como ldquoa bondade em pessoardquo satildeotentativas de concretizar substantivos

que por natureza satildeo abstratos (CEacute-SAR J V 1958 p 26) Ao con-traacuterio dos substantivos concretos quese referem agraves coisas cuja a existecircn-cia eacute autocircnoma os substantivos abs-tratos andam ldquoencostadosrdquo em sujei-tos (CEacuteSAR J V 1958) Domin-gos de Azevedo na Gramaacutetica Naci-onal de Lisboa classifica como abs-trato o ldquosubstantivo que designa pro-priedades ideais comuns a muitos in-diviacuteduos como virtude honra []e os adjetivos e os infinitos dos ver-bos substantivados pelo artigo expri-mindo qualidades ou sujeito indeter-minado como o belo o grande oviverrdquo (1889 p 43-4 apud idemp 28) Ceacutesar voltando-se maispara o terreno da filosofia comentaque na tradiccedilatildeo aristoteacutelica o ser en-quanto substacircncia (οὐσία) representaaquilo que natildeo depende ou natildeo de-corre de outro para ser e consequen-temente a substacircncia eacute a regiatildeo doconcreto Em contrapartida os aci-dentes se dividem em trecircs grupos (I)os que satildeo concretos (II) os que os-cilam conforme o uso e (III) os quesempre satildeo abstratos1 (CEacuteSAR J V1958) De acordo com Ceacutesar perten-cem ao primeiro grupo as categorias(ou predicamentos) que podem exis-tir sem estarem necessariamente vin-culadas a um sujeito a dizer lugar(ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) es-

1 Ceacutesar comenta que no caso da quantidade haacute uma oscilaccedilatildeo entre a gramaacutetica e a filosofia as gramaacuteticas tomam a quan-tidade como um substantivo concreto enquanto os filoacutesofos podem tomaacute-la em sentido transcendental e por isso de maneiraabstrata No caso o autor toma a posiccedilatildeo gramatical

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

tado (κεῖσθαι situs) haacutebito (ἔχεινhabere) Por sua vez encontram-seno grupo dos oscilantes a accedilatildeo (ποι-εῖν actio) e a paixatildeo (πάσχειν pas-sio) Finalmente quantidade (ποσόνquantitas) qualidade (ποιόν quali-tas) e relaccedilatildeo (πρός τι relatio) satildeopredicamentos abstratos uma vez queeles estatildeo intimamente vinculados aalgo (a um sujeito)2 A partir doque foi dito podemos observar queo termo abstraccedilatildeo geralmente apareceassociado (I) agrave ideia de impossibi-lidade de existecircncia concreta e autocirc-noma da coisa referida (II) agrave substan-tivaccedilatildeo daquilo que geralmente (ouconstantemente) eacute um adjetivo e (III)ao processo de isolar o predicado deum sujeito

Feitas essas consideraccedilotildees de acircm-bito geral faz-se necessaacuterio para ofim proposto neste artigo uma brevedigressatildeo a respeito do debate sobreas abstraccedilotildees no seacuteculo XVII Noacutes to-maremos dois exemplos paradigmaacuteti-cos Antoine Arnauld e Pierre Nicolecom a sua Logique e Francis Baconcom o Novum Organum Natildeo entra-remos nas minuacutecias dos textos dessesautores jaacute que antes de entrarmos nasanaacutelises do texto espinosano preten-demos fornecer ao leitor apenas umvislumbre amplo da discussatildeo seis-centista acerca da abstraccedilatildeo

Ao voltarmos nosso olhar para o

seacuteculo XVII vemos que o termo abs-traccedilatildeo possui sentidos diversos An-toine Arnauld e Pierre Nicole ex-plicam por exemplo no capiacutetulo Vda Logique que graccedilas agrave parca ex-tensatildeo de nosso espiacuterito soacute pode-mos compreender as coisas compos-tas de forma perfeita ldquose as conside-rarmos por partes e segundo os diver-sos aspectos que elas podem assumirrdquo(2016 [1683] p 81) e concluem ldquoeacuteisso que em geral se chama conhecerpor abstraccedilatildeordquo (idem ibidemndash itaacuteli-cos nossos) Deste modo para osjansenistas a abstraccedilatildeo eacute uma espeacuteciede metodologia que possibilita a com-preensatildeo das coisas complexas3

Arnauld e Nicole oferecem trecircsexemplos sobre essa maneira deldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo (I) a ana-tomia (II) a geometria e (III) o co-gito mdash que para noacutes eacute o mais abs-trato de todos Para eles o primeirocaso natildeo eacute uma abstraccedilatildeo propria-mente dita de fato o corpo eacute formadopor partes distintas uma das outrase seria impossiacutevel adquirir conheci-mento do corpo caso natildeo tomaacutessemosas suas partes separadas umas das ou-tras O exemplo anatocircmico eacute corres-pondente para os jansenistas ao casoda aritmeacutetica ldquotoda a aritmeacutetica sefunda tambeacutem nistordquo (idem p 82)Levando-se em conta que natildeo preci-samos de nenhuma capacidade espe-

2 Natildeo nos interessa aqui questionar a validade do comentaacuterio de Ceacutesar a respeito da loacutegica aristoteacutelica antes noacutes o citamosporque ele apresenta de maneira sucinta o sentido geral que o termo ldquoabstraccedilatildeordquo assume

3 Vale ressaltar que a definiccedilatildeo que Arnauld e Nicole oferecem para o ldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo manteacutem-se fiel agrave origemetimoloacutegica do termo abstraccedilatildeo que traz em si a ideia de separaccedilatildeo e extraccedilatildeo

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cial ou de grande esforccedilo para con-tar os nuacutemeros pequenos ldquotoda a arteconsiste em contar por partes aquiloque natildeo poderiacuteamos contar pelo todordquo(idem ibidem) Destarte ao lidarmoscom nuacutemeros grandes eacute preciso fa-zer na aritmeacutetica o que o anatomistafaz com o corpo decompor em partese consideraacute-las uma a uma em sepa-rado Isso torna evidente que no casoda metaacutefora anatocircmica Arnauld e Ni-cole tomam a abstraccedilatildeo como meto-dologia que procede em ordem analiacute-tica O segundo exemplo dado por Ar-nauld e Nicole eacute o dos geocircmetras quesegundo eles para melhor conheceros corpos extensos partem primeira-mente de apenas uma das trecircs di-mensotildees o comprimento (chamando-os de linhas) depois os consideramsegundo duas dimensotildees o compri-mento e a largura (chamando-os desuperfiacutecies) e por fim consideramos corpos extensos em todas as trecircsdimensotildees comprimento largura eprofundidade (chamando-os de soacuteli-dos ou corpos) (idem ibidem) Em-bora agrave primeira vista o meacutetodo ex-posto neste segundo exemplo pareccedilapossuir alguma coisa da ordem sin-teacutetica mdash jaacute que se procede do maissimples ao mais complexo ordem de

composiccedilatildeo mdash os jansenistas expli-cam que os geocircmetras ldquonatildeo supotildeemde maneira nenhuma que haja linhassem larguras ou superfiacutecies sem pro-fundidades tatildeo somente acreditamque se pode considerar o compri-mento sem prestar atenccedilatildeo agrave largura[]rdquo (idem p 83) O que ocorreno caso dos geocircmetras eacute tambeacutemuma separaccedilatildeo do complexo em par-tes ou melhor eacute pelo menos no mo-mento inicial uma desconsideraccedilatildeodos fatores de complexidade mdash as in-tersecccedilotildees entre as dimensotildees ParaArnauld e Nicole eacute essa metodologiaque torna o espiacuterito ldquocapaz de melhorconhecerrdquo (idem ibidem)4

O terceiro exemplo oferecido porArnauld e Nicole eacute mais peculiar eem nossa leitura eacute o que mais pro-priamente pode ser qualificado comoabstraccedilatildeo5 Trata-se do cogito univer-salizado para todos os seres pensan-tes Arnauld e Nicole explicam que seeu reflito sobre o fato de estar a pen-sar e neste caso sou eu o que pensaposso a partir de um processo de abs-traccedilatildeo ldquoaplicar-me na consideraccedilatildeode uma coisa que pensa sem prestaratenccedilatildeo ao facto de ser eu [] eue aquele que pensa sejam a mesmacoisardquo (idem p 84) Neste caso haacute

4 Aqui assim como no caso da anatomia e da aritmeacutetica a abstraccedilatildeo eacute tomada como um meacutetodo de aprendizagem Noprimeiro caso o meacutetodo de decompor em partes menores eacute adequado graccedilas agrave incapacidade da mente e agrave natureza dos objetosque satildeo compostos por partes No segundo caso o meacutetodo facilita o conhecimento de coisas que em sua concretude natildeo exis-tem separadas umas das outras Vale ressaltar que a maneira em que Arnauld e Nicole tomam a geometria aqui natildeo permiteque ela seja concebida como ciecircncia puramente conceitual Ao afirmar que no real natildeo haacute linhas sem largura Arnauld e Nicolevinculam geometria e extensatildeo aliaacutes o proacuteprio conceito de linha (sem largura) eacute tomado como uma abstraccedilatildeo que tem papelmeramente metodoloacutegico e didaacutetico

5 Isto eacute segundo uma perspectiva espinosana

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

uma cisatildeo imposta entre o pensantee o pensamento cisatildeo que se mani-festa na passagem da ideia do ldquoeupensordquo para a consideraccedilatildeo ldquode umacoisa que pensardquo Essa cisatildeo permitea generalizaccedilatildeo do cogito como ex-plica Arnauld e Nicole ldquoassim a ideiaque eu conceberia de uma pessoa quepensa poderia representar-me natildeo so-mente a mim mas a todas as outraspessoas que pensamrdquo (idem ibidem)Neste caso a abstraccedilatildeo opera por ci-satildeo e generalizaccedilatildeo Isso eacute possiacutevelporque nas palavras dos jansenistasldquoperante uma mesma coisa que temdiferentes atributos pensamos numdeles sem pensar nos outros aindaque haja entre eles uma tatildeo-soacute distin-ccedilatildeo de razatildeordquo (idem p 83) A re-ferecircncia agrave distinccedilatildeo ldquotatildeo-soacute de razatildeordquoeacute importante pois no cogito natildeo eacutepossiacutevel separar realmente o pensantee o pensamento (da mesma maneiraque natildeo eacute possiacutevel separar um passe-ante do passear) No entanto eacute pos-siacutevel transportar o cogito para umainstacircncia abstrata e generalizante acoisa que pensa Esse transporte soacutepode ocorrer graccedilas agrave cisatildeo ldquotatildeo-soacute derazatildeordquo entre o eu pensante e o pen-

samento isso eacute soacute pode ocorrer namedida em que eacute desfeita a autorre-ferecircncia presente no ldquoeu pensordquo pormeio da extraccedilatildeo do ldquoeurdquo mdash o que Ar-nauld e Nicole chamam de desconsi-derar alguns atributos de uma coisa6Assim o que a Loacutegica de Port-Royalchama de abstraccedilatildeo eacute uma metodolo-gia que opera por meio da decompo-siccedilatildeo do concreto em conceitos cadavez mais elementares e gerais pro-cesso que possibilita a ida do singu-lar concreto ao universal Por vezesos jansenistas parecem misturar o meacute-todo analiacutetico com o processo de abs-traccedilatildeo Ainda assim nos trecircs exem-plos dados por Arnauld e Nicole parao ldquoconhecer por partesrdquo haacute menccedilotildeesa uma suposta ampliaccedilatildeo do conhe-cimento no primeiro exemplo eacute ditoque natildeo eacute possiacutevel possuir um conhe-cimento da anatomia ou realizar caacutel-culos aritmeacuteticos se natildeo decompor ocorpo ou os nuacutemeros em partes nosegundo exemplo essa separaccedilatildeo empartes constitui a maneira pela qualos geocircmetras conhecem os soacutelidos epor fim no terceiro exemplo a abs-traccedilatildeo permite a ascese ao mais gerale mais elementar (aleacutem de permitir a

6 Arnauld e Nicole oferecem um exemplo complementar deste terceiro modo de conceber as coisas abstratamente a pas-sagem da imagem de um triacircngulo agrave ideia de extensatildeo pura Este exemplo estrutura-se da seguinte maneira (I) supondo queeu tenha desenhado sobre o papel um triacircngulo equilaacutetero na medida em que eu considerar apenas este triacircngulo poderei terapenas a ideia de um triacircngulo (II) No entanto se eu afastar o meu espiacuterito da consideraccedilatildeo de todos os acidentes que o de-terminam ndash fatores de singularizaccedilatildeo ndash e se eu aplicar-me a pensar que se trata de uma figura limitada por trecircs linhas iguais euficarei apenas com a ideia de triacircngulo equilaacutetero (III) Se eu for mais longe e ignorar a igualdade entre as linhas considerandoque se trata apenas de uma figura determinada por trecircs linhas retas poderei formar uma ideia que representa todos os triacircngulosndash um conceito universal de triacircngulo (IV) Se aleacutem disso eu desconsiderar as trecircs linhas e focar apenas no fato de que se tratade uma superfiacutecie plana limitada por linhas poderei chegar agrave ideia de figura retiliacutenea e ldquoassim posso subir grau a grau ateacute apura extensatildeordquo (ARNAULD A NICOLE P 2016 [1683] p84) Curiosamente este exemplo inverte a ordem do segundomodo de conhecer por abstraccedilatildeo pois aqui o ponto de partida eacute o complexo (um singular concreto o desenho de triacircngulo)enquanto que laacute parte-se do ponto para a reta e desta para o plano ateacute chegar agrave ao corpo (o complexo)

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generalizaccedilatildeo de conceitos como nocaso do cogito)

Em sentido oposto agrave loacutegica de Ar-nauld e Nicole Bacon faz severas criacute-ticas agraves abstraccedilotildees No aforismo XXIIdo Novum Organum o baratildeo de Ve-rulam fala que enquanto a verdadeiravia para o conhecimento se deteacutem deforma ordenada nos dados da expe-riecircncia sensiacutevel e se eleva gradual-mente agraves coisas que realmente satildeoas ldquomais comuns na naturezardquo a ou-tra via ldquodesde o iniacutecio estabelece cer-tas generalizaccedilotildees abstratas e inuacuteteisrdquo(BACON 1999 p 36) Para Bacontanto a via do erro quanto a da ver-dade partem dos dados sensiacuteveis e daexperiecircncia ou seja as vias natildeo sedistinguem quanto agrave origem de seusconteuacutedos Partindo ambas de ummesmo ponto elas soacute podem se dife-renciar quanto ao meacutetodo No afo-rismo IX Bacon fala que todos osmales na ciecircncia se originam quandoldquoadmiramos e exaltamos de modofalso os poderes da menterdquo (idem p34) e tambeacutem no aforismo X eleressalta que a ldquonatureza supera emmuito em complexidade os sentidose o intelectordquo (idem ibidem) Aleacutemdisso para Bacon ldquoa mente anseiapor ascender aos princiacutepios mais ge-rais para aiacute se deterrdquo (idem p 36)Assim a abstraccedilatildeo ocorre quando amente voluptuosa natildeo se deteacutem nosdados primaacuterios passando a experi-ecircncia na carreira a fim de estabele-cer os princiacutepios pelos quais passaraacutea julgar os novos dados sensiacuteveis mdash

princiacutepios estes que teratildeo bases pre-caacuterias e por isso aproximaratildeo maisda ficccedilatildeo que do conhecimento ver-dadeiro No aforismo XLVIII Baconafirma que o intelecto humano jamaispode encontrar repouso agitado elesempre procura ir aleacutem ldquoDaiacute ser im-pensaacutevel inconcebiacutevel que haja umlimite extremo e uacuteltimo do mundoAntes sempre ocorre como necessaacute-ria a existecircncia de algo aleacutemrdquo (idemp 43) Para Bacon o intelectohumano em um determinado domiacute-nio de suas atividades (aquele da viaque conduz ao erro) se vecirc atormen-tado por questotildees agraves quais natildeo podeevitar e no entanto natildeo pode res-ponder Como ele fala no aforismoXLVI ldquoo intelecto humano quandoassente em uma convicccedilatildeo tudo ar-rasta para seu apoio e acordordquo (idemp 42) No aforismo XLIX Baconafirma que ldquoo intelecto humano natildeo eacuteuma luz pura pois recebe a influecircn-cia da vontade e dos afetos dondepoder gerar a ciecircncia que se querrdquo(idem p 43) Deste modo sendoo intelecto uma luz afetada pela von-tade ele tende a produzir a ldquociecircnciaque se querrdquo (idem ibidem) ou sejapode compor como ciecircncia o que lheapetecer A conclusatildeo desses enca-deamentos vem no aforismo LI noqual Bacon fala que ldquoo intelecto hu-mano por sua proacutepria natureza tendeao abstrato []rdquo e assim ldquoeacute melhordividir em partes a natureza do quetraduzi-la em abstraccedilotildeesrdquo (idem p44) Desta maneira Bacon toma as

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abstraccedilotildees num registro diferente dotomado por Arnauld e Nicole No No-vum Organum a abstraccedilatildeo natildeo apa-rece como o meacutetodo de divisatildeo empartes mas como negligecircncia confu-satildeo arrogacircncia e cupidez que levamao estabelecimento de princiacutepios ge-rais incapazes de apreender a concre-tude e complexidade da natureza Ne-gligecircncia porque o intelecto estabe-lece na carreira os princiacutepios sobre osquais iraacute fundamentar-se sem se de-ter cuidadosamente nos dados empiacute-ricos Confusatildeo porque sem o devidocuidado o intelecto acaba misturandoaquilo que lhe eacute proacuteprio mdash as abstra-ccedilotildees mdash com aquilo que eacute da naturezaArrogacircncia porque tal confusatildeo nascede um narcisismo epistecircmico no qualo homem admira desmedidamente oengenho de seu intelecto Cupidezporque o intelecto opera sob a influecircn-cia da vontade e por isso faz a ciecircn-cia ldquoque se querrdquo

Enquanto para Arnauld e Nicole aabstraccedilatildeo estaacute mais vinculada ao sen-tido etimoloacutegico do termo isto eacute aoprocesso de separaccedilatildeo e decomposi-ccedilatildeo para Bacon ela se aproxima doficcional por ser o estabelecimento dealguns princiacutepios abstraiacutedos de par-cas experiecircncias ndash de sorte confusase misturadas com elementos que per-tencentes apenas ao espiacuterito humanoO nuacutecleo dessa divergecircncia se encon-tra na maneira pela qual cada uma dasduas perspectivas toma a relaccedilatildeo ho-mem e natureza Partindo do pressu-posto agostiniano de uma ordem hie-

raacuterquica dos seres os jansenistas Ar-nauld e Nicole tecircm cravado em suasmentes as palavras de Agostinho noDe Vera Religione ldquoo que julga eacutemaior do que o julgadordquo (AGOSTI-NHO 1987 p 88) Sendo assimo espiacuterito humano possui ontologi-camente garantida a capacidade e odireito de julgar e determinar o co-nhecimento segundo uma lei proacutepriaou melhor dizendo segundo uma leique transcende agrave proacutepria natureza eque se encontra assegurada na proacute-pria iluminaccedilatildeo divina Bacon poroutro lado parte do pressuposto deque o intelecto humano ldquopor sua proacute-pria naturezardquo eacute corrompido Issofica mais evidente se tomarmos notado que Bacon fala em The Interpre-tation of nature e tambeacutem no Theadvancement of learning No pri-meiro Bacon escreve que o homemsendo investido por Deus desde a cri-accedilatildeo ldquoda soberania de todas as coi-sas [] natildeo tinha necessidade de po-der ou de domiacuteniordquo (BACON 1963p 217 op cit in ZATERKA 2004p 96-7) jaacute no Advancement Ba-con afirma que o verdadeiro fim doconhecimento eacute a ldquorestituiccedilatildeo e res-tauraccedilatildeo do homem agrave soberania e aopoder que ele tinha no primeiro es-taacutegio da criaccedilatildeordquo (idem p 222 opcit idem p 98) Para Bacon o ho-mem perdeu aquele poder que tiveranos primoacuterdios da criaccedilatildeo quando elefoi capaz de lsquochamar as criaturas pe-los seus nomes e comandaacute-lasrsquo (idemibidem) Eacute a perda desse domiacutenio

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que consiste na proacutepria fraqueza dointelecto Se no aforismo III do pri-meiro livro do Novum Organum Ba-con afirma que ldquociecircncia e poder dohomem coincidemrdquo eacute porque ele estaacuteconvicto de que o projeto cientiacutefico eacuteuma restauraccedilatildeo de um poderio per-dido Aleacutem disso se no mesmo afo-rismo Bacon afirma que se deve obe-decer a natureza para vencecirc-la issoocorre porque na perspectiva baco-niana o intelecto jaacute natildeo possui maisaquela forccedila e capacidade necessaacuteriapara a partir de si mesmo fazer a ci-ecircncia Natildeo devemos esquecer as pala-vras finais do segundo livro do NovumOrganum ldquoPelo pecado o homemperdeu a inocecircncia e o domiacutenio dascriaturas Ambas as perdas podemser reparadas mesmo que em parteainda nesta vida a primeira com a re-ligiatildeo e com a feacute a segunda com asartes e com as ciecircnciasrdquo (BACON1999 p 218)7 Deste modo pode-mos concluir a partir da anaacutelise doexemplo de Bacon e dos jansenistasArnauld e Nicole que o tema da abs-traccedilatildeo nos seiscentos ultrapassa os li-mites da mera epstemologia e aparece

envolto de questotildees teoloacutegicas Aleacutemdisso tanto Bacon quanto Arnauld eNicole se encaixam naquilo que pode-mos chamar de epistemologias da do-minaccedilatildeo o primeiro critica as abstra-ccedilotildees pois acredita que por meio dissoos homens poderatildeo recuperar o domiacute-nio sobre a natureza os segundos to-mam a abstraccedilatildeo como metodologiapois acreditam que os homens pos-suem ontologicamente garantida a ca-pacidade de domiacutenio Entretanto pa-radoxalmente nos dois casos citadosa abstraccedilatildeo aparece vinculada agrave in-capacidade humana seja entendidacomo meacutetodo para a sua superaccedilatildeoseja entendida como desdobramentode nossa fragilidade

lowast lowast lowast

Espinosa se insere no contexto dascriacuteticas modernas agraves abstraccedilotildees Re-tomando o tom criacutetico de sua eacutepocaele faz severas advertecircncias contraas abstraccedilotildees No TIE8 ele asseveraldquoum maacuteximo engano [] origina-sedo seguinte eles concebem as coisasabstratamente demaisrdquo (TIE sect74-5)Alguns paraacutegrafos agrave frente ele faz aseguinte exortaccedilatildeo ldquonunca nos seraacute

7 Eacute justamente essa concepccedilatildeo abstrata que Espinosa implode na abertura do TTP Noacutes faremos uma anaacutelise detalhada sobreisso no toacutepico deste artigo intitulado ldquoUm exemplo de como opera a criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo de si a abertura do TratadoTeoloacutegico-Poliacuteticordquo

8 As obras de Espinosa seratildeo citadas com as seguintes siglas e abreviaturas E Eacutetica demonstrada em ordem geomeacutetricaAs partes seratildeo indicadas em algarismos romanos Em algarismos araacutebicos acompanhados de abreviaturas seratildeo indicados asdefiniccedilotildees suas explicaccedilotildees os axiomas os enunciados das proposiccedilotildees suas demonstraccedilotildees os seus escoacutelios os prefaacutecios eo apecircndice exemplo E III P24 schol TIE Tratado da Emenda do Intelecto (lat Tractatus de Intellectus Emendatione) Osparaacutegrafos seratildeo indicados com sect seguido da numeraccedilatildeo correspondente (TIE sect7) As seguintes abreviaturas seratildeo utilizadaspara se referir agraves obras de Espinosa TTP Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico TP Tratado Poliacutetico CM Cogitata Metafiacutesica Todasas citaccedilotildees da Eacutetica satildeo referentes agrave traduccedilatildeo realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos da USP publicada em 2015 pelaEditora Edusp (referenciada na Bibliografia) Todas as citaccedilotildees do Tratado da Emenda do Intelecto satildeo referentes agrave traduccedilatildeode Cristiano Novaes Rezende publicada em 2015 pela Editora da Unicamp (referenciada na Bibliografia) As demais obras deEspinosa (incluindo do TTP e o TP) seratildeo citadas de acordo com as normas vigentes da ABNT para citaccedilotildees

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liacutecito enquanto tratarmos da Inquisi-ccedilatildeo das coisas concluir algo a par-tir de abstraccedilotildeesrdquo (idem sect93) As-sim Espinosa possui uma posiccedilatildeocontraacuteria agrave de Arnauld e Nicole jaacuteque para o filoacutesofo a abstraccedilatildeo jamaispode ser tida como um meacutetodo parao verdadeiro conhecimento Entre-tanto isso natildeo o aproxima de BaconAo contraacuterio ao ser questionado porOldemburg a respeito de quais errosele imputava a Bacon e a Descar-tes Espinosa responde que emboranatildeo esteja acostumado a assinalar oserros cometidos por outros iraacute ex-por os trecircs principais erros de ambosldquoprimeiro estatildeo muitiacutessimo distanci-ados de conhecer a primeira causa ea origem de todas as coisas [ de-pois] natildeo conhecem verdadeiramentea natureza da alma humana [ porfim] jamais aprenderam a causa doerrordquo (ESPINOSA 2014 p 42) Oconhecimento dessas trecircs coisas (acausa primeira a natureza da mentee a causa dos erros) eacute nas palavrasde Espinosa ldquoindispensaacutevel para oexato conhecimentordquo e ldquosomente oignora aqueles que carecem em ab-soluto de todo estudo e disciplinardquo(ESPINOSA 1988 p 82) Duras pa-lavras Espinosa natildeo se deteacutem apenasno anuacutencio dos erros alheios ele daacuteexemplos de como estes erros se tor-nam manifestos na teoria de Bacone Descartes No caso de Bacon Es-pinosa parafraseia os aforismos XLIXLVIII XLIX e LI do primeiro li-vro do Novum Organum resumindo-

os em trecircs conjuntos de crenccedilas queexemplificam os erros cometidos peloBaratildeo de Verulam (1) a suposiccedilatildeode que o entendimento humano errapor sua proacutepria natureza pois tudoconcebe segundo a sua imagem e natildeosegundo a imagem do universo (2)a crenccedila de que o intelecto por suaproacutepria natureza tende ao abstrato efinge ser fixo o que na verdade eacute cam-baleante e (3) que a vontade humanaeacute livre e mais ampla que o proacuteprioentendimento e que por isso ele natildeoeacute uma luz pura antes sofre interfe-recircncia da vontade e dos afetos Seconforme explica Liacutevio Teixeira paraEspinosa todos os erros que os filoacuteso-fos comentem envolvem algum niacutevelde abstraccedilatildeo entatildeo nosso filoacutesofo aocaracterizar como errada a criacutetica ba-coniana agrave abstraccedilatildeo acaba por apon-tar que a proacutepria criacutetica de Bacon eacuteuma abstraccedilatildeo Engenho

Diante do que foi exposto pode-mos perguntar em que Espinosa sedistingue dos filoacutesofos citados quantoao tema da abstraccedilatildeo Acreditamosque tal distinccedilatildeo ocorre porque paranosso filoacutesofo a abstraccedilatildeo natildeo con-siste apenas no ato de separar e frag-mentar os objetos do conhecimento enatildeo eacute o mero estabelecimento arbitraacute-rio de princiacutepios para conhecimentograccedilas agrave interferecircncia da vontade nointelecto Antes nossa hipoacutetese eacuteque para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorrequando uma forccedila produtiva da mentenatildeo se encontra enquanto tal em ou-tros termos quando a mente natildeo tem

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consciecircncia do seu proacuteprio produzirndash eacute precisamente isso o que chama-mos de abstraccedilatildeo de si Assim se nasformulaccedilotildees presentes na Loacutegica dePort-Royal e no Novum Organum oproblema da abstraccedilatildeo aparece comoum problema na relaccedilatildeo sujeito e ob-jeto acreditamos que em Espinosa aabstraccedilatildeo possui sua origem na re-laccedilatildeo do indiviacuteduo consigo mesmo9Para melhor fundamentar tal hipoacuteteseresolvemos dividir o texto a seguirda seguinte maneira primeiro co-meccedilaremos com um panorama a res-peito do tema da abstraccedilatildeo na obra deEspinosa depois entramos no temada abstraccedilatildeo de si por fim noacutes da-remos um exemplo de como operaa criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo desi Dessa maneira noacutes partiremos domais abrangente (a anaacutelise geral) ateacuteo mais concreto (um caso exemplarna obra de Espinosa o TTP) Prossi-gamos

O tema das abstraccedilotildees na obra deEspinosa

Em toda a sua obra Espinosa faz trintae trecircs menccedilotildees diretas ao termo abs-traccedilatildeo ou a algum termo derivado doradical latino abstrac Tais menccedilotildees

se distribuem em sua obra da seguintemaneira quatorze delas estatildeo no TIEonze na correspondecircncia de Espinosa(uma na Carta II oito na Carta XIIe duas na Carta XIX) uma no KVcinco na Eacutetica e por fim mais duasmenccedilotildees no TP Aleacutem das jaacute citadashaacute mais uma no prefaacutecio que Ludo-vicus Meyer fez para o PrincipiorumPhilosophie Entretanto a abordagemdo tema das abstraccedilotildees natildeo se limitaagraves jaacute citadas menccedilotildees Podermos ava-liar a importacircncia deste tema dentroda filosofia espinosana recorrendo aolevantamento feito por Samuel Ne-wlands sobre os diversos temas quesegundo o comentador aparecem re-lacionados a ele na obra espinosana

A visatildeo materialista da alma(TIE sect74)O paradoxo de Zenatildeo (carta12)Teoria da privaccedilatildeo do Mal(carta 19)Concepccedilotildees destorcidas so-bre a providecircncia e o co-nhecimento Divino (KV I 6CM II 7)Falsa concepccedilatildeo da fiacutesicamecacircnica (carta 12)Concepccedilotildees distorcidas daliberdade e da vontade hu-

9 Isso implica dizer que haacute um certo niacutevel de autorreferecircncia na questatildeo da abstraccedilatildeo em Espinosa ndash o que natildeo nos pa-rece absurdo diante do que eacute exposto no KV no Primeiro Diaacutelogo quando a Razatildeo responde para a Concupiscecircncia que ldquooentendimento eacute a causa de suas ideias [ ] pois que suas ideias dele dependem E de outro lado um todo tendo em vista sercomposto por suas ideiasrdquo (ESPINOSA B 2014 p 65) Isto eacute o entendimento natildeo produz seus conteuacutedos como realidadesexternas natildeo haacute cisatildeo entre o produzir e o produto do agir mental Essa identidade entre o entendimento como produtor de suasideias e o entendimento como a totalidade de suas ideias nos permite dizer que haacute uma espeacutecie de ldquorefluxordquo sobre o indiviacuteduoquando este produz ideias abstratamente Supomos que a supersticcedilatildeo seja uma das manifestaccedilotildees desse ldquorefluxordquo

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mana (KV II 16 carta 2 EII P49s)Falsas concepccedilotildees acerca daperfeiccedilatildeo e da imperfeiccedilatildeo(E IV prefaacutecio)O problema do Mal (KV I6 E I apecircndice E IV prefaacute-cio)Formas de antropomorfismoteoloacutegico (E I apecircndice)O conceito de faculdadespsicoloacutegicas (KV II 16 EII P48s E II P49s)Os afetos de culpa louvor emeacuterito (E I apecircndice)Esteacutetica objetiva (E Iapp G282)Teleologia divina ou natural(E I apecircndice)Realismo Moral (CM I 6KV I 10 KV II 4 KV I 6E IV prefaacutecio)Ceticismo (E I apecircndice)(NEWLANDS S 2015 p74-5)

O levantamento realizado por Ne-wlands revela que temas caros agrave Espi-nosa (como a criacutetica ao livre-arbiacutetrioagrave teleologia e ao antropomorfismo)satildeo na verdade consequecircncias edesdobramentos das criacuteticas erigidaspelo filoacutesofo contra as abstraccedilotildeesEmbora seja assim o primeiro grandeestudo dedicado ao tema das abstra-ccedilotildees na filosofia de Espinosa soacute veioa ser realizado na segunda metade doseacuteculo XX Trata-se da tese de livre-docecircncia de Liacutevio Teixeira apresen-

tada ao departamento de filosofia daUniversidade de Satildeo Paulo em 1953mdash um marco histoacuterico nos estudos so-bre a filosofia de Espinosa Sob o tiacute-tulo A doutrina dos modos de percep-ccedilatildeo e o conceito de abstraccedilatildeo na filo-sofia de Espinosa a tese de Liacutevio natildeoera pioneira apenas por tratar do temadas abstraccedilotildees mas por apresentarum original e ineacutedito estudo a respeitodo Tratado da Emenda do IntelectoAteacute entatildeo o TIE era tido por muitos(e ainda eacute para alguns) como um textodemasiado juvenil no qual Espinosanatildeo expotildee propriamente a sua epis-temologia mas a de Descartes Con-tudo Liacutevio Teixeira mostra que as criacute-ticas agraves abstraccedilotildees presentes no TIEsatildeo fundamentais para compreender-mos a recusa de Espinosa ao dualismosubstancial cartesiano e agrave teoria da fa-culdade da vontade O ponto nevraacutel-gico da tese de Liacutevio Teixeira eacute a rela-ccedilatildeo que ele mostra haver entre a epis-temologia e a ontologia espinosanaSem este viacutenculo natildeo eacute possiacutevel en-tender o acircmago do conceito de abstra-ccedilatildeo em Espinosa o fato de que parao filoacutesofo as ideias abstratas natildeo satildeoapenas entes de razatildeo desprovidos derealidades extramental mas tambeacutemqualquer conceito concebido agrave partedo Todo Liacutevio comenta ldquoabstraireacute querer compreender a parte semo todo Ou melhor eacute atribuir reali-dade ao que eacute parcialrdquo (TEIXEIRAL [1953] 2001 p 11) Ora umavez que o Real para Espinosa consisteem uma uacutenica Substacircncia que eacute causa

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imanente de si mesma e dado quepara o filoacutesofo conhecer eacute conhecerpela causa (ir das causas aos efeitos)conclui-se que ldquosoacute podemos conhecera parte a partir do todo ou integradaao todordquo (idem ibidem) Ideias satildeoabstratas natildeo porque satildeo mutiladasconfusas e desordenadas ao contraacute-rio justamente porque satildeo concebi-das agrave parte do Real concreto (o Todo)eacute que elas seratildeo mutiladas confusas edesordenadas isto eacute abstratas Con-ceber uma ideia abstratamente signi-fica concebecirc-la fora de suas relaccedilotildees enexos Conceber algo fora dos nexosque o constitui significa concebecirc-loparcialmente sem clareza e distinccedilatildeoAleacutem disso Liacutevio Teixeira defendeque a teoria dos modos de percep-ccedilatildeoconcepccedilatildeo realizada por Espinosano Emendatione no Breve Tratado ena Eacutetica eacute ldquoum apelo ao aprofunda-mento da consciecircnciardquo que simulta-neamente ldquoconstitui o processo de eli-minaccedilatildeo do pensamento abstrato e aomesmo tempo a identificaccedilatildeo da almahumana com a Realidaderdquo (idem p171)

Seguindo a via aberta por LiacutevioTeixeira faccedilamos uma breve anaacutelisedas diversas apariccedilotildees do tema dasabstraccedilotildees na filosofia de EspinosaPodemos apreender a visatildeo que Es-pinosa tem dos conceitos abstratos setomarmos como exemplo o que o fi-

loacutesofo diz no KV I 6 (7) ldquotodas ascoisas particulares e somente elastecircm causa e natildeo as universais poisestas nada satildeordquo Tambeacutem no mesmocapiacutetulo do KV mas agora no sect9 Es-pinosa toma os conceitos de bem male pecado como abstraccedilotildees e por issocomo natildeo sendo ldquooutra coisa do quemodos de pensar e de maneira ne-nhuma coisas ou algo que tenhamexistecircnciardquo (itaacutelicos de Espinosa) Emoutra passagem do KV ndash a nota de ro-dapeacute do sect4 de KV II 16 ndash Espinosafala que os conceitos de vontade eintelecto enquanto faculdades do es-piacuterito natildeo passam universais concebi-dos a partir de abstraccedilotildees realizadas apartir de voliccedilotildees mentais singularese por isso conclui que enquanto ensrationis ldquonatildeo posso atribuir-lhes nadarealrdquo Jaacute nos CM I 1 Espinosa dizque gecircnero espeacutecie tempo nuacutemero emedida ldquonatildeo satildeo ideias de coisas e demodo algum podem ser colocados en-tre as ideias por isso tambeacutem natildeo tecircmeles nenhum ideado que exista neces-sariamente ou que possa existirrdquo

Para Samuel Newlands essestrechos parecem endossar queEspinosa manteacutem um ldquostrong-anti-abstractionism (SAA)rdquo10 (NE-WLANDS 2015 [I] p 256) Emoutros termos para Newlands essestrechos aparentemente reforccedilam quepara Espinosa as abstraccedilotildees nada satildeo

10 Literalmente antiabstracionismo forte11 ldquo(SAA) There are no such things as abstract objects According to SAA abstracta do not exist full stoprdquo (NEWLANDS

2015 [I] p 256)

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Assim de acordo com a SAA ldquonatildeoexistem coisas como objetos abstra-tos [] ponto finalrdquo (idem ibidem)11Assim o strong-anti-abstractionismse caracterizaria por uma postura me-ramente eliminativa tomando as abs-traccedilotildees como meras quimeras ou ir-realidades a serem descartadas12 En-tretanto em outras passagens do textoespinosano noacutes encontramos umaposiccedilatildeo mais moderada em relaccedilatildeoagraves abstraccedilotildees aquilo que Newlandschama de ldquoweak-anti-abstractionism(WAA)rdquo13 (NEWLANDS 2015 [I]257) Um dos trechos levantados pelocomentador para reforccedilar a sua hipoacute-tese eacute a passagem dos Cogitata I 1Laacute Espinosa usa o exemplo da teacutecnicamnemocircnica que consiste em estabe-lecer relaccedilotildees entre conteuacutedos men-tais diversos para explicar os univer-sais

Que haja certos modos depensar que sirvam para maisfirme e facilmente reter ascoisas [ ] consta-o sufici-entemente os que utilizamaquela notoacuteria regra de me-moacuteria pela qual para retere imprimir na memoacuteria umacoisa noviacutessima recorre-se a

outra que nos seja familiar eque com ela convenha []de modo semelhante [huncsimiliter in modum] os filoacute-sofos reduziram todas as coi-sas naturais a certas classesagraves quais recorrem quandoocorre-lhes algo novo e a quechamam de gecircnero espeacutecieetc (CM I 1)

Esse trecho insere-se na parte dos Co-gitata dedicada a explicar o que satildeoos entia rationis (entes de razatildeo) eem vista disso Newlands comentaque na perspectiva de um WAA ldquoosobjetos abstratos satildeo entidades [en-tities] dependentes da mente Maisespecificamente Espinosa pensa queas abstraccedilotildees satildeo representaccedilotildees con-fusas de uma mente finitardquo (NE-WLANDS 2015 [I] 257)14 Assimna leitura de Newlands os objetosabstratos satildeo representaccedilotildees determi-nadas pelos modos finitos de pensa-mento15 A sequecircncia do texto dosCogitata parece reforccedilar a tese de Ne-wlands afinal Espinosa afirma quequando se indaga o que eacute uma es-peacutecie nada mais busca-se ldquodo que anatureza deste modo de pensar queeacute deveras um ente e distingue-se de

12 Outras passagens parecem endossar uma posiccedilatildeo do tipo SAA por exemplo Espinosa no sect99 do TIE escreve que ldquoeacute neces-saacuterio desde o iniacutecio sempre deduzir nossas ideias [] a partir de um ente real para outro ente real de modo que seguramentenatildeo passemos a ideias abstratas e universais [ ] pois interrompem o verdadeiro progresso do intelectordquo

13 Literalmente antiabstracionismo fraco14ldquo(WAA) Abstract objects are mind-dependent entities More specifically Spinoza thinks abstracta are confused represen-

tations of a finite mindrdquo (NEWLANDS 2015 [I] 257)15 ldquoIn Spinozarsquos preferred ontology abstract objects are the representational contents of particular finite modes of thinkingrdquo

(NEWLANDS 2015 [I] 257)

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outro modo de pensar esses modosde pensar contudo natildeo podem serchamados de ideias nem podem serditos verdadeiros ou falsosrdquo (CM I1) Aleacutem disso Espinosa distinguea ficccedilatildeo da abstraccedilatildeo ao afirmar queum ente de razatildeo natildeo ldquodepende soacuteda vontade e nem consta de termosconectados entre sirdquo (idem ibidem)Vinculando isso com o sect93 do TIE mdashno qual Espinosa fala que devemosnos acautelar e nunca concluir algoa partir de abstraccedilotildees ao tratarmosda inquisiccedilatildeo das coisas evitandodessa maneira confundir o que estaacutesomente no nosso intelecto com o queestaacute na coisa mdash Samuel Newlands ca-racteriza o weak-anti-abstractionism(WAA) como sendo uma preocupaccedilatildeode Espinosa sobre os efeitos de pen-sarmos abstratamente ao investigar-mos a natureza a dizer a reificaccedilatildeoda abstraccedilatildeo no conteuacutedo da investi-gaccedilatildeo16

Embora a interpretaccedilatildeo de Ne-wlands seja riquiacutessima17 haacute algunspontos que eacute uacutetil lembrar ao lidarmoscom os textos do Cogitata primeiroEspinosa manteacutem-se proacuteximo da lin-guagem cartesiana como pode-se no-tar pela referecircncia agrave vontade Aleacutemdisso Espinosa define o ente de razatildeocomo ldquoum modo de pensar que servepara mais facilmente reter explicar e

imaginar as coisas entendidasrdquo (idemibidem ndash itaacutelico nosso) e natildeo comoldquorepresentaccedilotildees confusasrdquo comoafirma Newlands A respeito da ideiade representaccedilatildeo vale ressaltar queEspinosa eacute contraacuterio a tal concep-ccedilatildeo De fato na Eacutetica Espinosa serefere agrave ideia como ldquoconceito que amente forma por ser coisa pensanterdquo(EII D3 ndash itaacutelico nosso) Na explica-ccedilatildeo dessa definiccedilatildeo ele acrescenta queusou o termo ldquoconceitordquo em vez deldquopercepccedilatildeordquo com o objetivo de indi-car o caraacuteter ativo da mente EmboraEspinosa diga diversas vezes nos Co-gitata que os entes de razatildeo natildeo satildeoideias e natildeo podem ser chamados deideias mdash afinal toda ideia possui umcaraacuteter objetivo e os ens rationis natildeomdash ele natildeo fala que os entes de ra-zatildeo satildeo representaccedilotildees Antes elese refere aos entes de razatildeo com a ex-pressatildeo ldquomodum cogitandirdquo que numatraduccedilatildeo flexiacutevel poderia ser chamadode ldquomaneiras de pensarrdquo Assim osentes de razatildeo se aproximam maisde um modo de operaccedilatildeo mental doque de uma representaccedilatildeo objetivaTambeacutem eacute preciso ressaltar que nadefiniccedilatildeo oferecida por Espinosa aosentes de razatildeo no CM ele fala queeles auxiliam na retenccedilatildeo explicaccedilatildeoe imaginaccedilatildeo das ldquocoisas entendidas[res intellectas]rdquo (CM I 1) O que o

16 ldquoSpinozarsquos main concern is that thinking abstractly while ldquoinvestigating naturerdquo often leads to a confused reification ofabstractardquo (NEWLANDS 2015 [I] 265)

17 As consideraccedilotildees de Newlands sobre o tema das abstraccedilotildees em Espinosa satildeo muito importantes na medida em que eleaponta para o processo de reificaccedilatildeo da abstraccedilatildeo Aleacutem disso Newlands faz uma inovadora leitura sobre a aplicaccedilatildeo queEspinosa faz no campo eacutetico das criacuteticas agraves abstraccedilotildees

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nosso filoacutesofo aponta repetidamentenesse primeiro capiacutetulo dos Cogitataeacute que o erro em relaccedilatildeo aos entes derazatildeo estaacute em afirmaacute-los como entes[ens] isto eacute estaacute em confundir umamaneira de pensar com uma realidadeobjetiva Neste sentido eacute significa-tivo que Espinosa compare os entesde razatildeo com uma teacutecnica mnemocirc-nica A relaccedilatildeo estabelecida por Es-pinosa natildeo eacute entre tipos de entes (umreal e o outro apenas mental) antes arelaccedilatildeo eacute estabelecida entre uma teacutec-nica e o que eacute comumente chamadode ens rationis Por fim Espinosa ex-plica a origem da confusatildeo existenteem chamar uma maneira de pensar deens

a causa por que esses mo-dos de pensar satildeo tidoscomo ideias de coisas eacute quetatildeo imediatamente provecircme originam-se das ideias deentes reais que satildeo facil-mente confundidos com elaspor aqueles que natildeo atentammui cuidadosamente [accu-ratissimegrave attendum] dondetambeacutem lhes terem impostonomes como se para signi-ficar entes que existem forade nossa mente e chamandotais entes ou antes natildeo en-tes de entes de razatildeo (idemibidem)

A causa da confusatildeo estaacute no fato deconfundir o processo com o proces-

sado Aqueles que natildeo attendum ac-curatissimegrave tendem a cometer o errodenunciado no sect93 do TIE mistu-rar aquilo que estaacute somente no inte-lecto (processo) com aquilo que estaacutena coisa (processado) A esta confu-satildeo acrescenta-se mais uma originaacute-ria natildeo apenas da falta de uma caute-losa atenccedilatildeo mas tambeacutem da dilata-ccedilatildeo linguiacutestica atribui-se nomes aosprocessos mentais da mesma maneiraque se nomeia coisas Essa duplaconfusatildeo permite natildeo apenas o totaldesconhecimento da natureza da ati-vidade mental quanto a sua reificaccedilatildeonuma suposta coisa independente umsuposto ente Assim embora dis-cordamos de Newlands quando elechama as abstraccedilotildees de representa-ccedilotildees confusas da mente finita concor-damos com ele quanto ao fato do pro-cesso de abstraccedilatildeo envolver uma reifi-caccedilatildeo Entretanto a respeito deste uacutel-timo ponto gostariacuteamos de acrescen-tar que a reificaccedilatildeo natildeo ocorre ape-nas no uso das abstraccedilotildees (por exem-plo nas ciecircncias ldquoao lidarmos com ascoisas naturaisrdquo) mas sobretudo aproacutepria produccedilatildeo de conceitos abstra-tos envolve um processo de reifica-ccedilatildeo Nossa hipoacutetese eacute que os proacutepriosconceitos abstratos satildeo reificaccedilotildees deprocessos mentais na categoria geralde ente Reificaccedilatildeo essa que soacute eacute pos-siacutevel mediante o apagamento do caraacute-ter produtivo (e portanto causal) dasideias Isso evidencia porque Espi-nosa diz que da mesma maneira quea teacutecnica mnemocircnica eacute apenas uma

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maneira de pensar e organizar os da-dos de nossa memoacuteria assim tambeacutemas classificaccedilotildees como gecircneros espeacute-cies etc satildeo modos de pensar Toma-dos sob esse prisma os universais osgecircneros e as espeacutecies natildeo passariamde associaccedilotildees mentais arbitraacuterias18

19 mdash natildeo satildeo coisas mas operaccedilotildeesmentais

No entanto para ficar mais evi-dente o ponto levantado tomemos emconsideraccedilatildeo outro trecho da obra deEspinosa em que o filoacutesofo fala sobreo tema das abstraccedilotildees a nota h dosect21 do TIE Laacute o filoacutesofo explica quequando chegamos agraves conclusotildees demaneira abstrata eacute preciso sermos ma-ximamente cautelosos [caventibus]Espinosa informa que tais conclusotildeesainda que sejam verdadeiras ldquonatildeo es-tatildeo suficientemente protegidasrdquo con-tra confusotildees Que tipo de confu-sotildees Espinosa explica aquilo queos homens concebem abstrata sepa-rada e confusamente ldquoeles impotildee no-mes os quais jaacute satildeo usados por elespara significar outras coisas mais fa-miliares o que faz com que aquelascoisas sejam imaginadas do mesmomodo que estasrdquo (TIE sect21 nota ndash itaacute-licos nossos) Gostariacuteamos de focar

apenas um aspecto dessa nota a refe-recircncia agrave linguagem Espinosa afirmaque os homens atribuem aos concei-tos abstratos os mesmos nomes queusaram para significar coisas que lhessatildeo familiares [res familiaria] Destemodo a nota h parece solidaacuteria doCogitata ao afirmar que haacute uma trans-posiccedilatildeo do campo das abstraccedilotildees parao campo das coisas quando se nomeiaas primeiras da mesma maneira queas uacuteltimas Assim podemos afirmarque quando o campo semacircntico quediscursa sobre coisas [res] passa aser usado para referir-se agraves abstra-ccedilotildees ocorre um mascaramento dasproacuteprias abstraccedilotildees que se ocultamsob o manto supostamente liacutempido dalinguagem que discursa a respeito dascoisas

Acreditamos tambeacutem que essaconfusatildeo ou melhor transposiccedilatildeo deum conjunto de signos (palavras queversam sobre coisas) para um campodiverso (o campo semacircntico das ope-raccedilotildees mentais) explica a primeiraparte da nota h20 Antes de tudodevemos nos lembrar que os nomessatildeo signos que pertencem ao campoda imaginaccedilatildeo aleacutem disso sabemosque a razatildeo (conforme o exemplo da

18 Que o leitor natildeo confunda arbitraacuterio com livre-arbiacutetrio ou como associaccedilotildees estabelecidas pela vontade (o que aproxi-maria Espinosa de Bacon) Arbitraacuterio aqui eacute tomado em seu sentido mais fraco como algo que natildeo necessariamente possuicorrespondecircncia com os entes extramentais

19 Ora uma vez que as associaccedilotildees satildeo dependentes de semelhanccedilas os universais tendem agraves generalidades abstratas quenatildeo conseguem alcanccedilar singularidades Isso parece ser reforccedilado pelo que Espinosa no TIE sect93 quando conclui que ldquoa partirtatildeo somente dos axiomas universais o intelecto natildeo pode descer agraves coisas singularesrdquo Assim cruzando a passagem do CMcom o sect93 do TIE podemos entender o que foi dito em KV I 6 (7) a respeito de que somente as coisas particulares possuemcausa e as universais natildeo eacute que somente as coisas singulares satildeo de fato realidades existentes fora da mente isto eacute satildeo coisas

20 O iniacutecio da nota h diz que os homens no uso da razatildeo ldquose natildeo se acautelam incidiratildeo imediatamente em erros pois quandose concebem as coisas assim abstratamente e natildeo pela verdadeira essecircncia satildeo imediatamente confundidos pela imaginaccedilatildeordquo

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quarta proporcional nos sect23 e sect24 doTIE) muitas vezes opera pelo merocaacutelculo sobre os signos sem se darconta dos verdadeiros processos men-tais que estatildeo envolvidos em tal accedilatildeoSobre esse ponto vale retomar aquibrevemente as consideraccedilotildees de Cris-tiano Rezende em seu artigo Os Pe-rigos da Razatildeo Segundo Espinosaa inadequaccedilatildeo do terceiro modo deperceber no tratado da emenda do in-telecto O comentador argumenta quea razatildeo abre chancela para a abstraccedilatildeona medida em que opera de maneirameramente mecacircnica Apoiando-seno exemplo dado por Espinosa no sect24do TIE a respeito da quarta proporci-onal Cristiano Rezende conclui queldquoa razatildeo realiza certas operaccedilotildees loacutegi-cas sem que no entanto sejam real-mente efetuados todos os atos mentaisem que se baseiam os sinaisrdquo (RE-ZENDE C N 2004 p 111) Esteoperar agraves cegas pode degenerar-se emmera ldquoteacutecnica teoacutericardquo aplicada demaneira generalizada e indistinta aqualquer objeto Para Cristiano Espi-nosa diz que a razatildeo opera de maneiranatildeo adequada justamente porque

a maneira racional de conhe-cer agrave diferenccedila da intelec-tual corre o risco de limitar-se agrave aplicaccedilatildeo externa de uminstrumento de caacutelculo deutilidade inquestionaacutevel masem essecircncia indistinta de umcompetente trabalho admi-nistrativo sobre um ldquojogo de

signosrdquo Portanto o verda-deiro perigo [] eacute que a ra-zatildeo se tome e se decirc por autocirc-noma limitando a percepccedilatildeoa essa capacidade de super-visionar o mundo entatildeo re-duzido ao objeto X das ope-raccedilotildees racionais (idem ibi-dem)

Para o comentador essa operatividadeda razatildeo pode desdobrar-se numapostura fetichista na qual a pes-soa se entreteria mais com a eficaacute-cia das operaccedilotildees racionais do quecom o proacuteprio estar no mundo oque redundaria na pessoa deixar deldquojuntar-se ao mundo atraveacutes de suasconstruccedilotildeesrdquo (idem p 112) Emsuma Cristiano Rezende diz dandoum sentido espinosano para a frase deMerleau-Ponty que a percepccedilatildeo redu-zida agrave sua forma meramente racionaldesemboca ldquonuma ciecircncia que mani-pula as coisas sem habitaacute-lasrdquo (idemibidem) Assim atribuir agraves abstraccedilotildeesum campo semacircntico cujo o uso co-mum eacute direcionado agraves coisas podeem uacuteltima instacircncia abrir margempara as confusotildees da imaginaccedilatildeo jaacuteque a razatildeo ao atuar com signos tendea operar de maneira meramente calcu-lativa

A nota h do TIE nos lembra ou-tro texto aleacutem dos Cogitata e escritoposteriormente a ambas as obras oCompecircndio de Gramaacutetica HebraicaEspinosa dedica o capiacutetulo V de suagramaacutetica para explicar o que satildeo no-mes ldquopor nome entendo uma pala-

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vra pela qual significamos ou indica-mos algo que cai sob o entendimentordquo(ESPINOSA B 2014 p 418) Nasequecircncia Espinosa faz uma ressalvanem tudo o que cai sob o enten-dimento satildeo coisas mas tambeacutemldquoatributos de coisas modos e rela-ccedilotildees ou accedilotildees e modos de relaccedilotildeesde accedilotildeesrdquo (idem ibidem) Sendo as-sim a linguagem possui uma dilata-ccedilatildeo maior do que o campo proacuteprio dascoisas Disso a preocupaccedilatildeo de Espi-nosa em distinguir o que eacute um subs-tantivo o que eacute um adjetivo o que eacuteum nome relativo um particiacutepio uminfinitivo e um adveacuterbio Espinosaafirma veementemente que um subs-tantivo e um nome proacuteprio soacute podemser ditos de coisas singulares mdash ldquonatildeopodemos indicar senatildeo um indiviacuteduosingularrdquo (idem p 419 ndash itaacuteliconosso) Capiacutetulos a frente Espinosavolta a insistir que substantivos satildeonomes de coisas ldquonomes [] paraindicar as coisas de modo absolutordquo(idem p 432) Natildeo satisfeito Es-pinosa faz uma lista com exemplosnos quais demonstra o que eacute um ad-jetivo e o que eacute um substantivo Emsiacutentese em toda a primeira parte doCompecircndio Espinosa demonstra umapreocupaccedilatildeo atenuada em distinguiro que eacute um adjetivo e o que eacute umnome proacuteprio ou um substantivo Es-pinosa tambeacutem alerta que um nomerelativo como adjetivos etc soacute fazsentido em relaccedilatildeo a algo e por issolsquorepugna agrave natureza dos nomes proacute-priosrsquo (idem ibidem) A partir do

Compecircndio podemos conjecturar quena nota h ao afirmar que noacutes nome-amos abstraccedilotildees da mesma maneiraque nomeamos coisas Espinosa de-sejava apontar a tendecircncia de subs-tantivar aquilo que natildeo eacute e natildeo podeser qualificado como um substantivo(como eacute o caso das abstraccedilotildees)

Haacute em todos esses textos algo cen-tral que ateacute o momento natildeo demosmuita atenccedilatildeo a referecircncia agrave cautelaEspinosa fala na supracitada nota hque a confusatildeo ocorre aos que natildeosatildeo ldquomaximamente cautelosos [ma-ximegrave caventibus]rdquo nos Cogitata elefala que isso ocorre aos que natildeo atten-dum accuratissimegrave Isso indica quetais confusotildees que redundam na afir-maccedilatildeo de conceitos ou termos abstra-tos podem ser evitadas por meio dacautela e da atenccedilatildeo ao operar men-talmente de determinada maneira mdashno caso dos Cogitata ao fazer associa-ccedilotildees mentais e no caso do TIE ao pro-ceder de maneira analiacutetica indo dosefeitos para a causa Esse ponto nosinteressa pois acreditamos que todaabstraccedilatildeo envolve um certo desconhe-cimento de si Nossa hipoacutetese eacute quepara Espinosa os problemas originaacute-rios no uso dos conceitos abstratosnatildeo se estabelecem de maneira imedi-ata na relaccedilatildeo de um suposto sujeito eum objeto antes eles satildeo originaacuteriosdo fato de aquele que se coloca comosujeito natildeo se perceber enquanto pro-dutor das abstraccedilotildees Assim abre-seuma fenda entre o agir mental desteindiviacuteduo e o produto dessa accedilatildeo de

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tal maneira que aquele que produz asabstraccedilotildees natildeo tem consciecircncia plenade seu proacuteprio produzir e nem dos re-sultados de sua produccedilatildeo Eacute precisa-mente isso que chamamos de abstra-ccedilatildeo de si E eacute este o proacuteximo foco denossa atenccedilatildeo

Haacute abstraccedilatildeo de si na origem detoda abstraccedilatildeo

Ateacute onde sabemos nenhum comenta-dor da obra de Espinosa usou a ex-pressatildeo abstraccedilatildeo de si no entantoa tradiccedilatildeo interpretativa jaacute trabalha eindica a presenccedila deste tema na filo-sofia espinosana haacute um certo tempoEm seu Nervura do Real MarilenaChaui ressalta que para Espinosauma vez que somos partes de umacausalidade imanente nossa mente eacuteconcebida como vis nativa e espon-tacircnea para o conhecimento (CHAUIM 1999 p 83) Isso significa quenossa mente na medida em que eacutepartiacutecipe do agir da Realidade agepor si mesma segundo a sua neces-sidade interna e as conexotildees entre assuas ideias ou seja a mente eacute nas pa-lavras de Espinosa um ldquoautoma spi-ritualerdquo Chaui chama a nossa aten-ccedilatildeo para as seguintes palavras de Es-pinosa no Breve Tratado ldquochamo oIntelecto de causa enquanto eacute causade seus conceitos (ou enquanto de-pende de seus conceitos) e o chamode todo enquanto constituiacutedo por to-dos os seus conceitosrdquo (ESPINOSAB 2012 p 65) Agrave guisa dessas pala-

vras Chaui comenta

nossa mente eacute uma potecircn-cia pensante que causa asuas proacuteprias ideias e as arti-cula com outras ideias [ ]Ideias satildeo pois aconteci-mentos mentais que quandoverdadeiras ou adequadassatildeo atos intelectuais quepotildeem sua proacutepria necessi-dade tanto quanto agrave sua gecirc-nese como quanto aos seusefeitos e agraves relaccedilotildees com ou-tras ideias afirmando o mo-vimento e o trabalho do pen-samento que somos e no qualestamos (CHAUI M 1999p 88 ndash itaacutelicos nossos)

Como acontecimento mental umaideia eacute originaacuteria na atividade internaagrave proacutepria mente na qual tambeacutem par-ticipa efetivamente Nas palavras deChaui a atividade mental consiste emcompreender a gecircnese das afecccedilotildeescorporais as relaccedilotildees necessaacuterias en-tre os corpos a gecircnese de suas proacute-prias ideias e as conexotildees necessaacuteriasentre elas de tal maneira a apreenderos nexos que constituem a realidadeinteira e as essecircncias singulares porela produzidas (idem ibidem) Eacute apartir da compreensatildeo dos nexos queconstituem as relaccedilotildees entre os cor-pos as relaccedilotildees entre as ideias e aarticulaccedilatildeo entre corpos e ideias quea mente pode enveredar-se por assim

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dizer na nervura do real Ou seja amente pode apreender-se como parteativa da Realidade Liacutevio Teixeirandash conforme o que comentamos an-teriormente ndash e Marilena Chaui nosmostram que para Espinosa a mentesoacute pode compreender-se como partede um Todo no momento em queela encontra-se em plena identidadeconsigo mesma Essa identificaccedilatildeonasce do esforccedilo reflexivo da menteem apreender a sua proacutepria gecircnesee a gecircnese de suas ideias O cora-ccedilatildeo dessa via interpretativa estaacute emmostrar que na filosofia espinosanao caminho reflexivo consiste simul-taneamente na saiacuteda das abstraccedilotildees ena descoberta da mente como partiacute-cipe da atividade do Real concreto mdasho que poderiacuteamos chamar de saiacuteda deuma condiccedilatildeo propriamente abstratana qual o proacuteprio homem se concebeagrave parte da realidade e do Todo Assimcruzando (I) a tese de Liacutevio Teixeirana qual a abstraccedilatildeo consiste em con-siderar a parte fora do todo (II) oscomentaacuterios de Marilena Chaui quemostram que a superaccedilatildeo da abstra-ccedilatildeo eacute a verdadeira entrada da mentena nervura do real isto eacute o seu en-contro consigo mesma como parteda atividade do Real (III) os traba-lhos de Cristiano Rezende nos quaisevidencia-se que para Espinosa a abs-traccedilatildeo envolve a construccedilatildeo de umaracionalidade meramente instrumen-tal e incapaz de compreender todosos atos mentais implicados em seuscaacutelculos e por fim (IV) as pesquisas

de Newlands que demonstram queo processo de abstraccedilatildeo envolvem areificaccedilatildeo dos conteuacutedos meramentementais qual eacute a conclusatildeo Peloprisma dessas interpretaccedilotildees a abstra-ccedilatildeo natildeo eacute apenas uma ideia confusae mutilada mas sobretudo um pro-cesso que reflui sobre o indiviacuteduo eenvolve uma perda de si mesmo Sejauma perda enquanto parte do Todo(Liacutevio Teixeira e Marilena Chaui)seja uma perda em relaccedilatildeo agrave cons-ciecircncia de suas proacuteprias atividadesmentais (Cristiano Rezende e SamuelNewlands) Acreditamos que tal in-terpretaccedilatildeo possui lastro no proacutepriotexto espinosano

Em nossa anaacutelise do texto espino-sano noacutes frisamos a repetida expres-satildeo espinosana ldquoda mesma maneirardquo(eodem modo no TIE e hunc simili-ter in modum no CM) Eacute muito cu-rioso que em vaacuterios dos momentosque Espinosa explica o processo deabstraccedilatildeo ele usa exemplos de outrosprocessos mentais que operam ldquodamesma maneirardquo Nos dois casos aquicitados (a formaccedilatildeo dos conceitos deespeacutecie e gecircnero no CM e o ato de no-mear na nota h do TIE) Espinosa usaexemplos comuns e cotidianos As-sim Espinosa parece vincular a abs-traccedilatildeo a uma atividade banal e semgrandes misteacuterios (o ato de nomearcalcular uma regra de trecircs ou uma teacutec-nica mnemocircnica) A diferenccedila entreessas accedilotildees comuns e as abstraccedilotildeesnatildeo nos parece estar associada aosprocessos dessas atividades A dis-

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tinccedilatildeo entre a teacutecnica mnemocircnica ea formaccedilatildeo dos gecircneros por exem-plo natildeo parece encontrar-se na loacutegicaoperativa pela qual cada um dessesprocessos ocorrem Antes ela pa-rece residir no grau de consciecircnciaque a pessoa tem a respeito do seuproacuteprio agir mental Um gecircnero eacuteformado hunc similiter in modum agraveteacutecnica mnemocircnica Nomeia-se umconceito abstrato da mesma maneiraque nomeia-se uma coisa A dife-renccedila poreacutem eacute que aquele que aplicae teacutecnica de associaccedilatildeo mental dasmemoacuterias sabe que fez tal associ-accedilatildeo e em consequecircncia sabe queela eacute arbitraacuteria e natildeo algo que existafora de sua mente Ocorre o mesmocom aquele que nomeia algo e sabeo que nomeou ainda mais sabe oque eacute nomear e que tipo de nomedar de acordo com o que se nomeiaPor outro lado aquele que concebeabstratamente ldquovive quase inconsci-ente de si de Deus e das coisasrdquo (EV P42 sch)21 Ou seja natildeo sabeque os gecircneros satildeo frutos de seu la-bor mental natildeo sabe o que nomeia enem sabe nomear O mais traacutegico eacuteque este natildeo saber permite a reifica-ccedilatildeo do labor mental numa abstraccedilatildeoque aparece para o indiviacuteduo comocoisa real desconectada dele e a elerevelada Quando operamos de ma-neira abstrata confundimos os frutos

de nosso trabalho mental com desco-bertas que aparecem como indepen-dentes de noacutes e existentes em si mes-mas A abstraccedilatildeo envolve um modode produccedilatildeo no qual a causalidadeimanente eacute apagada em detrimento deuma causalidade transitiva que pendepara o transcendente de tal maneiraque produtor e o produzido natildeo seidentificam Aliaacutes essa eacute a marca dacausalidade transcendente a cisatildeo ir-remediaacutevel entre causa e efeito

A urgecircncia de um autoconheci-mento aparece diversas vezes no TIENo sect105 do TIE Espinosa escreveque o meacutetodo para se chegar ao co-nhecimento das coisas eternas eacute refle-xivo e consiste em conhecer o proacutepriointelecto suas forccedilas e suas propri-edades Tambeacutem no mesmo paraacute-grafo Espinosa fala que este autoco-nhecimento por parte do intelecto eacute omeio para a aquisiccedilatildeo do fundamentoa partir do qual ldquodeduziremos nos-sos pensamentos na medida em quenossa capacidade suportardquo No sect25TIE o primeiro ponto levantado porEspinosa para alcanccedilar o ldquonosso fimrdquoaquele que se encontra no sect13 doTIE (o ldquoconhecimento da uniatildeo que amente tem com a Natureza inteirardquo ndashque eacute tambeacutem a saiacuteda da abstraccedilatildeo) eacuteldquo(i) Conhecer exatamente a nossa na-tureza que desejamos aperfeiccediloar esimultaneamente da natureza das coi-

21 Eacute importante lembrarmos que quando Espinosa critica Descartes e Bacon agrave Oldemburg na Carta II ele fala que ambos osfiloacutesofos encontram-se em situaccedilatildeo relativamente proacutexima da citada neste escoacutelio ldquoo primeiro e maior erro de ambos consisteem que estatildeo muitiacutessimos distanciados de conhecer a primeira causa e a origem de todas as coisas [Deus] A segunda eacute quenatildeo conhecem verdadeiramente a natureza da alma humana [inconsciecircncia de si]rdquo (ESPINOSA 2014 p 42)

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sas quanto seja necessaacuteriordquo (TIE sect25ndash itaacutelicos nossos) De outro modosair da abstraccedilatildeo e conhecer a uniatildeoque a nossa mente tem com a natu-reza inteira envolve necessariamentee em primeiro lugar ldquoconhecer exa-tamente nossa naturezardquo (idem ibi-dem) Tambeacutem no mesmo sentidoo sect16 do TIE afirma ldquoantes de tudo[ante omnia] poreacutem haacute de se exco-gitar um modo de remediar o inte-lecto e expurgaacute-lo o quanto permiteo iniacutecio para que ele intelija as coisascom felicidade sem erro e da melhormaneirardquo Na sequecircncia Espinosa falaque para realizar tal intento faz-se ne-cessaacuterio ldquoque eu resuma aqui todos osmodos de perceber de que ateacute agoradispus para afirmar ou negar algo []para que eu eleja o melhor de todose simultaneamente comece a conhe-cer minhas forccedilas e natureza que de-sejo aperfeiccediloarrdquo (TIE sect18 ndash itaacuteliconosso) Se nos textos em que Espi-nosa trata da abstraccedilatildeo ele faz refe-recircncias aos que natildeo satildeo cautelososnatildeo prestam atenccedilatildeo e natildeo conhecema natureza do intelecto nos textos emque ele propotildee a maneira de sair daabstraccedilatildeo ele sempre exorta o retornoa si na busca do autoconhecimento

Para acrescentar um exemplo a res-peito de quatildeo determinante eacute o co-nhecimento de si noacutes citaremos aindaque brevemente a questatildeo das hipoacutete-ses em Espinosa Acreditamos que eacute

o autoconhecimento ou melhor o co-nhecimento reflexivo o que impede ahipoacutetese de ser classificada no sect57 doTIE como mera abstraccedilatildeo Vejamos

Cristiano Rezende comenta que oestatuto epistecircmico das hipoacuteteses eraalgo em disputa no seacuteculo XVII22A tradiccedilatildeo havia caracterizado as hi-poacuteteses como um tipo de proposiccedilatildeoda qual natildeo eacute possiacutevel num primeiromomento haver demonstraccedilatildeo e queestabelece ou natildeo o ser de algo Ori-ginaacuteria da palavra ὑπόθεσις do gregoantigo lsquohypoacutethesisrsquo (transliteraccedilatildeo) eacuteformada pela uniatildeo de lsquohyporsquo (lsquosobrsquolsquoabaixo dersquo) e lsquotheacutesisrsquo (lsquoposiccedilatildeorsquo)Assim uma lsquohypothesisrsquo caracteriza-se pelo ato de fazer deduccedilotildees concisasa partir da accedilatildeo de colocar algo sob[hypo] uma certa perspectiva intelec-tual [a thesis] mdash perspectiva essa quesoacute pode ser intelectual pois natildeo haacutecomo realizar experimentos daquiloque natildeo eacute efetivo mas contrafactualNos seiscentos poreacutem as hipoacuteteseshaviam sido reduzidas ao instrumen-talismo O exemplo maacuteximo dissoencontra-se na disputa entre teoacutelo-gos e cientistas com relaccedilatildeo agrave vali-dade das hipoacuteteses do De Revolutio-nibus Orbium Coelestium de Copeacuter-nico Andreas Osiander em vistas deabrandar os teoacutelogos inseriu apocri-famente no Revolutionibus um prefaacute-cio no qual dizia ldquonatildeo eacute necessaacuterioque essas hipoacuteteses sejam verdadei-

22 Cf REZENDE Cristiano N O Estatuto das Hipoacuteteses Cientiacuteficas na Epistemologia de Espinosa Cadernos de Histoacuteriade Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 18 n 1 jan-jun 2008 p 147-71

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

ras e nem mesmo verossiacutemeis bas-tando apenas que forneccedilam caacutelculosque concordem com as observaccedilotildeesrdquo(OSIANDER A apud REZENDE2018 v 18 p 150)23 Dessa ma-neira a questatildeo que surge a respeitodas hipoacuteteses pode ser sintetizada daseguinte forma seriam elas apenasum instrumento abstrato sem com-promisso com o conhecimento da re-alidade ou estariam elas de acordocom a lsquonorma da verdadersquo isto eacute ca-pazes de proporcionar aos homensconhecimentos verdadeiros Espi-nosa estava consciente dessa discus-satildeo prova disso eacute que ao tratar dashipoacuteteses no TIE ele faz referecircncia aotema copernicano24 Faz-se necessaacute-rio perguntar o que nos fala Espinosasobre as hipoacuteteses No sect57 do Emen-datione Espinosa comeccedila por definiro que eacute uma quimera e o que eacute umaficccedilatildeo somente apoacutes isso eacute que elededica-se a tratar da hipoacutetese Ao fa-zer isso a primeira coisa que o filoacute-sofo estabelece satildeo as fronteiras entreas duas primeiras e a uacuteltima25 Dissouma conclusatildeo eacute imediata uma hi-poacutetese natildeo eacute uma quimera e natildeo eacuteuma ficccedilatildeo e portanto natildeo pode seruma ferramenta de caraacuteter meramenteficcional Entretanto essa conclusatildeonatildeo protege a hipoacutetese de ser consi-

derada uma abstraccedilatildeo afinal comovimos no caso dos entes de razatildeo noCM Espinosa tambeacutem os distingueda mera ficccedilatildeo e da quimera Veja-mos como prossegue nosso filoacutesofo

Definida a quimera e a ficccedilatildeo Es-pinosa fala no sect57 do TIE que tra-taraacute das ldquoquestotildees supostas o quepor vezes tambeacutem acontece a pro-poacutesito de impossibilidadesrdquo isto eacutedas hipoacuteteses Espinosa recorre en-tatildeo ao exemplo da vela lsquoardente quenatildeo ardersquo Ele propotildee entatildeo duas su-posiccedilotildees hipoteacuteticas nas quais umavela ainda que flamejante perdurasem se consumir (I) quando dizer-mos ldquosuponhamos que esta vela ar-dente natildeo arde agorardquo (idem ibidemndash itaacutelicos nossos) isto eacute quando tra-zemos agrave mente a ideia de uma ou-tra vela natildeo acesa (II) quando aocontraacuterio falamos ldquosuponhamos ar-der em algum espaccedilo imaginaacuterio ouonde natildeo se daacute corpo algumrdquo (idemibidem) Agrave primeira vista essas duassuposiccedilotildees encaixam-se como a matildeoe a luva naquilo que poderiacuteamos cha-mar de processos abstratos ou de abs-traccedilatildeo De fato no primeiro casosubstitui-se uma coisa real um entepor uma coisa imaginaacuteria Por suavez no segundo caso abstraimos algodas diversas relaccedilotildees concretas que

23 Como o proacuteprio Osiander posteriormente assumiu em carta ldquoos teoacutelogos seratildeo facilmente abrandados se lhes for dito que[] que essas hipoacuteteses satildeo propostas natildeo porque de fato satildeo verdadeiras mas porque regulam a computaccedilatildeo do movimentoaparenterdquo O trecho da carta se encontra traduzido para portuguecircs na introduccedilatildeo que Zeljko Loparic fez para sua traduccedilatildeo doldquoPrefaacuteciordquo de Andreas Osiander publicado nos Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia v 1 n1 pp 44-61 1980

24 Cf TIE sect56-725 O mesmo que ele fez no CM ao definir o que era os ldquoentes de razatildeordquo primeiro ele distinguiu o que eacute uma quimera e uma

ficccedilatildeo (cf CM I 1)

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ele estabelece imaginando-o em umespaccedilo imaginaacuterio no qual nada lheafeta Nada poderia ser mais abs-trato do que esses dois casos Entre-tanto Espinosa faz a seguinte obser-vaccedilatildeo ldquoembora claramente se intelijaque esta uacuteltima eacute impossiacutevel masquando isso se faz absolutamentenada eacute fingidordquo (idem ibidem ndash itaacuteli-cos nosso)26 Embora tal experimentoseja fisicamente impossiacutevel pois elesupotildee mover a vela para um espaccedilono qual ela natildeo esteja circuncidadade corpos ldquonada eacute fingidordquo A pri-meira pergunta que nos vem agrave menteeacute por que nada eacute fingido A primeiraparte da resposta a essa pergunta eacuteevidente ldquosabe-se que eacute impossiacutevelrdquoDe saiacuteda jaacute estamos de posse do co-nhecimento a respeito da impossibi-lidade real de tal experimento quejustamente por isso soacute pode ser men-tal A segunda parte da resposta eacuteque a inteligibilidade a respeito doque eacute vela e o conhecimento das leisde ineacutercia garantem que em um es-paccedilo no qual natildeo exista nada que aimpeccedila de continuar na existecircncia avela perduraria sem consumir-se (cfCHAUI M 2016 p 24) Desta ma-neira Espinosa desloca o problemada correspondecircncia entre o conteuacutedode uma hipoacutetese e alguma realidadepara a construccedilatildeo intelectual de uma

experiecircncia Embora uma hipoacuteteseseja um experimento realizaacutevel ape-nas no niacutevel mental ela natildeo eacute meraabstraccedilatildeo ou ficcionismo instrumen-tal Isso porque ela opera a partir doconhecimento que o indiviacuteduo possuitanto de si quanto a respeito da coisasobre a qual ele formula a hipoacuteteseAleacutem disso a hipoacutetese inclui o conhe-cimento das leis da natureza Uma hi-poacutetese natildeo nasce do encontro fortuitoda mente com as coisas mdash como seela fosse aprendiz delas mdash antes elaorigina-se da accedilatildeo do intelecto queatua como juiz que julga a partir desuas regras e do conhecimento preacuteviode como algo se comporta em situ-accedilotildees diversas (Cf REZENDE C2008 p 147-71) No exemplo dasvelas o ponto cardeal eacute que em am-bos os casos temos uma ideia clara edistinta da vela e eacute justamente por issoque podemos tanto movecirc-la para o es-paccedilo imaginaacuterio quanto alterar racio-nalmente suas caracteriacutesticas tirandodisso conclusotildees acertadas (CHAUIM 2016 p 24) Pois como nos ex-plica Chaui temos a construccedilatildeo deldquouma essecircncia em sua inteligibilidadede tal maneira que ela permita dedu-ccedilotildees ordenadas e por conseguintebem fundamentadasrdquo (idem ibidem)Enquanto a abstraccedilatildeo envolve o des-conhecimento de si e a confusatildeo do

26 O tom usado aqui por Espinosa nos lembra Galileu Galilei que ao tratar das hipoacuteteses referentes agrave queda de uma bolade canhatildeo perpendicular a um mastro de navio em movimento coloca na boca da personagem Salviati as seguintes palavrasemblemaacuteticas ldquoEu sem experiecircncia estou certo de que o efeito seguir-se-aacute como vos digo porque assim eacute necessaacuterio que sesigardquo GALILEU Galilei Diaacutelogo sobre os dois maacuteximos sistemas do mundo ndash ptolomaico e copernicano Trad Pablo RubeacutenMariconda 3ordm ed Editora 34 Satildeo Paulo 2011 p 226

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

que haacute em nossa mente com o queconstitui a essecircncia de algo a hipoacute-tese justamente porque ldquosabe-serdquo eacutepara Espinosa originaacuteria da potecircnciada mente em compreender a essecircn-cia singular das coisas e tambeacutem emdeduzir seu comportamento em es-paccedilos ou condiccedilotildees imaginaacuterias Porisso como comenta Cristiano NovaesRezende uma hipoacutetese eacute uma ideiaverdadeira

quando inserida no processoregular e contiacutenuo no qual amente natildeo eacute determinada defora isto eacute determinada peloencontro fortuito das coisase com as coisas as quais porsi mesmas natildeo nos levam aconsiderar umas de preferecircn-cia a outras A hipoacutetese eacuteuma ideia verdadeira quandoa mente natildeo funda a verdadenos fenocircmenos mas sim emsi proacutepria isto eacute quando amente se determina desde dedentro ao mesmo tempo emque vai ao encontro dos ob-jetos da experiecircnciardquo (RE-ZENDE C N 2008 p 165)

Sendo assim podemos concluir quea hipoacutetese eacute uma ideia verdadeiraquando natildeo opera a partir da abstra-ccedilatildeo de si quando sua formulaccedilatildeo eacuteacompanhada de um duplo conheci-mento (I) o conhecimento de si istoeacute da forccedila e natureza do intelecto e

(II) o conhecimento da essecircncia obje-tiva sobre a qual opera

Em suma seja nos Cogitata sejano TIE (para natildeo citarmos as outrasobras de Espinosa) a abstraccedilatildeo sem-pre vem acompanhada da ideia deuma perda de si uma ignoracircncia emrelaccedilatildeo a si mesmo Em sentido con-traacuterio no KV Espinosa chama o mo-mento em que a mente descobre a simesma como potecircncia para o verda-deiro de ldquorenascimentordquo pois ldquosema soberania do entendimento tudo seencaminha para a perda sem que pos-samos gozar de qualquer descansovivendo como se estiveacutessemos forade nosso elementordquo (KV II 26)

Um exemplo de como opera a criacute-tica espinosana agrave abstraccedilatildeo de sia abertura do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico

O leitor haacute de estranhar que escolhe-mos justamente o TTP para servir deexemplo afinal esta eacute a uacutenica obraem que Espinosa natildeo faz referecircnciadireta ao tema abstraccedilatildeo Entretantopretendemos mostrar que as conside-raccedilotildees a respeito das abstraccedilotildees sus-tentam algumas teses de Espinosa noseu polecircmico tratado Para demons-trar isso noacutes analisaremos a primeirafrase do prefaacutecio do TTP Haacute trecircs as-pectos dessa sentenccedila inicial que con-sideramos serem os mais importan-tes (1) trata-se de uma proposiccedilatildeocondicional negativa que se estrutura

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agrave maneira de uma hipoacutetese (2) ela eacutereferente agrave natureza humana e agraves re-laccedilotildees que essa natureza estabeleceno mundo (3) trata-se uma sentenccedilacom efeito retoacuterico que corroacutei umaimagem abstrata do homem27

Espinosa abre o TTP com a se-guinte proposiccedilatildeo ldquose os homens pu-dessem em todas as circunstacircnciasdecidir pelo seguro ou se a fortuna selhes mostrasse sempre favoraacutevel ja-mais seriam viacutetimas da supersticcedilatildeordquo(ESPINOSA B 2003 p 5)rdquo O ldquoserdquoinicial nos coloca diante de uma pro-posiccedilatildeo condicional e negativa Ma-rilena Chaui comenta que ldquoEspinosacritica indiretamente os medievais eDescartes reescrevendo as teses quecombate na forma de oraccedilotildees hipoteacute-ticas (se entatildeo) retirando das hi-poacuteteses conclusotildees que as negamrdquo(CHAUI M 1974 p 56) A co-mentadora ressalta que esse procedi-mento eacute tatildeo constante em Espinosaque quase poderiacuteamos tomaacute-lo comonorma de leitura ldquoas oraccedilotildees hipoteacute-ticas apresentam teses que natildeo satildeo es-pinosanas que satildeo levadas agrave autodes-truiccedilatildeo no decorrer da argumentaccedilatildeordquo(idem ibidem)28 Assim a aberturado TTP eacute polecircmica primeiro por-que conforme veremos ela retoma a

imagem do homem que foi tecida pelatradiccedilatildeo teoloacutegica em segundo lugaressa retomada daacute-se no seio de umahipoacutetese negativa ou seja tal ima-gem eacute tomada como esvaziada de re-alidade Acreditamos ser este o cerneda hipoacutetese que abre o TTP

Em sua tese de doutoramento Ma-rilena Chaui defende que o termomais importante da proposiccedilatildeo ini-cial do TTP eacute a conjunccedilatildeo condicio-nal ldquoserdquo pois ela abre as duas condi-ccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia dasupersticcedilatildeo (CHAUI 1970 p 134)Ora em que consistem essas duascondiccedilotildees Consistem numa mu-danccedila ou na natureza humana ou nanatureza do mundo que permitisseaos homens serem iguais agrave vela ar-dente que natildeo arde Se lermos atenta-mente o enunciado da primeira parteda hipoacutetese na abertura do TTP no-taremos que Espinosa propotildee a mu-danccedila imaginaacuteria de uma das carac-teriacutesticas dos ldquohomensrdquo Qual Achave para compreender isso estaacute napalavra latina regere que na traduccedilatildeoespanhola do TTP de Atilano Domin-guez foi traduzida por ldquoconducirrdquo naportuguesa de Diogo P Aureacutelio porldquodecidirrdquo e na brasileira de J Guins-burg e Newton Cunha por ldquoregrarrdquo

27 Conforme veremos dessas trecircs caracteriacutesticas seguem-se algumas consequecircncias (1) a supersticcedilatildeo deixa de ser umacaracteriacutestica acidental jaacute que supressatildeo absoluta da supersticcedilatildeo soacute eacute possiacutevel com uma concepccedilatildeo abstrata natureza humana(2) Sendo inerente agrave natureza humana a supersticcedilatildeo deixa de servir como distintiva entre as diversas religiosidades e etnias(3) Espinosa desvincula o conceito de supersticcedilatildeo do mito fundador da moral judaica-cristatilde ou seja do mito da queda originalAo final pretendemos deixar evidente a maneira pela qual opera a criacutetica espinosana agraves abstraccedilotildees na abertura do TTP

28 A mesma chave de leitura eacute mobilizada pela comentadora ao comentar a abertura do TTP em sua tese de doutoramentoldquoO prefaacutecio do TTP comeccedila com uma proposiccedilatildeo condicional e negativa caracteriacutestica peculiar de Espinosa todas as vezes emque para demonstrar a necessidade de um conceito passa pela hipoacutetese a ser recusada mdash toda proposiccedilatildeo negativa eacute ausecircnciade definiccedilatildeo e portanto de realidaderdquo (CHAUI M 1970 p 133)

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Embora distintos uns dos outros cadavocaacutebulo escolhido nessas traduccedilotildeesressalta aspectos daquilo que consti-tui o poder regencial poder de deci-satildeo de conduccedilatildeo e de regulaccedilatildeo Ori-ginaacuteria do campo poliacutetico regere eacute aforma no infinitivo presente do verbolatino rego que tem sentido de regecircn-cia Reger eacute ter o dominium29 sobre osassuntos internos de um imperium Aabertura do TTP alude a um poder re-gencial que redunda num ldquocerto con-siliordquo sobre ldquores omnes suasrdquo aludepotanto para uma deliberaccedilatildeo certasobre todas suas coisas Eacute muito in-teressante que essa forma de regecircnciaimpotildee a exterioridade jaacute que ldquoa deli-beraccedilatildeo supotildee exterioridade mdash os ho-mens estatildeo diante das coisas situadosna natureza e face a elardquo (CHAUI M1970 p 134) Considerar-se fora danatureza em face a ela eacute encontra-se em estado de abstraccedilatildeo do TodoO que Espinosa faz eacute partir de umaimagem abstrata dos homens (ima-gem que oferece a ilusatildeo de um con-trole imperial decidir conduzir e re-grar todas as suas coisas) entretantose assim fosse os homens jamais se-riam viacutetimas da supersticcedilatildeo explica onosso filoacutesofo

A segunda parte da hipoacutetese con-tinua ldquoou se a fortuna se lhesmostrasse sempre favoraacutevelrdquo (ES-

PINOSA Op Cit) Oriundado universo teoloacutegico a fortuna eacuteldquoimperatrix mundirdquo nos escrevem osCarmina Burana Deusa da gloacuteriae da riqueza a fortuna representa oimprevisto a volatilidade da vida ascircunstacircncias que fogem ao nossocontrole Ora nossa sorte ora nossaperdiccedilatildeo a fortuna deteacutem a roda davida Como disse Boeacutecio ldquoAssimela brinca assim ela daacute prova de seupoder e oferece aos seus suacuteditos umgrande espetaacuteculo o de um homemque em uma hora passa da desgraccedilaagrave gloacuteriardquo (2012 p 42) Experiecircnciada contingecircncia a fortuna tambeacutem eacutea experiecircncia da inseguranccedila e porisso do medo Nenhuma alma pode-ria descrever melhor essa experiecircnciado que a do melancoacutelico afinal comoescreve Espinosa ldquoa sua senhora eacute aFortunardquo Robert Burton melancoacute-lico confesso descreveu-se nas pri-meiras paacuteginas de sua Anatomia daMelancolia como um observador dasfortunas do mundo

[Sou] um mero especta-dor das fortunas e venturasalheias de como atuam emseus papeacuteis que penso satildeo-me tatildeo diversamente apre-sentados como se num te-atro ou cena puacuteblica []

29 Em latim casa se chama domus e o poder sobre ela dominium O regente que possui o dominium absoluto sobre o pa-trimonium eacute o Pater A instacircncia do pater natildeo eacute a de um progenitor natural (genitor) eacute maior do que isso trata-se do poderjudicial e senhoril Eacute neste sentido preciso que a igreja dizia ldquoDeus eacute Pairdquo Cf CHAUI Marilena Mito Fundador e SociedadeAutoritaacuteria in Escritos de Marilena Chaui Vl II ndash Manifestaccedilotildees ideoloacutegicas do autoritarismo brasileiro Org Andreacute RochaAutecircntica Editora Satildeo Paulo 2013 p 156

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Um eacute liberto o outro aprisio-nado um enriquece o outroquebra este prospera e seuvizinho estaacute falindo ora far-tura ora carestia e fome umcorre outro cavalga com-bate ri chora etc Isso euouccedilo a cada dia e outro tantode notiacutecias puacuteblicas e priva-das entre a galanteia e a mi-seacuteria do mundo jovialidadeorgulho perplexidades e pre-ocupaccedilotildees simplicidade evilania sutileza patifariacandor e integridade mutua-mente misturado e ofertadordquo(BURTON R 2013 [I] p58)

No palco da vida e no coro do mundoquem abre e fecha os atos eacute a For-tuna No espetaacuteculo em que a Fortunaeacute roteirista a protagonista eacute a melan-colia Um ponto importante eacute que afortuna acentua ainda mais a exterio-ridade como manifesta as palavras deBurton ldquo[sou] um mero espectadorrdquoSob essa perspectiva o mundo se abrecomo espaccedilo no qual as coisas se rela-cionam entre si contingentemente emuma ldquoincerta fortunardquo Expectadoro homem natildeo possui a capacidade de-liberativa natildeo eacute regente restando-lheapenas esperar pela ldquobona fortunaerdquoAqui tambeacutem a conclusatildeo eacute nega-tiva ldquoSi fortuna ipsis prospera sem-per foretrdquo Se a fortuna se mostrassesempre proacutespera se na lsquocena puacuteblicarsquoas coisas sempre fossem boas se no

palco do mundo soacute se apresentasse obonum entatildeo os homens natildeo seriamviacutetimas da supersticcedilatildeo

A abertura do TTP aponta as condi-ccedilotildees necessaacuterias para que os homensjamais sejam viacutetimas da supersticcedilatildeo(I) a presenccedila de um certo consiliosobre ldquoomnes resrdquo ou (II) uma for-tuna ldquosemper prosperardquo Ora umavez que a fortuna eacute aquilo que escapaao nosso poder podemos supor que oproblema da supersticcedilatildeo possa ser re-solvido pela via da deliberaccedilatildeo certa(o certo consilio) ou seja pela con-tiacutenua ampliaccedilatildeo de nossa capacidadedeliberativa Isso parece asseguradopela presenccedila do vocaacutebulo vel [ou] in-dicando que basta a presenccedila de ape-nas uma das condiccedilotildees ndash (I) ou (II) ndashpara que a supersticcedilatildeo deixe de impe-rar sobre os homens Entretanto valenotar que todas as expressotildees satildeo to-tais nenhuma supersticcedilatildeo delibera-ccedilatildeo certa sobre todas as coisas umafortuna sempre proacutespera Embora sejatotalmente aceitaacutevel do ponto de vistade outros trechos da obra de Espinosadeduzir que quanto mais capenga fora nossa capacidade deliberativa maisatuaraacute sobre noacutes o imperioso poder dafortuna e consequentemente da su-persticcedilatildeo natildeo nos parece que na aber-tura do TTP haja condiccedilotildees para a de-duccedilatildeo de uma soluccedilatildeo Esperar queos homens sempre deliberem de ma-neira certa ou que o mundo natildeo lhesapareccedila fortuito eacute o mesmo que de-sejar que a vela queime sem se quei-mar As uacutenicas duas maneiras de con-

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ceber os homens como estando abso-lutamente fora das garras da supersti-ccedilatildeo satildeo (I) concebendo mentalmenteoutros homens isto eacute substituindo anatureza humana por outra abstrataou (II) concebendo os homens numespaccedilo imaginaacuterio no qual eles se en-contram abstraiacutedos de toda experiecircn-cia da contigecircncia Embora conceberessas condiccedilotildees natildeo nos seja impossiacute-vel mediante um experimento mental(uma hipoacutetese) eacute certo que in rerumnatura elas versam sobre impossibi-lidades Apesar de lsquonada ser fingidorsquoclaramente lsquointelige-se que eacute impos-siacutevelrsquo Em uacuteltima instacircncia as duascondiccedilotildees redundam em que a huma-nidade deixe de ser humanidade e queo mundo deixe de ser mundo Con-fundir a hipoacutetese inicial do TTP mdashuma espeacutecie de experimento mental -ndash com a fala sobre possibilidades ex-tramentais reais eacute entrar no campo daabstraccedilatildeo Na verdade o sentido maisprofundo da hipoacutetese na abertura doTTP consiste em mostrar que a proacute-pria noccedilatildeo de ldquonulla superstitionerdquo eacuteuma abstraccedilatildeo30

A liccedilatildeo oferecida por Espinosa naabertura do TTP eacute a que a supersti-

ccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave condiccedilatildeo humanafaz parte do que significa ser humanoe viver neste mundo Se eacute preciso fa-zer uma criacutetica agrave supersticcedilatildeo eacute precisoprimeiro reconhececirc-la e trabalhaacute-laIsto eacute eacute preciso positivaacute-la enquantoobjeto da reflexatildeo tomaacute-la a partir desuas causas e observar o desenvolvi-mento de sua trama Em suma eacute pre-ciso abandonar a concepccedilatildeo abstratamdash postura do sentinela que vigia agravedistacircncia nas fortalezas de sua torremdash e entrar na concretude do RealEm outros termos eacute preciso deixarde tomar a supersticcedilatildeo como coisa ex-terior e alheia pertencente aos ou-tros (de sorte hereges ou ignorantes)A postura de sentinela da supersticcedilatildeoredunda numa accedilatildeo que impotildee umarelaccedilatildeo autoritaacuteria entre aqueles quedizem-se natildeo-supersticiosos e os ti-dos por supersticiosos Na tradiccedilatildeocristatilde isso se deu pelos senhores damoral e oficiantes do culto na tra-diccedilatildeo cientiacutefica assumiram este papelos portadores das luzes na sua mar-cha pelo aufklaumlrung Ora se tivermosem mente que para Espinosa a abstra-ccedilatildeo eacute considerar a parte fora do Todoentenderemos que a ideia de um ho-

30 Se levarmos em conta o que Espinosa fala sobre o cavalo e o inseto na Eacutetica visualizaremos o que a hipoacutetese de aberturado TTP aponta todo projeto de erradicaccedilatildeo absoluta da supersticcedilatildeo eacute um projeto genocida ldquoO fato eacute que um cavalo porexemplo eacute destruiacutedo [destruitur] tanto ao ser mudado em homem como em insetordquo (E IV praef) Natildeo haacute evoluccedilatildeo do cavalopara o homem assim como tambeacutem natildeo a haacute decliacutenio do cavalo para o inseto tanto num caso como no outro haacute apenas des-truiccedilatildeo Querer que cavalos atuem como homens eacute em uacuteltima instacircncia desejar a destruiccedilatildeo dos cavalos Essa metaacutefora ganhaforccedila quando vinculada agrave hipoacutetese inicial do TTP afinal desejar que as pessoas estejam absolutamente livres da supersticcedilatildeo eacuteo mesmo que desejar que elas deixem de ser humanas Desejo esse que natildeo passa de uma das faces do desejo de destruiccedilatildeo doshomens e do mundo Trata-se de um desejo suicida mdash quando referido agrave subjetividade mdash e de um desejo genocida mdash quandoreferido ao mundo e agrave intersubjetividade A abertura do TTP indica que pela primeira vez na histoacuteria da filosofia a supersticcedilatildeonatildeo seraacute tratada como algo a ser erradicado e eliminado uma espeacutecie de posiccedilatildeo higienizadora mas como algo intriacutenseco aoshomens e com o qual devemos aprender a lidar

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mem regente consiste em pura abstra-ccedilatildeo autorreferente pois nela noacutes natildeoestamos mudando ou abstraindo ca-racteriacutesticas de um objeto antes noacutesmesmos nos tomamos numa perspec-tiva abstrata separados do mundo eregentes dele mdash versatildeo extrema daabstraccedilatildeo de si Natildeo eacute apenas umperder-se de si eacute a reificaccedilatildeo em simesmo de uma imagem abstrata de si

O engenho de Espinosa natildeo paranisso antes o filoacutesofo aponta que talabstraccedilatildeo se inscreve na proacutepria ima-gem fundante da sociedade ocidentalO leitor natildeo demoraraacute a perceber issose fizermos a seguinte pergunta den-tro da mitologia judaico-cristatilde qual eacuteo momento em que o homem possuiplena regecircncia sobre o mundo go-zando de perfeiccedilatildeo e vive num para-disiacuteaco mundo afortunado A hipoacute-tese de abertura do TTP aponta para oJardim do Eacuteden paraiacuteso onde nossopai terrestre Adatildeo antes da quedagozava de perfeiccedilatildeo (poder regencialsobre si e domiacutenio sobre todas as coi-sas) e vivia em um mundo em que afortuna sempre se lhe mostrava beneacute-fica O engenho da hipoacutetese inicial doTTP estaacute no fato de Espinosa afirmarque se em algum momento o homemgozasse de tais condiccedilotildees ou de tal na-tureza ele jamais seria viacutetima da su-persticcedilatildeo31 Eis a retoacuterica da hipoacuteteseinaugural do TTP propor um expe-

rimento mental que agrave primeira vistapode ser tomado como abstrato masque ao fim e ao cabo implode a proacute-pria concepccedilatildeo abstrata que os ho-mens possuem de si Retoacuterica con-tra os retoacutericos o ato inaugural doTTP subverte o mito adacircmico nos ar-rebata da abstraccedilatildeo lanccedilando-nos natrama do Real A abertura do TTPeacute uma guerra contra a imagem abs-trata do homem e contra as propostasgenocidas que decorrem dessa abstra-ccedilatildeo Falamos em guerra porque elaopera de maneira retoacuterica partindo doque eacute comum mdash a concepccedilatildeo teoloacute-gica do homem mdash para em seguidasubvertecirc-la A instacircncia dessa guerraeacute a mente dos leitores lsquoque poderia fi-losofar mais livremente caso natildeo jul-gassem que a razatildeo deva ser serva dateologiarsquo (ESPINOSA 2003 p 14)

A hipoacutetese-retoacuterica do iniacutecio doTTP eacute um convite a pensar a condi-ccedilatildeo humana sem as abstraccedilotildees e osfantasmas que a tradiccedilatildeo teoloacutegica cu-nhou Afastado o paraiacuteso mdash agoraperdendo-o de nossas vistas para sem-pre mdash qual eacute a condiccedilatildeo humana Aresposta vem logo em sequecircncia re-duzidos amantes e desejosos experi-mentando a perda constante dos obje-tos amados e o escape dos desejadosos homens se encontram arrastados deum lado ao outro num turbilhatildeo deafetos que por fim os leva agrave supers-

31 A formulaccedilatildeo mais evidente da questatildeo posta na hipoacutetese inaugural do TTP se encontra no capiacutetulo II sect6 do TratadoPoliacutetico onde Espinosa questiona sobre ldquocomo pode acontecer aleacutem disso que o primeiro homem estando de posse de siproacuteprio e sendo e senhor de sua vontade se deixasse seduzir e enganarrdquo (ESPINOSA 2014 [I] p 376)

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ticcedilatildeo (ESPINOSA 2003 p 5) mdash eisa realidade desesperadora a qual Es-pinosa nos apresenta em todas as suastramas Mas se o nosso filoacutesofo fazisso eacute porque sabe que a uacutenica pos-sibilidade de fazer uma poliacutetica ver-dadeira eacute quando partimos da reali-dade concreta e natildeo das abstraccedilotildeesUma verdadeira poliacutetica dos homensnatildeo uma utopia ou uma saacutetira exigecomo seu princiacutepio a veemente recusada abstraccedilatildeo de si

lowast lowast lowast

Neste ponto ao final do artigo pode-mos afirmar que a abstraccedilatildeo eacute natildeo me-ramente uma operaccedilatildeo mental mastambeacutem uma abstraccedilatildeo de si Justa-mente porque nos encontramos arre-

batados de noacutes mesmos eacute que pro-duzimos abstraccedilotildees Neste sentidoeacute interessante lembramos as pala-vras de Espinosa no Breve Tratadoa respeito do conhecimento claroldquodenominamos conhecimento claroagravequele que natildeo eacute por convencimentoda razatildeo mas sim por um sentir e go-zar a proacutepria coisardquo (KV II cap 2 sect2)e caso algum homem chegue a con-templar algo por essa maneira de co-nhecer ldquodiraacute em verdade que a coisa eacuteassim considerando que ela estaacute nelee natildeo fora delerdquo (idem cap 4 sect2)Eacute que a verdade ao contraacuterio da abs-traccedilatildeo envolve uma interioridade umencontro consigo mesmo que eacute outronome da liberdade

Referecircncias

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

toacuteria de Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 14 n 1 jan-jun2004 p 59-118

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ZATERKA L A Filosofia Experimental na Inglaterra do Seacutec XVII FrancisBacon e Robert Boyle Satildeo Paulo Humanitas 2004

Recebido 02072019Aprovado 08092019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225781

Seguranccedila Liberdade e Concoacuterdia no PensamentoRepublicano de Espinosa

[Security Freedom and Concordia in Spinozarsquos Republican Thought]

Stefano Visentin

Resumo O artigo pretende apresentar a construccedilatildeo dos conceitos deseguranccedila e liberdade nos escritos poliacuteticos de Espinosa para rearti-cular sua construccedilatildeo em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo humanista mais espe-cificamente de Thomas More e Erasmo de Rotterdam Tal diaacutelogo seraacuterelacionado com o problema da pietas no seu aspecto moral e a con-cordia em seu aspecto poliacutetico para serem reconsiderados e articula-dos com o realismo poliacutetico introduzido por Maquiavel e Hobbes Fi-nalmente pretendemos analisar a peculiaridade do filoacutesofo holandecircsproblematizando tais conceitos na escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoe do Tratado PoliacuteticoPalavras-chave Espinosa Humanismo Poliacutetica Seguranccedila e Liber-dade

Abstract This paper intends to present the construction of theconcepts of security and freedom in the Spinozarsquos political writingsrethinking its construction in dialogue with the humanist traditionmost specifically with Thomas More and Erasmus of RotterdamThis dialogue is related to the humanist problem of pietas in themoral aspect and concordia in politics aspect to be reconsideredand articulated with the political realism introduced by Machiaveland Hobbes Finally we aim to analyze the peculiarity of the dutchphilosopher problematizing such concepts in the Theological-politicalTreatise and the Political TreatiseKeywords Spinoza Humanism Politics Security and Freedom

1 - A tradiccedilatildeo irenista nos PaiacutesesBaixos dos seacuteculos XVI e XVII

Em 1517 Erasmo de Rotterdampublicou a Querela Pacis consi-derada juntamente com a Uto-

pia por Thomas More o manifestomais significativo do humanismodo seacuteculo XVI1 Os fundamentosda defesa erasmiana da paz satildeoessencialmente a pietas cristatilde noreferente agrave moral e a busca cons-

Uma versatildeo anterior e distinta deste artigo foi publicada em inglecircs na Revista Theoria vol 66 n 15 2019Traduccedilatildeo desta versatildeo por Ericka Marie Itokazu e Mariacutelia PachecoProfessor assistente (ricercatore confermato) de Histoacuteria das Doutrinas Poliacuteticas no Departamento de Economia

Sociedade e Poliacutetica (Desp) da Universitagrave di Urbino Carlo Bo e professor da Scuola di Scienze politiche e socialiE-mail stefanovisentinuniurbit ORCID httporcidorg0000-0001-6963-4798

1Il lamento della pace Testo latino a fronte Federico Cinti (org) com um ensaio de Jean-Claude Margolin MilatildeoBUR 2005

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tante da concordia no referenteagrave poliacutetica em particular esta uacutel-tima torna-se nas deacutecadas seguin-tes um elemento de grande im-portacircncia dentro do debate poliacute-tico e religioso distinguindo-se datoleracircncia que insiste na necessi-dade de aceitar a coexistecircncia deuma pluralidade de feacutes no interiordo mesmo espaccedilo poliacutetico con-trariamente agrave concoacuterdia que visaconstruir um terreno comum paraas diferentes correntes do cristi-anismo em outros termos en-quanto a toleracircncia quer despoli-tizar a religiatildeo (segundo a famosafrase pronunciada por Michel deLrsquoHospital em 1562 segundo aqual ldquoil nrsquoest pas icy de constitu-enda religione sed de constituendarepublica et plusieurs peuvent es-tre cives qui non erunt christianirdquo2) a concoacuterdia diversamente pro-potildee a tarefa de transformar a poliacute-tica segundo uma perspectiva re-ligiosa3

O legado erasmiano percorretodo o seacuteculo XVI influenciandotambeacutem muitos teoacutelogos reforma-dos como Seacutebastien Castellion naFranccedila Sebastian Franck na Ale-

manha Dirck Coornhert nos Paiacute-ses Baixos4 Especialmente nosPaiacuteses Baixos entre o final do seacute-culo XVI e o comeccedilo do seacuteculo se-guinte numerosas tentativas satildeofeitas para elaborar e colocar empraacutetica uma doutrina religiosafundada em dogmas universal-mente aceitos por todas as cren-ccedilas cristatildes presentes no territoacuterioe uma das tentativas mais origi-nais eacute realizada por um grupo decrentes provenientes de diferen-tes seitas (calvinistas arminianosmenonitas quakers socinianos)chamados Colegiantes que esta-belecem uma comunidade fun-dada exclusivamente na leituracomum do texto biacuteblico e na praacute-tica do amor fraterno5 Sabe-seque alguns amigos de Espinosaparticipam desses encontros de-nominados colloquia propheticaentre os quais certamente JarigJelles e Pieter Balling e que pro-vavelmente o proacuteprio Espinosa ofrequenta durante sua estada emRijnsburg no iniacutecio dos anos 60do seacuteculo XVII6

Em resumo natildeo haacute duacutevida deque o contexto histoacuterico e biograacute-fico no qual Espinosa amadurece a

2 de LrsquoHOSPITAL M (1561) Oeuvres complegravetes de Michel de LrsquoHospital Ed por PSJ DUFEY vol 1 ParisBoulland 1824-5 p 452

3 Sobre este tema veja-se TURCHETTI M ldquoReligious Concord and Political Tolerance in Sixteenth- andSeventeenth-Century Francerdquo in Sixteenth Century Journal 122 1991 pp 15-25

4 Cfr BIETENHOLZ PG Encounters with a Radical Erasmus Erasmusrsquo Work as a Source of Radical Thoughtin Early Modern Europe Toronto Toronto University Press 2009

5 FIX AC Prophecy and Reason The Dutch Collegiants in the Early Enlightenment Princeton Princeton Univer-sity Press 1990

6 Cfr NADLER S Spinoza A Life Cambridge Cambridge University Press 1999 cap 7

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escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoexerce sobre ele uma influecircnciaerasmiana no sentido de umabusca de como estabelecer umarepuacuteblica livre e paciacutefica tantono seu proacuteprio interior quantono confronto com os outros Es-tados e de fato o subtiacutetulo do li-vro jaacute mostra essa orientaccedilatildeo ldquoemque se demonstra que a liberdadede filosofar natildeo soacute eacute compatiacutevelcom a preservaccedilatildeo da piedade eda paz como inclusivamente natildeopode ser abolida sem se abolir aomesmo tempo a paz da repuacuteblicae a proacutepria piedaderdquo 7

No entanto ao lado do idealhumanista irecircnico uma reflexatildeoteoloacutegico-poliacutetica se desenvolveuna Repuacuteblica das Proviacutencias Uni-das durante o seacuteculo XVII colo-cando o realismo poliacutetico no cen-tro da cena e inspirando-se nopensamento de Nicolau Maqui-avel e Thomas Hobbes8 Semaprofundar a recepccedilatildeo do traba-lho desses dois autores na Ho-landa seiscentista eacute preciso lem-brar que tanto o desenvolvimentodo neoestoicismo nas universida-des quanto o do republicanismofora do mundo acadecircmico satildeo afe-tados fundamentalmente pela lei-

tura e discussatildeo dos escritos dosecretaacuterio florentino e do filoacutesofoinglecircs Em particular nesse arca-bouccedilo teoacuterico marcado por umaabordagem realista da naturezae da poliacutetica humanas o espaccedilopara um elogio e a busca pela con-coacuterdia entre indiviacuteduos e Estadosparece ter sido reduzido ao miacute-nimo senatildeo ateacute mesmo cancelado

Espinosa conhece bem o traba-lho desses dois escritores maldi-tos cita-os em seus escritos e ex-trai muitas ideias ndash em particularmas natildeo apenas do agudiacutessimoMaquiavel consequentementeseria muito difiacutecil acreditar que areflexatildeo espinosana sobre a paz ea concoacuterdia natildeo seja afetada pelacriacutetica maquiaveliana e hobbesi-ana da visatildeo humanista da reli-giatildeo e da poliacutetica

2 - Paz concoacuterdia e liberdade noTratado teoloacutegico-poliacutetico

No Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico Es-pinosa repetidamente insiste nanecessidade de instituir dentro darepuacuteblica holandesa uma coexis-tecircncia paciacutefica entre as diferen-tes feacutes religiosas O prefaacutecio por

7Tratado Teoloacutegico-poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 p 121 Doravante TTP

8 Sobre a recepccedilatildeo de Maquiavel cfr HAITSMA MULIER EOG ldquoA Controversial Republican Dutch Views onMachiavelli in the Seventeenth and Eighteenth Centuriesrdquo in BOCK G SKINNER Q VIROLI M (orgs) Machi-avelli and Republicanism Cambridge Cambridge University Press 1990 pp 247-263 sobre a recepccedilatildeo de Hobbescfr SECREacuteTAN C ldquoLa reacuteception de Hobbes aux Pays-Bas au XVIIeacuteme siegraveclerdquo in Studia Spinozana 3 1987 pp27-46

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exemplo conteacutem um elogio da re-puacuteblica onde se concede a cadaum inteira liberdade de julgar ede prestar culto a Deus agrave sua ma-neira e onde natildeo haacute nada que seconsidere mais caro e mais doceque a liberdade9 Um elogio anaacute-logo dirigido no entanto apenas aAmsterdatilde estaacute presente no capiacute-tulo final onde Espinosa escreveque na cidade holandesa todos oshomens seja qual for a sua na-ccedilatildeo e sua seita vivem na maisperfeita concoacuterdia10 No seu es-tudo da repuacuteblica teocraacutetica fun-dada por Moiseacutes tambeacutem surgemrazotildees pelas quais um governo re-publicano eacute naturalmente levadoa apoiar a paz e a concoacuterdia emvez de fomentar a guerra e as di-visotildees internas De fato a histoacuteriajudaica mostra que os ritos e ce-rimocircnias religiosas desempenha-ram um papel poliacutetico fundamen-tal (na verdade eles foram ende-reccedilados ldquoagrave contingente felicidadedo corpo e do Estadordquo 11) umavez que envolveram toda a comu-nidade sem a necessidade de umclero que agisse como um corposeparado ndash e de fato foi precisa-mente o nascimento de um apa-rato eclesiaacutestico distinto da co-

letividade de fieacuteis que produziua degeneraccedilatildeo da repuacuteblica ndash edessa maneira gerou uma narra-tiva compartilhada12 que consoli-dou as relaccedilotildees afetivas e a confi-anccedila muacutetua entre os cidadatildeos

Geralmente a reconstruccedilatildeo his-toriograacutefica que Espinosa realizada repuacuteblica mosaica (em parti-cular no capiacutetulo XVII) e os en-sinamentos poliacuteticos que dela de-duz (no capiacutetulo XVIII) propotildeem-se a dois objetivos fundamentais(1) mostrar o perigo que todo or-ganismo poliacutetico corre quando oclero se torna um poder separadoda comunidade e assim assu-mindo um papel poliacutetico mantidopara si (2) enfatizar a superiori-dade de um governo exercido portodo o povo com relaccedilatildeo ao go-verno monaacuterquico uma superio-ridade baseada no imaginaacuterio co-letivo que apesar do risco semprepresente de se tornar supersticcedilatildeodispotildee da potecircncia para estabele-cer um regime no qual pelo me-nos por um certo periacuteodo reinema pietas religiosa e a concoacuterdia

Ao lermos o uacuteltimo capiacutetulo doTratado ndash cujo tiacutetulo afirma ondese demonstra que numa republicalivre eacute uma liacutecito a cada um pen-

9 TTP p 12710 TTP p 39011 TTP p 19112 Retomo estes termos de JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo in

MELAMED YY ROSENTHAL MA (orgs) Spinozarsquos Theological-Political Treatise A Critical Guide CambridgeCambridge University Press 2010 pp 250-267

13 TTP p 383

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sar o que quiser e dizer aquilopensa13 ndash tendo em mente o ensi-namento dos capiacutetulos histoacutericosentatildeo a liberdade a piedade e apaz natildeo soacute aparecem inextricavel-mente conexas mas tambeacutem jun-tas elas contribuem para a formademocraacutetica da repuacuteblica que Es-pinosa considera o melhor regimeorientando seus leitores nessa di-reccedilatildeo A referecircncia agrave paz por-tanto natildeo expressa simplesmentea necessidade de garantir a cadacidadatildeo um espaccedilo intangiacutevel porparte das autoridades no interiordo qual ele possa pensar e dizeraquilo em que acredita sem medode ser perseguido ao contraacuterioa paz eacute a expressatildeo da partici-paccedilatildeo ativa de todos na discus-satildeo puacuteblica seja sobre os prin-ciacutepios da religiatildeo seja sobre osassuntos do Estado somente seos cidadatildeos participam das deci-sotildees poliacuteticas de modo que visemao bem comum eacute possiacutevel afir-mar como no capiacutetulo XVI queldquonuma repuacuteblica e num Estadoonde a lei suprema eacute a salvaccedilatildeode todo o povo e natildeo daquele quemanda quem obedece em tudoao soberano natildeo deve dizer-se es-cravo e inuacutetil a si mesmo masapenas suacuteditordquo 14 Esta referecircncia

agrave figura do suacutedito eacute particular-mente interessante porque quebraa oposiccedilatildeo dicotocircmica entre o es-cravo e o homem livre ndash tiacutepica emmuitos aspectos da ideologia re-publicana da eacutepoca ndash abrindo es-paccedilo para uma concepccedilatildeo dinacirc-mica de liberdade individual queEspinosa define a partir da evo-luccedilatildeo do sistema de relaccedilotildees soci-ais e poliacuteticas na direccedilatildeo de umarepuacuteblica livre ndash isto eacute daquelaem que se liberta das restriccedilotildeesda supersticcedilatildeo e da dominaccedilatildeo dohomem pelo homem Analoga-mente a defesa extrema da li-berdade de expressatildeo no Tratadoteoloacutegico-poliacutetico constitui o grauzero de um percurso de emanci-paccedilatildeo que procede de uma con-cepccedilatildeo individualista de toleracircn-cia muacutetua para o envolvimento decada cidadatildeo na constituiccedilatildeo deuma paz ativa ou melhor deuma concoacuterdia universal entre oscorpos e mentes de cada um inte-grando imaginaccedilatildeo e razatildeo15

Neste ponto resta entenderquais seratildeo de acordo com Espi-nosa os instrumentos que permi-tem a uma repuacuteblica estabelecere defender a paz e a concoacuterdiasem pocircr em risco a seguranccedila co-mum Este uacuteltimo passo requer

14 TTP p 33115 Sobre esta passagem decisiva da reflexatildeo poliacutetica de Espinosa veja-se dois recentes artigos que seguem em

direccedilatildeo anaacuteloga JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo cit e SKE-AFF C Becoming Political Spinozarsquos Vital Republicanism and the Democratic Power of Judgment Chicago ChicagoUniversity Press 2018

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levar em consideraccedilatildeo o segundoescrito poliacutetico espinosista o Tra-tado poliacutetico

3 - O processo coletivo de cons-truccedilatildeo da paz no Tratado poliacutetico

A transiccedilatildeo do primeiro para o se-gundo Tratado de Espinosa apre-senta imediatamente um pro-blema teoacuterico relevante que dizrespeito precisamente agrave relaccedilatildeoentre liberdade paz e seguranccedilaDe fato enquanto nas uacuteltimas paacute-ginas do Tratado Teoloacutegico-Poliacuteticoaparece a famosa definiccedilatildeo se-gundo a qual o verdadeiro fimda repuacuteblica eacute de fato a liber-dade16 por outro lado o TratadoPoliacutetico principia por uma afir-maccedilatildeo que parece ir na direccedilatildeooposta

Nem importa para a se-guranccedila do estado queacircnimo dos homens sejaminduzidos a administrarcorretamente as coisascontanto que as coisas se-jam corretamente admi-nistradas A liberdade deacircnimo ou fortaleza eacute comefeito uma virtude pri-vada ao passo que a se-guranccedila eacute a virtude do es-

tado17

Essas duas afirmaccedilotildees tecircm sido in-terpretadas como um sinal de mu-danccedila na atitude de Espinosa emrelaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo poliacutetica de seupaiacutes uma mudanccedila em direccedilatildeoa um maior realismo (ou pessi-mismo) do que o Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico mais militante e demo-craacutetico no segundo Tratado a se-guranccedila torna-se assim um ele-mento a ser salvaguardado maisimportante que a liberdade e por-tanto a paz deve ser entendidamais como toleracircncia e respeitomuacutetuo do que como concoacuterdia euniatildeo dos acircnimos

Na realidade uma leitura maiscuidadosa mostra que as coisassatildeo mais complexas e que natildeo eacutepossiacutevel contrapor claramente osdois escritos Em primeiro lugarmesmo no primeiro Tratado a se-guranccedila eacute considerada um obje-tivo fundamental de todo regimepoliacutetico e em particular da repuacute-blica cujo objetivo eacute

natildeo eacute dominar nem con-ter os homens pelo medoe submetecirc-los a um di-reito alheio eacute pelo con-traacuterio libertar o indiviacuteduodo medo a fim de que ele

16 TTP p 38317 Tratado Poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio revisatildeo de Homero Santiago Satildeo Paulo

WMF Martins Fontes 2009 p 9 Doravante TP

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viva tanto quanto possiacute-vel em seguranccedila isto eacutea fim de que ele preserve omelhor possiacutevel sem pre-juiacutezo para si ou para osoutros o seu direito na-tural a existir e a agir18

Nessas paacuteginas portanto Espi-nosa mostra como a questatildeo daseguranccedila estaacute implicada na da li-berdade por outro lado no Tra-tado Poliacutetico parece que entreos dois planos haacute uma distinccedilatildeoclara uma vez que a primeiradiz respeito agrave esfera puacuteblica en-quanto a segunda parece estarconfinada agrave dimensatildeo da existecircn-cia individual ou ainda da vidaprivada para a qual a paz de-penderia mais da criaccedilatildeo de umespaccedilo de seguranccedila individualdo que da interaccedilatildeo entre os ci-dadatildeos como se Espinosa tivesseassumido uma inclinaccedilatildeo hobbe-siana (isto eacute negativa) em rela-ccedilatildeo agrave possibilidade de estabelecerum espaccedilo comum de concoacuterdiano interior do Estado

Neste ponto eacute necessaacuterio apro-fundar as teses presentes no Tra-tado poliacutetico Dois satildeo os aspectosmais significativos que devem serevidenciados (1) o tema da segu-

ranccedila eacute assumido por Espinosa nointerior de um regime temporalimaginaacuterio como uma medida deflutuaccedilotildees afetivas no sentido deque a busca por seguranccedila se ex-prime como uma tentativa de que-brar definitivamente a sucessatildeocontiacutenua de medo e esperanccedila queproduz incerteza e mal-estar noshomens19 (2) se a seguranccedila eacute oobjetivo do Estado contudo nemtodo regime poliacutetico eacute adequadopara garanti-lo na verdade umEstado eacute seguro somente se fororganizado de modo a defenderseus suacuteditos natildeo apenas de amea-ccedilas externas mas tambeacutem de pe-rigos ldquointernosrdquo Assim evita-se por um lado que a sociedadese polarize em grupos de indiviacute-duos sui juris e alterius juris ndash ouainda estes subordinados agraveque-les20 ndash e por outro lado que abusca por seguranccedila leve a umaconcentraccedilatildeo de poder nas matildeosde poucos uma vez que os gover-nantes e em particular os reisnatildeo satildeo deuses mas homens quese deixam muitas vezes apanharpelo canto das sereias21 O prin-cipal problema com que Espinosase confronta portanto diz res-peito ao fato de que se o uacutenicomodo de vida seguro eacute estabili-

18 TTP p 38519 Cfr ISRAEumlL N ldquoLa question de la seacutecuriteacute dans le Traiteacute politiquerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY

A (eds) La multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008 pp 81-9320 Cfr TP II sect 921 TP VII sect 1 p 64

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zar os direitos naturais atraveacutesde leis esse processo envolve orisco de que um modelo de se-guranccedila seja imposto (para usarum termo do leacutexico poliacutetico con-temporacircneo) que isola os indiviacute-duos e os controla atraveacutes de umdispositivo que mistura medo econfianccedila cega na accedilatildeo das auto-ridades para escapar desse riscomais uma vez eacute necessaacuteria umaestrateacutegia coletiva22

Cabe ao Capiacutetulo V esclareceros princiacutepios dessa estrateacutegia quedeve necessariamente envolver omaior nuacutemero possiacutevel de cida-datildeos De fato se o direito deum Estado se define pela potecircn-cia da multidatildeo23 segue-se quesomente a participaccedilatildeo ativa damultidatildeo de cidadatildeos torna pos-siacutevel produzir leis que atinjam oobjetivo de uma comunidade po-liacutetica ou melhor ldquoa paz e a se-guranccedila de vida pelo que o me-lhor estado eacute aquele onde os ho-mens passam a vida em concoacuterdiae onde os direitos se conservaminvioladosrdquo 24 Emerge a essa al-tura uma definiccedilatildeo de paz quese opotildee explicitamente agrave famosatese hobbesiana que define a pazcomo o tempo residual em rela-

ccedilatildeo ao tempo da guerra25 con-trariamente Espinosa escreve queldquoda cidade cujos suacuteditos toma-dos pelo medo natildeo pegam em ar-mas deve antes dizer-se que estatildeosem guerra do que dizer-se quetecircm paz Porque a paz natildeo eacute au-secircncia de guerra mas virtude quenasce da fortaleza de acircnimordquo 26

O conceito de seguranccedila eacute assimredefinido com base em uma con-cepccedilatildeo ativa de paz que retomaa mesma loacutegica encontrada nas uacutel-timas paacuteginas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico e que pressupotildee a possibi-lidade concreta de que a multidatildeopossa exercer uma forccedila de auto-emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves con-diccedilotildees determinadas pelas leis einstituiccedilotildees

A multidatildeo ndash um nome que noTratado Poliacutetico define o conjuntode relaccedilotildees que vincula os indi-viacuteduos em uma comunidade po-liacutetica ainda que em uma dimen-satildeo dinacircmica e transformadora ndasheacute portanto a portadora de umaliberdade especiacutefica natildeo expliacutecitaou completamente racional No-vamente o capiacutetulo V afirma quea multidatildeo livre ldquoconduz-se maispela esperanccedila que pelo medo aopasso que uma multidatildeo subju-

22 Sobre a natureza estrateacutetgica do pensamento eacutetico e poliacutetico espinosano cfr BOVE L La strateacutegie du conatusAffirmation et reacutesistance chez Spinoza Paris Vrin 1996

23 TP II sect 17 p 2024 TP V sect 2 p 4425 ldquoA natureza da guerra natildeo consiste na luta real mas na conhecida disposiccedilatildeo para tal durante todo o tempo

em que natildeo haacute garantia do contraacuterio Todo o tempo restante eacute de pazrdquo (T Hobbes Leviatatilde I XIII traduccedilatildeo livre)26 TP V sect 4 pp 44-45

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gada conduz-se mais pelo medoque pela esperanccedilardquo 27 Nesse sen-tido a multidatildeo existe em funccedilatildeoda liberdade natildeo porque a de-seje conscientemente mas porquepertence agrave sua natureza a tendecircn-cia a se libertar ndash ao menos comouma fuga da solidatildeo e da escra-vidatildeo uma liberdade necessaacuteriaembora enigmaacutetica como a de-fendeu Franccedilois Zourabichvili28

em um belo ensaio haacute alguns anosatraacutes

Segundo Zourabichvili a liber-dade da multidatildeo coincide com oproblema poliacutetico da transiccedilatildeo deuma condiccedilatildeo de escravidatildeo paraum regime de autonomia talvezsomente parcial Isto significaque para Espinosa a liberdadenatildeo tem valor fundacional natildeosendo um direito natural originalque deve ser salvaguardado nemeacute um princiacutepio regulador que di-reciona a accedilatildeo de um sujeito paraum fim externo a ele a liberdadeeacute o iacutendice de uma praacutetica transfor-madora em contiacutenuo devir o re-sultado conjuntural e ao mesmotempo dos processos de transfor-maccedilatildeo sempre em ato da estruturade uma comunidade

Para retornar ao conceito espi-

nosano de paz creio que estaacute claroque a concepccedilatildeo erasmiana se-gundo a qual a paz coincide coma concoacuterdia e a uniatildeo fraterna doshomens encontra no Tratado po-liacutetico uma reinterpretaccedilatildeo poliacuteticaque pretende responder ao desa-fio proveniente do realismo ma-quiaveacutelico e hobbesiano Isso sig-nifica que por um lado o textoespinosano refuta uma concepccedilatildeoda concoacuterdia puramente moral ouutoacutepica uma vez que natildeo seria ca-paz de construir um Estado quegaranta a seguranccedila de seus cida-datildeos no entanto a paz natildeo podeser considerada como a mera au-secircncia de conflito jaacute que ldquodaquelacidade cuja paz depende da ineacuter-cia dos suacuteditos os quais satildeo con-duzidos como ovelhas para queaprendam soacute a servir mais cor-retamente se pode dizer uma so-lidatildeo do que uma cidaderdquo 29 Ocontraste ndash tambeacutem terminoloacutegicondash entre a multidatildeo e a solidatildeoque aparece nestas paacuteginas ex-prime com a maacutexima clareza oque definimos como estrateacutegia po-liacutetica de Espinosa o seu realismoanocircmalo como define Diego Ta-tiaacuten30 capaz de unir a forccedila ana-liacutetica de Maquiavel e Hobbes com

27 TP V sect 6 p 4528 ZOURABICHVILI F Lrsquoeacutenigme de la ldquomultitude librerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY A (orgs) La

multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique cit pp 69-8029 TP V sect 4 p 4530 TATIAacuteN D ldquoSpinoza un realismo anoacutemalo de la pazrdquo in Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofiacutea

Poliacutetica y Humanidades1632 2014 pp 93-109

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uma perspectiva poliacutetica que pre-tende dar efetividade aos proces-sos coletivos de emancipaccedilatildeo Asolidatildeo de fato natildeo representauma condiccedilatildeo apoliacutetica uma es-peacutecie de retorno do estado de na-tureza mas define aquele regime(que anteriormente era definidocomo de seguranccedila) no qual apotecircncia comum da multidatildeo estaacuteem seu grau miacutenimo fazendo comque os cidadatildeos individuais vivamem uma condiccedilatildeo de isolamento eindiferenccedila muacutetuos ndash condiccedilatildeo ge-rada pelo poder poliacutetico ndash o quetorna extremamente difiacutecil a co-municaccedilatildeo e com ela a ativaccedilatildeode processos de muacutetuo acordo ecolaboraccedilatildeo

Para combater esta tendecircncia ndashalimentada pela ineacutercia e passi-vidade proacutepria das paixotildees tris-tes e da supersticcedilatildeo que sempreem certa medida atravessam amultidatildeo ndash Espinosa desenvolveuma seacuterie de medidas institucio-nais que desempenham a tarefa defortalecer os afetos alegres contri-buindo assim agrave produccedilatildeo de di-reitos coletivos comuns e ao forta-lecimento da uniatildeo e da concoacuterdiados acircnimos Vale a pena recordar

rapidamente algumas dessas ins-tituiccedilotildees da multidatildeo (que se) li-berta uma para cada forma de go-verno (1) o exeacutercito popular quesobretudo em uma monarquiaimpede o soberano de fazer guerrapara seu ganho pessoal e contrao interesse de seus suacuteditos31 (2)as formas de controle dos regi-mes aristocraacuteticos por parte doscidadatildeos em particular o sistemade remuneraccedilatildeo dos governantesde tal modo que ldquopara eles sejade mais utilidade a paz do que aguerrardquo 32 (3) a abertura de car-gos puacuteblicos para todos os cida-datildeos em uma democracia o queimpede que um grupo limitado deindiviacuteduos monopolize os postosdo governo33 No entanto aleacutemdas numerosas medidas de enge-nharia institucional que Espinosapropotildee no Tratado Poliacutetico haacute tam-beacutem outro instrumentordquo de fun-damental importacircncia ndash aleacutem dasleis e instituiccedilotildees ndash para impedira gecircnese de um regime baseadona solidatildeo qual seja o direito deguerra que constitui o baluarte ex-tremo da liberdade da multidatildeode fato se as leis de um Estado

31 Cfr TP VI sect 10 p 51 ldquoO exeacutercito deve ser formado soacute por cidadatildeos sem excetuar nenhum e por maisningueacutem de maneira que todos tenham de ter armas e ningueacutem seja admitido no nuacutemero dos cidadatildeos a natildeo serdepois de ter preparaccedilatildeo militar e se comprometer a exercitaacute-la em determinadas alturas do anordquo

32 TP VIII sect 31 p 10533 Cfr TP XI sect 1 p 137 ldquotodos aqueles cujos pais satildeo cidadatildeos ou que nasceram no solo paacutetrio ou que satildeo

benemeacuteritos da repuacuteblica ou a quem a lei por outros motivos manda atribuir o direito de cidade todos essesdigo reclamaratildeo para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado o qualnatildeo eacute liacutecito recusar-lhes a natildeo ser devido a crime ou infacircmiardquo

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

satildeo de natureza tal quenatildeo podem ser violadassem que ao mesmo tempose debilite a robustez dacidade isto eacute sem que aomesmo tempo o medo co-mum da maioria dos cida-datildeos se converta em indig-naccedilatildeo a cidade por issomesmo dissolve-se e cessao contrato o qual porconseguinte natildeo eacute defen-dido pelo direito civil maspelo direito de guerra34

A referecircncia a um direito (oumelhor a uma forccedila para natildeocair no equiacutevoco de pensar emum Espinosa monarcocircmaco) queexcede o niacutevel do direito estataltambeacutem estaacute presente nas paacuteginasconclusivas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico onde se afirma que namaioria dos homens haacute uma ten-decircncia inevitaacutevel para resistir agraveopressatildeo a ponto de ldquojulgaremque eacute uma coisa mais honesta enatildeo uma vergonha que natildeo sejasomente com as pretensotildees decrimesrdquo 35

Para concluir nas paacuteginas dosdois tratados poliacuteticos espinosa-

nos mesmo que trilhando per-cursos diferentes eacute apresentadaa mesma tentativa de repensara concepccedilatildeo humanista de paze concoacuterdia apoacutes o desafio tra-zido pelo realismo antropoloacutegicoe poliacutetico de Maquiavel e Hob-bes Para tornar eficaz o projetode Erasmo eacute necessaacuterio politizaacute-lo ou melhor reconhecer que soacute eacutepossiacutevel atraveacutes do envolvimentoativo da multidatildeo em cuja potecircn-cia se radica a busca do bem co-mum (a res publica) se natildeo paragarantir a paz de forma definitivapelo menos para impedir que setransforme em solidatildeo e subservi-ecircncia ao poder de um Somenteuma praacutetica comum que potildee emjogo a imaginaccedilatildeo os afetos e a ra-zatildeo coletivas pode gerar uma pazque consiste natildeo apenas em evitara morte mas tambeacutem e sobretudono cultivar a vida Por essa ra-zatildeo natildeo pode haver uma condiccedilatildeode paz que natildeo seja tambeacutem umacondiccedilatildeo de liberdade tanto indi-vidual quanto coletiva uma liber-dade sempre por recomeccedilar oucomo escreve Marilena Chaui porintroduzir o novo no mundo36contra a repeticcedilatildeo interminaacutevel emortal da guerra e da escravidatildeo

34 TP IV sect 6 p 4135 TTP XX p 38836 CHAUI M ldquoSeguranccedila e liberdade Espinosa e a construccedilatildeo da pazrdquo in Discurso 35 2005 pp 158-159

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ZOURABICHVILI F ldquoLrsquoeacutenigme de la primemultitude libreprime rdquo in JAQUET CSEacuteVEacuteRAC P SUHAMY A (orgs) La multitude libre Nouvelles lectures

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225780

Comunicaccedilatildeo e Silecircncio na Experiecircncia PoliacuteticaEspinosana

[Communication and Silence in the Spinozist Political Experience]

Daniel Santos da Silva

Resumo Um problema fundamental eacutetico e poliacutetico a comunicaccedilatildeoencerra menos a preocupaccedilatildeo com a verdade como mero objeto doque com os afetos como exerciacutecio de vida e explicitaccedilatildeo praacutetica daexperiecircncia que ensina Aqui alguns elementos satildeo elencados paracaracterizar a difiacutecil relaccedilatildeo do filoacutesofo ndash da filosofia da reflexatildeo dopensamento criacutetico ndash com a violecircncia (anti)poliacutetica que se expressaem muitas ocasiotildees no verbo idiota ndash poreacutem agraves vezes efetivo ndash e naproliferaccedilatildeo do oacutedio do medo e da exclusatildeoPalavras-chave Comunicaccedilatildeo silecircncio afetos poliacutetica

Abstract A fundamental ethical and political problem communica-tion has less concern with truth as a mere object than with affectionsas the exercise of life and the practical explanation of the experiencethat teaches Here some elements are listed to characterize thephilosopherrsquos - philosophy reflection critical thinking - difficultrelationship with the (anti)political violence that is often expressedin the verb idiot - but sometimes effective - and in the proliferationof hatred fear and exclusionKeywords Communication silence affections politics

A cautela era reconhecidamentea marca de Espinosa A palavracaute figurava no anel de sinetecom o qual selava suas correspon-decircncias ao se comunicar com ami-gos em muitas das quais eramressaltados alguns dos perigos queatingem a quem pensa livrementepor outro lado tambeacutem outrastantas cartas e escritos de Espi-nosa nos permitem tomar essa fi-losofia por uma exposiccedilatildeo clara

de como a paixatildeo do medo des-figura nossas potecircncias amorteceas veias de comunicaccedilatildeo essenci-ais agrave proacutepria existecircncia da vidacoletiva Ora como distinguir aprudecircncia presente no emblemaCaute para a comunicaccedilatildeo do pen-samento livre sem a confundircom a paixatildeo de medo que a des-figura Afinal segundo Espinosauma eacute a potecircncia de viver e resistirpela esperanccedila de vida outra eacute a

Professor da Universidade Estadual do Paranaacute (UNESPAR) Doutor em Filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo E-mail danidani_ssyahoocombr ORCID httpsorcidorg0000-0002-3841-2516

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potecircncia (ou impotecircncia) na confi-guraccedilatildeo de meios e fins para ape-nas existir com o medo da morte

a multidatildeo livre conduz-se mais pela esperanccedilaque pelo medo ao passoque uma multidatildeo subju-gada conduz-se mais pelomedo que pela esperanccedilaaquela procura cultivara vida esta procura so-mente que evitar a morteaquela sublinho procuraviver para si esta eacute obri-gada a ser do vencedor edaiacute dizermos esta eacute servae aquela eacute livre () Eembora entre o estado queeacute criado pela multidatildeo li-vre e aquele que eacute adqui-rido por direito de guerrase atendermos generica-mente ao direito de cadaum natildeo haja nenhumadiferenccedila essencial con-tudo quer o fim como jaacutemostramos quer os meioscom os quais cada um de-les se deve conservar tecircmenormes diferenccedilas (ESPI-NOSA 2009 p 45)

Poreacutem ainda que o medo indi-que servidatildeo ele eacute paixatildeo inso-luacutevel e encarnada em muitos dosmovimentos afetivos que realiza-mos entre outras pessoas muitas

vezes a serviccedilo de barrar a ambi-ccedilatildeo de quem se imagina melhore vive como melhor frente agrave po-tecircncia da multidatildeo De qualquermaneira ao propormos a questatildeosobre comunicaccedilatildeo e o silecircncio napoliacutetica raramente a prudecircnciaa deliberaccedilatildeo ou a cautela foramreduzidas na filosofia agrave paixatildeo domedo Haacute linhas que podem serbem demarcadas entre as duasposturas na cautela um certo co-nhecimento das coisas do mundotende a orientar os passos a se-rem dados se temos em vista umfim o medo em geral apenas des-nuda nossa impotecircncia e ignoracircn-cia por isso natildeo nos surpreendeque inclusive quem se guia portal paixatildeo se ponha a vociferar e afingir destemor quando instacircnciasdeterminadas garantem proteccedilatildeoou anonimato O medo pode fa-zer calar mas pode igualmente fa-zer gritar alucinadamente A cau-tela por sua vez tambeacutem podenos fazer calar mas nunca com-pletamente como mostraremos aseguir e o grito que pode acompa-nhar a cautela eacute de outra naturezaque a do medo - uma espeacutecie deconhecimento que acompanha acautela faz do grito algo expres-sivo de quem se comunica a cau-tela esconde o que pode ser escon-dido (natildeo haacute desejo de martiacuterio)mas expotildee o que pode e deve servivido

Satildeo sentidos de urgecircncia dis-

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COMUNICACcedilAtildeO E SILEcircNCIO NA EXPERIEcircNCIA POLIacuteTICA ESPINOSANA

tintos mesmo assim natildeo dicotocirc-micos pois somos habitados porafetos muacuteltiplos e a coerecircncia quedeles podemos trazer conosco eacutesempre esforccedilo (conatus) A praacuteticaespinosana da filosofia funda-seno desejo (conatus-cupiditas) tam-beacutem de comunicar-se e a coerecircn-cia de nossos esforccedilos estaacute mais nanecessidade de fazer fluir experi-ecircncias vitais do que em produzirdiscursos sem contradiccedilotildees Nessesentido o mais determinante satildeoos afetos comuns que nos asseme-lham e nos diferenciam em nossasexperiecircncias vitais e se expressama nossas proacuteprias vistas A expe-riecircncia de comunicar-se entatildeo eacutepor demais complexa e natildeo resideapenas em disseminar ideias ade-quadas (em uma sorte de vanguar-dismo filosoacutefico) tampouco emsimplesmente informar (um certotipo de razatildeo instrumental discur-siva) Em vez disso o ponto co-mum de que partimos para com-preender as experiecircncias poliacuteticassatildeo as paixotildees os afetos comunscomo medo e esperanccedila tal comose apresentam na praacutetica aqui re-tomada para relembrar o lema es-pinosano do Tratado poliacutetico a rei-vindicaccedilatildeo por uma filosofia po-liacutetica que compreenda as paixotildeesde modo realista e natildeo utoacutepico eque portanto natildeo seja apenas sa-ber teoacuterico discursivo distante dapraacutetica Sem serem condenadaspela imagem de uma natureza de-

caiacuteda e viacuteciosa as paixotildees seratildeoali compreendidas como proprie-dades humanas tal com o planoe a reta satildeo propriedades das fi-guras geomeacutetricas As paixotildeesentretecem as relaccedilotildees dos sereshumanos como prevalentementeambiciosos invejosos e aacutevidos dedistinccedilatildeo ao mesmo tempo emque pelas mesmas propriedadesda natureza humana compreen-demos tambeacutem a solidariedade agenerosidade a fortaleza

Os afetos mais ativos que decor-rem de nossa natureza satildeo con-cretamente exerciacutecio vivo de rela-ccedilotildees que carregam consigo o pen-samento reflexivo satildeo igualmenteproduccedilotildees efetivas de laccedilos entreo indiviacuteduo e o que o cerca maisfirmes que a parceria efecircmera comas coisas e pessoas fundada na ri-queza no prazer ou na gloacuteria ouem outras paixotildees dessa estirpepara lembrar o proecircmio Tratadoda emenda do intelecto (Espinosa2015b) Ao fim natildeo eacute a ldquoideiada verdaderdquo que determina nos-sas accedilotildees pois mesmo no campoda compreensatildeo racional a po-tecircncia intelectual que somos eacute to-mada como expressatildeo de afetos Averdade portanto natildeo opera comonegaccedilatildeo das paixotildees e nem umaideia verdadeira eacute capaz de refrearas paixotildees afinal eacute a forccedila de umafeto contraacuterio e mais forte (sejaele racional ou irracional ade-quado ou inadequado) que pode

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suprimir por exemplo o medo1Esse contexto nos aproxima deideias fundamentais da eacutetica es-pinosana e poderaacute nos oferecer oreal sentido afetivo do que o filoacute-sofo entende por cautela

Certo dia encontrei um textode Joaquim de Carvalho sobre oanonimato de Espinosa na publi-caccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-poliacuteticoque traduz o que aqui defendemosa propoacutesito de sua cautela

Espinosa natildeo nascera comalma de maacutertir Ele ti-nha que dizer aos con-temporacircneos e aos vin-douros preocupava-o odestino da mensagem enatildeo a fama de a haverproferido Se declarasseo nome abriam-se-lhe asportas do caacutercere e agrave infacirc-mia da pessoa sucederiama reclusatildeo e a ignoracircnciado seu pensamento Ondeestaacute o filoacutesofo que natildeo an-teponha a discussatildeo dasideias ao renome da pes-soa ao viver o pervivere para resguardar o des-tino das suas meditaccedilotildeesnatildeo recate o ser fiacutesico seisso for propiacutecio Natildeo

o anonimato do TratadoTeoloacutegico-Poliacutetico natildeo eacuteprova de repulsiva cobar-dia pelo que sabemosou antes ignoramos daiacutendole de Espinosa pen-samos antes que eacute teste-munho da humanitas seumodestia virtude que aEacutetica admiravelmente de-fine (CARVALHO 2019)

O anonimato recobre a prudecircn-cia e natildeo menos a urgecircncia deintervir filosoficamente na expe-riecircncia comum poliacutetica que porsua vez intervinha diretamenteem sua vida a ponto de quase sermorto quando esfaqueado por umldquoinimigordquo amedrontado pelo livrepensar No caso a pobre expe-riecircncia poliacutetica do medo das li-vres ideias natildeo se identifica pron-tamente agraves atitudes violentas dequem teme o livre comunicar-sendash ao contraacuterio podemos afirmarque a violecircncia eacute a fronteira paralaacute da qual a experiecircncia poliacuteticatorna a ser experiecircncia de guerra(natildeo de conflito nos moldes a queestamos acostumados contempo-raneamente pois aqui retomamosa partir de Maquiavel e Espinosaa reflexatildeo sobre direito de guerra)

1 Remeto agrave quarta parte da Eacutetica Proposiccedilatildeo I (Espinosa 2015a p 383) ldquoNada que uma ideia falsa tem depositivo eacute suprimido pela presenccedila do verdadeiro enquanto verdadeirordquo e a Proposiccedilatildeo VII (Espinosa 2015a p389) ldquoUm afeto natildeo pode ser coibido nem suprimido a natildeo ser por um afeto contraacuterio e mais forte que o afeto aser coibidordquo

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COMUNICACcedilAtildeO E SILEcircNCIO NA EXPERIEcircNCIA POLIacuteTICA ESPINOSANA

Espinosa seguia as trilhas de ummundo poliacutetico em seu tempoque insinuava constantemente oterror como forccedila capaz de manterunida a repuacuteblica de fazer passara disseminaccedilatildeo da violecircncia porforccedila integradora e restauradorade potecircncia poliacutetica

Assim a cautela provoca silecircn-cios estrateacutegicos e pode ocultarum nome enquanto expotildee algoprofundamente poliacutetico e devesaber discernir na experiecircncia po-liacutetica o que esta experiecircncia re-vela de violento de antipoliacuteticode desejo de exclusatildeo e destrui-ccedilatildeo A maior dificuldade surgeexatamente quando a comunica-ccedilatildeo ela mesma e suas condiccedilotildeesde efetividade satildeo deturpadas ateacuteque a violecircncia que perpassa cer-tas accedilotildees seja vista como ato poliacute-tico ndash como as que se substanciamna negaccedilatildeo da alteridade das di-ferenccedilas ndash e que as possibilidadesde comunhatildeo sejam tatildeo bloquea-das agraves nossas vistas cansadas docotidiano que o que diz respeitode fato agrave cidade passa a ser ne-gligenciado ou mesmo excomun-gado como peacuterfido e prejudicial ndashpodemos reconhecer bem a persis-

tecircncia nesse caso da imagem dopoliacutetico2 peacuterfido sempre a pre-parar armadilhas e sua extrapo-laccedilatildeo justamente segue na mesmaesteira daquilo que poderia produ-zir o reverso alguma forma de es-clarecimento na multiplicaccedilatildeo dosmeios de comunicaccedilatildeo

O falar e o calar sentimos mui-tas vezes constituem uma expe-riecircncia eacutetica tanto quanto poliacute-tica Espinosa escreve no escoacutelioda segunda proposiccedilatildeo da terceiraparte da Eacutetica as coisas humanasdar-se-iam muito mais felizmentese nos homens estivesse igual-mente o poder (potestate) tanto defalar quanto de calar Ora a expe-riecircncia ensina mais que suficien-temente que os homens nada tecircmmenos em seu poder do que a liacuten-gua e que nada podem menos doque moderar seus apetites (Espi-nosa 2015 p 245) Se a poliacuteticaexiste em funccedilatildeo da dificuldadeintriacutenseca agrave existecircncia humana demoderar os apetites existe tam-beacutem como esfera de moderaccedilatildeo dafala - e o moderar tambeacutem nos en-via ao governar ao criar medidas(impor a justeza) Nesse sentidoo campo poliacutetico potildee-se tambeacutem

2 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 pp 6-7) ldquoOs poliacuteticos pelo contraacuterio crecirc-se que em vez de cuidaremdos interesses dos homens lhes armam ciladas e mais do que saacutebios satildeo considerados habilidosos A experiecircnciana verdade ensinou-lhes que enquanto houver homens haveraacute viacutecios Daiacute que ao procurarem precaver-se damaliacutecia humana por meio daquelas artes que uma experiecircncia de longa data ensina e que os homens conduzidosmais pelo medo que pela razatildeo costumam usar pareccedilam adversaacuterios da religiatildeo principalmente dos teoacutelogos osquais creem que os poderes soberanos devem tratar dos assuntos puacuteblicos segundo as mesmas regras da piedadeque tem um homem particular Eacute no entanto inquestionaacutevel que os poliacuteticos escreveram sobre as coisas poliacuteticas demaneira muito mais feliz que os filoacutesofos Dado com efeito que tiveram a experiecircncia por mestra natildeo ensinaramnada que se afastasse da praacuteticardquo

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como produtor de sentido de falase pode ser encarado como condi-ccedilatildeo de muitas expressotildees comunsmas inversamente pode ser ter-reno de violecircncia agravequilo que seconstitui comunitariamente

A violecircncia pode estar no calaraquela a que mais atentamos nor-malmente pode estar tambeacutemcontudo no fazer falar no induziragrave expressatildeo falada forma menoscostumeira aparentemente masdas mais recorrentes em nossosdias O transtorno dessa formade induccedilatildeo agrave tagarelice eacute legiacutevelna escrita de Espinosa seja por-que admite que apesar de natildeo sertatildeo faacutecil submeter acircnimos comose submetem liacutenguas os acircnimosestatildeo de certa forma sob os pode-res soberanos e se submetem aosmeios capazes de levar a maioriaa amar e odiar o que querem taispoderes ndash mais a gritar de oacutedio oude amor com a medida a mode-raccedilatildeo requerida para suas finali-dades (ESPINOSA 2008 p 252)seja enfim porque prognosticanessa menor dificuldade em do-minar as liacutenguas que os acircnimosa necessaacuteria violecircncia em que re-cai toda forma de poder que seexerce sobre nossa liberdade deraciocinar e de ajuizar Em rela-ccedilatildeo a isso lembremos as primei-ras linhas do uacuteltimo capiacutetulo doTratado Teoloacutegico-Poliacutetico

Se fosse tatildeo faacutecil mandar

nos acircnimos como eacute man-dar na liacutenguas natildeo have-ria nenhum governo quenatildeo estivesse em segu-ranccedila ou que recorresse agraveviolecircncia uma vez que to-dos os suacuteditos viveriam deacordo com o desiacutegnio dosgovernantes e soacute em fun-ccedilatildeo das suas prescriccedilotildees eacuteque ajuizariam do que erabom ou mau verdadeiroou falso justo e iniacutequo(ESPINOSA 2008 p 300)

O tom quase matemaacutetico natildeo sur-preende pelo menos a quem natildeoespera juiacutezo moral dessa filoso-fia poliacutetica o que temos no con-texto dessa citaccedilatildeo eacute uma sorte dealerta a quem pretende dominar ndashe como isso apenas eacute possiacutevel sea potecircncia de muitos daacute suportea tamanha ambiccedilatildeo a consequecircn-cia mais necessaacuteria que daiacute segueeacute a violecircncia sempre agrave sombrade pensamentos e praacuteticas irredu-tiacuteveis em sua persistecircncia eacutetico-poliacutetica A liberdade de fala es-tudo e ensino diferencia-se do cul-tivo da fala violentamente antipo-liacutetica como a resistecircncia de quemdeseja a liberdade diferencia-se dodesejo de abandonar a potecircnciaproacutepria Nessa configuraccedilatildeo emque a fala antipoliacutetica exerce o do-miacutenio poliacutetico satildeo os indiviacuteduosmais notaacuteveis pelo conhecimentoe pelo exerciacutecio da comunicaccedilatildeo

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COMUNICACcedilAtildeO E SILEcircNCIO NA EXPERIEcircNCIA POLIacuteTICA ESPINOSANA

pelo envolvimento livre e afetivocom as partes mais violentadas dacidade que seratildeo os primeiros per-seguidos nos confrontos ndash aindaque verbais ndash que se instalam emmeio agrave ldquocomunidaderdquo3

O ldquomandar nos acircnimos e nasliacutenguasrdquo em nome da seguranccedilaa que busca o exerciacutecio violentode poder no Tratado Teoloacutegico-poliacutetico natildeo se identifica poiscom a definiccedilatildeo de seguranccedila doTratado poliacutetico4 entendida comouma virtude da cidade correspon-dente agrave virtude privada que jus-tamente preserva a liberdade e afortaleza do acircnimo Neste caso aindividual liberdade de acircnimo (oufortaleza) se realiza na mesma me-dida em que sinaliza a concreccedilatildeodos direitos naturais dos indiviacute-duos em atividade comum comovemos muito bem articulado nosegundo Tratado Paralelamentea ilusoacuteria liberdade de expres-sar em fala o oacutedio ndash ou de per-seguir odiosamente a fala livre ndashnessa configuraccedilatildeo em que com-plexos imaginaacuterios (efetivos) de

dominaccedilatildeo formatam a poliacuteticaeacute impregnada de arrebatamentoem crenccedilas e em desprezos quesurgem como escreve Espinosasob a autoridade e a orientaccedilatildeo dequem domina ndash o que a experi-ecircncia abundantemente confirma(ESPINOSA 2008 p252)

E porque satildeo muitos os indi-viacuteduos orientados pela liberdadeilusoacuteria e arrebanhados pela am-biccedilatildeo de domiacutenio de poucos oua imagem da poliacutetica se apro-xima da dinacircmica de um sindi-cato de ladrotildees ou ela eacute reformu-lada Ora isso que implica ou-tra armadura para o que se consi-dera a experiecircncia poliacutetica outramedida (moderaccedilatildeo) para o quese tem vulgarmente por accedilatildeo po-liacutetica e na mesma corrente poraccedilatildeo puacuteblica Se o pouco poderque temos sobre nossas liacutenguaspode ser deixado a quem desejadominar se aleacutem disso para do-minar eacute preciso atacar os acircnimosdos indiviacuteduos um meio eficazpara isso seria exatamente emprimeiro lugar dar agrave voz submissa

3 No Tratado Teoloacutegico-poliacutetico (ESPINOSA 2008 p 307) ldquoQuanto mais natildeo valeria conter a ira e o furordo vulgo em vez de promulgar leis inuacuteteis que soacute podem ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e asartes leis que reduzem o Estado a uma situaccedilatildeo tal que eacute incapaz de defender os homens livres Que coisa piorpode imaginar-se para um Estado que serem mandados para o exiacutelio como indesejaacuteveis homens honestos soacute por-que pensam de maneira diferente e natildeo sabem dissimular () os que sabem que satildeo honestos natildeo tecircm como oscriminosos medo de morrer nem imploram clemecircncia na medida em que natildeo os angustia o remorso de nenhumfeito vergonhoso recusam-se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e tecircm por uma gloacuteria dar a vidapela liberdade Que exemplo poderaacute entatildeo ter ficado da morte de pessoas assim cujo ideal eacute incompreendido pelosfracos e moralmente impotentes odiado pelos revoltosos e amado pelos homens de bem Ningueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum a natildeo ser para os imitar ou pelo menos admirarrdquo

4 No Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 9) ldquoNem importa para a seguranccedila do estado (imperium) com queacircnimo os homens satildeo induzidos a administrar corretamente as coisas contanto que as coisas sejam corretamenteadministradas A liberdade de acircnimo ou fortaleza eacute com efeito uma virtude privada ao passo que a seguranccedila eacute avirtude do estadordquo

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todo incentivo agrave fala (entendidaaqui como falsa liberdade de co-municaccedilatildeo) e em segundo lugarinversamente agrave verdadeira liber-dade de juiacutezo e de acircnimo dar aresde subversatildeo de amotinamento oqual eacute fundado em realidade nacomunicaccedilatildeo do que eacute verdadeira-mente uacutetil ao comum

Nessa configuraccedilatildeo em ambosos casos o medo eacute o afeto mais co-mum ainda assim traccedilos diversosdenunciam a natural diferenccedila en-tre os locais em que habita se pen-samos em termos maquiavelianosnotamos que o desejo de domiacute-nio eacute inseparaacutevel do medo a tudomedo da verdade ndash como desejode ser enganado5 ndash eis uma dasrazotildees de natildeo poder durar e Es-pinosa relembra Secircneca para afir-mar que o despotismo tem neces-sariamente vida curta (Espinosa2008 p 86) Por outro lado o de-sejo de natildeo ser dominado ndash e tam-beacutem o desejo que persiste em natildeoser governado por semelhantes ndashenlaccedila o medo inevitaacutevel pela proacute-pria sobrevivecircncia mas especial-

mente questiona a permanecircnciada vida como simples sobrevida6

Talvez entatildeo possamos pers-pectivar como resistecircncia a ne-gaccedilatildeo a aderir agrave fala orientada equem sabe ateacute possamos ver nissoo silecircncio como constituiccedilatildeo emalguns momentos de verdadeiraalianccedila comunicativa Em certasconfiguraccedilotildees haacute resistecircncia ativano silecircncio assim como haacute igual-mente cautela no pronunciar-seou no anunciar-se inevitavel-mente existe o vazio das falassubmissas e fundadas na negaccedilatildeoe no medo da liberdade comumPara que uma asserccedilatildeo como essafaccedila sentido hoje natildeo liguemosagrave ideia de dominaccedilatildeo apenas go-vernantes poliacuteticos jaacute que meiose instrumentos de subjugaccedilatildeo doacircnimo muito se complexificaram erefinaram-se A eficaacutecia atual so-bre os acircnimos jaacute eacute capaz de fazerparecer bobagem falar ndash critica-mente natildeo como frase pronta demercadoria ndash em desejo de liber-dade

Portanto a violecircncia poliacutetica

5 Cf essa bela passagem de MARILENA CHAUI em Poliacutetica em Espinosa p 279 ldquoO soberbo no orgulhodesmedido considera que tudo lhe eacute permitido o abjeto na humilhaccedilatildeo desmedida considera que nada lhe eacutepermitido O primeiro se torna dominador insolente o outro servo adulador invejoso e ressentido Ambos sub-missos agraves suas paixotildees satildeo fonte de novas servidotildees pois o soberbo julga-se livre porque domina e despreza osoutros enquanto o abjeto adulador imagina-se dependente dos favores do soberbo que por definiccedilatildeo nunca hatildeode vir Assim o segundo movimento do texto do Poliacutetico (VII 27) inicia-se quando transferido o topos livianoda plebe para o vulgar passamos daquele que se deixa enganar por inexperiecircncia e ignoracircncia agravequele que desejaser enganado por orgulho e ambiccedilatildeo ou por auto-abjeccedilatildeo Por isso servidatildeo e liberdade natildeo andam juntas pois osoberbo eacute servo de suas paixotildees que o fazem servo de seus aduladores e estes servos de suas paixotildees que os fazemservos do dominadorrdquo

6 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 45) ldquoQuando por conseguinte dizemos que o melhor estado eacuteaquele onde os homens passam a vida em concoacuterdia entendo a vida humana a qual natildeo se define soacute pela cir-culaccedilatildeo do sangue e outras coisas que satildeo comuns a todos os animais mas se define acima de tudo pela razatildeoverdadeira virtude e vida da menterdquo

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COMUNICACcedilAtildeO E SILEcircNCIO NA EXPERIEcircNCIA POLIacuteTICA ESPINOSANA

natildeo existe porque haacute acircnimos in-submissos ndash simplesmente exis-tem potecircncias singulares e ativi-dades comuns e a violecircncia acom-panha o desejo de dominar o qualem geral tem braccedilos curtos e vozrouca pois para homenagear LaBoeacutetie precisa invariavelmente demuitos braccedilos e vozes estridentespara agir e a arena poliacutetica eacute umpalco bem iluminado para isso Eacutenessa linha que do oacutedio do des-prezo e de tudo mais surgido dodesejo de dominar de poucos Es-pinosa afirma

E se bem que esses senti-mentos natildeo surjam direta-mente por ordem do sobe-rano muitas vezes comoa experiecircncia abundante-mente confirma eles sur-gem no entanto por forccedilade sua autoridade e sobsua orientaccedilatildeo daiacute quepossamos conceber semviolentar minimamente ainteligecircncia homens quenatildeo acreditem odeiemdesprezem ou sejam arre-batados por qualquer ou-tro sentimento a natildeo serem virtude do direito doEstado (ESPINOSA 2008p252)

Suponho pois que a cautela e apotecircncia que ela envolve mais quenunca passam por resistir a certasfalas a calar o nome de si em oca-siotildees determinadas a comunicarateacute no silecircncio mas repudia maxi-mamente o medo mesmo que delenatildeo se livre completamente mui-tas vezes Por outro lado supo-nho que a comunicaccedilatildeo constitu-tiva da experiecircncia poliacutetica muacutel-tipla obviamente eacute hostil agrave pro-liferaccedilatildeo do oacutedio e da exclusatildeoe que toda resistecircncia ou accedilatildeo li-vre quando poliacutetica eacute conflito di-reto com quem usurpa o direitodo indiviacuteduo dando-lhe voz ndash quequando uacutetil eacute conquistada natildeodada ndash e orientando de mil modossua fala que assim seraacute constan-temente uma fala contra generali-zante nem por isso todas e todosque assim falam aderem de fatoao oacutedio ao desprezo eacute de se no-tar que violecircncias satildeo exercidas so-bre indiviacuteduos quando na cidade osinstrumentos mais eficazes de comu-nicaccedilatildeo satildeo antipoliacuteticos e a poliacute-tica passa a alimentar a ilusatildeo deque a voz publicizada eacute jaacute voz poliacute-tica ocultando que a experiecircncia queaiacute se constitui eacute primordialmente denegaccedilatildeo de subserviecircncia ndash de circopor que natildeo

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Referecircncias

CARVALHO J de Espinosa e a publicaccedilatildeo do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoArtigo eletrocircnico [Acessado em 03 de junho de 2019]

CHAUI M Poliacutetica em Espinosa Satildeo Paulo Companhia das Letras2003

ESPINOSA B de Tratado poliacutetico Trad de Diogo Pires Aureacutelio SatildeoPaulo Martins Fontes 2009

_____________ Eacutetica Trad do Grupo de Estudos Espinosanos SatildeoPaulo Edusp 2015a

_____________ Tratado teoloacutegico-poliacutetico Trad Diogo Pires AureacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2008

_____________ Tratado da emenda do intelecto Trad de Cristiano No-vaes de Rezende Campinas Editora da Unicamp 2015b

LA BOEacuteTIE Etienne Discurso da servidatildeo voluntaacuteria Trad LaymertGarcia dos Santos Satildeo Paulo Brasiliense 1999

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225632

Sobre o Desespero Satildeo Paulo Junho de 2013[Of Despair Satildeo Paulo June 2013]

Fernando Bonadia de Oliveira

Resumo Este artigo pretende analisar as jornadas de junho de 2013na cidade de Satildeo Paulo assumindo como perspectiva a definiccedilatildeo dedesespero elaborada por Bento de Espinosa (1632-1677) na parte IIIda Eacutetica A partir da ideia de que houve um sequestro da narrativasobre as jornadas o texto reconstitui a cobertura midiaacutetica dos qua-tro primeiros atos contra o aumento da tarifa do transporte puacuteblicoocorridos na cidade entre os dias 6 e 13 de junho Em seguida arti-cula uma discussatildeo a respeito das interfaces possiacuteveis entre a filosofiapraacutetica de Espinosa e estes acontecimentos evidenciando como se-gundo certa interpretaccedilatildeo o desespero pode ser considerado o afetopredominante das jornadas tendo como principal protagonista umajuventude organizada combativa e criacuteticaPalavras-chave Jornadas de Junho de 2013 Bento de Espinosa De-sespero Movimento Social Juventud

Abstract This article intends to analyze the journey occurred inJune 2013 in the city of Satildeo Paulo assuming the definition of despairdeveloped by Benedictus Spinoza (1632-1677) in his treatise Ethics IIIas perspective From the point of view that the narrative about thejourneys was sequestered the text reconstitutes the media coverageof the four initial actsprotests against the public transport tax raiseoccurred among june 6th to 13th Following this a discussion aboutthe correlations between the practical philosophy of Spinoza andthese events is developed showing how according to a way of in-terpreting the case despair can be considered the predominantaffect of those acts with an organized combative and critic youth asprotagonistKeywords June Journeys in Satildeo Paulo Benedictus Spinoza DespairSocial Movement Youth

Uma introduccedilatildeo necessaacuteria

Este artigo corresponde agrave pri-meira parte de um estudo ainda

em desenvolvimento sobre as jor-nadas de junho de 20131 na cidade

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Doutor em Filosofia pela Universidade deSatildeo Paulo (USP) E-mail fernandofilosofiahotmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-4627-3162

1 As jornadas de junho de 2013 correspondem a ldquovaacuterias manifestaccedilotildees populares por todo o paiacutes que inici-almente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte puacuteblico principalmente nas principaiscapitaisrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiJornadas_de_Junho Acesso 23 de fevereiro de 2019 Aforma de nomear o evento varia muito Entre as designaccedilotildees mais comuns estatildeo atos (denominaccedilatildeo do MovimentoPasse Livre) acontecimentos (SINGER 2013 p 26) protestos (GOHN 2014 p 435) e manifestaccedilotildees (CHAUI

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de Satildeo Paulo segundo a percepccedilatildeode um leitor-filoacutesofo de Espinosa2As inquietaccedilotildees que conduziramao problema aqui examinado nas-ceram de minha participaccedilatildeo noseventos poliacuteticos entatildeo deflagra-dos nas ruas e por conseguinteenvolvem uma dimensatildeo maior desubjetividade

A metodologia de pesquisa en-sina os casos em que a coleta dedados por meio de uma observa-ccedilatildeo cientiacutefica rigorosamente pla-nejada pode ser um excelente re-curso de investigaccedilatildeo de tal modoque as impressotildees pessoais do pes-quisador natildeo deformem a reali-dade observada Um investigadoresclarecido ao preparar devida-mente a observaccedilatildeo da situaccedilatildeo apesquisar potildee agraves claras para suaproacutepria consciecircncia as ideias preacute-concebidas que podem vir a de-turpar a apreensatildeo rigorosa dosfatos e dessa maneira permanecemetodicamente prevenido delasCoisa diferente eacute algueacutem viven-ciar uma situaccedilatildeo determinadade forma contingente ou interes-sada e em seguida descrevecirc-lacom base em emoccedilotildees vagas pre-tendendo ingenuamente chegar a

conclusotildees dignas de creacutedito cien-tiacutefico

Como minha presenccedila no mo-vimento das jornadas de junho de2013 natildeo resultou de uma obser-vaccedilatildeo planejada a uacutenica maneirade produzir um estudo coerentedepende do reconhecimento emprimeiro lugar das noccedilotildees de queeu dispunha conscientemente na-quele momento e em segundo lu-gar do respaldo de uma bibliogra-fia que tendo abordado as jorna-das com o distanciamento neces-saacuterio a uma realizaccedilatildeo cientiacuteficasustente o sentido de minhas in-terpretaccedilotildees As noccedilotildees aqui ex-plicitadas estatildeo no universo con-ceitual de Espinosa e em especialem uma noccedilatildeo especiacutefica a de de-sespero que em geral natildeo aparececom destaque em estudos feitossobre o espinosismo Natildeo haacute duacute-vida de que os comentaacuterios so-bre a poliacutetica de Espinosa atra-vessam o debate eacutetico em tornodeste afeto e sobretudo do parque ele compotildee com a seguranccedilaApesar disso natildeo haacute tantos tra-balhos que circunscrevam espe-cialmente o desespero no campopoliacutetico como os que abordam o

2013) Exceto o uacuteltimo termo que evitaremos por ter adquirido depois de 2013 uma conotaccedilatildeo de ldquofestardquo muitodifundida pela grande miacutedia empregaremos todas as outras expressotildees O termo jornada foi especialmente esco-lhido por conter entre outros o sentido militar de batalha expediccedilatildeo de guerra fenocircmenos que conforme o leitorperceberaacute espelham melhor os fatos transcorridos na cidade de Satildeo Paulo no periacuteodo que seraacute enfatizado aqui asaber os dias 6 a 17 de junho

2 As referecircncias agrave obra de Espinosa seratildeo feitas pela indicaccedilatildeo da parte de obra citada ou mencionada Aleacutemdisso seraacute indicado o nuacutemero do volume e da paacutegina de acordo com a referecircncia padratildeo das obras espinosanaspor Carl Gebhardt (SPINOZA 1972) registradas pela inicial ldquoGrdquo A traduccedilatildeo da Eacutetica utilizada corresponde agrave daEdusp (ESPINOSA 2015) e a traduccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico agrave da Martins Fontes (ESPINOSA 2003)

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SOBRE O DESESPERO SAtildeO PAULO JUNHO DE 2013

medo a esperanccedila e a seguranccedilamesmo quando enfatizam o de-sespero tomam-no estritamentenaquilo que ele tem de evidenteo fato de ser uma tristeza Nestetrabalho conveacutem destacar o de-sespero seraacute entendido na dimen-satildeo da tristeza como natildeo pode-ria deixar de ser mas uma tristezaque pode se ligar a outros afetose em coletividade tornar-se ale-gria3

A bibliografia sobre as recen-tes mobilizaccedilotildees de rua no Brasilpor sua vez eacute vasta e apreende asjornadas a partir de vieses distin-tos tais como a atuaccedilatildeo dos mo-vimentos sociais os dados sobre operfil dos insurretos4 as anaacutelisesmidiaacuteticas dos eventos entre ou-tros Ocorre poreacutem que as refe-recircncias bibliograacuteficas localizadasnatildeo datildeo a devida consideraccedilatildeo aum dado que a experiecircncia reve-lou importante no cotidiano dasjornadas os atos desde a perspec-tiva de seus originais organizado-res tiveram no dia 13 de junhoum divisor de aacuteguas que delineouduas narrativas distintas A pri-

meira narrativa assim defende-remos tem como afeto predomi-nante o desespero a segunda temcomo afeto hegemocircnico a indigna-ccedilatildeo

Haacute sem duacutevida referecircncias bi-bliograacuteficas que levam em conta atemporalidade dos atos que cons-tituiacuteram os acontecimentos de ju-nho Neste trabalho contudo acompreensatildeo da distinccedilatildeo de na-tureza entre os atos de 6 a 13 dejunho e os atos de 17 de junho emdiante eacute o paradigma central doentendimento das jornadas aquipretendido5 Ademais diferente-mente da maioria das bibliogra-fias disponiacuteveis tomaremos comobasilar algo que sempre em dis-cussatildeo tambeacutem natildeo costuma re-ceber a devida ecircnfase o pivocirc detodas as accedilotildees que chamaram aatenccedilatildeo do puacuteblico naquela oca-siatildeo foi a juventude paulistanaNeste artigo conceberemos a ju-ventude como a principal ativa-dora do iniacutecio das movimentaccedilotildeesde rua que tomaram o Brasil eao mesmo tempo como o prin-cipal objeto da necessidade per-

3 Sobre as noccedilotildees de alegria e tristeza aqui empregadas cabe ressaltar seu sentido espinosano a ldquoalegria eacute apassagem do homem de uma perfeiccedilatildeo menor a uma maiorrdquo a ldquotristeza eacute a passagem do homem de uma perfei-ccedilatildeo maior a uma menorrdquo (GII p 191) Ao lado do desejo tais noccedilotildees compotildeem a triacuteade dos principais afetos dafilosofia praacutetica de Espinosa

4 Apontamos aqui os militantes como ldquoinsurretosrdquo tomando como ldquoinsurreiccedilatildeordquo aquilo que para Negri (2003p 197) ldquoeacute a forma de um movimento de massa resistente quando se torna ativa em pouco tempo ()rdquo A insur-reiccedilatildeo nesse sentido eacute o que ldquoaperta as diversas formas de resistecircncia em um uacutenico noacuterdquo Tal descriccedilatildeo se aproximadas caracteriacutesticas poliacuteticas que definiram as jornadas enquanto certa espeacutecie de batalha

5 Ampara-nos neste ponto o livro Vinte Centavos A Luta Contra o Aumento que se opotildee a interpretaccedilotildees queembaladas pelos meios de comunicaccedilatildeo e pelo descuido de analistas natildeo atentam para o comeccedilo dos protestos e osseus precedentes permitindo que se torne consensual a tese de que a reivindicaccedilatildeo pela reduccedilatildeo das tarifas foi ummero acidente das jornadas de junho (ORTELLADO 2015)

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cebida pelos dominantes de secriar o quanto antes pela ideo-logia um discurso diferente da-quele das ruas bem como umapoliacutetica objetiva contra os direitosdos jovens e das geraccedilotildees futurasdo paiacutes conforme seraacute tematizadonas conclusotildees

O objetivo deste texto foi emsuma interpretar as jornadas dejunho de 2013 na cidade de SatildeoPaulo a partir de um diaacutelogo coma noccedilatildeo espinosana de desesperodeixando para outro momento odiaacutelogo com a noccedilatildeo de indigna-ccedilatildeo Uma vez que a percepccedilatildeodas jornadas depende da formapela qual concebemos sua traje-toacuteria completa naqueles dias ini-ciaremos tratando o problema doldquosequestro da narrativardquo sobre oque foram afinal os atos contra atarifa Em seguida mostraremoscomo estavam estruturados essesatos e como a concepccedilatildeo espino-sana de desespero pode ser relaci-onada a eles Por fim buscaremosidentificar a contribuiccedilatildeo da lei-tura de Espinosa para se pensara transformaccedilatildeo poliacutetica dos afe-tos tristes em alegres ou noutraspalavras para conhecer como amultidatildeo pode vir a formar comparticipaccedilatildeo e accedilatildeo direta a soli-dariedade entre desesperados

Interpretada em perspectiva es-pinosana esta solidariedade con-forme seraacute visto pode ser uma ex-periecircncia de estar-com capaz de fa-zer nascer no seio da condiccedilatildeo deservidatildeo (caracteriacutestica do indiviacute-duo desesperado) um gosto pelalibertaccedilatildeo isto eacute pela passagempara uma vida coletivamente li-vre mantida pelo auxiacutelio muacutetuoA experiecircncia de lutar constitu-tiva do potencial democraacutetico deum coletivo quando eacute vivenciadapor aqueles que em desesperoafrontam todas as formas de lide-ranccedila e comando que se dirigemcontra o bem comum conteacutem umdevir-ativo6

O sentimento de uma alegre li-berdade em meio ao caos da re-pressatildeo eacute comum entre os que jaacuteestiveram em situaccedilatildeo de orga-nizaccedilatildeo poliacutetica guiada por umaestrateacutegia revolucionaacuteria contra aopressatildeo No documentaacuterio Ma-righella (Ferraz 2012) o depoi-mento de Guiomar Silva Lopesmeacutedica e ex-militante contra a di-tadura civil-militar brasileira eacuteum bom exemplo disso afinalpara ela sua vida em combate sesituava ldquono fio da navalhardquo mashavia algo fantaacutestico ldquouma sen-saccedilatildeo de liberdade inacreditaacutevelrdquode estar em meio agrave resistecircncia

6 Expressatildeo empregada por Gilles Deleuze (2017 p 358) Ver Michael Hardt (1996 p 156-157) que explica odevir-ativo de Deleuze na leitura de Espinosa como passagem da tristeza agrave alegria produzida pela descoberta dasnoccedilotildees comuns e pela formaccedilatildeo de ideias adequadas

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SOBRE O DESESPERO SAtildeO PAULO JUNHO DE 2013

No mesmo sentido descrevendoas imagens francesas de maio de1968 Marilena Chaui conta emdiscurso emocionado a percepccedilatildeoque teve

Vocecircs natildeo imaginam o queeacute passar pela experiecircn-cia revolucionaacuteria Eacute umacoisa eacute uma coisa Eudigo que todo mundo temque viver uma grande pai-xatildeo amorosa e ter uma ex-periecircncia pela possibili-dade de revoluccedilatildeo Semessas duas coisas vocecirc natildeoviveu uma vida completaTem que ter porque omundo se abre com to-das as janelas a um fu-turo completamente ne-buloso e que estaacute laacute vocecircsabe que estaacute laacute e vocecircsabe que vocecirc vai para eleque vai acontecer que elevai acontecer com as tuasmatildeos (CHAUI 2016a p28)

Embora Chaui (2018 p 417) de-fenda que a ocupaccedilatildeo das escolaspelos jovens em 2015 foi o maisautecircntico movimento brasileirocapaz de traduzir o maio de 68

francecircs (e natildeo as jornadas de ju-nho conforme se disseminou ge-neralizadamente) seu relato potildeeem paralelo a paixatildeo revolucio-naacuteria e a grande paixatildeo amorosararidades afetivas dignas de umavida bem vivida O impulso dosregistros jaacute oferecidos reaparececom outras cores em certa reflexatildeode Antonio Negri e Michael Hardt(2005 p 276) no livro MultidatildeoDispostos a mostrar como os con-flitos sociais mobilizam o comumeles escrevem

O conflito direto com opoder para o melhor oupara o pior eleva essa in-tensidade comum a umniacutevel ainda mais alto ocheiro caacuteustico do gaacutes la-crimogecircneo mobiliza ossentidos e os confrontosde rua com a poliacutecia fa-zem o sangue ferver deraiva elevando a intensi-dade ao ponto da explo-satildeo Finalmente a intensi-ficaccedilatildeo do comum produzuma transformaccedilatildeo antro-poloacutegica de tal ordem quedas lutas surge uma novahumanidade

7 Esta expressatildeo emerge na descriccedilatildeo feita por Gohn (2014 p 432) das diversas tendecircncias que apareciam nosatos Entre elas revela a autora ldquo() haacute tambeacutem um novo humanismo na accedilatildeo de alguns expresso em visotildees ho-liacutesticas e comunitaristas que critica a sociedade de consumo o egoiacutesmo a violecircncia cotidiana ndash real ou monitoradapelo medo nas manchetes diaacuterias sobre assaltos roubos mortes etc a destruiccedilatildeo que o consumo de drogas estaacute

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Esta nova humanidade espeacutecie deldquonovo humanismordquo7 nasceu naresistecircncia ativa e criativa de jo-vens contra um sistema brutal derepressatildeo a Poliacutecia Militar do Es-tado de Satildeo Paulo Quem expe-rimentou a emoccedilatildeo revolucionaacute-ria de 2013 se deixou marcar pelaluta coletiva e pela descoberta daaccedilatildeo no seio da paixatildeo isto eacute pelaliberdade contida no acircmbito dasexperiecircncias da proacutepria passio-nalidade e natildeo em algum idealtranscendente ou em certo deusex machina No contexto dos atosaqui estudados como veremos apaixatildeo em pauta eacute o desespero quesurge ndash na parte III da Eacutetica de Es-pinosa ndash da ausecircncia de duacutevidasquanto a um futuro amedronta-dor que acena cada vez mais deperto A accedilatildeo consiste na arte daorganizaccedilatildeo coletiva mediada pelaperformance de jovens que tornamo proacuteprio desespero capaz de cau-sar desespero

Eacute certo que o dispositivo queincendiou as ruas natildeo parece tersido motivado pela accedilatildeo de jo-vens reivindicando o direito agrave iraou ao exerciacutecio gratuito do deses-pero quanto ao futuro mas umaquestatildeo de circulaccedilatildeo urbana (oaumento da tarifa) A linha argu-mentativa deste artigo se orientajustamente no sentido de reconhe-cer isso mas tambeacutem de eviden-

ciar ter sido sobre jovens assimdesesperanccedilados que em junhode 2013 um aumento rotineiro detarifa natildeo caiu bem

Antes de tudo vale a penaainda uma uacuteltima observaccedilatildeo so-bre o criteacuterio com que abordare-mos o problema examinado Sem-pre que nos voltamos a estudoshistoacutericos sobre o Brasil precisa-mos ter em pensamento a indaga-ccedilatildeo que Carlos Alberto Vesentini(1997 p 15) coloca em seu es-tudo sobre 1930 ldquoCom que criteacute-rio um historiador fala das lutase agentes de uma eacutepoca que natildeoeacute a suardquo No caso das jornadasde junho inversamente estamostratando de uma eacutepoca que vive-mos e de agentes que acompanha-mos integrando-nos como parteda narrativa Ainda assim paranossos intentos cabe refletir sobrea pergunta de Vesentini em sen-tido filosoacutefico tomar a definiccedilatildeode um afeto da filosofia de Espi-nosa (no seacuteculo XVII) para inter-pretar a vivecircncia das jornadas dejunho de 2013 natildeo envolve umacontradiccedilatildeo temporal que podeeventualmente turvar a proacutepriainterpretaccedilatildeo A fim de esclare-cer este ponto devemos advertirque conforme sustentou AntonioNegri (1993 p 26) em sua obra Aanomalia selvagem (publicada em1981) Espinosa pode ser tomado

causando na juventude e outrosrdquo

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SOBRE O DESESPERO SAtildeO PAULO JUNHO DE 2013

como um filoacutesofo contemporacircneoisto eacute atento a tensotildees que soacute es-tatildeo se explicitando agora seacuteculosdepois de sua eacutepoca ldquoEspinosa eacuteum filoacutesofo contemporacircneo poissua filosofia eacute a de nosso futurordquoescreveu ele8 Por motivos simila-res observamos que neste traba-lho o espinosismo seraacute entendidopelos princiacutepios de sua teoria dosafetos cuja dinacircmica pode dialo-gar com os afetos em circulaccedilatildeo nocenaacuterio poliacutetico brasileiro atual

Tais consideraccedilotildees introdutoacute-rias satildeo necessaacuterias para natildeo in-cidirmos no erro comum expli-citado por Maria da Gloacuteria Gohn(2014 p 437) em relaccedilatildeo a umaseacuterie de abordagens sobre as jor-nadas Para ela muitos analistasde junho de 2013

fazem uma leitura com osoacuteculos de uma dada abor-dagem e como natildeo encon-tram os elementos dessaabordagem nas manifes-taccedilotildees descaracterizam-nas Natildeo querem ver ounatildeo aceitam que elas tecircm

outros pressupostos ou-tros referenciais

Este trabalho buscou tantoquanto possiacutevel natildeo aplicar ver-ticalmente a teoria poliacutetica deEspinosa sobre os fatos de ju-nho a ponto de formar uma ideiade totalidade sobre as jornadasmas construir uma articulaccedilatildeo pormeio da qual pudessem ser apre-sentadas sobre estes eventos im-pressotildees que parecem ter ficadoateacute agora senatildeo inauditas margi-nais

Antecedentes Satildeo Paulo 20139

As jornadas surgiram na cenasocial e poliacutetica do Brasil comoum problema de transporte SatildeoPaulo como outras metroacutepoles eacuteceacutelebre pela rotina urbana do en-garrafamento isto eacute pela cotidi-anidade do tracircnsito lento ocasio-nado pelo excesso de veiacuteculos nasvias urbanas A poluiccedilatildeo pelo gaacutescarbocircnico e pelo som ataca prin-cipalmente os pedestres mas eacute

8 Para Negri (1993 p 30) ldquoestudar Espinosa eacute colocar o problema da desproporccedilatildeo na histoacuteriardquo Situado naHolanda dos seiscentos um paiacutes anocircmalo cuja forma poliacutetica permaneceraacute em aberto Espinosa natildeo esteve dispostoa propor uma fundamentaccedilatildeo para as relaccedilotildees econocircmicas e sociais do capitalismo do seu tempo Natildeo esteve embusca de uma resposta para as crises que entatildeo se anunciavam Ao contraacuterio esteve envolvido em criar uma formapoliacutetica futura a democracia absoluta da qual podemos progressivamente nos aproximar no mundo contemporacirc-neo Sobre isso ver Negri (1993 prefaacutecio e capiacutetulo 1)

9 Apesar de afirmarem em geral que as jornadas ganharam impulso em todo o Brasil a partir de Satildeo Paulo eacutenecessaacuterio tratar de antecedentes Aqui nos limitaremos aos antecedentes do cotidiano paulistano mas eacute precisotrazer agrave memoacuteria o mecircs fevereiro de 2013 quando uma relevante agitaccedilatildeo promovida pelo Bloco de Lutas porum Transporte Puacuteblico de Porto Alegre-RS depois de protestos de rua conseguiu fazer a Justiccedila reverter mesesdepois um aumento de tarifa Para natildeo estender ainda mais esta parte introdutoacuteria limito-me a indicar sobre issoos trabalhos de Cardoso e Di Faacutetima (2013 p 158-159) e de Scherer-Warren (2014 p 418)

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posta geralmente como dificul-dade de menor importacircncia emcomparaccedilatildeo com todos os outrosmales de uma cidade cujos indi-viacuteduos parecem ter incorporadoem definitivo o haacutebito de evitarhoraacuterios e trajetos muito visadosA vida ou ndash em termos mais pau-listanos ndash a agenda eacute determinadapela loacutegica do transporte privadoque impede sistematicamente odireito agrave cidade

A descriccedilatildeo de Wilheim (2013p 8-9) feita precisamente no anodas jornadas oferece em um soacutelance o retrato urbano da capital

Satildeo Paulo apresenta umadinacircmica urbana de in-cessante movimento comescassos espaccedilos para ogozo individual ou cole-tivo de paisagens cujopotencial natural foi des-perdiccedilado pela cupidezcom que cada lote foi edi-ficado Os espaccedilos puacutebli-cos encontram-se degra-dados seja no aspecto fiacute-sico de difiacutecil uso pelospedestres seja pela sina-lizaccedilatildeo defeituosa e pelosmuros hostis que por vezescercam quarteirotildees intei-ros de propriedades pri-vadas A arborizaccedilatildeo isto

eacute a proteccedilatildeo da sombraem paiacutes semitropical eacute es-cassa a natildeo ser em certosbairros como os Jardinssubtraindo da maior partedos cidadatildeos o prazer es-teacutetico de ver belas flora-das multicores a assinalara sequecircncia das estaccedilotildeesAs principais vias estatildeopreenchidas por veiacuteculosque mal circulam reve-lando uma peacutessima rela-ccedilatildeo entre nuacutemero de veiacute-culos e vias disponiacuteveispara sua circulaccedilatildeo Emresumo a qualidade ur-bana estaacute muito aqueacutem daexpressatildeo econocircmica deSatildeo Paulo muito abaixodas expectativas de suapopulaccedilatildeo e com serviccedilose equipamentos mal dis-tribuiacutedos (grifos do origi-nal)

O pedestre ldquoprincipal elemento eusuaacuterio do sistema de transportepuacuteblicordquo natildeo tem suas expecta-tivas atendidas10 e se em tese eacuteldquoa partir de suas necessidades eexpectativasrdquo que a mobilidadedeveria ser pensada (WILHEIM2013 p 16) Satildeo Paulo eacute umexemplo de como natildeo proceder agravepoliacutetica urbana

10 Wilheim assinala com razatildeo (2013 p 16) ldquoo pedestre paulistano eacute especialmente prejudicado pelo mauestado das calccediladas e ruas em que pisardquo

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Ao longo dos meses de maio ejunho de 2013 em meio a essecaos urbano a cidade transbor-dou vivacidade poliacutetica Duranteo mecircs de maio o Grupo de Estu-dos Espinosanos da Universidadede Satildeo Paulo (USP) organizou aJornada Marxistas Leitores de Es-pinosa com a colaboraccedilatildeo expres-siva de colegas cariocas do campodo Direito da PUC-Rio A jornadauma jornada acadecircmica ocorreunos dias 27 28 e 29 (segundaterccedila e quarta-feira) na Faculdadede Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-manas Antes deste encontro ndash nodia 25 de maio ndash ocorrera a Mar-cha Feminista das Vadias inici-ada agraves 12 horas no cruzamentoda Avenida Paulista com a Rua daConsolaccedilatildeo (Praccedila do Ciclista) Oanuacutencio da marcha deixava a ame-accedila ldquoSatildeo Paulo vai pararrdquo O finaldo ato comoveu por ter feito ecoarpara aleacutem dos gritos convencio-nais tiacutepicos da luta por igualdadede gecircnero uma ira poliacutetica e umrefinamento discursivo que apon-tava para um combate mais ge-ral mais proacuteximo da negaccedilatildeo doImpeacuterio substrato que origina emanteacutem a forma mais arquetiacutepicado machismo contemporacircneo

A grande miacutedia por essa se-mana alardeava com a naturali-dade costumeira o aumento das

tarifas de ocircnibus e metrocirc na ci-dade de Satildeo Paulo de trecircs reaispassariam a trecircs reais e vinte cen-tavos a partir de dois de junholdquoVinte centavos a mais para umtransporte cada vez mais precaacuterioe insegurordquo comentavam todosNa eacutepoca o aumento da tarifa metocou de perto Para um dou-torando professor da rede par-ticular do ensino da cidade vi-vendo ininterrupta contenccedilatildeo degastos o valor da passagem as-sustava Ir e voltar do centro aobairro do Morumbi algumas ve-zes por semana consumia meutempo meu descanso e meu di-nheiro Em meio aos preparati-vos para o iniacutecio da redaccedilatildeo domeu texto de qualificaccedilatildeo de dou-torado eu lia Espinosa e especifi-camente relia A anomalia selvagemde Antonio Negri De um ladoenvolvia-me sua defesa intransi-gente de que Espinosa expulsou anoccedilatildeo de mediaccedilatildeo de seu sistemanegando o recurso agrave representa-ccedilatildeo e ao contrato em sua formaclaacutessica (NEGRI 1993) De ou-tro percebia a coerecircncia da ad-vertecircncia de Marilena Chaui quefoi posteriormente explicitada emtexto (CHAUI 2013) acentuandoo risco agrave democracia que assumi-mos quando incautamente dese-jamos suspender as ideias de me-

11 Explicitei melhor esse ponto em ldquoEspinosa um anarquistardquo texto apresentado em outubro de 2016 na Uni-versidade de Satildeo Paulo e publicado no volume do VI Coloacutequio Espinosa de Fortaleza (OLIVEIRA 2017)

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diaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacutetica11Percebiacuteamos nas escolas nas

universidades e na proacutepria socie-dade os esforccedilos para formar mo-vimentos sociais que se caracte-rizassem pela horizontalidade epela ausecircncia de lideranccedilas traccedilosque permitiam efeitos incriacuteveis acomeccedilar pela satisfaccedilatildeo de gritarpor novos direitos e pela radica-lizaccedilatildeo de direitos que existiamapenas na letra da lei Poreacutem vi-mos o quanto a capacidade de or-ganizar o desespero estava midi-aticamente vulneraacutevel agrave capturapor um comando de vieacutes reacio-naacuterio capaz de inserir uma medi-accedilatildeo para o conservadorismo12

A narrativa sequestrada

O aumento da tarifa do transportepuacuteblico foi dado e as pessoas saiacute-ram agraves ruas13 No dia 06 de junhode 2013 o Movimento Passe Livre(MPL)14 chamou o primeiro ato

No dia 07 o segundo no dia 11 oterceiro e no dia 13 o quarto to-dos tendo iniacutecio no final da tardecomeccedilo da noite15 Hoje eacute difiacutecilpor em xeque a tese de que houveum sequestro da narrativa soci-almente estabelecida sobre essesencontros16 e por este motivo eacutepreciso entender como este raptose deu acompanhando ato a atoateacute o dia 13 O primeiro o me-nos destacado de todos em termosde intensidade e visibilidade foi(como muitos outros) alvo de criacuteti-cas na grande miacutedia Anelise Ma-radei (2013 p 4) teve o cuidadode acompanhar no jornal Folha deSatildeo Paulo como foi a cobertura decada ato do dia 6 ao dia 20 de ju-nho

Na capa do jornal Folha deS Paulo do dia 6 natildeo ha-via menccedilatildeo agrave manifesta-ccedilatildeo que ocorreria no pe-riacuteodo noturno Nenhumachamada sobre o que es-

12 Eacute amplamente conhecido o desvio do movimento (de junho de 2013) da esquerda em direccedilatildeo ao conservado-rismo que desaguaraacute a partir de 2015 nos chamados ldquoprotestos antigovernordquo tipicamente de direita e contraacuteriosagrave presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores)

13 Natildeo foi evidentemente a primeira vez que houve mobilizaccedilatildeo intensa pela melhoria no transporte puacuteblico noBrasil Sobre o histoacuterico das mobilizaccedilotildees em defesa do transporte de qualidade ver Gondim (2016 p 366-368)

14 De acordo com Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 158) o MPL se apresentava no tempo das jornadas comoldquoum movimento social autocircnomo apartidaacuterio horizontal e independente que luta por um transporte puacuteblico deverdade gratuito para o conjunto da populaccedilatildeo e fora da iniciativa privadardquo Foi constituiacutedo desde a PlenaacuteriaNacional pelo Passe Livre (Porto Alegre-RS 2005) por ldquoum grupo de pessoas comuns () para discutir e lutar poroutro projeto de transporte para a cidaderdquo Presente em diversas cidades brasileiras o MPL sustenta lutar ldquopelademocratizaccedilatildeo efetiva do acesso ao espaccedilo urbano e seus serviccedilos a partir da tarifa zerordquo

15 Outros atos se seguiram a esses no mesmo mecircs mas neste primeiro trabalho apenas os consideraremos emseus traccedilos gerais

16 Veja-se por exemplo Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 119) e Eliana Carlos (2015 p 11) que tratam otema respectivamente como ldquodeslocamento narrativordquo e ldquomudanccedila de discursordquo Outras denominaccedilotildees satildeo da-das ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo ldquodesvio de discursordquo entre outras

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taria por vir foi esboccediladaJaacute no dia 7 o tema me-receria destaque na capaFolha em decorrecircncia evi-dentemente das manifes-taccedilotildees do dia anterior Emtom contraacuterio aos mani-festantes o jornal estam-pou ldquoVandalismo marcaato por transporte maisbarato em SPrdquo A cha-mada era para o cadernoCotidiano Uma fotoem destaque na capa daediccedilatildeo trazia a legendaldquoManifestantes lideradospelo Movimento Passe Li-vre ligado a estudantesao PSOL e ao PSTU quei-mam catracas de papelatildeona Avenida 23 de MaiordquoEm Opiniatildeo e Tendecircnciase Debates natildeo havia umalinha sobre o tema de-monstrando que a publi-caccedilatildeo ainda natildeo conside-rava o tema relevante paramerecer destaque nos edi-toriais

Nada de novo aparece a quemsempre acompanhou o citado jor-nal e nunca se questionou sobre acausa do protesto e a respeito dascondiccedilotildees urbanas da metroacutepolecuja situaccedilatildeo de caos era entatildeo ex-

perimentada generalizadamenteNo dia 8 subsequente ao segundoato a capa da Folha de Satildeo Pauloestampava ldquoManifestantes cau-sam medo param marginal e pi-cham ocircnibusrdquo Ainda sem ne-nhuma novidade os militanteseram identificados por este veiacute-culo da grande imprensa comovacircndalos causadores de terrorAteacute mesmo o terceiro ato na ma-nhatilde do dia 11 natildeo recebeu muitodestaque nem neste nem em ou-tros meios de comunicaccedilatildeo A se-ccedilatildeo ldquoPainel do Leitorrdquo do mesmojornal por exemplo natildeo deu des-taque ao tema do transporte e dosatos (MARADEI 2013 p 4) nemmesmo pelo toacutepico da suposta vi-olecircncia dos militantes

No dia 12 depois do ato danoite do dia 11 a manchete foildquoContra tarifa manifestantes van-dalizam centro e Paulistardquo e o sub-tiacutetulo frisava ldquoNo 3ordm e mais vio-lento protesto ativistas enfrentamPM e atacam ocircnibus e estaccedilotildees dometrocirc 20 cidadatildeos satildeo detidosrdquoEstimado pelas fontes estatais emcinco mil pessoas e pelo o MPLem 10 mil17 o terceiro ato foi mar-cado por cenas de grande violecircn-cia que a Folha de Satildeo Paulo entreoutros oacutergatildeos da imprensa colo-cou na conta do povo Embora asredes sociais jaacute publicassem ima-

17 Como observou Singer (2013 p 24) eacute muito difiacutecil apontar o nuacutemero exato de pessoas que foram as ruas nosquatro atos iniciais

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gens da forccedila desproporcional daPoliacutecia Militar contra os insurre-tos natildeo havia destaque social a al-gum sentimento de injusticcedila con-tra os cidadatildeos Na amanhatilde do atoda quinta-feira dia 13 o governa-dor do Estado Geraldo Alckmin(PSDBSP) tomou o palco paradivulgar com indisfarccedilaacutevel tomde ameaccedila que haveria um enri-jecimento ainda maior no trata-mento policial militar (SINGER2013 p 25) Este quarto e uacutel-timo ato da seacuterie que seraacute aquianalisada ocorrido naquela noitefoi um verdadeiro massacre poli-cial Assim como nos atos anteri-ores muitas imagens da repressatildeochegaram agraves redes sociais provo-cando nos internautas um oacutedio si-milar ao que foi sentido por aque-les que registraram o terror

Os jornais impressos em seusnoticiaacuterios da manhatilde do dia 14ainda afirmavam sem pudores queos manifestantes haviam provo-cado os policiais iniciando comisso um tratamento de choque18A intenccedilatildeo de criminalizaccedilatildeo daaccedilatildeo do movimento era ateacute entatildeoevidente os manifestantes eramestimados publicamente comomeros marginais vacircndalos e play-boys todos irresponsaacuteveis a in-cendiar a cidade Natildeo havia duacute-

vida de que o discurso se firma-ria afinal ateacute aquele momentohavia se firmado ningueacutem per-guntava se a poliacutecia devia estarpreparada para suportar supos-tas provocaccedilotildees ou mesmo se taisprovocaccedilotildees eram reais Mais faacute-cil do que discutir a razoabilidadeda informaccedilatildeo segundo a qual ci-vis desarmados ousam provocartropas armadas foi justificar pu-blicamente a accedilatildeo repressiva dapoliacutecia Mas como seria viaacutevel jus-tificar nos jornais a repressatildeo danoite do dia 13 depois que cen-tenas de pessoas compartilharamna rede a cena claacutessica em que ospoliciais bombardeavam minutosa fio grupos de cidadatildeos a gritarencurralados ldquoSem violecircnciardquo19

A concessatildeo apelativa dagrande miacutedia agrave causa da violecircnciado Estado contra o povo foi par-cial momentacircnea e interessadapois na noite do dia 13 sete jorna-listas da Folha de Satildeo Paulo foramatingidos pela fuacuteria destrutiva daPoliacutecia Militar A jornalista Giuli-anna Avalone foi gravemente atin-gida em um dos olhos por um dis-paro de bala de borracha dado porum policial que intencional e gra-tuitamente apontou para ela Oestarrecimento foi geral

Antes disso ainda no dia 13

18 A manchete da Folha de Satildeo Paulo no dia 14 foi ldquoPoliacutecia reage com violecircncia a protesto e SP vive noite de caosrdquoComo se nota o termo ldquoviolecircnciardquo se liga agrave ldquopoliacuteciardquo e natildeo aos que reivindicavam a reduccedilatildeo da tarifa Poreacutem aatuaccedilatildeo dos policiais foi posta como ldquoreaccedilatildeordquo dando a entender que os insurgentes iniciaram o tumulto

19 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=U3ohG4IYqdQ Acesso 25 de fevereiro de 2019

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deu-se o famoso ataque de Ar-naldo Jabor ao movimento e aosseus participantes majoritaria-mente jovens durante o Jornal daGlobo A ofensiva de Jabor se en-cerrava com a frase ldquoRealmenteesses revoltosos de classe meacutedianatildeo valem nem vinte centavosrdquo20

Joseacute Luiz Datena acircncora de umprograma de TV protagonizouuma das situaccedilotildees mais pitores-cas da televisatildeo brasileira justa-mente nesse dia quando o ato es-tava para comeccedilar Ele decidiu fa-zer uma enquete ao vivo e saberdos expectadores se eles concor-davam ou natildeo com a realizaccedilatildeo deldquoprotestos com badernardquo A in-tenccedilatildeo de desmoralizar os agentesdos atos contra a tarifa era clariacutes-sima mas a opiniatildeo do puacuteblicocresceu para o lado dos que res-pondiam que concordavam com oprotesto dito violento Surpresocom o resultado o jornalista pe-diu para que os programadoresreelaborassem a pergunta a fimde que o puacuteblico a ldquoentendessemelhorrdquo Mas o resultado se re-petiu e ele entatildeo teve de reconhe-cer ldquoJaacute deu para sentir o povoestaacute tatildeo pecirc da vida com o aumentode passagem ndash natildeo interessa se eacutede ocircnibus se eacute de trem ou de me-trocirc ndash que apoia qualquer tipo de

protestordquo21 O programa com altoniacutevel de popularidade demons-trava aquilo que as redes sociais jaacutepodiam captar natildeo obstante a miacute-dia ainda centralizasse seu alvo decriacutetica nos militantes a pauta damobilidade urbana de Satildeo Paulotinha de ser profundamente re-pensada porque a revolta contraos carteacuteis das empresas de trans-porte era intensa

O pronunciamento de Jabortornou-se emblemaacutetico em outrosentido afinal cinco dias depoisde ridicularizar o povo nas ruasseu parecer foi outro ldquoEstamosvivendo um momento histoacutericolindo e novo Os jovens teratildeonos dado uma liccedilatildeo a democraciajaacute temos agora temos de formaruma repuacuteblicardquo22 Como pergun-taram todos jovens indignos ateacutede ldquovinte centavosrdquo se convertemtatildeo rapidamente em porta-vozesde um momento histoacuterico ldquolindo enovordquo Como a mobilizaccedilatildeo dosjovens baacuterbaros se transformouem movimento que aceita a tesede que jaacute vivemos em uma demo-cracia e entatildeo eacute preciso tornaacute-lauma repuacuteblica Natildeo se trata deum equiacutevoco de anaacutelise mas deum deslocamento estrateacutegico danarrativa

Em geral essa situaccedilatildeo ndash o des-

20 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=tZNkg26g-Ng Acesso 25 de fevereiro de 201921 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7cxOK7SOI2k Acesso 25 de fevereiro de 201922Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=8zQ9TnTpeKw Acesso 25 de fevereiro de 201923 A percepccedilatildeo de uma ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo eacute bem descrita por Gohn (2013 p 431) ldquoO crescimento das

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locamento da narrativa ndash foi to-mada como expansatildeo da pauta23A pauta do transporte havia pas-sado subitamente a abranger tam-beacutem outros domiacutenios da socie-dade como sauacutede e educaccedilatildeo ateacutechegar ao ponto da criacutetica aos de-tentores do poder que impunese corruptos estavam indiferentesaos gritos da populaccedilatildeo ldquoNatildeo eacutesoacute por vinte centavosrdquo comeccedila-vam a bradar as redes sociais emuniacutessono Nesse momento ndash a pas-sagem do dia 13 para o dia 14 ndash anarrativa das jornadas ficou emsuspensatildeo sem autor pois a linhaque conduzia os acontecimentosateacute entatildeo era a reduccedilatildeo da tarifamas subitamente passou a ser arepressatildeo policial forccedila motriz darevolta que tomou conta da popu-laccedilatildeo da cidade jaacute no dia seguinteao quarto ato O policiamentodespreparado e incapaz era repu-tado como insuficiente para pro-mover a ordem e proteger o cida-datildeo comum o mero transeunte ouo profissional da comunicaccedilatildeo queatravessava os atos

Conquanto natildeo tenha sido ape-nas uma questatildeo de extensatildeoou ampliaccedilatildeo indevida de pautao lema ldquoNatildeo eacute soacute por vinte

centavosrdquo sugeria de fato umaampliaccedilatildeo ou ateacute mesmo um apro-fundamento Em si mesma a am-pliaccedilatildeo natildeo teria motivo para sernociva ou falsa No ato de quinta-feira dia 13 outras bandeiras li-gadas agrave pauta da tarifa foram em-punhadas24 Mas durante o finalda semana entre os dias 15 e 16(saacutebado e domingo) enquanto apauta estava solta e sem identi-dade a grande miacutedia tramava acaptura do discurso reivindicatoacute-rio e a substituiccedilatildeo dele por umadefesa do espiacuterito nacional contraa Proposta de Emenda agrave Consti-tuiccedilatildeo (PEC) n 37201125 queentatildeo se debatia nos noticiaacuteriose no Congresso Nacional (MELOVAZ 2018 p 36)

A fala de Jabor na noite das acu-saccedilotildees (a crocircnica do dia 13 agrave noite)jaacute era um sintoma ele dizia que aoinveacutes de os jovens estarem lutandocontra a PEC 37 (que daria per-missatildeo de ldquoimpunidade eternardquopara todos os poliacuteticos corruptos)estavam por aiacute arruaccedilando Tam-beacutem no comentaacuterio do ldquomomentohistoacuterico lindo e novordquo proferidono dia 18 ele jaacute repetia a decla-raccedilatildeo sobre a necessidade de lutarcontra a PEC

manifestaccedilotildees levou agrave ampliaccedilatildeo das demandas com um foco central a maacute qualidade dos serviccedilos puacuteblicos espe-cialmente transportes sauacutede educaccedilatildeo e seguranccedila puacuteblicardquo

24 Por exemplo contra a corrupccedilatildeo no governo Alckmin (no Estado de Satildeo Paulo) a ineacutepcia da Prefeitura de SatildeoPaulo as condiccedilotildees de trabalho na cidade e a repressatildeo policial cada vez mais crescente naqueles dias

25 A PEC 37 foi proposta pelo deputado Lourival Mendes (PTdoBMA) e conhecida como ldquoPEC da impunidaderdquoa proposta previa tomar a apuraccedilatildeo de investigaccedilotildees criminais como atividade privativa da poliacutecia judiciaacuteria etramitou sem aprovaccedilatildeo final ao longo do primeiro semestre de 2013

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Seria simples demais (e talvezimpossiacutevel) demonstrar que foi oapelo de Jabor agrave luta contra a PEC37 que teria levado tanta gentejaacute nos atos da semana do dia 17agraves ruas de Satildeo Paulo para gritarcontra a corrupccedilatildeo O fato eacute quemesmo a tese do deslocamento dapauta natildeo confere com o que se-ria mais natural de se esperar Sea surpresa das massas nasceu darepressatildeo policial ao ato por queo objeto das jornadas natildeo se con-verteu em luta contra o governa-dor do Estado ou em reivindicaccedilatildeopelo fim da Poliacutecia Militar masem combate aos poliacuteticos corrup-tos

Doravante a esquerda prota-gonista dos acontecimentos ateacuteentatildeo se dividiu a centro-esquerda atocircnita com a possibi-lidade de que recaiacutessem sobre elamesma as reivindicaccedilotildees paulis-tanas sentia-se incomodada dedefender o Partido dos Trabalha-dores e o trabalhismo alinhandosua retirada de campo brutal-mente ela era afrontada nas pas-seatas pela extrema direita26 A

esquerda mais radical aproveitavaa ocasiatildeo para lanccedilar reivindica-ccedilotildees mais profundas com as quaissomente ela mesma aceitava intei-ramente27 a esquerda local par-tidariamente organizada alcan-ccedilava expressiva coerecircncia no dis-curso mas teve pouca organizaccedilatildeopara resistir agrave mordacidade da vi-olecircncia policial28 a esquerda ati-vista fazia o que podia e o que lherestava fazer organizar a propa-ganda (pelos muros da cidade) epreparar a depredaccedilatildeo de emble-mas do Estado e do grande capitalem especial da induacutestria automo-biliacutestica especialmente conveni-ada ao problema do transporte29

Diante de toda a fragmentaccedilatildeoda esquerda o discurso reinanteenclausurou o grande propoacutesitodo MPL o passe livre Mesmo omovimento continuando a exis-tir com a convicccedilatildeo vitoriosa deque afinal havia conseguido re-verter o aumento algo sorratei-ramente o superou Uma partedos militantes acreditou que omelhor seria assumir que ldquonatildeoera apenas por vinte centavosrdquo

26 Ficaram conhecidas as accedilotildees de grupos de extrema direita que passaram a frequentar as manifestaccedilotildees e a im-pedir que os partidos poliacuteticos se expressassem com suas bandeiras Os partidos sempre bem recebidos pelos queprotestavam junto ao MPL (movimento apartidaacuterio mas natildeo antipartidaacuterio) precisavam agora ser socorridos pelosdemais militantes para natildeo serem agredidos Sobre a abordagem que miacutedias progressistas fizeram desta situaccedilatildeover a reportagem do dia 20 de junho (AZENHA 2013)

27 Ver por exemplo o panfleto de orientaccedilatildeo para o ato do dia 20 de junho publicado pela corrente ldquoEsquerdaMarxistardquo (ESQUERDA MARXISTA 2013)

28 Ver por exemplo os posicionamentos de Vladmir Safatle professor de Filosofia da Universidade de Satildeo Paulo(USP) que atuou fortemente nos atos ao lado PSOLSP partido pelo qual seria cogitado a concorrer como candidatoao governo do Estado no ano seguinte (2014) Entre os artigos do professor que evidenciam a contundecircncia de seudiscurso com os propoacutesitos das esquerdas partidariamente organizadas ver Safatle (2013)

29 Referimo-nos aqui aos jovens que seguiam a taacutetica Black Bloc sobre os quais trataremos adiante

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e especializar a luta contra algomaior como o ldquoImpeacuteriordquo sejano ldquodomiacutenio globalrdquo mantidopelo capital transnacional seja noldquodomiacutenio localrdquo mantido pelo car-tel dos donos de empresas de ocircni-bus outra parte mais rigorosa in-sistia em dizer que todos os atosforam sim justamente por vintecentavos Foi neste ponto ndash o des-pertar do sentimento de indigna-ccedilatildeo socialmente propagado pelasredes e pela grande miacutedia ndash quese pocircs em flutuaccedilatildeo30 a narrativasobre as jornadas

Desesperados e pacifistas

Quando eu soube o que ocorrerano dia 11 mediado por amigos epelos jornais programei-me parair ao quarto ato Era uma quinta-feira e eu havia acabado de encer-rar minha jornada de trabalho se-manal segui para o Teatro Muni-cipal (Anhangabauacute) no centro da

cidade onde estava programada aconcentraccedilatildeo e a saiacuteda em passe-ata Eu tinha em mente o que asmiacutedias comunicavam os manifes-tantes eram em sua maioria arru-aceiros e criminosos Mesmo sus-peitando da informaccedilatildeo ao che-gar ao Viaduto do Chaacute em meio ajornalistas poliacuteticos e muitos po-liciais vi qual era a massa cha-mada de bagunceira e criminosapela grande miacutedia Eram jovens ndashmeninos e meninas ndash entre quinzee vinte anos pelo menos a maio-ria Muitos tinham a idade e doperfil dos meus alunos de entatildeomatriculados na primeira e na se-gunda seacuterie do Ensino Meacutedio31Alguns estavam mascarados ou-tros vestidos de vermelho e pretoou somente preto jamais de verdeeou amarelo Eles se conversa-vam se entreolhavam faziam-sesinais e aguardavam a definiccedilatildeoda rota da passeata decidida cole-tiva e horizontalmente

Quando a marcha partiu se-

30 Ver Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 123-138) e sua reflexatildeo acerca da flutuaccedilatildeo do discurso sobre as jorna-das sustentada a partir de Ernesto Laclau e das noccedilotildees de significante vazio e significante flutuante

31 Esta observaccedilatildeo em um primeiro momento me levou a ponderar sobre a possibilidade de eu estar projetandoesta imagem muito pessoal para a anaacutelise dos fatos Por atuar como docente (e profissional) junto a um puacuteblicocujo perfil era semelhante agravequele que estava nos atos algo de projetivo poderia estar prejudicando a correccedilatildeo deminha percepccedilatildeo Conforme escreve Espinosa certas ldquonoccedilotildees natildeo satildeo formadas por todos da mesma maneira masvariam em cada um conforme a coisa pela qual o corpo foi mais frequentemente afetado e que mais facilmente aMente imagina ou recorda Por exemplo os que mais frequentemente contemplaram com admiraccedilatildeo a estatura doshomens inteligem sob o nome de homem o animal de estatura ereta os que poreacutem se acostumaram a contemplaroutra coisa formaratildeo outra imagem comum dos homens () e assim () cada um formaraacute imagens universais dascoisas de acordo com a disposiccedilatildeo de seu corpo Por isso natildeo eacute de admirar que entre os Filoacutesofos que quiseramexplicar as coisas naturais soacute pelas imagens das coisas tenham nascido tantas controveacutersiasrdquo (GII p 121) Natildeoforam encontrados dados seguros sobre o perfil dos militantes nos primeiros atos de modo a permitir a confirma-ccedilatildeo ou natildeo de minha impressatildeo Apesar disso sinto-me amparado pelos fatos uma vez que mesmo as estatiacutesticasdo evento colhidas no dia 17 (quando os atos jaacute estavam permeados de grupos mais heterogecircneos) indicavam apredominacircncia do puacuteblico jovem ateacute 25 anos (SINGER 2013 p 28)

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guindo para a Avenida Conso-laccedilatildeo o policiamento jaacute osten-sivo comeccedilava a ficar provocativoDesnecessariamente a Poliacutecia Mi-litar continha com truculecircncia osmilitantes criando barreiras late-rais Natildeo tardou a iniciar os pri-meiro conflitos da poliacutecia com oscidadatildeos (fossem eles manifestan-tes ou mero transeuntes) e de-pois jaacute agrave altura da Praccedila Roose-velt as primeiras bombas ressoa-ram Nesse instante veio a grandedispersatildeo inicial

O grupo com o qual me refu-giei no iniacutecio da Rua Augusta foijogado para cima de automoacuteveisguiados por motoristas perplexosdiante da barbaridade e do estam-pido das balas de borracha Ogosto do explosivo travava a gar-ganta o ar irrespiraacutevel Vinagreera atirado agraves camisetas porquediziam que a respiraccedilatildeo melho-rava ao inalaacute-lo Se no primeiroinstante a paralisaccedilatildeo foi geral ndashateacute porque os olhos ardiam muitondash tatildeo logo garotos e garotas per-cebiam as brechas continuavamNa esquina adiante encontravamoutro grupo e sentiam a alegriado encontro comemorada comgritos amplificados Prosseguiacutea-mos Adiante outra sequecircncia de

bombas e nova dispersatildeo mui-tas explosotildees muitas dispersotildeesmuitos reencontros foram se su-cedendo No meio do caminhomascarados destruiacuteam lixeiras in-cendiavam o lixo jogavam pedrasnos bancos e batiam em tudo quefosse emblema das concessionaacute-rias automobiliacutesticas Ao grito deldquosem vandalismordquo emitido porum par pacifista que ali se ma-nifestava eles respondiam algocomo ldquoVandalismo eacute o que fazEstadordquo ldquoVacircndalos satildeo banquei-ros e industriaisrdquo Quando ou-tro bom cidadatildeo contribuinte declasse meacutedia lhes dizia ldquoParemde desrespeitar a nossa lutardquoou coisa semelhante eles respon-diam ldquoNatildeo vamos fugir sem fa-zer nadardquo Uma garota pintavano muro o seu recado enquantoberrava que aquilo natildeo era vanda-lismo mas propaganda de liberta-ccedilatildeo

As accedilotildees eram discutidas nofazer do ato os conflitos ali sedavam como diaacutelogos mal aca-bados no meio do caos ao somdos gritos dos tiros e das bom-bas Ningueacutem brigava fisicamentecom ningueacutem havia decerto umentendimento de que lutavam nomesmo campo mas com meacutetodos

32 Uma reaccedilatildeo muito comum do puacuteblico pacifista dos atos de Satildeo Paulo era sentar no chatildeo no momento em queos ativistas iniciavam o processo de destruiccedilatildeo de siacutembolos A ideia consistia em permitir que os policiais locali-zassem os supostos ldquovacircndalosrdquo e os distinguessem dos demais Em vatildeo faziam isso pois as bombas tinham sempreo mesmo destino e deixavam pairar a mesma fumaccedila igualmente intragaacutevel Sem alternativas eles tambeacutem selevantam e corriam

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diferentes Eacuteramos igualmentealvo privilegiado do mesmo he-licoacuteptero que sondava de perto32

Afinal o que diferenciava osdois tipos que conviviam na mul-tidatildeo Em primeiro lugar o deses-pero da condiccedilatildeo social dos ditosvacircndalos desespero que natildeo es-tava presente nos pacifistas Emsegundo lugar o modo de reagir agraveofensiva policial os desesperadosimpunham a potecircncia ainda quedestrutiva jaacute os cidadatildeos de es-querda com suas bandeiras eramsurpreendidos pelo simples medoEstes fugiam aqueles avanccedilavam

O desespero eacute de acordo comEspinosa afeto feito de medo

a Esperanccedila eacute nada ou-tro que a Alegria incons-tante originada da imagemde uma coisa futura ou pas-sada de cuja ocorrecircnciaduvidamos O Medo aocontraacuterio eacute a Tristeza in-constante originada da ima-gem de uma coisa duvidosaAleacutem disso caso a duacutevidaseja suprimida desses afe-tos da Esperanccedila faz-se aSeguranccedila e do Medo o

Desespero a saber a Ale-gria ou a Tristeza origina-das da imagem de uma coisaque temiacuteamos ou esperaacuteva-mos (GII p 155)

Na proposiccedilatildeo 18 da terceira parteda Eacutetica como se lecirc acima o de-sespero eacute tomado como ldquotristezaoriginada da imagem de umacoisardquo da qual antes duvidaacuteva-mos que pudesse acontecer masagora jaacute natildeo temos mais moti-vos para dela duvidar Portantoimaginamos que aconteceraacute irre-versivelmente Em sua defini-ccedilatildeo no conjunto das definiccedilotildeesdos afetos o desespero eacute consi-derado a ldquoTristeza originada daideia de uma coisa futura ou pas-sada da qual foi suprimida a causade duvidarrdquo (Eacutetica III Def Af 15GII p 194) Espinosa jaacute natildeo tratamais o problema como imagemmas como ideia A accedilatildeo de su-primir a causa da duacutevida de quevenha a acontecer algo que teme-mos natildeo equivale imediatamentea ter certeza daquilo ldquoEmboranunca possamos estar certos daocorrecircncia das coisas singulares() pode contudo acontecerque natildeo duvidemos da ocorrecircn-

33 Na explicaccedilatildeo dada logo depois das definiccedilotildees de desespero e esperanccedila tendo em mente o escoacutelio da Propo-siccedilatildeo 49 da parte II da Eacutetica Espinosa escreve ldquouma coisa eacute natildeo duvidar de algo outra eacute ter certeza daquilo e porisso pode acontecer que a partir da imagem de uma coisa passada ou futura sejamos afetados pelo mesmo afeto deAlegria ou Tristeza pelo qual seriacuteamos afetados a partir da imagem de uma coisa presenterdquo (GII p 194-195) Noque concerne aos desdobramentos eacuteticos e poliacuteticos da operaccedilatildeo imaginativa pela qual um indiviacuteduo chega agrave au-secircncia de duacutevida sobre algo que teme ou espera Marilena Chaui (2016b p 339-340) esclarece que nessa situaccedilatildeoo indiviacuteduo imagina presentes coisas passadas ou futuras de sorte que o presente em si mesmo toma a forma de

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cia delasrdquo (Eacutetica III Def Af 15expl GII idem)33 Trata-se de umprocesso imaginativo dominadospela imagem da ausecircncia de duacute-vida sobre a ocorrecircncia de algoque tememos somos levados aodesespero a exata contrapartidada seguranccedila A seguranccedila ldquoeacute aAlegria originada da ideacuteia de umacoisa futura ou passada da qualfoi suprimida a causa de duvidarrdquo(Eacutetica III Def Af 15 GII idem)O desespero entretanto natildeo selimita meramente agrave noccedilatildeo de in-seguranccedila mas eacute precisamente aconsciecircncia (imaginativa) de queo pior da desesperanccedila estaacute porvir

Nitidamente se via no olhardos jovens que destruiacuteam a ci-dade a ausecircncia de esperanccedilaquanto ao futuro fazia-se pre-sente nos gestos e nas palavraso sentimento de quem nada tinhaa perder mesmo que pudesse terEles agiam como se fosse possiacutevelretribuir o mal recebido a qual-quer custo natildeo importando o quelhes sobreviesse A banalizaccedilatildeodas consequecircncias do ato de ba-ter quebrar depredar e incendiaras coisas foi o indiacutecio maior desse

desespero e natildeo uma evidecircnciada consciecircncia de impunidadepor parte da juventude transvi-ada como sempre defenderam osmais reacionaacuterios34 Parecia claroque o medo nos jovens da ativaconvertia-se em desespero masum desespero elaborado a partirda experiecircncia de saber que lhesestaacute (e estaraacute) inviabilizado o di-reito agrave cidade A veemecircncia dodesespero aumentava diante darepressatildeo preparada por gover-nantes que raramente entram emocircnibus Refeacutem dos carteacuteis agenci-ados pelo Estado quem lutava porum transporte justo e recebia emtroca as balas e o gaacutes lacrimogecircneoda Poliacutecia se revoltava profunda-mente O medo dos que fugiam aosom da primeira explosatildeo expres-sava o entendimento dos que simtinham muito a perder para es-tes o melhor era voltar para casae continuar a opinar nas redes so-ciais ateacute o proacuteximo ato e ateacute a proacute-xima primeira bomba

O pesadelo desses jovens de-sesperados envolvia a insatisfaccedilatildeocom a maacute administraccedilatildeo do es-paccedilo puacuteblico o descontentamentocom a vida familiar com a escola e

um ldquovaziordquo repleto de afetos referidos aos outros tempos O acontecimento temido ou esperado foi ou seraacute mas eacutesentido como presente Segundo Chaui (2011 p 158) ldquoa ausecircncia de duacutevida no caso da seguranccedila e do desespero() natildeo eacute o mesmo que a presenccedila da certezardquo mas a imaginaccedilatildeo que ldquotraz o passado e o futuro para o presenteexcluindo imagens de tudo aquilo quanto possa impedir essa presenccedilardquo

34 Basta constatar que no dia 16 de abril de 2013 antes mesmo das jornadas o deputado Carlos Sampaio(PSDBSP) jaacute apresentara o Projeto de Lei n 5385 que previa o aumento do periacuteodo maacuteximo de internaccedilatildeodos jovens de trecircs para oito anos isto eacute o aumento do grau de puniccedilatildeo

35 Foi o caso muito conhecido de Rafael Braga jovem detido no dia 20 de junho de 2013 por simplesmente

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com a sociedade iniacutequa capaz deprender um indiviacuteduo por portede vinagre ou ldquoPinho Solrdquo35 eao mesmo tempo conceder liber-dade e poder a comprovados cor-ruptos (RIBEIRO-JR 2011) Elespareciam querer bradar contra aPoliacutecia Militar assim como Espi-nosa ousara afrontar os assassi-nos dos irmatildeos De Witt provo-cando ldquoVocecircs satildeo os uacuteltimos dosbaacuterbarosrdquo

O desespero no entanto nas-cido de certa suspensatildeo da insta-bilidade36 que caracteriza o medoeacute uma tristeza viacutetimas dele noacutesestamos em pleno campo da passi-vidade No escoacutelio da proposiccedilatildeo47 da parte IV da Eacutetica Espinosaexplica

[Esperanccedila e medo] in-dicam defeito do conhe-cimento e impotecircncia daMente e por este motivotambeacutem a Seguranccedila oDesespero o Gozo e o Re-morso satildeo sinais de im-potecircncia do acircnimo Poisembora a Seguranccedila e oGozo sejam afetos de Ale-gria contudo supotildeem te-rem sido precedidos porTristeza a saber por Es-

peranccedila e Medo E as-sim quanto mais nos es-forccedilamos para viver sob aconduccedilatildeo da razatildeo tantomais nos esforccedilamos paradepender menos da Espe-ranccedila para nos libertardo Medo para comandar(imperare) o quanto pu-dermos a fortuna e paradirigir nossas accedilotildees peloconselho certo da razatildeo(GII p 246)

A passagem acima suscita a in-teraccedilatildeo entre afeto e conheci-mento Afetos instaacuteveis espe-ranccedila e medo indicam (indicant)defeito e impotecircncia um defeitodo conhecimento que desde aparte I da Eacutetica eacute considerado acausa de percebermos as coisascomo contingentes e natildeo necessaacute-rias e uma impotecircncia da menteque incapaz de afirmar a exis-tecircncia de uma coisa ou excluiacute-lade vez oscila e fica instaacutevel maissuscetiacutevel a afetos contraacuterios a suaproacutepria natureza Em primeirolugar o defeito do conhecimentose deve agrave limitaccedilatildeo do proacuteprioconhecimento enquanto coisa fi-nita impedida de saber da essecircn-cia de cada uma de todas as coi-

portar o produto36 Macherey (1995 p 174) alerta que a suspensatildeo da instabilidade que redunda em desespero ou em seguranccedila

natildeo eacute absoluta De acordo com Luiz Carlos Braga (2016 p 110) ldquoo fim da duacutevida nos casos da securitas e da despe-ratio natildeo implica total estabilidade uma cristalizaccedilatildeo afetiva absoluta pois as coisas que vecircm agrave mente do homemficam apenas menos contingentes uma vez finda a duacutevidardquo

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sas existentes Por isso facilmentetal conhecimento deixa escapar aordem necessaacuteria das causas dosfenocircmenos

Uma coisa cuja essecircnciaignoramos envolver con-tradiccedilatildeo ou da qual sa-bemos bem que natildeo en-volve nenhuma contradi-ccedilatildeo e de cuja existecircn-cia contudo natildeo pode-mos afirmar nada de certoporque a ordem das cau-sas nos escapa tal coisanunca pode ser vista pornoacutes nem como necessaacute-ria nem como impossiacute-vel e por isso chamamo-la ou contingente ou pos-siacutevel (Eacutetica I Prop 33 esc1 GII p 74)

A esperanccedila e o medo por envol-verem duacutevida quanto a algumacoisa que implicaraacute alegria ou tris-teza manifestam em segundo lu-gar a impotecircncia da mente pelaqual ela nem afirma nem excluia existecircncia da coisa que teme ouespera nem a toma como neces-saacuteria nem como impossiacutevel mascomo contingente ou possiacutevel

Agrave primeira vista eacute estranho pen-sar que a seguranccedila e o gozo sejamcolocados pelo filoacutesofo na lista dosafetos que apesar de alegres si-nalizam a impotecircncia Se atentar-mos poreacutem ao modo pelo qual

de acordo com Espinosa o serhumano chega a gozar de umacoisa ou vem a se sentir seguroem dada situaccedilatildeo sem dificuldadeveremos a presenccedila do elementoda parcialidade do conhecimentoque ele possui a respeito do queo circunda O gozo nasce as-sim como o remorso daquilo queocorre ldquocontra toda a esperanccedilardquoportanto de uma condiccedilatildeo de ini-cial de instabilidade entre alegriae tristeza

O Gozo eacute a Alegria con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocorreucontra toda Esperanccedila ORemorso eacute a Tristeza con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocor-reu contra toda Esperanccedila(Eacutetica III Def Af 16 e 17GII p 195)

A filosofia de Espinosa visa emtermos eacuteticos promover uma vidadependente no menor grau pos-siacutevel da esperanccedila e do medo demodo a ser maximamente condu-zida pela razatildeo que percebe as coi-sas como necessaacuterias e natildeo comocontingentes (Eacutetica II Prop 44cor 2 dem GII p 126) Eacute oconhecimento da ordem necessaacute-ria da natureza que permite aovivente imperar na medida dopossiacutevel sobre a contingecircncia (ex-

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pressa na figura da Fortuna) e natildeosucumbir diante dela O deses-pero faz cessar o medo mas nempor isso ao entrar em desesperosentiremos alegria os desespera-dos ficam livres da esperanccedila e domedo mas natildeo da tristeza que soacutepoderaacute ser abalada se uma alegriaem sentido contraacuterio se der (EacuteticaIV Prop 7 GII p 214) Destaalegria eacute que pode um ser humanorealmente afastar a tristeza e pas-sar a entender adequadamente ascoisas

Desesperados os indiviacuteduos fa-zem muitas coisas das quais pos-teriormente sentem remorso noentanto apenas desesperados po-dem experimentar este tipo espe-cial de alegria que eacute o gozo (a ale-gria contra toda a esperanccedila) Aparticipaccedilatildeo dos jovens nas jorna-das de 2013 parece ter evidenci-ado uma forma de se viver o de-sespero na qual o remorso eacute aomaacuteximo evitado e o gozo se con-verte em meta final de cada atoComo seria isso possiacutevel

Durante as jornadas conformejaacute foi expresso cada vez que con-seguiacuteamos avanccedilar e encontraroutro grupo de militantes ndash depoisde termos sido dispersados pelasbombas ndash a sensaccedilatildeo era de umaverdadeira apoteose de alegria oucomo diria Leminski (2004) deum ldquogozo fabulosordquo Um gozoque mesmo passivamente dadoproduzia no cerne do desespero a

emoccedilatildeo de estar avanccedilando con-tra quem esperava de noacutes umaresposta de medo Isto explicaeacute certo a ligaccedilatildeo entre desesperoe a busca do gozo mas podemosindagar como os militantes po-diam contornar os riscos do re-morso expondo-se daquela ma-neira agrave violecircncia policial A res-posta soacute pode ser uma fazendoda movimentaccedilatildeo e da destrui-ccedilatildeo dos siacutembolos do Estado e docapital uma performance e natildeouma expressatildeo de puro oacutedio des-governado que no intuito de des-truir o que deve ser destruiacutedo feree ataca pessoas inocentes (merostranseuntes ou militantes pacifis-tas dos atos)

Em entrevista agrave revista CartaCapital um jovem Black Bloc afir-mou

Nossa sociedade eacute perme-ada por siacutembolos Partici-par no Black Blocs eacute usaacute-los para quebrar precon-ceitos natildeo somente o alvoatacado mas a ideia devandalismo Natildeo haacute vi-olecircncia mas performanceEu natildeo me sinto represen-tado pelos partidos E natildeosou a favor da democra-cia representativa mas dademocracia direta Natildeoeacute depredaccedilatildeo pelo sim-ples prazer de quebrarcoisas mas atacar siacutembo-

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los que estatildeo representa-dos laacute (ORTELLADO SO-LANO VIEIRA LOCA-TELLI 2013)

Em mateacuteria da Folha de Satildeo Paulopublicada no final do ano de 2013e citada por Gohn (2013 p 434)jornalistas que ouviram os jovensprotagonistas das jornadas de ju-nho afirmam

Muitos Black Blocs jaacute medisseram que para eles aviolecircncia eacute a uacutenica formade expressatildeo pela qual defato satildeo ouvidos Eacute difiacutecilcontestar esse raciociacutenioSe a imprensa soacute daacute voz agravesformas de protestos vio-lentos se o governo reagecom mais forccedila diante dofator violecircncia como im-pedir que a violecircncia setorne uma forma de pro-testo generalizada A vio-lecircncia como forma de pro-testo natildeo estaria sendo le-gitimada e reforccedilada portoda a sociedade que jogao jogo da espetaculariza-ccedilatildeo

Natildeo se trata naturalmente deafirmar que a juventude que in-corporava em Satildeo Paulo a taacuteticaBlack Bloc agia com afetuosidadee ternura em suas operaccedilotildees Era

efetivamente a expressatildeo de umdesespero de quem natildeo tem a li-berdade de dizer o que pensa massabe se expressar e viver sem es-peranccedilas tristeza de quem tocouo nuacutecleo mais iacutentimo do problemapoliacutetico que vivencia o grande ca-pital e o patrociacutenio do Estado parao livre desenvolvimento dos capi-talistas (sobretudo os da induacutestriados transportes) pela exploraccedilatildeoda forccedila produtiva

Para a anaacutelise dessa questatildeoo escoacutelio da Proposiccedilatildeo 49 daparte IV da Eacutetica pode oferecer umexemplo que nos interessa em par-ticular a accedilatildeo de bater uma accedilatildeoque corresponde com exatidatildeo aoque faziam os jovens durante osatos

() a accedilatildeo de bater en-quanto eacute considerada fi-sicamente e soacute prestamosatenccedilatildeo a que um homemlevanta o braccedilo fecha amatildeo e move com forccedilatodo o braccedilo de cima parabaixo eacute uma virtude queeacute concebida pela estruturado Corpo humano Se en-tatildeo um homem movidopela Ira ou Oacutedio eacute deter-minado a fechar a matildeo oumover o braccedilo isso comomostramos na SegundaParte ocorre porque umae a mesma accedilatildeo pode unir-se a quaisquer imagens de

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coisas e assim tanto apartir daquelas imagensdas coisas que concebe-mos confusamente quantodaquelas que concebemosclara e distintamente po-demos ser determinados auma e mesma accedilatildeo (GII p255)

Em si mesmas consideradas asaccedilotildees de quebrar depredar e in-cendiar natildeo satildeo necessariamentesintomas de passividade Se es-tas accedilotildees se relacionam a algo quecom o cuidado de natildeo ferir ne-nhum dos pares deponha con-tra os inimigos do bem verdadei-ramente comum elas podem serconsideradas virtudes Planejadae realizada como accedilatildeo dramaacuteticanatildeo como expressatildeo de ira ou oacutediogratuito a accedilatildeo Black Bloc cora-josamente se embebia do deses-pero em performance exercitandoo gozo e afastando o remorso Atristeza neste caso se situava ine-quivocamente ao lado do Estadoque impedia a livre expressatildeoademais estava ao lado dos ges-tores da cidade que natildeo se inte-ressam pela livre circulaccedilatildeo doscidadatildeos e enfim ao lado do po-liciamento que ao inveacutes de prote-ger o povo o oprimia

O problema dos jovens estavaprincipalmente na ausecircncia de li-berdade de expressatildeo No Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico (Capiacutetulo

20 GIII p 243) Espinosa es-creve ldquolonge de uma coisa des-sas poder acontecer ou seja detodos se limitarem a dizer o queestaacute prescrito quanto mais se pro-cura retirar aos homens a liber-dade de expressatildeo mais obstina-damente eles resistemrdquo Excetoos bajuladores e avaros (estes simde acircnimo verdadeiramente impo-tente) ningueacutem que se sinta livrerecusar-se-aacute a resistir contra umEstado opressor

Sob a mesma perspectiva dosdesesperados que gritavam aospacifistas nas ruas de Satildeo Pauloque o verdadeiro vandalismo ad-vinha do Estado iniacutequo o filoacutesofoescreveu em certa passagem damesma obra

Que coisa pior podeimaginar-se para um im-peacuterio que serem manda-dos para o exiacutelio como in-desejaacuteveis homens hones-tos soacute porque pensam demaneira diferente e natildeosabem dissimular Ha-veraacute algo mais perniciosorepito do que conside-rar inimigos e condenaragrave morte homens que natildeopraticaram outro crime ouaccedilatildeo criticaacutevel senatildeo pen-sar livremente e fazer as-sim do cadafalso que eacute oterror dos delinquentesum palco beliacutessimo em

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que se mostra para vergo-nha do soberano o maissublime exemplo de to-leracircncia e virtude Por-que os que sabem que satildeohonestos natildeo tecircm comoos criminosos medo demorrer nem imploram aclemecircncia na medida emque natildeo os angustia o re-morso de nenhum feitovergonhoso ndash pelo contraacute-rio o que fizeram era ho-nesto ndash recusam-se a con-siderar castigo o morrerpor uma causa justa e tecircmpor gloacuteria dar a vida pelaliberdade Que exemplopoderaacute entatildeo ter ficado damorte de pessoas assimcujo ideal eacute incompreen-dido pelos fracos e moral-mente impotentes odiadopelos sediciosos e amadopelos homens de bemNingueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum anatildeo ser para os imitar oupelo menos admirar (Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico 20GIII p 245)

Eacute bem verdade que os jovens dejunho em Satildeo Paulo natildeo foram exi-lados do paiacutes nem mortos peloEstado Todavia muitiacutessimos fo-ram presos interrogados e sub-metidos agrave execraccedilatildeo puacuteblica Forade duacutevida estaacute o fato de que eles

passaram a ser admirados por jo-vens ainda mais jovens que elescujo desejo de imitaccedilatildeo talvez te-nha sido o estopim para outrasaccedilotildees de desobediecircncia civil leva-das a cabo por jovens paulistas nosanos de 2015 e 2016 Uma marcandash natildeo se pode questionar ndash elesdeixaram e com um eco profun-damente espinosano que podemosentrever se nos servirmos de umapassagem da anaacutelise de MarilenaChaui (2011 p 167) ldquoos verda-deiros sediciosos satildeo () aque-les que em uma sociedade livrequerem suprimir a liberdade depensamento e de expressatildeo por-que natildeo conseguem destruiacute-lardquo

Finalmente e os pacifistas Ospacifistas provavelmente natildeo te-riam feito as jornadas de junhopois natildeo teriam afrontado a vio-lecircncia policial risco essencial paradestruir as engrenagens que man-tecircm o Estado produtor de iniqui-dades Eles natildeo teriam feito asjornadas acontecerem como acon-teceram natildeo por discordarem dapauta da reduccedilatildeo da tarifa e darepressatildeo policial mas porque se-guiram agrave risca a primeira partedo enunciado da Proposiccedilatildeo 39 daparte III da Eacutetica ldquoQuem odeia al-gueacutem esforccedilar-se-aacute para lhe fazero mal a natildeo ser que tema originar-se daiacute um maior mal para sirdquo (GIIp 169 grifos nossos) Os de-sesperados em contrapartida ti-nham a temer um mal maior mas

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agiam como se o mal maior parasi mesmos jaacute estivesse dado ldquosemduacutevidasrdquo

Do desespero ao encontro da co-munidade

Em geral o desespero eacute estimadono campo poliacutetico como um afetoa ser evitado Ao contraacuterio oque todos buscam na vida socialeacute o seu oposto o afeto de segu-ranccedila Em especial nos estudossobre o impacto poliacuteticos da teoriados afetos de Espinosa o livro deBraga (2016 p 244) nos faz lem-brar disso algumas vezes (e comrazatildeo) ldquoafeto triste no qual a duacute-vida acerca do medo antes sentidocessa o desespero eacute o retrato deuma cidade cujos suacuteditos natildeo tecircmacircnimo virtude potecircnciardquo Nas so-ciedades ldquoo afeto predominantedeve ser a seguranccedila advinda daesperanccedila e natildeo o desespero ad-vindo do medordquo (p 260) Eacute certoque aqui exploramos o desesperopara aleacutem de sua dinacircmica indivi-dual (isolada de outros afetos) epor isso pudemos perceber comoele vem a se ligar agrave alegria do gozoe agrave performance

O que tornou isso possiacutevel foium elemento presente em todaa nossa anaacutelise mas que apenasaqui colocamos em evidecircncia odesejo ldquoO desejordquo para Espinosaeacute ldquoa proacutepria essecircncia do homemrdquo

como declara a primeira das de-finiccedilotildees dos afetos da parte IIIda Eacutetica (GII p 190) ldquoo esforccedilopelo qual o homem se esforccedila paraperseverar em seu serrdquo conformeexplicita a demonstraccedilatildeo da Pro-posiccedilatildeo 18 da parte IV (GII p221-222) Enquanto esforccedilo porcontinuar a existir nosso desejopode ter origem na alegria ou natristeza no amor e no oacutedio Aoexperimentarmos uma tristezaobserva Espinosa nos esforccedilare-mos por afastaacute-la contrariamenteao experimentarmos uma alegrianos esforccedilaremos por reforccedilaacute-laisto eacute por fazer com que ela natildeose afaste de noacutes A demonstra-ccedilatildeo da Proposiccedilatildeo 37 da parte IIIemerge como um excelente auxiacute-lio para pensarmos como cada serhumano age quando vivencia umatristeza

A Tristeza () diminui oucoiacutebe a potecircncia de agirdo homem isto eacute () di-minui ou coiacutebe o esforccedilopelo qual o homem se es-forccedila para perseverar noseu ser por isso () elaeacute contraacuteria a este esforccediloe afastar a Tristeza eacute tudopara que se esforccedila o ho-mem afetado de TristezaOra () quanto maior eacutea Tristeza tanto maior eacute aparte da potecircncia de agirdo homem agrave qual eacute neces-

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saacuterio que se oponha logoquanto maior eacute a Tristezatanto maior eacute a potecircnciade agir com que o homemse esforccedilaraacute para afastaacute-la isto eacute () com tantomaior desejo ou seja ape-tite se esforccedilaraacute para afas-tar a Tristeza (GII p 168)

Um indiviacuteduo impotente eacute aqueleque natildeo consegue aplacar a tris-teza e dela permanece como re-feacutem Jaacute o indiviacuteduo que emboraaplacado por uma tristeza eacute ca-paz de encontrar uma alegria con-traacuteria agrave tristeza este sim expressacerto grau de potecircncia uma vezque mesmo no campo passionalalcanccedila uma primeira fonte de ati-vidade pela qual jaacute natildeo pode sedizer plenamente passivo em rela-ccedilatildeo ao que ocorre nele e fora dele

Neste ponto ganha plena rele-vacircncia a afirmaccedilatildeo jaacute feita aqui depassagem e que aparece em diver-sos comentadores de Espinosa arazatildeo natildeo surge aos homens comoum deus ex machina vinda doaleacutem mas no proacuteprio seio da pai-xatildeo De acordo com Chaui (2011p 169) ldquoa passagem do medo agraveesperanccedila deveraacute ocorrer no proacute-prio campo passional sem qual-quer intervenccedilatildeo da razatildeo passa-gem que ocorreraacute quando a espe-ranccedila da vida for para o conatusum desejo mais forte que o medoda morterdquo Para a autora ldquoo efeito

da estabilizaccedilatildeo da esperanccedila e deseu ultrapassamentordquo eacute precisa-mente o fato de ldquocomeccedilarmos aperceber que as coisas necessaacuteriasndash ou seja aquelas sobre as quaisnatildeo pesam duacutevidas ndash satildeo mais for-tes que as contingentesrdquo

No mesmo sentido comen-tando o pensamento eacutetico de Espi-nosa Lorenzo Vinciguerra (2003p 13) afirma que em uma para-doxal flutuaccedilatildeo ldquoonde o espiacuteritoconhece a suprema impotecircncia eonde conhece tambeacutem a supremapotecircnciardquo natildeo eacute a razatildeo que operacomo uma espeacutecie de mediaccedilatildeopara o conflito afetivo dado Se-gundo o comentador ldquoa razatildeordquoabalada ldquotoma partido do con-flito e potildee a mente em sua uacuteltimatrincheirardquo De acordo com Givigi(2018 p 79) Vinciguerra consi-dera que no sistema de Espinosaldquopode vir a ser do agravamento dafluctuatio ao ponto de uma deses-peratiordquo que advenha uma delibe-raccedilatildeo ativa dos indiviacuteduos sobreseus impasses

Negri (2016 p 223) natildeo apre-senta um parecer diferente Paraele tambeacutem eacute no campo proacuteprioda passividade que se conquistaem termos espinosanos a pleni-tude do ser

a multitudo nasce julgae se comporta como umconjunto de brutos masde qualquer forma ela

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eacute sempre investida pelametamorfose do ser ouseja por uma metamor-fose que o ser humanoconduz na plenitude co-letiva do gecircnerordquo

O espinosismo de Negri (2007 p39) no livro Joacute ndash a forccedila do escravonos explica antes de tudo qual eacuteo sentido da miseacuteria experimen-tada pela multidatildeo enleada ao seudesejo de luta Acerca desta obraescrita no caacutercere ndash assim como oclaacutessico sobre Espinosa A anoma-lia selvagem ndash ele assevera

A realidade de nossa mi-seacuteria eacute aquela de Joacute as per-guntas e as respostas quefazemos ao mundo satildeoas mesmas de Joacute com omesmo desespero as mes-mas blasfecircmias noacutes nosexprimimos () Pode-remos noacutes tambeacutem guiara nossa miseacuteria atraveacutes deuma anaacutelise do ser e dador E a partir dessa pro-fundidade ontoloacutegica re-montar a uma teoria daaccedilatildeo ou melhor a umapraacutetica de reconstruccedilatildeo domundo

A resposta negriana eacute afirmativaJoacute inicia um processo de liberta-ccedilatildeo que o revelaraacute natildeo como pa-ciente mas potente37 A sua dora dor com que luta contra os fla-gelos impostos pela Natureza eacuteldquouma chave que abre a porta da co-munidaderdquo Segundo Negri (2007p 139-140)

todos os coletivos satildeoformados pela dor pelomenos aqueles que lu-tam contra a exploraccedilatildeodo tempo da vida porparte do poder aquelesque descobriram o tempode novo como potecircnciacomo recusa do trabalhoexplorado e dos manda-mentos que se instauramcom base na exploraccedilatildeoA dor eacute o fundamento de-mocraacutetico da sociedade po-liacutetica na mesma medidaem que o medo eacute seu fun-damento ditatorial auto-ritaacuterio Hobbes e todos oschamados ldquorealistasrdquo dafilosofia poliacutetica satildeo antesde tudo homens imoraispois de maneira infamefalam do medo ndash daquelemedo que eles acrescen-tam agrave dor da vida ndash como

37 ldquoJoacute natildeo eacute paciente eacute potente Os proacuteprios textos que recordamos compotildeem a imagem de um homem queatraveacutes da luta mesmo na dor e na miseacuteria mais tremendas afirma seu domiacutenio sobre o ser A potecircncia forma-sena dor mas se desenvolve na relaccedilatildeo com o serrdquo (NEGRI 2007 p 128)

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de um fundamento ()A potecircncia instaura-se nador eacute potecircncia do natildeo-sereacute potecircncia da comunidadendash uma essecircncia inconclusadentro de um processo in-definidamente criativo

De onde se pode extrair tanta afir-maccedilatildeo na dor e ndash acrescentamosnoacutes ndash do desespero Para Negri oque permite ao desesperado e so-fredor desviar-se para a alegria emmeio agrave proacutepria dor eacute manter umaatitude diferente diante da vidaou seja ter em vista um horizontecoletivo e ter disposiccedilatildeo de com-partilhar com os outros a mesmador Tal disposiccedilatildeo consiste emlutar para ter o sofrimento reco-nhecido e desejar com o outroldquosofrer juntordquo Pode parecer pesa-rosa tal constataccedilatildeo uma vez quereuacutene uma seacuterie de sofrimentosmas natildeo eacute Citemos ainda umavez Negri (2007 p 145)

Natildeo posso reconhecer ooutro tomado pela dorse natildeo a compartilho comele Mas atraveacutes dessaaccedilatildeo de colocar-me nelecom amor dessa accedilatildeo decompaixatildeo posso levara efeito a construccedilatildeo domundo Natildeo eacute a divin-dade um significado quevem do alto mas o sofri-

mento e a dor que vecircm debaixo que constroem o serproacuteprio do mundo Spi-noza moveu-se ele tam-beacutem nesse mesmo terrenoe nessa mesma perspec-tiva A funccedilatildeo univer-sal e constitutiva do so-frimento encontra-se laacuteonde a paixatildeo transforma-se em compaixatildeo e a tris-teza desenvolve-se em ale-gria da comunhatildeo como outro A ontologia dacomunidade eacute descobertaatraveacutes do sofrer junto ndashum sofrer que se subtraiagrave passividade e torna-seconstrutivo Eacutetico

Vecirc-se a partir dessa citaccedilatildeo quea coletividade-comunhatildeo nascidano desespero pode converter a po-tecircncia contra o poder

Experimentamos nos dias dejunho de 2013 a ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo por garotos e garotaspaulistanas Foi entretanto deacordo com a explicaccedilatildeo de Ne-gri uma accedilatildeo de compaixatildeo e natildeoa compaixatildeo contra a qual Nietzs-che se voltou isto eacute a compai-xatildeo ldquohipoacutecritardquo a ldquocomiseraccedilatildeoque natildeo se faz universalidaderdquo(NEGRI 2007 p 145) Natildeodiremos portanto ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo porque nesse con-texto pode soar anti-espinosanodiremos ldquosolidariedaderdquo princiacute-

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pio libertaacuterio por excelecircncia e queencontra certo respaldo na ideiaespinosana de ldquoauxiacutelio muacutetuordquo aaccedilatildeo fundadora da vida comum38Em funccedilatildeo de ler Espinosa eu (emuitos outros movidos pela proacute-pria aprendizagem da luta) des-pertei para essa espeacutecie de solida-riedade que produz o desejo de co-munidade e de estar junto com ajuventude contra a qual no Brasiltudo eacute liacutecito

Muitos professores intelectu-ais e lideranccedilas partidaacuterias de es-querda cientes na maioria dasvezes do que se passava nos atosnatildeo podiam afirmar categorica-mente que a luta da juventudeera legiacutetima Por recear a reta-liaccedilatildeo dos controladores sociais(sobretudo os midiaacuteticos) mui-tos deixaram a juventude maisradical na vala comum ao fei-tio de ldquofascistas depredadores dopatrimocircnio puacuteblicordquo Na classemeacutedia politizada pela esquerdahavia sempre o medo tiacutepico dosque se sentem solitaacuterios e fogemmesmo estando em coletivo sim-plesmente porque sentem queainda tecircm muito a perder

Natildeo resolve nenhum problemaapontar supostas covardias ou fa-zer alguma autocriacutetica circunstan-cial A maioria dos intelectuais e

professores dos partidos e de todaa geraccedilatildeo adulta foi constituiacuteda aolongo do processo histoacuterico sem ogosto da participaccedilatildeo poliacutetica e namais profunda inexperiecircncia dademocracia direta Nos meios in-telectuais a revolta da juventuderadical soacute poderia mesmo indiciaroacutedio agrave poliacutetica ao inveacutes de simbo-lizar oacutedio agrave representaccedilatildeo poliacuteticaPara uma parte dos intelectuaisque se acostumou a desempenharo papel de reproduccedilatildeo da ideolo-gia da classe dominante a poliacute-tica eacute (e deve continuar a ser) issoque os partidos fazem em nomedeles e para eles Uma fatia im-portante da dita elite pensanteuma vez abandonada pelo jogo darepresentaccedilatildeo poliacutetica do pactoda mediaccedilatildeo exclusivamente par-tidaacuteria do poder e de outras tantasinvenccedilotildees fantasiosas da burgue-sia sente ter tudo a perder Po-reacutem estando o jogo da represen-taccedilatildeo assegurado jaacute respira a es-peranccedila (mais forte em alguns doque em outros) de constituir umacidade livre e para todos Bastaessa tecircnue esperanccedila cotidiana-mente negada para que se recu-sem a atacar as instituiccedilotildees sa-tisfeitos com seus representantesmesmo quando estes atiram bom-bas

38 No escoacutelio da Proposiccedilatildeo 35 da parte IV da Eacutetica Espinosa argumenta que os seres humanos ldquodificilmentepassam a vida em solidatildeordquo Em seguida afirma ldquoos homens com o auxiacutelio muacutetuo podem prover-se muito maisfacilmente das coisas de que precisam e soacute com as forccedilas reunidas podem evitar os perigos que em toda parte osameaccedilamrdquo (GII p 234)

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Eacute tambeacutem pelo processo histoacute-rico que se compreende natildeo tersido enfatizada pela maioria dasanaacutelises a presenccedila diferencial dajuventude brasileira no papel dereal disparadora das jornadas dacidade de Satildeo Paulo Conformejaacute foi aqui registrado todos osanalistas tiveram que reconhecera presenccedila jovem no movimentomas poucos souberam perceber opotencial caracteristicamente jo-vem do impulso revolucionaacuteriodaqueles atos As forccedilas reacionaacute-rias por outro lado parecem terpercebido bem esse elemento

Jaacute apontamos em nota que a16 de abril de 2013 o deputadoCarlos Sampaio (PSDBSP) apre-sentou o Projeto de Lei n 5385requerendo o aumento do tempomaacuteximo de internaccedilatildeo de jovensque passaria de trecircs para oitoanos Soacute em 2013 foram apresen-tadas pelo menos duas PECs pelareduccedilatildeo da maioridade penal Emjulho de 2015 por meio de ma-nobra (SANTOS 2015 p 910)o entatildeo presidente da Cacircmarados Deputados Eduardo Cunha(PMBDRJ) conseguiu algo ineacute-dito a aprovaccedilatildeo da PEC n1711993 na Comissatildeo de Consti-tuiccedilatildeo e Justiccedila Tal emenda comooutras 35 que viriam a tramitar de1993 ateacute 2013 (SILVA HUumlNING2017 p 237) propunha alterar aredaccedilatildeo do artigo 228 da Consti-tuiccedilatildeo Federal justamente aquele

sobre a imputabilidade penal doindiviacuteduo maior de 16 anos

A paacutegina de notiacutecias do SenadoFederal na internet no dia 30 demaio de 2016 afirmou

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)() A PEC 332012 dosenador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anosrdquo (SE-NADO 2016)

Em setembro de 2017 em situa-ccedilatildeo pura de repeticcedilatildeo anunciou arevista Carta Capital

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)do Senado () A Pro-posta de Emenda agrave Cons-tituiccedilatildeo (PEC) 332012do senador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anos ()A proposta tramita emconjunto com mais trecircsPECs que versam sobre otema (BELCHIOR 2017)

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Logo no iniacutecio do ano de 2018o tema foi novamente ventiladopela imprensa

Apesar de ser ano de elei-ccedilatildeo quando os parlamen-tares deixam os trabalhoslegislativos em segundoplano e costumam evitartemas polecircmicos o rela-tor da mateacuteria senadorRicardo Ferraccedilo (PSDB-ES) acredita que o pro-jeto [de reduccedilatildeo da maio-ridade penal] seraacute votadoem 2018 (MARIZ 2018)

A PEC 332012 consta como ar-quivada desde 21 de dezembrode 2018 mas tem sempre retor-nado nos uacuteltimos cinco anos comopauta para as grandes reportagenstelevisivas sobre menores reputa-dos criminosos e como bode ex-piatoacuterio de toda a desigualdadesocial brasileira Podemos aleacutemdisso mencionar a forte repres-satildeo que jovens estudantes de vaacute-rios lugares do Brasil sofreram notempo das ocupaccedilotildees de escolasdepois de junho de 2013 tanto noano de 2015 em Satildeo Paulo contrauma decisatildeo do governador Ge-raldo Alckmin (PSDBSP) de fe-char escolas no Estado quanto em2016 no paiacutes inteiro contra a re-forma do Ensino Meacutedio que viriaa se tornar a Lei n 134152017

(BRASIL 2017)

A verdade vindo agrave tona

O espiacuterito das jornadas de junhode 2013 na cidade de Satildeo Paulopara quem se fazia leitor de Espi-nosa foi a combinaccedilatildeo entre taacute-tica e horizontalidade contra ossiacutembolos e as forccedilas do Impeacuterioencarnadas na loacutegica hierarqui-zada da repressatildeo das tropas dechoque Foi em suma conformepropusemos a experiecircncia poliacute-tica de colocar medo nos deten-tores de privileacutegio fazecirc-los sen-tir por algumas noites o deses-pero das minorias poliacuteticas quese metamorfoseiam em multidatildeoNatildeo evidentemente apenas peloconsenso mas tambeacutem pelo con-flito Natildeo foi jamais o caso deldquotocar o terrorrdquo pela cidade por-que os insurretos natildeo tinham ar-mas para aterrorizar Tratava-sede encontrar na Avenida Paulistao grande capital financeiro paraapedrejaacute-lo apedrejaacute-lo sim massem violecircncia A atuaccedilatildeo dos jo-vens de vermelho e preto tam-beacutem eles com seus gritos compu-seram um ldquoprocesso indefinida-mente criativordquo como eacute criar umldquocorpo-sem-oacutergatildeosrdquo segundo De-leuze e Guattari (1996) Criar algoassim natildeo eacute exatamente um pro-

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cesso suave mas tenso39Nesse percurso natildeo pode faltar

uma palavra final sobre os possiacute-veis descaminhos autoritaacuterios dodesespero coletivo sobretudo di-ante do cenaacuterio de reaccedilatildeo conser-vadora que se sobrepocircs a essa pri-meira fase das jornadas (DEMIERHOEVELER 2016) Eacute precisopois renovar neste momento a ad-vertecircncia segundo a qual a lutacontra as instituiccedilotildees e todas asformas de representaccedilatildeo fomen-tada por afetos feitos de tristezapode culminar no aparecimentode forccedilas tiracircnicas que se legiti-mam pelo exerciacutecio do poder Odebate eacute amplo e natildeo teremos con-diccedilatildeo de aprofundaacute-lo aqui Nocaso brasileiro entretanto a cau-tela contra o iacutempeto destrutivo decertos movimentos tem justifica-tivas histoacutericas e teoacutericas impor-tantiacutessimas Citemos Pliacutenio Sal-gado (1953 p 56) e em seguidaum conjunto de breves comentaacute-rios de Marilena Chaui ao integra-lismo

Uma Revoluccedilatildeo se efetivaobjetivamente na Histoacute-ria obedecendo na apa-recircncia a certas causas di-retas mas essas causas

passam a ser simples con-junto de efeitos desde queo concurso de circunstacircn-cias que atuam durante operiacuteodo da transiccedilatildeo re-volucionaacuteria comeccedila a pocircrem evidecircncia fatores no-vos e desconhecidos pelalimitada visatildeo dos com-parsas

Pliacutenio Salgado figura autoritaacute-ria e de direita pensava o Es-tado como ldquoum joguete nas matildeosdos poderososrdquo (CHAUI 2014ap 110) Para ele como paraos conservadores da segunda me-tade do seacuteculo XIX uma crise ex-pressa sempre um sintoma da in-competecircncia dos seres humanosem dominar a histoacuteria (p 115)de modo a exigir a intervenccedilatildeo daldquoclasse meacutedia urbanardquo ldquoa uacutenicaclasse que soacute pode representar-se a si mesma como lsquoideiarsquo ecomo lsquoideadorarsquordquo Para mobili-zar esta classe os integralistasse apoiavam em uma pretensaldquocrise radical das ideiasrdquo culti-vando o recanto da ausecircncia depensamento bem ali onde plan-tam seu programa poliacutetico ldquoAirracionalidaderdquo das ideias ndash ge-neralizada na sociedade ndash eacute o

39 ldquo[Criar um Corpo-sem-Oacutergatildeos] Natildeo eacute tranquilizador porque vocecirc pode falhar Ou agraves vezes pode ser aterrori-zante conduzi-lo agrave morte Ele eacute natildeo-desejo mas tambeacutem desejo Natildeo eacute uma noccedilatildeo um conceito mas antes umapraacutetica um conjunto de praacuteticas Ao Corpo sem Oacutergatildeos natildeo se chega natildeo se pode chegar nunca se acaba de chegara ele eacute um limiterdquo (DELEUZE amp GUATTARI 1996 p 8-9)

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que ldquodesencadeia a racionalidadeintegralistardquo (p 113)

Chaui (2014a p 113) retra-tando a loacutegica de Pliacutenio Salgadoescreve

a tarefa destrutiva deveser feita pela sociedadeenquanto o momentoconstitutivo da revoluccedilatildeoseraacute obra do Estado ex-pressatildeo positiva dos an-seios da sociedade Estasoacute pode ser levada agrave accedilatildeodestrutiva se perceber aconstruccedilatildeo por vir massobretudo se perceber acrise existente

Na histoacuteria do Brasil sequestrarnarrativas criar o caos das ideiase exercer o poder destrutivo con-tra quem eacute a causa direta do fer-vor revolucionaacuterio natildeo satildeo tramasisoladas mas praacuteticas constantesteoricamente orientadas

Em dezembro de 2001 tivemosnotiacutecia da ldquobaderna argentinardquo(HOPSTEIN 2002) movimentocom muitas semelhanccedilas e dife-renccedilas em relaccedilatildeo a junho de 2013no Brasil No contexto deste mo-vimento o cientista poliacutetico Guil-lermo OrsquoDonnell em entrevistaao jornal Clariacuten em setembro de2002 declarou ldquo iquestUn Hitler iquestUnMussolini Bueno que venga No-sotros ya estamos en ese tobogaacutenrdquo

(p 49) Embora natildeo seja plausiacute-vel sequer ousar pocircr em discus-satildeo agora o caso argentino gos-tariacuteamos de pensar esta declara-ccedilatildeo agrave luz da experiecircncia brasileiraainda que desviemos o contextoda afirmaccedilatildeo original Ao dizerdestemidamente que venham en-tatildeo os autoritaacuterios esquecemos adiferenccedila substancial entre estese aqueles que apesar de agiremcontra a multidatildeo fazem ques-tatildeo de manter em certos limitesa institucionalidade Os autoritaacute-rios de tipo hitlerista soacute saem dopoder depois de terem destruiacutedotodos os opositores ao passo queos demais ao deixarem o exerciacuteciodo poder legalmente obtido aindacogitam voltar ao poder pela ins-titucionalidade e para isso preci-sam dos adversaacuterios vivos O ldquoyardquoda sentenccedila ldquoya estamosrdquo eacute um tiacute-pico caso de expressatildeo do deses-pero poliacutetico momento em quenatildeo temos duacutevida da ocorrecircnciade algo que temiacuteamos acontecernatildeo obstante na ordem da reali-dade isso natildeo tenha efetivamentese dado

Natildeo se pode colocar em xequea existecircncia de situaccedilotildees em quetodos os poliacuteticos e poderosos deuma cidade proviacutencia ou paiacutesatuem como ditadores ao modode Hitler e Mussolini Portantohaacute todo um sentido legiacutetimo emse bradar ldquoque se vayan todos queno quede ni uno soacutelordquo lema fre-

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quente durante as agitaccedilotildees daArgentina em 2001 (HOPSTEIN2002 p 48) A pergunta necessaacute-ria eacute a seguinte depois de destruira todos os fantasmas da represen-taccedilatildeo qual eacute a forccedila constitutivadesses movimentos que apenasaparecem na cena midiaacutetica comovacircndalos Ningueacutem levou a seacuterioo potente movimento constitutivode luta horizontal que antecediae determinava os assim chamadosldquoatos com quebra-quebrardquo obser-varam apenas o quebra-quebra40

No final das contas desta forccedilaconstituinte ou ndash nas palavras deChaui ndash desta ldquoconstruccedilatildeo porvirrdquo radicalmente democraacutetica(porque direta) quem mais pa-receu ter entendido foi o conser-vadorismo modulador das narra-tivas sociais Certamente sobreesta forccedila constitutiva dos insur-retos os conservadores souberammais do que qualquer outro setorpoliacutetico pois a combateram como auxiacutelio daquela classe social re-dentora dia a dia ato a ato

Uma ressalva deve ser feitaTrinta anos antes de junho de2013 Chaui (2014b p 265) es-creveu um curto artigo a respeito

de manifestaccedilotildees e saques jaacute ob-servando a potecircncia constitutivapor traacutes das accedilotildees de rua Na-quela ocasiatildeo ndash nos primeiros diasde abril de 1983 ndash a accedilatildeo popular(realizada tambeacutem na cidade deSatildeo Paulo) foi uma resposta agrave criseeconocircmica e fazia ecoar generali-zadamente o horror social frenteagrave agressividade reinante Chaui(2014b p 266) entatildeo compa-rou a reaccedilatildeo social de comiseraccedilatildeoem relaccedilatildeo ao espetaacuteculo midiaacute-tico das cenas de miseacuteria expostasdiariamente para a sociedade como medo despertado pelas manifes-taccedilotildees de rua ditas violentas Emseu parecer as agitaccedilotildees urbanasdo povo ndash que a miacutedia de massaquer converter em espetaacuteculos ndashinvadem o domiacutenio do poliacuteticonatildeo existem para que sejam vistasldquomas para criar participaccedilatildeo e so-lidariedade suscitando o contra-ataque repressivordquo O resultadoda confrontaccedilatildeo violenta conduzao desejo geral de ldquopreservaccedilatildeoda ordemrdquo pois a populaccedilatildeo sabeque ldquoindependentemente dos re-sultados da accedilatildeo popular sua sim-ples existecircncia revela a injusticcedilada ordem vigenterdquo Segundo a au-

40 Reaccedilatildeo similar se deu ao que tudo indica tambeacutem na Argentina em 2001 Ao comentar o modo pelo qualmuitos responderam aos movimentos daquele entatildeo Hopstein (2002 p 47) assinala ldquoAs anaacutelises e reflexotildees quesurgiram em torno desses acontecimentos geraram os mais diversos diagnoacutesticos apocaliacutepticos lsquorevoluccedilatildeo socia-listarsquo lsquofascismo antidemocraacuteticorsquo lsquoamalucado estalido irracionalrsquo lsquomorte lenta da democraciarsquordquo Ningueacutem pareceter visto como Hopstein acentua que ldquoestas lutasrdquo (na Argentina mas poderiacuteamos tambeacutem estender ao caso doBrasil) ldquopor serem em sua essecircncia constituintes satildeo antitranscendentes e antiteleoloacutegicas e se opotildeem portantoa todo signo de institucionalizaccedilatildeo de definiccedilatildeo externa contribuindo desta forma para criar novos espaccedilos puacutebli-cos e novas formas de comunidade (p 57)rdquo Apenas recentemente temos nos deparado com estudos que relevam aforccedila e solidez dos ativistas de Satildeo Paulo (FRUacuteGOLI 2018) e de sua racionalidade poliacutetica (MORENO 2018)

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tora o medo causado pela accedilatildeo dopovo ldquonatildeo estaacute no perigo de suasintenccedilotildees expliacutecitas ndash () contes-tar a poliacutetica econocircmica do go-verno ndash nem na desordem mo-mentacircnea causada por sua apa-riccedilatildeo ndash o quebra-quebra () ndashmas no seu sentido taacutecito reve-laccedilatildeo do avesso Verdade vindoagrave tonardquo (CHAUI 2014b p 266)Realizado tambeacutem por indiviacuteduostomados pela cultura jovem em si-tuaccedilatildeo de desespero41 (criada bemantes de junho de 2013) o ato foirepreendido pela administraccedilatildeode Satildeo Paulo com a brutalidadee a forccedila militar habituais produ-zindo a tristeza e negando a cons-truccedilatildeo democraacutetica por vir isto eacutea verdade que sempre vem agrave tonatacitamente a proliferar solidarie-dade e participaccedilatildeo

Para encerrar estas reflexotildeesapresentamos um texto que emsuas dimensotildees literaacuterias e exis-tenciais propotildee uma ressignifi-caccedilatildeo do desespero e nos lanccedila auma seacuterie de conexotildees que con-trariam a dureza do discurso re-acionaacuterio O fragmento abaixode Andreacute Comte-Sponville (2001p 26) embala a imaginaccedilatildeo po-eticamente para contemplar for-mas criativas de pensar o sentidode afetos como esperanccedila e deses-pero

O que tento pensar eacute que odesespero pode ser alegreque a felicidade seja de-sesperada e o desesperofeliz Isso quer dizerque o desespero no sen-tido em que eu o tomonatildeo eacute o extremo da infe-licidade ou o acabrunha-mento depressivo do sui-cida Eacute antes o contraacuterioemprego a palavra numsentido literal quase eti-moloacutegico para designar ograu zero da esperanccedilaa pura e simples ausecircn-cia de esperanccedila Tam-beacutem poderiacuteamos chamaacute-lo de inesperanccedila Masnatildeo gosto muito de neolo-gismos e aleacutem do mais otermo inesperanccedila daria afalsa impressatildeo da facili-dade como se nos tornaacutes-semos saacutebios de um diapara o outro como se bas-tasse decidir como se pu-deacutessemos nos instalar nasabedoria como quem seinstala numa poltrona Apalavra desespero em suadureza em sua luz escuraexprime a dificuldade docaminho Ela supotildee umtrabalho no sentido em

41 Segundo Chaui (2014b p 267) os responsaacuteveis pelo quebra-quebra eram ldquohomens robustosrdquo vestindoldquojaquetas de courordquo ldquotendo por traacutes sabe-se laacute que garantiardquo

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que Freud fala de traba-lho do luto e no fundo eacuteo mesmo trabalho A es-peranccedila eacute primeira por-tanto eacute necessaacuterio perdecirc-la o que eacute quase sem-pre doloroso Eu gostona palavra desespero quese ouccedila um pouco essador esse trabalho essa di-ficuldade Um esforccedilodizia Spinoza para nostornar menos dependen-tes da esperanccedila Por-tanto o desespero no sen-tido em que emprego a pa-lavra natildeo eacute a tristeza me-

nos ainda o niilismo a re-nuacutencia ou a resignaccedilatildeo eacuteantes o que eu chamariade um gaio desespero umpouco no mesmo sentidoem que Nietzsche falavado gaio saber Seria o de-sespero do saacutebio seria asabedoria do desespero

O contato com jovens que personi-ficavam a inesperanccedila trouxe ine-gavelmente uma espeacutecie nietzs-chiana de ldquogaia ciecircnciardquo um saberque uma vez descoberto traz ale-gria ndash uma forte alegria ndash a quemo obteacutem

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224828

A Influecircncia de Schelling sobre Schoppenhauer[Schellingrsquos Influence on Schopenhauer]

Helio Lopes da Silva

Resumo Neste artigo investigo as contribuiccedilotildees positivas que a filo-sofia de Schelling fez ao desenvolvimento do pensamento filosoacutefico deSchopenhauer Deixando de lado a rejeiccedilatildeo desta filosofia por parte doSchopenhauer maduro examinarei algumas ideias que o jovem Scho-penhauer (1811-1813) atraveacutes da leitura e estudo dos livros de Schel-ling poderia ter aceitado reformulado e incorporado ao seu pensa-mento filosoacutefico originalPalavras-chave Schopenhauer Schelling Influecircncia

Abstract In this paper I investigate the positive contributions thatSchellingrsquos philosophy have made to the development of Scho-penhauerrsquos philosophical thought Leaving aside Schopenhauerrsquosmature rejection of this philosophy I will examine some ideas whichthe young Schopenhauer (1811-1813) through reading and studyingSchellingrsquos books could have accepted re-formulated and introdu-ced into his original philosophical thoughtKeywords Schopenhauer Schelling Influence

Introduccedilatildeo

Schopenhauer sempre manifes-tou ao longo de toda sua obrauma completa rejeiccedilatildeo da filosofiade Schelling assim como da de Fi-chte e da de Hegel qualificando-as como tentativas de restauraccedilatildeode uma metafiacutesica dogmaacutetica etranscendente que em vista dosresultados da Criacutetica kantiana jaacutedeveria ter sido considerada comocompletamente impossiacutevel Masenquanto que em relaccedilatildeo a Fi-

chte e a Hegel a atitude de Scho-penhauer eacute sempre a de animo-sidade e ateacute de desrespeito emrelaccedilatildeo a Schelling aquela rejei-ccedilatildeo eacute de certa forma mais nuan-ccedilada mais amena em funccedilatildeo demotivos que procuraremos des-cortinar Jaacute na primeira ediccedilatildeode sua obra-prima O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo1 de 1818-1819 Schopenhauer depois dedesqualificar o idealismo de Fi-chte como uma tentativa de de-rivar o objeto a partir do sujeito

Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Doutor em filosofia pela USPE-mail heliolopes2009bolcombr ORCID httpsorcidorg0000-0003-2117-4854

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ldquocomo a teia sai da aranhardquo dizque embora sua filosofia afirme adependecircncia muacutetua entre sujeitoe objeto enquanto partes constitu-tivas do mundo como representa-ccedilatildeo ela natildeo deve ser confundidacom a ldquoFilosofia da Identidaderdquo(de Schelling) pois apesar destafilosofia natildeo tomar como pontode partida nem o sujeito nemo objeto mas sim a identidadeou indiferenccedila entre ambos numldquoAbsolutordquo tal absoluto supos-tamente acessiacutevel atraveacutes de umaldquointuiccedilatildeo racionalrdquo (Vernunft-Anschauung) intuiccedilatildeo que dizdesafiadoramente Schopenhauerele natildeo possui ao se desdobrarnas duas seacuteries do ldquoIdealismoTranscendentalrdquo onde o ob-jeto eacute agrave maneira de Fichte ex-traido do sujeito e da ldquoFilosofiada Naturezardquo onde o sujeito eacuteextraiacutedo do objeto faz com queSchelling esteja na realidade in-corporando as duas versotildees a ide-alista e a materialista do mesmoerro anteriormente denunciadopor ele a saber o de supor queentre sujeito e objeto haja qual-quer relaccedilatildeo segundo o Princiacutepiode Razatildeo Suficiente Isso sali-enta ironicamente Schopenhauereacute aquilo que ao menos podemossupor a partir do depoimento da-quelas pessoas que se dizem ca-pazes de tal ldquointuiccedilatildeo racionalrdquo

(Mundo1 p 6026) EmboraSchopenhauer denuncie assimo esoterismo envolvido na intui-ccedilatildeo racional ou ldquointelectualrdquo deSchelling eacute bastante significativoque nesta primeira publicaccedilatildeo doseu sistema filosoacutefico completoSchopenhauer jaacute se defenda e jaacutese antecipe agrave suspeita da aproxi-maccedilatildeo de sua filosofia para comaquela de Schelling

Apesar desta defesa o puacuteblicofilosoacutefico para grande irritaccedilatildeo deSchopenhauer imediatamente de-tectou semelhanccedilas entre a sua fi-losofia e a filosofia de Schelling ndashtal como nos informa Cartwright2praticamente todas as poucas re-senhas que imediatamente aco-lheram em 1819 O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo notaramnele vestiacutegios do pensamento deSchelling (CARTWRIGHT p 180ss) ndash por exemplo a resenha feitapor Herbart nota que apesarde Schopenhauer denunciar emSchelling o uso transcendente daforma do tempo quando este falanum ldquovir-a-serrdquo num ldquotornar-serdquo num ldquovir agrave luz a partir daescuridatildeordquo etc no Absoluto elemesmo ao falar de sua Vontadecomo vindo a se conhecer no oucomo mundo passando de umnatildeo-querer originaacuterio a um que-rer e depois deste a um querer-nada estaria ldquoapresentando uma

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A INFLUEcircNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

histoacuteria como se fosse filosofia deuma maneira semelhante agrave histoacute-ria natural de Deus de Schellingrdquo(CARTWRIGHT p 386) As-sim tambeacutem Safranski em cone-xatildeo com o ensaio de Schelling so-bre a liberdade que discutiremosem breve diz que dos contem-poracircneos de Schopenhauer Schel-ling foi o que mais se aproximoudo conceito schopenhaueriano devontade3 No mesmo sentidoRappaport4 comentando em 1899as relaccedilotildees de Schopenhauer paracom Espinosa afirma que

A filosofia de Schellingque Schopenhauer pocircdeaprender em traccedilos ge-rais atraveacutes de Schulzeem Goumlttingen foi para eleobjeto de zeloso estudoem Berlim ldquoSchellingeacute aquele a quem Scho-penhauer na medida emque se diferencia de Kante de sua escola deveseus mais importantespensamentosrdquo diz Edu-ard v Hartmann em Ge-genwart de 1898 (RAPPA-PORT p 126)

E de um modo geral a impressatildeode que Schelling jaacute houvera ante-cipado ideias importantes da suafilosofia foi tal que em Parerga eParalipomena5 o proacuteprio Schope-nhauer procurou defender-se daacusaccedilatildeo de plaacutegio ndash diante da ob-servaccedilatildeo de que Schelling jaacute ha-via falado da vontade como o ldquoSerprimal e coisas parecidasrdquo Scho-penhauer diz em primeiro lugarque dado que ambas as filoso-fias a sua e a de Schelling par-tem da filosofia de Kant eacute natu-ral que hajam semelhanccedilas entreelas Aleacutem disso continua Scho-penhauer eacute comum acontecer nahistoacuteria do pensamento da des-coberta de uma grande ideia porparte de um autor ser antes pre-cedida em pensadores anterio-res por vaacuterias antecipaccedilotildees va-gas e nebulosas a seu respeito pordivagaccedilotildees hesitantes proferidasnum estado quase sonambuacutelicoMas diz Schopenhauer o verda-deiro autor de uma ideia eacute ape-nas aquele que reconheceu clara-mente a sua importacircncia e a ex-plorou em todas as conexotildees ndash defato acrescenta ele apenas apoacuteso verdadeiro autor da ideia terfeito isto eacute que a ideia em questatildeo

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seraacute procurada em autores anteri-ores ndash da mesma maneira como eacuteColombo o descobridor da Ameacute-rica e natildeo algum naufrago queporventura pudesse laacute ter sido jo-gado pelas ondas E finalmenteconclui Schopenhauer se for paralocalizar alguma fonte anterior aele daquela ideia natildeo seraacute pre-ciso parar em Schelling pois vaacute-rios outros autores da antiguidadejaacute haviam feito alusotildees a ela (PP1p 132-134)

Esta defesa da originalidade desua obra por parte de Schope-nhauer nos parece perfeitamenteadequada e suficiente Apesardisso e como nota Welchman6 ela natildeo eacute desprovida de uma certaambiguidade - ela se assemelhadiz Welchman agrave famosa piadacontada por Freud a respeito dosujeito que diante da reclama-ccedilatildeo de que havia devolvido comfuros um balde anteriormentetomado emprestado defendeu-se dizendo em primeiro lugarldquoque jaacute recebera o balde comfurosrdquo e que em segundo lu-gar ldquoquando devolveu o baldeeste estava intactordquo e finalmenteem terceiro lugar que ldquonunca ja-mais tomou emprestado baldealgumrdquo Cada uma destas ale-gaccedilotildees tomadas isoladamenteserviria como defesa mas todas

juntas natildeo e todas juntas equi-valem quase a uma confissatildeo deculpa Eacute como se diz WelchmanSchopenhauer estivesse dizendoldquoSou original mas Schelling tam-beacutem natildeo eacuterdquo Mesmo sem ir tatildeolonge esta observaccedilatildeo de Welch-man nos serve no entanto paranotar que Schopenhauer mesmodefendendo adequadamente a ori-ginalidade de sua obra acaba ad-mitindo algumas semelhanccedilas en-tre a sua filosofia e a de SchellingE de um modo geral precisamosnotar que no que segue natildeo es-taremos de modo algum interes-sados em determinar a autoria oua prioridade intelectual de Schel-ling ou de Schopenhauer relativa-mente a algumas ideias presentesna filosofia deste uacuteltimo O quenos interessa eacute averiguar a ma-neira como a leitura dos livros deSchelling realizadas pelo jovemSchopenhauer no periacuteodo anterioragrave publicaccedilatildeo em 1818-1819 de OMundo como Vontade e Representa-ccedilatildeo possa ter estimulado Schope-nhauer na formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico Conforme dizacertadamente Gardner emboraSchopenhauer tenha sempre rejei-tado as filosofias de Schelling e deFichte como prolongamentos ile-giacutetimos da filosofia de Kant e em-bora tenha ele sempre pretendido

6 WELCHMAN A Schopenhauerrsquos Understanding of Schelling (WELCHMAN) p 03(httpswwwresearchgatenet)

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A INFLUEcircNCIA DE SCHELLING SOBRE SCHOPPENHAUER

estar realizando contra estas duasfilosofias um ldquoretorno a Kantrdquo eacutepreciso reconhecer que dado quenos seus anos de formaccedilatildeo Scho-penhauer natildeo estudou mais ne-nhum outro filoacutesofo com exceccedilatildeode Kant do que Schelling e Fichteentatildeo este seu retorno a Kant foium retorno ldquoa partir de Schellinge Fichterdquo foi um retorno a partirde ideias que Schopenhauer sejapela recusa e rejeiccedilatildeo seja pelaaceitaccedilatildeo e re-elaboraccedilatildeo encon-trou na leitura destes filoacutesofos7Dado que o jovem Schopenhauerjaacute desde 1811 estudava os livrosde Schelling e neles fez anotaccedilotildeesimportantes reunidas em seu Ma-nuscritos Poacutestumos8 assim comodiscutiu aspectos da filosofia deSchelling em sua primeira publi-caccedilatildeo a ediccedilatildeo de 1813 de sua tesedoutoral Sobre a quaacutedrupla raizdo Princiacutepio de Razatildeo Suficiente9acreditamos poder determinar apartir deste material a contribui-ccedilatildeo positiva do pensamento filo-soacutefico de Schelling para a forma-ccedilatildeo da filosofia de SchopenhauerEmbora Schopenhauer jaacute desde

muito cedo tenha feito uma dis-tinccedilatildeo entre os filoacutesofos genuiacutenosque manifestam um espanto ouadmiraccedilatildeo diretamente diante domundo da vida e aqueles filoacutesofosque como Fichte manifestam es-panto apenas diante de livros oude um sistema filosoacutefico jaacute exis-tente (MR1 p 81) eacute preciso reco-nhecer que mesmo partindo da-quela intuiccedilatildeo direta do mundoa intuiccedilatildeo schopenhaueriana pre-cisou ser expressa em conceitosconceitos que ele natildeo poderia terencontrado em outro lugar quenatildeo nos livros e nos sistemas filo-soacuteficos que lhe eram disponiacuteveis

Consciecircncia ldquomelhorrdquo e intuiccedilatildeointelectual

Um dos pontos em que segundoalguns comentadores10 a incipi-ente filosofia do jovem Schope-nhauer se aproxima da de Schel-ling diz respeito agrave noccedilatildeo deldquoconsciecircncia melhorrdquo ndash jaacute desdeseus mais precoces manuscritos(1808-1813) Schopenhauer fala

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10 CfSEGALA M e DE CIAN N ldquoWhat is willrdquo In Schopenhauer-Jahrbuch 83 2002 p06 Cartwrightmenciona tambeacutem alguns autores (Kamata Y Zint H Malter R Safranski R e Decher F) que se dedicaramao estudo das relaccedilotildees entre a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo do jovem Schopenhauer e a descriccedilatildeo da ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling nas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (CARTWRIGHT p 181-182 n5)

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de um estado de consciecircncia noqual noacutes nos retiramos das deter-minaccedilotildees principalmente da de-terminaccedilatildeo temporal da consci-ecircncia empiacuterica e mundana e en-tramos num estado a partir doqual contemplamos calma e se-renamente aqueles mesmos ob-jetos e acontecimentos que nooutro estado de consciecircncia naldquoconsciecircncia empiacutericardquo nos tra-zem agitaccedilatildeo e sofrimento (MR1p 8 14-15 44 86) Trata-se da-quele estado de espiacuterito que nafase madura de sua filosofia cons-tituiraacute o acircmago de suas belas e in-teressantes descriccedilotildees do estadode espiacuterito seja da contemplaccedilatildeoesteacutetica seja do ecircxtase do santoe do asceta Mas que este es-tado ldquomelhorrdquo de consciecircncia dojovem Schopenhauer se aproximedaquilo que Schelling chama deldquointuiccedilatildeo intelectualrdquo isto aque-les comentadores afirmam base-ados numa passagem da oitavadas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dog-matismo e o Criticismo passagemque o jovem Schopenhauer anotaagrave margem como ldquocontendo grandee genuiacutena verdaderdquo onde Schel-ling procurando mostrar que aintuiccedilatildeo espinosista do absolutojunto ao anseio por unificaccedilatildeoneste absoluto e a anulaccedilatildeo de simesmo ou a intuiccedilatildeo do mundoldquosob o aspecto da eternidaderdquo sebaseava na intuiccedilatildeo que Espinosatinha a respeito de si mesmo diz

Presente em todos noacutes haacuteuma capacidade secreta emaravilhosa de retirarmo-nos da mudanccedila e da su-cessatildeo do tempo em di-reccedilatildeo ao nosso ser maisiacutentimo que eacute despido detudo aquilo que lhe adveiode fora e de entatildeo intuir oeterno em noacutes mesmos soba forma da imutabilidadeEsta intuiccedilatildeo (Anschau-ung) eacute a nossa experiecircn-cia a mais iacutentima e apenasdela depende tudo aquiloque sabemos e acredi-tamos a respeito de ummundo supra-sensiacutevel Eacuteesta intuiccedilatildeo aquilo queem primeiro lugar nosconvence de que algo eacuteno sentido real do termoao passo que tudo o maispara o qual noacutes transferi-mos esta palavra apenasaparece (erscheint) (MR2p 347HN p 250 - itaacuteli-cos de Schelling)

Mas se eacute claro que esta descriccedilatildeopor parte de Schelling daquilo quese daacute agrave sua ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquose aproxima bastante daquilo queo jovem Schopenhauer entendecomo sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoeacute preciso reconhecer que ela se as-semelha tambeacutem tanto agrave intuiccedilatildeo

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ldquomais altardquo de Fichte cujos cur-sos foram presenciados pelo jo-vem Schopenhauer em 1811-1812(MR2 p 79-80) como agrave acimamencionada intuiccedilatildeo ou conheci-mento de ldquoterceiro gecircnerordquo de Es-pinosa (MR1 p 306) Pode-se di-zer que a ldquoconsciecircncia melhorrdquo dojovem Schopenhauer coincide per-feitamente com aquilo que Schel-ling Fichte e Espinosa dizem arespeito da intuiccedilatildeo do mundosupra-sensiacutevel ou com aquilo queestes chamaratildeo de ldquoAbsolutordquo mas diferentemente destes Scho-penhauer ao menos nestes anosiniciais de formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico recusa-se a co-locar este mundo supra-sensiacutevelcomo fundamento do mundo sen-siacutevel ele recusa-se a derivar aldquoconsciecircncia empiacutericardquo a partirda sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo as-sim como incansavelmente qua-lifica como transcendente e con-traditoacuteria as tentativas de Fichte eSchelling no sentido de derivar aconsciecircncia empiacuterica a partir doldquoAbsolutordquo - pois segundo elequalquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer de relaccedilotildees (tem-porais causais de fundamento-consequecircncia etc) que soacute exis-tem na e satildeo condiccedilotildees apenasda consciecircncia empiacuterica e natildeose pode colocar duas coisas emrelaccedilatildeo segundo os termos deuma relaccedilatildeo que eacute vaacutelida apenaspara uma delas (MR1 p 20 37

72-73 MR2 p 385-385 429-430 436) Pode-se assim di-zer que de um modo geral o jo-vem Schopenhauer concorda comSchelling (e com Fichte tambeacutem)em que (1) eacute possiacutevel uma intui-ccedilatildeo do supra-sensiacutevel (tanto doEu quanto do mundo) enquantoatemporal e que (2) o mundosensiacutevel e temporal apresenta-secomo ldquovazio e irrealrdquo como umamera ldquoaparecircnciardquo tal como men-cionado acima mas ele rejeita atentativa de Schelling (e de Fichte)de suprir este vazio e irrealidadedo mundo sensiacutevel mediante umaderivaccedilatildeo deste mundo sensiacutevel apartir do mundo supra-sensiacutevelou mediante uma fundamenta-ccedilatildeo daquele mundo sensiacutevel nestemundo supra-sensiacutevel

Eacute assim e em particular noque diz respeito a Schelling queSchopenhauer jaacute em sua pri-meira publicaccedilatildeo a QuaacutedruplaRaiz do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente de 1813 diz que se aNaturphilosophie pretende comsua ldquoidentidade entre subjetivoe objetivordquo significar a mera de-pendecircncia muacutetua entre sujeito eobjeto enquanto pressupostos portoda aplicaccedilatildeo do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente entatildeo diz Scho-penhauer ele ldquoestaria de acordordquocom ela se bem que para isso natildeoeacute preciso nenhuma intuiccedilatildeo in-telectual (intellektuale Anschau-ung) mas sim a mera reflexatildeo (Be-

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sinnen) a mesma reflexatildeo que nosmostra por exemplo as expres-sotildees ldquopairdquo e ldquofilhordquo como mutu-amente dependentes Daiacute conti-nua Schopenhauer que quandose faz abstraccedilatildeo de toda determi-naccedilatildeo do ser-objeto assim comode todas as faculdades do ser-sujeito restaratildeo de cada ladoapenas um ldquoxrdquo e um ldquoyrdquo e se qui-sermos ainda assim afirma-loscomo idecircnticos estaremos aleacutemda duvidosa ldquovantagemrdquo de trocarduas incognitas por uma soacute apli-cando uma categoria a categoriada identidade que no entanto foieliminada por aquela abstraccedilatildeoe que eacute condiccedilatildeo apenas do ser-objeto e natildeo do ser-sujeito Ouseja natildeo eacute possiacutevel derivar nemo objeto nem o sujeito a par-tir disto que Schelling chama deldquoidentidade sujeito-objetordquo poisqualquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer seja de categoriasque pertencem apenas ao sujeito(se houver alguma categoria quede fato seja aplicaacutevel ao sujeito)seja de categorias que pertencemapenas ao objeto (RAIZES p 108-111) Mas ao contraacuterio do tomrespeitoso e cauteloso11 adotadopelo jovem Schopenhauer nesta

sua tese doutoral as anotaccedilotildees fei-tas por ele aos livros de Schellingsatildeo a este respeito bem mais inci-sivas ndash por exemplo numa anota-ccedilatildeo ao Sobre o Eu como o princiacutepioda filosofia Schopenhauer diz quena concepccedilatildeo de uma existecircnciaqualquer jaacute pressupomos a duali-dade representante-representadoe que se quisermos falar de umser que existe fora de toda re-laccedilatildeo que existe em si por sia partir de si e por nada forade si etc estaremos falando dealgo completamente inconcebiacutevel(MR2 p 342-3) Da mesma ma-neira numa longa anotaccedilatildeo aoSistema do Idealismo Transcenden-tal12 o jovem Schopenhauer dizque dado que a dualidade sujeito-objeto natildeo eacute causa da mas sim eacuteanaliticamente idecircntica agrave cons-ciecircncia empiacuterica a pergunta deSchelling sobre se o objetivo pre-cede o subjetivo ou ao contraacute-rio o subjetivo precede o obje-tivo esta pergunta eacute sem-sentidojaacute que anterior e posterior causae efeito jaacute pressupotildeem a consci-ecircncia empiacuterica e com esta aqueladualidade sujeito-objeto Tomarqualquer um desses dois isola-damente para daiacute tentar deri-

11 Cartwright sugere que o tom cauteloso adotado por Schopenhauer em relaccedilatildeo a Schelling nesta tese doutoraldeveu-se ao fato de Schopenhauer estar se dirigindo agrave Academia e de natildeo querer ferir alguma suscetibilidade deseus avaliadores (CARTWRIGHT p 196) De fato poreacutem e como jaacute mencionamos sua atitude mesmo em suasanotaccedilotildees privadas em relaccedilatildeo a Schelling eacute bem mais amena do que aquela manifesta em relaccedilatildeo a Fichte ou aHegel

12 SCHELLING FWJ System des transzendentalen Idealismus Hamburg Meiner 2000 (SCHELLING-SISTEMA)

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var o outro eacute uma tarefa con-traditoacuteria e impossiacutevel pois aodesvincular um do outro estare-mos abolindo a proacutepria consci-ecircncia ndash ou dito de outro modotentar pensar um ldquosujeitordquo quenatildeo seja algo que representa umobjeto ou um ldquoobjetordquo que natildeoseja algo representado por um su-jeito eacute tentar algo impossiacutevel econtraditoacuterio (MR2 p 378-379)As relaccedilotildees anterior-posteriorcausa-efeito etc aplicam-se ape-nas a objetos mas natildeo agrave rela-ccedilatildeo sujeito-objeto (MR2 p 380)e diz Schopenhauer ldquoque o su-jeito mesmo se torne objeto (Schel-ling usa a expressatildeo ldquoSich-selbst-Objekt-Werden des Subjektivenrdquondash SCHELLING-SISTEMA p 15)esta eacute a mais monstruosa contradi-ccedilatildeo jamais formulada pois objetoe sujeito soacute satildeo concebiacuteveis umem referecircncia ao outro e esta refe-recircncia eacute sua uacutenica caracteriacutesticardquo(MR2 p 381) O sujeito dizSchopenhauer nunca pode tornar-se objeto e isto devido agrave razatildeomuito simples de que fosse esteo caso entatildeo jaacute natildeo haveria ne-nhum sujeito para quem este ob-jeto (em que se transformou o su-jeito) seria objeto (MR2 p 383)Assim a filosofia da identidadesubjetivo-objetivo de Schelling eacuteem muitas passagens destes ma-nuscritos denunciada pelo jovemSchopenhauer como um empreen-dimento contraditoacuterio que pro-

cura apreender conceitualmenteo supra-sensiacutevel assim como suarelaccedilatildeo para com o sensiacutevel atra-veacutes de relaccedilotildees que satildeo pertinen-tes apenas a este uacuteltimo domiacuteniondash por exemplo quando Schellingprocura fazer o tempo surgir apartir da eternidade o relativo apartir do absoluto o finito a par-tir do infinito ele estaacute diz Scho-penhauer simplesmente abolindoo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo(MR2 p 340) e fazendo um usotranscendente (MR2 p 376 385)de relaccedilotildees que embora sejamcondiccedilotildees a priori da consciecircnciaempiacuterica para aleacutem dela natildeo seestendem como jaacute havia ensinadoKant

Ao fazer tais objeccedilotildees o jovemSchopenhauer parece natildeo ter com-preendido ou melhor natildeo teraceitado mesmo que de formanatildeo muito clara e expliacutecita parasi mesmo a principal motivaccedilatildeoda elaboraccedilatildeo filosoacutefica de Schel-ling ndash pois este concordaria comaquela afirmaccedilatildeo da tese douto-ral de Schopenhauer no sentidode que toda determinaccedilatildeo do su-jeito natildeo eacute uma determinaccedilatildeo doobjeto e toda determinaccedilatildeo doobjeto natildeo eacute uma determinaccedilatildeodo sujeito Mas diria Schellingo que eacute preciso explicar eacute justa-mente o encontro a ldquosiacutenteserdquo deambos no conhecimento e eacute esteproblema acerca das condiccedilotildeesde possibilidade do conhecimento

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sinteacutetico problema que segundoKant a sua Criacutetica da Razatildeo Puraprocurara resolver Para expli-car como sujeito e objeto se en-contram um ao outro no conhe-cimento sinteacutetico (ou mais pre-cisamente como se daacute o encon-tro entre a ldquounicidaderdquo do En-tendimento e a ldquomultiplicidaderdquodo dado proveniente da Sensibili-dade) e como o elemento comuma ambos que permitiria sua siacuten-tese ou uniatildeo natildeo pode provirnem de um nem de outro to-mados isoladamente entatildeo seraacutepreciso admitir que antes noldquoabsolutordquo eles eram idecircnticos eque depois de uma cisatildeo aiacute ocor-rida eles agora satildeo juntados nova-mente por aquele juiacutezo sinteacuteticode modo que tal juiacutezo soacute pode dizSchelling ser compreendido comouma restauraccedilatildeo daquela identi-dade e unidade perdida ndash a siacuten-tese empiacuterica entre o sujeito e oobjeto condicionados assim soacuteeacute possiacutevel enquanto restauraccedilatildeoda siacutentese e identidade incondi-cionada sujeito-objeto O mesmoocorre continuaria Schelling comos objetos conectados pelo Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente de quetrata aquela tese doutoral de Scho-penhauer ndash a necessidade com queeste princiacutepio conecta seus ob-jetos (fundamento-consequecircnciacausa-efeito etc) soacute pode ser ex-plicada mediante referecircncia a umldquoabsolutordquo anterior onde estes ob-

jetos seriam idecircnticos entre si eque forneceria assim a explicaccedilatildeotranscendental da necessidade desua conexatildeo Mas o jovem Schope-nhauer jaacute nesta sua tese doutoralde 1813 e embora ele natildeo se en-derece explicitamente a esta ques-tatildeo daacute mostras de que recusariaestes desenvolvimentos do empre-endimento filosoacutefico de Schelling(e de Fichte tambeacutem) ndash falando daexigecircncia de uma ldquoprovardquo do Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente ele dizque toda prova eacute o remontar dealgo duvidoso a algo admitido ese pedirmos uma prova deste ad-mitido chegaremos ultimamentea proposiccedilotildees que satildeo simples-mente a condiccedilatildeo de todo o pen-sar e conhecer e que satildeo mesmoaquilo em que consistem o proacute-prio pensar e conhecer de modoque a certeza (Gewissheit) nadamais eacute que a concordacircncia com es-tas proposiccedilotildees e natildeo pode ser re-montada a proposiccedilotildees mais cer-tas do que estas (RAIZES p 20)E um pouco mais adiante o jo-vem Schopenhauer jaacute manifestauma recusa de todo o empreendi-mento transcendental kantiano deque Schelling (e Fichte) se preten-dem herdeiros

Desde a Deduccedilatildeo das Ca-tegorias de Kant () pa-rece quase natildeo haver nadade mais originaacuterio e ime-diato que jaacute natildeo tenha

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sido deduzido a prioriTais coisas cujo remon-tar aos seus fundamen-tos nenhuma eacutepoca an-terior imaginava ser pos-siacutevel deu a ocasiatildeo paraque Goumlethe dissesse lsquoOfiloacutesofo chega e nos de-monstra que assim preci-sava serrsquo (RAIZES p 25)

Apesar desta rejeiccedilatildeo que na fasemadura de sua filosofia se tornaraacutecompletamente expliacutecita da pre-tensatildeo fundacionista que a filosofiade Schelling compartilha com a fi-losofia do Idealismo alematildeo comoum todo vemos no entanto o jo-vem Schopenhauer numa anota-ccedilatildeo ao ldquoadendo agrave Introduccedilatildeordquo agravesIdeias para uma Filosofia da Natu-reza descortinar aquilo que es-taria por detraacutes desta concepccedilatildeode Schelling a respeito da coinci-decircncia do absolutamente ideal (osaber filosoacutefico como saber abso-luto) com o absolutamente real (oproacuteprio Absoluto)

() pois quando adentra-mos profundamente emnoacutes mesmos constatamosque () o tempo nos eacute ines-sencial tal como o eacute a divi-satildeo de nossa consciecircncia emsujeito e objeto noacutes sen-timos ateacute mesmo um an-seio (Sehnsucht) de nos

livrarmos de todas estasdeterminaccedilotildees (este eacute meparece o fundamento detodo esforccedilo filosoacutefico ge-nuiacuteno)() mas soacute pode-mos ir ao ponto de dizerque precisa haver um es-tado no qual natildeo haacute nemsujeito nem objeto e por-tanto natildeo haacute nada de anaacute-logo agrave minha consciecircnciaatual e embora haja neleum esforccedilo e pressenti-mento (Vorgefuumlhl) destesnunca pode ser-lhe espe-cificado um conceito jus-tamente porque ele estaacuteacima e aleacutem de todo En-tendimento(MR2 p 360HN p 212 -itaacutelicos nos-sos)

De fato a ldquoconsciecircncia melhorrdquodo jovem Schopenhauer tambeacutemnatildeo inclui nem tempo nem su-jeito nem objeto (MR1 p 73-74)de modo que segundo ele o errode Schelling estaria natildeo na afir-maccedilatildeo da possibilidade de tal in-tuiccedilatildeo do supra-sensiacutevel mas simno querer colocaacute-la em relaccedilatildeocom a consciecircncia atual ou em-piacuterica mediante categorias que soacutesatildeo vaacutelidas para esta uacuteltima cons-ciecircncia Em particular o jovemSchopenhauer recusa a tentativade apreender este supra-sensiacutevelatraveacutes de conceitos Eacute assim quenuma anotaccedilatildeo ao Filosofia e Re-

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ligiatildeo Schopenhauer discutindoa afirmaccedilatildeo de Schelling no sen-tido de que antes e ainda na au-secircncia de uma intuiccedilatildeo direta doInfinito a razatildeo filosoacutefica atraveacutesde seus conceitos natildeo pode fazeroutra coisa que natildeo uma alusatildeoindireta a este mediante a cons-tataccedilatildeo ldquodo vazio e irrealidade detodos os contrastes finitosrdquo diz

Bom e inteiramente deacordo com minha opi-niatildeo Mas entatildeo que afilosofia se contente emmostrar a natureza limi-tada do Entendimentocomo fez Kant e acres-cente que haacute em noacutesuma faculdade inteira-mente diferente do En-tendimento () Mas queela natildeo leve este (Enten-dimento) a pocircr o absolutocomo um conceito e dardele explicaccedilotildees que natildeopassam de impossibilida-des loacutegicas () (MR2 p372 - itaacutelicos nossos)

Assim diz Schopenhauer ao in-veacutes de corretamente dizer ldquoaquitermina o domiacutenio do Entendi-mento e comeccedila o da consciecircnciamelhorrdquo Schelling diz que ldquoemDeus o sujeito eacute o objeto o ge-ral eacute o particularrdquo e como taissentenccedilas violam o princiacutepio de

natildeo-contradiccedilatildeo nada eacute conce-bido realmente por seu intermeacute-dio embora elas possam ser pro-feridas da mesma maneira comopode-se desenhar um edifiacutecio quenatildeo se sustenta de acordo com alei da gravidade (MR2 p 374)Para o jovem Schopenhauer a Ra-zatildeo em particular a Razatildeo filo-soacutefica tem atraveacutes de seus con-ceitos apenas esta funccedilatildeo de aofazer uma apresentaccedilatildeo negativada ldquoconsciecircncia melhorrdquo (natildeo estaacuteno tempo natildeo estaacute no espaccedilo natildeoestaacute em nenhuma conexatildeo atra-veacutes do Princiacutepio de Razatildeo Sufici-ente etc) na consciecircncia empiacute-rica fazer com que esta tenha aomenos o pressentimento de quealeacutem e acima dela haacute uma ou-tra consciecircncia uma consciecircncialdquomelhorrdquo que ela (MR1 p 23-24 53-54) E eacute por isso que eleacima concorda com a afirmaccedilatildeode Schelling no sentido de a ra-zatildeo filosoacutefica deve se limitar agrave ta-refa de demonstrar o vazio e ir-realidade dos contrastes estabe-lecidos pelo Entendimento Maspara ele a razatildeo filosoacutefica deveparar aiacute mantendo-se assim comoo verdadeiro ldquocriticismordquo o quesegundo ele natildeo eacute o que ocorreem Schelling que procura estabe-lecer uma ponte ou uma uniatildeo en-tre estes dois mundos o sensiacutevele o supra-sensiacutevel que falam lin-guagens tatildeo incomensuraacuteveis en-tre si produzindo entatildeo uma con-

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fusatildeo ldquobabilocircnicardquo de linguagenssem se dar conta de que ldquouniatildeordquo jaacuteeacute um conceito inexoravelmente li-gado ao mundo espaccedilo-temporale portanto aplicaacutevel apenas aomundo sensiacutevel (MR1 p 37)

Mas em relaccedilatildeo agrave ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling o jovemSchopenhauer em conexatildeo como Tratado para o esclarecimento doIdealismo da Doutrina da Ciecircncia arecusa e a diferencia de sua no-ccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo namedida em que segundo ele aintuiccedilatildeo de Schelling depende-ria do cultivo do Entendimento(Verstandeskultur) que estaacute su-jeito a vaacuterias circunstacircncias aci-dentais e da vontade empiacuterica ouda ldquoescolha do arbiacutetrio (Willkuumlhr)atraveacutes de conceitosrdquo ao passoque sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo natildeodepende destes embora dependade uma ldquovontade purardquo (reinenWillen) (MR2 p 350-351HN p256 MR2 p 373 HN p 230)Mas tal como exposta por Schel-ling estas conclusotildees do jovemSchopenhauer parecem natildeo seremmuito exatas ndash segundo Schelling

(A intuiccedilatildeo intelectual) eacuteuma intuiccedilatildeo cujo objetoeacute uma accedilatildeo originaacuteria (urs-pruumlngliches Handeln) ede fato eacute uma intuiccedilatildeoque natildeo podemos tentardespertar em outras pes-soas de iniacutecio atraveacutes de

conceitos (Befriffe) masque estamos justificadosem exigir a priori de todosporque eacute uma accedilatildeo sem aqual a lei moral em outraspalavras um comando po-sitiva e incondicionalmenteimposto a todas as pessoasna mera qualidade de suanatureza humana lhe se-ria inteiramente ininteli-giacutevel(MR2 p 350 HNp 255 - itaacutelicos de Schel-ling)

Schelling parece aqui afastar desua intuiccedilatildeo intelectual tanto anecessidade de um cultivo do En-tendimento como a accedilatildeo arbitraacute-ria possiacutevel atraveacutes de conceitos ndashpara ele a pessoa deve ser capazde tal intuiccedilatildeo apenas em fun-ccedilatildeo de sua qualidade de ser hu-mano em funccedilatildeo de como talver-se obrigada ou submetida aum comando moral incondicio-nal (a autonomia conectada aoldquoimperativo categoacutericordquo de Kant)Assim diz Schelling embora eleexprima aquela accedilatildeo originaacuteriacomo uma proposiccedilatildeo fundamen-tal (Grundsatz) em relaccedilatildeo agrave pes-soa com quem ele fala trata-se deum postulado (uma ordem para re-alizar uma accedilatildeo tal como o pos-tulado da geometria ldquotrace umalinha talrdquo) e ldquoquem quer queseja incapaz de cumpri-lo ao me-nos deveria ser capaz de cumpri-

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lordquo ao que o jovem Schopenhauerobjeta ironicamente ldquoEste eacute umnovo uso da expressatildeo lsquopostuladorsquoteoacuterico ou vocecirc admite que seurepresentar eacute uma accedilatildeo originaacuteriasua sobre vocecirc mesmo ou vocecirc eacuteum canalha (Schurke)rdquo (MR2 p350 HN p 255) Ora podemosver aqui a maneira como emborarejeite este ponto de partida da fi-losofia de Schelling (e de Fichtetambeacutem) embora rejeite o esote-rismo de seus postulados ndash poisdiante da ordem proferida porSchelling e Fichte para que se efe-tue ou se realize tal accedilatildeo a pessoanatildeo sabe decidir entre o ldquorealizeia accedilatildeo mas encontrei resultadosdiferentesrdquo e o ldquonatildeo cheguei real-mente a realizar a accedilatildeordquo e esta eacutea fonte das constantes criacuteticas deSchopenhauer a Schelling e a Fi-chte no sentido de que estes se di-rigem apenas a um grupo de pes-soas ldquoconvertidasrdquo - natildeo haacute umadiferenccedila no conteuacutedo entre am-bas as intuiccedilotildees pois diz Schel-ling

Este princiacutepio iacutentimo natildeoeacute outro que natildeo a accedilatildeo ori-ginaacuteria do espiacuterito sobre simesmo a autonomia ori-ginaacuteria que vista de umponto de vista teoacuterico eacuteum representar (Vorstel-len) ou o que eacute o mesmoo construir de coisas fi-nitas (Construiren endli-

cher Dinge) e visto de umponto de vista praacutetico eacuteum querer (Wollen) (HNp255 - itaacutelicos nossos)

Representaccedilatildeo e Vontade satildeoapresentados aqui ao jovem Scho-penhauer como dois aspectos da-quela accedilatildeo originaacuteria dada agrave in-tuiccedilatildeo intelectual de Schellinge embora Schopenhauer recusea maneira como Schelling (e Fi-chte tambeacutem) a pretende estabe-lecer ndash eacute como se Schopenhauerdiante do postulado em questatildeo oencarasse da mesma forma comoFreud considerou uma possiacutevelobjeccedilatildeo concernente ao caraacuteterarbitraacuterio das interpretaccedilotildees psi-canaliacuteticas ldquolancemos um mo-eda se der cara eu ganho seder coroa vocecirc perderdquo ndash parecebastante plausiacutevel supor que es-tes desenvolvimentos da filosofiade Schelling tenham posterior-mente contribuiacutedo para formu-laccedilatildeo por parte de Schopenhauerde seu pensamento filosoacutefico ori-ginal Voltaremos a este pontoquando mais adiante discutir-mos as anotaccedilotildees feitas por Scho-penhauer nas Ideias para uma Filo-sofia da Natureza de Schelling

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As investigaccedilotildees sobre a liber-dade de Schelling

Antes disso poreacutem precisamosconsiderar o objeto que provo-cou aquela defesa realizada porSchopenhauer no Parerga e Pa-ralipomena da originalidade desua obra frente agrave observaccedilatildeo deque Schelling jaacute houvera avan-ccedilado a ideia da vontade como oldquoSer primalrdquo Constataremos queembora Schelling avance aiacute ideiasque claramente seratildeo incorpora-das por Schopenhauer agrave sua filo-sofia natildeo haacute como recusar a de-fesa de Schopenhauer no sentidode que tais ideias encontram ex-pressatildeo aiacute de uma forma muitodifusa e nebulosa

Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas so-bre a Essecircncia da Liberdade Hu-mana13 Schelling no interior dafamosa ldquocontroveacutersia panteiacutestardquo e contestando a denuacutencia de Ja-cobi no sentido de que o pan-teiacutesmo espinosista conduz inevi-tavelmente ao fatalismo e agrave ne-gaccedilatildeo da liberdade comeccedila porapontar que este natildeo eacute o caso jaacuteque eacute justamente a preocupaccedilatildeocom a liberdade o que em pri-meiro lugar conduz agrave afirmaccedilatildeodo panteiacutesmo ndash pois diz Schel-ling eacute de modo a fazer com quea liberdade pessoal natildeo entre em

conflito com a onipotecircncia di-vina que se chega a afirmar queldquoestamos em Deus e natildeo foradelerdquo Daiacute continua Schellingnatildeo estar o panteiacutesmo necessari-amente conectado agrave negaccedilatildeo daliberdade Mesmo o fatalismo deEspinosa diz Schelling eacute devidonatildeo ao seu panteiacutesmo natildeo ao fatodele dizer que as coisas estatildeo con-tidas em Deus mas sim ao fatodele conceber estas coisas indi-viduais como coisas submetidasao mecanicismo Ateacute mesmo suanoccedilatildeo de vontade diz Schellingeacute a noccedilatildeo de uma coisa (Sache)determinadas por forccedilas exter-nas Agora diz Schelling quandoos conceitos fundamentais de Es-pinosa satildeo espiritualizados (ver-geistg) pelo Idealismo temos a Fi-losofia da Natureza que como aparte real do sistema desaguaraacutena parte ideal na parte do sistemaonde reina a Liberdade

Admite-se que nesteemergir (da liberdade) seencontra o ato potencia-lizador final atraveacutes doqual o todo da naturezatransfigura-se em senti-mento inteligecircncia e fi-nalmente em vontade Nojuiacutezo final e mais alto

13 SCHELLING FWJ Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom Love J e SchmidtJ(trad) New York State Univ of NY Press 2006 Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der mensch-lichen Freiheit httpdatabnffr (SCHELLING-LIBERDADE)

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natildeo haacute outro Ser (Sein)a natildeo ser o querer ou aVontade (Wollen) A Von-tade eacute o Ser primal (Ur-sein) ao qual unicamentese aplicam todos os pre-dicados do Ser infunda-bilidade (Grundlosigkeit)eternidade independecircn-cia em relaccedilatildeo ao tempo(Unabhaumlngigkeit von derZeit) auto-afirmaccedilatildeo(Selbstbejahung) Otodo da filosofia pro-cura apenas dar expres-satildeo a isto (SCHELLING-LIBERDADE p 2103 -itaacutelicos nossos)

Vemos aqui Schelling anunciarseu Idealismo como resultando deuma inversatildeo do Espinosismo ndashquando trocamos a ldquosubstacircnciardquoou a ldquocoisardquo de Espinosa peloldquoespiacuteritordquo ou pela ldquointeligecircnciardquoa Vontade se revela na parteIdeal do sistema como mais fun-damental do que o sentimentoe ateacute mesmo do que a inteli-gecircncia (Intelligenz) E Schellingalinha como predicados desteSer primal os mesmos predica-dos que frequentemente Scho-penhauer atribui agrave sua Vontademetafiacutesica Natildeo podemos po-reacutem deixar de dar razatildeo a Schope-nhauer quando ele naquela pas-sagem do Parerga e Paralipomenaafirma que estas alusotildees de Schel-ling agrave vontade satildeo feitas como que

em meio a um sonho ou deliacuteriopois Schelling natildeo procura argu-mentar e demonstrar tal tese agravemaneira tradicional ndash tanto eacute as-sim que Love e Schmidt quali-ficam esta passagem das Investi-gaccedilotildees como ldquoextremamente radi-cal e enigmaacuteticardquo (SCHELLING-LIBERDADE p 143 n24)Quando poreacutem levamos em con-sideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo do jovemSchopenhauer a estes devaneiosdo ldquonaufragordquo Schelling podemosconstatar que ao elaborar sua fi-losofia a noccedilatildeo de ldquoVontaderdquo natildeoera de modo algum algo comple-tamente ausente nas elaboraccedilotildeesfilosoacuteficas por ele estudadas

A seguir Schelling diz que foi oIdealimo o que nos elevou agrave posi-ccedilatildeo de obter o primeiro conceitoformal de liberdade mas ape-sar disso diz Schelling este ide-alismo ainda eacute incompleto poisnatildeo basta mostrar como mostraFichte que a ldquoatividade vida eliberdaderdquo eacute tudo o que haacute de ver-dadeiramente real mas tambeacutem eacutepreciso mostrar que tudo a natu-reza e o mundo das coisas possuia atividade a vida e a liberdadepor fundamento Daiacute diz Schel-ling antecipando um movimentoem relaccedilatildeo a Kant exatamentesimilar agravequele a ser posterior-mente adotado por Schopenhauerno apecircndice ldquoCriacutetica da FilosofiaKantianardquo de O Mundo como Von-tade e Representaccedilatildeo (Mundo1 p

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570422) que

Permaneceraacute sempre algoestranho o fato de queKant apoacutes primeiro terdistinguido as coisas-em-si dos fenocircmenos apenasnegativamente atraveacutes dasua (das coisas-em-si) in-dependecircncia em relaccedilatildeoao tempo e apoacutes tratara independecircncia em re-laccedilatildeo ao tempo e a liber-dade como conceitos cor-relatos na discussatildeo me-tafiacutesica da Criacutetica da Ra-zatildeo Praacutetica natildeo foi adianteno propoacutesito de transfe-rir este uacutenico conceito po-sitivo do em-si tambeacutempara as coisas por estemeio teria ele se elevado aum ponto da reflexatildeo maiselevado situado acima danegatividade que eacute carac-teriacutestica de sua filosofiateoacuterica (SCHELLING-LIBERDADE p 22-2304)

Mesmo aceitando aquela defesada originalidade de seu pensa-mento mesmo aceitando quecomo dizia Schopenhauer naquelapassagem do Parerga e Paralipo-mena eacute Colombo o descobridor daAmeacuterica e natildeo algum naufragoque houvesse divagado sobre este

continente eacute preciso reconhecerque Schelling mesmo que emmeio a um sonho ou deliacuterio es-teve muito proacuteximo daquilo quesegundo o proacuteprio Schopenhauerconstitui o ponto inicial e fun-damental de sua filosofia ndash poisdiz Schelling acima trata-se detransferir ou estender para o em-si das coisas em geral o conceitopositivo do em-si que de iniacutecioapresenta-se apenas na liberdadee vontade humanas e eacute exata-mente isto o que conforme Scho-penhauer diz naquele ldquoapecircndicerdquomencionado acima ele pretendeestar avanccedilando como seu maisimportante e original acreacutescimoagrave e prolongamento da doutrinakantiana Mas continua Schel-ling o panteiacutesmo natildeo foi des-truiacutedo pelo Idealismo jaacute quepara o panteiacutesmo tanto faz afir-mar que as coisas individuais es-tatildeo na substacircncia absoluta e te-riacuteamos aiacute um panteiacutesmo-realista-espinosista quanto ldquoafirmar queas vontades individuais (ein-zelne Willen) estatildeo na Vontadeprimal (Urwillen)rdquo e aqui te-riacuteamos um panteiacutesmo-idealista(SCHELLING-LIBERDADE p22-2304) Assim diz Schellingnatildeo devemos esperar que as maisimportantes questotildees sobre a li-berdade sejam resolvidas querpelo idealismo quer pelo rea-lismo tomados isoladamente Ea questatildeo mais importante acerca

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da liberdade diz Schelling eacute aquestatildeo do Mal ndash pois ou o Malrepresenta algo de positivo (enatildeo tal como ocorre na maio-ria das ldquoteodiceiasrdquo tradicionaisuma mera ausecircncia ou privaccedilatildeodo Bem) e neste caso o Mal te-ria que ser colocado ldquono interiorda substacircncia infinita ou da Von-tade primal (Urwillen) mesmardquoou a realidade e positividade doMal deveria de alguma maneiraser negada caso em que serianegado tambeacutem o conceito realde liberdade jaacute que esta precisaser tambeacutem liberdade para oMal (SCHELLING-LIBERDADEp 2304)

Natildeo pretendemos examinar amaneira como Schelling procuraatraveacutes da distinccedilatildeo entre o Serna medida em que existe e o Serna medida em que eacute mero fun-damento (Grund) da existecircncia14resolver este grande problema doMal com que se ocupa a TeodiceacuteiaDo ponto de vista da evoluccedilatildeodo pensamento do jovem Schope-nhauer eacute preciso considerar quefalando deste fundamento dascoisas ldquoem Deus que natildeo eacute Deusmesmordquo ou falando da Natureza

Schelling o caracteriza como umanseio (Sehnsucht) que quer darnascimento agrave unidade infundadaao Uno a Deus mas que natildeo eacute estaunidade mesma

Daiacute que ele eacute consi-derado por si mesmotambeacutem Vontade (Wille)mas Vontade na qual natildeohaacute nenhum Entendimento(Verstand) e por estarazatildeo natildeo eacute uma von-tade completa e inde-pendente () Apesardisso ele eacute uma Vontadede Entendimento a sa-ber eacute um anseio e desejodeste uacuteltimo ele natildeo eacuteuma vontade conscientemas sim uma vontadepremonitoacuteria (ahnenderWille) cuja premoni-ccedilatildeo eacute o Entendimento() Foi a partir destealgo desprovido de En-tendimento (Verstandlo-sen) que o Entendimentono sentido proacuteprio nas-ceu (SCHELLING-LIBERDADE p 28-2905

14 Na terceira ediccedilatildeo (1847) de sua A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente Schopenhauer diraacute queesta distinccedilatildeo de Schelling nada mais eacute do que um aprofundamento da confusatildeo de que Espinosa tambeacutem foiviacutetima relativamente ao argumento ontoloacutegico de Descartes ndash enquanto Espinosa teria indevidamente assimi-lado a relaccedilatildeo causa-efeito agrave relaccedilatildeo fundamento-consequecircncia Schelling tentando tornar mais ldquorealrdquo esta uacuteltimarelaccedilatildeo teria procurado separar em Deus o ldquofundamentordquo da ldquoconsequecircnciardquo o que lhe permitiraacute falar comofalaraacute a seguir de um ldquofundamento em Deus que natildeo eacute Deus mesmordquo Nesta ocasiatildeo Schopenhauer aleacutem de dizerque Schelling nisto estaacute simplesmente plagiando JBoumlhme pretende ter descoberto a fonte (os ldquoValencianosrdquo umaseita hereacutetica do secII dC) de que se valeu o proacuteprio Boumlhme CfSCHOPENHAUER A The Fourfold Roots of thePrinciple of Sufficient Reason Hillebrand K(trad) London GBell and Sons 1903 p18

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- itaacutelicos nossos)

Gardiner no artigo jaacute mencio-nado enfatiza em conexatildeo comesta passagem das Investigaccedilotildeesque o fato de Schelling falar aquide uma vontade ldquocegardquo em nadadepotildee contra a originalidade daconcepccedilatildeo schopenhaueriana devontade jaacute que esta vontade deSchelling eacute completamente vol-tada em direccedilatildeo ao Entendimento(GARDINER p 19) Aleacutemdisso continua Gardner apesarde Schelling ser aqui pioneiro naafirmaccedilatildeo da positividade do Maleste Mal para ele eacute apenas o malmoral humano e natildeo tal comoocorrem em Schopenhauer eacute algoinscrito na proacutepria essecircncia domundo (GARDINER p 38) Defato talvez pudeacutessemos dizer queembora Schelling afirme a positi-vidade do Mal ele natildeo chega emmomento algum a afirmar comoafirmaraacute Schopenhauer a nega-tividade do Bem o fato do Bemser apenas a ausecircncia ou priva-ccedilatildeo de um Mal positivo Ape-sar desta diferenccedila natildeo pode ha-ver duacutevida alguma de que estaselaboraccedilotildees de Schelling estuda-das pelo jovem Schopenhauer em1812 devem ter deixado algumasmarcas em seu pensamento filosoacute-fico se bem que em suas anota-ccedilotildees a esta obra de Schelling o jo-vem Schopenhauer se mostre bas-tante criacutetico segundo ele emboranela hajam ldquoaqui e alirdquo algumas

observaccedilotildees verdadeiras Schel-ling ao querer adaptar a essecircn-cia atemporal do homem agraves con-diccedilotildees de sua apariccedilatildeo fenome-nal no tempo acaba produzindoldquoabsurdidades monstruosasrdquo ede um modo geral estas Investi-gaccedilotildees de Schelling seriam apenasuma re-elaboraccedilatildeo (para natildeo dizerplaacutegio) daquilo que em JBoumlhmecorrespondia a uma intuiccedilatildeo vivae direta da verdade (MR2 p 353-354)

Em sua primeira publicaccedilatildeo AQuaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente de 1813 o jovemSchopenhauer procurando atri-buir agrave relaccedilatildeo motivo-accedilatildeo ou agraveLei da Motivaccedilatildeo a mesma neces-sidade que vigora nas outras trecircsfiguras do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente recorre numa seccedilatildeo in-teiramente excluiacuteda das ediccedilotildeesposteriores desta obra agrave doutrinakantiana do caraacuteter ldquointeligiacutevelrdquoenquanto contraposto ao caraacute-ter ldquoempiacutericordquo e a este respeitoele natildeo economiza elogios a Kante a Schelling ndash Kant teria dadouma explicaccedilatildeo desta distinccedilatildeoassim como da relaccedilatildeo da liber-dade para com a natureza quediz o jovem Schopenhauer eacute umadas mais admiraacuteveis peccedilas da sa-bedoria de que eacute capaz o espiacute-rito humano ao passo que Schel-ling teria dado desta explicaccedilatildeokantiana uma ldquoapresentaccedilatildeo alta-mente esclarecedorardquo em suas In-

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vestigaccedilotildees sobre a Liberdade (RAI-ZES p 119-120) De fato o leitorde Schopenhauer ao deparar-secom estas paacuteginas (SCHELLING-LIBERDADE p 49 ss10 ss)das Investigaccedilotildees em que Schellingfaz a apresentaccedilatildeo da doutrina deKant (eacute bem verdade que comonota asperamente o jovem Scho-penhauer Schelling natildeo menci-ona o nome de Kant) a respeito docaraacuteter ldquointeligiacutevelrdquo e da coexis-tecircncia da liberdade com a neces-sidade natural natildeo poderaacute deixarde reconhecer o quanto as expo-siccedilotildees acerca dos mesmos temaspor parte de Schopenhauer (porexemplo na seccedilatildeo 55 de O Mundocomo Vontade e Representaccedilatildeo as-sim como em seus ensaios Sobre aLiberdade da Vontade e Sobre o Fun-damento da Moral15) devem a ela eo quanto os elogios mencionadosacima a Kant e a Schelling fei-tos pelo jovem Schopenhauer emsua tese doutoral eram realmentejustificados e sinceros A uacutenicacoisa que em toda esta apresenta-ccedilatildeo eacute rejeitado por Schopenhauereacute que ela seja realmente de Schel-ling isto eacute ele incessantementeacusa Schelling de estar querendopassar como de sua autoria umadoutrina que de fato eacute de KantMas dado que a respeito desta

doutrina Schopenhauer natildeo rei-vindica nenhuma originalidadedado que ele confessadamentea aceita integralmente se natildeo deSchelling ao menos de Kant natildeoprecisamos nos deter em sua anaacute-lise Mesmo porque parece-nos eacuteem conexatildeo com a leitura de outraobra de Schelling as Ideias parauma Filosofia da Natureza que seencontra a principal contribuiccedilatildeodeste ao desenvolvimento do pen-samento filosoacutefico do jovem Scho-penhauer

As ideias para uma filosofia danatureza de Schelling

Tal como nos informa Cartwrighto jovem Schopenhauer antesainda de frequentar seu primeirocurso de filosofia o curso deSchulze em 1810 retirou na bi-blioteca da Universidade de Goumlt-tingen aleacutem do A Alma do Mundotambeacutem as Ideias para uma Filo-sofia da Natureza16 de Schelling(CARTWRIGHT p 147 n 21)Jaacute nos referimos ao modo comocomentando o ldquoadendordquo agrave Intro-duccedilatildeo a esta obra que trata daldquoExposiccedilatildeo da Ideia Universal daFilosofia em geralrdquo (SCHELLING-NATUREZA p65-88) o jovem

15 SCHOPENHAUER A The Two Fundamental Problems of Ethics Cartwrigh D e Erdmann E(trad) OxfordOxford UnivPress 2010 p 73 ss 183 ss

16 SCHELLING FWJ Ideen zu einer Philosophie der Natur (2ordf ed) Landshut PKruumlll 1803(SCHELLING-NATUREZA)

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Schopenhauer entrevecirc como pordetraacutes desta exposiccedilatildeo a intui-ccedilatildeo de sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoa intuiccedilatildeo de noacutes mesmos comonum estado em que o tempo ea distinccedilatildeo entre sujeito e objetodeixam de importar Mas tal es-tado dizia laacute Schopenhauer natildeotem nada de anaacutelogo agrave consciecircn-cia empiacuterica e atual e estaacute paraaleacutem de toda apreensatildeo possiacute-vel atraveacutes de conceitos do En-tendimento E conforme vimoso que o jovem Schopenhauer re-cusa de Schelling eacute a tentativade colocar esta ldquoindiferenccedilardquo en-tre sujeito e objeto como funda-mento da consciecircncia empiacutericaeacute a tentativa segundo Schope-naheur levada a efeito por Schel-ling neste ldquoadendordquo de mostrarcomo este Uno em primeiro lugarpassa perpetuamente como o infi-nito no finito e em segundo lu-gar ao mesmo tempo volta comoo finito no infinito e por uacuteltimoe em terceiro lugar manteacutem-seeternamente numa identidade eunidade absoluta consigo mesmoIsto tudo conclui o jovem Scho-penhauer natildeo passa de uma pa-roacutedia da ldquosantiacutessima trindaderdquo(1-Deus-filho 2-Espiacuterito Santo3-Deus-pai) cuja necessidade natildeopode ser demonstrada e que eacute ob-tida mediante a aboliccedilatildeo do prin-ciacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (MR2 p360-361)

Apesar desta rejeiccedilatildeo do pro-

cedimento baacutesico da filosofia deSchelling e da tentativa de ateacutemesmo ridicularizaacute-lo haacute no en-tanto nesta obra de Schelling umcapiacutetulo que parece-nos deve tervivamente impressionado o jovemSchopenhauer ndash trata-se do capiacute-tulo IV intitulado ldquoPrimeira ori-gem do conceito de mateacuteria a par-tir da natureza da intuiccedilatildeo e doespiacuterito humanordquo Nele Schel-ling comeccedila dizendo que o fra-casso na tentativa de explicar aforccedila de atraccedilatildeo (Anziehung) atra-veacutes de causas fiacutesicas leva agrave con-clusatildeo de que o conceito de taisforccedilas natildeo obteacutem sua certificaccedilatildeo(Beglaubigung) no interior destasproacuteprias ciecircncias fiacutesicas mas simnuma ciecircncia ldquomais altardquo ndash estasciecircncias fiacutesicas precisam assimconfessar que se apoiam em prin-ciacutepios que lhe satildeo fornecidos poroutra ciecircncia E no entanto a im-pressatildeo de que as forccedilas de atra-ccedilatildeo e repulsatildeo pertencem agrave essecircn-cia (Wesen) da mateacuteria jaacute deveriadiz Schelling ter feito com queos investigadores da natureza seperguntassem sobre a origem doconceito de mateacuteria ndash pois ldquoas for-ccedilas (Kraumlfte) natildeo satildeo algo que acon-teccedila de ser apresentaacutevel (darstell-bar) na intuiccedilatildeordquo (SCHELLING-NATUREZA p 299-300) Mas aconfianccedila nos conceitos de atraccedilatildeoe repulsatildeo eacute tal que eles precisamser senatildeo objetos (Gegenstaumlnde)da intuiccedilatildeo ao menos condiccedilotildees

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de possibilidade de todo conhe-cimento objetivo Trata-se por-tanto diz Schelling de uma dis-cussatildeo transcendental do conceitode mateacuteria em geral que co-meccedila por perguntar ldquode ondevem o conceito de forccedila atrativae repulsivardquo

Dos raciociacutenios (Schluumls-sen) responder-se-aacute tal-vez e com isto se acreditater posto fim agrave questatildeo Oconceito de forccedila eu devoeacute claro aos raciociacuteniosque fiz Soacute que conceitossatildeo meras sombras projeta-das (Schattenrisse) da reali-dade Eles compotildeem umafaculdade uacutetil o Entendi-mento que soacute entra em cenaquando a realidade jaacute estaacuteaiacute e que soacute compreendeagarraconceitua (be-greift) e fixa aquilo que soacuteuma (outra) faculdade cri-adora pocircde produzir emseu lugar(SCHELLING-NATUREZA p 301 - itaacute-licos nossos)

Ora Schelling parece aqui carac-terizar os conceitos de uma ma-neira muito semelhante agravequela aser posteriormente adotada porSchopenhauer ndash os conceitos proacute-prios a uma faculdade uacutetil satildeosombras projetadas a partir de

uma realidade apreendida ouproduzida em outra instacircncia ndashdaiacute Schelling dizer a seguir queos homens cuja forccedila do espiacuteritoeacute toda voltada agrave faculdade de fa-zer conceitos e de analisar concei-tos natildeo conhecem nenhuma rea-lidade (Realitaumlt) de modo que aproacutepria pergunta a respeito destalhes parece sem-sentido E quemnatildeo conhece o real (Reales) emsi e fora de si quem apenas viveem e joga com conceitos aquelescuja existecircncia proacutepria eacute apenasum pensamento embaccedilado (mat-ter Gedanke) estes diz Schellingsatildeo como cegos que pretendemfalar das cores toda a realidadecomportada pelos meros conceitoslhes adveacutem da intuiccedilatildeo (Anschau-ung) Se o todo de nosso saber re-pousasse continua Schelling emconceitos entatildeo nunca poderiacutea-mos nos convencer a respeito dealguma realidade ndash mas afirma-mos a mateacuteria como existindo re-almente fora de noacutes e como com-portando as forccedilas de atraccedilatildeo e re-pulsatildeo

Ela (a mateacuteria) natildeo ape-nas existe para noacutes real-mente como tambeacutem eacuteimediatamente dada sema mediaccedilatildeo de conceitossem nenhuma consciecircn-cia de nossa liberdade Enada de outro nos chegaimediatamente a natildeo ser

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atraveacutes da intuiccedilatildeo e porisso a intuiccedilatildeo eacute o que haacutede mais alto em nosso co-nhecimento(SCHELLING-NATUREZA p 303 - itaacute-licos nossos)

Eacute na intuiccedilatildeo diz Schelling quedeve ser encontrado o funda-mento pelo qual aquelas forccedilaspertencem agrave mateacuteria ou dito deoutro modo o fundamento peloqual o objeto da intuiccedilatildeo externase apresenta como o produto des-tas forccedilas que passam assim aser entendidas como condiccedilotildeesde possibilidade desta intuiccedilatildeoexterna e explica a necessidadecom a qual as pensamos Maspergunta Schelling o que eacute a in-tuiccedilatildeo Diz-se que a intuiccedilatildeosegue-se a uma impressatildeo (Ein-druck) externa mas continuaSchelling seria melhor perguntarcomo eacute possiacutevel haver uma im-pressatildeo sobre noacutes Mesmo a massa(Masse) morta natildeo pode ser atu-ada (bewirkt) sem que ela atue devolta (zuruumlckewirke) Mas em noacutesnada atua sem que essa atuaccedilatildeoou efeito chegue agrave consciecircncia demodo que esta impressatildeo natildeo ape-nas incide sobre uma atividadeoriginaacuteria em noacutes mas esta ativi-dade mesma precisa permanecerlivre para elevar esta impressatildeo agraveconsciecircncia Daiacute diz Schelling

Haacute filoacutesofos que acredi-

tam ter esgotado a es-secircncia (o fundo) do ser-homem quando remon-tam tudo em noacutes ao pen-sar (Denken) e ao repre-sentar (Vorstellen) Soacuteque natildeo se compreendecomo um tal ser que ori-ginalmente eacute apenas pen-sante e representante po-deria ter uma realidadefora de si Para um talser o todo do mundo real(que ainda existe ape-nas em suas representa-ccedilotildees) seria um mero pen-samento Que algo existae que exista independen-temente de mim isto eusoacute posso saber na medidaem que eu simplesmentesinto necessaacuterio me repre-sentar este algo e eu natildeopoderia sentir esta neces-sidade sem ao mesmotempo sentir que sou ori-ginariamente livre em re-laccedilatildeo a todo represen-tar e que o representarnatildeo constitui o meu Ser ouessecircncia (Wesen) mesmamas sim e ao contraacute-rio eacute apenas uma modi-ficaccedilatildeo (Modifikation) demeu Ser (SCHELLING-NATUREZA p 304-305 -Itaacutelicos nossos)

Apenas uma atividade livre

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em mim enquanto contrapostaagravequilo que livremente sobre mimatua comporta diz Schelling apropriedade da efetividade ndash eacute soacutena ldquoforccedila originaacuteria de meu Eurdquoque irrompe a ldquoforccedila do mundoexternordquo Mas por outro lado etal como a luz soacute se torna cor noscorpos sobre os quais incide ape-nas nos objetos esta forccedila originaacute-ria em mim se torna um pensarum representar auto-conscienteAssim a consciecircncia e a crenccedilanum mundo externo se datildeo con-juntamente com a consciecircncia ecrenccedila em mim mesmo e vice-versa e juntas constituem o ele-mento do todo de nossa vida eatividade Haacute homens continuaSchelling que acreditam que noscertificamos a respeito da reali-dade apenas atraveacutes de uma pas-sividade absoluta mas de fato ecomo mostra a experiecircncia nosmomentos mais altos da intui-ccedilatildeo o conhecer e o usufruir (Ge-nusses) a atividade e a passivi-dade ou sofrimento (Leiden) es-tatildeo numa completa atuaccedilatildeo reciacute-proca de modo que que eu so-fra isto eu soacute sei na medida emque sou ativo e que eu seja ativoisto soacute sei na medida em que sofroQuanto mais ativo o espiacuterito dizSchelling mais alta a sua sensibi-lidade (Sinn) e vice-versa quantomais embotada estaacute a sensibili-dade mais rebaixado se encontrao espiacuterito Aquilo que eacute intuiacutedo

como outro eacute outro e o que eacute ou-tro eacute intuiacutedo como outro Daiacutecontinua Schelling

Todo o pensar e represen-tar em noacutes eacute necessaria-mente precedido por umaatividade originaacuteria quepor anteceder todo o pen-samento eacute nesta medidasimplesmente indetermi-nada e ilimitada Apenasapoacutes algo ser-lhe contra-posto torna-se ela umaatividade limitada e porisso determinada (pensaacute-vel) Fosse esta atividadede nosso espiacuterito original-mente limitada (tal como aimaginam os filoacutesofos queremontam tudo ao pen-sar e representar) entatildeoo espiacuterito nunca poderiasentir-se limitado Ele soacutesente sua limitaccedilatildeo na me-dida em que ao mesmotempo sente sua originaacute-ria ilimitaccedilatildeoSobre esta atividade ori-ginaacuteria agora atua ()uma (outra) atividade quelhe eacute contraacuteria e queateacute agora eacute igualmentecompletamente indeter-minada de modo que te-mos duas atividades quese contrapotildeem mutuamentecomo condiccedilotildees necessaacuteriasda possibilidade de uma

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intuiccedilatildeo De onde pro-veacutem esta atividade con-traacuteria (SCHELLING-NATUREZA p 306-307- itaacutelicos de Schelling)

Agora vemos em que sentido opensar e representar natildeo cons-titui conforme dizia Schellingacima a essecircncia do ser-homemndash pois todo representar eacute um re-presentar determinado e limitadodeterminaccedilatildeo e limitaccedilatildeo quedado o lema espinosista de queldquotoda determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquosoacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do e emoposiccedilatildeo ao indeterminado e ili-mitado Mas a seguir e respon-dendo agrave uacuteltima questatildeo Schellingdiz que este eacute um problema queprecisamos indefinidamente ten-tar resolver mas que nunca re-solvemos de fato de modo queo todo de nosso conhecimento eacuteapenas uma contiacutenua aproxima-ccedilatildeo deste ldquoxrdquo ao que o jovemSchopenhauer observa que apenaso conhecimento filosoacutefico consistenesta aproximaccedilatildeo e que ldquoNesteensaio haacute em geral muita coisa boae verdadeira Mas tudo isto natildeopoderia ser reduzido agrave afirmaccedilatildeode que nossa consciecircncia neces-sariamente se divide em objeto esujeitordquo (MR2 p 363) Scho-penhauer nesta ocasiatildeo parecenatildeo se dar conta de que Schellingestaacute justamente procurando expli-car como eacute que sujeito e objeto se

encontram um com o outro no co-nhecer e na intuiccedilatildeo ou entatildeo eleestaacute rejeitando que tal coisa possaser explicada ndash eacute assim que emconexatildeo com o Sistema do Idea-lismo Transcendental e a respeitoda afirmaccedilatildeo inicial de Schellingno sentido de que no conhecero subjetivo e o objetivo precisamldquoconcordarrdquo (Uumlbereinstimmung)um com o outro (SCHELLING-SISTEMA p 09) Schopenhauerdiz que tais expressotildees satildeo sem-sentido pois ldquoum objetivo quenatildeo concorde com um subjetivordquoeacute algo tatildeo impossiacutevel quanto umciacuterculo triangular (MR2 p 378)Mas continuando com Schellingeste diz que

Como uma primeira ten-tativa de definir este ldquoxrdquoo conceito de forccedila (Kraft)logo se apresenta Jaacute os ob-jetos mesmos soacute podem serconsiderados como produtosde forccedilas e com isso desa-parece automaticamente aquimera (Hirnegespinst)da coisa-em-si que era su-posta ser a causa de nos-sas representaccedilotildees Emgeral aquilo que eacute capazde atuar sobre o espiacuterito(precisa atuar) como estemesmo (espiacuterito) atua outer uma natureza aparen-tada agrave (natureza) dele Eacutenecessaacuterio portanto re-

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presentar a natureza comoum produto de forccedilaspois apenas a forccedila eacute aquiloque haacute de natildeo-sensiacutevel(Nichtsinnliche) nos obje-tos e apenas aquilo que eacuteanaacutelogo ao espiacuterito podeeste espiacuterito contrapor asi mesmo(SCHELLING-NATUREZA p 308 - itaacute-licos nossos)

Ora aqui Schelling fala do ob-jeto da intuiccedilatildeo empiacuterica da ma-teacuteria como o produto de forccedilasque para constituiacuterem aquele ldquoxrdquopara constituiacuterem aquela ativi-dade que se contrapotildee agrave ativi-dade originaacuteria ilimitada e inde-terminada do espiacuterito precisamser ldquoaparentadasrdquo a este espiacuteritoprecisam dado que elas atuam so-bre o espiacuterito ser elas mesmasforccedilas ldquodo espiacuteritordquo Eacute apenasdevido agravequilo que no objeto haacutede menos sensiacutevel de mais es-piritual que este objeto ldquoatuardquosobre o espiacuterito Com isto dizSchelling desaparece o famosoproblema17 acerca da coisa-em-sikantiana como causa da ldquomateacuteriardquo(enquanto contraposta agrave forma)do fenocircmeno ndash jaacute natildeo seraacute precisosupor que algo essencialmente di-

ferente do espiacuterito atue sobre eleDeste modo a intuiccedilatildeo do objetoeacute resultante da contraposiccedilatildeo en-tre a ldquoforccedila do Espiacuteritordquo e a forccedilaldquofiacutesicardquo que ultimamente eacute apa-rentada agrave forccedila do Espiacuterito E nointerior do proacuteprio espiacuterito o quehaacute de mais aparentado agrave forccedila doque a Vontade

Mas eacute curioso que a respeitodestes desenvolvimentos da refle-xatildeo schellinguiana o jovem Scho-penhauer inicialmente a recuserecusa que no entanto inequivo-camente prenuncia a descobertade sua filosofia - eacute assim que eleanota agrave margem da passagem deSchelling acima

Se ao inveacutes de coisas-em-si mesmas tivermos forccedilas-em-si mesmas isto natildeo nosajudaraacute a avanccedilar ndash Aforccedila eacute tatildeo pouco o supra-sensiacutevel que antes ela eacuteapenas um conceito abs-trato retirado do sensiacute-vel e que eacute apenas figura-damente transferido parao supra-sensiacutevel que deveser (MR2 p 364 - itaacutelicosde Schopenhauer)

O jovem Schopenhauer recusanesta ocasiatildeo a sugestatildeo de Schel-

17 A possiacutevel aplicaccedilatildeo transcendente por parte de Kant da categoria da causalidade na concepccedilatildeo da coisa-em-si como causa da mateacuteria sensiacutevel dos fenocircmenos foi objeto de inuacutemeras criacuteticas por parte de Jacobi Schulze e doproacuteprio Schopenhauer quando jovem (MR1 p61 104 MR2 p 270 290-294) Pode-se dizer que esta ldquopolecircmicaacerca da coisa-em-sirdquo esteve na origem tanto do Idealismo alematildeo como da proacutepria filosofia de Schopenhauer

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ling jaacute que para ele as ldquoforccedilasrdquonada mais satildeo do que marcasou sinais que fazemos para de-notar regularidades observadasentre fenocircmenos ndash eacute assim quenuma anotaccedilatildeo anterior a estao jovem Schopenhauer recusa asugestatildeo de Schelling no sen-tido de que a origem do con-ceito de forccedila estaacute ldquopara aleacutem detoda a consciecircncia como a condi-ccedilatildeo de sua possibilidaderdquo e ex-plica o fato deste conceito ldquonatildeoser apresentaacutevel em nenhumaintuiccedilatildeordquo como dizia Schellingacima como significando ape-nas que seu objeto eacute apenas su-posto em favor do avanccedilo doconhecimento das cadeias cau-sais como uma marca que fa-zemos na esperanccedila de desfazecirc-la e de empurraacute-la sempre umpouco mais para adiante (MR2p 363) Desta forma e como ateacuteentatildeo vinha incansavelmente cri-ticando no procedimento da filo-sofia de Schelling o jovem Scho-penhauer estaacute aqui afirmando queo conceito de ldquoforccedilardquo tal como oconceito de ldquocoisardquo eacute inexoravel-mente ligado agrave consciecircncia em-piacuterica e sensiacutevel de modo quetransferi-lo de maneira literal enatildeo-metafoacuterica ao supra-sensiacutevelagrave sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo eacute umprocedimento transcendente queviola as interdiccedilotildees kantianas

Poreacutem e conforme mostramseus manuscritos posteriores

(1814-1818) a esta fase que es-tamos considerando (1811-1813)manuscritos onde o jovem Scho-penhauer procede a uma re-avaliaccedilatildeo do status metafiacutesico dasldquoforccedilasrdquo empregadas pela ciecircnciaeacute plausiacutevel supor que estas suges-totildees de Schelling tenham contri-buiacutedo decisivamente para a suadescoberta de que a Vontade apa-rentada agrave ldquoForccedilardquo seja aquilo emrelaccedilatildeo ao qual os objetos da in-tuiccedilatildeo empiacuterica sejam objetivaccedilotildeesVimos anteriormente Schope-nhauer recusar vigorosamente asugestatildeo de Schelling no sentidode que o sujeito ele proacuteprio po-deria tornar-se objeto ou de quepudesse haver um ldquotornar-se ob-jeto do subjetivordquo ndash e agora ve-mos Schelling sugerir que o quese torna objeto nestas objetiva-ccedilotildees natildeo eacute o sujeito mas sim umaldquoforccedila do espiacuteritordquo forccedila queneste sujeito soacute pode ser a Von-tade

Numa nota acrescentada em1849 a um de seus manuscritosde 1814 o maduro Schopenhauerafirma que estas ldquofolhas escritasem Dresden nos anos 1814-1818mostram o processo fermentativode meu pensamento a partir doqual naquela ocasiatildeo o todo deminha filosofia emergiurdquo (MR1 p122) ndash trata-se da ideia de que ocorpo eacute a objetidade da vontadeou eacute a vontade tornada objeto visiacute-vel ou eacute a apariccedilatildeo fenomecircnica da

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vontade (MR1 p 115 121 130137 146 156) de que entre a von-tade e o corpo natildeo haacute uma relaccedilatildeode causalidade mas sim de iden-tidade (MR1 171) enfim trata-seda ideia que um pouco mais tarde(1817) Schopenhauer designaraacutecomo a ldquopedra angularrdquo de sua fi-losofia (MR1 p 490-491) Parece-nos que a sugestatildeo de Schellingno sentido de que ldquojaacute os objetossoacute podem ser considerados comoprodutos de forccedilasrdquo contribuiudecisivamente para a descobertaoriginal de Schopenhauer a res-peito do corpo como produto daVontade

Conclusatildeo

Vimos que desde o iniacutecio de suaelaboraccedilatildeo filosoacutefica (1811-1813)o jovem Schopenhauer ainda im-buiacutedo do como o chama Rappa-port ldquofenomenalismo ceacuteticordquo deseu professor Schulze (RAPPA-PORT p 127) rejeita o prin-cipal do empreendimento filosoacute-fico a que se dedicava Schelling ndashembora compartilhasse com estea mesma intuiccedilatildeo a respeito domundo supra-sensiacutevel chamadopor ele entatildeo de ldquoconsciecircnciamelhorrdquo um estado de consci-ecircncia em que seja o Eu sejao mundo se apresentam comoatemporais e como natildeo compor-tando a distinccedilatildeo sujeito x ob-

jeto e embora compartilhasse comSchelling tambeacutem a constataccedilatildeodecorrente desta intuiccedilatildeo do ca-raacuteter vazio irreal e meramenteaparente da experiecircncia sensiacute-vel e temporal o jovem Schope-nhauer no entanto e ao contraacuteriode Schelling rejeitava que tal in-tuiccedilatildeo supra-sensiacutevel pudesse serposta como fundamento da intui-ccedilatildeo sensiacutevel e empiacuterica rejeitava atentativa transcendental de colo-car a primeira intuiccedilatildeo como con-diccedilatildeo de possibilidade da uacuteltimaE isto porque como incansavel-mente denuncia o jovem Schope-nhauer nestes anos qualquer rela-ccedilatildeo que se queira estabelecer entreestes dois mundos precisaraacute valer-se de relaccedilotildees (temporais causaisfundamento-consequecircncia etc)vaacutelidas apenas para o mundo sen-siacutevel de modo que tais tentativasao aplicar sobre o mundo supra-sensiacutevel sobre a sua ldquoconsciecircnciamelhorrdquo relaccedilotildees e categorias re-tiradas do mundo sensiacutevel estaraacutefazendo um uso transcendentedestas categorias uso este jaacute de-monstrado por Kant como equi-vocado e impossiacutevel

Para aleacutem desta discordacircnciafundamental de Schopenhauerpara com a pretensatildeo fundacio-nista da filosofia de Schelling oque procuramos descortinar fo-ram temas presentes na obra deSchelling estudadas pelo jovemSchopenhauer que pudessem ter

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contribuiacutedo para o desenvolvi-mento filosoacutefico deste uacuteltimo Arespeito da obra de Schelling ondenormalmente se vecirc as maiores an-tecipaccedilotildees da filosofia de Schope-nhauer a respeito das Investiga-ccedilotildees Filosoacuteficas sobre a Essecircncia daLiberdade Humana constatamosque embora Schelling aiacute avanceideias (como a da Vontade comoo Ser primal e da liberdade comoo aspecto positivo da coisa-em-sikantiana assim como sua expo-siccedilatildeo da teoria kantiana do caraacute-ter ldquointeligiacutevelrdquo) que inequivoca-mente deixaram marcas no pensa-mento de Schopenhauer este temno entanto razatildeo quando afirmaque tais ideias satildeo aiacute avanccediladaspor Schelling de maneira hesi-tante e nebulosa como que numestado quase sonambuacutelico

Mas mais do que estas alu-sotildees do ldquonaufragordquo Schelling oque nos pareceu mais importantecomo contribuiccedilatildeo de Schellingao desenvolvimento futuro dopensamento filosoacutefico de Schope-nhauer foram ideias que destaca-mos acima de seu Ideias para umaFilosofia da Natureza ndash nesta o jo-vem Schopenhauer viu Schellingqualificar os conceitos como som-bras projetadas de uma realidadeapreendida ou produzida em ou-tra instacircncia a saber na intuiccedilatildeoEle viu Schelling afirmar que todarealidade comportada por umconceito eacute uma realidade que lhe

eacute emprestada pela intuiccedilatildeo que oreal eacute apreendido por esta intui-ccedilatildeo de forma completamente in-dependente de qualquer conceitoetc chegando mesmo Schellingao final a concluir que ldquo() aintuiccedilatildeo natildeo eacute como muitos pre-tensos filoacutesofos imaginam o maisbaixo estaacutegio mas sim o maisalto (Houmlchste) estaacutegio do espiacuteritohumano eacute aquilo que propria-mente constitui sua espirituali-dade (Geistigkeit)rdquo (SCHELLING-NATUREZA p 312) Mesmo sempoder examinar suficientementea questatildeo aqui ousariacuteamos di-zer que eacute justamente esta valori-zaccedilatildeo da intuiccedilatildeo (e uma conse-quente desvalorizaccedilatildeo do pensa-mento meramente conceitual) oque Schopenhauer considera maisatraente na filosofia de Schellingenquanto contrastada agrave de Fichtee sobretudo de Hegel o que ex-plica talvez aquele caraacuteter maisameno e contido de suas criacuteticasa Schelling enquanto compara-das agraves que ele endereccedila aspera-mente a Fichte e Hegel Se talcomo pretende Welchman o queSchopenhauer rejeita na ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling natildeo eacutea sua transcendecircncia natildeo eacute suapretensatildeo metafiacutesica de acesso agravescoisas-em-si-mesmas mas sim asua dependecircncia do pensamentoconceitual envolvido no ldquofato (mo-ral) da Razatildeordquo proacuteprio a todos osseres racionais puros detentores

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de conceitos cuja realidade supos-tamente prescinde de qualquerapelo agrave intuiccedilatildeo (WELCHMANp 07 ss) entatildeo vemos que di-ante das passagens das Ideias parauma Filosofia da Natureza discu-tidas acima a rejeiccedilatildeo de Scho-penhauer agrave ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquode Schelling deveria ter sido bemmenor do que aparentemente foindash pois aiacute e como vimos Schel-ling explicitamente nega que osconceitos possam comportar qual-quer realidade independente daque lhe eacute fornecida pela intuiccedilatildeoDe qualquer forma ao conectarexplicitamente e como vimos sualdquointuiccedilatildeo intelectualrdquo agrave autono-mia praacutetica dos puros seres raci-onais kantianos Schelling teriaparece dificuldades na acomoda-ccedilatildeo destas ideias avanccediladas nestecapiacutetulo IV de suas Ideias para umaFilosofia da Natureza e merece-ria as criacuteticas de Schopenhauer nosentido de que tal como as diva-gaccedilotildees do naufrago falta-lhe cla-reza e consistecircncia

Mas foi sobretudo a sugestatildeode Schelling avanccedilada acima nosentido de que o objeto materialreal da intuiccedilatildeo empiacuterica soacute atuasobre o espiacuterito (soacute eacute afinal in-tuiacutedo por este espiacuterito) porque elemesmo eacute resultante de ldquoforccedilasrdquoforccedilas que satildeo o que haacute de me-

nos sensiacutevel nestes objetos forccedilasestas ultimamente aparentadas agravesldquoforccedilasrdquo do proacuteprio espiacuterito demodo que os objetos materiais satildeocomo que apariccedilotildees sensiacuteveis de for-ccedilas espirituais natildeo-sensiacuteveis satildeo es-tas sugestotildees o que nos pareceuanunciar diretamente a inovaccedilatildeode Schopenhauer relativamenteaos corpos materiais como objeti-vaccedilotildees da Vontade Vimos o jovemSchopenhauer rejeitar desde suascriacuteticas agrave filosofia da identidadesujeito-objeto de Schelling a su-gestatildeo deste uacuteltimo no sentido deque o sujeito poderia apresentar-se (tambeacutem a si mesmo) comoobjeto ndash para o jovem Schope-nhauer o fato de natildeo haver emsua ldquoconsciecircncia melhorrdquo tal dis-tinccedilatildeo entre sujeito e objeto emnada contribui para o esclareci-mento da distinccedilatildeo sujeito-objetopresente na e de fato idecircntica agraveconsciecircncia empiacuterica Mas estasuacuteltimas passagens do capIV dasIdeias para uma Filosofia da Natu-reza alude agrave possibilidade de senatildeo o sujeito ao menos algo pre-sente neste sujeito ou neste espiacute-rito eacute que se torna objeto ndash e estalsquoforccedila do Espiacuteritordquo cuja apariccedilatildeovisiacutevel produz o objeto da intui-ccedilatildeo empiacuterica que eacute entatildeo objetiva-ccedilatildeo desta forccedila natildeo pode ser outrasenatildeo a Vontade

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Recebido 25052019Aprovado 16072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224797

De Dicto and De Re A Brandomian Experiment onKierkegaard

[De Dicto e De Re um Experimento Brandomiano sobre Kierkegaard]

Gabriel Ferreira da Silva

Abstract The recent historical turn within the analytic traditionhas experienced growing enthusiasm concerning the procedure ofrational reconstruction whose validity or importance despite itsparadigmatic examples in Frege and Russell has not always enjoyeda consensus Among the analytic philosophers who are the fron-trunners of such a movement Robert Brandom is one of a kind hiswork on Hegel as well as on German Idealism has been increasinginterest in as well as awareness of Hegelrsquos contributions to somecurrent problems in that tradition Thus this work aims to showBrandomrsquos methodology of rational reconstruction based on thedistinction between de dicto and de re inferences Afterwards I turnto Kierkegaard in order to make explicit some of his ontologicalcommitments by applying Brandomrsquos approach as a valuable tool fordoing history of philosophyKeywords Kierkegaard Brandom Rational Reconstruction Onto-logy Metaphilosophy

Resumo A recente virada histoacuterica no interior da filosofia analiacuteticatem contribuiacutedo para o crescimento no interesse acerca do procedi-mento da reconstruccedilatildeo racional cuja validade ou importacircncia a des-peito de ter exemplos paradigmaacuteticos em Frege e Russell natildeo foi sem-pre um consenso Entre os filoacutesofos analiacuteticos pioneiros nesse movi-mento Robert Brandom merece especial destaque seu trabalho sobreHegel e o Idealismo Alematildeo tem despertado a atenccedilatildeo tanto sobre aexegese do filoacutesofo de Jena quanto acerca de suas possiacuteveis contribui-ccedilotildees para problemas atuais Assim este trabalho tem como objetivoexpor o meacutetodo de Brandom baseado na distinccedilatildeo entre inferecircnciasde dicto e de re Num segundo momento faccedilo um exerciacutecio de aplica-ccedilatildeo de tal meacutetodo a Kierkegaard explicitando seus comprometimen-tos ontoloacutegicos evidenciando tal abordagem como uma valiosa ferra-menta para a histoacuteria da filosofiaPalavras-chave Kierkegaard Brandom Reconstruccedilatildeo Racional On-tologia Metafilosofia

Professor do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)ORCID httpsorcidorg0000-0003-2255-5173 E-mail gabrielferreiraunisinosbr

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1 - Introduction

Analytic philosophy had a self-image as a trend or philosophi-cal perspective that was not onlynon-historic but even opposed toany interference of a historical ap-proach to philosophy (see BEA-NEY 2016 RECK 2013) Howe-ver such a view has been chal-lenged in different ways amongthem I would like to point twothat are especially relevant formy purposes here Firstly as itis now widely acknowledged thequarrel between Dummett andSluga on the influences of previ-ous philosophers ndashmainly Lotzendashon Frege as well as Soamesrsquos bookand the debates after it revea-led new facets of the then stan-dard narratives about analyticphilosophers As Beaney (2016)points out even the view aboutsome of the archetypical figuresof the anti-historical approachlike Frege himself but also Rus-sell and Wittgenstein have chan-ged since then The second aspectwhere we can see the ldquohistoricalturnrdquo in analytic philosophy is notrelated to what we could call a his-torical sensibility when it comesto interpretation of now canonicalanalytic philosophers like Fregeor Russellmdashwhich is a historicalenterprise in itselfmdashbut in thereassessment of possible contri-butions to current philosophical

problems by philosophers fromthe past Starting with differentmodes of engagement with Kan-tian philosophy by analytic philo-sophers like Sellars Strawson andRawls but also with DescartesLeibniz Hume and even ancientphilosophy analytic philosophershave been increasing the placeand importance for dialogue withthe history of philosophy It is inthis scenario that the ldquoPittsburghSchoolrdquo led by Robert Brandomand John McDowell moves intowhat Paul Redding calls ldquoAnalyticNeo-Hegelianismrdquo (2011) Bran-dom himself presents some as-pects of his philosophical contri-butions in terms of an approxi-mation to Hegel In fact quo-ting Richard Rorty Brandom saysthat his work as well as Mc-Dowellrsquos helps to push analy-tic philosophy from its Kantianphase into its unavoidable Hege-lian phase (BRANDOM 2011)

From a historical point of viewsuch a move is quite interestingif we consider that a major partof contemporary philosophy rai-sed upon the explicit and deli-berate rejection of Hegelrsquos philo-sophy and his epigones Almostevery aspect of the philosophy ofthe second half of 19th centuryand beginning of 20th was direc-tly or indirectly influenced by therefusal of Absolute Idealism andits consequences not only for logic

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and natural sciences but also forhistory sociology and culture Yetdespite the specific importance ofthat revival of philosophers fromthe past what is particularly no-teworthy is the progressive ack-nowledgement of the procedureof rational reconstruction as a va-lid justified and profitable way ofdoing philosophy even inside theanalytic tradition

Following Beaneyrsquos definitionldquoA rational reconstruction of a(purported) body of knowledgeor conceptual scheme or set ofevents is a redescription and reor-ganization of that body or schemeor set that exhibits the logical(or rational) relations betweenits elementsrdquo (BEANEY 2013 p253)1 In modern philosophy itsroots can be broadly found inNeo-Kantianism and in logicismwhich is itself another interestingsign of proximity between the twophilosophical trends in the 19th

century On the one hand thedistinction between quid juris andquid facti is crucial to Kant andhis followers Such a differenti-ation was reworked and presen-ted under various other termslike Lotzersquos distinction betweengenesis (Genese) and validity (Gel-tung) or Windelbandrsquos distincti-

ons between the genetic and thecritical method or the differenti-ation between discovery and jus-tification All of them are con-ditions of possibility of a ldquoredes-criptionrdquo or ldquoreorganizationrdquo of agiven body or set of claims aimingto make explicit its sometimes-hidden internal logic On theother hand the logicist projectwhich assumes the idea that oneset of elements can be reconcei-ved in terms of another (numbersin terms of extensions of conceptsfor example) is also a type of ratio-nal reconstruction2 Carnaprsquos Auf-bau is another Frege himself isabsolutely committed to the prin-ciple exposed in the Grundlagenthat ldquoThere must be a sharp sepa-ration of the psychological fromthe logical the subjective from theobjectiverdquo (FREGE 1997 p 90)

However because rational re-construction is a philosophicalprocedure that focuses on the in-dependence and precedence ofthe logical validity and structureover the psychological dimensionof a set of claims it is totally justi-fied when it comes to taking sucha set or body of claims like theset of claims of a third personor even a philosopher from thepast In fact once again even

1The general reconstruction presented in the next paragraphs are drawn from BEANEY 20132 Like Beaney points out despite Frege uses the term ldquoreductionrdquo it is a sort of rational reconstruction (2013

p 235)

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inside the analytic tradition wehave examples of such exercises inRussellrsquos book on Leibniz (A Cri-tical Exposition of the Philosophyof Leibniz 2005) and Dummettrsquoswork on Frege (Frege Philosophyof Language 1973) not to mentionStrawsonrsquos on Kant In Russellrsquosown words in the scope of ratio-nal reconstruction

We may even learn by ob-serving the contradictionsand inconsistencies fromwhich no system hithertopropounded is free whatare the fundamental ob-jections to the type inquestion and how theseobjections are to be avoi-ded But in such inqui-ries the philosopher is nolonger explained psycho-logically he is examinedas the advocate of what heholds to be a body of phi-losophic truth By whatprocess of developmenthe came to this opinionthough in itself an impor-tant and interesting ques-tion is logically irrelevantto the inquiry how farthe opinion itself is cor-rect and among his opi-nions when these havebeen ascertained it be-comes desirable to pruneaway such as seem incon-

sistent with his main doc-trines before those doctri-nes themselves are subjec-ted to a critical scrutiny(RUSSELL 2005 xx)

We arrive here at a very inte-resting metaphilosophical pointIn reconstructing an authorrsquosthought we are not simply ex-tracting ideas from the text butdoing at least two creative proces-ses Firstly when we talk aboutldquoreconstructionrdquo we should re-ally mean it The interpreter-reconstructor is not only unders-tanding theses or ideas from apreviously given set of claimsbut is actively suggesting a dif-ferent composition or structurefor that set of claims that couldbe eventually for the sake of anargument for instance even bet-ter than the original made by theauthor himself Of course suchmeaning of reconstruction pre-supposes the possibility of deta-chment of the rationale from theoriginal form and frame But suchpresupposition is the very basisof rational reconstruction and isusually not so hard to defend suf-fice it to say that the same pre-supposition is being held when itcomes to the translation of a sta-tement or argument to a symboliclanguage

The second and for my purpo-ses here the most important crea-

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tive aspect of rational reconstruc-tion is the procedure of ascrip-tion In a rational reconstructionthe interpreter is not being me-rely prompted by a given work(cf BEANEY 2013 p 253) but isactively ascribing inferential pro-positions to an author And herewe are at the very tensional pointregarding an approach that wantsto be both historically informedand coherent and philosophicallyrelevant Like Beaney says ldquoa ra-tional reconstruction is better themore it is historically informedand vice versa so that ideal workin history of philosophy combinesbothrdquo (BEANEY 1996 p 3)3

Of course that is a regula-tive ideal which presents manyobstacles and can be reachedonly to varying degrees We canhave a glimpse of such difficul-ties in Daniel Garberrsquos exampleof reading Descartesrsquo Meditations(2005) Everybody knows thatits metaphysics is supposed to bethe ground of a broader projectfor Descartesrsquo system of sciencesThus it should be read togetherwith his other works having inmind his analogy of a tree and itsbranches But like Garber sayswhy stop here To fully unders-

tand his project it is important toknow that it was designed againstthe Aristotelian model taught atLa Flegraveche which takes us to otherproponents of similar candida-tes ndash like Gassendi and Galileoas well as to Aristotle himself inorder to understand and evalu-ate how Descartesrsquo thoughts aregood against their self-imposedaim But once again why stophere Garber reminds us that Des-cartes project was also designedagainst the whole social theolo-gical and university system ba-sed on authority and it is reallyhelpful to know its elements andstructures Well why then stophere It would be really usefulto know about the Church de-pendence on some views basedon an Aristotelian metaphysicsGarberrsquos example can be puzz-ling because it is very justifiableand actually it is justified for meeven though as Garber says ldquoIcan see certain readers becomingmore and more impatient whereis the philosophical interest in allof thisrdquo (GARBER 2005 p 138)

I certainly donrsquot intend to pre-sent any final solution to such aproblem However I do thinkthat Brandomrsquos approach to his-

3Thus I can see no reason for identifying Rational Reconstruction and Appropriationism as Mercer (2019 p30) does Of course a deeper engagement with her thesis would demand another paper but I think it is a defen-sible position to say that GTRC principle can include what (logically) follows from a statement in other words tounderstand what a philosopher is saying can include its inferential consistence even though such inferences werenot fully explicit

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tory of philosophy can be seen as agood tool to deal with it To someextent it is what Brandom doeswhen he turns to Kant Frege Hei-degger and mainly Hegel Butmore than that Brandomrsquos wayof dealing with philosophers fromthe past is also a device to expandour understanding of them

2 - History of Philosophy DeDicto and De Re

In order to fully understand Bran-domacutes approach we need to ex-plore a bit of its backgroundwhich is rooted on a concept of ra-tionality which at the same timeprovides the foundations for hisinferentialism In the Introduc-tion of TMD Brandom presentsfive models of rationality (logicalinstrumental translational infe-rential and historical) The dis-tinctive mark of the first two isthat they see rationality ldquoas beinga matter of the structure of re-asoning rather than its contentrdquo(TMD 4) Instead the last th-ree understand being rational asa matter of what makes a proposi-tion interpretable or playing a rolein a material inference For Bran-domacutes purpose -and mine- the in-ferential model not only explains

how reason works but provides atool to evaluate philosophical po-sitions and commitments

It is important to see that it isnot necessary that one commitshimself to Brandomacutes inferentia-lism from cover to cover Consi-dered in itself inferentialism isa view about what language isand how it works i e throughthe process of making inferencesrather than representations (as arepresentationalist would argue)However it is fundamental to seethe importance of making mate-rial inferences and what it meansconcerning philosophical commit-ments For the inferential modelldquoto be rational is to be a producerand consumer of reasons thingsthat can play the role of both pre-mises and conclusions of inferen-ces So long as one can assert andinfer one is rationalrdquo (TMD 6) Itmeans that to be rational meansto be able to articulate conceptualcontents in material rather thanlogical inferences like ldquoIf A is atthe right of B B is at the left ofArdquo4

If we accept such a core infe-rentialist view we can unders-tand how Brandom develops sucha view as a device for rational in-terpretation If rationality is inhe-rently inferential conceptual in-

4As Brandom says the inferential incorporates the logical and the interpretational models since logic does notdefine what rationality is but makes it possible for us to express our commitments and its structure

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terpretation can be seen not onlyas a matter of making more or lessexplicit what is hidden somehowin a concept or a set of conceptsjudgements and arguments butalso as a matter of drawing infe-rences from them In Brandomrsquoswords conceptual interpretationunder an inferential role is ldquotheability to distinguish what followsfrom a claim and what would beevidence for or against it whatone would be committing oneselfto by asserting it and what couldentitle one to such a commitmentrdquo(TMD 95)

Brandom presents then bothin Making it Explicit and in Ta-les of the Mighty Dead two majorways of doing that namely whathe calls de dicto and de re inferen-tial interpretations The distinc-tion traces back to Quine (1956)and his account on propositionalattitudes which is to some extentwhat we are dealing with Undersuch inferentialist point of viewconceptual or textual interpreta-tion is to be seen as ascription ofpropositional attitudes roughlyunderstood as an attitude some-one has towards a proposition5Its structure can be also roughlyunderstood like

S believes (hopesthinks) that

Q Ps

Exs

(a) Gabriel believes that Marioconsiders Brentano a greatphilosopher

(b) Gabriel thinks that Ernestoagrees with Mario about thecontent of the former exam-ple

Where the main parts are verbslike believe hopes thinks and whatliterature usually calls the ldquothatclauserdquo followed by a proposi-tion

In order to interpret conceptualcontent and ascriptions in thisway Brandom reminds us that wemust always appeal to a contextldquofor the inferential significance ofa claim ndashwhat follows from itndash de-pends on what other claims onecan treat as auxiliary hypothesesin extracting those consequencesrdquo(TMD 95) When it comes spe-cifically to such ascriptions rela-ted to making conceptual and in-ferential interpretations of philo-sophical texts which is the goalof Brandomrsquos book one of themain sources for such a set ofauxiliary or collateral hypothesesis provided by other claims thatthe author who is being analyzedacknowledges as expressing his

5See Quine 1956 and Russell 2010 Russell does not like using the term ldquoattituderdquo (p 60) because it points toa psychological trace but the expression ldquopropositional attituderdquo has been used notwithstanding it

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thoughts or simply as true Suchclaims can be extracted from hisother writings historical contextsletters disputes etc as long asthe (interpreter knows that the)author acknowledges them as sta-ting his own claims Hence insuch a way the textual interpre-tation of ascription is a sort of pa-raphrase (see TMD 96) that ta-kes its premises from the authorrsquosacknowledged or acknowledgea-ble universe of claims When itfollows such a way we have whatBrandom calls a de dicto specifi-cation of content or commitmentThus

De dicto =df an inferential con-ceptual interpretation or specifi-cation of a claim through appe-aling only to collateral premisesor auxiliary hypotheses that areco-acknowledged with that claim(TMD 97)

In other words de dicto ascrip-tions want to determine ldquowhatthe author would in fact havesaid in response to various questi-ons of clarification and extensionrdquo(TMD 99) The context is sup-plied by the author himself eitherdirectly (in the text itself or not)or indirectly (via historical con-text connections etc) For ins-tance if ldquoS believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180ordquo we can infer that

ldquoS co-acknowledge6 that the sum ofthe internal angles of every triangleequals two right anglesrdquo

For Brandom de dicto interpre-tation is a very important and de-manding mode of doing intellec-tual history (see TMD 99) In or-der to do so one has to have amastery over what a philosopherwrote said and read as well aswhat he to some extent lived

However the process of makingclearer and more explicit what aphilosophical text says bringingto the surface its hidden assump-tions or pretexts reveals only onephilosophical dimension of it Byinterpreting a text we want to un-derstand

( ) what speakersthink they are committingthemselves to by whatthey say what they insome sense intend to becommitting themselvesto what they would taketo be consequences of theclaims they made But be-sides the question of whatone takes to follow from aclaim one has made thereis the issue of what reallyfollows from it (TMD100)

6(TMD 97)

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Thus beyond the process of ma-king explicit some claims th-rough paraphrase substitutionsand conceptual interpretationsBrandom points out to a diffe-rent perspective or inferential ap-proach whose goal is now ma-king explicit what inferentially re-ally follows from a claim Suchemphasis in the ldquoreally followsrdquoclause is very important here forwhat it means in interpretationalterms It means above all thatinferences derived under suchperspective are independent ofthe authorrsquos acknowledgement orin other words it derives actualcommitments independently ofwhat the author actually ackno-wledges For instance if one be-lieves that the content of this bot-tle is water and that water quen-ches thirst one is committed tothe fact that H2O quenches thirstwhether one realizes or not thechemical formula of water Thatis what Brandom calls de re infe-rence But in order to make suchkind of inferences the interpre-ter also needs an auxiliary set ofclaims However in de re ascripti-ons such a set does not come from

what the analyzed author wouldldquoco-acknowledgerdquo as his own setbut comes from what the interpre-ter takes as being true Gettingback to the former example

(P1) S believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180o

(P2 De Dicto) S believes that thesum of the internal angles of everytriangle equals two right angles

(P3) S is committed to the truthof Euclidacutes proposition I 32(DeRe)

Hence De re =df an inferen-tial conceptual ascription of whatreally follows from the premi-ses even against a different back-ground or starting from a dif-ferent set of auxiliary hypothe-ses that is now supplied by whatthe interpreter rather than theauthor holds to be true Thus ldquoinde re readings by drawing conclu-sions from the text in the contextthe interpreter is actively media-ting between two sets of commit-ments Text-and-context on theone hand and interpreter on theother both have their distinctive

7Brandom points to D Lewis as a precursor of such way of thinking ldquoThis sort of stripping down and buildingback ndash a process whose moto is ldquoreculer pour mieux sauterrdquo ndash is a form of understanding When I was a graduatestudent my teacher David Lewis advocated a picture of philosophy like this The way to understand some regionof philosophical terrain is for each investigator to state a set of principles as clearly as she could and then rigo-rously to determine what follows from them what they rule out and how one might argue for or against them Themore disparate the starting points the better sense the crisscrossing derivational paths from them would give usof the topography of the landscape they were embedded in What is recommended is hermeneutic triangulationachieving a kind of understanding of or grip on an object (a conceptually articulated content) by having manyinferential and constructional routes to and through it The more paths one knows through the wood the better

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rolesrdquo (TMD 109)7 Therefore asBrandom sums it up in Making itexplicit

The ascriber of a doxas-tic commitment has gottwo different perspecti-ves available from whichto draw those auxiliaryhypotheses in specifyingthe content of the commit-ment being ascribed thatof the one to whom it is as-cribed and that of the oneascribing it Where thespecification of the con-tent depends only on au-xiliary premises that ac-cording to the ascriberthe target of the ascriptionacknowledges being com-mitted to it is put in dedicto position within thersquothatrsquo clause Where thespecification of the con-tent depends on auxiliarypremises that the ascriberendorses but the targetof the ascription may notit is put in de re position(MIE 506 Cf 507)

It is noteworthy that Brandom ad-vocates the importance and legi-timacy of De Re inferences as an

approach to the history of phi-losophy Besides the usual DeDicto perspective we should ack-nowledge the worth of De Re his-toriography since it aims at thesame kind of universe of infe-rences or ascriptions namely theauthorrsquos commitments The onlydifference is upon where the setof auxiliary claims comes from8In the end such type of histori-ography is precisely what Bran-dom did in part two of TMD withLeibniz Hegel Frege Heideggerand Sellars through the four fol-lowing steps (see TMD 112-114)

1 Selecting the texts

2 Further selection (aiming cen-tral claims which will be used)and supplementation

3 Deriving (from multipremiseinferences) claims

4 Assessing the adequacy ofsuch inferred claims

Well that is what I am going todo as a little exercise with a cou-ple excerpts by Kierkegaard in thenext section

one knows oneacutes way around in itrdquo (TMD 114-115)8ldquoAs was indicated by the discussion of de re readings there is no reason why the target claims need be restricted

to de dicto characterizations of what appears in the textrdquo (TMD 112)

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4 - Kierkegaard De Dicto and DeRe

For better or for worse the phi-losophical network of Kierkega-ardrsquos relations sometimes seemsto be completely done9 Whetherit be the range of philosophicaltopics or his relations to the phi-losophical context of 19th and 20th

century the interpretative litera-ture seems to have little space forimprovements However a cou-ple of works have pushed thoseboundaries in recent years brin-ging to the surface hidden the-mes or connections like Kierke-gaardrsquos reception of and depen-dence on Trendelenburgrsquos logischeFrage when it comes to his cri-ticism on Hegelrsquos logic for ins-tance10 Among the unexploredtopics Kierkegaardrsquos ontology isone of the most interesting If it istrue on the one hand that Kier-kegaardrsquos existential turn becamecommonplace in the literature onthe other hand its metaphysicalroots and unfoldings are still analmost untouched topic Just toshed some light on what I am tal-king about consider that one ofKierkegaardrsquos philosophical wor-ries is in a nutshell in his claim

that

( ) speculative thoughtrepeatedly wants to ar-rive at actuality and gi-ves assurances that whatis thought is the actualthat thinking is not onlyable to think but also toprovide actuality whichis just the opposite and atthe same time what it me-ans to exist is more andmore forgotten (CUP1319 SKS 7 291)

And yet when we read throughmost of his interpreters we findthat they focus exclusively on theethical or religious effects of hisquest for the meaning of existenceand rarely say a word about themetaphysical ground Moreoversuch a perspective also plays adominant role when it comes toevaluating his thematic relationsto later philosophy However ifwe agree with Brandom and withthe reasons I presented above onthe legitimacy of a De Re histori-ographicphilosophic approach Ithink we can push the boundariesa lit bit through Kierkegaardrsquos de

9I am fully aware of the bundle of aspects and problems one can face when ignoring Kierkegaardrsquos use ofpseudonyms and ascribe views and statements to Kierkegaard himself However what is at stake here are thephilosophical inferences one can derive from his work and rather than verify if such and such theses belong to hispersonal set of beliefs

10See FERREIRA 2013 2015 2017 For excellent examples of such ldquopushing the boundariesrdquo on other topicssee WEBB 2017 and THONHAUSER 2016

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re interpretation In order to illus-trate allow me to carry out a shortexperiment along these lines

One of the central problems inontology can be stated like thiswe surely know that there are dif-ferent kinds of existing things na-mely humans tables propertiesgeometrical relations numbersfictional characters and maybeeven God But does it mean thatthere are different ways of existingor being If it does are all of suchways of being on the same levelor are there degrees of being Isany of them primitive and othersderived On the other hand if dif-ferent kinds of existing things donot mean different ways of beinghow can we understand such adifference in a unified (or univo-cal) way

In contemporary analytic philo-sophy partially inspired by Fregeand Russell and fully by Quinethe dominant view is that thereare not different ways of beingwhich means that whatever beingmeans it has the same meaningfor all entities about which wecould they are Nevertheless his-tory has plenty of examples ofphilosophers who endorse the op-posite position We could men-tion Plato Aristotle AquinasMeinong Lotze Husserl Moore

Heidegger but also young Bren-tano young Russell and argua-bly Frege11 Nowadays we are ha-ving a revival of this dispute withsome new contenders on the sideof what has been called Ontologi-cal Pluralism (OP) (see MILLER2002 TURNER 2010 CAPLAN2011 BERTO 2013 GABRIEL2015 MCDANIEL 2009 2017)12

One of the strategies of Ontolo-gical Pluralists has been besidesthe straightforward argumenta-tion revisiting old philosopherslooking for their arguments forOP as well as their reasons forholding such a position In thissense it is noteworthy that someof them call themselves as ldquoNeo-Meinongniansrdquo If ldquoexistencerdquo isthe central theme of Kierkegaardrsquosthought does he have any side insuch a dispute Letrsquos briefly con-sider some propositions from Ki-erkegaardrsquos work

(P1) God does not exist (existe-rer ikke) he is eternal (CUP1 p332 SKS 7 303)

(P2) A human being exists (exis-terer) (CUP1 p 332 SKS 7 303)

(P3) Ideas have a thought-existence (Tanke realitet) which isneither humanrsquos existence (CUP1p 329 SKS 7 301)

(P4) nor a physical objectrsquos way

11See Turner (2010) and McDaniel (2017)12McDaniel (2017) just won the American Philosophical Associationrsquos 2018 Sanders Book Prize

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of being (CUP1 p 330-331 SKS7 301)

(P5 De dicto paraphrase) Thereare irreducible different modes ofbeing

(P6 ndash Interpreteracutes claim) Aphilosopher who assumes thereare irreducible different modesof being believes that ontologicalpluralism is true

(P7 De Re) Kierkegaard belie-ves that ontological pluralism istrue13

Concerning the propositionsabove some things are no-teworthy As indicated by the re-ferences P1 to P4 are extracteddirectly from quotations by Kier-kegaard and have their truth va-lue drawn from the philosopheracutesown statements P5 on the otherhand is never asserted like thatby Kierkegaard but follows direc-tly from the claims above with noneed of any other premise Whenit comes to P7 our De Re con-clusion things are slightly diffe-rent The interpreter in this caseis deeply interested in ontologi-cal questions and provides an au-xiliary claim (P6) which comesfrom a different context Howe-

ver Kierkegaardacutes claims (P1 toP4) and what de dicto follows fromthem (P5) can now be put against(P6) in order to see what followsWhen it comes to (P6) it is worthnoticing that there is a twofoldway on the one hand we couldproceed to examine if the authorKierkegaard in this case providesany arguments supporting it andon the other hand we could as-sume (P6) as true on the interpre-terrsquos basis Therefore in assumingthe second way namely that (P6)is true ndashand that is the interpre-teracutes responsibility as Brandomsaysndash it is also true that (P7) eventhough the author of (P1) to (P4)never heard about (P6)14

If we turn back to Kierkegaardrsquosmain concern ndash in order to verifythe adequacy of our conclusionndash namely ldquowhat does it mean toexistrdquo one can see that ontolo-gical pluralism is absolutely cen-tral to his philosophical endea-vor Reversely understanding Ki-erkegaardrsquos ontological commit-ments in terms of ontological plu-ralism helps us to understand hisown objectives in a better andclearer fashion The main pro-blem for which ontological plu-

13As McDaniel defines ldquoSo I offer up the following more general sufficient condition one believes in ways ofbeing if one believes that there is more than one relatively fundamental meaning for an existential quantifierrdquo(2017 37)

14It is important to have in mind that the burden of proof regarding the truth-value of auxiliary claims must notnecessarily be on the author since it can be the case he never explicitly formulated it The point is that since suchauxiliary claim is provided such and such consequences follow from it

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ralism is an answer can be statedas ldquoDo some objects enjoy morebeing or existence than other ob-jectsrdquo (see MCDANIEL 2017 1)The way Kierkegaard understandsthe mode of existence of humanbeings cannot be fully graspedunless we recognize two ontolo-gical features of reality Thus onone hand it is true that some en-tities can be said to be univocallyactual like God human beingsand a fly since actuality is notsubject to degrees (see PF 41- 42 SKS 4 246) But on the other handKierkegaard is ontologically com-mitted to degrees of being that areirreducible to any other namelythe eternal uncreated being (ofGod) the infinite created beingor subsistence (or what he callsldquoideasrdquomdashie logical and mathe-matical relations and properties)the intermediate existential being(of human beings) and finite being(of physical objects)

Now we have some very in-teresting roads before us Onepossible next step of our de reinferential exercise would be tokeep on this track and try to findout whether Kierkegaard has anyhints on the primitiveness of arestricted existential quantifier(over an unrestricted existentialquantifier) since contemporarydefenders of Ontological Plura-lism argue that the Quinean un-restricted existential quantifier is

not enough to deal with differentmodes of being because usingDavid Lewis-Platorsquos terminologythey do not ldquocarve nature at thejointsrdquo But another interestingpath would be to evaluate howKierkegaardrsquos ontological com-mitments are close to or distantfrom for instance Meinongrsquos Isthere for Kierkegaard any spaceand arguments for Auszligerseiendor is he another victim of ldquotheprejudice in favor of the actualrdquo(MEINONG 1999 sectsect2 11) Yetanother road would lead us to dere infer Kierkegaardrsquos positions oncentral quarrels of 19th centuryphilosophy that are despite thechronology inside his scope likeMaterialismusstreit and Psicologis-musstreit for instance The Da-nish philosopher we know wasa fierce critic of what we wouldcall ldquoreductionismrdquo or ldquoelimina-tivismrdquo concerning consciousnesstoday but he also dealt with thequestion of how an actual existentrelates to ideal entities for ins-tance It seems to me that we havepromising roads to tread

4 - Conclusion

Therefore as far as I can see Bran-domrsquos approach is interesting inthree ways

1 By getting back to philo-sophers from the past in order

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to infer De Re commitmentsBrandom does at the sametime (a) a rational recons-truction exposing how KantHegel Frege and Heideggerforesaw some aspects of hispragmatic semantics and infe-rentialism but also how suchpositions help us to unders-tand theirs Thus by connec-ting a contemporary view todead philosophersrsquo positionsvia inferential commitmentswe can leave aside Rortyrsquos andBeaneyrsquos worries about ana-chronism it is not a mat-ter of suspiciously and doubt-fully ascribing contemporaryviews to a philosopher fromthe past but rather makingexplicit what is so to speakalready there As Brandom re-minds us de dicto and de reascriptions are not two diffe-rent realms of truths or com-mitments but ldquospecify thesingle conceptual content ofa single belief in two diffe-rent ways from two differentperspectives in two different

contexts of auxiliary commit-mentsrdquo (TMD 102)15

2 Therefore de re textual in-terpretations of philosophersfrom the past are as legiti-mate as de dicto ones Inother words specifying dere inferences should be seenas a logically justified sourcefor doing history of philo-sophy and conversely helpsus to deal with Garberrsquos-style-problems If like Beaney re-minds us a rational recons-truction is better the moreit is historically informed inthe case of de re inferences itis evident that putting suchinferences against a histori-cal background is essential atleast to evaluate if on theone hand a logically justi-fied position is not on theother hand contextually con-tradictory However since inthis inferential game we arenot trying to exclusively un-derstand a philosopherrsquos the-sis but rather to expose whatfollows (logically) from his

15The controversy about anachronism is long and it would demand another paper However there are goodworks reassessing and even defending its importance for doing history of philosophy See LAEligRKE SMITH SCH-LIESSER (2013) and LENZ ( ) who makes a very interesting point ldquoOf course Descartes did not read Wittgens-tein But does that also mean that reading Wittgenstein can tell us nothing about Descartes Let me consider twoobjections to the historianrsquos answer Firstly this answer ignores the fact that philosophers and other authors oftenwrite for future generations Descartes Spinoza but also Kant Nietzsche and others were clearly writing decidedlyfor future audiences To explain their texts only by reference to their time impoverishes the philosophical potentialIn fact this point generalizes any research project is future directed We would not begin to do research had wenot the hope that it might lead to more knowledge in the future If we study the development of ideas itrsquos crucialto look at their potential futures and this could very well involve Wittgensteinrsquos reaction to the Cartesian conceptof mindrdquo (p 4)

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positions it seems at leasteasier to have a clue abouthow to answer Garberrsquos ldquoin-convenientrdquo ldquowhy stop hererdquoquestion namely because thecontextual-fact x cannot be dere connected to the ascriptionA16

3 TMD connects a ldquomotleygrouprdquo of philosophers (Spi-noza Leibniz Hegel FregeHeidegger and Sellars) (TMD16) However one of theexplicit goals of the book isto make such a connectionldquoseem less so after we workthrough this material than

they would beforerdquo (TMD16) Hence more specificallyabout Kierkegaard and thebroader scenario of 19th20th

century philosophy such away can also make an ap-proximation of Kierkega-ard Lotze and Meinong lessweird as well as for ins-tance Kierkegaard and Hei-degger ndashthrough the ontolo-gical commitment to ways ofbeingndash less obvious and lessclicheacute As one can see a desi-rable outcome such reassess-ments provide us tools and ar-guments for rethink the veryphilosophical canon

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16Since the approximation between Garberrsquos example and Brandomrsquos model of rational reconstruction is beingmade by me Brandom does not offer as far as I know such a kind of answer However it makes sense to thinkthat a good reason to stop is the awareness of the distance of a contextual or historical remark H from the de reascription A Letrsquos consider the Geometry example given above Let it be the subject S as having the belief expres-sed in the proposition (P1) We could infer (P3) de re However a possible historical fact H1 that S firmly believedthat Euclid was totally wrong (as expressed in one of S letters to Z for instance) is a very relevant historical fact toevaluate S positions in this case S was either wrong about his belief on Euclid or wrong about square trianglesThe same for the historical fact H2 namely that S never really read Euclidrsquos Elements and knew it only by secondhand readings what we can know reading his autobiography But when it comes to the historical fact H3 namelywhat are the mathematical textbooks S had in his personal library we can say that it is not so relevant since eventhough we come to know one of those books had a really good exposition of proposition 32 In this case H3 is notrelevant for the inference of (P3) from (P1) like H1 is but at most for our knowledge that S maybe never had readthat book

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225478

Introduccioacuten Histoacuterica al Psychologismusstreit[A Historical Introduction to Psychologismusstreit]

Mario Ariel Gonzaacutelez Porta

Resumen Es una conviccioacuten usual que el Psychologismusstreit fue unaunidad indivisa que tiene como epicentro los ldquoProlegoacutemenosrdquo husser-lianos y se concentra en la loacutegica Esta conviccioacuten es falsa El Psycho-logismusstreit fue un proceso en el cual se pueden y deben diferenciaretapas tendencias y nuacutecleos temaacuteticosPalabras claves psicologismo poleacutemica en torno al psicologismo meacute-todo psicoloacutegico neokantianismo platonismo

Abstract It is commonly believed that the Psychologismusstreit was anindivisible unit that had as its epicenter the husserlian ldquoProlegome-nardquo and focuses on logic This is a false belief The Psychologismusstreitwas a process through which stages tendencies and central themescan and must be differentiatedKeywords Psychologism polemic surrounding psychologism neo-kantianism platonism

1 - Introduccioacuten

El Psychologismusstreit (PS) no esun proceso linear y unidimensio-nal sino que se caracteriza porposeer diferentes oriacutegenes moti-vaciones vertientes y etapas1 Esesta caracteriacutestica peculiar del PSque deseamos estudiar en detalleen el presente trabajo Mas si de

lo que se trata primariamente esde distinguir aspectos que son de-cisivos para constituir el horizontedel PS esto no acontece sin em-bargo para mantenerlos separa-dos sino para interrelacionarlos ymostrar la complejidad de sus ne-xos Lo que nos proponemos es al-go asiacute como una separacioacuten quiacute-mica de substancias para de es-

Professor titular da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) E-mail marioporpucspbrORCID httpsorcidorg0000-0001-8220-1540

1Manifestacioacuten de lo anterior es que es un rasgo distintivo de esta poleacutemica el no plantearse entre dos parti-dos previamente establecidos y claramente diferenciados sino consistir en buena medida en el trazado de la liacuteneadivisoria entre ambos de tal manera que lo que se entiende por psicologismo va variando a traveacutes del tiempo y au-tores considerados anti-psicologistas en un momento pasan a ser considerados psicologistas en otro o autores quepueden ser considerados anti-psicologistas en una perspectiva deben ser considerados psicologistas en otras Porejemplo Stuart Mill es psicologista en loacutegica pero no en semaacutentica Fries es psicologista en epistemologiacutea pero noen loacutegica Herbart por otra parte es antipsicologista con respecto a Beneke y Sigwart con respecto a Lipss pues con-sideran la loacutegica como ciencia normativa diferente de la psicologia Ambos sin embargo son psicologistas desde elpunto de vista de Frege pues aceptan el principio de inmanencia (PI) Entendereacute por PI la tesis cartesiano-lockeanade que el uacutenico objeto directo e inmediato de mi conocimiento son mis propias representaciones (Vorstellungen) oideas (ideas)

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ta forma entender mejor la inter-accioacuten entre las mismas y obteneruna comprensioacuten maacutes diferencia-da del compuesto

2 - Consideraciones previas

Aun cuando todo lo que habremosde decir colaboraraacute a fijar el pro-pio concepto de psicologismo estees un presupuesto de nuestro tra-bajo y por tanto es exigible queya en el comienzo establezcamosal menos una primera aproxima-cioacuten al mismo Conviene distin-guir entre concepto o definicioacuteny tesis Entenderemos por ldquopsi-cologismordquo la reduccioacuten de leyesyo entidades de cualquier tipoa leyes yo entidades psicoloacutegicas(definicioacuten) Por tanto el psicolo-gismo es un tipo peculiar de re-duccionismo A partir de Husserlse sobreentiende que tal reduccio-nismo conduce al relativismo (te-sis)

ldquoPsicologismordquo y ldquoPSrdquo son dosconceptos categorialmente dife-rentes el primero se refiere auna teoriacutea filosoacutefica el segundo aun proceso histoacuterico efectivo Paraque haya un PS es ciertamente unacondicioacuten necesaria que haya psi-cologismo pero la afirmacioacuten in-versa es obviamente falsa o seaque puede haber psicologismo sin

que haya PS Si por psicologismose entiende una teoriacutea reduccio-nista del tipo que hemos defini-do entonces no hay ninguna ra-zoacuten para limitar la aplicacioacuten deeste concepto al s XIX Posturastendencias o deslices psicologistasse dejan constatar desde los pri-mordios de la filosofiacutea en GreciaEl PS sin embargo es un procesoque se concentra entre los comien-zos de los siglos XIX y XX quetiene su auge entre los antildeos 1880y 1920 y que posee como epicen-tro el aacutembito linguumliacutestico germaacuteni-co aun cuando no se limita a eacutelextendieacutendose a Inglaterra Fran-cia e Italia Este proceso es absolu-tamente sui generis y no tiene nin-guacuten paralelo en la historia de la fi-losofiacutea anterior o posterior

Existen dos perspectivas baacutesi-cas posibles de abordaje del PSa saber la temaacutetico-sistemaacutetica yla histoacuterica2 El trabajo que siguese va a concentrar en la segun-da colocando principalmente elacento en cuestiones referentes alorden cronoloacutegico e interrelacio-nes factuales efectivas Sin embar-go es justamente sobre la base deeste estudio primariamente his-toacuterico que cuestiones temaacutetico-sistemaacuteticas recibiraacuten una impor-tante clarificacioacuten

Del punto de vista histoacuterico

2Debido a la distincioacuten categorial que hemos subrayado conviene no confundir el estudio puramente sistemaacuteticodel psicologismo con la perspectiva temaacutetico ndash sistemaacutetica en el estudio del PS

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se debe establecer una distincioacutenfundamental entre los oriacutegenes yantecedentes del PS en el procesoque va del siglo XVII al XVIII yel desarrollo de la poleacutemica pro-piamente dicha en el siglo XIX ycomienzos del XX Con el primerpunto nos ocupamos en el capiacutetu-lo 3 con el segundo en el 4

3 - Oriacutegenes y antecedentes delPS

En los oriacutegenes del PS hay dosnombres se destacan a saber Des-cartes y Kant Si todos los cami-nos conducen a Roma y en el casodel PS conducen a Husserl todosellos asiacute mismo parten de Descar-tes y pasan por Kant aun cuandono obstante no parten y no pasande la misma forma

El PS hunde sus raiacuteces en lavirada moderna a la subjetividadcon Descartes y en la ulteriorlectura empirista de esta viradasiendo posible distinguir en ellacinco elementos que de una for-ma u otra juegan un rol decisi-vo el establecimiento del PI laapertura del way of ideas la loacutegi-ca de Port Royal el inicio de laoposicioacuten entre concepcioacuten intui-cionista y logicista de racionali-dad y la central contraposicioacuten deexperiencia interna y extern Es-tos cinco elementos experimentanun desarrollo ulterior a traveacutes deKant en quien adquieren la forma

especiacutefica de fenomenismo dis-tincioacuten loacutegica-epistemoloacutegica quidfacti ndash quid iuris intuicionismomatemaacutetico y colocacioacuten de las ba-ses del proceso de la constitucioacutende la psicologiacutea como ciencia au-toacutenoma Debido a este paralelis-mo efectuamos en nuestra exposi-cioacuten un corte temaacutetico transversaly partiendo en todos los casos deDescartes llegamos en todos loscasos a Kant

31 - PI ndash Inmanentismo - feno-menismo

La virada moderna a la subjeti-vidad estaacute iacutentimamente vincula-da al establecimiento del PI co-mo punto de partida o presupues-to de toda filosofiacutea En realidad eacuteles una de sus derivaciones o im-plicaciones maacutes fundamentales ypese a todas las diferencias entreempirismo y racionalismo comuacutena ambos Una consecuencia de laaceptacioacuten de este principio o talvez simplemente su contracara esun cierto tinte idealista que se ha-ce presente tanto en la variante ra-cionalista cuanto en la empirista

Si el PI es un elemento caracte-riacutestico del pensamiento modernocomo tal el convive desde Reid yla tradicioacuten escocesa con una ten-dencia minoritaria que mantienevivo el realismo directo y se oponea todo representacionalismo Estatendencia estaacute presente en el siglo

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XIX viacutea Hamilton en Stuart MillQue el PI se establezca como

principio dominante con la edadmoderna y permanezca en tal fun-cioacuten hasta fines del siglo XIX noimplica que estemos en presen-cia de una mera prolongacioacuten Enrealidad el PI adquiere en la fi-losofiacutea alemana del siglo XIX al-gunos acentos especiacuteficos que sondecisivos para luego entender supapel en el marco del PS Al me-nos cuatro inflexiones merecen sersubrayadas Con Kant el PI se ra-dicaliza en el sentido de un fe-nomenismo que se extiende delmundo externo al interno culmi-nando en la tesis de que el suje-to soacutelo se conoce a siacute mismo comofenoacutemeno y no como cosa en siacuteCon posterioridad a Kant Rein-hold situacutea expliacutecitamente el PIcomo fundamental en el horizon-te de la filosofiacutea alemana al hacerdel mismo la base uacuteltima de la fi-losofiacutea transcendental correspon-diendo a Schopenhauer con sudualidad del mundo como repre-sentacioacuten y como voluntad popu-larizarlo y a Muumlller con su teoriacuteade la energiacutea especifica de los oacuter-ganos sensoriales dar pie a que selo interprete fisioloacutegicamente y selo considera como cientiacuteficamentefundado

32 - Del way of ideas al ldquomeacutetodopsicoloacutegicordquo (MP)

321 - De la isla al continente

Con Locke se inicia no meramen-te al empirismo como una posi-cioacuten teoacuterico-epistemoloacutegica sinocomo una alternativa metoacutedicaal racionalismo La oposicioacuten ra-cionalismo ndash empirismo es vis-ta en Alemania no primariamen-te como una oposicioacuten epistemo-loacutegica sino metoacutedica siendo elpropio Kant pre-criacutetico un ejem-plo paradigmaacutetico de este movi-miento La contraposicioacuten meacutetodomatemaacutetico- meacutetodo empiacuterico omeacutetodo sinteacutetico ndash meacutetodo ana-liacutetico se constituye en una liacuteneadivisoria fundamental en la filo-sofiacutea alemana del siglo XVIII Se-raacute justamente Kant sin embargoquien llevando la discusioacuten delplano primariamente metoacutedico alpropiamente epistemoloacutegico es-tableceraacute claramente a traveacutes dela distincioacuten quid iuris - quid factila cuestioacuten ldquotranscendentalrdquo es-to es daraacute un paso decisivo pa-ra liberar el problema de la ob-jetividad de toda interpretacioacutenpsicoloacutegico-geneacutetico (KANT AkIII 99s)

322 - El MP en Alemania I elsurgimiento

No obstante lo anterior el esta-

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blecimiento de la idea de una re-flexioacuten transcendental no pondraacuteun punto final a la cuestioacuten enAlemania Si no puede caber dudaqueacute el MP tiene sus oriacutegenes en lalectura empirista de la virada car-tesiana a la subjetividad tampocopuede ser dudado que eacutel adquiereun perfil especifico en la filosofiacuteaalemana del siglo XIX

Con Reinhold se inicia un movi-miento revisionista del kantismoque transforma la filosofiacutea criacuteti-ca en un racionalismo aprioriacutesti-co en el cual el criticismo devie-ne saber especulativo Como reac-cioacuten a este desenvolvimiento sur-ge con Fries otra tendencia que in-tenta rescatar el elemento criacuteticofrente al especulativo el empiris-ta frente al apriorismo radical laautonomiacutea de la ciencia y su ca-raacutecter de Faktum frente a la pre-tensioacuten de una filosofiacutea como sa-ber absoluto y en definitiva el da-to y la correlativa reflexioacuten frentea toda construccioacuten

La tendencia empirista de Friestiene su fundamento en la consi-deracioacuten de la triunfante Natur-wissenschaft y por tal razoacuten con-vive con una aceptacioacuten del ele-mento a priori (SM p 183) La ta-rea baacutesica de la filosofiacutea criacutetica esdar cuenta del mismo Mas au-teacutenticos principios no pueden enmodo alguno ser probados sinotan solo constatados Esta cons-tatacioacuten por su vez no puede

ser sino empiacuterica En consecuen-cia el meacutetodo de la filosofiacutea comocriacutetica del a priori no puede serni transcendental ni especulativosino ldquopsicoloacutegicordquo (RFS p 200ssNKV I p 28ss)

El MP friseano no consiste enuna simple constatacioacuten de esta-dos internos tendiente a estable-cer sus regularidades legales en eltiempo sino que posee un aborda-je estructural del psiquismo queofrece cierta similitud con la in-tuicioacuten eideacutetica husserliana Eacutel noprocede asimismo por induccioacuten(SM p 183 PS p 347) sinopor ldquoabstraccioacutenrdquo efectuando unldquoanaacutelisisrdquo del conocimiento dadoque explicita y pone en evidenciasus presupuestos (NKV sect 78 I p38s sect 97 p 314s SM sect22 p 99)Por reflexioacuten a partir de una leyparticular por ejemplo se ldquoabs-traerdquo el principio de causalidad

En el argumento que conducea la fundamentacioacuten de la filoso-fiacutea en la psicologiacutea juega un papelcentral la presuposicioacuten del PISobre este base Fries asume quesi todo conocimiento es una acti-vidad del espiacuteritu el estudio delconocimiento es un estudio de laexperiencia interna (SM p 104s)Mas iquestqueacute se debe entender aquiacutepor ldquoconocimientordquo iquestNo seriacutea po-sible y necesario distinguir entreel conocer como proceso psicoloacute-gico real (Erkennen) y el conoci-miento como su contenido loacutegico-

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objetivo (Erkenntnis) Hay pues enFries una ambiguumledad en el pun-to de partida que condiciona ulte-riormente una ambiguumledad en elproceso regresivo desarrollado apartir del mismo de modo tal quela consideracioacuten puramente fun-cional de elementos loacutegicos del co-nocimiento se hipostasia en unateoriacutea de las facultades (Vermouml-gen) La criacutetica del MP y la evolu-cioacuten posterior del mismo se efec-tuaraacute en la direccioacuten de estas dis-tinciones

Si tomamos como referencia aFries podemos establecer el papelde Beneke en la evolucioacuten del MPapuntando sus diferencias con eacutes-te

a Para Fries el MP es el meacuteto-do de la puesta al descubier-to del a priori para Benekepropiamente de su disolucioacutenBeneke es un empirista radi-cal que en uacuteltima instanciaintenta derivar lo a priori de laexperiencia En la base de estadiferencia se encuentra otramucho maacutes fundamental re-ferente la propia concepcioacutendel a priori en tanto Bene-ke tiende a identificar a priorie innato Fries lo combate deforma expliacutecita en este pun-to negando tal identificacioacuteny subrayando el caraacutecter pro-piamente loacutegico de la prece-dencia (GPh II p 514)

b Vinculado a lo anterior mien-tras que Beneke tiene una con-cepcioacuten esencialmente geneacuteti-ca de psicologiacutea consistien-do su programa en uacuteltimainstancia en derivar todo dela sensacioacuten Fries resiste ex-pliacutecitamente a tal tendencia(FRIES NKV I p 36-37 Be-neke LPsNW p 14ss)

c Del empirismo de Beneke ysu perspectiva geneacutetica se si-gue un reduccionismo radicalLa psicologiacutea no es en Bene-ke simplemente la base de lafilosofiacutea en el sentido de sucomienzo metoacutedico sino queella es la filosofiacutea (KPhAG p89 SL I p 35-42)

d Si desde Fries era esencial alMP su caraacutecter introspecti-vo lo que era en este obje-to de mencioacuten ocasional sevuelve tema central en Bene-ke (VPsPh p 116-130 SMp 201 SL II p 302) En es-ta radicalizacioacuten influye deci-sivamente la situacioacuten exter-na Beneke ya tiene frente a siacuteel raacutepido desenvolvimiento dela fisiologiacutea e incluso los pri-mordios de su consecuenciafundamental a saber el Mate-rialismusstreit Dado que pre-tende ser espiritualista Bene-ke resiste tenazmente a la di-solucioacuten de la psicologiacutea en fi-siologiacutea Esta resistencia daraacute

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lugar a la idea de una ldquopsi-cologiacutea purardquo esto es librede elementos fisioloacutegicos y ba-sada exclusiva y consecuente-mente en la percepcioacuten inter-na

e Beneke distingue claramenteentre Naturwissenschaft y psi-cologiacutea en lo que dice respectoa su objeto y modo de accesoconcentraacutendose para ello enla oposicioacuten experiencia ex-terna ndash experiencia internano obstante inequiacutevocamen-te orienta el proceder empiacuteri-co de la psicologiacutea a la Natur-wissenschaft La psicologiacutea co-mo la Naturwissenschaft aspi-ra al establecimiento de leyesy se sirve para ello de un pro-cedimiento ldquoinductivordquo Es-ta induccioacuten parece por mo-mentos poseer una cierta es-pecificidad aun cuando nun-ca queda totalmente claro enqueacute consiste positivamente eacutes-ta (LPsNW p 20)

323 - El MP en Alemania II Ladiversificacioacuten

De Fries se derivaraacute una escuelaque aun cuando con una signifi-cativa interrupcioacuten se mantienehasta las primeras deacutecadas del si-glo XX y que en su primera fa-se tiene como nombre de refe-rencia a Apelt en su segunda a

Nelson Esta escuela haraacute pocasy muy puntuales contribucionesa la doctrina original motivadaspor regla general por las diferen-cias de contexto cientiacutefico y filo-soacutefico Beneke por su parte auncuando no forma una escuela ensentido estricto encuentra eco enalgunas figuras significativas dela generacioacuten siguiente (UumlberwegFortlage) y ejerce una importanteaun cuando difusa influencia

Una novedad realmente signifi-cativa aparece en las deacutecadas del60 y del 70 cuando desde fuerade la tradicioacuten generada por Friesy Beneke se comienza a delinearel fenoacutemeno de una diversifica-cioacuten de tendencias dentro del MPfenoacutemeno que se prolonga en losantildeos 80 El primer motivo para es-ta diversificacioacuten seraacute proporcio-nado por el positivismo el cualincentiva el surgimiento de dosvariantes ldquoexternalistasrdquo del MP

a Si con Beneke comienza aexistir una tensioacuten entre elMP y la fisiologiacutea esta ten-sioacuten daraacute lugar a un desarro-llo particularmente importan-te con Helmholtz quien man-tiene los principios de la inter-pretacioacuten psicoloacutegica de Kantpor un lado pero por otropolemiza con el abordaje in-trospectivo abriendo el MP auna integracioacuten de los resulta-dos de la fisiologiacutea sin por ello

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incurrir en un reduccionismofisiologista (UumlSM p 34-3685 118 189) La aceptacioacutende procesos psiacutequicos incons-cientes seraacute elemento esencialpara el mantenimiento de esecompromiso

b La segunda tendencia que de-be ser aquiacute mencionada es laVoumllkerpsychologie de Lazaruse Steintahl quienes siguien-do la misma inspiracioacuten exter-nalista de Helmholtz se pro-ponen extender el herbartia-nismo al estudio de los fenoacute-menos de la cultura (EGV p1ss)

El surgimiento de tendencias ex-ternalistas en el MP no va a signi-ficar el desaparecimiento total desus variantes internalistas sinomuy por el contrario seraacute acom-pantildeada por una renovacioacuten de lasmismas Para ello juega un pa-pel decisivo la criacutetica del modelocientiacutefico natural Si el MP comen-zoacute con la intencioacuten de una psico-logiacutea empiacuterica primero modela-da en su idea de experiencia enla ciencia natural su desarrollotermina conduciendo a una revi-sioacuten del concepto de experienciay a la negacioacuten de la identifica-cioacuten de meacutetodo cientiacutefico y meacute-todo de la Naturwissenschaft Estarevisioacuten ya se anunciaba tiacutemida-mente en Fries pero sin fructificar

en la propuesta de una alternativadefinida Esta situacioacuten muda demodo radical con Dilthey (IBZP) yBrentano (DP) quienes defiendenla idea de que un procedimien-to auteacutenticamente empiacuterico debeser adecuado a su objeto y con-secuentemente exigen de la psi-cologiacutea un proceder descriptivo yestructural claramente delimita-do frente a perspectivas geneacuteticasy explicativo-causales

Como vimos el MP surgioacute vin-culado a una interpretacioacuten deKant y se mantiene de una for-ma u otra ligado al kantianismohasta la deacutecada del 70 cuando laaparicioacuten del neokantianismo seraacutedecisiva para disputarle al mismosu interpretacioacuten de Kant propo-niendo una interpretacioacuten alter-nativa A partir de ahora ser kan-tiano y ser defensor del MP ya noson mas sinoacutenimos

Pero el neokantianismo no me-ramente contribuye a desligar elMP de la interpretacioacuten de Kantsino de toda forma de idealismoconsolidando asiacute indirectamen-te una tendencia que ya se veniaanunciando desde Beneke peroque va a culminar en la escuelade Brentano Beneke es una figu-ra decisiva no solo para entenderel MP sino para entender el PS yesto porque al mismo tiempo eacuteles la forma maacutes radical de psico-logismo por un lado y por otroabre el camino para conciliar MP

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y realismo Como todos los defen-sores del MP Beneke presupone lavalidad irrestricta del PI efectuacuteasin embargo una importante pre-cisioacuten pues si bien mantiene el fe-nomenismo kantiano con respec-to al mundo externo afirma queen el auto-conocimiento el suje-to accede a una realidad en siacute Suargumento baacutesico que anticipa eldel archienemigo del psicologis-mo Frege reza no todo puede serVorstellung (SM p 69 NGM p 9)Lo anterior implica replantear laperspectiva eminentemente epis-temoloacutegica esencial al MP en suorigen friseana abriendo la posi-bilidad de una variante ontoloacutegicadel mismo El MP ya no es me-ramente un camino para una re-fundamentacioacuten de la teoriacutea delconocimiento sino tambieacuten de lametafiacutesica como saber del en-siacute

324 - PS y MP

Debemos distinguir entre Psicolo-gismo y MP entendiendo por elprimero como ya hemos hechouna tesis filosoacutefica por el segun-do por el contrario una posturapuramente metoacutedica en principioneutra con respecto a cualquiertesis o teoriacutea filosoacutefica especiacuteficaLa distincioacuten entre psicologismo yMP permite colocar expliacutecitamen-te una cuestioacuten discutida intensa-mente en el siglo XIX referente a

si el MP conduciacutea necesariamenteo no al psicologismo Un aspectobien definido pero poco estudiadodel Psychologismusstreit giroacute no entorno a una discusioacuten entre psico-logistas y anti-psicologistas sinoentre anti-psicologistas y defenso-res del MP

En tanto que los auto-proclamados anti-psicologistastendieron a suponer sin maacutes laidentidad de psicologismo y MPalgunas variantes del MP re-sistieron tal identificacioacuten y seconsideraron a siacute mismas anti-psicologistas como es el caso dela tendencia realista-metafiacutesicaplasmada en la escuela de Bren-tano Mas si las variantes rea-listas del MP tendieron al anti-psicologismo las variantes idea-listas tendieron al psicologismoEsta diferencia se va a profundi-zar con el surgimiento de la logis-che Frage

33 - La evolucioacuten de la loacutegica dePort Royal a la logische Frage

Sabidamente la filosofiacutea modernase inicia con la criacutetica del meacuteto-do escolaacutestico y el proceder silo-giacutestico y la correlativa exigenciade una reorientacioacuten metodoloacutegi-ca de la ciencia Por tal razoacuten auncuando de su pluma nunca sur-gioacute un texto que tratase de loacutegi-ca ni una contribucioacuten significa-tiva en este campo Descartes es

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una figura decisiva en la historiade esta disciplina por interrumpirel desenvolvimiento continuo quese veniacutea efectuando a partir de laloacutegica aristoteacutelica y establecer lasbases de un nuevo rumbo

Un producto fundamental deeste movimiento para el desarro-llo posterior fue la loacutegica de PortRoyal3 la cual presenta tres ele-mentos que merecen especial des-taque en el actual contexto a sa-ber la idea de que la loacutegica esesencialmente una teacutecnica que sepropone orientar procesos menta-les y que por tanto tiene estos co-mo objeto idea esta que se concre-tiza en dos formas caracteriacutesticaspor un lado en una cierta con-cepcioacuten semaacutentica de lo que seala significacioacuten de teacuterminos y porotro en la identificacioacuten de leyesloacutegicas y leyes del pensamiento

La tradicioacuten iniciada por la loacute-gica de Port Royal termina por serpredominante en el siglo XVIIIdesplazando la aristoteacutelica Ellasin embargo va a tener su deci-siva interrupcioacuten en Kant quiensiguiendo el camino iniciado porLeibniz critica expresamente latendencia moderna en la loacutegicaconsiderando en una famosa pa-saje que sus contribuciones y en-riquecimientos simplemente des-

conocen el verdadero objeto de ladisciplina de forma tal que maacutesla desfiguran que la enriquecen ysobre esa base vuelve a la idea deuna loacutegica general (Ak III p 8)

De la virada kantiana se nutredirectamente el resurgimiento dela loacutegica formal promovido porHerbart en el comienzo del sigloXIX el cual sin embargo pron-tamente tiene que enfrente ar unnuevo enemigo la loacutegica metafiacutesi-ca hegeliana

Logische Frage en sentido estric-to denomina la poleacutemica desatadapor Trendelenburg contra Herbarty Hegel esto es tanto contra ladeterminacioacuten de la loacutegica comodisciplina formal como contra suinterpretacioacuten metafiacutesica en basea la tesis de la identidad de ser ypensar Ahora bien la discusioacutende Trendelenburg con Herbart yHegel es el horizonte de referenciade todo lo que se escribe en la loacute-gica alemana de los antildeos posterio-res y en particular en las deacutecadasdel 80 y 90 Las loacutegicas de este pe-riacuteodo parten de un similar statusquestionis procurando distanciar-se simultaacuteneamente del formalis-mo herbartiano y del metafisicisi-mo hegeliano (Sigwart ErdmannWundt y Lipps) Es como reaccioacutena la identificacioacuten hegeliana de loacute-

3Vamos a contar una historia abreviada y en buena medida esquemaacutetica siendo que muchas de nuestras afirma-ciones no soportariacutean un anaacutelisis histoacuterico maacutes rigoroso Si la loacutegica de Port Royal inicia una tradicioacuten no siempreesta tradicioacuten se nutre directamente de ella Un papel fundamental juega en Alemania la loacutegica hamburguesa deJungius que es el modelo directo de muchos manuales de loacutegica del siglo XVIII (BOSCHENSKI 1976 p 270)

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gica y metafiacutesica que se desata enAlemania una marcada tendenciainmanentista que potenciando elrol central del PI mucho maacutes allaacutedel seguimiento o no del progra-ma especiacutefico del MP lleva a unarestriccioacuten de la loacutegica al aacutembitodel pensar (Denken) y que si en unprimero momento con Lotze selimita a negar el caraacutecter objetivo-real de categoriacuteas loacutegicas funda-mentales afirmado por Hegel (co-mo concepto o silogismo) termi-na motivando la insistencia en elcaraacutecter de las leyes loacutegicas comoldquoleyes del pensamientordquo (Denkge-setze) Es este acento en la limi-tacioacuten de la loacutegica al Denken loque provocaraacute no solo una ciertatendencia laxa al idealismo querevierte en buena medida el movi-miento iniciado por Beneke sinoal relativismo

Psicologismusstreit y logischeFrage no pueden ser identificadosmas estaacuten en estrechiacutesima rela-cioacuten pues justamente las deriva-ciones de la logische Frage jugaronun papel esencial para incentivaruna nueva oleada de psicologis-mo El psicologismo de los loacutegicosen los 80rsquo y 90rsquo con su relativismoantropoloacutegico caracteriacutestico no esprimariamente el resultado de latradicioacuten de Port Royal o del desa-rrollo del MP sino del cruzamien-

to de este uacuteltimo desenvolvimien-to primariamente en sus varian-tes idealistas con aquel desenca-denado por la logische Frage

34 - Intuicioacuten

Con Leibniz se inicia en el racio-nalismo un proceso de diversifi-cacioacuten en dos corrientes con dosconcepciones eminentemente di-ferentes de racionalidad que po-driacuteamos llamar de ldquointuicionistardquoy ldquologicistardquo4 o de una concep-cioacuten en la cual racionalidad estaacuteiacutentimamente vinculada a la ideade evidencia y otra en que la ra-cionalidad estaacute vinculada a prin-cipios objetivos (identidad y no-contradiccioacuten) Estas dos concep-ciones de racionalidad se proyec-tan en dos modos de concebir lainferencia como remitiendo en uncaso a una sucesioacuten de intuicionesdiscontinuas en el otro a la ideade algoritmo

La oposicioacuten entre una concep-cioacuten intuicionista o logicista deracionalidad estaacute estrechamentevinculada a una diferente concep-cioacuten de la relacioacuten entre racionali-dad y subjetividad En la concep-cioacuten intuicionista el sujeto epis-temoloacutegico a traveacutes de la idea deevidencia es indisociable de la ra-cionalidad en tanto en la otra se-

4Nos servimos de una oposicioacuten terminoloacutegica ya consagrada en el aacutembito de la filosofiacutea de las matemaacuteticas yle damos un sentido maacutes general

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parable tendieacutendose de una for-ma u otra a variantes de platonis-mo

Con Kant esta oposicioacuten entredos concepciones de racionalidadpasa a replantearse sobre la for-ma de una oposicioacuten entre pensa-miento y sensibilidad Si Kant cla-ramente toma partido por la con-cepcioacuten leibniziana de racionali-dad identificada con la analitici-dad la idea de intuicioacuten no pierdesu importancia sino que se trasla-da del plano intelectual al sensi-ble

Las diferentes concepciones deintuicioacuten y de la relacioacuten de intui-cioacuten y racionalidad en DescartesLeibniz y Kant estaacuten iacutentimamentevinculadas a diferentes concepcio-nes de matemaacutetica Estas diferen-cias desenvuelven todo su poten-cial en el s XIX con la artimetiza-cioacuten del caacutelculo y posteriormen-te con el surgimiento de las geo-metriacuteas no-euclideanas y sus deri-vaciones Si en Newton la funda-mentacioacuten uacuteltima del caacutelculo re-mitiacutea a la intuicioacuten temporal yKant dada su admiracioacuten incon-dicional por Newton aceptaba talidea sin cuestionamiento en el si-glo XIX se procesa un movimientode logizacioacuten de las matemaacuteticasque volviendo a Leibniz terminaeliminando cualquier idea de in-tuicioacuten de su fundamentacioacuten

La tendencia logicista que enuacuteltima instancia sobre diferentes

formas se inclina a la postulacioacutende objetos abstractos va a ser unfuerte factor para el surgimientode un platonismo con contornospeculiares en el siglo XIX El pla-tonismo del siglo XIX en la loacutegi-ca estaacute indisociablemente vincula-do al logicismo en las matemaacuteti-cas desde Bolzano a Frege y Hus-serl Junto con la eliminacioacuten dela intuicioacuten el logicismo eliminala necesidad de una consideracioacutenesencial de la subjetividad en lafundamentacioacuten de las matemaacuteti-cas y tiende a asumir una direc-cioacuten objetivista que lo termina co-locando en estrecha relacioacuten conel platonismo

35 - Psicologiacutea despueacutes de Kantde la psicologiacutea como cienciafundamental de la filosofiacutea a lapsicologiacutea como ciencia autoacuteno-ma

Si el siglo XIX es el siglo de laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia esta constitucioacuten se da-raacute en el transfondo de presupues-tos establecidos en los siglos XVII-XVIII a saber

a La virada cartesiana a la sub-jetividad en la filosofiacutea moder-na la lectura empirista de es-ta virada por Locke y la ideade una ciencia de la naturale-za humana correlata de la Na-turwissenschaft por Hume

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

b La constitucioacuten de la ciencianatural como ciencia empiacutericaindependiente de la filosofiacutea

c La clasificacioacuten de las cienciasde Wolff con su distincioacuten en-tre psicologiacutea racional comoparte de la metafiacutesica especialy psicologiacutea empiacuterica5

d La negacioacuten de la posibilidadde la metafiacutesica como cienciapor parte de Kant y por tantode la psicologiacutea racional

e y su negacioacuten de que la psico-logiacutea empiacuterica pueda consti-tuirse como una ciencia equi-valente a la ciencia natural(Leary 1978 y 1982)

Como en la filosofiacutea de las ma-temaacuteticas el status questionis esta-blecido por Kant en la ldquoCriacutetica dela razoacuten purardquo es el punto de par-tida de la poleacutemica en torno a lapsicologiacutea o Psychologiestreit estoes de la discusioacuten que lleva a laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia autoacutenoma en el siglo XIX

Aun cuando PS y Psychologies-treit son procesos que se encuen-tran interligados y presentan nu-merosas interacciones ellos nopueden ser sin maacutes identificados

Ciertamente la constitucioacuten de lapsicologiacutea como ciencia autoacutenomaes un factor importante para ex-plicar tanto la prioridad cuanto laintensidad que asume el PS en el sXIX Sin embargo el no es el uacuteni-co factor pues como ya hemos in-sinuado la logische Frage y el de-senvolvimiento de las matemaacuteti-cas no son menos decisivos

No menos importante que dis-tinguir PS y Psychologiestreit es eldistinguir entre dos sentidos de laexpresioacuten MP La expresioacuten ldquoMPrdquotiende a ser usada desde fines delsiglo XIX y comienzos del XX enel sentido de ldquomeacutetodo de la psi-cologiacuteardquo o sea para referirse a lacuestioacuten de cual deba ser el modode proceder de una cierta discipli-na para constituirse como cienciaautoacutenoma En mediados del sigloXIX sin embargo dicha expresioacutentiene un otro sentido usual refe-rente a cuaacutel deba ser el meacutetodode la filosofiacutea cuestioacuten eacutesta gene-ralmente colocada en el horizontede una caracterizacioacuten de la filo-sofiacutea como ciencia que asegure suderecho a existencia en la llama-da ldquocrisis de identidadrdquo6 La ideabaacutesica es queacute si toda ciencia de-be fundarse en la experiencia y la

5Investigacioacuten psicoloacutegica ciertamente existioacute antes de Descartes pero no es arbitrario establecer un intereacutes es-pecifico en la subjetividad a partir de eacutel Investigacioacuten psicoloacutegica por su vez existioacute obviamente antes de Wolffpero es el sistema de clasificacioacuten de las ciencias de Wolff lo que va a dar a la psicologiacutea su lugar caracteriacutesticocomo disciplina a partir del cual debe ser entendido el proceso de su constitucioacuten como ciencia autoacutenoma

6Claro que los proponentes del MP teniacutean tambieacuten propuestas con respecto a cuaacutel debiacutea ser el meacutetodo de lapsicologiacutea pero la inversa no vale muchos actores decisivos en el debate en torno al meacutetodo de la psicologiacutea notuvieron intereacutes en la cuestioacuten del MP

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Naturwissenschaft trata de la expe-riencia externa corresponde a lafilosofiacutea fundarse en la experien-cia interna En este sentido la ex-presioacuten ldquoMPrdquo fue originariamen-te el opuesto primero del meacuteto-do especulativo propio del idea-lismo alemaacuten despueacutes del meacuteto-do transcendental neokantiano yfinalmente del meacutetodo fenome-noloacutegico Mas si como vimos laidea del MP constituye en la fi-losofiacutea alemana como alternativade perfil especifico a partir de laobra de Fries y Beneke la expre-sioacuten ldquoMPrdquo sin embargo fue solointroducida deacutecadas despueacutes porBona Meyer (KPs p 122) y po-pularizada por sus oponentes neo-kantianos

4 - El desarrollo del PS

Si damos una mirada retrospecti-va al conjunto de lo expuesto ylo unificamos tenemos que decirque si Descartes puede ser consi-derado el inicio remoto del psi-cologismo Kant puede ser consi-derado el inicio proacuteximo del mo-vimiento anti-psicologista y estotanto en el plano de la epistemo-logiacutea cuanto en el plano de la loacute-gica pues en ambos establece ladistincioacuten fundamental quid fac-

ti - quid iuris y procura mante-ner separadas cuestiones de geacutene-sis y de validez (Geltung) (Ak IIIp 8 99s) Ahora bien en tantoque el anti-psicologismo kantianoen la loacutegica va a ser decisiva pa-ra el platonismo del siglo XIX elanti-psicologismo kantiano en laepistemologiacutea va a ser decisivo pa-ra el neokantianismo7

Con lo dicho llamamos la aten-cioacuten sobre un aspecto medular delPS que tiende a ser pasado poralto a saber que se pueden ydeben diferenciar claramente dosvertientes en el mismo que provie-nen de una diversa raiacutez histoacutericaque en uacuteltima instancia remite aKant en dos formas caracteriacutestica-mente diferentes tienen un relati-vo grado de autonomiacutea en su desa-rrollo histoacuterico efectivo y se dis-tinguen claramente por el acentotemaacutetico-sistemaacutetico que asume elanti-psicologismo en cada una deellas

Mas si bien no cabe duda deque Kant estaacute en el origen de lasdos formas principales del anti-psicologismo del siglo XIX so-lo pasamos del anti-psicologismokantiano al anti-psicologismo ca-racteriacutestico del siglo XIX a tra-veacutes de mediaciones que por suvez son diferentes seguacuten se tra-

7Si en estos dos planos Kant contribuye decisivamente al anti-psicologismo existe un tercero a saber aquel re-ferente a la intuicioacuten en el cual Kant estaacute en el inicio de una variante psicologista que tiene su base en la discusioacutensobre la teoriacutea del espacio (Helmholtz)

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ta del tipo de anti-psicologismokantiano y del tipo de anti-psicologismo del s XIX que coneste se relaciona En tanto que delanti-psicologismo kantiano en laloacutegica se deriva el platonismo pre-sente en el PS esto no acontecesino a traveacutes de la logische Fragede la logizicacioacuten del caacutelculo y enuacuteltima instancia de la confluen-cia conflictiva de ambos procesosPor su vez en tanto que del anti-psicologismo kantiano en la epis-temologiacutea se deriva el neokantia-nismo esto no acontece sino a tra-veacutes del MP y en buena medidadel surgimiento de ciertas varian-tes especiacuteficas del mismo como lapsicologiacutea fisioloacutegiacuteca y Voumllkerpsy-chologie Veamos ahora estos pro-cesos en mayor detalle

41 - La vertiente platoacutenica delantipsicologismo

Uno de los primeros capiacutetulosdel PS o tal vez el primer ca-piacutetulo es el producto de la reto-mada de la idea kantiana de unaloacutegica general libre de elementospsicoloacutegicos a traveacutes de Herbartpor un lado y por Bolzano deotro8 Pero este anti-psicologismono puede ser entendido sin mas

como una mera continuacioacuten delkantiano pues hay en eacutel elemen-tos nuevos que lo van a distinguirclaramente del kantiano a sabersu vies platoacutenico Mas aun cuan-do tanto Herbart como Bolzanoson en cierto sentido ldquoplatoacutenicosrdquoel tipo de platonismo es diferen-te no menos que en definitiva supropia concepcioacuten de loacutegica

Si Herbart distingue claramen-te loacutegica y psicologiacutea lo hace co-mo una distincioacuten de dos pun-tos de vista sobre la misma reali-dad en uacuteltima instancia psicoloacute-gica no como una distincioacuten en-tre dos esferas de objetos realesy abstractos (PsW sect 120 p 160-161)9 Justamente por lo anteriorsi Herbart afirma aparentementela identidad del elemento idealen la multiplicidad de sus reali-zaciones subjetivas ese elementoideal es concebido como limes deaproximacioacuten de procesos psiacutequi-cos reales no como objetos en-siexistentes

Bolzano entre tanto es el pri-mero que introduce claramente laidea de que la loacutegica es el es-tudio de objetos abstractos10 Sudiferencia esencial con Kant pe-ro tambieacuten con Herbart es queel portador de verdad deja de ser

8Con Herbart se da un paso decisivo a la constitucioacuten del PS como poleacutemica (Streit) a traveacutes de su discusioacuten conBeneke y posteriormente de eacuteste con Drobisch

9Vinculada a esto estaacute su idea de la normatividad esencial de la loacutegica10Con esto ya en el propio inicio del PS el concepto de psicologismo muda fenoacutemeno eacuteste que auacuten habraacute de

repetirse varias veces Veacutease nota 1

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el juicio y pasa a ser la proposi-cioacuten motivo por el cual eacutesta y noaquel se constituyen en el objetode la loacutegica (WL sect 24 25) Masauacuten con esta mudanza el plato-nismo va a introducir una dimen-sioacuten propiamente semaacutentica en elanti-psicologismo que no estabapresente en ninguna forma ni enKant ni en Herbart maacutes que se-raacute esencial para el desarrollo pos-terior el mismo A partir de aho-ra el anti-psicologismo loacutegico yel semaacutentico se desenvuelven enestrecha unioacuten El platonismo deBolzano a diferencia del de Her-bart estaacute esencialmente vincula-do al programa logicista derivadode la nueva situacioacuten de las ma-temaacuteticas y la aritmetizacioacuten delcaacutelculo

Este platonismo exigido por laconsolidacioacuten de una tendencialogicista derivada de la evolucioacutende las propias matemaacuteticas sinembargo entra en rota de coli-sioacuten con el inmanentismo anti-metafiacutesico derivado de la logischeFrage y sus apelos francamente re-lativistas Si el primer elementoera decisivo en el platonismo deBolzano el segundo lo seraacute en elde Frege y posteriormente en elde Husserl Seraacute primariamenteeste relativismo psicologista deri-vado de la logische Frage lo que da-raacute al PS su forma canoacutenica defi-nitiva o al menos mas conocidaEl psicologismo en la loacutegica que

Frege y Husserl critican no tienesu uacutenica y ni siquiera su maacutes im-portante fuente en la tradicioacuten dePort Royal o del MP sino en lasderivaciones de la logische Frage

Mirado retrospectivamente enel proceso del PS con respectoa la loacutegica se dejan diferenciarclaramente tres momentos a sa-ber la reaccioacuten kantiana a la loacutegi-ca moderna y su prolongacioacuten enHerbart el platonismo bolzanianoreflejo del logicismo matemaacuteti-co y el platonismo fregueano-husserliano reflejo de una reac-cioacuten ulterior al relativismo antro-poloacutegico derivado de la logischeFrage

42 - La vertiente neokantianadel antipsicologismo

Si en Kant el problema episte-moloacutegico se anuncia en su especi-ficidad es con el neokantianismoque esta idea es desenvuelta entodas sus consecuencias de modotal que el criticismo deviene ldquomeacute-todo transcendentalrdquo (COHENKTE1 p 124-127 KTE2 p 296-299 373-379 601-602 WINDEL-BAND KGM p 318ss WPh p58-59 RIEHL UumlBFph p 31 65PhK I V p 8) Este hecho mar-ca decisivamente la peculiaridaddel anti-psicologismo caracteriacutesti-co del neokantianismo La grandiferencia entre la vertiente pla-toacutenica y la neokantiana del anti-

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-psicologismo es que si la prime-ra se concentra en la loacutegica y porderivacioacuten esencial en la semaacutenti-ca (aun cuando segundo los casosno desconoce totalmente la episte-mologiacutea) la segunda se concentraen la epistemologiacutea y desconside-ra o ignora la dimensioacuten propia-mente loacutegica yo la semaacutentica

Existe una extendida concep-cioacuten de que el PS es un fenoacutemenoque gira primariamente en torno ala loacutegica Esto es falso y deja fue-ra de consideracioacuten un capiacutetulofundamental del mismo protago-nizado por el neokantianismo To-das las diferencias decisivas entrela vertiente neokantiana y la pla-toacutenica del anti-psicologismo des-aparecen si decimos sumariamen-te que el psicologismo consistioacute enuna psicologizacioacuten de la loacutegica ypasamos por alto el hecho decisivode que

a en un caso la loacutegica es loacutegi-ca general o formal en el otrotranscendental y

b que la loacutegica transcendentalneokantiana es sinoacutenimo deepistemologiacutea

Para entender lo que realmentesignifica lo anterior tenemos quetener en cuenta cuatro puntos

a Para el neokantianismo elconcepto de ldquoloacutegicardquo se defi-ne en el horizonte de la oposi-cioacuten primariamente epistemo-

loacutegica entre el pensar y la in-tuicioacuten sensible

b La intuicioacuten sensible inclusoen sus formas puras espacioy tiempo no es para el neo-kantianismo una fuente au-tosuficiente de conocimientono pudiendo ser consideradade forma desligada del pen-sar Por tal razoacuten para un neo-kantiano la epistemologiacutea noconsiste en dos capiacutetulos auto-suficientes una esteacutetica y unaloacutegica transcendental

c Pero si la intuicioacuten no puedeser desligada del pensar estepensar por su vez no puedeser desligado de su funcioacuten deestar al servicio de la objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos esto esdel conocimiento y por tan-to la propia idea de una con-sideracioacuten del pensar en siacute ode una loacutegica formal separadade la loacutegica transcendental nohace sentido

d Dicho de otra forma en elneokantianismo la loacutegica ge-neral y la esteacutetica transcen-dental pierden su autonomiacuteay pasan a estar subordinadasyo esencialmente vinculadasa la loacutegica transcendental lacual por tal razoacuten terminasiendo identificada con epis-temologiacutea

Ahora el hecho de que el anti-psicologismo kantiano no sea un

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anti-psicologismo loacutegico- formalsino esencialmente epistemoloacutegi-co estaacute vinculado a tres elementosde extrema importancia para efec-tuar un estudio diferenciado el PSa saber

a El psicologismo que el neo-kantianismo combate en pri-mera instancia no es aquel de-rivado de la logische Frage co-mo sucediacutea con el platonismodel siglo XIX sino aquel vin-culado al MP y sus derivacio-nes

b El antipsicologismo neokan-tiano y por dirigirse a la epis-temologiacutea y no a la loacutegica ge-neral es un anti-psicologismoque tiene esencialmente porobjeto las formas puras deintuicioacuten espacio y tiempopues fueron estas las que ju-garon un rol decisivo para psi-cologizar a Kant a partir deMuumlller y a traveacutes de los des-cubrimientos fisioloacutegicos has-ta Helmholtz11

c Si el anti-psicologismo neo-kantiano se opone caracteriacutes-ticamente al psicologismo delas formas pura de la intui-cioacuten no se limita a ellas sinoque se extiende al DenkenLo haraacute sin embargo uacutenica-mente en cuanto el Denken es

un instrumento de objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos Justa-mente por ello lo que estaacute enel centro de la atencioacuten no esel principio de identidad y nocontradiccioacuten sino de causali-dad

43 - Relaciones entre anti-psicologismo platoacutenico y neo-kantiano

Tan importante como es el distin-guir claramente las dos vertientesprincipales del anti-psicologismoy los tipos de psicologismo queellas respectivamente combatenlo es el estudiar la relacioacuten entrelas mismas Las diferentes concep-ciones de loacutegica de neokantianis-mo y realismo loacutegico estaacuten en uacutelti-ma instancia vinculadas a diferen-tes concepciones de la teoriacutea del apriori y de las matemaacuteticas

a Para el neokantianismo exis-te conocimiento a priori sien-do uno de los objetivos princi-pales del movimiento el fun-damentar el mismo frente alos ataques empiristas y po-sitivistas El conocimiento apriori de los neokantianosno obstante no es como enel platonismo conocimientode objetos abstractos o supra-empiacutericos sino conocimiento

11Frege por el contrario nunca estuvo preocupado con el problema del psicologismo en el espacio

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de las condiciones de la po-sibilidad de la experiencia ypor tanto jamaacutes se desliga deella para adquirir la formade una logische Erkenntnisque-lle autoacutenoma como en Frege

b La diferente concepcioacuten del apriori entre el platonismo y elneokantianismo se expresa enforma paradigmaacutetica en susdiversas concepciones del sa-ber matemaacutetico Dicho de for-ma maacutes general pero tambieacutenmaacutes precisa el neokantianis-mo tiene un punto de coinci-dencia y un punto de diferen-cia esencial con el realismo loacute-gico La coincidencia radica enque en tanto ambos son re-ceptivos de la evolucioacuten de lasmatemaacuteticas ambos son ldquolo-gicistasrsquo esto es niegan cual-quier papel de las intuicionespuras de espacio y tiempo enla fundamentacioacuten de las ma-temaacuteticas y pretenden fundarlas mismas en el pensar (Den-ken)12 Solo que en un casose trata de un formales Den-ken en el otro de un trans-zendentales Denken Esto moti-va una diferencia esencial enla concepcioacuten de las matemaacute-ticas que se expresa en el jar-goacuten neokantiano en la oposi-cioacuten entre ldquoteoriacuteardquo y ldquomeacuteto-

dordquo En tanto para los realistasloacutegicos la matemaacutetica es unateoriacutea que trata de una esferaespecifica de objetos los abs-tractos para los neokantianola matemaacutetica es meacutetodo osea un conjunto de procedi-mientos yo instrumentos deobjetivacioacuten de los fenoacutemenosy en consecuencia en uacuteltimainstancia siempre referidos ynunca separable de los obje-tos empiacutericos (Cohen PIM)La consecuencia de lo ante-rior es que para los neokan-tianos el problema de la apli-cacioacuten de las matemaacuteticas a lafiacutesica eventualmente sobre laforma de un pasaje de enun-ciados analiacuteticos a sinteacuteticoses simplemente un problemamal planteado

Si hasta ahora hemos trabajadocon una oposicioacuten entre neokan-tianismo y platonismo convieneobservar que esta oposicioacuten no estotalmente exacta y seria mas jus-to decir que la diferencia aquiacute pre-sente es una diferencia entre dostipos de platonismo vinculadosa dos tomas de posiciones esen-cialmente diversas en la cuestioacutendel chorismo y que tienen su ex-presioacuten paradigmaacutetica en las dosgrandes interpretaciones de Pla-toacuten del siglo XIX propuestas por

12Es importante no perder de vista que los neokantianos nunca fueron sin maacutes kantianos sino que mantuvieronimportantes diferencias con Kant vinculadas siempre a su atencioacuten al Faktum de la ciencia

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Natorp y por Lotze En tanto queLotze desontologiza Platoacuten Na-torp va maacutes allaacute y lo transzenden-taliza para legitimar su peculiarlectura platonizada de Kant

En su comentario a los ldquoPro-legoacutemenosrdquo husserlianos Natorpno dejaba de manifestar una cier-ta extrantildeeza frente al impacto deestos y no sin toda razoacuten afirma-ba que el neokantianismo nada te-nia a aprender der Husserl (Na-torp FLM p 271) Esta observa-cioacuten natorpiana obliga a la pre-gunta del porqueacute del fulminanteimpacto del primer volumen delas ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo Novamos a agotar esta cuestioacuten aquiacutepero es importante establecer al-gunas observaciones al respectoDesde el punto de vista estric-tamente histoacuterico-cronoloacutegico lasprimeras etapas del PS se concen-tran en la loacutegica y estaacuten vincu-ladas al anti-psicologismo platoacute-nico Posteriormente la vertienteplatoacutenica recibe un nuevo impul-so con Frege para alcanzar toda sumadurez con Husserl Entre am-bos momentos sin embargo acon-tece un fenoacutemeno peculiar que esla verdadera explosioacuten que se ope-ra en el PS a partir de la deacutecadadel 70 Este fenoacutemeno estaacute esen-cialmente vinculada al neokantia-nismo y seria incomprensible sineacuteste En efecto un factor decisi-vo para que el PS ocupe duran-te tanto tiempo el primer lugar en

la agenda de la discusioacuten filosoacutefi-ca fue el hecho que la criacutetica delpsicologismo era esencial para eltriunfo del meacutetodo transcenden-tal frente al psicoloacutegico por un la-do por otro que este triunfo diceya no respecto a un problema fi-losoacutefico particular (por ejemplo ala cuestioacuten referente a una filoso-fiacutea de las matemaacuteticas) sino res-pecto del propio destino de la filo-sofiacutea y su especificidad como dis-ciplina Mas a la fase programaacute-tica sigue en el neokantianismouna fase institucional que termi-na resultando en el casi absolutodominio de la universidad alema-na Cuando se estudia el problemadel PS no hay que olvidar nun-ca que si del punto de vista desus consecuencias y proyeccionesen el siglo XX Frege y Husserl sonfiguras decisivas y mucho maacutes im-portantes que el Neokantianismodesde el punto de vista del sigloXIX el neokantianismo tiene unatotal preeminencia de forma talque solo a traveacutes de eacutel el PS pu-do tomar la dimensioacuten que efecti-vamente tomoacute El impacto de lasldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo husser-lianas se construye sobre una his-toria que ya comenzoacute a ser escri-ta por el neokantianismo y su no-vedad no consistioacute en plantear eltema sino en focalizarlo directa-mente a la luz de los resultados dela logische Frage en el relativismo

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y no ya en el MP13

5 - Maacutes allaacute de las variantes neo-kantiana y platoacutenica

Con la distincioacuten entre dos varian-tes fundamentales en el antipsi-cologismo presente en el PS nohemos agotado en forma algunalas distinciones decisivas que de-ben ser hechas sino dado simple-mente un primer esquema orde-nador Sobre su base es posibleintroducir otras distinciones quesuponen la anterior maacutes al mismotiempo la refinan y completan

51 - Antipsicologismo semaacutenti-co y problema del sentido Lasdiferentes formas del problemade la objetividad en el s XIX

Ya hemos observado que no huboen el neokantianismo un intereacutesparticular en el combate al psico-logismo semaacutentico Esto no es pro-ducto de un cierto descuido sinouna derivacioacuten sistemaacuteticamentenecesaria a partir del modo en quese construye el problema de la ob-jetividad en dicho movimiento Apartir de Frege es usual distinguirentre el sentido y el valor de ver-dad de un enunciado y junto con

esta distincioacuten el distinguir ulte-riormente entre el problema de lafundamentacioacuten de la objetividaddel valor de verdad y el problemade la fundamentacioacuten de la objeti-vidad del sentido El pensamientoalemaacuten pre-fregueano sin embar-go estaacute dominado por el conceptode validez (Geltung) el cual se re-fiere primariamente a la cuestioacutende la objetividad epistemoloacutegica(resumido a su maacutes simple expre-sioacuten en el neokantianismo en elconcepto de ldquoleyrdquo) y solo de modoindirecto secundario e inespeciacutefi-co a la cuestioacuten de la objetividaddel sentido

Esta situacioacuten comienza a expe-rimentar una mudanza significati-va a partir de los antildeos 90rsquo En efec-to el desarrollo de las Geisteswis-senschaften (GW) pone en eviden-cia que la cuestioacuten del sentido lin-guumliacutestico es meramente un aspectode la cuestioacuten mucho mas generaldel sentido en la enorme diversi-dad de las manifestaciones cultu-rales De tal forma el problemacolocado primeramente en la loacute-gica a traveacutes de la distincioacuten en-tre el juicio el enunciado y la pro-posicioacuten experimente una decisi-va ampliacioacuten Con esta surge unnuevo capiacutetulo del PS que tiene aDilthey y a la escuela de Baden co-

13Obseacutervese la diferencia de perspectiva de Natorp Objektive und subjektive Methode y los Prolegoacutemenos de Hus-serl Lo que estaacute en el centro de la atencioacuten de Natorp es mostrar la primaciacutea del meacutetodo transcendental y enconsecuencia del proceder objetivo sobre el subjetivo En Husserl lo que estaacute en el centro de atencioacuten son por unlado los presupuestos por otro las consecuencias del psicologismo como posicioacuten filosoacutefica

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mo principales protagonistas Loanterior no significa decir sin em-bargo que con esta poleacutemica yase establezca en el neokantianis-mo la criacutetica del psicologismo se-maacutentico como central sino uacuteni-camente que se abre un caminoque en figuras como Rickert ter-mina culminando en una crecien-te atencioacuten a la cuestioacuten de la ob-jetividad del sentido En los antildeosnoventa la resistencia neokantia-na al psicologismo del MP en lasGW diltheano asume auacuten caracte-res maacutes ldquoclaacutesicosrdquo tomando comohorizonte una ampliacioacuten del con-cepto de validez (Geltung) que lle-va a introducir como central la no-cioacuten de valor (Wert)

Pero si por un lado convie-ne percibir la especificidad de unproblema del psicologismo con-centrado en las GW por otro con-viene tambieacuten no perder de vis-ta los viacutenculos esenciales que estepsicologismo posee con aquel quese plantea en la loacutegica El recono-cimiento de la especificidad de lasGeisteswissenschaften es un proce-so que estaacute iacutentimamente vincula-do a la discusioacuten en torno a losfundamentos de la loacutegica tanto enun caso como en otro el problemade la objetividad del sentido tien-de a delinearse con contornos pro-pios frente al problema maacutes claacutesi-co de la verdad

52 - Objetivismo y subjetividad

Pese todas las diferencias que exis-ten entre las dos vertientes delanti-psicologismo mencionadashasta ahora hay algunos rasgoscomunes que motivan una simi-lar (aun cuando no absolutamenteideacutentica) objecioacuten de parte de lospsicologistas y que se deja resu-mir en el tiacutetulo ldquoobjetivismordquo conel cual se apunta a subrayar des-consideracioacuten del caraacutecter en uacutelti-ma instancia subjetivo del conoci-miento La liacutenea de confrontacioacutenentre psicologistas y antipsicolo-gistas tiene una de sus expresio-nes maacutes importantes en la oposi-cioacuten ldquoobjetivismordquo- relativismo

Si comenzamos con el antipsi-cologismo de cuntildeo platoacutenico di-gamos que ya Exner objetaba aBolzano que la admisioacuten de ldquore-presentaciones en siacuterdquo objetivas eirreales nos enfrenta al proble-ma irresoluble de coacutemo un suje-to real como en uacuteltima instancialo es el sujeto del conocimientopuede acceder a algo que de prin-cipio no es real una objecioacuten queobviamente tiene su raiacutez uacuteltimaen la presuposicioacuten incondicionaldel PI o sea en este caso en quesolo puedo captar lo que de alguacutenmodo es real ldquoen miacuterdquo (Exner a Bol-zano 10121834 p 74-75 y 78)Bolzano intenta varias respuestasa esta objecioacuten pero ninguna esconvincente en uacuteltima instancia

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porque en todas ellas no consigueevidenciar el supuesto de Exnerconcediendo a este sin maacutes los de-rechos de una psicologiacutea natura-lista La criacutetica de Exner a Bol-zano se repite en teacuterminos praacutec-ticamente ideacutenticos entre Kerry(UumlAPsV IV p 305) y Frege conla gran diferencia que ella termi-naraacute llevando a Frege a una decisi-va profundizacioacuten de su posicioacuten(FREGE L (1897) p 157 GGA Ip XIVss)

La tendencia objetivista de losanti-psicologistas se mantieneaun cuando en otra variante enla vertiente neokantiana siendodecisiva tanto en Cohen cuanto enWindelband (BRELAGE 1965 p94-95) Como consecuencia de sutajante distincioacuten de todo lo psico-loacutegico la asiacute llamada ldquoconcienciatranscendentalrdquo deviene en reali-dad una mera faccedilon de parler queno expresa otra cosa que el con-junto sistemaacutetico de principios devalidez No obstante surgiraacute delas propias filas neokantianas ypor un proceso inmanente el in-tento de superacioacuten de esta ten-dencia Natorp es el primero encomprender que al fin de cuen-tas una filosofiacutea transcendentalsin sujeto es un sin-sentido y quetoda criacutetica al psicologismo queno deacute cuenta de su justa exigen-cia subjetiva estaraacute condenada alfracaso Por tal razoacuten Natorp con-centra su criacutetica al psicologismo

en una criacutetica del concepto psi-cologista de subjetividad (UumlOSMp 285-286 EPs sect 13-15) Su tesisfundamental que lo opondraacute alpsicologismo no menos que al ldquolo-gicismordquo radical de Cohen rezael psicologismo es la consecuenciade una falsa teoriacutea de la subjeti-vidad propia del naturalismo (yen uacuteltima instancia del dualismo)y por tanto solo puede ser defi-nitivamente superado si se superaesta Sobre esta base la salida queNatorp propone es disolver la riacutegi-da oposicioacuten sujeto-objeto presu-puesta en toda visioacuten naturalistade la subjetividad substituyeacutendo-la por una oposicioacuten relativa entresubjetivacioacuten y objetivacioacuten comodiferentes direcciones en que sepuede considerar un uacutenico pro-ceso fundamental Si el sujeto nopuede ser simplemente elimina-do el soacutelo puede ser integradocoherentemente en el horizonte dela reflexioacuten filosoacutefica si no se con-tradicen los principios del meacutetodotranscendental o sea el caraacutecterde la filosofiacutea como discurso desegunda orden Por tanto la sub-jetividad tiene que ser tematizadaen un procedimiento reconstruc-tivo a partir de la objetividad y enestricta correlacioacuten con la misma(NATORP AP p 213)

Si queremos entender el desen-volvimiento posterior que tomaraacutela lucha antipsicologista y en par-ticular el papel que Frege y Hus-

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serl habraacuten de desempentildear en lamisma tenemos que observar quejunto con el mencionado cambiofundamental existe en Natorp unotro punto en el cual eacutel conserva elstatus quo a saber en el manteni-miento del PI En tal sentido sal-vemos del olvido un hecho impor-tante a saber que en 1894 cuan-do Twardowsky escribe su histoacuteri-co texto ldquoSobre contenido y objetode la representacioacutenrdquo Natorp lededica una resentildea en donde delcontexto surge que eacutel consideraque Twardowsky se encuentra enla direccioacuten errada (NATORP BD-SE II p 198-201) impresioacuten eacutes-ta que se reafirma si se atiendea la correspondencia con Husserlde esa eacutepoca (Hua BriefwechselBand V p 39-58) y se confirmadefinitivamente en textos poste-riores (AP p 153)

Pues bien un antildeo antes en1893 en el prefacio de las GGAen su criacutetica de Erdmann Fregees el primero que en el horizontede la filosofiacutea alemana del sigloXIX abandona el PI14 Esta de-cisiva virada claro estaacute quedaraacutetotalmente opacada a la luz de lacentralidad que la cuestioacuten de unaperspectiva subjetiva adquiere en

la fenomenologiacutea husserliana Lacriacutetica husserliana del psicologis-mo en los ldquoProlegoacutemenosrdquo no de-be ser vista como un todo auto-subsistente sino que se prolonga ycompleta en el segundo volumende ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo con lapropuesta de una elaborada teoriacuteade la subjetividad coherente conlas exigencias del platonismo15

El movimiento iniciado por Na-torp en el neokantianismo mar-burgueacutes tiene un cierto paraleloaun cuando maacutes tardiacuteo en el neo-kantianismo de Baden con Rickert(ZWE) y una interesante radica-lizacioacuten en Houmlgnigswald (PDPs)quien levanta la tesis de la no in-compatibilidad de principio y he-cho (Prinzip und Tatsache) tantoen el caso del yo como del lengua-je

53 - Fenomenologiacutea transcen-dental ndash facticidad

Como deberiacutea ser sabido peroes generalmente ignorado la criacute-tica husserliana al psicologismoni termina ni culmina en 1900sino que acompantildea todo el desa-rrollo de Husserl y experimentauna novedad decisiva con la des-

14El papel de Frege en el PS es sistemaacuteticamente mal comprendido su radical antipsicologismo no excluye sinoque supone una cierta idea de subjetividad El centro de su criacutetica a Husserl en PhA es justamente que este como lacasi totalidad de los disciacutepulos de Brentano en esta eacutepoca mantiene expresamente la afirmacioacuten del PI (HUSSERLHua XII p 94)

15Obviamente que en este desarrollo Natorp ha jugado un papel fundamental y tal vez Frege ha hecho unacontribucioacuten decisiva

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cubierta de la reduccioacuten y la vira-da al idealismo fenomenoloacutegico-transcendental (Husserl HuaXXIV p 209ss) Con esto apa-rece una nueva variante de anti-psicologismo que tiene un perfilespecifico distinto de todas aque-llas ya existentes e incluso obligaa repensar con maacutes exactitud lasdistinciones de las cuales partiacutea-mos16

En la variante fenomenoloacutegico-transcendental del anti-psicologis-mo si bien se da cuenta por ex-tenso de la relacioacuten subjetividadndash objetividad los problemas delanti-psicologismo anterior no des-aparecen sino que se trasladan dela relacioacuten de un sujeto concebidopsicoloacutegicamente a un objeto con-cebido platoacutenicamente a la rela-cioacuten entre subjetividad psicoloacutegi-ca y transcendental un problemaque ya como vimos se anunciabaen Natorp pero que ahora se radi-caliza por la propia reduccioacuten

La buacutesqueda de una mediacioacutenentre ambas subjetividades per-mea la uacuteltima etapa del pensa-miento de Husserl con su concep-cioacuten monaacutedica del sujeto trans-cendental que introduce nocio-nes tales como Verweltlichung

Verzeitlichung y Verraumlumlichung(HUSSERL Hua III1 p 67 VIIp 71) pero solo alcanzaraacute todo sudesarrollo cuando a traveacutes de lapoleacutemica en torno al artiacuteculo de laEnciclopedia Britaacutenica Heideggerintroduzca la tesis de que el ver-dadero sujeto transcendental es elsujeto faacutectico en su facticidad ycomience a desenvolver eacutesta en elhorizonte de un replanteo generalde las relaciones entre el ser y eltiempo17

54 - Objetivismo psicologismorefinado y nuevamente MP

Si con Natorp el anti-psicologismomarburgueacutes se desenvuelve en ladireccioacuten de una consideracioacutensubjetiva existen formas de anti-psicologismo como las represen-tadas por Bauch que se desen-vuelven en la direccioacuten exacta-mente contraria Su idea baacutesicaes que la lucha contra el psicolo-gismo debe ser radicalizada puesen todas las formas de pretendidoanti-psicologismo inclusive puesen la escuela de Marburgo per-manece un ldquopsicologismo refina-dordquo (verfeinerter Psychologismus)el cual debe ser superado si la lu-

16Si sobre el criterio de Frege quien aceptaba el PI era psicologista sobre el criterio de Husserl quien no efectuacuteala reduccioacuten es psicologista y por tanto tambieacuten Frege Ver nota 1

17Con esto adquiere su uacuteltima expresioacuten el proceso iniciado por Beneke y desenvuelto por Lotze y la escuela deBrentano en el siglo XIX

18En base a lo dicho podriacuteamos diferenciar en la lucha anti-psicologista del neokantianismo institucional porlo menos tres etapas una primera la de los fundadores del programa una segunda de los disciacutepulos destacados

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cha debe llegar a su fin (IKPhAGp 141 Compare LASK LU p 171y MOOG LPsPs p 53 77)18

Dentro del horizonte descrip-to otro capiacutetulo importante esprotagonizado en la escuela deBrentano en la cual el objetivismoadquiere una variante realista yno-transcendental sobre la formade la Gegenstandstheorie de Mei-nong la cual se propone progra-maacuteticamente una ldquoconsideracioacutena-psicoloacutegicardquo (apsychologische Be-trachtung) del objeto y de la ver-dad

Asiacute como Bauch se ve condu-cido en el neokantianismo a unapoleacutemica con Natorp Houmlfler si-guiendo a Meinong se ve conduci-do en la escuela de Brentano a unapoleacutemica con Marty quien reco-nociendo la necesidad y legitimi-dad de la lucha anti-psicologistaresiste sin embargo a toda substi-tucioacuten del MP por la Gegenstandst-heorie y su propuesta de eliminartoda consideracioacuten subjetiva (HOuml-FLER UumlA p 216 219 MARTYUG p 304 307) A esta tendenciadirige la acusacioacuten de ldquoApsycho-logismusrdquo para diferenciarla delAnti-psychologismus que como

ya indicamos tambieacuten la escuelade Brentano pretende defender

Si efectuamos ahora una visioacutenretrospectiva tenemos que obser-var que si cuando se trata el PSla atencioacuten tiende a concentrarseen el conflicto entre psicologistasy anti-psicologistas este conflictoes un aspecto particular cierta-mente central y esencial de un to-do maacutes abrangente Asiacute como exis-tioacute una reaccioacuten antipsicologistaal psicologismo reinante existioacuteademaacutes de la reaccioacuten psicologis-ta una reaccioacuten al antipsicologis-mo considerado ahora como meroantipsicologismo u objetivismo

6 - Conclusioacuten

En las liacuteneas que anteceden hemospuesto en evidencia que el PS lejosde haber sido como generalmentese tiende a creer una unidad in-divisa concentrada en la loacutegica ycon epicentro en los ldquoProlegoacuteme-nosrdquo husserlianos fue un procesoen el cual se pueden y deben di-ferenciar etapas tendencias nuacute-cleos temaacuteticos y liacuteneas de evolu-cioacuten

Rickert y Natorp que integran la perspectiva subjetiva en el horizonte transcendental y auacuten una tercera que conHoumlnigswald y Bauch van en direcciones no solo diferentes sino opuestas

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Referecircncias

BAUCH Bruno Immanuel Kant und die Philosophische Aufgabe der Ge-genwart Beitrage Philosophie des Deutschen Idealismus III 1925p 7-18 (IHPhAG)

BENEKE F Eduard 1822 Neue Grundlegung zur Metaphysik als Pro-gramm zu seinen Vorlesungen uumlber Logik und Metaphysik dem Druckuumlbergeben Berlin Posen in Commission bei E G Mittler (NGM)

________ 1832 Kant und die philosophische Aufgabe der Gegenwart Ei-ne Uumlberdenkschrift auf die Kritik der reinen Vernunft Berlin PosenBromberg (KPhAG)

________ 1840 System der Metaphysik und Religionsphilosophie Aus dennatuumlrlichen Grundverhaumlltnissen des menschlichen Geistes abgeleitetBerlin Ferdinand Duumlmmler (SM)

BERGMAN Julius 1892-1893 Geschichte der Philosophie Bd 1-2________ 1842 System der Logik als Kunstlehre des Denkens Berlin (SL)________ 1852 ldquoDas gegenwaumlrtige Verhaumlltnis zwischen der Psycholo-

gie und der Physiologierdquo Archiv fuumlr pragmatische Psychologie II116-38 (VPSPH)

________ 2006 (1877) Lehrbuch der Psychologie als NaturwissenschaftBerlin Elibron Classics Berlin Ernst Siegfried Mittler und Sohn(LPsNW)

BOLZANO Bernhard Wissenschaftslehre Sulzbach Wolfgang Schulz1837 (WL)

BOSCHENSKI I M 1976 Historia de la loacutegica formal Madrid GredosBRELAGE Manfred Transzendentalphilosophie und konkrete Subjektivi-

taumlt In BRELAGE Manfred Studien zur TranszendentalphilosophieBerlin 1965

BRENTANO Franz 1971 Psychologie vom empirischen Standpunkt 2 BdeHamburg Felix Meiner (PES)

___________ 1982 Deskriptive Psychologie hrsg V R M Chisholm uW Baumgartner Hamburg Meiner (DP)

COHEN Hermann 1871 Kants Theorie der Erfahrung Berlin Duumlmmler2da Aufl 1885 (KTE1 KTE2)

_______ Das Prinzip der Infinitesimal-Methode und seine Geschichte EinKapiacutetel zur Grundlegung der Erkenntniskritik Berlin 1883 (PIM)

DILTHEY Wilhelm 1984 Das Wesen der Philosophie Hamburg Meiner(WPh)

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_________ 1990 ldquoEinleitung in die Geisteswissenschaften Versuch ei-ner Grundlegung fuumlr das Studium der Gesellschaft und der Ges-chichterdquo In Gesammelte Schriften (1913-1958) Bd 1 9 AuflageHrsg Groethuysen Goumlttingen Vandoeck and Ruprecht (EGW)

_________ 1990 ldquoIdeen uumlber eine beschreibende und zergliederndePsychologie (1894)rdquo In Gesammelte Schriften (1913-1958) Bd V4 Aufl Hrsg Georg Misch Goumlttingen Vandoeck and Ruprecht(IBZPs)

FISCHER Kuno 1862 Die beiden kantischen Schulen in Jena StuttgartCottascher Verlag (bKS)

FREGE Gottlob Die Grundlagen der Arithmetik Eine logisch mathematis-che Untersuchung uumlber den Begriff der Zahl Hamburg Meiner 1988(GA)

_______ Grundgesetze der Arithmetik Jena Pohl 1893 (GGA)_______ Logik (1897) In Frege G Nachgelassene Schriften Edited by

Gottfried Gabriel Walter Roumldding Hans Hermes Friedrich Kam-bartel and Friedrich Kaulbach Hamburg Felix Meiner Verlag1969 p 137-163 (L(1897))

FRIES J Friedrich 1803 Reinhold Fichte Schelling Leipzig August Le-brecht Reineicke (RFS)

______ 1811 ldquoSystem der Logik Ein Handbuch fuumlr Lehrer und zumSelbstgebrauchrdquo Book Renaissance Heidelberg Mohr und Winter(SL)

_______1819 Grundriss der Logik Ein Lehrbuch zum Gebrauch von Schu-len und Universitaumlten Heidelberg Mohr und Winter 2te verbes-serte Auflage (GL) (NKV)

_______ 1824 Polemische Schriften 2 Bde Hallen und Leipzig Reinec-ke and Comp (PS)

_______ 1824 System der Metaphysik Heidelberg Christiana FriedrichWinter (SM)

_______ 1834 Geschichte der Philosophie Halle Verlag der Buchhand-lung des Weisenhauses (GPh)

_______ 1935 Neue oder anthropologische Kritik der Vernunft 3 BdeBerlin Verlag Oumlffentliches Leben (NKV)

HELMHOLTZ Hermann 1903 ldquoUumlber das Sehen des Menschenrdquo Einpopulaumlr wissenschaftlicher Vortrag gehalten zu Koumlnisberg in PreussenZum Besten von Kants Denkmal Am 27 Februar 1855 LeipzigVoss 1855 In Vortraumlgen und Reden 4te Aufl Brauchschwieg FVieweg und Sohn (UumlSM)

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HERBART J Friedrich 1993 Lehrbuch zur Einleitung in die PhilosophieHamburg Meiner Verlag (LEPh)

_________ 2003 Lehrbuch zur Psychologie Koumlnigsberg August WilhelmUnzer 1816 Ed Margret Kaiser ndash el Safti Wuumlrzburg Koumlnigshau-sen and Neumann (LPs)

_________ Psychologie als Wissenschaft Neu begruumlndet auf ErfahrungMetaphysik und Mathematik Hersg Hartenstein Leipzig Leo-pold Voss 1850 (PsW)

HUSSERL Edmund Briefwechsel Brentano Schuler Husserliana Doku-mente III1Briefe

_________ Philosophie der Arithmetik Mit ergaumlnzenden Texten (1890-1901) Ed Lothar Eley The Hague Martinus Nijhoff 1970 Hus-serliana XII (Hua XII)

_________ Briefwechsel Band V Die Neukantianer Hua ndash DokumenteDordrecht Boston London Kluwer 1994

_________ Logische Untersuchungen Zweiter Band Erster Teil Unter-suchungen zur Phaumlnomenologie und Theorie der Erkenntnis EdUrsula Panzer The Hague Martinus Nijhoff 1984 HusserlianaXIX1 (Hua XIX1)

_________ Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und phaumlnomenolo-gischem Philosophie Erstes Buch Allgemeine Erfahrung in diereine Phaumlnomenologie Rev Ed Karl Schuhmann The Hague Mar-tinus Nijhoff 1976 Husserliana III1 (Hua III1)

_________ Erster Philosophie (1923-1924) Zweiter Teil Theorie der phauml-nomenologischen Reduktion Ed Rudolf Boehm The Hague Marti-nus Nijhoff 1959 Husserliana VIII (Hua VIII)

_________ Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie Vorlesungen1906-1907 Ed Ulrich Melle Dordrecht Martinus Nijhoff 1987Husserliana XXIV (Hua XXIV)

HOumlNIGSWALD Richard Die Grundlagen der Denkpsychologie Studienund Analysen Muumlnchen 1921 2 Auflag Leipzig-Berlin 1925(GDPs)

KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Kants gesammelte SchriftenHsg Von der Preussischen Akademie der Wissenschaften Berling1902ss Vol III IV (AK)

KERRY B Uumlber Anschauung und ihre psychische Verarbeitung Vier-ter Artikel Vierteljahresschrift fuumlr wissenschaftliche Philosophie 111887 pp 249-307 (UumlApsV)

LASK Emil Die Lehre vom Urteil Tuumlbingen 1912 (LU)

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LAZARUS Moritz 1860 ldquoEinleitende Gedanken uumlber Voumllkerpsycho-logierdquo Zeitschrift fuumlr Voumllkerpsychologie und Sprachwissenschaften I1-73 (EGV)

LEARY David E The psychological development of the conception of psy-chology in Germany 1780mdash1850 Journal of History of Behavioralscience 14 1978 113-121

__________ The psychology of Jakob Friedrich Fries (1773-1843) its con-text nature and historical significance Storia e critica della psico-logia vol III No 2 1982 217-248

LIEBMANN Otto 1912 ldquoKant und die Epigonen Eine kritische Ab-handlungrdquo In Herausgegebene von der Kantgesellschaft Ed BrunoBauch Berlin Reuther and Reichard (KE)

LIPPS Theodor 1883 Grundtatsachen des Seelenlebens Bonn Verlag vonMax Cohen und Sohn (GT)

LOTZE Herman Logik Drei Buumlcher vom Denken vom Untersuchen undvom Erkennen Misch Georg (ed) Leipzig Meiner 1912 (L)

______ Die Philosophie in den letzten 40 Jahren (1880) In LOTZEHermann Logik Drei Buumlcher vom Denken vom Untersuchen und vomErkennen Misch Georg (ed) Leipzig Meiner 1912 pp XCIV-CXXII

MARTY Anton 1908 Untersuchungen zur Grundlegung der allgemeinenGrammatik und Sprachphilosophie Halle Niemeyer (UG)

MEYER Juumlrgen Bona 1870 Kants Psychologie Dargestellt und eroumlrtertBerlin Verlag von Wilhelm Hertz (KPs)

MOOG Willy Logik Psychologie Psychologismus Wissenschaftssystema-tischen Untersuchungen Halle Nyemeier 1919 (LPsPs)

NATORP Paul 1912 Allgemeine Psychologie nach kritischer Methode Ers-tes Buch Objekt und Methode der Psychologie Tuumlbingen Verlag vonJ C B Mohr (AP)

________ 1888 Einleitung in die Psychologie nach kritischer MethodeFreiburg Verlag von J C B Mohr (EPs)

________ Uumlber objektive und subjektive Methode Philosophische Mo-natshefte XXIII 1887 pp 257-286 (UumlOSM)

________ Bericht uumlber deutsche Schriften zur Erkenntnistheorie ausden Jahren 1894 und 1985 Archiv fuumlr systematische PhilosophieErstes Stuumlck 3 1897 pp 101-121 Zweites Stuumlck 3 1897 pp193-209 Drittes Stuumlck 3 1897 pp 391-402 (BDSE)

________ Zur Frage der logischen Methode M Bez auf E HusserlsProlegomena zur reinen Logikrdquo Kant Studien 6 1901 pp 270-

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283 (FLM)________ Platos Ideenlehre 2da Aufl Leipzig 1921 (PI)REINHOLD K Leonhard Versuch einer neuen Theorie des menschlichen

Vorstellungsvermoumlgens 2te Auflage Prag und Jena C Widtmannund I M Mauke 1796 (Versuch)

__________ Beitraumlge zur Berichtigung bisheriger Missvestaumlndnisse der Phi-losophen Erster Band Hamburg Felix Meiner 2003 (Beitraumlge)

Rickert Heinrich Der Gegenstand der Erkenntnis Ein Beitrag zum Pro-blem der philosophischen Transzendenz Freiburg Mohr 1892 (GE)

___________ Zwei Wege der Erkenntnistheorie Transzendentalpsycholo-gie und Transzendentallogik Halle Kaemmerer 1909 (ZWE)

RIEHL Aloys 1872 Uumlber Begriff und Form der Philosophie Eine allgemei-ne Einleitung in das Studium der Philosophie Berlin Carl DunckersVerlag (UumlBFPh)

_______ 1876 Der philosophische Kritizismus und seine Bedeutung fuumlr diepositive Wissenschaft 2 Bde Leipzig Verlag von Wilhelm Engel-mann (PhK)

STUMPF Carl 1892 Psychologie und Erkenntnistheorie Muumlnchen Ver-lag der K Akademie (PsE)

_______ 1924 ldquoSelbstdarstellungrdquo R Schmidt Hrsg Die Philosophieder Gegenwart in Selbstdarstellungen 5 Band 204-65 Leipzig Mei-ner (SD)

_______ 2011 Erkenntnislehre Lengerich Pabst Science Publishers (EL)TWARDOWSKI K 19821894 Zur Lehre von Inhalt und Gegenstand der

Vorstellung Eine psychologische Untersuchung Muumlnchen Philosop-hia Verlag A Houmllder (ZL)

WINDELBAND W 1884 ldquoKritische oder genetische Methoderdquo In Prauml-ludien Aufsaumltze und Rede zur Philosophie und ihrer GeschichteTuumlbingen Verlag von JCB Mohr 3a 318-54 1907 (KGM)

_____________ 1884 ldquoWas ist Philosophierdquo In Praumlludien Aufsaumltze undRede zur Philosophie und ihrer Geschichte Tuumlbingen Verlag vonJCB Mohr 3a 24-77 1907 (WPh)

Recebido 29062019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i221193

A Antiguidade um Erro Profundondash Foucault a Filosofiae suas Atitudes

[Antiquity a Deep Error ndash Foucault Philosophy and its Attitudes]

Jean Dyecircgo Gomes Soares

Resumo Esse artigo visa compreender a afirmaccedilatildeo de Michel Fou-cault de que a Antiguidade seria ldquoum erro profundordquo Quando ele falade suas relaccedilotildees com a filosofia ele se desloca da pretensatildeo ontoloacutegicatradicional para uma praacutetica ao inveacutes de se perguntar ldquoo querdquo seriamo poder e a filosofia ele busca compreender ldquocomordquo funcionam Di-ante desse deslocamento teoacuterico em torno das chamadas ldquoproblema-tizaccedilotildeesrdquo esboccedila-se uma problematizaccedilatildeo especiacutefica a do sujeito Aodestacar descontinuidades desde a Antiguidade ateacute a Modernidadeentre estiliacutesticas de si e teorias do sujeito Foucault permite vislum-brar uma resposta agrave questatildeo do tiacutetulo O expediente seria pensar aAntiguidade como um erro profundo sem com isso desconsiderar aatitude tambeacutem erraacutetica do homem modernoPalavras-chave Problematizaccedilatildeo Sujeito Atitude ModernidadeBaudelaire

Abstract This paper aims to comprehend Michel Foucaultrsquos state-ment that Antiquity would be ldquoa deep errorrdquo When he talks on poweror its relations with philosophy he displaces himself from a traditi-onal and ontological pretension to a practical one instead of askingldquowhatrdquo would be power and philosophy he seeks to comprehendldquohowrdquo they work Having in mind this theoretical displacementon ldquoproblematizationsrdquo we take as an example that on the subjectFoucault shows discontinuities soughed up for him since Antiquityto Modernity detailing differences between stylistics of self andtheories of the subject In such a way we found and answer to thetitle question The strategy is to think Antiquity as an error as wellas considering the erratic attitudes of the modern humankindKeywords Problematization Attitude Subject Modernity Baude-laire

Michel Foucault dedicou parte re-levante de sua vida agrave AntiguidadePor maiores que sejam as criacuteticasa suas posiccedilotildees teoacutericas ou a suasleituras seus trabalhos consti-

tuem uma referecircncia estimulantesobre a esteacutetica da existecircncia e ocuidado de si E no entanto emsua uacuteltima entrevista lemos o se-guinte juiacutezo ldquoToda a Antiguidade

Professor do Centro Universitaacuterio Unihorizontes Doutor em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica doRio de Janeiro (PUC-RJ) E-mail jeandyegogmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-1096-9686

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JEAN DYEcircGO GOMES SOARES

me parece ter sido um lsquoerro pro-fundordquorsquo Como entender algo tatildeoassertivo decidido e direto Se-ria contraditoacuterio estudar um de-terminado periacuteodo considerando-o um ldquoerro profundordquo Devemosignorar ou relativizar o que estaacutedito ou devemos tomaacute-lo a seacuterio

O enunciado em questatildeo surgepara noacutes hoje em meio a um con-junto de textos que recobrem tra-balhos do autor francecircs desde1954 ateacute poacutestumos publicados em1988 Os Dits amp Eacutecrits (FOU-CAULT 1994) de fato existe agraverevelia das recomendaccedilotildees testa-mentaacuterias de seu autor Sem nosdetermos sobre a questatildeo edito-rial pois tambeacutem eacute verdade queo agora publicado em conjuntofora antes publicado ou aprovadoseparadamente eacute preciso dizerque optamos por trabalhar nossaquestatildeo a partir de uma obra in-completa e natildeo aprovada por seuautor que se estabelece pelo seufocirclego ldquoespontacircneordquo em forma-tos diversos como uma espeacutecie deensaios de um montaigne no seacute-culo XX se o leitor me permite aexpressatildeo Ali reunidos eles pro-porcionam uma dimensatildeo uacutenicadas relaccedilotildees possiacuteveis entre as par-tes reunidas Assumindo tal pers-pectiva buscaremos compreenderessa afirmaccedilatildeo aparentemente ra-dical em correlaccedilatildeo com outrosenunciados que talvez ajudem asustentaacute-la Ao menos em um sen-

tido a analogia procede ambosfazem convergir um pensamentoinquieto em constante retomadacom a forma de vida em que seencontram (NEHAMAS 1998) eisso bastaria para dar atenccedilatildeo agravequestatildeo que Michel Foucault fezdespertar em noacutes

Contra ou a favor Em maio de1981 Foucault concede uma en-trevista a Didier Eribon seu fu-turo bioacutegrafo em que reitera umaposiccedilatildeo Ali ele sugere uma no-taacutevel atitude diante de ldquoum go-vernordquo ainda que aparentementefavoraacutevel ele natildeo soacute se dirigiaagravequele que acabava de ser eleitoFranccedilois Mitterand mas se refe-ria a um tema que agrave eacutepoca lhe erabastante caro

Eacute preciso sair do dilemaou se eacute a favor ou con-tra Depois de tudo pode-se estar de peacute e olhandoadiante Trabalhar comum governo natildeo implicanem sujeiccedilatildeo nem aceita-ccedilatildeo global Eacute possiacutevel agravesvezes trabalhar e ser re-belde Acho mesmo queas duas coisas vatildeo jun-tas (Foucault 1994-IV p180)

A configuraccedilatildeo do dilema eacute claraSe considerarmos haver um con-flito contiacutenuo em curso ser a fa-

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vor ou contra de maneira irrefle-tida ajuda pouco a sair do dilemaIsso porque suporiacuteamos posiccedilotildeestatildeo rigidamente encerradas queou se seria completamente a fa-vor ou completamente contra ig-norando uma infinita gradaccedilatildeo deposiccedilotildees entre os extremos A dig-nidade de olhar adiante passa pormanter uma atitude emancipadaque sabe simultaneamente traba-lhar e ser rebelde diante de umgoverno Trata-se de natildeo se sujei-tar de natildeo agir contra si mesmotampouco assumir uma posiccedilatildeode aceitaccedilatildeo mouca e global Fou-cault se propotildee a tarefa de con-frontar o presente isso implicaem ao experimentaacute-lo aprendera tomar posiccedilotildees discutir dialo-gar sobre o que nos tornamos eseremos Nessa medida poderiacutea-mos ceder a uma sugestatildeo tenta-dora a de que ele agiria como oexplorador que vai ateacute uma colocirc-nia penal Ali ele observaria osprocedimentos do aparelho ouem termos foucaultianos o fun-cionamento do dispositivo tirariasuas conclusotildees e esperaria que asimples discordacircncia performati-vamente bem cuidada diante dooficial fosse suficiente para pocircrtermo a uma situaccedilatildeo injusta

Em 1984 em conversa comAlessandro Fontana ele rechaccedilaessa posiccedilatildeo numa clara respostaa essa criacutetica Ali explicita a am-biguidade dos saberes relaciona-

dos ao corpo ciente de que aque-les sobre os quais ele havia se de-bruccedilado ao longo de sua trajetoacuteriaapresentaram mudanccedilas que ldquoti-nham sido profundamente beneacute-ficasrdquo Fontana emenda ldquoEntatildeoesses saberes nos ajudam a vivermelhorrdquo e ele esclarece

Natildeo houve uma simplesmudanccedila nas preocupa-ccedilotildees mas no discursofilosoacutefico teoacuterico e criacute-tico com efeito na maiorparte das anaacutelises feitasnatildeo se sugere agraves pessoaso que elas deveriam sero que deveriam fazer oque deveriam crer ou pen-sar Trata-se mais de fazeraparecer como ateacute o pre-sente os mecanismos soci-ais teriam se colocado emjogo como as formas derepressatildeo e de coerccedilatildeo te-riam agido e assim a par-tir daiacute me parece que sedaria agraves pessoas a possibi-lidade de se determinarde fazer ciente de tudoisso a escolha de sua exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 732)

Foucault natildeo sugere como jogar ojogo ou seja natildeo manifesta pre-ocupaccedilotildees normativas e vecirc issocomo uma mudanccedila no discurso

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filosoacutefico Como no caso de umtexto de jornal de Kant (2012Foucault 1978 2010) trata-se me-nos de dizer como o outro deveou natildeo agir e mais de sugerir queele pode agir diferentemente quepode ousar saber Em uma for-mulaccedilatildeo simples natildeo se trata deensinar como o jogo da verdadedeve ser jogado mas de analisarcomo ele vem sendo jogado parapermitir que cada um avance porsi mesmo nas jogadas Ao fazerisso todavia Foucault natildeo assumeuma posiccedilatildeo de observador exte-rior cujo objetivo seria o de sem-pre se posicionar ldquofora daquirdquoquixotescamente sem quaisquerprovisotildees e disposto a morrer defome se as condiccedilotildees forem ad-versas Ele faz suas anaacutelises parapermitir que cada um escolha osconflitos os jogos que deseja en-frentar Com isso ele natildeo desejaencontrar um lugar de plena auto-nomia individual mas sim permi-tir que cada um faccedila as escolhasde sua existecircncia um processocomplexo que depende simulta-neamente do desenvolvimento decapacidades bioloacutegicas e sociaiscapaz de permitir que ldquoos indi-viacuteduos determinem a si mesmosrdquosem que isso exija uma recusada liberdade social muito pelocontraacuterio permitindo simultanea-mente esse exerciacutecio por parte detodos

Judith Butler fornece uma com-

paraccedilatildeo bastante elucidativa sobreas relaccedilotildees entre o poder e os su-jeitos Para ela acostumamo-nosa pensar no poder como algo quepressiona o sujeito exteriormentesubordinando e relegando-o a or-dens inferiores o que seria umadescriccedilatildeo justa mas parcial doque faz o poder A autora no en-tanto adverte ldquose entendemoso poder tambeacutem como algo queforma o sujeito que determina aproacutepria condiccedilatildeo de sua existecircnciae a trajetoacuteria de seu desejo o po-der natildeo eacute apenas aquilo a que nosopomos mas tambeacutem e de modobem marcado aquilo de que de-pendemos para existir e que abri-gamos e preservamos nos seresque somosrdquo (Butler 2017 p 9)Em outros termos ela sugere queesses processos natildeo soacute perpetuamo jogo tal como foi jogado e contrao qual se opotildee como tambeacutem seo situarmos enquanto problemaisso assim o seraacute porque o quesomos estaacute ligado a ele Atraveacutesdeste problema compreendemoscomo nos tornamos o que somos

No iniacutecio do verbete sobre simesmo Foucault fornece duas de-finiccedilotildees negativas de sua histoacute-ria criacutetica do pensamento eluci-dativas nesse ponto a saber elanatildeo constitui uma ldquohistoacuteria dasideias que seria ao mesmo tempouma anaacutelise dos erros que se po-deria retrospectivamente mensu-rarrdquo tampouco ldquouma decifraccedilatildeo

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dos desconhecimentos pelos quaiselas estavam ligadas e das quaiso que pensamos hoje poderia de-penderrdquo (Foucault 1994-IV p631) Essa definiccedilatildeo desvia a posi-ccedilatildeo de Foucault de uma histoacuteriadas soluccedilotildees que desejasse res-ponder a problemas atuais comrespostas de um ontem Eacute pre-ciso considerar que para aceitarsoluccedilotildees de outrora para o agorapressuporriacuteamos uma medida a-histoacuterica para o que eacute certo e er-rado e a posiccedilatildeo de Foucault emseu retorno agrave antiguidade natildeo eacutea de decifrar algo que estaacute es-condido que supotildee agora mos-trar para solucionar um problemaatual

As duas definiccedilotildees negativasfornecidas colaboram para perce-ber como Foucault pretende natildeoceder agrave loacutegica do ldquocontra ou a fa-vorrdquo Ao propor uma histoacuteria criacute-tica ele natildeo cede agrave vontade de nor-malizar a histoacuteria a partir de cri-teacuterios ahistoacutericos ndash natildeo denega opresente em nome de uma nostal-gia do passado tampouco desen-volve uma necessidade incessantede tornar obsoleto o que passou apartir da hegemonia dos criteacuteriosdo presente Nota-se que ele natildeose arroga a pretensatildeo de falar dealgo que ningueacutem falou de deci-frar o desconhecido passando aolargo de preocupaccedilotildees com o des-velamento de totalidades escondi-das de sentidos profundamente

encobertos e de verdades uacuteltimase universais natildeo-reveladas

Antes de passarmos agrave definiccedilatildeopositiva eacute notaacutevel o sintagma su-gerido por ele para definir seu tra-balho de pesquisa a saber histoacuteriacriacutetica do pensamento Notaacutevel por-que uma ldquohistoacuteria criacuteticardquo por si soacutechama a atenccedilatildeo remete simulta-neamente ao legado kantiano dacriacutetica enquanto criacutetica da razatildeode seus limites de suas condiccedilotildeesde possibilidade transcendentaise remete tambeacutem ao trabalho deum historiador que nega a ne-cessidade de transcendentalidadepara se inspirar em um estilo bas-tante nietzschiano de fazer a his-toacuteria a ponto de aceitar a sugestatildeode que o que fazia no fundo erauma ldquonova genealogia da moralrdquo(Foucault 1994-IV p 731) En-tatildeo natildeo seria a ldquohistoacuteria criacutetica dopensamentordquo um sintagma para afilosofia de Foucault Ou ao menospara sua ldquohistoacuteria da filosofiardquo

A definiccedilatildeo positiva eacute fornecidaalgumas linhas depois a saberldquouma histoacuteria criacutetica do pensa-mento seria uma anaacutelise das con-diccedilotildees pelas quais satildeo formadas emodificadas certas relaccedilotildees entresujeito e objeto na medida em queambos satildeo constitutivos de um sa-ber possiacutevelrdquo (Foucault 1994-IVp 632) Aqui esbarramos em umdeslocamento importante Menosdo que saber o que eacute o sujeito ouo objeto questotildees caracteriacutesticas

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da histoacuteria tradicional da filosofiaFoucault fala de condiccedilotildees de for-maccedilatildeo e modificaccedilatildeo em termossemelhantes agraves condiccedilotildees de pos-sibilidade da criacutetica kantiana Po-reacutem nota-se um tom genealoacutegicoinconfundiacutevel uma vez que essascondiccedilotildees parecem remeter agraves en-fatizadas condiccedilotildees de proveniecircn-cia e emergecircncia de que fala o au-tor em seu ensaio sobre Nietzsche(Foucault 1994-IV p 136-57) Asquestotildees portanto satildeo diferentesMenos do que se perguntar peloldquoo que eacuterdquo numa busca que situaseu discurso num espaccedilo radical-mente a-historicizante Foucaultcoloca a pergunta ldquocomo se tor-nourdquo Eacute por isso que na sequecircnciadessa definiccedilatildeo ele precisaraacute o quechama de modos de subjetivaccedilatildeo ede objetivaccedilatildeo porque seu pen-samento dedica-se a se perguntarsobre como quais possibilidadesquem porque nos tornamos issoque somos atualmente

Nessa medida seu modo de fa-zer filosofia estaacute diretamente li-gado agrave histoacuteria mas natildeo eacute umahistoacuteria estrita da filosofia por-que para perceber como essesldquomodosrdquo satildeo constitutivos de umsaber possiacutevel ele natildeo se restringeaos ldquomodosrdquo da filosofia tradicio-nal que se potildee a pergunta sobre oque natildeo pode responder em buscade um saber impossiacutevel sobre aessecircncia atemporal a origem dascoisas ou o fundamento universal

da eacutetica ldquoHistoacuteria criacutetica do pen-samentordquo pode ser um dos sintag-mas da filosofia na medida em quepercebemos a filosofia como ativi-dade de compreensatildeo de nossaspraacuteticas como um modo de sabero que nos tornamos bem comotornamos certos objetos possiacuteveisEla seria uma nova maneira de nu-trir essa amizade pelo que aindanatildeo sabemos mas que ao contraacute-rio de dirigir suas duacutevidas na di-reccedilatildeo do infinito se pergunta pe-las coisas da vida presente pelomodo de vida atual

Assim ele escapa aos dilemas daquestatildeo ontologicamente norma-tiva a saber de se perguntar ldquooque eacuterdquo Se aceitarmos que os im-passes para responder a essa ques-tatildeo estatildeo ligados a uma demandapor ser ldquoa favor ou contrardquo a cer-tos pressupostos ontoloacutegicos in-conscientes percebemos simulta-neamente a historicidade da ques-tatildeo ou seja como cada eacutepoca ex-clui ou aceita respostas especiacutefi-cas para a questatildeo segundo pres-supostos partilhados Isso ine-vitavelmente salienta a normati-vidade implicada por esse tipode suposiccedilatildeo ontoloacutegica A issoFoucault denominaraacute atos de pro-blematizaccedilatildeo Embora soacute a te-nha ldquoisoladordquo suficientemente emseus uacuteltimos escritos como ad-mite ldquoas coisas mais gerais satildeo asque aparecem em uacuteltimo lugarrdquo(Foucault 1994-IV p 670) ele

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deixa claro que problematizaccedilatildeoldquoeacute o conjunto das praacuteticas discur-sivas e natildeo-discursivas que faz al-guma coisa entrar no jogo do ver-dadeiro e do falso e o constituicomo objeto para o pensamentordquo(Foucault 1994-IV p 671)

Um exemplo pode jaacute ser obser-vado retroativamente Em As pa-lavras e as coisas Foucault sugereuma histoacuteria do mesmo de comocada eacutepoca dentro daquele recortefoi capaz de estabelecer para simesmo um modo especiacutefico decolocar a questatildeo ldquoo que eacuterdquo erespondecirc-la segundo certas possi-bilidades regulando e excluindorespostas Ao fazer essa histoacuteriado mesmo ele natildeo estaacute sugerindoque o que se deu foi mesmo assimmas que esse mesmo alterou-secom a passagem de um conjuntode saberes formados a partir dasemelhanccedila para outros forma-dos a partir da representaccedilatildeo e dasignificaccedilatildeo (FOUCAULT 2007)O modo de problematizar se alte-rou Assim ele encontra uma ma-neira de narrar como nos tornamoso que somos e natildeo de responderdefinitivamente agrave questatildeo sobre oque somos

Mas em quecirc tudo isso encerrao dilema de ser contra ou a favorde alguma coisa Como essa his-toacuteria criacutetica do pensamento ajudaa se situar na luta Na medidaem que ela desafia o que existemenos do que propotildee alternati-

vas na medida em que situa seutrabalho ldquoentre as pedras de es-pera e os pontos de suspensatildeordquo demodo a ldquoabrir um canteiro ten-tar e falhar recomeccedilar outra vezrdquo(Foucault 1994-IV p 20) As me-taacuteforas arquitetocircnicas constantesno trabalho de Foucault (Deleuze2006 p 280) remetem a um pro-cesso inacabado e contiacutenuo as pe-dras de espera satildeo aquelas queengastadas em outras peccedilas ou pi-sos permitem o acoplamento pos-terior de uma peccedila exterior (Al-bernaz amp Lima 1998-I p 235)os pontos de suspensatildeo lembramos balancins que sobem e descemas construccedilotildees os guindastes queelevam caccedilambas de concreto Eisuma obra a desse francecircs de Poiti-ers que natildeo termina porque abrecanteiros porque natildeo se funda emprofundidades imemoriais por-que natildeo tem intenccedilotildees panoacutepti-cas mas se dedica ao presente aum solo temporal sobre o qual ca-minhar e questiona construccedilotildeesteoacutericas demasiado faraocircnicas

Evidentemente as metaacuteforasarquitetocircnicas jaacute satildeo quase ca-tacreses na histoacuteria da filosofiafala-se da busca por ldquofundamen-tosrdquo com a mesma espontanei-dade de um arquiteto que fala dosldquodentesrdquo de uma ldquocolunardquo Aoutilizaacute-las Foucault nitidamentedesvia-se de seu uso naturalizadoao se remeter para um conjunto deelementos errantes e passageiros

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nada fundacionais uma vez quetanto as esperas quanto os pon-tos de suspensatildeo nos remetem aosceacuteticos para quem a busca de umfundamento natildeo faz qualquer sen-tido Em 1984 um entrevistadorlhe pergunta se na medida emque natildeo afirma verdade univer-sais em que conduz o pensamentoa paradoxos bem como ldquofaz da fi-losofia uma questatildeo permanenterdquoFoucault natildeo seria um pensadorceacutetico sua resposta foi a seguinte

- Completamente [Absolu-ment] A uacutenica coisa quenatildeo aceitaria no programaceacutetico eacute a tentativa queos ceacuteticos fizeram de che-gar a um certo nuacutemero deresultados em uma dadaordem ndash pois o ceticismonunca foi um ceticismo to-tal Tentei levantar os pro-blemas nos campos dadose em seguida fazer va-ler no interior de outroscampos as noccedilotildees efetiva-mente consideradas comovaacutelidas em segundo lu-gar me parece que paraos ceacuteticos o ideal seria serceacutetico sabendo relativa-mente pouca coisa mas assaber de maneira segurae imprescritiacutevel enquantoque o que gostaria de fa-zer eacute um uso da filosofiaque permita limitar os do-

miacutenios do saber (Foucault1994-IV p 707)

Uma interpretaccedilatildeo distorcida doque Foucault gostaria de fazer en-quanto pensador ceacutetico pode serdesastrosa Ele natildeo eacute contra oua favor dos domiacutenios do saber ndashnatildeo se trata de saber pouco se-guramente tudo a partir de umaduacutevida radical ou nada como fi-nalidade ataraacutexica do ceacutetico Seuobjetivo claro de ldquolimitar os do-miacutenios do saberrdquo eacute ceacutetico na me-dida em que assinala que a apli-caccedilatildeo e o uso desses saberes satildeovaacutelidas para a experiecircncia poreacutemdevem ser confrontadas com ou-tras praacuteticas que natildeo se consti-tuem como saberes ndash e o trabalhoda filosofia parece ser o de assi-nalar as possibilidades emergen-tes quando nos deparamos comessas experiecircncias-limite Em ou-tros termos ldquolimitar os domiacuteniosdo saberrdquo passa por ldquoproblemati-zarrdquo as ldquoexperiecircncias-limiterdquo quefuncionam como ldquopontos de sus-pensatildeordquo e ldquoesperasrdquo no jogo doverdadeiro e do falso

Atraveacutes dessa perspectiva esta-mos mais aptos a notar como suamaneira de fazer histoacuteria ajuda acompreender que ldquoimaginar umoutro sistema atualmente aindafaz parte do sistemardquo Numaconversa em 1971 Foucault citaexemplos dessa problematizaccedilatildeodos modos de vida ldquoa sociedade

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futura se esboccedila talvez atraveacutesde experiecircncias como a droga osexo a vida comunitaacuteria umaoutra consciecircncia um outro tipode individualidade Se o socia-lismo cientiacutefico se libera das uto-pias do seacuteculo XIX a socializaccedilatildeoreal liberar-se-aacute talvez no seacuteculoXX das experiecircnciasrdquo (Foucault1994-II p 234) Menos do queser a favor ou contra as drogas osexo liberal a vida comunitaacuteriaFoucault assinala a importacircnciadessas experiecircncias como iacutendicesdos limites do saber meios para aproblematizaccedilatildeo dos modos pelosquais vivemos Para compreendermelhor a analogia feita nessa con-versa pode ser instrutivo retornarao Manifesto Comunista cito-o

A importacircncia do soci-alismo e do comunismocriacutetico-utoacutepicos estaacute narazatildeo inversa de seu de-senvolvimento histoacutericoAgrave medida em que a lutade classes se acentua etoma formas mais defi-nidas a fantaacutestica oposi-ccedilatildeo que lhe eacute feita perdequalquer valor praacutetico equalquer justificativa teoacute-rica Por isso se em mui-tos aspectos os fundado-res desses sistemas eramrevolucionaacuterios as seitasformadas por seus disciacute-pulos formam sempre sei-

tas reacionaacuterias Aferram-se agraves velhas concepccedilotildeesde seus mestres apesar dodesenvolvimento histoacute-rico contiacutenuo do proletari-ado Procuram portantoe nisto satildeo consequentesatenuar a luta de classese conciliar antagonismosContinuam a sonhar coma realizaccedilatildeo experimen-tal de suas utopias sociaisinstituiccedilatildeo de falansteacuteriosisolados criaccedilatildeo de colocirc-nias no interior fundaccedilatildeode uma pequena Icaacuteria ndashediccedilatildeo em formato redu-zido da nova Jerusaleacutem ndashe para dar realidade a to-dos esses castelos no arveem-se obrigados a ape-lar para os bons sentimen-tos e os cofres dos filan-tropos burgueses Poucoa pouco caem na catego-ria de socialistas reacionaacute-rios ou conservadores des-critos anteriormente e soacutese distinguem deles porum pedantismo mais sis-temaacutetico uma feacute supersti-ciosa e fanaacutetica nos efeitosmiraculosos de sua ciecircn-cia social (Marx amp Engels2010 67-8)

Esse trecho exprime sumaria-mente a relaccedilatildeo dos autores dosocialismo cientiacutefico com as uto-

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pias do seacuteculo XIX Eles ressal-vam com precisatildeo os riscos quea adesatildeo irrefletida a uma posiccedilatildeogera nomeadamente quando ela eacuteutoacutepica ou seja quando quer de-fender e ldquodar realidaderdquo a castelosno ar Inspirando talvez as ceacutele-bres comparaccedilotildees de Slavoj Žižek(2018) sobre como o uso do po-liticamente incorreto responde agraveexigecircncia normativa do politica-mente correto como duas faces deuma mesma moeda Karl Marx eFriedrich Engels sugerem que ossocialistas utoacutepicos diferenciam-se em muito pouco de socialistasreacionaacuterios e conservadores Oque os separa eacute somente um pe-dantismo baseado na ciecircncia so-cial bastante semelhante agravequelede quem busca raiacutezes etimoloacutegi-cas ou histoacutericas para justificarinterditos politicamente corretosem torno de palavras jaacute ressignifi-cadas pelo uso Ao criticar uto-pistas tais como Fourier Cabete Owen Marx e Engels marcamuma posiccedilatildeo que retoma as praacuteti-cas reais das classes para alterara realidade ao inveacutes de dar reali-dade a um objeto de uma imagi-naccedilatildeo singular Eles natildeo satildeo con-tra ou a favor dos utopistas masmostram simultaneamente a im-portacircncia e a posterior decadecircn-cia dessa posiccedilatildeo Aleacutem disso orecurso ldquoaos bons sentimentos eaos cofres filantropos burguesesrdquodestaca o quanto ldquoimaginar ou-

tro sistema atualmente faz partedo sistemardquo Sem esses bons sen-timentos nutridos por burguesesseria bastante improvaacutevel que ahistoacuteria do socialismo e do anar-quismo pudesse assinalar o pio-nerismo utoacutepico dos falansteacuterios eicaacuterias

Com esse exemplo pretende-mos esclarecer melhor a ambi-guidade presente no segundo ele-mento da comparaccedilatildeo anterior-mente elaborada por Foucault Aosugerir que uma sociedade futurase esboccedila a partir de certas praacute-ticas marginalizadas ele assinalacomo se daacute o processo atraveacutes doqual imaginar outra existecircncia sedaacute dentro dessa existecircncia A cul-tura hippie dos anos 1970 expe-rimentou com propriedade essapossibilidade Uma geraccedilatildeo dejovens criados em famiacutelias estru-turadas e com condiccedilotildees variadassonhou com um futuro de paz e deamor em um mundo sem paiacuteses esem religiotildees em que todos vive-riam intensamente o agora O queestaacute culturalmente manifesto emfilmes como Hair de Milos Formanou em canccedilotildees como ldquoImaginerdquode John Lennon soa semelhanteaos experimentos dos utopistas aomenos em um aspecto satildeo sonhosgeminados e resultantes dos limi-tes colocados pelos proacuteprios sabe-res vigentes de entatildeo Diante deuma economia baseada na propri-edade privada que separa posses-

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sotildees pessoais da mesma maneiraque paiacuteses inteiros em um mundoem que as divergecircncias datildeo azo aguerras por territoacuterios sagradospor poccedilos de petroacuteleo ou mesmopor condiccedilotildees miacutenimas de vidaenfim diante de tantos conflitosimaginar outro sistema em que to-dos partilham o mesmo mundo eacutealgo que natildeo deve nos demover depensar que esses sonhos satildeo pro-dutos derivados desses conflitoscomo uma reaccedilatildeo utoacutepica eacute ver-dade mas uma reaccedilatildeo um vetorde forccedila

A socializaccedilatildeo real de que falaFoucault todavia natildeo corres-ponde a essa utopia hippie Suasugestatildeo eacute a de que da mesmamaneira que o socialismo cientiacute-fico precisou criticar o socialismoutoacutepico compreendendo todaviasua originalidade assim tambeacutemnum futuro proacuteximo um conjuntode saberes compreenderaacute a origi-nalidade contida nas experiecircnciasdessa geraccedilatildeo todavia criticando-a em aspectos considerados utoacute-picos A execuccedilatildeo de projetos epesquisas cientiacuteficas atraveacutes de fi-nanciamento coletivo a profissio-nalizaccedilatildeo da prostituiccedilatildeo em luga-res como a Holanda ou a legaliza-ccedilatildeo de certas drogas pode ser vistacomo a socializaccedilatildeo real resul-tante dessas ldquoutopiasrdquo do seacuteculoXX Manifestaccedilotildees essas diga-sede passagem tambeacutem sujeitas acriacuteticas bem como foi o caso do

socialismo cientiacutefico de Marx eEngels pois eacute nesse jogo de rein-venccedilatildeo contiacutenua entre atos de pro-blematizaccedilatildeo incessantes que natildeose para de imaginar outro sistemaou outro problema atualmente na-quele em que se vive

A atitude Com isso em mentepodemos retomar a questatildeo Senatildeo se trata de ser a favor ou con-tra mas de problematizar comosupor que a Antiguidade eacute umerro O enunciado surgiu em ldquoOretorno da moralrdquo uacuteltima entre-vista concedida por Foucault

- Um estilo de existecircnciaeacute admiraacutevel Vocecirc acha osgregos admiraacuteveis

- Natildeo

- Nem exemplares nemadmiraacuteveis

- Natildeo

- O que vocecirc acha deles

- Natildeo tatildeo excelentes Elestoparam imediatamentecontra o que me pareceser o ponto de contradi-ccedilatildeo da moral antiga en-tre de um lado a buscaobstinada por um certoestilo de existecircncia e deoutro o esforccedilo por tornaacute-lo comum a todos estiloque os aproximou sem duacute-vida mais ou menos obs-curamente de Secircneca e de

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Epiteto mas que soacute en-controu a possibilidade dese investir no interior deum estilo religioso Todaa Antiguidade me pareceter sido um ldquoerro pro-fundordquo (Foucault 1994-IV p 698)

Natildeo seria difiacutecil acusar Foucaultde generalizaccedilatildeo apressada ao di-zer que ldquotoda a Antiguidade pa-rece ter sido um lsquoerro profundordquorsquoUm comentador distraiacutedo pode-ria se desviar desse enunciado eapresentar as diversas anaacutelises doautor sobre a esteacutetica da existecircn-cia a parresiacutea o uso dos prazereso cuidado de si sobre as tentaccedilotildeesda carne enfim toda uma histoacute-ria criacutetica da sexualidade que en-contraraacute na Antiguidade em sen-tido amplo do termo dos gregosdo seacuteculo IV aC aos cristatildeos umfoco de atenccedilatildeo nos uacuteltimos anosde vida como assinala FreacutedeacutericGros editor dos uacuteltimos cursos deFoucault (in Lawlor 2014 p 556)Com isso essa personagem se des-viaria do problema e natildeo fariamais do que parafrasear leiturassem exercer uma atitude criacuteticatanto diante do que sugere Fou-cault quanto da proacutepria Antigui-dade sustentando assim uma ade-satildeo irrefletida aos temas de pes-quisa levantados por Foucault Oproacuteprio Freacutedeacuteric Gros natildeo se de-mite de salientar algo relevante

fornecendo uma pista sobre comocompreender esse enunciado aosugerir que ldquoos antigos para Fou-cault perturbam nossas moder-nas certezas E eles estavam ap-tos para tanto para nos perturbardesse modo natildeo porque as verda-des deles seriam mais verdadei-ras do que as nossas mas porqueelas eram outrasrdquo (Idem p 559)Assim menos do que adotar umapostura nostaacutelgica o comentaacuteriode Gros sugere que as problema-tizaccedilotildees da Antiguidade feitas porFoucault constituem uma alteri-dade relevante para a nossa atu-alidade e natildeo simplesmente umrepositoacuterio de soluccedilotildees a seremnovamente traduzidas e cataloga-das Com isso em mente tentare-mos perceber melhor em que me-dida Foucault estaria se referindoagrave Antiguidade como um erro pro-fundo uma vez cientes de que eleretorna a ela despertando um en-canto indisfarccedilaacutevel por parte demuitos leitores

Mais adiante ainda na mesmaentrevista ele continua ldquoTodaa experiecircncia Grega pode ser re-vista um pouco da mesma ma-neira tendo em conta em cadacaso as diferenccedilas de contextoe indicando a parte dessa expe-riecircncia que pode talvez se sal-var e aquela que pelo contraacuteriose pode abandonarrdquo (Foucault1994-IV p 702) A sugestatildeo eacutea de que ao retornar aos antigos

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e problematizar certas experiecircn-cias tornamo-nos aptos a perce-ber o quanto somos diferentes enatildeo tanto o quanto podemos sersemelhantes Nesse sentido par-tes da experiecircncia da AntiguidadeGrega podem ser abandonadase evidentemente outras acabampor ser salvas Essa sugestatildeo aindaum tanto vaga natildeo especifica qualseria esse erro profundo mas per-mite supor que haacute algo de erradoa ser abandonado

No final da entrevista no en-tanto ao ser confrontado com aquestatildeo sobre se haveria ou natildeouma teoria do sujeito entre os gre-gos Foucault esclarece que natildeoacredita ser necessaacuterio reconsti-tuir ldquouma experiecircncia do sujeitordquona Greacutecia Isso porque a experi-ecircncia ou seja a maneira de pro-blematizar a si mesmos dos gre-gos natildeo exigia uma ldquodefiniccedilatildeo desujeitordquo Ele sugere ainda que ba-seado na literatura se ldquonenhumpensador grego nunca encontrouuma definiccedilatildeo de sujeito nemnunca a buscou diria simples-mente que natildeo haacute um sujeitordquo istoeacute natildeo haacute uma teoria nesse sen-tido porque natildeo haacute problemati-zaccedilatildeo nesse sentido Todavia eleressalva

O que natildeo quer dizer queos gregos natildeo se esfor-cem por definir as condi-ccedilotildees pelas quais se daria

uma experiecircncia que natildeo eacuteaquela do sujeito mas doindiviacuteduo na medida emque ele busca se constituircomo mestre de si Faltavaagrave Antiguidade Claacutessica terproblematizado a consti-tuiccedilatildeo de si como sujeitoinversamente a partir docristianismo houve o con-fisco da moral pela teo-ria do sujeito Ora umaexperiecircncia moral essen-cialmente centrada sobreo sujeito natildeo me parecemais satisfatoacuteria hoje Epor isso mesmo um certonuacutemero de questotildees secolocam a noacutes nos mes-mos termos em que elasse colocaram na Antigui-dade (Foucault 1994-IVp 706)

Do fato histoacuterico de natildeo haveruma noccedilatildeo de sujeito natildeo se se-gue que natildeo haja algum tipo deexperiecircncia de si na Greacutecia ou emoutros termos se o sujeito natildeo eacuteproblematizado pelos gregos haacutetodavia uma problematizaccedilatildeo so-bre si mesmo presente na Antigui-dade Claacutessica como Foucault vaidesenvolver no segundo volumede sua histoacuteria da sexualidade Ouso dos prazeres (1984) A esteacuteticada existecircncia eacute vista por Foucaultcomo um dos modos de sujeiccedilatildeopelos quais o indiviacuteduo se encon-

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tra vinculado a um conjunto deregras e de valores caracterizadoneste caso pelo ideal de viver be-lamente de ser mestre de si ede deixar uma memoacuteria de umaexistecircncia bela (Foucault 1994-IV p 384 397 CASTRO 2009p151) Todavia o que natildeo haacutena problematizaccedilatildeo grega sobrecomo ser mestre de si eacute a subor-dinaccedilatildeo dessa esteacutetica da existecircn-cia a uma moral o que seraacute feitopelo cristianismo atraveacutes de umateoria do sujeito ou seja da subor-dinaccedilatildeo da sujeiccedilatildeo do indiviacuteduoa um conjunto de princiacutepios mo-rais Com essa teoria do sujeitoo cristianismo proporaacute uma novaproblematizaccedilatildeo que ldquoconfisca amoralrdquo restringindo-a a possibi-lidades dadas por essa teoria Jaacutenatildeo se pensa mais em como criarpara si uma existecircncia boa e belanuma esteacutetica da existecircncia seme-lhante agrave dos gregos mas a partirde uma teoria sobre como o indi-viacuteduo deve ou natildeo se sujeitar

Evidentemente toda a criacuteticaempreendida em direccedilatildeo agrave no-ccedilatildeo de sujeito natildeo estaacute sendo re-negada por Foucault em nomede uma nova teoria do sujeito epor isso ldquouma experiecircncia moralrdquocentrada sobre tal noccedilatildeo natildeo pa-rece satisfatoacuteria para a problema-tizaccedilatildeo da atualidade Nos tem-pos em que ldquoDeus morreurdquo nummundo desencantado natildeo faz maissentido insistir numa problema-

tizaccedilatildeo centrada na noccedilatildeo de su-jeito Ela tornou-se uma posiccedilatildeoestrateacutegica dissolvida na praacuteticada linguagem natildeo estando elamais submetida necessariamentea uma experiecircncia moral especiacute-fica como a do cristianismo (Fou-cault 2007) Como Foucault su-gere na entrevista a AlessandroFontana ldquopenso efetivamente quenatildeo haacute um sujeito soberano fun-dador uma forma universal desujeito que se poderia reencon-trar em todos os lados Sou bas-tante ceacutetico e bem hostil para comessa concepccedilatildeo de sujeitordquo (Fou-cault 1994-IV p 733) Natildeo se-ria a primeira vez que esse ceti-cismo se manifestaria A despeitodos deslocamentos teoacutericos ofe-recidos pelos textos em torno daAntiguidade a problematizaccedilatildeoem torno desse sujeito soberanoemergente no cristianismo eacute re-corrente (FOUCAULT 1944-IV p223 633-4 657) Com isso emmente podemos retomar o trechosupracitado de sua uacuteltima entre-vista

A busca de estilos de exis-tecircncia tatildeo diferentes unsdos outros quanto possiacute-veis me parece um dospontos pelos quais a buscacontemporacircnea de umaforma de moral que se-ria aceitaacutevel para todomundo ndash no sentido de

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que todo mundo deveriaa ela se submeter ndash me pa-rece catastroacutefica Mas se-ria um contrassenso que-rer fundar uma moral mo-derna sobre a moral an-tiga passando por cima damoral cristatilde Se eu empre-endi um estudo tatildeo longoseria para tentar eviden-ciar como o que chama-mos de moral cristatilde estaacuteincrustado na moral euro-peia natildeo soacute desde os pri-moacuterdios do mundo cris-tatildeo mas desde a moral an-tiga (Foucault 1994-IV p706-7)

Esse comentaacuterio colabora paraelucidar com mais clareza porqueele considera que Antiguidade se-ria um erro profundo sem quecom isso se incorra em algum tipode avaliaccedilatildeo anacrocircnica Foucaultsalienta que a busca de uma moralpara todos seria catastroacutefica emsua atualidade exatamente porquea problematizaccedilatildeo atualmente eacuteoutra Uma vez que natildeo haacute maiso problema do sujeito soberanoa questatildeo deixa de ser aquela re-lativa agrave forma universal para aqual uma esteacutetica da existecircnciaou uma teoria do sujeito morali-zadora para todos se remeteriam

Em todo caso para que isso setornasse claro Foucault argumen-tou em sua Histoacuteria da Sexuali-

dade (1984 1985 2018) no sen-tido de mostrar como o sujeito natildeoeacute um problema que desde sem-pre existiu para a moral europeiaponto de emergecircncia das moraisditas ocidentais Ele emergiu emdeterminado momento criandoum problema que natildeo existia paraos gregos surgiu a partir dos cris-tatildeos graccedilas ao ldquoconfisco da moralrdquoda Antiguidade e que provavel-mente com a busca por estilos deexistecircncia tatildeo diferentes uns dosoutros na atualidade ele deixoude poder ser problematizaacutevel tal equal Segundo a sugestatildeo de Be-atrice Han ldquoo modelo grego de-sempenha o papel de uma matrizmais simples de avaliar a moder-nidade a contrariordquo (Han 2012p 10) Em termos simplificado-res por um lado Foucault sugereque para os gregos haacute esteacutetica daexistecircncia sem uma teoria do su-jeito mas com um objetivo deter-minado ndash o de ser mestre de sio de ter segundo o estilo idealuma existecircncia boa e bela e poroutro para boa parte do cristia-nismo (Foucault ressalva algumasseitas asceacuteticas) essa experiecircnciade busca de um estilo eacute confiscadapela moral permitindo o surgi-mento de uma teoria do sujeito oque anula a necessidade de se tor-nar mestre de si uma vez que seestaacute assujeitado Cito-o

Esta elaboraccedilatildeo de sua

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proacutepria vida como umaobra de arte pessoalmesmo que ela obedeccedilaa cacircnones coletivos es-tava no centro me pareceda experiecircncia moral davontade de moral da An-tiguidade bem como noCristianismo com a reli-giatildeo do texto a ideia deuma vontade de Deus e oprinciacutepio de obediecircncia amoral ganha muito maisa forma de um coacutedigo deregras (somente algumaspraacuteticas asceacuteticas estive-ram mais ligadas ao exer-ciacutecio de uma liberdadepessoal) Da Antiguidadeao cristianismo passe-sede uma moral que era es-sencialmente uma buscade uma eacutetica pessoal auma moral como obedi-ecircncia a um sistema de re-gras E se eu me inte-ressei pela Antiguidadeeacute que por toda uma seacute-rie de razotildees a ideia deuma moral como obediecircn-cia a um coacutedigo de regrasestaacute prestes agora a de-saparecer senatildeo jaacute desa-pareceu E a essa ausecircnciade moral deve responderuma busca que eacute aquelade uma esteacutetica da exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 731)

O ldquoerrordquo aparece aqui de formamais clara e menos vaga apesarde terem sabido elaborar uma es-teacutetica da existecircncia ou seja ape-sar de terem sido capazes de con-ceber a proacutepria existecircncia en-quanto indiviacuteduos como umaobra de arte pessoal os antigos ofaziam tendo em vista cacircnones co-letivos Eacute por isso que por maisintrigante e estimulante que sejapensar na problemaacutetica de umaesteacutetica da existecircncia a partir dosgregos ela eacute completamente dis-tinta da nossa experiecircncia porqueali se tratava de criar uma vidacomo obra a partir de uma esti-liacutestica preacute-concebida ou se qui-sermos de uma retoacuterica do queseria a boa vida A Antiguidadeseria um erro para Foucault namedida em que entatildeo se acredi-tava ser possiacutevel imaginar um es-tilo que seria o bom e o belo es-tabelecendo uma verdade do bemagir Essa estilizaccedilatildeo engessada dobem viver daacute lugar com o cristia-nismo a um coacutedigo de regras fun-dado presumidamente na vontadede seu Deus e no princiacutepio de obe-diecircncia Desaparece a experiecircn-cia da estilizaccedilatildeo da existecircncia apartir de modelos preacute-concebidospara dar lugar agrave teoria do sujeitoRetornar a ambos natildeo seria umasoluccedilatildeo para pensar a moderni-dade mas serve para compreen-der agrave nossa maneira de problema-

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tizar que conforme a sugestatildeo an-terior de Foucault depende dessesdois elementos a saber da reto-mada plural de uma esteacutetica daexistecircncia de um modo desconhe-cido ateacute entatildeo e de uma dissoluccedilatildeoda teoria do sujeito soberano

Se os gregos satildeo uma matriz aocontraacuterio isso se daacute porque se in-vertermos o modo como eles pro-blematizavam a proacutepria existecircn-cia encontramos algo semelhantea atitude moderna Ao retirar-mos daquela esteacutetica da existecircn-cia sua finalidade ou seja a ne-cessidade de fazer coincidir a vidacomo obra de arte com a vidaboa e bela segundo um estilopreacute-determinado estaremos di-ante da atitude moderna que Fou-cault exemplifica atraveacutes de certaleitura de Kant como vemos emldquoO que satildeo as Luzesrdquo

Ao me referir ao texto de Kantme pergunto se natildeo se pode con-siderar a modernidade como umaatitude mais do que como um pe-riacuteodo histoacuterico Por atitude querodizer um modo de relaccedilatildeo queconcerne agrave atualidade uma esco-lha voluntaacuteria que se faz por al-guns enfim uma maneira de pen-sar e de sentir uma maneira tam-beacutem de agir e de se conduzir quede uma soacute vez marca uma perti-necircncia e se apresenta como umatarefa Um pouco sem duacutevidacomo o que os gregos chamamde eacutethos Por conseguinte mais

do que querer distinguir o ldquope-riacuteodo modernordquo das eacutepocas ldquopreacuterdquoe ldquopoacutesrdquo modernas creio que seriamelhor investigar como a atitudeda modernidade desde que ela seforma se encontra em luta comatitudes de ldquocontramodernidaderdquo(Foucault 1994-IV p 568)

Nota-se aqui como esse ldquoerrordquoprofundo ajuda a pensar Comosugere Deleuze ldquoFoucault dizos gregos fizeram muito menosou muito mais como quiseremrdquo(1988 p 121) de modo que natildeose trata de reproduzir o eacutethos ou aatitude dos gregos Se eacutethos eacute co-mumente traduzido por haacutebito oucostume perde-se evidentementea especificidade que essa palavrapossui e mesmo a disputa emtorna de seu sentido Barbara Cas-sin sugere em seu verbete ldquoMo-raisrdquo do Dicionaacuterio dos intraduziacute-veis (2014 p 691-3) que muitasdas dificuldades e mesmo das con-fusotildees entre costumes e moraisentre morais e eacuteticas derivam deuma concepccedilatildeo de eacutethos Ela as-sinala em sua sumaacuteria abordagemdesse problema um interessantequiasma inicial presente entre ossentidos filosoacuteficos do termo atri-buiacutedos por Platatildeo e Aristoacutetelesldquoonde Platatildeo conforta o natura-lista com o argumento de que ohaacutebito eacute inato Aristoacuteteles neutra-liza o que eacute dado para noacutes comonatural argumentando pela res-ponsabilidade praacuteticardquo (2014 p

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693) Se por um lado haveria umanaturalizaccedilatildeo do eacutethos por outroele seria da ordem do que eacute inven-tado nutrido criado Aristoacutetelesque teria inovado com o tiacutetulo desua Eacutetica (2014 p 692) eacute particu-larmente importante para a com-preensatildeo do sentido de eacutetica comoaccedilatildeo ou ato como sugere Cassinao recolher passagens da Poeacuteticada Retoacuterica e da Eacutetica NicomaqueiaO que gostariacuteamos de salientarantes de retomar o nosso pontoeacute o elemento ativo destacado pelaautora em sua leitura de Aristoacutete-les Ao contraacuterio do que as tradu-ccedilotildees por haacutebito ou costume pode-riam levar a supor a saber de queeacutethos eacute algo que passivamente seforma no indiviacuteduo Cassin sugerea ligaccedilatildeo fundamental entre eacutethose a praacutetica ativa de uma virtude(2014 p 692) Por fim ela su-gere ldquoque a maioria dos filoacutesofosque buscaram definir os termos[gregos ligados ao eacutethos] em suasproacuteprias linguagens como Ciacuteceroou GWF Hegel tentaram encon-trar um conjunto de problemaacuteti-cas equivalentes para a Greacutecia as-sim situando a tarefa da traduccedilatildeono coraccedilatildeo de sua reflexatildeordquo (2014p 693)

O primeiro elemento de con-traste da sugestatildeo de Foucaultcom uma tradiccedilatildeo de interpreta-ccedilatildeo do eacutethos surge indiciariamenteaqui porque a equivalecircncia en-tre eacutethos e atitude eacute improvaacutevel

apesar de possiacutevel O autor pro-vavelmente ciente da disputa emvolta do termo sugere menos doque afirma Ele diz ldquoum poucosem duacutevidardquo ldquoUm poucordquo por-que evidentemente a problemati-zaccedilatildeo grega natildeo eacute equivalente agravemoderna e por isso eacutethos e ati-tude seriam duas coisas distintase intraduziacuteveis entre si Sem duacute-vida guardam alguma coisa emcomum porque em ambos os ca-sos algo da conduccedilatildeo de si estaacuteem questatildeo Natildeo agrave toa atitudeeacute definida aqui como uma ma-neira de governar a si mesmoisto eacute de agir de se conduzirperante os outros todavia ativauma vez resultante de uma es-colha e imbuiacuteda de uma tarefaA atitude da modernidade defi-nida no texto de Kant como aquelade sapere aude (KANT 2012) ouseja de emancipar-se numa ati-tude de maioridade de ousadiae de coragem de buscar a ver-dade seraacute exemplificada por Fou-cault atraveacutes da figura de Baude-laire em uma vontade de ldquoheroi-cizar o presenterdquo Heroicizaccedilatildeoirocircnica uma vez que natildeo se tratada sacralizaccedilatildeo de um momentoou da tentativa de perpetuaacute-lobem como natildeo se trata de se re-colher numa curiosidade fugidiade uma atitude de flanecircrie que secontenta em prestar atenccedilatildeo emcoisas distraidamente e colecio-nar lembranccedilas sem qualquer cri-

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teacuterio A essa atitude Baudelaireopotildee aquela do homem da moder-nidade Cito um trecho de O pin-tor da vida moderna

Ele vai corre procuraSeguramente esse ho-mem esse solitaacuterio do-tado de uma imaginaccedilatildeoativa sempre viajandoatraveacutes do grande desertode homens tem uma ta-refa mais elevada do queaquela de um puro flacirc-neur uma tarefa mais ge-ral diferente da do pra-zer fugidio da circunstacircn-cia Ele busca algo quenos permitiratildeo chamar demodernidade Trata-separa ele de destacar damoda o que ela pode con-ter de poeacutetico no histoacute-rico (Baudelaire apud Fou-cault 1994-IV p 569-70)

Com essa retomada de Baude-laire Foucault enceta uma ma-neira diferente de encarar a in-venccedilatildeo de si mesmo porque natildeose trata simplesmente de se rela-cionar com uma interioridade fu-gidia mas de atraveacutes do enfren-tamento dessa solidatildeo encontraralgo ldquopoeacutetico no histoacutericordquo Se aAntiguidade eacute um erro profundoassim seria na medida em quea tarefa de viver uma vida bela

e boa natildeo dependeria desse ca-raacuteter continuamente investigativoe imaginativo tiacutepico do homemmoderno Evidentemente umaavaliaccedilatildeo justa desse erro soacute se-ria possiacutevel sob a pecha de ana-cronismo Mas o alerta passageiroe ocasional de Foucault natildeo me-rece desprezo Ele quer que evite-mos assumir uma atitude de flanecirc-rie em relaccedilatildeo ao modo de proble-matizar grego que em muito eacute dis-tinto do moderno Somente a par-tir da modernidade quando daemergecircncia de fenocircmenos como amoda quando se pocircde tanto estili-zar os corpos quanto submetecirc-losa certos padrotildees faz sentido suge-rir que a atitude emancipada eacute ade perceber o que ldquoela pode conterde poeacutetico no histoacutericordquo ou sejao que em meio a tantos padrotildeessurge como algo que desafia osnossos limites perturba uma ex-periecircncia que acumula estilos sempensar na invenccedilatildeo de si mesmo

A atitude de contramoderni-dade aparece como aquela quebusca traduzir o eacutethos para soluci-onar um problema presente que eacutea favor de uma tendecircncia de cortesde roupa contra todas as outrasque acumula incessantes citaccedilotildeesdos antigos citando-as como sinalde sabedoria num gesto tatildeo auto-maacutetico quanto a subida ou descidade um elevador O modo de viverdos antigos natildeo soacute pode ter sidouma maneira de errar como serve

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de exemplo de erracircncia de cami-nho jaacute percorrido e sobre o qual soacutenos cabe perceber as pegadas en-tender as marcas e investigar seusproblemas A atitude do filoacutesofo eacuteessa de ensaiar afinal de esboccedilaralgo de poeacutetico no histoacuterico de tal

modo que menos do que mais umquadro na parede seus gestos sir-vam como uma experiecircncia modi-ficadora de si e de seu entorno deum jeito tal que ningueacutem na Anti-guidade pocircde experimentar

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Trad Salma T Muchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2007 9ordf Ed

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A ANTIGUIDADE UM ERRO PROFUNDOndash FOUCAULT A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

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___ ldquoO que Hegel nos ensina sobre como lidar com Trumprdquo Blog daBoitempo Satildeo Paulo jan 2018 Disponiacutevel em Blog da BoitempoAcesso em 18 de janeiro de 2018

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Recebido 29122018Aprovado 30072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223147

Sobre a Centralidade e a Estrutura do Capiacutetulo ldquoOsCorpos Doacuteceisrdquo de Vigiar e Punir

[On the Centrality and Structure of the Chapter The Docile Bodiesof Discipline and Punish ]

Kleverton Bacelar

Resumo Esse artigo tem por objetivo expor a centralidade do pri-meiro capiacutetulo da terceira parte do Vigiar e Punir para a demonstra-ccedilatildeo de seu argumento principal bem como sua amarraccedilatildeo estruturalno conceito de corpo O valor posicional central desse capiacutetulo na or-ganizaccedilatildeo peculiar da obra soacute pode ser demonstrado mediante a expo-siccedilatildeo do conceito de disciplina de sua diferenciaccedilatildeo de outras formasde dominaccedilatildeo (escravidatildeo da domesticidade da vassalidade e do as-cetismo) da especificaccedilatildeo do momento histoacuterico em que emerge e dorealce da importacircncia dessa dataccedilatildeo para o argumento central de Fou-caultPalavras-chave corpo disciplina eacutepoca claacutessica reforma penal mo-derna

Abstract This paper explores the centrality of the first chapter of thethird part of Discipline and Punish for the demonstration of its mainargument as well as its structural tying in the concept of body Thecentral positional value of this chapter in the peculiar organizationof the work can only be demonstrated by exposing the concept ofdiscipline its differentiation from other forms of domination (slaverydomesticity vassality and asceticism) and the specification of thehistorical moment in which it emerges and the highlight of theimportance of this dating to Foucaultrsquos central argumentKeywords body discipline classical period modern penal reform

Antes e depois da publicaccedilatildeodo Vigiar e Punir em 9 de feve-reiro de 1975 Michel Foucaultpronunciou-se sobre o objetivodessa obra No curso A SociedadePunitiva ministrado entre o iniacuteciode janeiro e o final de marccedilo de1973 ele explicou dessa maneirao problema teoacuterico que a prisatildeo

lhe colocava

No fundo o ponto de par-tida foi o seguinte porque essa instituiccedilatildeo estra-nha a prisatildeo Essa per-gunta se justificava de vaacute-rias maneiras Em pri-

Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Mestre e doutor em filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo (USP) E-mail kbacelarufbabr ORCIDhttpsorcidorg0000-0003-3643-5201

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meiro lugar do ponto devista histoacuterico pelo fatode que a prisatildeo como ins-trumento penal foi apesarde tudo uma inovaccedilatildeo ra-dical no iniacutecio do seacuteculoXIX De repente todas asformas das antigas puni-ccedilotildees todo aquele maravi-lhoso e fulgurante folcloredas puniccedilotildees claacutessicas -pelourinho esquarteja-mento forca fogueira etc- desapareceu em proveitodessa funccedilatildeo monoacutetonada reclusatildeo Do ponto devista histoacuterico portantoeacute uma peccedila nova Aleacutemdisso teoricamente acre-dito que natildeo se pode de-duzir das teorias penaisformuladas na segundametade do seacuteculo XVIIIa necessidade da prisatildeocomo sistema de puniccedilatildeocoerente com essas novasteorias Teoricamente eacuteuma peccedila estranha Porfim por uma razatildeo fun-cional desde o comeccediloa prisatildeo foi disfuncionalPercebeu-se que em pri-meiro lugar esse novo sis-

tema de penalidade natildeoreduzia de modo algum onuacutemero de criminosos eem segundo que levavaagrave reincidecircncia que refor-ccedilava de modo muito per-ceptiacutevel a coesatildeo do grupoconstituiacutedo pelos delin-quentes O problema quepropus portanto era o se-guinte por que haacute cento ecinquenta anos e durantecento e cinquenta anos aprisatildeo1

Desses questionamentos (a novi-dade histoacuterica da prisatildeo sua es-tranheza teoacuterica e sua aparentedisfuncionalidade congecircnita) anovidade seraacute exposta na primeiraparte da obra a estranheza na se-gunda e a explicaccedilatildeo do fracassoaparente da prisatildeo eacute inteiramenteexplicado na quarta parte da obramediante a conjugaccedilatildeo dos con-ceitos de ilegalismo e delinquecircn-cia correlacionados com as ldquoagecircn-cias do poder punitivordquo a pri-satildeo (que produz a delinquecircncia)a poliacutecia (que utiliza a eficaacutecia in-versa da prisatildeo para tornar acei-taacutevel seu poder exorbitante) o ju-diciaacuterio (que eacute mero instrumento

1Cf aula de 28 de marccedilo de 1973 que encerra o curso A Sociedade punitiva pp205-6 (gm)2Embora Foucault mencione o ldquosistema poliacutecia-prisatildeordquo(VP p250) e acrescente o ldquonoticiaacuterio policialrdquo quando

analisa trecircs publicaccedilotildees de espectro poliacuteticos distintos (direita centro e esquerda) usei o termo agecircncia tal qualempregado por Zaffaroni em seus escritos que mencionam as ldquoagecircncias do poder punitivordquo ou seja agecircncias judi-ciais (tribunais) ldquoagecircncias executivas do sistema penalrdquo (poliacutecias e cadeias) e as agecircncias ideoloacutegicas (os meios decomunicaccedilatildeo de massa) por causa da fortiacutessima inspiraccedilatildeo e conotaccedilatildeo foucaultiana natildeo explicitamente declarada

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de seleccedilatildeo dos ilegalismos) e a im-prensa (que difunde o medo so-cial do delinquente)2 Mas o fi-nal destacado da citaccedilatildeo enunciaa problemaacutetica geral que articulaos trecircs questionamentos a impo-siccedilatildeo hegemocircnica da prisatildeo apesarde sua estranheza teoacuterica e de suaaparente disfuncionalidade con-gecircnita Explicar o porquecirc dessaldquouniversalizaccedilatildeo da prisatildeo comoforma geral dos castigosrdquo ou suascondiccedilotildees de possibilidade eacute o ob-jetivo da terceira parte3

Em L rsquoimpossible Prison recher-ches sur le systeme peacutenitentiaire auXIXegraveme siegravecle publicado em 1980Michel Foucault voltou a esclare-cer as razotildees pelas quais pareceu-lhe legiacutetimo tomar a prisatildeo comoobjeto de estudo em Vigiar e Pu-nir 1ordm) porque ela foi bastante ne-gligenciada na medida em que seestudava apenas o problema soci-oloacutegico da populaccedilatildeo delinquenteou o problema juriacutedico do sistemapenal e de seu fundamento 2ordm)porque queria retomar o tema dagenealogia da moral mas seguindoo fio do que se poderia chamarde rsquotecnologias moraisrsquo e 3ordm) por-

que a prisatildeo e () numerosos as-pectos da praacutetica penal estavamsendo postos () em questatildeo naFranccedila na Inglaterra e na Itaacutelianos EUA4 Da primeira razatildeo po-demos concluir a contrario sensuque a investigaccedilatildeo natildeo eacute uma soci-ologia da populaccedilatildeo delinquentenem tampouco uma discussatildeo jus-filosoacutefica sobre o problema do di-reito penal e de seu fundamento(por que punir Como puniretc) mas uma histoacuteria social eeconocircmica da prisatildeo (Nascimentoda prisatildeo)5 Da terceira razatildeo po-demos concluir que essa histoacuteriada prisatildeo se vincula aos aconte-cimentos do presente agraves revoltase o engajamento de Foucault noGrupo de Informaccedilatildeo sobre as pri-sotildees ou seja esse discurso histoacute-rico pretende contribuir com osdebates e lutas de sua eacutepoca6Dela muito jaacute se falou seja o proacute-prio Foucault seja seus comen-tadores mas talvez de maneirapouco articulada com a segundarazatildeo (genealogia da consciecircnciamoral) e sobretudo com os mo-tivos declarados no curso A So-ciedade Punitiva particularmente

Cf ZAFFARONI R Em Busca das Penas Perdidas RJ Editora Revan 1991 p 1083No resumo do curso A Sociedade Punitiva Foucault afirma isso categoricamente ldquoPara compreender o fun-

cionamento real da prisatildeo por traacutes de sua aparente disfunccedilatildeo bem como seu profundo sucesso por traacutes de seusfracassos superficiais eacute preciso sem duacutevida retornar agrave anaacutelise das instacircncias parapenais de controle nas quais elafigurou como se viu no seacuteculo XVII e sobretudo no XVIIIrdquo (SP p 234ss)

4Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p336-75Nesse ponto o nietzcheanismo de Foucault (histoacuteria como meacutetodo filosoacutefico) o diferencia de H L A HART

Punishment and Responsibility Oxford 19676Sobre essa referecircncia a atualidade da questatildeo ver Vigiar e Punir p32 Sobre o envolvimento de Foucault no

GIP e sobre seu ativismo na primeira metade dos anos 70 ver o relato de ERIBON Michel Foucault

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a problemaacutetica geral que articulaas questotildees da novidade do estra-nhamento e da disfuncionalidadeDessas articulaccedilotildees dependem ajusta apreciaccedilatildeo da tese central eda estrutura do Vigiar e Punir

Com efeito o filoacutesofo dedicou34 da obra e algumas entrevis-tas para explicar por que a pri-satildeordquo enquanto projeto de correccedilatildeodos indiviacuteduos fracassou (longede transformar os criminosos empessoas honestas soacute serve para fa-bricar delinquentes ou para enter-rar ainda mais os criminosos nacriminalidade) e embora as cons-tataccedilotildees do fracasso tenham sidoimediatas (1825-35) tornou-se oinstrumento de puniccedilatildeo hegemocirc-nico na modernidade Isso sig-nifica que a principal funccedilatildeo daprisatildeo natildeo eacute diminuir a crimi-nalidade nem ressocializar o cri-minoso mas consiste em fabricara delinquecircncia o indiviacuteduo pe-rigoso7 Mas nessa mesma oca-siatildeo ele se perguntava sobre o queo livro tratava ndash ldquodas prisotildees naFranccedila entre 1760 e 1840rdquo e res-pondia ldquonada dissordquo8 Talvez oobjeto visado no subtiacutetulo (Nas-cimento da Prisatildeo) natildeo seja so-

mente nem principalmente a ins-tituiccedilatildeo penitenciaacuteria Haacute no Vi-giar e Punir uma outra prisatildeo queFoucault revela da seguinte formano fim do primeiro capiacutetulo Ohomem de que nos falam e que nosconvidam a liberar jaacute eacute em si mesmoo efeito de uma sujeiccedilatildeo bem maisprofunda que ele Uma rsquoalmarsquo o ha-bita e o leva agrave existecircncia que eacute elamesma uma peccedila no domiacutenio exer-cido pelo poder sobre o corpo Aalma efeito e instrumento de umaanatomia poliacutetica a alma prisatildeo doscorpos (VP 31-2) Cumpre emprimeiro lugar chamar a atenccedilatildeopara essa inversatildeo foucaultiana doplatonismo Com efeito Platatildeoafirma no Fedro que ldquoa alma do fi-loacutesofo despreza profundamente ocorpordquo(65d) que o concebe comouma corrente uma janela umaprisatildeo que perturba a alma e opensamento ldquoesse fardo que car-regamos conosco e que chamamoscorpo e onde nos aprisionamosrdquo(250c) Nessa inversatildeo talvez es-teja a chave heuriacutestica da obraa alma moderna enquanto pri-satildeo disciplinada do corpo desde aeacutepoca claacutessica eacute a condiccedilatildeo de pos-sibilidade da prisatildeo institucional

7FOUCAULT M ldquoA evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de indiviacuteduo perigoso na psiquiatria legal do seacuteculo XIXrdquo in DE III8FOUCAULT Mesa redonda em 20 de maio de 1978 p337 Citando essa passagem Dreyfus e Rabinow con-

cluem acertadamente ldquoApesar de Vigiar e Punir ter como subtiacutetulo Nascimento da Prisatildeo seu objeto de estudo natildeoeacute exatamente a prisatildeo eacute a tecnologia disciplinar () O objeto de estudo de Foucault satildeo as praacuteticas de objetivaccedilatildeode nossa cultura conforme incorporadas numa tecnologia especiacuteficardquo (1995159) Embora apoiado no ensaio ldquoOsujeito e o Poderrdquo esses autores estabelecem uma interpretaccedilatildeo limitada dos conceitos de ldquomodos ou processos deobjetivaccedilatildeordquo e ldquomodos ou processos de subjetivaccedilatildeordquo que para ser mais precisa deveria levar em consideraccedilatildeo oprimeiro ldquoPrefaacutecio agrave Histoacuteria da Sexualidaderdquo o Verbete ldquoMichel Foucaultrdquo a conferecircncia ldquoVerdade e Subjetividaderdquo aaula do curso ldquoSubjetividade e Verdaderdquo e a ldquoIntroduccedilatildeordquo de O Uso dos Prazeres

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que suavizou os castigosPara comprovarmos o duplo

sentido que a prisatildeo possui nessaobra eacute necessaacuterio resumir a in-troduccedilatildeo do Vigiar e Punir sali-entando que o que estaacute em jogonesse livro eacute uma ldquohistoacuteria corre-lativa da alma moderna e de umnovo poder de julgar uma genea-logia do atual complexo cientifico-judiciaacuterio onde o poder de punirse apoia recebe suas justificaccedilotildeese suas regras estende seus efeitose mascara sua exorbitante singula-ridaderdquo (p26)9 Antes contudocumpre evidenciar a estrutura daobra para localizar com precisatildeoo papel que essa outra prisatildeo ex-posta minudentemente na terceiraparte da obra desempenha no ar-gumento de Michel Foucault Aterceira parte funciona como umacharneira que une a segunda ea quarta partes e cujos capiacutetulosencadeiam-se numa sequecircncia or-denada a partir da constituiccedilatildeodisciplinada da alma moderna emldquoOs corpos doacuteceisrdquo A parte ldquodis-

ciplinardquo funciona como dobradiccedilaporque a segunda parte mostrouque a reforma natildeo previa a peni-tenciaacuteria e a quarta parte mostraraacuteque embora desde jaacute votada aofracasso ela se impocircs num curtoespaccedilo de tempo

O esforccedilo que empreendemosaqui eacute inspirado no modo comoGilles Deleuze e Frederic Grosaproximaram-se da peculiar obrade Michel Foucault Com efeitodiante da Histoacuteria da Loucura drsquoO Nascimento da Cliacutenica do Vi-giar e Punir ou da Histoacuteria da Se-xualidade que segundo seu au-tor ldquonatildeo satildeo tratados de filoso-fia nem estudos histoacutericos no maacute-ximo fragmentos filosoacuteficos emcanteiros histoacutericosrdquo10 eacute reco-mendaacutevel procurar encontrar aldquoarquitetura conceitual extrema-mente forterdquo sobre a qual repousaa narrativa que nos desencarregada ldquotarefa ambiacutegua de julgar avalidade dos conteuacutedos histoacutericosavanccedilados por Foucaultrdquo11

9Francois Boullant dedicou ao Vigiar e Punir um belo comentaacuterio cujo tiacutetulo no plural sinaliza o duplo sentidoque queremos enfatizar sem natildeo obstante alcanccedilar a alma-prisatildeo Cf Michel Foucault et les prisions Paris PUF2003

10Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p33611GROS F Foucault et la Folie Paris PUF 1997 p5 Coube a Deleuze fornecer um esquema de interpretaccedilatildeo

global de Foucault a partir da reelaboraccedilatildeo de artigos e dos dois cursos dedicados ao amigo que foram ministra-dos na Universidade de Paris VIII-Vincennes- Saint-Denis (de 2210 a 17121985 e de 701 a 27051986) queresultaram no livro Foucault publicado em 1986 Aqui ele afirma que ldquoo saber o poder e o si satildeo a tripla raiz deuma problematizaccedilatildeo do pensamentordquo (p124) constituindo os trecircs eixos ou ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoinstacircncias da topo-logiardquo (p121 127) da obra de Foucault Em cada uma salienta os dualismos peculiares do saber (ver e falar ou ovisiacutevel e enunciaacutevel ou a luz e a linguagem) do poder (afetar e ser afetado ou espontaneidade e receptividade ouativo e reativo) e a triacuteade da subjetivaccedilatildeo (singularidades ldquopresasrdquo em relaccedilotildees de poder ou que ldquoresistemrdquo a elasfissurando-as modificando-as e invertendo-as e ainda a singularidades ldquoselvagensrdquo que estatildeo fora natildeo ligadas eacima das relaccedilotildees de forccedila) GROS F Le Foucault de Deleuze une fiction meacutetaphysique in Philosophie nordm 421995 pp53-63

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1 - Estrutura do Vigiar e PunirNascimento da prisatildeo

Franccedilois Ewald assistente de Fou-cault no Collegravege de France emuma das primeiras recensotildees doVigiar e Punir afirmou que essaobra

natildeo comporta nem prefaacute-cio nem introduccedilatildeo nemconclusatildeo Justificaccedilatildeonenhuma Seu comeccedilouma hipoacutetese de trabalhouma proposiccedilatildeo o avan-ccedilar de uma possibilidade aser experimentada Podefazer-se uma histoacuteria doscastigos sob o fundo deuma histoacuteria dos corpos(SP p 30) ou aindaPode fazer-se a genea-logia da moral modernaa partir de uma histoacuteriapoliacutetica dos corpos ()Nada de imposiccedilotildees umapossibilidade entre ou-tras certamente natildeo maisverdadeira que as outras

mas talvez mais perti-nente mais eficaz maisprodutiva que uma outra(13) E eacute isso que importanatildeo produzir algo de ver-dadeiro no sentido queisso seria definitivo ab-soluto peremptoacuterio masdar peccedilas ou pedaccedilosde verdades modestas no-vos relances estranhosque natildeo implicam um si-lecircncio de estupefacccedilatildeo ouum burburinho de comen-taacuterios mas que sejam uti-lizaacuteveis por outros comoas chaves de uma caixa deferramentas 12

A esses poderiacuteamos acrescen-tar mais um estranhamento for-mal ela comeccedila com ilustra-ccedilotildees (iconografia do adestramentocomo nova forma de controle so-cial13) e no primeiro capiacutetuloFoucault comeccedila ldquoseurdquo texto coma colagem de dois relatos o relatojornaliacutestico do supliacutecio de Dami-ens (1757) e um Regulamento da

12EWALD F ldquoAnatomie et corps politiquesrdquo in Critique Paris 1975 p1234-513Cf a bela anaacutelise que Francois Boullant faz no item ldquoimagens et conceptsrdquo (pp32ss) ldquoA imagem desempenha

em VP um papel essencial () Anteriormente ao texto pois uma rajada de gravuras sobriamente intituladaIlustraccedilotildees premedita o assunto Primeira impregnaccedilatildeo ao mesmo tempo solta e precisa do conteuacutedo das anaacutelisesantecipaccedilatildeo flexiacutevel e metoacutedica das conexotildees por vir as imagens permitem ver a invisiacutevel solidariedade das dis-ciplinas antes de dar-lhes a pensar () Trinta gravuras ou fotografias escrupulosamente escolhidas numeradase classificadas segundo uma ordem que natildeo segue nem a cronologia nem a ordem dos assuntos e se organiza emanelrdquo Ele nota que uma paginaccedilatildeo infeliz insere na coleccedilatildeo ldquoTelrdquo [e nas ediccedilotildees de liacutengua portuguesa] esse con-junto de gravuras em um caderno central A ediccedilatildeo da Pleacuteiade natildeo restabeleceu a disposiccedilatildeo original mas deslocoualgumas ilustraccedilotildees comentadas por Foucault para o texto comentado

14Recurso estiliacutestico jaacute empregado em NC quando na introduccedilatildeo Foucault coloca em paralelo um texto do meacute-dico Pomme e uma descriccedilatildeo minuciosa de Bayle Cf BRAUNSTEIN J-F ldquoMort et naissance de la cliniquerdquo inLECOURT D et ali (dir) La mort de la clinique Paris PUF 2010 p 140

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casa de correccedilatildeo dos jovens de Pa-ris assinado por Faucher (1838)14Devemos observar que esse pri-meiro capiacutetulo conteacutem todos oselementos de uma introduccedilatildeo (ob-jetivo justificativa metodologiaestado da arte) Ele soacute natildeo con-teacutem o plano geral da obra Em-bora Foucault natildeo o forneccedila aobra possui uma estrutura bemamarrada sendo pois bem com-posta Sem prefaacutecio nem conclu-satildeo a obra estaacute dividida em qua-tro partes supliacutecio (com 2 ca-piacutetulos) puniccedilatildeo (com 2 capiacutetu-los) disciplina (com 3 capiacutetulos)e prisatildeo (com 3 capiacutetulos) Paracompreender a articulaccedilatildeo do VPdevemos notar que nessa histoacuteriado nascimento da prisatildeo Foucaultcontrapotildee a puniccedilatildeo em dois ldquocor-tes epocaisrdquo recorrentes em suaobra (eacutepoca claacutessica e moderni-dade)15 acentuando sua rupturaou descontinuidade16 mostra queo suposto humanismo dos refor-madores eacute de fato uma busca demaximizaccedilatildeo e eficaacutecia da puniccedilatildeoque natildeo previa a prisatildeo como ins-

trumento privilegiado quiccedilaacute he-gemocircnico de punir localiza a des-coberta do corpo como objeto desaber e alvo do poder (corpo uacutetile doacutecil) nos seacuteculos XVII e XVIII17

para realccedilar uma de suas tesescentrais (sem o preacutevio disciplina-mento iniciado na eacutepoca claacutessicanatildeo seria possiacutevel mitigar as penascorporais na modernidade) tor-nando a reforma no miacutenimo am-biacutegua Sem o conhecimento dessatese a estrutura do VP pode pare-cer mal composta ou estruturada

A primeira parte do li-vro define o que eacute um su-pliacutecio explicitando a pri-meira imagem formuladaaquela da execuccedilatildeo de Da-miens A segunda parteobstina-se em fixar o mo-mento intermediaacuterio en-tre o supliacutecio de Dami-ens e o regulamento deFaucher Michel Foucaultapresenta entatildeo o projetodos filantropos do fim do

15De modo geral os cortes epocais recorrentes nas anaacutelises foucaultianas satildeo o renascimento (meados do seacuteculoXIV ateacute meados do seacutec XVI) eacutepoca claacutessica (meados do seacutec XVI ateacute fins do XVIII) e modernidade (1789 ateacute 1950)Nos trecircs uacuteltimos volumes da HS Foucault volta a antiguidade estabelecendo novos cortes seacutec IV aC seacutec IIdC e seacutec IV dC Em Michel Foucault e o Direito Marcio Alves da Fonseca pontua esses trecircs cortes epocais (p45n12) afirma acertadamente que o VP se restringe temporalmente aos dois uacuteltimos e espacialmente agrave penalidadena Franccedila mas fala em trecircs grandes eacutepocas da puniccedilatildeo pois inclui os projetos dos reformadores entre o supliacutecioda eacutepoca claacutessica e a prisatildeo na modernidade Ora na Franccedila houve somente duas eacutepocas porque as principaisideias diretrizes da reforma penal foram atropeladas pela penitenciaacuteria Exceto esses dois sistemas prisionais Mi-chel Foucault faz referecircncia agraves formas de penalidade experimentadas na Beacutelgica Filadeacutelfia e na Inglaterra que satildeocontemporacircneas ao projeto dos reformadores para explicar mediante a disciplinarizaccedilatildeo da sociedade qual dessasexperiecircncias serviu como modelo ou foi escolhida de preferecircncia sobre as outras na implantaccedilatildeo da prisatildeo

16Sobre isso cf BRAUNSTEIN J-F ldquoBachelard Canguilhem Foucault Le style franccedilais en eacutepisteacutemologierdquo inP Wagner (dir) Les philosophes et la science Paris Gallimard 2002

17VP pp184 126 e 191

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seacuteculo XVIII que deseja-vam suavizar as penas econstituir uma nova eco-nomia do poder mais uacutetile mais humana natildeo atra-veacutes da prisatildeo mas atra-veacutes de um jogo de ldquosinaisobstaacuteculordquo por uma tec-nologia da representaccedilatildeoque soacute reconhecia a posi-tividade da lei e na qualcada crime tem sua leicada criminoso sua penaA forma-prisatildeo natildeo temseu lugar de nascimentonessas teorias penais Du-rante a eacutepoca claacutessica co-existensivamente ao pro-jeto dos filantropos trecircsmodelos de instituiccedilatildeocarceraacuteria se formam oda Beacutelgica organizadopelo trabalho economica-mente e pedagogicamenteaproveitaacutevel o modelo in-glecircs que preconiza o iso-lamento individual comoinstrumento de conversatildeoe aquele da Filadeacutelfia queassocia isolamento e tra-balho religandounindoassim a reinserccedilatildeo morale material Michel Fou-cault descobre pois no fi-nal do seacuteculo XVIII trecircsmaneiras de organizar o

poder de punir o direitomonaacuterquico o projeto dosjuristas reformadores e oprojeto da instituiccedilatildeo car-ceral A sequecircncia da obradeve entatildeo compreenderporque a terceira tecnolo-gia finalmente se impocircs eclaro de onde ela proveacutemA terceira parte de Vigiare Punir daacute a impressatildeo desair do caminho que nosconduz ao nascimento daprisatildeo para entrar em umamultidatildeo de outras histoacute-rias18

Sem compreender o duplo sen-tido da palavra prisatildeo no VP numdos quais Foucault enuncia suatese principal (a alma modernaenquanto prisatildeo do corpo eacute umefeito e instrumento do poder dis-ciplinar que torna possiacutevel suavi-zar as penas e explicar a hegemo-nia da penitenciaacuteria) toda a ter-ceira parte parece indevidamenteinterposta na narrativa A cone-xatildeo entre o primeiro capiacutetulo daprimeira parte com o primeiro ca-piacutetulo da terceira precisa ser esta-belecida para garantir a boa com-posiccedilatildeo da obra

18KIEacuteFER Audrey Michel Foucault le GIP lrsquohistoire et lrsquoaction These de Philosophie Universiteacute de Picardienovembre de 2006 pp98-99

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2- A Penalidade da Eacutepoca Claacutes-sica agrave Modernidade

Quero dizer a minha pala-vra aos desprezadores docorpo Natildeo devem a meuver mudar o que apren-deram ou ensinaram masapenas dizer adeus ao seucorpo - e destarte emu-decer Corpo eu sou ealma - assim fala a cri-anccedila Por quecirc natildeo falarcomo as crianccedilas Mas ohomem jaacute desperto o sa-bedor diz corpo sou eutotalmente e nenhuma ou-tra coisa e alma eacute uma pa-lavra para algo do corpordquo

Nietzsche ZA I 4 sect 1-3

Vigiar e Punir abre-se com a cola-gem de dois relatos o do supliacute-cio de Damiens19 no Antigo Re-gime (1757) e o da utilizaccedilatildeo dotempo no regulamento da Casa dejovens detentos de Paris na mo-dernidade (1838) Como mencio-nei esse recurso estiliacutestico jaacute forautilizado em NC e essa colagem

indica a grande transformaccedilatildeo naeconomia do castigo ocorrida navirada do seacutec XVIII ao XIX Den-tre tantas transformaccedilotildees20 Fou-cault atem-se a uma o desapare-cimento dos supliacutecios

Ateacute entatildeo as teacutecnicas puni-tivas apoderavam-se do corpopara despedaccedilaacute-lo esquartejaacute-loamputaacute-lo marcaacute-lo simbolica-mente no rosto ou no ombroexpocirc-lo vivo ou morto oferececirc-loem espetaacuteculo O grande espe-taacuteculo da puniccedilatildeo fiacutesica compor-tava poreacutem dois perigos por umlado revela a tirania o excessoa sede de vinganccedila do poder poroutro acostuma o povo a ver san-gue jorrar e ensina-lhe que soacutepode vingar-se derramando san-gue com as proacuteprias matildeos Vistacomo uma fornalha em que seacende a violecircncia(15) a execu-ccedilatildeo puacuteblica foi suprimida Desdeentatildeo eacute a proacutepria condenaccedilatildeoque marcaraacute o delinquente comsinal negativo e uniacutevoco publici-dade portanto dos debates e dasentenccedila(15)

O desaparecimento dos supliacute-

19Segundo Rodinesco Franccedilois Robert Damiens oriundo de uma famiacutelia camponesa maltratado pelo pai inso-lente inclinado ao suiciacutedio e no miacutenimo estranho por seu haacutebito de falar sozinho pertencente a classe dos criadosespezinhados por seus patrotildees mas vivia na sombra e na intimidade da nobreza quando no dia 5011957 aten-tou contra a vida de Luiacutes XV tocando com a lacircmina de um canivete provocou um pequeno corte e assumiu seugesto () Foucault descreveu o horror do suplicio de Damiens um dos mais crueacuteis de todos os tempos A resis-tecircncia do corpo foi tal que os cavalos arremeteram sessenta vezes antes de romper os membros do desafortunadocriado jaacute mil vezes torturado (As Famiacutelias pp57-8) A cena do supliacutecio de Damiens apareceu na aula do dia301de 1973 do curso A Sociedade Punitiva p11

20As transformaccedilotildees satildeo as seguintes escacircndalos na justiccedila tradicional projetos de Reformas nova teoria da lei edo crime nova justificaccedilatildeo moral ou poliacutetica do direito de punir aboliccedilatildeo das ordenanccedilas supressatildeo dos costumesprojeto ou redaccedilatildeo de coacutedigos modernos (VP p13 Ver ainda p 21)

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cios eacute tanto a eliminaccedilatildeo do es-petaacuteculo da encenaccedilatildeo da dorquanto a extinccedilatildeo do domiacutenio so-bre o corpo Agora o sofrimentofiacutesico natildeo eacute mais constitutivo dapena o castigo passou de umaarte das sensaccedilotildees insuportaacuteveisa uma economia dos direitos sus-pensos(p16) ou seja a pena to-mou como objeto a perda de umdireito ou de um bem - a liber-dade Na modernidade a prisatildeopassa a ser a forma essencial docastigo21 e isso significa que a pu-niccedilatildeo fiacutesica foi substituiacuteda pelapenalidade incorporal Mesmoa pena capital atesta essa nova pe-nalidade ela eacute uma desmultipli-caccedilatildeo da proacutepria morte na medidaem que eacute um acontecimento visiacute-vel mas instantacircneo (p16- 7)

Todas as transformaccedilotildees se fa-zem concomitantes ao desloca-mento do objeto da accedilatildeo punitivanatildeo eacute mais o corpo agora eacute a alma(ldquoo coraccedilatildeo o pensamento a von-tade as disposiccedilotildeesrdquo) que eacute pu-nida castigada22 Haacute aqui umaprofunda modificaccedilatildeo no objetoltcrimegt Sob o nome de crimese delitos satildeo sempre julgados cor-retamente os objetos juriacutedicos de-

finidos pelo coacutedigo ou seja soacute haacutecrime se alguma accedilatildeo ou omissatildeofor tipificada pelo coacutedigo e se ojuiz mediante uma deduccedilatildeo silo-giacutestica como pensava a escola daexegese sancionar o crime Fou-cault argumenta que a subsunccedilatildeodo fato agrave norma e depois a par-ticularizaccedilatildeo da norma a algumacircunstacircncia especial (atenuanteou agravante) deslocou o julga-mento da accedilatildeo para o agente osjuiacutezes comeccedilaram a julgar coisabem diferente aleacutem de crimes altalmagt dos criminosos (p22)Ou seja rdquojulgam-se tambeacutem aspaixotildees os instintos as anoma-lias as enfermidades as inadapta-ccedilotildees os efeitos de meio ambienteou de hereditariedade Punem-se as agressotildees mas por meiodelas as agressividades que satildeotambeacutem impulsos e desejos Asentenccedila natildeo eacute soacute um julgamentode culpa que absolve ou condenamas eacute sobretudo um juiacutezo de nor-malidade de atribuiccedilatildeo de causa-lidade de apreciaccedilotildees de eventu-ais mudanccedilas de previsotildees sobreo futuro dos delinquentes(24)

Com a entrada da alma na cenajuriacutedica a justiccedila penal soacute funci-

21Foucault natildeo ignora que castigos como trabalhos forccedilados ou prisatildeo nunca funcionavam sem certos comple-mentos punitivos referentes ao corpo reduccedilatildeo alimentar privaccedilatildeo sexual expiaccedilatildeo fiacutesica masmorra (20) Tambeacutemnatildeo ignora que a tortura se fixou -- e ainda continua -- no sistema penal francecircs (p19)

22Cf VP p21 A alma -- subjetividade psique personalidade consciecircncia individualidade comportamentopouco importa (267) -- entendida como uma ldquosede de haacutebitosrdquo(31 141) eacute real e incorpoacuterea mas natildeo substacircnciaporque eacute o efeitoprodutoresultado de um poder que se exerce em torno na superfiacutecie e no interior do corpo(Foucault tambeacutem fala de uma ldquorealidade incorpoacutereardquo na p21) Sobre a anaacutelise foucaultiana da noccedilatildeo de haacutebitocf a aula de 28031973 de A sociedade Punitiva (p215ss)

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ona e se justifica atraveacutes da refe-recircncia ao saber dos peritos psi-quiaacutetricos e psicoloacutegicos perso-nagens extrajuriacutedicos que forne-cem uma justificaccedilatildeo cientiacutefica aodireitopoder de punir pois cabe-lhes dizer se o indiviacuteduo eacute peri-goso de que maneira se protegerdele como intervir para modificaacute-lo se eacute melhor tentar reprimir outratar(p25) Em resumo rdquojul-gar eacute qualificar um indiviacuteduo poisa sentenccedila implica uma aprecia-ccedilatildeo da normalidade e uma pres-criccedilatildeo teacutecnica para uma norma-lizaccedilatildeo possiacutevel Diagnoacutestico eterapecircutica O poder de punirentrelaccedilou-se com as diversas ci-ecircncias forenses psiquiatria psi-cologia sociologia antropologia epedagogia Nesse momento sur-giu a criminologia23 Nessa eacutepocaldquoa justiccedila criminal () soacute funcionae soacute se justifica por essa perpeacutetua

referecircncia a outra coisa que natildeoeacute ela mesma por essa incessantereinscriccedilatildeo nos sistemas natildeo juriacute-dicos Ela estaacute votada a essa re-qualificaccedilatildeo pelo saberrdquo (p25)24

Com isso posto Foucault podeformular nesses termos o objetivodo Vigiar e Punir ldquouma histoacute-ria correlativa da alma modernae de um novo poder de julgaruma genealogia do atual com-plexo cientiacutefico-judiciaacuterio ondeo poder de punir se apoia re-cebe suas justificaccedilotildees e suas re-gras estende seus efeitos e mas-cara sua exorbitante singulari-daderdquo(p26)25 Percebemos clara-mente que natildeo se trata de um ob-jetivo uacutenico mas de vaacuterios corre-lacionados A escrita dessa histoacute-ria da prisatildeo assemelha-se a umapartitura musical pois orquestravaacuterios objetivos simultaneamente

Antes de formular suas quatro

23Cf BOULLANT opcit pp99ss24Essa justificaccedilatildeo cientiacutefica do direito de punir aparece em sua aula inaugural no Collegravege de France A Ordem

do Discurso onde Foucault delineia um projeto de pesquisa centrado na anaacutelise histoacuterica das formas juriacutedicas epoliacuteticas produtoras de verdades ldquoEnfim creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte euma distribuiccedilatildeo institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade- uma espeacutecie de pressatildeo e como que um poder de coerccedilatildeo Penso na maneira como a literatura ocidental teve debuscar apoio durante seacuteculos no natural no verossiacutemil na sinceridade na ciecircncia tambeacutem - em suma no discursoverdadeiro Penso igualmente na maneira como as praacuteticas econocircmicas codificadas como preceitos ou receitaseventualmente como moral procuraram desde o seacuteculo XVI fundamentar-se racionalizar-se e justificar-se a par-tir de uma teoria das riquezas e da produccedilatildeo penso ainda na maneira como um conjunto tatildeo prescritivo quantoo sistema penal procurou seus suportes ou sua justificaccedilatildeo primeiro eacute certo em uma teoria do direito depois apartir do seacuteculo XIX em um saber socioloacutegico psicoloacutegico meacutedico psiquiaacutetrico como se a proacutepria palavra da leinatildeo pudesse mais ser autorizada em nossa sociedade senatildeo por um discurso de verdaderdquo(ODpp18-9)

25Sobre a razatildeo pela qual o poder de punir se apoia no complexo cientiacutefico-judiciaacuterio mas natildeo se confunde comele ver as distinccedilotildees estabelecidas na nota seguinte

26Na impossibilidade de comentar palavra por palavra a importante passagem na qual Foucault formula suasquatro regras e na desaconselhaacutevel prolixidade de transcrevemos o texto recomendamos vivamente sua leitura emeditaccedilatildeo ao leitor ao tempo em que citamos apenas a segunda regra (ldquoAnalisar os meacutetodos punitivos natildeo comosimples consequecircncias de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais mas como teacutecnicas que tecircmsua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder ()rdquo) para destacar uma importante distin-ccedilatildeo efetuada por Foucault que eacute essencial para a compreensatildeo de seu meacutetodo Trata-se da distinccedilatildeo entre ldquosistemapenitenciaacuteriordquo (Prisotildees Casas de Detenccedilatildeo Casas de Correccedilatildeo para menores etc) ldquosistema penalrdquo (poliacutecia incum-

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regras metodoloacutegicas que merece-riam um comentaacuterio minucioso26Foucault se pergunta como fazeressa histoacuteria da alma moderna emjulgamento e nesse momento pre-ciso indica dois erros a evitar pri-meiro natildeo se limitar agrave evoluccedilatildeodas regras de direito ou dos pro-cessos penais que redundariam naassunccedilatildeo de uma mudanccedila da sen-sibilidade coletiva dos modernosnum progresso do humanismo nodesenvolvimento das ciecircncias hu-manas que estariam na raiz dasubstituiccedilatildeo das penas corporaispela pena de privaccedilatildeo da liber-dade segundo natildeo estudar ape-nas as formas sociais gerais comofez Durkheim para natildeo ldquocorremoso risco de colocar como princiacutepioda suavizaccedilatildeo punitiva processosde individualizaccedilatildeo que satildeo antesefeitos das novas taacuteticas de podere entre elas dos novos mecanismospenaisrdquo27

Em suas regras gerais Foucaultafirma categoricamente que vaitomar a puniccedilatildeo como uma fun-ccedilatildeo social complexa repressiva[direito penal] e positiva ou in-dutiva [disciplina] adotando em

relaccedilatildeo aos castigos a perspectivada taacutetica poliacutetica que vai colocara tecnologia do poder [discipli-nar] no princiacutepio tanto da huma-nizaccedilatildeo da penalidade [moderna]quanto do conhecimento do ho-mem [criminologia]

Na sequecircncia Foucault prestahomenagem ao livro de Rusche eKirschheimer Puniccedilatildeo e estruturasocial (1939) distinguindo seuempreendimento do dos autoresda escola de Frankfurt pois reco-loca os castigos numa certa ldquoeco-nomia poliacuteticardquo do corpo Nesseponto Foucault menciona os his-toriadores que abordam a histoacuteriado corpo mas distancia-se delespois enfatiza que o corpo

tambeacutem estaacute diretamentemergulhado num campopoliacutetico as relaccedilotildees de po-der tecircm alcance imediatosobre ele elas o investemo marcam o dirigem osupliciam sujeitam-no atrabalhos obrigam-no acerimocircnias exigem-lhe si-nais Este investimentopoliacutetico do corpo estaacute li-

bidas do inqueacuterito ministeacuterio puacuteblico encarregado da denuacutencia e judiciaacuterio responsaacutevel pelo processo a sentenccedilacondenatoacuteria e o acompanhamento judicial da execuccedilatildeo penal) e o ldquosistema punitivordquo (sistema de controle socialmais amplo na medida em que engloba mas ultrapassa os outros dois)

27O artigo de Durkheim ldquoDeux lois de lrsquoeacutevolution peacutenalerdquo publicado no Anuaacuterio socioloacutegico em 1899-1900 cri-ticado aqui por Foucault encontra-se traduzido na Revista Primeiros Estudos Satildeo Paulo n 6 p 123-148 2014Uma anaacutelise da pertinecircncia ou natildeo das criacuteticas de Foucault excederia os objetivos desse trabalho e deveria levar emconta outros textos de Durkheim principalmente De la Division du travail social (1893) Paris PUF 12e eacutedition1960 pp 35-39 43-48 64-68 Les regravegles de la meacutethode sociologique (1894) Paris PUF 14e eacutedition 1960 pp 65-72Sobre isso cf COMBESSIE Philippe ldquoDurkheim Fauconnet et Foucault Eacutetayer une perspective abolitionniste agravelrsquoheure de la mondialisation des eacutechangesrdquo 2007 57-71

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gado segundo relaccedilotildeescomplexas e reciacuteprocas agravesua utilizaccedilatildeo econocircmicaeacute numa boa proporccedilatildeocomo forccedila de produccedilatildeoque o corpo eacute investidopor relaccedilotildees de poder ede dominaccedilatildeo mas emcompensaccedilatildeo sua consti-tuiccedilatildeo como forccedila de tra-balho soacute eacute possiacutevel se eleestaacute preso num sistemade sujeiccedilatildeo (onde a ne-cessidade eacute tambeacutem uminstrumento poliacutetico cui-dadosamente organizadocalculado e utilizado) ocorpo soacute se torna forccedilauacutetil se eacute ao mesmo tempocorpo produtivo e corposubmisso Essa sujeiccedilatildeonatildeo eacute obtida soacute pelos ins-trumentos da violecircncia ouda ideologia pode muitobem ser direta fiacutesica usara forccedila contra a forccedila agirsobre elementos materiaissem no entanto ser vio-lenta pode ser calculadaorganizada tecnicamentepensada pode ser sutilnatildeo fazer uso de armasnem do terror e no en-tanto continuar a ser deordem fiacutesica Quer dizerque pode haver um ldquosa-berrdquo do corpo que natildeo eacuteexatamente a ciecircncia deseu funcionamento e um

controle de suas forccedilasque eacute mais que a capa-cidade de vencecirc-las essesaber e esse controle cons-tituem o que se poderiachamar a tecnologia poliacute-tica do corpo Essa tecno-logia eacute difusa claro rara-mente formulada em dis-cursos contiacutenuos e siste-maacuteticos compotildee-se mui-tas vezes de peccedilas ou depedaccedilos utiliza um ma-terial e processos sem re-laccedilatildeo entre si O maisdas vezes apesar da coe-recircncia de seus resultadosela natildeo passa de uma ins-trumentaccedilatildeo multiformeAleacutem disso seria impossiacute-vel localizaacute-la quer numtipo definido de institui-ccedilatildeo quer num aparelhodo Estado Estes recor-rem a ela utilizam-navalorizam-na ou impotildeemalgumas de suas maneirasde agir Mas ela mesmaem seus mecanismos eefeitos se situa num niacute-vel completamente dife-rente Trata-se de algumamaneira de uma micro-fiacutesica do poder posta emjogo pelos aparelhos e ins-tituiccedilotildees mas cujo campode validade se coloca dealgum modo entre essesgrandes funcionamentos

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e os proacuteprios corpos comsua materialidade e suasforccedilasrdquo (p28)

Descrever essa ldquomicrofiacutesica do po-derrdquo que incide sobre o corpo eacute oobjetivo da 3ordf parte da obra Re-velar sua importacircncia na suaviza-ccedilatildeo das penas eacute um dos objetivosa que ela se propotildee em sua abor-dagem da criminalidade

Foucault tambeacutem menciona olivro Os dois corpos do rei (1959)de Ernst Kantorowitz para com-parar a tese do historiador do pen-samento poliacutetico medieval (ldquoo su-plemento de poder do lado dorei provoca o desdobramento deseu corpordquo na teologia poliacuteticado medievo que chega ateacute o An-tigo Regime) com a dele (o po-der excedente que se exerce so-bre o corpo submetido do conde-nado [na modernidade- KB] sus-citou um outo tipo de desdobra-mento o de um incorporal deuma almardquo(VP p31) Aqui Fou-cault formula a tese que seraacute de-monstrada no primeiro capiacutetuloda terceira parte o poder discipli-nar produz individualidade umaconsciecircncia de si uma alma umasubjetividade

A histoacuteria dessa micro-fiacutesica do poder punitivoseria entatildeo uma genea-logia ou uma peccedila para

uma genealogia da ldquoalmardquomoderna Em vez de vernessa alma os restos re-ativados de uma ideolo-gia antes reconheceriacutea-mos nela o correlativoatual de uma certa tec-nologia do poder sobreo corpo Natildeo se deveriadizer que a alma eacute umailusatildeo ou um efeito ide-oloacutegico mas afirmar queela existe que tem umarealidade que eacute produ-zida permanentementeem tomo na superfiacutecieno interior do corpo pelofuncionamento de um po-der que se exerce sobre osque se punem mdashde umamaneira mais geral so-bre os que satildeo vigiadostreinados e corrigidos so-bre os loucos as crian-ccedilas os escolares os co-lonizados sobre os quesatildeo fixados a um apare-lho de produccedilatildeo e contro-lados durante toda a exis-tecircncia Realidade histoacute-rica dessa alma que di-ferentemente da alma re-presentada pela teologiacristatilde natildeo nasce faltosae puniacutevel mas nasce an-tes de procedimentos depuniccedilatildeo de vigilacircncia decastigo e de coaccedilatildeo Estaalma real e incorpoacuterea natildeo

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eacute absolutamente substacircn-cia eacute o elemento onde searticulam os efeitos de umcerto tipo de poder e areferecircncia de um sabera engrenagem pela qualas relaccedilotildees de poder datildeolugar a um saber possiacute-vel e o saber reconduz ereforccedila os efeitos de po-der Sobre essa realidade-referecircncia vaacuterios concei-tos foram construiacutedos ecampos de anaacutelise foramdemarcados psique sub-jetividade personalidadeconsciecircncia etc sobre elateacutecnicas e discursos cien-tiacuteficos foram edificados apartir dela valorizaram-se as reivindicaccedilotildees mo-rais do humanismo Masnatildeo devemos nos enganara alma ilusatildeo dos teoacutelo-gos natildeo foi substituiacutedapor um homem real ob-jeto de saber de reflexatildeofilosoacutefica ou de interven-ccedilatildeo teacutecnica O homemde que nos falam e quenos convidam a liberar jaacuteeacute nele mesmo o efeito deum assujeitamento bemmais profundo que eleUma ldquoalmardquo o habita eo leva agrave existecircncia queeacute ela mesma uma peccedilano domiacutenio que o poderexerce sobre o corpo A

alma efeito e instrumentode uma anatomia poliacuteticaa alma prisatildeo do corpo(p31)

Como natildeo reconhecer nessa ldquoge-nealogia da alma modernardquo asegunda razatildeo aventada porFoucault em LrsquoImpossible Pri-son Como natildeo reconhecerna almasubjetividadepsique oefeito (positivo) do poder disci-plinar sobre o corpo Como natildeoobservar que o poder disciplinar eacuteconcebido em termos de incitaccedilatildeode produccedilatildeo mais que de repres-satildeo Como natildeo ver que o efeito apositividade da disciplina radica-se na produccedilatildeo de uma individua-lidade Como natildeo reconhecer quea alma moderna eacute uma outra pri-satildeo instalada no corpo cuja certi-datildeo de nascimento Foucault atestano mesmo ato notarial que certi-fica o nascimento da penitenciaacuteriae da criminologia

Veremos no proacuteximo item comoessa alma disciplinada eacute produ-zida por ora cumpre chamar aatenccedilatildeo para o fato de que ela eacutetambeacutem a condiccedilatildeo de possibili-dade dos direitos do homem eacute olado sombrio das luzes a ldquodialeacute-ticardquo foucaultiana do iluminismo

Historicamente o pro-cesso pelo qual a burgue-sia se tornou no decorrer

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do seacuteculo XVIII a classepoliticamente dominanteabrigou-se atraacutes da insta-laccedilatildeo de um quadro juriacute-dico expliacutecito codificadoformalmente igualitaacuterio eatraveacutes da organizaccedilatildeo deum regime de tipo parla-mentar e representativoMas o desenvolvimento ea generalizaccedilatildeo dos dispo-sitivos disciplinares cons-tituiacuteram a outra vertenteobscura desse processoA forma juriacutedica geral quegarantia um sistema de di-reitos em princiacutepio iguali-taacuterios era sustentada poresses mecanismos miuacute-dos cotidianos e fiacutesicospor todos esses sistemasde micropoder essencial-mente inigualitaacuterios e as-simeacutetricos que constituemas disciplinas E se deuma maneira formal o re-gime representativo per-mite que direta ou indi-retamente com ou semrevezamento a vontadede todos forme a instacircn-cia fundamental da sobe-rania as disciplinas datildeona base garantia da sub-missatildeo das forccedilas e dos

corpos As disciplinas re-ais e corporais constituiacute-ram o subsolo das liber-dades formais e juriacutedicasO contrato podia muitobem ser imaginado comofundamento ideal do di-reito e do poder poliacuteticoo panoptismo constituiacuteao processo teacutecnico uni-versalmente difundidoda coerccedilatildeo Natildeo paroude elaborar em profun-didade as estruturas juriacute-dicas da sociedade parafazer funcionar os meca-nismos efetivos do poderao encontro dos quadrosformais de que este dispu-nha As ldquoLuzesrdquo que des-cobriram as liberdades in-ventaram tambeacutem as dis-ciplinas (p194-5)28

3 - As Disciplinas como Condi-ccedilatildeo de Possibilidade da Suaviza-ccedilatildeo do Direito Penal Moderno

A terceira parte do Vigiar e Pu-nir contem trecircs importantes ca-piacutetulos ldquoos corpos doacuteceisrdquo ldquoOsmeios para o bom adestramentordquo eldquoo panoptismordquo Nesse item abor-daremos o primeiro capiacutetulo com

28Sobre essa tese fortiacutessima de que as liberdades dependeram da generalizaccedilatildeo do regime disciplinar e da nor-malizaccedilatildeo que o acompanha Foucault chega a corroborar numa entrevista com a afirmaccedilatildeo peremptoacuteria de que ldquoadisciplina eacute o avesso da democraciardquo(DE vol8 p39) Sobre a questatildeo da dialeacutetica foucaultiana do iluminismo cfHONNETH A ldquoFoucault et Adorno deux formes drsquoune critique de la moderniteacuterdquo in Critique nordm471-472 1986

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o objetivo de examinar o modocomo Foucault conceitua as dis-ciplinas estabelece sua diferenccedilaem relaccedilatildeo a outras modalidadesde poder determina o momentoem que elas se generalizaram nasociedade europeia e sobretudocomo ele efetua a descriccedilatildeo des-sas teacutecnicas de poder de modo quesua incidecircncia sobre o corpo re-sulte na produccedilatildeo de uma sub-jetividade Na descriccedilatildeo minu-dente das teacutecnicas disciplinaresdo corpo procuraremos eviden-ciar o esquema conceitual extrema-mente forte empregado por Fou-cault quando relaciona sua inci-decircncia perfeitamente acoplada agravesnotas principais do conceito decorpo por ele definido muito ni-etzscheanamente e quase que adhoc

31 ndash ldquoOs corpos doacuteceisrdquo ou a ar-ticulaccedilatildeo corpo-disciplina-alma

Foucault comeccedila esse capiacutetulocontrastando a figura do soldadona eacutepoca claacutessica e na moderni-dade Na eacutepoca claacutessica o soldadoera algueacutem cujas tradicionais vir-tudes do corpo se reconhecem delonge pois seu corpo eacute o brasatildeode sua forccedila e coragem29 Na mo-dernidade o soldado ldquotornou-sealgo que se fabrica de uma massa

informe de um corpo inapto fez-se o homem de que se precisardquoFoucault afirma que ldquohouve du-rante a eacutepoca claacutessica toda umadescoberta do corpo como objetoe alvo de poderrdquo Ele encontra ossinais dessa descoberta do corpoldquodessa grande atenccedilatildeo dedicadaentatildeo ao corpo mdash ao corpo que semanipula se modela se adestraque obedece responde se tornahaacutebil ou cujas forccedilas se multipli-camrdquo no livro O Homem -maacutequinade Julien Onffray de la Mettrie(1709-51) Segundo ele o livrofoi escrito em dois registros noanaacutetomo-metafiacutesico (corpo anali-saacutevel cognosciacutevel) e no teacutecnico-poliacutetico (corpo manipulaacutevel) Se-gundo Foucault esse livro ldquoeacute aomesmo tempo uma reduccedilatildeo mate-rialista da alma e uma teoria ge-ral do adestramento no centro dosquais reina a noccedilatildeo de ldquodocilidaderdquoque une ao corpo analisaacutevel o corpomanipulaacutevel Eacute doacutecil um corpo quepode ser submetido que pode ser uti-lizado que pode ser transformado eaperfeiccediloadordquo (p126) Isso cria umproblema para Foucault pois seele jaacute havia afirmado que o corpoestaacute sempre mergulhado em rela-ccedilotildees de poder (anatomia poliacutetica)qual a novidade dessa atenccedilatildeo queo corpo recebeu na eacutepoca claacutessica

Antes de responder a essa auto-

29A tradiccedilatildeo ocidental definiu como virtudes do corpo a forccedila (fortaleza) sauacutede beleza e coragem embora sempretenha valorizado as virtudes da almacf PIGEAUD J La maladie de lrsquoacircme Paris Belles Lettres 1981

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objeccedilatildeo Foucault retoma a ques-tatildeo do campo poliacutetico em que ocorpo estaacute mergulhado com umasurpreendente tese Sabemos quepor causa de seu nominalismoraras vezes Foucault formula te-ses gerais Neste passo do textoo filoacutesofo retoma a discussatildeo so-bre ldquoeconomia poliacutetica do corpordquoiniciada no capiacutetulo introdutoacuterioe afirma que ldquoem qualquer socie-dade o corpo estaacute no interior de po-deres muito apertados que lhe im-potildee constrangimentos (contraintes)proibiccedilotildees ou obrigaccedilotildeesrdquo (p 126)Em concordacircncia com a antropo-logia cultural30 essa tese geral co-loca o problema de sua especifi-cidade se o corpo eacute controladoem toda e qualquer sociedade oque haacute de novo no controle que so-bre ele exerce o poder disciplinarA novidade do poder disciplinarencontra-se na escala no objeto ena modalidade de controle

Em primeiro lugar a es-cala do controle natildeo setrata de cuidar do corpoem massa grosso modocomo se fosse uma uni-dade indissociaacutevel masde trabalhaacute-lo detalha-damente de exercer so-

bre ele uma coerccedilatildeo semfolga de mantecirc-lo ao niacute-vel mesmo da mecacircnicamdash movimentos gestos ati-tude rapidez poder in-finitesimal sobre o corpoativo O objeto em se-guida do controle natildeoou natildeo mais os elementossignificativos do compor-tamento ou a linguagemdo corpo mas a econo-mia a eficaacutecia dos movi-mentos sua organizaccedilatildeointerna a coaccedilatildeo se fazmais sobre as forccedilas quesobre os sinais a uacutenicacerimocircnia que realmenteimporta eacute a do exerciacutecioA modalidade enfim im-plica numa coerccedilatildeo inin-terrupta constante quevela sobre os processos daatividade mais que sobreseu resultado e se exercede acordo com uma codi-ficaccedilatildeo que esquadrinhaao maacuteximo [quadrille auplus preacutes les] o tempoo espaccedilo os movimentos(p126 gm)

Retenhamos a atenccedilatildeo nessa uacutel-tima e preciosa afirmaccedilatildeo do fi-

30Marcel Mauss antropoacutelogo e sobrinho de Durkheim no ensaio justamente ceacutelebre ldquoAs teacutecnicas corporaisrdquocompreendeu mais profundamente a definiccedilatildeo durkheimeana de educaccedilatildeo fiacutesica que concebia o corpo como umartefato cultural ao mostrar que ele era moldado inclusive nos miacutenimos gestos por teacutecnicas que satildeo sociais Eacuteindubitaacutevel o conhecimento profundo da tradiccedilatildeo socioloacutegica e antropoloacutegica de Durkheim a Levi Strauss bemcomo da antropologia cultural inglesa por Foucault

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loacutesofo a disciplina controla otempo o espaccedilo e os movimentosdo corpo Ela antecipa a definiccedilatildeodas disciplinas

meacutetodos que permitemo controle minucioso dasoperaccedilotildees do corpo queasseguram o assujeita-mento constante de suasforccedilas e lhes impotildeem umarelaccedilatildeo de docilidade-utilidade eacute isso que sepode chamar as discipli-nas (idem)

Como esse capiacutetulo tem o obje-tivo de repertoriar esses meacutetodosde descrever as teacutecnicas de disci-plinamento de efetuar uma mi-crofiacutesica do poder natildeo de fazer ahistoacuteria das instituiccedilotildees discipli-nares31 ndash exceto evidentemente de

uma delas da prisatildeo ndash aquela afir-maccedilatildeo precisa ser destacada

As disciplinas se exercem ldquodeacordo com uma codificaccedilatildeo queesquadrinha ao maacuteximo o tempoo espaccedilo os movimentosrdquo docorpo Essa afirmaccedilatildeo combinadacom o conceito de corpo fornecea chave heuriacutestica do capiacutetulo deseu esquema ou estrutura Comefeito o corpo seraacute definido ape-nas por quatro notas baacutesicas 1) eacutematerialvivo 2) portador de for-ccedilas (p29) 3) sede de uma dura-ccedilatildeo (p148) e 4) estaacute diretamentemergulhado num campo poliacutetico(p28) no qual obedece ou resiste(p259) Seguramente por causada ldquoNavalha de Occamrdquo o corpoeacute definido por um nuacutemero res-trito de notas que satildeo natildeo obs-tante suficientemente plaacutesticas32Se nos lembrarmos de que o prin-

31Eacute o que Foucault afirma categoricamente ldquoNatildeo se trata de fazer aqui a histoacuteria das diversas instituiccedilotildees dis-ciplinares no que podem ter cada uma de singular Mas de localizar apenas sob uma seacuterie de exemplos algumasdas teacutecnicas essenciais que de uma a outra se generalizaram mais facilmente Teacutecnicas sempre minuciosas muitasvezes iacutenfimas mas que tecircm sua importacircncia porque definem um certo modo de investimento poliacutetico e detalhadodo corpo uma nova ldquomicrofiacutesicardquo do poder e porque natildeo cessaram desde o seacuteculo XVII de ganhar campos cadavez mais vastos como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro Pequenas astuacutecias dotadas de um grande po-der de difusatildeo arranjos sutis de aparecircncia inocente mas profundamente suspeitos dispositivos que obedecem aeconomias inconfessaacuteveis ou que procuram coerccedilotildees sem grandeza satildeo eles entretanto que levaram agrave mutaccedilatildeo doregime punitivo no limiar da eacutepoca contemporacircneardquo (p128) Numa nota ele especifica que recolheraacute de algumasinstituiccedilotildees disciplinares os exemplos que lhe permitem efetuar a analiacutetica desse poder ldquoEscolherei os exemplosnas instituiccedilotildees militares meacutedicas escolares e industriais Outros exemplos poderiam ser tomados na colonizaccedilatildeona escravidatildeo nos cuidados na primeira infacircnciardquo (nota 8) Sobre a instituiccedilatildeo em Foucault cf ADORNO F P2002 laquoFoucault et les institutionsraquo 2002275-298

32Eacute bastante surpreendente que Bryan S Turner um dos mais renomados socioacutelogos do corpo e de sua racio-nalizaccedilatildeo na modernidade aponte um deacuteficit inexistente na compreensatildeo foucaultiana de corpo ldquoPor outro ladoFoucault tambeacutem disse que em vez de comeccedilar com a anaacutelise da ideologia seria mais materialista estudar pri-meiro a questatildeo do corpo e os efeitos do poder sobre ele (FOUCAULT 1981 139) Tal projeto materialista parecelevar a corporeidade da vida a seacuterio O que eacute o corpo eacute portanto uma questatildeo central para o pensamento deFoucault mas que natildeo eacute claramente respondida () Ateacute certo ponto Foucault inverteu essa situaccedilatildeo negandoqualquer centralidade agrave subjetividade (o pensamento sujeito cartesiano) e tratando o corpo como foco do discursomoderno Tendo rejeitado o Sujeito transcendental como mero substituto moderno de Deus ou Logos Foucaultparece relutante em ter o Corpo como um centro controlador da teoria social O corpo eacute portanto problemaacuteticopara sua teoriardquo TURNER BS The Body amp Society pp47-8

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ciacutepio de individuaccedilatildeo33 foi tradi-cionalmente definido como tempoe espaccedilo e que a duraccedilatildeo eacute umsegmento qualquer do tempo con-siderado em seu conjunto e quefoi pensado desde a Fiacutesica aris-toteacutelica como uma sucessatildeo infi-nita de instantes entatildeo um corpomaterial eacute espacial ou seja natildeoum pedaccedilo qualquer da extensatildeomas mateacuteria viva o corpo eacute por-tador de forccedilas e estaacute sempre ematividade em movimento poisvida = atividade por sediar umaduraccedilatildeo um corpo eacute temporalmais precisamente finito e enfimum corpo que estaacute submergidonum campo poliacutetico portantoem relaccedilatildeo com outros corpos

obedece-lhes ou cria-lhes resis-tecircncia34 Nesse conceito de corpo(material portador de forccedilas sedede duraccedilatildeo obedienteresistente)e na proacutepria definiccedilatildeo de disci-plina (ldquocontrole que esquadrinhaao maacuteximo o tempo o espaccedilo e osmoimentos do corpordquo) encontra-mos a articulaccedilatildeo das quatro teacutec-nicas disciplinares que seratildeo des-critas na sequecircncia 1ordf) arte daslocalizaccedilotildees ndash localizaccedilatildeo do corpono espaccedilo 2ordf) o controle da ativi-dade ndash dominaccedilatildeo dos movimen-tos do corpo 3ordf) organizaccedilatildeo dasgecircneses ndash controle da existecircnciatemporal ou mais precisamenteda duraccedilatildeo do corpo da apropria-ccedilatildeo do tempo das existecircncias sin-

33O princiacutepio de individuaccedilatildeo foi formulado para resolver o problema da individualidade a partir de uma subs-tacircncia ou natureza comum p ex constituiccedilatildeo deste homem ou deste animal a partir da substacircncia homem ou dasubstancia animal O que faz da substacircncia homem este ou aquele homem Esse eacute o problema que foi formuladopor Avicena e transmitido agrave escolaacutestica cristatilde Agostinho Tomas e Duns Scotus deram respostas divergentes Atra-veacutes de Suarez na escolaacutestica tardia esse problema chegou ao mundo moderno em De principii Individui (1663) deLeibniz e o Ensaio sobre o entendimento humano (1690) de Locke No segundo livro do Ensaio especificamente nocapiacutetulo 27 Locke afirma que uma das funccedilotildees da mente eacute comparar (comparar uma coisa com outra por seme-lhanccedilas e diferenccedilas comparar uma coisa consigo mesma em diferentes momentos do tempo) Esta uacuteltima accedilatildeogera a ideia de identidade e diversidade O verdadeiro ser das coisas eacute sua identidade sua inalterabilidade ao longodo tempo Existir num determinado tempo e lugar exclui outros objetos desse tempo e lugar Segundo Locke umacoisa natildeo pode ter dois comeccedilos na existecircncia nem duas coisas o mesmo comeccedilo Tambeacutem duas coisas natildeo podemocupar o mesmo espaccedilo Se tempo e espaccedilo individualizam as substancias materiais para as coisas vivas Lockeacrescenta o projeto e para os seres espirituais aleacutem de tempo espaccedilo e projeto ele acrescenta a consciecircncia desi Foi de Locke que essa noccedilatildeo chegou a Schopenhauer deste a Nietzsche e deste a Foucault

34No VP Foucault menciona ldquoos indiviacuteduos que resistem agrave normalizaccedilatildeordquo (p259) No ensaio ldquoNietzsche a ge-nealogia a histoacuteriardquo secccedilatildeo 5 ele expotildee a centralidade do corpo na genealogia nietzschiana e afirma que o corpocria resistecircncia Nessa nota do conceito de corpo podemos evidenciar o aspecto derivado ou dependente do capiacute-tulo ldquoOs meios para o bom adestramentordquo na medida em que a vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e oexame exercem-se principalmente sobre os corpos rebeldes e indoacuteceis desviantes e anormais Da mesma forma ocapiacutetulo ldquoo panoptismordquo que aborda a formaccedilatildeo da sociedade disciplinar deriva de tese ou estende uma posiccedilatildeojaacute afirmada em ldquoos corpos doacuteceisrdquo a generalizaccedilatildeo ou extensatildeo das disciplinas ao longo dos seacuteculos XVII e XVIIIEm razatildeo da dependecircncia loacutegica dos capiacutetulos II e III da 3ordf parte em relaccedilatildeo ao primeiro pode-se dizer que este(ldquoos copos doacuteceisrdquo) possui uma dupla centralidade em relaccedilatildeo ao livro e agrave terceira parte No seu belo estudosobre Michel Foucault e a constituiccedilatildeo do Sujeito Marcio Alves da Fonseca expotildee as ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo(distribuiccedilatildeo espacial controle das atividades capitalizaccedilatildeo do tempo e composiccedilatildeo das forccedilas) apoacutes a exposiccedilatildeodos instrumentos de puniccedilatildeo (vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e o exame) Ora se os instrumentosvisam a garantir ldquoo sucessordquo das disciplinas de modo a vigiar normalizar e examinar sobretudo agravequeles que natildeose conformam com elas julgo que a sequecircncia da terceira parte deve ser mantida pois aqui o acessoacuterio segue oprincipal Felizmente essa anaacutelise foi retomada sem essa inversatildeo em sua obra posterior e justamente ceacutelebreMichel Foucault e o Direito

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

gulares 4ordf) composiccedilatildeo das for-ccedilas ndash controle da intercorporei-dade ou das relaccedilotildees de mandoe obediecircncia nas relaccedilotildees entrecorpos sempre mergulhados numcampo poliacutetico Foucault examinacada uma dessas teacutecnicas espe-cificando seus princiacutepios atraveacutesde exemplos Se eliminarmos osexemplos as teacutecnicas foram assimespecificadas pelo filoacutesofo

A arte das localizaccedilotildees1) Cerca especificaccedilatildeo deum local heterogecircneo a to-dos os outros e fechado emsi mesmo 2) Quadricula-mento cada indiviacuteduo noseu lugar e em cada lu-gar um indiviacuteduo 3) loca-lizaccedilotildees funcionais Luga-res determinados se defi-nem para satisfazer natildeo soacuteagrave necessidade de vigiar deromper as comunicaccedilotildeesperigosas mas tambeacutem decriar um espaccedilo uacutetil 4)Enfileiramento Na disci-plina os elementos satildeo in-tercambiaacuteveis pois cadaum se define pelo lugarque ocupa na seacuterie e peladistacircncia que o separa dosoutros A unidade natildeo eacuteportanto nem o territoacuterio(unidade de dominaccedilatildeo)nem o local (unidade deresidecircncia) mas a posiccedilatildeona fila o lugar que al-

gueacutem ocupa numa classi-ficaccedilatildeo o ponto em que secruzam uma linha e umacoluna o intervalo numaseacuterie de intervalos que sepode percorrer sucessiva-mente

O controle da atividade1) horaacuterio velha heranccedilaque emprega trecircs grandesprocedimentos mdash estabe-lecer as cesuras obrigara ocupaccedilotildees determina-das regulamentar os ci-clos de repeticcedilatildeo que pro-cura tambeacutem garantir aqualidade do tempo em-pregado controle inin-terrupto pressatildeo dos fis-cais anulaccedilatildeo de tudo oque possa perturbar e dis-trair mediante a constru-ccedilatildeo de um tempo integral-mente uacutetil 2) A elaboraccedilatildeotemporal do ato define-seuma espeacutecie de esquemaanaacutetomo-cronoloacutegico docomportamento O ato eacutedecomposto em seus ele-mentos eacute definida a posi-ccedilatildeo do corpo dos mem-bros das articulaccedilotildeespara cada movimento eacutedeterminada uma dire-ccedilatildeo uma amplitude umaduraccedilatildeo eacute prescrita suaordem de sucessatildeo Otempo penetra o corpoe com ele todos os con-

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troles minuciosos do po-der 3) Correlaccedilatildeo entreo corpo e o gesto o con-trole disciplinar natildeo con-siste simplesmente em en-sinar ou impor uma seacuteriede gestos definidos impotildeea melhor relaccedilatildeo entre umgesto e a atitude global docorpo que eacute sua condi-ccedilatildeo de eficaacutecia e de rapi-dez 4) A articulaccedilatildeo corpo-objeto a disciplina de-fine cada uma das relaccedilotildeesque o corpo deve mantercom o objeto que mani-pula Ela estabelece cui-dadosa engrenagem entreum e outro 5) A utili-zaccedilatildeo exaustiva o princiacute-pio que estava subjacenteao horaacuterio em sua formatradicional era essencial-mente negativo princiacutepioda natildeo-ociosidade eacute proi-bido perder um tempoque eacute contado por Deus epago pelos homens o ho-raacuterio devia conjurar o pe-rigo de desperdiccedilar tempomdash erro moral e desonesti-dade econocircmica Jaacute a dis-ciplina organiza uma eco-nomia positiva coloca oprinciacutepio de uma utiliza-ccedilatildeo teoricamente semprecrescente do tempo maisexaustatildeo que empregoimporta extrair do tempo

sempre mais instantes dis-poniacuteveis e de cada ins-tante sempre mais forccedilasuacuteteis O que significa quese deve procurar intensifi-car o uso do miacutenimo ins-tante como se o tempoem seu proacuteprio fraciona-mento fosse inesgotaacutevelou como se pelo menospor uma organizaccedilatildeo in-terna cada vez mais deta-lhada se pudesse tenderpara um ponto ideal emque o maacuteximo de rapidezencontra o maacuteximo de efi-ciecircnciardquo

Organizaccedilatildeo das gecircne-ses 1) Especificaccedilatildeo desegmentos da duraccedilatildeo di-vidir a duraccedilatildeo em seg-mentos sucessivos ou pa-ralelos dos quais cadaum deve chegar a umtermo especiacutefico 2) Or-ganizar essas sequecircnciastemporais segundo um es-quema analiacutetico mdash su-cessatildeo de elementos tatildeosimples quanto possiacutevelcombinando-se segundouma complexidade cres-cente 3) Finalizaccedilatildeo sele-tiva dos segmentos esta-belecer um teacutermino paraesses segmentos atraveacutesde uma prova que tema triacuteplice funccedilatildeo de indi-car se o indiviacuteduo atin-

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giu o niacutevel estatutaacuterio degarantir que sua aprendi-zagem estaacute em conformi-dade com a dos outros ediferenciar as capacidadesde cada indiviacuteduo 4) Se-rializaccedilatildeo das seacuteries paraespecificar niacuteveis e catego-rias estabelecer seacuteries deseacuteries prescrever a cadaum de acordo com seu niacute-vel sua antiguidade seuposto os exerciacutecios quelhe convecircm os exerciacutecioscomuns tecircm um papel di-ferenciador e cada dife-renccedila comporta exerciacuteciosespeciacuteficos Ao termo decada seacuterie comeccedilam ou-tras formam uma ramifi-caccedilatildeo e se subdividem porsua vez De maneira quecada indiviacuteduo se encon-tra preso numa seacuterie tem-poral que define especifi-camente seu niacutevel ou suacategoria35

Composiccedilatildeo das forccedilas1) Constituiccedilatildeo do corpo in-dividual como peccedila de umamaacutequina multissegmentaro corpo singular torna-

se um elemento que sepode colocar mover ar-ticular com outros Suacoragem ou forccedila natildeo satildeomais as variaacuteveis princi-pais que o definem mas olugar que ele ocupa o in-tervalo que cobre a regu-laridade a boa ordem se-gundo as quais opera seusdeslocamentos 2) Ajus-tamento das seacuteries crono-loacutegicas satildeo tambeacutem pe-ccedilas as vaacuterias seacuteries cro-noloacutegicas que a disciplinadeve combinar para for-mar um tempo compostoO tempo de uns deve-seajustar ao tempo de outrosde maneira que se possaextrair a maacutexima quan-tidade de forccedilas de cadaum e combinaacute-la num re-sultado oacutetimo 3) Insti-tuiccedilatildeo de um sistema deordens essa combinaccedilatildeocuidadosamente medidadas forccedilas exige um sis-tema preciso de comandoToda a atividade do in-diviacuteduo disciplinar deveser repartida e sustentada

35Sobre o controle da existecircncia diz Foucault ldquoA colocaccedilatildeo em lsquoseacuteriersquo das atividades sucessivas permite todoum investimento da duraccedilatildeo pelo poder possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenccedilatildeo pontual(de diferenciaccedilatildeo de correccedilatildeo de castigo de eliminaccedilatildeo) a cada momento do tempo possibilidade de caracterizarportanto de utilizar os indiviacuteduos de acordo com o niacutevel que tecircm nas seacuteries que percorrem possibilidade de acu-mular o tempo e a atividade de encontraacute-los totalizados e utilizaacuteveis num resultado uacuteltimo que eacute a capacidadefinal de um indiviacuteduo Recolhe-se a dispersatildeo temporal para lucrar com isso e conserva-se o domiacutenio de uma du-raccedilatildeo que escapa O poder se articula diretamente sobre o tempo realiza o controle dele e garante sua utilizaccedilatildeordquo(p144-5)

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por injunccedilotildees cuja efici-ecircncia repousa na brevi-dade e na clareza a ordemnatildeo tem que ser explicadanem mesmo formuladaeacute necessaacuterio e suficienteque provoque o compor-tamento desejado36

Se levarmos em conta que essasteacutecnicas controlam o espaccedilo otempo os movimentos do corpoe suas relaccedilotildees com outros cor-pos se levarmos em conta o prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo que subjaza esse diagrama do poder discipli-nar compreende-se porque Fou-cault conclui essa analiacutetica coma tese da produccedilatildeo da subjetivi-dade

Em resumo pode-se dizerque a disciplina fabrica apartir dos corpos que elacontrola quatro tipos de

individualidade ou antesuma individualidade do-tada de quatro caracteresela eacute celular (pelo jogo dareparticcedilatildeo espacial) ela eacuteorgacircnica (pela codificaccedilatildeodas atividades) ela eacute ge-neacutetica (pela acumulaccedilatildeodo tempo) ela eacute combina-toacuteria (pela composiccedilatildeo dasforccedilas)rdquo37

Aqui cada termo merece um co-mentaacuterio Individualidade celu-lar a espacialidade do corpo umldquofragmento de espaccedilo ambiacuteguocuja espacialidade proacutepria e ir-redutiacutevel se articula sobre o es-paccedilo das coisasrdquo eacute carceraacuteria pe-nitenciaacuteria incomunicada secci-onada divisoacuteria Individualidadeorgacircnica os movimentos corpo-rais satildeo codificados e como nosorganismos38 essa codificaccedilatildeo re-sulta em atividades de integra-

36SMJ a melhor esquematizaccedilatildeo das ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo ou do diagrama disciplinar encontra-seem MOREY M Lectura de Foucault Meacutexico Editorial Sexto Piso 1983 p344

37VP p150 E ainda ldquoMuitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indiviacuteduos como ele-mentos constituintes eacute tomada agraves formas juriacutedicas abstratas do contrato e da troca A sociedade comercial se teriarepresentado como uma associaccedilatildeo contratual de sujeitos juriacutedicos isolados Talvez A teoria poliacutetica dos seacuteculosXVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema Mas natildeo se deve esquecer que existiu na mesma eacutepocauma teacutecnica para constituir efetivamente os indiviacuteduos como elementos correlates de um poder e de um saber Oindiviacuteduo eacute sem duacutevida o aacutetomo fictiacutecio de uma representaccedilatildeo ldquoideoloacutegicardquo da sociedade mas eacute tambeacutem uma reali-dade fabricada por essa tecnologia especiacutefica de poder que se chama a ldquodisciplinardquo Temos que deixar de descreversempre os efeitos de poder em termos negativos ele ldquoexcluirdquo ldquoreprimerdquo ldquorecalcardquo ldquocensurardquo ldquoabstrairdquo ldquomascarardquoldquoesconderdquo Na verdade o poder produz ele produz realidade produz campos de objetos e rituais da verdade Oindiviacuteduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produccedilatildeordquo (p172)

38Desde os ensinamentos de Canguilhem e da redaccedilatildeo da HL do NC e de PC Foucault analisou a transformaccedilatildeoda histoacuteria natural para a biologia a mudanccedila da anatomia patoloacutegica para a fisiologia e alteraccedilatildeo da concepccedilatildeoestrutural para a concepccedilatildeo orgacircnica de corpo Como na biologia organicista o corpo natildeo eacute redutiacutevel agrave fiacutesica (con-cepccedilatildeo mecanicista) mas eacute uma complexa organizaccedilatildeo de ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos que coordenadamente realizamfunccedilotildees fisioloacutegicas (nutriccedilatildeo respiraccedilatildeo reproduccedilatildeo etc) para adaptar-se agraves mudanccedilas das condiccedilotildees ambientaise desse modo resistir agrave morte surgiram teorias da adaptaccedilatildeo que Foucault e antes dele Nietzsche rechaccedilaramprontamente e cujos ecos estatildeo presentes aqui

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ccedilatildeo coordenaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo agravescondiccedilotildees ambientais Individu-alidade geneacutetica a duraccedilatildeo docorpo sua radical finitude natu-ral estaacute presa agrave identidade poruma memoacuteria cumulada Indivi-dualidade combinatoacuteria nas rela-ccedilotildees intercorporais o indiviacuteduo eacutepermutaacutevel intercambiaacutevel mo-viacutevel entre os elementos do dis-positivoaparelho Essa passagemprecisa ser conjugada e lida comduas outras que a esclarecem edesdobram colhidas no capiacutetuloldquoOs meios do bom adestramentordquo

ldquo[A disciplina - kb] laquoades-traraquo as multidotildees moacuteveisconfusas e inuacuteteis de cor-pos e forccedilas numa multi-plicidade de elementos in-dividuais ndash pequenas ceacute-lulas separadas autono-mias orgacircnicas identida-des e continuidades geneacute-ticas segmentos combina-toacuteriosrdquo (VP p 153) Eainda ldquoAs grandes fun-ccedilotildees disciplinares de re-particcedilatildeo () de extraccedilatildeomaacutexima das forccedilas ()de acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua de composiccedilatildeooacutetima das aptidotildees Por-tanto de fabricaccedilatildeo da in-dividualidade celular or-gacircnica geneacutetica e combi-natoacuteria () Disciplinasque podemos caracteri-

zar numa palavra dizendoque satildeo uma modalidadede poder para o qual a di-ferenccedila individual eacute perti-nenterdquo (VP p 171)

Embora Foucault natildeo as formulepodemos desdobrar as hipoacutetesesinversas dos indiviacuteduos discipli-nados ao inveacutes da reparticcedilatildeo damultiplicidade de indiviacuteduos aldquomobilidade e confusatildeordquo das mul-tidotildees em vez da extraccedilatildeo maacute-xima das forccedilas pela codificaccedilatildeoda atividade sua ldquoinutilidaderdquo aocontraacuterio da acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua a ruptura da identidadepor fim em oposiccedilatildeo a composi-ccedilatildeo oacutetima das aptidotildees sua dis-persatildeo

Para finalizarmos dois escla-recimentos Agora que sabemosqual o conceito de disciplina ecomo se disciplina um corpo de-vemos determinar em qual eacutepocaemerge o momento histoacuterico dasdisciplinas e qual a importacircn-cia dessa dataccedilatildeo (assinalaccedilatildeo dolugar e tempo de nascimento)para o argumentotese de Fou-cault Tambeacutem precisamos mos-trar como ela se diferencia de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Emuma passagem lapidar o filoacutesofoesclarece essas questotildees

Muitos processos discipli-nares existiam haacute muito

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tempo nos conventosnos exeacutercitos nas oficinastambeacutem Mas as discipli-nas se tornaram no de-correr dos seacuteculos XVIIe XVIII foacutermulas geraisde dominaccedilatildeo Diferen-tes da escravidatildeo pois natildeose fundamentam numa re-laccedilatildeo de apropriaccedilatildeo doscorpos eacute ateacute a elegacircn-cia da disciplina dispen-sar essa relaccedilatildeo custosa eviolenta obtendo efeitosde utilidade pelo menosigualmente grandes Dife-rentes tambeacutem da domes-ticidade que eacute uma rela-ccedilatildeo de dominaccedilatildeo cons-tante global maciccedila natildeoanaliacutetica ilimitada e esta-belecida sob a forma davontade singular do pa-tratildeo seu ldquocaprichordquo Dife-rentes da vassalidade queeacute uma relaccedilatildeo de submis-satildeo altamente codificadamas longiacutenqua e que se re-aliza menos sobre as ope-raccedilotildees do corpo que sobreos produtos do trabalho eas marcas rituais da obe-diecircncia Diferentes aindado ascetismo e das ldquodis-ciplinasrdquo de tipo monaacutes-

tico que tecircm por funccedilatildeorealizar renuacutencias maisdo que aumentos de uti-lidade e que se implicamem obediecircncia a outremtecircm como fim principalum aumento do domiacuteniode cada um sobre seu proacute-prio corpo (p 126-7)

Note-se a concisatildeo e brevidadecom a qual Foucault coloca-se deacordo com os claacutessicos da socio-logia Durkheim Weber e MarxCom efeito eles escreveram sobrea origem das disciplinas nos con-ventos exeacutercitos e oficinas39 Sempolemizar com eles sobre a origemda disciplina interessa a Foucaultsalientar que apesar de sua ori-gem remota elas tornaram-se foacuter-mulas gerais de dominaccedilatildeo no de-correr dos seacuteculos XVII e XVIIIAo localizar a generalizaccedilatildeo dadisciplina na eacutepoca claacutessica Fou-cault reforccedila sua tese sobre a su-avizaccedilatildeo dos castigos a moder-nidade pocircde abrandar a penali-dade porque os corpos estavampreviamente disciplinados por-tanto natildeo por humanitarismo Emsuma a importacircncia de determi-nar o momento histoacuterico das dis-ciplinas na eacutepoca claacutessica eacute que a

39Notemos que Foucault natildeo contraria as teses da sociologia claacutessica (Durkheim Weber e Marx) sobre a origemdas disciplinas apropria-se delas acrescentando na sequecircncia dessa frase sua tese sobre a generalizaccedilatildeo delas emtodo tecido social preacute-moderno Cf DURKHEIM A educaccedilatildeo moral Weber ldquoO significado da disciplinardquo inEnsaios de Sociologia MARX O Capital

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lei penal suavizada deve se exer-cer sobre uma populaccedilatildeo previ-amente disciplinada por procedi-mentos infra-juriacutedicos que fazemcrescer em proporccedilotildees diretas ascapacidades e a docilidade dos in-diviacuteduos seu assujeitamento agravesnormas sociais razatildeo pela qualtambeacutem se lhes pode concederdireitos fundamentais A disci-plina se diferencia dessas outrasformas de dominaccedilatildeo porque dis-pensa a violecircncia sobre o corponatildeo o domina pelo capricho deuma vontade excessiva natildeo visaapenas os produtos da atividadecorporal natildeo exige renuacutencias queimplicam em autocontrole masexecuta um controle minuciosodo corpo faz dele uma aptidatildeoaumenta-lhe as capacidades in-vertendo o poder que poderia re-sultar disso e lanccedilando-o numasubmissatildeo estrita a outrem por-tanto afastando o autodomiacutenio eo empoderamento que poderia re-sultar desse incremento de utili-dade

4 - Conclusatildeo

Nesse artigo procuramos mostrarque existe um duplo sentido daprisatildeo indicada no subtiacutetulo doVigiar e Punir nascimento da pri-satildeo cujo desconhecimento impedeaos melhores inteacuterpretes do filoacute-sofo compreender o objetivo prin-cipal dessa histoacuteria da racionali-

dade subjacente agraves praacuteticas puni-tivas Mediante uma breve expo-siccedilatildeo sobre a peculiar estrutura daobra procuramos restituir agrave ter-ceira parte o valor posicional cen-tral que ela ocupa na economiadas tesesposiccedilotildees foucaultianassobre a mitigaccedilatildeo das penas no di-reito penal e mesmo sobre a con-cessatildeo das liberdades constitucio-nais na modernidade que recusatoda explicaccedilatildeo enfatizadora doprogresso da razatildeo ou do huma-nismo Em seguida escolhemosanalisar o capiacutetulo ldquoOs corpos doacute-ceisrdquo que melhor permitiria al-canccedilar os objetivos desse trabalhonatildeo somente pela impossibilidadede analisar toda a terceira parteda obra que excederia tanto nos-sos objetivos quanto as dimensotildeesde um artigo mas tambeacutem por-que ele possui uma dupla centrali-dade central para a obra e centralpara a parte em que estaacute inseridoDestarte procuramos efetuar umaleitura imanente do capiacutetulo quetorna possiacutevel levantar e respon-der as seguintes questotildees Qualo conceito de disciplina Comoas disciplinas acoplam-se ao con-ceito de corpo Em qual momentohistoacuterico elas emergem Qual aimportacircncia dessa dataccedilatildeo para oargumento central de FoucaultComo elas se diferenciam de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Comoessa modalidade de dominaccedilatildeoproduz corpos disciplinados O

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que resulta dessa produccedilatildeoNesse capiacutetulo Foucault des-

creveu minuciosamente essas teacutec-nicas que incidem sobre as no-tas principais do seu conceito decorpo mostrando que o poder dis-ciplinar natildeo vence as forccedilas docorpo atraveacutes da violecircncia masatraveacutes de uma forma materialde dominaccedilatildeo que se exerce emtorno na superfiacutecie e no inte-rior do corpo produzindo neleuma individualidade disciplinadae disciplinadora (alma subjetivi-dade psique personalidade ouconsciecircncia de si etc) que torna ocorpo uacutetil e doacutecil Se o exerciacutecio dopoder disciplinar natildeo eacute violentotampouco apresenta-se como me-ramente ideoloacutegico na medida emque produz saber pois as institui-ccedilotildees disciplinares suas funccedilotildees eseus instrumentos desbloquearamepistemologicamente as ciecircnciashumanas normalizadoras dadasas condiccedilotildees de vigilacircncia examee normalizaccedilatildeo essas instituiccedilotildeespunitivas transformam-se em la-boratoacuterio de anaacutelise sistemaacuteticodo indiviacuteduo escolarizado hos-pitalizado delinquente trabalha-dor etc

Eacute precisamente nessa articula-ccedilatildeo entre puniccedilatildeo-corpo-alma queFoucault retoma com novos meiosa tese defendida por Nietzschena segunda dissertaccedilatildeo de Para aGenealogia da Moral onde o filoacute-sofo alematildeo interpreta a gecircneseda consciecircncia moral como resul-tado de castigos oriundos da es-fera obrigacional presente na pro-toforma do direito e da moralComo vimos a tutela nietzschi-ana de sua pesquisa em geral edesta em particular foi expres-samente declarada por Foucaultna mesa redonda citada no iniacute-cio desse artigo e numa entrevistasobre o VP e seu meacutetodo ldquose eufosse pretencioso daria como tiacute-tulo geral ao que faccedilo genealo-gia da moralrdquo40 Mesmo Deleuzeamigo de Foucault e profundo co-nhecedor de sua obra e do que aaproximava da de Nietzsche queele conhecia tatildeo bem ao ponto dededicar-lhe um comentaacuterio mag-niacutefico natildeo aproximou aquilo queambiguamente chamava de ldquocate-gorias da forccedilardquo e ldquocategorias depoderrdquo (ldquodistribuiccedilatildeo no espaccedilordquoldquoordenar o tempordquo e ldquocompor no

40Entrevista sobre a prisatildeo e seu meacutetodo in DE vol4p174 Cf o final do texto da contracapa da obra41DELEUZE G El Poder curso sobre Foucault II Buenos Aires Cactus 2014 Talvez isso se deva ao fato de

interpretar a filosofia de Nietzsche separando forccedila e vontade de poder retomando-a nesse curso e por via deconsequecircncia negando a accedilatildeo da forccedila sobre o corpo ldquoMas a relaccedilatildeo da forccedila com algo ou algueacutem isto eacute a relaccedilatildeoda forccedila com um corpo ou com uma alma natildeo eacute o mesmo que a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila O que define amicrofiacutesica eacute a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila o que define a macrofiacutesica eacute os resultantes isto eacute a relaccedilatildeo da forccedilacom algo ou algueacutem Em outros termos a forccedila natildeo pode ser definida pela violecircncia Eacute uma forccedila sobre uma forccedilaou se preferem uma accedilatildeo sobre uma accedilatildeo Violecircncia eacute uma accedilatildeo sobre algordquo (p68-9 119 121 134 MF p82)Embora no livro sobre Foucault publicado um ano depois do curso Deleuze afirme que o poder afeta os corpos

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espaccedilo-tempordquo) das notas do con-ceito de corpo41 Tambeacutem JeanFranccedilois Bert num belo texto de-dicado ao tema natildeo percebeu aarticulaccedilatildeo entre as teacutecnicas dis-ciplinares e conjunto de caracte-res representativos do conceito decorpo

As disciplinas satildeo ummodo de racionalidadeque investe o corpo comoum pedaccedilo de espaccedilo nuacute-cleo de comportamentosduraccedilatildeo interna mas tam-beacutem como soma de forccedilasEles instalam o indiviacuteduoem um novo tipo de rela-cionamento que posicionao corpo entre obtenccedilatildeo desua docilidade e a de suautilidade Mais preci-samente a definiccedilatildeo pro-posta por Foucault se des-dobra em duas direccedilotildees Aprimeira insiste em umaanaacutelise histoacuterica do con-ceito pois define distin-gue compara e descrevecom minuacutecia a formaccedilatildeodesses meacutetodos que auto-rizam o controle das ope-raccedilotildees do corpo Na se-gunda direccedilatildeo ele tentacompor a partir de suasdescriccedilotildees uma grade de

anaacutelise da realidade so-cial que se tornou disci-plinar Em um primeironiacutevel portanto eacute um es-tudo quase microssoci-oloacutegico onde uma ver-dadeira ambiccedilatildeo explica-tiva domina O propoacutesitohistoacuterico de Foucault cir-cunscreve ademais essasteacutecnicas disciplinares emum espaccedilo - o das insti-tuiccedilotildees bem como em umtempo - o da abertura dacolocircnia prisional para jo-vens delinquumlentes de Met-tray que eacute o siacutembolo dotransbordamento da pri-satildeo em um conjunto deinstituiccedilotildees que acabamformando uma rede car-ceral Se tomarmos a se-gunda direccedilatildeo sua anaacute-lise eacute lida como o estabele-cimento de uma hipoacutetesede trabalho natildeo mais mi-crossocioloacutegica mas ma-cro ou meta-histoacuterica quevisa mostrar que nossa so-ciedade se tornou discipli-nar42

Tambeacutem os principais leacutexicos deFoucault dedicaram verbetes aosconceitos quase imantados deldquocorpordquo e ldquodisciplinardquo detendo-

essa afetaccedilatildeo natildeo foi estendida ateacute as notas do conceito foucaultiano de corpo42BERT F ldquoRationalisation et histoire des corps dans le parcours de Michel Foucaultrdquo pp38-9

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se natildeo obstante em efetuar suaaproximaccedilatildeo43

Ateacute onde sei a exceccedilatildeo honrosaque mais se aproxima dessa corre-laccedilatildeo entre as teacutecnicas disciplina-res e o conceito de corpo eacute a anaacute-lise que Frederic Gros efetuou doinvestimento poliacutetico dos corpos

A disciplina eacute entendidaantes de tudo como umanova anatomia poliacutetica aarte de reparticcedilatildeo dos in-diviacuteduos no espaccedilo (cadaum deve estar em seu lu-gar segundo sua posiccedilatildeosuas forccedilas sua funccedilatildeoetc) controle da ativi-dade (a dominaccedilatildeo deveatingir a proacutepria interiori-dade do comportamentoela deveraacute jogar no niacute-vel do gesto em sua ma-terialidade mais iacutentima)organizaccedilatildeo das gecircneses(o poder investe o corpona dimensatildeo de sua dura-ccedilatildeo interna submetendo-o a exerciacutecios progressivos

) composiccedilatildeo das forccedilas(trata-se entatildeo de combi-nar os corpos a fim de ex-trair uma utilidade maacute-xima) O poder investeo corpo como um pedaccedilode espaccedilo como nuacutecleo decomportamentos como du-raccedilatildeo interna e como somade forccedilas44

A inspiradora frase final dessapassagem deu origem a essa ten-tativa de expor o acoplamento datecnologia disciplinar com as no-tas principais do conceito foucaul-tiano de corpo A retomada eo desenvolvimento dessa ldquopistardquoforam motivados pelas questotildeespara as quais desejaacutevamos chamara atenccedilatildeo para os dois sentidosda palavra prisatildeo para a posiccedilatildeocentral da terceira parte e dentrodela para o capiacutetulo ldquoos corposdoacuteceisrdquo na estrutura argumenta-tiva da obra para o enunciadopressuposto do princiacutepio de indi-viduaccedilatildeo na tese do caraacuteter produ-tivo do poder disciplinar

43Cf na bibliografia os prestimosos trabalhos de Revel Castro e Taylor44GROS F Michel Foucault 5ordf ed ParisPUF 2017 p66-7 A primeira ediccedilatildeo eacute de 1996 e serviu como ins-

piraccedilatildeo para a primeira versatildeo desse trabalho que foi apresentado como conferecircncia (ldquoA Alma como prisatildeo docorpo segundo Michel Foucaultrdquo) em um seminaacuterio promovido pela linha de pesquisa Corpo e Cultura do Nuacute-cleo de Estudos Sociedade Poliacutetica e Cultura (NESPOC) do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL) daUniversidade Federal do Recocircncavo da Bahia no segundo semestre de 2008

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

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KLEVERTON BACELAR

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Recebido 21022019Aprovado 24062019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223115

Subjetividade e Formas de Vida em Foucault[Foucault on Subjectivity and Life Forms]

Lara Pimentel Figueira Anastacio

Resumo O artigo pretende mostrar que a noccedilatildeo foucaultiana de ldquosub-jetividaderdquo que aparece principalmente em suas genealogias da deacute-cada de 80 dedicadas agraves teacutecnicas de si na antiguidade tambeacutem com-potildee uma criacutetica da razatildeo governamental ao interpretar os modos desubjetivaccedilatildeo dos antigos como modelo de governo de si Apoacutes cir-cunscrevemos a questatildeo em O uso dos prazeres analisaremos o exem-plo da escrita de si como produccedilatildeo de subjetividade dos antigos paraargumentarmos que no pensamento de Foucault a noccedilatildeo de subjeti-vidade estaacute necessariamente vinculada agrave criaccedilatildeo de formas de vida oude um governo das proacuteprias condutas Em outros termos certa dis-posiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade corresponde a uma direccedilatildeoque Foucault identifica como eacuteticaPalavras-chave Michel Foucault Eacutetica Subjetividade Governo Teacutec-nicas de si

Abstract Foucauldrsquos notion of subjectivity which appears mainlyin his genealogies of the 80s dedicated to the techniques of the selfin antiquity also composes a critique of governmental reason sinceit interprets the modes of subjectivation of the ancients as a modelof self-government After we approach the question in The Use ofPleasure we will analyze the example of self-writing as a productionof subjectivity of the ancients to argue that in Foucaultrsquos thoughtthe notion of subjectivity is necessarily linked to the creation of lifeforms In other terms a certain disposition of the relation betweensubject and truth corresponds to a direction that Foucault identifiesas ethicsKeywords Michel Foucault Ethics Subjectivity Government Tech-niques of the self

Nas genealogias de Foucault en-contramos uma concepccedilatildeo de su-jeito imanente agraves relaccedilotildees de po-

der e seus processos de objetiva-ccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo A propoacutesito desua criacutetica a filosofias que reme-

Mestre em filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesmainstituiccedilatildeo E-mail larapfagmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-8631-9626

1 Referimo-nos aqui principalmente agrave fase arqueoloacutegica de Foucault que se propotildee a descobrir territoacuterios preacute-conceituais que prefiguram nos desenhos das epistemes a forma do saber que soacute pode ser compreendido a partirdesse campo preacutevio Foucault ressalta que para criticar certos modelos de referecircncia conceitual foi necessaacuteriorecuar ao campo discursivo da episteme moderna ao qual pertence esse sujeito fundador descrito pejorativamentepor ele como um narcisismo transcendental que ordena e impotildee sua loacutegica contiacutenua agrave acontecimentos irregulares

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tem agrave fixidez do sujeito de conhe-cimento1 seria possiacutevel afirmarque em suas pesquisas genealoacutegi-cas natildeo se encontra um sujeito quepressupotildee uma identidade estan-que que eacute afetada e que se modulaconforme a soma das experiecircn-cias mas um jogo constante entreuma desintegraccedilatildeo interna e suacontraparte externa que provecirc ou-tra integraccedilatildeo mediada pelas re-laccedilotildees de poder Trata-se de certareiteraccedilatildeo da mediaccedilatildeo materialdo mundo sobre os corpos e o su-jeito do qual fala Foucault forma-se atraveacutes das condiccedilotildees proacutepriasaos campos de forccedilas e portantonenhum conteuacutedo sobre ele estaacuteanteriormente posto Movimentode criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo perpeacutetuaso sujeito eacute uma singularidade porser tanto o diferenciado quanto opoder de diferenciaccedilatildeo se o to-marmos como um campo estrateacute-gico de relaccedilotildees de poder ou sejase tomarmos o sujeito no que eletem de moacutevel transformaacutevel re-versiacutevel abre-se entatildeo a possibili-dade do sujeito natildeo ser o mesmodesvinculando-o de qualquer tra-diccedilatildeo ontoloacutegica que fixa e essen-cializa Corpos criam e refletemteacutecnicas criadas no interior das re-laccedilotildees de forccedila e a Foucault in-teressa especialmente interpretare diferenciar processos que se re-

lacionam com a histoacuteria da pro-duccedilatildeo de verdade sobre os sujei-tos o sujeito formado pelo dis-positivo de sexualidade natildeo eacute omesmo daquele encontrado pelasteacutecnicas de si dos antigos e assimpor diante Nesse sentido o queFoucault afirma sobre Nietzscheilumina esse pressuposto que en-contramos em suas proacuteprias pes-quisas ldquoO corpo superfiacutecie deinscriccedilatildeo dos acontecimentos (en-quanto a linguagem os marca eas ideias os dissolvem) lugar dedissociaccedilatildeo do Eu (ao qual eletenta emprestar a quimera de umaunidade substancial) volume emperpeacutetua desintegraccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoNietzsche la geacuteneacutealogielrsquohistoirerdquo 2001a 10112)

Neste artigo escolhemos tra-tar essa questatildeo por meio de al-guns exemplos aos quais Foucaultdedicou-se especialmente a cri-accedilatildeo da subjetividade por meiode praacuteticas denominadas por elede ldquoteacutecnicas de sirdquo Interessa-nossublinhar como o autor apesarde ter expressamente deslocado otema de suas pesquisas a partirda deacutecada de 80 ainda se ocupouem delinear rupturas e continui-dades da histoacuteria de uma formade governo e portanto de umaforma de poder ou de jogo de for-ccedilas como mostram os exemplos

e dispersos Cf FOUCAULT Lrsquoarcheacuteologie du savoir Paris Tel Gallimard p 2652 Os textos citados na liacutengua original possuem traduccedilatildeo de nossa autoria

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especiacuteficos tratados ao longo desteartigo A objetivaccedilatildeo do homempor saberes sobre a sexualidadeou por teacutecnicas de governo pas-torais ou biopoliacuteticas satildeo partede uma genealogia do governodas condutas que como resultadodo proacuteprio meacutetodo eacute repleta dedescontinuidades e inquietaccedilotildeese como pretendemos investigaralgumas das possiacuteveis respostasa problemas abordados anterior-mente por Foucault satildeo elabora-das por meio da interpretaccedilatildeo daproduccedilatildeo de verdade sobre si rea-lizada pelos antigos Natildeo se trataporeacutem de apontar perguntas erespostas objetivas que operamcomo soluccedilotildees agraves tramas do po-der descritas ao longo da deacutecadade 70 A filosofia de Foucault eacutecomo logo percebem seus leitoresrefrataacuteria a essas posiccedilotildees imedi-atas e nossa intenccedilatildeo resume-sea mostrar como alguns elementosdo que Foucault chamava de ldquogo-vernamentalidaderdquo satildeo retomadospor ele em genealogias de praacuteticasde si na antiguidade para pensarformas de vida capazes de rema-nejar os jogos de forccedilas em que seencontram

Antes poreacutem eacute preciso apenasregistrar que nos cursos ministra-dos em 1978 (Seguranccedila territoacute-rio populaccedilatildeo) e 1979 (O nasci-mento da biopoliacutetica) ambos de-dicados agraves teacutecnicas de governona modernidade Foucault de-

cide privilegiar em sua genea-logia do Estado Moderno o usodo termo ldquogovernamentalidaderdquoao voltar-se para os dispositivosconstituiacutedos por teacutecnicas de go-verno de direccedilatildeo de condutastrata-se de um campo de poderque designa um conjunto de for-ccedilas criadoras de uma nova loacute-gica de organizaccedilatildeo de uma mul-tiplicidade de indiviacuteduos As-sim ao voltar-se para o dispositivoldquoseguranccedila-populaccedilatildeo-governordquono curso de 1978 Foucault tra-balha com uma noccedilatildeo ampla degoverno tratando-o como formade racionalidade que determinaos ldquogovernos dos homensrdquo de-linquecircncia sexualidade pasto-rado liberalismo etc satildeo com-preendidos como saberes elabora-dos a partir de princiacutepios racionaisque modulam as accedilotildees dos indiviacute-duos Racionalidade portanto eacuteentendida como um conceito his-toricamente identificaacutevel que en-globa um mundo de componentesdiversos a racionalizaccedilatildeo da vidabaseia-se no caacutelculo rigoroso paradirigi-la com previsatildeo e atenccedilatildeopara o fim de uma forma determi-nada de governo Nesse sentidoeacute preciso interpretar o conceitode ldquorazatildeo governamentalrdquo comoum fundamento para produccedilatildeo deteacutecnicas cuja loacutegica incorpora mo-delos de governo das condutas esuas formas de objetivaccedilatildeo dos su-jeitos (FOUCAULT ldquoLe sujet et le

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pouvoirrdquo 2001b 1056) relaccedilotildeescalculadas e adequadas de acordocom o sentido de uma funccedilatildeo dopoder que tende para dominaccedilatildeoPor essa perspectiva os sujeitosteratildeo suas condutas submetidasa uma administraccedilatildeo cuja ldquorazatildeogovernamentalrdquo eacute dirigida agrave pro-duccedilatildeo de um saber sobre formasde governo e agrave criaccedilatildeo de teacutecni-cas que intervecircm nas condutas doshomens com vistas a um determi-nado fim No entanto natildeo eacute estaforma de governo que nos inte-ressa no momento

Considerando a noccedilatildeo de gover-namentalidade o caraacuteter moacutevel ea funccedilatildeo diferenciadora dos pro-cessos que constroem uma subjeti-vidade ndash que nos termos foucaul-tianos pode ser entendida comoldquoo conjunto de processos de sub-jetivaccedilatildeo aos quais os indiviacuteduosforam submetidos ou que execu-tavam (mis en oeuvre) em relaccedilatildeo aeles mesmosrdquo (FOUCAULT 2014287) eacute possiacutevel pensar a media-ccedilatildeo material do mundo a partir deuma accedilatildeo reflexionada do sujeitoEm outros termos eacute possiacutevel con-siderar o proacuteprio indiviacuteduo comoum eixo de governamentalidadee tomar a si mesmo como umaexternalidade de um processo desubjetivaccedilatildeo como uma forccedila queage sobre si mesma A respostaafirmativa de Foucault eacute interes-sante e complexa pois se a noccedilatildeode ldquogovernordquo serviu a Foucault

primeiramente para descrever osmodos de operaccedilatildeo da ldquorazatildeo go-vernamentalrdquo na modernidade edos sujeitos produzidos por eles oldquogoverno de sirdquo observa a mesmaloacutegica eacute preciso produzir um sa-ber aplicaacutevel aos corpos por meiode teacutecnicas que influenciam naconduta dos indiviacuteduos ndash no casoum saber direcionado para a con-duta de si mesmo

Problematizaccedilatildeo e constituiccedilatildeodo sujeito eacutetico

Como resumido na aula de 17 defevereiro de 1982 de A hermenecircu-tica do sujeito

() se considerarmos aquestatildeo do poder do po-der poliacutetico situando-ana questatildeo mais geral dagovernamentalidade ()entatildeo a reflexatildeo sobre anoccedilatildeo de governamentali-dade penso eu natildeo podedeixar de passar teoacutericae praticamente pelo acircm-bito de um sujeito que se-ria definido pela relaccedilatildeode si para consigo En-quanto a teoria do po-der poliacutetico como insti-tuiccedilatildeo refere-se ordina-riamente a uma concep-ccedilatildeo juriacutedica do sujeito dedireito parece-me que a

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

anaacutelise da governamenta-lidade ndash isto eacute a anaacutelise dopoder como conjunto derelaccedilotildees reversiacuteveis ndash devereferir-se a uma eacutetica dosujeito definido pela re-laccedilatildeo de si para consigo(FOUCAULT 2001c 225)

Percebe-se pois parte do que estaacuteem jogo as genealogias das rela-ccedilotildees de si inserem-se na proble-maacutetica das teacutecnicas de governocomo um contraponto estrateacutegicoa culturas posteriores agrave antigui-dade que privilegiaram moraisimpostas aos indiviacuteduos a partirde instacircncias codificadoras de sis-temas morais No trecho menci-onado Foucault sugere que umdos instrumentos preponderan-tes para se pensar uma criacutetica domodo como determinada formade governo se estabelece eacute o ldquosu-jeito de direitordquo mediador teoacute-rico que confere legitimidade ju-riacutedica agraves formas de relaccedilatildeo possiacute-veis entre o indiviacuteduo e o EstadoCerta tradiccedilatildeo do pensamento criacute-tico dificilmente escapa de ela-borar accedilotildees poliacuteticas que se datildeofora dos campos institucionais ejuriacutedicos as potencialidades des-sas accedilotildees necessariamente perpas-sam o espaccedilo presente no com-plexo conceito de ldquoesfera puacuteblicardquoo qual natildeo nos cabe discutir aquiNatildeo eacute por meio de anaacutelises teoacute-ricas que Foucault estabelece seu

pensamento criacutetico daiacute sua re-cusa em se aproximar de anaacutelisescircunscritas a questotildees normati-vas e institucionais Se Foucaultafirma que natildeo haacute ldquoresistecircncia aopoder poliacutetico senatildeo na relaccedilatildeode si para consigordquo (FOUCAULT2001c 225) eacute porque encontrana histoacuteria um modo de accedilatildeo queintensifica uma capacidade do su-jeito de conduzir a proacutepria vida aopotencializar suas forccedilas por meiode uma dobra sobre si (para utili-zarmos a vocabulaacuterio de Deleuze)(DELEUZE 2005111-115) Eletorna-se apto a alcanccedilar inversotildeesdas relaccedilotildees de poder pois o jogode forccedilas dos antigos estabeleciaque somente os homens livresaqueles que dominam a si mes-mos podiam estabelecer relaccedilotildeeslivres entre si e tornavam-se aptosa ldquogovernar os outrosrdquo a governara famiacutelia e a cidade a conduzirrelaccedilotildees tanto no acircmbito privadoquanto no puacuteblico A filosofia daarte de viver em Foucault assumea tarefa da moldagem de um su-jeito capaz de se relacionar de ma-neira reflexiva consigo mesmo ecom outras formas de governo quesurgem e perpassam sobre ele e eacutenesse contexto que deve ser inse-rida a noccedilatildeo de subjetividade Aeacutetica elaborada como uma esteacuteticase define portanto como produtode altas intensidades tornando oproacuteprio sujeito em um objeto desi capaz de controlar as proacuteprias

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transformaccedilotildeesPara investigar essa forma refle-

xiva de governo Foucault voltou-se para os arquivos da atividadefilosoacutefica na antiguidade quandoaprender e produzir saberes pres-supunha que o sujeito exercesseum trabalho sobre si por meio deexerciacutecios que preparavam corpoe espiacuterito para a filosofia e parao governo dos outros ndash esta eacute aproveniecircncia do termo grego paraa noccedilatildeo de cuidado de si epimeacute-leia heautoucirc Nos termos de Pi-erre Hadot cuja colaboraccedilatildeo foifundamental para Foucault fun-damentar seu ponto de vista sobrea filosofia antiga ldquoA filosofia an-tiga admite bem de uma maneiraou de outra e desde o Banquete dePlatatildeo que o filoacutesofo natildeo eacute um saacute-bio pois a filosofia eacute ao mesmotempo e indissoluvelmente dis-curso e modo de vidardquo (HADOT199519-20) Se a sabedoria re-presenta a identificaccedilatildeo ideal dosaber com a virtude a oposiccedilatildeomarcada por Hadot entre filosofiae sabedoria reflete a busca cons-tante da primeira pela segundaa filosofia na tradiccedilatildeo grega natildeoeacute um saber puramente teoacutericomas um saber-viver que pressu-potildee uma praacutetica que sempre tendepara sabedoria E para que o su-jeito estivesse pronto para refle-tir sobre perguntas tatildeo complexasquanto aquelas produzidas pelafilosofia era preciso que optasse

por certo modo de vida que natildeo sesitua no fim do processo da ativi-dade filosoacutefica como o efeito deum caminho exterior a ele maspelo contraacuterio estaacute pressupostodesde seu iniacutecio em uma com-plexa interaccedilatildeo entre uma reaccedilatildeorefletida do indiviacuteduo agraves proacutepriasatitudes e uma visatildeo de certa ma-neira de viver e de ver o mundoEssa opccedilatildeo por um modo de vidadeterminava ateacute certo ponto a te-oria que era ensinada ao indiviacute-duo havendo portanto um pri-mado da praacutetica sobre a teoria en-tre os filoacutesofos gregos Portantode acordo com o princiacutepio de lei-tura de Hadot da qual Foucaultaproxima-se o discurso filosoacuteficotem sua origem em uma escolha devida e natildeo o contraacuterio e o filoacutesofoeacute aquele que ao buscar a sabedo-ria cria tanto um modo de vidaquanto um discurso

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos Essa escolha sobreas formas de vida diz respeito auma postura de questionamentoque ao relacionar filosofia e vidatorna-se capaz de reconhecer no-vas perspectivas sobre aquilo queexiste de mais familiar ou confereinteresse a accedilotildees ateacute entatildeo con-sideradas insignificantes ndash este eacute

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

o recorte de inteligibilidade parasuas interpretaccedilotildees sobre o modocomo os filoacutesofos antigos proble-matizaram sensaccedilotildees simples e vi-tais como os prazeres do corpopor exemplo Trata-se de um novovocabulaacuterio para abordar relaccedilotildeesde forccedilas relacionadas agraves teacutecnicasde si e sua articulaccedilatildeo com a cria-ccedilatildeo de um pensamento que trans-forma a filosofia em uma praacuteticapara um domiacutenio de accedilatildeo ou certaconformaccedilatildeo do jogo de forccedilas en-trar no campo do pensamento eacutenecessaacuterio uma teacutecnica de si umaatitude criacutetica ou reflexiva que lo-caliza por meio do movimentoldquode sirdquo fatores que tornaram cer-tas accedilotildees incertas ou provoca-ram dificuldades em torno delaE esse processo de problematiza-ccedilatildeo do mundo natildeo requer respos-tas certas ou sistemas que con-ferem legitimidade a um eu defundo egoiacutesta ldquoTrata-se de ummovimento de anaacutelise criacutetica peloqual se tenta ver como puderamser construiacutedas as diferentes solu-ccedilotildees para um problema mas tam-beacutem como essas diferentes solu-

ccedilotildees resultam de uma forma espe-ciacutefica de problematizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoPoleacutemique politique etprobleacutematisationsrdquo 2001b 1417)Satildeo soluccedilotildees que assumem muacutel-tiplas formas teacutecnicas e saberesque satildeo definidos pelo contextode problemas nos quais se encon-tram em um cenaacuterio que deve sercompreendido a partir das forccedilasem que a simultaneidade dessesacontecimentos estaacute localizada

Em O uso dos prazeres a noccedilatildeode ldquoproblematizaccedilatildeordquo ressalta ocaraacuteter reflexivo das praacuteticas desubjetivaccedilatildeo dos antigos em rela-ccedilatildeo aos prazeres Ao longo da his-toacuteria dessas relaccedilotildees de si forccedilasatuaram de diferentes modos nasformas como os sujeitos produ-zem verdade sobre si se o ldquosujeitode desejordquo eacute interpretado como su-jeito objetivado pelas praacuteticas as-sociadas agrave tradiccedilatildeo cristatilde3 a for-maccedilatildeo do sujeito eacutetico na antigui-dade oferece um campo histoacutericono qual as teacutecnicas de subjetivaccedilatildeoeram desvinculadas da produccedilatildeode uma verdade sobre si de umaobjetivaccedilatildeo de si servindo entatildeo

3 No curso de 1980 Do governo dos vivos Foucault convoca pela primeira vez em seu percurso filosoacutefico a forccedilado ldquosirdquo nas relaccedilotildees produtoras de subjetividade A nova perspectiva parece sugerir uma mudanccedila do eixo analiacuteticoem relaccedilatildeo aos programas dos cursos anteriores trata-se poreacutem a nosso ver mais de uma realocaccedilatildeo do problemado governo das condutas do que de uma ruptura no modo de se pensar ldquose trata essencialmente ao passar danoccedilatildeo de saber-poder agrave noccedilatildeo de governo pela verdade de dar um conteuacutedo positivo e diferenciado a esses doistermos saber e poderrdquo (FOUCAULT 2012 13)

4 O receacutem publicado quarto volume da Histoacuteria da sexualidade As confissotildees da carne sublinha os contrastes queFoucault intencionava destacar entre a antiguidade claacutessica e o cristianismo que emerge no seacuteculo IV Ao abordarteacutecnicas como o batismo a confissatildeo a penitecircncia e as interdiccedilotildees sexuais Foucault argumenta que o cristianismodesenvolveu teacutecnicas de poder por meio de um governo do desejo essa verdade sobre si mesmo criada pelosprimeiros pensadores cristatildeos que satildeo obtidas por teacutecnicas de si que objetificam sujeitos por meio da produccedilatildeo

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como contraponto agraves teacutecnicas decontrole do desejo desenvolvidadesde o cristianismo primitivo4

() vamos encontrar tudoisso nas teacutecnicas espiritu-ais do cristianismo primi-tivo nas quais o desejo eacute oelemento fundamental eeacute sobre ele se apreendidode sua raiz ou de sua apa-riccedilatildeo que eacute preciso con-centrar todo esforccedilo ()Natildeo satildeo mais os aphrodi-sia natildeo eacute mais este ato pa-roxiacutestico eacute o nascimentoo desabrochar a primeiraponta a primeira picadado desejo eacute a concupis-cecircncia eacute a tentaccedilatildeo Eacute oque encontraremos poste-riormente deslocamentodo bloco dos aphrodisiae emergecircncia do desejo(FOUCAULT 2014 292)

Ao voltar-se para seu trabalho his-toacuterico e criacutetico ldquoa propoacutesito do de-sejo e do sujeito desejanterdquo (FOU-CAULT 1984 11) Foucault reor-

ganiza a pesquisa que antes eradedicada ao dispositivo de sexua-lidade Com o intuito de formularsua criacutetica histoacuterica do objeto ldquose-xualidaderdquo a Foucault interessouinterpretar as forccedilas que envol-vem o caraacuteter produtivo e criativodas relaccedilotildees que produzem sabe-res construiacutedos sobre certo con-ceito de desejo o que desloca osmecanismos de coerccedilatildeo a um pa-pel coadjuvante na problemaacuteticada sexualidade Suas interpreta-ccedilotildees dirigem-se agraves ldquopraacuteticas pelasquais os indiviacuteduos foram leva-dos a prestar atenccedilatildeo a eles proacute-prios (eux-mecircmes) a se decifrar ase reconhecer e se confessar comosujeitos de desejo jogando de sipara consigo (faisant jouer entreeux-mecircmes et eux-mecircmes) certa re-laccedilatildeo que lhes permite descobrirno desejo a verdade de seu serrdquo(FOUCAULT 1984 11) O projetosignificou um deslocamento ateacute aspraacuteticas de si dos antigos mesmodiante da constataccedilatildeo das dificul-dades oacutebvias em se produzir umagenealogia que percorra as rela-ccedilotildees entre o ldquodesejordquo e a produccedilatildeode verdade sobre si desde a an-

de um saber sobre si Essa subjetivaccedilatildeo eacute indissociaacutevel de um processo de conhecimento que faz da obrigaccedilatildeo debuscar e dizer a verdade de si mesmo uma condiccedilatildeo indispensaacutevel e permanente dessa eacutetica Toda subjetivaccedilatildeoimplica uma objetificaccedilatildeo indefinida de si mesmo por si mesmo mdash indefinida na medida em que sem nunca seradquirida de uma vez por todas natildeo tem um termo no tempo e no sentido de que se deve sempre ter tanto quantopossiacutevel o exame dos movimentos do pensamento tatildeo tecircnues e inocentes quanto possam parecer Por outro ladoessa subjetivaccedilatildeo na forma de uma busca pela verdade de si eacute realizada atraveacutes de relaccedilotildees complexas com os ou-tros E de muitas maneiras porque trata-se de descobrir em si mesmo o poder do Outro do Inimigo que se escondesob as aparecircncias de si mesmo porque trata-se de travar contra este Outro um incessante combate do qual natildeo sepode ser vitorioso sem a ajuda do Todo-Poderoso que eacute mais poderoso que ele porque finalmente a confissatildeoaos outros a submissatildeo aos seus conselhos a obediecircncia permanente aos diretores satildeo indispensaacuteveis para essecombate (FOUCAULT 2018 245)

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tiguidade Esse retorno histoacutericoradical forneceria as condiccedilotildees deampliaccedilatildeo de seu exerciacutecio criacuteticoem um projeto pelo qual novasquestotildees conduziriam sua ldquoanaacutelisedos jogos de verdaderdquo ldquoa questatildeoque deveria servir de fio condutorera a seguinte como por que esob que forma a atividade sexualfoi constituiacuteda como campo mo-ral Por que esse cuidado eacuteticotatildeo insistente () Por que essalsquoproblematizaccedilatildeordquorsquo (FOUCAULT1984 16) Perguntas cuja respostarelaciona-se com o conjunto depraacuteticas que Foucault denominade ldquoartes da existecircnciardquo

Por elas deve-se entenderpraacuteticas refletidas e vo-luntaacuterias atraveacutes das quaisos homens natildeo somente sefixam regras de condutacomo tambeacutem procuramtransformar-se modificar-se em seu ser singular e fa-zer de sua vida uma obraque seja portadora de cer-tos valores esteacuteticos e res-ponda a certos criteacuterios deestilo (FOUCAULT 198416-17)

A constituiccedilatildeo saudaacutevel de um ho-mem livre na Greacutecia Antiga pres-crevia uma ldquoesteacutetica de sirdquo no sen-tido de uma atividade terapecircuticaque tem como fim operar modi-

ficaccedilotildees eacuteticas no sujeito que setornava capaz de se adequar con-forme uma justa medida A ldquopro-blematizaccedilatildeordquo portanto eacute o con-ceito chave para Foucault inter-pretar na Histoacuteria da sexualidadeas relaccedilotildees de poder e as tecno-logias que satildeo imanentes a elascomo praacutetica que visa criar e for-mular problemas diante de umaanaacutelise reflexiva sobre as accedilotildeesos comportamentos as atitudesarticulando-se tambeacutem agraves teacutecni-cas criadas para interferir nessasaccedilotildees tendo em vista algum fimalguma estrateacutegia

Ao voltar-se para a praacutetica daproblematizaccedilatildeo como guia parasuas pesquisas sobre as teacutecnicasde si Foucault abre um novo ho-rizonte para a anaacutelise das relaccedilotildeesde poder mais proacuteximos agraves re-laccedilotildees de forccedilas envolvidas coma proacutepria atividade filosoacutefica Eacuteo que sugere algumas das men-ccedilotildees ao termo encontradas no li-vro ldquoas condiccedilotildees nas quais o serhumano lsquoproblematizarsquo o que eleeacute e o mundo no qual ele viverdquo(FOUCAULT 1984 16) ldquoas pro-blematizaccedilotildees atraveacutes das quais oser se daacute como podendo e devendoser pensadordquo (FOUCAULT 198417) ou ainda ldquoera preciso pesqui-sar a partir de quais regiotildees daexperiecircncia e sob que formas ocomportamento sexual foi proble-matizado tornando-se objeto decuidado elemento para reflexatildeo

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mateacuteria para estilizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT 1984 30) Natildeo interessaagrave anaacutelise de Foucault portantoexperiecircncias regidas por leis queservem de referecircncias a condutaspois seu ponto centraliza-se no es-paccedilo de incocircmodo que nasce nomomento em que o homem da An-tiguidade volta-se para sua proacute-pria constituiccedilatildeo a partir de ldquomo-rais orientadas para a eacuteticardquo defi-nidas pela ldquoecircnfase dada entatildeo agravesformas das relaccedilotildees consigo aosprocedimentos e agraves teacutecnicas pe-las quais satildeo elaboradas aos exer-ciacutecios pelos quais o proacuteprio su-jeito se daacute como objeto a conhe-cer e agraves praacuteticas que permitamtransformar seu proacuteprio modo deserrdquo (FOUCAULT 1984 37) Por-tanto o ldquosujeitordquo abordado na His-toacuteria da sexualidade e nos cursosministrados por Foucault na deacute-cada de 80 natildeo se refere ao indi-viacuteduo que eacute levado a se compor-tar de tal maneira por um con-trole externo a si mas o de algueacutemque adquire a capacidade de esco-lher como agir em determinadassituaccedilotildees por meio de uma refle-xatildeo centrada no domiacutenio das proacute-prias paixotildees dentro de um es-paccedilo de deliberaccedilatildeo sem que o as-pecto reflexivo se confunda comum eu egoiacutesta como observa Wi-lhelm Schmid ldquoO cuidado de sieacute a foacutermula para todas as praacuteti-cas nas quais o eu eacute constituiacutedo() O conceito de epimeleia estaacute

no centro da eacutetica antiga claacutessicaeacutetica entendida como domiacuteniocomo governo da relaccedilatildeo consigomesmo e das relaccedilotildees com os ou-tros O heatou (pronome refle-xivo da 3ordf pessoa) eacute essencial eacuteo si da praacutetica natildeo o eu doegoiacutesmo ou vocecirc do altruiacutesmordquo(SCHMID 1991 247) Foi essemodo de ser especiacutefico dos anti-gos preocupados em alcanccedilar asoberania de si sobre si mesmo apartir de uma reflexatildeo sobre a li-berdade e a eacutetica que atraiu Fou-cault para uma genealogia voltadapara a criaccedilatildeo de praacuteticas para aformaccedilatildeo do sujeito eacutetico

A escrita de si como criaccedilatildeo deformas de vida

Para compreendermos o funcio-namento das forccedilas que envolvemos exerciacutecios de si e o princiacutepiode accedilatildeo que fundamenta essas ati-tudes tomemos primeiramente omodo como Foucault elabora essasrelaccedilotildees pela perspectiva do exer-ciacutecio da leitura e da escrita de sientre os filoacutesofos estoicos que vi-veram durante o Impeacuterio Romanonos primeiros anos de nossa era Aquestatildeo da escrita de si parece-nosum exemplo especialmente ins-trutivo para uma anaacutelise das rela-ccedilotildees de forccedila em jogo nas praacuteticasde si por conter e evidenciar todosos elementos que buscamos des-tacar a relaccedilatildeo entre certo tipo

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de exerciacutecio e seu efeito sobre aforma do corpo por meio de umarelaccedilatildeo instrumental com os dis-cursos Apesar do exerciacutecio da lei-tura e escrita ter adquirido impor-tacircncia tardiamente como exerciacute-cio de si (FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1236) desde en-tatildeo ele desempenhou um papelconsideraacutevel na vida filosoacutefica an-tiga tornando-se um suporte parao acompanhamento ininterruptoda praacutetica asceacutetica

Em todo caso qual sejao ciclo de exerciacutecio emque ela tome lugar a es-crita constitui uma etapaessencial no processo aoqual tende toda askecircsis asaber a elaboraccedilatildeo de dis-cursos recebidos e reco-nhecidos como verdadei-ros em princiacutepios racio-nais de accedilatildeo Como ele-mento de exerciacutecio de sia escrita tem para uti-lizar uma expressatildeo queencontramos em Plutarcouma funccedilatildeo eacutethopoieacuteticaela eacute um operador detransformaccedilatildeo da verdadeem ecircthos (FOUCAULTldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1237)

Vemos aiacute uma seacuterie de conceitos ede relaccedilotildees entre eles que eacute pre-

ciso esclarecer o papel funda-mental atribuiacutedo agrave askecircsis de ins-trumento para o acesso agrave verdadee de consequente transformaccedilatildeode si atraveacutes de uma ldquofunccedilatildeo eacutetho-poeacuteticardquo presente nessa forma depoder Nesse sentido a ascese erao meio pelo qual o sujeito cons-titui a si mesmo ldquoNenhuma teacutec-nica () pode ser adquirida semexerciacutecio tambeacutem natildeo se podeaprender a arte de viver sem umaaskecircsis () aiacute residia um dosprinciacutepios tradicionais aos quaisdesde haacute muito os pitagoacutericosos socraacuteticos os ciacutenicos tinhamdado grande importacircnciardquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1236) Esses exerciacutecios que po-diam ser de ordem fiacutesica como oregime alimentar e dos prazeresou discursiva como o diaacutelogo aescrita e a leitura eram destina-dos a operar modificaccedilatildeo e trans-formaccedilatildeo no sujeito que o praticaesse era o fim da askecircsis A asceseportanto eacute o instrumento que per-mite que o sujeito efetivamente segoverne ao transformar seu proacute-prio corpo em algo que reteacutem osdiscursos verdadeiros

Para filoacutesofos como Secircneca ePlutarco esses discursos satildeo in-corporados por meio de exerciacute-cios em que eacute possiacutevel estabele-cer uma relaccedilatildeo adequada e aca-bada consigo mesmo e assim estarmais bem preparado para as cir-cunstacircncias da vida os exerciacutecios

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de si possuiacuteam o mesmo fim dosexerciacutecios praticados pelos atletasou seja era preciso construir parasi mesmo um corpo que seja umldquoequipamentordquo para a vida A as-cese garante que o discurso ver-dadeiro se materialize e afete ocorpo do sujeito Enfim ldquoa ascesefilosoacutefica a ascese da praacutetica desi na eacutepoca heleniacutestica e romanatem essencialmente por sentido efunccedilatildeo assegurar o que chamareide subjetivaccedilatildeo do discurso verda-deirordquo (FOUCAULT 2001c 297)ou seja trata-se de um modo dosujeito fixar a si mesmo como ob-jeto e a partir do exame do con-teuacutedo desse objeto definir a ati-tude a se tomar em relaccedilatildeo a eleNessa ascese pagatilde (ou filosoacutefica)interessa encontrar a si mesmotanto como meio quanto como fimde uma teacutecnica de vida de umaarte de viver Por meio dos exerciacute-cios o sujeito encontra a si mesmoem um movimento cujo momentoessencial natildeo eacute a objetivaccedilatildeo de siem um discurso verdadeiro comoeacute o caso da praacutetica da confissatildeopara os cristatildeos por exemplo masa subjetivaccedilatildeo de um discurso ver-dadeiro por meio de uma praacuteticareflexiva ou seja de um exerciacuteciode si sobre si

Essa subjetivaccedilatildeo do discursoverdadeiro eacute o que Foucault en-contra por exemplo no exerciacutecioda leitura da escrita das anota-ccedilotildees entre os filoacutesofos do estoi-

cismo tardio Natildeo haacute aiacute a ne-cessidade de compreensatildeo do queo autor lido queria dizer natildeohaacute a prescriccedilatildeo de uma ldquoherme-necircuticardquo mas a instrumentaliza-ccedilatildeo da leitura e da escrita demodo que o sujeito escolha os dis-cursos que lhe satildeo caros e as-sim construa uma trama soacutelida deproposiccedilotildees que funcionam comoprescriccedilotildees como uma forma deldquorazatildeo governamentalrdquo que incor-pora os discursos e os transfor-mam em princiacutepios de comporta-mento Ademais compreende-seporque sendo a leitura assim con-cebida como exerciacutecio e experiecircn-cia a leitura seja imediatamenteligada agrave escrita Essa relaccedilatildeo en-tre as duas atividades eacute elementofundamental de um fenocircmeno decultura e de sociedade presente noiniacutecio do Impeacuterio Romano o lugarrelevante assumido pela escritacomo teacutecnica de si Como Secircnecasugere na carta 84 era preciso al-ternar escrita e leitura ldquoA leiturase prolonga reforccedila-se reativa-sepela escrita escrita que tambeacutemela eacute um exerciacutecio de meditaccedilatildeordquo(FOUCAULT 2001c 341) Natildeo sedeve sempre escrever ou sempreler a primeira esgotaria a ener-gia a segunda ao contraacuterio a di-minuiria Eacute preciso temperar aleitura com a escrita e reciproca-mente de modo que a composiccedilatildeoescrita decirc corpo (corpus) ao que aleitura recolheu

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O papel da escrita eacute cons-tituir com tudo o quea leitura constituiu umldquocorpordquo (quicquid lectionecollectum est stilus redi-gat in corpus) E estecorpo haacute que entendecirc-lonatildeo como um corpo dedoutrina mas sim ndash deacordo com a metaacuteforatantas vezes evocada dadigestatildeo ndash como o proacute-prio corpo daquele queao transcrever as suasleituras se apossou de-las e fez sua a respectivaverdade a escrita trans-forma a coisa vista ou ou-vida ldquoem forccedilas e em san-guerdquo (in vires in sangui-nem) Ela transforma-seno proacuteprio escritor numprinciacutepio de accedilatildeo racional(FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1241)

Por meio da leitura o corpo ad-quire orationes logoacutei (discursoselementos de discursos) e a es-crita constitui e assegura essecorpo O exerciacutecio da escritatem a vantagem de ter dois usospossiacuteveis e simultacircneos eacute escre-vendo que o sujeito assimila a proacute-pria coisa na qual se pensa e as-sim implementa determinada lei-tura e pensamento na alma e nocorpo tornando-se assim comoque uma espeacutecie de haacutebito ou vir-

tude fiacutesica ldquoEra haacutebito e haacutebitorecomendado escrever aquilo quese tivesse lido e uma vez escritoreler aquilo que se tivesse escritoe relecirc-lo necessariamente em vozaltardquo (FOUCAULT 2001c 342)Assim o exerciacutecio de ler escre-ver e novamente ler o que se ti-nha escrito e as anotaccedilotildees parale-las constituiacutea um exerciacutecio fiacutesicode assimilaccedilatildeo do logos a se reterno corpo Nesse sentido a ldquoes-crita etopoieacuteticardquo tal como Fou-cault a interpreta estabeleceu-se no exterior de uma forma deexerciacutecio amplamente praticadana eacutepoca os hypomnemata (FOU-CAULT 2001c 341) formas deanotaccedilotildees do pensamento Exer-ciacutecio difundido entre os filoacutesofosno periacuteodo heleniacutestico era pre-ciso dispor aquilo que se se pen-sou por escrito transformando oconteuacutedo tambeacutem em leitura e re-leitura para si Escrevia-se apoacutesa leitura com o objetivo de relerapoacutes a passagem do texto pela me-moacuteria reler para si mesmo e assimincorporar o discurso verdadeiroque se ouve de outro ou que se lecircsob o nome de outro Deleuze su-blinha o papel da memoacuteria nessesexerciacutecios ldquo() os processos desubjetivaccedilatildeo satildeo acompanhadosde escrituras que constituiacuteam ver-dadeiras memoacuterias hypomnemataMemoacuteria eacute o verdadeiro nome darelaccedilatildeo consigo ou do afeto de sipor si () constituindo a estru-

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tura essencial da subjetividaderdquo(DELEUZE 2005 114-115) Esseduplo do presente exerciacutecios naforma de anotaccedilotildees sobre as lei-turas ou sobre diaacutelogos e aulassatildeo suportes de lembranccedilas re-forccedilo da memoacuteria e um modo dedispor o tempo a favor de umacapacidade de afetar a si mesmopor meio de incorporaccedilatildeo de dis-cursos agrave custa de uma forccedila apli-cada sobre si mesmo ldquo() trata-se natildeo de perseguir o indiziacutevelnatildeo de revelar o que estaacute ocultomas pelo contraacuterio de captar ojaacute dito reunir aquilo que se pocircdeouvir ou ler e isto com uma fi-nalidade que natildeo eacute nada menosque a constituiccedilatildeo de sirdquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1238) No interior da cultura ro-mana marcada e estruturada pelatradiccedilatildeo e valorizaccedilatildeo da recor-recircncia do discurso pela praacuteticadas citaccedilotildees que traziam em si osigno da autoridade da antigui-dade desenvolvia-se uma eacuteticaorientada pelo que Foucault de-nomina cultura de si ou seja praacute-ticas cujos objetivos eram da or-dem da construccedilatildeo de uma inte-rioridade de viver bem consigoproacuteprio alcanccedilar-se a si proacutepriobastar-se a si proacuteprio desfrutar desi proacuteprio

Os hypomneacutemata existiam comoforma de cuidado de si pois havianessa praacutetica uma troca em que osujeito colaborava consigo mesmo

nos exerciacutecios que compreendiama subjetivaccedilatildeo pela atividade daescrita e da leitura A escrita comopraacutetica praticada por si e para sieacute uma arte que conteacutem uma ma-neira refletida de combinar a au-toridade tradicional do discurso jaacutedito com a singularidade da ver-dade que nela se afirma a partirde uma livre escolha desses exer-ciacutecios pelo sujeito pois cada umescolhia suas leituras e era livrepara apropriar-se delas no mo-mento em que julgasse necessaacuterioconstruindo assim um estilo pormeio de exerciacutecio que aos poucoslimita e daacute consistecircncia ao erguerum edifiacutecio coerente para o sujeitoa partir do que ele adquiriu comsua leitura e escrita Como co-menta Schmid ldquo Neste escrito al-gueacutem molda e corrige a si mesmoeacute o signum de um constante exerciacute-cio de si () O si destaca-se e res-surge no traccedilo deixado pelo gestoda matildeo que escreve - esse gestoelementar que cria uma formaespalha a rede de uma estruturae produz uma tramardquo (SCHMID1991 310) Esses procedimentosconferiam aos sujeitos uma formaum limite para a materialidade deseu corpo trata-se menos de umaregra ou seja de uma prescriccedilatildeoa ser observada severamente doque de uma teacutekhne toucirc biacuteou umaarte de viver que transforma aproacutepria vida em uma obra quecomo tudo o que eacute produzido por

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uma teacutekhne deve ser bela e boa apartir de modalidades de accedilatildeo queimplicam tambeacutem uma liberdadede escolha daquele que se utilizadela ldquo() nenhuma obediecircnciapode no espiacuterito de um romano ede um grego constituir uma obrabela A obra bela eacute a que obedeceagrave ideia de uma certa forma (umcerto estilo uma certa forma devida)rdquo (FOUCAULT 2001c 405)Por fim registramos que Foucaultlevou essa teacutecnica de si para suaproacutepria vida enquanto preparavaseus uacuteltimos livros como contouPaul Veyne ldquoDurante os uacuteltimosoito meses de sua vida a prepara-ccedilatildeo de seus dois livros desempe-nhou o papel que a escrita filosoacute-fica e o diaacuterio desempenhavam nafilosofia antiga o papel do traba-lho de si em si mesmo da auto-estilizaccedilatildeordquo (VEYNE 1986 940)

Enquanto na modernidade aproduccedilatildeo e o acesso agrave verdadeindependem de qualquer rela-ccedilatildeo que o sujeito mantenha con-sigo mesmo bastando o que po-demos chamar de maneira geneacute-rica de ldquoato de conhecimentordquo osfiloacutesofos antigos vincularam es-treitamente produccedilatildeo de discur-sos verdadeiros e modo de vidaEm outros termos durante a an-tiguidade podemos compreendero sujeito tanto como instrumentoe fim de uma verdade quantocomo alvo de uma governamenta-lidade no entanto esse processo

era demandado e executado peloproacuteprio sujeito atraveacutes de exerciacute-cios de askecircsis que transforma-vam a proacutepria vida do indiviacuteduoem objeto a ser modificado con-forme sua avaliaccedilatildeo Trata-se deuma forccedila reflexiva aplicada emsi mesmo que vinculava duas no-ccedilotildees fundamentais para a ativi-dade filosoacutefica o verdadeiro sa-ber eacute sempre um saber-fazer e apergunta ldquocomo conhecer a ver-daderdquo natildeo deveria ser respon-dida sem que tambeacutem o sujeitose questione ldquocomo devo viverrdquoOs antigos interpretados por Fou-cault articularam outro arranjode relaccedilotildees entre governo e ver-dade antes de ser capaz de filo-sofar ou seja de produzir discur-sos relacionados com a verdade osujeito deveria transformar-se eti-camente agindo de determinadomodo aplicando em si mesmouma seacuterie de exerciacutecios que for-mavam um ecircthos ou seja que tor-navam o sujeito um ser que ageconforme o discurso que produze que produz discursos coeren-tes com o modo como vive ldquoAverdade soacute eacute dada ao sujeito aum preccedilo que potildee em jogo o sermesmo do sujeito Pois tal comoele eacute natildeo eacute capaz de verdaderdquo(FOUCAULT 2001c 17) Temosem Foucault entatildeo uma defini-ccedilatildeo proacutepria de eacutetica ela deve serdefinida natildeo como uma teoria damoral ou criaccedilatildeo de normas mas

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como um problema de produccedilatildeode modos de vida Eacute necessaacuterioque o sujeito se relacione comsua proacutepria vida transformando-a em uma forma de modificaccedilatildeodo corpo conforme as circunstacircn-cias quando o indiviacuteduo estaacute cor-retamente orientado sendo entatildeocapaz de dominar-se e controlara produccedilatildeo de suas formas de ex-periecircncia de si os exerciacutecios ad-quirem sua justa significaccedilatildeo suaverdadeira validade Essa reflexatildeosobre si retifica cada traccedilo indi-vidual para que natildeo haja excessoou defeito para que se produzao verdadeiro equiliacutebrio na relaccedilatildeoentre sujeito e vida e entre sujeitoe verdade

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos As anaacutelises sobrea governamentalidade moderna esua relaccedilatildeo com as teacutecnicas cris-tatildes conduziram essa interpretaccedilatildeode Foucault ao mundo da Antigui-dade cujas relaccedilotildees de poder e sa-ber eram organizadas por meio deoutro diagrama de forccedilas E atra-veacutes dessa diferenccedila a proposta dereelaboraccedilatildeo da Histoacuteria da sexu-alidade que aparece em O uso dosprazeres parece-nos mais evidenteo paradigma de Foucault mesmose tratando de uma genealogia que

alcanccedila e se inicia com a Antigui-dade grega jamais deixou de seruma visatildeo criacutetica sobre o sujeitomoderno Portanto o ldquoretorno aosgregosrdquo ou a ldquovirada eacuteticardquo cu-jas pesquisas aparecem definitiva-mente a partir do curso de 1981Subjetividade e verdade em nadase assemelham agrave inauguraccedilatildeo deum percurso ainda natildeo exploradopor Foucault pois ampliam e res-pondem a muitos dos questiona-mentos deixados em aberto emsuas genealogias da deacutecada de 70como estabelecer um olhar criacuteticoagraves forccedilas de saber-poder que inci-tam os sujeitos a dizer a verdadesobre o seu desejo Como proble-matizar a instacircncia de obediecircnciae de supressatildeo do ldquosirdquo que encon-tramos no modo como os indiviacute-duos satildeo governados no presenteSatildeo questotildees que Foucault intentaresponder ao olhar para os antigosinvestigando os arquivos e suaspraacuteticas ancoradas em valores queviabilizaram a existecircncia da forccedilado ldquosirdquo tanto nas relaccedilotildees consigoquanto nas familiares e puacuteblicasPor meio da histoacuteria que perpassaas atividades voltadas para o si eacutepossiacutevel como buscamos mostrartambeacutem criticar certa forma de vi-olecircncia presente nas relaccedilotildees esta-belecidas entre sujeito e verdadena tradiccedilatildeo ocidental

As diferentes respostas de Fou-cault agrave pergunta ldquosob quais cir-cunstacircncias produziu-se verdade

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

sobre o sujeito no ocidenterdquo atra-vessam diversos momentos da his-toacuteria como seus leitores podemfacilmente constatar Tentamosdescrever aqui como a instrumen-talizaccedilatildeo da produccedilatildeo de verdaderealizada pelos antigos por meiodas teacutecnicas ldquode si para sirdquo propor-cionou novas condiccedilotildees para o au-tor remanejar essa grande questatildeoque percorreu toda sua produccedilatildeofilosoacutefica Encontramos portantoum modelo de criaccedilatildeo de subje-tividade que garante certa liber-dade de escolha aos sujeitos e re-estrutura as relaccedilotildees de forccedilas nasquais estatildeo envolvidos saiacuteda quegarantiu a Foucault interpretar re-laccedilotildees de poder por seu vieacutes pro-dutivo e potencialmente criadorde algum grau de autonomia paraos sujeitos Trata-se de uma boa

resposta a um incocircmodo presenteem seus textos sobre o poder re-sumido por Deleuze em texto de1977 da seguinte maneira

Daiacute em Michel o pro-blema do papel do intelec-tual daiacute sua maneira dereintroduzir a categoriade verdade que me leva aperguntar o seguinte re-novando completamenteessa categoria fazendo-adepender do poder po-deraacute ele encontrar nessarenovaccedilatildeo um modo devoltaacute-la contra o poderMas aqui natildeo sou capazde ver como fazecirc-lo (DE-LEUZE 1995 p 61)

Referecircncias

FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 2 Lrsquousage des plaisirs Paris Gal-limard 1984

FOUCAULT M Dits et eacutecrits I 1954-1975 Paris Gallimard 2001aFOUCAULT M Dits et eacutecrits II 1976-1988 Paris Gallimard 2001bFOUCAULT MA hermenecircutica do sujeito curso dado no Collegravege de France

(1981-1982) Traduccedilatildeo de Maacutercio Alves da Fonseca e Salma Tan-nus Muchail 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

FOUCAULT M Leccedilons sur la volonteacute de savoir Cours au Collegravege de France1970-1971 Paris Gallimard 2011

FOUCAULT M Du gouvernement des vivant Cours au Collegravege de France1979-1980 Paris SeuilGallimard 2012

FOUCAULT M Subjectiviteacute et veacuteriteacute Cours au Collegravege de France 1980-1981 Paris SeuilGallimard 2014

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LARA PIMENTEL FIGUEIRA ANASTACIO

FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 4 Les aveux de la chair ParisGallimard 2018

DELEUZE G ldquoDeacutesir et plaisirrdquo In Magazine Litteacuteraire ndeg 325 pp59-65

DELEUZE G Foucault Trad Claudia Martins Satildeo Paulo Ed Brasili-ense 2005

HADOT P Qursquoest-ce que la philosophie antique Paris Gallimard 1995SCHMID W Auf der Suche nach einer neuen Lebenskunst Frankfurt am

Main Suhrkamp 1991VEYNE P ldquoLe dernier Foucault et sa moralerdquo in Critique 47172 1986

Recebido 20022019Aprovado 08082019Publicado 17112019

344 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 327-344ISSN 2317-9570

Normas para Publicaccedilatildeo

Todas as submissotildees devem ser efetuadas exclusivamente atraveacutesdo site da Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea (RFMC) nomenu SOBRE SUBMISSOtildeES ONLINE

A RFMC publica apenas trabalhos filosoacuteficos ineacuteditos que estejamde acordo com as suas normas na forma de artigos resenhas ou tra-duccedilotildees de autoria de doutores eou mestres em filosofia (ou aacutereasafins)

A RFMC publica textos redigidos em portuguecircs espanhol francecircsitaliano inglecircs ou alematildeo Se for necessaacuterio o editor recomendaraacutea revisatildeo linguiacutestica dos textos

Todos os textos seratildeo submetidos agrave avaliaccedilatildeo cega por pares

A publicaccedilatildeo de originais implicaraacute automaticamente a cessatildeo dosdireitos autorais agrave RFMC

O autor deve informar os seguintes dados pessoais titulaccedilatildeo acadecirc-mica maacutexima viacutenculo profissional eou acadecircmico atual endereccedilode e-mail e nuacutemero do ORCID

Normas especiacuteficas para Artigos

1 O artigo deve ter no miacutenimo 5000 e no maacuteximo 15000 palavras

2 O texto do artigo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulo tiacutetuloem inglecircs (ou portuguecircs caso o texto natildeo tenha sido redigido emportuguecircs) nome do autor ou autores dados pessoais resumo (nomiacutenimo 50 e no maacuteximo 150 palavras) palavras-chave (no miacutenimo3 e no maacuteximo 5) abstract (resumo em inglecircs) keywords (palavras-chave em inglecircs) texto e bibliografia

345

EDITORIAL

Normas especiacuteficas para Traduccedilotildees

1 As traduccedilotildees devem ter no maacuteximo 20000 palavras

2 O texto da traduccedilatildeo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulodo texto traduzido nome do autor do original nome do tradutordados pessoais do tradutor apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo (no miacutenimo500 e no maacuteximo 5000 palavras) e texto traduzido

3 Seratildeo aceitas apenas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa acompa-nhadas dos originais de textos de reconhecida relevacircncia filosoacutefica

4 Podem ser publicados na iacutentegra ou em partes traduccedilotildees de textosque jaacute estejam no domiacutenio puacuteblico ou que ainda possuam direitosautorais desde que seja apresentada por escrito AUTORIZACcedilAtildeOdo detentor dos DIREITOS AUTORAIS A obtenccedilatildeo da autorizaccedilatildeoeacute de exclusiva responsabilidade do tradutor e deveraacute ser enviadajuntamente com a traduccedilatildeo

Normas especiacuteficas para Resenhas

1 As resenhas devem ter entre 1500 e 5000 palavras

2 O texto da resenha deveraacute observar a seguinte sequecircncia referecircnciacompleta sobre o texto resenhado nome do autor da resenha dadospessoais do resenhista e texto

3 Seratildeo aceitas apenas resenhas de livros cuja publicaccedilatildeo tenha ocor-rido haacute no maacuteximo dois anos (caso o texto seja nacional) ou trecircs anos(caso o texto seja estrangeiro)

Normas para Apresentaccedilatildeo dos Originais

1 Todos os textos devem ser encaminhados em arquivo do MS Wordem formato DOCou DOCX e editados com fonte Times NewRoman tamanho 12 espaccedilamento 15

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2 Os textos devem empregar itaacutelico ao inveacutes de sublinhado (exceto emendereccedilos URL) especialmente para destacar palavras estrangeirasao idioma do texto

3 As notas explicativas devem aparecer ao peacute da paacutegina e ser ordenadasnumericamente A chamada das notas de rodapeacute deve ser colocadano corpo do texto antes do sinal de pontuaccedilatildeo

4 As citaccedilotildees e referecircncias devem obedecer agrave norma NBR 10520 daABNT

a) As citaccedilotildees diretas com ateacute 3 linhas devem estar no corpo do textoentre aspas e as com mais de 3 linhas devem se destacar docorpo do texto sem aspas

b) As referecircncias de citaccedilotildees diretas devem ser colocadas no corpo dotexto no formato autor-data (SOBRENOME DO AUTOR Anop)

c) As citaccedilotildees indiretas devem estar no corpo do texto independen-temente do tamanho sem aspas e as suas referecircncias devemser colocadas no corpo do texto no formato autor-data

5 As referecircncias bibliograacuteficas devem obedecer agrave norma NBR 6023 daABNT aparecer no final do artigo e ser ordenadas alfabeticamenteem ordem ascendente

a) Livro (monografia no todo) SOBRENOME DO AUTOR demaisnomes abreviados com ponto Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetuloNome do tradutor (se houver) Ediccedilatildeo Local da ediccedilatildeo Editoraano da publicaccedilatildeo

b) Artigo ou capiacutetulo de livro (coletacircnea) SOBRENOME DO AUTORdemais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo do artigo ou capiacute-tulo entre aspas com ponto Nome do tradutor (se houver) InSOBRENOME DO ORGANIZADOR OU EDITOR Nome (abre-viado) (Org ou Ed) Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetulo EdiccedilatildeoLocal da ediccedilatildeo Editora ano da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigoocupa na obra

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EDITORIAL

c) Artigos em perioacutedicos SOBRENOME DO AUTOR demais nomesabreviados com ponto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nomedo tradutor (se houver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico local depublicaccedilatildeo (quando houver) ano do perioacutedico (quando houver)volume e nuacutemero do perioacutedico paacuteginas que o artigo ocupa noperioacutedico data ou periacuteodo da publicaccedilatildeo

d) Artigo ou resenha em perioacutedicos eletrocircnicos (documentos eletrocircni-cos) SOBRENOME DO AUTOR demais nomes abreviados componto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nome do tradutor (se hou-ver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico volume e nuacutemero do perioacute-dico data da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigo ocupa no perioacute-dico (se houver) Disponiacutevel em [endereccedilo eletrocircnico] acessadoem [Data de acesso]

e) Teses dissertaccedilotildees e outros trabalhos acadecircmicos SOBRENOMEDO AUTOR demais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo emitaacutelico subtiacutetulo Local Nuacutemero total de paacuteginas Grau aca-decircmico e aacuterea de estudos (Dissertaccedilatildeo de mestrado ou Tese dedoutorado em []) Instituiccedilatildeo em que foi apresentada Ano

6 Havendo mais de uma referecircncia por autor estas devem seguir or-dem crescente de publicaccedilatildeo (primeiro a mais antiga e em seguidaas mais recentes) No caso de mais de uma obra por ano estas de-vem ser diferenciadas por letras

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Page 2: RReevviissttaa ddee FFiilloossooffiiaa MMooddeerrnn aa ee

Equipe EditorialEditorial Team

Editor ChefeEditor in ChiefAlexandre Hahn(hahnalexandregmailcom)

Editores AssociadosAssociated EditorsMaacutercio Gimenes de PaulaPriscila Rossinetti RufinoniRodrigo Freire

Editores de SeccedilatildeoSection EditorsFabio Mascarenhas NolascoGiovanni ZanottiIsabella HolandaJoatildeo Renato Amorim FeitosaLorrayne ColaresEditores de TextoText EditorsAgnaldo Cuoco PortugalAlex Sandro Calheiros de MouraClaacuteudio Arauacutejo ReisErick Calheiros de LimaHerivelto Pereira de SouzaMarcos Aureacutelio FernandesMaria Ceciacutelia Pedreira de AlmeidaPhillipe Lacour

Conselho CientiacuteficoScientific CouncilAdriana Veriacutessimo Serratildeo (Universidade de Lisboa)Alessandro Pinzani (UFSC)Alvaro Luiz Montenegro Valls (UNISINOS)Ceacutesar Augusto Battisti (UNIOESTE)Daniel Omar Perez (UNICAMP)

Elisabete M J de Sousa (Universidade de Lisboa)Joatildeo Vergiacutelio Gallerani Cuter (USP)Joatildeosinho Beckenkamp (UFMG)Jon Stewart (Universidade de Copenhagen)Maria das Graccedilas de Souza (USP)Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)Todd Ryan (Trinity College)Zeljko Loparic (UNICAMP)

Editores de DiagramaccedilatildeoLayout EditorsAlan Renecirc AntezanaGregory Wagner Carneiro

CapaCover(Benedito de Espinosa)Alexandre Hahn

Universidade de BrasiacuteliaUniversity of BrasiacuteliaReitoraRector Maacutercia Abrahatildeo MouraVice-reitorVice Rector Enrique Huelva

Instituto de Ciecircncias HumanasInstitute of Hu-man SciencesDiretorDirector Neuma Brilhante RodriguesVice-diretorVice Director Herivelto Pereira de Souza

Departamento de FilosofiaPhilosophy Depart-mentChefeHead Andreacute LeclercVice-chefeVice Head Agnaldo Cuoco Portugal

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em FilosofiaGraduateProgram in PhilosophyCoordenadorCoordinator Rodrigo Freire

Contato ContactRevista de Filosofia Moderna e ContemporacircneaUniversidade de BrasiacuteliaDepartamento de FilosofiaPrograma de Poacutes-Graduaccedilatildeo em FilosofiaICC Ala Norte - Bloco B - 1ordm Andar (B1 624)Telefone (61) 3107-6677 6680 6679Campus Universitaacuterio Darcy Ribeiro70910-900 ndash Brasiacutelia ndash Distrito Federal ndash BrasilE-mail rfmcunbbr

Indexaccedilatildeo Indexed inCiteFactor CLASE Diadorim DOAJ DRJI Latin-dex Sumaacuterios Perioacutedicos PhilBrasil PhipapersSHERPARoMEO

Qualis CAPES ndash B2

DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i2

A Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea eacute umapublicaccedilatildeo quadrimestral do Departamento de Filosofia e doPrograma de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia (UnB)The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a

triannual publication of the Department of Philosophy and theGraduate Program in Philosophy of the University of Brasiacutelia

Brasiacutelia volume 7 nuacutemero 2 2ordm quadrimestre de 2019ISSN 2317-9570 (publicaccedilatildeo eletrocircnica)

httpperiodicosunbbrindexphpfmc

Pareceristas desta EdiccedilatildeoReviewers of this Issue

Andreacute Luis Muniz Garcia (UnB) Antocircnio Maacuterio David Siqueira Ferreira(USP) Ericka Marie Itokazu (UnB) Fran de Oliveira Alavina (UFVJM)Giorgio Gonccedilalves Ferreira (UEBA) Giovanni Zanotti (UnB) Henrique

Piccinato Xavier (UFABC) Homero Santiago (USP) Jarlee Oliveira SilvaSalviano (UFBA) Jonas Roos (UFJS) Joseacute Miranda Justo (Universidade deLisboa) Leon Farhi Neto (UFT) Lorrayne Colares (UnB) Luis Cesar Oliva

(USP) Luiz Carlos Montans Braga (UEFS) Luiz Manoel Lopes (UFC)Malcom Guimaratildees Rodrigues (UEFS) Marcos Aureacutelio Fernandes (UnB)

Marilia Pacheco (UnB) Philippe Claude Thierry Lacour (UnB) Roberto deAlmeida Pereira de Barros (UFPA)

Sumario

i Paginas Iniciais 01

ii Editorial 07

iii Dossie Espinosa 17

Notas Sobre os Instrumentos Cientıficos em GalileuCristiano Novaes de Rezende 17

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e EspinosaVittorio Morfino 43

Dramas da Imanencia Gebhardt Deleuze Benjamin e o Infinito Bar-roco de EspinosaHenrique Piccinato Xavier 71

Ha Abstracao de Si na Origem de toda a Abstracao na Filosofia deEspinosaRafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende 89

Seguranca Liberdade e Concordia no Pensamento Republicano de Es-pinosaStefano Vinsentin 123

Comunicacao e Silencio na Experiencia Polıtica EspinosanaDaniel Santos da Silva 137

Sobre o Desespero Sao Paulo Junho de 2013Fernando Bonadia de Oliveira 147

iv Artigos 189

A Influencia de Schelling sobre SchopenhauerHelio Lopes da Silva 189

De Dicto and De Re A Brandomian experiment on KierkegaardGabriel Ferreira da Silva 221

Introduccion Historica al PsychologismusstreitMario Ariel Gonzalez Porta 239

A Antiguidade um Erro Profundo ndash Foucault a Filosofia e suas Ati-tudesJean Dyego Gomes Soares 271

Sobre a centralidade e a estrutura do capıtulo ldquoOs corpos doceisrdquo doVigiar e PunirKleverton Bacelar 293

Subjetividade e Formas de Vida em FoucaultLara Pimentel Figueira Anastacio 327

v Normas para Publicacao 345

DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228228

Editorial

Apresentaccedilatildeo do Dossiecirc Espinosa

No fio do tempo e da histoacuteria

A violecircncia nas palavras Defamiacutelia portuguesa escolhido onome de Bento (ou Baruch) aonascer na comunidade judaicade Amsterdatilde ningueacutem imagina-ria que Espinosa ainda na tenrajuventude e neste mesmo lugardela seria excomungado sob amais violenta acusaccedilatildeo que in-verteria o sentido de seu nometransformando-o sob a pecha deldquoMalditordquo Proscrito uma vez elogo depois mais uma vez acu-sado de herege pela Santa Seacute Es-pinosa seraacute o primeiro filoacutesofode origem judaica a ser incluiacutedono Index Mais ainda ningueacutemimaginaria que um seacuteculo de-pois a palavra ldquoespinosistardquo seriausurpada de seu sobrenome paratornar-se sinocircnimo de grave acu-saccedilatildeo da qual muitos tiveram quese defender e que contudo natildeose encerrou no seacuteculo XVIII pelocontraacuterio persevera nas polecircmi-cas das tantas querelas dos espi-

nosimos dos seacuteculos seguintesContudo se no fio da histoacute-

ria a filosofia de Espinosa eacute cons-tantemente retomada no turbi-lhatildeo por vezes ensurdecedor demuacuteltiplas acusaccedilotildees daqueles to-mados pelo horror frente ao seusistema eacute preciso ressaltar to-davia que sua retomada nuncaeacute consensual e que simultane-amente apresentaram-se inten-sos elogios por dissonantes vo-zes em reinterpretaccedilotildees por ve-zes divergentes que procuraramdefendecirc-lo muitos dos quais neleidentificaram o seu proacuteprio pro-jeto filosoacutefico e por isso de seaproximaram ou inversamentepor nele encontrarem um cami-nho sem volta rumo a uma filoso-fia encerrada em si mesma delaafastaram-se vigorosamente paraevitar o perigo de serem engolidosem sua trama geomeacutetrica aquelaldquomaacutequina infernalrdquo de proeza de-monstrativa inescapaacutevel

7

EDITORIAL

Satildeo tatildeo conhecidas as ima-gens do espinosismo quantosatildeo diversas e contraditoacuterias1ldquoMonstruoso ateu de sistemardquoou ldquofiloacutesofo eacutebrio de Deusrdquoldquopanteiacutestardquo ou ldquoateiacutesta virtuosordquodefensor de um ldquofatalismoinexpugnaacutevelrdquo onde a liberdadenatildeo tem lugar ou o maior ldquofiloacutesofoda liberdaderdquo ldquocartesianordquo ldquoanti-cartesianordquo ldquoultra-cartesianordquofortaleza de um ldquoidealismoabsolutordquo em que o indiviacuteduonatildeo tem lugar ou responsaacutevelpela mais potente ldquorefundaccedilatildeo domaterialismordquo num realismo po-liacutetico radical cravado no fulcro damodernidade enfim a lista se-gue indefinidamente Malebran-che Leibniz More Jacobi KantHegel Schelling Nietzsche Berg-son Einstein Deleuze Negri Ma-chado de Assis Jorge Luis Bor-ges Clarice Lispector Nise da Sil-veira Nenhum de seus leitoresparece ter permanecido incoacutelumeapoacutes atravessar o seu sistema filo-soacutefico

Perante tantas e diversas lei-turas possiacuteveis pelo menos em

um aspecto seriacuteamos obrigados aconcordar para lembrar em outrocontexto as palavras de J Israelldquoningueacutem nem mais remotamentechegou a rivalizar a notoriedadede Espinosardquo2 E se com essa brevedescriccedilatildeo antevemos o eterno re-torno ao espinosismo com issotambeacutem concluiacutemos que mesmono seacuteculo XXI haacute ainda algo revo-lucionaacuterio a ser pesquisado nestafilosofia que teima em nos esca-par Tal fenocircmeno talvez ocorraporque especificamente seja estauma filosofia que levou a termoa difiacutecil tarefa de fundamentar-se exclusivamente no difiacutecil con-ceito do absolutamente infinito ouinfinito positivo como causa de si eda natureza inteira mantendo comisso em seu interior aquele mis-teacuterio ao qual se referia Merleau-Ponty

O seacuteculo XVII eacute o momentoprivilegiado em que o conhe-cimento da natureza e a meta-fiacutesica julgaram encontrar umfundamento comum Criou

1Sobre as diversas imagens do espinosismo recomendo o beliacutessimo capiacutetulo ldquoA construccedilatildeo do Espinosismordquo inA Nervura do Real Imanecircncia e liberdade vol 1 Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 pp 113-330

2Israel J Radical Enlightenment Philosophy Making of Modernity 1650-1750 Oxford University Press 2001

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uma ciecircncia da natureza e noentanto natildeo fez do objeto daciecircncia o cacircnone da ontolo-gia Admite que uma filoso-fia sombranceie a ciecircncia semser uma rival para ela ()Essa extraordinaacuteria harmoniaentre o exterior e o interior[da filosofia] soacute eacute possiacutevel pelamediaccedilatildeo de um infinito posi-tivo ou infinitamente infinito() Eacute nele que se comuni-cam ou se unem uma agrave outraa existecircncia efetiva das coisaspartes extra partes e a exten-satildeo pensada por noacutes que pelocontraacuterio eacute contiacutenua e infi-nita Se haacute no centro e comoque no nuacutecleo do Ser um in-finitamente infinito todo serparcial estaacute real ou iminente-mente contigo nele3

Eis porque Merleau-Ponty tomade empreacutestimo o ceacutelebre moteseiscentista ndash que visava explici-tar o desafio de compreender umuniverso aberto e infinito poacutes re-voluccedilatildeo galileana ndash deslocando-odo campo da Nova Ciecircncia para

aplica-lo agrave sua compreensatildeo dehistoacuteria da filosofia ldquoNatildeo haacute umafilosofia que contenha todas as fi-losofias a filosofia inteira estaacute emcertos momentos em cada umadelas Repetindo a famosa expres-satildeo seu centro estaacute em toda partee sua circunferecircncia em parte al-gumardquo4

Se concordarmos com Merleau-Ponty que o conceito fundadordo sistema de Espinosa eacute o ab-solutamente infinito a partir doqual emerge uma extraordinaacute-ria harmonia entre o ldquointeriorrdquoe o ldquoexteriorrdquo da filosofia tam-beacutem neste mesmo conceito pode-remos encontrar aquilo que numafilosofia escrita e datada no seacute-culo XVII ou seja escrita a par-tir da e contra as miseacuterias e vio-lecircncias de seu tempo pode atin-gir para utilizar uma expressatildeoespinosana ldquoum certo aspecto daeternidaderdquo no interior do qualfora de seu tempo ele dialoga tatildeointensamente com as filosofiasposteriores e natildeo somente issomas tambeacutem dialoga com aquiloque supostamente eacute exterior agrave fi-

3Merleau-Ponty M ldquoEm toda parte e em parte algumardquo in Signos Satildeo Paulo Martins Fontes 1991 p 1634Idem p 140

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EDITORIAL

losofia a saber as artes as ci-ecircncias as poliacuteticas enfim a his-toacuteria Mais ainda natildeo se res-tringindo ao campo acadecircmicoe transitando no campo da cul-tura e da literatura contra ou a fa-vor o ldquoespinosismordquo foi ganhandoterreno e certa popularidade quetanto o invade quanto o faz in-vadir a proacutepria vida Para lem-brar novamente as palavras deMerleau-Ponty

Assim os partidaacuterios de umafilosofia ldquopurardquo e os da ex-plicaccedilatildeo socioeconocircmica tro-cam de papel diante dos nos-sos olhos e natildeo devemos en-trar em seu perpeacutetuo debatenatildeo devemos tomar partidoentre uma falsa concepccedilatildeo deldquointeriorrdquo e ldquoexteriorrdquo A fi-losofia estaacute em toda partemesmo nos ldquofatosrdquo ndash e natildeopossui em parte alguma umcampo em que esteja preser-vada do contagio da vida5

2019 Brasiacutelia entrando na trama tecida pelo espinosismo

Dentre as diversas retomadasdo espinosismo um periacuteodo e lu-gar se destacam particularmenteem Paris e Vincennes nos anos 60do seacuteculo passado diversos estu-diosos voltam a estuda-lo muni-dos de novas ferramentas inter-pretativas como a anaacutelise estru-tural de sistemas filosoacuteficos golds-chmiditana a anaacutelise filosoacutefico-filoloacutegica e a anaacutelise filosoacutefico-histoacuterica A partir do trabalhodeste grupo o espinosismo ga-

nhou forccedila renovada e novas te-ses foram surgindo nas matildeos deM Gueacuteroult A Matheron P Ma-cherey G Deleuze L AlthusserEacute neste contexto que no calor de1968 parisiense uma jovem es-tudiosa brasileira que na eacutepocafazia seus estudos de doutoradona Franccedila com V Goldschmidt efrequentando Vincennes decidededicar-se tambeacutem agrave filosofia deEspinosa Marilena Chaui

Quase meio seacuteculo depois

5Idem p 141

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tornando-se reconhecidamenteuma das maiores estudiosas dofiloacutesofo holandecircs uma rede es-pinosana fortaleceu-se no Bra-sil sobretudo em grupos de SatildeoPaulo no Rio de Janeiro no Ce-araacute Tocantins Paranaacute com sin-gular importacircncia para o Grupode Estudos Espinosanos da USP(GEE-USP) ainda hoje sob a co-ordenaccedilatildeo de Marilena Esta redebrasileira fortemente articuladamuito colaborou para a constru-ccedilatildeo de um grupo ainda maiorcontribuindo para o desenvolvi-mento do espinosimo na AmeacutericaLatina e que no ano de 2018 co-memorou seus 15 anos de traba-lho contiacutenuo realizado em encon-tros anuais dos Coloacutequios Inter-nacionais de Espinosa na AmeacutericaLatina e que atualmente confi-gura o maior coloacutequio no mundodedicado ao filoacutesofo

Ora foi justamente neste anocomemorativo de 2018 que a Uni-versidade de Brasiacutelia conferiu agravefiloacutesofa Marilena Chaui o tiacutetulode doutora Honoris causa promo-vendo um coloacutequio em sua ho-menagem Devido agrave organiza-ccedilatildeo da vinda de Marilena agrave UnBe dos conferencistas que discuti-riam sua obra a UnB pode contar

naquele ano com a vinda de diver-sos estudiosos de Espinosa do Bra-sil e do exterior o que promoveuo coletivo esforccedilo por finalmentedar iniacutecio aos trabalhos do Grupode Estudos Espinosanos da UnBque integrando-se agrave rede brasi-leira celebrou a sua fundaccedilatildeo comrealizaccedilatildeo da I Jornada de Estu-dos Espinosanos na UnB Foi noclima celebrativo deste primeiroencontro intensa e afetivamentepotente que nasceu natildeo somenteo Grupo de Estudos Espinosanos daUnB (GEE-UnB) mas tambeacutem oprojeto para o Nuacutecleo de EstudosSeiscentistas do Cerrado O pre-sente ldquoDossiecirc Espinosardquo portantocontando a oportuna presenccedila einterlocuccedilatildeo com diversos especi-alistas do Brasil e do exterior con-gratula a criaccedilatildeo de duas institui-ccedilotildees que permitiratildeo participaccedilatildeode docentes e discentes pesquisa-dores da UnB e do Centro-oestepara continuar o trabalho de per-seguir atravessar reinterpretar erefletir a partir dessa filosofia tatildeouacutenica quanto histoacuterica e potente-mente revolucionaacuteria

Entre a Primeira Jornada Espi-nosana na UnB quando a maioriados textos que compotildeem este Dos-siecirc foi escrita e o presente ano de

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EDITORIAL

2019 muito se sucedeu na histoacute-ria poliacutetica brasileira um movi-mento histoacuterico ainda inconclusose pensarmos nos rumos do traba-lho universitaacuterio na fragilidadedo apoio ao desenvolvimento filo-soacutefico cultural e cientiacutefico Faz-senecessaacuterio portanto e novamenteperguntar-se sobre a filosofia apartir do seu interior levando-aao limite do entrecruzamento en-tre a ldquofilosofiardquo e seu ldquoexteriorrdquocomo diria Merleau-Ponty Narelaccedilatildeo da problemaacutetica conjun-tura que atualmente enfrentamoseacute preciso natildeo apenas voltar aosestudos filosoacuteficos mas tambeacutemvoltar a defender a sua importacircn-cia soacutecio-cultural pela relaccedilatildeo in-terna (partes intra partes) entre afilosofia e as ciecircncias entre a filo-sofia e as artes entre a filosofia eo mundo Mais uma vez precisa-mos retomar a defesa fundamen-tal da liberdade de pensamento eexpressatildeo ndash adaacutegio espinosano porexcelecircnciandash e talvez imbuiacutedos decerto espinosismo renovado en-contremos um caminho de umafilosofia contagiada pela vida

Ora o leitor encontraraacute no pre-sente Dossiecirc a proposta de re-flexatildeo destas mesmas relaccedilotildeesseja no interior dos artigos seja

no tema nele diretamente abor-dado seja na verve que o animae inspira Pensando nisso pro-pusemos um percurso temaacutetico-cronoloacutegico os temas tratam deentrecruzamentos notadamenteno diaacutelogo entre filosofia e ciecircn-cia (Cristiano Novaes de Rezende- UFG) metafiacutesica e histoacuteria (Vit-torio Morfino ndash Univ Milano-Bicocca) filosofia e as artes (Hen-rique Xavier - USP) ontologia eeacutetica (Rafael Teixeira - UFG) eacuteticae poliacutetica (Stefano Visentin ndash UnivDe Urbino e Daniel Santos Silva ndashUnespar) filosofia e ciecircncias poliacute-cias e sociais (Fernando Bonadia -UFRRJ) a cronologia segue prin-cipiando por artigos que tratamespecificamente do seacuteculo XVIIseguindo para a recepccedilatildeo do es-pinosimo nos seacuteculos posteriorespara finalmente propor o exerciacute-cio da reflexatildeo poliacutetica dos temposatuais numa perspectiva espino-sana

Que o leitor possa neles en-contrar na singularidade de cadaartigo o entrelaccedilamento das no-ccedilotildees comuns que os percorrepermitindo-se vivenciar e numpequeno passeio pela filosofia deEspinosa vislumbrar parte daimensa multiplicidade natildeo uniacute-

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voca muito menos uniacutessona depensamentos que ao olhar atentoperfazem um conjunto em mo-saico composto por distintas co-res formas texturas estilos e vo-zes numa articulaccedilatildeo interna so-mente possiacutevel porque todos com-partilham de um fundamento co-mum um conceito filosoacutefico uacutenicocapaz de produzir a partir de sium infinito de pensamentos dis-tintos e singulares mas interna-mente articulados num universode trabalhos intelectuais indivi-duais e coletivos tais como os queapresentamos neste Dossiecirc O con-ceito mesmo de substacircncia uacutenicaabsolutamente infinita ndash potecircn-cia infinita da natureza inteira daqual somos parte finita muacutelti-

pla e complexa entrelaccedilada en-tre outros tantos modos finitosndashportanto propotildee uma nova praacutexisfilosoacutefica que nascida no interiordesta filosofia nos conduz parafora dela e inversamente eacute estemesmo conceito que numa filo-sofia da imanecircncia natildeo permiteque o ldquoexteriorrdquo da filosofia lhepermaneccedila alheio e muito menosdeixe de contagiar tanto a filosofiacomo a proacutepria vida

Que este Dossiecirc seja tam-beacutem o convite permanentementeaberto para o leitor participar doGrupo Espinosano receacutem inaugu-rado na UnB e de tantos outrosencontros inspirados nessa filoso-fia

Ericka Marie Itokazu

Coordenadora do Grupo de Estudos Espinosanos da UnBMembro co-fundador do Nuacutecleo de Estudos Seiscentistas do Cerrado

(Organizadora do Dossiecirc)

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EDITORIAL

Aleacutem dos trabalhos que compotildeemo Dossiecirc o presente nuacutemero tam-beacutem conta com outras contribui-ccedilotildees recebidas em fluxo contiacutenuo

(1) Helio Lopes da Silva profes-sor da UFOP investiga as influecircn-cias legadas pela filosofia schel-linguiana no pensamento schope-nhaueriano Com isso procuramostrar que apesar do Schope-nhauer maduro ter rejeitado a fi-losofia de Schelling o jovem Scho-penhauer pode ter reformulado eincorporado algumas ideias desteuacuteltimo

(2) Em seu De Dicto and DeRe A Brandomian experimenton Kierkegaard Gabriel Ferreirada Silva professor do PPGFIL daUNISINOS expotildee o meacutetodo dereconstruccedilatildeo racional de RobertBrandom e em seguida o aplica aKierkegaard Esse exerciacutecio buscaexplicitar os compromissos on-toloacutegicos de Kierkegaard quantoexemplificar o valor dessa ferra-menta metodoloacutegica para a histoacute-ria da filosofia

(3) Mario Ariel Gonzaacutelez Portaprofessor titular da PUC-SP emseu artigo ldquoIntroduccioacuten Histoacutericaal Psychologismusstreitrdquo combate

a convicccedilatildeo de que a disputa emtorno do psicologismo foi uniacutevocateve seu epicentro nos ldquoProlegocirc-menosrdquo husserlianos e se concen-trou na loacutegica Em vez disso de-fende que essa disputa foi um pro-cesso com diferentes etapas ten-decircncias e nuacutecleos temaacuteticos

(4) A Antiguidade um ErroProfundo ndash Foucault a Filoso-fia e suas Atitudes artigo de JeanDyecircgo Gomes Soares doutor emfilosofia pela PUC-RJ e professordo Centro Universitaacuterio Unihori-zontes apresenta uma interpreta-ccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo foucaultianade que a Antiguidade teria sidoum erro profundo Para tantobusca explicitar o deslocamentoteoacuterico executado por Foucault naproblematizaccedilatildeo do sujeito

(5) Em seu ldquoSobre a centrali-dade e a estrutura do capiacutetuloldquoOs corpos doacuteceisrdquo do Vigiar e Pu-nirrdquo Kleverton Bacelar professorda UFBA propotildee uma hipoacutetese deleitura na qual o mencionado ca-piacutetulo cumpre uma funccedilatildeo centralno principal argumento foucaulti-ano da obra em questatildeo

(6) Por fim Lara Pimentel Fi-gueira Anastacio doutoranda em

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filosofia na USP defende que anoccedilatildeo foucaultiana de ldquosubjetivi-daderdquo tambeacutem deve ser entendidacomo uma criacutetica da razatildeo gover-namental Para tanto apoacutes ana-lisar a produccedilatildeo de subjetividadedos antigos argumenta que a no-ccedilatildeo de subjetividade m Foucaultestaacute necessariamente vinculada agravecriaccedilatildeo de um governo das proacute-

prias condutasGostariacuteamos de aproveitar o en-

sejo para agradecer a todos os au-tores por terem honrado a nossaRevista com as suas produccedilotildeesbem como aos membros do corpoeditorial avaliadores editores eleitores de provas pela funda-mental colaboraccedilatildeo na confecccedilatildeoda presente ediccedilatildeo

Os Editores

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225738

Notas sobre os Instrumentos Cientiacuteficos em Galileu[Notes on Scientific Instruments in Galileo]

Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Na primeira parte deste artigo procuramos caracterizaro conceito de instrumentalismo a partir dos problemas astronocircmi-cos poliacuteticos e teoloacutegicos que levaram agrave contraposiccedilatildeo desse pro-grama epistemoloacutegico mdash que limita a ciecircncia ao trabalho de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo mdash agrave concepccedilatildeo de ciecircncia que culminou na Revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVII Na segunda parte mostramos quehaacute certa concepccedilatildeo do conhecimento matemaacutetico que se alinha como instrumentalismo mas que tambeacutem haacute uma outra concepccedilatildeo sus-tentada por Galileu que considera a matemaacutetica como expressatildeo derelaccedilotildees estruturais constitutivas da proacutepria realidade fiacutesica Na ter-ceira parte defendemos que contra a ideia de instrumento contida noprograma instrumentalista Galileu entende seus instrumentos cien-tiacuteficos como teorias em estado concreto e operante Para demonstrarisso examinamos algumas posiccedilotildees de Galileu sobre o uso de algunsinstrumentos cientiacuteficos que ele proacuteprio confeccionou a saber o com-passo geomeacutetrico militar a balanccedila hidrostaacutetica e o telescoacutepioPalavras-chave realismo instrumentalismo ciecircncia teologia poliacute-tica

Abstract In the first part of this paper we try to characterize theconcept of instrumentalism analyzing the astronomical political andtheological problems that led to the contraposition of such episte-mological program mdash that reduces science to the work of savingappearances mdash to the conception of science that culminated withthe Scientific Revolution of the sixteenth and seventeenth centuriesIn the second part we show that there is a certain conception ofmathematical knowledge that aligns with instrumentalism but thatthere is also another conception supported by Galileo that considersmathematics as an expression of structural relations constitutive ofphysical reality itself In the third part we defend that against theidea of instrument contained in the instrumentalist program Galileounderstands his scientific instruments as theories in concrete andoperant state To demonstrate such interpretation we have examinedGalileorsquos positions on the use of some of the scientific instrumentshe has made namely the military-geometric compass the hydrostaticscale and the telescopeKeywords realism instrumentalism science theology politics

Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Doutor em filosofia pela USPE-mail cnrz1972gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0002-4935-629X

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

Para Marcelo Moschetti

1- Instrumentalismo Teologia epoliacutetica

O caso da condenaccedilatildeo de Ga-lileu Galilei pela inquisiccedilatildeo ro-mana articula de forma emblemaacute-tica um problema epistemoloacutegicoe um problema teoloacutegico-poliacuteticoUma defesa realista do coperni-canismo como a pretendida porGalileu no Diaacutelogo sobre os doisMaacuteximos Sistemas de Mundo Pto-lomaico e Copernicano de 1632exigia uma correlata interpretaccedilatildeonatildeo-realista mas sim metafoacutericadas passagens da Biacuteblia que pare-cem corroborar um sistema plane-taacuterio geocecircntrico e com uma Terraestacionaacuteria No entanto no con-texto da Contra Reforma onde omodo de interpretar as SagradasEscrituras dividia catoacutelicos e pro-testantes a admissatildeo de interpre-taccedilotildees do texto biacuteblico alternati-vas agraves autorizadas como seriamas interpretaccedilotildees metafoacutericas erauma questatildeo extremamente deli-cada Mormente se lembrarmosque de ambos os lados o poderpoliacutetico pretendia-se fundado naautoridade religiosa a qual porsua vez encontrava fundamentonas escrituras e em uacuteltima instacircn-cia na revelaccedilatildeo divina

Na ceacutelebre Carta a Foscarinide 1615 isto eacute antes da publica-

ccedilatildeo do Diaacutelogo e da consequentecondenaccedilatildeo de Galileu o Car-deal Belarmino mdash intelectual or-gacircnico da inquisiccedilatildeo romana mdashrecomendara aos adeptos do co-pernicanismo que por prudecircn-cia fizessem o contraacuterio deixas-sem a verdade ao encargo da au-toridade religiosa e reduzissem osistema copernicano natildeo propri-amente a uma metaacutefora mas sima um mero instrumento matemaacute-tico de reproduccedilatildeo e prediccedilatildeo dasposiccedilotildees observaacuteveis dos planetasBelarmino estaacute longe de ser umtolo Ele reconhece que o sistemacopernicano eacute superior em simpli-cidade e comodidade no niacutevel doscaacutelculos mas tambeacutem sabe que orealismo tem uma tarefa demons-trativa precisa primeiro mostrarque a teoria proposta eacute capaz dereproduzir os fenocircmenos passa-dos coincidir com os fenocircmenospresentes e predizer os fenocircme-nos futuros Para usar o jargatildeo daeacutepoca a tarefa liminar de uma te-oria eacute mostrar-se capaz de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo Mas isso emboraabsolutamente necessaacuterio para averdade natildeo eacute suficiente Leia-mos as palavras de Belarmino nasquais ele aceita inclusive que sejadada outra interpretaccedilatildeo das pas-sagens biacuteblicas relevantes desdeque uma verdadeira demonstraccedilatildeo

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

seja apresentada

Dizer que se salvam melhoras aparecircncias de acordocom a suposiccedilatildeo de a Terraser moacutevel e o Sol imoacute-vel do que supondo osexcecircntricos e os epicicloseacute falar muito bem mdash natildeohavendo nenhum perigonisso e por ser isso sufi-ciente para o matemaacuteticoMas afirmar que na rea-lidade o Sol eacute imoacutevel nocentro do universo eacutearriscar-se natildeo somentea irritar todos os filoacuteso-fos escolaacutesticos e teoacutelogosmas tambeacutem a ofender aSanta Feacute tornando fal-sas as Sagradas Escrituras[ ] Se existir uma verda-deira demonstraccedilatildeo de queo Sol estaacute parado no cen-tro do mundo de que aTerra estaacute no terceiro ceacuteue de que o Sol natildeo cir-cula em torno da Terramas a Terra em torno doSol afirmo que deveremoscomeccedilar a trabalhar commuita ponderaccedilatildeo paraexplicar as Passagens dasEscrituras aparentementecontraacuterias a essa opiniatildeoe que deveremos dizernatildeo termos entendido es-sas passagens em vez desustentar ser falso o que

foi demonstrado Con-tudo natildeo acreditarei queexista tal demonstraccedilatildeoantes que algueacutem a mos-tre a mim pois demons-trar que supondo o Sol imoacute-vel no centro e a Terra semovendo pelo ceacuteu podere-mos salvar as aparecircnciasnatildeo eacute o mesmo que demons-trar que assim eacute na verdadeAcredito que a primeirademonstraccedilatildeo possa serdada mas tenho as mai-ores duacutevidas em relaccedilatildeo agravesegunda e em caso de duacute-vida natildeo devemos aban-donar a interpretaccedilatildeo dasSagradas Escrituras dadapelos Padres da Igreja [ ](BELARMINO apud LO-PARIC 2008 p 240 itaacute-licos nossos)

Para explicitar plenamente porque salvar as aparecircncias natildeo eacute omesmo que demonstrar que as-sim eacute na verdade cabe remetera expressatildeo ao seu contexto deorigem Ela deriva da criacutetica deAristoacuteteles aos arroubos teoacutericosdo pitagorismo (Metafiacutesica A 5985b 23ss apud KIRK RAVEN ampSCHFIELD 1994 p 347) cu-jos partiacutecipes diante de discre-pacircncias entre a teoria (logos) eos dados observacionais (phaino-mena) conservavam a teoria e mu-davam os dados forjando obje-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

tos exigidos pela teoria mas ja-mais observados (ou ateacute mesmojamais observaacuteveis) Contra issoo sensato Aristoacuteteles propotildee emcaso de discrepacircncia entre a te-oria e os fenocircmenos ldquoconservaros fenocircmenosrdquo (sozein ta phaino-mena) isto eacute literalmente ldquosalvaras aparecircnciasrdquo num uso do verboldquosalvarrdquo que significa mais pro-priamente manter guardar con-servar Ora muitos astrocircno-mos gregos mdash de Eudoxo e Ca-lipo no seacuteculo IV aC a Ptolo-meu no seacuteculo II dC mdash leva-ram agraves uacuteltimas consequecircncias essepreceito aristoteacutelico Diante dealguns fenocircmenos astronocircmicostradicionalmente desafiadores talcomo o chamado movimento re-troacutegrado aparente dos planetas1esses astrocircnomos propuseram ar-tifiacutecios geomeacutetricos2 artifiacutecios queeles nunca pretenderam que des-crevessem a real estrutura do uni-verso mas que ainda assim erameficazes justamente em ldquosalvar asaparecircnciasrdquo Ou seja uma teoriaassumidamente falsa mdash no sen-tido de jamais haver pretendidoque esses ciacuterculos matemaacuteticos emque os planetas eram colocadosdurante o caacutelculo existissem na re-alidade mdash pode perfeitamente re-produzir os fenocircmenos passados

coincidir com os fenocircmenos pre-sentes e predizer os fenocircmenos fu-turos Logo fazecirc-lo natildeo eacute condi-ccedilatildeo suficiente para afirmar a ver-dade da teoria embora natildeo fazecirc-lo seja suficiente para afirmar suafalsidade

Eacute nesse mesmo espiacuterito que oluterano Andreas Osiander mdash quesupervisionara a publicaccedilatildeo do DeRevolutionibus Orbium Coelestiumde Copeacuternico em 1543 mdash tentarapossivelmente proteger o autoradicionando a esta obra um pre-faacutecio apoacutecrifo com um programainstrumentalista de matriz pro-testante que constituiacutera quaseum seacuteculo antes um precedenteateacute mais radical que o da inquisi-ccedilatildeo romana

Com efeito eacute proacuteprio do as-trocircnomo compor por meiode uma observaccedilatildeo diligentee habilidosa o registro dosmovimentos celestes E emseguida inventar e ima-ginar as causas dos mes-mos ou melhor jaacute quenatildeo se podem alcanccedilar demodo algum as verdadeirasquaisquer hipoacuteteses queuma vez supostas per-mitam que esses mesmos

1 O movimento retroacutegrado corresponde ao fato de que em dado momento de sua trajetoacuteria anual os planetasparecem lsquoandar para traacutesrsquo para depois retomarem o sentido original

2 Por exemplo o artifiacutecio do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando natildeo diretamente aoredor da Terra mas ao redor de um ponto que este sim orbitava ao redor da Terra

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

movimentos sejam corre-tamente calculados tantono passado como no fu-turo de acordo com os prin-ciacutepios da geometria Oraambas as tarefas foramexecutadas com excelecircn-cia pelo autor Com efeitonatildeo eacute necessaacuterio que essashipoacuteteses sejam verdadeirase nem mesmo verossiacutemeisbastando apenas que for-neccedilam caacutelculos que concor-dem com as observaccedilotildees ( )Pois eacute mais do que patenteque essa arte ignora sim-plesmente e por completoas causas dos movimen-tos aparentes irregularesE se inventa algumas naimaginaccedilatildeo como certa-mente inventa muitas de-las todavia natildeo o faz demodo algum para persu-adir quem quer que sejade que assim eacute mas tatildeosomente para estabelecercorretamente o caacutelculo Ecomo agraves vezes vaacuterias hipoacute-teses se oferecem para ummesmo movimento ( )o astrocircnomo de preferecircnciatomaraacute aquela cuja compre-ensatildeo seja a mais faacutecil Ofiloacutesofo talvez exigisse antesa verossimilhanccedila contudonenhum dos dois compre-enderaacute ou transmitiraacute nadade certo a natildeo ser que lhe

seja revelado por Deus Per-mitamos pois que juntocom as antigas em nadamais verossiacutemeis faccedilam-se conhecer tambeacutem es-sas novas hipoacuteteses tantomais por serem elas aomesmo tempo admiraacuteveise faacuteceis e por trazeremconsigo um enorme te-souro de doutiacutessimas ob-servaccedilotildees E que ningueacutemespere da astronomia algode certo no que concerne ahipoacuteteses pois nada dissoprocura ela nos oferecer(OSIANDER 1980 - itaacuteli-cos nossos)

Eacute com base nesse prefaacutecio queBelarmino comeccedila sua argumen-taccedilatildeo na Carta a Foscarini di-zendo que para este uacuteltimo assimcomo para Galileu seria prudentecontentar-se em falar ldquopor suposi-ccedilatildeo (ex hypothesi) e natildeo de modoabsoluto como eu sempre cri quetenha falado Copeacuternicordquo (em GA-LILEU 2009 p 131 - itaacutelicosnossos) Assim a manutenccedilatildeo dosistema astronocircmico heliocecircntricona condiccedilatildeo de uma hipoacutetese eficazgarante que o direito ao discursorobusto sobre como as coisas efe-tivamente satildeo permaneccedila mdash porimpossibilidade do contraacuterio (Osi-ander) ou por prudecircncia (Belar-mino) mdash sob a guarda da religiatildeodireito no qual em uacuteltima anaacute-

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lise funda-se o poder teoloacutegico-poliacutetico Ora como se vecirc um pro-grama que trata o trabalho cien-tiacutefico como a mera elaboraccedilatildeo deinstrumentos eficazes de reprodu-ccedilatildeo e prediccedilatildeo de fenocircmenos em-piacutericos presta-se portanto a ope-rar como correlato epistemoloacutegicodo fundamentalismo religioso noplano poliacutetico Amansado cogni-tivamente o copernicanismo po-deria ser empregado como sendoapenas uma nova tecnologia decaacutelculo mais leve e aacutegil do que amaquinaria geomeacutetrica de Ptolo-meu mas em nada ameaccediladora noacircmbito do discurso sobre como ascoisas realmente satildeo E mdash supos-tamente mdash nada haveria de vergo-nhoso nessa deflaccedilatildeo epistemoloacute-gica nessa reduccedilatildeo instrumentalvisto que tantos outros do mesmomodo se resignaram

Nesse sentido o realismo deGalileu defendido no Diaacutelogo so-bre os dois Maacuteximos Sistemas deMundo e responsaacutevel por sua der-radeira condenaccedilatildeo eacute a reivindi-caccedilatildeo do direito ao discurso sobrea realidade desde fora dos par-ticulares grupos agraciados pelarevelaccedilatildeo divina ou fundados naautoridade dos mesmos

2 - Instrumentalismo e Matemaacute-tica

Em seu artigo ldquoDescartes e Gali-leu copernicanismo e o funda-mento metafiacutesico da fiacutesicardquo MFriedman (2011) apresenta umenunciado especialmente claro dorealismo de Galileu Trata-se doseguinte trecho da Primeira Cartasobre as Manchas Solares de 1612

os astrocircnomos filosoacuteficos[satildeo aqueles] que indoaleacutem da exigecircncia de dealguma forma salvar asaparecircncias procuraraminvestigar a verdadeiraconstituiccedilatildeo do universomdash o problema mais im-portante e admiraacutevel queexiste Pois esta consti-tuiccedilatildeo existe ela eacute uacutenicaverdadeira real e natildeo po-deria ser de outra formaE a grandeza e a nobrezadeste problema lhe con-fere o direito de ser co-locado agrave frente de todasas questotildees suscetiacuteveis desoluccedilatildeo teoacuterica (FRIED-MAN 2011 p 82)

Como explica Friedman nestacarta Galileu distingue osldquoastrocircnomos filosoacuteficosrdquo daquelesque o proacuteprio Galileu chama deldquoastrocircnomos matemaacuteticosrdquo sendo

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

estes uacuteltimos os que usam quais-quer instrumentos que possam fa-cilitar seus caacutelculos De nossaparte gostariacuteamos de notar quea bem dizer desde os pitagoacuteri-cos o que estaacute em questatildeo eacute o es-tatuto da relaccedilatildeo entre matemaacute-tica e realidade fiacutesica A criacuteticade Aristoacuteteles aos pitagoacutericos jaacuteera precisamente uma recusa decerto realismo matemaacutetico ldquooschamados pitagoacutericos dedicaram-se agraves matemaacuteticas foram eles osprimeiros a fazer progredir estesestudos e tendo sido criados ne-les pensaram que seus princiacutepioseram princiacutepios das coisas (archastocircn ontocircn)rdquo (Metafiacutesica A 5 985b23ss apud KIRK RAVEN amp SCH-FIELD 1994 p 347) Osian-der por sua vez coloca ldquoos prin-ciacutepios da Geometriardquo sob regimede completa recusa natildeo soacute da ver-dade mas ateacute mesmo da verossi-milhanccedila bastando a uma teoriareduzida agrave condiccedilatildeo de mera hi-poacutetese fornecer caacutelculos que con-cordem com as observaccedilotildees JaacuteBelarmino recomenda muita pru-decircncia aos copernicanos mas issojustamente em razatildeo da profundadiferenccedila que haacute entre a demons-traccedilatildeo ldquosuficiente ao matemaacuteticordquoe a ldquodemonstraccedilatildeo verdadeirardquo E o proacuteprio Galileu como se viutambeacutem reconhece tal diferenccediladefendendo consequentementeao contraacuterio de Osiander uma as-tronomia filosoacutefica que sem dei-

xar de salvar as aparecircncias fossealeacutem disso

Mas entatildeo cabe perguntar seo realismo possui duas tarefasdas quais apenas a primeira eacute sal-var as aparecircncias qual seraacute a se-gunda Isto eacute nas palavras de Fri-edman ldquocomo pode um sistemaastronocircmico ir aleacutem de salvar asaparecircncias de modo a capturar oucorresponder agrave lsquoverdadeira cons-tituiccedilatildeo do Universorsquordquo (FRIED-MAN 2011 p 83) Ora o modocomo o comentador reconstroacutei aresposta galileana eacute bastante elu-cidativo pois mostra que a con-cepccedilatildeo de conhecimento matemaacute-tico sustentada pela tradiccedilatildeo cien-tiacutefica em que se alinham GalileuDescartes e Newton eacute considera-velmente mais forte tanto frenteao instrumentalismo antigo e mo-derno quanto frente ao contem-poracircneo meacutetodo hipoteacutetico dedu-tivo limitado a cotejar os dadosobservacionais com as hipoacutetesesteoacutericas e suas consequecircncias

Segundo [a concepccedilatildeo ga-lileana] a matemaacutetica natildeoapenas poderia ser usadapara modelar os fenocirc-menos como haacute muitojaacute vinha sendo feito naastronomia tradicionalcomo poderia tambeacutem serempregada progressiva-mente para analisar asaccedilotildees das causas dos fenocirc-

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menos Quanto a isso aceacutelebre anaacutelise feita porGalileu da queda dos cor-pos e do movimento dosprojeacuteteis foi paradigmaacute-tica [ ] [No caso dos pro-jeacuteteis] a trajetoacuteria paraboacute-lica resultante natildeo eacute ob-tida somente pela adap-taccedilatildeo da curva aos dadosobservados ela eacute matema-ticamente derivada de umaanaacutelise das accedilotildees causais re-levantes [ ] Visto quenossa descriccedilatildeo proposita-damente abstrai de todasas outras accedilotildees (atrito re-sistecircncia do ar etc) este eacuteapenas um primeiro passoda anaacutelise Uma teoriamatemaacutetica completa iraacuteportanto proceder pro-gressivamente agrave medidaque formos capazes de in-corporar essas accedilotildees cau-sais adicionais [ ] Emconsequecircncia o resultadoseraacute muito mais que ummodelo entre outros parasalvar as aparecircncias [ ]Em vez disso a interaccedilatildeocontiacutenua e progressiva en-tre anaacutelises causais mate-maacuteticas e evidecircncias empiacuteri-cas resultaria esperava-seao final em um modelouacutenico - que entatildeo teria oestatuto de uma conclusatildeomatematicamente demons-

trada a partir dos fenocircme-nos (FRIEDMAN 2011 p83 - itaacutelicos nossos)

Haacute portanto um uso da mate-maacutetica que eacute puramente instru-mental e que como tal compotildee-se tranquilamente com o funda-mentalismo religioso tanto da Re-forma quanto da Contra Reformamas haacute tambeacutem uma outra atitudematemaacutetica de ascendecircncia pita-goacuterica que encontra-se ao contraacute-rio afinada com os anseios filosoacute-ficos que impulsionaram a Revo-luccedilatildeo Cientiacutefica dos seacuteculos XVI eXVII Ambos os usos da matemaacute-tica consistem na produccedilatildeo de ins-trumentos de caacutelculo Mas a proacute-pria concepccedilatildeo de instrumento aiacutepresente varia assim como varia oestatuto epistemoloacutegico da mate-maacutetica

3 - Os Instrumentos cientiacuteficosconstruiacutedos por Galileu

O que haacute de ser um instrumentocientiacutefico para Galileu Certa-mente natildeo parece equivaler agravemesma concepccedilatildeo de instrumentoque preside a proacutepria elaboraccedilatildeodo conceito de instrumentalismoEsse termo foi empregado porKarl Popper para designar um dostrecircs pontos de vista sobre o conhe-cimento humano apresentados emConjecturas e Refutaccedilotildees (POPPER

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

1982 p 125-246) a propoacutesito dasdiferentes apreciaccedilotildees que podemser feitas sobre a ciecircncia de Gali-leu embora digam respeito agrave ci-ecircncia em geral A concepccedilatildeo deinstrumento que parece ter levadoPopper a usar precisamente essenome para designar uma tal ma-neira de compreender a ciecircncia eacutea de um meio de caacutelculo que en-quanto hipoteacutetico eacute literalmentesub-posto posto embaixo e depoismdash isto eacute como um sustentaacutecuload hoc mdash dos fenocircmenos observa-dos Um instrumento na acep-ccedilatildeo instrumentalista eacute algo pro-duzido lsquosob encomendarsquo para fun-cionar para salvar os phainomenacuste isso o que custar ao logosAssim como um homem venal esem princiacutepios tal instrumentonatildeo tem por assim dizer escruacute-pulos proacuteprios faz qualquer ne-goacutecio teoacuterico para sustentar os da-dos observacionais numa perfeitainversatildeo dos excessos dos pitagoacute-ricos que faziam qualquer negoacute-cio para salvar sua teoria (comoforjar sob encomenda da teoriarealidades inobservaacuteveis) Os uacuteni-cos princiacutepios a que o instrumen-talista obedece satildeo justamente osprinciacutepios da matemaacutetica (comodizia Osiander) Mas tais prin-ciacutepios natildeo passam disso mesmoou seja de princiacutepios da matemaacute-tica sem nenhuma conexatildeo comos princiacutepios que presidem a proacute-pria natureza Portanto o que ca-

racteriza o instrumento evocadopelo instrumentalismo eacute sua ex-terioridade independecircncia e se-cundariedade frente ao objeto aque ele portanto simplesmentese sub-mete Para o instrumenta-lismo o logos deveacutem assim umservo invertebrado das evidecircnciasempiacutericas pode ser usado e abu-sado vergado do jeito que fordesde que produza caacutelculos queconcordem com as observaccedilotildees

Uma criacutetica desse desrespeitopara com o logos pode ser lidanuma importante passagem daCarta-Prefaacutecio do proacuteprio Copeacuter-nico ao Papa Paulo III para a edi-ccedilatildeo do De Revolutionibus e quefora substituiacuteda agrave revelia de Co-peacuternico pelo prefaacutecio apoacutecrifo deOsiander

Assim natildeo quero escon-der de vossa Santidadeque nada mais me mo-veu a pensar a respeitode uma outra maneira decalcular (alia ratione sub-ducendorum) os movimen-tos das esferas do mundosenatildeo que entendi (intel-lexi) que os proacuteprios Ma-temaacuteticos natildeo satildeo consis-tentes consigo proacuteprios(sibi ipsis non constare) aoinvestigaacute-los [sc tais mo-vimentos] ( ) Tambeacutem aforma do mundo (mundiformam) e a exata sime-

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tria de suas partes (par-tium eius certam symme-triam) eacute a coisa principal(rem praeligcipuam) que elesnatildeo conseguiram encon-trar nem inferir (invenirevel colligere) ( ) Aocontraacuterio aconteceu-lhescomo se algueacutem tomasse(sumeret) de diversos lu-gares (agrave diversis locis) peacutescabeccedila e outros mem-bros pintados (depicta)ateacute mesmo de maneiraperfeita (optime quidem)mas sem comparaccedilatildeo comum corpo uacutenico (sed nonunius corporis comparati-one) de modo algum corres-pondendo reciprocamenteentre si (nullatenus invi-cem sibi respondentibus)de sorte a compor comeles (ex illis componeretur)mais um monstro do queum homem (monstrum po-tius quagravem homo) (COPEacuteR-NICO 2008 pp 262-263)

Mas aleacutem desse ldquoservil instrumen-tordquo meramente acoplado agrave Na-tureza mesmo que ao preccedilo doesquartejamento da organicidadedo logos parece-nos haver em Ga-lileu um pensamento do instru-mento ativo no qual se constatauma verdadeira unidade entre ologos e as operaccedilotildees teacutecnicas decaacutelculo sem que estas uacuteltimas cor-

rompam a dignidade daquele pri-meiro Enquanto por exemploo instrumentalismo reduz as te-orias a meros instrumentos natildeoestaria Galileu pensando seus ins-trumentos como teorias em estadoconcreto e operante Procurare-mos a seguir responder afirmati-vamente a essa questatildeo buscandojustificar tal resposta atraveacutes depassagens textuais de Galileu so-bre o uso de alguns instrumentoscientiacuteficos que ele proacuteprio confec-cionou a saber o compasso geomeacute-trico militar a balanccedila hidrostaacuteticae o telescoacutepio

31 - O Compasso Geomeacutetrico-Militar

Comecemos pelo Compasso geomeacute-trico e militar Tratava-se de algoque ldquono seu tempo correspondiamais ou menos agrave reacutegua de caacutelculoou agrave minicalculadorardquo (THUIL-LER 1986 p 139) ou nas pa-lavras do proacuteprio Galileu um ins-trumento que ldquoem pouquiacutessimosdias ensina tudo aquilo que da ge-ometria e da aritmeacutetica para usocivil e militar natildeo sem longuiacutes-simos estudos pelas vias ordinaacute-rias se receberdquo (GALILEU 1649p 369) Pode-se com ele porexemplo aplicar de diversas ma-neiras as regras de trecircs transporem proporccedilatildeo figuras semelhan-tes realizar divisotildees iguais e de-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

siguais no ciacuterculo extrair as raiacute-zes quadrada e cuacutebica estabelecerproporccedilotildees entre pesos de diver-sos materiais fazer medidas trigo-nomeacutetricas com a vista e inuacuteme-ras outras operazioni que satildeo ex-plicadas no manual de instruccedilotildeesque ensina o uso do instrumentoE de fato o que eacute mais relevantepara o nosso tema eacute justamente aexistecircncia desse manual mdash talvezum dos primeiros no gecircnero mdash eas consideraccedilotildees que nele Gali-leu faz a seu respeito e a respeitodo instrumento

Natildeo eacute pois de pouca relevacircnciaque neste manual de instruccedilotildeesGalileu se refira ao proacuteprio ma-nual e ao sentido de fazecirc-lo acom-panhar o instrumento soacute com issoGalileu jaacute nos daacute indiacutecios de queem tal instrumento encarna-se umcerto saber mdash o qual natildeo se li-mita ao mero manuseio da peccedilaparticular mas como dito acimaldquoinsegna tutto quello che dalla geo-metria e dallrsquoaritmetica [ ] si ri-ceverdquo Eis o que promete no pre-faacutecio do manual a i discreti let-tori ldquopoder seja qual for a pes-soa resolver em instantes as maisdifiacuteceis operaccedilotildees de aritmeacuteticadas frequentemente acontecemrdquo(idem ibidem)

Se por um lado o compassoeacute um instrumento de caacutelculo anecessidade da presenccedila de seumanual por outro diz respeito agraveproacutepria aquisiccedilatildeo da geometria

pensada de modo que pudesseser aprendida por aqueles quecomo os militares no campo debatalha ldquoestando em tantos ou-tros misteres ocupados e distraiacute-dos natildeo podem exercitar nestesaquela assiacutedua paciecircncia que aiacuteseria necessaacuteriardquo (idem ibidem)Mas leiamos tambeacutem por outrolado as seguintes palavras de Ga-lileu

Lamento somente be-nigno leitor que por maisque eu tenha engenhadoem explicar as seguintescoisas com toda a clarezae facilidade possiacutevel to-davia a quem as teraacute deextrair dos escritos perma-neceratildeo envoltas em al-guma obscuridade per-dendo por isso muito da-quela graccedila que ao vecirc-las operar atualmente e aoaprendecirc-las de viva voz astorna maravilhosas estaeacute poreacutem uma daquelasmateacuterias que natildeo supor-tam ser descritas com cla-reza e facilidade e enten-didas se antes de viva voznatildeo se as auscultam e no atomesmo natildeo se veem exerci-tar E esta teria sido po-derosa causa que me te-ria feito abster-me de im-primir esta obrardquo (GA-LILEU 1649 p 370 mdash

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itaacutelicos nossos)

Devemos portanto com tais pala-vras reforccedilar a ideia de que a com-preensatildeo que Galileu tem de seuCompasso Geomeacutetrico e Militar eacutetal que nem o instrumento podeser usado e atingir seus propoacutesi-tos sem o manual e toda a geome-tria mdash a ser ensinada mdash que eleconteacutem nem o manual seraacute sufici-ente a quem natildeo dispuser do ins-trumento para vecirc-lo ldquooperar atual-menterdquo A matemaacutetica aqui natildeovecircm de fora Muito pelo contraacuterioexiste de modo concreto como quenas inscriccedilotildees das linhas feitas nometal desse compasso a geome-tria aiacute presente natildeo eacute a dos astrocirc-nomos gregos instrumentalistasmas sim a de uma tradiccedilatildeo queassim como se passa nos pitagoacuteri-cos considera que os princiacutepiosda matemaacutetica eram princiacutepiosverdadeiros do comportamentodas coisas Nessa tradiccedilatildeo insere-se tambeacutem Arquimedes nominal-mente citado por Galileu no ma-nual do compasso como seu inspi-rador E com tal referecircncia a Ar-quimedes passamos diretamenteao contexto da tradiccedilatildeo em que seinscreve aquele outro instrumentode Galileu a balanccedila hidrostaacutetica

32 - A Balanccedila Hidrostaacutetica

Em La Bilancetta Galileu (1986pp 105-107) pretende resolvercom exatidatildeo o famoso problemada coroa de Hieron que aqui des-crevemos atraveacutes das palavras dePierre Lucie

Cerca de 250 ac Hie-ron rei de Siracusa en-comendou uma coroa deouro a seu ourives En-tregue a coroa Hierondesconfiou que o ouriveso tinha roubado mistu-rando prata ao ouro Cha-mou entatildeo Arquimedese o encarregou de apu-rar a possiacutevel fraude Ar-quimedes de fato confir-mou o roubo mas o len-daacuterio ldquoHeurekardquo eacute pra-ticamente tudo o que co-nhecemos do processo uti-lizado pelo ceacutelebre ma-temaacutetico para resolver oproblema (LUCIE 1986p 96)

Nesse pequenino texto sobre aconstruccedilatildeo da balanccedila hidrostaacute-tica Galileu afirma que ateacute seusdias natildeo se sabia exatamentecomo teria procedido Arquime-des para descobrir o furto do ou-rives e a quantidade exata de ourosubtraiacuteda e substituiacuteda por prata

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

Galileu frisa que mdash a despeitoda informaccedilatildeo histoacuterica muito di-fundida de que Arquimedes te-ria posto a coroa na aacutegua depoisde haver mergulhado separada-mente ouro puro e prata puradeduzindo atraveacutes das propor-ccedilotildees de aacutegua deslocada em cadacaso a composiccedilatildeo da liga de quea coroa se compunha mdash isto se-ria no entanto ldquocoisa muito gros-seira e longe da perfeiccedilatildeordquo se tiver-mos em conta ldquoas mui engenhosasinvenccedilotildeesrdquo de Arquimedes (GA-LILEU 1986 p 105) Pierre Lu-cie mostra em seu artigo sobre LaBilancetta (LUCIE 1986 p 95)que o paradigma arquimedianopermanece em Galileu como basepara a geometrizaccedilatildeo de proble-mas fiacutesicos de maneira que a refe-recircncia agraves ldquoinvenccedilotildees engenhosasrdquode Arquimedes feita pelo proacuteprioGalileu poderia ser um exem-plo relevante da maneira especiacute-fica pela qual este paradigma ope-rava em seu pensamento paraconseguir ldquoa precisatildeo requeridanas coisas matemaacuteticasrdquo (GALI-LEU 1986 p 105) natildeo bastariano caso simplesmente ldquoutilizara aacuteguardquo mdash que era ldquoo pouco que[os contemporacircneos de Arquime-

des] haviam entendido de sua so-luccedilatildeo do problemardquo Era pre-ciso antes elaborar um instru-mento3 Contando com um ins-trumento Galileu pocircde acrescen-tar em seu texto agrave expressatildeo ldquopormeio da aacuteguardquo a expressatildeo ldquodemodo rigorosordquo

Eacute conhecido de toda a tradiccedilatildeointerpretativa focada na revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVIIo texto de Aristoacuteteles na Eacutetica aNicocircmaco em que ele diz que ldquoaprecisatildeo natildeo deve ser procuradaigualmente em todas as discus-sotildees como natildeo deve ser procu-rada por exemplo na demiurgiardquo(ARISTOacuteTELES 1948 1094b ess) Ora tomando a falta de ri-gor e precisatildeo do procedimentovulgarmente considerado o de Ar-quimedes no caso da coroa de Hi-eron como sendo a principal mo-tivaccedilatildeo para a construccedilatildeo de suabalanccedila hidrostaacutetica Galileu estaacuterompendo com essa tradiccedilatildeo aris-toteacutelica que separa poieacutesis (produ-ccedilatildeo saber fazer com que algo ve-nha a ser) e episteacuteme (ciecircncia co-nhecimento do necessaacuterio) Des-tarte Galileu mdash como no caso docompasso geomeacutetrico e militar mdashsugerindo novamente que a exati-

3Cf Clavelin (1986 p 39) onde se demonstra que se eacute verdade que Galileu natildeo dispunha de todos os conceitose pressupostos dos quais depende o meacutetodo experimental moderno natildeo eacute menos verdade poreacutem que nele haacute ldquoummeacutetodo determinado mdash ou se preferirmos uma visatildeo coerente e estaacutevel das condiccedilotildees que uma teoria ou modeloexplicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros intrinsecamente conformes agrave realidaderdquo Denossa parte pretendemos apenas propor que a construccedilatildeo do instrumento parece ser um dos pontos centrais dessemeacutetodo

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datildeo do procedimento depende deum uso apropriado dos elementosmateriais e de uma consequenteproduccedilatildeo de instrumentos mastambeacutem em contrapartida de umconhecimento teoacuterico nos contaque reviu ldquocuidadosamente os tra-tados de Arquimedesrdquo (GALILEU1986 p 105) e assim adverteque ldquoo meacutetodo [para resolver oproblema] procede por meio deuma balanccedila cuja construccedilatildeo e usoseratildeo expostos depois que se te-nha explicado o que eacute necessaacuteriopara entender o assuntordquo (idem su-pra itaacutelicos nossos) E o que eacute ne-cessaacuterio saber eacute primeiramente oPrinciacutepio de Arquimedes ou lei doempuxo

um soacutelido mais pesadoque um fluido quandoposto nele desce para ofundo do fluido e o soacute-lido pesado no fluido seraacutemais leve que seu ver-dadeiro peso [no ar] [deuma quantidade igual ao]peso do fluido deslocado(ARQUIMEDES Sobre oscorpos flutuantes Livro Iproposiccedilatildeo 7 apud LU-CIE 1986 p 98 - itaacuteliconosso)

Numa linguagem atual todocorpo mergulhado em um fluidosofre a accedilatildeo de um empuxo ver-

tical para cima igual ao peso doliacutequido deslocado de modo que opeso do corpo imerso eacute igual aoseu peso no ar menos o peso noar do volume de fluido que essecorpo deslocou Galileu assimnos propotildee

suspendamos entatildeo ummetal em uma excelentebalanccedila e no outro braccediloum contrapeso de mesmopeso no ar que o metalSe agora mergulharmos ometal na aacutegua deixando ocontrapeso no ar teremosde aproximar este uacuteltimodo fulcro [o ponto fixo en-tre os braccedilos da balanccedila]a fim de continuar equi-librando o metal (GALI-LEU 1986 p 106)

Explica-se tambeacutem que o pesoespeciacutefico do metal seraacute tantas ve-zes maior que o da aacutegua deslocadaquantas vezes a distacircncia inicialentre o contrapeso e o fulcro formaior que essa distacircncia no equi-liacutebrio hidrostaacutetico (que eacute quandoaproximamos o contrapeso do ful-cro a fim de manter os braccedilos dabalanccedila na horizontal) Trata-seagora do chamado princiacutepio da ala-vanca ou seja nas palavras doproacuteprio Galileu em Le mechaniche

pesos desiguais suspen-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

sos em distacircncias desi-guais pesaratildeo igualmentequando essas distacircnciasestiverem [em relaccedilatildeo aofulcro] em proporccedilatildeo in-versa agrave de seus pesos(GALILEU Le mechanicheOpere v 2 161 apud Lu-cie 1986 p 99)

Desse modo combinando a lei doempuxo e o princiacutepio da alavancaeacute possiacutevel pois calcular a partirdas diversas posiccedilotildees do contra-peso nos diversos equiliacutebrios hi-drostaacuteticos os pesos especiacuteficosem relaccedilatildeo agrave aacutegua do ouro daprata e da liga composta dos doisna coroa bem como a exata pro-porccedilatildeo desses primeiros nesta uacutel-tima

Algumas implicaccedilotildees dessesdois princiacutepios nos satildeo particu-larmente sugestivas A lei do em-puxo como nota Lucie ldquoconvenceGalileu de que natildeo haacute corpos pe-sados em si ou corpos leves emsirdquo (LUCIE 1986 p 98) massim dizendo em termos contem-poracircneos corpos que dispondo-se como corpos imersos ou comomeios de imersatildeo encontram-seem diferentes relaccedilotildees de densi-dade relaccedilotildees estas que variamconforme o caso de modo quemudada a relaccedilatildeo com o meio re-ferencial um mesmo corpo podeldquoflutuarrdquo ou ldquoafundarrdquo Con-sequentemente ldquoser pesadordquo ou

ldquoser leverdquo natildeo eacute uma qualidade docorpo tomado em si mesmo Natildeohaacute pois aquilo que Arquimedeschamava de ldquoo verdadeiro pesordquode um corpo Ora isso eacute o contraacute-rio do que supunha a fiacutesica aris-toteacutelica para a qual materiais in-trinsecamente pesados como se-ria a terra possuem seu lugar na-tural embaixo e por isso tendema descer enquanto materiais in-trinsecamente leves como seria ofogo possuem seu lugar naturalem cima e por isso tendem semprea subir O sistema aristoteacutelico aosupor corpos naturalmente levesou pesados pressupunha uma or-dem coacutesmica com seus lugares fi-xados ldquoem cimardquo e ldquoembaixordquo se-parando regiotildees qualitativamentedistintas no espaccedilo Assim aleacutemda jaacute comentada recusa galileanada epistemologia aristoteacutelica queseparava ciecircncia e demiurgia epis-teacuteme e poieacutesis essa pequena ba-lanccedila hidrostaacutetica atraveacutes de umproblema que parecia ser mera-mente teacutecnico (a coroa de Hieron)permite que Galileu a partir dosentido especulativo que ele ex-traiu do princiacutepio de Arquimedesrecuse juntamente com a episte-mologia de Aristoacuteteles tambeacutemsua cosmologia composta de dife-rentes lugares naturais para obje-tos feitos de diferentes materiais

Mas esse sentido especula-tivo do princiacutepio de Arquimedesajuda aleacutem disso a compreender

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melhor a proacutepria epistemologiagalileana Com efeito natildeo se tratade dizer que o ldquoser pesadordquo e oldquoser leverdquo sejam considerados porGalileu como qualidades secundaacute-rias que satildeo aspectos que parecempertencer aos objetos mas satildeo narealidade os efeitos que o objetoproduz em um sujeito percipientecomo as cores os odores os sabo-res etc que natildeo estatildeo nas proacute-prias coisas mais do que a dor oua coacutecega estatildeo na agulha que nosfere ou na pluma que nos toca (CfGALILEU 2013) Entre as quali-dades primaacuterias de um corpo istoeacute entre as coisas que satildeo necessa-riamente pensadas ao ser conce-bida uma substacircncia corpoacuterea emgeral encontra-se por exemploo ldquomover-serdquo e o ldquoestar paradordquo(idem ibidem) os quais sabemospor outro lado que para Gali-leu tambeacutem natildeo eram proprie-dades absolutas mas estados quese determinam num sistema de re-laccedilotildees4 Tambeacutem nos parece sereste o estatuto do pesado e do leveNo caso da gravidade dos corposassim como no estatuto do movi-mento temos algo que nem estaacuteobjetivamente na coisa tomada emsi mesma e isoladamente como

alguma sua qualidade intriacutensecanem estaacute em noacutes como se fossemera aparecircncia subjetiva o mo-vimento e a gravidade satildeo reaise natildeo fenomecircnicos mas natildeo satildeorealidades absolutas Isso mostracom efeito que a separaccedilatildeo entrequalidades primaacuterias matemati-camente apreensiacuteveis e qualida-des secundaacuterias sensiacuteveis natildeo eacutesuficiente para atribuir a Galileuuma ontologia de caraacuteter platocirc-nico que afirmaria o real comoessecircncias absolutas ocultas portraacutes das aparecircncias As qualida-des primaacuterias nos parecem an-tes algo que seria imanente aomundo justamente na medida emque existem no interior de um sis-tema de relaccedilotildees Em linguagemanacrocircnica diriacuteamos talvez quesegundo as articulaccedilotildees entre aepistemologia e a ontologia de Ga-lileu natildeo conhecemos tais essecircn-cias mas sim estruturas

[Galileu] manteacutem-se den-tro da perspectiva rea-lista pois a estrutura douniverso eacute dada objetiva-mente e cabe ao homemapenas desvendar partedessa estrutura Esse des-

4Abstemo-nos de explicar a superaccedilatildeo galileana da oposiccedilatildeo ontoloacutegica afirmada por Aristoacuteteles entre movi-mento e repouso bem como toda a concepccedilatildeo de Galileu sobre as condiccedilotildees de operatividade (mecacircnica eouoacutetica) do movimento pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema Limitamo-nos a sugerir quea retirada do movimento e da gravidade da condiccedilatildeo de realidades isoladas mas por outro lado sua qualificaccedilatildeocomo qualidades primaacuterias isto eacute como propriedades reais tende a indicar que a proacutepria natureza para Galileueacute precisamente um sistema de relaccedilotildees seu relativismo natildeo eacute uma negaccedilatildeo da realidade dos eventos naturais porele visados

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

vendamento se faz atraveacutesde demonstraccedilotildees neces-saacuterias cujo o protoacutetipo eacuteprecisamente a Geometria(NASCIMENTO 1986 p58 itaacutelicos nossos)

Ao mostrar que ldquoser pesadordquo eldquoser leverdquo eacute algo derivado de umsistema de relaccedilotildees e mais aindaao mostraacute-lo justamente produ-zindo esse sistema sob a forma deum instrumento material real eindicando a possibilidade de comele calcular tais relaccedilotildees Galileunos permite pensar os instrumen-tos natildeo como algo que o homemusa como um reles meio de repre-sentar a natureza distante Em vezde um sustentaacuteculo matemaacuteticoextriacutenseco acoplado desde fora agravenatureza os instrumentos cientiacutefi-cos galileanos parecem ser antespartes da natureza

Assim aproveitando uma se-gunda consideraccedilatildeo especulativados princiacutepios empregados na bi-lancetta poderiacuteamos fazer um usoalegoacuterico do princiacutepio da alavancapara responder por exemplo aDescartes que o ponto fixo arqui-mediano procurado nas Medita-ccedilotildees o fundamento para a ciecircn-cia e que ele julgava encontrarapenas no cogito Galileu o en-contra na possibilidade de fixarsob a forma de um instrumentoas relaccedilotildees matemaacuteticas operan-tes no seio da natureza Diriacutea-

mos tambeacutem ainda nesse regis-tro alegoacuterico que a proacutepria con-figuraccedilatildeo de uma balanccedila sugerede modo privilegiado a noccedilatildeo deestrutura que empregamos acimapara indicar a concepccedilatildeo de co-nhecimento envolvida nos instru-mentos galileanos eacute apenas na re-laccedilatildeo entre dois objetos colocadosnos pratos da balanccedila que tais ob-jetos se definem reciprocamentequanto agravequilo que se procura me-dir isto eacute no caso os pesos Osobjetos natildeo podem pois ser to-mados separadamente ou fora doinstrumento capaz de coordenaacute-los o instrumento como esta-mos tentando sugerir deve serpois a proacutepria existecircncia mate-rial de uma lei ou princiacutepio peloqual a natureza age Acrescen-tamos ademais que etimologi-camente tanto a palavra instru-mento quanto a palavra estruturaderivam do mesmo verbo struocujo sentido natildeo eacute outro senatildeoo de arranjar dispor ordenada-mente (eg as tropas militaresou as palavras numa frase) mastambeacutem construir produzir ouainda arquitetar maquinar pla-nejar Ora neste uacutenico verbo jaacutese conjugam a mutabilidade dasaccedilotildees e geraccedilotildees e a estabilidadeda consistecircncia interna o aspectopoieacutetico da construccedilatildeo e o epistecirc-mico da ordem e da inteligibili-dade

Vale lembrarmos tambeacutem a tiacute-

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tulo de breve exemplo algumaspassagens dos Discorsi circunja-centes agrave demonstraccedilatildeo do prin-ciacutepio do movimento uniforme-mente acelerado depois que Sim-pliacutecio o aristoteacutelico diz que ldquoteriasido oportuno apresentar neste lu-gar alguma experiecircnciardquo Salvi-ati o galileano responde

Voacutes como verdadeirocientista fazeis pedidomuito razoaacutevel [ ] e as-sim conveacutem nas ciecircnciasque aplicam agraves conclusotildeesnaturais as demonstraccedilotildeesmatemaacuteticas [ e] confir-mam com experiecircncias sen-siacuteveis os seus princiacutepios quesatildeo o fundamento de todaa estrutura subsequente(GALILEU 1988 p 174e ss - itaacutelicos nossos)

E a proacutepria teoria galileana mdash ex-posta previamente sob a formade definiccedilotildees axiomas teoremasproposiccedilotildees etc mdash eacute entatildeo des-crita como uma ldquo imensa maacute-quina de infinitas conclusotildeesrdquo(idem ibidem) Ora das citaccedilotildeessupra decorre que os princiacutepiosque por um lado jaacute haviam sidoformulados de acordo com todaa parte teoacuterica precedente da ter-ceira jornada dos Discorsi seriampor outro lado inconfirmaacuteveis evirtualmente externos agrave natureza

das coisas se natildeo fosse feita essaaplicaccedilatildeo mdash a qual haacute de ser por-tanto coisa muito diferente daaplicaccedilatildeo instrumentalista que natildeose comprometia com o valor deverdade das teorias (Cf NASCI-MENTO 1996) E se nos dois ca-sos mdash por exemplo em Osiandere em Galileu mdash as teorias mesmaspodem ser de algum modo chama-das de instrumentos a profundadiferenccedila entre suas concepccedilotildeesde conhecimento deve residir pre-cisamente no que se pode conside-rar como instrumento nos dois ca-sos em Osiander trata-se de merosinstrumentos de caacutelculo em Gali-leu trata-se de uma maacutequina teoacute-rica de conclusotildees verdadeiras quese prolonga em maacutequinas men-tais tais como no caso dos Dis-corsi o dispositivo do plano incli-nado mas tambeacutem como preten-demos haver mostrado aqui emmaacutequinas materiais tais como abilancetta e o compasso geomeacute-trico e militar

33 - O Telescoacutepio

Resta portanto que nos encami-nhemos ao telescoacutepio Tentar en-contrar nesse instrumento par-ticularmente os traccedilos da uniatildeoentre especulaccedilatildeo filosoacutefica e pro-duccedilatildeo teacutecnica que viemos apon-tando nos demais seraacute algo bas-tante significativo visto que dife-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

rentemente do compasso e da ba-lanccedila ligados diretamente agrave tra-diccedilatildeo pitagoacuterica e arquimedianao telescoacutepio foi construiacutedo de ummodo bastante peculiar envol-vendo controveacutersias desde a eacutepocamesma de Galileu A controveacuter-sia histoacuterica diz respeito ao fatode que Galileu natildeo foi o inventorda ideia do telescoacutepio tendo sa-bido de sua existecircncia por meiode relatos de amigos numa via-gem a Veneza em 1609 mas ha-vendo segundo alguns de seuscontemporacircneos feito do telescoacute-pio um ldquofilhordquo seu Jaacute uma ou-tra controveacutersia epistemoloacutegicadiz respeito agrave questatildeo de saberse Galileu produziu o telescoacutepioprocedendo dentro dos cacircnonesracionalistas isto eacute partindo depremissas teoacutericas gerais e de-las deduzindo necessariamenteconsequecircncias particulares ouvalendo-se de um procedimentoeminentemente empiacuterico ou sejapor tentativa e erro Nossa lei-tura que pretende mostrar natildeo aperfeita conformidade da produ-ccedilatildeo deste instrumento com as de-mais mas sim uma mesma com-preensatildeo geral sobre a relaccedilatildeo en-tre racionalidade e teacutecnica procu-raraacute justamente coordenar as duascontroveacutersias a histoacuterica e a epis-temoloacutegica

Em Sidereus Nuncius Galileuescreve

Haacute cerca de dez meseschegou aos meus ouvi-dos a notiacutecia que certobelga tinha construiacutedo umpequeno telescoacutepio pormeio do qual objetos vi-siacuteveis embora muito dis-tantes dos olhos do ob-servador eram vistos cla-ramente como se estives-sem perto Desse efeitoverdadeiramente notaacutevelvaacuterias experiecircncias foramrelatadas agraves quais algu-mas pessoas davam creacute-dito enquanto outras recu-savam Uns poucos diasmais tarde a notiacutecia me foiconfirmada [ ] o que memotivou a dedicar-me sin-ceramente agrave investigaccedilatildeodo meio pelo qual eu po-dia chegar agrave invenccedilatildeo deum instrumento similaro que consegui pouco de-pois baseando-me na dou-trina das refraccedilotildees (GA-LILEU Sidereus Nunciusapud EacuteVORA 1994 p 37itaacutelicos nossos)

Todavia Faacutetima Eacutevora (1994Caps 2 e 3) mostra-nos que mdasha julgar seja pelos procedimentosapresentados pelo proacuteprio Gali-leu seja pelas teorias oacuteticas a queGalileu poderia ter tido acesso mdasha afirmaccedilatildeo de que o instrumentofoi produzido com bases na dou-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

trina da refraccedilatildeo deve ser tomadacomo deveras problemaacutetica5 Aargumentaccedilatildeo teoacuterica minuciosa ea ampla investigaccedilatildeo documentalde Faacutetima Eacutevora nos eacute completa-mente persuasiva e sua conclusatildeose nos impotildee de modo inelutaacutevel

A descoberta de Galileudo telescoacutepio nem foi obrado acaso nem simples re-produccedilatildeo de um disposi-tivo cuja as partes e dis-posiccedilotildees se conhecia pre-viamente Poreacutem tambeacutemnatildeo foi feita a partir deum raciociacutenio loacutegico de-dutivo [ ] Galileu conse-guiu o progresso graccedilas atentativa e errordquo (EacuteVORA1994 p 81)

Resta-nos poreacutem refletir umpouco sobre o que poderiam signi-ficar para nosso cientista-filoacutesofoessas investidas concretas e tate-antes que ele realizou mdash certa-mente sem seguir nenhum a pri-ori ou melhor nenhum a prioriparticular sobre oacutetica e produccedilatildeo deimagens atraveacutes de lentes O que se-ria afinal isso que se encontra en-tre o raciociacutenio loacutegico dedutivo epuro acaso sem se confundir com

ambos Eacute para tentar respondera essas perguntas que atentamosagraves controveacutersias histoacutericas sobre aautoria do instrumento

Respondendo em Il Saggiatoreagrave acusaccedilatildeo de plaacutegio feita porSarsi Galileu escreve que vistoque jaacute avisara no Sidereus Nun-cius ter sabido da existecircncia dotelescoacutepio antecipadamente res-taria somente explicar que espeacuteciede auxiacutelio podia lhe ter represen-tado esse conhecimento preacutevioReconhecendo que sem essa in-formaccedilatildeo talvez natildeo houvesse sequer pensado no assunto e ten-tado construir o aparelho Galileuno entanto adverte

que tal notiacutecia tenhafacilitado invenccedilatildeo natildeocreio e digo mais que en-contrar a soluccedilatildeo de umproblema marcado e no-meado eacute obra de muitomaior engenho do queaquela necessaacuteria paraencontrar a [soluccedilatildeo] deum problema ainda natildeopensado nem nomeadopois neste caso pode havergrandiacutessima influecircncia doacaso mas naquele eacute tudoobra do argumento (dis-

5ldquo os estudos existentes no seacuteculo XVI e comeccedilo do seacuteculo XVII sobre a formaccedilatildeo de imagens em lentes ousistemas de lentes natildeo ofereciam bases para a construccedilatildeo do telescoacutepio com exceccedilatildeo talvez do Ad VitellionemParalipomena quibus Astronomia pars Optica Traditur de Kepler (1604 Frankfurt) o qual Galileu ateacute outubrode 1610 natildeo havia conseguido lerrdquo (EacuteVORA 1994 p 43)

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

corso) (GALILEU SidereusNuncius apud EacuteVORA1994 p 44-45 - itaacutelicosnossos)

O que temos aqui Mais uma ale-gaccedilatildeo da qual devemos suspeitarTalvez natildeo Afinal o que Galileunos diz eacute que a certeza da existecircn-cia do instrumento afasta o acasoe torna a situaccedilatildeo um problemapara o engenho do cientista Natildeoera uma hipoacutetese a ser testadaempiricamente era uma certezaque a construccedilatildeo do telescoacutepio erapossiacutevel afinal ela era um fatoela era real e o que eacute real devepoder ser demonstrado com basena ciecircncia6 Este seria o a priori deGalileu um a priori geral que nadatem de platocircnico de idealista oude solipsista porque muito pelocontraacuterio diz respeito agrave inteligibi-lidade dos eventos empiacutericos con-siderados em seu acircmbito proacuteprio

Natildeo poderia ser essa uma ex-plicaccedilatildeo mais justa para com oilustre filoacutesofo e matemaacutetico doque a que supotildee que estaria men-tindo para garantir a legitimidadecientiacutefica do seu equipamento aodizer que fundava-se na doutrinada refraccedilatildeo Ora jaacute poderiacuteamoscom efeito perceber estas mesmas

ideias que julgamos encontrar noII Saggiatore quando no Side-reus Nuncius Galileu dizia quededicou-se sinceramente agrave inves-tigaccedilatildeo e que soacute o fez depois que anotiacutecia foi confirmada e natildeo en-quanto algumas pessoas davamcreacutedito eacute experiecircncia mas outrasnatildeo Talvez nessa sinceridade algoinsuspeitado se encontre natildeo es-tando as fontes de Galileu a in-ventar ficccedilotildees fabulosas sobre ummaravilhoso instrumento a exis-tecircncia do telescoacutepio passa a serpois de direito mateacuteria da ciecircn-cia e o procedimento tateante ocorrer sucessivo das tentativas dealgueacutem que no entanto sabe comcerteza que eacute realizaacutevel seu pro-jeto bem poderia constituir umadas conotaccedilotildees da expressatildeo dis-corso Se a existecircncia do telescoacute-pio natildeo era uma fantasia como oseventos narrados nas obras dos li-teratos entatildeo a empreitada de Ga-lileu para produzir o instrumentoainda que de modo tateante eratarefa a exigir-lhe engenho e argu-mento e ao senhor Sarsi que lheacusava de plaacutegio tambeacutem nessecontexto Galileu poderia dizer SrSarsi a coisa natildeo eacute assim Porqueum telescoacutepio existia tentativa eerro para encontraacute-lo jaacute natildeo era

6Natildeo se deve entender aqui o contraacuterio do que jaacute disseacuteramos a saber que Galileu recusa o conhecimento deessecircncias ldquoO que eacute acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico satildeo os acidentes as propriedades ou sintomas Estes agravemedida que revelam o real satildeo os acidentes primaacuterios isto eacute o que pode ser tratado geometricamenterdquo (NASCI-MENTO 1986 p 57) Eacute preciso simplesmente que natildeo esqueccedilamos que estes acidentes satildeo ldquoacidentes primaacuterios ereaisrdquo (Galileu 2013 p 13)

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vaguear inutilmente num escurolabirinto

Conclusatildeo

() A filosofia estaacute escritaneste grandiacutessimo livroque aiacute estaacute aberto continu-amente diante dos olhos(isto eacute o universo) masnatildeo se pode entendecirc-lo seprimeiro natildeo se aprendea entender a liacutengua e co-nhecer os caracteres nosquais estaacute escrito Eleestaacute escrito em liacutengua ma-temaacutetica e os caracteressatildeo triacircngulos ciacuterculos eoutras figuras geomeacutetri-cas meios sem os quais eacutehumanamente impossiacutevelentender-lhe sequer umapalavra sem estes trata-se de um inuacutetil vaguearpor um obscuro labirinto( ) (GALILEU Il Saggia-tore sect6 apud MOSCHETTI2013 p 56)

Quando Galileu diz na supraci-tada frase do paraacutegrafo 6 de Il Sag-giatore (Cf MOSCHETTI 2013)que o universo estaacute escrito em liacuten-gua matemaacutetica revela que o logos

encarna-se no seu tatear e no ins-trumento assim encontrado a ci-ecircncia natildeo estaacute fundada nos livrosescritos pelos homens nem no elu-cubrar subjetivo estaacute fundada nascoisas7 Assim eacute possiacutevel a umcientista ldquoapoacutes haver cuidadosa-mente revisto o que Arquimedesdemonstra em seus tratadosrdquo (GA-LILEU 1986 p 105) ir em direccedilatildeoda natureza e produzir uma ba-lanccedila hidrostaacutetica mas tambeacutemem contrapartida sabendo queexiste um telescoacutepio colocar-se aproduzi-lo consciente de que estaacutelidando na praacutetica com a dou-trina da refraccedilatildeo mdash a ser escritatalvez com mais perfeiccedilatildeo do queno momento podia secirc-lo por suasmatildeos num outro tratado pelasmatildeos de um outro cientista

Jaacute se pode portanto compre-ender quatildeo significativa eacute estacaracterizaccedilatildeo dos instrumentospara a mudanccedila na concepccedilatildeo ge-ral acerca da ciecircncia Por tudoque dissemos parece natildeo estar-mos muito enganados se reco-nhecermos em tais instrumentosa siacutentese entre a instrumentaccedilatildeomdash que valoriza o trabalho em-piacuterico e a tentativa de dar contados fenocircmenos particulares mdash ea postura ativa do homem dianteda natureza que valoriza o re-

7 Confira-se tambeacutem em Moschetti 2013 pp 92ss especialmente o trecho ldquoA famosa frase de Galileu pareceenunciar um princiacutepio natildeo apenas metodoloacutegico mas tambeacutem ontoloacutegico assim deve ser a fiacutesica porque a mateacute-ria eacute ela mesma estruturada geometricamenterdquo Tal leitura confirma por assim dizer o que noacutes aqui estamosapresentando quase como uma ldquorevancherdquo moderna da ontologia pitagoacuterica

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

torno ao proacuteprio intelecto para en-contrar os princiacutepios do conheci-mento Os princiacutepios da matemaacute-tica satildeo os princiacutepios da naturezaqualquer transcendecircncia de estiloplatocircnico eacute aqui excluiacuteda

Para salientar apenas uma dasimplicaccedilotildees dessa investigaccedilatildeopara a compreensatildeo do pensa-mento de Galileu e da proacutepriaRevoluccedilatildeo cientiacutefica dos seacuteculosXVI e XVII cabe salientar que elaincide diretamente na mdash jaacute umtanto envelhecida mdash polecircmica en-tre Alexandre Koyreacute e StillmanDrake reportada e resumida porTHUIILER (1994) no capiacutetulocujo tiacutetulo enuncia a perguntaao redor da qual polemizaram osdois primeiros comentadores ldquofezGalileu experiecircnciasrdquo A respostade Koyreacute eacute negativa ao passo quea de Drake eacute afirmativa Drakeanalisando por exemplo anota-ccedilotildees manuscritas de Galileu tentademonstrar que elas seriam me-diccedilotildees de dados concretos reco-lhidos em efetivos experimentos(THUIILER 1994 p 130) Koyreacutesublinhando entre outras coisasa impossibilidade de mediccedilotildees su-ficientemente precisas bem comoum possiacutevel fundo platocircnico parao estabelecimento das teorias ga-lileanas procura provar que esseestabelecimento em nada depen-deu de experimentos concretosos quais portanto poderiam natildeohaver sequer existido reduzindo-

se aqueles experimentos descri-tos nos livros de Galileu a merosexpedientes de pensamento As-sim se por um lado natildeo acei-tamos completamente a tese deKoyreacute mdash de que Galileu natildeo fezconcretamente seus experimentosmdash por julgaacute-la natildeo como sendofalsa mas como sendo difiacutecil deser demonstrada por outro ladoqueremos crer que mesmo queGalileu tenha efetivamente feitoexperimentos algo da concepccedilatildeobaacutesica de Koyreacute mdash ao menos na-quilo que concerne ao caraacuteter es-sencial da postura ativa da ciecircnciagalileana mdash pode ser mantido seatentarmos agrave maneira pela qualos instrumentos satildeo pensados porGalileu Se natildeo eacute certo que expe-rimentos existiram natildeo se podedizer o mesmo dos instrumen-tos Assim repetindo a questatildeoque se encontra no tiacutetulo do ca-piacutetulo de Thuillier mdash ldquofez Gali-leu experiecircnciasrdquo mdash poderemosarriscar uma conclusatildeo dizendonatildeo sabemos mas sabemos queem sua oficina ele construiu re-almente inuacutemeros instrumentoscomo o compasso geomeacutetrico mi-litar a balanccedila hidrostaacutetica e o te-lescoacutepio E tais instrumentos satildeoeles proacuteprios as concretizaccedilotildeesmateriais de certas leis da natu-reza legiacuteveis apenas matematica-mente Natildeo se tratam de arma-duras extriacutensecas ou armadilhaspara capturar e aprisionar os da-

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dos observacionais em uma relesldquoregra de caacutelculordquo mas uma realarticulaccedilatildeo inteligiacutevel no seio danatureza sensiacutevel

Ora natildeo eacute pouco o que ficaposto em jogo trata-se naquelemomento histoacuterico de fundaccedilatildeode um novo modo de pensar ldquodeuma determinada imagem da ci-ecircncia uma determinada maneirade interpretar o trabalho cientiacuteficordquo(THUIILER 1994 p 117) Hojeem 2019 mdash quando a poliacutetica ci-entiacutefica brasileira exibe uma ima-gem da ciecircncia que a recoloca naservil posiccedilatildeo de teacutecnica solucio-nadora de problemas praacuteticos (es-pecialmente daqueles necessaacuteriosagrave induacutestria e ao mercado de ser-

viccedilos) sem potecircncia para questio-nar o poder teoloacutegico-poliacutetico quepor natildeo haver sido superado mastatildeo somente recalcado calamito-samente retorna com tal reediccedilatildeodo programa instrumentalista mdasheacute imperioso portanto diferenciara despotencializadora instrumen-talizaccedilatildeo da ciecircncia limitada asalvar as aparecircncias de sua de-sejaacutevel instrumentaccedilatildeo Esta uacutel-tima com seus instrumentos si-multaneamente corporais e inte-lectuais recoloca um brado quepensaacutevamos havia sofrido sua ob-solescecircncia junto com as promes-sas natildeo cumpridas do iluminismomas que mostra hoje sua renovadaimportacircncia Sapere Aude

Referecircncias

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GALILEI GCiecircncia e Feacute - Org Trad e Notas Carlos Arthur R Nasci-mento Satildeo Paulo Ed Unesp 2009

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

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MOSCHETTI M ldquoMateacuteria e Geometria nrsquoO Ensaidor Revista GuairacaacuteVolume 29 nordm 2 - 2013

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OSIANDER A Sobre as Hipoacuteteses desta Obra (prefaacutecio ao De Revolutio-nibus Orbium Coelestium de Nicolau Copeacuternico) Trad Introd eNotas de Zeljko Loparic In Cadernos de Histoacuteria e Filosofia daCiecircncia No 1 1980 pp 44-61

POPPER K Conjecturas e Refutaccedilotildees Brasiacutelia UnB 1982THUILLIER P De Arquimedes a Einstein Satildeo Paulo Zahar 1994

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228164

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e Espinosa

[The Game of Darkness Heidegger Schelling and Spinoza]

Vittorio Morfino

Resumo Este artigo visa analisar em primeiro lugar a problemaacute-tica do panteiacutesmo relativa ao determinismo e agrave liberdade tratada porSchelling quando este se posiciona sobre o erro de Espinosa Emsegundo lugar procuraremos entender tanto no pensamento schel-linguiano quanto na sua interpretaccedilatildeo heideggeriana a afirmaccedilatildeo deHeidegger de que haveria em Schelling um ldquotratado que abala a Loacute-gica de Hegel antes mesmo dela aparecerrdquo Em terceiro lugar se-guindo o percurso da linhagem Descartes-Kant-Hegel na histoacuteria dametafiacutesica procuraremos elaborar a trajetoacuteria do problema da ldquoliber-dade e do caraacuteter inteligiacutevelrdquo confrontando-a com a soluccedilatildeo schellin-guiana a fim de analisa-la mediante o conflito da origem do mal e aimpossibilidade da liberdade Finalmente procuraremos responderagrave acusaccedilatildeo de ldquoerro de Espinosardquo e com isso propor a abertura parainterpretaccedilotildees ulteriores de Espinosa principalmente no que diz res-peito ao problema de liberdade humanaPalavras-chave Schelling Heidegger Kant Espinosa Liberdade oMal

Abstract This article aims to analyze first the problem of pantheismconcerning determinism and freedom treated by Schelling when hedefines a position concerning Spinozarsquos error Secondly we will seekto understand both in Schellingian thought and in his Heideggerianinterpretation Heideggerrsquos statement that there would be in Schellinga treatise that shakes Hegelrsquos Logic even before it appears Thirdlyfollowing the path of the Descartes-Kant-Hegel lineage in the historyof metaphysics we will seek to elaborate the trajectory of the problemof ldquofreedom and intelligible characterrdquo confronting the former onewith the Schellingian solution in order to analyze it through theconflict of the origin of evil and the impossibility of freedom Finallywe will endeavor to respond to the accusation concerning ldquoSpinozarsquoserrorrdquo and thereby propose the opening for further interpretations ofSpinoza especially with regard to the problem of human freedomKeywords Schelling Heidegger Kant Spinoza Freedom Evilness

O presente artigo eacute uma versatildeo para o puacuteblico brasileiro de um texto originalmente publicado como capiacutetulodo livro Il tempo della moltitudine Materialismo e politica prima e dopo Spinoza Roma Manifestolibri 2005 pp149-172 A traduccedilatildeo do italiano foi realizada por Daniel Santos Silva [notaccedilatildeo de tradutor identificada como ldquoNotaDSSrdquo] a traduccedilatildeo das citaccedilotildees e filoacutesofos alematildees foram feitas por Fabio Nolasco [notaccedilatildeo de tradutor identificadacomo ldquoNota FNrdquo] revisatildeo geral feita por Ericka Marie ItokazuProfessor da Universitagrave degli Studi di Milano-Bicocca Doutor em Ciecircncia Poliacutetica pela Universiteacute de Paris VIII

(Vincennes - Saint-Denis) E-mail vittoriomorfinounimibit ORCID httpsorcidorg0000-0003-4512-9759

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VITTORIO MORFINO

() uma paixatildeo eacute para noacutes como um caraacuteter temporaacuterioe diferente que substitui o outro e elimina os signos

ateacute entatildeo invariaacuteveis pelos quais ele se exprimia(Marcel Proust Du cocircteacute de chez Swann)

Schelling na histoacuteria da metafiacute-sica

Em 1936 quando Heidegger in-troduz aos estudantes a obra deSchelling nas liccedilotildees dedicadas agravesInvestigaccedilotildees filosoacuteficas sobre a es-secircncia da liberdade humana eleapresenta-a nestes termos ldquo()eacute o que de maior fez Schellinge ao mesmo tempo uma dasobras mais profundas da filoso-fia alematilde e portanto da filosofiaocidentalrdquo1 Natildeo seria este poisum tratado que tem em mira umaquestatildeo particular como haviapensado Hegel mas sim uma obrafilosoacutefica fundamental dedicadanatildeo agrave questatildeo do livre-arbiacutetrio dohomem mas agrave liberdade do Serldquoao qual o homem tem de ser re-conduzido para que se torne ver-dadeiramente homemrdquo2 Entre-tanto em vez de restituir o con-junto da interpretaccedilatildeo heidegge-riana de Schelling como cume

e naufraacutegio do idealismo alematildeoou ainda apenas colher delaseu sentido no quadro da histoacute-ria da metafiacutesica tentarei inter-rogar o texto nas suas margenslaacute onde Heidegger desenha rela-ccedilotildees de oposiccedilatildeo ou de continui-dade com algumas figuras funda-mentais do pensamento modernoEspinosa Kant Hegel E talvez eacutedesses acenos marginais que seraacutepossiacutevel aceder agrave compreensatildeo da-quilo que estaacute em jogo na inter-pretaccedilatildeo heideggeriana de Schel-ling

1) Espinosa A proximidade deSchelling com respeito agrave filosofiaespinosana foi sublinhada por elemesmo (na ceacutelebre carta a Hegelde 1795 em que declara ich binindessen Spinozist geworden3)por escritos polecircmicos (primeiroentre todos como natildeo o de Jacobi)e por uma ininterrupta seacuterie de ar-tigos e ensaios ao longo de todo oNovecentos A afirmaccedilatildeo de Hei-

1HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) hrsg von H FeickTuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 p2 [lowast As traduccedilotildees de Heidegger foram feitas a partir do italiano por Da-niel Santos e revisadas em cotejo com o alematildeo por Fabio Mascarenhas Nolasco a natildeo ser quando especialmenteindicado Nota FN]

2 Ibidem p 11 Acrescenta Heidegger Note-se natildeo a liberdade como propriedade (Eigenschaft) do homem esim o homem como propriedade (Eigentum) da liberdaderdquo (Ibidem)

3 Carta de Schelling a Hegel em 4 de fevereiro de 1795 em Briefe von und an Hegel Bd I hrsg von J HOFF-MEISTER Hambruf Meiner 1952 p 22

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

degger tem entatildeo a forccedila de umtiro de canhatildeo para o senso co-mum filosoacutefico

O fato que a filosofia deSchelling tenha sido to-mada por espinosismo re-cai naquela histoacuteria curi-osa de malentendidos quetodos os filoacutesofos sofremda parte de seus contem-poracircneos Se haacute um sis-tema que Schelling com-bateu de modo radical[von Grund aus bekaumlmpfte]eacute propriamente aquele deEspinosa E se houve umpensador que reconheceuo verdadeiro erro de Espi-nosa este eacute Schelling4

Duas indicaccedilotildees fundamentais 1)natildeo somente Schelling natildeo eacute es-pinosista mas pelo contraacuterio sese quer ler Schelling de modo cor-reto deve-se colher na sua filo-sofia esta oposiccedilatildeo radical ao sis-tema espinosano que por assimdizer o atravessa 2) no sistemaespinosano existe segundo Hei-degger um erro fundamental queSchelling especificou da melhorforma

2) Kant A relaccedilatildeo Kant-Schelling vem caracterizada porHeidegger em termos de con-tinuidadeaprofundamento Seidealismo em sentido amplo sig-nifica interpretaccedilatildeo da essecircn-cia do Ser como lsquoideiarsquo comoser-representado pelo ente emgeralrdquo5 para entender a linhada metafiacutesica moderna Descartes-Leibniz somente com Kant o eurepresentativo ele atinge sua es-secircncia a liberdade abrindo cami-nho ao idealismo entendido emsentido histoacuterico6

Kant sobre a via que oleva da Criacutetica da razatildeopura agrave Criacutetica da razatildeopraacutetica reconhece todaviaque a essecircncia autecircnticado eu natildeo eacute o eu penso maso eu ajo dou-me a mimmesmo a lei trazendo-ado fundamento da essecircn-cia eu sou livre Nesseser-livre o eu estaacute verda-deiramente consigo natildeodistante de si mas ver-dadeiramente em si Oeu como eu representoa ideia vem entatildeo con-

4 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) FEICK H (org)Tuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 tr it MAZZARELLA E e TATASCIORE C (orgs) Naacutepoles Guida 1998p 41

5 Ibidem p 1106 ldquoO idealismo como sistema foi fundado pela Doutrina da Ciecircncia de Fichte completado de maneira essencial

pela filosofia da natureza de Schelling elevado a um niacutevel superior pelo seu Sistema do idealismo transcenden-tal consumado por seu Sistema da identidade e fundado propriamente num movimento conclusivo apenas pelaFenomenologia do espiacuterito de Hegelrdquo ibidem p109

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VITTORIO MORFINO

cebido a partir da liber-dade O idealismo comointerpretaccedilatildeo do Ser en-tende entatildeo o ser-em-si doente como ser-livre o ide-alismo eacute dentro de si idea-lismo da liberdade7

Enquanto partiacutecipe do idealismoSchelling eacute segundo Heideggerprofundamente devedor de Kantpelo conceito de liberdade comoldquosubsistecircncia proacutepria e autodeter-minaccedilatildeo na proacutepria lei essencialrdquo(Eigenstaumlndigkeit und Selbstbestim-mung im eigenen Wesengesetz8) aoexceder esse movimento de pen-samento ele aprofunda o conceitode Kant mudando sua filosofia deterreno ldquoo idealismo alcanccedilou defato o conceito formal da liber-dade () mas ainda natildeo compre-endeu o fato [Tatsache] da liber-dade humana na sua facticidade[Tatsaumlchlichkeit]rdquo9

3) Hegel A perspectiva a par-tir da qual o senso comum filo-soacutefico considera a relaccedilatildeo Hegel-Schelling foi imposta pelo ceacutelebremovimento teoacuterico do Prefaacutecio daFenomenologia do espiacuterito o abso-luto de Schelling eacute a noite em quersquotodos os gatos satildeo pardosrsquo comose costuma dizer10 Quer se re-

fira ao amigo de um tempo oua seus maus divulgadores comolhe assegura em uma carta certoeacute que esse juiacutezo tem a forccedila deuma sentenccedila de condenaccedilatildeo quetransforma a filosofia schellin-guiana em um momento do pro-cesso histoacuterico-filosoacutefico que de-veria conduzir ao idealismo ab-soluto de Hegel Que Schellingcontinue a viver e a escrever apoacuteso florir daquele botatildeo tardio deSuaacutebia eacute uma pura contingecircnciasem significado algum do pontode vista da weltgeschichtlich Hei-degger distancia-se precisamentede uma perspectiva de tal gecircneroO simples movimento de dedicarum curso agrave uacutenica obra publicadapor Schelling em vida depois dosurgimento da Fenomenologia (sesatildeo excluiacutedas obras de caraacuteter po-lecircmico) eacute suficiente para mos-trar que existe um pensamento deSchelling para aleacutem de Hegel ouseja para aleacutem da filosofia schel-linguiana como posiccedilatildeo subordi-nada agravequela do saber absolutoLonge poreacutem de limitar-se a umavalorizaccedilatildeo somente impliacutecita dopensamento de Schelling Heideg-ger afirma explicitamente a forccediladesse pensamento proacuteprio em re-laccedilatildeo agravequele de Hegel

7 Ibidem p 1118 Ibidem p 1099 Ibidem

10 HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes in GW Bd 9 hrsg von W Bonsiepen - R Heede HamburgMeiner 1980 p 17 [Nota FN trad em portuguecircs de Paulo Meneses Parte I Petroacutepolis Vozes 1992 p 29]

46 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 43-69ISSN 2317-9570

O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

Quando se cita o tratadoschellinguiano sobre a li-berdade apenas ocasional-mente a fim de assim do-cumentar uma certa vi-sada de Schelling sobre omal e a liberdade natildeo setem desse tratado conceitoalgum Torna-se agoratambeacutem visiacutevel em quemedida a avaliaccedilatildeo de He-gel sobre esse tratado em-bora reconhecedora eacute fa-lha trata-se apenas deuma questatildeo particularO tratado que abala [ers-chuumlttert] a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela apare-cer11

Natildeo apenas pois o pensamentode Schelling natildeo desvanece emfrente ao surgir do pensamentohegeliano mas potildee em questatildeoante-litteram os fundamentos deseu sistema (erschuumlttern significaabalar fazer tremer mas tambeacutemromper) a grande loacutegica laacute ondeos pensamentos de Deus satildeo reco-lhidos antes de tornar-se mundo

Antes de aproximarmo-nos doconteuacutedo verdadeiro e proacutepriodo tratado reassumamos breve-

mente as coordenadas atraveacutes dasquais Heidegger nos permite si-tuar o pensamento de Schelling nahistoacuteria da metafiacutesica modernaSchelling refuta Espinosa apro-funda Kant faz vacilar Hegel Re-tomaremos analiticamente essespontos contudo em ordem in-versa

O tratado sobre a liberdade

As Investigaccedilotildees12 schellinguianaspartem da polecircmica com algumasdas ceacutelebres teses de Jacobi pre-sentes em Sobre a doutrina de Es-pinosa em cartas ao Senhor MosesMendelssohn nas quais se conec-tavam de modo estreito raciona-lismo panteiacutesmo e fatalismo (bemresumida na ceacutelebre frase de Les-sing ldquonatildeo haacute outra filosofia senatildeoa de Espinosardquo13) Numa deta-lhada anaacutelise dos diferentes sen-tidos que se pode atribuir ao con-ceito de panteiacutesmo Schelling de-dica a primeira parte de sua obrapara mostrar como em realidadedo panteiacutesmo natildeo segue necessa-riamente a negaccedilatildeo da liberdadeAo contraacuterio se o compreende-mos corretamente o panteiacutesmoimplica liberdade

11HEIDEGGER M Schellings Abhandlung op cit p 11712 SCHELLING F W J Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die dammit

zusammenhaumlngenden Gegenstaumlnde in SW Bd 4 pp 238-23913 JACOBI FH Uumlber die Lehre des Spinoza hrsg von Hammacher et alii Hamburg Meiner 2000 p 23

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Se jaacute natildeo fosse vivente[por si] aquilo que eacute com-preendido em outro en-tatildeo haveria uma compre-ensibilidade sem compre-endido ie nada seriacompreendido Um pontode vista muito mais altoeacute assegurado pela consi-deraccedilatildeo da proacutepria essecircn-cia divina cuja ideia con-tradiria completamenteuma sequecircncia que natildeoeacute produccedilatildeo ie o pocircrde um autossubsistenteDeus natildeo eacute um Deus dosmortos mas dos viven-tes Eacute incompreensiacutevelcomo a essecircncia comple-tamente perfeita se apra-zeria mesmo que em faceda mais completa das maacute-quinas Como quer quese queira pensar o tipode sequecircncia das essecircn-cias a partir de Deusela nunca pode ser umasequecircncia mecacircnica demodo algum um mero efe-tuar ou colocar em queo efetuado natildeo eacute nadapor si proacuteprio tampoucouma emanaccedilatildeo em queo que emana permaneccedilao mesmo que aquele do

qual emanou portantonada proacuteprio autosubsis-tente A sequecircncia dascoisas a partir de Deuseacute uma automanifestaccedilatildeode Deus Deus contudopode se manifestar a siapenas naquilo que lhe eacutesemelhante em essecircnciaslivres que agem a partirde si proacuteprias para cujoser natildeo haacute nenhum outrofundamento senatildeo Deusas quais poreacutem satildeo talcomo Deus eacute Ele fala eaiacute estatildeo elas Mesmo sefossem todos os seres cri-ados apenas pensamentosdo iacutentimo divino jaacute porisso haveriam de ser vi-vos14

Assim o panteiacutesmo natildeo implicade maneira alguma conclusotildeesespinosistas como consideravaJacobi mas pelo contraacuterio se-gundo Schelling soacute internamenteao panteiacutesmo eacute possiacutevel pensar aliberdade ldquoimanecircncia em Deuse liberdade contradizem-se tatildeopouco que unicamente o livre ena medida em que eacute livre eacute emDeus o natildeo-livre e na medidaem que natildeo eacute livre [eacute] necessa-riamente fora de Deusrdquo15

14 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zu-sammenhaumlngenden Gegenstaumlande in Saumlmtliche Werke (SW) vol 4 pp 238-239 [Nota FN as traduccedilotildees para oportuguecircs a seguir foram feitas diretamente do alematildeo por Faacutebio Nolasco]

15 Ibidem p 239

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Uma vez estabelecido que liber-dade e sistema podem conviverSchelling enfrenta a questatildeo fun-damental qual seja o problemada liberdade de que o idealismoteria fornecido apenas um con-ceito formal (forma no sentidodaquilo que determina a essecircn-cia anota Heidegger) mas natildeovivente que residiria em umaldquofaculdade do bem e do malrdquo(Vermoumlgen des Guten und des Bouml-sen)16 Aqui contudo um novoproblema para o panteiacutesmo jaacute queldquoou se concede um mal efetivo eassim eacute inevitaacutevel implicar o malna substacircncia infinita ou na proacute-pria vontade originaacuteria e com issoo conceito de uma essecircncia suma-mente perfeita eacute completamentedestruiacutedo ou eacute preciso que de al-guma maneira a realidade do malseja negada com o que no en-tanto o conceito real da liberdadeao mesmo tempo desaparecerdquo17Perde-se pois ou Deus ou a li-berdade ndash ao menos se natildeo nosabandonamos agrave teoria dos doisprinciacutepios (que Schelling chamano tratado de dualismo) e nestecaso perde-se entretanto a razatildeo(ldquoo dualismo eacute apenas um sis-tema do autodilaceramento e de-sespero da razatildeordquo18) A soluccedilatildeoschellinguiana pela qual procura

salvar Deus a razatildeo e a liberdadeno seu panteiacutesmo encontra-se emuma distinccedilatildeo que ele pocircs na fi-losofia da natureza ldquoa filosofia danatureza do nosso tempo estabele-ceu na ciecircncia em primeiro lugara diferenciaccedilatildeo entre a essecircnciaenquanto existe e a essecircncia en-quanto eacute mero fundamento [blosGrund] de existecircnciardquo19 Por essadistinccedilatildeo entre existecircncia e funda-mento Schelling chegaraacute a expli-car o mal

Deus deve ter em si mesmo ofundamento de sua existecircncia eesse fundamento se se quer tornaacute-lo humanamente compreensiacuteveldeve ser pensado como o desejoque o eterno experimenta ao gerara si proacuteprio um querer no qualnatildeo haacute intelecto mas um que-rer do intelecto (genitivo objetivo)pressaacutegio do intelecto Esse desejofoi desde muito tempo suplantadopelo ser mais alto surgido dele etodavia embora natildeo perceptiacuteveleacute concebiacutevel pelo pensamento

Segundo o ato eternoda automanifestaccedilatildeo nomundo tal como o vi-samos agora tudo eacute re-gra ordem e forma masno fundo subjaz sempre

16 Ibidem p 24417 Ibidem p 24518 Ibidem p 24619 Ibidem p 249

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ainda o sem-regra [Regel-lose] como se ele pudesseirromper mais uma veze em lugar nenhum pa-rece que a ordenaccedilatildeo ea forma seriam o origi-naacuterio mas que um sem-regra inicial teria sido or-denado Isso eacute nas coisas abase inapreensiacutevel da rea-lidade o resto que nuncase esvai aquilo que natildeose deixa dissolver no en-tendimento mesmo como maior esforccedilo mas quepermanece eternamenteno fundo [im Grunde]Dessa ausecircncia de enten-dimento nasceu em sen-tido estrito o entendi-mento Sem essa escuri-datildeo antecedente natildeo haacutequalquer realidade da cri-atura a treva eacute seu neces-saacuterio legado20

A partir pois da distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia em DeusSchelling desencadeia o processoatraveacutes do qual Deus mesmo segera gerando a natureza e a his-toacuteria Frente a essa verdadeirateocosmo-gonia combateu-seentre uma atitude de admiraccedilatildeo

agrave criativiadade filosoacutefica de Schel-ling e agrave ironia de Schopenhauerque diante de um ldquorelatoacuterio de-talhado sobre um Deus do qual osenhor autor daacute a entender pos-suir conhecimento iacutentimo postoque nos descreve ateacute mesmo o seusurgimentordquo deplora o fato deque ldquoele natildeo gaste uma soacute palavrapara mencionar como teria entatildeoalcanccedilado tal conhecimentordquo21Em tal contexto talvez seja maisinteressante tomaacute-la como puraestrateacutegia verdadeira e proacuteprialuta filosoacutefica para salvar a razatildeoDeus e liberdade22

Ora em cada ser da naturezaem cada graduaccedilatildeo sua estatildeo pre-sentes os dois princiacutepios mas ape-nas no homem de forma plenaldquono ser humano estaacute o poder in-teiro do princiacutepio tenebroso etambeacutem nele simultaneamentetoda a forccedila da luz Nele estaacute omais profundo abismo e o maisalto ceacuteu (der tiefste Abgrund undder houmlcheste Himmel) ou ambosos centrosrdquo 23 O mal entatildeo natildeopode ser compreendido como ma-lum metaphysicum como limita-ccedilatildeo (ou seja como privaccedilatildeo) mascomo positiva perversatildeo dos doisprinciacutepios

20 Ibidem p 251-25221 SCHOPENHAUER A Preisschrift uumlber die Freiheit des Willens in Werke (W) vol 4 p 8422 ldquoQuiccedilaacute derradeiramente e pos isso com extrema fuacuteria Schelling luta para ganhar a batalha da razatildeordquo (G

ALBIAC La sinagoga vaciacutea Madrid Ediciones Hiperioacuten 1987 p 337)23 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen cit p 255

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Pois jaacute a simples ponde-raccedilatildeo de que o ser hu-mano a mais perfeita detodas as criaturas visiacuteveiseacute a uacutenica capaz do malmostra que o fundamentodisso natildeo poderia de ma-neira alguma dever-se agravefalta ou privaccedilatildeo O diabosegundo a visada cristatildenatildeo era a mais limitadadas criaturas senatildeo quemuito mais a mais ilimi-tada A imperfeiccedilatildeo nosentido metafiacutesico geralnatildeo eacute o caraacuteter usual domal posto que ele fre-quentemente se mostraunificado a uma excelecircn-cia das forccedilas singularesas quais com muito menorfrequecircncia acompanhamo bem24

Schelling explica pois o mal pelofundamento o qual natildeo estaacute forade Deus mas eacute em Deus mesmoMas o mal natildeo eacute o fundamento jaacuteque contrariamente ldquoa vontadedo fundamento jaacute na primeira cri-accedilatildeo coexcita a vontade proacutepria da

criatura a fim de que quando sur-gir o espiacuterito como a vontade deamor este encontre algo que lheresista no qual possa se efetivarrdquo25 (e isso possa ser apreendido se-gundo Schelling no irracional eno acaso que se encontra conec-tado com o necessaacuterio especial-mente nos seres orgacircnicos signode uma individualidade ativa26operando neles) Sobretudo nofazer da individualidade mesmao mal consiste no perverter a re-laccedilatildeo entre os dois princiacutepios emvez de base e oacutergatildeo da espiritua-lidade um princiacutepio ldquodominantee vontade-total () e em contra-partida do espiritual em si ummeio ()rdquo 27 Uma perversatildeo dessegecircnero eacute possiacutevel somente no ho-mem ou seja no reino do espiacuteritoda histoacuteria enquanto no animal oviacutenculo entre os dois princiacutepioseacute determinado e natildeo passiacutevel deperversatildeo (o animal natildeo eacute assimcapaz de mal o ser capaz do mal eacutepropriamente aquilo que constituia essecircncia do homem)

Trata-se de compreender nessequadro em que sentido a liber-dade consiste em uma faculdadedo bem e do mal Schelling re-

24 Ibidem p 260-26125 Ibidem p 267-268 A propoacutesito escreve Parayson ldquoA impossibilidade de separar a liberdade humana da

liberdade divina implica que o mal posto que eacute o resultado da liberdade humana e dela apenas tem uma prehis-toacuteria sobrehumana um fundo metafiacutesico um pressuposto [antefatto] escuro e abissal Isso tem a sua origem remotano fundamento obscuro da essecircncia divina que o proacuteprio Deus supera e vence no evento portentoso do seu devire a sua causa proacutexima e imediata na liberdade humanardquo (Introduzione a FWJ Schelling Scritti sulla filosofia dellareligione la libertagrave op cit p 15)

26 Ibidem p 26827 Ibidem p 281

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cusa de modo preciso tanto a con-cepccedilatildeo da liberdade como liberumarbitrium indifferentiae quanto aconcepccedilatildeo determinista ou comoele a chama preacute-deterministaldquoem ambas eacute igualmente desco-nhecida aquela necessidade supe-rior () necessidade que brota daessecircncia do proacuteprio agenterdquo28 Aliberdade se identifica pois comessa mais alta necessidade quecoincide com a accedilatildeo que segue daproacutepria essecircncia O problema sedesloca entatildeo para a liberdade daessecircncia E eis a resposta schel-linguiana ldquoo ser humano eacute nacriaccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () mas ele proacute-prio pode decidir-se No entantoessa decisatildeo natildeo pode ocorrer notempordquo29 O homem eacute pois livrepara escolher o bem e o mal natildeono tempo mas na eternidade an-tes que o tempo seja escolhe suaessecircncia no eterno e dessa escolhaseguem necessariamente todas assuas accedilotildees no tempo o agir dohomem por assim dizer natildeo setorna mas eacute por natureza eterno

Para retomar o principal do tra-tado eis os dois movimentos teoacute-ricos fundamentais

- a liberdade como autodeter-minaccedilatildeo intemporal da sua proacute-

pria essecircncia- o mal como perversatildeo da re-

laccedilatildeo entre os dois princiacutepios co-originaacuterios em Deus

Estamos agora em condiccedilotildeespara retornar ao texto de Hei-degger e procurar compreendermelhor o sentido dessa relaccedilatildeode continuidade e de oposiccedilatildeoque ele estabeleceu com EspinosaKant Hegel

O princiacutepio das trevas e a trans-parecircncia do conceito

Assinalamos para o fato de queHeidegger potildee em discussatildeo a re-construccedilatildeo hegeliana da histoacuteriado idealismo na qual Schellingnatildeo seria senatildeo um momento ne-cessaacuterio (a reequilibrar o subjeti-vismo fichteano) mas parcial e su-bordinado ao idealismo absolutoEm realidade Schelling longe deser um momento do desenvolvi-mento em direccedilatildeo ao saber abso-luto eacute o pensador que ldquoempurrao idealismo alematildeo desde o seuinterior para fora e aleacutem de suaproacutepria posiccedilatildeo fundamentalrdquo30Aqui o que estaacute em jogo eacute a rela-ccedilatildeo com Hegel como mostra estaexclamaccedilatildeo de Heidegger ldquoo tra-

28 Ibidem p 27529 Ibidem p 27730 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 4

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tado que abala a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela aparecerrdquo

Em que sentido o tratado deSchelling abala a Loacutegica A loacute-gica de Hegel eacute a completude dametafiacutesica moderna daquele mo-vimento filosoacutefico posto em atopela primeira vez por Descartespara quem a medida do ser estaacuteno pensamento no sujeito A loacute-gica eacute a ciecircncia da ideia natildeo maisentendida como o conteuacutedo men-tal cartesiano mas como cora-ccedilatildeo mesmo da totalidade comoaquele processo de pensamentoque no seu fazer-se institui aomesmo tempo as estruturas fun-damentais do ser da natureza e dahistoacuteria Costuma-se citar a desca-rada imagem hegeliana segundo aqual a loacutegica seria ldquoa apresentaccedilatildeo(Darstellung) de Deus tal como eleeacute em sua essecircncia eterna antes dacriaccedilatildeo da natureza e de um es-piacuterito finitordquo 31 Aqui eacute possiacutevelcompreender naturalmente soba condiccedilatildeo de renunciar a todatranscendecircncia de Deus e a todaanterioridade entendida em sen-tido temporal Natildeo se pode defato separar a ideia do processopelo qual ela continuamente potildeediante de si uma alteridade (o ou-tro do pensamento do conceitoou seja o acidental o contingente

o acaso) e continuamente a superadando-lhe forma

A identidade da ideia con-sigo mesma ndash escreve He-gel ndash eacute um com o pro-cesso o pensamento queliberta a efetividade daaparecircncia [Schein] da al-terabilidade sem finali-dade e a transfigura [ver-klaumlrt] em ideia natildeo tem derepresentar essa verdadeda efetividade como o re-pouso morto como umamera imagem fraca semimpulso e movimentocomo um gecircnio ou um nuacute-mero ou um pensamentoabstrato a ideia em vir-tude da liberdade que oconceito alcanccedila nela temtambeacutem a oposiccedilatildeo maisdura dentro de si seu re-pouso consiste na segu-ranccedila e na certeza com asquais ela eternamente agera e eternamente a su-pera e nela junta-se con-sigo mesma32

Em que sentido entatildeo o Schellingdo tratado abala a loacutegica de HegelEnquanto em Hegel Deus eacute o lu-

31 HEGEL GWF Wissenschaft der Logik in GW Bd 11 hrsg Von F Hogemann ndash W Jaescke p 21 [Nota FNtraduccedilatildeo portuguesa a cargo de Ch Iber F Orsini M Miranda vol 1 Petroacutepolis-Braganccedila Paulista Vozes 2016p 52]

32 Ibidem Bd 12 p 177 tr Br citada p 242 (grifos do autor)

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gar das puras estruturas loacutegicasdo ser que encontram a opacidadeda contingecircncia e da acidentali-dade no fazer-se mundo mas so-mente no caminho para a trans-parecircncia do espiacuterito (isto eacute deum Deus que enfim se sabe comotal) em Schelling a luz do pensa-mento eacute em Deus precedida emum sentido intemporal por umprinciacutepio tenebroso que a deseja eao mesmo tempo a individualizae assim natildeo eacute de modo algum a elaredutiacutevel Trata-se daquele con-ceito que Heidegger denomina deSeynsfuge encaixe do ser articula-ccedilatildeo do ser Como escreve EugenioMazzarela

o fundamental do tratadoschellinguiano de 1809consiste em ter levado aproblemaacutetica da dialeacuteticaespeculativa do idealismosobre um terreno a li-berdade de onde lsquosaltarsquo asoluccedilatildeo integralmente loacute-gica do nexo ontoloacutegico areinvindicaccedilatildeo de que nolsquoconceitorsquo o ser e o pen-sar se convertem integral-mente e que a participa-ccedilatildeo nessa compreensatildeo

reciacuteproca integral [seja]completamente atualizaacute-vel no sentido de uma suatranslucidez sem resiacuteduopara o pensamento hu-mano sub specie do traba-lho filosoacutefico do espiacuterito33

Em substacircncia Schelling faria va-cilar a concepccedilatildeo hegeliana da li-berdade como processo histoacutericode autoapropriaccedilatildeo da totalidadendash liberdade que nessa oacutetica natildeopode senatildeo ser coletiva inseridanas instituiccedilotildees poliacuteticas

Em Schelling a impossiacuteveltransparecircncia imposta pela Seyns-fuge mostra o limite do conceitoidealista de liberdade como au-todeterminaccedilatildeo a partir de umaessecircncia proacutepria a liberdade vi-vente necessita de uma definiccedilatildeomais profunda a liberdade vi-vente eacute faculdade do bem e domal Schelling faria assim vacilaro inteiro sistema hegeliano pen-sando a liberdade como poten-cialidade de transgressatildeo contraDeus o mal natildeo se cura sem ci-catrizes como na Fenomenologiahegeliana34 mas eacute o sintoma daexistecircncia do conflito no ser di-

33 MAZZABELLA E Presentazione a M Heidegger Schelling opcit p 3134 ldquoAs feridas do espiacuterito curam sem deixar cicatrizes O fato natildeo eacute o impereciacutevel mas eacute reabsorvido pelo espiacute-

rito dentro de si o que desvanece imediatamente eacute o lado da singularidade presente no fato ndash seja como intenccedilatildeoseja como negatividade e limitaccedilatildeo aiacute-essente do fatordquo (HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes opcit p 360)[Nota FN trad brasileira opcit p 444]

35 Sobre o mal fiacutesico e o mal moral cf MOISO F Vita natura libertagrave Schelling (1795-1809) Milatildeo Mursia 1990pp 294-335

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vino mesmo35

A liberdade e o caraacuteter inteligiacute-vel

No percurso da metafiacutesica mo-derna que conduz de Descartes aSchelling sem duacutevida em Kantestaacute o noacute fundamental eacute Kant defato que ndash segundo Heidegger ndashformula o conceito formal de li-berdade como ldquoautossubsistecircnciacomo subsistecircncia proacutepria na proacute-pria lei essencialrdquo 36 Haacute um evi-dente deacutebito no tratado sobre a li-berdade nos confrontos de Kantque todavia Schelling natildeo su-blinha de modo suficientementeclaro e que mesmo Heidegger emcomentaacuterios natildeo contribui parailuminar Escreve Schelling

O ser humano eacute na cria-ccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () masele proacuteprio pode decidir-se No entanto essadecisatildeo natildeo pode ocor-rer no tempo ela ocorrefora de todo tempo eportanto coincide coma primeira criaccedilatildeo (em-bora enquanto um ato di-verso dela) O ser hu-mano embora nasccedila no

tempo foi no entantocriado no comeccedilo da cri-accedilatildeo (o centro) O atomediante o qual sua vidaeacute determinada no temponatildeo pertence ele mesmoao tempo mas agrave eterni-dade ele natildeo antecede agravevida tambeacutem segundo otempo mas decorre atra-veacutes do tempo (inapreen-dido por ele) como umato eterno segundo a na-tureza Mediante esse atoa vida do ser humano al-canccedila ateacute ao comeccedilo dacriaccedilatildeo por isso ele me-diante tal ato e mesmofora do criado eacute livre e eleproacuteprio comeccedilo eternoEmbora essa ideia possaao modo comum de pen-sar parecer tatildeo incompre-ensiacutevel em cada ser hu-mano poreacutem haacute um sen-timento concordante comisso [Schelling se refere aosentimento de responsabi-lidade que sentimos pelasnossas accedilotildees VM] comose ele jaacute tivesse sido o queeacute desde toda eternidadee de modo algum apenasveio a ser no tempo Porisso a despeito da ine-gaacutevel necessidade de to-das as accedilotildees e mesmo que

36 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 109

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cada um quando atenta asi proacuteprio tenha de con-ceder que de modo al-gum eacute bom ou mau poracaso ou arbitrariamenteo mal pex aparece a sicomo nada menos que co-agido (posto que a coa-ccedilatildeo pode apenas ser sen-tida no devir natildeo no ser)mas faz suas accedilotildees comvontade natildeo contra suavontade Que Judas te-nha se tornado um trai-dor de Cristo natildeo o po-dia alterar ele proacuteprio ouqualquer criatura mudare ainda assim ele natildeo foicoagido a trair Cristo maspropositadamente e comtotal liberdade37

Schopenhauer sustenta que essapaacutegina natildeo seria nada mais queuma paraacutefrase explicativa ndash apre-ciaacutevel exclusivamente por seu tomvivaz ndash da teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel Ora na Criacutetica darazatildeo pura Kant estabelece umadupla causalidade operante nosatos de escolha humanos umacausalidade natural e uma por li-berdade De uma parte ldquotodasas accedilotildees do homem no fenocircmeno

se determinam segundo a or-dem da natureza pelo seu caraacutec-ter empiacuterico e pelas outras causasconcomitantesrdquo38 de outra tantoesse caraacuteter quanto as causas coo-perantes seriam a manifestaccedilatildeo deum ato uacutenico de escolha originaacute-rio e intemporal precisamente ocaraacuteter inteligiacutevel Malgrado algu-mas oscilaccedilotildees39 essa teoria vemretomada tambeacutem na ldquoElucidaccedilatildeocriacuteticardquo que conclui o primeiro li-vro da Criacutetica da razatildeo praacutetica

Nessa consideraccedilatildeo [comocoisa em si VM] o ser ra-cional pode agora dizercorretamente sobre cadaaccedilatildeo contraacuteria agrave lei prati-cada por ele que poderiatecirc-la omitido mesmo queela esteja enquanto fenocirc-meno suficientementedeterminada no passadoe seja nessa medida infali-velmente necessaacuteria poisessa accedilatildeo com todo o pas-sado que a determina per-tence a um uacutenico fenocirc-meno de seu caraacuteter queele [o ser racional VM]fornece a si mesmo e se-gundo o qual ele imputaa si mesmo enquanto

37 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit pp 277-27838 KANT I Criacutetica da Razatildeo Pura A549 B577 [Nota FN trad de M P dos Santos e A F Morujatildeo Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001]39 Cf a sismografia detalhada de LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 pp 251-266

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uma causa independentede toda a sensibilidade acausalidade desses fenocirc-menos40

Para reassumir a terminologiaproposta por Schopenhauer no es-crito sobre a Liberdade da Vontadea liberdade natildeo consiste no operarmas acima de tudo no ser comono mito platocircnico de Er uma vezescolhida uma dentre as vidas te-cidas pelas Moiras a alma natildeopode mais modificar o proacutepriodestino

Em que sentido Schelling apro-funda o discurso de Kant Ele fazemergir a teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel de uma teogoniade origem boumlhmiana fundada so-bre aquilo que Heidegger chamade Seynsfuge A distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia permiteexplicar a origem do mal e as-sim fundar ontologicamente a li-berdade como vivente faculdadedo bem e do mal Todavia a pre-senccedila da teoria de Kant tem con-tornos vagos tanto na argumen-

taccedilatildeo de Schelling quanto no co-mentaacuterio de Heidegger41 Isso im-pede que se volte contra essa teo-ria a objeccedilatildeo fundamental que natildeoreside mais em conciliar a liber-dade de Deus com aquela do ho-mem (a ceacutelebre pergunta do Da irade Lactacircncio Si Deus unde ma-lum) mas em conciliar a plura-lidade das escolhas humanas en-tre si encontramo-nos frente auma pluralidade de centros livrescada um dos quais deveria fazer-se mundo (ainda que como su-blinha Landucci limitadamenteagraves seacuteries causais pertinentes agravesaccedilotildees do sujeito42) uma espeacutecie demonadologia sem harmonia preacute-estabelecida A resposta de Hegela essa objeccedilatildeo consistiraacute precisa-mente na re-instituiccedilatildeo de umaharmonia preacute-estabelecida a as-tuacutecia da razatildeo que tece a tramada histoacuteria com os fios das paixotildeese dos interesses individuais nessesentido a liberdade eacute sempre his-toacuterica e coletiva o indiviacuteduo quepossui o grau de liberdade queeacute dado a seu proacuteprio tempo natildeopode ser livre ndash quando o eacute ndash senatildeo

40 KANT I Criacutetica da Razatildeo Praacutetica A175 [Nota FN trad de M Hulshof Petroacutepolis ndash Braganccedila Paulista Vozesp 131]

41 Assim Heidegger retraduz na sua terminologia a teoria do caraacuteter inteligiacutevel ldquoeste ponto profundiacutessimo damais alta amplidatildeo do saber a si proacuteprio na decidibilidade [Entschiedenheit] da sua mais proacutepria essecircncia esteponto alcanccedilam apenas alguns poucos e raramente E se [alcanccedilam] entatildeo apenas enquanto esse piscar de olhos[Augen-Blick] do mirada mais iacutentima na essecircncia tambeacutem eacute instante [Augenblick] estritiacutessima historicidade Istoquer dizer a decidibilidade natildeo recolhe a essecircncia proacutepria num ponto vazio da mera contemplaccedilatildeo ociosa do eu[Ichbegaffung Nota FN] mas a decidibilidade da essecircncia proacutepria eacute apenas o que ela eacute como resolutidade [NotaFN Entschlossenheit] Com isso queremos dizer o estar dentro no aberto da verdade da histoacuteria a insistecircnciaque antes de toda contagem e inacessiacutevel a todo caacutelculo leva a cabo o que haacute de levar a cabordquo (HEIDEGGER MSchellings Abhandlung opcit p 187)

42 LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 p 254

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dentro do processo histoacuterico e daproacutepria comunidade poliacutetica Aresposta de Schopenhauer consis-tiraacute inversamente na negaccedilatildeo detoda forma de harmonia o caraacuteterinteligiacutevel eacute sim ldquoum ato de von-tade extratemporal e indivisiacutevelrdquocujo caraacuteter empiacuterico natildeo eacute ou-tro que ldquoseu fenocircmeno [Erschei-nung] no espaccedilo tempo e causa-lidade (essas figuras do princiacutepiode razatildeo suficiente da forma dofenocircmenordquo43) mas esse ato que eacuteldquomanifestaccedilatildeo imediata [unmittel-bare Erscheinung] da vontaderdquo44natildeo eacute escolha tambeacutem das causascooperantes dos motivos45 e as-sim de um mundo (embora limita-damente agraves seacuteries causais que con-cernem agrave accedilatildeo do sujeito) Perde-se pois ou a Liberdade ou o Sen-tido natildeo eacute claro como Schellingpossa salvar a ambos

O erro de Espinosa

Resta agora enfrentar a questatildeodecisiva que consiste na tentativade compreender de que maneiraSchelling teria mostrado o errofundamental da filosofia de Espi-nosa Heidegger parece referir-

se a uma passagem do tratadode Schelling que nesse sentido eacuteinequiacutevoca

E aqui de uma vez por to-das portanto nossa opi-niatildeo determinada sobreo espinosismo Esse sis-tema natildeo eacute um fatalismoporque ele deixa as coi-sas serem conceituadasem Deus pois como mos-tramos o panteiacutesmo natildeotorna impossiacutevel pelo me-nos a verdade formal Es-pinosa haacute de ser por-tanto fatalista em virtudede uma razatildeo completa-mente diferente e inde-pendente dessa O errodo seu sistema natildeo estaacutede modo algum no fato deque ele potildee as coisas emDeus mas no fato de quesatildeo coisas ndash no conceitoabstrato dos seres criadossim ateacute mesmo substacircn-cia infinita que para eletambeacutem eacute uma coisa Porisso seus argumentos con-tra a liberdade satildeo com-pletamente deterministase de maneira alguma pan-

43 SCHOPENHAUER A Die Welt als Wille und Vostellung in Werke (W) vol II p 34144 Ibidem p 38845 O caraacuteter atinge pelo conhecimento os motivos segundo Schopenhauer Por essa razatildeo a conduta de um

homem (isto eacute a manifestaccedilatildeo do caraacuteter) pode mudar com base no grau de conhecimento ldquosem que seja liacutecitoinferir-lhe uma alteraccedilatildeo do caraacuteterrdquo pois o conhecimento natildeo pode exercitar alguma influecircncia sobre a vontadeldquomas [apenas] segundo o modo com o qual a vontade se revela nas accedilotildeesrdquo (ibidem pp 347 e 350)

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teiacutestas Ele trata tambeacutemda vontade como um fatoe demonstra entatildeo muitonaturalmente que ela ha-veria de ser determinadaem qualquer caso da efe-tuaccedilatildeo por um outro fatoo qual por sua vez eacute de-terminado por um outroe assim em diante infi-nitamente Daiacute a faltade vida do seu sistemaa falta de sentimento in-terno] da forma a cares-tia dos conceitos e expres-sotildees a intragaacutevel auste-ridade das determinaccedilotildeesque tatildeo bem coaduna coma forma de consideraccedilatildeoabstrata por isso e de ma-neira completamente con-sequente a sua visatildeo me-cacircnica da natureza46

O erro de Espinosa consiste emuma generalizada reificaccedilatildeo deDeus da natureza da vontadeHeidegger se deteacutem somente no

juiacutezo de Schelling glosa-o sim-plesmente afirmando que o errodo espinosismo natildeo eacute teoloacutegicomas ontoloacutegico o ente eacute conce-bido como coisa como presente(Das Vorhandene) jaacute que ele natildeoldquonatildeo conhece o vivente e nemmesmo o espiritual como modosproacuteprios e talvez mais originaacuteriosdo serrdquo47 Contudo Espinosa natildeoentra nunca realmente em jogo notexto de Heidegger quando eacute ci-tado o eacute de modo superficial e natildeosem uma ponta de desprezo (paradizer a verdade jamais racistacomo no Schmitt daqueles anosainda que seja difiacutecil natildeo percebero orgulho alematildeo que perpassaseu texto)48 Entretanto pelo me-nos em um caso a total ausecircnciade qualquer discussatildeo natildeo podenatildeo ser relevada Heidegger citaeste trecho de Schelling

A filosofia da natureza donosso tempo estabeleceupela primeira vez na ci-ecircncia a diferenccedila entre

46 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24147 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 10748 Relato em seguida algumas passagens de Heidegger ldquoo uacutenico sistema completo construiacutedo ateacute o fim em seu

nexo fundacional eacute a metafiacutesica de Espinosa [] Jaacute o tiacutetulo traz agrave tona o domiacutenio da exigecircncia cientiacutefica matemaacuteticandash ordine geometrico Que essa metafiacutesica ie ciecircncia do ser total se designa por ldquoEacuteticardquo isso traz agrave tona que o agire o comportamento do ser humano tem um significado determinante para o tipo de procedimento no saber e defundamentaccedilatildeo cientiacutefica Esse sistema poreacutem apenas se tornou possiacutevel com base numa singular unilateralidadesobre a qual falaremos mais tarde ademais porque os conceitos metafiacutesicos fundamentais da escolaacutestica medievalforam simplesmente acoplados no sistema com uma rara ausecircncia de criacutetica Para se levar a cabo o proacuteprio sistematomou-se a mathesis universalis a doutrina do meacutetodo cartesiana e o conceito metafiacutesico propriamente fundamen-tal adveacutem em todos os seus detalhes de Giordano Brunordquo (Ibidem p 40-41) ldquoPara evitar aqui um equiacutevoco estejaenfatizado que a filosofia de Espinosa natildeo pode ser igualada com a filosofia hebraica Jaacute apenas o fato conhecido deque Espinosa foi expulso da comunidade hebraica eacute significativo Sua filosofia eacute essencialmente determinada peloespiacuterito da eacutepoca Bruno Descartes e a escolaacutestica medievalrdquo (Ibidem p 80)

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a essecircncia enquanto elaexiste e a essecircncia en-quanto ela eacute apenas fun-damento de existecircnciaEmbora esse seja preci-samente o ponto em queela desvia da maneira amais determinada do ca-minho de Espinosa aindaassim se pocircde na Ale-manha ateacute hoje ser afir-mado que seus princiacutepiosmetafiacutesicos eram os mes-mos que os de Espinosae apesar de que precisa-mente aquela diferencia-ccedilatildeo eacute o que simultanea-mente conduz agrave diferen-ciaccedilatildeo mais determinadaentre natureza e Deusisso no entanto natildeo obs-tava a que se a acusasse demisturar Deus com a na-tureza49

Heidegger cita integralmente essapassagem Trata-se de uma pas-sagem fundamental na sua inter-pretaccedilatildeo jaacute que Schelling nela ex-prime a Seynsfuge que estaacute no cen-tro de toda leitura heideggerianaNela Espinosa desempenha umpapel central eacute a teoria da qual

Schelling se distancia no Kampf-platz filosoacutefico poderiacuteamos di-zer que Schelling identifica aquia proacutepria filosofia diferenciando-adaquela de Espinosa Ora mesmoreportando fielmente a referecircnciaa Espinosa Heidegger ignora-ocompletamente em seus comen-taacuterios Desde esse ponto o nomeEspinosa desaparece do texto porcerca das cem paacuteginas que se-guem Seriacuteamos tentados a atri-buir a essa ausecircncia uma signi-ficado sintomaacutetico de ver nela oaflorar de um problema para areflexatildeo heideggeriana como fezBalibar em um belo ensaio dedi-cado a Heidegger e Espinosa50Mas talvez seja suficiente pro-curar explicar o passo schellin-guiano para tentar compreenderse Espinosa com respeito a estepossa constituir um simples erro

O problema do mal

A passagem que citamos das In-vestigaccedilotildees sobre a Liberdade eacute achave teoacuterica que permite a Schel-ling resolver o problema do malsobre a Seynsfuge se constroacutei a te-oria schellinguiana do mal como

49 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24950Balibar defende que o silecircncio de Heidegger sobre Espinosa seja sintomaacutetico do puissant finalisme qui para-

doxalement ne cesse de hanter la penseacutee rsquoneacutegativersquo de Heidegger [Nota DSS ldquopotente finalismo que paradoxal-mente natildeo cessa de assombrar o pensamento lsquonegativorsquo de Heideggerrdquo ] (BALIBAR E Heidegger et Spinoza inSpinoza au XX siegravecle BLOCH O (sous la direction de) Paris PUF 1993 ps 327-343 343 Cf tambeacutem VAYSSE J-M Totaliteacute et finitude Spinoza et Heidegger Paris Vrin 2004

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perversatildeo da relaccedilatildeo entre os doisprinciacutepios

A pergunta fundamental nesseponto diz respeito ao sentido da-quela referecircncia a Espinosa trata-se isto eacute de compreender em quesentido Espinosa negou a distin-ccedilatildeo entre fundamento e existecircn-cia Heidegger sobre tal pontonatildeo nos ajuda de fato simples-mente natildeo explica a referecircncia seentretanto tivesse que traduzir nasua filosofia a acusaccedilatildeo de Schel-ling teria talvez dito que Espi-nosa nega a diferenccedila ontoloacutegicaSchelling parece afirmar a ausecircn-cia de fundamento em Espinosaou seja daquele princiacutepio tene-broso que embora natildeo sendo maisperceptiacutevel no mundo da formae da ordem eacute todavia pensaacutevelPara Espinosa tudo eacute luz mas luzprivada de vida e de liberdadeporque eacute luz geomeacutetrica em queDeus o mundo e ateacute a vontadesatildeo petrificados satildeo tomados porsimples coisas Quando Schellingexpotildee a teoria espinosana do malparece-me que essa interpretaccedilatildeovenha perfeitamente agrave luz

[] a forccedila que se mostra

no mal [seria] de fato com-parativamente mais im-perfeita que aquela que semostra no bem mas con-siderada em si ou fora dacomparaccedilatildeo seria ela proacute-pria todavia uma perfei-ccedilatildeo que portanto comoqualquer outra precisaser derivada de Deus Oque chamamos nisso demal eacute apenas o menorgrau da perfeiccedilatildeo o qualaparece como uma faltaapenas para a nossa com-paraccedilatildeo natildeo sendo faltaalguma na natureza Natildeose deve negar que essa se-ria a verdadeira assunccedilatildeode Espinosa51

A luz da necessidade geomeacutetricailumina embora de modo dife-rente os graus do ser tornando defato impossiacutevel a liberdade

Alguns anos depois nas Liccedilotildeesde Munique Schelling rejeitaraacuteem Espinosa precisamente esse li-mite ou seja o fato de que neleo ser existe sem sujeito excluindotodo natildeo ser toda potecircncia todaliberdade trata-se pois de um ser

51 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 246 Heidegger ao comentar tal passagem as-sente plenamente agrave interpretaccedilatildeo schellinguiana de tal aspecto sobre a teoria espinosana ldquoConcede-se que o malvalha como o natildeo-bom como falta como imperfeito o que falta natildeo estaacute aiacute natildeo-estar-aiacute natildeo estar presente -mdashassim chamamos o natildeo-ente Daquilo que segundo sua essecircncia eacute o que natildeo eacute natildeo pode contudo ser dito queseja um ente Assim a efetividade do mal eacute apenas uma ilusatildeo Aquilo que sempre eacute efetivo soacute pode ser o positivoE o que haacute pouco chamamos de mal e jaacute por nomeaacute-lo falseamo-lo em positivo esse imperfeito eacute na medida emque eacute sempre apenas um grau em cada caso diferente do bem ndash assim ensina Espinosardquo (M Heidegger SchellingsAbhandlung op cit p 122)

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impotente que natildeo tem em si o po-der de ser diverso daquilo que eacute52E na Filosofia da Revelaccedilatildeo (liccedilatildeoVII) faraacute dele o campeatildeo da fi-losofia negativa a que contraporaacutesua filosofia como filosofia posi-tiva

se no entanto Espinosausa aquela verdade ge-omeacutetrica como exemplopara elucidar como se-gundo a sua opiniatildeo ascoisas singulares seguemda natureza de Deus asaber de uma maneiraigualmente atemporaleterna entatildeo a sua expli-caccedilatildeo do mundo eacute bemanti-histoacuterica e em opo-siccedilatildeo a ela ao contraacuterio adoutrina cristatilde pela qualo mundo seria efeito deuma livre decisatildeo de umfato haveria de ser cha-mada uma explicaccedilatildeo his-toacuterica53

Se entatildeo a filosofia de Schellingfaz vacilar a loacutegica de Hegel jaacuteque mostra a impossibilidade doconceito de retraduzir-se sem re-siacuteduos no tempo de permear de sia temporalidade e a histoacuteria nelaanulando de fato a eventualidade

ela reconhece o erro fundamentalde Espinosa na ausecircncia total dehistoacuteria de um acircmbito humanoque de algum modo exceda a luzda necessidade geomeacutetrica Masse trata realmente de um erroOu existe no pensamento de Es-pinosa alguma coisa que perturbaa posiccedilatildeo da simples alternativaSchelling-Hegel

Coisas e pessoas

Antes de passar agraves conclusotildees al-guns breves pontos sobre a leituraschellinguiana de Espinosa Se-riacuteamos tentados a dizer que natildeo eacutetanto Espinosa que reifica Deusos modos e a vontade quantoprincipalmente Schelling que rei-fica uma palavra de Espinosa (eacutecerto pode-se reificar tambeacutem otermo res) fixando o seu conteuacutedo(de modo abstrato) exteriormenteagrave estrateacutegia teoacuterica na qual estaacuteinserida Eacute verdade que Espinosaassocia o termo res tanto a Deusquanto aos modos (natildeo agrave vontadeporque esta se trata de um ensrationis) e contudo natildeo se podeesquecer o fato de que no escoacute-lio I da proposiccedilatildeo 40 da segundaparte da Eacutetica haja uma criacutetica aostranscendentais

52 SCHELLING FWJ Muumlnchener Vorlesung in SW vol 5 pp 104-10553 SCHELLING FWJ Philosophie der Offenbarung in SW vol 6 pp 138-139

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() a Mente humana po-deraacute imaginar distinta-mente em simultacircneo tan-tos corpos quantas ima-gens possam ser forma-das simultaneamente emseu proacuteprio corpo Oraquando as imagens seconfundirem completa-mente no corpo tambeacutema Mente imaginaraacute confu-samente todos os corpossem qualquer distinccedilatildeoe os compreenderaacute comoque sob um uacutenico atri-buto a saber sob o atri-buto do Ser da Coisa etcIsso pode tambeacutem ser de-duzido de que as imagensnem sempre tecircm o mesmovigor e de outras causasanaacutelogas a estas que natildeoeacute preciso explicar aquipois para o escopo ao qualvisamos basta considerarapenas uma Com efeitotodas se reduzem a queestes termos significamideias confusas em sumograu54

O termo res indica uma ideia con-fusa que deriva tanto da incapa-cidade do corpo de conservar os

traccedilos de um nuacutemero indefinidode encontros com os corpos ex-ternos quanto de traccedilos de con-tornos indefinidos efeitos de en-contros receacutem mantidos trata-sepois de uma noccedilatildeo que perdeuou nunca possuiu o seu objetocomo escreve Macherey eacute umaquase-noccedilatildeo uma maneira defalar que se serve de articulaccedilatildeono discurso sem deter uma sig-nificaccedilatildeo racional nela mesmardquo55Natildeo haacute sentido algum assim emfixar a atenccedilatildeo sobre ocorrecircnciasdo termo res na escrita espino-sana perdendo a estrateacutegia teoacute-rica que a comanda56 para darapenas um exemplo se tomarmosem consideraccedilatildeo as duas primei-ras proposiccedilotildees da segunda parteda Eacutetica (Cogitatio attributum Deiest sive Deus est res cogitans Ex-tensio attributum Dei est sive Deusest res extensa) seria de todo ilu-soacuterio pocircr o acento sobre a reifica-ccedilatildeo de Deus ndashextrapolando o frag-mento () Deus est res () ndash semapreender a estrateacutegia que aiacute estaacuteoperando um trabalho de redefi-niccedilatildeo da linguagem cartesiana dastrecircs substacircncias agora no sentidoda teoria da substacircncia uacutenica daqual pensamento e extensatildeo satildeoatributos

54 Eth in G Bd II pp 120-121 [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira da Eacutetica doravante tr br Grupo de EstudosEspinosanos da USP Satildeo Paulo Edusp 2015 p 199]

55 MACHEREY P Introduction agrave lrsquoEacutethique de Spinoza II Paris PUF 1997 p 30756 Trata-se para ser exato de 893 ocorrecircncias (M Gueret ndash A Robinet ndash Tombeur Spinoza Ethica Concordances

Index Listes des freacutequences Tables comparatives Louvain-la-Neuve Cetedoc 1977 pp 289-298)

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Voltemos agrave leitura de SchellingQue coisa ele entende por coisaUma unidade fechada e privadade relaccedilotildees com o externo A=ANesse sentido em Espinosa natildeoexiste coisa alguma Deus eacutecausa de si no mesmo sentido emque eacute causa imanente dos modos(a sua essecircncia eacute pois potecircnciaprodutiva) os modos satildeo compos-tos instaacuteveis cuja essecircncia residena complexidade das relaccedilotildees ins-tituiacutedas entre suas partes e como ambiente externo (e Jonas com-preendeu com agudeza a origina-lidade da teoria do organismo es-pinosana) a vontade enfim natildeopassa de um puro ens rationis de-fronte agraves voliccedilotildees singulares (quesatildeo ao mesmo tempo intelecccedilotildees)e elas mesmas longe de seremcoisas satildeo o lugar de condensa-ccedilatildeo de complexas tramas relaci-onais que natildeo apenas natildeo reifi-cam o indiviacuteduo mas impedemque este seja pensado como tal emsentido estrito (como ao contraacute-rio o fazem tanto Schelling comoHeidegger) abrindo-o a uma di-nacircmica transindividual57 Talvezentatildeo a acusaccedilatildeo schellinguianade reificaccedilatildeo deva ser compreen-dida no seio da ideologia juriacute-dica (burguesa certamente - como

sublinha Althusser58 - mas reto-mada do direito romano e em par-ticular das Istitutiones de Gaio)res eacute aquilo que natildeo eacute personaaquilo que natildeo eacute dotado de li-berdade e assim de responsabi-lidade Natildeo eacute por acaso que a in-dicaccedilatildeo do erro fundamental deEspinosa faccedila um conjunto emSchelling com uma teoria do in-diviacuteduo humano entendido comopersona que eacute enquanto tal res-ponsaacutevel pelas proacuteprias accedilotildees natildeoporque seja livre no tempo (todaaccedilatildeo singular eacute de fato determi-nada por motivos e entatildeo ne-cessaacuteria) mas porque pocircde an-tes que o tempo fosse determi-nar a proacutepria essecircncia (tanto Kantquanto Schelling e Schopenhauerinsistem sobre a responsabilidadeque sente o homem por aquilo queeacute e por aquilo que faz como sin-toma desse ato originaacuterio de es-colha do proacuteprio caraacuteter inteligiacute-vel) Talvez entatildeo a identificaccedilatildeodo erro espinosano por parte deSchelling natildeo aponte tanto a rei-ficaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto prin-cipalmente a impossibilidade desua classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave tra-diccedilatildeo teoloacutegico-juriacutedica da identi-dade pessoal que vecirc sua primeiragrande expressatildeo moderna no ca-

57 Cf MORFINO V Ontologia della relazione e materialismo della contingenza in ldquoOltrecorrenterdquo 6 2002 pp129-144 Cfr tambeacutem MONTAG W Chi ha paura della moltitudine in ldquoQuaderni Materialisttirdquo 2 2003 pp63-79 Inspiraccedilatildeo de ambos BALIBAR E Spinoza il transindividuale tr it di MARTINO L Di PINZOLO LMilatildeo Ghibli 2002

58 ALTHUSSER L Reacuteponse a John Lewis Paris Maspero 1972 p 73

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piacutetulo sobre Identidade e diferenccedilados Essay de Locke59 Nesse sen-tido o problema eacute sim o deter-minismo mas talvez de modoainda mais radical a natildeo impu-tabilidade juriacutedica de uma accedilatildeo auma multidatildeo60 que coisa eacute comefeito o indiviacuteduo na teoria de Es-pinosa se natildeo a configuraccedilatildeo de-terminada de uma multidatildeo (deideias e de corpos)

Aleacutem do bem e do mal

Voltando agrave questatildeo do mal comoprivaccedilatildeo eacute verdade que Espinosaparece autorizar uma tal leituraespecialmente nas cartas a Blyen-berg61 Trata-se poreacutem a meumodo de ver da necessidade decolocar-se sobre o terreno linguiacutes-tico do correspondente62 Pode-sereencontrar em seu pensamento

uma teoria bem mais profundado bem e do mal segundo a qualestes natildeo corresponderiam a umgrau maior ou menor de perfei-ccedilatildeo do ser mas principalmente aum efeito imaginaacuterio do precon-ceito antropocecircntrico a necessi-dade natural se encontra em re-alidade aleacutem do bem e do mal ea ontologizaccedilatildeo desses conceitosnatildeo eacute outra coisa senatildeo a con-sequecircncia da potecircncia da imagi-naccedilatildeo que potildee o homem comocentro e medida do ser63 QuandoEspinosa depois na quarta parteda Eacutetica define positivamente obem e o mal pode fazecirc-lo apenasem termos plurais e relativos ouseja natildeo como escolha intempo-ral e absoluta entre amor cristatildeo eegoiacutesmo (isto eacute a alternativa pro-posta por Schelling) mas na di-mensatildeo conjuntural do encontrodos corpos as coisas que fazem

59 Neste capiacutetulo satildeo perfeitamente compreensiacuteveis os enjeux teoloacutegico-juriacutedicos do conceito de identidade pes-soal a possibilidade da consciecircncia de redobrar-se sobre a linha tempo reconhecendo no passado aquele mesmoself que eacute agora presente garante a infalibilidade da justiccedila divina que pode perscrutar nos coraccedilotildees embora natildeodaquela terrena que pode ser enganada pela linguagem

60 Eacute ceacutelebre o passo hobbesiano em que a discriminaccedilatildeo entre povo e multidatildeo passa precisamente por esseponto O povo eacute uno tendo uma soacute vontade e a ele pode atribuir-se uma accedilatildeo mas nada disso se pode dizer deuma multidatildeo (Hobbes T De cive XII 8 in M vol II p 291) [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira de Renato JanineRibeiro Satildeo Paulo Martins Fontes 2002 p189]

61 Esta passagem [de Espinosa] parece ser particularmente relevante na leitura de Schelling seguida por Heideg-ger ldquo[] a privaccedilatildeo natildeo eacute o ato de privar mas simples e mera carecircncia a qual natildeo eacute em si nada outro que umente de razatildeo ou seja uma espeacutecie de pensamento que formamos quando confrontamos as coisas entre si Diga-mos por exemplo que o cego eacute privado da vista porque somos levados a imaginaacute-lo como vidente por efeito doconfronto que fazemos seja com os outros que vecircem seja com o seu estado precedente E porquanto consideramoseste homem deste modo isto eacute comparando a sua natureza com aquela dos outros ou com aquela que perdeupor isso afirmamos que a visatildeo pertence agrave sua natureza e que portanto dela ele foi privado Mas se se considerao decreto de Deus e a sua natureza natildeo podemos afirmar daquele homem mais que a pedra que tenha lhe sidoretirada a vistardquo (Espinosa a Blyenberg XXI in G Bd IV p 128 tr it DROETTO A (org)Turim Einaudi 1938pp 133-134)

62 Eacute um dado de fato relevante que as 11 ocorrecircncias do termo privatio na Eacutetica natildeo digam respeito nunca agravequestatildeo do mal mas exclusivamente agrave da falsidade (GUERET M e ROBINET A Spinoza Ethica ConcordancesIndex Listes des freacutequences Tables comparatives p 275)

63 Eth I app pp 81-82 [Nota DSS trad br op cit pp 109-121]

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com que se conserve a proporccedilatildeode movimento e repouso que aspartes do Corpo humano tecircm en-tre si satildeo boas e maacutes ao contraacuterioas que fazem com que as partesdo Corpo humano tenham entresi outra proporccedilatildeo de movimentoe repouso64

Para Espinosa o homem temtanto direito a existir e a agirquanto o tem o leatildeo e o gato odireito equivale agrave sua potecircnciaMas ele natildeo pode escolher parasi sua essecircncia (em uma atempo-ralidade que ainda que natildeo pre-cedendo o tempo deve ser mesmoassim um lugar outro com rela-ccedilatildeo ao tempo) tanto quanto natildeopode escolher para si um corpo(satildeo ou doente) uma mente (satilde oudoente) um sexo uma cor de peleum ambiente um clima uma fa-miacutelia uma sociedade uma liacuten-gua um periacuteodo histoacuterico Maisnatildeo existe na filosofia de Espinosauma essecircncia feita de tal modoque preceda a existecircncia e nessesentido talvez ganhe pleno sig-nificado o silecircncio de Heideggersobre a ausecircncia da Seynsfuge Aessecircncia se faz na complexidadedas relaccedilotildees (dos corpos das men-tes com o ambiente com a famiacute-lia com a liacutengua com o proacutepriotempo) sem que tais relaccedilotildees to-

mem a coloraccedilatildeo do Zeitgeist quereduz sua complexidade e anula acontingecircncia As paixotildees natildeo satildeopropriedade do indiviacuteduo que satildeoativadas por motivos mas verda-deiras e proacuteprias forccedilas que exis-tem entre o indiviacuteduo e a causaque o gerou como aparece nasproposiccedilotildees 5 e 6 da quarta parte

Proposiccedilatildeo V A forccedila e ocrescimento de uma pai-xatildeo qualquer e sua per-severanccedila no existir natildeosatildeo definidos pela potecircn-cia pela qual nos esforccedila-mos para perseverar noexistir mas pela potecircn-cia da causa comparada agravenossa ()

Proposiccedilatildeo VI A forccedila deuma paixatildeo ou afeto podesuperar as demais accedilotildeesou a potecircncia do homemde tal maneira que o afetoadere pertinazmente aohomem65

Como escreve Montag ldquoos encon-tros com outros corpos necessaacuteriopara a conservaccedilatildeo da coisa singu-lar inclui simultaneamente inte-raccedilotildees regulares e lsquofortuitasrsquordquo 66

64 Eth IV pr 39 p 239 [Nota DSS trad br op cit p 439]65 Eth IV pr 5 e 6 p 214 [Nota DSS trad br op cit p 389]66 MONTAG W Bodies masses power Spinoza and his contemporaries London-New York 1999 p 3467 As ocorrecircncias do termo occursus satildeo extremamente raras sob a pena de Espinosa Uma entretanto eacute demais

66 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 43-69ISSN 2317-9570

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O occursus67 o encontro torna-se entatildeo o conceito chave na de-terminaccedilatildeo da forccedila (vis) de umapaixatildeo encontro entre potecircncias(causae externae potentia cum nos-tra comparata) cujas despropor-ccedilotildees podem produzir a dominacircn-cia pertinaz (pertinaciter) de umapaixatildeo concernente ao comporta-mento complexivo de um homemsem que isso seja atribuiacutedo agrave imu-tabilidade de seu caraacuteter (isto eacutese natildeo a uma escolha intempo-ral pelo menos a uma constitui-ccedilatildeo essencial) Mas natildeo somenteo encontro pode inclusive mudara identidade mesma de um ho-mem o seu caraacuteter (na termino-logia kantiana) precisamente por-que a identidade natildeo reside emuma escolha intemporal mas emuma determinada proporccedilatildeo demovimento e de repouso entre aspartes Eacute o caso do ceacutelebre exem-plo de Gocircngora citado por Espi-nosa

Pois natildeo ouso negar queo Corpo humano manti-das a circulaccedilatildeo do san-gue e outras coisas pe-las quais se estima que oCorpo vive contudo possa

mudar para uma natu-reza de todo diversa dasua De fato nenhuma ra-zatildeo me obriga a sustentarque o Corpo natildeo morre se-natildeo mudado em cadaacutevere mais a proacutepria expe-riecircncia parece persuadir-me do contraacuterio Comefeito agraves vezes ocorre aum homem padecer taismudanccedilas que natildeo eacute faacute-cil dizer que continue omesmo como ouvi contarsobre um Poeta Espanholque fora tomado pela do-enccedila e embora se tenhacurado ficou poreacutem tatildeoesquecido de sua vida pas-sada que natildeo acreditavaserem suas as Faacutebulas eTrageacutedias que escrevera ecertamente poderia ser to-mado por um bebecirc adultose tambeacutem tivesse esque-cido a liacutengua vernaacutecula68

Nesse contexto teoacuterico a liber-dade toma duas faces 1) a liber-dade como idecircntica ao grau de po-tecircncia e como contraacuterio de coaccedilatildeo2) a liberdade como causalidadeadequada da accedilatildeo A primeira

significativa no escoacutelio da prop 29 da segunda parte da Eacutetica quando satildeo conectados conhecimento confuso epercepccedilatildeo da coisas ex communi naturae ordine hoc est () ex rerum () fortuito occursu (G BdII p 144) A im-portacircncia do tema do occursus em Espinosa foi sublinhado por DELEUZE G Spinoza Philosophie pratique ParisEditions de Munuit 1981 passim cf tambeacutem MARCUCCI M Occursus rsquoCosmologia negativarsquo e terzo genere inDEL LUCCHESE F MORFINO V (a cura di) Sulla scienza intuitiva in Spinoza Ontologia politica estetica MilanoGhibli 2003 pp 137-153

68 Eth IV prop 39 schol p 240 [Nota DSS trad br op cit p 441]

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diz respeito a todos os seres natu-rais quanto mais estes satildeo poten-tes mais satildeo livres A segunda eacutea liberdade da razatildeo enquanto co-nhecimento que nos permite agirndash sempre de forma parcial e confli-tiva poreacutem de outro modo umaparte da natureza se faria o todo ndashna complexidadde de relaccedilotildees quenos constitui A segunda concep-ccedilatildeo que para os corpos poliacuteticosse identifica com um processo dedemocratizaccedilatildeo estaacute todavia im-plicada na primeira enquanto arazatildeo natildeo eacute outro da natureza masum grau de potecircncia seu

O erro de Espinosa consistepois natildeo tanto na reificaccedilatildeoda vontade quanto na refutaccedilatildeomais precisa de toda forma de an-tropocentrismo que procure atri-buir a ela um impeacuterio no impeacute-rio da natureza E se esse erro

fosse precisamente o ponto cegodo idealismo e natildeo tanto a ne-gaccedilatildeo da histoacuteria (seja entendidacomo marcha da ideia ou comoadvento do Cristo) mas precisa-mente a desconstruccedilatildeo ante litte-ram da dupla natureza-histoacuteriaNesse sentido abre-se talvez umaulterior via de interpretaccedilatildeo qualseja ler o espinosismo natildeo tantocomo filosofia da luz em que anecessidade geomeacutetrica petrifica avida como Medusa sob seu olharmas como filosofia de um princiacute-pio tenebroso jamais sobrepujadopela luz em que a luz (ou seja aordem e a forma) e o espiacuterito (ouseja a razatildeo humana) natildeo satildeo se-natildeo efeitos aleatoacuterios ndash em nadadesejados porque a treva natildeo eacutedesejo mas potecircncia ndash do com-plexo jogo das trevas

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Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225619

O Drama da Imanecircncia Gebhardt Deleuze Benjamin eo Infinito Barroco de Espinosa

[The Drama of Immanence Gebhardt Deleuze Benjamin and Spi-nozarsquos Baroque Infinite]

Henrique Piccinato Xavier

Resumo Investigando a filosofia de Espinosa visamos atravessar odrama da imanecircncia elaborado por Walter Benjamin em Origem dodrama barroco alematildeo isto eacute atravessar a peculiar interpretaccedilatildeo me-lancoacutelica que relaciona a ideia de imanecircncia presente na filosofia mo-derna agrave arte de sua eacutepoca ou seja a barroca Mais que um dramapara um olhar espinosano tal interpretaccedilatildeo eacute uma trageacutedia pois pro-duz uma teatralidade aporeacutetica que dilapida a positividade da ideiade imanecircncia Para compreendermos esta trageacutedia seraacute preciso pas-sar por dois preacircmbulos filosoacuteficos ao drama Rembrandt e Espinosade Carl Gebhardt e A dobra Leibniz e o barroco de Gilles Deleuze Damelancoacutelica trageacutedia para algo mais feliz reelaboraremos o dramaprocurando desfazer tais aporias conduzindo-nos agrave compreensatildeo dapositividade da imanecircncia ldquobarrocardquo em EspinosaPalavras-chave Espinosa Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter Ben-jamin Arte Barroca

Abstract With Espinosarsquos philosophy we aim to confront the dramaof immanence developed by Walter Benjamin in his The Origin of theGerman Tragic Drama in other words we aim to confront a peculiarmelancholic interpretation that relates the idea of immanence presentin modern philosophy to the art of its time that is baroque art Morethan a drama in a Spinosist perspective such interpretation is atragedy because it produces an aporetic theatricality that demolishesthe positivity in the idea of immanence To understand this tragedyit will be necessary to go through two philosophical preambles to thisdrama Rembrandt and Spinoza by Carl Gebhardt and Fold Leibnizand the Baroque by Gilles Deleuze We will rework the drama fromthe melancholic tragedy to something happier trying to undo theseaporias leading us to an understanding of the positivity of thebaroque immanence in SpinozaKeywords Spinoza Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter BenjaminBaroque Art

Doutor em Filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) E-mail henriquexavier0gmailcomORCIDhttpsorcidorg0000-0001-7325-0252

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I - Preacircmbulos ao drama

O absolutamente infinito ou sejaa substacircncia (ou a natureza) nafilosofia de Espinosa eacute ordenadasegundo leis eternas universaise imutaacuteveis como nos afirma acada passo da Parte I da EacuteticaMas o que de fato satildeo estasleis eternas senatildeo a pura movi-mentaccedilatildeo da transformaccedilatildeo deauto-diferenciaccedilatildeo infinita de simesmo uma atividade infinita deuma essecircncia atuosa Lembremosda Proposiccedilatildeo 16 da parte I daEacutetica ldquoDa necessidade da natu-reza divina devem seguir infini-tas coisas em infinitos modos (istoeacute tudo que pode cair sob o inte-lecto infinito)rdquo (ESPINOSA 2015p 75) Assim a substacircncia pro-duz infinitas coisas sob infinitosatributos seus modos infinitos emodificaccedilotildees finitas Ademais sa-bemos que esta essecircncia atuosanatildeo age segundo um fim mas fluiabsolutamente livre pois a essecircn-cia atuosa da substacircncia conce-bida como causa sui radica na suacompleta liberdade afinal a subs-tacircncia eacute a causa de si ou seja suaexistecircncia exprime a si mesma eque por sua vez natildeo eacute limitadapor nada e nem por si mesmasendo ela mesma a abertura deuma transformaccedilatildeo infinita semteleologia e sem finalismo Defato pela relaccedilatildeo de imanecircncia dasubstacircncia infinita ateacute suas modi-

ficaccedilotildees finitas na natureza natildeohaacute nenhum evento excepcionalpara aleacutem de suas leis eternas porisso nela natildeo pode haver o mi-lagre como evento que se sairiada ordem da natureza pois nestecaso a natureza deixaria de sera natureza Exatamente por suaessecircncia atuosa radicar na maiscompleta liberdade em Espinosahaacute uma natureza absolutamenteinfinita que em sua imanecircncia eacutenecessariamente e por completosempre renovada ou seja temosuma natureza que apenas produzcoisas ideias e essecircncias singula-res

Se a passagem do infinito aofinito eacute deduzida como afirmar-mos a partir da Proposiccedilatildeo 16 daParte I da Eacutetica a operaccedilatildeo in-versa ou seja a passagem entreo finito (modos finitos) e o infinito(a substacircncia uacutenica) seraacute realizadapela siacutentese dinacircmica como lei deinteraccedilatildeo entre partes que natildeo se-gue uma finalidade preestabele-cida ou um modelo exterior masconstitui um infinito de relaccedilotildeesque produz a si mesmo em umaordenaccedilatildeo imanente este e umdos pontos centrais da filosofia deEspinosa Contudo ela nos co-loca diante do seguinte problemacomo agir individualmente nointerior da finitude sendo partede um fluxo dinacircmico e absoluta-mente infinito Como desde seuinterior natildeo apenas ser uma parte

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mas ao se-la tambeacutem jaacute tomarparte ativa neste infinito Cremosque o grande problema reside nadificuldade para entender a po-sitividade de um sistema abertoainda mais quando este e absolu-tamente infinito

Heinrich Woumllfflin em Renas-cenccedila e barroco1 (1888) e em Con-ceitos fundamentais da histoacuteria daarte2 (1915) textos fundantes dosestudos contemporacircneos acercada pintura claacutessica e barrocamostra-nos como o estilo barrocoproduz a liberaccedilatildeo das formas deseu isolamento o princiacutepio da re-presentaccedilatildeo barroca sendo a subs-tituiccedilatildeo da composiccedilatildeo de formasfechadas da arte claacutessica por ummovimento visual em direccedilatildeo a umaunidade entre parte e todo queem uma visualidade fluida dis-solve a anterior estrutura riacutegidados contornos das figuras do es-tilo claacutessico Woumllfflin afirma oentendimento da experiecircncia dapintura do XVII como um orde-namento que se transforma diantedos olhos do observador

Se consideramos a passagementre finito e infinito um dos gran-des desafios que a filosofia de Es-pinosa enfrenta como emendar

(ou seja curar) um melancoacutelicoproblema matemaacutetico epistemo-loacutegico e ontoloacutegico produzindoa continuidade na passagem en-tre noacutes seres limitados (ou sejamodos finitos da substacircncia infi-nita) e o absolutamente infinitoindivisiacutevel (ou seja a substacircnciauacutenica) A emenda da incomensu-rabilidade numeacuterica e imaginaacuteriado infinito iraacute garantir ao enten-dimento a conduccedilatildeo a uma novasiacutentese intelectual de um infinitopositivo este natildeo mais definidoem termos negativos indefinidosou potenciais (que se contentamem delinear a constacircncia ou in-constacircncia de relaccedilotildees truncadasna justaposiccedilatildeo de partes) massim como um absolutamente infi-nito real em ato positivo e indi-visiacutevel

Ao abordarmos portanto apassagem entre finito e infinito3

na filosofia de Espinosa e as afir-maccedilotildees de Woumllfflin acerca do bar-roco surge-nos a pergunta comoconceber ordem em uma naturezaque mescla a parte e o todo e pre-servar uma identificaccedilatildeo sem queesta se torne uma identidade es-tanque tanto na filosofia que ex-pressa o absolutamente infinito da

1 WOLFFLIN H (2005) Renascenccedila e barroco Satildeo Paulo Perspectiva2 WOLFFLIN H (1984) Conceitos fundamentais da Histoacuteria da Arte Satildeo Paulo Martins Fontes 19843 O presente artigo faz parte de um conjunto maior de trabalho e pesquisa Assim as questotildees aqui propostas

podem ser lidas em continuidade agraves questotildees trabalhadas no artigo lsquoEspinosa melancolia e o absolutamente infi-nito na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrsquo (XAVIER 2016) que tematiza a passagem entre finito e infinitona filosofia de Espinosa

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substacircncia como no rompimentoda forma pela visualidade infini-tamente aberta do barroco Cre-mos que esta questatildeo constitui umdos problemas centrais de umaaproximaccedilatildeo criacutetica da filosofia deEspinosa agrave arte de sua eacutepoca Pararespondecirc-la iremos nos contrapora uma das mais ceacutelebres e histoacuteri-cas interpretaccedilotildees da relaccedilatildeo en-tre arte barroca e filosofia da ima-necircncia o drama da imanecircncia cu-nhado por Walter Benjamin Vere-mos que em uma perspectiva es-pinosana para aleacutem de um merodrama tal interpretaccedilatildeo seraacute umamelancoacutelica trageacutedia produzindouma teatralidade aporeacutetica quedilapida toda e qualquer positi-vidade para a ideia de imanecircnciaPara darmos conta deste dramaprecisaremos antes passar breve-mente por dois preacircmbulos duasinterpretaccedilotildees contemporacircneasuma de Gebhardt outra de De-leuze que relacionam a filosofiado seacuteculo XVII agrave arte seiscentista

Preacircmbulo I - Gebhardt Rem-brandt e Espinosa 1927

Em seu claacutessico texto intitu-lado Rembrandt e Espinosa CarlGebhardt em uma aproximaccedilatildeoentre a obra do filoacutesofo e a do pin-tor barroco afirma que

barroco daacute-lhes a inqui-etude de esboccedilos pri-vados de ordem e natildeofecha o ponto de vistaque devemos ter sobreeles a fim de que ainfinidade da obra dis-forme natildeo seja restrin-gida pela limitaccedilatildeo deuma forma (GEBHARDT2000 p106)

Gebhardt entende a composiccedilatildeoaberta barroca como algo privadode ordem cujo efeito produziriauma obra que natildeo seria restrin-gida pela forma fechada Prosse-guindo o autor extrapola tal ideiade matriz woumllffliniana ateacute chegaragrave radical conclusatildeo de que ldquoo Re-nascimento definiu a beleza comoa conspiraccedilatildeo das partes e a en-controu realizada na razatildeo natu-ral contudo a beleza do barrocoenquanto uma forma natildeo limi-tada eacute irracionalrdquo (GEBHARDT2000 p107) Gebhardt concluialgo sobre o barroco que buscaraacuteaproximar de Espinosa mas quecontradiz a proacutepria letra do filoacute-sofo De fato Gebhardt afirmaque algo por natildeo ser limitado seriairracional quando em Espinosaverificamos claramente o contraacute-rio pois de um lado a substacircn-cia ou o absolutamente infinito eacuteilimitado (em contraposiccedilatildeo ao li-mite que define o finito) mas eacute omais inteligiacutevel ou o mais racional

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de todos os seres (como vemos de-monstrado na Parte I da Eacutetica) suapotecircncia eacute livre porque determi-nada apenas por si mesma sendopor isso causa de si que flui na-turalmente por si mesma despro-vida de uma causa externa ou umlimite externo Por ser causa de siabsolutamente infinita eacute inteligiacute-vel pois a inteligibilidade decorredo conhecimento da causalidade ede suas accedilotildees ou seja a ausecircnciade limites conveacutem perfeitamentecom a razatildeo Contudo cremosque Gebhardt associa a deformi-dade e o irracionalismo agrave filosofiade Espinosa pois estaacute influenci-ado pela leitura de tradiccedilatildeo alematildeque vecirc em Espinosa uma opera-ccedilatildeo de dissoluccedilatildeo do singular noseio do absoluto como fora alme-jada pelos romacircnticos (Schellingprincipalmente) e que a partirde Hegel (inspirado em Bayle)toma a forma negativa de um acos-mismo4 Considerando na filoso-fia de Espinosa o absoluto comoindiferenciaccedilatildeo e indeterminaccedilatildeoabsolutas faltaria a essa filoso-fia um princiacutepio de identidadepara os modos finitos existindo

entatildeo realmente apenas a subs-tacircncia desprovida de qualidadese de diferenccedilas ndash portanto inde-terminada donde impensaacutevel ouirracional Em outras palavraso infinito eacute irracional e o finitoimpensaacutevel Gebhardt reproduzquase literalmente o texto hege-liano alegando que em Espinosaldquoabertura ao infinito da substacircn-cia acabaria com a possibilidadede existir identidadesrdquo e aindamais ele redobra essa afirmaccedilatildeopara o barroco de Rembrandt cujaobra seria uma arte espinosistaacosmista ldquoa categoria do bar-roco eacute a da substancialidade se-gundo a qual tudo o que eacute particu-lar possui apenas uma existecircnciarelativa tanto que a existecircncia ve-rificaacutevel pertence apenas agrave totali-dade infinita eis o que custo a di-zer (em relaccedilatildeo agraves coisas particu-lares) que soacute existe a substacircnciardquo(GEBHARDT 2000 p107)

4 Eacute vasta e complexa a criacutetica que Hegel faz a Espinosa contudo gostaria de insistir que um de seus pontos altoseacute identificaccedilatildeo da filosofia de Espinosa ao acosmismo Segundo Hegel na demonstraccedilatildeo espinosana da unidadeabsoluta da substacircncia o sujeito necessariamente se perderia se diluiria neste absoluto excluindo a possibilidadedo principio ocidental da individualidade Em grande parte a proacutepria dialeacutetica hegeliana e sua ontologia seriama tentativa de superar este dilema Nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de 1825-26 Hegel escreve no paraacutegrafode abertura de seu artigo sobre Espinosa ldquoEsta profunda unidade de sua filosofia [de Espinosa] tal como ela foiexpressa na Europa ndash o espiacuterito o finito e o infinito idecircnticos em Deus e natildeo mais como um terceiro termo[]rdquoe mais adiante no mesmo paraacutegrafo ele explicita o acosmismo de Espinosa ldquoo modo como tal [definido por Espi-nosa] eacute justamente o natildeo-verdadeiro e somente a substacircncia eacute verdadeirardquo (HEGEL 1970 Leccedilons sur lrsquohistoire dela philosophie Paris Gallimard verbete sobre Espinosa)

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Preacircmbulo II - Deleuze A dobraLeibniz e o barroco 1988

Gilles Deleuze na conclusatildeo de ADobra Leibniz e o Barroco segue eamplia uma ideia central no livrode Gebhardt de que obra de artebarroca opera a interaccedilatildeo ativa deuma continuidade entre o internoe o externo em um turbilhatildeo demovimentos que parece natildeo se de-limitar por nada nem por si sendocomo um gesto que se expandepara aleacutem de si mesmo em umamultiplicidade de relaccedilotildees simul-tacircneas5

O quadro eacute uma parte doinfinito que transborda damoldura a estaacutetua eacute umturbilhatildeo do rio infinitoque uiva por atraveacutes daigreja barroca e o espaccedilomesmo da igreja se cons-titui num quadro de altare uma estaacutetua natildeo eacute nadaoutro que a nave do infi-nito (GEBHARDT 2000p107)

Na versatildeo desdobrada de Deleuzeem uma das passagens mais belasdo livro

Se o Barroco instaurouuma arte total ou umaunidade das artes issose deu primeiramente emextensatildeo tendendo cadaarte a se prolongar emesmo a se realizar na se-guinte que a transbordaObservou-se que o Bar-roco restringiria frequen-temente a pintura e a cir-cunscreveria ao retaacutebulosmas isso ocorreria porquea pintura sai da sua mol-dura e realiza-se na es-cultura em maacutermore po-licromado e a esculturaultrapassa-se e realiza-sena arquitetura e a arqui-tetura a sua vez encon-tra na fachada uma mol-dura mas essa proacutepriamoldura desloca-se do in-terior e coloca-se em re-laccedilatildeo com a circunvizi-nhanccedila de modo que rea-liza a arquitetura no urba-nismo (DELEUZE 1991p187)

Ainda que o livro de Deleuze sejasobre Leibniz e o barroco a forccedilade tal ideia ndash que apresenta nas

5 Esta caracteriacutestica torna-se extremamente patente na produccedilatildeo artiacutestica seiscentista por exemplo no dramaem que palco fictiacutecio era posto no proacuteprio palco ou quando o auditoacuterio era incluiacutedo na cena (BENJAMIN W Ori-gem do drama barroco alematildeo Satildeo Paulo Brasiliense 1984) nas pinturas que possuem molduras pintadas dentroda sua representaccedilatildeo ou quando as proacuteprias molduras se tornam tatildeo importantes quanto as obras de arte por elascercadas no uso de espelhos da que refletem espaccedilos para aleacutem da proacutepria superfiacutecie da tela como nas Meninas deVelaacutezquez ou ainda na inacreditaacutevel dinacircmica dos movimentos em todas as direccedilotildees nas esculturas de Bernini

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obras de arte seiscentistas umacausa atuosa que faz com que elasse expandam tanto internamentequanto externamente em um con-tiacutenuo como uma multiplicidadede relaccedilotildees ativas ndash iraacute abalar aargumentaccedilatildeo deleuziana acercade Leibniz Ora a tal ideia natildeonos afastaria de Leibniz pois aforccedila desta poeacutetica que nos levaa interpretaacute-la como expressatildeo daideia de um infinito em ato ou ab-solutamente infinito que nuncapoderia ser a decorrecircncia de umapredeterminaccedilatildeo mas se consti-tui exatamente como a proacutepria or-dem de interaccedilatildeo e de transfor-maccedilatildeo de uma realidade conce-bida em ato a partir de partes in-tra partes6 Natildeo haveriacuteamos nosaproximado de Espinosa De fatoa ideia de uma ordenaccedilatildeo comouma abertura para uma multi-plicidade simultacircnea se aproximamuito da imanecircncia em EspinosaAssim a despeito da intenccedilatildeo deuma leitura leibniziana do bar-roco vemos Deleuze em sua do-bradura necessariamente chegara uma conclusatildeo que o distancia

de Leibniz Neste sentido o espi-nosismo influecircncia inegaacutevel nasobras de Deleuze ainda que natildeoseja mencionado explicitamentefaz sentir-se em sua presenccedila ma-ciccedila natildeo teriacuteamos em sua conclu-satildeo um barroco espinosano Eisque na conclusatildeo de A dobra Leib-niz e o barroco apoacutes uma longaaproximaccedilatildeo sistemaacutetica entre aharmonia preacute-estabelecida das mocirc-nadas e a harmonia da muacutesicabarroca em acordosacordes mocirc-nadas tocircnicasdominantes Deleuzefaz o inesperado e rompe a basemais elementar do pensamento deLeibniz abre as mocircnadas Es-tas que necessariamente sempreestariam submetidas agrave clausuraem cujo interior se incluiria o uni-verso inteiro (natildeo podendo haverexistecircncia fora delas) ao seremabertas romperiam diretamentetanto com a filosofia de Leibnizquanto com a proacutepria sistemati-zaccedilatildeo entre a harmonia musical ea harmonia metafiacutesica que o au-tor acabara de propor SegundoDeleuze a seleccedilatildeo que as mocircna-das operam acabaria por desapa-

6 Tanto Espinosa como Leibniz operam com a ideia de absolutamente infinito ou infinito em ato uma ideia quese contrapotildee agrave noccedilatildeo de um infinito potencial e acumulativo ou seja composto pela adiccedilatildeo de partes discretas Oinfinito em ato faz com que as partes sejam partes intra partes em que cada parte se prolonga ao tomar parte emnovas relaccedilotildees com outras partes constituindo dinamicamente um novo indiviacuteduo ainda mais complexo (ou am-plo) o que tambeacutem exige que cada pequena parte seja constituiacuteda tambeacutem de partes intra partes ainda menoresPor um lado natildeo existe algo como um aacutetomo ou uma unidade discreta miacutenima por outro tudo estaria ao mesmotempo em uma relaccedilatildeo que constitui sempre algo maior lembremos como Espinosa define a proacutepria noccedilatildeo do li-mite como isso que podemos conceber no interior de outro ainda maior e que o envolve o que nos levaria ao limitede conceber a natureza como um uacutenico indiviacuteduo isso eacute a ldquofisionomia total do universordquo como escreve Espinosa aOldenburg (na carta 32) Contudo Espinosa demonstra que ambos limites (tanto o atocircmico como a natureza comoum uacutenico individuo) satildeo entes abstratos sem realidade concreta na imanecircncia da substacircncia ou melhor satildeo apenasauxila imaginari auxiliares imaginaacuterios ou entes de razatildeo de nossas operaccedilotildees intelectuais

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recer e assim a harmonia univer-sal perderia todo o seu privileacutegiode ordenaccedilatildeo e as dissonacircnciasagrave harmonia jaacute natildeo teriam de serldquoresolvidasrdquo e as divergecircncias po-deriam ser afirmadas em seacuteriesque escapariam agrave predetermina-ccedilatildeo e assim dissolver-se-ia a proacute-pria harmonia preestabelecida Se-gundo Deleuze

dir-se-ia que a mocircnada ocavaleiro de vaacuterios mun-dos eacute mantida semiabertacomo que por pinccedilasUma vez que o mundo eacuteagora constituiacutedo por seacute-ries divergentes (caosmos)ou que o lance de dadossubstitui o jogo do Plenoa mocircnada jaacute natildeo podeincluir o mundo inteirocomo um ciacuterculo fechadomodificaacutevel por projeccedilatildeomas ela se abre a uma tra-jetoacuteria ou espiral em ex-pansatildeo que se distanciacada vez mais de um cen-tro Jaacute natildeo se pode dis-tinguir entre [] o estadoprivado de uma mocircnadadominante (que produzem si mesma seus proacute-prios acordosacordes) eo estado puacuteblico das mocirc-nadas em multidatildeo (que

seguem linhas de melo-dia) mas as duas entramem fusatildeo numa espeacutecie dediagonal em que as mocirc-nadas interpenetram-semodificam-se [] consti-tuindo outras tantas cap-turas transitoacuterias A ques-tatildeo eacute sempre habitar omundo mas o habitat mu-sical [] e o habitat plaacutes-tico [] natildeo deixam sub-sistir a diferenccedila entre ointerior e o exterior en-tre o privado e o puacuteblicoeles identificam a varia-ccedilatildeo da trajetoacuteria e dupli-cam a monadologia comuma ldquonomadologiardquo (DE-LEUZE 1991 p 208)

Assim as mocircnadas satildeo desdobra-das em uma atividade muito proacute-xima agrave nossa concepccedilatildeo de ima-necircncia Leibniz ficaria horrori-zado mas a despeito de suas in-tenccedilotildees Deleuze estaacute correto poispara tornar a monadologia ade-quada ao que houve de mais radi-cal na arte do XVII esta teria quemudar a sua base mais elementara proacutepria mocircnada aproximando-se ao que com maior intensidadeprocurou negar a filosofia de Es-pinosa7

Neste turbilhatildeo imanente de

7 Cabe lembrar que em uma carta a Bourget Leibniz afirma que se natildeo fossem as mocircnadas sua filosofia cairiano espinosismo

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uma arte que cada gesto semqualquer predeterminaccedilatildeo trans-borda a si mesmo em um extremoimaginaacuterio onde o pintor se tornaurbanista e vice-versa eis queneste limite da imanecircncia ldquoas es-culturas satildeo aiacute verdadeiros perso-nagens e a cidade eacute um cenaacuteriosendo os proacuteprios espectadoresimagens pintadas ou esculturas Aarte inteira se torna socius espaccedilosocial puacuteblico povoado de baila-rinos barrocosrdquo (DELEUZE 1991p 187) como escrevera DeleuzeNesta arte em que a imagem deum desenho transborda-se na ar-quitetura naturalmente acaba-mos por atingir a proacutepria cidadeem sua realidade soacutecio-histoacutericaenquanto mais um limite destaldquorepresentaccedilatildeordquo poeacutetica Nestesentido temos uma arte que in-clui o espectador real em seu atopoeacutetico de transformaccedilatildeo (cria-ccedilatildeo) uma arte que natildeo se con-tenta em ser a mera representaccedilatildeode um modelo de beleza abstratoideal ou transcendente mas buscamesclar-se agrave proacutepria realidade vi-vida na e pela proacutepria cidade As-sim muito distante da busca deum ideal externo que transcendaa proacutepria realidade do artista te-mos uma arte que natildeo mais podeser tomada enquanto mera repre-sentaccedilatildeo ideal mas eacute efeito da eprocuraraacute voltar-se para a proacutepriarealidade em que toma parte nainterioridade de um discurso e de

uma accedilatildeo histoacuterica em pleno de-senvolvimento Assim chegamosa uma arte que sequer representaa realidade mas eacute parte de seuproacuteprio discurso social poeacuteticoe histoacuterico Contudo devemosnos lembrar que a multiplicidadedestes artistas-atores bailarinos-espectadores (e demais variaacuteveisatuantes) neste teatro vivo dan-ccedilam uma muacutesica imanente semuma harmonia preestabelecida quelhes fornecesse uma continuidadelinear e simples de suas tramasnarrativas

II - Drama da imanecircncia - Ben-jamin Origem do drama barrocoalematildeo 1928

O drama da imanecircncia seraacute figu-rado em uma das leituras filosoacute-ficas mais famosas e instigantesacerca do universo da arte seis-centista a Origem do drama bar-roco alematildeo de Walter Benjaminfazendo com que a multiplicidadesem predeterminaccedilatildeo da imanecircn-cia assuma um contorno comple-tamente contraacuterio ao espinosanopois esta seraacute tomada negativa-mente como um saldo de aleato-riedade e melancolia

Pretendemos mostrar como asprincipais ideias presentes nosdois preacircmbulos tambeacutem estatildeode certo modo articuladas e de-senhadas por Benjamin ao relacio-

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nar a imanecircncia a mais uma formade arte barroca o teatro Noprimeiro preacircmbulo vimos comoGebhardt concebe a imanecircncia ea visualidade da pintura barrocaenquanto formas natildeo limitadas eportanto irracionais No segundopreacircmbulo analisamos que paraDeleuze a imanecircncia e a muacutesicabarroca satildeo compreendidas comoaberturas para uma multiplici-dade de relaccedilotildees simultacircneas queem ato negam qualquer predeter-minaccedilatildeo proveniente de uma har-monia metafiacutesica transcendenteNesta uacuteltima parte analisaremoscomo tais teses encontram-se en-trelaccediladas na imanecircncia articu-lada entre irracionalidade e a ne-gaccedilatildeo de qualquer predetermina-ccedilatildeo transcendente que constituema chave da compreensatildeo do filoacute-sofo alematildeo acerca o luto que re-cobre a essecircncia mais iacutentima dodrama alematildeo seiscentista que en-contraraacute no solo histoacuterico sob o re-gime da imanecircncia um dos prin-cipais motivos se natildeo o proacutepriopara o desacerto do mundo

Benjamin conceberaacute a imanecircn-cia como um poccedilo de melancoliaque contrariamente agrave vitalidadeda proposta por Espinosa seraacute fi-gurada eminentemente na alego-ria de um cadaacutever assim con-duzimos nossa anaacutelise natildeo exa-tamente para uma obra de artemas para o interior de uma dasleituras mais melancoacutelicas acerca

do periacuteodo barroco onde vemoso drama da imanecircncia na expres-satildeo concebida Benjamin se trans-formar em uma pilha de corposA consequecircncia radical da assi-milaccedilatildeo da imanecircncia agrave cena te-atral alematilde seria o efeito quaseimediato da accedilatildeo histoacuterica de ummundo religiosamente incapaz deascender ao plano transcendentepois o misteacuterio da crocircnica cristatildeque abrangia a totalidade da his-toacuteria universal natildeo poderia maisser encontrado quando segundoBenjamin

a cristandade europeia es-tava dividida numa mul-tiplicidade de reinos cris-tatildeos cujas accedilotildees histoacuteri-cas natildeo mais aspiravama transcorrer dentro doprocesso de salvaccedilatildeo Oparentesco entre o dramabarroco e o misteacuterio eacuteposto em questatildeo pelo de-sespero radical que pare-cia ser a uacuteltima palavrado drama cristatildeo secula-rizado (BENJAMIN 1984p101)

De fato vaacuterios seacuteculos de cristia-nismo que precederam o XVII ti-nham no misteacuterio transcendenteda Graccedila Divina a garantia do seusentido uacuteltimo por uma histoacuteriauniversal ideal e revelada que nos

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conduziria em direccedilatildeo a nossa re-denccedilatildeo e assim todas as accedilotildeesdas mais simples na vida cotidi-ana ateacute as decisotildees mais contun-dentes e complicadas do Estadoteriam os seus papeacuteis justificadosainda que em um horizonte paraaleacutem de uma histoacuteria empiacuterica eprincipalmente para aleacutem do en-tendimento humano SegundoBenjamin o drama alematildeo aocontraacuterio do barroco literaacuterio ibeacute-rico teria se perdido inteiramentena desesperanccedila da condiccedilatildeo ter-rena e mesmo a renascenccedila comseu intenso desenvolvimento hu-manista em comparaccedilatildeo agrave condi-ccedilatildeo alematilde natildeo apareceria comouma eacutepoca increacutedula de paga-nismo mas como uma era profanae de grande liberdade miacutestica e re-ligiosa (BENJAMIN 1984 p 102)

Vemos entatildeo configurar-se noXVII alematildeo a origem do dramada imanecircncia expressatildeo cunhadapor Benjamin como a imanecircnciaque em si mesma nunca poderiaser aceita como um bem mas simentendida como um castigo neces-saacuterio enviado por Deus devido aomais antigo dos pecados o ori-ginal cometido por Adatildeo Nestaperspectiva a imanecircncia seria acondenaccedilatildeo de uma vida longe deDeus o personagem barroco re-baixado agrave mera condiccedilatildeo humanaseria completamente incapacitadoda existecircncia sacra e mesmo omundo que o cerca estaria aban-

donado por Deus constituindo-se como uma physis cega a proacute-pria natureza em um estado depura aleatoriedade Eis que maisbaixo que os animais que habita-riam um estado de ignoracircncia ino-cente restaria ao personagem bar-roco apenas o martiacuterio da culpa dehaver se perdido de Deus O bar-roco teria se perdido das leis queordenariam a vida mundana es-sas completamente derivadas deuma causa transcendente isto eacuteda vontade divina Leis que nainterpretaccedilatildeo de Benjamin fariamcom que a accedilatildeo humana carecessede qualquer poder efetivo e tam-beacutem de qualquer contingecircnciapois todas as accedilotildees seriam no maacute-ximo um produto secundaacuterio se-guindo a predeterminaccedilatildeo da von-tade divina no maacuteximo as suasaccedilotildees teriam um papel acessoacuteriocomo no ocasionalismo de Male-branche Esta causalidade trans-cendente que fornecera o sentidocomum a todos os seres humanosseria irreparavelmente fraturadanum seacuteculo XVII reformado emque o avanccedilo da ideia de imanecircn-cia irremediavelmente se propa-garia com sua exigecircncia de umavida em todos sentidos terrena eprofana

A imanecircncia nos forccedilaria aabandonar a imagem da ordemuniversal e predeterminada a par-tir de um aparato transcendenteEssa seria a velha imagem de or-

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dem transcendente que seria di-lapidada em prol de uma novaordem imanente como nos de-monstra a filosofia de Espinosapor um lado com esta na ausecircn-cia de qualquer transcendecircnciateriacuteamos que abandonar a ideiade uma predeterminaccedilatildeo em umavontade divina assim como a pos-sibilidade de que a Terra se es-pelhasse em leis divinas e tam-beacutem abandonar qualquer possiacute-vel redenccedilatildeo escatoloacutegica extrater-rena aleacutem disto a proacutepria ciecircn-cia que conceberia uma naturezahierarquizada dividida nas opo-siccedilotildees reais de categorias e gecircne-ros herdadas de Aristoacuteteles quepercorreriam toda a Idade Meacute-dia torna-se apenas um aparatoimaginaacuterio assim como os con-ceitos transcendentais como uni-dade ser verdade etc capazesde identificar qualquer objeto ourealidade tomados apenas comoentes de imaginaccedilatildeo e por fimmas natildeo por uacuteltimo em sua listade efeitos hereacuteticos qualquer fi-nalismo no seio da natureza de-veria ontologicamente ser aban-donado Como resultado da ima-necircncia chegariacuteamos agrave anulaccedilatildeo dequalquer teologia e mesmo tele-ologia Assim instala-se o malverdadeiro neste mundo barrocoreformado pois julgando o sen-tido da imanecircncia a partir dos en-raizados paracircmetros imaginaacuteriosda antiga ordem transcendente

fazemos da imanecircncia a imagemde algo absolutamente caoacutetico esob tais termos o drama da ima-necircncia barroca eacute necessariamentecompreendido como o efeito dacataacutestrofe de uma natureza abso-lutamente aleatoacuteria e desprovidade sentido E segundo Benjamin

se e homem religioso doBarroco adere tanto aomundo eacute porque se sentearrastado com ele em di-reccedilatildeo a uma catarata Obarroco natildeo conhece ne-nhuma escatologia o queexiste por isso mesmo eacuteuma dinacircmica que junta eexalta todas as coisas ter-renas antes que elas se-jam entregues agrave consuma-ccedilatildeo (BENJAMIN 1984 p89)

Contudo veremos que a grandecataacutestrofe melancoacutelica do dramada imanecircncia natildeo estaacute na ima-necircncia mas em um contraditoacute-rio sentimento barroco que porum lado exclui a transcendecircn-cia e por outro negativamenteainda a tem como um impossiacute-vel horizonte desejado Nestedrama a imanecircncia contraditori-amente apenas existe em relaccedilatildeo aaquilo que lhe eacute exterior ou sejaesta se apresenta como negaccedilatildeo datranscendecircncia Assim a imanecircn-

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cia eacute dada exclusivamente pelaperspectiva saudosista da trans-cendecircncia perdida Natildeo por acasoesta dramaturgia tem a imanecircnciaalegorizada no emblema do cadaacute-ver e a base de sua trama ocorresob o sentimento do luto diriacutea-mos que seria o luto de haver per-dido a proacutepria sacralidade trans-cendente Assim a vida nestedrama natildeo excederia ao estado deluto da lembranccedila do corte como divino o que provocaraacute o rei-nante sentimento de melancolia ea obsessatildeo pelo cadaacutever que mo-vem o drama alematildeo8 A proacuteprianoccedilatildeo da natureza imanente comouma physis cega e desgraccedilada poisaleatoacuteria soacute pode ser compreen-dida como a ideia de uma ima-necircncia incompleta e constituiacutedaapenas como a carecircncia da velhaordem predeterminada pela von-tade ou por um ideal transcenden-tes9 Ou seja a ordem imanenteeacute tida por aleatoacuteria pois a com-plexidade de sua ordem eacute a aber-tura para uma multiplicidade si-multacircnea que se desdobra no novoe excede a perspectiva restritae uniacutevoca de uma linha teleoloacute-gica desde sempre e para semprepredeterminada pela velha ordem

transcendente Por outro ladopara se encarar a imanecircncia com-pleta ou seja em sua plena po-sitividade seria preciso realmenteabandonar a velha ordem trans-cendente e natildeo fazer como a con-traditoacuteria maneira do drama bar-roco alematildeo que a nega somentepara interiorizaacute-la disfarccedilada soba forma de uma imanecircncia in-completa e melancoacutelica Con-tudo para a religiosidade aindaque reformada do barroco ale-matildeo seria quase impossiacutevel acei-tar um Deus realmente imanenteque natildeo fosse provido do atributohumano da livre escolha e da von-tade para realizar uma accedilatildeo lem-bremos como Espinosa na parte Ida Eacutetica demonstra como na ima-necircncia a espontaneidade da accedilatildeodivina na verdade segue de umanecessidade absoluta nunca preacute-refletida nem premeditada nemdecidida segundo uma escolha ar-bitraacuteria e esta seraacute a perfeiccedilatildeode uma accedilatildeo que decorre da ne-cessidade intriacutenseca da identidadeimanente entre essecircncia e existecircn-cia entre natureza naturante e anatureza naturada

8 Lembremos que em sua argumentaccedilatildeo Benjamin trabalha a gravura Melencolia I de Duumlrer como uma anteci-paccedilatildeo da amputaccedilatildeo do espiacuterito barroco expresso pelo drama da imanecircncia

9 Acompanhando Espinosa veremos justamente o contraacuterio do que propotildee o drama alematildeo pois se levarmosa rigor a possibilidade do mundo ser criado e ordenado por uma causa voluntaacuteria que lhe seja externa aleacutem deinuacutemeros problemas teoloacutegicos que restringem a proacutepria perfeiccedilatildeo de Deus teriacuteamos uma natureza desregrada econtingente como demonstra Marilena Chaui em lsquoOntologia do necessaacuteriorsquo quarto item do capiacutetulo 6 do Nervurado Real (CHAUI 1999 pp 901-918)

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Lembremos que para Espinosaum dos momentos cruciais davida eacutetica eacute afastar a tristeza so-bretudo a mais terriacutevel de todasas tristezas a melancolia e quepara ele ldquonatildeo haacute nenhuma coisaem que o homem livre pense me-nos do que na morte e sua sa-bedoria natildeo eacute uma meditaccedilatildeo so-bre a morte mas sobre a vidardquo(ESPINOSA 2015 p 483 EacuteticaIV P67) Natildeo poderia ser maiora distacircncia em relaccedilatildeo agrave concep-ccedilatildeo benjaminiana na qual a ima-necircncia eacute transformada na obses-satildeo com a morte sequer tratando-se da obsessiva reflexatildeo sobre ofim da vida mundana e os seusdesiacutegnios futuros no eterno aleacutemtuacutemulo (Inferno Purgatoacuterio e Pa-raiacuteso) mas como uma operaccedilatildeoque consiste em encarar a vida emsi mesma em seu estado presentee terreno jaacute como a encarnaccedilatildeoda morte Neste sentido o bar-roco de Benjamin sempre contraacute-rio agrave filosofia de Espinosa nuncaseraacute uma meditaccedilatildeo sobre a vidae ldquose os personagens do dramabarroco morrem [] se eles satildeodestruiacutedos natildeo eacute para que ascen-dam agrave imortalidade mas que as-cendam agrave condiccedilatildeo de cadaacuteverrdquo(BENJAMIN 1984 p241) As-sim em oposiccedilatildeo agrave vitalidade daconcepccedilatildeo espinosana o dramaalematildeo em sua imanecircncia nega-tiva produziria inuacutemeras coisasque ateacute entatildeo natildeo tinham entrado

em qualquer estruturaccedilatildeo artiacutes-tica como por exemplo as di-versas praacuteticas de martiacuterios cor-porais enumeradas por Benjaminnas quais fica expliacutecito o prazerda crueldade do dramaturgo e daspersonagens (que se deliciam como despedaccedilar da carne humana)Pois aos personagens de uma na-tureza desgraccedilada restaria da ima-necircncia somente o peso de seuscorpos cabendo-lhes apenas o lu-dismo sadomasoquista do martiacute-rio Dentre os diversos exem-plos citados por Benjamin saltaaos olhos a tentativa impossiacutevelde ascender a alguma significa-ccedilatildeo sacra por meio da ldquodissecaccedilatildeoanatocircmica em que as diversas par-tes do corpo satildeo numeradas comuma insofismaacutevel alegria na cru-eldade desse atordquo (BENJAMIN1984 p242) Pois se o corpohumano enquanto um organismovivo (em sua opulecircncia imanente)natildeo cabe na estreiteza de um iacuteconesimboacutelico que prometeria uma as-censatildeo as suas partes amputa-das classificadas e inertes talvezcoubessem Assim a imagem docorpo humano despedaccedilado seraacutemais uma das alegorias da ldquovidardquobarroca que no mais primoroso esaacutedico dilaceramento apenas pro-duz a dispersatildeo do corpo em umainuacutetil fragmentaccedilatildeo classificatoacuteriaem que inumeraacuteveis cortes apenasreconduzem agrave falta de sentido ao

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nada ao vazio10

lsquoIn Occasionemrsquo emblema CXXI do livro Emblemata de Andrea Alciato ediccedilatildeo de 1548

10Mais ainda para Benjamin o estado de exceccedilatildeo na poliacutetica seria fruto desta imanecircncia negativa que naturalmentelevaria agrave contraditoacuteria soberania dos tiranos Pois uma vez que a realidade natildeo possui uma ordem ao soberanoseria designada uma tarefa impossiacutevel dar ordem a isso que essencialmente eacute necessariamente desprovido delaAssim restar-lhe-ia um contraditoacuterio e inexoraacutevel papel tambeacutem de maacutertir pois sendo o soberano parte destamesma natureza as suas accedilotildees tambeacutem seriam desprovidas de ordem e somente pela violecircncia ele estabeleceriauma ordem social que contudo seria apenas a contingecircncia melancoacutelica redobrada Por outro lado em Espinosaa democracia eacute o mais natural dos regimes sendo explicado como um fruto da proacutepria imanecircncia Assim umdesdobramento futuro a ser desenvolvido por nossa pesquisa tem como horizonte a compreensatildeo da positividadeda imanecircncia na poliacutetica Gostariacuteamos de seguir as demonstraccedilotildees de como uma ontologia imanente eacute a causa daestruturaccedilatildeo da democracia real entendida por Espinosa como o mais perfeito dos regimes poliacuteticos e assim daruma resposta agrave equivocada aproximaccedilatildeo entre imanecircncia e estado de exceccedilatildeo

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Vimos como a experiecircncia hu-mana regulada pela imaginaccedilatildeoao buscar na natureza uma or-denaccedilatildeo preestabelecida linear euniacutevoca (como no drama de Ben-jamin) ao confrontar-se com amultiplicidade de uma ordena-ccedilatildeo imanente parece nos conde-nar a viver em um labirinto decontingecircncias de muacuteltiplas cau-sas simultacircneas em muacuteltiplos pla-nos de acontecimentos que estatildeoainda por cima em constantesmutaccedilotildees11 Como se estiveacutesse-mos obrigados a viver agrave mercecircda velha imagem feminina da for-tuna12 uma das alegorias mais fa-mosas da literatura barroca queno girar em falso de sua rodade uma mesma maneira arbitraacute-ria distribui e tira bens Con-tudo a Eacutetica de Espinosa vemjogar luz e reforccedilar o contrastedesta imagem desafortunada dolabirinto de contingecircncias produ-zindo um claro contraste em queo proacuteprio labirinto se desfaz aoexpor frente agrave multiplicidade doente absolutamente infinito umaacuterduo e complexo embora inequiacute-voco caminho rumo ao seu enten-dimento A Eacutetica sua obra maacute-xima nos fornece um claro exem-plo de como penetrar na ordem

imanente desta multiplicidade emato que imaginariamente tantoinspira o medo de nossa fragi-lidade frente agrave fortuna Pene-trar neste caminho implica ementender a proacutepria liberdade deuma natureza em um movimentoconstante de auto-diferenciaccedilatildeoou seja natildeo se busca simplificaacute-la ou estagnaacute-la mas reconhecera ordem desta transformaccedilatildeo in-cessante que apenas imaginaria-mente pode ser tomada enquantoaleatoriedade Entender acimade tudo seria um respeito ao queirredutivelmente eacute sempre com-plexo (e nunca poderia ser redu-zida a uma perspectiva simplesem uma linearidade predetermi-nada) Entender a sua complexi-dade eacute deslocar-se movimentar-se expandir-se e no interiordesta multiplicidade eacute conscien-temente ligar-se ao mundo o queao mesmo tempo significa agir ra-cionalmente pois eacute encontrar apotecircncia da mente humana imersano conhecimento da ordem fixa eimutaacutevel da natureza

Neste caso tambeacutem natildeo pode-mos cair no equiacutevoco da maacute e su-perficial interpretaccedilatildeo acerca doque seria ldquoa ordem fixa e imu-taacutevel da naturezardquo que nos leva-

11 Como Espinosa escreve na Eacutetica no escoacutelio da Proposiccedilatildeo 42 da Parte V ldquoCom efeito o ignorante aleacutem de seragitado pelas causas externas de muitas maneiras e de nunca possuir o verdadeiro contentamento do acircnimo vivequase inconsciente de si de Deus e das coisas[]rdquo (ESPINOSA 2015 p 579)

12 Como ilustrada no famoso emblema CXXI lsquoIn Occasionemrsquo do livro Emblemata de Andrea Alciato cuja pri-meira publicaccedilatildeo eacute de 1531

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ria a crer em um determinismo ndashou como se diz no XVII um fata-lismo ndash que impossibilitaria conce-ber a liberdade no interior da fi-losofia de Espinosa13 muito pelocontrario quando nos voltamoscom o filoacutesofo para a ordem e co-

nexatildeo necessaacuterias que definem anatureza imanente e que determi-nam a inteligibilidade de sua com-plexa atividade de transformaccedilatildeovemos que nesta se radica a maiscompleta liberdade

Referecircncias

ALCIATO A (1548) Emblemata PDF digital da ediccedilatildeo de 1548 obtidona internet

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DELEUZE G (1991) A dobra Leibniz e o barroco Campinas PapirusESPINOSA B (2015) Eacutetica Satildeo Paulo EduspGEBHARDT C (2000) Spinoza judaisme et barroque Paris Presses de

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Paulo Martins FontesXAVIER H (2016) ldquoEspinosa melancolia e o absolutamente infinito

na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrdquo In Cadernos Espi-nosanos nordm 35 pp 295-347

Recebido 02072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

13 O equiacutevoco imaginaacuterio de um fatalismo apenas ocorre quando supomos a ordem natural como linear e aliberdade como escolha voluntaacuteria em vista de fins

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225586

Haacute Abstraccedilatildeo de Si na Origem de Toda a Abstraccedilatildeo naFilosofia de Espinosa

[Is There an Auto-Abstraction within All Abstraction in Spinozarsquos Philo-sophy]

Rafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Inserido no contexto histoacuterico de criacuteticas agrave abstraccedilatildeo Espinosaretoma o tom de sua eacutepoca e faz severas advertecircncias contra as abstraccedilotildeesEntretanto a criacutetica espinosana difere de outras da mesma eacutepoca Acredi-tamos que a distinccedilatildeo de Espinosa ocorre porque para ele a abstraccedilatildeo natildeo eacuteapenas uma metodologia epistecircmica (o ato de separar e fragmentar os obje-tos do conhecimento) nem eacute o estabelecimento arbitraacuterio de princiacutepios paraconhecimento por meio da interferecircncia da vontade no intelecto Nossa hipoacute-tese eacute que para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorre quando a forccedila mental produtivanatildeo se encontra enquanto tal em outros termos quando a mente natildeo temconsciecircncia do seu proacuteprio produzir mdash eacute precisamente isso o que chamamosde abstraccedilatildeo de si Nosso artigo visa abordar essa hipoacutetese e apontar comoo conceito de abstraccedilatildeo de si pode auxiliar na interpretaccedilatildeo de algumas tesesespinosanas Ao final deste artigo analisaremos como o conceito de abstra-ccedilatildeo de si oferece uma chave interpretativa para a hipoacutetese-retoacuterica que abre oTratado Teoloacutegico-PoliacuteticoPalavras-chave abstraccedilatildeo Espinosa

Abstract Spinozarsquos criticism of abstraction retakes the common toneof his own time warning against etc Nevertheless the spinozistic critiquedifferentiates considerably from his contemporaries whereas he also criticizesome of the philosophers that stand against the concept of abstractions Webelieve that Spinozarsquos distinctiveness occurs because he consider abstractionnot only as some epistemic methodology (the act of select divide anddisintegrate the objects of knowledge) neither the arbitrary foundation ofprinciples for knowledge through the interference of Will in the Intellect Butrather as the productive mental force when it is not within itself thereforewhen the productive mental force isnrsquot what it should be as it naturally isIn other words when the mind has not the counscioness of its own work mdashitrsquos precisely this what we call auto-abstraction Moreover our article aimsto approach this hypothesis and elaborate how exactly the concept of self-abstraction can help us understand some of the spinozian thesis so that wemay focus on the rhetorical hypothesis that opens the Theological-PoliticalTreatiseKeywords abstraction Espinosa

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Atualmente realiza poacutes-graduaccedilatildeo latu sensu em Do-cecircncia do Ensino Superior (pela FARA - Faculdade Araguaia) Tambeacutem eacute membro do Programa de Direitos Humanos daPUC-Goiaacutes (extensatildeo) E-mail rarcanjo32gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-5359-885X

Professor da Faculdade de Filosofia da UFG Doutor em filosofia pela USP E-mail cnrz1972gmailcom ORCID

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RAFAEL ARCANJO TEIXEIRA

Em uma conceituaccedilatildeo geral abstrairconsiste em considerar a parte predi-cativa de uma sentenccedila separada desua parte nominal Em outras pa-lavras trata-se de tomar os predica-dos de maneira isolada desconside-rando que por definiccedilatildeo um predicadovincula-se a outra coisa sobre a qualele predica algo Podemos tambeacutemrecorrer agrave etimologia para compreen-dermos o que eacute uma abstraccedilatildeo Apalavra abstraccedilatildeo eacute a traduccedilatildeo por-tuguesa para o termo latino abstrac-tio que eacute originaacuterio de abstrahere eeste por sua vez eacute fruto da junccedilatildeodo prefixo ab (que tem o sentido deafastamento e distacircncia mdash como nocaso de abstinecircncia) com trahere (quesignifica puxar como no caso de ex-traho mdash extrair) Assim abstrahereem sua literalidade significa puxarpara longe separar e extrair algo dotodo ao qual pertence Abstracte eacute oque foi separado isolado ou afastadoAinda no niacutevel da linguagem valelembrar que os gramaacuteticos dividemos substantivos em abstratos e con-cretos Joseacute Vicente Ceacutesar comentaque satildeo considerados abstratos aque-les substantivos que natildeo subsistemsozinhos ndash em geral satildeo qualidadesde seres concretos como amor jus-ticcedila beleza etc Para Ceacutesar expres-sotildees como ldquoa bondade em pessoardquo satildeotentativas de concretizar substantivos

que por natureza satildeo abstratos (CEacute-SAR J V 1958 p 26) Ao con-traacuterio dos substantivos concretos quese referem agraves coisas cuja a existecircn-cia eacute autocircnoma os substantivos abs-tratos andam ldquoencostadosrdquo em sujei-tos (CEacuteSAR J V 1958) Domin-gos de Azevedo na Gramaacutetica Naci-onal de Lisboa classifica como abs-trato o ldquosubstantivo que designa pro-priedades ideais comuns a muitos in-diviacuteduos como virtude honra []e os adjetivos e os infinitos dos ver-bos substantivados pelo artigo expri-mindo qualidades ou sujeito indeter-minado como o belo o grande oviverrdquo (1889 p 43-4 apud idemp 28) Ceacutesar voltando-se maispara o terreno da filosofia comentaque na tradiccedilatildeo aristoteacutelica o ser en-quanto substacircncia (οὐσία) representaaquilo que natildeo depende ou natildeo de-corre de outro para ser e consequen-temente a substacircncia eacute a regiatildeo doconcreto Em contrapartida os aci-dentes se dividem em trecircs grupos (I)os que satildeo concretos (II) os que os-cilam conforme o uso e (III) os quesempre satildeo abstratos1 (CEacuteSAR J V1958) De acordo com Ceacutesar perten-cem ao primeiro grupo as categorias(ou predicamentos) que podem exis-tir sem estarem necessariamente vin-culadas a um sujeito a dizer lugar(ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) es-

1 Ceacutesar comenta que no caso da quantidade haacute uma oscilaccedilatildeo entre a gramaacutetica e a filosofia as gramaacuteticas tomam a quan-tidade como um substantivo concreto enquanto os filoacutesofos podem tomaacute-la em sentido transcendental e por isso de maneiraabstrata No caso o autor toma a posiccedilatildeo gramatical

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

tado (κεῖσθαι situs) haacutebito (ἔχεινhabere) Por sua vez encontram-seno grupo dos oscilantes a accedilatildeo (ποι-εῖν actio) e a paixatildeo (πάσχειν pas-sio) Finalmente quantidade (ποσόνquantitas) qualidade (ποιόν quali-tas) e relaccedilatildeo (πρός τι relatio) satildeopredicamentos abstratos uma vez queeles estatildeo intimamente vinculados aalgo (a um sujeito)2 A partir doque foi dito podemos observar queo termo abstraccedilatildeo geralmente apareceassociado (I) agrave ideia de impossibi-lidade de existecircncia concreta e autocirc-noma da coisa referida (II) agrave substan-tivaccedilatildeo daquilo que geralmente (ouconstantemente) eacute um adjetivo e (III)ao processo de isolar o predicado deum sujeito

Feitas essas consideraccedilotildees de acircm-bito geral faz-se necessaacuterio para ofim proposto neste artigo uma brevedigressatildeo a respeito do debate sobreas abstraccedilotildees no seacuteculo XVII Noacutes to-maremos dois exemplos paradigmaacuteti-cos Antoine Arnauld e Pierre Nicolecom a sua Logique e Francis Baconcom o Novum Organum Natildeo entra-remos nas minuacutecias dos textos dessesautores jaacute que antes de entrarmos nasanaacutelises do texto espinosano preten-demos fornecer ao leitor apenas umvislumbre amplo da discussatildeo seis-centista acerca da abstraccedilatildeo

Ao voltarmos nosso olhar para o

seacuteculo XVII vemos que o termo abs-traccedilatildeo possui sentidos diversos An-toine Arnauld e Pierre Nicole ex-plicam por exemplo no capiacutetulo Vda Logique que graccedilas agrave parca ex-tensatildeo de nosso espiacuterito soacute pode-mos compreender as coisas compos-tas de forma perfeita ldquose as conside-rarmos por partes e segundo os diver-sos aspectos que elas podem assumirrdquo(2016 [1683] p 81) e concluem ldquoeacuteisso que em geral se chama conhecerpor abstraccedilatildeordquo (idem ibidemndash itaacuteli-cos nossos) Deste modo para osjansenistas a abstraccedilatildeo eacute uma espeacuteciede metodologia que possibilita a com-preensatildeo das coisas complexas3

Arnauld e Nicole oferecem trecircsexemplos sobre essa maneira deldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo (I) a ana-tomia (II) a geometria e (III) o co-gito mdash que para noacutes eacute o mais abs-trato de todos Para eles o primeirocaso natildeo eacute uma abstraccedilatildeo propria-mente dita de fato o corpo eacute formadopor partes distintas uma das outrase seria impossiacutevel adquirir conheci-mento do corpo caso natildeo tomaacutessemosas suas partes separadas umas das ou-tras O exemplo anatocircmico eacute corres-pondente para os jansenistas ao casoda aritmeacutetica ldquotoda a aritmeacutetica sefunda tambeacutem nistordquo (idem p 82)Levando-se em conta que natildeo preci-samos de nenhuma capacidade espe-

2 Natildeo nos interessa aqui questionar a validade do comentaacuterio de Ceacutesar a respeito da loacutegica aristoteacutelica antes noacutes o citamosporque ele apresenta de maneira sucinta o sentido geral que o termo ldquoabstraccedilatildeordquo assume

3 Vale ressaltar que a definiccedilatildeo que Arnauld e Nicole oferecem para o ldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo manteacutem-se fiel agrave origemetimoloacutegica do termo abstraccedilatildeo que traz em si a ideia de separaccedilatildeo e extraccedilatildeo

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cial ou de grande esforccedilo para con-tar os nuacutemeros pequenos ldquotoda a arteconsiste em contar por partes aquiloque natildeo poderiacuteamos contar pelo todordquo(idem ibidem) Destarte ao lidarmoscom nuacutemeros grandes eacute preciso fa-zer na aritmeacutetica o que o anatomistafaz com o corpo decompor em partese consideraacute-las uma a uma em sepa-rado Isso torna evidente que no casoda metaacutefora anatocircmica Arnauld e Ni-cole tomam a abstraccedilatildeo como meto-dologia que procede em ordem analiacute-tica O segundo exemplo dado por Ar-nauld e Nicole eacute o dos geocircmetras quesegundo eles para melhor conheceros corpos extensos partem primeira-mente de apenas uma das trecircs di-mensotildees o comprimento (chamando-os de linhas) depois os consideramsegundo duas dimensotildees o compri-mento e a largura (chamando-os desuperfiacutecies) e por fim consideramos corpos extensos em todas as trecircsdimensotildees comprimento largura eprofundidade (chamando-os de soacuteli-dos ou corpos) (idem ibidem) Em-bora agrave primeira vista o meacutetodo ex-posto neste segundo exemplo pareccedilapossuir alguma coisa da ordem sin-teacutetica mdash jaacute que se procede do maissimples ao mais complexo ordem de

composiccedilatildeo mdash os jansenistas expli-cam que os geocircmetras ldquonatildeo supotildeemde maneira nenhuma que haja linhassem larguras ou superfiacutecies sem pro-fundidades tatildeo somente acreditamque se pode considerar o compri-mento sem prestar atenccedilatildeo agrave largura[]rdquo (idem p 83) O que ocorreno caso dos geocircmetras eacute tambeacutemuma separaccedilatildeo do complexo em par-tes ou melhor eacute pelo menos no mo-mento inicial uma desconsideraccedilatildeodos fatores de complexidade mdash as in-tersecccedilotildees entre as dimensotildees ParaArnauld e Nicole eacute essa metodologiaque torna o espiacuterito ldquocapaz de melhorconhecerrdquo (idem ibidem)4

O terceiro exemplo oferecido porArnauld e Nicole eacute mais peculiar eem nossa leitura eacute o que mais pro-priamente pode ser qualificado comoabstraccedilatildeo5 Trata-se do cogito univer-salizado para todos os seres pensan-tes Arnauld e Nicole explicam que seeu reflito sobre o fato de estar a pen-sar e neste caso sou eu o que pensaposso a partir de um processo de abs-traccedilatildeo ldquoaplicar-me na consideraccedilatildeode uma coisa que pensa sem prestaratenccedilatildeo ao facto de ser eu [] eue aquele que pensa sejam a mesmacoisardquo (idem p 84) Neste caso haacute

4 Aqui assim como no caso da anatomia e da aritmeacutetica a abstraccedilatildeo eacute tomada como um meacutetodo de aprendizagem Noprimeiro caso o meacutetodo de decompor em partes menores eacute adequado graccedilas agrave incapacidade da mente e agrave natureza dos objetosque satildeo compostos por partes No segundo caso o meacutetodo facilita o conhecimento de coisas que em sua concretude natildeo exis-tem separadas umas das outras Vale ressaltar que a maneira em que Arnauld e Nicole tomam a geometria aqui natildeo permiteque ela seja concebida como ciecircncia puramente conceitual Ao afirmar que no real natildeo haacute linhas sem largura Arnauld e Nicolevinculam geometria e extensatildeo aliaacutes o proacuteprio conceito de linha (sem largura) eacute tomado como uma abstraccedilatildeo que tem papelmeramente metodoloacutegico e didaacutetico

5 Isto eacute segundo uma perspectiva espinosana

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uma cisatildeo imposta entre o pensantee o pensamento cisatildeo que se mani-festa na passagem da ideia do ldquoeupensordquo para a consideraccedilatildeo ldquode umacoisa que pensardquo Essa cisatildeo permitea generalizaccedilatildeo do cogito como ex-plica Arnauld e Nicole ldquoassim a ideiaque eu conceberia de uma pessoa quepensa poderia representar-me natildeo so-mente a mim mas a todas as outraspessoas que pensamrdquo (idem ibidem)Neste caso a abstraccedilatildeo opera por ci-satildeo e generalizaccedilatildeo Isso eacute possiacutevelporque nas palavras dos jansenistasldquoperante uma mesma coisa que temdiferentes atributos pensamos numdeles sem pensar nos outros aindaque haja entre eles uma tatildeo-soacute distin-ccedilatildeo de razatildeordquo (idem p 83) A re-ferecircncia agrave distinccedilatildeo ldquotatildeo-soacute de razatildeordquoeacute importante pois no cogito natildeo eacutepossiacutevel separar realmente o pensantee o pensamento (da mesma maneiraque natildeo eacute possiacutevel separar um passe-ante do passear) No entanto eacute pos-siacutevel transportar o cogito para umainstacircncia abstrata e generalizante acoisa que pensa Esse transporte soacutepode ocorrer graccedilas agrave cisatildeo ldquotatildeo-soacute derazatildeordquo entre o eu pensante e o pen-

samento isso eacute soacute pode ocorrer namedida em que eacute desfeita a autorre-ferecircncia presente no ldquoeu pensordquo pormeio da extraccedilatildeo do ldquoeurdquo mdash o que Ar-nauld e Nicole chamam de desconsi-derar alguns atributos de uma coisa6Assim o que a Loacutegica de Port-Royalchama de abstraccedilatildeo eacute uma metodolo-gia que opera por meio da decompo-siccedilatildeo do concreto em conceitos cadavez mais elementares e gerais pro-cesso que possibilita a ida do singu-lar concreto ao universal Por vezesos jansenistas parecem misturar o meacute-todo analiacutetico com o processo de abs-traccedilatildeo Ainda assim nos trecircs exem-plos dados por Arnauld e Nicole parao ldquoconhecer por partesrdquo haacute menccedilotildeesa uma suposta ampliaccedilatildeo do conhe-cimento no primeiro exemplo eacute ditoque natildeo eacute possiacutevel possuir um conhe-cimento da anatomia ou realizar caacutel-culos aritmeacuteticos se natildeo decompor ocorpo ou os nuacutemeros em partes nosegundo exemplo essa separaccedilatildeo empartes constitui a maneira pela qualos geocircmetras conhecem os soacutelidos epor fim no terceiro exemplo a abs-traccedilatildeo permite a ascese ao mais gerale mais elementar (aleacutem de permitir a

6 Arnauld e Nicole oferecem um exemplo complementar deste terceiro modo de conceber as coisas abstratamente a pas-sagem da imagem de um triacircngulo agrave ideia de extensatildeo pura Este exemplo estrutura-se da seguinte maneira (I) supondo queeu tenha desenhado sobre o papel um triacircngulo equilaacutetero na medida em que eu considerar apenas este triacircngulo poderei terapenas a ideia de um triacircngulo (II) No entanto se eu afastar o meu espiacuterito da consideraccedilatildeo de todos os acidentes que o de-terminam ndash fatores de singularizaccedilatildeo ndash e se eu aplicar-me a pensar que se trata de uma figura limitada por trecircs linhas iguais euficarei apenas com a ideia de triacircngulo equilaacutetero (III) Se eu for mais longe e ignorar a igualdade entre as linhas considerandoque se trata apenas de uma figura determinada por trecircs linhas retas poderei formar uma ideia que representa todos os triacircngulosndash um conceito universal de triacircngulo (IV) Se aleacutem disso eu desconsiderar as trecircs linhas e focar apenas no fato de que se tratade uma superfiacutecie plana limitada por linhas poderei chegar agrave ideia de figura retiliacutenea e ldquoassim posso subir grau a grau ateacute apura extensatildeordquo (ARNAULD A NICOLE P 2016 [1683] p84) Curiosamente este exemplo inverte a ordem do segundomodo de conhecer por abstraccedilatildeo pois aqui o ponto de partida eacute o complexo (um singular concreto o desenho de triacircngulo)enquanto que laacute parte-se do ponto para a reta e desta para o plano ateacute chegar agrave ao corpo (o complexo)

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generalizaccedilatildeo de conceitos como nocaso do cogito)

Em sentido oposto agrave loacutegica de Ar-nauld e Nicole Bacon faz severas criacute-ticas agraves abstraccedilotildees No aforismo XXIIdo Novum Organum o baratildeo de Ve-rulam fala que enquanto a verdadeiravia para o conhecimento se deteacutem deforma ordenada nos dados da expe-riecircncia sensiacutevel e se eleva gradual-mente agraves coisas que realmente satildeoas ldquomais comuns na naturezardquo a ou-tra via ldquodesde o iniacutecio estabelece cer-tas generalizaccedilotildees abstratas e inuacuteteisrdquo(BACON 1999 p 36) Para Bacontanto a via do erro quanto a da ver-dade partem dos dados sensiacuteveis e daexperiecircncia ou seja as vias natildeo sedistinguem quanto agrave origem de seusconteuacutedos Partindo ambas de ummesmo ponto elas soacute podem se dife-renciar quanto ao meacutetodo No afo-rismo IX Bacon fala que todos osmales na ciecircncia se originam quandoldquoadmiramos e exaltamos de modofalso os poderes da menterdquo (idem p34) e tambeacutem no aforismo X eleressalta que a ldquonatureza supera emmuito em complexidade os sentidose o intelectordquo (idem ibidem) Aleacutemdisso para Bacon ldquoa mente anseiapor ascender aos princiacutepios mais ge-rais para aiacute se deterrdquo (idem p 36)Assim a abstraccedilatildeo ocorre quando amente voluptuosa natildeo se deteacutem nosdados primaacuterios passando a experi-ecircncia na carreira a fim de estabele-cer os princiacutepios pelos quais passaraacutea julgar os novos dados sensiacuteveis mdash

princiacutepios estes que teratildeo bases pre-caacuterias e por isso aproximaratildeo maisda ficccedilatildeo que do conhecimento ver-dadeiro No aforismo XLVIII Baconafirma que o intelecto humano jamaispode encontrar repouso agitado elesempre procura ir aleacutem ldquoDaiacute ser im-pensaacutevel inconcebiacutevel que haja umlimite extremo e uacuteltimo do mundoAntes sempre ocorre como necessaacute-ria a existecircncia de algo aleacutemrdquo (idemp 43) Para Bacon o intelectohumano em um determinado domiacute-nio de suas atividades (aquele da viaque conduz ao erro) se vecirc atormen-tado por questotildees agraves quais natildeo podeevitar e no entanto natildeo pode res-ponder Como ele fala no aforismoXLVI ldquoo intelecto humano quandoassente em uma convicccedilatildeo tudo ar-rasta para seu apoio e acordordquo (idemp 42) No aforismo XLIX Baconafirma que ldquoo intelecto humano natildeo eacuteuma luz pura pois recebe a influecircn-cia da vontade e dos afetos dondepoder gerar a ciecircncia que se querrdquo(idem p 43) Deste modo sendoo intelecto uma luz afetada pela von-tade ele tende a produzir a ldquociecircnciaque se querrdquo (idem ibidem) ou sejapode compor como ciecircncia o que lheapetecer A conclusatildeo desses enca-deamentos vem no aforismo LI noqual Bacon fala que ldquoo intelecto hu-mano por sua proacutepria natureza tendeao abstrato []rdquo e assim ldquoeacute melhordividir em partes a natureza do quetraduzi-la em abstraccedilotildeesrdquo (idem p44) Desta maneira Bacon toma as

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abstraccedilotildees num registro diferente dotomado por Arnauld e Nicole No No-vum Organum a abstraccedilatildeo natildeo apa-rece como o meacutetodo de divisatildeo empartes mas como negligecircncia confu-satildeo arrogacircncia e cupidez que levamao estabelecimento de princiacutepios ge-rais incapazes de apreender a concre-tude e complexidade da natureza Ne-gligecircncia porque o intelecto estabe-lece na carreira os princiacutepios sobre osquais iraacute fundamentar-se sem se de-ter cuidadosamente nos dados empiacute-ricos Confusatildeo porque sem o devidocuidado o intelecto acaba misturandoaquilo que lhe eacute proacuteprio mdash as abstra-ccedilotildees mdash com aquilo que eacute da naturezaArrogacircncia porque tal confusatildeo nascede um narcisismo epistecircmico no qualo homem admira desmedidamente oengenho de seu intelecto Cupidezporque o intelecto opera sob a influecircn-cia da vontade e por isso faz a ciecircn-cia ldquoque se querrdquo

Enquanto para Arnauld e Nicole aabstraccedilatildeo estaacute mais vinculada ao sen-tido etimoloacutegico do termo isto eacute aoprocesso de separaccedilatildeo e decomposi-ccedilatildeo para Bacon ela se aproxima doficcional por ser o estabelecimento dealguns princiacutepios abstraiacutedos de par-cas experiecircncias ndash de sorte confusase misturadas com elementos que per-tencentes apenas ao espiacuterito humanoO nuacutecleo dessa divergecircncia se encon-tra na maneira pela qual cada uma dasduas perspectivas toma a relaccedilatildeo ho-mem e natureza Partindo do pressu-posto agostiniano de uma ordem hie-

raacuterquica dos seres os jansenistas Ar-nauld e Nicole tecircm cravado em suasmentes as palavras de Agostinho noDe Vera Religione ldquoo que julga eacutemaior do que o julgadordquo (AGOSTI-NHO 1987 p 88) Sendo assimo espiacuterito humano possui ontologi-camente garantida a capacidade e odireito de julgar e determinar o co-nhecimento segundo uma lei proacutepriaou melhor dizendo segundo uma leique transcende agrave proacutepria natureza eque se encontra assegurada na proacute-pria iluminaccedilatildeo divina Bacon poroutro lado parte do pressuposto deque o intelecto humano ldquopor sua proacute-pria naturezardquo eacute corrompido Issofica mais evidente se tomarmos notado que Bacon fala em The Interpre-tation of nature e tambeacutem no Theadvancement of learning No pri-meiro Bacon escreve que o homemsendo investido por Deus desde a cri-accedilatildeo ldquoda soberania de todas as coi-sas [] natildeo tinha necessidade de po-der ou de domiacuteniordquo (BACON 1963p 217 op cit in ZATERKA 2004p 96-7) jaacute no Advancement Ba-con afirma que o verdadeiro fim doconhecimento eacute a ldquorestituiccedilatildeo e res-tauraccedilatildeo do homem agrave soberania e aopoder que ele tinha no primeiro es-taacutegio da criaccedilatildeordquo (idem p 222 opcit idem p 98) Para Bacon o ho-mem perdeu aquele poder que tiveranos primoacuterdios da criaccedilatildeo quando elefoi capaz de lsquochamar as criaturas pe-los seus nomes e comandaacute-lasrsquo (idemibidem) Eacute a perda desse domiacutenio

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que consiste na proacutepria fraqueza dointelecto Se no aforismo III do pri-meiro livro do Novum Organum Ba-con afirma que ldquociecircncia e poder dohomem coincidemrdquo eacute porque ele estaacuteconvicto de que o projeto cientiacutefico eacuteuma restauraccedilatildeo de um poderio per-dido Aleacutem disso se no mesmo afo-rismo Bacon afirma que se deve obe-decer a natureza para vencecirc-la issoocorre porque na perspectiva baco-niana o intelecto jaacute natildeo possui maisaquela forccedila e capacidade necessaacuteriapara a partir de si mesmo fazer a ci-ecircncia Natildeo devemos esquecer as pala-vras finais do segundo livro do NovumOrganum ldquoPelo pecado o homemperdeu a inocecircncia e o domiacutenio dascriaturas Ambas as perdas podemser reparadas mesmo que em parteainda nesta vida a primeira com a re-ligiatildeo e com a feacute a segunda com asartes e com as ciecircnciasrdquo (BACON1999 p 218)7 Deste modo pode-mos concluir a partir da anaacutelise doexemplo de Bacon e dos jansenistasArnauld e Nicole que o tema da abs-traccedilatildeo nos seiscentos ultrapassa os li-mites da mera epstemologia e aparece

envolto de questotildees teoloacutegicas Aleacutemdisso tanto Bacon quanto Arnauld eNicole se encaixam naquilo que pode-mos chamar de epistemologias da do-minaccedilatildeo o primeiro critica as abstra-ccedilotildees pois acredita que por meio dissoos homens poderatildeo recuperar o domiacute-nio sobre a natureza os segundos to-mam a abstraccedilatildeo como metodologiapois acreditam que os homens pos-suem ontologicamente garantida a ca-pacidade de domiacutenio Entretanto pa-radoxalmente nos dois casos citadosa abstraccedilatildeo aparece vinculada agrave in-capacidade humana seja entendidacomo meacutetodo para a sua superaccedilatildeoseja entendida como desdobramentode nossa fragilidade

lowast lowast lowast

Espinosa se insere no contexto dascriacuteticas modernas agraves abstraccedilotildees Re-tomando o tom criacutetico de sua eacutepocaele faz severas advertecircncias contraas abstraccedilotildees No TIE8 ele asseveraldquoum maacuteximo engano [] origina-sedo seguinte eles concebem as coisasabstratamente demaisrdquo (TIE sect74-5)Alguns paraacutegrafos agrave frente ele faz aseguinte exortaccedilatildeo ldquonunca nos seraacute

7 Eacute justamente essa concepccedilatildeo abstrata que Espinosa implode na abertura do TTP Noacutes faremos uma anaacutelise detalhada sobreisso no toacutepico deste artigo intitulado ldquoUm exemplo de como opera a criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo de si a abertura do TratadoTeoloacutegico-Poliacuteticordquo

8 As obras de Espinosa seratildeo citadas com as seguintes siglas e abreviaturas E Eacutetica demonstrada em ordem geomeacutetricaAs partes seratildeo indicadas em algarismos romanos Em algarismos araacutebicos acompanhados de abreviaturas seratildeo indicados asdefiniccedilotildees suas explicaccedilotildees os axiomas os enunciados das proposiccedilotildees suas demonstraccedilotildees os seus escoacutelios os prefaacutecios eo apecircndice exemplo E III P24 schol TIE Tratado da Emenda do Intelecto (lat Tractatus de Intellectus Emendatione) Osparaacutegrafos seratildeo indicados com sect seguido da numeraccedilatildeo correspondente (TIE sect7) As seguintes abreviaturas seratildeo utilizadaspara se referir agraves obras de Espinosa TTP Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico TP Tratado Poliacutetico CM Cogitata Metafiacutesica Todasas citaccedilotildees da Eacutetica satildeo referentes agrave traduccedilatildeo realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos da USP publicada em 2015 pelaEditora Edusp (referenciada na Bibliografia) Todas as citaccedilotildees do Tratado da Emenda do Intelecto satildeo referentes agrave traduccedilatildeode Cristiano Novaes Rezende publicada em 2015 pela Editora da Unicamp (referenciada na Bibliografia) As demais obras deEspinosa (incluindo do TTP e o TP) seratildeo citadas de acordo com as normas vigentes da ABNT para citaccedilotildees

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liacutecito enquanto tratarmos da Inquisi-ccedilatildeo das coisas concluir algo a par-tir de abstraccedilotildeesrdquo (idem sect93) As-sim Espinosa possui uma posiccedilatildeocontraacuteria agrave de Arnauld e Nicole jaacuteque para o filoacutesofo a abstraccedilatildeo jamaispode ser tida como um meacutetodo parao verdadeiro conhecimento Entre-tanto isso natildeo o aproxima de BaconAo contraacuterio ao ser questionado porOldemburg a respeito de quais errosele imputava a Bacon e a Descar-tes Espinosa responde que emboranatildeo esteja acostumado a assinalar oserros cometidos por outros iraacute ex-por os trecircs principais erros de ambosldquoprimeiro estatildeo muitiacutessimo distanci-ados de conhecer a primeira causa ea origem de todas as coisas [ de-pois] natildeo conhecem verdadeiramentea natureza da alma humana [ porfim] jamais aprenderam a causa doerrordquo (ESPINOSA 2014 p 42) Oconhecimento dessas trecircs coisas (acausa primeira a natureza da mentee a causa dos erros) eacute nas palavrasde Espinosa ldquoindispensaacutevel para oexato conhecimentordquo e ldquosomente oignora aqueles que carecem em ab-soluto de todo estudo e disciplinardquo(ESPINOSA 1988 p 82) Duras pa-lavras Espinosa natildeo se deteacutem apenasno anuacutencio dos erros alheios ele daacuteexemplos de como estes erros se tor-nam manifestos na teoria de Bacone Descartes No caso de Bacon Es-pinosa parafraseia os aforismos XLIXLVIII XLIX e LI do primeiro li-vro do Novum Organum resumindo-

os em trecircs conjuntos de crenccedilas queexemplificam os erros cometidos peloBaratildeo de Verulam (1) a suposiccedilatildeode que o entendimento humano errapor sua proacutepria natureza pois tudoconcebe segundo a sua imagem e natildeosegundo a imagem do universo (2)a crenccedila de que o intelecto por suaproacutepria natureza tende ao abstrato efinge ser fixo o que na verdade eacute cam-baleante e (3) que a vontade humanaeacute livre e mais ampla que o proacuteprioentendimento e que por isso ele natildeoeacute uma luz pura antes sofre interfe-recircncia da vontade e dos afetos Seconforme explica Liacutevio Teixeira paraEspinosa todos os erros que os filoacuteso-fos comentem envolvem algum niacutevelde abstraccedilatildeo entatildeo nosso filoacutesofo aocaracterizar como errada a criacutetica ba-coniana agrave abstraccedilatildeo acaba por apon-tar que a proacutepria criacutetica de Bacon eacuteuma abstraccedilatildeo Engenho

Diante do que foi exposto pode-mos perguntar em que Espinosa sedistingue dos filoacutesofos citados quantoao tema da abstraccedilatildeo Acreditamosque tal distinccedilatildeo ocorre porque paranosso filoacutesofo a abstraccedilatildeo natildeo con-siste apenas no ato de separar e frag-mentar os objetos do conhecimento enatildeo eacute o mero estabelecimento arbitraacute-rio de princiacutepios para conhecimentograccedilas agrave interferecircncia da vontade nointelecto Antes nossa hipoacutetese eacuteque para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorrequando uma forccedila produtiva da mentenatildeo se encontra enquanto tal em ou-tros termos quando a mente natildeo tem

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consciecircncia do seu proacuteprio produzirndash eacute precisamente isso o que chama-mos de abstraccedilatildeo de si Assim se nasformulaccedilotildees presentes na Loacutegica dePort-Royal e no Novum Organum oproblema da abstraccedilatildeo aparece comoum problema na relaccedilatildeo sujeito e ob-jeto acreditamos que em Espinosa aabstraccedilatildeo possui sua origem na re-laccedilatildeo do indiviacuteduo consigo mesmo9Para melhor fundamentar tal hipoacuteteseresolvemos dividir o texto a seguirda seguinte maneira primeiro co-meccedilaremos com um panorama a res-peito do tema da abstraccedilatildeo na obra deEspinosa depois entramos no temada abstraccedilatildeo de si por fim noacutes da-remos um exemplo de como operaa criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo desi Dessa maneira noacutes partiremos domais abrangente (a anaacutelise geral) ateacuteo mais concreto (um caso exemplarna obra de Espinosa o TTP) Prossi-gamos

O tema das abstraccedilotildees na obra deEspinosa

Em toda a sua obra Espinosa faz trintae trecircs menccedilotildees diretas ao termo abs-traccedilatildeo ou a algum termo derivado doradical latino abstrac Tais menccedilotildees

se distribuem em sua obra da seguintemaneira quatorze delas estatildeo no TIEonze na correspondecircncia de Espinosa(uma na Carta II oito na Carta XIIe duas na Carta XIX) uma no KVcinco na Eacutetica e por fim mais duasmenccedilotildees no TP Aleacutem das jaacute citadashaacute mais uma no prefaacutecio que Ludo-vicus Meyer fez para o PrincipiorumPhilosophie Entretanto a abordagemdo tema das abstraccedilotildees natildeo se limitaagraves jaacute citadas menccedilotildees Podermos ava-liar a importacircncia deste tema dentroda filosofia espinosana recorrendo aolevantamento feito por Samuel Ne-wlands sobre os diversos temas quesegundo o comentador aparecem re-lacionados a ele na obra espinosana

A visatildeo materialista da alma(TIE sect74)O paradoxo de Zenatildeo (carta12)Teoria da privaccedilatildeo do Mal(carta 19)Concepccedilotildees destorcidas so-bre a providecircncia e o co-nhecimento Divino (KV I 6CM II 7)Falsa concepccedilatildeo da fiacutesicamecacircnica (carta 12)Concepccedilotildees distorcidas daliberdade e da vontade hu-

9 Isso implica dizer que haacute um certo niacutevel de autorreferecircncia na questatildeo da abstraccedilatildeo em Espinosa ndash o que natildeo nos pa-rece absurdo diante do que eacute exposto no KV no Primeiro Diaacutelogo quando a Razatildeo responde para a Concupiscecircncia que ldquooentendimento eacute a causa de suas ideias [ ] pois que suas ideias dele dependem E de outro lado um todo tendo em vista sercomposto por suas ideiasrdquo (ESPINOSA B 2014 p 65) Isto eacute o entendimento natildeo produz seus conteuacutedos como realidadesexternas natildeo haacute cisatildeo entre o produzir e o produto do agir mental Essa identidade entre o entendimento como produtor de suasideias e o entendimento como a totalidade de suas ideias nos permite dizer que haacute uma espeacutecie de ldquorefluxordquo sobre o indiviacuteduoquando este produz ideias abstratamente Supomos que a supersticcedilatildeo seja uma das manifestaccedilotildees desse ldquorefluxordquo

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

mana (KV II 16 carta 2 EII P49s)Falsas concepccedilotildees acerca daperfeiccedilatildeo e da imperfeiccedilatildeo(E IV prefaacutecio)O problema do Mal (KV I6 E I apecircndice E IV prefaacute-cio)Formas de antropomorfismoteoloacutegico (E I apecircndice)O conceito de faculdadespsicoloacutegicas (KV II 16 EII P48s E II P49s)Os afetos de culpa louvor emeacuterito (E I apecircndice)Esteacutetica objetiva (E Iapp G282)Teleologia divina ou natural(E I apecircndice)Realismo Moral (CM I 6KV I 10 KV II 4 KV I 6E IV prefaacutecio)Ceticismo (E I apecircndice)(NEWLANDS S 2015 p74-5)

O levantamento realizado por Ne-wlands revela que temas caros agrave Espi-nosa (como a criacutetica ao livre-arbiacutetrioagrave teleologia e ao antropomorfismo)satildeo na verdade consequecircncias edesdobramentos das criacuteticas erigidaspelo filoacutesofo contra as abstraccedilotildeesEmbora seja assim o primeiro grandeestudo dedicado ao tema das abstra-ccedilotildees na filosofia de Espinosa soacute veioa ser realizado na segunda metade doseacuteculo XX Trata-se da tese de livre-docecircncia de Liacutevio Teixeira apresen-

tada ao departamento de filosofia daUniversidade de Satildeo Paulo em 1953mdash um marco histoacuterico nos estudos so-bre a filosofia de Espinosa Sob o tiacute-tulo A doutrina dos modos de percep-ccedilatildeo e o conceito de abstraccedilatildeo na filo-sofia de Espinosa a tese de Liacutevio natildeoera pioneira apenas por tratar do temadas abstraccedilotildees mas por apresentarum original e ineacutedito estudo a respeitodo Tratado da Emenda do IntelectoAteacute entatildeo o TIE era tido por muitos(e ainda eacute para alguns) como um textodemasiado juvenil no qual Espinosanatildeo expotildee propriamente a sua epis-temologia mas a de Descartes Con-tudo Liacutevio Teixeira mostra que as criacute-ticas agraves abstraccedilotildees presentes no TIEsatildeo fundamentais para compreender-mos a recusa de Espinosa ao dualismosubstancial cartesiano e agrave teoria da fa-culdade da vontade O ponto nevraacutel-gico da tese de Liacutevio Teixeira eacute a rela-ccedilatildeo que ele mostra haver entre a epis-temologia e a ontologia espinosanaSem este viacutenculo natildeo eacute possiacutevel en-tender o acircmago do conceito de abstra-ccedilatildeo em Espinosa o fato de que parao filoacutesofo as ideias abstratas natildeo satildeoapenas entes de razatildeo desprovidos derealidades extramental mas tambeacutemqualquer conceito concebido agrave partedo Todo Liacutevio comenta ldquoabstraireacute querer compreender a parte semo todo Ou melhor eacute atribuir reali-dade ao que eacute parcialrdquo (TEIXEIRAL [1953] 2001 p 11) Ora umavez que o Real para Espinosa consisteem uma uacutenica Substacircncia que eacute causa

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imanente de si mesma e dado quepara o filoacutesofo conhecer eacute conhecerpela causa (ir das causas aos efeitos)conclui-se que ldquosoacute podemos conhecera parte a partir do todo ou integradaao todordquo (idem ibidem) Ideias satildeoabstratas natildeo porque satildeo mutiladasconfusas e desordenadas ao contraacute-rio justamente porque satildeo concebi-das agrave parte do Real concreto (o Todo)eacute que elas seratildeo mutiladas confusas edesordenadas isto eacute abstratas Con-ceber uma ideia abstratamente signi-fica concebecirc-la fora de suas relaccedilotildees enexos Conceber algo fora dos nexosque o constitui significa concebecirc-loparcialmente sem clareza e distinccedilatildeoAleacutem disso Liacutevio Teixeira defendeque a teoria dos modos de percep-ccedilatildeoconcepccedilatildeo realizada por Espinosano Emendatione no Breve Tratado ena Eacutetica eacute ldquoum apelo ao aprofunda-mento da consciecircnciardquo que simulta-neamente ldquoconstitui o processo de eli-minaccedilatildeo do pensamento abstrato e aomesmo tempo a identificaccedilatildeo da almahumana com a Realidaderdquo (idem p171)

Seguindo a via aberta por LiacutevioTeixeira faccedilamos uma breve anaacutelisedas diversas apariccedilotildees do tema dasabstraccedilotildees na filosofia de EspinosaPodemos apreender a visatildeo que Es-pinosa tem dos conceitos abstratos setomarmos como exemplo o que o fi-

loacutesofo diz no KV I 6 (7) ldquotodas ascoisas particulares e somente elastecircm causa e natildeo as universais poisestas nada satildeordquo Tambeacutem no mesmocapiacutetulo do KV mas agora no sect9 Es-pinosa toma os conceitos de bem male pecado como abstraccedilotildees e por issocomo natildeo sendo ldquooutra coisa do quemodos de pensar e de maneira ne-nhuma coisas ou algo que tenhamexistecircnciardquo (itaacutelicos de Espinosa) Emoutra passagem do KV ndash a nota de ro-dapeacute do sect4 de KV II 16 ndash Espinosafala que os conceitos de vontade eintelecto enquanto faculdades do es-piacuterito natildeo passam universais concebi-dos a partir de abstraccedilotildees realizadas apartir de voliccedilotildees mentais singularese por isso conclui que enquanto ensrationis ldquonatildeo posso atribuir-lhes nadarealrdquo Jaacute nos CM I 1 Espinosa dizque gecircnero espeacutecie tempo nuacutemero emedida ldquonatildeo satildeo ideias de coisas e demodo algum podem ser colocados en-tre as ideias por isso tambeacutem natildeo tecircmeles nenhum ideado que exista neces-sariamente ou que possa existirrdquo

Para Samuel Newlands essestrechos parecem endossar queEspinosa manteacutem um ldquostrong-anti-abstractionism (SAA)rdquo10 (NE-WLANDS 2015 [I] p 256) Emoutros termos para Newlands essestrechos aparentemente reforccedilam quepara Espinosa as abstraccedilotildees nada satildeo

10 Literalmente antiabstracionismo forte11 ldquo(SAA) There are no such things as abstract objects According to SAA abstracta do not exist full stoprdquo (NEWLANDS

2015 [I] p 256)

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Assim de acordo com a SAA ldquonatildeoexistem coisas como objetos abstra-tos [] ponto finalrdquo (idem ibidem)11Assim o strong-anti-abstractionismse caracterizaria por uma postura me-ramente eliminativa tomando as abs-traccedilotildees como meras quimeras ou ir-realidades a serem descartadas12 En-tretanto em outras passagens do textoespinosano noacutes encontramos umaposiccedilatildeo mais moderada em relaccedilatildeoagraves abstraccedilotildees aquilo que Newlandschama de ldquoweak-anti-abstractionism(WAA)rdquo13 (NEWLANDS 2015 [I]257) Um dos trechos levantados pelocomentador para reforccedilar a sua hipoacute-tese eacute a passagem dos Cogitata I 1Laacute Espinosa usa o exemplo da teacutecnicamnemocircnica que consiste em estabe-lecer relaccedilotildees entre conteuacutedos men-tais diversos para explicar os univer-sais

Que haja certos modos depensar que sirvam para maisfirme e facilmente reter ascoisas [ ] consta-o sufici-entemente os que utilizamaquela notoacuteria regra de me-moacuteria pela qual para retere imprimir na memoacuteria umacoisa noviacutessima recorre-se a

outra que nos seja familiar eque com ela convenha []de modo semelhante [huncsimiliter in modum] os filoacute-sofos reduziram todas as coi-sas naturais a certas classesagraves quais recorrem quandoocorre-lhes algo novo e a quechamam de gecircnero espeacutecieetc (CM I 1)

Esse trecho insere-se na parte dos Co-gitata dedicada a explicar o que satildeoos entia rationis (entes de razatildeo) eem vista disso Newlands comentaque na perspectiva de um WAA ldquoosobjetos abstratos satildeo entidades [en-tities] dependentes da mente Maisespecificamente Espinosa pensa queas abstraccedilotildees satildeo representaccedilotildees con-fusas de uma mente finitardquo (NE-WLANDS 2015 [I] 257)14 Assimna leitura de Newlands os objetosabstratos satildeo representaccedilotildees determi-nadas pelos modos finitos de pensa-mento15 A sequecircncia do texto dosCogitata parece reforccedilar a tese de Ne-wlands afinal Espinosa afirma quequando se indaga o que eacute uma es-peacutecie nada mais busca-se ldquodo que anatureza deste modo de pensar queeacute deveras um ente e distingue-se de

12 Outras passagens parecem endossar uma posiccedilatildeo do tipo SAA por exemplo Espinosa no sect99 do TIE escreve que ldquoeacute neces-saacuterio desde o iniacutecio sempre deduzir nossas ideias [] a partir de um ente real para outro ente real de modo que seguramentenatildeo passemos a ideias abstratas e universais [ ] pois interrompem o verdadeiro progresso do intelectordquo

13 Literalmente antiabstracionismo fraco14ldquo(WAA) Abstract objects are mind-dependent entities More specifically Spinoza thinks abstracta are confused represen-

tations of a finite mindrdquo (NEWLANDS 2015 [I] 257)15 ldquoIn Spinozarsquos preferred ontology abstract objects are the representational contents of particular finite modes of thinkingrdquo

(NEWLANDS 2015 [I] 257)

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outro modo de pensar esses modosde pensar contudo natildeo podem serchamados de ideias nem podem serditos verdadeiros ou falsosrdquo (CM I1) Aleacutem disso Espinosa distinguea ficccedilatildeo da abstraccedilatildeo ao afirmar queum ente de razatildeo natildeo ldquodepende soacuteda vontade e nem consta de termosconectados entre sirdquo (idem ibidem)Vinculando isso com o sect93 do TIE mdashno qual Espinosa fala que devemosnos acautelar e nunca concluir algoa partir de abstraccedilotildees ao tratarmosda inquisiccedilatildeo das coisas evitandodessa maneira confundir o que estaacutesomente no nosso intelecto com o queestaacute na coisa mdash Samuel Newlands ca-racteriza o weak-anti-abstractionism(WAA) como sendo uma preocupaccedilatildeode Espinosa sobre os efeitos de pen-sarmos abstratamente ao investigar-mos a natureza a dizer a reificaccedilatildeoda abstraccedilatildeo no conteuacutedo da investi-gaccedilatildeo16

Embora a interpretaccedilatildeo de Ne-wlands seja riquiacutessima17 haacute algunspontos que eacute uacutetil lembrar ao lidarmoscom os textos do Cogitata primeiroEspinosa manteacutem-se proacuteximo da lin-guagem cartesiana como pode-se no-tar pela referecircncia agrave vontade Aleacutemdisso Espinosa define o ente de razatildeocomo ldquoum modo de pensar que servepara mais facilmente reter explicar e

imaginar as coisas entendidasrdquo (idemibidem ndash itaacutelico nosso) e natildeo comoldquorepresentaccedilotildees confusasrdquo comoafirma Newlands A respeito da ideiade representaccedilatildeo vale ressaltar queEspinosa eacute contraacuterio a tal concep-ccedilatildeo De fato na Eacutetica Espinosa serefere agrave ideia como ldquoconceito que amente forma por ser coisa pensanterdquo(EII D3 ndash itaacutelico nosso) Na explica-ccedilatildeo dessa definiccedilatildeo ele acrescenta queusou o termo ldquoconceitordquo em vez deldquopercepccedilatildeordquo com o objetivo de indi-car o caraacuteter ativo da mente EmboraEspinosa diga diversas vezes nos Co-gitata que os entes de razatildeo natildeo satildeoideias e natildeo podem ser chamados deideias mdash afinal toda ideia possui umcaraacuteter objetivo e os ens rationis natildeomdash ele natildeo fala que os entes de ra-zatildeo satildeo representaccedilotildees Antes elese refere aos entes de razatildeo com a ex-pressatildeo ldquomodum cogitandirdquo que numatraduccedilatildeo flexiacutevel poderia ser chamadode ldquomaneiras de pensarrdquo Assim osentes de razatildeo se aproximam maisde um modo de operaccedilatildeo mental doque de uma representaccedilatildeo objetivaTambeacutem eacute preciso ressaltar que nadefiniccedilatildeo oferecida por Espinosa aosentes de razatildeo no CM ele fala queeles auxiliam na retenccedilatildeo explicaccedilatildeoe imaginaccedilatildeo das ldquocoisas entendidas[res intellectas]rdquo (CM I 1) O que o

16 ldquoSpinozarsquos main concern is that thinking abstractly while ldquoinvestigating naturerdquo often leads to a confused reification ofabstractardquo (NEWLANDS 2015 [I] 265)

17 As consideraccedilotildees de Newlands sobre o tema das abstraccedilotildees em Espinosa satildeo muito importantes na medida em que eleaponta para o processo de reificaccedilatildeo da abstraccedilatildeo Aleacutem disso Newlands faz uma inovadora leitura sobre a aplicaccedilatildeo queEspinosa faz no campo eacutetico das criacuteticas agraves abstraccedilotildees

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nosso filoacutesofo aponta repetidamentenesse primeiro capiacutetulo dos Cogitataeacute que o erro em relaccedilatildeo aos entes derazatildeo estaacute em afirmaacute-los como entes[ens] isto eacute estaacute em confundir umamaneira de pensar com uma realidadeobjetiva Neste sentido eacute significa-tivo que Espinosa compare os entesde razatildeo com uma teacutecnica mnemocirc-nica A relaccedilatildeo estabelecida por Es-pinosa natildeo eacute entre tipos de entes (umreal e o outro apenas mental) antes arelaccedilatildeo eacute estabelecida entre uma teacutec-nica e o que eacute comumente chamadode ens rationis Por fim Espinosa ex-plica a origem da confusatildeo existenteem chamar uma maneira de pensar deens

a causa por que esses mo-dos de pensar satildeo tidoscomo ideias de coisas eacute quetatildeo imediatamente provecircme originam-se das ideias deentes reais que satildeo facil-mente confundidos com elaspor aqueles que natildeo atentammui cuidadosamente [accu-ratissimegrave attendum] dondetambeacutem lhes terem impostonomes como se para signi-ficar entes que existem forade nossa mente e chamandotais entes ou antes natildeo en-tes de entes de razatildeo (idemibidem)

A causa da confusatildeo estaacute no fato deconfundir o processo com o proces-

sado Aqueles que natildeo attendum ac-curatissimegrave tendem a cometer o errodenunciado no sect93 do TIE mistu-rar aquilo que estaacute somente no inte-lecto (processo) com aquilo que estaacutena coisa (processado) A esta confu-satildeo acrescenta-se mais uma originaacute-ria natildeo apenas da falta de uma caute-losa atenccedilatildeo mas tambeacutem da dilata-ccedilatildeo linguiacutestica atribui-se nomes aosprocessos mentais da mesma maneiraque se nomeia coisas Essa duplaconfusatildeo permite natildeo apenas o totaldesconhecimento da natureza da ati-vidade mental quanto a sua reificaccedilatildeonuma suposta coisa independente umsuposto ente Assim embora dis-cordamos de Newlands quando elechama as abstraccedilotildees de representa-ccedilotildees confusas da mente finita concor-damos com ele quanto ao fato do pro-cesso de abstraccedilatildeo envolver uma reifi-caccedilatildeo Entretanto a respeito deste uacutel-timo ponto gostariacuteamos de acrescen-tar que a reificaccedilatildeo natildeo ocorre ape-nas no uso das abstraccedilotildees (por exem-plo nas ciecircncias ldquoao lidarmos com ascoisas naturaisrdquo) mas sobretudo aproacutepria produccedilatildeo de conceitos abstra-tos envolve um processo de reifica-ccedilatildeo Nossa hipoacutetese eacute que os proacutepriosconceitos abstratos satildeo reificaccedilotildees deprocessos mentais na categoria geralde ente Reificaccedilatildeo essa que soacute eacute pos-siacutevel mediante o apagamento do caraacute-ter produtivo (e portanto causal) dasideias Isso evidencia porque Espi-nosa diz que da mesma maneira quea teacutecnica mnemocircnica eacute apenas uma

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maneira de pensar e organizar os da-dos de nossa memoacuteria assim tambeacutemas classificaccedilotildees como gecircneros espeacute-cies etc satildeo modos de pensar Toma-dos sob esse prisma os universais osgecircneros e as espeacutecies natildeo passariamde associaccedilotildees mentais arbitraacuterias18

19 mdash natildeo satildeo coisas mas operaccedilotildeesmentais

No entanto para ficar mais evi-dente o ponto levantado tomemos emconsideraccedilatildeo outro trecho da obra deEspinosa em que o filoacutesofo fala sobreo tema das abstraccedilotildees a nota h dosect21 do TIE Laacute o filoacutesofo explica quequando chegamos agraves conclusotildees demaneira abstrata eacute preciso sermos ma-ximamente cautelosos [caventibus]Espinosa informa que tais conclusotildeesainda que sejam verdadeiras ldquonatildeo es-tatildeo suficientemente protegidasrdquo con-tra confusotildees Que tipo de confu-sotildees Espinosa explica aquilo queos homens concebem abstrata sepa-rada e confusamente ldquoeles impotildee no-mes os quais jaacute satildeo usados por elespara significar outras coisas mais fa-miliares o que faz com que aquelascoisas sejam imaginadas do mesmomodo que estasrdquo (TIE sect21 nota ndash itaacute-licos nossos) Gostariacuteamos de focar

apenas um aspecto dessa nota a refe-recircncia agrave linguagem Espinosa afirmaque os homens atribuem aos concei-tos abstratos os mesmos nomes queusaram para significar coisas que lhessatildeo familiares [res familiaria] Destemodo a nota h parece solidaacuteria doCogitata ao afirmar que haacute uma trans-posiccedilatildeo do campo das abstraccedilotildees parao campo das coisas quando se nomeiaas primeiras da mesma maneira queas uacuteltimas Assim podemos afirmarque quando o campo semacircntico quediscursa sobre coisas [res] passa aser usado para referir-se agraves abstra-ccedilotildees ocorre um mascaramento dasproacuteprias abstraccedilotildees que se ocultamsob o manto supostamente liacutempido dalinguagem que discursa a respeito dascoisas

Acreditamos tambeacutem que essaconfusatildeo ou melhor transposiccedilatildeo deum conjunto de signos (palavras queversam sobre coisas) para um campodiverso (o campo semacircntico das ope-raccedilotildees mentais) explica a primeiraparte da nota h20 Antes de tudodevemos nos lembrar que os nomessatildeo signos que pertencem ao campoda imaginaccedilatildeo aleacutem disso sabemosque a razatildeo (conforme o exemplo da

18 Que o leitor natildeo confunda arbitraacuterio com livre-arbiacutetrio ou como associaccedilotildees estabelecidas pela vontade (o que aproxi-maria Espinosa de Bacon) Arbitraacuterio aqui eacute tomado em seu sentido mais fraco como algo que natildeo necessariamente possuicorrespondecircncia com os entes extramentais

19 Ora uma vez que as associaccedilotildees satildeo dependentes de semelhanccedilas os universais tendem agraves generalidades abstratas quenatildeo conseguem alcanccedilar singularidades Isso parece ser reforccedilado pelo que Espinosa no TIE sect93 quando conclui que ldquoa partirtatildeo somente dos axiomas universais o intelecto natildeo pode descer agraves coisas singularesrdquo Assim cruzando a passagem do CMcom o sect93 do TIE podemos entender o que foi dito em KV I 6 (7) a respeito de que somente as coisas particulares possuemcausa e as universais natildeo eacute que somente as coisas singulares satildeo de fato realidades existentes fora da mente isto eacute satildeo coisas

20 O iniacutecio da nota h diz que os homens no uso da razatildeo ldquose natildeo se acautelam incidiratildeo imediatamente em erros pois quandose concebem as coisas assim abstratamente e natildeo pela verdadeira essecircncia satildeo imediatamente confundidos pela imaginaccedilatildeordquo

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quarta proporcional nos sect23 e sect24 doTIE) muitas vezes opera pelo merocaacutelculo sobre os signos sem se darconta dos verdadeiros processos men-tais que estatildeo envolvidos em tal accedilatildeoSobre esse ponto vale retomar aquibrevemente as consideraccedilotildees de Cris-tiano Rezende em seu artigo Os Pe-rigos da Razatildeo Segundo Espinosaa inadequaccedilatildeo do terceiro modo deperceber no tratado da emenda do in-telecto O comentador argumenta quea razatildeo abre chancela para a abstraccedilatildeona medida em que opera de maneirameramente mecacircnica Apoiando-seno exemplo dado por Espinosa no sect24do TIE a respeito da quarta proporci-onal Cristiano Rezende conclui queldquoa razatildeo realiza certas operaccedilotildees loacutegi-cas sem que no entanto sejam real-mente efetuados todos os atos mentaisem que se baseiam os sinaisrdquo (RE-ZENDE C N 2004 p 111) Esteoperar agraves cegas pode degenerar-se emmera ldquoteacutecnica teoacutericardquo aplicada demaneira generalizada e indistinta aqualquer objeto Para Cristiano Espi-nosa diz que a razatildeo opera de maneiranatildeo adequada justamente porque

a maneira racional de conhe-cer agrave diferenccedila da intelec-tual corre o risco de limitar-se agrave aplicaccedilatildeo externa de uminstrumento de caacutelculo deutilidade inquestionaacutevel masem essecircncia indistinta de umcompetente trabalho admi-nistrativo sobre um ldquojogo de

signosrdquo Portanto o verda-deiro perigo [] eacute que a ra-zatildeo se tome e se decirc por autocirc-noma limitando a percepccedilatildeoa essa capacidade de super-visionar o mundo entatildeo re-duzido ao objeto X das ope-raccedilotildees racionais (idem ibi-dem)

Para o comentador essa operatividadeda razatildeo pode desdobrar-se numapostura fetichista na qual a pes-soa se entreteria mais com a eficaacute-cia das operaccedilotildees racionais do quecom o proacuteprio estar no mundo oque redundaria na pessoa deixar deldquojuntar-se ao mundo atraveacutes de suasconstruccedilotildeesrdquo (idem p 112) Emsuma Cristiano Rezende diz dandoum sentido espinosano para a frase deMerleau-Ponty que a percepccedilatildeo redu-zida agrave sua forma meramente racionaldesemboca ldquonuma ciecircncia que mani-pula as coisas sem habitaacute-lasrdquo (idemibidem) Assim atribuir agraves abstraccedilotildeesum campo semacircntico cujo o uso co-mum eacute direcionado agraves coisas podeem uacuteltima instacircncia abrir margempara as confusotildees da imaginaccedilatildeo jaacuteque a razatildeo ao atuar com signos tendea operar de maneira meramente calcu-lativa

A nota h do TIE nos lembra ou-tro texto aleacutem dos Cogitata e escritoposteriormente a ambas as obras oCompecircndio de Gramaacutetica HebraicaEspinosa dedica o capiacutetulo V de suagramaacutetica para explicar o que satildeo no-mes ldquopor nome entendo uma pala-

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vra pela qual significamos ou indica-mos algo que cai sob o entendimentordquo(ESPINOSA B 2014 p 418) Nasequecircncia Espinosa faz uma ressalvanem tudo o que cai sob o enten-dimento satildeo coisas mas tambeacutemldquoatributos de coisas modos e rela-ccedilotildees ou accedilotildees e modos de relaccedilotildeesde accedilotildeesrdquo (idem ibidem) Sendo as-sim a linguagem possui uma dilata-ccedilatildeo maior do que o campo proacuteprio dascoisas Disso a preocupaccedilatildeo de Espi-nosa em distinguir o que eacute um subs-tantivo o que eacute um adjetivo o que eacuteum nome relativo um particiacutepio uminfinitivo e um adveacuterbio Espinosaafirma veementemente que um subs-tantivo e um nome proacuteprio soacute podemser ditos de coisas singulares mdash ldquonatildeopodemos indicar senatildeo um indiviacuteduosingularrdquo (idem p 419 ndash itaacuteliconosso) Capiacutetulos a frente Espinosavolta a insistir que substantivos satildeonomes de coisas ldquonomes [] paraindicar as coisas de modo absolutordquo(idem p 432) Natildeo satisfeito Es-pinosa faz uma lista com exemplosnos quais demonstra o que eacute um ad-jetivo e o que eacute um substantivo Emsiacutentese em toda a primeira parte doCompecircndio Espinosa demonstra umapreocupaccedilatildeo atenuada em distinguiro que eacute um adjetivo e o que eacute umnome proacuteprio ou um substantivo Es-pinosa tambeacutem alerta que um nomerelativo como adjetivos etc soacute fazsentido em relaccedilatildeo a algo e por issolsquorepugna agrave natureza dos nomes proacute-priosrsquo (idem ibidem) A partir do

Compecircndio podemos conjecturar quena nota h ao afirmar que noacutes nome-amos abstraccedilotildees da mesma maneiraque nomeamos coisas Espinosa de-sejava apontar a tendecircncia de subs-tantivar aquilo que natildeo eacute e natildeo podeser qualificado como um substantivo(como eacute o caso das abstraccedilotildees)

Haacute em todos esses textos algo cen-tral que ateacute o momento natildeo demosmuita atenccedilatildeo a referecircncia agrave cautelaEspinosa fala na supracitada nota hque a confusatildeo ocorre aos que natildeosatildeo ldquomaximamente cautelosos [ma-ximegrave caventibus]rdquo nos Cogitata elefala que isso ocorre aos que natildeo atten-dum accuratissimegrave Isso indica quetais confusotildees que redundam na afir-maccedilatildeo de conceitos ou termos abstra-tos podem ser evitadas por meio dacautela e da atenccedilatildeo ao operar men-talmente de determinada maneira mdashno caso dos Cogitata ao fazer associa-ccedilotildees mentais e no caso do TIE ao pro-ceder de maneira analiacutetica indo dosefeitos para a causa Esse ponto nosinteressa pois acreditamos que todaabstraccedilatildeo envolve um certo desconhe-cimento de si Nossa hipoacutetese eacute quepara Espinosa os problemas originaacute-rios no uso dos conceitos abstratosnatildeo se estabelecem de maneira imedi-ata na relaccedilatildeo de um suposto sujeito eum objeto antes eles satildeo originaacuteriosdo fato de aquele que se coloca comosujeito natildeo se perceber enquanto pro-dutor das abstraccedilotildees Assim abre-seuma fenda entre o agir mental desteindiviacuteduo e o produto dessa accedilatildeo de

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

tal maneira que aquele que produz asabstraccedilotildees natildeo tem consciecircncia plenade seu proacuteprio produzir e nem dos re-sultados de sua produccedilatildeo Eacute precisa-mente isso que chamamos de abstra-ccedilatildeo de si E eacute este o proacuteximo foco denossa atenccedilatildeo

Haacute abstraccedilatildeo de si na origem detoda abstraccedilatildeo

Ateacute onde sabemos nenhum comenta-dor da obra de Espinosa usou a ex-pressatildeo abstraccedilatildeo de si no entantoa tradiccedilatildeo interpretativa jaacute trabalha eindica a presenccedila deste tema na filo-sofia espinosana haacute um certo tempoEm seu Nervura do Real MarilenaChaui ressalta que para Espinosauma vez que somos partes de umacausalidade imanente nossa mente eacuteconcebida como vis nativa e espon-tacircnea para o conhecimento (CHAUIM 1999 p 83) Isso significa quenossa mente na medida em que eacutepartiacutecipe do agir da Realidade agepor si mesma segundo a sua neces-sidade interna e as conexotildees entre assuas ideias ou seja a mente eacute nas pa-lavras de Espinosa um ldquoautoma spi-ritualerdquo Chaui chama a nossa aten-ccedilatildeo para as seguintes palavras de Es-pinosa no Breve Tratado ldquochamo oIntelecto de causa enquanto eacute causade seus conceitos (ou enquanto de-pende de seus conceitos) e o chamode todo enquanto constituiacutedo por to-dos os seus conceitosrdquo (ESPINOSAB 2012 p 65) Agrave guisa dessas pala-

vras Chaui comenta

nossa mente eacute uma potecircn-cia pensante que causa asuas proacuteprias ideias e as arti-cula com outras ideias [ ]Ideias satildeo pois aconteci-mentos mentais que quandoverdadeiras ou adequadassatildeo atos intelectuais quepotildeem sua proacutepria necessi-dade tanto quanto agrave sua gecirc-nese como quanto aos seusefeitos e agraves relaccedilotildees com ou-tras ideias afirmando o mo-vimento e o trabalho do pen-samento que somos e no qualestamos (CHAUI M 1999p 88 ndash itaacutelicos nossos)

Como acontecimento mental umaideia eacute originaacuteria na atividade internaagrave proacutepria mente na qual tambeacutem par-ticipa efetivamente Nas palavras deChaui a atividade mental consiste emcompreender a gecircnese das afecccedilotildeescorporais as relaccedilotildees necessaacuterias en-tre os corpos a gecircnese de suas proacute-prias ideias e as conexotildees necessaacuteriasentre elas de tal maneira a apreenderos nexos que constituem a realidadeinteira e as essecircncias singulares porela produzidas (idem ibidem) Eacute apartir da compreensatildeo dos nexos queconstituem as relaccedilotildees entre os cor-pos as relaccedilotildees entre as ideias e aarticulaccedilatildeo entre corpos e ideias quea mente pode enveredar-se por assim

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dizer na nervura do real Ou seja amente pode apreender-se como parteativa da Realidade Liacutevio Teixeirandash conforme o que comentamos an-teriormente ndash e Marilena Chaui nosmostram que para Espinosa a mentesoacute pode compreender-se como partede um Todo no momento em queela encontra-se em plena identidadeconsigo mesma Essa identificaccedilatildeonasce do esforccedilo reflexivo da menteem apreender a sua proacutepria gecircnesee a gecircnese de suas ideias O cora-ccedilatildeo dessa via interpretativa estaacute emmostrar que na filosofia espinosanao caminho reflexivo consiste simul-taneamente na saiacuteda das abstraccedilotildees ena descoberta da mente como partiacute-cipe da atividade do Real concreto mdasho que poderiacuteamos chamar de saiacuteda deuma condiccedilatildeo propriamente abstratana qual o proacuteprio homem se concebeagrave parte da realidade e do Todo Assimcruzando (I) a tese de Liacutevio Teixeirana qual a abstraccedilatildeo consiste em con-siderar a parte fora do todo (II) oscomentaacuterios de Marilena Chaui quemostram que a superaccedilatildeo da abstra-ccedilatildeo eacute a verdadeira entrada da mentena nervura do real isto eacute o seu en-contro consigo mesma como parteda atividade do Real (III) os traba-lhos de Cristiano Rezende nos quaisevidencia-se que para Espinosa a abs-traccedilatildeo envolve a construccedilatildeo de umaracionalidade meramente instrumen-tal e incapaz de compreender todosos atos mentais implicados em seuscaacutelculos e por fim (IV) as pesquisas

de Newlands que demonstram queo processo de abstraccedilatildeo envolvem areificaccedilatildeo dos conteuacutedos meramentementais qual eacute a conclusatildeo Peloprisma dessas interpretaccedilotildees a abstra-ccedilatildeo natildeo eacute apenas uma ideia confusae mutilada mas sobretudo um pro-cesso que reflui sobre o indiviacuteduo eenvolve uma perda de si mesmo Sejauma perda enquanto parte do Todo(Liacutevio Teixeira e Marilena Chaui)seja uma perda em relaccedilatildeo agrave cons-ciecircncia de suas proacuteprias atividadesmentais (Cristiano Rezende e SamuelNewlands) Acreditamos que tal in-terpretaccedilatildeo possui lastro no proacutepriotexto espinosano

Em nossa anaacutelise do texto espino-sano noacutes frisamos a repetida expres-satildeo espinosana ldquoda mesma maneirardquo(eodem modo no TIE e hunc simili-ter in modum no CM) Eacute muito cu-rioso que em vaacuterios dos momentosque Espinosa explica o processo deabstraccedilatildeo ele usa exemplos de outrosprocessos mentais que operam ldquodamesma maneirardquo Nos dois casos aquicitados (a formaccedilatildeo dos conceitos deespeacutecie e gecircnero no CM e o ato de no-mear na nota h do TIE) Espinosa usaexemplos comuns e cotidianos As-sim Espinosa parece vincular a abs-traccedilatildeo a uma atividade banal e semgrandes misteacuterios (o ato de nomearcalcular uma regra de trecircs ou uma teacutec-nica mnemocircnica) A diferenccedila entreessas accedilotildees comuns e as abstraccedilotildeesnatildeo nos parece estar associada aosprocessos dessas atividades A dis-

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tinccedilatildeo entre a teacutecnica mnemocircnica ea formaccedilatildeo dos gecircneros por exem-plo natildeo parece encontrar-se na loacutegicaoperativa pela qual cada um dessesprocessos ocorrem Antes ela pa-rece residir no grau de consciecircnciaque a pessoa tem a respeito do seuproacuteprio agir mental Um gecircnero eacuteformado hunc similiter in modum agraveteacutecnica mnemocircnica Nomeia-se umconceito abstrato da mesma maneiraque nomeia-se uma coisa A dife-renccedila poreacutem eacute que aquele que aplicae teacutecnica de associaccedilatildeo mental dasmemoacuterias sabe que fez tal associ-accedilatildeo e em consequecircncia sabe queela eacute arbitraacuteria e natildeo algo que existafora de sua mente Ocorre o mesmocom aquele que nomeia algo e sabeo que nomeou ainda mais sabe oque eacute nomear e que tipo de nomedar de acordo com o que se nomeiaPor outro lado aquele que concebeabstratamente ldquovive quase inconsci-ente de si de Deus e das coisasrdquo (EV P42 sch)21 Ou seja natildeo sabeque os gecircneros satildeo frutos de seu la-bor mental natildeo sabe o que nomeia enem sabe nomear O mais traacutegico eacuteque este natildeo saber permite a reifica-ccedilatildeo do labor mental numa abstraccedilatildeoque aparece para o indiviacuteduo comocoisa real desconectada dele e a elerevelada Quando operamos de ma-neira abstrata confundimos os frutos

de nosso trabalho mental com desco-bertas que aparecem como indepen-dentes de noacutes e existentes em si mes-mas A abstraccedilatildeo envolve um modode produccedilatildeo no qual a causalidadeimanente eacute apagada em detrimento deuma causalidade transitiva que pendepara o transcendente de tal maneiraque produtor e o produzido natildeo seidentificam Aliaacutes essa eacute a marca dacausalidade transcendente a cisatildeo ir-remediaacutevel entre causa e efeito

A urgecircncia de um autoconheci-mento aparece diversas vezes no TIENo sect105 do TIE Espinosa escreveque o meacutetodo para se chegar ao co-nhecimento das coisas eternas eacute refle-xivo e consiste em conhecer o proacutepriointelecto suas forccedilas e suas propri-edades Tambeacutem no mesmo paraacute-grafo Espinosa fala que este autoco-nhecimento por parte do intelecto eacute omeio para a aquisiccedilatildeo do fundamentoa partir do qual ldquodeduziremos nos-sos pensamentos na medida em quenossa capacidade suportardquo No sect25TIE o primeiro ponto levantado porEspinosa para alcanccedilar o ldquonosso fimrdquoaquele que se encontra no sect13 doTIE (o ldquoconhecimento da uniatildeo que amente tem com a Natureza inteirardquo ndashque eacute tambeacutem a saiacuteda da abstraccedilatildeo) eacuteldquo(i) Conhecer exatamente a nossa na-tureza que desejamos aperfeiccediloar esimultaneamente da natureza das coi-

21 Eacute importante lembrarmos que quando Espinosa critica Descartes e Bacon agrave Oldemburg na Carta II ele fala que ambos osfiloacutesofos encontram-se em situaccedilatildeo relativamente proacutexima da citada neste escoacutelio ldquoo primeiro e maior erro de ambos consisteem que estatildeo muitiacutessimos distanciados de conhecer a primeira causa e a origem de todas as coisas [Deus] A segunda eacute quenatildeo conhecem verdadeiramente a natureza da alma humana [inconsciecircncia de si]rdquo (ESPINOSA 2014 p 42)

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sas quanto seja necessaacuteriordquo (TIE sect25ndash itaacutelicos nossos) De outro modosair da abstraccedilatildeo e conhecer a uniatildeoque a nossa mente tem com a natu-reza inteira envolve necessariamentee em primeiro lugar ldquoconhecer exa-tamente nossa naturezardquo (idem ibi-dem) Tambeacutem no mesmo sentidoo sect16 do TIE afirma ldquoantes de tudo[ante omnia] poreacutem haacute de se exco-gitar um modo de remediar o inte-lecto e expurgaacute-lo o quanto permiteo iniacutecio para que ele intelija as coisascom felicidade sem erro e da melhormaneirardquo Na sequecircncia Espinosa falaque para realizar tal intento faz-se ne-cessaacuterio ldquoque eu resuma aqui todos osmodos de perceber de que ateacute agoradispus para afirmar ou negar algo []para que eu eleja o melhor de todose simultaneamente comece a conhe-cer minhas forccedilas e natureza que de-sejo aperfeiccediloarrdquo (TIE sect18 ndash itaacuteliconosso) Se nos textos em que Espi-nosa trata da abstraccedilatildeo ele faz refe-recircncias aos que natildeo satildeo cautelososnatildeo prestam atenccedilatildeo e natildeo conhecema natureza do intelecto nos textos emque ele propotildee a maneira de sair daabstraccedilatildeo ele sempre exorta o retornoa si na busca do autoconhecimento

Para acrescentar um exemplo a res-peito de quatildeo determinante eacute o co-nhecimento de si noacutes citaremos aindaque brevemente a questatildeo das hipoacutete-ses em Espinosa Acreditamos que eacute

o autoconhecimento ou melhor o co-nhecimento reflexivo o que impede ahipoacutetese de ser classificada no sect57 doTIE como mera abstraccedilatildeo Vejamos

Cristiano Rezende comenta que oestatuto epistecircmico das hipoacuteteses eraalgo em disputa no seacuteculo XVII22A tradiccedilatildeo havia caracterizado as hi-poacuteteses como um tipo de proposiccedilatildeoda qual natildeo eacute possiacutevel num primeiromomento haver demonstraccedilatildeo e queestabelece ou natildeo o ser de algo Ori-ginaacuteria da palavra ὑπόθεσις do gregoantigo lsquohypoacutethesisrsquo (transliteraccedilatildeo) eacuteformada pela uniatildeo de lsquohyporsquo (lsquosobrsquolsquoabaixo dersquo) e lsquotheacutesisrsquo (lsquoposiccedilatildeorsquo)Assim uma lsquohypothesisrsquo caracteriza-se pelo ato de fazer deduccedilotildees concisasa partir da accedilatildeo de colocar algo sob[hypo] uma certa perspectiva intelec-tual [a thesis] mdash perspectiva essa quesoacute pode ser intelectual pois natildeo haacutecomo realizar experimentos daquiloque natildeo eacute efetivo mas contrafactualNos seiscentos poreacutem as hipoacuteteseshaviam sido reduzidas ao instrumen-talismo O exemplo maacuteximo dissoencontra-se na disputa entre teoacutelo-gos e cientistas com relaccedilatildeo agrave vali-dade das hipoacuteteses do De Revolutio-nibus Orbium Coelestium de Copeacuter-nico Andreas Osiander em vistas deabrandar os teoacutelogos inseriu apocri-famente no Revolutionibus um prefaacute-cio no qual dizia ldquonatildeo eacute necessaacuterioque essas hipoacuteteses sejam verdadei-

22 Cf REZENDE Cristiano N O Estatuto das Hipoacuteteses Cientiacuteficas na Epistemologia de Espinosa Cadernos de Histoacuteriade Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 18 n 1 jan-jun 2008 p 147-71

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ras e nem mesmo verossiacutemeis bas-tando apenas que forneccedilam caacutelculosque concordem com as observaccedilotildeesrdquo(OSIANDER A apud REZENDE2018 v 18 p 150)23 Dessa ma-neira a questatildeo que surge a respeitodas hipoacuteteses pode ser sintetizada daseguinte forma seriam elas apenasum instrumento abstrato sem com-promisso com o conhecimento da re-alidade ou estariam elas de acordocom a lsquonorma da verdadersquo isto eacute ca-pazes de proporcionar aos homensconhecimentos verdadeiros Espi-nosa estava consciente dessa discus-satildeo prova disso eacute que ao tratar dashipoacuteteses no TIE ele faz referecircncia aotema copernicano24 Faz-se necessaacute-rio perguntar o que nos fala Espinosasobre as hipoacuteteses No sect57 do Emen-datione Espinosa comeccedila por definiro que eacute uma quimera e o que eacute umaficccedilatildeo somente apoacutes isso eacute que elededica-se a tratar da hipoacutetese Ao fa-zer isso a primeira coisa que o filoacute-sofo estabelece satildeo as fronteiras entreas duas primeiras e a uacuteltima25 Dissouma conclusatildeo eacute imediata uma hi-poacutetese natildeo eacute uma quimera e natildeo eacuteuma ficccedilatildeo e portanto natildeo pode seruma ferramenta de caraacuteter meramenteficcional Entretanto essa conclusatildeonatildeo protege a hipoacutetese de ser consi-

derada uma abstraccedilatildeo afinal comovimos no caso dos entes de razatildeo noCM Espinosa tambeacutem os distingueda mera ficccedilatildeo e da quimera Veja-mos como prossegue nosso filoacutesofo

Definida a quimera e a ficccedilatildeo Es-pinosa fala no sect57 do TIE que tra-taraacute das ldquoquestotildees supostas o quepor vezes tambeacutem acontece a pro-poacutesito de impossibilidadesrdquo isto eacutedas hipoacuteteses Espinosa recorre en-tatildeo ao exemplo da vela lsquoardente quenatildeo ardersquo Ele propotildee entatildeo duas su-posiccedilotildees hipoteacuteticas nas quais umavela ainda que flamejante perdurasem se consumir (I) quando dizer-mos ldquosuponhamos que esta vela ar-dente natildeo arde agorardquo (idem ibidemndash itaacutelicos nossos) isto eacute quando tra-zemos agrave mente a ideia de uma ou-tra vela natildeo acesa (II) quando aocontraacuterio falamos ldquosuponhamos ar-der em algum espaccedilo imaginaacuterio ouonde natildeo se daacute corpo algumrdquo (idemibidem) Agrave primeira vista essas duassuposiccedilotildees encaixam-se como a matildeoe a luva naquilo que poderiacuteamos cha-mar de processos abstratos ou de abs-traccedilatildeo De fato no primeiro casosubstitui-se uma coisa real um entepor uma coisa imaginaacuteria Por suavez no segundo caso abstraimos algodas diversas relaccedilotildees concretas que

23 Como o proacuteprio Osiander posteriormente assumiu em carta ldquoos teoacutelogos seratildeo facilmente abrandados se lhes for dito que[] que essas hipoacuteteses satildeo propostas natildeo porque de fato satildeo verdadeiras mas porque regulam a computaccedilatildeo do movimentoaparenterdquo O trecho da carta se encontra traduzido para portuguecircs na introduccedilatildeo que Zeljko Loparic fez para sua traduccedilatildeo doldquoPrefaacuteciordquo de Andreas Osiander publicado nos Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia v 1 n1 pp 44-61 1980

24 Cf TIE sect56-725 O mesmo que ele fez no CM ao definir o que era os ldquoentes de razatildeordquo primeiro ele distinguiu o que eacute uma quimera e uma

ficccedilatildeo (cf CM I 1)

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ele estabelece imaginando-o em umespaccedilo imaginaacuterio no qual nada lheafeta Nada poderia ser mais abs-trato do que esses dois casos Entre-tanto Espinosa faz a seguinte obser-vaccedilatildeo ldquoembora claramente se intelijaque esta uacuteltima eacute impossiacutevel masquando isso se faz absolutamentenada eacute fingidordquo (idem ibidem ndash itaacuteli-cos nosso)26 Embora tal experimentoseja fisicamente impossiacutevel pois elesupotildee mover a vela para um espaccedilono qual ela natildeo esteja circuncidadade corpos ldquonada eacute fingidordquo A pri-meira pergunta que nos vem agrave menteeacute por que nada eacute fingido A primeiraparte da resposta a essa pergunta eacuteevidente ldquosabe-se que eacute impossiacutevelrdquoDe saiacuteda jaacute estamos de posse do co-nhecimento a respeito da impossibi-lidade real de tal experimento quejustamente por isso soacute pode ser men-tal A segunda parte da resposta eacuteque a inteligibilidade a respeito doque eacute vela e o conhecimento das leisde ineacutercia garantem que em um es-paccedilo no qual natildeo exista nada que aimpeccedila de continuar na existecircncia avela perduraria sem consumir-se (cfCHAUI M 2016 p 24) Desta ma-neira Espinosa desloca o problemada correspondecircncia entre o conteuacutedode uma hipoacutetese e alguma realidadepara a construccedilatildeo intelectual de uma

experiecircncia Embora uma hipoacuteteseseja um experimento realizaacutevel ape-nas no niacutevel mental ela natildeo eacute meraabstraccedilatildeo ou ficcionismo instrumen-tal Isso porque ela opera a partir doconhecimento que o indiviacuteduo possuitanto de si quanto a respeito da coisasobre a qual ele formula a hipoacuteteseAleacutem disso a hipoacutetese inclui o conhe-cimento das leis da natureza Uma hi-poacutetese natildeo nasce do encontro fortuitoda mente com as coisas mdash como seela fosse aprendiz delas mdash antes elaorigina-se da accedilatildeo do intelecto queatua como juiz que julga a partir desuas regras e do conhecimento preacuteviode como algo se comporta em situ-accedilotildees diversas (Cf REZENDE C2008 p 147-71) No exemplo dasvelas o ponto cardeal eacute que em am-bos os casos temos uma ideia clara edistinta da vela e eacute justamente por issoque podemos tanto movecirc-la para o es-paccedilo imaginaacuterio quanto alterar racio-nalmente suas caracteriacutesticas tirandodisso conclusotildees acertadas (CHAUIM 2016 p 24) Pois como nos ex-plica Chaui temos a construccedilatildeo deldquouma essecircncia em sua inteligibilidadede tal maneira que ela permita dedu-ccedilotildees ordenadas e por conseguintebem fundamentadasrdquo (idem ibidem)Enquanto a abstraccedilatildeo envolve o des-conhecimento de si e a confusatildeo do

26 O tom usado aqui por Espinosa nos lembra Galileu Galilei que ao tratar das hipoacuteteses referentes agrave queda de uma bolade canhatildeo perpendicular a um mastro de navio em movimento coloca na boca da personagem Salviati as seguintes palavrasemblemaacuteticas ldquoEu sem experiecircncia estou certo de que o efeito seguir-se-aacute como vos digo porque assim eacute necessaacuterio que sesigardquo GALILEU Galilei Diaacutelogo sobre os dois maacuteximos sistemas do mundo ndash ptolomaico e copernicano Trad Pablo RubeacutenMariconda 3ordm ed Editora 34 Satildeo Paulo 2011 p 226

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que haacute em nossa mente com o queconstitui a essecircncia de algo a hipoacute-tese justamente porque ldquosabe-serdquo eacutepara Espinosa originaacuteria da potecircnciada mente em compreender a essecircn-cia singular das coisas e tambeacutem emdeduzir seu comportamento em es-paccedilos ou condiccedilotildees imaginaacuterias Porisso como comenta Cristiano NovaesRezende uma hipoacutetese eacute uma ideiaverdadeira

quando inserida no processoregular e contiacutenuo no qual amente natildeo eacute determinada defora isto eacute determinada peloencontro fortuito das coisase com as coisas as quais porsi mesmas natildeo nos levam aconsiderar umas de preferecircn-cia a outras A hipoacutetese eacuteuma ideia verdadeira quandoa mente natildeo funda a verdadenos fenocircmenos mas sim emsi proacutepria isto eacute quando amente se determina desde dedentro ao mesmo tempo emque vai ao encontro dos ob-jetos da experiecircnciardquo (RE-ZENDE C N 2008 p 165)

Sendo assim podemos concluir quea hipoacutetese eacute uma ideia verdadeiraquando natildeo opera a partir da abstra-ccedilatildeo de si quando sua formulaccedilatildeo eacuteacompanhada de um duplo conheci-mento (I) o conhecimento de si istoeacute da forccedila e natureza do intelecto e

(II) o conhecimento da essecircncia obje-tiva sobre a qual opera

Em suma seja nos Cogitata sejano TIE (para natildeo citarmos as outrasobras de Espinosa) a abstraccedilatildeo sem-pre vem acompanhada da ideia deuma perda de si uma ignoracircncia emrelaccedilatildeo a si mesmo Em sentido con-traacuterio no KV Espinosa chama o mo-mento em que a mente descobre a simesma como potecircncia para o verda-deiro de ldquorenascimentordquo pois ldquosema soberania do entendimento tudo seencaminha para a perda sem que pos-samos gozar de qualquer descansovivendo como se estiveacutessemos forade nosso elementordquo (KV II 26)

Um exemplo de como opera a criacute-tica espinosana agrave abstraccedilatildeo de sia abertura do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico

O leitor haacute de estranhar que escolhe-mos justamente o TTP para servir deexemplo afinal esta eacute a uacutenica obraem que Espinosa natildeo faz referecircnciadireta ao tema abstraccedilatildeo Entretantopretendemos mostrar que as conside-raccedilotildees a respeito das abstraccedilotildees sus-tentam algumas teses de Espinosa noseu polecircmico tratado Para demons-trar isso noacutes analisaremos a primeirafrase do prefaacutecio do TTP Haacute trecircs as-pectos dessa sentenccedila inicial que con-sideramos serem os mais importan-tes (1) trata-se de uma proposiccedilatildeocondicional negativa que se estrutura

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agrave maneira de uma hipoacutetese (2) ela eacutereferente agrave natureza humana e agraves re-laccedilotildees que essa natureza estabeleceno mundo (3) trata-se uma sentenccedilacom efeito retoacuterico que corroacutei umaimagem abstrata do homem27

Espinosa abre o TTP com a se-guinte proposiccedilatildeo ldquose os homens pu-dessem em todas as circunstacircnciasdecidir pelo seguro ou se a fortuna selhes mostrasse sempre favoraacutevel ja-mais seriam viacutetimas da supersticcedilatildeordquo(ESPINOSA B 2003 p 5)rdquo O ldquoserdquoinicial nos coloca diante de uma pro-posiccedilatildeo condicional e negativa Ma-rilena Chaui comenta que ldquoEspinosacritica indiretamente os medievais eDescartes reescrevendo as teses quecombate na forma de oraccedilotildees hipoteacute-ticas (se entatildeo) retirando das hi-poacuteteses conclusotildees que as negamrdquo(CHAUI M 1974 p 56) A co-mentadora ressalta que esse procedi-mento eacute tatildeo constante em Espinosaque quase poderiacuteamos tomaacute-lo comonorma de leitura ldquoas oraccedilotildees hipoteacute-ticas apresentam teses que natildeo satildeo es-pinosanas que satildeo levadas agrave autodes-truiccedilatildeo no decorrer da argumentaccedilatildeordquo(idem ibidem)28 Assim a aberturado TTP eacute polecircmica primeiro por-que conforme veremos ela retoma a

imagem do homem que foi tecida pelatradiccedilatildeo teoloacutegica em segundo lugaressa retomada daacute-se no seio de umahipoacutetese negativa ou seja tal ima-gem eacute tomada como esvaziada de re-alidade Acreditamos ser este o cerneda hipoacutetese que abre o TTP

Em sua tese de doutoramento Ma-rilena Chaui defende que o termomais importante da proposiccedilatildeo ini-cial do TTP eacute a conjunccedilatildeo condicio-nal ldquoserdquo pois ela abre as duas condi-ccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia dasupersticcedilatildeo (CHAUI 1970 p 134)Ora em que consistem essas duascondiccedilotildees Consistem numa mu-danccedila ou na natureza humana ou nanatureza do mundo que permitisseaos homens serem iguais agrave vela ar-dente que natildeo arde Se lermos atenta-mente o enunciado da primeira parteda hipoacutetese na abertura do TTP no-taremos que Espinosa propotildee a mu-danccedila imaginaacuteria de uma das carac-teriacutesticas dos ldquohomensrdquo Qual Achave para compreender isso estaacute napalavra latina regere que na traduccedilatildeoespanhola do TTP de Atilano Domin-guez foi traduzida por ldquoconducirrdquo naportuguesa de Diogo P Aureacutelio porldquodecidirrdquo e na brasileira de J Guins-burg e Newton Cunha por ldquoregrarrdquo

27 Conforme veremos dessas trecircs caracteriacutesticas seguem-se algumas consequecircncias (1) a supersticcedilatildeo deixa de ser umacaracteriacutestica acidental jaacute que supressatildeo absoluta da supersticcedilatildeo soacute eacute possiacutevel com uma concepccedilatildeo abstrata natureza humana(2) Sendo inerente agrave natureza humana a supersticcedilatildeo deixa de servir como distintiva entre as diversas religiosidades e etnias(3) Espinosa desvincula o conceito de supersticcedilatildeo do mito fundador da moral judaica-cristatilde ou seja do mito da queda originalAo final pretendemos deixar evidente a maneira pela qual opera a criacutetica espinosana agraves abstraccedilotildees na abertura do TTP

28 A mesma chave de leitura eacute mobilizada pela comentadora ao comentar a abertura do TTP em sua tese de doutoramentoldquoO prefaacutecio do TTP comeccedila com uma proposiccedilatildeo condicional e negativa caracteriacutestica peculiar de Espinosa todas as vezes emque para demonstrar a necessidade de um conceito passa pela hipoacutetese a ser recusada mdash toda proposiccedilatildeo negativa eacute ausecircnciade definiccedilatildeo e portanto de realidaderdquo (CHAUI M 1970 p 133)

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Embora distintos uns dos outros cadavocaacutebulo escolhido nessas traduccedilotildeesressalta aspectos daquilo que consti-tui o poder regencial poder de deci-satildeo de conduccedilatildeo e de regulaccedilatildeo Ori-ginaacuteria do campo poliacutetico regere eacute aforma no infinitivo presente do verbolatino rego que tem sentido de regecircn-cia Reger eacute ter o dominium29 sobre osassuntos internos de um imperium Aabertura do TTP alude a um poder re-gencial que redunda num ldquocerto con-siliordquo sobre ldquores omnes suasrdquo aludepotanto para uma deliberaccedilatildeo certasobre todas suas coisas Eacute muito in-teressante que essa forma de regecircnciaimpotildee a exterioridade jaacute que ldquoa deli-beraccedilatildeo supotildee exterioridade mdash os ho-mens estatildeo diante das coisas situadosna natureza e face a elardquo (CHAUI M1970 p 134) Considerar-se fora danatureza em face a ela eacute encontra-se em estado de abstraccedilatildeo do TodoO que Espinosa faz eacute partir de umaimagem abstrata dos homens (ima-gem que oferece a ilusatildeo de um con-trole imperial decidir conduzir e re-grar todas as suas coisas) entretantose assim fosse os homens jamais se-riam viacutetimas da supersticcedilatildeo explica onosso filoacutesofo

A segunda parte da hipoacutetese con-tinua ldquoou se a fortuna se lhesmostrasse sempre favoraacutevelrdquo (ES-

PINOSA Op Cit) Oriundado universo teoloacutegico a fortuna eacuteldquoimperatrix mundirdquo nos escrevem osCarmina Burana Deusa da gloacuteriae da riqueza a fortuna representa oimprevisto a volatilidade da vida ascircunstacircncias que fogem ao nossocontrole Ora nossa sorte ora nossaperdiccedilatildeo a fortuna deteacutem a roda davida Como disse Boeacutecio ldquoAssimela brinca assim ela daacute prova de seupoder e oferece aos seus suacuteditos umgrande espetaacuteculo o de um homemque em uma hora passa da desgraccedilaagrave gloacuteriardquo (2012 p 42) Experiecircnciada contingecircncia a fortuna tambeacutem eacutea experiecircncia da inseguranccedila e porisso do medo Nenhuma alma pode-ria descrever melhor essa experiecircnciado que a do melancoacutelico afinal comoescreve Espinosa ldquoa sua senhora eacute aFortunardquo Robert Burton melancoacute-lico confesso descreveu-se nas pri-meiras paacuteginas de sua Anatomia daMelancolia como um observador dasfortunas do mundo

[Sou] um mero especta-dor das fortunas e venturasalheias de como atuam emseus papeacuteis que penso satildeo-me tatildeo diversamente apre-sentados como se num te-atro ou cena puacuteblica []

29 Em latim casa se chama domus e o poder sobre ela dominium O regente que possui o dominium absoluto sobre o pa-trimonium eacute o Pater A instacircncia do pater natildeo eacute a de um progenitor natural (genitor) eacute maior do que isso trata-se do poderjudicial e senhoril Eacute neste sentido preciso que a igreja dizia ldquoDeus eacute Pairdquo Cf CHAUI Marilena Mito Fundador e SociedadeAutoritaacuteria in Escritos de Marilena Chaui Vl II ndash Manifestaccedilotildees ideoloacutegicas do autoritarismo brasileiro Org Andreacute RochaAutecircntica Editora Satildeo Paulo 2013 p 156

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Um eacute liberto o outro aprisio-nado um enriquece o outroquebra este prospera e seuvizinho estaacute falindo ora far-tura ora carestia e fome umcorre outro cavalga com-bate ri chora etc Isso euouccedilo a cada dia e outro tantode notiacutecias puacuteblicas e priva-das entre a galanteia e a mi-seacuteria do mundo jovialidadeorgulho perplexidades e pre-ocupaccedilotildees simplicidade evilania sutileza patifariacandor e integridade mutua-mente misturado e ofertadordquo(BURTON R 2013 [I] p58)

No palco da vida e no coro do mundoquem abre e fecha os atos eacute a For-tuna No espetaacuteculo em que a Fortunaeacute roteirista a protagonista eacute a melan-colia Um ponto importante eacute que afortuna acentua ainda mais a exterio-ridade como manifesta as palavras deBurton ldquo[sou] um mero espectadorrdquoSob essa perspectiva o mundo se abrecomo espaccedilo no qual as coisas se rela-cionam entre si contingentemente emuma ldquoincerta fortunardquo Expectadoro homem natildeo possui a capacidade de-liberativa natildeo eacute regente restando-lheapenas esperar pela ldquobona fortunaerdquoAqui tambeacutem a conclusatildeo eacute nega-tiva ldquoSi fortuna ipsis prospera sem-per foretrdquo Se a fortuna se mostrassesempre proacutespera se na lsquocena puacuteblicarsquoas coisas sempre fossem boas se no

palco do mundo soacute se apresentasse obonum entatildeo os homens natildeo seriamviacutetimas da supersticcedilatildeo

A abertura do TTP aponta as condi-ccedilotildees necessaacuterias para que os homensjamais sejam viacutetimas da supersticcedilatildeo(I) a presenccedila de um certo consiliosobre ldquoomnes resrdquo ou (II) uma for-tuna ldquosemper prosperardquo Ora umavez que a fortuna eacute aquilo que escapaao nosso poder podemos supor que oproblema da supersticcedilatildeo possa ser re-solvido pela via da deliberaccedilatildeo certa(o certo consilio) ou seja pela con-tiacutenua ampliaccedilatildeo de nossa capacidadedeliberativa Isso parece asseguradopela presenccedila do vocaacutebulo vel [ou] in-dicando que basta a presenccedila de ape-nas uma das condiccedilotildees ndash (I) ou (II) ndashpara que a supersticcedilatildeo deixe de impe-rar sobre os homens Entretanto valenotar que todas as expressotildees satildeo to-tais nenhuma supersticcedilatildeo delibera-ccedilatildeo certa sobre todas as coisas umafortuna sempre proacutespera Embora sejatotalmente aceitaacutevel do ponto de vistade outros trechos da obra de Espinosadeduzir que quanto mais capenga fora nossa capacidade deliberativa maisatuaraacute sobre noacutes o imperioso poder dafortuna e consequentemente da su-persticcedilatildeo natildeo nos parece que na aber-tura do TTP haja condiccedilotildees para a de-duccedilatildeo de uma soluccedilatildeo Esperar queos homens sempre deliberem de ma-neira certa ou que o mundo natildeo lhesapareccedila fortuito eacute o mesmo que de-sejar que a vela queime sem se quei-mar As uacutenicas duas maneiras de con-

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

ceber os homens como estando abso-lutamente fora das garras da supersti-ccedilatildeo satildeo (I) concebendo mentalmenteoutros homens isto eacute substituindo anatureza humana por outra abstrataou (II) concebendo os homens numespaccedilo imaginaacuterio no qual eles se en-contram abstraiacutedos de toda experiecircn-cia da contigecircncia Embora conceberessas condiccedilotildees natildeo nos seja impossiacute-vel mediante um experimento mental(uma hipoacutetese) eacute certo que in rerumnatura elas versam sobre impossibi-lidades Apesar de lsquonada ser fingidorsquoclaramente lsquointelige-se que eacute impos-siacutevelrsquo Em uacuteltima instacircncia as duascondiccedilotildees redundam em que a huma-nidade deixe de ser humanidade e queo mundo deixe de ser mundo Con-fundir a hipoacutetese inicial do TTP mdashuma espeacutecie de experimento mental -ndash com a fala sobre possibilidades ex-tramentais reais eacute entrar no campo daabstraccedilatildeo Na verdade o sentido maisprofundo da hipoacutetese na abertura doTTP consiste em mostrar que a proacute-pria noccedilatildeo de ldquonulla superstitionerdquo eacuteuma abstraccedilatildeo30

A liccedilatildeo oferecida por Espinosa naabertura do TTP eacute a que a supersti-

ccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave condiccedilatildeo humanafaz parte do que significa ser humanoe viver neste mundo Se eacute preciso fa-zer uma criacutetica agrave supersticcedilatildeo eacute precisoprimeiro reconhececirc-la e trabalhaacute-laIsto eacute eacute preciso positivaacute-la enquantoobjeto da reflexatildeo tomaacute-la a partir desuas causas e observar o desenvolvi-mento de sua trama Em suma eacute pre-ciso abandonar a concepccedilatildeo abstratamdash postura do sentinela que vigia agravedistacircncia nas fortalezas de sua torremdash e entrar na concretude do RealEm outros termos eacute preciso deixarde tomar a supersticcedilatildeo como coisa ex-terior e alheia pertencente aos ou-tros (de sorte hereges ou ignorantes)A postura de sentinela da supersticcedilatildeoredunda numa accedilatildeo que impotildee umarelaccedilatildeo autoritaacuteria entre aqueles quedizem-se natildeo-supersticiosos e os ti-dos por supersticiosos Na tradiccedilatildeocristatilde isso se deu pelos senhores damoral e oficiantes do culto na tra-diccedilatildeo cientiacutefica assumiram este papelos portadores das luzes na sua mar-cha pelo aufklaumlrung Ora se tivermosem mente que para Espinosa a abstra-ccedilatildeo eacute considerar a parte fora do Todoentenderemos que a ideia de um ho-

30 Se levarmos em conta o que Espinosa fala sobre o cavalo e o inseto na Eacutetica visualizaremos o que a hipoacutetese de aberturado TTP aponta todo projeto de erradicaccedilatildeo absoluta da supersticcedilatildeo eacute um projeto genocida ldquoO fato eacute que um cavalo porexemplo eacute destruiacutedo [destruitur] tanto ao ser mudado em homem como em insetordquo (E IV praef) Natildeo haacute evoluccedilatildeo do cavalopara o homem assim como tambeacutem natildeo a haacute decliacutenio do cavalo para o inseto tanto num caso como no outro haacute apenas des-truiccedilatildeo Querer que cavalos atuem como homens eacute em uacuteltima instacircncia desejar a destruiccedilatildeo dos cavalos Essa metaacutefora ganhaforccedila quando vinculada agrave hipoacutetese inicial do TTP afinal desejar que as pessoas estejam absolutamente livres da supersticcedilatildeo eacuteo mesmo que desejar que elas deixem de ser humanas Desejo esse que natildeo passa de uma das faces do desejo de destruiccedilatildeo doshomens e do mundo Trata-se de um desejo suicida mdash quando referido agrave subjetividade mdash e de um desejo genocida mdash quandoreferido ao mundo e agrave intersubjetividade A abertura do TTP indica que pela primeira vez na histoacuteria da filosofia a supersticcedilatildeonatildeo seraacute tratada como algo a ser erradicado e eliminado uma espeacutecie de posiccedilatildeo higienizadora mas como algo intriacutenseco aoshomens e com o qual devemos aprender a lidar

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mem regente consiste em pura abstra-ccedilatildeo autorreferente pois nela noacutes natildeoestamos mudando ou abstraindo ca-racteriacutesticas de um objeto antes noacutesmesmos nos tomamos numa perspec-tiva abstrata separados do mundo eregentes dele mdash versatildeo extrema daabstraccedilatildeo de si Natildeo eacute apenas umperder-se de si eacute a reificaccedilatildeo em simesmo de uma imagem abstrata de si

O engenho de Espinosa natildeo paranisso antes o filoacutesofo aponta que talabstraccedilatildeo se inscreve na proacutepria ima-gem fundante da sociedade ocidentalO leitor natildeo demoraraacute a perceber issose fizermos a seguinte pergunta den-tro da mitologia judaico-cristatilde qual eacuteo momento em que o homem possuiplena regecircncia sobre o mundo go-zando de perfeiccedilatildeo e vive num para-disiacuteaco mundo afortunado A hipoacute-tese de abertura do TTP aponta para oJardim do Eacuteden paraiacuteso onde nossopai terrestre Adatildeo antes da quedagozava de perfeiccedilatildeo (poder regencialsobre si e domiacutenio sobre todas as coi-sas) e vivia em um mundo em que afortuna sempre se lhe mostrava beneacute-fica O engenho da hipoacutetese inicial doTTP estaacute no fato de Espinosa afirmarque se em algum momento o homemgozasse de tais condiccedilotildees ou de tal na-tureza ele jamais seria viacutetima da su-persticcedilatildeo31 Eis a retoacuterica da hipoacuteteseinaugural do TTP propor um expe-

rimento mental que agrave primeira vistapode ser tomado como abstrato masque ao fim e ao cabo implode a proacute-pria concepccedilatildeo abstrata que os ho-mens possuem de si Retoacuterica con-tra os retoacutericos o ato inaugural doTTP subverte o mito adacircmico nos ar-rebata da abstraccedilatildeo lanccedilando-nos natrama do Real A abertura do TTPeacute uma guerra contra a imagem abs-trata do homem e contra as propostasgenocidas que decorrem dessa abstra-ccedilatildeo Falamos em guerra porque elaopera de maneira retoacuterica partindo doque eacute comum mdash a concepccedilatildeo teoloacute-gica do homem mdash para em seguidasubvertecirc-la A instacircncia dessa guerraeacute a mente dos leitores lsquoque poderia fi-losofar mais livremente caso natildeo jul-gassem que a razatildeo deva ser serva dateologiarsquo (ESPINOSA 2003 p 14)

A hipoacutetese-retoacuterica do iniacutecio doTTP eacute um convite a pensar a condi-ccedilatildeo humana sem as abstraccedilotildees e osfantasmas que a tradiccedilatildeo teoloacutegica cu-nhou Afastado o paraiacuteso mdash agoraperdendo-o de nossas vistas para sem-pre mdash qual eacute a condiccedilatildeo humana Aresposta vem logo em sequecircncia re-duzidos amantes e desejosos experi-mentando a perda constante dos obje-tos amados e o escape dos desejadosos homens se encontram arrastados deum lado ao outro num turbilhatildeo deafetos que por fim os leva agrave supers-

31 A formulaccedilatildeo mais evidente da questatildeo posta na hipoacutetese inaugural do TTP se encontra no capiacutetulo II sect6 do TratadoPoliacutetico onde Espinosa questiona sobre ldquocomo pode acontecer aleacutem disso que o primeiro homem estando de posse de siproacuteprio e sendo e senhor de sua vontade se deixasse seduzir e enganarrdquo (ESPINOSA 2014 [I] p 376)

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ticcedilatildeo (ESPINOSA 2003 p 5) mdash eisa realidade desesperadora a qual Es-pinosa nos apresenta em todas as suastramas Mas se o nosso filoacutesofo fazisso eacute porque sabe que a uacutenica pos-sibilidade de fazer uma poliacutetica ver-dadeira eacute quando partimos da reali-dade concreta e natildeo das abstraccedilotildeesUma verdadeira poliacutetica dos homensnatildeo uma utopia ou uma saacutetira exigecomo seu princiacutepio a veemente recusada abstraccedilatildeo de si

lowast lowast lowast

Neste ponto ao final do artigo pode-mos afirmar que a abstraccedilatildeo eacute natildeo me-ramente uma operaccedilatildeo mental mastambeacutem uma abstraccedilatildeo de si Justa-mente porque nos encontramos arre-

batados de noacutes mesmos eacute que pro-duzimos abstraccedilotildees Neste sentidoeacute interessante lembramos as pala-vras de Espinosa no Breve Tratadoa respeito do conhecimento claroldquodenominamos conhecimento claroagravequele que natildeo eacute por convencimentoda razatildeo mas sim por um sentir e go-zar a proacutepria coisardquo (KV II cap 2 sect2)e caso algum homem chegue a con-templar algo por essa maneira de co-nhecer ldquodiraacute em verdade que a coisa eacuteassim considerando que ela estaacute nelee natildeo fora delerdquo (idem cap 4 sect2)Eacute que a verdade ao contraacuterio da abs-traccedilatildeo envolve uma interioridade umencontro consigo mesmo que eacute outronome da liberdade

Referecircncias

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ESPINOSA Eacutetica Traduccedilatildeo do Grupo de Estudos Espinosanos CoordenaccedilatildeoMarilena Chaui Satildeo Paulo Editora Edusp 1ordf Ed 2015

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NEWLANDS S Reconceiving Spinoza 1ordf Ediccedilatildeo New York Oxford Uni-versity Press 2018

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SANTIAGO Homero Geometria do Instituiacutedo mdash Estudo sobre gramaacuteticahebraica espinosana Fortaleza Editora UECE 2014

LIacuteVIO Teixeira A Doutrina dos Modos de Percepccedilatildeo e o Conceito de Abstra-ccedilatildeo na Filosofia de Espinosa Editora UNESP Satildeo Paulo 2001

REZENDE C N O Estatuto das Hipoacuteteses Cientiacuteficas na Epistemologia deEspinosa Cadernos de Histoacuteria de Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie3 v 18 n 1 jan-jun 2008 p 147-71

_____ Os Perigos da Razatildeo Segundo Espinosa A inadequaccedilatildeo do terceiromodo de perceber no Tratado da Emenda do Intelecto Cadernos de His-

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

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ZATERKA L A Filosofia Experimental na Inglaterra do Seacutec XVII FrancisBacon e Robert Boyle Satildeo Paulo Humanitas 2004

Recebido 02072019Aprovado 08092019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225781

Seguranccedila Liberdade e Concoacuterdia no PensamentoRepublicano de Espinosa

[Security Freedom and Concordia in Spinozarsquos Republican Thought]

Stefano Visentin

Resumo O artigo pretende apresentar a construccedilatildeo dos conceitos deseguranccedila e liberdade nos escritos poliacuteticos de Espinosa para rearti-cular sua construccedilatildeo em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo humanista mais espe-cificamente de Thomas More e Erasmo de Rotterdam Tal diaacutelogo seraacuterelacionado com o problema da pietas no seu aspecto moral e a con-cordia em seu aspecto poliacutetico para serem reconsiderados e articula-dos com o realismo poliacutetico introduzido por Maquiavel e Hobbes Fi-nalmente pretendemos analisar a peculiaridade do filoacutesofo holandecircsproblematizando tais conceitos na escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoe do Tratado PoliacuteticoPalavras-chave Espinosa Humanismo Poliacutetica Seguranccedila e Liber-dade

Abstract This paper intends to present the construction of theconcepts of security and freedom in the Spinozarsquos political writingsrethinking its construction in dialogue with the humanist traditionmost specifically with Thomas More and Erasmus of RotterdamThis dialogue is related to the humanist problem of pietas in themoral aspect and concordia in politics aspect to be reconsideredand articulated with the political realism introduced by Machiaveland Hobbes Finally we aim to analyze the peculiarity of the dutchphilosopher problematizing such concepts in the Theological-politicalTreatise and the Political TreatiseKeywords Spinoza Humanism Politics Security and Freedom

1 - A tradiccedilatildeo irenista nos PaiacutesesBaixos dos seacuteculos XVI e XVII

Em 1517 Erasmo de Rotterdampublicou a Querela Pacis consi-derada juntamente com a Uto-

pia por Thomas More o manifestomais significativo do humanismodo seacuteculo XVI1 Os fundamentosda defesa erasmiana da paz satildeoessencialmente a pietas cristatilde noreferente agrave moral e a busca cons-

Uma versatildeo anterior e distinta deste artigo foi publicada em inglecircs na Revista Theoria vol 66 n 15 2019Traduccedilatildeo desta versatildeo por Ericka Marie Itokazu e Mariacutelia PachecoProfessor assistente (ricercatore confermato) de Histoacuteria das Doutrinas Poliacuteticas no Departamento de Economia

Sociedade e Poliacutetica (Desp) da Universitagrave di Urbino Carlo Bo e professor da Scuola di Scienze politiche e socialiE-mail stefanovisentinuniurbit ORCID httporcidorg0000-0001-6963-4798

1Il lamento della pace Testo latino a fronte Federico Cinti (org) com um ensaio de Jean-Claude Margolin MilatildeoBUR 2005

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tante da concordia no referenteagrave poliacutetica em particular esta uacutel-tima torna-se nas deacutecadas seguin-tes um elemento de grande im-portacircncia dentro do debate poliacute-tico e religioso distinguindo-se datoleracircncia que insiste na necessi-dade de aceitar a coexistecircncia deuma pluralidade de feacutes no interiordo mesmo espaccedilo poliacutetico con-trariamente agrave concoacuterdia que visaconstruir um terreno comum paraas diferentes correntes do cristi-anismo em outros termos en-quanto a toleracircncia quer despoli-tizar a religiatildeo (segundo a famosafrase pronunciada por Michel deLrsquoHospital em 1562 segundo aqual ldquoil nrsquoest pas icy de constitu-enda religione sed de constituendarepublica et plusieurs peuvent es-tre cives qui non erunt christianirdquo2) a concoacuterdia diversamente pro-potildee a tarefa de transformar a poliacute-tica segundo uma perspectiva re-ligiosa3

O legado erasmiano percorretodo o seacuteculo XVI influenciandotambeacutem muitos teoacutelogos reforma-dos como Seacutebastien Castellion naFranccedila Sebastian Franck na Ale-

manha Dirck Coornhert nos Paiacute-ses Baixos4 Especialmente nosPaiacuteses Baixos entre o final do seacute-culo XVI e o comeccedilo do seacuteculo se-guinte numerosas tentativas satildeofeitas para elaborar e colocar empraacutetica uma doutrina religiosafundada em dogmas universal-mente aceitos por todas as cren-ccedilas cristatildes presentes no territoacuterioe uma das tentativas mais origi-nais eacute realizada por um grupo decrentes provenientes de diferen-tes seitas (calvinistas arminianosmenonitas quakers socinianos)chamados Colegiantes que esta-belecem uma comunidade fun-dada exclusivamente na leituracomum do texto biacuteblico e na praacute-tica do amor fraterno5 Sabe-seque alguns amigos de Espinosaparticipam desses encontros de-nominados colloquia propheticaentre os quais certamente JarigJelles e Pieter Balling e que pro-vavelmente o proacuteprio Espinosa ofrequenta durante sua estada emRijnsburg no iniacutecio dos anos 60do seacuteculo XVII6

Em resumo natildeo haacute duacutevida deque o contexto histoacuterico e biograacute-fico no qual Espinosa amadurece a

2 de LrsquoHOSPITAL M (1561) Oeuvres complegravetes de Michel de LrsquoHospital Ed por PSJ DUFEY vol 1 ParisBoulland 1824-5 p 452

3 Sobre este tema veja-se TURCHETTI M ldquoReligious Concord and Political Tolerance in Sixteenth- andSeventeenth-Century Francerdquo in Sixteenth Century Journal 122 1991 pp 15-25

4 Cfr BIETENHOLZ PG Encounters with a Radical Erasmus Erasmusrsquo Work as a Source of Radical Thoughtin Early Modern Europe Toronto Toronto University Press 2009

5 FIX AC Prophecy and Reason The Dutch Collegiants in the Early Enlightenment Princeton Princeton Univer-sity Press 1990

6 Cfr NADLER S Spinoza A Life Cambridge Cambridge University Press 1999 cap 7

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoexerce sobre ele uma influecircnciaerasmiana no sentido de umabusca de como estabelecer umarepuacuteblica livre e paciacutefica tantono seu proacuteprio interior quantono confronto com os outros Es-tados e de fato o subtiacutetulo do li-vro jaacute mostra essa orientaccedilatildeo ldquoemque se demonstra que a liberdadede filosofar natildeo soacute eacute compatiacutevelcom a preservaccedilatildeo da piedade eda paz como inclusivamente natildeopode ser abolida sem se abolir aomesmo tempo a paz da repuacuteblicae a proacutepria piedaderdquo 7

No entanto ao lado do idealhumanista irecircnico uma reflexatildeoteoloacutegico-poliacutetica se desenvolveuna Repuacuteblica das Proviacutencias Uni-das durante o seacuteculo XVII colo-cando o realismo poliacutetico no cen-tro da cena e inspirando-se nopensamento de Nicolau Maqui-avel e Thomas Hobbes8 Semaprofundar a recepccedilatildeo do traba-lho desses dois autores na Ho-landa seiscentista eacute preciso lem-brar que tanto o desenvolvimentodo neoestoicismo nas universida-des quanto o do republicanismofora do mundo acadecircmico satildeo afe-tados fundamentalmente pela lei-

tura e discussatildeo dos escritos dosecretaacuterio florentino e do filoacutesofoinglecircs Em particular nesse arca-bouccedilo teoacuterico marcado por umaabordagem realista da naturezae da poliacutetica humanas o espaccedilopara um elogio e a busca pela con-coacuterdia entre indiviacuteduos e Estadosparece ter sido reduzido ao miacute-nimo senatildeo ateacute mesmo cancelado

Espinosa conhece bem o traba-lho desses dois escritores maldi-tos cita-os em seus escritos e ex-trai muitas ideias ndash em particularmas natildeo apenas do agudiacutessimoMaquiavel consequentementeseria muito difiacutecil acreditar que areflexatildeo espinosana sobre a paz ea concoacuterdia natildeo seja afetada pelacriacutetica maquiaveliana e hobbesi-ana da visatildeo humanista da reli-giatildeo e da poliacutetica

2 - Paz concoacuterdia e liberdade noTratado teoloacutegico-poliacutetico

No Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico Es-pinosa repetidamente insiste nanecessidade de instituir dentro darepuacuteblica holandesa uma coexis-tecircncia paciacutefica entre as diferen-tes feacutes religiosas O prefaacutecio por

7Tratado Teoloacutegico-poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 p 121 Doravante TTP

8 Sobre a recepccedilatildeo de Maquiavel cfr HAITSMA MULIER EOG ldquoA Controversial Republican Dutch Views onMachiavelli in the Seventeenth and Eighteenth Centuriesrdquo in BOCK G SKINNER Q VIROLI M (orgs) Machi-avelli and Republicanism Cambridge Cambridge University Press 1990 pp 247-263 sobre a recepccedilatildeo de Hobbescfr SECREacuteTAN C ldquoLa reacuteception de Hobbes aux Pays-Bas au XVIIeacuteme siegraveclerdquo in Studia Spinozana 3 1987 pp27-46

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exemplo conteacutem um elogio da re-puacuteblica onde se concede a cadaum inteira liberdade de julgar ede prestar culto a Deus agrave sua ma-neira e onde natildeo haacute nada que seconsidere mais caro e mais doceque a liberdade9 Um elogio anaacute-logo dirigido no entanto apenas aAmsterdatilde estaacute presente no capiacute-tulo final onde Espinosa escreveque na cidade holandesa todos oshomens seja qual for a sua na-ccedilatildeo e sua seita vivem na maisperfeita concoacuterdia10 No seu es-tudo da repuacuteblica teocraacutetica fun-dada por Moiseacutes tambeacutem surgemrazotildees pelas quais um governo re-publicano eacute naturalmente levadoa apoiar a paz e a concoacuterdia emvez de fomentar a guerra e as di-visotildees internas De fato a histoacuteriajudaica mostra que os ritos e ce-rimocircnias religiosas desempenha-ram um papel poliacutetico fundamen-tal (na verdade eles foram ende-reccedilados ldquoagrave contingente felicidadedo corpo e do Estadordquo 11) umavez que envolveram toda a comu-nidade sem a necessidade de umclero que agisse como um corposeparado ndash e de fato foi precisa-mente o nascimento de um apa-rato eclesiaacutestico distinto da co-

letividade de fieacuteis que produziua degeneraccedilatildeo da repuacuteblica ndash edessa maneira gerou uma narra-tiva compartilhada12 que consoli-dou as relaccedilotildees afetivas e a confi-anccedila muacutetua entre os cidadatildeos

Geralmente a reconstruccedilatildeo his-toriograacutefica que Espinosa realizada repuacuteblica mosaica (em parti-cular no capiacutetulo XVII) e os en-sinamentos poliacuteticos que dela de-duz (no capiacutetulo XVIII) propotildeem-se a dois objetivos fundamentais(1) mostrar o perigo que todo or-ganismo poliacutetico corre quando oclero se torna um poder separadoda comunidade e assim assu-mindo um papel poliacutetico mantidopara si (2) enfatizar a superiori-dade de um governo exercido portodo o povo com relaccedilatildeo ao go-verno monaacuterquico uma superio-ridade baseada no imaginaacuterio co-letivo que apesar do risco semprepresente de se tornar supersticcedilatildeodispotildee da potecircncia para estabele-cer um regime no qual pelo me-nos por um certo periacuteodo reinema pietas religiosa e a concoacuterdia

Ao lermos o uacuteltimo capiacutetulo doTratado ndash cujo tiacutetulo afirma ondese demonstra que numa republicalivre eacute uma liacutecito a cada um pen-

9 TTP p 12710 TTP p 39011 TTP p 19112 Retomo estes termos de JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo in

MELAMED YY ROSENTHAL MA (orgs) Spinozarsquos Theological-Political Treatise A Critical Guide CambridgeCambridge University Press 2010 pp 250-267

13 TTP p 383

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

sar o que quiser e dizer aquilopensa13 ndash tendo em mente o ensi-namento dos capiacutetulos histoacutericosentatildeo a liberdade a piedade e apaz natildeo soacute aparecem inextricavel-mente conexas mas tambeacutem jun-tas elas contribuem para a formademocraacutetica da repuacuteblica que Es-pinosa considera o melhor regimeorientando seus leitores nessa di-reccedilatildeo A referecircncia agrave paz por-tanto natildeo expressa simplesmentea necessidade de garantir a cadacidadatildeo um espaccedilo intangiacutevel porparte das autoridades no interiordo qual ele possa pensar e dizeraquilo em que acredita sem medode ser perseguido ao contraacuterioa paz eacute a expressatildeo da partici-paccedilatildeo ativa de todos na discus-satildeo puacuteblica seja sobre os prin-ciacutepios da religiatildeo seja sobre osassuntos do Estado somente seos cidadatildeos participam das deci-sotildees poliacuteticas de modo que visemao bem comum eacute possiacutevel afir-mar como no capiacutetulo XVI queldquonuma repuacuteblica e num Estadoonde a lei suprema eacute a salvaccedilatildeode todo o povo e natildeo daquele quemanda quem obedece em tudoao soberano natildeo deve dizer-se es-cravo e inuacutetil a si mesmo masapenas suacuteditordquo 14 Esta referecircncia

agrave figura do suacutedito eacute particular-mente interessante porque quebraa oposiccedilatildeo dicotocircmica entre o es-cravo e o homem livre ndash tiacutepica emmuitos aspectos da ideologia re-publicana da eacutepoca ndash abrindo es-paccedilo para uma concepccedilatildeo dinacirc-mica de liberdade individual queEspinosa define a partir da evo-luccedilatildeo do sistema de relaccedilotildees soci-ais e poliacuteticas na direccedilatildeo de umarepuacuteblica livre ndash isto eacute daquelaem que se liberta das restriccedilotildeesda supersticcedilatildeo e da dominaccedilatildeo dohomem pelo homem Analoga-mente a defesa extrema da li-berdade de expressatildeo no Tratadoteoloacutegico-poliacutetico constitui o grauzero de um percurso de emanci-paccedilatildeo que procede de uma con-cepccedilatildeo individualista de toleracircn-cia muacutetua para o envolvimento decada cidadatildeo na constituiccedilatildeo deuma paz ativa ou melhor deuma concoacuterdia universal entre oscorpos e mentes de cada um inte-grando imaginaccedilatildeo e razatildeo15

Neste ponto resta entenderquais seratildeo de acordo com Espi-nosa os instrumentos que permi-tem a uma repuacuteblica estabelecere defender a paz e a concoacuterdiasem pocircr em risco a seguranccedila co-mum Este uacuteltimo passo requer

14 TTP p 33115 Sobre esta passagem decisiva da reflexatildeo poliacutetica de Espinosa veja-se dois recentes artigos que seguem em

direccedilatildeo anaacuteloga JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo cit e SKE-AFF C Becoming Political Spinozarsquos Vital Republicanism and the Democratic Power of Judgment Chicago ChicagoUniversity Press 2018

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levar em consideraccedilatildeo o segundoescrito poliacutetico espinosista o Tra-tado poliacutetico

3 - O processo coletivo de cons-truccedilatildeo da paz no Tratado poliacutetico

A transiccedilatildeo do primeiro para o se-gundo Tratado de Espinosa apre-senta imediatamente um pro-blema teoacuterico relevante que dizrespeito precisamente agrave relaccedilatildeoentre liberdade paz e seguranccedilaDe fato enquanto nas uacuteltimas paacute-ginas do Tratado Teoloacutegico-Poliacuteticoaparece a famosa definiccedilatildeo se-gundo a qual o verdadeiro fimda repuacuteblica eacute de fato a liber-dade16 por outro lado o TratadoPoliacutetico principia por uma afir-maccedilatildeo que parece ir na direccedilatildeooposta

Nem importa para a se-guranccedila do estado queacircnimo dos homens sejaminduzidos a administrarcorretamente as coisascontanto que as coisas se-jam corretamente admi-nistradas A liberdade deacircnimo ou fortaleza eacute comefeito uma virtude pri-vada ao passo que a se-guranccedila eacute a virtude do es-

tado17

Essas duas afirmaccedilotildees tecircm sido in-terpretadas como um sinal de mu-danccedila na atitude de Espinosa emrelaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo poliacutetica de seupaiacutes uma mudanccedila em direccedilatildeoa um maior realismo (ou pessi-mismo) do que o Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico mais militante e demo-craacutetico no segundo Tratado a se-guranccedila torna-se assim um ele-mento a ser salvaguardado maisimportante que a liberdade e por-tanto a paz deve ser entendidamais como toleracircncia e respeitomuacutetuo do que como concoacuterdia euniatildeo dos acircnimos

Na realidade uma leitura maiscuidadosa mostra que as coisassatildeo mais complexas e que natildeo eacutepossiacutevel contrapor claramente osdois escritos Em primeiro lugarmesmo no primeiro Tratado a se-guranccedila eacute considerada um obje-tivo fundamental de todo regimepoliacutetico e em particular da repuacute-blica cujo objetivo eacute

natildeo eacute dominar nem con-ter os homens pelo medoe submetecirc-los a um di-reito alheio eacute pelo con-traacuterio libertar o indiviacuteduodo medo a fim de que ele

16 TTP p 38317 Tratado Poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio revisatildeo de Homero Santiago Satildeo Paulo

WMF Martins Fontes 2009 p 9 Doravante TP

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viva tanto quanto possiacute-vel em seguranccedila isto eacutea fim de que ele preserve omelhor possiacutevel sem pre-juiacutezo para si ou para osoutros o seu direito na-tural a existir e a agir18

Nessas paacuteginas portanto Espi-nosa mostra como a questatildeo daseguranccedila estaacute implicada na da li-berdade por outro lado no Tra-tado Poliacutetico parece que entreos dois planos haacute uma distinccedilatildeoclara uma vez que a primeiradiz respeito agrave esfera puacuteblica en-quanto a segunda parece estarconfinada agrave dimensatildeo da existecircn-cia individual ou ainda da vidaprivada para a qual a paz de-penderia mais da criaccedilatildeo de umespaccedilo de seguranccedila individualdo que da interaccedilatildeo entre os ci-dadatildeos como se Espinosa tivesseassumido uma inclinaccedilatildeo hobbe-siana (isto eacute negativa) em rela-ccedilatildeo agrave possibilidade de estabelecerum espaccedilo comum de concoacuterdiano interior do Estado

Neste ponto eacute necessaacuterio apro-fundar as teses presentes no Tra-tado poliacutetico Dois satildeo os aspectosmais significativos que devem serevidenciados (1) o tema da segu-

ranccedila eacute assumido por Espinosa nointerior de um regime temporalimaginaacuterio como uma medida deflutuaccedilotildees afetivas no sentido deque a busca por seguranccedila se ex-prime como uma tentativa de que-brar definitivamente a sucessatildeocontiacutenua de medo e esperanccedila queproduz incerteza e mal-estar noshomens19 (2) se a seguranccedila eacute oobjetivo do Estado contudo nemtodo regime poliacutetico eacute adequadopara garanti-lo na verdade umEstado eacute seguro somente se fororganizado de modo a defenderseus suacuteditos natildeo apenas de amea-ccedilas externas mas tambeacutem de pe-rigos ldquointernosrdquo Assim evita-se por um lado que a sociedadese polarize em grupos de indiviacute-duos sui juris e alterius juris ndash ouainda estes subordinados agraveque-les20 ndash e por outro lado que abusca por seguranccedila leve a umaconcentraccedilatildeo de poder nas matildeosde poucos uma vez que os gover-nantes e em particular os reisnatildeo satildeo deuses mas homens quese deixam muitas vezes apanharpelo canto das sereias21 O prin-cipal problema com que Espinosase confronta portanto diz res-peito ao fato de que se o uacutenicomodo de vida seguro eacute estabili-

18 TTP p 38519 Cfr ISRAEumlL N ldquoLa question de la seacutecuriteacute dans le Traiteacute politiquerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY

A (eds) La multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008 pp 81-9320 Cfr TP II sect 921 TP VII sect 1 p 64

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zar os direitos naturais atraveacutesde leis esse processo envolve orisco de que um modelo de se-guranccedila seja imposto (para usarum termo do leacutexico poliacutetico con-temporacircneo) que isola os indiviacute-duos e os controla atraveacutes de umdispositivo que mistura medo econfianccedila cega na accedilatildeo das auto-ridades para escapar desse riscomais uma vez eacute necessaacuteria umaestrateacutegia coletiva22

Cabe ao Capiacutetulo V esclareceros princiacutepios dessa estrateacutegia quedeve necessariamente envolver omaior nuacutemero possiacutevel de cida-datildeos De fato se o direito deum Estado se define pela potecircn-cia da multidatildeo23 segue-se quesomente a participaccedilatildeo ativa damultidatildeo de cidadatildeos torna pos-siacutevel produzir leis que atinjam oobjetivo de uma comunidade po-liacutetica ou melhor ldquoa paz e a se-guranccedila de vida pelo que o me-lhor estado eacute aquele onde os ho-mens passam a vida em concoacuterdiae onde os direitos se conservaminvioladosrdquo 24 Emerge a essa al-tura uma definiccedilatildeo de paz quese opotildee explicitamente agrave famosatese hobbesiana que define a pazcomo o tempo residual em rela-

ccedilatildeo ao tempo da guerra25 con-trariamente Espinosa escreve queldquoda cidade cujos suacuteditos toma-dos pelo medo natildeo pegam em ar-mas deve antes dizer-se que estatildeosem guerra do que dizer-se quetecircm paz Porque a paz natildeo eacute au-secircncia de guerra mas virtude quenasce da fortaleza de acircnimordquo 26

O conceito de seguranccedila eacute assimredefinido com base em uma con-cepccedilatildeo ativa de paz que retomaa mesma loacutegica encontrada nas uacutel-timas paacuteginas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico e que pressupotildee a possibi-lidade concreta de que a multidatildeopossa exercer uma forccedila de auto-emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves con-diccedilotildees determinadas pelas leis einstituiccedilotildees

A multidatildeo ndash um nome que noTratado Poliacutetico define o conjuntode relaccedilotildees que vincula os indi-viacuteduos em uma comunidade po-liacutetica ainda que em uma dimen-satildeo dinacircmica e transformadora ndasheacute portanto a portadora de umaliberdade especiacutefica natildeo expliacutecitaou completamente racional No-vamente o capiacutetulo V afirma quea multidatildeo livre ldquoconduz-se maispela esperanccedila que pelo medo aopasso que uma multidatildeo subju-

22 Sobre a natureza estrateacutetgica do pensamento eacutetico e poliacutetico espinosano cfr BOVE L La strateacutegie du conatusAffirmation et reacutesistance chez Spinoza Paris Vrin 1996

23 TP II sect 17 p 2024 TP V sect 2 p 4425 ldquoA natureza da guerra natildeo consiste na luta real mas na conhecida disposiccedilatildeo para tal durante todo o tempo

em que natildeo haacute garantia do contraacuterio Todo o tempo restante eacute de pazrdquo (T Hobbes Leviatatilde I XIII traduccedilatildeo livre)26 TP V sect 4 pp 44-45

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gada conduz-se mais pelo medoque pela esperanccedilardquo 27 Nesse sen-tido a multidatildeo existe em funccedilatildeoda liberdade natildeo porque a de-seje conscientemente mas porquepertence agrave sua natureza a tendecircn-cia a se libertar ndash ao menos comouma fuga da solidatildeo e da escra-vidatildeo uma liberdade necessaacuteriaembora enigmaacutetica como a de-fendeu Franccedilois Zourabichvili28

em um belo ensaio haacute alguns anosatraacutes

Segundo Zourabichvili a liber-dade da multidatildeo coincide com oproblema poliacutetico da transiccedilatildeo deuma condiccedilatildeo de escravidatildeo paraum regime de autonomia talvezsomente parcial Isto significaque para Espinosa a liberdadenatildeo tem valor fundacional natildeosendo um direito natural originalque deve ser salvaguardado nemeacute um princiacutepio regulador que di-reciona a accedilatildeo de um sujeito paraum fim externo a ele a liberdadeeacute o iacutendice de uma praacutetica transfor-madora em contiacutenuo devir o re-sultado conjuntural e ao mesmotempo dos processos de transfor-maccedilatildeo sempre em ato da estruturade uma comunidade

Para retornar ao conceito espi-

nosano de paz creio que estaacute claroque a concepccedilatildeo erasmiana se-gundo a qual a paz coincide coma concoacuterdia e a uniatildeo fraterna doshomens encontra no Tratado po-liacutetico uma reinterpretaccedilatildeo poliacuteticaque pretende responder ao desa-fio proveniente do realismo ma-quiaveacutelico e hobbesiano Isso sig-nifica que por um lado o textoespinosano refuta uma concepccedilatildeoda concoacuterdia puramente moral ouutoacutepica uma vez que natildeo seria ca-paz de construir um Estado quegaranta a seguranccedila de seus cida-datildeos no entanto a paz natildeo podeser considerada como a mera au-secircncia de conflito jaacute que ldquodaquelacidade cuja paz depende da ineacuter-cia dos suacuteditos os quais satildeo con-duzidos como ovelhas para queaprendam soacute a servir mais cor-retamente se pode dizer uma so-lidatildeo do que uma cidaderdquo 29 Ocontraste ndash tambeacutem terminoloacutegicondash entre a multidatildeo e a solidatildeoque aparece nestas paacuteginas ex-prime com a maacutexima clareza oque definimos como estrateacutegia po-liacutetica de Espinosa o seu realismoanocircmalo como define Diego Ta-tiaacuten30 capaz de unir a forccedila ana-liacutetica de Maquiavel e Hobbes com

27 TP V sect 6 p 4528 ZOURABICHVILI F Lrsquoeacutenigme de la ldquomultitude librerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY A (orgs) La

multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique cit pp 69-8029 TP V sect 4 p 4530 TATIAacuteN D ldquoSpinoza un realismo anoacutemalo de la pazrdquo in Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofiacutea

Poliacutetica y Humanidades1632 2014 pp 93-109

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uma perspectiva poliacutetica que pre-tende dar efetividade aos proces-sos coletivos de emancipaccedilatildeo Asolidatildeo de fato natildeo representauma condiccedilatildeo apoliacutetica uma es-peacutecie de retorno do estado de na-tureza mas define aquele regime(que anteriormente era definidocomo de seguranccedila) no qual apotecircncia comum da multidatildeo estaacuteem seu grau miacutenimo fazendo comque os cidadatildeos individuais vivamem uma condiccedilatildeo de isolamento eindiferenccedila muacutetuos ndash condiccedilatildeo ge-rada pelo poder poliacutetico ndash o quetorna extremamente difiacutecil a co-municaccedilatildeo e com ela a ativaccedilatildeode processos de muacutetuo acordo ecolaboraccedilatildeo

Para combater esta tendecircncia ndashalimentada pela ineacutercia e passi-vidade proacutepria das paixotildees tris-tes e da supersticcedilatildeo que sempreem certa medida atravessam amultidatildeo ndash Espinosa desenvolveuma seacuterie de medidas institucio-nais que desempenham a tarefa defortalecer os afetos alegres contri-buindo assim agrave produccedilatildeo de di-reitos coletivos comuns e ao forta-lecimento da uniatildeo e da concoacuterdiados acircnimos Vale a pena recordar

rapidamente algumas dessas ins-tituiccedilotildees da multidatildeo (que se) li-berta uma para cada forma de go-verno (1) o exeacutercito popular quesobretudo em uma monarquiaimpede o soberano de fazer guerrapara seu ganho pessoal e contrao interesse de seus suacuteditos31 (2)as formas de controle dos regi-mes aristocraacuteticos por parte doscidadatildeos em particular o sistemade remuneraccedilatildeo dos governantesde tal modo que ldquopara eles sejade mais utilidade a paz do que aguerrardquo 32 (3) a abertura de car-gos puacuteblicos para todos os cida-datildeos em uma democracia o queimpede que um grupo limitado deindiviacuteduos monopolize os postosdo governo33 No entanto aleacutemdas numerosas medidas de enge-nharia institucional que Espinosapropotildee no Tratado Poliacutetico haacute tam-beacutem outro instrumentordquo de fun-damental importacircncia ndash aleacutem dasleis e instituiccedilotildees ndash para impedira gecircnese de um regime baseadona solidatildeo qual seja o direito deguerra que constitui o baluarte ex-tremo da liberdade da multidatildeode fato se as leis de um Estado

31 Cfr TP VI sect 10 p 51 ldquoO exeacutercito deve ser formado soacute por cidadatildeos sem excetuar nenhum e por maisningueacutem de maneira que todos tenham de ter armas e ningueacutem seja admitido no nuacutemero dos cidadatildeos a natildeo serdepois de ter preparaccedilatildeo militar e se comprometer a exercitaacute-la em determinadas alturas do anordquo

32 TP VIII sect 31 p 10533 Cfr TP XI sect 1 p 137 ldquotodos aqueles cujos pais satildeo cidadatildeos ou que nasceram no solo paacutetrio ou que satildeo

benemeacuteritos da repuacuteblica ou a quem a lei por outros motivos manda atribuir o direito de cidade todos essesdigo reclamaratildeo para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado o qualnatildeo eacute liacutecito recusar-lhes a natildeo ser devido a crime ou infacircmiardquo

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satildeo de natureza tal quenatildeo podem ser violadassem que ao mesmo tempose debilite a robustez dacidade isto eacute sem que aomesmo tempo o medo co-mum da maioria dos cida-datildeos se converta em indig-naccedilatildeo a cidade por issomesmo dissolve-se e cessao contrato o qual porconseguinte natildeo eacute defen-dido pelo direito civil maspelo direito de guerra34

A referecircncia a um direito (oumelhor a uma forccedila para natildeocair no equiacutevoco de pensar emum Espinosa monarcocircmaco) queexcede o niacutevel do direito estataltambeacutem estaacute presente nas paacuteginasconclusivas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico onde se afirma que namaioria dos homens haacute uma ten-decircncia inevitaacutevel para resistir agraveopressatildeo a ponto de ldquojulgaremque eacute uma coisa mais honesta enatildeo uma vergonha que natildeo sejasomente com as pretensotildees decrimesrdquo 35

Para concluir nas paacuteginas dosdois tratados poliacuteticos espinosa-

nos mesmo que trilhando per-cursos diferentes eacute apresentadaa mesma tentativa de repensara concepccedilatildeo humanista de paze concoacuterdia apoacutes o desafio tra-zido pelo realismo antropoloacutegicoe poliacutetico de Maquiavel e Hob-bes Para tornar eficaz o projetode Erasmo eacute necessaacuterio politizaacute-lo ou melhor reconhecer que soacute eacutepossiacutevel atraveacutes do envolvimentoativo da multidatildeo em cuja potecircn-cia se radica a busca do bem co-mum (a res publica) se natildeo paragarantir a paz de forma definitivapelo menos para impedir que setransforme em solidatildeo e subservi-ecircncia ao poder de um Somenteuma praacutetica comum que potildee emjogo a imaginaccedilatildeo os afetos e a ra-zatildeo coletivas pode gerar uma pazque consiste natildeo apenas em evitara morte mas tambeacutem e sobretudono cultivar a vida Por essa ra-zatildeo natildeo pode haver uma condiccedilatildeode paz que natildeo seja tambeacutem umacondiccedilatildeo de liberdade tanto indi-vidual quanto coletiva uma liber-dade sempre por recomeccedilar oucomo escreve Marilena Chaui porintroduzir o novo no mundo36contra a repeticcedilatildeo interminaacutevel emortal da guerra e da escravidatildeo

34 TP IV sect 6 p 4135 TTP XX p 38836 CHAUI M ldquoSeguranccedila e liberdade Espinosa e a construccedilatildeo da pazrdquo in Discurso 35 2005 pp 158-159

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Referecircncias

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ZOURABICHVILI F ldquoLrsquoeacutenigme de la primemultitude libreprime rdquo in JAQUET CSEacuteVEacuteRAC P SUHAMY A (orgs) La multitude libre Nouvelles lectures

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du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225780

Comunicaccedilatildeo e Silecircncio na Experiecircncia PoliacuteticaEspinosana

[Communication and Silence in the Spinozist Political Experience]

Daniel Santos da Silva

Resumo Um problema fundamental eacutetico e poliacutetico a comunicaccedilatildeoencerra menos a preocupaccedilatildeo com a verdade como mero objeto doque com os afetos como exerciacutecio de vida e explicitaccedilatildeo praacutetica daexperiecircncia que ensina Aqui alguns elementos satildeo elencados paracaracterizar a difiacutecil relaccedilatildeo do filoacutesofo ndash da filosofia da reflexatildeo dopensamento criacutetico ndash com a violecircncia (anti)poliacutetica que se expressaem muitas ocasiotildees no verbo idiota ndash poreacutem agraves vezes efetivo ndash e naproliferaccedilatildeo do oacutedio do medo e da exclusatildeoPalavras-chave Comunicaccedilatildeo silecircncio afetos poliacutetica

Abstract A fundamental ethical and political problem communica-tion has less concern with truth as a mere object than with affectionsas the exercise of life and the practical explanation of the experiencethat teaches Here some elements are listed to characterize thephilosopherrsquos - philosophy reflection critical thinking - difficultrelationship with the (anti)political violence that is often expressedin the verb idiot - but sometimes effective - and in the proliferationof hatred fear and exclusionKeywords Communication silence affections politics

A cautela era reconhecidamentea marca de Espinosa A palavracaute figurava no anel de sinetecom o qual selava suas correspon-decircncias ao se comunicar com ami-gos em muitas das quais eramressaltados alguns dos perigos queatingem a quem pensa livrementepor outro lado tambeacutem outrastantas cartas e escritos de Espi-nosa nos permitem tomar essa fi-losofia por uma exposiccedilatildeo clara

de como a paixatildeo do medo des-figura nossas potecircncias amorteceas veias de comunicaccedilatildeo essenci-ais agrave proacutepria existecircncia da vidacoletiva Ora como distinguir aprudecircncia presente no emblemaCaute para a comunicaccedilatildeo do pen-samento livre sem a confundircom a paixatildeo de medo que a des-figura Afinal segundo Espinosauma eacute a potecircncia de viver e resistirpela esperanccedila de vida outra eacute a

Professor da Universidade Estadual do Paranaacute (UNESPAR) Doutor em Filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo E-mail danidani_ssyahoocombr ORCID httpsorcidorg0000-0002-3841-2516

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potecircncia (ou impotecircncia) na confi-guraccedilatildeo de meios e fins para ape-nas existir com o medo da morte

a multidatildeo livre conduz-se mais pela esperanccedilaque pelo medo ao passoque uma multidatildeo subju-gada conduz-se mais pelomedo que pela esperanccedilaaquela procura cultivara vida esta procura so-mente que evitar a morteaquela sublinho procuraviver para si esta eacute obri-gada a ser do vencedor edaiacute dizermos esta eacute servae aquela eacute livre () Eembora entre o estado queeacute criado pela multidatildeo li-vre e aquele que eacute adqui-rido por direito de guerrase atendermos generica-mente ao direito de cadaum natildeo haja nenhumadiferenccedila essencial con-tudo quer o fim como jaacutemostramos quer os meioscom os quais cada um de-les se deve conservar tecircmenormes diferenccedilas (ESPI-NOSA 2009 p 45)

Poreacutem ainda que o medo indi-que servidatildeo ele eacute paixatildeo inso-luacutevel e encarnada em muitos dosmovimentos afetivos que realiza-mos entre outras pessoas muitas

vezes a serviccedilo de barrar a ambi-ccedilatildeo de quem se imagina melhore vive como melhor frente agrave po-tecircncia da multidatildeo De qualquermaneira ao propormos a questatildeosobre comunicaccedilatildeo e o silecircncio napoliacutetica raramente a prudecircnciaa deliberaccedilatildeo ou a cautela foramreduzidas na filosofia agrave paixatildeo domedo Haacute linhas que podem serbem demarcadas entre as duasposturas na cautela um certo co-nhecimento das coisas do mundotende a orientar os passos a se-rem dados se temos em vista umfim o medo em geral apenas des-nuda nossa impotecircncia e ignoracircn-cia por isso natildeo nos surpreendeque inclusive quem se guia portal paixatildeo se ponha a vociferar e afingir destemor quando instacircnciasdeterminadas garantem proteccedilatildeoou anonimato O medo pode fa-zer calar mas pode igualmente fa-zer gritar alucinadamente A cau-tela por sua vez tambeacutem podenos fazer calar mas nunca com-pletamente como mostraremos aseguir e o grito que pode acompa-nhar a cautela eacute de outra naturezaque a do medo - uma espeacutecie deconhecimento que acompanha acautela faz do grito algo expres-sivo de quem se comunica a cau-tela esconde o que pode ser escon-dido (natildeo haacute desejo de martiacuterio)mas expotildee o que pode e deve servivido

Satildeo sentidos de urgecircncia dis-

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COMUNICACcedilAtildeO E SILEcircNCIO NA EXPERIEcircNCIA POLIacuteTICA ESPINOSANA

tintos mesmo assim natildeo dicotocirc-micos pois somos habitados porafetos muacuteltiplos e a coerecircncia quedeles podemos trazer conosco eacutesempre esforccedilo (conatus) A praacuteticaespinosana da filosofia funda-seno desejo (conatus-cupiditas) tam-beacutem de comunicar-se e a coerecircn-cia de nossos esforccedilos estaacute mais nanecessidade de fazer fluir experi-ecircncias vitais do que em produzirdiscursos sem contradiccedilotildees Nessesentido o mais determinante satildeoos afetos comuns que nos asseme-lham e nos diferenciam em nossasexperiecircncias vitais e se expressama nossas proacuteprias vistas A expe-riecircncia de comunicar-se entatildeo eacutepor demais complexa e natildeo resideapenas em disseminar ideias ade-quadas (em uma sorte de vanguar-dismo filosoacutefico) tampouco emsimplesmente informar (um certotipo de razatildeo instrumental discur-siva) Em vez disso o ponto co-mum de que partimos para com-preender as experiecircncias poliacuteticassatildeo as paixotildees os afetos comunscomo medo e esperanccedila tal comose apresentam na praacutetica aqui re-tomada para relembrar o lema es-pinosano do Tratado poliacutetico a rei-vindicaccedilatildeo por uma filosofia po-liacutetica que compreenda as paixotildeesde modo realista e natildeo utoacutepico eque portanto natildeo seja apenas sa-ber teoacuterico discursivo distante dapraacutetica Sem serem condenadaspela imagem de uma natureza de-

caiacuteda e viacuteciosa as paixotildees seratildeoali compreendidas como proprie-dades humanas tal com o planoe a reta satildeo propriedades das fi-guras geomeacutetricas As paixotildeesentretecem as relaccedilotildees dos sereshumanos como prevalentementeambiciosos invejosos e aacutevidos dedistinccedilatildeo ao mesmo tempo emque pelas mesmas propriedadesda natureza humana compreen-demos tambeacutem a solidariedade agenerosidade a fortaleza

Os afetos mais ativos que decor-rem de nossa natureza satildeo con-cretamente exerciacutecio vivo de rela-ccedilotildees que carregam consigo o pen-samento reflexivo satildeo igualmenteproduccedilotildees efetivas de laccedilos entreo indiviacuteduo e o que o cerca maisfirmes que a parceria efecircmera comas coisas e pessoas fundada na ri-queza no prazer ou na gloacuteria ouem outras paixotildees dessa estirpepara lembrar o proecircmio Tratadoda emenda do intelecto (Espinosa2015b) Ao fim natildeo eacute a ldquoideiada verdaderdquo que determina nos-sas accedilotildees pois mesmo no campoda compreensatildeo racional a po-tecircncia intelectual que somos eacute to-mada como expressatildeo de afetos Averdade portanto natildeo opera comonegaccedilatildeo das paixotildees e nem umaideia verdadeira eacute capaz de refrearas paixotildees afinal eacute a forccedila de umafeto contraacuterio e mais forte (sejaele racional ou irracional ade-quado ou inadequado) que pode

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suprimir por exemplo o medo1Esse contexto nos aproxima deideias fundamentais da eacutetica es-pinosana e poderaacute nos oferecer oreal sentido afetivo do que o filoacute-sofo entende por cautela

Certo dia encontrei um textode Joaquim de Carvalho sobre oanonimato de Espinosa na publi-caccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-poliacuteticoque traduz o que aqui defendemosa propoacutesito de sua cautela

Espinosa natildeo nascera comalma de maacutertir Ele ti-nha que dizer aos con-temporacircneos e aos vin-douros preocupava-o odestino da mensagem enatildeo a fama de a haverproferido Se declarasseo nome abriam-se-lhe asportas do caacutercere e agrave infacirc-mia da pessoa sucederiama reclusatildeo e a ignoracircnciado seu pensamento Ondeestaacute o filoacutesofo que natildeo an-teponha a discussatildeo dasideias ao renome da pes-soa ao viver o pervivere para resguardar o des-tino das suas meditaccedilotildeesnatildeo recate o ser fiacutesico seisso for propiacutecio Natildeo

o anonimato do TratadoTeoloacutegico-Poliacutetico natildeo eacuteprova de repulsiva cobar-dia pelo que sabemosou antes ignoramos daiacutendole de Espinosa pen-samos antes que eacute teste-munho da humanitas seumodestia virtude que aEacutetica admiravelmente de-fine (CARVALHO 2019)

O anonimato recobre a prudecircn-cia e natildeo menos a urgecircncia deintervir filosoficamente na expe-riecircncia comum poliacutetica que porsua vez intervinha diretamenteem sua vida a ponto de quase sermorto quando esfaqueado por umldquoinimigordquo amedrontado pelo livrepensar No caso a pobre expe-riecircncia poliacutetica do medo das li-vres ideias natildeo se identifica pron-tamente agraves atitudes violentas dequem teme o livre comunicar-sendash ao contraacuterio podemos afirmarque a violecircncia eacute a fronteira paralaacute da qual a experiecircncia poliacuteticatorna a ser experiecircncia de guerra(natildeo de conflito nos moldes a queestamos acostumados contempo-raneamente pois aqui retomamosa partir de Maquiavel e Espinosaa reflexatildeo sobre direito de guerra)

1 Remeto agrave quarta parte da Eacutetica Proposiccedilatildeo I (Espinosa 2015a p 383) ldquoNada que uma ideia falsa tem depositivo eacute suprimido pela presenccedila do verdadeiro enquanto verdadeirordquo e a Proposiccedilatildeo VII (Espinosa 2015a p389) ldquoUm afeto natildeo pode ser coibido nem suprimido a natildeo ser por um afeto contraacuterio e mais forte que o afeto aser coibidordquo

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Espinosa seguia as trilhas de ummundo poliacutetico em seu tempoque insinuava constantemente oterror como forccedila capaz de manterunida a repuacuteblica de fazer passara disseminaccedilatildeo da violecircncia porforccedila integradora e restauradorade potecircncia poliacutetica

Assim a cautela provoca silecircn-cios estrateacutegicos e pode ocultarum nome enquanto expotildee algoprofundamente poliacutetico e devesaber discernir na experiecircncia po-liacutetica o que esta experiecircncia re-vela de violento de antipoliacuteticode desejo de exclusatildeo e destrui-ccedilatildeo A maior dificuldade surgeexatamente quando a comunica-ccedilatildeo ela mesma e suas condiccedilotildeesde efetividade satildeo deturpadas ateacuteque a violecircncia que perpassa cer-tas accedilotildees seja vista como ato poliacute-tico ndash como as que se substanciamna negaccedilatildeo da alteridade das di-ferenccedilas ndash e que as possibilidadesde comunhatildeo sejam tatildeo bloquea-das agraves nossas vistas cansadas docotidiano que o que diz respeitode fato agrave cidade passa a ser ne-gligenciado ou mesmo excomun-gado como peacuterfido e prejudicial ndashpodemos reconhecer bem a persis-

tecircncia nesse caso da imagem dopoliacutetico2 peacuterfido sempre a pre-parar armadilhas e sua extrapo-laccedilatildeo justamente segue na mesmaesteira daquilo que poderia produ-zir o reverso alguma forma de es-clarecimento na multiplicaccedilatildeo dosmeios de comunicaccedilatildeo

O falar e o calar sentimos mui-tas vezes constituem uma expe-riecircncia eacutetica tanto quanto poliacute-tica Espinosa escreve no escoacutelioda segunda proposiccedilatildeo da terceiraparte da Eacutetica as coisas humanasdar-se-iam muito mais felizmentese nos homens estivesse igual-mente o poder (potestate) tanto defalar quanto de calar Ora a expe-riecircncia ensina mais que suficien-temente que os homens nada tecircmmenos em seu poder do que a liacuten-gua e que nada podem menos doque moderar seus apetites (Espi-nosa 2015 p 245) Se a poliacuteticaexiste em funccedilatildeo da dificuldadeintriacutenseca agrave existecircncia humana demoderar os apetites existe tam-beacutem como esfera de moderaccedilatildeo dafala - e o moderar tambeacutem nos en-via ao governar ao criar medidas(impor a justeza) Nesse sentidoo campo poliacutetico potildee-se tambeacutem

2 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 pp 6-7) ldquoOs poliacuteticos pelo contraacuterio crecirc-se que em vez de cuidaremdos interesses dos homens lhes armam ciladas e mais do que saacutebios satildeo considerados habilidosos A experiecircnciana verdade ensinou-lhes que enquanto houver homens haveraacute viacutecios Daiacute que ao procurarem precaver-se damaliacutecia humana por meio daquelas artes que uma experiecircncia de longa data ensina e que os homens conduzidosmais pelo medo que pela razatildeo costumam usar pareccedilam adversaacuterios da religiatildeo principalmente dos teoacutelogos osquais creem que os poderes soberanos devem tratar dos assuntos puacuteblicos segundo as mesmas regras da piedadeque tem um homem particular Eacute no entanto inquestionaacutevel que os poliacuteticos escreveram sobre as coisas poliacuteticas demaneira muito mais feliz que os filoacutesofos Dado com efeito que tiveram a experiecircncia por mestra natildeo ensinaramnada que se afastasse da praacuteticardquo

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como produtor de sentido de falase pode ser encarado como condi-ccedilatildeo de muitas expressotildees comunsmas inversamente pode ser ter-reno de violecircncia agravequilo que seconstitui comunitariamente

A violecircncia pode estar no calaraquela a que mais atentamos nor-malmente pode estar tambeacutemcontudo no fazer falar no induziragrave expressatildeo falada forma menoscostumeira aparentemente masdas mais recorrentes em nossosdias O transtorno dessa formade induccedilatildeo agrave tagarelice eacute legiacutevelna escrita de Espinosa seja por-que admite que apesar de natildeo sertatildeo faacutecil submeter acircnimos comose submetem liacutenguas os acircnimosestatildeo de certa forma sob os pode-res soberanos e se submetem aosmeios capazes de levar a maioriaa amar e odiar o que querem taispoderes ndash mais a gritar de oacutedio oude amor com a medida a mode-raccedilatildeo requerida para suas finali-dades (ESPINOSA 2008 p 252)seja enfim porque prognosticanessa menor dificuldade em do-minar as liacutenguas que os acircnimosa necessaacuteria violecircncia em que re-cai toda forma de poder que seexerce sobre nossa liberdade deraciocinar e de ajuizar Em rela-ccedilatildeo a isso lembremos as primei-ras linhas do uacuteltimo capiacutetulo doTratado Teoloacutegico-Poliacutetico

Se fosse tatildeo faacutecil mandar

nos acircnimos como eacute man-dar na liacutenguas natildeo have-ria nenhum governo quenatildeo estivesse em segu-ranccedila ou que recorresse agraveviolecircncia uma vez que to-dos os suacuteditos viveriam deacordo com o desiacutegnio dosgovernantes e soacute em fun-ccedilatildeo das suas prescriccedilotildees eacuteque ajuizariam do que erabom ou mau verdadeiroou falso justo e iniacutequo(ESPINOSA 2008 p 300)

O tom quase matemaacutetico natildeo sur-preende pelo menos a quem natildeoespera juiacutezo moral dessa filoso-fia poliacutetica o que temos no con-texto dessa citaccedilatildeo eacute uma sorte dealerta a quem pretende dominar ndashe como isso apenas eacute possiacutevel sea potecircncia de muitos daacute suportea tamanha ambiccedilatildeo a consequecircn-cia mais necessaacuteria que daiacute segueeacute a violecircncia sempre agrave sombrade pensamentos e praacuteticas irredu-tiacuteveis em sua persistecircncia eacutetico-poliacutetica A liberdade de fala es-tudo e ensino diferencia-se do cul-tivo da fala violentamente antipo-liacutetica como a resistecircncia de quemdeseja a liberdade diferencia-se dodesejo de abandonar a potecircnciaproacutepria Nessa configuraccedilatildeo emque a fala antipoliacutetica exerce o do-miacutenio poliacutetico satildeo os indiviacuteduosmais notaacuteveis pelo conhecimentoe pelo exerciacutecio da comunicaccedilatildeo

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pelo envolvimento livre e afetivocom as partes mais violentadas dacidade que seratildeo os primeiros per-seguidos nos confrontos ndash aindaque verbais ndash que se instalam emmeio agrave ldquocomunidaderdquo3

O ldquomandar nos acircnimos e nasliacutenguasrdquo em nome da seguranccedilaa que busca o exerciacutecio violentode poder no Tratado Teoloacutegico-poliacutetico natildeo se identifica poiscom a definiccedilatildeo de seguranccedila doTratado poliacutetico4 entendida comouma virtude da cidade correspon-dente agrave virtude privada que jus-tamente preserva a liberdade e afortaleza do acircnimo Neste caso aindividual liberdade de acircnimo (oufortaleza) se realiza na mesma me-dida em que sinaliza a concreccedilatildeodos direitos naturais dos indiviacute-duos em atividade comum comovemos muito bem articulado nosegundo Tratado Paralelamentea ilusoacuteria liberdade de expres-sar em fala o oacutedio ndash ou de per-seguir odiosamente a fala livre ndashnessa configuraccedilatildeo em que com-plexos imaginaacuterios (efetivos) de

dominaccedilatildeo formatam a poliacuteticaeacute impregnada de arrebatamentoem crenccedilas e em desprezos quesurgem como escreve Espinosasob a autoridade e a orientaccedilatildeo dequem domina ndash o que a experi-ecircncia abundantemente confirma(ESPINOSA 2008 p252)

E porque satildeo muitos os indi-viacuteduos orientados pela liberdadeilusoacuteria e arrebanhados pela am-biccedilatildeo de domiacutenio de poucos oua imagem da poliacutetica se apro-xima da dinacircmica de um sindi-cato de ladrotildees ou ela eacute reformu-lada Ora isso que implica ou-tra armadura para o que se consi-dera a experiecircncia poliacutetica outramedida (moderaccedilatildeo) para o quese tem vulgarmente por accedilatildeo po-liacutetica e na mesma corrente poraccedilatildeo puacuteblica Se o pouco poderque temos sobre nossas liacutenguaspode ser deixado a quem desejadominar se aleacutem disso para do-minar eacute preciso atacar os acircnimosdos indiviacuteduos um meio eficazpara isso seria exatamente emprimeiro lugar dar agrave voz submissa

3 No Tratado Teoloacutegico-poliacutetico (ESPINOSA 2008 p 307) ldquoQuanto mais natildeo valeria conter a ira e o furordo vulgo em vez de promulgar leis inuacuteteis que soacute podem ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e asartes leis que reduzem o Estado a uma situaccedilatildeo tal que eacute incapaz de defender os homens livres Que coisa piorpode imaginar-se para um Estado que serem mandados para o exiacutelio como indesejaacuteveis homens honestos soacute por-que pensam de maneira diferente e natildeo sabem dissimular () os que sabem que satildeo honestos natildeo tecircm como oscriminosos medo de morrer nem imploram clemecircncia na medida em que natildeo os angustia o remorso de nenhumfeito vergonhoso recusam-se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e tecircm por uma gloacuteria dar a vidapela liberdade Que exemplo poderaacute entatildeo ter ficado da morte de pessoas assim cujo ideal eacute incompreendido pelosfracos e moralmente impotentes odiado pelos revoltosos e amado pelos homens de bem Ningueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum a natildeo ser para os imitar ou pelo menos admirarrdquo

4 No Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 9) ldquoNem importa para a seguranccedila do estado (imperium) com queacircnimo os homens satildeo induzidos a administrar corretamente as coisas contanto que as coisas sejam corretamenteadministradas A liberdade de acircnimo ou fortaleza eacute com efeito uma virtude privada ao passo que a seguranccedila eacute avirtude do estadordquo

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todo incentivo agrave fala (entendidaaqui como falsa liberdade de co-municaccedilatildeo) e em segundo lugarinversamente agrave verdadeira liber-dade de juiacutezo e de acircnimo dar aresde subversatildeo de amotinamento oqual eacute fundado em realidade nacomunicaccedilatildeo do que eacute verdadeira-mente uacutetil ao comum

Nessa configuraccedilatildeo em ambosos casos o medo eacute o afeto mais co-mum ainda assim traccedilos diversosdenunciam a natural diferenccedila en-tre os locais em que habita se pen-samos em termos maquiavelianosnotamos que o desejo de domiacute-nio eacute inseparaacutevel do medo a tudomedo da verdade ndash como desejode ser enganado5 ndash eis uma dasrazotildees de natildeo poder durar e Es-pinosa relembra Secircneca para afir-mar que o despotismo tem neces-sariamente vida curta (Espinosa2008 p 86) Por outro lado o de-sejo de natildeo ser dominado ndash e tam-beacutem o desejo que persiste em natildeoser governado por semelhantes ndashenlaccedila o medo inevitaacutevel pela proacute-pria sobrevivecircncia mas especial-

mente questiona a permanecircnciada vida como simples sobrevida6

Talvez entatildeo possamos pers-pectivar como resistecircncia a ne-gaccedilatildeo a aderir agrave fala orientada equem sabe ateacute possamos ver nissoo silecircncio como constituiccedilatildeo emalguns momentos de verdadeiraalianccedila comunicativa Em certasconfiguraccedilotildees haacute resistecircncia ativano silecircncio assim como haacute igual-mente cautela no pronunciar-seou no anunciar-se inevitavel-mente existe o vazio das falassubmissas e fundadas na negaccedilatildeoe no medo da liberdade comumPara que uma asserccedilatildeo como essafaccedila sentido hoje natildeo liguemosagrave ideia de dominaccedilatildeo apenas go-vernantes poliacuteticos jaacute que meiose instrumentos de subjugaccedilatildeo doacircnimo muito se complexificaram erefinaram-se A eficaacutecia atual so-bre os acircnimos jaacute eacute capaz de fazerparecer bobagem falar ndash critica-mente natildeo como frase pronta demercadoria ndash em desejo de liber-dade

Portanto a violecircncia poliacutetica

5 Cf essa bela passagem de MARILENA CHAUI em Poliacutetica em Espinosa p 279 ldquoO soberbo no orgulhodesmedido considera que tudo lhe eacute permitido o abjeto na humilhaccedilatildeo desmedida considera que nada lhe eacutepermitido O primeiro se torna dominador insolente o outro servo adulador invejoso e ressentido Ambos sub-missos agraves suas paixotildees satildeo fonte de novas servidotildees pois o soberbo julga-se livre porque domina e despreza osoutros enquanto o abjeto adulador imagina-se dependente dos favores do soberbo que por definiccedilatildeo nunca hatildeode vir Assim o segundo movimento do texto do Poliacutetico (VII 27) inicia-se quando transferido o topos livianoda plebe para o vulgar passamos daquele que se deixa enganar por inexperiecircncia e ignoracircncia agravequele que desejaser enganado por orgulho e ambiccedilatildeo ou por auto-abjeccedilatildeo Por isso servidatildeo e liberdade natildeo andam juntas pois osoberbo eacute servo de suas paixotildees que o fazem servo de seus aduladores e estes servos de suas paixotildees que os fazemservos do dominadorrdquo

6 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 45) ldquoQuando por conseguinte dizemos que o melhor estado eacuteaquele onde os homens passam a vida em concoacuterdia entendo a vida humana a qual natildeo se define soacute pela cir-culaccedilatildeo do sangue e outras coisas que satildeo comuns a todos os animais mas se define acima de tudo pela razatildeoverdadeira virtude e vida da menterdquo

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natildeo existe porque haacute acircnimos in-submissos ndash simplesmente exis-tem potecircncias singulares e ativi-dades comuns e a violecircncia acom-panha o desejo de dominar o qualem geral tem braccedilos curtos e vozrouca pois para homenagear LaBoeacutetie precisa invariavelmente demuitos braccedilos e vozes estridentespara agir e a arena poliacutetica eacute umpalco bem iluminado para isso Eacutenessa linha que do oacutedio do des-prezo e de tudo mais surgido dodesejo de dominar de poucos Es-pinosa afirma

E se bem que esses senti-mentos natildeo surjam direta-mente por ordem do sobe-rano muitas vezes comoa experiecircncia abundante-mente confirma eles sur-gem no entanto por forccedilade sua autoridade e sobsua orientaccedilatildeo daiacute quepossamos conceber semviolentar minimamente ainteligecircncia homens quenatildeo acreditem odeiemdesprezem ou sejam arre-batados por qualquer ou-tro sentimento a natildeo serem virtude do direito doEstado (ESPINOSA 2008p252)

Suponho pois que a cautela e apotecircncia que ela envolve mais quenunca passam por resistir a certasfalas a calar o nome de si em oca-siotildees determinadas a comunicarateacute no silecircncio mas repudia maxi-mamente o medo mesmo que delenatildeo se livre completamente mui-tas vezes Por outro lado supo-nho que a comunicaccedilatildeo constitu-tiva da experiecircncia poliacutetica muacutel-tipla obviamente eacute hostil agrave pro-liferaccedilatildeo do oacutedio e da exclusatildeoe que toda resistecircncia ou accedilatildeo li-vre quando poliacutetica eacute conflito di-reto com quem usurpa o direitodo indiviacuteduo dando-lhe voz ndash quequando uacutetil eacute conquistada natildeodada ndash e orientando de mil modossua fala que assim seraacute constan-temente uma fala contra generali-zante nem por isso todas e todosque assim falam aderem de fatoao oacutedio ao desprezo eacute de se no-tar que violecircncias satildeo exercidas so-bre indiviacuteduos quando na cidade osinstrumentos mais eficazes de comu-nicaccedilatildeo satildeo antipoliacuteticos e a poliacute-tica passa a alimentar a ilusatildeo deque a voz publicizada eacute jaacute voz poliacute-tica ocultando que a experiecircncia queaiacute se constitui eacute primordialmente denegaccedilatildeo de subserviecircncia ndash de circopor que natildeo

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Referecircncias

CARVALHO J de Espinosa e a publicaccedilatildeo do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoArtigo eletrocircnico [Acessado em 03 de junho de 2019]

CHAUI M Poliacutetica em Espinosa Satildeo Paulo Companhia das Letras2003

ESPINOSA B de Tratado poliacutetico Trad de Diogo Pires Aureacutelio SatildeoPaulo Martins Fontes 2009

_____________ Eacutetica Trad do Grupo de Estudos Espinosanos SatildeoPaulo Edusp 2015a

_____________ Tratado teoloacutegico-poliacutetico Trad Diogo Pires AureacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2008

_____________ Tratado da emenda do intelecto Trad de Cristiano No-vaes de Rezende Campinas Editora da Unicamp 2015b

LA BOEacuteTIE Etienne Discurso da servidatildeo voluntaacuteria Trad LaymertGarcia dos Santos Satildeo Paulo Brasiliense 1999

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225632

Sobre o Desespero Satildeo Paulo Junho de 2013[Of Despair Satildeo Paulo June 2013]

Fernando Bonadia de Oliveira

Resumo Este artigo pretende analisar as jornadas de junho de 2013na cidade de Satildeo Paulo assumindo como perspectiva a definiccedilatildeo dedesespero elaborada por Bento de Espinosa (1632-1677) na parte IIIda Eacutetica A partir da ideia de que houve um sequestro da narrativasobre as jornadas o texto reconstitui a cobertura midiaacutetica dos qua-tro primeiros atos contra o aumento da tarifa do transporte puacuteblicoocorridos na cidade entre os dias 6 e 13 de junho Em seguida arti-cula uma discussatildeo a respeito das interfaces possiacuteveis entre a filosofiapraacutetica de Espinosa e estes acontecimentos evidenciando como se-gundo certa interpretaccedilatildeo o desespero pode ser considerado o afetopredominante das jornadas tendo como principal protagonista umajuventude organizada combativa e criacuteticaPalavras-chave Jornadas de Junho de 2013 Bento de Espinosa De-sespero Movimento Social Juventud

Abstract This article intends to analyze the journey occurred inJune 2013 in the city of Satildeo Paulo assuming the definition of despairdeveloped by Benedictus Spinoza (1632-1677) in his treatise Ethics IIIas perspective From the point of view that the narrative about thejourneys was sequestered the text reconstitutes the media coverageof the four initial actsprotests against the public transport tax raiseoccurred among june 6th to 13th Following this a discussion aboutthe correlations between the practical philosophy of Spinoza andthese events is developed showing how according to a way of in-terpreting the case despair can be considered the predominantaffect of those acts with an organized combative and critic youth asprotagonistKeywords June Journeys in Satildeo Paulo Benedictus Spinoza DespairSocial Movement Youth

Uma introduccedilatildeo necessaacuteria

Este artigo corresponde agrave pri-meira parte de um estudo ainda

em desenvolvimento sobre as jor-nadas de junho de 20131 na cidade

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Doutor em Filosofia pela Universidade deSatildeo Paulo (USP) E-mail fernandofilosofiahotmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-4627-3162

1 As jornadas de junho de 2013 correspondem a ldquovaacuterias manifestaccedilotildees populares por todo o paiacutes que inici-almente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte puacuteblico principalmente nas principaiscapitaisrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiJornadas_de_Junho Acesso 23 de fevereiro de 2019 Aforma de nomear o evento varia muito Entre as designaccedilotildees mais comuns estatildeo atos (denominaccedilatildeo do MovimentoPasse Livre) acontecimentos (SINGER 2013 p 26) protestos (GOHN 2014 p 435) e manifestaccedilotildees (CHAUI

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FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA

de Satildeo Paulo segundo a percepccedilatildeode um leitor-filoacutesofo de Espinosa2As inquietaccedilotildees que conduziramao problema aqui examinado nas-ceram de minha participaccedilatildeo noseventos poliacuteticos entatildeo deflagra-dos nas ruas e por conseguinteenvolvem uma dimensatildeo maior desubjetividade

A metodologia de pesquisa en-sina os casos em que a coleta dedados por meio de uma observa-ccedilatildeo cientiacutefica rigorosamente pla-nejada pode ser um excelente re-curso de investigaccedilatildeo de tal modoque as impressotildees pessoais do pes-quisador natildeo deformem a reali-dade observada Um investigadoresclarecido ao preparar devida-mente a observaccedilatildeo da situaccedilatildeo apesquisar potildee agraves claras para suaproacutepria consciecircncia as ideias preacute-concebidas que podem vir a de-turpar a apreensatildeo rigorosa dosfatos e dessa maneira permanecemetodicamente prevenido delasCoisa diferente eacute algueacutem viven-ciar uma situaccedilatildeo determinadade forma contingente ou interes-sada e em seguida descrevecirc-lacom base em emoccedilotildees vagas pre-tendendo ingenuamente chegar a

conclusotildees dignas de creacutedito cien-tiacutefico

Como minha presenccedila no mo-vimento das jornadas de junho de2013 natildeo resultou de uma obser-vaccedilatildeo planejada a uacutenica maneirade produzir um estudo coerentedepende do reconhecimento emprimeiro lugar das noccedilotildees de queeu dispunha conscientemente na-quele momento e em segundo lu-gar do respaldo de uma bibliogra-fia que tendo abordado as jorna-das com o distanciamento neces-saacuterio a uma realizaccedilatildeo cientiacuteficasustente o sentido de minhas in-terpretaccedilotildees As noccedilotildees aqui ex-plicitadas estatildeo no universo con-ceitual de Espinosa e em especialem uma noccedilatildeo especiacutefica a de de-sespero que em geral natildeo aparececom destaque em estudos feitossobre o espinosismo Natildeo haacute duacute-vida de que os comentaacuterios so-bre a poliacutetica de Espinosa atra-vessam o debate eacutetico em tornodeste afeto e sobretudo do parque ele compotildee com a seguranccedilaApesar disso natildeo haacute tantos tra-balhos que circunscrevam espe-cialmente o desespero no campopoliacutetico como os que abordam o

2013) Exceto o uacuteltimo termo que evitaremos por ter adquirido depois de 2013 uma conotaccedilatildeo de ldquofestardquo muitodifundida pela grande miacutedia empregaremos todas as outras expressotildees O termo jornada foi especialmente esco-lhido por conter entre outros o sentido militar de batalha expediccedilatildeo de guerra fenocircmenos que conforme o leitorperceberaacute espelham melhor os fatos transcorridos na cidade de Satildeo Paulo no periacuteodo que seraacute enfatizado aqui asaber os dias 6 a 17 de junho

2 As referecircncias agrave obra de Espinosa seratildeo feitas pela indicaccedilatildeo da parte de obra citada ou mencionada Aleacutemdisso seraacute indicado o nuacutemero do volume e da paacutegina de acordo com a referecircncia padratildeo das obras espinosanaspor Carl Gebhardt (SPINOZA 1972) registradas pela inicial ldquoGrdquo A traduccedilatildeo da Eacutetica utilizada corresponde agrave daEdusp (ESPINOSA 2015) e a traduccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico agrave da Martins Fontes (ESPINOSA 2003)

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SOBRE O DESESPERO SAtildeO PAULO JUNHO DE 2013

medo a esperanccedila e a seguranccedilamesmo quando enfatizam o de-sespero tomam-no estritamentenaquilo que ele tem de evidenteo fato de ser uma tristeza Nestetrabalho conveacutem destacar o de-sespero seraacute entendido na dimen-satildeo da tristeza como natildeo pode-ria deixar de ser mas uma tristezaque pode se ligar a outros afetose em coletividade tornar-se ale-gria3

A bibliografia sobre as recen-tes mobilizaccedilotildees de rua no Brasilpor sua vez eacute vasta e apreende asjornadas a partir de vieses distin-tos tais como a atuaccedilatildeo dos mo-vimentos sociais os dados sobre operfil dos insurretos4 as anaacutelisesmidiaacuteticas dos eventos entre ou-tros Ocorre poreacutem que as refe-recircncias bibliograacuteficas localizadasnatildeo datildeo a devida consideraccedilatildeo aum dado que a experiecircncia reve-lou importante no cotidiano dasjornadas os atos desde a perspec-tiva de seus originais organizado-res tiveram no dia 13 de junhoum divisor de aacuteguas que delineouduas narrativas distintas A pri-

meira narrativa assim defende-remos tem como afeto predomi-nante o desespero a segunda temcomo afeto hegemocircnico a indigna-ccedilatildeo

Haacute sem duacutevida referecircncias bi-bliograacuteficas que levam em conta atemporalidade dos atos que cons-tituiacuteram os acontecimentos de ju-nho Neste trabalho contudo acompreensatildeo da distinccedilatildeo de na-tureza entre os atos de 6 a 13 dejunho e os atos de 17 de junho emdiante eacute o paradigma central doentendimento das jornadas aquipretendido5 Ademais diferente-mente da maioria das bibliogra-fias disponiacuteveis tomaremos comobasilar algo que sempre em dis-cussatildeo tambeacutem natildeo costuma re-ceber a devida ecircnfase o pivocirc detodas as accedilotildees que chamaram aatenccedilatildeo do puacuteblico naquela oca-siatildeo foi a juventude paulistanaNeste artigo conceberemos a ju-ventude como a principal ativa-dora do iniacutecio das movimentaccedilotildeesde rua que tomaram o Brasil eao mesmo tempo como o prin-cipal objeto da necessidade per-

3 Sobre as noccedilotildees de alegria e tristeza aqui empregadas cabe ressaltar seu sentido espinosano a ldquoalegria eacute apassagem do homem de uma perfeiccedilatildeo menor a uma maiorrdquo a ldquotristeza eacute a passagem do homem de uma perfei-ccedilatildeo maior a uma menorrdquo (GII p 191) Ao lado do desejo tais noccedilotildees compotildeem a triacuteade dos principais afetos dafilosofia praacutetica de Espinosa

4 Apontamos aqui os militantes como ldquoinsurretosrdquo tomando como ldquoinsurreiccedilatildeordquo aquilo que para Negri (2003p 197) ldquoeacute a forma de um movimento de massa resistente quando se torna ativa em pouco tempo ()rdquo A insur-reiccedilatildeo nesse sentido eacute o que ldquoaperta as diversas formas de resistecircncia em um uacutenico noacuterdquo Tal descriccedilatildeo se aproximadas caracteriacutesticas poliacuteticas que definiram as jornadas enquanto certa espeacutecie de batalha

5 Ampara-nos neste ponto o livro Vinte Centavos A Luta Contra o Aumento que se opotildee a interpretaccedilotildees queembaladas pelos meios de comunicaccedilatildeo e pelo descuido de analistas natildeo atentam para o comeccedilo dos protestos e osseus precedentes permitindo que se torne consensual a tese de que a reivindicaccedilatildeo pela reduccedilatildeo das tarifas foi ummero acidente das jornadas de junho (ORTELLADO 2015)

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cebida pelos dominantes de secriar o quanto antes pela ideo-logia um discurso diferente da-quele das ruas bem como umapoliacutetica objetiva contra os direitosdos jovens e das geraccedilotildees futurasdo paiacutes conforme seraacute tematizadonas conclusotildees

O objetivo deste texto foi emsuma interpretar as jornadas dejunho de 2013 na cidade de SatildeoPaulo a partir de um diaacutelogo coma noccedilatildeo espinosana de desesperodeixando para outro momento odiaacutelogo com a noccedilatildeo de indigna-ccedilatildeo Uma vez que a percepccedilatildeodas jornadas depende da formapela qual concebemos sua traje-toacuteria completa naqueles dias ini-ciaremos tratando o problema doldquosequestro da narrativardquo sobre oque foram afinal os atos contra atarifa Em seguida mostraremoscomo estavam estruturados essesatos e como a concepccedilatildeo espino-sana de desespero pode ser relaci-onada a eles Por fim buscaremosidentificar a contribuiccedilatildeo da lei-tura de Espinosa para se pensara transformaccedilatildeo poliacutetica dos afe-tos tristes em alegres ou noutraspalavras para conhecer como amultidatildeo pode vir a formar comparticipaccedilatildeo e accedilatildeo direta a soli-dariedade entre desesperados

Interpretada em perspectiva es-pinosana esta solidariedade con-forme seraacute visto pode ser uma ex-periecircncia de estar-com capaz de fa-zer nascer no seio da condiccedilatildeo deservidatildeo (caracteriacutestica do indiviacute-duo desesperado) um gosto pelalibertaccedilatildeo isto eacute pela passagempara uma vida coletivamente li-vre mantida pelo auxiacutelio muacutetuoA experiecircncia de lutar constitu-tiva do potencial democraacutetico deum coletivo quando eacute vivenciadapor aqueles que em desesperoafrontam todas as formas de lide-ranccedila e comando que se dirigemcontra o bem comum conteacutem umdevir-ativo6

O sentimento de uma alegre li-berdade em meio ao caos da re-pressatildeo eacute comum entre os que jaacuteestiveram em situaccedilatildeo de orga-nizaccedilatildeo poliacutetica guiada por umaestrateacutegia revolucionaacuteria contra aopressatildeo No documentaacuterio Ma-righella (Ferraz 2012) o depoi-mento de Guiomar Silva Lopesmeacutedica e ex-militante contra a di-tadura civil-militar brasileira eacuteum bom exemplo disso afinalpara ela sua vida em combate sesituava ldquono fio da navalhardquo mashavia algo fantaacutestico ldquouma sen-saccedilatildeo de liberdade inacreditaacutevelrdquode estar em meio agrave resistecircncia

6 Expressatildeo empregada por Gilles Deleuze (2017 p 358) Ver Michael Hardt (1996 p 156-157) que explica odevir-ativo de Deleuze na leitura de Espinosa como passagem da tristeza agrave alegria produzida pela descoberta dasnoccedilotildees comuns e pela formaccedilatildeo de ideias adequadas

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No mesmo sentido descrevendoas imagens francesas de maio de1968 Marilena Chaui conta emdiscurso emocionado a percepccedilatildeoque teve

Vocecircs natildeo imaginam o queeacute passar pela experiecircn-cia revolucionaacuteria Eacute umacoisa eacute uma coisa Eudigo que todo mundo temque viver uma grande pai-xatildeo amorosa e ter uma ex-periecircncia pela possibili-dade de revoluccedilatildeo Semessas duas coisas vocecirc natildeoviveu uma vida completaTem que ter porque omundo se abre com to-das as janelas a um fu-turo completamente ne-buloso e que estaacute laacute vocecircsabe que estaacute laacute e vocecircsabe que vocecirc vai para eleque vai acontecer que elevai acontecer com as tuasmatildeos (CHAUI 2016a p28)

Embora Chaui (2018 p 417) de-fenda que a ocupaccedilatildeo das escolaspelos jovens em 2015 foi o maisautecircntico movimento brasileirocapaz de traduzir o maio de 68

francecircs (e natildeo as jornadas de ju-nho conforme se disseminou ge-neralizadamente) seu relato potildeeem paralelo a paixatildeo revolucio-naacuteria e a grande paixatildeo amorosararidades afetivas dignas de umavida bem vivida O impulso dosregistros jaacute oferecidos reaparececom outras cores em certa reflexatildeode Antonio Negri e Michael Hardt(2005 p 276) no livro MultidatildeoDispostos a mostrar como os con-flitos sociais mobilizam o comumeles escrevem

O conflito direto com opoder para o melhor oupara o pior eleva essa in-tensidade comum a umniacutevel ainda mais alto ocheiro caacuteustico do gaacutes la-crimogecircneo mobiliza ossentidos e os confrontosde rua com a poliacutecia fa-zem o sangue ferver deraiva elevando a intensi-dade ao ponto da explo-satildeo Finalmente a intensi-ficaccedilatildeo do comum produzuma transformaccedilatildeo antro-poloacutegica de tal ordem quedas lutas surge uma novahumanidade

7 Esta expressatildeo emerge na descriccedilatildeo feita por Gohn (2014 p 432) das diversas tendecircncias que apareciam nosatos Entre elas revela a autora ldquo() haacute tambeacutem um novo humanismo na accedilatildeo de alguns expresso em visotildees ho-liacutesticas e comunitaristas que critica a sociedade de consumo o egoiacutesmo a violecircncia cotidiana ndash real ou monitoradapelo medo nas manchetes diaacuterias sobre assaltos roubos mortes etc a destruiccedilatildeo que o consumo de drogas estaacute

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Esta nova humanidade espeacutecie deldquonovo humanismordquo7 nasceu naresistecircncia ativa e criativa de jo-vens contra um sistema brutal derepressatildeo a Poliacutecia Militar do Es-tado de Satildeo Paulo Quem expe-rimentou a emoccedilatildeo revolucionaacute-ria de 2013 se deixou marcar pelaluta coletiva e pela descoberta daaccedilatildeo no seio da paixatildeo isto eacute pelaliberdade contida no acircmbito dasexperiecircncias da proacutepria passio-nalidade e natildeo em algum idealtranscendente ou em certo deusex machina No contexto dos atosaqui estudados como veremos apaixatildeo em pauta eacute o desespero quesurge ndash na parte III da Eacutetica de Es-pinosa ndash da ausecircncia de duacutevidasquanto a um futuro amedronta-dor que acena cada vez mais deperto A accedilatildeo consiste na arte daorganizaccedilatildeo coletiva mediada pelaperformance de jovens que tornamo proacuteprio desespero capaz de cau-sar desespero

Eacute certo que o dispositivo queincendiou as ruas natildeo parece tersido motivado pela accedilatildeo de jo-vens reivindicando o direito agrave iraou ao exerciacutecio gratuito do deses-pero quanto ao futuro mas umaquestatildeo de circulaccedilatildeo urbana (oaumento da tarifa) A linha argu-mentativa deste artigo se orientajustamente no sentido de reconhe-cer isso mas tambeacutem de eviden-

ciar ter sido sobre jovens assimdesesperanccedilados que em junhode 2013 um aumento rotineiro detarifa natildeo caiu bem

Antes de tudo vale a penaainda uma uacuteltima observaccedilatildeo so-bre o criteacuterio com que abordare-mos o problema examinado Sem-pre que nos voltamos a estudoshistoacutericos sobre o Brasil precisa-mos ter em pensamento a indaga-ccedilatildeo que Carlos Alberto Vesentini(1997 p 15) coloca em seu es-tudo sobre 1930 ldquoCom que criteacute-rio um historiador fala das lutase agentes de uma eacutepoca que natildeoeacute a suardquo No caso das jornadasde junho inversamente estamostratando de uma eacutepoca que vive-mos e de agentes que acompanha-mos integrando-nos como parteda narrativa Ainda assim paranossos intentos cabe refletir sobrea pergunta de Vesentini em sen-tido filosoacutefico tomar a definiccedilatildeode um afeto da filosofia de Espi-nosa (no seacuteculo XVII) para inter-pretar a vivecircncia das jornadas dejunho de 2013 natildeo envolve umacontradiccedilatildeo temporal que podeeventualmente turvar a proacutepriainterpretaccedilatildeo A fim de esclare-cer este ponto devemos advertirque conforme sustentou AntonioNegri (1993 p 26) em sua obra Aanomalia selvagem (publicada em1981) Espinosa pode ser tomado

causando na juventude e outrosrdquo

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como um filoacutesofo contemporacircneoisto eacute atento a tensotildees que soacute es-tatildeo se explicitando agora seacuteculosdepois de sua eacutepoca ldquoEspinosa eacuteum filoacutesofo contemporacircneo poissua filosofia eacute a de nosso futurordquoescreveu ele8 Por motivos simila-res observamos que neste traba-lho o espinosismo seraacute entendidopelos princiacutepios de sua teoria dosafetos cuja dinacircmica pode dialo-gar com os afetos em circulaccedilatildeo nocenaacuterio poliacutetico brasileiro atual

Tais consideraccedilotildees introdutoacute-rias satildeo necessaacuterias para natildeo in-cidirmos no erro comum expli-citado por Maria da Gloacuteria Gohn(2014 p 437) em relaccedilatildeo a umaseacuterie de abordagens sobre as jor-nadas Para ela muitos analistasde junho de 2013

fazem uma leitura com osoacuteculos de uma dada abor-dagem e como natildeo encon-tram os elementos dessaabordagem nas manifes-taccedilotildees descaracterizam-nas Natildeo querem ver ounatildeo aceitam que elas tecircm

outros pressupostos ou-tros referenciais

Este trabalho buscou tantoquanto possiacutevel natildeo aplicar ver-ticalmente a teoria poliacutetica deEspinosa sobre os fatos de ju-nho a ponto de formar uma ideiade totalidade sobre as jornadasmas construir uma articulaccedilatildeo pormeio da qual pudessem ser apre-sentadas sobre estes eventos im-pressotildees que parecem ter ficadoateacute agora senatildeo inauditas margi-nais

Antecedentes Satildeo Paulo 20139

As jornadas surgiram na cenasocial e poliacutetica do Brasil comoum problema de transporte SatildeoPaulo como outras metroacutepoles eacuteceacutelebre pela rotina urbana do en-garrafamento isto eacute pela cotidi-anidade do tracircnsito lento ocasio-nado pelo excesso de veiacuteculos nasvias urbanas A poluiccedilatildeo pelo gaacutescarbocircnico e pelo som ataca prin-cipalmente os pedestres mas eacute

8 Para Negri (1993 p 30) ldquoestudar Espinosa eacute colocar o problema da desproporccedilatildeo na histoacuteriardquo Situado naHolanda dos seiscentos um paiacutes anocircmalo cuja forma poliacutetica permaneceraacute em aberto Espinosa natildeo esteve dispostoa propor uma fundamentaccedilatildeo para as relaccedilotildees econocircmicas e sociais do capitalismo do seu tempo Natildeo esteve embusca de uma resposta para as crises que entatildeo se anunciavam Ao contraacuterio esteve envolvido em criar uma formapoliacutetica futura a democracia absoluta da qual podemos progressivamente nos aproximar no mundo contemporacirc-neo Sobre isso ver Negri (1993 prefaacutecio e capiacutetulo 1)

9 Apesar de afirmarem em geral que as jornadas ganharam impulso em todo o Brasil a partir de Satildeo Paulo eacutenecessaacuterio tratar de antecedentes Aqui nos limitaremos aos antecedentes do cotidiano paulistano mas eacute precisotrazer agrave memoacuteria o mecircs fevereiro de 2013 quando uma relevante agitaccedilatildeo promovida pelo Bloco de Lutas porum Transporte Puacuteblico de Porto Alegre-RS depois de protestos de rua conseguiu fazer a Justiccedila reverter mesesdepois um aumento de tarifa Para natildeo estender ainda mais esta parte introdutoacuteria limito-me a indicar sobre issoos trabalhos de Cardoso e Di Faacutetima (2013 p 158-159) e de Scherer-Warren (2014 p 418)

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posta geralmente como dificul-dade de menor importacircncia emcomparaccedilatildeo com todos os outrosmales de uma cidade cujos indi-viacuteduos parecem ter incorporadoem definitivo o haacutebito de evitarhoraacuterios e trajetos muito visadosA vida ou ndash em termos mais pau-listanos ndash a agenda eacute determinadapela loacutegica do transporte privadoque impede sistematicamente odireito agrave cidade

A descriccedilatildeo de Wilheim (2013p 8-9) feita precisamente no anodas jornadas oferece em um soacutelance o retrato urbano da capital

Satildeo Paulo apresenta umadinacircmica urbana de in-cessante movimento comescassos espaccedilos para ogozo individual ou cole-tivo de paisagens cujopotencial natural foi des-perdiccedilado pela cupidezcom que cada lote foi edi-ficado Os espaccedilos puacutebli-cos encontram-se degra-dados seja no aspecto fiacute-sico de difiacutecil uso pelospedestres seja pela sina-lizaccedilatildeo defeituosa e pelosmuros hostis que por vezescercam quarteirotildees intei-ros de propriedades pri-vadas A arborizaccedilatildeo isto

eacute a proteccedilatildeo da sombraem paiacutes semitropical eacute es-cassa a natildeo ser em certosbairros como os Jardinssubtraindo da maior partedos cidadatildeos o prazer es-teacutetico de ver belas flora-das multicores a assinalara sequecircncia das estaccedilotildeesAs principais vias estatildeopreenchidas por veiacuteculosque mal circulam reve-lando uma peacutessima rela-ccedilatildeo entre nuacutemero de veiacute-culos e vias disponiacuteveispara sua circulaccedilatildeo Emresumo a qualidade ur-bana estaacute muito aqueacutem daexpressatildeo econocircmica deSatildeo Paulo muito abaixodas expectativas de suapopulaccedilatildeo e com serviccedilose equipamentos mal dis-tribuiacutedos (grifos do origi-nal)

O pedestre ldquoprincipal elemento eusuaacuterio do sistema de transportepuacuteblicordquo natildeo tem suas expecta-tivas atendidas10 e se em tese eacuteldquoa partir de suas necessidades eexpectativasrdquo que a mobilidadedeveria ser pensada (WILHEIM2013 p 16) Satildeo Paulo eacute umexemplo de como natildeo proceder agravepoliacutetica urbana

10 Wilheim assinala com razatildeo (2013 p 16) ldquoo pedestre paulistano eacute especialmente prejudicado pelo mauestado das calccediladas e ruas em que pisardquo

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Ao longo dos meses de maio ejunho de 2013 em meio a essecaos urbano a cidade transbor-dou vivacidade poliacutetica Duranteo mecircs de maio o Grupo de Estu-dos Espinosanos da Universidadede Satildeo Paulo (USP) organizou aJornada Marxistas Leitores de Es-pinosa com a colaboraccedilatildeo expres-siva de colegas cariocas do campodo Direito da PUC-Rio A jornadauma jornada acadecircmica ocorreunos dias 27 28 e 29 (segundaterccedila e quarta-feira) na Faculdadede Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-manas Antes deste encontro ndash nodia 25 de maio ndash ocorrera a Mar-cha Feminista das Vadias inici-ada agraves 12 horas no cruzamentoda Avenida Paulista com a Rua daConsolaccedilatildeo (Praccedila do Ciclista) Oanuacutencio da marcha deixava a ame-accedila ldquoSatildeo Paulo vai pararrdquo O finaldo ato comoveu por ter feito ecoarpara aleacutem dos gritos convencio-nais tiacutepicos da luta por igualdadede gecircnero uma ira poliacutetica e umrefinamento discursivo que apon-tava para um combate mais ge-ral mais proacuteximo da negaccedilatildeo doImpeacuterio substrato que origina emanteacutem a forma mais arquetiacutepicado machismo contemporacircneo

A grande miacutedia por essa se-mana alardeava com a naturali-dade costumeira o aumento das

tarifas de ocircnibus e metrocirc na ci-dade de Satildeo Paulo de trecircs reaispassariam a trecircs reais e vinte cen-tavos a partir de dois de junholdquoVinte centavos a mais para umtransporte cada vez mais precaacuterioe insegurordquo comentavam todosNa eacutepoca o aumento da tarifa metocou de perto Para um dou-torando professor da rede par-ticular do ensino da cidade vi-vendo ininterrupta contenccedilatildeo degastos o valor da passagem as-sustava Ir e voltar do centro aobairro do Morumbi algumas ve-zes por semana consumia meutempo meu descanso e meu di-nheiro Em meio aos preparati-vos para o iniacutecio da redaccedilatildeo domeu texto de qualificaccedilatildeo de dou-torado eu lia Espinosa e especifi-camente relia A anomalia selvagemde Antonio Negri De um ladoenvolvia-me sua defesa intransi-gente de que Espinosa expulsou anoccedilatildeo de mediaccedilatildeo de seu sistemanegando o recurso agrave representa-ccedilatildeo e ao contrato em sua formaclaacutessica (NEGRI 1993) De ou-tro percebia a coerecircncia da ad-vertecircncia de Marilena Chaui quefoi posteriormente explicitada emtexto (CHAUI 2013) acentuandoo risco agrave democracia que assumi-mos quando incautamente dese-jamos suspender as ideias de me-

11 Explicitei melhor esse ponto em ldquoEspinosa um anarquistardquo texto apresentado em outubro de 2016 na Uni-versidade de Satildeo Paulo e publicado no volume do VI Coloacutequio Espinosa de Fortaleza (OLIVEIRA 2017)

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diaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacutetica11Percebiacuteamos nas escolas nas

universidades e na proacutepria socie-dade os esforccedilos para formar mo-vimentos sociais que se caracte-rizassem pela horizontalidade epela ausecircncia de lideranccedilas traccedilosque permitiam efeitos incriacuteveis acomeccedilar pela satisfaccedilatildeo de gritarpor novos direitos e pela radica-lizaccedilatildeo de direitos que existiamapenas na letra da lei Poreacutem vi-mos o quanto a capacidade de or-ganizar o desespero estava midi-aticamente vulneraacutevel agrave capturapor um comando de vieacutes reacio-naacuterio capaz de inserir uma medi-accedilatildeo para o conservadorismo12

A narrativa sequestrada

O aumento da tarifa do transportepuacuteblico foi dado e as pessoas saiacute-ram agraves ruas13 No dia 06 de junhode 2013 o Movimento Passe Livre(MPL)14 chamou o primeiro ato

No dia 07 o segundo no dia 11 oterceiro e no dia 13 o quarto to-dos tendo iniacutecio no final da tardecomeccedilo da noite15 Hoje eacute difiacutecilpor em xeque a tese de que houveum sequestro da narrativa soci-almente estabelecida sobre essesencontros16 e por este motivo eacutepreciso entender como este raptose deu acompanhando ato a atoateacute o dia 13 O primeiro o me-nos destacado de todos em termosde intensidade e visibilidade foi(como muitos outros) alvo de criacuteti-cas na grande miacutedia Anelise Ma-radei (2013 p 4) teve o cuidadode acompanhar no jornal Folha deSatildeo Paulo como foi a cobertura decada ato do dia 6 ao dia 20 de ju-nho

Na capa do jornal Folha deS Paulo do dia 6 natildeo ha-via menccedilatildeo agrave manifesta-ccedilatildeo que ocorreria no pe-riacuteodo noturno Nenhumachamada sobre o que es-

12 Eacute amplamente conhecido o desvio do movimento (de junho de 2013) da esquerda em direccedilatildeo ao conservado-rismo que desaguaraacute a partir de 2015 nos chamados ldquoprotestos antigovernordquo tipicamente de direita e contraacuteriosagrave presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores)

13 Natildeo foi evidentemente a primeira vez que houve mobilizaccedilatildeo intensa pela melhoria no transporte puacuteblico noBrasil Sobre o histoacuterico das mobilizaccedilotildees em defesa do transporte de qualidade ver Gondim (2016 p 366-368)

14 De acordo com Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 158) o MPL se apresentava no tempo das jornadas comoldquoum movimento social autocircnomo apartidaacuterio horizontal e independente que luta por um transporte puacuteblico deverdade gratuito para o conjunto da populaccedilatildeo e fora da iniciativa privadardquo Foi constituiacutedo desde a PlenaacuteriaNacional pelo Passe Livre (Porto Alegre-RS 2005) por ldquoum grupo de pessoas comuns () para discutir e lutar poroutro projeto de transporte para a cidaderdquo Presente em diversas cidades brasileiras o MPL sustenta lutar ldquopelademocratizaccedilatildeo efetiva do acesso ao espaccedilo urbano e seus serviccedilos a partir da tarifa zerordquo

15 Outros atos se seguiram a esses no mesmo mecircs mas neste primeiro trabalho apenas os consideraremos emseus traccedilos gerais

16 Veja-se por exemplo Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 119) e Eliana Carlos (2015 p 11) que tratam otema respectivamente como ldquodeslocamento narrativordquo e ldquomudanccedila de discursordquo Outras denominaccedilotildees satildeo da-das ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo ldquodesvio de discursordquo entre outras

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taria por vir foi esboccediladaJaacute no dia 7 o tema me-receria destaque na capaFolha em decorrecircncia evi-dentemente das manifes-taccedilotildees do dia anterior Emtom contraacuterio aos mani-festantes o jornal estam-pou ldquoVandalismo marcaato por transporte maisbarato em SPrdquo A cha-mada era para o cadernoCotidiano Uma fotoem destaque na capa daediccedilatildeo trazia a legendaldquoManifestantes lideradospelo Movimento Passe Li-vre ligado a estudantesao PSOL e ao PSTU quei-mam catracas de papelatildeona Avenida 23 de MaiordquoEm Opiniatildeo e Tendecircnciase Debates natildeo havia umalinha sobre o tema de-monstrando que a publi-caccedilatildeo ainda natildeo conside-rava o tema relevante paramerecer destaque nos edi-toriais

Nada de novo aparece a quemsempre acompanhou o citado jor-nal e nunca se questionou sobre acausa do protesto e a respeito dascondiccedilotildees urbanas da metroacutepolecuja situaccedilatildeo de caos era entatildeo ex-

perimentada generalizadamenteNo dia 8 subsequente ao segundoato a capa da Folha de Satildeo Pauloestampava ldquoManifestantes cau-sam medo param marginal e pi-cham ocircnibusrdquo Ainda sem ne-nhuma novidade os militanteseram identificados por este veiacute-culo da grande imprensa comovacircndalos causadores de terrorAteacute mesmo o terceiro ato na ma-nhatilde do dia 11 natildeo recebeu muitodestaque nem neste nem em ou-tros meios de comunicaccedilatildeo A se-ccedilatildeo ldquoPainel do Leitorrdquo do mesmojornal por exemplo natildeo deu des-taque ao tema do transporte e dosatos (MARADEI 2013 p 4) nemmesmo pelo toacutepico da suposta vi-olecircncia dos militantes

No dia 12 depois do ato danoite do dia 11 a manchete foildquoContra tarifa manifestantes van-dalizam centro e Paulistardquo e o sub-tiacutetulo frisava ldquoNo 3ordm e mais vio-lento protesto ativistas enfrentamPM e atacam ocircnibus e estaccedilotildees dometrocirc 20 cidadatildeos satildeo detidosrdquoEstimado pelas fontes estatais emcinco mil pessoas e pelo o MPLem 10 mil17 o terceiro ato foi mar-cado por cenas de grande violecircn-cia que a Folha de Satildeo Paulo entreoutros oacutergatildeos da imprensa colo-cou na conta do povo Embora asredes sociais jaacute publicassem ima-

17 Como observou Singer (2013 p 24) eacute muito difiacutecil apontar o nuacutemero exato de pessoas que foram as ruas nosquatro atos iniciais

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gens da forccedila desproporcional daPoliacutecia Militar contra os insurre-tos natildeo havia destaque social a al-gum sentimento de injusticcedila con-tra os cidadatildeos Na amanhatilde do atoda quinta-feira dia 13 o governa-dor do Estado Geraldo Alckmin(PSDBSP) tomou o palco paradivulgar com indisfarccedilaacutevel tomde ameaccedila que haveria um enri-jecimento ainda maior no trata-mento policial militar (SINGER2013 p 25) Este quarto e uacutel-timo ato da seacuterie que seraacute aquianalisada ocorrido naquela noitefoi um verdadeiro massacre poli-cial Assim como nos atos anteri-ores muitas imagens da repressatildeochegaram agraves redes sociais provo-cando nos internautas um oacutedio si-milar ao que foi sentido por aque-les que registraram o terror

Os jornais impressos em seusnoticiaacuterios da manhatilde do dia 14ainda afirmavam sem pudores queos manifestantes haviam provo-cado os policiais iniciando comisso um tratamento de choque18A intenccedilatildeo de criminalizaccedilatildeo daaccedilatildeo do movimento era ateacute entatildeoevidente os manifestantes eramestimados publicamente comomeros marginais vacircndalos e play-boys todos irresponsaacuteveis a in-cendiar a cidade Natildeo havia duacute-

vida de que o discurso se firma-ria afinal ateacute aquele momentohavia se firmado ningueacutem per-guntava se a poliacutecia devia estarpreparada para suportar supos-tas provocaccedilotildees ou mesmo se taisprovocaccedilotildees eram reais Mais faacute-cil do que discutir a razoabilidadeda informaccedilatildeo segundo a qual ci-vis desarmados ousam provocartropas armadas foi justificar pu-blicamente a accedilatildeo repressiva dapoliacutecia Mas como seria viaacutevel jus-tificar nos jornais a repressatildeo danoite do dia 13 depois que cen-tenas de pessoas compartilharamna rede a cena claacutessica em que ospoliciais bombardeavam minutosa fio grupos de cidadatildeos a gritarencurralados ldquoSem violecircnciardquo19

A concessatildeo apelativa dagrande miacutedia agrave causa da violecircnciado Estado contra o povo foi par-cial momentacircnea e interessadapois na noite do dia 13 sete jorna-listas da Folha de Satildeo Paulo foramatingidos pela fuacuteria destrutiva daPoliacutecia Militar A jornalista Giuli-anna Avalone foi gravemente atin-gida em um dos olhos por um dis-paro de bala de borracha dado porum policial que intencional e gra-tuitamente apontou para ela Oestarrecimento foi geral

Antes disso ainda no dia 13

18 A manchete da Folha de Satildeo Paulo no dia 14 foi ldquoPoliacutecia reage com violecircncia a protesto e SP vive noite de caosrdquoComo se nota o termo ldquoviolecircnciardquo se liga agrave ldquopoliacuteciardquo e natildeo aos que reivindicavam a reduccedilatildeo da tarifa Poreacutem aatuaccedilatildeo dos policiais foi posta como ldquoreaccedilatildeordquo dando a entender que os insurgentes iniciaram o tumulto

19 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=U3ohG4IYqdQ Acesso 25 de fevereiro de 2019

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deu-se o famoso ataque de Ar-naldo Jabor ao movimento e aosseus participantes majoritaria-mente jovens durante o Jornal daGlobo A ofensiva de Jabor se en-cerrava com a frase ldquoRealmenteesses revoltosos de classe meacutedianatildeo valem nem vinte centavosrdquo20

Joseacute Luiz Datena acircncora de umprograma de TV protagonizouuma das situaccedilotildees mais pitores-cas da televisatildeo brasileira justa-mente nesse dia quando o ato es-tava para comeccedilar Ele decidiu fa-zer uma enquete ao vivo e saberdos expectadores se eles concor-davam ou natildeo com a realizaccedilatildeo deldquoprotestos com badernardquo A in-tenccedilatildeo de desmoralizar os agentesdos atos contra a tarifa era clariacutes-sima mas a opiniatildeo do puacuteblicocresceu para o lado dos que res-pondiam que concordavam com oprotesto dito violento Surpresocom o resultado o jornalista pe-diu para que os programadoresreelaborassem a pergunta a fimde que o puacuteblico a ldquoentendessemelhorrdquo Mas o resultado se re-petiu e ele entatildeo teve de reconhe-cer ldquoJaacute deu para sentir o povoestaacute tatildeo pecirc da vida com o aumentode passagem ndash natildeo interessa se eacutede ocircnibus se eacute de trem ou de me-trocirc ndash que apoia qualquer tipo de

protestordquo21 O programa com altoniacutevel de popularidade demons-trava aquilo que as redes sociais jaacutepodiam captar natildeo obstante a miacute-dia ainda centralizasse seu alvo decriacutetica nos militantes a pauta damobilidade urbana de Satildeo Paulotinha de ser profundamente re-pensada porque a revolta contraos carteacuteis das empresas de trans-porte era intensa

O pronunciamento de Jabortornou-se emblemaacutetico em outrosentido afinal cinco dias depoisde ridicularizar o povo nas ruasseu parecer foi outro ldquoEstamosvivendo um momento histoacutericolindo e novo Os jovens teratildeonos dado uma liccedilatildeo a democraciajaacute temos agora temos de formaruma repuacuteblicardquo22 Como pergun-taram todos jovens indignos ateacutede ldquovinte centavosrdquo se convertemtatildeo rapidamente em porta-vozesde um momento histoacuterico ldquolindo enovordquo Como a mobilizaccedilatildeo dosjovens baacuterbaros se transformouem movimento que aceita a tesede que jaacute vivemos em uma demo-cracia e entatildeo eacute preciso tornaacute-lauma repuacuteblica Natildeo se trata deum equiacutevoco de anaacutelise mas deum deslocamento estrateacutegico danarrativa

Em geral essa situaccedilatildeo ndash o des-

20 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=tZNkg26g-Ng Acesso 25 de fevereiro de 201921 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7cxOK7SOI2k Acesso 25 de fevereiro de 201922Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=8zQ9TnTpeKw Acesso 25 de fevereiro de 201923 A percepccedilatildeo de uma ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo eacute bem descrita por Gohn (2013 p 431) ldquoO crescimento das

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locamento da narrativa ndash foi to-mada como expansatildeo da pauta23A pauta do transporte havia pas-sado subitamente a abranger tam-beacutem outros domiacutenios da socie-dade como sauacutede e educaccedilatildeo ateacutechegar ao ponto da criacutetica aos de-tentores do poder que impunese corruptos estavam indiferentesaos gritos da populaccedilatildeo ldquoNatildeo eacutesoacute por vinte centavosrdquo comeccedila-vam a bradar as redes sociais emuniacutessono Nesse momento ndash a pas-sagem do dia 13 para o dia 14 ndash anarrativa das jornadas ficou emsuspensatildeo sem autor pois a linhaque conduzia os acontecimentosateacute entatildeo era a reduccedilatildeo da tarifamas subitamente passou a ser arepressatildeo policial forccedila motriz darevolta que tomou conta da popu-laccedilatildeo da cidade jaacute no dia seguinteao quarto ato O policiamentodespreparado e incapaz era repu-tado como insuficiente para pro-mover a ordem e proteger o cida-datildeo comum o mero transeunte ouo profissional da comunicaccedilatildeo queatravessava os atos

Conquanto natildeo tenha sido ape-nas uma questatildeo de extensatildeoou ampliaccedilatildeo indevida de pautao lema ldquoNatildeo eacute soacute por vinte

centavosrdquo sugeria de fato umaampliaccedilatildeo ou ateacute mesmo um apro-fundamento Em si mesma a am-pliaccedilatildeo natildeo teria motivo para sernociva ou falsa No ato de quinta-feira dia 13 outras bandeiras li-gadas agrave pauta da tarifa foram em-punhadas24 Mas durante o finalda semana entre os dias 15 e 16(saacutebado e domingo) enquanto apauta estava solta e sem identi-dade a grande miacutedia tramava acaptura do discurso reivindicatoacute-rio e a substituiccedilatildeo dele por umadefesa do espiacuterito nacional contraa Proposta de Emenda agrave Consti-tuiccedilatildeo (PEC) n 37201125 queentatildeo se debatia nos noticiaacuteriose no Congresso Nacional (MELOVAZ 2018 p 36)

A fala de Jabor na noite das acu-saccedilotildees (a crocircnica do dia 13 agrave noite)jaacute era um sintoma ele dizia que aoinveacutes de os jovens estarem lutandocontra a PEC 37 (que daria per-missatildeo de ldquoimpunidade eternardquopara todos os poliacuteticos corruptos)estavam por aiacute arruaccedilando Tam-beacutem no comentaacuterio do ldquomomentohistoacuterico lindo e novordquo proferidono dia 18 ele jaacute repetia a decla-raccedilatildeo sobre a necessidade de lutarcontra a PEC

manifestaccedilotildees levou agrave ampliaccedilatildeo das demandas com um foco central a maacute qualidade dos serviccedilos puacuteblicos espe-cialmente transportes sauacutede educaccedilatildeo e seguranccedila puacuteblicardquo

24 Por exemplo contra a corrupccedilatildeo no governo Alckmin (no Estado de Satildeo Paulo) a ineacutepcia da Prefeitura de SatildeoPaulo as condiccedilotildees de trabalho na cidade e a repressatildeo policial cada vez mais crescente naqueles dias

25 A PEC 37 foi proposta pelo deputado Lourival Mendes (PTdoBMA) e conhecida como ldquoPEC da impunidaderdquoa proposta previa tomar a apuraccedilatildeo de investigaccedilotildees criminais como atividade privativa da poliacutecia judiciaacuteria etramitou sem aprovaccedilatildeo final ao longo do primeiro semestre de 2013

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Seria simples demais (e talvezimpossiacutevel) demonstrar que foi oapelo de Jabor agrave luta contra a PEC37 que teria levado tanta gentejaacute nos atos da semana do dia 17agraves ruas de Satildeo Paulo para gritarcontra a corrupccedilatildeo O fato eacute quemesmo a tese do deslocamento dapauta natildeo confere com o que se-ria mais natural de se esperar Sea surpresa das massas nasceu darepressatildeo policial ao ato por queo objeto das jornadas natildeo se con-verteu em luta contra o governa-dor do Estado ou em reivindicaccedilatildeopelo fim da Poliacutecia Militar masem combate aos poliacuteticos corrup-tos

Doravante a esquerda prota-gonista dos acontecimentos ateacuteentatildeo se dividiu a centro-esquerda atocircnita com a possibi-lidade de que recaiacutessem sobre elamesma as reivindicaccedilotildees paulis-tanas sentia-se incomodada dedefender o Partido dos Trabalha-dores e o trabalhismo alinhandosua retirada de campo brutal-mente ela era afrontada nas pas-seatas pela extrema direita26 A

esquerda mais radical aproveitavaa ocasiatildeo para lanccedilar reivindica-ccedilotildees mais profundas com as quaissomente ela mesma aceitava intei-ramente27 a esquerda local par-tidariamente organizada alcan-ccedilava expressiva coerecircncia no dis-curso mas teve pouca organizaccedilatildeopara resistir agrave mordacidade da vi-olecircncia policial28 a esquerda ati-vista fazia o que podia e o que lherestava fazer organizar a propa-ganda (pelos muros da cidade) epreparar a depredaccedilatildeo de emble-mas do Estado e do grande capitalem especial da induacutestria automo-biliacutestica especialmente conveni-ada ao problema do transporte29

Diante de toda a fragmentaccedilatildeoda esquerda o discurso reinanteenclausurou o grande propoacutesitodo MPL o passe livre Mesmo omovimento continuando a exis-tir com a convicccedilatildeo vitoriosa deque afinal havia conseguido re-verter o aumento algo sorratei-ramente o superou Uma partedos militantes acreditou que omelhor seria assumir que ldquonatildeoera apenas por vinte centavosrdquo

26 Ficaram conhecidas as accedilotildees de grupos de extrema direita que passaram a frequentar as manifestaccedilotildees e a im-pedir que os partidos poliacuteticos se expressassem com suas bandeiras Os partidos sempre bem recebidos pelos queprotestavam junto ao MPL (movimento apartidaacuterio mas natildeo antipartidaacuterio) precisavam agora ser socorridos pelosdemais militantes para natildeo serem agredidos Sobre a abordagem que miacutedias progressistas fizeram desta situaccedilatildeover a reportagem do dia 20 de junho (AZENHA 2013)

27 Ver por exemplo o panfleto de orientaccedilatildeo para o ato do dia 20 de junho publicado pela corrente ldquoEsquerdaMarxistardquo (ESQUERDA MARXISTA 2013)

28 Ver por exemplo os posicionamentos de Vladmir Safatle professor de Filosofia da Universidade de Satildeo Paulo(USP) que atuou fortemente nos atos ao lado PSOLSP partido pelo qual seria cogitado a concorrer como candidatoao governo do Estado no ano seguinte (2014) Entre os artigos do professor que evidenciam a contundecircncia de seudiscurso com os propoacutesitos das esquerdas partidariamente organizadas ver Safatle (2013)

29 Referimo-nos aqui aos jovens que seguiam a taacutetica Black Bloc sobre os quais trataremos adiante

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e especializar a luta contra algomaior como o ldquoImpeacuteriordquo sejano ldquodomiacutenio globalrdquo mantidopelo capital transnacional seja noldquodomiacutenio localrdquo mantido pelo car-tel dos donos de empresas de ocircni-bus outra parte mais rigorosa in-sistia em dizer que todos os atosforam sim justamente por vintecentavos Foi neste ponto ndash o des-pertar do sentimento de indigna-ccedilatildeo socialmente propagado pelasredes e pela grande miacutedia ndash quese pocircs em flutuaccedilatildeo30 a narrativasobre as jornadas

Desesperados e pacifistas

Quando eu soube o que ocorrerano dia 11 mediado por amigos epelos jornais programei-me parair ao quarto ato Era uma quinta-feira e eu havia acabado de encer-rar minha jornada de trabalho se-manal segui para o Teatro Muni-cipal (Anhangabauacute) no centro da

cidade onde estava programada aconcentraccedilatildeo e a saiacuteda em passe-ata Eu tinha em mente o que asmiacutedias comunicavam os manifes-tantes eram em sua maioria arru-aceiros e criminosos Mesmo sus-peitando da informaccedilatildeo ao che-gar ao Viaduto do Chaacute em meio ajornalistas poliacuteticos e muitos po-liciais vi qual era a massa cha-mada de bagunceira e criminosapela grande miacutedia Eram jovens ndashmeninos e meninas ndash entre quinzee vinte anos pelo menos a maio-ria Muitos tinham a idade e doperfil dos meus alunos de entatildeomatriculados na primeira e na se-gunda seacuterie do Ensino Meacutedio31Alguns estavam mascarados ou-tros vestidos de vermelho e pretoou somente preto jamais de verdeeou amarelo Eles se conversa-vam se entreolhavam faziam-sesinais e aguardavam a definiccedilatildeoda rota da passeata decidida cole-tiva e horizontalmente

Quando a marcha partiu se-

30 Ver Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 123-138) e sua reflexatildeo acerca da flutuaccedilatildeo do discurso sobre as jorna-das sustentada a partir de Ernesto Laclau e das noccedilotildees de significante vazio e significante flutuante

31 Esta observaccedilatildeo em um primeiro momento me levou a ponderar sobre a possibilidade de eu estar projetandoesta imagem muito pessoal para a anaacutelise dos fatos Por atuar como docente (e profissional) junto a um puacuteblicocujo perfil era semelhante agravequele que estava nos atos algo de projetivo poderia estar prejudicando a correccedilatildeo deminha percepccedilatildeo Conforme escreve Espinosa certas ldquonoccedilotildees natildeo satildeo formadas por todos da mesma maneira masvariam em cada um conforme a coisa pela qual o corpo foi mais frequentemente afetado e que mais facilmente aMente imagina ou recorda Por exemplo os que mais frequentemente contemplaram com admiraccedilatildeo a estatura doshomens inteligem sob o nome de homem o animal de estatura ereta os que poreacutem se acostumaram a contemplaroutra coisa formaratildeo outra imagem comum dos homens () e assim () cada um formaraacute imagens universais dascoisas de acordo com a disposiccedilatildeo de seu corpo Por isso natildeo eacute de admirar que entre os Filoacutesofos que quiseramexplicar as coisas naturais soacute pelas imagens das coisas tenham nascido tantas controveacutersiasrdquo (GII p 121) Natildeoforam encontrados dados seguros sobre o perfil dos militantes nos primeiros atos de modo a permitir a confirma-ccedilatildeo ou natildeo de minha impressatildeo Apesar disso sinto-me amparado pelos fatos uma vez que mesmo as estatiacutesticasdo evento colhidas no dia 17 (quando os atos jaacute estavam permeados de grupos mais heterogecircneos) indicavam apredominacircncia do puacuteblico jovem ateacute 25 anos (SINGER 2013 p 28)

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guindo para a Avenida Conso-laccedilatildeo o policiamento jaacute osten-sivo comeccedilava a ficar provocativoDesnecessariamente a Poliacutecia Mi-litar continha com truculecircncia osmilitantes criando barreiras late-rais Natildeo tardou a iniciar os pri-meiro conflitos da poliacutecia com oscidadatildeos (fossem eles manifestan-tes ou mero transeuntes) e de-pois jaacute agrave altura da Praccedila Roose-velt as primeiras bombas ressoa-ram Nesse instante veio a grandedispersatildeo inicial

O grupo com o qual me refu-giei no iniacutecio da Rua Augusta foijogado para cima de automoacuteveisguiados por motoristas perplexosdiante da barbaridade e do estam-pido das balas de borracha Ogosto do explosivo travava a gar-ganta o ar irrespiraacutevel Vinagreera atirado agraves camisetas porquediziam que a respiraccedilatildeo melho-rava ao inalaacute-lo Se no primeiroinstante a paralisaccedilatildeo foi geral ndashateacute porque os olhos ardiam muitondash tatildeo logo garotos e garotas per-cebiam as brechas continuavamNa esquina adiante encontravamoutro grupo e sentiam a alegriado encontro comemorada comgritos amplificados Prosseguiacutea-mos Adiante outra sequecircncia de

bombas e nova dispersatildeo mui-tas explosotildees muitas dispersotildeesmuitos reencontros foram se su-cedendo No meio do caminhomascarados destruiacuteam lixeiras in-cendiavam o lixo jogavam pedrasnos bancos e batiam em tudo quefosse emblema das concessionaacute-rias automobiliacutesticas Ao grito deldquosem vandalismordquo emitido porum par pacifista que ali se ma-nifestava eles respondiam algocomo ldquoVandalismo eacute o que fazEstadordquo ldquoVacircndalos satildeo banquei-ros e industriaisrdquo Quando ou-tro bom cidadatildeo contribuinte declasse meacutedia lhes dizia ldquoParemde desrespeitar a nossa lutardquoou coisa semelhante eles respon-diam ldquoNatildeo vamos fugir sem fa-zer nadardquo Uma garota pintavano muro o seu recado enquantoberrava que aquilo natildeo era vanda-lismo mas propaganda de liberta-ccedilatildeo

As accedilotildees eram discutidas nofazer do ato os conflitos ali sedavam como diaacutelogos mal aca-bados no meio do caos ao somdos gritos dos tiros e das bom-bas Ningueacutem brigava fisicamentecom ningueacutem havia decerto umentendimento de que lutavam nomesmo campo mas com meacutetodos

32 Uma reaccedilatildeo muito comum do puacuteblico pacifista dos atos de Satildeo Paulo era sentar no chatildeo no momento em queos ativistas iniciavam o processo de destruiccedilatildeo de siacutembolos A ideia consistia em permitir que os policiais locali-zassem os supostos ldquovacircndalosrdquo e os distinguessem dos demais Em vatildeo faziam isso pois as bombas tinham sempreo mesmo destino e deixavam pairar a mesma fumaccedila igualmente intragaacutevel Sem alternativas eles tambeacutem selevantam e corriam

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diferentes Eacuteramos igualmentealvo privilegiado do mesmo he-licoacuteptero que sondava de perto32

Afinal o que diferenciava osdois tipos que conviviam na mul-tidatildeo Em primeiro lugar o deses-pero da condiccedilatildeo social dos ditosvacircndalos desespero que natildeo es-tava presente nos pacifistas Emsegundo lugar o modo de reagir agraveofensiva policial os desesperadosimpunham a potecircncia ainda quedestrutiva jaacute os cidadatildeos de es-querda com suas bandeiras eramsurpreendidos pelo simples medoEstes fugiam aqueles avanccedilavam

O desespero eacute de acordo comEspinosa afeto feito de medo

a Esperanccedila eacute nada ou-tro que a Alegria incons-tante originada da imagemde uma coisa futura ou pas-sada de cuja ocorrecircnciaduvidamos O Medo aocontraacuterio eacute a Tristeza in-constante originada da ima-gem de uma coisa duvidosaAleacutem disso caso a duacutevidaseja suprimida desses afe-tos da Esperanccedila faz-se aSeguranccedila e do Medo o

Desespero a saber a Ale-gria ou a Tristeza origina-das da imagem de uma coisaque temiacuteamos ou esperaacuteva-mos (GII p 155)

Na proposiccedilatildeo 18 da terceira parteda Eacutetica como se lecirc acima o de-sespero eacute tomado como ldquotristezaoriginada da imagem de umacoisardquo da qual antes duvidaacuteva-mos que pudesse acontecer masagora jaacute natildeo temos mais moti-vos para dela duvidar Portantoimaginamos que aconteceraacute irre-versivelmente Em sua defini-ccedilatildeo no conjunto das definiccedilotildeesdos afetos o desespero eacute consi-derado a ldquoTristeza originada daideia de uma coisa futura ou pas-sada da qual foi suprimida a causade duvidarrdquo (Eacutetica III Def Af 15GII p 194) Espinosa jaacute natildeo tratamais o problema como imagemmas como ideia A accedilatildeo de su-primir a causa da duacutevida de quevenha a acontecer algo que teme-mos natildeo equivale imediatamentea ter certeza daquilo ldquoEmboranunca possamos estar certos daocorrecircncia das coisas singulares() pode contudo acontecerque natildeo duvidemos da ocorrecircn-

33 Na explicaccedilatildeo dada logo depois das definiccedilotildees de desespero e esperanccedila tendo em mente o escoacutelio da Propo-siccedilatildeo 49 da parte II da Eacutetica Espinosa escreve ldquouma coisa eacute natildeo duvidar de algo outra eacute ter certeza daquilo e porisso pode acontecer que a partir da imagem de uma coisa passada ou futura sejamos afetados pelo mesmo afeto deAlegria ou Tristeza pelo qual seriacuteamos afetados a partir da imagem de uma coisa presenterdquo (GII p 194-195) Noque concerne aos desdobramentos eacuteticos e poliacuteticos da operaccedilatildeo imaginativa pela qual um indiviacuteduo chega agrave au-secircncia de duacutevida sobre algo que teme ou espera Marilena Chaui (2016b p 339-340) esclarece que nessa situaccedilatildeoo indiviacuteduo imagina presentes coisas passadas ou futuras de sorte que o presente em si mesmo toma a forma de

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cia delasrdquo (Eacutetica III Def Af 15expl GII idem)33 Trata-se de umprocesso imaginativo dominadospela imagem da ausecircncia de duacute-vida sobre a ocorrecircncia de algoque tememos somos levados aodesespero a exata contrapartidada seguranccedila A seguranccedila ldquoeacute aAlegria originada da ideacuteia de umacoisa futura ou passada da qualfoi suprimida a causa de duvidarrdquo(Eacutetica III Def Af 15 GII idem)O desespero entretanto natildeo selimita meramente agrave noccedilatildeo de in-seguranccedila mas eacute precisamente aconsciecircncia (imaginativa) de queo pior da desesperanccedila estaacute porvir

Nitidamente se via no olhardos jovens que destruiacuteam a ci-dade a ausecircncia de esperanccedilaquanto ao futuro fazia-se pre-sente nos gestos e nas palavraso sentimento de quem nada tinhaa perder mesmo que pudesse terEles agiam como se fosse possiacutevelretribuir o mal recebido a qual-quer custo natildeo importando o quelhes sobreviesse A banalizaccedilatildeodas consequecircncias do ato de ba-ter quebrar depredar e incendiaras coisas foi o indiacutecio maior desse

desespero e natildeo uma evidecircnciada consciecircncia de impunidadepor parte da juventude transvi-ada como sempre defenderam osmais reacionaacuterios34 Parecia claroque o medo nos jovens da ativaconvertia-se em desespero masum desespero elaborado a partirda experiecircncia de saber que lhesestaacute (e estaraacute) inviabilizado o di-reito agrave cidade A veemecircncia dodesespero aumentava diante darepressatildeo preparada por gover-nantes que raramente entram emocircnibus Refeacutem dos carteacuteis agenci-ados pelo Estado quem lutava porum transporte justo e recebia emtroca as balas e o gaacutes lacrimogecircneoda Poliacutecia se revoltava profunda-mente O medo dos que fugiam aosom da primeira explosatildeo expres-sava o entendimento dos que simtinham muito a perder para es-tes o melhor era voltar para casae continuar a opinar nas redes so-ciais ateacute o proacuteximo ato e ateacute a proacute-xima primeira bomba

O pesadelo desses jovens de-sesperados envolvia a insatisfaccedilatildeocom a maacute administraccedilatildeo do es-paccedilo puacuteblico o descontentamentocom a vida familiar com a escola e

um ldquovaziordquo repleto de afetos referidos aos outros tempos O acontecimento temido ou esperado foi ou seraacute mas eacutesentido como presente Segundo Chaui (2011 p 158) ldquoa ausecircncia de duacutevida no caso da seguranccedila e do desespero() natildeo eacute o mesmo que a presenccedila da certezardquo mas a imaginaccedilatildeo que ldquotraz o passado e o futuro para o presenteexcluindo imagens de tudo aquilo quanto possa impedir essa presenccedilardquo

34 Basta constatar que no dia 16 de abril de 2013 antes mesmo das jornadas o deputado Carlos Sampaio(PSDBSP) jaacute apresentara o Projeto de Lei n 5385 que previa o aumento do periacuteodo maacuteximo de internaccedilatildeodos jovens de trecircs para oito anos isto eacute o aumento do grau de puniccedilatildeo

35 Foi o caso muito conhecido de Rafael Braga jovem detido no dia 20 de junho de 2013 por simplesmente

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com a sociedade iniacutequa capaz deprender um indiviacuteduo por portede vinagre ou ldquoPinho Solrdquo35 eao mesmo tempo conceder liber-dade e poder a comprovados cor-ruptos (RIBEIRO-JR 2011) Elespareciam querer bradar contra aPoliacutecia Militar assim como Espi-nosa ousara afrontar os assassi-nos dos irmatildeos De Witt provo-cando ldquoVocecircs satildeo os uacuteltimos dosbaacuterbarosrdquo

O desespero no entanto nas-cido de certa suspensatildeo da insta-bilidade36 que caracteriza o medoeacute uma tristeza viacutetimas dele noacutesestamos em pleno campo da passi-vidade No escoacutelio da proposiccedilatildeo47 da parte IV da Eacutetica Espinosaexplica

[Esperanccedila e medo] in-dicam defeito do conhe-cimento e impotecircncia daMente e por este motivotambeacutem a Seguranccedila oDesespero o Gozo e o Re-morso satildeo sinais de im-potecircncia do acircnimo Poisembora a Seguranccedila e oGozo sejam afetos de Ale-gria contudo supotildeem te-rem sido precedidos porTristeza a saber por Es-

peranccedila e Medo E as-sim quanto mais nos es-forccedilamos para viver sob aconduccedilatildeo da razatildeo tantomais nos esforccedilamos paradepender menos da Espe-ranccedila para nos libertardo Medo para comandar(imperare) o quanto pu-dermos a fortuna e paradirigir nossas accedilotildees peloconselho certo da razatildeo(GII p 246)

A passagem acima suscita a in-teraccedilatildeo entre afeto e conheci-mento Afetos instaacuteveis espe-ranccedila e medo indicam (indicant)defeito e impotecircncia um defeitodo conhecimento que desde aparte I da Eacutetica eacute considerado acausa de percebermos as coisascomo contingentes e natildeo necessaacute-rias e uma impotecircncia da menteque incapaz de afirmar a exis-tecircncia de uma coisa ou excluiacute-lade vez oscila e fica instaacutevel maissuscetiacutevel a afetos contraacuterios a suaproacutepria natureza Em primeirolugar o defeito do conhecimentose deve agrave limitaccedilatildeo do proacuteprioconhecimento enquanto coisa fi-nita impedida de saber da essecircn-cia de cada uma de todas as coi-

portar o produto36 Macherey (1995 p 174) alerta que a suspensatildeo da instabilidade que redunda em desespero ou em seguranccedila

natildeo eacute absoluta De acordo com Luiz Carlos Braga (2016 p 110) ldquoo fim da duacutevida nos casos da securitas e da despe-ratio natildeo implica total estabilidade uma cristalizaccedilatildeo afetiva absoluta pois as coisas que vecircm agrave mente do homemficam apenas menos contingentes uma vez finda a duacutevidardquo

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sas existentes Por isso facilmentetal conhecimento deixa escapar aordem necessaacuteria das causas dosfenocircmenos

Uma coisa cuja essecircnciaignoramos envolver con-tradiccedilatildeo ou da qual sa-bemos bem que natildeo en-volve nenhuma contradi-ccedilatildeo e de cuja existecircn-cia contudo natildeo pode-mos afirmar nada de certoporque a ordem das cau-sas nos escapa tal coisanunca pode ser vista pornoacutes nem como necessaacute-ria nem como impossiacute-vel e por isso chamamo-la ou contingente ou pos-siacutevel (Eacutetica I Prop 33 esc1 GII p 74)

A esperanccedila e o medo por envol-verem duacutevida quanto a algumacoisa que implicaraacute alegria ou tris-teza manifestam em segundo lu-gar a impotecircncia da mente pelaqual ela nem afirma nem excluia existecircncia da coisa que teme ouespera nem a toma como neces-saacuteria nem como impossiacutevel mascomo contingente ou possiacutevel

Agrave primeira vista eacute estranho pen-sar que a seguranccedila e o gozo sejamcolocados pelo filoacutesofo na lista dosafetos que apesar de alegres si-nalizam a impotecircncia Se atentar-mos poreacutem ao modo pelo qual

de acordo com Espinosa o serhumano chega a gozar de umacoisa ou vem a se sentir seguroem dada situaccedilatildeo sem dificuldadeveremos a presenccedila do elementoda parcialidade do conhecimentoque ele possui a respeito do queo circunda O gozo nasce as-sim como o remorso daquilo queocorre ldquocontra toda a esperanccedilardquoportanto de uma condiccedilatildeo de ini-cial de instabilidade entre alegriae tristeza

O Gozo eacute a Alegria con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocorreucontra toda Esperanccedila ORemorso eacute a Tristeza con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocor-reu contra toda Esperanccedila(Eacutetica III Def Af 16 e 17GII p 195)

A filosofia de Espinosa visa emtermos eacuteticos promover uma vidadependente no menor grau pos-siacutevel da esperanccedila e do medo demodo a ser maximamente condu-zida pela razatildeo que percebe as coi-sas como necessaacuterias e natildeo comocontingentes (Eacutetica II Prop 44cor 2 dem GII p 126) Eacute oconhecimento da ordem necessaacute-ria da natureza que permite aovivente imperar na medida dopossiacutevel sobre a contingecircncia (ex-

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pressa na figura da Fortuna) e natildeosucumbir diante dela O deses-pero faz cessar o medo mas nempor isso ao entrar em desesperosentiremos alegria os desespera-dos ficam livres da esperanccedila e domedo mas natildeo da tristeza que soacutepoderaacute ser abalada se uma alegriaem sentido contraacuterio se der (EacuteticaIV Prop 7 GII p 214) Destaalegria eacute que pode um ser humanorealmente afastar a tristeza e pas-sar a entender adequadamente ascoisas

Desesperados os indiviacuteduos fa-zem muitas coisas das quais pos-teriormente sentem remorso noentanto apenas desesperados po-dem experimentar este tipo espe-cial de alegria que eacute o gozo (a ale-gria contra toda a esperanccedila) Aparticipaccedilatildeo dos jovens nas jorna-das de 2013 parece ter evidenci-ado uma forma de se viver o de-sespero na qual o remorso eacute aomaacuteximo evitado e o gozo se con-verte em meta final de cada atoComo seria isso possiacutevel

Durante as jornadas conformejaacute foi expresso cada vez que con-seguiacuteamos avanccedilar e encontraroutro grupo de militantes ndash depoisde termos sido dispersados pelasbombas ndash a sensaccedilatildeo era de umaverdadeira apoteose de alegria oucomo diria Leminski (2004) deum ldquogozo fabulosordquo Um gozoque mesmo passivamente dadoproduzia no cerne do desespero a

emoccedilatildeo de estar avanccedilando con-tra quem esperava de noacutes umaresposta de medo Isto explicaeacute certo a ligaccedilatildeo entre desesperoe a busca do gozo mas podemosindagar como os militantes po-diam contornar os riscos do re-morso expondo-se daquela ma-neira agrave violecircncia policial A res-posta soacute pode ser uma fazendoda movimentaccedilatildeo e da destrui-ccedilatildeo dos siacutembolos do Estado e docapital uma performance e natildeouma expressatildeo de puro oacutedio des-governado que no intuito de des-truir o que deve ser destruiacutedo feree ataca pessoas inocentes (merostranseuntes ou militantes pacifis-tas dos atos)

Em entrevista agrave revista CartaCapital um jovem Black Bloc afir-mou

Nossa sociedade eacute perme-ada por siacutembolos Partici-par no Black Blocs eacute usaacute-los para quebrar precon-ceitos natildeo somente o alvoatacado mas a ideia devandalismo Natildeo haacute vi-olecircncia mas performanceEu natildeo me sinto represen-tado pelos partidos E natildeosou a favor da democra-cia representativa mas dademocracia direta Natildeoeacute depredaccedilatildeo pelo sim-ples prazer de quebrarcoisas mas atacar siacutembo-

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los que estatildeo representa-dos laacute (ORTELLADO SO-LANO VIEIRA LOCA-TELLI 2013)

Em mateacuteria da Folha de Satildeo Paulopublicada no final do ano de 2013e citada por Gohn (2013 p 434)jornalistas que ouviram os jovensprotagonistas das jornadas de ju-nho afirmam

Muitos Black Blocs jaacute medisseram que para eles aviolecircncia eacute a uacutenica formade expressatildeo pela qual defato satildeo ouvidos Eacute difiacutecilcontestar esse raciociacutenioSe a imprensa soacute daacute voz agravesformas de protestos vio-lentos se o governo reagecom mais forccedila diante dofator violecircncia como im-pedir que a violecircncia setorne uma forma de pro-testo generalizada A vio-lecircncia como forma de pro-testo natildeo estaria sendo le-gitimada e reforccedilada portoda a sociedade que jogao jogo da espetaculariza-ccedilatildeo

Natildeo se trata naturalmente deafirmar que a juventude que in-corporava em Satildeo Paulo a taacuteticaBlack Bloc agia com afetuosidadee ternura em suas operaccedilotildees Era

efetivamente a expressatildeo de umdesespero de quem natildeo tem a li-berdade de dizer o que pensa massabe se expressar e viver sem es-peranccedilas tristeza de quem tocouo nuacutecleo mais iacutentimo do problemapoliacutetico que vivencia o grande ca-pital e o patrociacutenio do Estado parao livre desenvolvimento dos capi-talistas (sobretudo os da induacutestriados transportes) pela exploraccedilatildeoda forccedila produtiva

Para a anaacutelise dessa questatildeoo escoacutelio da Proposiccedilatildeo 49 daparte IV da Eacutetica pode oferecer umexemplo que nos interessa em par-ticular a accedilatildeo de bater uma accedilatildeoque corresponde com exatidatildeo aoque faziam os jovens durante osatos

() a accedilatildeo de bater en-quanto eacute considerada fi-sicamente e soacute prestamosatenccedilatildeo a que um homemlevanta o braccedilo fecha amatildeo e move com forccedilatodo o braccedilo de cima parabaixo eacute uma virtude queeacute concebida pela estruturado Corpo humano Se en-tatildeo um homem movidopela Ira ou Oacutedio eacute deter-minado a fechar a matildeo oumover o braccedilo isso comomostramos na SegundaParte ocorre porque umae a mesma accedilatildeo pode unir-se a quaisquer imagens de

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coisas e assim tanto apartir daquelas imagensdas coisas que concebe-mos confusamente quantodaquelas que concebemosclara e distintamente po-demos ser determinados auma e mesma accedilatildeo (GII p255)

Em si mesmas consideradas asaccedilotildees de quebrar depredar e in-cendiar natildeo satildeo necessariamentesintomas de passividade Se es-tas accedilotildees se relacionam a algo quecom o cuidado de natildeo ferir ne-nhum dos pares deponha con-tra os inimigos do bem verdadei-ramente comum elas podem serconsideradas virtudes Planejadae realizada como accedilatildeo dramaacuteticanatildeo como expressatildeo de ira ou oacutediogratuito a accedilatildeo Black Bloc cora-josamente se embebia do deses-pero em performance exercitandoo gozo e afastando o remorso Atristeza neste caso se situava ine-quivocamente ao lado do Estadoque impedia a livre expressatildeoademais estava ao lado dos ges-tores da cidade que natildeo se inte-ressam pela livre circulaccedilatildeo doscidadatildeos e enfim ao lado do po-liciamento que ao inveacutes de prote-ger o povo o oprimia

O problema dos jovens estavaprincipalmente na ausecircncia de li-berdade de expressatildeo No Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico (Capiacutetulo

20 GIII p 243) Espinosa es-creve ldquolonge de uma coisa des-sas poder acontecer ou seja detodos se limitarem a dizer o queestaacute prescrito quanto mais se pro-cura retirar aos homens a liber-dade de expressatildeo mais obstina-damente eles resistemrdquo Excetoos bajuladores e avaros (estes simde acircnimo verdadeiramente impo-tente) ningueacutem que se sinta livrerecusar-se-aacute a resistir contra umEstado opressor

Sob a mesma perspectiva dosdesesperados que gritavam aospacifistas nas ruas de Satildeo Pauloque o verdadeiro vandalismo ad-vinha do Estado iniacutequo o filoacutesofoescreveu em certa passagem damesma obra

Que coisa pior podeimaginar-se para um im-peacuterio que serem manda-dos para o exiacutelio como in-desejaacuteveis homens hones-tos soacute porque pensam demaneira diferente e natildeosabem dissimular Ha-veraacute algo mais perniciosorepito do que conside-rar inimigos e condenaragrave morte homens que natildeopraticaram outro crime ouaccedilatildeo criticaacutevel senatildeo pen-sar livremente e fazer as-sim do cadafalso que eacute oterror dos delinquentesum palco beliacutessimo em

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que se mostra para vergo-nha do soberano o maissublime exemplo de to-leracircncia e virtude Por-que os que sabem que satildeohonestos natildeo tecircm comoos criminosos medo demorrer nem imploram aclemecircncia na medida emque natildeo os angustia o re-morso de nenhum feitovergonhoso ndash pelo contraacute-rio o que fizeram era ho-nesto ndash recusam-se a con-siderar castigo o morrerpor uma causa justa e tecircmpor gloacuteria dar a vida pelaliberdade Que exemplopoderaacute entatildeo ter ficado damorte de pessoas assimcujo ideal eacute incompreen-dido pelos fracos e moral-mente impotentes odiadopelos sediciosos e amadopelos homens de bemNingueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum anatildeo ser para os imitar oupelo menos admirar (Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico 20GIII p 245)

Eacute bem verdade que os jovens dejunho em Satildeo Paulo natildeo foram exi-lados do paiacutes nem mortos peloEstado Todavia muitiacutessimos fo-ram presos interrogados e sub-metidos agrave execraccedilatildeo puacuteblica Forade duacutevida estaacute o fato de que eles

passaram a ser admirados por jo-vens ainda mais jovens que elescujo desejo de imitaccedilatildeo talvez te-nha sido o estopim para outrasaccedilotildees de desobediecircncia civil leva-das a cabo por jovens paulistas nosanos de 2015 e 2016 Uma marcandash natildeo se pode questionar ndash elesdeixaram e com um eco profun-damente espinosano que podemosentrever se nos servirmos de umapassagem da anaacutelise de MarilenaChaui (2011 p 167) ldquoos verda-deiros sediciosos satildeo () aque-les que em uma sociedade livrequerem suprimir a liberdade depensamento e de expressatildeo por-que natildeo conseguem destruiacute-lardquo

Finalmente e os pacifistas Ospacifistas provavelmente natildeo te-riam feito as jornadas de junhopois natildeo teriam afrontado a vio-lecircncia policial risco essencial paradestruir as engrenagens que man-tecircm o Estado produtor de iniqui-dades Eles natildeo teriam feito asjornadas acontecerem como acon-teceram natildeo por discordarem dapauta da reduccedilatildeo da tarifa e darepressatildeo policial mas porque se-guiram agrave risca a primeira partedo enunciado da Proposiccedilatildeo 39 daparte III da Eacutetica ldquoQuem odeia al-gueacutem esforccedilar-se-aacute para lhe fazero mal a natildeo ser que tema originar-se daiacute um maior mal para sirdquo (GIIp 169 grifos nossos) Os de-sesperados em contrapartida ti-nham a temer um mal maior mas

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agiam como se o mal maior parasi mesmos jaacute estivesse dado ldquosemduacutevidasrdquo

Do desespero ao encontro da co-munidade

Em geral o desespero eacute estimadono campo poliacutetico como um afetoa ser evitado Ao contraacuterio oque todos buscam na vida socialeacute o seu oposto o afeto de segu-ranccedila Em especial nos estudossobre o impacto poliacuteticos da teoriados afetos de Espinosa o livro deBraga (2016 p 244) nos faz lem-brar disso algumas vezes (e comrazatildeo) ldquoafeto triste no qual a duacute-vida acerca do medo antes sentidocessa o desespero eacute o retrato deuma cidade cujos suacuteditos natildeo tecircmacircnimo virtude potecircnciardquo Nas so-ciedades ldquoo afeto predominantedeve ser a seguranccedila advinda daesperanccedila e natildeo o desespero ad-vindo do medordquo (p 260) Eacute certoque aqui exploramos o desesperopara aleacutem de sua dinacircmica indivi-dual (isolada de outros afetos) epor isso pudemos perceber comoele vem a se ligar agrave alegria do gozoe agrave performance

O que tornou isso possiacutevel foium elemento presente em todaa nossa anaacutelise mas que apenasaqui colocamos em evidecircncia odesejo ldquoO desejordquo para Espinosaeacute ldquoa proacutepria essecircncia do homemrdquo

como declara a primeira das de-finiccedilotildees dos afetos da parte IIIda Eacutetica (GII p 190) ldquoo esforccedilopelo qual o homem se esforccedila paraperseverar em seu serrdquo conformeexplicita a demonstraccedilatildeo da Pro-posiccedilatildeo 18 da parte IV (GII p221-222) Enquanto esforccedilo porcontinuar a existir nosso desejopode ter origem na alegria ou natristeza no amor e no oacutedio Aoexperimentarmos uma tristezaobserva Espinosa nos esforccedilare-mos por afastaacute-la contrariamenteao experimentarmos uma alegrianos esforccedilaremos por reforccedilaacute-laisto eacute por fazer com que ela natildeose afaste de noacutes A demonstra-ccedilatildeo da Proposiccedilatildeo 37 da parte IIIemerge como um excelente auxiacute-lio para pensarmos como cada serhumano age quando vivencia umatristeza

A Tristeza () diminui oucoiacutebe a potecircncia de agirdo homem isto eacute () di-minui ou coiacutebe o esforccedilopelo qual o homem se es-forccedila para perseverar noseu ser por isso () elaeacute contraacuteria a este esforccediloe afastar a Tristeza eacute tudopara que se esforccedila o ho-mem afetado de TristezaOra () quanto maior eacutea Tristeza tanto maior eacute aparte da potecircncia de agirdo homem agrave qual eacute neces-

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saacuterio que se oponha logoquanto maior eacute a Tristezatanto maior eacute a potecircnciade agir com que o homemse esforccedilaraacute para afastaacute-la isto eacute () com tantomaior desejo ou seja ape-tite se esforccedilaraacute para afas-tar a Tristeza (GII p 168)

Um indiviacuteduo impotente eacute aqueleque natildeo consegue aplacar a tris-teza e dela permanece como re-feacutem Jaacute o indiviacuteduo que emboraaplacado por uma tristeza eacute ca-paz de encontrar uma alegria con-traacuteria agrave tristeza este sim expressacerto grau de potecircncia uma vezque mesmo no campo passionalalcanccedila uma primeira fonte de ati-vidade pela qual jaacute natildeo pode sedizer plenamente passivo em rela-ccedilatildeo ao que ocorre nele e fora dele

Neste ponto ganha plena rele-vacircncia a afirmaccedilatildeo jaacute feita aqui depassagem e que aparece em diver-sos comentadores de Espinosa arazatildeo natildeo surge aos homens comoum deus ex machina vinda doaleacutem mas no proacuteprio seio da pai-xatildeo De acordo com Chaui (2011p 169) ldquoa passagem do medo agraveesperanccedila deveraacute ocorrer no proacute-prio campo passional sem qual-quer intervenccedilatildeo da razatildeo passa-gem que ocorreraacute quando a espe-ranccedila da vida for para o conatusum desejo mais forte que o medoda morterdquo Para a autora ldquoo efeito

da estabilizaccedilatildeo da esperanccedila e deseu ultrapassamentordquo eacute precisa-mente o fato de ldquocomeccedilarmos aperceber que as coisas necessaacuteriasndash ou seja aquelas sobre as quaisnatildeo pesam duacutevidas ndash satildeo mais for-tes que as contingentesrdquo

No mesmo sentido comen-tando o pensamento eacutetico de Espi-nosa Lorenzo Vinciguerra (2003p 13) afirma que em uma para-doxal flutuaccedilatildeo ldquoonde o espiacuteritoconhece a suprema impotecircncia eonde conhece tambeacutem a supremapotecircnciardquo natildeo eacute a razatildeo que operacomo uma espeacutecie de mediaccedilatildeopara o conflito afetivo dado Se-gundo o comentador ldquoa razatildeordquoabalada ldquotoma partido do con-flito e potildee a mente em sua uacuteltimatrincheirardquo De acordo com Givigi(2018 p 79) Vinciguerra consi-dera que no sistema de Espinosaldquopode vir a ser do agravamento dafluctuatio ao ponto de uma deses-peratiordquo que advenha uma delibe-raccedilatildeo ativa dos indiviacuteduos sobreseus impasses

Negri (2016 p 223) natildeo apre-senta um parecer diferente Paraele tambeacutem eacute no campo proacuteprioda passividade que se conquistaem termos espinosanos a pleni-tude do ser

a multitudo nasce julgae se comporta como umconjunto de brutos masde qualquer forma ela

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eacute sempre investida pelametamorfose do ser ouseja por uma metamor-fose que o ser humanoconduz na plenitude co-letiva do gecircnerordquo

O espinosismo de Negri (2007 p39) no livro Joacute ndash a forccedila do escravonos explica antes de tudo qual eacuteo sentido da miseacuteria experimen-tada pela multidatildeo enleada ao seudesejo de luta Acerca desta obraescrita no caacutercere ndash assim como oclaacutessico sobre Espinosa A anoma-lia selvagem ndash ele assevera

A realidade de nossa mi-seacuteria eacute aquela de Joacute as per-guntas e as respostas quefazemos ao mundo satildeoas mesmas de Joacute com omesmo desespero as mes-mas blasfecircmias noacutes nosexprimimos () Pode-remos noacutes tambeacutem guiara nossa miseacuteria atraveacutes deuma anaacutelise do ser e dador E a partir dessa pro-fundidade ontoloacutegica re-montar a uma teoria daaccedilatildeo ou melhor a umapraacutetica de reconstruccedilatildeo domundo

A resposta negriana eacute afirmativaJoacute inicia um processo de liberta-ccedilatildeo que o revelaraacute natildeo como pa-ciente mas potente37 A sua dora dor com que luta contra os fla-gelos impostos pela Natureza eacuteldquouma chave que abre a porta da co-munidaderdquo Segundo Negri (2007p 139-140)

todos os coletivos satildeoformados pela dor pelomenos aqueles que lu-tam contra a exploraccedilatildeodo tempo da vida porparte do poder aquelesque descobriram o tempode novo como potecircnciacomo recusa do trabalhoexplorado e dos manda-mentos que se instauramcom base na exploraccedilatildeoA dor eacute o fundamento de-mocraacutetico da sociedade po-liacutetica na mesma medidaem que o medo eacute seu fun-damento ditatorial auto-ritaacuterio Hobbes e todos oschamados ldquorealistasrdquo dafilosofia poliacutetica satildeo antesde tudo homens imoraispois de maneira infamefalam do medo ndash daquelemedo que eles acrescen-tam agrave dor da vida ndash como

37 ldquoJoacute natildeo eacute paciente eacute potente Os proacuteprios textos que recordamos compotildeem a imagem de um homem queatraveacutes da luta mesmo na dor e na miseacuteria mais tremendas afirma seu domiacutenio sobre o ser A potecircncia forma-sena dor mas se desenvolve na relaccedilatildeo com o serrdquo (NEGRI 2007 p 128)

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de um fundamento ()A potecircncia instaura-se nador eacute potecircncia do natildeo-sereacute potecircncia da comunidadendash uma essecircncia inconclusadentro de um processo in-definidamente criativo

De onde se pode extrair tanta afir-maccedilatildeo na dor e ndash acrescentamosnoacutes ndash do desespero Para Negri oque permite ao desesperado e so-fredor desviar-se para a alegria emmeio agrave proacutepria dor eacute manter umaatitude diferente diante da vidaou seja ter em vista um horizontecoletivo e ter disposiccedilatildeo de com-partilhar com os outros a mesmador Tal disposiccedilatildeo consiste emlutar para ter o sofrimento reco-nhecido e desejar com o outroldquosofrer juntordquo Pode parecer pesa-rosa tal constataccedilatildeo uma vez quereuacutene uma seacuterie de sofrimentosmas natildeo eacute Citemos ainda umavez Negri (2007 p 145)

Natildeo posso reconhecer ooutro tomado pela dorse natildeo a compartilho comele Mas atraveacutes dessaaccedilatildeo de colocar-me nelecom amor dessa accedilatildeo decompaixatildeo posso levara efeito a construccedilatildeo domundo Natildeo eacute a divin-dade um significado quevem do alto mas o sofri-

mento e a dor que vecircm debaixo que constroem o serproacuteprio do mundo Spi-noza moveu-se ele tam-beacutem nesse mesmo terrenoe nessa mesma perspec-tiva A funccedilatildeo univer-sal e constitutiva do so-frimento encontra-se laacuteonde a paixatildeo transforma-se em compaixatildeo e a tris-teza desenvolve-se em ale-gria da comunhatildeo como outro A ontologia dacomunidade eacute descobertaatraveacutes do sofrer junto ndashum sofrer que se subtraiagrave passividade e torna-seconstrutivo Eacutetico

Vecirc-se a partir dessa citaccedilatildeo quea coletividade-comunhatildeo nascidano desespero pode converter a po-tecircncia contra o poder

Experimentamos nos dias dejunho de 2013 a ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo por garotos e garotaspaulistanas Foi entretanto deacordo com a explicaccedilatildeo de Ne-gri uma accedilatildeo de compaixatildeo e natildeoa compaixatildeo contra a qual Nietzs-che se voltou isto eacute a compai-xatildeo ldquohipoacutecritardquo a ldquocomiseraccedilatildeoque natildeo se faz universalidaderdquo(NEGRI 2007 p 145) Natildeodiremos portanto ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo porque nesse con-texto pode soar anti-espinosanodiremos ldquosolidariedaderdquo princiacute-

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pio libertaacuterio por excelecircncia e queencontra certo respaldo na ideiaespinosana de ldquoauxiacutelio muacutetuordquo aaccedilatildeo fundadora da vida comum38Em funccedilatildeo de ler Espinosa eu (emuitos outros movidos pela proacute-pria aprendizagem da luta) des-pertei para essa espeacutecie de solida-riedade que produz o desejo de co-munidade e de estar junto com ajuventude contra a qual no Brasiltudo eacute liacutecito

Muitos professores intelectu-ais e lideranccedilas partidaacuterias de es-querda cientes na maioria dasvezes do que se passava nos atosnatildeo podiam afirmar categorica-mente que a luta da juventudeera legiacutetima Por recear a reta-liaccedilatildeo dos controladores sociais(sobretudo os midiaacuteticos) mui-tos deixaram a juventude maisradical na vala comum ao fei-tio de ldquofascistas depredadores dopatrimocircnio puacuteblicordquo Na classemeacutedia politizada pela esquerdahavia sempre o medo tiacutepico dosque se sentem solitaacuterios e fogemmesmo estando em coletivo sim-plesmente porque sentem queainda tecircm muito a perder

Natildeo resolve nenhum problemaapontar supostas covardias ou fa-zer alguma autocriacutetica circunstan-cial A maioria dos intelectuais e

professores dos partidos e de todaa geraccedilatildeo adulta foi constituiacuteda aolongo do processo histoacuterico sem ogosto da participaccedilatildeo poliacutetica e namais profunda inexperiecircncia dademocracia direta Nos meios in-telectuais a revolta da juventuderadical soacute poderia mesmo indiciaroacutedio agrave poliacutetica ao inveacutes de simbo-lizar oacutedio agrave representaccedilatildeo poliacuteticaPara uma parte dos intelectuaisque se acostumou a desempenharo papel de reproduccedilatildeo da ideolo-gia da classe dominante a poliacute-tica eacute (e deve continuar a ser) issoque os partidos fazem em nomedeles e para eles Uma fatia im-portante da dita elite pensanteuma vez abandonada pelo jogo darepresentaccedilatildeo poliacutetica do pactoda mediaccedilatildeo exclusivamente par-tidaacuteria do poder e de outras tantasinvenccedilotildees fantasiosas da burgue-sia sente ter tudo a perder Po-reacutem estando o jogo da represen-taccedilatildeo assegurado jaacute respira a es-peranccedila (mais forte em alguns doque em outros) de constituir umacidade livre e para todos Bastaessa tecircnue esperanccedila cotidiana-mente negada para que se recu-sem a atacar as instituiccedilotildees sa-tisfeitos com seus representantesmesmo quando estes atiram bom-bas

38 No escoacutelio da Proposiccedilatildeo 35 da parte IV da Eacutetica Espinosa argumenta que os seres humanos ldquodificilmentepassam a vida em solidatildeordquo Em seguida afirma ldquoos homens com o auxiacutelio muacutetuo podem prover-se muito maisfacilmente das coisas de que precisam e soacute com as forccedilas reunidas podem evitar os perigos que em toda parte osameaccedilamrdquo (GII p 234)

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Eacute tambeacutem pelo processo histoacute-rico que se compreende natildeo tersido enfatizada pela maioria dasanaacutelises a presenccedila diferencial dajuventude brasileira no papel dereal disparadora das jornadas dacidade de Satildeo Paulo Conformejaacute foi aqui registrado todos osanalistas tiveram que reconhecera presenccedila jovem no movimentomas poucos souberam perceber opotencial caracteristicamente jo-vem do impulso revolucionaacuteriodaqueles atos As forccedilas reacionaacute-rias por outro lado parecem terpercebido bem esse elemento

Jaacute apontamos em nota que a16 de abril de 2013 o deputadoCarlos Sampaio (PSDBSP) apre-sentou o Projeto de Lei n 5385requerendo o aumento do tempomaacuteximo de internaccedilatildeo de jovensque passaria de trecircs para oitoanos Soacute em 2013 foram apresen-tadas pelo menos duas PECs pelareduccedilatildeo da maioridade penal Emjulho de 2015 por meio de ma-nobra (SANTOS 2015 p 910)o entatildeo presidente da Cacircmarados Deputados Eduardo Cunha(PMBDRJ) conseguiu algo ineacute-dito a aprovaccedilatildeo da PEC n1711993 na Comissatildeo de Consti-tuiccedilatildeo e Justiccedila Tal emenda comooutras 35 que viriam a tramitar de1993 ateacute 2013 (SILVA HUumlNING2017 p 237) propunha alterar aredaccedilatildeo do artigo 228 da Consti-tuiccedilatildeo Federal justamente aquele

sobre a imputabilidade penal doindiviacuteduo maior de 16 anos

A paacutegina de notiacutecias do SenadoFederal na internet no dia 30 demaio de 2016 afirmou

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)() A PEC 332012 dosenador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anosrdquo (SE-NADO 2016)

Em setembro de 2017 em situa-ccedilatildeo pura de repeticcedilatildeo anunciou arevista Carta Capital

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)do Senado () A Pro-posta de Emenda agrave Cons-tituiccedilatildeo (PEC) 332012do senador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anos ()A proposta tramita emconjunto com mais trecircsPECs que versam sobre otema (BELCHIOR 2017)

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Logo no iniacutecio do ano de 2018o tema foi novamente ventiladopela imprensa

Apesar de ser ano de elei-ccedilatildeo quando os parlamen-tares deixam os trabalhoslegislativos em segundoplano e costumam evitartemas polecircmicos o rela-tor da mateacuteria senadorRicardo Ferraccedilo (PSDB-ES) acredita que o pro-jeto [de reduccedilatildeo da maio-ridade penal] seraacute votadoem 2018 (MARIZ 2018)

A PEC 332012 consta como ar-quivada desde 21 de dezembrode 2018 mas tem sempre retor-nado nos uacuteltimos cinco anos comopauta para as grandes reportagenstelevisivas sobre menores reputa-dos criminosos e como bode ex-piatoacuterio de toda a desigualdadesocial brasileira Podemos aleacutemdisso mencionar a forte repres-satildeo que jovens estudantes de vaacute-rios lugares do Brasil sofreram notempo das ocupaccedilotildees de escolasdepois de junho de 2013 tanto noano de 2015 em Satildeo Paulo contrauma decisatildeo do governador Ge-raldo Alckmin (PSDBSP) de fe-char escolas no Estado quanto em2016 no paiacutes inteiro contra a re-forma do Ensino Meacutedio que viriaa se tornar a Lei n 134152017

(BRASIL 2017)

A verdade vindo agrave tona

O espiacuterito das jornadas de junhode 2013 na cidade de Satildeo Paulopara quem se fazia leitor de Espi-nosa foi a combinaccedilatildeo entre taacute-tica e horizontalidade contra ossiacutembolos e as forccedilas do Impeacuterioencarnadas na loacutegica hierarqui-zada da repressatildeo das tropas dechoque Foi em suma conformepropusemos a experiecircncia poliacute-tica de colocar medo nos deten-tores de privileacutegio fazecirc-los sen-tir por algumas noites o deses-pero das minorias poliacuteticas quese metamorfoseiam em multidatildeoNatildeo evidentemente apenas peloconsenso mas tambeacutem pelo con-flito Natildeo foi jamais o caso deldquotocar o terrorrdquo pela cidade por-que os insurretos natildeo tinham ar-mas para aterrorizar Tratava-sede encontrar na Avenida Paulistao grande capital financeiro paraapedrejaacute-lo apedrejaacute-lo sim massem violecircncia A atuaccedilatildeo dos jo-vens de vermelho e preto tam-beacutem eles com seus gritos compu-seram um ldquoprocesso indefinida-mente criativordquo como eacute criar umldquocorpo-sem-oacutergatildeosrdquo segundo De-leuze e Guattari (1996) Criar algoassim natildeo eacute exatamente um pro-

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cesso suave mas tenso39Nesse percurso natildeo pode faltar

uma palavra final sobre os possiacute-veis descaminhos autoritaacuterios dodesespero coletivo sobretudo di-ante do cenaacuterio de reaccedilatildeo conser-vadora que se sobrepocircs a essa pri-meira fase das jornadas (DEMIERHOEVELER 2016) Eacute precisopois renovar neste momento a ad-vertecircncia segundo a qual a lutacontra as instituiccedilotildees e todas asformas de representaccedilatildeo fomen-tada por afetos feitos de tristezapode culminar no aparecimentode forccedilas tiracircnicas que se legiti-mam pelo exerciacutecio do poder Odebate eacute amplo e natildeo teremos con-diccedilatildeo de aprofundaacute-lo aqui Nocaso brasileiro entretanto a cau-tela contra o iacutempeto destrutivo decertos movimentos tem justifica-tivas histoacutericas e teoacutericas impor-tantiacutessimas Citemos Pliacutenio Sal-gado (1953 p 56) e em seguidaum conjunto de breves comentaacute-rios de Marilena Chaui ao integra-lismo

Uma Revoluccedilatildeo se efetivaobjetivamente na Histoacute-ria obedecendo na apa-recircncia a certas causas di-retas mas essas causas

passam a ser simples con-junto de efeitos desde queo concurso de circunstacircn-cias que atuam durante operiacuteodo da transiccedilatildeo re-volucionaacuteria comeccedila a pocircrem evidecircncia fatores no-vos e desconhecidos pelalimitada visatildeo dos com-parsas

Pliacutenio Salgado figura autoritaacute-ria e de direita pensava o Es-tado como ldquoum joguete nas matildeosdos poderososrdquo (CHAUI 2014ap 110) Para ele como paraos conservadores da segunda me-tade do seacuteculo XIX uma crise ex-pressa sempre um sintoma da in-competecircncia dos seres humanosem dominar a histoacuteria (p 115)de modo a exigir a intervenccedilatildeo daldquoclasse meacutedia urbanardquo ldquoa uacutenicaclasse que soacute pode representar-se a si mesma como lsquoideiarsquo ecomo lsquoideadorarsquordquo Para mobili-zar esta classe os integralistasse apoiavam em uma pretensaldquocrise radical das ideiasrdquo culti-vando o recanto da ausecircncia depensamento bem ali onde plan-tam seu programa poliacutetico ldquoAirracionalidaderdquo das ideias ndash ge-neralizada na sociedade ndash eacute o

39 ldquo[Criar um Corpo-sem-Oacutergatildeos] Natildeo eacute tranquilizador porque vocecirc pode falhar Ou agraves vezes pode ser aterrori-zante conduzi-lo agrave morte Ele eacute natildeo-desejo mas tambeacutem desejo Natildeo eacute uma noccedilatildeo um conceito mas antes umapraacutetica um conjunto de praacuteticas Ao Corpo sem Oacutergatildeos natildeo se chega natildeo se pode chegar nunca se acaba de chegara ele eacute um limiterdquo (DELEUZE amp GUATTARI 1996 p 8-9)

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que ldquodesencadeia a racionalidadeintegralistardquo (p 113)

Chaui (2014a p 113) retra-tando a loacutegica de Pliacutenio Salgadoescreve

a tarefa destrutiva deveser feita pela sociedadeenquanto o momentoconstitutivo da revoluccedilatildeoseraacute obra do Estado ex-pressatildeo positiva dos an-seios da sociedade Estasoacute pode ser levada agrave accedilatildeodestrutiva se perceber aconstruccedilatildeo por vir massobretudo se perceber acrise existente

Na histoacuteria do Brasil sequestrarnarrativas criar o caos das ideiase exercer o poder destrutivo con-tra quem eacute a causa direta do fer-vor revolucionaacuterio natildeo satildeo tramasisoladas mas praacuteticas constantesteoricamente orientadas

Em dezembro de 2001 tivemosnotiacutecia da ldquobaderna argentinardquo(HOPSTEIN 2002) movimentocom muitas semelhanccedilas e dife-renccedilas em relaccedilatildeo a junho de 2013no Brasil No contexto deste mo-vimento o cientista poliacutetico Guil-lermo OrsquoDonnell em entrevistaao jornal Clariacuten em setembro de2002 declarou ldquo iquestUn Hitler iquestUnMussolini Bueno que venga No-sotros ya estamos en ese tobogaacutenrdquo

(p 49) Embora natildeo seja plausiacute-vel sequer ousar pocircr em discus-satildeo agora o caso argentino gos-tariacuteamos de pensar esta declara-ccedilatildeo agrave luz da experiecircncia brasileiraainda que desviemos o contextoda afirmaccedilatildeo original Ao dizerdestemidamente que venham en-tatildeo os autoritaacuterios esquecemos adiferenccedila substancial entre estese aqueles que apesar de agiremcontra a multidatildeo fazem ques-tatildeo de manter em certos limitesa institucionalidade Os autoritaacute-rios de tipo hitlerista soacute saem dopoder depois de terem destruiacutedotodos os opositores ao passo queos demais ao deixarem o exerciacuteciodo poder legalmente obtido aindacogitam voltar ao poder pela ins-titucionalidade e para isso preci-sam dos adversaacuterios vivos O ldquoyardquoda sentenccedila ldquoya estamosrdquo eacute um tiacute-pico caso de expressatildeo do deses-pero poliacutetico momento em quenatildeo temos duacutevida da ocorrecircnciade algo que temiacuteamos acontecernatildeo obstante na ordem da reali-dade isso natildeo tenha efetivamentese dado

Natildeo se pode colocar em xequea existecircncia de situaccedilotildees em quetodos os poliacuteticos e poderosos deuma cidade proviacutencia ou paiacutesatuem como ditadores ao modode Hitler e Mussolini Portantohaacute todo um sentido legiacutetimo emse bradar ldquoque se vayan todos queno quede ni uno soacutelordquo lema fre-

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quente durante as agitaccedilotildees daArgentina em 2001 (HOPSTEIN2002 p 48) A pergunta necessaacute-ria eacute a seguinte depois de destruira todos os fantasmas da represen-taccedilatildeo qual eacute a forccedila constitutivadesses movimentos que apenasaparecem na cena midiaacutetica comovacircndalos Ningueacutem levou a seacuterioo potente movimento constitutivode luta horizontal que antecediae determinava os assim chamadosldquoatos com quebra-quebrardquo obser-varam apenas o quebra-quebra40

No final das contas desta forccedilaconstituinte ou ndash nas palavras deChaui ndash desta ldquoconstruccedilatildeo porvirrdquo radicalmente democraacutetica(porque direta) quem mais pa-receu ter entendido foi o conser-vadorismo modulador das narra-tivas sociais Certamente sobreesta forccedila constitutiva dos insur-retos os conservadores souberammais do que qualquer outro setorpoliacutetico pois a combateram como auxiacutelio daquela classe social re-dentora dia a dia ato a ato

Uma ressalva deve ser feitaTrinta anos antes de junho de2013 Chaui (2014b p 265) es-creveu um curto artigo a respeito

de manifestaccedilotildees e saques jaacute ob-servando a potecircncia constitutivapor traacutes das accedilotildees de rua Na-quela ocasiatildeo ndash nos primeiros diasde abril de 1983 ndash a accedilatildeo popular(realizada tambeacutem na cidade deSatildeo Paulo) foi uma resposta agrave criseeconocircmica e fazia ecoar generali-zadamente o horror social frenteagrave agressividade reinante Chaui(2014b p 266) entatildeo compa-rou a reaccedilatildeo social de comiseraccedilatildeoem relaccedilatildeo ao espetaacuteculo midiaacute-tico das cenas de miseacuteria expostasdiariamente para a sociedade como medo despertado pelas manifes-taccedilotildees de rua ditas violentas Emseu parecer as agitaccedilotildees urbanasdo povo ndash que a miacutedia de massaquer converter em espetaacuteculos ndashinvadem o domiacutenio do poliacuteticonatildeo existem para que sejam vistasldquomas para criar participaccedilatildeo e so-lidariedade suscitando o contra-ataque repressivordquo O resultadoda confrontaccedilatildeo violenta conduzao desejo geral de ldquopreservaccedilatildeoda ordemrdquo pois a populaccedilatildeo sabeque ldquoindependentemente dos re-sultados da accedilatildeo popular sua sim-ples existecircncia revela a injusticcedilada ordem vigenterdquo Segundo a au-

40 Reaccedilatildeo similar se deu ao que tudo indica tambeacutem na Argentina em 2001 Ao comentar o modo pelo qualmuitos responderam aos movimentos daquele entatildeo Hopstein (2002 p 47) assinala ldquoAs anaacutelises e reflexotildees quesurgiram em torno desses acontecimentos geraram os mais diversos diagnoacutesticos apocaliacutepticos lsquorevoluccedilatildeo socia-listarsquo lsquofascismo antidemocraacuteticorsquo lsquoamalucado estalido irracionalrsquo lsquomorte lenta da democraciarsquordquo Ningueacutem pareceter visto como Hopstein acentua que ldquoestas lutasrdquo (na Argentina mas poderiacuteamos tambeacutem estender ao caso doBrasil) ldquopor serem em sua essecircncia constituintes satildeo antitranscendentes e antiteleoloacutegicas e se opotildeem portantoa todo signo de institucionalizaccedilatildeo de definiccedilatildeo externa contribuindo desta forma para criar novos espaccedilos puacutebli-cos e novas formas de comunidade (p 57)rdquo Apenas recentemente temos nos deparado com estudos que relevam aforccedila e solidez dos ativistas de Satildeo Paulo (FRUacuteGOLI 2018) e de sua racionalidade poliacutetica (MORENO 2018)

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tora o medo causado pela accedilatildeo dopovo ldquonatildeo estaacute no perigo de suasintenccedilotildees expliacutecitas ndash () contes-tar a poliacutetica econocircmica do go-verno ndash nem na desordem mo-mentacircnea causada por sua apa-riccedilatildeo ndash o quebra-quebra () ndashmas no seu sentido taacutecito reve-laccedilatildeo do avesso Verdade vindoagrave tonardquo (CHAUI 2014b p 266)Realizado tambeacutem por indiviacuteduostomados pela cultura jovem em si-tuaccedilatildeo de desespero41 (criada bemantes de junho de 2013) o ato foirepreendido pela administraccedilatildeode Satildeo Paulo com a brutalidadee a forccedila militar habituais produ-zindo a tristeza e negando a cons-truccedilatildeo democraacutetica por vir isto eacutea verdade que sempre vem agrave tonatacitamente a proliferar solidarie-dade e participaccedilatildeo

Para encerrar estas reflexotildeesapresentamos um texto que emsuas dimensotildees literaacuterias e exis-tenciais propotildee uma ressignifi-caccedilatildeo do desespero e nos lanccedila auma seacuterie de conexotildees que con-trariam a dureza do discurso re-acionaacuterio O fragmento abaixode Andreacute Comte-Sponville (2001p 26) embala a imaginaccedilatildeo po-eticamente para contemplar for-mas criativas de pensar o sentidode afetos como esperanccedila e deses-pero

O que tento pensar eacute que odesespero pode ser alegreque a felicidade seja de-sesperada e o desesperofeliz Isso quer dizerque o desespero no sen-tido em que eu o tomonatildeo eacute o extremo da infe-licidade ou o acabrunha-mento depressivo do sui-cida Eacute antes o contraacuterioemprego a palavra numsentido literal quase eti-moloacutegico para designar ograu zero da esperanccedilaa pura e simples ausecircn-cia de esperanccedila Tam-beacutem poderiacuteamos chamaacute-lo de inesperanccedila Masnatildeo gosto muito de neolo-gismos e aleacutem do mais otermo inesperanccedila daria afalsa impressatildeo da facili-dade como se nos tornaacutes-semos saacutebios de um diapara o outro como se bas-tasse decidir como se pu-deacutessemos nos instalar nasabedoria como quem seinstala numa poltrona Apalavra desespero em suadureza em sua luz escuraexprime a dificuldade docaminho Ela supotildee umtrabalho no sentido em

41 Segundo Chaui (2014b p 267) os responsaacuteveis pelo quebra-quebra eram ldquohomens robustosrdquo vestindoldquojaquetas de courordquo ldquotendo por traacutes sabe-se laacute que garantiardquo

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que Freud fala de traba-lho do luto e no fundo eacuteo mesmo trabalho A es-peranccedila eacute primeira por-tanto eacute necessaacuterio perdecirc-la o que eacute quase sem-pre doloroso Eu gostona palavra desespero quese ouccedila um pouco essador esse trabalho essa di-ficuldade Um esforccedilodizia Spinoza para nostornar menos dependen-tes da esperanccedila Por-tanto o desespero no sen-tido em que emprego a pa-lavra natildeo eacute a tristeza me-

nos ainda o niilismo a re-nuacutencia ou a resignaccedilatildeo eacuteantes o que eu chamariade um gaio desespero umpouco no mesmo sentidoem que Nietzsche falavado gaio saber Seria o de-sespero do saacutebio seria asabedoria do desespero

O contato com jovens que personi-ficavam a inesperanccedila trouxe ine-gavelmente uma espeacutecie nietzs-chiana de ldquogaia ciecircnciardquo um saberque uma vez descoberto traz ale-gria ndash uma forte alegria ndash a quemo obteacutem

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Recebido 02072019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224828

A Influecircncia de Schelling sobre Schoppenhauer[Schellingrsquos Influence on Schopenhauer]

Helio Lopes da Silva

Resumo Neste artigo investigo as contribuiccedilotildees positivas que a filo-sofia de Schelling fez ao desenvolvimento do pensamento filosoacutefico deSchopenhauer Deixando de lado a rejeiccedilatildeo desta filosofia por parte doSchopenhauer maduro examinarei algumas ideias que o jovem Scho-penhauer (1811-1813) atraveacutes da leitura e estudo dos livros de Schel-ling poderia ter aceitado reformulado e incorporado ao seu pensa-mento filosoacutefico originalPalavras-chave Schopenhauer Schelling Influecircncia

Abstract In this paper I investigate the positive contributions thatSchellingrsquos philosophy have made to the development of Scho-penhauerrsquos philosophical thought Leaving aside Schopenhauerrsquosmature rejection of this philosophy I will examine some ideas whichthe young Schopenhauer (1811-1813) through reading and studyingSchellingrsquos books could have accepted re-formulated and introdu-ced into his original philosophical thoughtKeywords Schopenhauer Schelling Influence

Introduccedilatildeo

Schopenhauer sempre manifes-tou ao longo de toda sua obrauma completa rejeiccedilatildeo da filosofiade Schelling assim como da de Fi-chte e da de Hegel qualificando-as como tentativas de restauraccedilatildeode uma metafiacutesica dogmaacutetica etranscendente que em vista dosresultados da Criacutetica kantiana jaacutedeveria ter sido considerada comocompletamente impossiacutevel Masenquanto que em relaccedilatildeo a Fi-

chte e a Hegel a atitude de Scho-penhauer eacute sempre a de animo-sidade e ateacute de desrespeito emrelaccedilatildeo a Schelling aquela rejei-ccedilatildeo eacute de certa forma mais nuan-ccedilada mais amena em funccedilatildeo demotivos que procuraremos des-cortinar Jaacute na primeira ediccedilatildeode sua obra-prima O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo1 de 1818-1819 Schopenhauer depois dedesqualificar o idealismo de Fi-chte como uma tentativa de de-rivar o objeto a partir do sujeito

Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Doutor em filosofia pela USPE-mail heliolopes2009bolcombr ORCID httpsorcidorg0000-0003-2117-4854

1 SCHOPENHAUER A Die Welt als Wille und Vorstellung VolI e II (Mundo 1 e Mundo2) Frankfurt InselVerlag 1996 The World as Will and Representation Payne EFJ(trad) New York Dover Publications 1969

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HELIO LOPES DA SILVA

ldquocomo a teia sai da aranhardquo dizque embora sua filosofia afirme adependecircncia muacutetua entre sujeitoe objeto enquanto partes constitu-tivas do mundo como representa-ccedilatildeo ela natildeo deve ser confundidacom a ldquoFilosofia da Identidaderdquo(de Schelling) pois apesar destafilosofia natildeo tomar como pontode partida nem o sujeito nemo objeto mas sim a identidadeou indiferenccedila entre ambos numldquoAbsolutordquo tal absoluto supos-tamente acessiacutevel atraveacutes de umaldquointuiccedilatildeo racionalrdquo (Vernunft-Anschauung) intuiccedilatildeo que dizdesafiadoramente Schopenhauerele natildeo possui ao se desdobrarnas duas seacuteries do ldquoIdealismoTranscendentalrdquo onde o ob-jeto eacute agrave maneira de Fichte ex-traido do sujeito e da ldquoFilosofiada Naturezardquo onde o sujeito eacuteextraiacutedo do objeto faz com queSchelling esteja na realidade in-corporando as duas versotildees a ide-alista e a materialista do mesmoerro anteriormente denunciadopor ele a saber o de supor queentre sujeito e objeto haja qual-quer relaccedilatildeo segundo o Princiacutepiode Razatildeo Suficiente Isso sali-enta ironicamente Schopenhauereacute aquilo que ao menos podemossupor a partir do depoimento da-quelas pessoas que se dizem ca-pazes de tal ldquointuiccedilatildeo racionalrdquo

(Mundo1 p 6026) EmboraSchopenhauer denuncie assimo esoterismo envolvido na intui-ccedilatildeo racional ou ldquointelectualrdquo deSchelling eacute bastante significativoque nesta primeira publicaccedilatildeo doseu sistema filosoacutefico completoSchopenhauer jaacute se defenda e jaacutese antecipe agrave suspeita da aproxi-maccedilatildeo de sua filosofia para comaquela de Schelling

Apesar desta defesa o puacuteblicofilosoacutefico para grande irritaccedilatildeo deSchopenhauer imediatamente de-tectou semelhanccedilas entre a sua fi-losofia e a filosofia de Schelling ndashtal como nos informa Cartwright2praticamente todas as poucas re-senhas que imediatamente aco-lheram em 1819 O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo notaramnele vestiacutegios do pensamento deSchelling (CARTWRIGHT p 180ss) ndash por exemplo a resenha feitapor Herbart nota que apesarde Schopenhauer denunciar emSchelling o uso transcendente daforma do tempo quando este falanum ldquovir-a-serrdquo num ldquotornar-serdquo num ldquovir agrave luz a partir daescuridatildeordquo etc no Absoluto elemesmo ao falar de sua Vontadecomo vindo a se conhecer no oucomo mundo passando de umnatildeo-querer originaacuterio a um que-rer e depois deste a um querer-nada estaria ldquoapresentando uma

2 CARTWRIGHT D Schopenhauer a biography (CARTWRIGHT) Cambridge Cambridge UnivPress 2010

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histoacuteria como se fosse filosofia deuma maneira semelhante agrave histoacute-ria natural de Deus de Schellingrdquo(CARTWRIGHT p 386) As-sim tambeacutem Safranski em cone-xatildeo com o ensaio de Schelling so-bre a liberdade que discutiremosem breve diz que dos contem-poracircneos de Schopenhauer Schel-ling foi o que mais se aproximoudo conceito schopenhaueriano devontade3 No mesmo sentidoRappaport4 comentando em 1899as relaccedilotildees de Schopenhauer paracom Espinosa afirma que

A filosofia de Schellingque Schopenhauer pocircdeaprender em traccedilos ge-rais atraveacutes de Schulzeem Goumlttingen foi para eleobjeto de zeloso estudoem Berlim ldquoSchellingeacute aquele a quem Scho-penhauer na medida emque se diferencia de Kante de sua escola deveseus mais importantespensamentosrdquo diz Edu-ard v Hartmann em Ge-genwart de 1898 (RAPPA-PORT p 126)

E de um modo geral a impressatildeode que Schelling jaacute houvera ante-cipado ideias importantes da suafilosofia foi tal que em Parerga eParalipomena5 o proacuteprio Schope-nhauer procurou defender-se daacusaccedilatildeo de plaacutegio ndash diante da ob-servaccedilatildeo de que Schelling jaacute ha-via falado da vontade como o ldquoSerprimal e coisas parecidasrdquo Scho-penhauer diz em primeiro lugarque dado que ambas as filoso-fias a sua e a de Schelling par-tem da filosofia de Kant eacute natu-ral que hajam semelhanccedilas entreelas Aleacutem disso continua Scho-penhauer eacute comum acontecer nahistoacuteria do pensamento da des-coberta de uma grande ideia porparte de um autor ser antes pre-cedida em pensadores anterio-res por vaacuterias antecipaccedilotildees va-gas e nebulosas a seu respeito pordivagaccedilotildees hesitantes proferidasnum estado quase sonambuacutelicoMas diz Schopenhauer o verda-deiro autor de uma ideia eacute ape-nas aquele que reconheceu clara-mente a sua importacircncia e a ex-plorou em todas as conexotildees ndash defato acrescenta ele apenas apoacuteso verdadeiro autor da ideia terfeito isto eacute que a ideia em questatildeo

3 SAFRANSKI R Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia Lagos W(trad) Satildeo Paulo GeraccedilatildeoEditorial 2011 p 582-583

4 RAPPAPORT S Spinoza und Schopenhauer Halle-Wittenberg Halle Als 1899httpsepdftipsspinoza-und-schopenhauerhtm (RAPPAPORT)

5 SCHOPENHAUER A Parerga and Paralipomena VolI e II (PP1 e PP2) Payne EFJ(trad) Oxford OxfordUnivPress 2010

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seraacute procurada em autores anteri-ores ndash da mesma maneira como eacuteColombo o descobridor da Ameacute-rica e natildeo algum naufrago queporventura pudesse laacute ter sido jo-gado pelas ondas E finalmenteconclui Schopenhauer se for paralocalizar alguma fonte anterior aele daquela ideia natildeo seraacute pre-ciso parar em Schelling pois vaacute-rios outros autores da antiguidadejaacute haviam feito alusotildees a ela (PP1p 132-134)

Esta defesa da originalidade desua obra por parte de Schope-nhauer nos parece perfeitamenteadequada e suficiente Apesardisso e como nota Welchman6 ela natildeo eacute desprovida de uma certaambiguidade - ela se assemelhadiz Welchman agrave famosa piadacontada por Freud a respeito dosujeito que diante da reclama-ccedilatildeo de que havia devolvido comfuros um balde anteriormentetomado emprestado defendeu-se dizendo em primeiro lugarldquoque jaacute recebera o balde comfurosrdquo e que em segundo lu-gar ldquoquando devolveu o baldeeste estava intactordquo e finalmenteem terceiro lugar que ldquonunca ja-mais tomou emprestado baldealgumrdquo Cada uma destas ale-gaccedilotildees tomadas isoladamenteserviria como defesa mas todas

juntas natildeo e todas juntas equi-valem quase a uma confissatildeo deculpa Eacute como se diz WelchmanSchopenhauer estivesse dizendoldquoSou original mas Schelling tam-beacutem natildeo eacuterdquo Mesmo sem ir tatildeolonge esta observaccedilatildeo de Welch-man nos serve no entanto paranotar que Schopenhauer mesmodefendendo adequadamente a ori-ginalidade de sua obra acaba ad-mitindo algumas semelhanccedilas en-tre a sua filosofia e a de SchellingE de um modo geral precisamosnotar que no que segue natildeo es-taremos de modo algum interes-sados em determinar a autoria oua prioridade intelectual de Schel-ling ou de Schopenhauer relativa-mente a algumas ideias presentesna filosofia deste uacuteltimo O quenos interessa eacute averiguar a ma-neira como a leitura dos livros deSchelling realizadas pelo jovemSchopenhauer no periacuteodo anterioragrave publicaccedilatildeo em 1818-1819 de OMundo como Vontade e Representa-ccedilatildeo possa ter estimulado Schope-nhauer na formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico Conforme dizacertadamente Gardner emboraSchopenhauer tenha sempre rejei-tado as filosofias de Schelling e deFichte como prolongamentos ile-giacutetimos da filosofia de Kant e em-bora tenha ele sempre pretendido

6 WELCHMAN A Schopenhauerrsquos Understanding of Schelling (WELCHMAN) p 03(httpswwwresearchgatenet)

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estar realizando contra estas duasfilosofias um ldquoretorno a Kantrdquo eacutepreciso reconhecer que dado quenos seus anos de formaccedilatildeo Scho-penhauer natildeo estudou mais ne-nhum outro filoacutesofo com exceccedilatildeode Kant do que Schelling e Fichteentatildeo este seu retorno a Kant foium retorno ldquoa partir de Schellinge Fichterdquo foi um retorno a partirde ideias que Schopenhauer sejapela recusa e rejeiccedilatildeo seja pelaaceitaccedilatildeo e re-elaboraccedilatildeo encon-trou na leitura destes filoacutesofos7Dado que o jovem Schopenhauerjaacute desde 1811 estudava os livrosde Schelling e neles fez anotaccedilotildeesimportantes reunidas em seu Ma-nuscritos Poacutestumos8 assim comodiscutiu aspectos da filosofia deSchelling em sua primeira publi-caccedilatildeo a ediccedilatildeo de 1813 de sua tesedoutoral Sobre a quaacutedrupla raizdo Princiacutepio de Razatildeo Suficiente9acreditamos poder determinar apartir deste material a contribui-ccedilatildeo positiva do pensamento filo-soacutefico de Schelling para a forma-ccedilatildeo da filosofia de SchopenhauerEmbora Schopenhauer jaacute desde

muito cedo tenha feito uma dis-tinccedilatildeo entre os filoacutesofos genuiacutenosque manifestam um espanto ouadmiraccedilatildeo diretamente diante domundo da vida e aqueles filoacutesofosque como Fichte manifestam es-panto apenas diante de livros oude um sistema filosoacutefico jaacute exis-tente (MR1 p 81) eacute preciso reco-nhecer que mesmo partindo da-quela intuiccedilatildeo direta do mundoa intuiccedilatildeo schopenhaueriana pre-cisou ser expressa em conceitosconceitos que ele natildeo poderia terencontrado em outro lugar quenatildeo nos livros e nos sistemas filo-soacuteficos que lhe eram disponiacuteveis

Consciecircncia ldquomelhorrdquo e intuiccedilatildeointelectual

Um dos pontos em que segundoalguns comentadores10 a incipi-ente filosofia do jovem Schope-nhauer se aproxima da de Schel-ling diz respeito agrave noccedilatildeo deldquoconsciecircncia melhorrdquo ndash jaacute desdeseus mais precoces manuscritos(1808-1813) Schopenhauer fala

7 GARDNER S Schopenhauerrsquos Deconstruction of German Idealism (GARDNER) p 03(httpswwwdiscoveryudacuk)

8 SCHOPENHAUER A Manuscript Remains Vol I e II (MR1 e MR2) Huumlbscher A (ed) e Payne EFJ(trad) Oxford Berg 1988Aus Arthur Schopenhauerrsquos handschriften Nachlass (HN) Fraumluenstadt J (ed) LeipzigBrockhaus 1864 (httpbooksgooglecom)

9 SCHOPENHAUER A Uumlber die vierfache Wurzel des Satz vom zureichend Grunde (RAIZES) RudolstadtBayerische Staats Bibliothek ndash Muumlncher Digitalisierungs Zentrum 1813

10 CfSEGALA M e DE CIAN N ldquoWhat is willrdquo In Schopenhauer-Jahrbuch 83 2002 p06 Cartwrightmenciona tambeacutem alguns autores (Kamata Y Zint H Malter R Safranski R e Decher F) que se dedicaramao estudo das relaccedilotildees entre a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo do jovem Schopenhauer e a descriccedilatildeo da ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling nas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (CARTWRIGHT p 181-182 n5)

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de um estado de consciecircncia noqual noacutes nos retiramos das deter-minaccedilotildees principalmente da de-terminaccedilatildeo temporal da consci-ecircncia empiacuterica e mundana e en-tramos num estado a partir doqual contemplamos calma e se-renamente aqueles mesmos ob-jetos e acontecimentos que nooutro estado de consciecircncia naldquoconsciecircncia empiacutericardquo nos tra-zem agitaccedilatildeo e sofrimento (MR1p 8 14-15 44 86) Trata-se da-quele estado de espiacuterito que nafase madura de sua filosofia cons-tituiraacute o acircmago de suas belas e in-teressantes descriccedilotildees do estadode espiacuterito seja da contemplaccedilatildeoesteacutetica seja do ecircxtase do santoe do asceta Mas que este es-tado ldquomelhorrdquo de consciecircncia dojovem Schopenhauer se aproximedaquilo que Schelling chama deldquointuiccedilatildeo intelectualrdquo isto aque-les comentadores afirmam base-ados numa passagem da oitavadas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dog-matismo e o Criticismo passagemque o jovem Schopenhauer anotaagrave margem como ldquocontendo grandee genuiacutena verdaderdquo onde Schel-ling procurando mostrar que aintuiccedilatildeo espinosista do absolutojunto ao anseio por unificaccedilatildeoneste absoluto e a anulaccedilatildeo de simesmo ou a intuiccedilatildeo do mundoldquosob o aspecto da eternidaderdquo sebaseava na intuiccedilatildeo que Espinosatinha a respeito de si mesmo diz

Presente em todos noacutes haacuteuma capacidade secreta emaravilhosa de retirarmo-nos da mudanccedila e da su-cessatildeo do tempo em di-reccedilatildeo ao nosso ser maisiacutentimo que eacute despido detudo aquilo que lhe adveiode fora e de entatildeo intuir oeterno em noacutes mesmos soba forma da imutabilidadeEsta intuiccedilatildeo (Anschau-ung) eacute a nossa experiecircn-cia a mais iacutentima e apenasdela depende tudo aquiloque sabemos e acredi-tamos a respeito de ummundo supra-sensiacutevel Eacuteesta intuiccedilatildeo aquilo queem primeiro lugar nosconvence de que algo eacuteno sentido real do termoao passo que tudo o maispara o qual noacutes transferi-mos esta palavra apenasaparece (erscheint) (MR2p 347HN p 250 - itaacuteli-cos de Schelling)

Mas se eacute claro que esta descriccedilatildeopor parte de Schelling daquilo quese daacute agrave sua ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquose aproxima bastante daquilo queo jovem Schopenhauer entendecomo sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoeacute preciso reconhecer que ela se as-semelha tambeacutem tanto agrave intuiccedilatildeo

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ldquomais altardquo de Fichte cujos cur-sos foram presenciados pelo jo-vem Schopenhauer em 1811-1812(MR2 p 79-80) como agrave acimamencionada intuiccedilatildeo ou conheci-mento de ldquoterceiro gecircnerordquo de Es-pinosa (MR1 p 306) Pode-se di-zer que a ldquoconsciecircncia melhorrdquo dojovem Schopenhauer coincide per-feitamente com aquilo que Schel-ling Fichte e Espinosa dizem arespeito da intuiccedilatildeo do mundosupra-sensiacutevel ou com aquilo queestes chamaratildeo de ldquoAbsolutordquo mas diferentemente destes Scho-penhauer ao menos nestes anosiniciais de formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico recusa-se a co-locar este mundo supra-sensiacutevelcomo fundamento do mundo sen-siacutevel ele recusa-se a derivar aldquoconsciecircncia empiacutericardquo a partirda sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo as-sim como incansavelmente qua-lifica como transcendente e con-traditoacuteria as tentativas de Fichte eSchelling no sentido de derivar aconsciecircncia empiacuterica a partir doldquoAbsolutordquo - pois segundo elequalquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer de relaccedilotildees (tem-porais causais de fundamento-consequecircncia etc) que soacute exis-tem na e satildeo condiccedilotildees apenasda consciecircncia empiacuterica e natildeose pode colocar duas coisas emrelaccedilatildeo segundo os termos deuma relaccedilatildeo que eacute vaacutelida apenaspara uma delas (MR1 p 20 37

72-73 MR2 p 385-385 429-430 436) Pode-se assim di-zer que de um modo geral o jo-vem Schopenhauer concorda comSchelling (e com Fichte tambeacutem)em que (1) eacute possiacutevel uma intui-ccedilatildeo do supra-sensiacutevel (tanto doEu quanto do mundo) enquantoatemporal e que (2) o mundosensiacutevel e temporal apresenta-secomo ldquovazio e irrealrdquo como umamera ldquoaparecircnciardquo tal como men-cionado acima mas ele rejeita atentativa de Schelling (e de Fichte)de suprir este vazio e irrealidadedo mundo sensiacutevel mediante umaderivaccedilatildeo deste mundo sensiacutevel apartir do mundo supra-sensiacutevelou mediante uma fundamenta-ccedilatildeo daquele mundo sensiacutevel nestemundo supra-sensiacutevel

Eacute assim e em particular noque diz respeito a Schelling queSchopenhauer jaacute em sua pri-meira publicaccedilatildeo a QuaacutedruplaRaiz do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente de 1813 diz que se aNaturphilosophie pretende comsua ldquoidentidade entre subjetivoe objetivordquo significar a mera de-pendecircncia muacutetua entre sujeito eobjeto enquanto pressupostos portoda aplicaccedilatildeo do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente entatildeo diz Scho-penhauer ele ldquoestaria de acordordquocom ela se bem que para isso natildeoeacute preciso nenhuma intuiccedilatildeo in-telectual (intellektuale Anschau-ung) mas sim a mera reflexatildeo (Be-

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sinnen) a mesma reflexatildeo que nosmostra por exemplo as expres-sotildees ldquopairdquo e ldquofilhordquo como mutu-amente dependentes Daiacute conti-nua Schopenhauer que quandose faz abstraccedilatildeo de toda determi-naccedilatildeo do ser-objeto assim comode todas as faculdades do ser-sujeito restaratildeo de cada ladoapenas um ldquoxrdquo e um ldquoyrdquo e se qui-sermos ainda assim afirma-loscomo idecircnticos estaremos aleacutemda duvidosa ldquovantagemrdquo de trocarduas incognitas por uma soacute apli-cando uma categoria a categoriada identidade que no entanto foieliminada por aquela abstraccedilatildeoe que eacute condiccedilatildeo apenas do ser-objeto e natildeo do ser-sujeito Ouseja natildeo eacute possiacutevel derivar nemo objeto nem o sujeito a par-tir disto que Schelling chama deldquoidentidade sujeito-objetordquo poisqualquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer seja de categoriasque pertencem apenas ao sujeito(se houver alguma categoria quede fato seja aplicaacutevel ao sujeito)seja de categorias que pertencemapenas ao objeto (RAIZES p 108-111) Mas ao contraacuterio do tomrespeitoso e cauteloso11 adotadopelo jovem Schopenhauer nesta

sua tese doutoral as anotaccedilotildees fei-tas por ele aos livros de Schellingsatildeo a este respeito bem mais inci-sivas ndash por exemplo numa anota-ccedilatildeo ao Sobre o Eu como o princiacutepioda filosofia Schopenhauer diz quena concepccedilatildeo de uma existecircnciaqualquer jaacute pressupomos a duali-dade representante-representadoe que se quisermos falar de umser que existe fora de toda re-laccedilatildeo que existe em si por sia partir de si e por nada forade si etc estaremos falando dealgo completamente inconcebiacutevel(MR2 p 342-3) Da mesma ma-neira numa longa anotaccedilatildeo aoSistema do Idealismo Transcenden-tal12 o jovem Schopenhauer dizque dado que a dualidade sujeito-objeto natildeo eacute causa da mas sim eacuteanaliticamente idecircntica agrave cons-ciecircncia empiacuterica a pergunta deSchelling sobre se o objetivo pre-cede o subjetivo ou ao contraacute-rio o subjetivo precede o obje-tivo esta pergunta eacute sem-sentidojaacute que anterior e posterior causae efeito jaacute pressupotildeem a consci-ecircncia empiacuterica e com esta aqueladualidade sujeito-objeto Tomarqualquer um desses dois isola-damente para daiacute tentar deri-

11 Cartwright sugere que o tom cauteloso adotado por Schopenhauer em relaccedilatildeo a Schelling nesta tese doutoraldeveu-se ao fato de Schopenhauer estar se dirigindo agrave Academia e de natildeo querer ferir alguma suscetibilidade deseus avaliadores (CARTWRIGHT p 196) De fato poreacutem e como jaacute mencionamos sua atitude mesmo em suasanotaccedilotildees privadas em relaccedilatildeo a Schelling eacute bem mais amena do que aquela manifesta em relaccedilatildeo a Fichte ou aHegel

12 SCHELLING FWJ System des transzendentalen Idealismus Hamburg Meiner 2000 (SCHELLING-SISTEMA)

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var o outro eacute uma tarefa con-traditoacuteria e impossiacutevel pois aodesvincular um do outro estare-mos abolindo a proacutepria consci-ecircncia ndash ou dito de outro modotentar pensar um ldquosujeitordquo quenatildeo seja algo que representa umobjeto ou um ldquoobjetordquo que natildeoseja algo representado por um su-jeito eacute tentar algo impossiacutevel econtraditoacuterio (MR2 p 378-379)As relaccedilotildees anterior-posteriorcausa-efeito etc aplicam-se ape-nas a objetos mas natildeo agrave rela-ccedilatildeo sujeito-objeto (MR2 p 380)e diz Schopenhauer ldquoque o su-jeito mesmo se torne objeto (Schel-ling usa a expressatildeo ldquoSich-selbst-Objekt-Werden des Subjektivenrdquondash SCHELLING-SISTEMA p 15)esta eacute a mais monstruosa contradi-ccedilatildeo jamais formulada pois objetoe sujeito soacute satildeo concebiacuteveis umem referecircncia ao outro e esta refe-recircncia eacute sua uacutenica caracteriacutesticardquo(MR2 p 381) O sujeito dizSchopenhauer nunca pode tornar-se objeto e isto devido agrave razatildeomuito simples de que fosse esteo caso entatildeo jaacute natildeo haveria ne-nhum sujeito para quem este ob-jeto (em que se transformou o su-jeito) seria objeto (MR2 p 383)Assim a filosofia da identidadesubjetivo-objetivo de Schelling eacuteem muitas passagens destes ma-nuscritos denunciada pelo jovemSchopenhauer como um empreen-dimento contraditoacuterio que pro-

cura apreender conceitualmenteo supra-sensiacutevel assim como suarelaccedilatildeo para com o sensiacutevel atra-veacutes de relaccedilotildees que satildeo pertinen-tes apenas a este uacuteltimo domiacuteniondash por exemplo quando Schellingprocura fazer o tempo surgir apartir da eternidade o relativo apartir do absoluto o finito a par-tir do infinito ele estaacute diz Scho-penhauer simplesmente abolindoo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo(MR2 p 340) e fazendo um usotranscendente (MR2 p 376 385)de relaccedilotildees que embora sejamcondiccedilotildees a priori da consciecircnciaempiacuterica para aleacutem dela natildeo seestendem como jaacute havia ensinadoKant

Ao fazer tais objeccedilotildees o jovemSchopenhauer parece natildeo ter com-preendido ou melhor natildeo teraceitado mesmo que de formanatildeo muito clara e expliacutecita parasi mesmo a principal motivaccedilatildeoda elaboraccedilatildeo filosoacutefica de Schel-ling ndash pois este concordaria comaquela afirmaccedilatildeo da tese douto-ral de Schopenhauer no sentidode que toda determinaccedilatildeo do su-jeito natildeo eacute uma determinaccedilatildeo doobjeto e toda determinaccedilatildeo doobjeto natildeo eacute uma determinaccedilatildeodo sujeito Mas diria Schellingo que eacute preciso explicar eacute justa-mente o encontro a ldquosiacutenteserdquo deambos no conhecimento e eacute esteproblema acerca das condiccedilotildeesde possibilidade do conhecimento

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sinteacutetico problema que segundoKant a sua Criacutetica da Razatildeo Puraprocurara resolver Para expli-car como sujeito e objeto se en-contram um ao outro no conhe-cimento sinteacutetico (ou mais pre-cisamente como se daacute o encon-tro entre a ldquounicidaderdquo do En-tendimento e a ldquomultiplicidaderdquodo dado proveniente da Sensibili-dade) e como o elemento comuma ambos que permitiria sua siacuten-tese ou uniatildeo natildeo pode provirnem de um nem de outro to-mados isoladamente entatildeo seraacutepreciso admitir que antes noldquoabsolutordquo eles eram idecircnticos eque depois de uma cisatildeo aiacute ocor-rida eles agora satildeo juntados nova-mente por aquele juiacutezo sinteacuteticode modo que tal juiacutezo soacute pode dizSchelling ser compreendido comouma restauraccedilatildeo daquela identi-dade e unidade perdida ndash a siacuten-tese empiacuterica entre o sujeito e oobjeto condicionados assim soacuteeacute possiacutevel enquanto restauraccedilatildeoda siacutentese e identidade incondi-cionada sujeito-objeto O mesmoocorre continuaria Schelling comos objetos conectados pelo Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente de quetrata aquela tese doutoral de Scho-penhauer ndash a necessidade com queeste princiacutepio conecta seus ob-jetos (fundamento-consequecircnciacausa-efeito etc) soacute pode ser ex-plicada mediante referecircncia a umldquoabsolutordquo anterior onde estes ob-

jetos seriam idecircnticos entre si eque forneceria assim a explicaccedilatildeotranscendental da necessidade desua conexatildeo Mas o jovem Schope-nhauer jaacute nesta sua tese doutoralde 1813 e embora ele natildeo se en-derece explicitamente a esta ques-tatildeo daacute mostras de que recusariaestes desenvolvimentos do empre-endimento filosoacutefico de Schelling(e de Fichte tambeacutem) ndash falando daexigecircncia de uma ldquoprovardquo do Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente ele dizque toda prova eacute o remontar dealgo duvidoso a algo admitido ese pedirmos uma prova deste ad-mitido chegaremos ultimamentea proposiccedilotildees que satildeo simples-mente a condiccedilatildeo de todo o pen-sar e conhecer e que satildeo mesmoaquilo em que consistem o proacute-prio pensar e conhecer de modoque a certeza (Gewissheit) nadamais eacute que a concordacircncia com es-tas proposiccedilotildees e natildeo pode ser re-montada a proposiccedilotildees mais cer-tas do que estas (RAIZES p 20)E um pouco mais adiante o jo-vem Schopenhauer jaacute manifestauma recusa de todo o empreendi-mento transcendental kantiano deque Schelling (e Fichte) se preten-dem herdeiros

Desde a Deduccedilatildeo das Ca-tegorias de Kant () pa-rece quase natildeo haver nadade mais originaacuterio e ime-diato que jaacute natildeo tenha

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sido deduzido a prioriTais coisas cujo remon-tar aos seus fundamen-tos nenhuma eacutepoca an-terior imaginava ser pos-siacutevel deu a ocasiatildeo paraque Goumlethe dissesse lsquoOfiloacutesofo chega e nos de-monstra que assim preci-sava serrsquo (RAIZES p 25)

Apesar desta rejeiccedilatildeo que na fasemadura de sua filosofia se tornaraacutecompletamente expliacutecita da pre-tensatildeo fundacionista que a filosofiade Schelling compartilha com a fi-losofia do Idealismo alematildeo comoum todo vemos no entanto o jo-vem Schopenhauer numa anota-ccedilatildeo ao ldquoadendo agrave Introduccedilatildeordquo agravesIdeias para uma Filosofia da Natu-reza descortinar aquilo que es-taria por detraacutes desta concepccedilatildeode Schelling a respeito da coinci-decircncia do absolutamente ideal (osaber filosoacutefico como saber abso-luto) com o absolutamente real (oproacuteprio Absoluto)

() pois quando adentra-mos profundamente emnoacutes mesmos constatamosque () o tempo nos eacute ines-sencial tal como o eacute a divi-satildeo de nossa consciecircncia emsujeito e objeto noacutes sen-timos ateacute mesmo um an-seio (Sehnsucht) de nos

livrarmos de todas estasdeterminaccedilotildees (este eacute meparece o fundamento detodo esforccedilo filosoacutefico ge-nuiacuteno)() mas soacute pode-mos ir ao ponto de dizerque precisa haver um es-tado no qual natildeo haacute nemsujeito nem objeto e por-tanto natildeo haacute nada de anaacute-logo agrave minha consciecircnciaatual e embora haja neleum esforccedilo e pressenti-mento (Vorgefuumlhl) destesnunca pode ser-lhe espe-cificado um conceito jus-tamente porque ele estaacuteacima e aleacutem de todo En-tendimento(MR2 p 360HN p 212 -itaacutelicos nos-sos)

De fato a ldquoconsciecircncia melhorrdquodo jovem Schopenhauer tambeacutemnatildeo inclui nem tempo nem su-jeito nem objeto (MR1 p 73-74)de modo que segundo ele o errode Schelling estaria natildeo na afir-maccedilatildeo da possibilidade de tal in-tuiccedilatildeo do supra-sensiacutevel mas simno querer colocaacute-la em relaccedilatildeocom a consciecircncia atual ou em-piacuterica mediante categorias que soacutesatildeo vaacutelidas para esta uacuteltima cons-ciecircncia Em particular o jovemSchopenhauer recusa a tentativade apreender este supra-sensiacutevelatraveacutes de conceitos Eacute assim quenuma anotaccedilatildeo ao Filosofia e Re-

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ligiatildeo Schopenhauer discutindoa afirmaccedilatildeo de Schelling no sen-tido de que antes e ainda na au-secircncia de uma intuiccedilatildeo direta doInfinito a razatildeo filosoacutefica atraveacutesde seus conceitos natildeo pode fazeroutra coisa que natildeo uma alusatildeoindireta a este mediante a cons-tataccedilatildeo ldquodo vazio e irrealidade detodos os contrastes finitosrdquo diz

Bom e inteiramente deacordo com minha opi-niatildeo Mas entatildeo que afilosofia se contente emmostrar a natureza limi-tada do Entendimentocomo fez Kant e acres-cente que haacute em noacutesuma faculdade inteira-mente diferente do En-tendimento () Mas queela natildeo leve este (Enten-dimento) a pocircr o absolutocomo um conceito e dardele explicaccedilotildees que natildeopassam de impossibilida-des loacutegicas () (MR2 p372 - itaacutelicos nossos)

Assim diz Schopenhauer ao in-veacutes de corretamente dizer ldquoaquitermina o domiacutenio do Entendi-mento e comeccedila o da consciecircnciamelhorrdquo Schelling diz que ldquoemDeus o sujeito eacute o objeto o ge-ral eacute o particularrdquo e como taissentenccedilas violam o princiacutepio de

natildeo-contradiccedilatildeo nada eacute conce-bido realmente por seu intermeacute-dio embora elas possam ser pro-feridas da mesma maneira comopode-se desenhar um edifiacutecio quenatildeo se sustenta de acordo com alei da gravidade (MR2 p 374)Para o jovem Schopenhauer a Ra-zatildeo em particular a Razatildeo filo-soacutefica tem atraveacutes de seus con-ceitos apenas esta funccedilatildeo de aofazer uma apresentaccedilatildeo negativada ldquoconsciecircncia melhorrdquo (natildeo estaacuteno tempo natildeo estaacute no espaccedilo natildeoestaacute em nenhuma conexatildeo atra-veacutes do Princiacutepio de Razatildeo Sufici-ente etc) na consciecircncia empiacute-rica fazer com que esta tenha aomenos o pressentimento de quealeacutem e acima dela haacute uma ou-tra consciecircncia uma consciecircncialdquomelhorrdquo que ela (MR1 p 23-24 53-54) E eacute por isso que eleacima concorda com a afirmaccedilatildeode Schelling no sentido de a ra-zatildeo filosoacutefica deve se limitar agrave ta-refa de demonstrar o vazio e ir-realidade dos contrastes estabe-lecidos pelo Entendimento Maspara ele a razatildeo filosoacutefica deveparar aiacute mantendo-se assim comoo verdadeiro ldquocriticismordquo o quesegundo ele natildeo eacute o que ocorreem Schelling que procura estabe-lecer uma ponte ou uma uniatildeo en-tre estes dois mundos o sensiacutevele o supra-sensiacutevel que falam lin-guagens tatildeo incomensuraacuteveis en-tre si produzindo entatildeo uma con-

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fusatildeo ldquobabilocircnicardquo de linguagenssem se dar conta de que ldquouniatildeordquo jaacuteeacute um conceito inexoravelmente li-gado ao mundo espaccedilo-temporale portanto aplicaacutevel apenas aomundo sensiacutevel (MR1 p 37)

Mas em relaccedilatildeo agrave ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling o jovemSchopenhauer em conexatildeo como Tratado para o esclarecimento doIdealismo da Doutrina da Ciecircncia arecusa e a diferencia de sua no-ccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo namedida em que segundo ele aintuiccedilatildeo de Schelling depende-ria do cultivo do Entendimento(Verstandeskultur) que estaacute su-jeito a vaacuterias circunstacircncias aci-dentais e da vontade empiacuterica ouda ldquoescolha do arbiacutetrio (Willkuumlhr)atraveacutes de conceitosrdquo ao passoque sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo natildeodepende destes embora dependade uma ldquovontade purardquo (reinenWillen) (MR2 p 350-351HN p256 MR2 p 373 HN p 230)Mas tal como exposta por Schel-ling estas conclusotildees do jovemSchopenhauer parecem natildeo seremmuito exatas ndash segundo Schelling

(A intuiccedilatildeo intelectual) eacuteuma intuiccedilatildeo cujo objetoeacute uma accedilatildeo originaacuteria (urs-pruumlngliches Handeln) ede fato eacute uma intuiccedilatildeoque natildeo podemos tentardespertar em outras pes-soas de iniacutecio atraveacutes de

conceitos (Befriffe) masque estamos justificadosem exigir a priori de todosporque eacute uma accedilatildeo sem aqual a lei moral em outraspalavras um comando po-sitiva e incondicionalmenteimposto a todas as pessoasna mera qualidade de suanatureza humana lhe se-ria inteiramente ininteli-giacutevel(MR2 p 350 HNp 255 - itaacutelicos de Schel-ling)

Schelling parece aqui afastar desua intuiccedilatildeo intelectual tanto anecessidade de um cultivo do En-tendimento como a accedilatildeo arbitraacute-ria possiacutevel atraveacutes de conceitos ndashpara ele a pessoa deve ser capazde tal intuiccedilatildeo apenas em fun-ccedilatildeo de sua qualidade de ser hu-mano em funccedilatildeo de como talver-se obrigada ou submetida aum comando moral incondicio-nal (a autonomia conectada aoldquoimperativo categoacutericordquo de Kant)Assim diz Schelling embora eleexprima aquela accedilatildeo originaacuteriacomo uma proposiccedilatildeo fundamen-tal (Grundsatz) em relaccedilatildeo agrave pes-soa com quem ele fala trata-se deum postulado (uma ordem para re-alizar uma accedilatildeo tal como o pos-tulado da geometria ldquotrace umalinha talrdquo) e ldquoquem quer queseja incapaz de cumpri-lo ao me-nos deveria ser capaz de cumpri-

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lordquo ao que o jovem Schopenhauerobjeta ironicamente ldquoEste eacute umnovo uso da expressatildeo lsquopostuladorsquoteoacuterico ou vocecirc admite que seurepresentar eacute uma accedilatildeo originaacuteriasua sobre vocecirc mesmo ou vocecirc eacuteum canalha (Schurke)rdquo (MR2 p350 HN p 255) Ora podemosver aqui a maneira como emborarejeite este ponto de partida da fi-losofia de Schelling (e de Fichtetambeacutem) embora rejeite o esote-rismo de seus postulados ndash poisdiante da ordem proferida porSchelling e Fichte para que se efe-tue ou se realize tal accedilatildeo a pessoanatildeo sabe decidir entre o ldquorealizeia accedilatildeo mas encontrei resultadosdiferentesrdquo e o ldquonatildeo cheguei real-mente a realizar a accedilatildeordquo e esta eacutea fonte das constantes criacuteticas deSchopenhauer a Schelling e a Fi-chte no sentido de que estes se di-rigem apenas a um grupo de pes-soas ldquoconvertidasrdquo - natildeo haacute umadiferenccedila no conteuacutedo entre am-bas as intuiccedilotildees pois diz Schel-ling

Este princiacutepio iacutentimo natildeoeacute outro que natildeo a accedilatildeo ori-ginaacuteria do espiacuterito sobre simesmo a autonomia ori-ginaacuteria que vista de umponto de vista teoacuterico eacuteum representar (Vorstel-len) ou o que eacute o mesmoo construir de coisas fi-nitas (Construiren endli-

cher Dinge) e visto de umponto de vista praacutetico eacuteum querer (Wollen) (HNp255 - itaacutelicos nossos)

Representaccedilatildeo e Vontade satildeoapresentados aqui ao jovem Scho-penhauer como dois aspectos da-quela accedilatildeo originaacuteria dada agrave in-tuiccedilatildeo intelectual de Schellinge embora Schopenhauer recusea maneira como Schelling (e Fi-chte tambeacutem) a pretende estabe-lecer ndash eacute como se Schopenhauerdiante do postulado em questatildeo oencarasse da mesma forma comoFreud considerou uma possiacutevelobjeccedilatildeo concernente ao caraacuteterarbitraacuterio das interpretaccedilotildees psi-canaliacuteticas ldquolancemos um mo-eda se der cara eu ganho seder coroa vocecirc perderdquo ndash parecebastante plausiacutevel supor que es-tes desenvolvimentos da filosofiade Schelling tenham posterior-mente contribuiacutedo para formu-laccedilatildeo por parte de Schopenhauerde seu pensamento filosoacutefico ori-ginal Voltaremos a este pontoquando mais adiante discutir-mos as anotaccedilotildees feitas por Scho-penhauer nas Ideias para uma Filo-sofia da Natureza de Schelling

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As investigaccedilotildees sobre a liber-dade de Schelling

Antes disso poreacutem precisamosconsiderar o objeto que provo-cou aquela defesa realizada porSchopenhauer no Parerga e Pa-ralipomena da originalidade desua obra frente agrave observaccedilatildeo deque Schelling jaacute houvera avan-ccedilado a ideia da vontade como oldquoSer primalrdquo Constataremos queembora Schelling avance aiacute ideiasque claramente seratildeo incorpora-das por Schopenhauer agrave sua filo-sofia natildeo haacute como recusar a de-fesa de Schopenhauer no sentidode que tais ideias encontram ex-pressatildeo aiacute de uma forma muitodifusa e nebulosa

Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas so-bre a Essecircncia da Liberdade Hu-mana13 Schelling no interior dafamosa ldquocontroveacutersia panteiacutestardquo e contestando a denuacutencia de Ja-cobi no sentido de que o pan-teiacutesmo espinosista conduz inevi-tavelmente ao fatalismo e agrave ne-gaccedilatildeo da liberdade comeccedila porapontar que este natildeo eacute o caso jaacuteque eacute justamente a preocupaccedilatildeocom a liberdade o que em pri-meiro lugar conduz agrave afirmaccedilatildeodo panteiacutesmo ndash pois diz Schel-ling eacute de modo a fazer com quea liberdade pessoal natildeo entre em

conflito com a onipotecircncia di-vina que se chega a afirmar queldquoestamos em Deus e natildeo foradelerdquo Daiacute continua Schellingnatildeo estar o panteiacutesmo necessari-amente conectado agrave negaccedilatildeo daliberdade Mesmo o fatalismo deEspinosa diz Schelling eacute devidonatildeo ao seu panteiacutesmo natildeo ao fatodele dizer que as coisas estatildeo con-tidas em Deus mas sim ao fatodele conceber estas coisas indi-viduais como coisas submetidasao mecanicismo Ateacute mesmo suanoccedilatildeo de vontade diz Schellingeacute a noccedilatildeo de uma coisa (Sache)determinadas por forccedilas exter-nas Agora diz Schelling quandoos conceitos fundamentais de Es-pinosa satildeo espiritualizados (ver-geistg) pelo Idealismo temos a Fi-losofia da Natureza que como aparte real do sistema desaguaraacutena parte ideal na parte do sistemaonde reina a Liberdade

Admite-se que nesteemergir (da liberdade) seencontra o ato potencia-lizador final atraveacutes doqual o todo da naturezatransfigura-se em senti-mento inteligecircncia e fi-nalmente em vontade Nojuiacutezo final e mais alto

13 SCHELLING FWJ Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom Love J e SchmidtJ(trad) New York State Univ of NY Press 2006 Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der mensch-lichen Freiheit httpdatabnffr (SCHELLING-LIBERDADE)

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natildeo haacute outro Ser (Sein)a natildeo ser o querer ou aVontade (Wollen) A Von-tade eacute o Ser primal (Ur-sein) ao qual unicamentese aplicam todos os pre-dicados do Ser infunda-bilidade (Grundlosigkeit)eternidade independecircn-cia em relaccedilatildeo ao tempo(Unabhaumlngigkeit von derZeit) auto-afirmaccedilatildeo(Selbstbejahung) Otodo da filosofia pro-cura apenas dar expres-satildeo a isto (SCHELLING-LIBERDADE p 2103 -itaacutelicos nossos)

Vemos aqui Schelling anunciarseu Idealismo como resultando deuma inversatildeo do Espinosismo ndashquando trocamos a ldquosubstacircnciardquoou a ldquocoisardquo de Espinosa peloldquoespiacuteritordquo ou pela ldquointeligecircnciardquoa Vontade se revela na parteIdeal do sistema como mais fun-damental do que o sentimentoe ateacute mesmo do que a inteli-gecircncia (Intelligenz) E Schellingalinha como predicados desteSer primal os mesmos predica-dos que frequentemente Scho-penhauer atribui agrave sua Vontademetafiacutesica Natildeo podemos po-reacutem deixar de dar razatildeo a Schope-nhauer quando ele naquela pas-sagem do Parerga e Paralipomenaafirma que estas alusotildees de Schel-ling agrave vontade satildeo feitas como que

em meio a um sonho ou deliacuteriopois Schelling natildeo procura argu-mentar e demonstrar tal tese agravemaneira tradicional ndash tanto eacute as-sim que Love e Schmidt quali-ficam esta passagem das Investi-gaccedilotildees como ldquoextremamente radi-cal e enigmaacuteticardquo (SCHELLING-LIBERDADE p 143 n24)Quando poreacutem levamos em con-sideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo do jovemSchopenhauer a estes devaneiosdo ldquonaufragordquo Schelling podemosconstatar que ao elaborar sua fi-losofia a noccedilatildeo de ldquoVontaderdquo natildeoera de modo algum algo comple-tamente ausente nas elaboraccedilotildeesfilosoacuteficas por ele estudadas

A seguir Schelling diz que foi oIdealimo o que nos elevou agrave posi-ccedilatildeo de obter o primeiro conceitoformal de liberdade mas ape-sar disso diz Schelling este ide-alismo ainda eacute incompleto poisnatildeo basta mostrar como mostraFichte que a ldquoatividade vida eliberdaderdquo eacute tudo o que haacute de ver-dadeiramente real mas tambeacutem eacutepreciso mostrar que tudo a natu-reza e o mundo das coisas possuia atividade a vida e a liberdadepor fundamento Daiacute diz Schel-ling antecipando um movimentoem relaccedilatildeo a Kant exatamentesimilar agravequele a ser posterior-mente adotado por Schopenhauerno apecircndice ldquoCriacutetica da FilosofiaKantianardquo de O Mundo como Von-tade e Representaccedilatildeo (Mundo1 p

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570422) que

Permaneceraacute sempre algoestranho o fato de queKant apoacutes primeiro terdistinguido as coisas-em-si dos fenocircmenos apenasnegativamente atraveacutes dasua (das coisas-em-si) in-dependecircncia em relaccedilatildeoao tempo e apoacutes tratara independecircncia em re-laccedilatildeo ao tempo e a liber-dade como conceitos cor-relatos na discussatildeo me-tafiacutesica da Criacutetica da Ra-zatildeo Praacutetica natildeo foi adianteno propoacutesito de transfe-rir este uacutenico conceito po-sitivo do em-si tambeacutempara as coisas por estemeio teria ele se elevado aum ponto da reflexatildeo maiselevado situado acima danegatividade que eacute carac-teriacutestica de sua filosofiateoacuterica (SCHELLING-LIBERDADE p 22-2304)

Mesmo aceitando aquela defesada originalidade de seu pensa-mento mesmo aceitando quecomo dizia Schopenhauer naquelapassagem do Parerga e Paralipo-mena eacute Colombo o descobridor daAmeacuterica e natildeo algum naufragoque houvesse divagado sobre este

continente eacute preciso reconhecerque Schelling mesmo que emmeio a um sonho ou deliacuterio es-teve muito proacuteximo daquilo quesegundo o proacuteprio Schopenhauerconstitui o ponto inicial e fun-damental de sua filosofia ndash poisdiz Schelling acima trata-se detransferir ou estender para o em-si das coisas em geral o conceitopositivo do em-si que de iniacutecioapresenta-se apenas na liberdadee vontade humanas e eacute exata-mente isto o que conforme Scho-penhauer diz naquele ldquoapecircndicerdquomencionado acima ele pretendeestar avanccedilando como seu maisimportante e original acreacutescimoagrave e prolongamento da doutrinakantiana Mas continua Schel-ling o panteiacutesmo natildeo foi des-truiacutedo pelo Idealismo jaacute quepara o panteiacutesmo tanto faz afir-mar que as coisas individuais es-tatildeo na substacircncia absoluta e te-riacuteamos aiacute um panteiacutesmo-realista-espinosista quanto ldquoafirmar queas vontades individuais (ein-zelne Willen) estatildeo na Vontadeprimal (Urwillen)rdquo e aqui te-riacuteamos um panteiacutesmo-idealista(SCHELLING-LIBERDADE p22-2304) Assim diz Schellingnatildeo devemos esperar que as maisimportantes questotildees sobre a li-berdade sejam resolvidas querpelo idealismo quer pelo rea-lismo tomados isoladamente Ea questatildeo mais importante acerca

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da liberdade diz Schelling eacute aquestatildeo do Mal ndash pois ou o Malrepresenta algo de positivo (enatildeo tal como ocorre na maio-ria das ldquoteodiceiasrdquo tradicionaisuma mera ausecircncia ou privaccedilatildeodo Bem) e neste caso o Mal te-ria que ser colocado ldquono interiorda substacircncia infinita ou da Von-tade primal (Urwillen) mesmardquoou a realidade e positividade doMal deveria de alguma maneiraser negada caso em que serianegado tambeacutem o conceito realde liberdade jaacute que esta precisaser tambeacutem liberdade para oMal (SCHELLING-LIBERDADEp 2304)

Natildeo pretendemos examinar amaneira como Schelling procuraatraveacutes da distinccedilatildeo entre o Serna medida em que existe e o Serna medida em que eacute mero fun-damento (Grund) da existecircncia14resolver este grande problema doMal com que se ocupa a TeodiceacuteiaDo ponto de vista da evoluccedilatildeodo pensamento do jovem Schope-nhauer eacute preciso considerar quefalando deste fundamento dascoisas ldquoem Deus que natildeo eacute Deusmesmordquo ou falando da Natureza

Schelling o caracteriza como umanseio (Sehnsucht) que quer darnascimento agrave unidade infundadaao Uno a Deus mas que natildeo eacute estaunidade mesma

Daiacute que ele eacute consi-derado por si mesmotambeacutem Vontade (Wille)mas Vontade na qual natildeohaacute nenhum Entendimento(Verstand) e por estarazatildeo natildeo eacute uma von-tade completa e inde-pendente () Apesardisso ele eacute uma Vontadede Entendimento a sa-ber eacute um anseio e desejodeste uacuteltimo ele natildeo eacuteuma vontade conscientemas sim uma vontadepremonitoacuteria (ahnenderWille) cuja premoni-ccedilatildeo eacute o Entendimento() Foi a partir destealgo desprovido de En-tendimento (Verstandlo-sen) que o Entendimentono sentido proacuteprio nas-ceu (SCHELLING-LIBERDADE p 28-2905

14 Na terceira ediccedilatildeo (1847) de sua A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente Schopenhauer diraacute queesta distinccedilatildeo de Schelling nada mais eacute do que um aprofundamento da confusatildeo de que Espinosa tambeacutem foiviacutetima relativamente ao argumento ontoloacutegico de Descartes ndash enquanto Espinosa teria indevidamente assimi-lado a relaccedilatildeo causa-efeito agrave relaccedilatildeo fundamento-consequecircncia Schelling tentando tornar mais ldquorealrdquo esta uacuteltimarelaccedilatildeo teria procurado separar em Deus o ldquofundamentordquo da ldquoconsequecircnciardquo o que lhe permitiraacute falar comofalaraacute a seguir de um ldquofundamento em Deus que natildeo eacute Deus mesmordquo Nesta ocasiatildeo Schopenhauer aleacutem de dizerque Schelling nisto estaacute simplesmente plagiando JBoumlhme pretende ter descoberto a fonte (os ldquoValencianosrdquo umaseita hereacutetica do secII dC) de que se valeu o proacuteprio Boumlhme CfSCHOPENHAUER A The Fourfold Roots of thePrinciple of Sufficient Reason Hillebrand K(trad) London GBell and Sons 1903 p18

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- itaacutelicos nossos)

Gardiner no artigo jaacute mencio-nado enfatiza em conexatildeo comesta passagem das Investigaccedilotildeesque o fato de Schelling falar aquide uma vontade ldquocegardquo em nadadepotildee contra a originalidade daconcepccedilatildeo schopenhaueriana devontade jaacute que esta vontade deSchelling eacute completamente vol-tada em direccedilatildeo ao Entendimento(GARDINER p 19) Aleacutemdisso continua Gardner apesarde Schelling ser aqui pioneiro naafirmaccedilatildeo da positividade do Maleste Mal para ele eacute apenas o malmoral humano e natildeo tal comoocorrem em Schopenhauer eacute algoinscrito na proacutepria essecircncia domundo (GARDINER p 38) Defato talvez pudeacutessemos dizer queembora Schelling afirme a positi-vidade do Mal ele natildeo chega emmomento algum a afirmar comoafirmaraacute Schopenhauer a nega-tividade do Bem o fato do Bemser apenas a ausecircncia ou priva-ccedilatildeo de um Mal positivo Ape-sar desta diferenccedila natildeo pode ha-ver duacutevida alguma de que estaselaboraccedilotildees de Schelling estuda-das pelo jovem Schopenhauer em1812 devem ter deixado algumasmarcas em seu pensamento filosoacute-fico se bem que em suas anota-ccedilotildees a esta obra de Schelling o jo-vem Schopenhauer se mostre bas-tante criacutetico segundo ele emboranela hajam ldquoaqui e alirdquo algumas

observaccedilotildees verdadeiras Schel-ling ao querer adaptar a essecircn-cia atemporal do homem agraves con-diccedilotildees de sua apariccedilatildeo fenome-nal no tempo acaba produzindoldquoabsurdidades monstruosasrdquo ede um modo geral estas Investi-gaccedilotildees de Schelling seriam apenasuma re-elaboraccedilatildeo (para natildeo dizerplaacutegio) daquilo que em JBoumlhmecorrespondia a uma intuiccedilatildeo vivae direta da verdade (MR2 p 353-354)

Em sua primeira publicaccedilatildeo AQuaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente de 1813 o jovemSchopenhauer procurando atri-buir agrave relaccedilatildeo motivo-accedilatildeo ou agraveLei da Motivaccedilatildeo a mesma neces-sidade que vigora nas outras trecircsfiguras do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente recorre numa seccedilatildeo in-teiramente excluiacuteda das ediccedilotildeesposteriores desta obra agrave doutrinakantiana do caraacuteter ldquointeligiacutevelrdquoenquanto contraposto ao caraacute-ter ldquoempiacutericordquo e a este respeitoele natildeo economiza elogios a Kante a Schelling ndash Kant teria dadouma explicaccedilatildeo desta distinccedilatildeoassim como da relaccedilatildeo da liber-dade para com a natureza quediz o jovem Schopenhauer eacute umadas mais admiraacuteveis peccedilas da sa-bedoria de que eacute capaz o espiacute-rito humano ao passo que Schel-ling teria dado desta explicaccedilatildeokantiana uma ldquoapresentaccedilatildeo alta-mente esclarecedorardquo em suas In-

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vestigaccedilotildees sobre a Liberdade (RAI-ZES p 119-120) De fato o leitorde Schopenhauer ao deparar-secom estas paacuteginas (SCHELLING-LIBERDADE p 49 ss10 ss)das Investigaccedilotildees em que Schellingfaz a apresentaccedilatildeo da doutrina deKant (eacute bem verdade que comonota asperamente o jovem Scho-penhauer Schelling natildeo menci-ona o nome de Kant) a respeito docaraacuteter ldquointeligiacutevelrdquo e da coexis-tecircncia da liberdade com a neces-sidade natural natildeo poderaacute deixarde reconhecer o quanto as expo-siccedilotildees acerca dos mesmos temaspor parte de Schopenhauer (porexemplo na seccedilatildeo 55 de O Mundocomo Vontade e Representaccedilatildeo as-sim como em seus ensaios Sobre aLiberdade da Vontade e Sobre o Fun-damento da Moral15) devem a ela eo quanto os elogios mencionadosacima a Kant e a Schelling fei-tos pelo jovem Schopenhauer emsua tese doutoral eram realmentejustificados e sinceros A uacutenicacoisa que em toda esta apresenta-ccedilatildeo eacute rejeitado por Schopenhauereacute que ela seja realmente de Schel-ling isto eacute ele incessantementeacusa Schelling de estar querendopassar como de sua autoria umadoutrina que de fato eacute de KantMas dado que a respeito desta

doutrina Schopenhauer natildeo rei-vindica nenhuma originalidadedado que ele confessadamentea aceita integralmente se natildeo deSchelling ao menos de Kant natildeoprecisamos nos deter em sua anaacute-lise Mesmo porque parece-nos eacuteem conexatildeo com a leitura de outraobra de Schelling as Ideias parauma Filosofia da Natureza que seencontra a principal contribuiccedilatildeodeste ao desenvolvimento do pen-samento filosoacutefico do jovem Scho-penhauer

As ideias para uma filosofia danatureza de Schelling

Tal como nos informa Cartwrighto jovem Schopenhauer antesainda de frequentar seu primeirocurso de filosofia o curso deSchulze em 1810 retirou na bi-blioteca da Universidade de Goumlt-tingen aleacutem do A Alma do Mundotambeacutem as Ideias para uma Filo-sofia da Natureza16 de Schelling(CARTWRIGHT p 147 n 21)Jaacute nos referimos ao modo comocomentando o ldquoadendordquo agrave Intro-duccedilatildeo a esta obra que trata daldquoExposiccedilatildeo da Ideia Universal daFilosofia em geralrdquo (SCHELLING-NATUREZA p65-88) o jovem

15 SCHOPENHAUER A The Two Fundamental Problems of Ethics Cartwrigh D e Erdmann E(trad) OxfordOxford UnivPress 2010 p 73 ss 183 ss

16 SCHELLING FWJ Ideen zu einer Philosophie der Natur (2ordf ed) Landshut PKruumlll 1803(SCHELLING-NATUREZA)

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Schopenhauer entrevecirc como pordetraacutes desta exposiccedilatildeo a intui-ccedilatildeo de sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoa intuiccedilatildeo de noacutes mesmos comonum estado em que o tempo ea distinccedilatildeo entre sujeito e objetodeixam de importar Mas tal es-tado dizia laacute Schopenhauer natildeotem nada de anaacutelogo agrave consciecircn-cia empiacuterica e atual e estaacute paraaleacutem de toda apreensatildeo possiacute-vel atraveacutes de conceitos do En-tendimento E conforme vimoso que o jovem Schopenhauer re-cusa de Schelling eacute a tentativade colocar esta ldquoindiferenccedilardquo en-tre sujeito e objeto como funda-mento da consciecircncia empiacutericaeacute a tentativa segundo Schope-naheur levada a efeito por Schel-ling neste ldquoadendordquo de mostrarcomo este Uno em primeiro lugarpassa perpetuamente como o infi-nito no finito e em segundo lu-gar ao mesmo tempo volta comoo finito no infinito e por uacuteltimoe em terceiro lugar manteacutem-seeternamente numa identidade eunidade absoluta consigo mesmoIsto tudo conclui o jovem Scho-penhauer natildeo passa de uma pa-roacutedia da ldquosantiacutessima trindaderdquo(1-Deus-filho 2-Espiacuterito Santo3-Deus-pai) cuja necessidade natildeopode ser demonstrada e que eacute ob-tida mediante a aboliccedilatildeo do prin-ciacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (MR2 p360-361)

Apesar desta rejeiccedilatildeo do pro-

cedimento baacutesico da filosofia deSchelling e da tentativa de ateacutemesmo ridicularizaacute-lo haacute no en-tanto nesta obra de Schelling umcapiacutetulo que parece-nos deve tervivamente impressionado o jovemSchopenhauer ndash trata-se do capiacute-tulo IV intitulado ldquoPrimeira ori-gem do conceito de mateacuteria a par-tir da natureza da intuiccedilatildeo e doespiacuterito humanordquo Nele Schel-ling comeccedila dizendo que o fra-casso na tentativa de explicar aforccedila de atraccedilatildeo (Anziehung) atra-veacutes de causas fiacutesicas leva agrave con-clusatildeo de que o conceito de taisforccedilas natildeo obteacutem sua certificaccedilatildeo(Beglaubigung) no interior destasproacuteprias ciecircncias fiacutesicas mas simnuma ciecircncia ldquomais altardquo ndash estasciecircncias fiacutesicas precisam assimconfessar que se apoiam em prin-ciacutepios que lhe satildeo fornecidos poroutra ciecircncia E no entanto a im-pressatildeo de que as forccedilas de atra-ccedilatildeo e repulsatildeo pertencem agrave essecircn-cia (Wesen) da mateacuteria jaacute deveriadiz Schelling ter feito com queos investigadores da natureza seperguntassem sobre a origem doconceito de mateacuteria ndash pois ldquoas for-ccedilas (Kraumlfte) natildeo satildeo algo que acon-teccedila de ser apresentaacutevel (darstell-bar) na intuiccedilatildeordquo (SCHELLING-NATUREZA p 299-300) Mas aconfianccedila nos conceitos de atraccedilatildeoe repulsatildeo eacute tal que eles precisamser senatildeo objetos (Gegenstaumlnde)da intuiccedilatildeo ao menos condiccedilotildees

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de possibilidade de todo conhe-cimento objetivo Trata-se por-tanto diz Schelling de uma dis-cussatildeo transcendental do conceitode mateacuteria em geral que co-meccedila por perguntar ldquode ondevem o conceito de forccedila atrativae repulsivardquo

Dos raciociacutenios (Schluumls-sen) responder-se-aacute tal-vez e com isto se acreditater posto fim agrave questatildeo Oconceito de forccedila eu devoeacute claro aos raciociacuteniosque fiz Soacute que conceitossatildeo meras sombras projeta-das (Schattenrisse) da reali-dade Eles compotildeem umafaculdade uacutetil o Entendi-mento que soacute entra em cenaquando a realidade jaacute estaacuteaiacute e que soacute compreendeagarraconceitua (be-greift) e fixa aquilo que soacuteuma (outra) faculdade cri-adora pocircde produzir emseu lugar(SCHELLING-NATUREZA p 301 - itaacute-licos nossos)

Ora Schelling parece aqui carac-terizar os conceitos de uma ma-neira muito semelhante agravequela aser posteriormente adotada porSchopenhauer ndash os conceitos proacute-prios a uma faculdade uacutetil satildeosombras projetadas a partir de

uma realidade apreendida ouproduzida em outra instacircncia ndashdaiacute Schelling dizer a seguir queos homens cuja forccedila do espiacuteritoeacute toda voltada agrave faculdade de fa-zer conceitos e de analisar concei-tos natildeo conhecem nenhuma rea-lidade (Realitaumlt) de modo que aproacutepria pergunta a respeito destalhes parece sem-sentido E quemnatildeo conhece o real (Reales) emsi e fora de si quem apenas viveem e joga com conceitos aquelescuja existecircncia proacutepria eacute apenasum pensamento embaccedilado (mat-ter Gedanke) estes diz Schellingsatildeo como cegos que pretendemfalar das cores toda a realidadecomportada pelos meros conceitoslhes adveacutem da intuiccedilatildeo (Anschau-ung) Se o todo de nosso saber re-pousasse continua Schelling emconceitos entatildeo nunca poderiacutea-mos nos convencer a respeito dealguma realidade ndash mas afirma-mos a mateacuteria como existindo re-almente fora de noacutes e como com-portando as forccedilas de atraccedilatildeo e re-pulsatildeo

Ela (a mateacuteria) natildeo ape-nas existe para noacutes real-mente como tambeacutem eacuteimediatamente dada sema mediaccedilatildeo de conceitossem nenhuma consciecircn-cia de nossa liberdade Enada de outro nos chegaimediatamente a natildeo ser

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atraveacutes da intuiccedilatildeo e porisso a intuiccedilatildeo eacute o que haacutede mais alto em nosso co-nhecimento(SCHELLING-NATUREZA p 303 - itaacute-licos nossos)

Eacute na intuiccedilatildeo diz Schelling quedeve ser encontrado o funda-mento pelo qual aquelas forccedilaspertencem agrave mateacuteria ou dito deoutro modo o fundamento peloqual o objeto da intuiccedilatildeo externase apresenta como o produto des-tas forccedilas que passam assim aser entendidas como condiccedilotildeesde possibilidade desta intuiccedilatildeoexterna e explica a necessidadecom a qual as pensamos Maspergunta Schelling o que eacute a in-tuiccedilatildeo Diz-se que a intuiccedilatildeosegue-se a uma impressatildeo (Ein-druck) externa mas continuaSchelling seria melhor perguntarcomo eacute possiacutevel haver uma im-pressatildeo sobre noacutes Mesmo a massa(Masse) morta natildeo pode ser atu-ada (bewirkt) sem que ela atue devolta (zuruumlckewirke) Mas em noacutesnada atua sem que essa atuaccedilatildeoou efeito chegue agrave consciecircncia demodo que esta impressatildeo natildeo ape-nas incide sobre uma atividadeoriginaacuteria em noacutes mas esta ativi-dade mesma precisa permanecerlivre para elevar esta impressatildeo agraveconsciecircncia Daiacute diz Schelling

Haacute filoacutesofos que acredi-

tam ter esgotado a es-secircncia (o fundo) do ser-homem quando remon-tam tudo em noacutes ao pen-sar (Denken) e ao repre-sentar (Vorstellen) Soacuteque natildeo se compreendecomo um tal ser que ori-ginalmente eacute apenas pen-sante e representante po-deria ter uma realidadefora de si Para um talser o todo do mundo real(que ainda existe ape-nas em suas representa-ccedilotildees) seria um mero pen-samento Que algo existae que exista independen-temente de mim isto eusoacute posso saber na medidaem que eu simplesmentesinto necessaacuterio me repre-sentar este algo e eu natildeopoderia sentir esta neces-sidade sem ao mesmotempo sentir que sou ori-ginariamente livre em re-laccedilatildeo a todo represen-tar e que o representarnatildeo constitui o meu Ser ouessecircncia (Wesen) mesmamas sim e ao contraacute-rio eacute apenas uma modi-ficaccedilatildeo (Modifikation) demeu Ser (SCHELLING-NATUREZA p 304-305 -Itaacutelicos nossos)

Apenas uma atividade livre

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em mim enquanto contrapostaagravequilo que livremente sobre mimatua comporta diz Schelling apropriedade da efetividade ndash eacute soacutena ldquoforccedila originaacuteria de meu Eurdquoque irrompe a ldquoforccedila do mundoexternordquo Mas por outro lado etal como a luz soacute se torna cor noscorpos sobre os quais incide ape-nas nos objetos esta forccedila originaacute-ria em mim se torna um pensarum representar auto-conscienteAssim a consciecircncia e a crenccedilanum mundo externo se datildeo con-juntamente com a consciecircncia ecrenccedila em mim mesmo e vice-versa e juntas constituem o ele-mento do todo de nossa vida eatividade Haacute homens continuaSchelling que acreditam que noscertificamos a respeito da reali-dade apenas atraveacutes de uma pas-sividade absoluta mas de fato ecomo mostra a experiecircncia nosmomentos mais altos da intui-ccedilatildeo o conhecer e o usufruir (Ge-nusses) a atividade e a passivi-dade ou sofrimento (Leiden) es-tatildeo numa completa atuaccedilatildeo reciacute-proca de modo que que eu so-fra isto eu soacute sei na medida emque sou ativo e que eu seja ativoisto soacute sei na medida em que sofroQuanto mais ativo o espiacuterito dizSchelling mais alta a sua sensibi-lidade (Sinn) e vice-versa quantomais embotada estaacute a sensibili-dade mais rebaixado se encontrao espiacuterito Aquilo que eacute intuiacutedo

como outro eacute outro e o que eacute ou-tro eacute intuiacutedo como outro Daiacutecontinua Schelling

Todo o pensar e represen-tar em noacutes eacute necessaria-mente precedido por umaatividade originaacuteria quepor anteceder todo o pen-samento eacute nesta medidasimplesmente indetermi-nada e ilimitada Apenasapoacutes algo ser-lhe contra-posto torna-se ela umaatividade limitada e porisso determinada (pensaacute-vel) Fosse esta atividadede nosso espiacuterito original-mente limitada (tal como aimaginam os filoacutesofos queremontam tudo ao pen-sar e representar) entatildeoo espiacuterito nunca poderiasentir-se limitado Ele soacutesente sua limitaccedilatildeo na me-dida em que ao mesmotempo sente sua originaacute-ria ilimitaccedilatildeoSobre esta atividade ori-ginaacuteria agora atua ()uma (outra) atividade quelhe eacute contraacuteria e queateacute agora eacute igualmentecompletamente indeter-minada de modo que te-mos duas atividades quese contrapotildeem mutuamentecomo condiccedilotildees necessaacuteriasda possibilidade de uma

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intuiccedilatildeo De onde pro-veacutem esta atividade con-traacuteria (SCHELLING-NATUREZA p 306-307- itaacutelicos de Schelling)

Agora vemos em que sentido opensar e representar natildeo cons-titui conforme dizia Schellingacima a essecircncia do ser-homemndash pois todo representar eacute um re-presentar determinado e limitadodeterminaccedilatildeo e limitaccedilatildeo quedado o lema espinosista de queldquotoda determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquosoacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do e emoposiccedilatildeo ao indeterminado e ili-mitado Mas a seguir e respon-dendo agrave uacuteltima questatildeo Schellingdiz que este eacute um problema queprecisamos indefinidamente ten-tar resolver mas que nunca re-solvemos de fato de modo queo todo de nosso conhecimento eacuteapenas uma contiacutenua aproxima-ccedilatildeo deste ldquoxrdquo ao que o jovemSchopenhauer observa que apenaso conhecimento filosoacutefico consistenesta aproximaccedilatildeo e que ldquoNesteensaio haacute em geral muita coisa boae verdadeira Mas tudo isto natildeopoderia ser reduzido agrave afirmaccedilatildeode que nossa consciecircncia neces-sariamente se divide em objeto esujeitordquo (MR2 p 363) Scho-penhauer nesta ocasiatildeo parecenatildeo se dar conta de que Schellingestaacute justamente procurando expli-car como eacute que sujeito e objeto se

encontram um com o outro no co-nhecer e na intuiccedilatildeo ou entatildeo eleestaacute rejeitando que tal coisa possaser explicada ndash eacute assim que emconexatildeo com o Sistema do Idea-lismo Transcendental e a respeitoda afirmaccedilatildeo inicial de Schellingno sentido de que no conhecero subjetivo e o objetivo precisamldquoconcordarrdquo (Uumlbereinstimmung)um com o outro (SCHELLING-SISTEMA p 09) Schopenhauerdiz que tais expressotildees satildeo sem-sentido pois ldquoum objetivo quenatildeo concorde com um subjetivordquoeacute algo tatildeo impossiacutevel quanto umciacuterculo triangular (MR2 p 378)Mas continuando com Schellingeste diz que

Como uma primeira ten-tativa de definir este ldquoxrdquoo conceito de forccedila (Kraft)logo se apresenta Jaacute os ob-jetos mesmos soacute podem serconsiderados como produtosde forccedilas e com isso desa-parece automaticamente aquimera (Hirnegespinst)da coisa-em-si que era su-posta ser a causa de nos-sas representaccedilotildees Emgeral aquilo que eacute capazde atuar sobre o espiacuterito(precisa atuar) como estemesmo (espiacuterito) atua outer uma natureza aparen-tada agrave (natureza) dele Eacutenecessaacuterio portanto re-

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presentar a natureza comoum produto de forccedilaspois apenas a forccedila eacute aquiloque haacute de natildeo-sensiacutevel(Nichtsinnliche) nos obje-tos e apenas aquilo que eacuteanaacutelogo ao espiacuterito podeeste espiacuterito contrapor asi mesmo(SCHELLING-NATUREZA p 308 - itaacute-licos nossos)

Ora aqui Schelling fala do ob-jeto da intuiccedilatildeo empiacuterica da ma-teacuteria como o produto de forccedilasque para constituiacuterem aquele ldquoxrdquopara constituiacuterem aquela ativi-dade que se contrapotildee agrave ativi-dade originaacuteria ilimitada e inde-terminada do espiacuterito precisamser ldquoaparentadasrdquo a este espiacuteritoprecisam dado que elas atuam so-bre o espiacuterito ser elas mesmasforccedilas ldquodo espiacuteritordquo Eacute apenasdevido agravequilo que no objeto haacutede menos sensiacutevel de mais es-piritual que este objeto ldquoatuardquosobre o espiacuterito Com isto dizSchelling desaparece o famosoproblema17 acerca da coisa-em-sikantiana como causa da ldquomateacuteriardquo(enquanto contraposta agrave forma)do fenocircmeno ndash jaacute natildeo seraacute precisosupor que algo essencialmente di-

ferente do espiacuterito atue sobre eleDeste modo a intuiccedilatildeo do objetoeacute resultante da contraposiccedilatildeo en-tre a ldquoforccedila do Espiacuteritordquo e a forccedilaldquofiacutesicardquo que ultimamente eacute apa-rentada agrave forccedila do Espiacuterito E nointerior do proacuteprio espiacuterito o quehaacute de mais aparentado agrave forccedila doque a Vontade

Mas eacute curioso que a respeitodestes desenvolvimentos da refle-xatildeo schellinguiana o jovem Scho-penhauer inicialmente a recuserecusa que no entanto inequivo-camente prenuncia a descobertade sua filosofia - eacute assim que eleanota agrave margem da passagem deSchelling acima

Se ao inveacutes de coisas-em-si mesmas tivermos forccedilas-em-si mesmas isto natildeo nosajudaraacute a avanccedilar ndash Aforccedila eacute tatildeo pouco o supra-sensiacutevel que antes ela eacuteapenas um conceito abs-trato retirado do sensiacute-vel e que eacute apenas figura-damente transferido parao supra-sensiacutevel que deveser (MR2 p 364 - itaacutelicosde Schopenhauer)

O jovem Schopenhauer recusanesta ocasiatildeo a sugestatildeo de Schel-

17 A possiacutevel aplicaccedilatildeo transcendente por parte de Kant da categoria da causalidade na concepccedilatildeo da coisa-em-si como causa da mateacuteria sensiacutevel dos fenocircmenos foi objeto de inuacutemeras criacuteticas por parte de Jacobi Schulze e doproacuteprio Schopenhauer quando jovem (MR1 p61 104 MR2 p 270 290-294) Pode-se dizer que esta ldquopolecircmicaacerca da coisa-em-sirdquo esteve na origem tanto do Idealismo alematildeo como da proacutepria filosofia de Schopenhauer

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ling jaacute que para ele as ldquoforccedilasrdquonada mais satildeo do que marcasou sinais que fazemos para de-notar regularidades observadasentre fenocircmenos ndash eacute assim quenuma anotaccedilatildeo anterior a estao jovem Schopenhauer recusa asugestatildeo de Schelling no sen-tido de que a origem do con-ceito de forccedila estaacute ldquopara aleacutem detoda a consciecircncia como a condi-ccedilatildeo de sua possibilidaderdquo e ex-plica o fato deste conceito ldquonatildeoser apresentaacutevel em nenhumaintuiccedilatildeordquo como dizia Schellingacima como significando ape-nas que seu objeto eacute apenas su-posto em favor do avanccedilo doconhecimento das cadeias cau-sais como uma marca que fa-zemos na esperanccedila de desfazecirc-la e de empurraacute-la sempre umpouco mais para adiante (MR2p 363) Desta forma e como ateacuteentatildeo vinha incansavelmente cri-ticando no procedimento da filo-sofia de Schelling o jovem Scho-penhauer estaacute aqui afirmando queo conceito de ldquoforccedilardquo tal como oconceito de ldquocoisardquo eacute inexoravel-mente ligado agrave consciecircncia em-piacuterica e sensiacutevel de modo quetransferi-lo de maneira literal enatildeo-metafoacuterica ao supra-sensiacutevelagrave sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo eacute umprocedimento transcendente queviola as interdiccedilotildees kantianas

Poreacutem e conforme mostramseus manuscritos posteriores

(1814-1818) a esta fase que es-tamos considerando (1811-1813)manuscritos onde o jovem Scho-penhauer procede a uma re-avaliaccedilatildeo do status metafiacutesico dasldquoforccedilasrdquo empregadas pela ciecircnciaeacute plausiacutevel supor que estas suges-totildees de Schelling tenham contri-buiacutedo decisivamente para a suadescoberta de que a Vontade apa-rentada agrave ldquoForccedilardquo seja aquilo emrelaccedilatildeo ao qual os objetos da in-tuiccedilatildeo empiacuterica sejam objetivaccedilotildeesVimos anteriormente Schope-nhauer recusar vigorosamente asugestatildeo de Schelling no sentidode que o sujeito ele proacuteprio po-deria tornar-se objeto ou de quepudesse haver um ldquotornar-se ob-jeto do subjetivordquo ndash e agora ve-mos Schelling sugerir que o quese torna objeto nestas objetiva-ccedilotildees natildeo eacute o sujeito mas sim umaldquoforccedila do espiacuteritordquo forccedila queneste sujeito soacute pode ser a Von-tade

Numa nota acrescentada em1849 a um de seus manuscritosde 1814 o maduro Schopenhauerafirma que estas ldquofolhas escritasem Dresden nos anos 1814-1818mostram o processo fermentativode meu pensamento a partir doqual naquela ocasiatildeo o todo deminha filosofia emergiurdquo (MR1 p122) ndash trata-se da ideia de que ocorpo eacute a objetidade da vontadeou eacute a vontade tornada objeto visiacute-vel ou eacute a apariccedilatildeo fenomecircnica da

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vontade (MR1 p 115 121 130137 146 156) de que entre a von-tade e o corpo natildeo haacute uma relaccedilatildeode causalidade mas sim de iden-tidade (MR1 171) enfim trata-seda ideia que um pouco mais tarde(1817) Schopenhauer designaraacutecomo a ldquopedra angularrdquo de sua fi-losofia (MR1 p 490-491) Parece-nos que a sugestatildeo de Schellingno sentido de que ldquojaacute os objetossoacute podem ser considerados comoprodutos de forccedilasrdquo contribuiudecisivamente para a descobertaoriginal de Schopenhauer a res-peito do corpo como produto daVontade

Conclusatildeo

Vimos que desde o iniacutecio de suaelaboraccedilatildeo filosoacutefica (1811-1813)o jovem Schopenhauer ainda im-buiacutedo do como o chama Rappa-port ldquofenomenalismo ceacuteticordquo deseu professor Schulze (RAPPA-PORT p 127) rejeita o prin-cipal do empreendimento filosoacute-fico a que se dedicava Schelling ndashembora compartilhasse com estea mesma intuiccedilatildeo a respeito domundo supra-sensiacutevel chamadopor ele entatildeo de ldquoconsciecircnciamelhorrdquo um estado de consci-ecircncia em que seja o Eu sejao mundo se apresentam comoatemporais e como natildeo compor-tando a distinccedilatildeo sujeito x ob-

jeto e embora compartilhasse comSchelling tambeacutem a constataccedilatildeodecorrente desta intuiccedilatildeo do ca-raacuteter vazio irreal e meramenteaparente da experiecircncia sensiacute-vel e temporal o jovem Schope-nhauer no entanto e ao contraacuteriode Schelling rejeitava que tal in-tuiccedilatildeo supra-sensiacutevel pudesse serposta como fundamento da intui-ccedilatildeo sensiacutevel e empiacuterica rejeitava atentativa transcendental de colo-car a primeira intuiccedilatildeo como con-diccedilatildeo de possibilidade da uacuteltimaE isto porque como incansavel-mente denuncia o jovem Schope-nhauer nestes anos qualquer rela-ccedilatildeo que se queira estabelecer entreestes dois mundos precisaraacute valer-se de relaccedilotildees (temporais causaisfundamento-consequecircncia etc)vaacutelidas apenas para o mundo sen-siacutevel de modo que tais tentativasao aplicar sobre o mundo supra-sensiacutevel sobre a sua ldquoconsciecircnciamelhorrdquo relaccedilotildees e categorias re-tiradas do mundo sensiacutevel estaraacutefazendo um uso transcendentedestas categorias uso este jaacute de-monstrado por Kant como equi-vocado e impossiacutevel

Para aleacutem desta discordacircnciafundamental de Schopenhauerpara com a pretensatildeo fundacio-nista da filosofia de Schelling oque procuramos descortinar fo-ram temas presentes na obra deSchelling estudadas pelo jovemSchopenhauer que pudessem ter

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contribuiacutedo para o desenvolvi-mento filosoacutefico deste uacuteltimo Arespeito da obra de Schelling ondenormalmente se vecirc as maiores an-tecipaccedilotildees da filosofia de Schope-nhauer a respeito das Investiga-ccedilotildees Filosoacuteficas sobre a Essecircncia daLiberdade Humana constatamosque embora Schelling aiacute avanceideias (como a da Vontade comoo Ser primal e da liberdade comoo aspecto positivo da coisa-em-sikantiana assim como sua expo-siccedilatildeo da teoria kantiana do caraacute-ter ldquointeligiacutevelrdquo) que inequivoca-mente deixaram marcas no pensa-mento de Schopenhauer este temno entanto razatildeo quando afirmaque tais ideias satildeo aiacute avanccediladaspor Schelling de maneira hesi-tante e nebulosa como que numestado quase sonambuacutelico

Mas mais do que estas alu-sotildees do ldquonaufragordquo Schelling oque nos pareceu mais importantecomo contribuiccedilatildeo de Schellingao desenvolvimento futuro dopensamento filosoacutefico de Schope-nhauer foram ideias que destaca-mos acima de seu Ideias para umaFilosofia da Natureza ndash nesta o jo-vem Schopenhauer viu Schellingqualificar os conceitos como som-bras projetadas de uma realidadeapreendida ou produzida em ou-tra instacircncia a saber na intuiccedilatildeoEle viu Schelling afirmar que todarealidade comportada por umconceito eacute uma realidade que lhe

eacute emprestada pela intuiccedilatildeo que oreal eacute apreendido por esta intui-ccedilatildeo de forma completamente in-dependente de qualquer conceitoetc chegando mesmo Schellingao final a concluir que ldquo() aintuiccedilatildeo natildeo eacute como muitos pre-tensos filoacutesofos imaginam o maisbaixo estaacutegio mas sim o maisalto (Houmlchste) estaacutegio do espiacuteritohumano eacute aquilo que propria-mente constitui sua espirituali-dade (Geistigkeit)rdquo (SCHELLING-NATUREZA p 312) Mesmo sempoder examinar suficientementea questatildeo aqui ousariacuteamos di-zer que eacute justamente esta valori-zaccedilatildeo da intuiccedilatildeo (e uma conse-quente desvalorizaccedilatildeo do pensa-mento meramente conceitual) oque Schopenhauer considera maisatraente na filosofia de Schellingenquanto contrastada agrave de Fichtee sobretudo de Hegel o que ex-plica talvez aquele caraacuteter maisameno e contido de suas criacuteticasa Schelling enquanto compara-das agraves que ele endereccedila aspera-mente a Fichte e Hegel Se talcomo pretende Welchman o queSchopenhauer rejeita na ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling natildeo eacutea sua transcendecircncia natildeo eacute suapretensatildeo metafiacutesica de acesso agravescoisas-em-si-mesmas mas sim asua dependecircncia do pensamentoconceitual envolvido no ldquofato (mo-ral) da Razatildeordquo proacuteprio a todos osseres racionais puros detentores

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de conceitos cuja realidade supos-tamente prescinde de qualquerapelo agrave intuiccedilatildeo (WELCHMANp 07 ss) entatildeo vemos que di-ante das passagens das Ideias parauma Filosofia da Natureza discu-tidas acima a rejeiccedilatildeo de Scho-penhauer agrave ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquode Schelling deveria ter sido bemmenor do que aparentemente foindash pois aiacute e como vimos Schel-ling explicitamente nega que osconceitos possam comportar qual-quer realidade independente daque lhe eacute fornecida pela intuiccedilatildeoDe qualquer forma ao conectarexplicitamente e como vimos sualdquointuiccedilatildeo intelectualrdquo agrave autono-mia praacutetica dos puros seres raci-onais kantianos Schelling teriaparece dificuldades na acomoda-ccedilatildeo destas ideias avanccediladas nestecapiacutetulo IV de suas Ideias para umaFilosofia da Natureza e merece-ria as criacuteticas de Schopenhauer nosentido de que tal como as diva-gaccedilotildees do naufrago falta-lhe cla-reza e consistecircncia

Mas foi sobretudo a sugestatildeode Schelling avanccedilada acima nosentido de que o objeto materialreal da intuiccedilatildeo empiacuterica soacute atuasobre o espiacuterito (soacute eacute afinal in-tuiacutedo por este espiacuterito) porque elemesmo eacute resultante de ldquoforccedilasrdquoforccedilas que satildeo o que haacute de me-

nos sensiacutevel nestes objetos forccedilasestas ultimamente aparentadas agravesldquoforccedilasrdquo do proacuteprio espiacuterito demodo que os objetos materiais satildeocomo que apariccedilotildees sensiacuteveis de for-ccedilas espirituais natildeo-sensiacuteveis satildeo es-tas sugestotildees o que nos pareceuanunciar diretamente a inovaccedilatildeode Schopenhauer relativamenteaos corpos materiais como objeti-vaccedilotildees da Vontade Vimos o jovemSchopenhauer rejeitar desde suascriacuteticas agrave filosofia da identidadesujeito-objeto de Schelling a su-gestatildeo deste uacuteltimo no sentido deque o sujeito poderia apresentar-se (tambeacutem a si mesmo) comoobjeto ndash para o jovem Schope-nhauer o fato de natildeo haver emsua ldquoconsciecircncia melhorrdquo tal dis-tinccedilatildeo entre sujeito e objeto emnada contribui para o esclareci-mento da distinccedilatildeo sujeito-objetopresente na e de fato idecircntica agraveconsciecircncia empiacuterica Mas estasuacuteltimas passagens do capIV dasIdeias para uma Filosofia da Natu-reza alude agrave possibilidade de senatildeo o sujeito ao menos algo pre-sente neste sujeito ou neste espiacute-rito eacute que se torna objeto ndash e estalsquoforccedila do Espiacuteritordquo cuja apariccedilatildeovisiacutevel produz o objeto da intui-ccedilatildeo empiacuterica que eacute entatildeo objetiva-ccedilatildeo desta forccedila natildeo pode ser outrasenatildeo a Vontade

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Recebido 25052019Aprovado 16072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224797

De Dicto and De Re A Brandomian Experiment onKierkegaard

[De Dicto e De Re um Experimento Brandomiano sobre Kierkegaard]

Gabriel Ferreira da Silva

Abstract The recent historical turn within the analytic traditionhas experienced growing enthusiasm concerning the procedure ofrational reconstruction whose validity or importance despite itsparadigmatic examples in Frege and Russell has not always enjoyeda consensus Among the analytic philosophers who are the fron-trunners of such a movement Robert Brandom is one of a kind hiswork on Hegel as well as on German Idealism has been increasinginterest in as well as awareness of Hegelrsquos contributions to somecurrent problems in that tradition Thus this work aims to showBrandomrsquos methodology of rational reconstruction based on thedistinction between de dicto and de re inferences Afterwards I turnto Kierkegaard in order to make explicit some of his ontologicalcommitments by applying Brandomrsquos approach as a valuable tool fordoing history of philosophyKeywords Kierkegaard Brandom Rational Reconstruction Onto-logy Metaphilosophy

Resumo A recente virada histoacuterica no interior da filosofia analiacuteticatem contribuiacutedo para o crescimento no interesse acerca do procedi-mento da reconstruccedilatildeo racional cuja validade ou importacircncia a des-peito de ter exemplos paradigmaacuteticos em Frege e Russell natildeo foi sem-pre um consenso Entre os filoacutesofos analiacuteticos pioneiros nesse movi-mento Robert Brandom merece especial destaque seu trabalho sobreHegel e o Idealismo Alematildeo tem despertado a atenccedilatildeo tanto sobre aexegese do filoacutesofo de Jena quanto acerca de suas possiacuteveis contribui-ccedilotildees para problemas atuais Assim este trabalho tem como objetivoexpor o meacutetodo de Brandom baseado na distinccedilatildeo entre inferecircnciasde dicto e de re Num segundo momento faccedilo um exerciacutecio de aplica-ccedilatildeo de tal meacutetodo a Kierkegaard explicitando seus comprometimen-tos ontoloacutegicos evidenciando tal abordagem como uma valiosa ferra-menta para a histoacuteria da filosofiaPalavras-chave Kierkegaard Brandom Reconstruccedilatildeo Racional On-tologia Metafilosofia

Professor do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)ORCID httpsorcidorg0000-0003-2255-5173 E-mail gabrielferreiraunisinosbr

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GABRIEL FERREIRA DA SILVA

1 - Introduction

Analytic philosophy had a self-image as a trend or philosophi-cal perspective that was not onlynon-historic but even opposed toany interference of a historical ap-proach to philosophy (see BEA-NEY 2016 RECK 2013) Howe-ver such a view has been chal-lenged in different ways amongthem I would like to point twothat are especially relevant formy purposes here Firstly as itis now widely acknowledged thequarrel between Dummett andSluga on the influences of previ-ous philosophers ndashmainly Lotzendashon Frege as well as Soamesrsquos bookand the debates after it revea-led new facets of the then stan-dard narratives about analyticphilosophers As Beaney (2016)points out even the view aboutsome of the archetypical figuresof the anti-historical approachlike Frege himself but also Rus-sell and Wittgenstein have chan-ged since then The second aspectwhere we can see the ldquohistoricalturnrdquo in analytic philosophy is notrelated to what we could call a his-torical sensibility when it comesto interpretation of now canonicalanalytic philosophers like Fregeor Russellmdashwhich is a historicalenterprise in itselfmdashbut in thereassessment of possible contri-butions to current philosophical

problems by philosophers fromthe past Starting with differentmodes of engagement with Kan-tian philosophy by analytic philo-sophers like Sellars Strawson andRawls but also with DescartesLeibniz Hume and even ancientphilosophy analytic philosophershave been increasing the placeand importance for dialogue withthe history of philosophy It is inthis scenario that the ldquoPittsburghSchoolrdquo led by Robert Brandomand John McDowell moves intowhat Paul Redding calls ldquoAnalyticNeo-Hegelianismrdquo (2011) Bran-dom himself presents some as-pects of his philosophical contri-butions in terms of an approxi-mation to Hegel In fact quo-ting Richard Rorty Brandom saysthat his work as well as Mc-Dowellrsquos helps to push analy-tic philosophy from its Kantianphase into its unavoidable Hege-lian phase (BRANDOM 2011)

From a historical point of viewsuch a move is quite interestingif we consider that a major partof contemporary philosophy rai-sed upon the explicit and deli-berate rejection of Hegelrsquos philo-sophy and his epigones Almostevery aspect of the philosophy ofthe second half of 19th centuryand beginning of 20th was direc-tly or indirectly influenced by therefusal of Absolute Idealism andits consequences not only for logic

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and natural sciences but also forhistory sociology and culture Yetdespite the specific importance ofthat revival of philosophers fromthe past what is particularly no-teworthy is the progressive ack-nowledgement of the procedureof rational reconstruction as a va-lid justified and profitable way ofdoing philosophy even inside theanalytic tradition

Following Beaneyrsquos definitionldquoA rational reconstruction of a(purported) body of knowledgeor conceptual scheme or set ofevents is a redescription and reor-ganization of that body or schemeor set that exhibits the logical(or rational) relations betweenits elementsrdquo (BEANEY 2013 p253)1 In modern philosophy itsroots can be broadly found inNeo-Kantianism and in logicismwhich is itself another interestingsign of proximity between the twophilosophical trends in the 19th

century On the one hand thedistinction between quid juris andquid facti is crucial to Kant andhis followers Such a differenti-ation was reworked and presen-ted under various other termslike Lotzersquos distinction betweengenesis (Genese) and validity (Gel-tung) or Windelbandrsquos distincti-

ons between the genetic and thecritical method or the differenti-ation between discovery and jus-tification All of them are con-ditions of possibility of a ldquoredes-criptionrdquo or ldquoreorganizationrdquo of agiven body or set of claims aimingto make explicit its sometimes-hidden internal logic On theother hand the logicist projectwhich assumes the idea that oneset of elements can be reconcei-ved in terms of another (numbersin terms of extensions of conceptsfor example) is also a type of ratio-nal reconstruction2 Carnaprsquos Auf-bau is another Frege himself isabsolutely committed to the prin-ciple exposed in the Grundlagenthat ldquoThere must be a sharp sepa-ration of the psychological fromthe logical the subjective from theobjectiverdquo (FREGE 1997 p 90)

However because rational re-construction is a philosophicalprocedure that focuses on the in-dependence and precedence ofthe logical validity and structureover the psychological dimensionof a set of claims it is totally justi-fied when it comes to taking sucha set or body of claims like theset of claims of a third personor even a philosopher from thepast In fact once again even

1The general reconstruction presented in the next paragraphs are drawn from BEANEY 20132 Like Beaney points out despite Frege uses the term ldquoreductionrdquo it is a sort of rational reconstruction (2013

p 235)

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inside the analytic tradition wehave examples of such exercises inRussellrsquos book on Leibniz (A Cri-tical Exposition of the Philosophyof Leibniz 2005) and Dummettrsquoswork on Frege (Frege Philosophyof Language 1973) not to mentionStrawsonrsquos on Kant In Russellrsquosown words in the scope of ratio-nal reconstruction

We may even learn by ob-serving the contradictionsand inconsistencies fromwhich no system hithertopropounded is free whatare the fundamental ob-jections to the type inquestion and how theseobjections are to be avoi-ded But in such inqui-ries the philosopher is nolonger explained psycho-logically he is examinedas the advocate of what heholds to be a body of phi-losophic truth By whatprocess of developmenthe came to this opinionthough in itself an impor-tant and interesting ques-tion is logically irrelevantto the inquiry how farthe opinion itself is cor-rect and among his opi-nions when these havebeen ascertained it be-comes desirable to pruneaway such as seem incon-

sistent with his main doc-trines before those doctri-nes themselves are subjec-ted to a critical scrutiny(RUSSELL 2005 xx)

We arrive here at a very inte-resting metaphilosophical pointIn reconstructing an authorrsquosthought we are not simply ex-tracting ideas from the text butdoing at least two creative proces-ses Firstly when we talk aboutldquoreconstructionrdquo we should re-ally mean it The interpreter-reconstructor is not only unders-tanding theses or ideas from apreviously given set of claimsbut is actively suggesting a dif-ferent composition or structurefor that set of claims that couldbe eventually for the sake of anargument for instance even bet-ter than the original made by theauthor himself Of course suchmeaning of reconstruction pre-supposes the possibility of deta-chment of the rationale from theoriginal form and frame But suchpresupposition is the very basisof rational reconstruction and isusually not so hard to defend suf-fice it to say that the same pre-supposition is being held when itcomes to the translation of a sta-tement or argument to a symboliclanguage

The second and for my purpo-ses here the most important crea-

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tive aspect of rational reconstruc-tion is the procedure of ascrip-tion In a rational reconstructionthe interpreter is not being me-rely prompted by a given work(cf BEANEY 2013 p 253) but isactively ascribing inferential pro-positions to an author And herewe are at the very tensional pointregarding an approach that wantsto be both historically informedand coherent and philosophicallyrelevant Like Beaney says ldquoa ra-tional reconstruction is better themore it is historically informedand vice versa so that ideal workin history of philosophy combinesbothrdquo (BEANEY 1996 p 3)3

Of course that is a regula-tive ideal which presents manyobstacles and can be reachedonly to varying degrees We canhave a glimpse of such difficul-ties in Daniel Garberrsquos exampleof reading Descartesrsquo Meditations(2005) Everybody knows thatits metaphysics is supposed to bethe ground of a broader projectfor Descartesrsquo system of sciencesThus it should be read togetherwith his other works having inmind his analogy of a tree and itsbranches But like Garber sayswhy stop here To fully unders-

tand his project it is important toknow that it was designed againstthe Aristotelian model taught atLa Flegraveche which takes us to otherproponents of similar candida-tes ndash like Gassendi and Galileoas well as to Aristotle himself inorder to understand and evalu-ate how Descartesrsquo thoughts aregood against their self-imposedaim But once again why stophere Garber reminds us that Des-cartes project was also designedagainst the whole social theolo-gical and university system ba-sed on authority and it is reallyhelpful to know its elements andstructures Well why then stophere It would be really usefulto know about the Church de-pendence on some views basedon an Aristotelian metaphysicsGarberrsquos example can be puzz-ling because it is very justifiableand actually it is justified for meeven though as Garber says ldquoIcan see certain readers becomingmore and more impatient whereis the philosophical interest in allof thisrdquo (GARBER 2005 p 138)

I certainly donrsquot intend to pre-sent any final solution to such aproblem However I do thinkthat Brandomrsquos approach to his-

3Thus I can see no reason for identifying Rational Reconstruction and Appropriationism as Mercer (2019 p30) does Of course a deeper engagement with her thesis would demand another paper but I think it is a defen-sible position to say that GTRC principle can include what (logically) follows from a statement in other words tounderstand what a philosopher is saying can include its inferential consistence even though such inferences werenot fully explicit

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tory of philosophy can be seen as agood tool to deal with it To someextent it is what Brandom doeswhen he turns to Kant Frege Hei-degger and mainly Hegel Butmore than that Brandomrsquos wayof dealing with philosophers fromthe past is also a device to expandour understanding of them

2 - History of Philosophy DeDicto and De Re

In order to fully understand Bran-domacutes approach we need to ex-plore a bit of its backgroundwhich is rooted on a concept of ra-tionality which at the same timeprovides the foundations for hisinferentialism In the Introduc-tion of TMD Brandom presentsfive models of rationality (logicalinstrumental translational infe-rential and historical) The dis-tinctive mark of the first two isthat they see rationality ldquoas beinga matter of the structure of re-asoning rather than its contentrdquo(TMD 4) Instead the last th-ree understand being rational asa matter of what makes a proposi-tion interpretable or playing a rolein a material inference For Bran-domacutes purpose -and mine- the in-ferential model not only explains

how reason works but provides atool to evaluate philosophical po-sitions and commitments

It is important to see that it isnot necessary that one commitshimself to Brandomacutes inferentia-lism from cover to cover Consi-dered in itself inferentialism isa view about what language isand how it works i e throughthe process of making inferencesrather than representations (as arepresentationalist would argue)However it is fundamental to seethe importance of making mate-rial inferences and what it meansconcerning philosophical commit-ments For the inferential modelldquoto be rational is to be a producerand consumer of reasons thingsthat can play the role of both pre-mises and conclusions of inferen-ces So long as one can assert andinfer one is rationalrdquo (TMD 6) Itmeans that to be rational meansto be able to articulate conceptualcontents in material rather thanlogical inferences like ldquoIf A is atthe right of B B is at the left ofArdquo4

If we accept such a core infe-rentialist view we can unders-tand how Brandom develops sucha view as a device for rational in-terpretation If rationality is inhe-rently inferential conceptual in-

4As Brandom says the inferential incorporates the logical and the interpretational models since logic does notdefine what rationality is but makes it possible for us to express our commitments and its structure

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terpretation can be seen not onlyas a matter of making more or lessexplicit what is hidden somehowin a concept or a set of conceptsjudgements and arguments butalso as a matter of drawing infe-rences from them In Brandomrsquoswords conceptual interpretationunder an inferential role is ldquotheability to distinguish what followsfrom a claim and what would beevidence for or against it whatone would be committing oneselfto by asserting it and what couldentitle one to such a commitmentrdquo(TMD 95)

Brandom presents then bothin Making it Explicit and in Ta-les of the Mighty Dead two majorways of doing that namely whathe calls de dicto and de re inferen-tial interpretations The distinc-tion traces back to Quine (1956)and his account on propositionalattitudes which is to some extentwhat we are dealing with Undersuch inferentialist point of viewconceptual or textual interpreta-tion is to be seen as ascription ofpropositional attitudes roughlyunderstood as an attitude some-one has towards a proposition5Its structure can be also roughlyunderstood like

S believes (hopesthinks) that

Q Ps

Exs

(a) Gabriel believes that Marioconsiders Brentano a greatphilosopher

(b) Gabriel thinks that Ernestoagrees with Mario about thecontent of the former exam-ple

Where the main parts are verbslike believe hopes thinks and whatliterature usually calls the ldquothatclauserdquo followed by a proposi-tion

In order to interpret conceptualcontent and ascriptions in thisway Brandom reminds us that wemust always appeal to a contextldquofor the inferential significance ofa claim ndashwhat follows from itndash de-pends on what other claims onecan treat as auxiliary hypothesesin extracting those consequencesrdquo(TMD 95) When it comes spe-cifically to such ascriptions rela-ted to making conceptual and in-ferential interpretations of philo-sophical texts which is the goalof Brandomrsquos book one of themain sources for such a set ofauxiliary or collateral hypothesesis provided by other claims thatthe author who is being analyzedacknowledges as expressing his

5See Quine 1956 and Russell 2010 Russell does not like using the term ldquoattituderdquo (p 60) because it points toa psychological trace but the expression ldquopropositional attituderdquo has been used notwithstanding it

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thoughts or simply as true Suchclaims can be extracted from hisother writings historical contextsletters disputes etc as long asthe (interpreter knows that the)author acknowledges them as sta-ting his own claims Hence insuch a way the textual interpre-tation of ascription is a sort of pa-raphrase (see TMD 96) that ta-kes its premises from the authorrsquosacknowledged or acknowledgea-ble universe of claims When itfollows such a way we have whatBrandom calls a de dicto specifi-cation of content or commitmentThus

De dicto =df an inferential con-ceptual interpretation or specifi-cation of a claim through appe-aling only to collateral premisesor auxiliary hypotheses that areco-acknowledged with that claim(TMD 97)

In other words de dicto ascrip-tions want to determine ldquowhatthe author would in fact havesaid in response to various questi-ons of clarification and extensionrdquo(TMD 99) The context is sup-plied by the author himself eitherdirectly (in the text itself or not)or indirectly (via historical con-text connections etc) For ins-tance if ldquoS believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180ordquo we can infer that

ldquoS co-acknowledge6 that the sum ofthe internal angles of every triangleequals two right anglesrdquo

For Brandom de dicto interpre-tation is a very important and de-manding mode of doing intellec-tual history (see TMD 99) In or-der to do so one has to have amastery over what a philosopherwrote said and read as well aswhat he to some extent lived

However the process of makingclearer and more explicit what aphilosophical text says bringingto the surface its hidden assump-tions or pretexts reveals only onephilosophical dimension of it Byinterpreting a text we want to un-derstand

( ) what speakersthink they are committingthemselves to by whatthey say what they insome sense intend to becommitting themselvesto what they would taketo be consequences of theclaims they made But be-sides the question of whatone takes to follow from aclaim one has made thereis the issue of what reallyfollows from it (TMD100)

6(TMD 97)

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Thus beyond the process of ma-king explicit some claims th-rough paraphrase substitutionsand conceptual interpretationsBrandom points out to a diffe-rent perspective or inferential ap-proach whose goal is now ma-king explicit what inferentially re-ally follows from a claim Suchemphasis in the ldquoreally followsrdquoclause is very important here forwhat it means in interpretationalterms It means above all thatinferences derived under suchperspective are independent ofthe authorrsquos acknowledgement orin other words it derives actualcommitments independently ofwhat the author actually ackno-wledges For instance if one be-lieves that the content of this bot-tle is water and that water quen-ches thirst one is committed tothe fact that H2O quenches thirstwhether one realizes or not thechemical formula of water Thatis what Brandom calls de re infe-rence But in order to make suchkind of inferences the interpre-ter also needs an auxiliary set ofclaims However in de re ascripti-ons such a set does not come from

what the analyzed author wouldldquoco-acknowledgerdquo as his own setbut comes from what the interpre-ter takes as being true Gettingback to the former example

(P1) S believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180o

(P2 De Dicto) S believes that thesum of the internal angles of everytriangle equals two right angles

(P3) S is committed to the truthof Euclidacutes proposition I 32(DeRe)

Hence De re =df an inferen-tial conceptual ascription of whatreally follows from the premi-ses even against a different back-ground or starting from a dif-ferent set of auxiliary hypothe-ses that is now supplied by whatthe interpreter rather than theauthor holds to be true Thus ldquoinde re readings by drawing conclu-sions from the text in the contextthe interpreter is actively media-ting between two sets of commit-ments Text-and-context on theone hand and interpreter on theother both have their distinctive

7Brandom points to D Lewis as a precursor of such way of thinking ldquoThis sort of stripping down and buildingback ndash a process whose moto is ldquoreculer pour mieux sauterrdquo ndash is a form of understanding When I was a graduatestudent my teacher David Lewis advocated a picture of philosophy like this The way to understand some regionof philosophical terrain is for each investigator to state a set of principles as clearly as she could and then rigo-rously to determine what follows from them what they rule out and how one might argue for or against them Themore disparate the starting points the better sense the crisscrossing derivational paths from them would give usof the topography of the landscape they were embedded in What is recommended is hermeneutic triangulationachieving a kind of understanding of or grip on an object (a conceptually articulated content) by having manyinferential and constructional routes to and through it The more paths one knows through the wood the better

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rolesrdquo (TMD 109)7 Therefore asBrandom sums it up in Making itexplicit

The ascriber of a doxas-tic commitment has gottwo different perspecti-ves available from whichto draw those auxiliaryhypotheses in specifyingthe content of the commit-ment being ascribed thatof the one to whom it is as-cribed and that of the oneascribing it Where thespecification of the con-tent depends only on au-xiliary premises that ac-cording to the ascriberthe target of the ascriptionacknowledges being com-mitted to it is put in dedicto position within thersquothatrsquo clause Where thespecification of the con-tent depends on auxiliarypremises that the ascriberendorses but the targetof the ascription may notit is put in de re position(MIE 506 Cf 507)

It is noteworthy that Brandom ad-vocates the importance and legi-timacy of De Re inferences as an

approach to the history of phi-losophy Besides the usual DeDicto perspective we should ack-nowledge the worth of De Re his-toriography since it aims at thesame kind of universe of infe-rences or ascriptions namely theauthorrsquos commitments The onlydifference is upon where the setof auxiliary claims comes from8In the end such type of histori-ography is precisely what Bran-dom did in part two of TMD withLeibniz Hegel Frege Heideggerand Sellars through the four fol-lowing steps (see TMD 112-114)

1 Selecting the texts

2 Further selection (aiming cen-tral claims which will be used)and supplementation

3 Deriving (from multipremiseinferences) claims

4 Assessing the adequacy ofsuch inferred claims

Well that is what I am going todo as a little exercise with a cou-ple excerpts by Kierkegaard in thenext section

one knows oneacutes way around in itrdquo (TMD 114-115)8ldquoAs was indicated by the discussion of de re readings there is no reason why the target claims need be restricted

to de dicto characterizations of what appears in the textrdquo (TMD 112)

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4 - Kierkegaard De Dicto and DeRe

For better or for worse the phi-losophical network of Kierkega-ardrsquos relations sometimes seemsto be completely done9 Whetherit be the range of philosophicaltopics or his relations to the phi-losophical context of 19th and 20th

century the interpretative litera-ture seems to have little space forimprovements However a cou-ple of works have pushed thoseboundaries in recent years brin-ging to the surface hidden the-mes or connections like Kierke-gaardrsquos reception of and depen-dence on Trendelenburgrsquos logischeFrage when it comes to his cri-ticism on Hegelrsquos logic for ins-tance10 Among the unexploredtopics Kierkegaardrsquos ontology isone of the most interesting If it istrue on the one hand that Kier-kegaardrsquos existential turn becamecommonplace in the literature onthe other hand its metaphysicalroots and unfoldings are still analmost untouched topic Just toshed some light on what I am tal-king about consider that one ofKierkegaardrsquos philosophical wor-ries is in a nutshell in his claim

that

( ) speculative thoughtrepeatedly wants to ar-rive at actuality and gi-ves assurances that whatis thought is the actualthat thinking is not onlyable to think but also toprovide actuality whichis just the opposite and atthe same time what it me-ans to exist is more andmore forgotten (CUP1319 SKS 7 291)

And yet when we read throughmost of his interpreters we findthat they focus exclusively on theethical or religious effects of hisquest for the meaning of existenceand rarely say a word about themetaphysical ground Moreoversuch a perspective also plays adominant role when it comes toevaluating his thematic relationsto later philosophy However ifwe agree with Brandom and withthe reasons I presented above onthe legitimacy of a De Re histori-ographicphilosophic approach Ithink we can push the boundariesa lit bit through Kierkegaardrsquos de

9I am fully aware of the bundle of aspects and problems one can face when ignoring Kierkegaardrsquos use ofpseudonyms and ascribe views and statements to Kierkegaard himself However what is at stake here are thephilosophical inferences one can derive from his work and rather than verify if such and such theses belong to hispersonal set of beliefs

10See FERREIRA 2013 2015 2017 For excellent examples of such ldquopushing the boundariesrdquo on other topicssee WEBB 2017 and THONHAUSER 2016

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re interpretation In order to illus-trate allow me to carry out a shortexperiment along these lines

One of the central problems inontology can be stated like thiswe surely know that there are dif-ferent kinds of existing things na-mely humans tables propertiesgeometrical relations numbersfictional characters and maybeeven God But does it mean thatthere are different ways of existingor being If it does are all of suchways of being on the same levelor are there degrees of being Isany of them primitive and othersderived On the other hand if dif-ferent kinds of existing things donot mean different ways of beinghow can we understand such adifference in a unified (or univo-cal) way

In contemporary analytic philo-sophy partially inspired by Fregeand Russell and fully by Quinethe dominant view is that thereare not different ways of beingwhich means that whatever beingmeans it has the same meaningfor all entities about which wecould they are Nevertheless his-tory has plenty of examples ofphilosophers who endorse the op-posite position We could men-tion Plato Aristotle AquinasMeinong Lotze Husserl Moore

Heidegger but also young Bren-tano young Russell and argua-bly Frege11 Nowadays we are ha-ving a revival of this dispute withsome new contenders on the sideof what has been called Ontologi-cal Pluralism (OP) (see MILLER2002 TURNER 2010 CAPLAN2011 BERTO 2013 GABRIEL2015 MCDANIEL 2009 2017)12

One of the strategies of Ontolo-gical Pluralists has been besidesthe straightforward argumenta-tion revisiting old philosopherslooking for their arguments forOP as well as their reasons forholding such a position In thissense it is noteworthy that someof them call themselves as ldquoNeo-Meinongniansrdquo If ldquoexistencerdquo isthe central theme of Kierkegaardrsquosthought does he have any side insuch a dispute Letrsquos briefly con-sider some propositions from Ki-erkegaardrsquos work

(P1) God does not exist (existe-rer ikke) he is eternal (CUP1 p332 SKS 7 303)

(P2) A human being exists (exis-terer) (CUP1 p 332 SKS 7 303)

(P3) Ideas have a thought-existence (Tanke realitet) which isneither humanrsquos existence (CUP1p 329 SKS 7 301)

(P4) nor a physical objectrsquos way

11See Turner (2010) and McDaniel (2017)12McDaniel (2017) just won the American Philosophical Associationrsquos 2018 Sanders Book Prize

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of being (CUP1 p 330-331 SKS7 301)

(P5 De dicto paraphrase) Thereare irreducible different modes ofbeing

(P6 ndash Interpreteracutes claim) Aphilosopher who assumes thereare irreducible different modesof being believes that ontologicalpluralism is true

(P7 De Re) Kierkegaard belie-ves that ontological pluralism istrue13

Concerning the propositionsabove some things are no-teworthy As indicated by the re-ferences P1 to P4 are extracteddirectly from quotations by Kier-kegaard and have their truth va-lue drawn from the philosopheracutesown statements P5 on the otherhand is never asserted like thatby Kierkegaard but follows direc-tly from the claims above with noneed of any other premise Whenit comes to P7 our De Re con-clusion things are slightly diffe-rent The interpreter in this caseis deeply interested in ontologi-cal questions and provides an au-xiliary claim (P6) which comesfrom a different context Howe-

ver Kierkegaardacutes claims (P1 toP4) and what de dicto follows fromthem (P5) can now be put against(P6) in order to see what followsWhen it comes to (P6) it is worthnoticing that there is a twofoldway on the one hand we couldproceed to examine if the authorKierkegaard in this case providesany arguments supporting it andon the other hand we could as-sume (P6) as true on the interpre-terrsquos basis Therefore in assumingthe second way namely that (P6)is true ndashand that is the interpre-teracutes responsibility as Brandomsaysndash it is also true that (P7) eventhough the author of (P1) to (P4)never heard about (P6)14

If we turn back to Kierkegaardrsquosmain concern ndash in order to verifythe adequacy of our conclusionndash namely ldquowhat does it mean toexistrdquo one can see that ontolo-gical pluralism is absolutely cen-tral to his philosophical endea-vor Reversely understanding Ki-erkegaardrsquos ontological commit-ments in terms of ontological plu-ralism helps us to understand hisown objectives in a better andclearer fashion The main pro-blem for which ontological plu-

13As McDaniel defines ldquoSo I offer up the following more general sufficient condition one believes in ways ofbeing if one believes that there is more than one relatively fundamental meaning for an existential quantifierrdquo(2017 37)

14It is important to have in mind that the burden of proof regarding the truth-value of auxiliary claims must notnecessarily be on the author since it can be the case he never explicitly formulated it The point is that since suchauxiliary claim is provided such and such consequences follow from it

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ralism is an answer can be statedas ldquoDo some objects enjoy morebeing or existence than other ob-jectsrdquo (see MCDANIEL 2017 1)The way Kierkegaard understandsthe mode of existence of humanbeings cannot be fully graspedunless we recognize two ontolo-gical features of reality Thus onone hand it is true that some en-tities can be said to be univocallyactual like God human beingsand a fly since actuality is notsubject to degrees (see PF 41- 42 SKS 4 246) But on the other handKierkegaard is ontologically com-mitted to degrees of being that areirreducible to any other namelythe eternal uncreated being (ofGod) the infinite created beingor subsistence (or what he callsldquoideasrdquomdashie logical and mathe-matical relations and properties)the intermediate existential being(of human beings) and finite being(of physical objects)

Now we have some very in-teresting roads before us Onepossible next step of our de reinferential exercise would be tokeep on this track and try to findout whether Kierkegaard has anyhints on the primitiveness of arestricted existential quantifier(over an unrestricted existentialquantifier) since contemporarydefenders of Ontological Plura-lism argue that the Quinean un-restricted existential quantifier is

not enough to deal with differentmodes of being because usingDavid Lewis-Platorsquos terminologythey do not ldquocarve nature at thejointsrdquo But another interestingpath would be to evaluate howKierkegaardrsquos ontological com-mitments are close to or distantfrom for instance Meinongrsquos Isthere for Kierkegaard any spaceand arguments for Auszligerseiendor is he another victim of ldquotheprejudice in favor of the actualrdquo(MEINONG 1999 sectsect2 11) Yetanother road would lead us to dere infer Kierkegaardrsquos positions oncentral quarrels of 19th centuryphilosophy that are despite thechronology inside his scope likeMaterialismusstreit and Psicologis-musstreit for instance The Da-nish philosopher we know wasa fierce critic of what we wouldcall ldquoreductionismrdquo or ldquoelimina-tivismrdquo concerning consciousnesstoday but he also dealt with thequestion of how an actual existentrelates to ideal entities for ins-tance It seems to me that we havepromising roads to tread

4 - Conclusion

Therefore as far as I can see Bran-domrsquos approach is interesting inthree ways

1 By getting back to philo-sophers from the past in order

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to infer De Re commitmentsBrandom does at the sametime (a) a rational recons-truction exposing how KantHegel Frege and Heideggerforesaw some aspects of hispragmatic semantics and infe-rentialism but also how suchpositions help us to unders-tand theirs Thus by connec-ting a contemporary view todead philosophersrsquo positionsvia inferential commitmentswe can leave aside Rortyrsquos andBeaneyrsquos worries about ana-chronism it is not a mat-ter of suspiciously and doubt-fully ascribing contemporaryviews to a philosopher fromthe past but rather makingexplicit what is so to speakalready there As Brandom re-minds us de dicto and de reascriptions are not two diffe-rent realms of truths or com-mitments but ldquospecify thesingle conceptual content ofa single belief in two diffe-rent ways from two differentperspectives in two different

contexts of auxiliary commit-mentsrdquo (TMD 102)15

2 Therefore de re textual in-terpretations of philosophersfrom the past are as legiti-mate as de dicto ones Inother words specifying dere inferences should be seenas a logically justified sourcefor doing history of philo-sophy and conversely helpsus to deal with Garberrsquos-style-problems If like Beaney re-minds us a rational recons-truction is better the moreit is historically informed inthe case of de re inferences itis evident that putting suchinferences against a histori-cal background is essential atleast to evaluate if on theone hand a logically justi-fied position is not on theother hand contextually con-tradictory However since inthis inferential game we arenot trying to exclusively un-derstand a philosopherrsquos the-sis but rather to expose whatfollows (logically) from his

15The controversy about anachronism is long and it would demand another paper However there are goodworks reassessing and even defending its importance for doing history of philosophy See LAEligRKE SMITH SCH-LIESSER (2013) and LENZ ( ) who makes a very interesting point ldquoOf course Descartes did not read Wittgens-tein But does that also mean that reading Wittgenstein can tell us nothing about Descartes Let me consider twoobjections to the historianrsquos answer Firstly this answer ignores the fact that philosophers and other authors oftenwrite for future generations Descartes Spinoza but also Kant Nietzsche and others were clearly writing decidedlyfor future audiences To explain their texts only by reference to their time impoverishes the philosophical potentialIn fact this point generalizes any research project is future directed We would not begin to do research had wenot the hope that it might lead to more knowledge in the future If we study the development of ideas itrsquos crucialto look at their potential futures and this could very well involve Wittgensteinrsquos reaction to the Cartesian conceptof mindrdquo (p 4)

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positions it seems at leasteasier to have a clue abouthow to answer Garberrsquos ldquoin-convenientrdquo ldquowhy stop hererdquoquestion namely because thecontextual-fact x cannot be dere connected to the ascriptionA16

3 TMD connects a ldquomotleygrouprdquo of philosophers (Spi-noza Leibniz Hegel FregeHeidegger and Sellars) (TMD16) However one of theexplicit goals of the book isto make such a connectionldquoseem less so after we workthrough this material than

they would beforerdquo (TMD16) Hence more specificallyabout Kierkegaard and thebroader scenario of 19th20th

century philosophy such away can also make an ap-proximation of Kierkega-ard Lotze and Meinong lessweird as well as for ins-tance Kierkegaard and Hei-degger ndashthrough the ontolo-gical commitment to ways ofbeingndash less obvious and lessclicheacute As one can see a desi-rable outcome such reassess-ments provide us tools and ar-guments for rethink the veryphilosophical canon

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16Since the approximation between Garberrsquos example and Brandomrsquos model of rational reconstruction is beingmade by me Brandom does not offer as far as I know such a kind of answer However it makes sense to thinkthat a good reason to stop is the awareness of the distance of a contextual or historical remark H from the de reascription A Letrsquos consider the Geometry example given above Let it be the subject S as having the belief expres-sed in the proposition (P1) We could infer (P3) de re However a possible historical fact H1 that S firmly believedthat Euclid was totally wrong (as expressed in one of S letters to Z for instance) is a very relevant historical fact toevaluate S positions in this case S was either wrong about his belief on Euclid or wrong about square trianglesThe same for the historical fact H2 namely that S never really read Euclidrsquos Elements and knew it only by secondhand readings what we can know reading his autobiography But when it comes to the historical fact H3 namelywhat are the mathematical textbooks S had in his personal library we can say that it is not so relevant since eventhough we come to know one of those books had a really good exposition of proposition 32 In this case H3 is notrelevant for the inference of (P3) from (P1) like H1 is but at most for our knowledge that S maybe never had readthat book

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225478

Introduccioacuten Histoacuterica al Psychologismusstreit[A Historical Introduction to Psychologismusstreit]

Mario Ariel Gonzaacutelez Porta

Resumen Es una conviccioacuten usual que el Psychologismusstreit fue unaunidad indivisa que tiene como epicentro los ldquoProlegoacutemenosrdquo husser-lianos y se concentra en la loacutegica Esta conviccioacuten es falsa El Psycho-logismusstreit fue un proceso en el cual se pueden y deben diferenciaretapas tendencias y nuacutecleos temaacuteticosPalabras claves psicologismo poleacutemica en torno al psicologismo meacute-todo psicoloacutegico neokantianismo platonismo

Abstract It is commonly believed that the Psychologismusstreit was anindivisible unit that had as its epicenter the husserlian ldquoProlegome-nardquo and focuses on logic This is a false belief The Psychologismusstreitwas a process through which stages tendencies and central themescan and must be differentiatedKeywords Psychologism polemic surrounding psychologism neo-kantianism platonism

1 - Introduccioacuten

El Psychologismusstreit (PS) no esun proceso linear y unidimensio-nal sino que se caracteriza porposeer diferentes oriacutegenes moti-vaciones vertientes y etapas1 Esesta caracteriacutestica peculiar del PSque deseamos estudiar en detalleen el presente trabajo Mas si de

lo que se trata primariamente esde distinguir aspectos que son de-cisivos para constituir el horizontedel PS esto no acontece sin em-bargo para mantenerlos separa-dos sino para interrelacionarlos ymostrar la complejidad de sus ne-xos Lo que nos proponemos es al-go asiacute como una separacioacuten quiacute-mica de substancias para de es-

Professor titular da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) E-mail marioporpucspbrORCID httpsorcidorg0000-0001-8220-1540

1Manifestacioacuten de lo anterior es que es un rasgo distintivo de esta poleacutemica el no plantearse entre dos parti-dos previamente establecidos y claramente diferenciados sino consistir en buena medida en el trazado de la liacuteneadivisoria entre ambos de tal manera que lo que se entiende por psicologismo va variando a traveacutes del tiempo y au-tores considerados anti-psicologistas en un momento pasan a ser considerados psicologistas en otro o autores quepueden ser considerados anti-psicologistas en una perspectiva deben ser considerados psicologistas en otras Porejemplo Stuart Mill es psicologista en loacutegica pero no en semaacutentica Fries es psicologista en epistemologiacutea pero noen loacutegica Herbart por otra parte es antipsicologista con respecto a Beneke y Sigwart con respecto a Lipss pues con-sideran la loacutegica como ciencia normativa diferente de la psicologia Ambos sin embargo son psicologistas desde elpunto de vista de Frege pues aceptan el principio de inmanencia (PI) Entendereacute por PI la tesis cartesiano-lockeanade que el uacutenico objeto directo e inmediato de mi conocimiento son mis propias representaciones (Vorstellungen) oideas (ideas)

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ta forma entender mejor la inter-accioacuten entre las mismas y obteneruna comprensioacuten maacutes diferencia-da del compuesto

2 - Consideraciones previas

Aun cuando todo lo que habremosde decir colaboraraacute a fijar el pro-pio concepto de psicologismo estees un presupuesto de nuestro tra-bajo y por tanto es exigible queya en el comienzo establezcamosal menos una primera aproxima-cioacuten al mismo Conviene distin-guir entre concepto o definicioacuteny tesis Entenderemos por ldquopsi-cologismordquo la reduccioacuten de leyesyo entidades de cualquier tipoa leyes yo entidades psicoloacutegicas(definicioacuten) Por tanto el psicolo-gismo es un tipo peculiar de re-duccionismo A partir de Husserlse sobreentiende que tal reduccio-nismo conduce al relativismo (te-sis)

ldquoPsicologismordquo y ldquoPSrdquo son dosconceptos categorialmente dife-rentes el primero se refiere auna teoriacutea filosoacutefica el segundo aun proceso histoacuterico efectivo Paraque haya un PS es ciertamente unacondicioacuten necesaria que haya psi-cologismo pero la afirmacioacuten in-versa es obviamente falsa o seaque puede haber psicologismo sin

que haya PS Si por psicologismose entiende una teoriacutea reduccio-nista del tipo que hemos defini-do entonces no hay ninguna ra-zoacuten para limitar la aplicacioacuten deeste concepto al s XIX Posturastendencias o deslices psicologistasse dejan constatar desde los pri-mordios de la filosofiacutea en GreciaEl PS sin embargo es un procesoque se concentra entre los comien-zos de los siglos XIX y XX quetiene su auge entre los antildeos 1880y 1920 y que posee como epicen-tro el aacutembito linguumliacutestico germaacuteni-co aun cuando no se limita a eacutelextendieacutendose a Inglaterra Fran-cia e Italia Este proceso es absolu-tamente sui generis y no tiene nin-guacuten paralelo en la historia de la fi-losofiacutea anterior o posterior

Existen dos perspectivas baacutesi-cas posibles de abordaje del PSa saber la temaacutetico-sistemaacutetica yla histoacuterica2 El trabajo que siguese va a concentrar en la segun-da colocando principalmente elacento en cuestiones referentes alorden cronoloacutegico e interrelacio-nes factuales efectivas Sin embar-go es justamente sobre la base deeste estudio primariamente his-toacuterico que cuestiones temaacutetico-sistemaacuteticas recibiraacuten una impor-tante clarificacioacuten

Del punto de vista histoacuterico

2Debido a la distincioacuten categorial que hemos subrayado conviene no confundir el estudio puramente sistemaacuteticodel psicologismo con la perspectiva temaacutetico ndash sistemaacutetica en el estudio del PS

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

se debe establecer una distincioacutenfundamental entre los oriacutegenes yantecedentes del PS en el procesoque va del siglo XVII al XVIII yel desarrollo de la poleacutemica pro-piamente dicha en el siglo XIX ycomienzos del XX Con el primerpunto nos ocupamos en el capiacutetu-lo 3 con el segundo en el 4

3 - Oriacutegenes y antecedentes delPS

En los oriacutegenes del PS hay dosnombres se destacan a saber Des-cartes y Kant Si todos los cami-nos conducen a Roma y en el casodel PS conducen a Husserl todosellos asiacute mismo parten de Descar-tes y pasan por Kant aun cuandono obstante no parten y no pasande la misma forma

El PS hunde sus raiacuteces en lavirada moderna a la subjetividadcon Descartes y en la ulteriorlectura empirista de esta viradasiendo posible distinguir en ellacinco elementos que de una for-ma u otra juegan un rol decisi-vo el establecimiento del PI laapertura del way of ideas la loacutegi-ca de Port Royal el inicio de laoposicioacuten entre concepcioacuten intui-cionista y logicista de racionali-dad y la central contraposicioacuten deexperiencia interna y extern Es-tos cinco elementos experimentanun desarrollo ulterior a traveacutes deKant en quien adquieren la forma

especiacutefica de fenomenismo dis-tincioacuten loacutegica-epistemoloacutegica quidfacti ndash quid iuris intuicionismomatemaacutetico y colocacioacuten de las ba-ses del proceso de la constitucioacutende la psicologiacutea como ciencia au-toacutenoma Debido a este paralelis-mo efectuamos en nuestra exposi-cioacuten un corte temaacutetico transversaly partiendo en todos los casos deDescartes llegamos en todos loscasos a Kant

31 - PI ndash Inmanentismo - feno-menismo

La virada moderna a la subjeti-vidad estaacute iacutentimamente vincula-da al establecimiento del PI co-mo punto de partida o presupues-to de toda filosofiacutea En realidad eacuteles una de sus derivaciones o im-plicaciones maacutes fundamentales ypese a todas las diferencias entreempirismo y racionalismo comuacutena ambos Una consecuencia de laaceptacioacuten de este principio o talvez simplemente su contracara esun cierto tinte idealista que se ha-ce presente tanto en la variante ra-cionalista cuanto en la empirista

Si el PI es un elemento caracte-riacutestico del pensamiento modernocomo tal el convive desde Reid yla tradicioacuten escocesa con una ten-dencia minoritaria que mantienevivo el realismo directo y se oponea todo representacionalismo Estatendencia estaacute presente en el siglo

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XIX viacutea Hamilton en Stuart MillQue el PI se establezca como

principio dominante con la edadmoderna y permanezca en tal fun-cioacuten hasta fines del siglo XIX noimplica que estemos en presen-cia de una mera prolongacioacuten Enrealidad el PI adquiere en la fi-losofiacutea alemana del siglo XIX al-gunos acentos especiacuteficos que sondecisivos para luego entender supapel en el marco del PS Al me-nos cuatro inflexiones merecen sersubrayadas Con Kant el PI se ra-dicaliza en el sentido de un fe-nomenismo que se extiende delmundo externo al interno culmi-nando en la tesis de que el suje-to soacutelo se conoce a siacute mismo comofenoacutemeno y no como cosa en siacuteCon posterioridad a Kant Rein-hold situacutea expliacutecitamente el PIcomo fundamental en el horizon-te de la filosofiacutea alemana al hacerdel mismo la base uacuteltima de la fi-losofiacutea transcendental correspon-diendo a Schopenhauer con sudualidad del mundo como repre-sentacioacuten y como voluntad popu-larizarlo y a Muumlller con su teoriacuteade la energiacutea especifica de los oacuter-ganos sensoriales dar pie a que selo interprete fisioloacutegicamente y selo considera como cientiacuteficamentefundado

32 - Del way of ideas al ldquomeacutetodopsicoloacutegicordquo (MP)

321 - De la isla al continente

Con Locke se inicia no meramen-te al empirismo como una posi-cioacuten teoacuterico-epistemoloacutegica sinocomo una alternativa metoacutedicaal racionalismo La oposicioacuten ra-cionalismo ndash empirismo es vis-ta en Alemania no primariamen-te como una oposicioacuten epistemo-loacutegica sino metoacutedica siendo elpropio Kant pre-criacutetico un ejem-plo paradigmaacutetico de este movi-miento La contraposicioacuten meacutetodomatemaacutetico- meacutetodo empiacuterico omeacutetodo sinteacutetico ndash meacutetodo ana-liacutetico se constituye en una liacuteneadivisoria fundamental en la filo-sofiacutea alemana del siglo XVIII Se-raacute justamente Kant sin embargoquien llevando la discusioacuten delplano primariamente metoacutedico alpropiamente epistemoloacutegico es-tableceraacute claramente a traveacutes dela distincioacuten quid iuris - quid factila cuestioacuten ldquotranscendentalrdquo es-to es daraacute un paso decisivo pa-ra liberar el problema de la ob-jetividad de toda interpretacioacutenpsicoloacutegico-geneacutetico (KANT AkIII 99s)

322 - El MP en Alemania I elsurgimiento

No obstante lo anterior el esta-

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

blecimiento de la idea de una re-flexioacuten transcendental no pondraacuteun punto final a la cuestioacuten enAlemania Si no puede caber dudaqueacute el MP tiene sus oriacutegenes en lalectura empirista de la virada car-tesiana a la subjetividad tampocopuede ser dudado que eacutel adquiereun perfil especifico en la filosofiacuteaalemana del siglo XIX

Con Reinhold se inicia un movi-miento revisionista del kantismoque transforma la filosofiacutea criacuteti-ca en un racionalismo aprioriacutesti-co en el cual el criticismo devie-ne saber especulativo Como reac-cioacuten a este desenvolvimiento sur-ge con Fries otra tendencia que in-tenta rescatar el elemento criacuteticofrente al especulativo el empiris-ta frente al apriorismo radical laautonomiacutea de la ciencia y su ca-raacutecter de Faktum frente a la pre-tensioacuten de una filosofiacutea como sa-ber absoluto y en definitiva el da-to y la correlativa reflexioacuten frentea toda construccioacuten

La tendencia empirista de Friestiene su fundamento en la consi-deracioacuten de la triunfante Natur-wissenschaft y por tal razoacuten con-vive con una aceptacioacuten del ele-mento a priori (SM p 183) La ta-rea baacutesica de la filosofiacutea criacutetica esdar cuenta del mismo Mas au-teacutenticos principios no pueden enmodo alguno ser probados sinotan solo constatados Esta cons-tatacioacuten por su vez no puede

ser sino empiacuterica En consecuen-cia el meacutetodo de la filosofiacutea comocriacutetica del a priori no puede serni transcendental ni especulativosino ldquopsicoloacutegicordquo (RFS p 200ssNKV I p 28ss)

El MP friseano no consiste enuna simple constatacioacuten de esta-dos internos tendiente a estable-cer sus regularidades legales en eltiempo sino que posee un aborda-je estructural del psiquismo queofrece cierta similitud con la in-tuicioacuten eideacutetica husserliana Eacutel noprocede asimismo por induccioacuten(SM p 183 PS p 347) sinopor ldquoabstraccioacutenrdquo efectuando unldquoanaacutelisisrdquo del conocimiento dadoque explicita y pone en evidenciasus presupuestos (NKV sect 78 I p38s sect 97 p 314s SM sect22 p 99)Por reflexioacuten a partir de una leyparticular por ejemplo se ldquoabs-traerdquo el principio de causalidad

En el argumento que conducea la fundamentacioacuten de la filoso-fiacutea en la psicologiacutea juega un papelcentral la presuposicioacuten del PISobre este base Fries asume quesi todo conocimiento es una acti-vidad del espiacuteritu el estudio delconocimiento es un estudio de laexperiencia interna (SM p 104s)Mas iquestqueacute se debe entender aquiacutepor ldquoconocimientordquo iquestNo seriacutea po-sible y necesario distinguir entreel conocer como proceso psicoloacute-gico real (Erkennen) y el conoci-miento como su contenido loacutegico-

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objetivo (Erkenntnis) Hay pues enFries una ambiguumledad en el pun-to de partida que condiciona ulte-riormente una ambiguumledad en elproceso regresivo desarrollado apartir del mismo de modo tal quela consideracioacuten puramente fun-cional de elementos loacutegicos del co-nocimiento se hipostasia en unateoriacutea de las facultades (Vermouml-gen) La criacutetica del MP y la evolu-cioacuten posterior del mismo se efec-tuaraacute en la direccioacuten de estas dis-tinciones

Si tomamos como referencia aFries podemos establecer el papelde Beneke en la evolucioacuten del MPapuntando sus diferencias con eacutes-te

a Para Fries el MP es el meacuteto-do de la puesta al descubier-to del a priori para Benekepropiamente de su disolucioacutenBeneke es un empirista radi-cal que en uacuteltima instanciaintenta derivar lo a priori de laexperiencia En la base de estadiferencia se encuentra otramucho maacutes fundamental re-ferente la propia concepcioacutendel a priori en tanto Bene-ke tiende a identificar a priorie innato Fries lo combate deforma expliacutecita en este pun-to negando tal identificacioacuteny subrayando el caraacutecter pro-piamente loacutegico de la prece-dencia (GPh II p 514)

b Vinculado a lo anterior mien-tras que Beneke tiene una con-cepcioacuten esencialmente geneacuteti-ca de psicologiacutea consistien-do su programa en uacuteltimainstancia en derivar todo dela sensacioacuten Fries resiste ex-pliacutecitamente a tal tendencia(FRIES NKV I p 36-37 Be-neke LPsNW p 14ss)

c Del empirismo de Beneke ysu perspectiva geneacutetica se si-gue un reduccionismo radicalLa psicologiacutea no es en Bene-ke simplemente la base de lafilosofiacutea en el sentido de sucomienzo metoacutedico sino queella es la filosofiacutea (KPhAG p89 SL I p 35-42)

d Si desde Fries era esencial alMP su caraacutecter introspecti-vo lo que era en este obje-to de mencioacuten ocasional sevuelve tema central en Bene-ke (VPsPh p 116-130 SMp 201 SL II p 302) En es-ta radicalizacioacuten influye deci-sivamente la situacioacuten exter-na Beneke ya tiene frente a siacuteel raacutepido desenvolvimiento dela fisiologiacutea e incluso los pri-mordios de su consecuenciafundamental a saber el Mate-rialismusstreit Dado que pre-tende ser espiritualista Bene-ke resiste tenazmente a la di-solucioacuten de la psicologiacutea en fi-siologiacutea Esta resistencia daraacute

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

lugar a la idea de una ldquopsi-cologiacutea purardquo esto es librede elementos fisioloacutegicos y ba-sada exclusiva y consecuente-mente en la percepcioacuten inter-na

e Beneke distingue claramenteentre Naturwissenschaft y psi-cologiacutea en lo que dice respectoa su objeto y modo de accesoconcentraacutendose para ello enla oposicioacuten experiencia ex-terna ndash experiencia internano obstante inequiacutevocamen-te orienta el proceder empiacuteri-co de la psicologiacutea a la Natur-wissenschaft La psicologiacutea co-mo la Naturwissenschaft aspi-ra al establecimiento de leyesy se sirve para ello de un pro-cedimiento ldquoinductivordquo Es-ta induccioacuten parece por mo-mentos poseer una cierta es-pecificidad aun cuando nun-ca queda totalmente claro enqueacute consiste positivamente eacutes-ta (LPsNW p 20)

323 - El MP en Alemania II Ladiversificacioacuten

De Fries se derivaraacute una escuelaque aun cuando con una signifi-cativa interrupcioacuten se mantienehasta las primeras deacutecadas del si-glo XX y que en su primera fa-se tiene como nombre de refe-rencia a Apelt en su segunda a

Nelson Esta escuela haraacute pocasy muy puntuales contribucionesa la doctrina original motivadaspor regla general por las diferen-cias de contexto cientiacutefico y filo-soacutefico Beneke por su parte auncuando no forma una escuela ensentido estricto encuentra eco enalgunas figuras significativas dela generacioacuten siguiente (UumlberwegFortlage) y ejerce una importanteaun cuando difusa influencia

Una novedad realmente signifi-cativa aparece en las deacutecadas del60 y del 70 cuando desde fuerade la tradicioacuten generada por Friesy Beneke se comienza a delinearel fenoacutemeno de una diversifica-cioacuten de tendencias dentro del MPfenoacutemeno que se prolonga en losantildeos 80 El primer motivo para es-ta diversificacioacuten seraacute proporcio-nado por el positivismo el cualincentiva el surgimiento de dosvariantes ldquoexternalistasrdquo del MP

a Si con Beneke comienza aexistir una tensioacuten entre elMP y la fisiologiacutea esta ten-sioacuten daraacute lugar a un desarro-llo particularmente importan-te con Helmholtz quien man-tiene los principios de la inter-pretacioacuten psicoloacutegica de Kantpor un lado pero por otropolemiza con el abordaje in-trospectivo abriendo el MP auna integracioacuten de los resulta-dos de la fisiologiacutea sin por ello

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incurrir en un reduccionismofisiologista (UumlSM p 34-3685 118 189) La aceptacioacutende procesos psiacutequicos incons-cientes seraacute elemento esencialpara el mantenimiento de esecompromiso

b La segunda tendencia que de-be ser aquiacute mencionada es laVoumllkerpsychologie de Lazaruse Steintahl quienes siguien-do la misma inspiracioacuten exter-nalista de Helmholtz se pro-ponen extender el herbartia-nismo al estudio de los fenoacute-menos de la cultura (EGV p1ss)

El surgimiento de tendencias ex-ternalistas en el MP no va a signi-ficar el desaparecimiento total desus variantes internalistas sinomuy por el contrario seraacute acom-pantildeada por una renovacioacuten de lasmismas Para ello juega un pa-pel decisivo la criacutetica del modelocientiacutefico natural Si el MP comen-zoacute con la intencioacuten de una psico-logiacutea empiacuterica primero modela-da en su idea de experiencia enla ciencia natural su desarrollotermina conduciendo a una revi-sioacuten del concepto de experienciay a la negacioacuten de la identifica-cioacuten de meacutetodo cientiacutefico y meacute-todo de la Naturwissenschaft Estarevisioacuten ya se anunciaba tiacutemida-mente en Fries pero sin fructificar

en la propuesta de una alternativadefinida Esta situacioacuten muda demodo radical con Dilthey (IBZP) yBrentano (DP) quienes defiendenla idea de que un procedimien-to auteacutenticamente empiacuterico debeser adecuado a su objeto y con-secuentemente exigen de la psi-cologiacutea un proceder descriptivo yestructural claramente delimita-do frente a perspectivas geneacuteticasy explicativo-causales

Como vimos el MP surgioacute vin-culado a una interpretacioacuten deKant y se mantiene de una for-ma u otra ligado al kantianismohasta la deacutecada del 70 cuando laaparicioacuten del neokantianismo seraacutedecisiva para disputarle al mismosu interpretacioacuten de Kant propo-niendo una interpretacioacuten alter-nativa A partir de ahora ser kan-tiano y ser defensor del MP ya noson mas sinoacutenimos

Pero el neokantianismo no me-ramente contribuye a desligar elMP de la interpretacioacuten de Kantsino de toda forma de idealismoconsolidando asiacute indirectamen-te una tendencia que ya se veniaanunciando desde Beneke peroque va a culminar en la escuelade Brentano Beneke es una figu-ra decisiva no solo para entenderel MP sino para entender el PS yesto porque al mismo tiempo eacuteles la forma maacutes radical de psico-logismo por un lado y por otroabre el camino para conciliar MP

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

y realismo Como todos los defen-sores del MP Beneke presupone lavalidad irrestricta del PI efectuacuteasin embargo una importante pre-cisioacuten pues si bien mantiene el fe-nomenismo kantiano con respec-to al mundo externo afirma queen el auto-conocimiento el suje-to accede a una realidad en siacute Suargumento baacutesico que anticipa eldel archienemigo del psicologis-mo Frege reza no todo puede serVorstellung (SM p 69 NGM p 9)Lo anterior implica replantear laperspectiva eminentemente epis-temoloacutegica esencial al MP en suorigen friseana abriendo la posi-bilidad de una variante ontoloacutegicadel mismo El MP ya no es me-ramente un camino para una re-fundamentacioacuten de la teoriacutea delconocimiento sino tambieacuten de lametafiacutesica como saber del en-siacute

324 - PS y MP

Debemos distinguir entre Psicolo-gismo y MP entendiendo por elprimero como ya hemos hechouna tesis filosoacutefica por el segun-do por el contrario una posturapuramente metoacutedica en principioneutra con respecto a cualquiertesis o teoriacutea filosoacutefica especiacuteficaLa distincioacuten entre psicologismo yMP permite colocar expliacutecitamen-te una cuestioacuten discutida intensa-mente en el siglo XIX referente a

si el MP conduciacutea necesariamenteo no al psicologismo Un aspectobien definido pero poco estudiadodel Psychologismusstreit giroacute no entorno a una discusioacuten entre psico-logistas y anti-psicologistas sinoentre anti-psicologistas y defenso-res del MP

En tanto que los auto-proclamados anti-psicologistastendieron a suponer sin maacutes laidentidad de psicologismo y MPalgunas variantes del MP re-sistieron tal identificacioacuten y seconsideraron a siacute mismas anti-psicologistas como es el caso dela tendencia realista-metafiacutesicaplasmada en la escuela de Bren-tano Mas si las variantes rea-listas del MP tendieron al anti-psicologismo las variantes idea-listas tendieron al psicologismoEsta diferencia se va a profundi-zar con el surgimiento de la logis-che Frage

33 - La evolucioacuten de la loacutegica dePort Royal a la logische Frage

Sabidamente la filosofiacutea modernase inicia con la criacutetica del meacuteto-do escolaacutestico y el proceder silo-giacutestico y la correlativa exigenciade una reorientacioacuten metodoloacutegi-ca de la ciencia Por tal razoacuten auncuando de su pluma nunca sur-gioacute un texto que tratase de loacutegi-ca ni una contribucioacuten significa-tiva en este campo Descartes es

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una figura decisiva en la historiade esta disciplina por interrumpirel desenvolvimiento continuo quese veniacutea efectuando a partir de laloacutegica aristoteacutelica y establecer lasbases de un nuevo rumbo

Un producto fundamental deeste movimiento para el desarro-llo posterior fue la loacutegica de PortRoyal3 la cual presenta tres ele-mentos que merecen especial des-taque en el actual contexto a sa-ber la idea de que la loacutegica esesencialmente una teacutecnica que sepropone orientar procesos menta-les y que por tanto tiene estos co-mo objeto idea esta que se concre-tiza en dos formas caracteriacutesticaspor un lado en una cierta con-cepcioacuten semaacutentica de lo que seala significacioacuten de teacuterminos y porotro en la identificacioacuten de leyesloacutegicas y leyes del pensamiento

La tradicioacuten iniciada por la loacute-gica de Port Royal termina por serpredominante en el siglo XVIIIdesplazando la aristoteacutelica Ellasin embargo va a tener su deci-siva interrupcioacuten en Kant quiensiguiendo el camino iniciado porLeibniz critica expresamente latendencia moderna en la loacutegicaconsiderando en una famosa pa-saje que sus contribuciones y en-riquecimientos simplemente des-

conocen el verdadero objeto de ladisciplina de forma tal que maacutesla desfiguran que la enriquecen ysobre esa base vuelve a la idea deuna loacutegica general (Ak III p 8)

De la virada kantiana se nutredirectamente el resurgimiento dela loacutegica formal promovido porHerbart en el comienzo del sigloXIX el cual sin embargo pron-tamente tiene que enfrente ar unnuevo enemigo la loacutegica metafiacutesi-ca hegeliana

Logische Frage en sentido estric-to denomina la poleacutemica desatadapor Trendelenburg contra Herbarty Hegel esto es tanto contra ladeterminacioacuten de la loacutegica comodisciplina formal como contra suinterpretacioacuten metafiacutesica en basea la tesis de la identidad de ser ypensar Ahora bien la discusioacutende Trendelenburg con Herbart yHegel es el horizonte de referenciade todo lo que se escribe en la loacute-gica alemana de los antildeos posterio-res y en particular en las deacutecadasdel 80 y 90 Las loacutegicas de este pe-riacuteodo parten de un similar statusquestionis procurando distanciar-se simultaacuteneamente del formalis-mo herbartiano y del metafisicisi-mo hegeliano (Sigwart ErdmannWundt y Lipps) Es como reaccioacutena la identificacioacuten hegeliana de loacute-

3Vamos a contar una historia abreviada y en buena medida esquemaacutetica siendo que muchas de nuestras afirma-ciones no soportariacutean un anaacutelisis histoacuterico maacutes rigoroso Si la loacutegica de Port Royal inicia una tradicioacuten no siempreesta tradicioacuten se nutre directamente de ella Un papel fundamental juega en Alemania la loacutegica hamburguesa deJungius que es el modelo directo de muchos manuales de loacutegica del siglo XVIII (BOSCHENSKI 1976 p 270)

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gica y metafiacutesica que se desata enAlemania una marcada tendenciainmanentista que potenciando elrol central del PI mucho maacutes allaacutedel seguimiento o no del progra-ma especiacutefico del MP lleva a unarestriccioacuten de la loacutegica al aacutembitodel pensar (Denken) y que si en unprimero momento con Lotze selimita a negar el caraacutecter objetivo-real de categoriacuteas loacutegicas funda-mentales afirmado por Hegel (co-mo concepto o silogismo) termi-na motivando la insistencia en elcaraacutecter de las leyes loacutegicas comoldquoleyes del pensamientordquo (Denkge-setze) Es este acento en la limi-tacioacuten de la loacutegica al Denken loque provocaraacute no solo una ciertatendencia laxa al idealismo querevierte en buena medida el movi-miento iniciado por Beneke sinoal relativismo

Psicologismusstreit y logischeFrage no pueden ser identificadosmas estaacuten en estrechiacutesima rela-cioacuten pues justamente las deriva-ciones de la logische Frage jugaronun papel esencial para incentivaruna nueva oleada de psicologis-mo El psicologismo de los loacutegicosen los 80rsquo y 90rsquo con su relativismoantropoloacutegico caracteriacutestico no esprimariamente el resultado de latradicioacuten de Port Royal o del desa-rrollo del MP sino del cruzamien-

to de este uacuteltimo desenvolvimien-to primariamente en sus varian-tes idealistas con aquel desenca-denado por la logische Frage

34 - Intuicioacuten

Con Leibniz se inicia en el racio-nalismo un proceso de diversifi-cacioacuten en dos corrientes con dosconcepciones eminentemente di-ferentes de racionalidad que po-driacuteamos llamar de ldquointuicionistardquoy ldquologicistardquo4 o de una concep-cioacuten en la cual racionalidad estaacuteiacutentimamente vinculada a la ideade evidencia y otra en que la ra-cionalidad estaacute vinculada a prin-cipios objetivos (identidad y no-contradiccioacuten) Estas dos concep-ciones de racionalidad se proyec-tan en dos modos de concebir lainferencia como remitiendo en uncaso a una sucesioacuten de intuicionesdiscontinuas en el otro a la ideade algoritmo

La oposicioacuten entre una concep-cioacuten intuicionista o logicista deracionalidad estaacute estrechamentevinculada a una diferente concep-cioacuten de la relacioacuten entre racionali-dad y subjetividad En la concep-cioacuten intuicionista el sujeto epis-temoloacutegico a traveacutes de la idea deevidencia es indisociable de la ra-cionalidad en tanto en la otra se-

4Nos servimos de una oposicioacuten terminoloacutegica ya consagrada en el aacutembito de la filosofiacutea de las matemaacuteticas yle damos un sentido maacutes general

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parable tendieacutendose de una for-ma u otra a variantes de platonis-mo

Con Kant esta oposicioacuten entredos concepciones de racionalidadpasa a replantearse sobre la for-ma de una oposicioacuten entre pensa-miento y sensibilidad Si Kant cla-ramente toma partido por la con-cepcioacuten leibniziana de racionali-dad identificada con la analitici-dad la idea de intuicioacuten no pierdesu importancia sino que se trasla-da del plano intelectual al sensi-ble

Las diferentes concepciones deintuicioacuten y de la relacioacuten de intui-cioacuten y racionalidad en DescartesLeibniz y Kant estaacuten iacutentimamentevinculadas a diferentes concepcio-nes de matemaacutetica Estas diferen-cias desenvuelven todo su poten-cial en el s XIX con la artimetiza-cioacuten del caacutelculo y posteriormen-te con el surgimiento de las geo-metriacuteas no-euclideanas y sus deri-vaciones Si en Newton la funda-mentacioacuten uacuteltima del caacutelculo re-mitiacutea a la intuicioacuten temporal yKant dada su admiracioacuten incon-dicional por Newton aceptaba talidea sin cuestionamiento en el si-glo XIX se procesa un movimientode logizacioacuten de las matemaacuteticasque volviendo a Leibniz terminaeliminando cualquier idea de in-tuicioacuten de su fundamentacioacuten

La tendencia logicista que enuacuteltima instancia sobre diferentes

formas se inclina a la postulacioacutende objetos abstractos va a ser unfuerte factor para el surgimientode un platonismo con contornospeculiares en el siglo XIX El pla-tonismo del siglo XIX en la loacutegi-ca estaacute indisociablemente vincula-do al logicismo en las matemaacuteti-cas desde Bolzano a Frege y Hus-serl Junto con la eliminacioacuten dela intuicioacuten el logicismo eliminala necesidad de una consideracioacutenesencial de la subjetividad en lafundamentacioacuten de las matemaacuteti-cas y tiende a asumir una direc-cioacuten objetivista que lo termina co-locando en estrecha relacioacuten conel platonismo

35 - Psicologiacutea despueacutes de Kantde la psicologiacutea como cienciafundamental de la filosofiacutea a lapsicologiacutea como ciencia autoacuteno-ma

Si el siglo XIX es el siglo de laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia esta constitucioacuten se da-raacute en el transfondo de presupues-tos establecidos en los siglos XVII-XVIII a saber

a La virada cartesiana a la sub-jetividad en la filosofiacutea moder-na la lectura empirista de es-ta virada por Locke y la ideade una ciencia de la naturale-za humana correlata de la Na-turwissenschaft por Hume

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b La constitucioacuten de la ciencianatural como ciencia empiacutericaindependiente de la filosofiacutea

c La clasificacioacuten de las cienciasde Wolff con su distincioacuten en-tre psicologiacutea racional comoparte de la metafiacutesica especialy psicologiacutea empiacuterica5

d La negacioacuten de la posibilidadde la metafiacutesica como cienciapor parte de Kant y por tantode la psicologiacutea racional

e y su negacioacuten de que la psico-logiacutea empiacuterica pueda consti-tuirse como una ciencia equi-valente a la ciencia natural(Leary 1978 y 1982)

Como en la filosofiacutea de las ma-temaacuteticas el status questionis esta-blecido por Kant en la ldquoCriacutetica dela razoacuten purardquo es el punto de par-tida de la poleacutemica en torno a lapsicologiacutea o Psychologiestreit estoes de la discusioacuten que lleva a laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia autoacutenoma en el siglo XIX

Aun cuando PS y Psychologies-treit son procesos que se encuen-tran interligados y presentan nu-merosas interacciones ellos nopueden ser sin maacutes identificados

Ciertamente la constitucioacuten de lapsicologiacutea como ciencia autoacutenomaes un factor importante para ex-plicar tanto la prioridad cuanto laintensidad que asume el PS en el sXIX Sin embargo el no es el uacuteni-co factor pues como ya hemos in-sinuado la logische Frage y el de-senvolvimiento de las matemaacuteti-cas no son menos decisivos

No menos importante que dis-tinguir PS y Psychologiestreit es eldistinguir entre dos sentidos de laexpresioacuten MP La expresioacuten ldquoMPrdquotiende a ser usada desde fines delsiglo XIX y comienzos del XX enel sentido de ldquomeacutetodo de la psi-cologiacuteardquo o sea para referirse a lacuestioacuten de cual deba ser el modode proceder de una cierta discipli-na para constituirse como cienciaautoacutenoma En mediados del sigloXIX sin embargo dicha expresioacutentiene un otro sentido usual refe-rente a cuaacutel deba ser el meacutetodode la filosofiacutea cuestioacuten eacutesta gene-ralmente colocada en el horizontede una caracterizacioacuten de la filo-sofiacutea como ciencia que asegure suderecho a existencia en la llama-da ldquocrisis de identidadrdquo6 La ideabaacutesica es queacute si toda ciencia de-be fundarse en la experiencia y la

5Investigacioacuten psicoloacutegica ciertamente existioacute antes de Descartes pero no es arbitrario establecer un intereacutes es-pecifico en la subjetividad a partir de eacutel Investigacioacuten psicoloacutegica por su vez existioacute obviamente antes de Wolffpero es el sistema de clasificacioacuten de las ciencias de Wolff lo que va a dar a la psicologiacutea su lugar caracteriacutesticocomo disciplina a partir del cual debe ser entendido el proceso de su constitucioacuten como ciencia autoacutenoma

6Claro que los proponentes del MP teniacutean tambieacuten propuestas con respecto a cuaacutel debiacutea ser el meacutetodo de lapsicologiacutea pero la inversa no vale muchos actores decisivos en el debate en torno al meacutetodo de la psicologiacutea notuvieron intereacutes en la cuestioacuten del MP

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Naturwissenschaft trata de la expe-riencia externa corresponde a lafilosofiacutea fundarse en la experien-cia interna En este sentido la ex-presioacuten ldquoMPrdquo fue originariamen-te el opuesto primero del meacuteto-do especulativo propio del idea-lismo alemaacuten despueacutes del meacuteto-do transcendental neokantiano yfinalmente del meacutetodo fenome-noloacutegico Mas si como vimos laidea del MP constituye en la fi-losofiacutea alemana como alternativade perfil especifico a partir de laobra de Fries y Beneke la expre-sioacuten ldquoMPrdquo sin embargo fue solointroducida deacutecadas despueacutes porBona Meyer (KPs p 122) y po-pularizada por sus oponentes neo-kantianos

4 - El desarrollo del PS

Si damos una mirada retrospecti-va al conjunto de lo expuesto ylo unificamos tenemos que decirque si Descartes puede ser consi-derado el inicio remoto del psi-cologismo Kant puede ser consi-derado el inicio proacuteximo del mo-vimiento anti-psicologista y estotanto en el plano de la epistemo-logiacutea cuanto en el plano de la loacute-gica pues en ambos establece ladistincioacuten fundamental quid fac-

ti - quid iuris y procura mante-ner separadas cuestiones de geacutene-sis y de validez (Geltung) (Ak IIIp 8 99s) Ahora bien en tantoque el anti-psicologismo kantianoen la loacutegica va a ser decisiva pa-ra el platonismo del siglo XIX elanti-psicologismo kantiano en laepistemologiacutea va a ser decisivo pa-ra el neokantianismo7

Con lo dicho llamamos la aten-cioacuten sobre un aspecto medular delPS que tiende a ser pasado poralto a saber que se pueden ydeben diferenciar claramente dosvertientes en el mismo que provie-nen de una diversa raiacutez histoacutericaque en uacuteltima instancia remite aKant en dos formas caracteriacutestica-mente diferentes tienen un relati-vo grado de autonomiacutea en su desa-rrollo histoacuterico efectivo y se dis-tinguen claramente por el acentotemaacutetico-sistemaacutetico que asume elanti-psicologismo en cada una deellas

Mas si bien no cabe duda deque Kant estaacute en el origen de lasdos formas principales del anti-psicologismo del siglo XIX so-lo pasamos del anti-psicologismokantiano al anti-psicologismo ca-racteriacutestico del siglo XIX a tra-veacutes de mediaciones que por suvez son diferentes seguacuten se tra-

7Si en estos dos planos Kant contribuye decisivamente al anti-psicologismo existe un tercero a saber aquel re-ferente a la intuicioacuten en el cual Kant estaacute en el inicio de una variante psicologista que tiene su base en la discusioacutensobre la teoriacutea del espacio (Helmholtz)

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ta del tipo de anti-psicologismokantiano y del tipo de anti-psicologismo del s XIX que coneste se relaciona En tanto que delanti-psicologismo kantiano en laloacutegica se deriva el platonismo pre-sente en el PS esto no acontecesino a traveacutes de la logische Fragede la logizicacioacuten del caacutelculo y enuacuteltima instancia de la confluen-cia conflictiva de ambos procesosPor su vez en tanto que del anti-psicologismo kantiano en la epis-temologiacutea se deriva el neokantia-nismo esto no acontece sino a tra-veacutes del MP y en buena medidadel surgimiento de ciertas varian-tes especiacuteficas del mismo como lapsicologiacutea fisioloacutegiacuteca y Voumllkerpsy-chologie Veamos ahora estos pro-cesos en mayor detalle

41 - La vertiente platoacutenica delantipsicologismo

Uno de los primeros capiacutetulosdel PS o tal vez el primer ca-piacutetulo es el producto de la reto-mada de la idea kantiana de unaloacutegica general libre de elementospsicoloacutegicos a traveacutes de Herbartpor un lado y por Bolzano deotro8 Pero este anti-psicologismono puede ser entendido sin mas

como una mera continuacioacuten delkantiano pues hay en eacutel elemen-tos nuevos que lo van a distinguirclaramente del kantiano a sabersu vies platoacutenico Mas aun cuan-do tanto Herbart como Bolzanoson en cierto sentido ldquoplatoacutenicosrdquoel tipo de platonismo es diferen-te no menos que en definitiva supropia concepcioacuten de loacutegica

Si Herbart distingue claramen-te loacutegica y psicologiacutea lo hace co-mo una distincioacuten de dos pun-tos de vista sobre la misma reali-dad en uacuteltima instancia psicoloacute-gica no como una distincioacuten en-tre dos esferas de objetos realesy abstractos (PsW sect 120 p 160-161)9 Justamente por lo anteriorsi Herbart afirma aparentementela identidad del elemento idealen la multiplicidad de sus reali-zaciones subjetivas ese elementoideal es concebido como limes deaproximacioacuten de procesos psiacutequi-cos reales no como objetos en-siexistentes

Bolzano entre tanto es el pri-mero que introduce claramente laidea de que la loacutegica es el es-tudio de objetos abstractos10 Sudiferencia esencial con Kant pe-ro tambieacuten con Herbart es queel portador de verdad deja de ser

8Con Herbart se da un paso decisivo a la constitucioacuten del PS como poleacutemica (Streit) a traveacutes de su discusioacuten conBeneke y posteriormente de eacuteste con Drobisch

9Vinculada a esto estaacute su idea de la normatividad esencial de la loacutegica10Con esto ya en el propio inicio del PS el concepto de psicologismo muda fenoacutemeno eacuteste que auacuten habraacute de

repetirse varias veces Veacutease nota 1

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el juicio y pasa a ser la proposi-cioacuten motivo por el cual eacutesta y noaquel se constituyen en el objetode la loacutegica (WL sect 24 25) Masauacuten con esta mudanza el plato-nismo va a introducir una dimen-sioacuten propiamente semaacutentica en elanti-psicologismo que no estabapresente en ninguna forma ni enKant ni en Herbart maacutes que se-raacute esencial para el desarrollo pos-terior el mismo A partir de aho-ra el anti-psicologismo loacutegico yel semaacutentico se desenvuelven enestrecha unioacuten El platonismo deBolzano a diferencia del de Her-bart estaacute esencialmente vincula-do al programa logicista derivadode la nueva situacioacuten de las ma-temaacuteticas y la aritmetizacioacuten delcaacutelculo

Este platonismo exigido por laconsolidacioacuten de una tendencialogicista derivada de la evolucioacutende las propias matemaacuteticas sinembargo entra en rota de coli-sioacuten con el inmanentismo anti-metafiacutesico derivado de la logischeFrage y sus apelos francamente re-lativistas Si el primer elementoera decisivo en el platonismo deBolzano el segundo lo seraacute en elde Frege y posteriormente en elde Husserl Seraacute primariamenteeste relativismo psicologista deri-vado de la logische Frage lo que da-raacute al PS su forma canoacutenica defi-nitiva o al menos mas conocidaEl psicologismo en la loacutegica que

Frege y Husserl critican no tienesu uacutenica y ni siquiera su maacutes im-portante fuente en la tradicioacuten dePort Royal o del MP sino en lasderivaciones de la logische Frage

Mirado retrospectivamente enel proceso del PS con respectoa la loacutegica se dejan diferenciarclaramente tres momentos a sa-ber la reaccioacuten kantiana a la loacutegi-ca moderna y su prolongacioacuten enHerbart el platonismo bolzanianoreflejo del logicismo matemaacuteti-co y el platonismo fregueano-husserliano reflejo de una reac-cioacuten ulterior al relativismo antro-poloacutegico derivado de la logischeFrage

42 - La vertiente neokantianadel antipsicologismo

Si en Kant el problema episte-moloacutegico se anuncia en su especi-ficidad es con el neokantianismoque esta idea es desenvuelta entodas sus consecuencias de modotal que el criticismo deviene ldquomeacute-todo transcendentalrdquo (COHENKTE1 p 124-127 KTE2 p 296-299 373-379 601-602 WINDEL-BAND KGM p 318ss WPh p58-59 RIEHL UumlBFph p 31 65PhK I V p 8) Este hecho mar-ca decisivamente la peculiaridaddel anti-psicologismo caracteriacutesti-co del neokantianismo La grandiferencia entre la vertiente pla-toacutenica y la neokantiana del anti-

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-psicologismo es que si la prime-ra se concentra en la loacutegica y porderivacioacuten esencial en la semaacutenti-ca (aun cuando segundo los casosno desconoce totalmente la episte-mologiacutea) la segunda se concentraen la epistemologiacutea y desconside-ra o ignora la dimensioacuten propia-mente loacutegica yo la semaacutentica

Existe una extendida concep-cioacuten de que el PS es un fenoacutemenoque gira primariamente en torno ala loacutegica Esto es falso y deja fue-ra de consideracioacuten un capiacutetulofundamental del mismo protago-nizado por el neokantianismo To-das las diferencias decisivas entrela vertiente neokantiana y la pla-toacutenica del anti-psicologismo des-aparecen si decimos sumariamen-te que el psicologismo consistioacute enuna psicologizacioacuten de la loacutegica ypasamos por alto el hecho decisivode que

a en un caso la loacutegica es loacutegi-ca general o formal en el otrotranscendental y

b que la loacutegica transcendentalneokantiana es sinoacutenimo deepistemologiacutea

Para entender lo que realmentesignifica lo anterior tenemos quetener en cuenta cuatro puntos

a Para el neokantianismo elconcepto de ldquoloacutegicardquo se defi-ne en el horizonte de la oposi-cioacuten primariamente epistemo-

loacutegica entre el pensar y la in-tuicioacuten sensible

b La intuicioacuten sensible inclusoen sus formas puras espacioy tiempo no es para el neo-kantianismo una fuente au-tosuficiente de conocimientono pudiendo ser consideradade forma desligada del pen-sar Por tal razoacuten para un neo-kantiano la epistemologiacutea noconsiste en dos capiacutetulos auto-suficientes una esteacutetica y unaloacutegica transcendental

c Pero si la intuicioacuten no puedeser desligada del pensar estepensar por su vez no puedeser desligado de su funcioacuten deestar al servicio de la objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos esto esdel conocimiento y por tan-to la propia idea de una con-sideracioacuten del pensar en siacute ode una loacutegica formal separadade la loacutegica transcendental nohace sentido

d Dicho de otra forma en elneokantianismo la loacutegica ge-neral y la esteacutetica transcen-dental pierden su autonomiacuteay pasan a estar subordinadasyo esencialmente vinculadasa la loacutegica transcendental lacual por tal razoacuten terminasiendo identificada con epis-temologiacutea

Ahora el hecho de que el anti-psicologismo kantiano no sea un

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anti-psicologismo loacutegico- formalsino esencialmente epistemoloacutegi-co estaacute vinculado a tres elementosde extrema importancia para efec-tuar un estudio diferenciado el PSa saber

a El psicologismo que el neo-kantianismo combate en pri-mera instancia no es aquel de-rivado de la logische Frage co-mo sucediacutea con el platonismodel siglo XIX sino aquel vin-culado al MP y sus derivacio-nes

b El antipsicologismo neokan-tiano y por dirigirse a la epis-temologiacutea y no a la loacutegica ge-neral es un anti-psicologismoque tiene esencialmente porobjeto las formas puras deintuicioacuten espacio y tiempopues fueron estas las que ju-garon un rol decisivo para psi-cologizar a Kant a partir deMuumlller y a traveacutes de los des-cubrimientos fisioloacutegicos has-ta Helmholtz11

c Si el anti-psicologismo neo-kantiano se opone caracteriacutes-ticamente al psicologismo delas formas pura de la intui-cioacuten no se limita a ellas sinoque se extiende al DenkenLo haraacute sin embargo uacutenica-mente en cuanto el Denken es

un instrumento de objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos Justa-mente por ello lo que estaacute enel centro de la atencioacuten no esel principio de identidad y nocontradiccioacuten sino de causali-dad

43 - Relaciones entre anti-psicologismo platoacutenico y neo-kantiano

Tan importante como es el distin-guir claramente las dos vertientesprincipales del anti-psicologismoy los tipos de psicologismo queellas respectivamente combatenlo es el estudiar la relacioacuten entrelas mismas Las diferentes concep-ciones de loacutegica de neokantianis-mo y realismo loacutegico estaacuten en uacutelti-ma instancia vinculadas a diferen-tes concepciones de la teoriacutea del apriori y de las matemaacuteticas

a Para el neokantianismo exis-te conocimiento a priori sien-do uno de los objetivos princi-pales del movimiento el fun-damentar el mismo frente alos ataques empiristas y po-sitivistas El conocimiento apriori de los neokantianosno obstante no es como enel platonismo conocimientode objetos abstractos o supra-empiacutericos sino conocimiento

11Frege por el contrario nunca estuvo preocupado con el problema del psicologismo en el espacio

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de las condiciones de la po-sibilidad de la experiencia ypor tanto jamaacutes se desliga deella para adquirir la formade una logische Erkenntnisque-lle autoacutenoma como en Frege

b La diferente concepcioacuten del apriori entre el platonismo y elneokantianismo se expresa enforma paradigmaacutetica en susdiversas concepciones del sa-ber matemaacutetico Dicho de for-ma maacutes general pero tambieacutenmaacutes precisa el neokantianis-mo tiene un punto de coinci-dencia y un punto de diferen-cia esencial con el realismo loacute-gico La coincidencia radica enque en tanto ambos son re-ceptivos de la evolucioacuten de lasmatemaacuteticas ambos son ldquolo-gicistasrsquo esto es niegan cual-quier papel de las intuicionespuras de espacio y tiempo enla fundamentacioacuten de las ma-temaacuteticas y pretenden fundarlas mismas en el pensar (Den-ken)12 Solo que en un casose trata de un formales Den-ken en el otro de un trans-zendentales Denken Esto moti-va una diferencia esencial enla concepcioacuten de las matemaacute-ticas que se expresa en el jar-goacuten neokantiano en la oposi-cioacuten entre ldquoteoriacuteardquo y ldquomeacuteto-

dordquo En tanto para los realistasloacutegicos la matemaacutetica es unateoriacutea que trata de una esferaespecifica de objetos los abs-tractos para los neokantianola matemaacutetica es meacutetodo osea un conjunto de procedi-mientos yo instrumentos deobjetivacioacuten de los fenoacutemenosy en consecuencia en uacuteltimainstancia siempre referidos ynunca separable de los obje-tos empiacutericos (Cohen PIM)La consecuencia de lo ante-rior es que para los neokan-tianos el problema de la apli-cacioacuten de las matemaacuteticas a lafiacutesica eventualmente sobre laforma de un pasaje de enun-ciados analiacuteticos a sinteacuteticoses simplemente un problemamal planteado

Si hasta ahora hemos trabajadocon una oposicioacuten entre neokan-tianismo y platonismo convieneobservar que esta oposicioacuten no estotalmente exacta y seria mas jus-to decir que la diferencia aquiacute pre-sente es una diferencia entre dostipos de platonismo vinculadosa dos tomas de posiciones esen-cialmente diversas en la cuestioacutendel chorismo y que tienen su ex-presioacuten paradigmaacutetica en las dosgrandes interpretaciones de Pla-toacuten del siglo XIX propuestas por

12Es importante no perder de vista que los neokantianos nunca fueron sin maacutes kantianos sino que mantuvieronimportantes diferencias con Kant vinculadas siempre a su atencioacuten al Faktum de la ciencia

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Natorp y por Lotze En tanto queLotze desontologiza Platoacuten Na-torp va maacutes allaacute y lo transzenden-taliza para legitimar su peculiarlectura platonizada de Kant

En su comentario a los ldquoPro-legoacutemenosrdquo husserlianos Natorpno dejaba de manifestar una cier-ta extrantildeeza frente al impacto deestos y no sin toda razoacuten afirma-ba que el neokantianismo nada te-nia a aprender der Husserl (Na-torp FLM p 271) Esta observa-cioacuten natorpiana obliga a la pre-gunta del porqueacute del fulminanteimpacto del primer volumen delas ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo Novamos a agotar esta cuestioacuten aquiacutepero es importante establecer al-gunas observaciones al respectoDesde el punto de vista estric-tamente histoacuterico-cronoloacutegico lasprimeras etapas del PS se concen-tran en la loacutegica y estaacuten vincu-ladas al anti-psicologismo platoacute-nico Posteriormente la vertienteplatoacutenica recibe un nuevo impul-so con Frege para alcanzar toda sumadurez con Husserl Entre am-bos momentos sin embargo acon-tece un fenoacutemeno peculiar que esla verdadera explosioacuten que se ope-ra en el PS a partir de la deacutecadadel 70 Este fenoacutemeno estaacute esen-cialmente vinculada al neokantia-nismo y seria incomprensible sineacuteste En efecto un factor decisi-vo para que el PS ocupe duran-te tanto tiempo el primer lugar en

la agenda de la discusioacuten filosoacutefi-ca fue el hecho que la criacutetica delpsicologismo era esencial para eltriunfo del meacutetodo transcenden-tal frente al psicoloacutegico por un la-do por otro que este triunfo diceya no respecto a un problema fi-losoacutefico particular (por ejemplo ala cuestioacuten referente a una filoso-fiacutea de las matemaacuteticas) sino res-pecto del propio destino de la filo-sofiacutea y su especificidad como dis-ciplina Mas a la fase programaacute-tica sigue en el neokantianismouna fase institucional que termi-na resultando en el casi absolutodominio de la universidad alema-na Cuando se estudia el problemadel PS no hay que olvidar nun-ca que si del punto de vista desus consecuencias y proyeccionesen el siglo XX Frege y Husserl sonfiguras decisivas y mucho maacutes im-portantes que el Neokantianismodesde el punto de vista del sigloXIX el neokantianismo tiene unatotal preeminencia de forma talque solo a traveacutes de eacutel el PS pu-do tomar la dimensioacuten que efecti-vamente tomoacute El impacto de lasldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo husser-lianas se construye sobre una his-toria que ya comenzoacute a ser escri-ta por el neokantianismo y su no-vedad no consistioacute en plantear eltema sino en focalizarlo directa-mente a la luz de los resultados dela logische Frage en el relativismo

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y no ya en el MP13

5 - Maacutes allaacute de las variantes neo-kantiana y platoacutenica

Con la distincioacuten entre dos varian-tes fundamentales en el antipsi-cologismo presente en el PS nohemos agotado en forma algunalas distinciones decisivas que de-ben ser hechas sino dado simple-mente un primer esquema orde-nador Sobre su base es posibleintroducir otras distinciones quesuponen la anterior maacutes al mismotiempo la refinan y completan

51 - Antipsicologismo semaacutenti-co y problema del sentido Lasdiferentes formas del problemade la objetividad en el s XIX

Ya hemos observado que no huboen el neokantianismo un intereacutesparticular en el combate al psico-logismo semaacutentico Esto no es pro-ducto de un cierto descuido sinouna derivacioacuten sistemaacuteticamentenecesaria a partir del modo en quese construye el problema de la ob-jetividad en dicho movimiento Apartir de Frege es usual distinguirentre el sentido y el valor de ver-dad de un enunciado y junto con

esta distincioacuten el distinguir ulte-riormente entre el problema de lafundamentacioacuten de la objetividaddel valor de verdad y el problemade la fundamentacioacuten de la objeti-vidad del sentido El pensamientoalemaacuten pre-fregueano sin embar-go estaacute dominado por el conceptode validez (Geltung) el cual se re-fiere primariamente a la cuestioacutende la objetividad epistemoloacutegica(resumido a su maacutes simple expre-sioacuten en el neokantianismo en elconcepto de ldquoleyrdquo) y solo de modoindirecto secundario e inespeciacutefi-co a la cuestioacuten de la objetividaddel sentido

Esta situacioacuten comienza a expe-rimentar una mudanza significati-va a partir de los antildeos 90rsquo En efec-to el desarrollo de las Geisteswis-senschaften (GW) pone en eviden-cia que la cuestioacuten del sentido lin-guumliacutestico es meramente un aspectode la cuestioacuten mucho mas generaldel sentido en la enorme diversi-dad de las manifestaciones cultu-rales De tal forma el problemacolocado primeramente en la loacute-gica a traveacutes de la distincioacuten en-tre el juicio el enunciado y la pro-posicioacuten experimente una decisi-va ampliacioacuten Con esta surge unnuevo capiacutetulo del PS que tiene aDilthey y a la escuela de Baden co-

13Obseacutervese la diferencia de perspectiva de Natorp Objektive und subjektive Methode y los Prolegoacutemenos de Hus-serl Lo que estaacute en el centro de la atencioacuten de Natorp es mostrar la primaciacutea del meacutetodo transcendental y enconsecuencia del proceder objetivo sobre el subjetivo En Husserl lo que estaacute en el centro de atencioacuten son por unlado los presupuestos por otro las consecuencias del psicologismo como posicioacuten filosoacutefica

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mo principales protagonistas Loanterior no significa decir sin em-bargo que con esta poleacutemica yase establezca en el neokantianis-mo la criacutetica del psicologismo se-maacutentico como central sino uacuteni-camente que se abre un caminoque en figuras como Rickert ter-mina culminando en una crecien-te atencioacuten a la cuestioacuten de la ob-jetividad del sentido En los antildeosnoventa la resistencia neokantia-na al psicologismo del MP en lasGW diltheano asume auacuten caracte-res maacutes ldquoclaacutesicosrdquo tomando comohorizonte una ampliacioacuten del con-cepto de validez (Geltung) que lle-va a introducir como central la no-cioacuten de valor (Wert)

Pero si por un lado convie-ne percibir la especificidad de unproblema del psicologismo con-centrado en las GW por otro con-viene tambieacuten no perder de vis-ta los viacutenculos esenciales que estepsicologismo posee con aquel quese plantea en la loacutegica El recono-cimiento de la especificidad de lasGeisteswissenschaften es un proce-so que estaacute iacutentimamente vincula-do a la discusioacuten en torno a losfundamentos de la loacutegica tanto enun caso como en otro el problemade la objetividad del sentido tien-de a delinearse con contornos pro-pios frente al problema maacutes claacutesi-co de la verdad

52 - Objetivismo y subjetividad

Pese todas las diferencias que exis-ten entre las dos vertientes delanti-psicologismo mencionadashasta ahora hay algunos rasgoscomunes que motivan una simi-lar (aun cuando no absolutamenteideacutentica) objecioacuten de parte de lospsicologistas y que se deja resu-mir en el tiacutetulo ldquoobjetivismordquo conel cual se apunta a subrayar des-consideracioacuten del caraacutecter en uacutelti-ma instancia subjetivo del conoci-miento La liacutenea de confrontacioacutenentre psicologistas y antipsicolo-gistas tiene una de sus expresio-nes maacutes importantes en la oposi-cioacuten ldquoobjetivismordquo- relativismo

Si comenzamos con el antipsi-cologismo de cuntildeo platoacutenico di-gamos que ya Exner objetaba aBolzano que la admisioacuten de ldquore-presentaciones en siacuterdquo objetivas eirreales nos enfrenta al proble-ma irresoluble de coacutemo un suje-to real como en uacuteltima instancialo es el sujeto del conocimientopuede acceder a algo que de prin-cipio no es real una objecioacuten queobviamente tiene su raiacutez uacuteltimaen la presuposicioacuten incondicionaldel PI o sea en este caso en quesolo puedo captar lo que de alguacutenmodo es real ldquoen miacuterdquo (Exner a Bol-zano 10121834 p 74-75 y 78)Bolzano intenta varias respuestasa esta objecioacuten pero ninguna esconvincente en uacuteltima instancia

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porque en todas ellas no consigueevidenciar el supuesto de Exnerconcediendo a este sin maacutes los de-rechos de una psicologiacutea natura-lista La criacutetica de Exner a Bol-zano se repite en teacuterminos praacutec-ticamente ideacutenticos entre Kerry(UumlAPsV IV p 305) y Frege conla gran diferencia que ella termi-naraacute llevando a Frege a una decisi-va profundizacioacuten de su posicioacuten(FREGE L (1897) p 157 GGA Ip XIVss)

La tendencia objetivista de losanti-psicologistas se mantieneaun cuando en otra variante enla vertiente neokantiana siendodecisiva tanto en Cohen cuanto enWindelband (BRELAGE 1965 p94-95) Como consecuencia de sutajante distincioacuten de todo lo psico-loacutegico la asiacute llamada ldquoconcienciatranscendentalrdquo deviene en reali-dad una mera faccedilon de parler queno expresa otra cosa que el con-junto sistemaacutetico de principios devalidez No obstante surgiraacute delas propias filas neokantianas ypor un proceso inmanente el in-tento de superacioacuten de esta ten-dencia Natorp es el primero encomprender que al fin de cuen-tas una filosofiacutea transcendentalsin sujeto es un sin-sentido y quetoda criacutetica al psicologismo queno deacute cuenta de su justa exigen-cia subjetiva estaraacute condenada alfracaso Por tal razoacuten Natorp con-centra su criacutetica al psicologismo

en una criacutetica del concepto psi-cologista de subjetividad (UumlOSMp 285-286 EPs sect 13-15) Su tesisfundamental que lo opondraacute alpsicologismo no menos que al ldquolo-gicismordquo radical de Cohen rezael psicologismo es la consecuenciade una falsa teoriacutea de la subjeti-vidad propia del naturalismo (yen uacuteltima instancia del dualismo)y por tanto solo puede ser defi-nitivamente superado si se superaesta Sobre esta base la salida queNatorp propone es disolver la riacutegi-da oposicioacuten sujeto-objeto presu-puesta en toda visioacuten naturalistade la subjetividad substituyeacutendo-la por una oposicioacuten relativa entresubjetivacioacuten y objetivacioacuten comodiferentes direcciones en que sepuede considerar un uacutenico pro-ceso fundamental Si el sujeto nopuede ser simplemente elimina-do el soacutelo puede ser integradocoherentemente en el horizonte dela reflexioacuten filosoacutefica si no se con-tradicen los principios del meacutetodotranscendental o sea el caraacutecterde la filosofiacutea como discurso desegunda orden Por tanto la sub-jetividad tiene que ser tematizadaen un procedimiento reconstruc-tivo a partir de la objetividad y enestricta correlacioacuten con la misma(NATORP AP p 213)

Si queremos entender el desen-volvimiento posterior que tomaraacutela lucha antipsicologista y en par-ticular el papel que Frege y Hus-

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serl habraacuten de desempentildear en lamisma tenemos que observar quejunto con el mencionado cambiofundamental existe en Natorp unotro punto en el cual eacutel conserva elstatus quo a saber en el manteni-miento del PI En tal sentido sal-vemos del olvido un hecho impor-tante a saber que en 1894 cuan-do Twardowsky escribe su histoacuteri-co texto ldquoSobre contenido y objetode la representacioacutenrdquo Natorp lededica una resentildea en donde delcontexto surge que eacutel consideraque Twardowsky se encuentra enla direccioacuten errada (NATORP BD-SE II p 198-201) impresioacuten eacutes-ta que se reafirma si se atiendea la correspondencia con Husserlde esa eacutepoca (Hua BriefwechselBand V p 39-58) y se confirmadefinitivamente en textos poste-riores (AP p 153)

Pues bien un antildeo antes en1893 en el prefacio de las GGAen su criacutetica de Erdmann Fregees el primero que en el horizontede la filosofiacutea alemana del sigloXIX abandona el PI14 Esta de-cisiva virada claro estaacute quedaraacutetotalmente opacada a la luz de lacentralidad que la cuestioacuten de unaperspectiva subjetiva adquiere en

la fenomenologiacutea husserliana Lacriacutetica husserliana del psicologis-mo en los ldquoProlegoacutemenosrdquo no de-be ser vista como un todo auto-subsistente sino que se prolonga ycompleta en el segundo volumende ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo con lapropuesta de una elaborada teoriacuteade la subjetividad coherente conlas exigencias del platonismo15

El movimiento iniciado por Na-torp en el neokantianismo mar-burgueacutes tiene un cierto paraleloaun cuando maacutes tardiacuteo en el neo-kantianismo de Baden con Rickert(ZWE) y una interesante radica-lizacioacuten en Houmlgnigswald (PDPs)quien levanta la tesis de la no in-compatibilidad de principio y he-cho (Prinzip und Tatsache) tantoen el caso del yo como del lengua-je

53 - Fenomenologiacutea transcen-dental ndash facticidad

Como deberiacutea ser sabido peroes generalmente ignorado la criacute-tica husserliana al psicologismoni termina ni culmina en 1900sino que acompantildea todo el desa-rrollo de Husserl y experimentauna novedad decisiva con la des-

14El papel de Frege en el PS es sistemaacuteticamente mal comprendido su radical antipsicologismo no excluye sinoque supone una cierta idea de subjetividad El centro de su criacutetica a Husserl en PhA es justamente que este como lacasi totalidad de los disciacutepulos de Brentano en esta eacutepoca mantiene expresamente la afirmacioacuten del PI (HUSSERLHua XII p 94)

15Obviamente que en este desarrollo Natorp ha jugado un papel fundamental y tal vez Frege ha hecho unacontribucioacuten decisiva

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cubierta de la reduccioacuten y la vira-da al idealismo fenomenoloacutegico-transcendental (Husserl HuaXXIV p 209ss) Con esto apa-rece una nueva variante de anti-psicologismo que tiene un perfilespecifico distinto de todas aque-llas ya existentes e incluso obligaa repensar con maacutes exactitud lasdistinciones de las cuales partiacutea-mos16

En la variante fenomenoloacutegico-transcendental del anti-psicologis-mo si bien se da cuenta por ex-tenso de la relacioacuten subjetividadndash objetividad los problemas delanti-psicologismo anterior no des-aparecen sino que se trasladan dela relacioacuten de un sujeto concebidopsicoloacutegicamente a un objeto con-cebido platoacutenicamente a la rela-cioacuten entre subjetividad psicoloacutegi-ca y transcendental un problemaque ya como vimos se anunciabaen Natorp pero que ahora se radi-caliza por la propia reduccioacuten

La buacutesqueda de una mediacioacutenentre ambas subjetividades per-mea la uacuteltima etapa del pensa-miento de Husserl con su concep-cioacuten monaacutedica del sujeto trans-cendental que introduce nocio-nes tales como Verweltlichung

Verzeitlichung y Verraumlumlichung(HUSSERL Hua III1 p 67 VIIp 71) pero solo alcanzaraacute todo sudesarrollo cuando a traveacutes de lapoleacutemica en torno al artiacuteculo de laEnciclopedia Britaacutenica Heideggerintroduzca la tesis de que el ver-dadero sujeto transcendental es elsujeto faacutectico en su facticidad ycomience a desenvolver eacutesta en elhorizonte de un replanteo generalde las relaciones entre el ser y eltiempo17

54 - Objetivismo psicologismorefinado y nuevamente MP

Si con Natorp el anti-psicologismomarburgueacutes se desenvuelve en ladireccioacuten de una consideracioacutensubjetiva existen formas de anti-psicologismo como las represen-tadas por Bauch que se desen-vuelven en la direccioacuten exacta-mente contraria Su idea baacutesicaes que la lucha contra el psicolo-gismo debe ser radicalizada puesen todas las formas de pretendidoanti-psicologismo inclusive puesen la escuela de Marburgo per-manece un ldquopsicologismo refina-dordquo (verfeinerter Psychologismus)el cual debe ser superado si la lu-

16Si sobre el criterio de Frege quien aceptaba el PI era psicologista sobre el criterio de Husserl quien no efectuacuteala reduccioacuten es psicologista y por tanto tambieacuten Frege Ver nota 1

17Con esto adquiere su uacuteltima expresioacuten el proceso iniciado por Beneke y desenvuelto por Lotze y la escuela deBrentano en el siglo XIX

18En base a lo dicho podriacuteamos diferenciar en la lucha anti-psicologista del neokantianismo institucional porlo menos tres etapas una primera la de los fundadores del programa una segunda de los disciacutepulos destacados

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cha debe llegar a su fin (IKPhAGp 141 Compare LASK LU p 171y MOOG LPsPs p 53 77)18

Dentro del horizonte descrip-to otro capiacutetulo importante esprotagonizado en la escuela deBrentano en la cual el objetivismoadquiere una variante realista yno-transcendental sobre la formade la Gegenstandstheorie de Mei-nong la cual se propone progra-maacuteticamente una ldquoconsideracioacutena-psicoloacutegicardquo (apsychologische Be-trachtung) del objeto y de la ver-dad

Asiacute como Bauch se ve condu-cido en el neokantianismo a unapoleacutemica con Natorp Houmlfler si-guiendo a Meinong se ve conduci-do en la escuela de Brentano a unapoleacutemica con Marty quien reco-nociendo la necesidad y legitimi-dad de la lucha anti-psicologistaresiste sin embargo a toda substi-tucioacuten del MP por la Gegenstandst-heorie y su propuesta de eliminartoda consideracioacuten subjetiva (HOuml-FLER UumlA p 216 219 MARTYUG p 304 307) A esta tendenciadirige la acusacioacuten de ldquoApsycho-logismusrdquo para diferenciarla delAnti-psychologismus que como

ya indicamos tambieacuten la escuelade Brentano pretende defender

Si efectuamos ahora una visioacutenretrospectiva tenemos que obser-var que si cuando se trata el PSla atencioacuten tiende a concentrarseen el conflicto entre psicologistasy anti-psicologistas este conflictoes un aspecto particular cierta-mente central y esencial de un to-do maacutes abrangente Asiacute como exis-tioacute una reaccioacuten antipsicologistaal psicologismo reinante existioacuteademaacutes de la reaccioacuten psicologis-ta una reaccioacuten al antipsicologis-mo considerado ahora como meroantipsicologismo u objetivismo

6 - Conclusioacuten

En las liacuteneas que anteceden hemospuesto en evidencia que el PS lejosde haber sido como generalmentese tiende a creer una unidad in-divisa concentrada en la loacutegica ycon epicentro en los ldquoProlegoacuteme-nosrdquo husserlianos fue un procesoen el cual se pueden y deben di-ferenciar etapas tendencias nuacute-cleos temaacuteticos y liacuteneas de evolu-cioacuten

Rickert y Natorp que integran la perspectiva subjetiva en el horizonte transcendental y auacuten una tercera que conHoumlnigswald y Bauch van en direcciones no solo diferentes sino opuestas

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________ 1840 System der Metaphysik und Religionsphilosophie Aus dennatuumlrlichen Grundverhaumlltnissen des menschlichen Geistes abgeleitetBerlin Ferdinand Duumlmmler (SM)

BERGMAN Julius 1892-1893 Geschichte der Philosophie Bd 1-2________ 1842 System der Logik als Kunstlehre des Denkens Berlin (SL)________ 1852 ldquoDas gegenwaumlrtige Verhaumlltnis zwischen der Psycholo-

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________ 2006 (1877) Lehrbuch der Psychologie als NaturwissenschaftBerlin Elibron Classics Berlin Ernst Siegfried Mittler und Sohn(LPsNW)

BOLZANO Bernhard Wissenschaftslehre Sulzbach Wolfgang Schulz1837 (WL)

BOSCHENSKI I M 1976 Historia de la loacutegica formal Madrid GredosBRELAGE Manfred Transzendentalphilosophie und konkrete Subjektivi-

taumlt In BRELAGE Manfred Studien zur TranszendentalphilosophieBerlin 1965

BRENTANO Franz 1971 Psychologie vom empirischen Standpunkt 2 BdeHamburg Felix Meiner (PES)

___________ 1982 Deskriptive Psychologie hrsg V R M Chisholm uW Baumgartner Hamburg Meiner (DP)

COHEN Hermann 1871 Kants Theorie der Erfahrung Berlin Duumlmmler2da Aufl 1885 (KTE1 KTE2)

_______ Das Prinzip der Infinitesimal-Methode und seine Geschichte EinKapiacutetel zur Grundlegung der Erkenntniskritik Berlin 1883 (PIM)

DILTHEY Wilhelm 1984 Das Wesen der Philosophie Hamburg Meiner(WPh)

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_________ 1990 ldquoEinleitung in die Geisteswissenschaften Versuch ei-ner Grundlegung fuumlr das Studium der Gesellschaft und der Ges-chichterdquo In Gesammelte Schriften (1913-1958) Bd 1 9 AuflageHrsg Groethuysen Goumlttingen Vandoeck and Ruprecht (EGW)

_________ 1990 ldquoIdeen uumlber eine beschreibende und zergliederndePsychologie (1894)rdquo In Gesammelte Schriften (1913-1958) Bd V4 Aufl Hrsg Georg Misch Goumlttingen Vandoeck and Ruprecht(IBZPs)

FISCHER Kuno 1862 Die beiden kantischen Schulen in Jena StuttgartCottascher Verlag (bKS)

FREGE Gottlob Die Grundlagen der Arithmetik Eine logisch mathematis-che Untersuchung uumlber den Begriff der Zahl Hamburg Meiner 1988(GA)

_______ Grundgesetze der Arithmetik Jena Pohl 1893 (GGA)_______ Logik (1897) In Frege G Nachgelassene Schriften Edited by

Gottfried Gabriel Walter Roumldding Hans Hermes Friedrich Kam-bartel and Friedrich Kaulbach Hamburg Felix Meiner Verlag1969 p 137-163 (L(1897))

FRIES J Friedrich 1803 Reinhold Fichte Schelling Leipzig August Le-brecht Reineicke (RFS)

______ 1811 ldquoSystem der Logik Ein Handbuch fuumlr Lehrer und zumSelbstgebrauchrdquo Book Renaissance Heidelberg Mohr und Winter(SL)

_______1819 Grundriss der Logik Ein Lehrbuch zum Gebrauch von Schu-len und Universitaumlten Heidelberg Mohr und Winter 2te verbes-serte Auflage (GL) (NKV)

_______ 1824 Polemische Schriften 2 Bde Hallen und Leipzig Reinec-ke and Comp (PS)

_______ 1824 System der Metaphysik Heidelberg Christiana FriedrichWinter (SM)

_______ 1834 Geschichte der Philosophie Halle Verlag der Buchhand-lung des Weisenhauses (GPh)

_______ 1935 Neue oder anthropologische Kritik der Vernunft 3 BdeBerlin Verlag Oumlffentliches Leben (NKV)

HELMHOLTZ Hermann 1903 ldquoUumlber das Sehen des Menschenrdquo Einpopulaumlr wissenschaftlicher Vortrag gehalten zu Koumlnisberg in PreussenZum Besten von Kants Denkmal Am 27 Februar 1855 LeipzigVoss 1855 In Vortraumlgen und Reden 4te Aufl Brauchschwieg FVieweg und Sohn (UumlSM)

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

HERBART J Friedrich 1993 Lehrbuch zur Einleitung in die PhilosophieHamburg Meiner Verlag (LEPh)

_________ 2003 Lehrbuch zur Psychologie Koumlnigsberg August WilhelmUnzer 1816 Ed Margret Kaiser ndash el Safti Wuumlrzburg Koumlnigshau-sen and Neumann (LPs)

_________ Psychologie als Wissenschaft Neu begruumlndet auf ErfahrungMetaphysik und Mathematik Hersg Hartenstein Leipzig Leo-pold Voss 1850 (PsW)

HUSSERL Edmund Briefwechsel Brentano Schuler Husserliana Doku-mente III1Briefe

_________ Philosophie der Arithmetik Mit ergaumlnzenden Texten (1890-1901) Ed Lothar Eley The Hague Martinus Nijhoff 1970 Hus-serliana XII (Hua XII)

_________ Briefwechsel Band V Die Neukantianer Hua ndash DokumenteDordrecht Boston London Kluwer 1994

_________ Logische Untersuchungen Zweiter Band Erster Teil Unter-suchungen zur Phaumlnomenologie und Theorie der Erkenntnis EdUrsula Panzer The Hague Martinus Nijhoff 1984 HusserlianaXIX1 (Hua XIX1)

_________ Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und phaumlnomenolo-gischem Philosophie Erstes Buch Allgemeine Erfahrung in diereine Phaumlnomenologie Rev Ed Karl Schuhmann The Hague Mar-tinus Nijhoff 1976 Husserliana III1 (Hua III1)

_________ Erster Philosophie (1923-1924) Zweiter Teil Theorie der phauml-nomenologischen Reduktion Ed Rudolf Boehm The Hague Marti-nus Nijhoff 1959 Husserliana VIII (Hua VIII)

_________ Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie Vorlesungen1906-1907 Ed Ulrich Melle Dordrecht Martinus Nijhoff 1987Husserliana XXIV (Hua XXIV)

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Recebido 29062019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i221193

A Antiguidade um Erro Profundondash Foucault a Filosofiae suas Atitudes

[Antiquity a Deep Error ndash Foucault Philosophy and its Attitudes]

Jean Dyecircgo Gomes Soares

Resumo Esse artigo visa compreender a afirmaccedilatildeo de Michel Fou-cault de que a Antiguidade seria ldquoum erro profundordquo Quando ele falade suas relaccedilotildees com a filosofia ele se desloca da pretensatildeo ontoloacutegicatradicional para uma praacutetica ao inveacutes de se perguntar ldquoo querdquo seriamo poder e a filosofia ele busca compreender ldquocomordquo funcionam Di-ante desse deslocamento teoacuterico em torno das chamadas ldquoproblema-tizaccedilotildeesrdquo esboccedila-se uma problematizaccedilatildeo especiacutefica a do sujeito Aodestacar descontinuidades desde a Antiguidade ateacute a Modernidadeentre estiliacutesticas de si e teorias do sujeito Foucault permite vislum-brar uma resposta agrave questatildeo do tiacutetulo O expediente seria pensar aAntiguidade como um erro profundo sem com isso desconsiderar aatitude tambeacutem erraacutetica do homem modernoPalavras-chave Problematizaccedilatildeo Sujeito Atitude ModernidadeBaudelaire

Abstract This paper aims to comprehend Michel Foucaultrsquos state-ment that Antiquity would be ldquoa deep errorrdquo When he talks on poweror its relations with philosophy he displaces himself from a traditi-onal and ontological pretension to a practical one instead of askingldquowhatrdquo would be power and philosophy he seeks to comprehendldquohowrdquo they work Having in mind this theoretical displacementon ldquoproblematizationsrdquo we take as an example that on the subjectFoucault shows discontinuities soughed up for him since Antiquityto Modernity detailing differences between stylistics of self andtheories of the subject In such a way we found and answer to thetitle question The strategy is to think Antiquity as an error as wellas considering the erratic attitudes of the modern humankindKeywords Problematization Attitude Subject Modernity Baude-laire

Michel Foucault dedicou parte re-levante de sua vida agrave AntiguidadePor maiores que sejam as criacuteticasa suas posiccedilotildees teoacutericas ou a suasleituras seus trabalhos consti-

tuem uma referecircncia estimulantesobre a esteacutetica da existecircncia e ocuidado de si E no entanto emsua uacuteltima entrevista lemos o se-guinte juiacutezo ldquoToda a Antiguidade

Professor do Centro Universitaacuterio Unihorizontes Doutor em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica doRio de Janeiro (PUC-RJ) E-mail jeandyegogmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-1096-9686

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me parece ter sido um lsquoerro pro-fundordquorsquo Como entender algo tatildeoassertivo decidido e direto Se-ria contraditoacuterio estudar um de-terminado periacuteodo considerando-o um ldquoerro profundordquo Devemosignorar ou relativizar o que estaacutedito ou devemos tomaacute-lo a seacuterio

O enunciado em questatildeo surgepara noacutes hoje em meio a um con-junto de textos que recobrem tra-balhos do autor francecircs desde1954 ateacute poacutestumos publicados em1988 Os Dits amp Eacutecrits (FOU-CAULT 1994) de fato existe agraverevelia das recomendaccedilotildees testa-mentaacuterias de seu autor Sem nosdetermos sobre a questatildeo edito-rial pois tambeacutem eacute verdade queo agora publicado em conjuntofora antes publicado ou aprovadoseparadamente eacute preciso dizerque optamos por trabalhar nossaquestatildeo a partir de uma obra in-completa e natildeo aprovada por seuautor que se estabelece pelo seufocirclego ldquoespontacircneordquo em forma-tos diversos como uma espeacutecie deensaios de um montaigne no seacute-culo XX se o leitor me permite aexpressatildeo Ali reunidos eles pro-porcionam uma dimensatildeo uacutenicadas relaccedilotildees possiacuteveis entre as par-tes reunidas Assumindo tal pers-pectiva buscaremos compreenderessa afirmaccedilatildeo aparentemente ra-dical em correlaccedilatildeo com outrosenunciados que talvez ajudem asustentaacute-la Ao menos em um sen-

tido a analogia procede ambosfazem convergir um pensamentoinquieto em constante retomadacom a forma de vida em que seencontram (NEHAMAS 1998) eisso bastaria para dar atenccedilatildeo agravequestatildeo que Michel Foucault fezdespertar em noacutes

Contra ou a favor Em maio de1981 Foucault concede uma en-trevista a Didier Eribon seu fu-turo bioacutegrafo em que reitera umaposiccedilatildeo Ali ele sugere uma no-taacutevel atitude diante de ldquoum go-vernordquo ainda que aparentementefavoraacutevel ele natildeo soacute se dirigiaagravequele que acabava de ser eleitoFranccedilois Mitterand mas se refe-ria a um tema que agrave eacutepoca lhe erabastante caro

Eacute preciso sair do dilemaou se eacute a favor ou con-tra Depois de tudo pode-se estar de peacute e olhandoadiante Trabalhar comum governo natildeo implicanem sujeiccedilatildeo nem aceita-ccedilatildeo global Eacute possiacutevel agravesvezes trabalhar e ser re-belde Acho mesmo queas duas coisas vatildeo jun-tas (Foucault 1994-IV p180)

A configuraccedilatildeo do dilema eacute claraSe considerarmos haver um con-flito contiacutenuo em curso ser a fa-

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vor ou contra de maneira irrefle-tida ajuda pouco a sair do dilemaIsso porque suporiacuteamos posiccedilotildeestatildeo rigidamente encerradas queou se seria completamente a fa-vor ou completamente contra ig-norando uma infinita gradaccedilatildeo deposiccedilotildees entre os extremos A dig-nidade de olhar adiante passa pormanter uma atitude emancipadaque sabe simultaneamente traba-lhar e ser rebelde diante de umgoverno Trata-se de natildeo se sujei-tar de natildeo agir contra si mesmotampouco assumir uma posiccedilatildeode aceitaccedilatildeo mouca e global Fou-cault se propotildee a tarefa de con-frontar o presente isso implicaem ao experimentaacute-lo aprendera tomar posiccedilotildees discutir dialo-gar sobre o que nos tornamos eseremos Nessa medida poderiacutea-mos ceder a uma sugestatildeo tenta-dora a de que ele agiria como oexplorador que vai ateacute uma colocirc-nia penal Ali ele observaria osprocedimentos do aparelho ouem termos foucaultianos o fun-cionamento do dispositivo tirariasuas conclusotildees e esperaria que asimples discordacircncia performati-vamente bem cuidada diante dooficial fosse suficiente para pocircrtermo a uma situaccedilatildeo injusta

Em 1984 em conversa comAlessandro Fontana ele rechaccedilaessa posiccedilatildeo numa clara respostaa essa criacutetica Ali explicita a am-biguidade dos saberes relaciona-

dos ao corpo ciente de que aque-les sobre os quais ele havia se de-bruccedilado ao longo de sua trajetoacuteriaapresentaram mudanccedilas que ldquoti-nham sido profundamente beneacute-ficasrdquo Fontana emenda ldquoEntatildeoesses saberes nos ajudam a vivermelhorrdquo e ele esclarece

Natildeo houve uma simplesmudanccedila nas preocupa-ccedilotildees mas no discursofilosoacutefico teoacuterico e criacute-tico com efeito na maiorparte das anaacutelises feitasnatildeo se sugere agraves pessoaso que elas deveriam sero que deveriam fazer oque deveriam crer ou pen-sar Trata-se mais de fazeraparecer como ateacute o pre-sente os mecanismos soci-ais teriam se colocado emjogo como as formas derepressatildeo e de coerccedilatildeo te-riam agido e assim a par-tir daiacute me parece que sedaria agraves pessoas a possibi-lidade de se determinarde fazer ciente de tudoisso a escolha de sua exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 732)

Foucault natildeo sugere como jogar ojogo ou seja natildeo manifesta pre-ocupaccedilotildees normativas e vecirc issocomo uma mudanccedila no discurso

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filosoacutefico Como no caso de umtexto de jornal de Kant (2012Foucault 1978 2010) trata-se me-nos de dizer como o outro deveou natildeo agir e mais de sugerir queele pode agir diferentemente quepode ousar saber Em uma for-mulaccedilatildeo simples natildeo se trata deensinar como o jogo da verdadedeve ser jogado mas de analisarcomo ele vem sendo jogado parapermitir que cada um avance porsi mesmo nas jogadas Ao fazerisso todavia Foucault natildeo assumeuma posiccedilatildeo de observador exte-rior cujo objetivo seria o de sem-pre se posicionar ldquofora daquirdquoquixotescamente sem quaisquerprovisotildees e disposto a morrer defome se as condiccedilotildees forem ad-versas Ele faz suas anaacutelises parapermitir que cada um escolha osconflitos os jogos que deseja en-frentar Com isso ele natildeo desejaencontrar um lugar de plena auto-nomia individual mas sim permi-tir que cada um faccedila as escolhasde sua existecircncia um processocomplexo que depende simulta-neamente do desenvolvimento decapacidades bioloacutegicas e sociaiscapaz de permitir que ldquoos indi-viacuteduos determinem a si mesmosrdquosem que isso exija uma recusada liberdade social muito pelocontraacuterio permitindo simultanea-mente esse exerciacutecio por parte detodos

Judith Butler fornece uma com-

paraccedilatildeo bastante elucidativa sobreas relaccedilotildees entre o poder e os su-jeitos Para ela acostumamo-nosa pensar no poder como algo quepressiona o sujeito exteriormentesubordinando e relegando-o a or-dens inferiores o que seria umadescriccedilatildeo justa mas parcial doque faz o poder A autora no en-tanto adverte ldquose entendemoso poder tambeacutem como algo queforma o sujeito que determina aproacutepria condiccedilatildeo de sua existecircnciae a trajetoacuteria de seu desejo o po-der natildeo eacute apenas aquilo a que nosopomos mas tambeacutem e de modobem marcado aquilo de que de-pendemos para existir e que abri-gamos e preservamos nos seresque somosrdquo (Butler 2017 p 9)Em outros termos ela sugere queesses processos natildeo soacute perpetuamo jogo tal como foi jogado e contrao qual se opotildee como tambeacutem seo situarmos enquanto problemaisso assim o seraacute porque o quesomos estaacute ligado a ele Atraveacutesdeste problema compreendemoscomo nos tornamos o que somos

No iniacutecio do verbete sobre simesmo Foucault fornece duas de-finiccedilotildees negativas de sua histoacute-ria criacutetica do pensamento eluci-dativas nesse ponto a saber elanatildeo constitui uma ldquohistoacuteria dasideias que seria ao mesmo tempouma anaacutelise dos erros que se po-deria retrospectivamente mensu-rarrdquo tampouco ldquouma decifraccedilatildeo

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dos desconhecimentos pelos quaiselas estavam ligadas e das quaiso que pensamos hoje poderia de-penderrdquo (Foucault 1994-IV p631) Essa definiccedilatildeo desvia a posi-ccedilatildeo de Foucault de uma histoacuteriadas soluccedilotildees que desejasse res-ponder a problemas atuais comrespostas de um ontem Eacute pre-ciso considerar que para aceitarsoluccedilotildees de outrora para o agorapressuporriacuteamos uma medida a-histoacuterica para o que eacute certo e er-rado e a posiccedilatildeo de Foucault emseu retorno agrave antiguidade natildeo eacutea de decifrar algo que estaacute es-condido que supotildee agora mos-trar para solucionar um problemaatual

As duas definiccedilotildees negativasfornecidas colaboram para perce-ber como Foucault pretende natildeoceder agrave loacutegica do ldquocontra ou a fa-vorrdquo Ao propor uma histoacuteria criacute-tica ele natildeo cede agrave vontade de nor-malizar a histoacuteria a partir de cri-teacuterios ahistoacutericos ndash natildeo denega opresente em nome de uma nostal-gia do passado tampouco desen-volve uma necessidade incessantede tornar obsoleto o que passou apartir da hegemonia dos criteacuteriosdo presente Nota-se que ele natildeose arroga a pretensatildeo de falar dealgo que ningueacutem falou de deci-frar o desconhecido passando aolargo de preocupaccedilotildees com o des-velamento de totalidades escondi-das de sentidos profundamente

encobertos e de verdades uacuteltimase universais natildeo-reveladas

Antes de passarmos agrave definiccedilatildeopositiva eacute notaacutevel o sintagma su-gerido por ele para definir seu tra-balho de pesquisa a saber histoacuteriacriacutetica do pensamento Notaacutevel por-que uma ldquohistoacuteria criacuteticardquo por si soacutechama a atenccedilatildeo remete simulta-neamente ao legado kantiano dacriacutetica enquanto criacutetica da razatildeode seus limites de suas condiccedilotildeesde possibilidade transcendentaise remete tambeacutem ao trabalho deum historiador que nega a ne-cessidade de transcendentalidadepara se inspirar em um estilo bas-tante nietzschiano de fazer a his-toacuteria a ponto de aceitar a sugestatildeode que o que fazia no fundo erauma ldquonova genealogia da moralrdquo(Foucault 1994-IV p 731) En-tatildeo natildeo seria a ldquohistoacuteria criacutetica dopensamentordquo um sintagma para afilosofia de Foucault Ou ao menospara sua ldquohistoacuteria da filosofiardquo

A definiccedilatildeo positiva eacute fornecidaalgumas linhas depois a saberldquouma histoacuteria criacutetica do pensa-mento seria uma anaacutelise das con-diccedilotildees pelas quais satildeo formadas emodificadas certas relaccedilotildees entresujeito e objeto na medida em queambos satildeo constitutivos de um sa-ber possiacutevelrdquo (Foucault 1994-IVp 632) Aqui esbarramos em umdeslocamento importante Menosdo que saber o que eacute o sujeito ouo objeto questotildees caracteriacutesticas

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da histoacuteria tradicional da filosofiaFoucault fala de condiccedilotildees de for-maccedilatildeo e modificaccedilatildeo em termossemelhantes agraves condiccedilotildees de pos-sibilidade da criacutetica kantiana Po-reacutem nota-se um tom genealoacutegicoinconfundiacutevel uma vez que essascondiccedilotildees parecem remeter agraves en-fatizadas condiccedilotildees de proveniecircn-cia e emergecircncia de que fala o au-tor em seu ensaio sobre Nietzsche(Foucault 1994-IV p 136-57) Asquestotildees portanto satildeo diferentesMenos do que se perguntar peloldquoo que eacuterdquo numa busca que situaseu discurso num espaccedilo radical-mente a-historicizante Foucaultcoloca a pergunta ldquocomo se tor-nourdquo Eacute por isso que na sequecircnciadessa definiccedilatildeo ele precisaraacute o quechama de modos de subjetivaccedilatildeo ede objetivaccedilatildeo porque seu pen-samento dedica-se a se perguntarsobre como quais possibilidadesquem porque nos tornamos issoque somos atualmente

Nessa medida seu modo de fa-zer filosofia estaacute diretamente li-gado agrave histoacuteria mas natildeo eacute umahistoacuteria estrita da filosofia por-que para perceber como essesldquomodosrdquo satildeo constitutivos de umsaber possiacutevel ele natildeo se restringeaos ldquomodosrdquo da filosofia tradicio-nal que se potildee a pergunta sobre oque natildeo pode responder em buscade um saber impossiacutevel sobre aessecircncia atemporal a origem dascoisas ou o fundamento universal

da eacutetica ldquoHistoacuteria criacutetica do pen-samentordquo pode ser um dos sintag-mas da filosofia na medida em quepercebemos a filosofia como ativi-dade de compreensatildeo de nossaspraacuteticas como um modo de sabero que nos tornamos bem comotornamos certos objetos possiacuteveisEla seria uma nova maneira de nu-trir essa amizade pelo que aindanatildeo sabemos mas que ao contraacute-rio de dirigir suas duacutevidas na di-reccedilatildeo do infinito se pergunta pe-las coisas da vida presente pelomodo de vida atual

Assim ele escapa aos dilemas daquestatildeo ontologicamente norma-tiva a saber de se perguntar ldquooque eacuterdquo Se aceitarmos que os im-passes para responder a essa ques-tatildeo estatildeo ligados a uma demandapor ser ldquoa favor ou contrardquo a cer-tos pressupostos ontoloacutegicos in-conscientes percebemos simulta-neamente a historicidade da ques-tatildeo ou seja como cada eacutepoca ex-clui ou aceita respostas especiacutefi-cas para a questatildeo segundo pres-supostos partilhados Isso ine-vitavelmente salienta a normati-vidade implicada por esse tipode suposiccedilatildeo ontoloacutegica A issoFoucault denominaraacute atos de pro-blematizaccedilatildeo Embora soacute a te-nha ldquoisoladordquo suficientemente emseus uacuteltimos escritos como ad-mite ldquoas coisas mais gerais satildeo asque aparecem em uacuteltimo lugarrdquo(Foucault 1994-IV p 670) ele

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deixa claro que problematizaccedilatildeoldquoeacute o conjunto das praacuteticas discur-sivas e natildeo-discursivas que faz al-guma coisa entrar no jogo do ver-dadeiro e do falso e o constituicomo objeto para o pensamentordquo(Foucault 1994-IV p 671)

Um exemplo pode jaacute ser obser-vado retroativamente Em As pa-lavras e as coisas Foucault sugereuma histoacuteria do mesmo de comocada eacutepoca dentro daquele recortefoi capaz de estabelecer para simesmo um modo especiacutefico decolocar a questatildeo ldquoo que eacuterdquo erespondecirc-la segundo certas possi-bilidades regulando e excluindorespostas Ao fazer essa histoacuteriado mesmo ele natildeo estaacute sugerindoque o que se deu foi mesmo assimmas que esse mesmo alterou-secom a passagem de um conjuntode saberes formados a partir dasemelhanccedila para outros forma-dos a partir da representaccedilatildeo e dasignificaccedilatildeo (FOUCAULT 2007)O modo de problematizar se alte-rou Assim ele encontra uma ma-neira de narrar como nos tornamoso que somos e natildeo de responderdefinitivamente agrave questatildeo sobre oque somos

Mas em quecirc tudo isso encerrao dilema de ser contra ou a favorde alguma coisa Como essa his-toacuteria criacutetica do pensamento ajudaa se situar na luta Na medidaem que ela desafia o que existemenos do que propotildee alternati-

vas na medida em que situa seutrabalho ldquoentre as pedras de es-pera e os pontos de suspensatildeordquo demodo a ldquoabrir um canteiro ten-tar e falhar recomeccedilar outra vezrdquo(Foucault 1994-IV p 20) As me-taacuteforas arquitetocircnicas constantesno trabalho de Foucault (Deleuze2006 p 280) remetem a um pro-cesso inacabado e contiacutenuo as pe-dras de espera satildeo aquelas queengastadas em outras peccedilas ou pi-sos permitem o acoplamento pos-terior de uma peccedila exterior (Al-bernaz amp Lima 1998-I p 235)os pontos de suspensatildeo lembramos balancins que sobem e descemas construccedilotildees os guindastes queelevam caccedilambas de concreto Eisuma obra a desse francecircs de Poiti-ers que natildeo termina porque abrecanteiros porque natildeo se funda emprofundidades imemoriais por-que natildeo tem intenccedilotildees panoacutepti-cas mas se dedica ao presente aum solo temporal sobre o qual ca-minhar e questiona construccedilotildeesteoacutericas demasiado faraocircnicas

Evidentemente as metaacuteforasarquitetocircnicas jaacute satildeo quase ca-tacreses na histoacuteria da filosofiafala-se da busca por ldquofundamen-tosrdquo com a mesma espontanei-dade de um arquiteto que fala dosldquodentesrdquo de uma ldquocolunardquo Aoutilizaacute-las Foucault nitidamentedesvia-se de seu uso naturalizadoao se remeter para um conjunto deelementos errantes e passageiros

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nada fundacionais uma vez quetanto as esperas quanto os pon-tos de suspensatildeo nos remetem aosceacuteticos para quem a busca de umfundamento natildeo faz qualquer sen-tido Em 1984 um entrevistadorlhe pergunta se na medida emque natildeo afirma verdade univer-sais em que conduz o pensamentoa paradoxos bem como ldquofaz da fi-losofia uma questatildeo permanenterdquoFoucault natildeo seria um pensadorceacutetico sua resposta foi a seguinte

- Completamente [Absolu-ment] A uacutenica coisa quenatildeo aceitaria no programaceacutetico eacute a tentativa queos ceacuteticos fizeram de che-gar a um certo nuacutemero deresultados em uma dadaordem ndash pois o ceticismonunca foi um ceticismo to-tal Tentei levantar os pro-blemas nos campos dadose em seguida fazer va-ler no interior de outroscampos as noccedilotildees efetiva-mente consideradas comovaacutelidas em segundo lu-gar me parece que paraos ceacuteticos o ideal seria serceacutetico sabendo relativa-mente pouca coisa mas assaber de maneira segurae imprescritiacutevel enquantoque o que gostaria de fa-zer eacute um uso da filosofiaque permita limitar os do-

miacutenios do saber (Foucault1994-IV p 707)

Uma interpretaccedilatildeo distorcida doque Foucault gostaria de fazer en-quanto pensador ceacutetico pode serdesastrosa Ele natildeo eacute contra oua favor dos domiacutenios do saber ndashnatildeo se trata de saber pouco se-guramente tudo a partir de umaduacutevida radical ou nada como fi-nalidade ataraacutexica do ceacutetico Seuobjetivo claro de ldquolimitar os do-miacutenios do saberrdquo eacute ceacutetico na me-dida em que assinala que a apli-caccedilatildeo e o uso desses saberes satildeovaacutelidas para a experiecircncia poreacutemdevem ser confrontadas com ou-tras praacuteticas que natildeo se consti-tuem como saberes ndash e o trabalhoda filosofia parece ser o de assi-nalar as possibilidades emergen-tes quando nos deparamos comessas experiecircncias-limite Em ou-tros termos ldquolimitar os domiacuteniosdo saberrdquo passa por ldquoproblemati-zarrdquo as ldquoexperiecircncias-limiterdquo quefuncionam como ldquopontos de sus-pensatildeordquo e ldquoesperasrdquo no jogo doverdadeiro e do falso

Atraveacutes dessa perspectiva esta-mos mais aptos a notar como suamaneira de fazer histoacuteria ajuda acompreender que ldquoimaginar umoutro sistema atualmente aindafaz parte do sistemardquo Numaconversa em 1971 Foucault citaexemplos dessa problematizaccedilatildeodos modos de vida ldquoa sociedade

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A ANTIGUIDADE UM ERRO PROFUNDOndash FOUCAULT A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

futura se esboccedila talvez atraveacutesde experiecircncias como a droga osexo a vida comunitaacuteria umaoutra consciecircncia um outro tipode individualidade Se o socia-lismo cientiacutefico se libera das uto-pias do seacuteculo XIX a socializaccedilatildeoreal liberar-se-aacute talvez no seacuteculoXX das experiecircnciasrdquo (Foucault1994-II p 234) Menos do queser a favor ou contra as drogas osexo liberal a vida comunitaacuteriaFoucault assinala a importacircnciadessas experiecircncias como iacutendicesdos limites do saber meios para aproblematizaccedilatildeo dos modos pelosquais vivemos Para compreendermelhor a analogia feita nessa con-versa pode ser instrutivo retornarao Manifesto Comunista cito-o

A importacircncia do soci-alismo e do comunismocriacutetico-utoacutepicos estaacute narazatildeo inversa de seu de-senvolvimento histoacutericoAgrave medida em que a lutade classes se acentua etoma formas mais defi-nidas a fantaacutestica oposi-ccedilatildeo que lhe eacute feita perdequalquer valor praacutetico equalquer justificativa teoacute-rica Por isso se em mui-tos aspectos os fundado-res desses sistemas eramrevolucionaacuterios as seitasformadas por seus disciacute-pulos formam sempre sei-

tas reacionaacuterias Aferram-se agraves velhas concepccedilotildeesde seus mestres apesar dodesenvolvimento histoacute-rico contiacutenuo do proletari-ado Procuram portantoe nisto satildeo consequentesatenuar a luta de classese conciliar antagonismosContinuam a sonhar coma realizaccedilatildeo experimen-tal de suas utopias sociaisinstituiccedilatildeo de falansteacuteriosisolados criaccedilatildeo de colocirc-nias no interior fundaccedilatildeode uma pequena Icaacuteria ndashediccedilatildeo em formato redu-zido da nova Jerusaleacutem ndashe para dar realidade a to-dos esses castelos no arveem-se obrigados a ape-lar para os bons sentimen-tos e os cofres dos filan-tropos burgueses Poucoa pouco caem na catego-ria de socialistas reacionaacute-rios ou conservadores des-critos anteriormente e soacutese distinguem deles porum pedantismo mais sis-temaacutetico uma feacute supersti-ciosa e fanaacutetica nos efeitosmiraculosos de sua ciecircn-cia social (Marx amp Engels2010 67-8)

Esse trecho exprime sumaria-mente a relaccedilatildeo dos autores dosocialismo cientiacutefico com as uto-

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pias do seacuteculo XIX Eles ressal-vam com precisatildeo os riscos quea adesatildeo irrefletida a uma posiccedilatildeogera nomeadamente quando ela eacuteutoacutepica ou seja quando quer de-fender e ldquodar realidaderdquo a castelosno ar Inspirando talvez as ceacutele-bres comparaccedilotildees de Slavoj Žižek(2018) sobre como o uso do po-liticamente incorreto responde agraveexigecircncia normativa do politica-mente correto como duas faces deuma mesma moeda Karl Marx eFriedrich Engels sugerem que ossocialistas utoacutepicos diferenciam-se em muito pouco de socialistasreacionaacuterios e conservadores Oque os separa eacute somente um pe-dantismo baseado na ciecircncia so-cial bastante semelhante agravequelede quem busca raiacutezes etimoloacutegi-cas ou histoacutericas para justificarinterditos politicamente corretosem torno de palavras jaacute ressignifi-cadas pelo uso Ao criticar uto-pistas tais como Fourier Cabete Owen Marx e Engels marcamuma posiccedilatildeo que retoma as praacuteti-cas reais das classes para alterara realidade ao inveacutes de dar reali-dade a um objeto de uma imagi-naccedilatildeo singular Eles natildeo satildeo con-tra ou a favor dos utopistas masmostram simultaneamente a im-portacircncia e a posterior decadecircn-cia dessa posiccedilatildeo Aleacutem disso orecurso ldquoaos bons sentimentos eaos cofres filantropos burguesesrdquodestaca o quanto ldquoimaginar ou-

tro sistema atualmente faz partedo sistemardquo Sem esses bons sen-timentos nutridos por burguesesseria bastante improvaacutevel que ahistoacuteria do socialismo e do anar-quismo pudesse assinalar o pio-nerismo utoacutepico dos falansteacuterios eicaacuterias

Com esse exemplo pretende-mos esclarecer melhor a ambi-guidade presente no segundo ele-mento da comparaccedilatildeo anterior-mente elaborada por Foucault Aosugerir que uma sociedade futurase esboccedila a partir de certas praacute-ticas marginalizadas ele assinalacomo se daacute o processo atraveacutes doqual imaginar outra existecircncia sedaacute dentro dessa existecircncia A cul-tura hippie dos anos 1970 expe-rimentou com propriedade essapossibilidade Uma geraccedilatildeo dejovens criados em famiacutelias estru-turadas e com condiccedilotildees variadassonhou com um futuro de paz e deamor em um mundo sem paiacuteses esem religiotildees em que todos vive-riam intensamente o agora O queestaacute culturalmente manifesto emfilmes como Hair de Milos Formanou em canccedilotildees como ldquoImaginerdquode John Lennon soa semelhanteaos experimentos dos utopistas aomenos em um aspecto satildeo sonhosgeminados e resultantes dos limi-tes colocados pelos proacuteprios sabe-res vigentes de entatildeo Diante deuma economia baseada na propri-edade privada que separa posses-

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sotildees pessoais da mesma maneiraque paiacuteses inteiros em um mundoem que as divergecircncias datildeo azo aguerras por territoacuterios sagradospor poccedilos de petroacuteleo ou mesmopor condiccedilotildees miacutenimas de vidaenfim diante de tantos conflitosimaginar outro sistema em que to-dos partilham o mesmo mundo eacutealgo que natildeo deve nos demover depensar que esses sonhos satildeo pro-dutos derivados desses conflitoscomo uma reaccedilatildeo utoacutepica eacute ver-dade mas uma reaccedilatildeo um vetorde forccedila

A socializaccedilatildeo real de que falaFoucault todavia natildeo corres-ponde a essa utopia hippie Suasugestatildeo eacute a de que da mesmamaneira que o socialismo cientiacute-fico precisou criticar o socialismoutoacutepico compreendendo todaviasua originalidade assim tambeacutemnum futuro proacuteximo um conjuntode saberes compreenderaacute a origi-nalidade contida nas experiecircnciasdessa geraccedilatildeo todavia criticando-a em aspectos considerados utoacute-picos A execuccedilatildeo de projetos epesquisas cientiacuteficas atraveacutes de fi-nanciamento coletivo a profissio-nalizaccedilatildeo da prostituiccedilatildeo em luga-res como a Holanda ou a legaliza-ccedilatildeo de certas drogas pode ser vistacomo a socializaccedilatildeo real resul-tante dessas ldquoutopiasrdquo do seacuteculoXX Manifestaccedilotildees essas diga-sede passagem tambeacutem sujeitas acriacuteticas bem como foi o caso do

socialismo cientiacutefico de Marx eEngels pois eacute nesse jogo de rein-venccedilatildeo contiacutenua entre atos de pro-blematizaccedilatildeo incessantes que natildeose para de imaginar outro sistemaou outro problema atualmente na-quele em que se vive

A atitude Com isso em mentepodemos retomar a questatildeo Senatildeo se trata de ser a favor ou con-tra mas de problematizar comosupor que a Antiguidade eacute umerro O enunciado surgiu em ldquoOretorno da moralrdquo uacuteltima entre-vista concedida por Foucault

- Um estilo de existecircnciaeacute admiraacutevel Vocecirc acha osgregos admiraacuteveis

- Natildeo

- Nem exemplares nemadmiraacuteveis

- Natildeo

- O que vocecirc acha deles

- Natildeo tatildeo excelentes Elestoparam imediatamentecontra o que me pareceser o ponto de contradi-ccedilatildeo da moral antiga en-tre de um lado a buscaobstinada por um certoestilo de existecircncia e deoutro o esforccedilo por tornaacute-lo comum a todos estiloque os aproximou sem duacute-vida mais ou menos obs-curamente de Secircneca e de

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Epiteto mas que soacute en-controu a possibilidade dese investir no interior deum estilo religioso Todaa Antiguidade me pareceter sido um ldquoerro pro-fundordquo (Foucault 1994-IV p 698)

Natildeo seria difiacutecil acusar Foucaultde generalizaccedilatildeo apressada ao di-zer que ldquotoda a Antiguidade pa-rece ter sido um lsquoerro profundordquorsquoUm comentador distraiacutedo pode-ria se desviar desse enunciado eapresentar as diversas anaacutelises doautor sobre a esteacutetica da existecircn-cia a parresiacutea o uso dos prazereso cuidado de si sobre as tentaccedilotildeesda carne enfim toda uma histoacute-ria criacutetica da sexualidade que en-contraraacute na Antiguidade em sen-tido amplo do termo dos gregosdo seacuteculo IV aC aos cristatildeos umfoco de atenccedilatildeo nos uacuteltimos anosde vida como assinala FreacutedeacutericGros editor dos uacuteltimos cursos deFoucault (in Lawlor 2014 p 556)Com isso essa personagem se des-viaria do problema e natildeo fariamais do que parafrasear leiturassem exercer uma atitude criacuteticatanto diante do que sugere Fou-cault quanto da proacutepria Antigui-dade sustentando assim uma ade-satildeo irrefletida aos temas de pes-quisa levantados por Foucault Oproacuteprio Freacutedeacuteric Gros natildeo se de-mite de salientar algo relevante

fornecendo uma pista sobre comocompreender esse enunciado aosugerir que ldquoos antigos para Fou-cault perturbam nossas moder-nas certezas E eles estavam ap-tos para tanto para nos perturbardesse modo natildeo porque as verda-des deles seriam mais verdadei-ras do que as nossas mas porqueelas eram outrasrdquo (Idem p 559)Assim menos do que adotar umapostura nostaacutelgica o comentaacuteriode Gros sugere que as problema-tizaccedilotildees da Antiguidade feitas porFoucault constituem uma alteri-dade relevante para a nossa atu-alidade e natildeo simplesmente umrepositoacuterio de soluccedilotildees a seremnovamente traduzidas e cataloga-das Com isso em mente tentare-mos perceber melhor em que me-dida Foucault estaria se referindoagrave Antiguidade como um erro pro-fundo uma vez cientes de que eleretorna a ela despertando um en-canto indisfarccedilaacutevel por parte demuitos leitores

Mais adiante ainda na mesmaentrevista ele continua ldquoTodaa experiecircncia Grega pode ser re-vista um pouco da mesma ma-neira tendo em conta em cadacaso as diferenccedilas de contextoe indicando a parte dessa expe-riecircncia que pode talvez se sal-var e aquela que pelo contraacuteriose pode abandonarrdquo (Foucault1994-IV p 702) A sugestatildeo eacutea de que ao retornar aos antigos

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e problematizar certas experiecircn-cias tornamo-nos aptos a perce-ber o quanto somos diferentes enatildeo tanto o quanto podemos sersemelhantes Nesse sentido par-tes da experiecircncia da AntiguidadeGrega podem ser abandonadase evidentemente outras acabampor ser salvas Essa sugestatildeo aindaum tanto vaga natildeo especifica qualseria esse erro profundo mas per-mite supor que haacute algo de erradoa ser abandonado

No final da entrevista no en-tanto ao ser confrontado com aquestatildeo sobre se haveria ou natildeouma teoria do sujeito entre os gre-gos Foucault esclarece que natildeoacredita ser necessaacuterio reconsti-tuir ldquouma experiecircncia do sujeitordquona Greacutecia Isso porque a experi-ecircncia ou seja a maneira de pro-blematizar a si mesmos dos gre-gos natildeo exigia uma ldquodefiniccedilatildeo desujeitordquo Ele sugere ainda que ba-seado na literatura se ldquonenhumpensador grego nunca encontrouuma definiccedilatildeo de sujeito nemnunca a buscou diria simples-mente que natildeo haacute um sujeitordquo istoeacute natildeo haacute uma teoria nesse sen-tido porque natildeo haacute problemati-zaccedilatildeo nesse sentido Todavia eleressalva

O que natildeo quer dizer queos gregos natildeo se esfor-cem por definir as condi-ccedilotildees pelas quais se daria

uma experiecircncia que natildeo eacuteaquela do sujeito mas doindiviacuteduo na medida emque ele busca se constituircomo mestre de si Faltavaagrave Antiguidade Claacutessica terproblematizado a consti-tuiccedilatildeo de si como sujeitoinversamente a partir docristianismo houve o con-fisco da moral pela teo-ria do sujeito Ora umaexperiecircncia moral essen-cialmente centrada sobreo sujeito natildeo me parecemais satisfatoacuteria hoje Epor isso mesmo um certonuacutemero de questotildees secolocam a noacutes nos mes-mos termos em que elasse colocaram na Antigui-dade (Foucault 1994-IVp 706)

Do fato histoacuterico de natildeo haveruma noccedilatildeo de sujeito natildeo se se-gue que natildeo haja algum tipo deexperiecircncia de si na Greacutecia ou emoutros termos se o sujeito natildeo eacuteproblematizado pelos gregos haacutetodavia uma problematizaccedilatildeo so-bre si mesmo presente na Antigui-dade Claacutessica como Foucault vaidesenvolver no segundo volumede sua histoacuteria da sexualidade Ouso dos prazeres (1984) A esteacuteticada existecircncia eacute vista por Foucaultcomo um dos modos de sujeiccedilatildeopelos quais o indiviacuteduo se encon-

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tra vinculado a um conjunto deregras e de valores caracterizadoneste caso pelo ideal de viver be-lamente de ser mestre de si ede deixar uma memoacuteria de umaexistecircncia bela (Foucault 1994-IV p 384 397 CASTRO 2009p151) Todavia o que natildeo haacutena problematizaccedilatildeo grega sobrecomo ser mestre de si eacute a subor-dinaccedilatildeo dessa esteacutetica da existecircn-cia a uma moral o que seraacute feitopelo cristianismo atraveacutes de umateoria do sujeito ou seja da subor-dinaccedilatildeo da sujeiccedilatildeo do indiviacuteduoa um conjunto de princiacutepios mo-rais Com essa teoria do sujeitoo cristianismo proporaacute uma novaproblematizaccedilatildeo que ldquoconfisca amoralrdquo restringindo-a a possibi-lidades dadas por essa teoria Jaacutenatildeo se pensa mais em como criarpara si uma existecircncia boa e belanuma esteacutetica da existecircncia seme-lhante agrave dos gregos mas a partirde uma teoria sobre como o indi-viacuteduo deve ou natildeo se sujeitar

Evidentemente toda a criacuteticaempreendida em direccedilatildeo agrave no-ccedilatildeo de sujeito natildeo estaacute sendo re-negada por Foucault em nomede uma nova teoria do sujeito epor isso ldquouma experiecircncia moralrdquocentrada sobre tal noccedilatildeo natildeo pa-rece satisfatoacuteria para a problema-tizaccedilatildeo da atualidade Nos tem-pos em que ldquoDeus morreurdquo nummundo desencantado natildeo faz maissentido insistir numa problema-

tizaccedilatildeo centrada na noccedilatildeo de su-jeito Ela tornou-se uma posiccedilatildeoestrateacutegica dissolvida na praacuteticada linguagem natildeo estando elamais submetida necessariamentea uma experiecircncia moral especiacute-fica como a do cristianismo (Fou-cault 2007) Como Foucault su-gere na entrevista a AlessandroFontana ldquopenso efetivamente quenatildeo haacute um sujeito soberano fun-dador uma forma universal desujeito que se poderia reencon-trar em todos os lados Sou bas-tante ceacutetico e bem hostil para comessa concepccedilatildeo de sujeitordquo (Fou-cault 1994-IV p 733) Natildeo se-ria a primeira vez que esse ceti-cismo se manifestaria A despeitodos deslocamentos teoacutericos ofe-recidos pelos textos em torno daAntiguidade a problematizaccedilatildeoem torno desse sujeito soberanoemergente no cristianismo eacute re-corrente (FOUCAULT 1944-IV p223 633-4 657) Com isso emmente podemos retomar o trechosupracitado de sua uacuteltima entre-vista

A busca de estilos de exis-tecircncia tatildeo diferentes unsdos outros quanto possiacute-veis me parece um dospontos pelos quais a buscacontemporacircnea de umaforma de moral que se-ria aceitaacutevel para todomundo ndash no sentido de

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que todo mundo deveriaa ela se submeter ndash me pa-rece catastroacutefica Mas se-ria um contrassenso que-rer fundar uma moral mo-derna sobre a moral an-tiga passando por cima damoral cristatilde Se eu empre-endi um estudo tatildeo longoseria para tentar eviden-ciar como o que chama-mos de moral cristatilde estaacuteincrustado na moral euro-peia natildeo soacute desde os pri-moacuterdios do mundo cris-tatildeo mas desde a moral an-tiga (Foucault 1994-IV p706-7)

Esse comentaacuterio colabora paraelucidar com mais clareza porqueele considera que Antiguidade se-ria um erro profundo sem quecom isso se incorra em algum tipode avaliaccedilatildeo anacrocircnica Foucaultsalienta que a busca de uma moralpara todos seria catastroacutefica emsua atualidade exatamente porquea problematizaccedilatildeo atualmente eacuteoutra Uma vez que natildeo haacute maiso problema do sujeito soberanoa questatildeo deixa de ser aquela re-lativa agrave forma universal para aqual uma esteacutetica da existecircnciaou uma teoria do sujeito morali-zadora para todos se remeteriam

Em todo caso para que isso setornasse claro Foucault argumen-tou em sua Histoacuteria da Sexuali-

dade (1984 1985 2018) no sen-tido de mostrar como o sujeito natildeoeacute um problema que desde sem-pre existiu para a moral europeiaponto de emergecircncia das moraisditas ocidentais Ele emergiu emdeterminado momento criandoum problema que natildeo existia paraos gregos surgiu a partir dos cris-tatildeos graccedilas ao ldquoconfisco da moralrdquoda Antiguidade e que provavel-mente com a busca por estilos deexistecircncia tatildeo diferentes uns dosoutros na atualidade ele deixoude poder ser problematizaacutevel tal equal Segundo a sugestatildeo de Be-atrice Han ldquoo modelo grego de-sempenha o papel de uma matrizmais simples de avaliar a moder-nidade a contrariordquo (Han 2012p 10) Em termos simplificado-res por um lado Foucault sugereque para os gregos haacute esteacutetica daexistecircncia sem uma teoria do su-jeito mas com um objetivo deter-minado ndash o de ser mestre de sio de ter segundo o estilo idealuma existecircncia boa e bela e poroutro para boa parte do cristia-nismo (Foucault ressalva algumasseitas asceacuteticas) essa experiecircnciade busca de um estilo eacute confiscadapela moral permitindo o surgi-mento de uma teoria do sujeito oque anula a necessidade de se tor-nar mestre de si uma vez que seestaacute assujeitado Cito-o

Esta elaboraccedilatildeo de sua

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proacutepria vida como umaobra de arte pessoalmesmo que ela obedeccedilaa cacircnones coletivos es-tava no centro me pareceda experiecircncia moral davontade de moral da An-tiguidade bem como noCristianismo com a reli-giatildeo do texto a ideia deuma vontade de Deus e oprinciacutepio de obediecircncia amoral ganha muito maisa forma de um coacutedigo deregras (somente algumaspraacuteticas asceacuteticas estive-ram mais ligadas ao exer-ciacutecio de uma liberdadepessoal) Da Antiguidadeao cristianismo passe-sede uma moral que era es-sencialmente uma buscade uma eacutetica pessoal auma moral como obedi-ecircncia a um sistema de re-gras E se eu me inte-ressei pela Antiguidadeeacute que por toda uma seacute-rie de razotildees a ideia deuma moral como obediecircn-cia a um coacutedigo de regrasestaacute prestes agora a de-saparecer senatildeo jaacute desa-pareceu E a essa ausecircnciade moral deve responderuma busca que eacute aquelade uma esteacutetica da exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 731)

O ldquoerrordquo aparece aqui de formamais clara e menos vaga apesarde terem sabido elaborar uma es-teacutetica da existecircncia ou seja ape-sar de terem sido capazes de con-ceber a proacutepria existecircncia en-quanto indiviacuteduos como umaobra de arte pessoal os antigos ofaziam tendo em vista cacircnones co-letivos Eacute por isso que por maisintrigante e estimulante que sejapensar na problemaacutetica de umaesteacutetica da existecircncia a partir dosgregos ela eacute completamente dis-tinta da nossa experiecircncia porqueali se tratava de criar uma vidacomo obra a partir de uma esti-liacutestica preacute-concebida ou se qui-sermos de uma retoacuterica do queseria a boa vida A Antiguidadeseria um erro para Foucault namedida em que entatildeo se acredi-tava ser possiacutevel imaginar um es-tilo que seria o bom e o belo es-tabelecendo uma verdade do bemagir Essa estilizaccedilatildeo engessada dobem viver daacute lugar com o cristia-nismo a um coacutedigo de regras fun-dado presumidamente na vontadede seu Deus e no princiacutepio de obe-diecircncia Desaparece a experiecircn-cia da estilizaccedilatildeo da existecircncia apartir de modelos preacute-concebidospara dar lugar agrave teoria do sujeitoRetornar a ambos natildeo seria umasoluccedilatildeo para pensar a moderni-dade mas serve para compreen-der agrave nossa maneira de problema-

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tizar que conforme a sugestatildeo an-terior de Foucault depende dessesdois elementos a saber da reto-mada plural de uma esteacutetica daexistecircncia de um modo desconhe-cido ateacute entatildeo e de uma dissoluccedilatildeoda teoria do sujeito soberano

Se os gregos satildeo uma matriz aocontraacuterio isso se daacute porque se in-vertermos o modo como eles pro-blematizavam a proacutepria existecircn-cia encontramos algo semelhantea atitude moderna Ao retirar-mos daquela esteacutetica da existecircn-cia sua finalidade ou seja a ne-cessidade de fazer coincidir a vidacomo obra de arte com a vidaboa e bela segundo um estilopreacute-determinado estaremos di-ante da atitude moderna que Fou-cault exemplifica atraveacutes de certaleitura de Kant como vemos emldquoO que satildeo as Luzesrdquo

Ao me referir ao texto de Kantme pergunto se natildeo se pode con-siderar a modernidade como umaatitude mais do que como um pe-riacuteodo histoacuterico Por atitude querodizer um modo de relaccedilatildeo queconcerne agrave atualidade uma esco-lha voluntaacuteria que se faz por al-guns enfim uma maneira de pen-sar e de sentir uma maneira tam-beacutem de agir e de se conduzir quede uma soacute vez marca uma perti-necircncia e se apresenta como umatarefa Um pouco sem duacutevidacomo o que os gregos chamamde eacutethos Por conseguinte mais

do que querer distinguir o ldquope-riacuteodo modernordquo das eacutepocas ldquopreacuterdquoe ldquopoacutesrdquo modernas creio que seriamelhor investigar como a atitudeda modernidade desde que ela seforma se encontra em luta comatitudes de ldquocontramodernidaderdquo(Foucault 1994-IV p 568)

Nota-se aqui como esse ldquoerrordquoprofundo ajuda a pensar Comosugere Deleuze ldquoFoucault dizos gregos fizeram muito menosou muito mais como quiseremrdquo(1988 p 121) de modo que natildeose trata de reproduzir o eacutethos ou aatitude dos gregos Se eacutethos eacute co-mumente traduzido por haacutebito oucostume perde-se evidentementea especificidade que essa palavrapossui e mesmo a disputa emtorna de seu sentido Barbara Cas-sin sugere em seu verbete ldquoMo-raisrdquo do Dicionaacuterio dos intraduziacute-veis (2014 p 691-3) que muitasdas dificuldades e mesmo das con-fusotildees entre costumes e moraisentre morais e eacuteticas derivam deuma concepccedilatildeo de eacutethos Ela as-sinala em sua sumaacuteria abordagemdesse problema um interessantequiasma inicial presente entre ossentidos filosoacuteficos do termo atri-buiacutedos por Platatildeo e Aristoacutetelesldquoonde Platatildeo conforta o natura-lista com o argumento de que ohaacutebito eacute inato Aristoacuteteles neutra-liza o que eacute dado para noacutes comonatural argumentando pela res-ponsabilidade praacuteticardquo (2014 p

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693) Se por um lado haveria umanaturalizaccedilatildeo do eacutethos por outroele seria da ordem do que eacute inven-tado nutrido criado Aristoacutetelesque teria inovado com o tiacutetulo desua Eacutetica (2014 p 692) eacute particu-larmente importante para a com-preensatildeo do sentido de eacutetica comoaccedilatildeo ou ato como sugere Cassinao recolher passagens da Poeacuteticada Retoacuterica e da Eacutetica NicomaqueiaO que gostariacuteamos de salientarantes de retomar o nosso pontoeacute o elemento ativo destacado pelaautora em sua leitura de Aristoacutete-les Ao contraacuterio do que as tradu-ccedilotildees por haacutebito ou costume pode-riam levar a supor a saber de queeacutethos eacute algo que passivamente seforma no indiviacuteduo Cassin sugerea ligaccedilatildeo fundamental entre eacutethose a praacutetica ativa de uma virtude(2014 p 692) Por fim ela su-gere ldquoque a maioria dos filoacutesofosque buscaram definir os termos[gregos ligados ao eacutethos] em suasproacuteprias linguagens como Ciacuteceroou GWF Hegel tentaram encon-trar um conjunto de problemaacuteti-cas equivalentes para a Greacutecia as-sim situando a tarefa da traduccedilatildeono coraccedilatildeo de sua reflexatildeordquo (2014p 693)

O primeiro elemento de con-traste da sugestatildeo de Foucaultcom uma tradiccedilatildeo de interpreta-ccedilatildeo do eacutethos surge indiciariamenteaqui porque a equivalecircncia en-tre eacutethos e atitude eacute improvaacutevel

apesar de possiacutevel O autor pro-vavelmente ciente da disputa emvolta do termo sugere menos doque afirma Ele diz ldquoum poucosem duacutevidardquo ldquoUm poucordquo por-que evidentemente a problemati-zaccedilatildeo grega natildeo eacute equivalente agravemoderna e por isso eacutethos e ati-tude seriam duas coisas distintase intraduziacuteveis entre si Sem duacute-vida guardam alguma coisa emcomum porque em ambos os ca-sos algo da conduccedilatildeo de si estaacuteem questatildeo Natildeo agrave toa atitudeeacute definida aqui como uma ma-neira de governar a si mesmoisto eacute de agir de se conduzirperante os outros todavia ativauma vez resultante de uma es-colha e imbuiacuteda de uma tarefaA atitude da modernidade defi-nida no texto de Kant como aquelade sapere aude (KANT 2012) ouseja de emancipar-se numa ati-tude de maioridade de ousadiae de coragem de buscar a ver-dade seraacute exemplificada por Fou-cault atraveacutes da figura de Baude-laire em uma vontade de ldquoheroi-cizar o presenterdquo Heroicizaccedilatildeoirocircnica uma vez que natildeo se tratada sacralizaccedilatildeo de um momentoou da tentativa de perpetuaacute-lobem como natildeo se trata de se re-colher numa curiosidade fugidiade uma atitude de flanecircrie que secontenta em prestar atenccedilatildeo emcoisas distraidamente e colecio-nar lembranccedilas sem qualquer cri-

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teacuterio A essa atitude Baudelaireopotildee aquela do homem da moder-nidade Cito um trecho de O pin-tor da vida moderna

Ele vai corre procuraSeguramente esse ho-mem esse solitaacuterio do-tado de uma imaginaccedilatildeoativa sempre viajandoatraveacutes do grande desertode homens tem uma ta-refa mais elevada do queaquela de um puro flacirc-neur uma tarefa mais ge-ral diferente da do pra-zer fugidio da circunstacircn-cia Ele busca algo quenos permitiratildeo chamar demodernidade Trata-separa ele de destacar damoda o que ela pode con-ter de poeacutetico no histoacute-rico (Baudelaire apud Fou-cault 1994-IV p 569-70)

Com essa retomada de Baude-laire Foucault enceta uma ma-neira diferente de encarar a in-venccedilatildeo de si mesmo porque natildeose trata simplesmente de se rela-cionar com uma interioridade fu-gidia mas de atraveacutes do enfren-tamento dessa solidatildeo encontraralgo ldquopoeacutetico no histoacutericordquo Se aAntiguidade eacute um erro profundoassim seria na medida em quea tarefa de viver uma vida bela

e boa natildeo dependeria desse ca-raacuteter continuamente investigativoe imaginativo tiacutepico do homemmoderno Evidentemente umaavaliaccedilatildeo justa desse erro soacute se-ria possiacutevel sob a pecha de ana-cronismo Mas o alerta passageiroe ocasional de Foucault natildeo me-rece desprezo Ele quer que evite-mos assumir uma atitude de flanecirc-rie em relaccedilatildeo ao modo de proble-matizar grego que em muito eacute dis-tinto do moderno Somente a par-tir da modernidade quando daemergecircncia de fenocircmenos como amoda quando se pocircde tanto estili-zar os corpos quanto submetecirc-losa certos padrotildees faz sentido suge-rir que a atitude emancipada eacute ade perceber o que ldquoela pode conterde poeacutetico no histoacutericordquo ou sejao que em meio a tantos padrotildeessurge como algo que desafia osnossos limites perturba uma ex-periecircncia que acumula estilos sempensar na invenccedilatildeo de si mesmo

A atitude de contramoderni-dade aparece como aquela quebusca traduzir o eacutethos para soluci-onar um problema presente que eacutea favor de uma tendecircncia de cortesde roupa contra todas as outrasque acumula incessantes citaccedilotildeesdos antigos citando-as como sinalde sabedoria num gesto tatildeo auto-maacutetico quanto a subida ou descidade um elevador O modo de viverdos antigos natildeo soacute pode ter sidouma maneira de errar como serve

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de exemplo de erracircncia de cami-nho jaacute percorrido e sobre o qual soacutenos cabe perceber as pegadas en-tender as marcas e investigar seusproblemas A atitude do filoacutesofo eacuteessa de ensaiar afinal de esboccedilaralgo de poeacutetico no histoacuterico de tal

modo que menos do que mais umquadro na parede seus gestos sir-vam como uma experiecircncia modi-ficadora de si e de seu entorno deum jeito tal que ningueacutem na Anti-guidade pocircde experimentar

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___ ldquoO que Hegel nos ensina sobre como lidar com Trumprdquo Blog daBoitempo Satildeo Paulo jan 2018 Disponiacutevel em Blog da BoitempoAcesso em 18 de janeiro de 2018

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Recebido 29122018Aprovado 30072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223147

Sobre a Centralidade e a Estrutura do Capiacutetulo ldquoOsCorpos Doacuteceisrdquo de Vigiar e Punir

[On the Centrality and Structure of the Chapter The Docile Bodiesof Discipline and Punish ]

Kleverton Bacelar

Resumo Esse artigo tem por objetivo expor a centralidade do pri-meiro capiacutetulo da terceira parte do Vigiar e Punir para a demonstra-ccedilatildeo de seu argumento principal bem como sua amarraccedilatildeo estruturalno conceito de corpo O valor posicional central desse capiacutetulo na or-ganizaccedilatildeo peculiar da obra soacute pode ser demonstrado mediante a expo-siccedilatildeo do conceito de disciplina de sua diferenciaccedilatildeo de outras formasde dominaccedilatildeo (escravidatildeo da domesticidade da vassalidade e do as-cetismo) da especificaccedilatildeo do momento histoacuterico em que emerge e dorealce da importacircncia dessa dataccedilatildeo para o argumento central de Fou-caultPalavras-chave corpo disciplina eacutepoca claacutessica reforma penal mo-derna

Abstract This paper explores the centrality of the first chapter of thethird part of Discipline and Punish for the demonstration of its mainargument as well as its structural tying in the concept of body Thecentral positional value of this chapter in the peculiar organizationof the work can only be demonstrated by exposing the concept ofdiscipline its differentiation from other forms of domination (slaverydomesticity vassality and asceticism) and the specification of thehistorical moment in which it emerges and the highlight of theimportance of this dating to Foucaultrsquos central argumentKeywords body discipline classical period modern penal reform

Antes e depois da publicaccedilatildeodo Vigiar e Punir em 9 de feve-reiro de 1975 Michel Foucaultpronunciou-se sobre o objetivodessa obra No curso A SociedadePunitiva ministrado entre o iniacuteciode janeiro e o final de marccedilo de1973 ele explicou dessa maneirao problema teoacuterico que a prisatildeo

lhe colocava

No fundo o ponto de par-tida foi o seguinte porque essa instituiccedilatildeo estra-nha a prisatildeo Essa per-gunta se justificava de vaacute-rias maneiras Em pri-

Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Mestre e doutor em filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo (USP) E-mail kbacelarufbabr ORCIDhttpsorcidorg0000-0003-3643-5201

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meiro lugar do ponto devista histoacuterico pelo fatode que a prisatildeo como ins-trumento penal foi apesarde tudo uma inovaccedilatildeo ra-dical no iniacutecio do seacuteculoXIX De repente todas asformas das antigas puni-ccedilotildees todo aquele maravi-lhoso e fulgurante folcloredas puniccedilotildees claacutessicas -pelourinho esquarteja-mento forca fogueira etc- desapareceu em proveitodessa funccedilatildeo monoacutetonada reclusatildeo Do ponto devista histoacuterico portantoeacute uma peccedila nova Aleacutemdisso teoricamente acre-dito que natildeo se pode de-duzir das teorias penaisformuladas na segundametade do seacuteculo XVIIIa necessidade da prisatildeocomo sistema de puniccedilatildeocoerente com essas novasteorias Teoricamente eacuteuma peccedila estranha Porfim por uma razatildeo fun-cional desde o comeccediloa prisatildeo foi disfuncionalPercebeu-se que em pri-meiro lugar esse novo sis-

tema de penalidade natildeoreduzia de modo algum onuacutemero de criminosos eem segundo que levavaagrave reincidecircncia que refor-ccedilava de modo muito per-ceptiacutevel a coesatildeo do grupoconstituiacutedo pelos delin-quentes O problema quepropus portanto era o se-guinte por que haacute cento ecinquenta anos e durantecento e cinquenta anos aprisatildeo1

Desses questionamentos (a novi-dade histoacuterica da prisatildeo sua es-tranheza teoacuterica e sua aparentedisfuncionalidade congecircnita) anovidade seraacute exposta na primeiraparte da obra a estranheza na se-gunda e a explicaccedilatildeo do fracassoaparente da prisatildeo eacute inteiramenteexplicado na quarta parte da obramediante a conjugaccedilatildeo dos con-ceitos de ilegalismo e delinquecircn-cia correlacionados com as ldquoagecircn-cias do poder punitivordquo a pri-satildeo (que produz a delinquecircncia)a poliacutecia (que utiliza a eficaacutecia in-versa da prisatildeo para tornar acei-taacutevel seu poder exorbitante) o ju-diciaacuterio (que eacute mero instrumento

1Cf aula de 28 de marccedilo de 1973 que encerra o curso A Sociedade punitiva pp205-6 (gm)2Embora Foucault mencione o ldquosistema poliacutecia-prisatildeordquo(VP p250) e acrescente o ldquonoticiaacuterio policialrdquo quando

analisa trecircs publicaccedilotildees de espectro poliacuteticos distintos (direita centro e esquerda) usei o termo agecircncia tal qualempregado por Zaffaroni em seus escritos que mencionam as ldquoagecircncias do poder punitivordquo ou seja agecircncias judi-ciais (tribunais) ldquoagecircncias executivas do sistema penalrdquo (poliacutecias e cadeias) e as agecircncias ideoloacutegicas (os meios decomunicaccedilatildeo de massa) por causa da fortiacutessima inspiraccedilatildeo e conotaccedilatildeo foucaultiana natildeo explicitamente declarada

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

de seleccedilatildeo dos ilegalismos) e a im-prensa (que difunde o medo so-cial do delinquente)2 Mas o fi-nal destacado da citaccedilatildeo enunciaa problemaacutetica geral que articulaos trecircs questionamentos a impo-siccedilatildeo hegemocircnica da prisatildeo apesarde sua estranheza teoacuterica e de suaaparente disfuncionalidade con-gecircnita Explicar o porquecirc dessaldquouniversalizaccedilatildeo da prisatildeo comoforma geral dos castigosrdquo ou suascondiccedilotildees de possibilidade eacute o ob-jetivo da terceira parte3

Em L rsquoimpossible Prison recher-ches sur le systeme peacutenitentiaire auXIXegraveme siegravecle publicado em 1980Michel Foucault voltou a esclare-cer as razotildees pelas quais pareceu-lhe legiacutetimo tomar a prisatildeo comoobjeto de estudo em Vigiar e Pu-nir 1ordm) porque ela foi bastante ne-gligenciada na medida em que seestudava apenas o problema soci-oloacutegico da populaccedilatildeo delinquenteou o problema juriacutedico do sistemapenal e de seu fundamento 2ordm)porque queria retomar o tema dagenealogia da moral mas seguindoo fio do que se poderia chamarde rsquotecnologias moraisrsquo e 3ordm) por-

que a prisatildeo e () numerosos as-pectos da praacutetica penal estavamsendo postos () em questatildeo naFranccedila na Inglaterra e na Itaacutelianos EUA4 Da primeira razatildeo po-demos concluir a contrario sensuque a investigaccedilatildeo natildeo eacute uma soci-ologia da populaccedilatildeo delinquentenem tampouco uma discussatildeo jus-filosoacutefica sobre o problema do di-reito penal e de seu fundamento(por que punir Como puniretc) mas uma histoacuteria social eeconocircmica da prisatildeo (Nascimentoda prisatildeo)5 Da terceira razatildeo po-demos concluir que essa histoacuteriada prisatildeo se vincula aos aconte-cimentos do presente agraves revoltase o engajamento de Foucault noGrupo de Informaccedilatildeo sobre as pri-sotildees ou seja esse discurso histoacute-rico pretende contribuir com osdebates e lutas de sua eacutepoca6Dela muito jaacute se falou seja o proacute-prio Foucault seja seus comen-tadores mas talvez de maneirapouco articulada com a segundarazatildeo (genealogia da consciecircnciamoral) e sobretudo com os mo-tivos declarados no curso A So-ciedade Punitiva particularmente

Cf ZAFFARONI R Em Busca das Penas Perdidas RJ Editora Revan 1991 p 1083No resumo do curso A Sociedade Punitiva Foucault afirma isso categoricamente ldquoPara compreender o fun-

cionamento real da prisatildeo por traacutes de sua aparente disfunccedilatildeo bem como seu profundo sucesso por traacutes de seusfracassos superficiais eacute preciso sem duacutevida retornar agrave anaacutelise das instacircncias parapenais de controle nas quais elafigurou como se viu no seacuteculo XVII e sobretudo no XVIIIrdquo (SP p 234ss)

4Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p336-75Nesse ponto o nietzcheanismo de Foucault (histoacuteria como meacutetodo filosoacutefico) o diferencia de H L A HART

Punishment and Responsibility Oxford 19676Sobre essa referecircncia a atualidade da questatildeo ver Vigiar e Punir p32 Sobre o envolvimento de Foucault no

GIP e sobre seu ativismo na primeira metade dos anos 70 ver o relato de ERIBON Michel Foucault

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a problemaacutetica geral que articulaas questotildees da novidade do estra-nhamento e da disfuncionalidadeDessas articulaccedilotildees dependem ajusta apreciaccedilatildeo da tese central eda estrutura do Vigiar e Punir

Com efeito o filoacutesofo dedicou34 da obra e algumas entrevis-tas para explicar por que a pri-satildeordquo enquanto projeto de correccedilatildeodos indiviacuteduos fracassou (longede transformar os criminosos empessoas honestas soacute serve para fa-bricar delinquentes ou para enter-rar ainda mais os criminosos nacriminalidade) e embora as cons-tataccedilotildees do fracasso tenham sidoimediatas (1825-35) tornou-se oinstrumento de puniccedilatildeo hegemocirc-nico na modernidade Isso sig-nifica que a principal funccedilatildeo daprisatildeo natildeo eacute diminuir a crimi-nalidade nem ressocializar o cri-minoso mas consiste em fabricara delinquecircncia o indiviacuteduo pe-rigoso7 Mas nessa mesma oca-siatildeo ele se perguntava sobre o queo livro tratava ndash ldquodas prisotildees naFranccedila entre 1760 e 1840rdquo e res-pondia ldquonada dissordquo8 Talvez oobjeto visado no subtiacutetulo (Nas-cimento da Prisatildeo) natildeo seja so-

mente nem principalmente a ins-tituiccedilatildeo penitenciaacuteria Haacute no Vi-giar e Punir uma outra prisatildeo queFoucault revela da seguinte formano fim do primeiro capiacutetulo Ohomem de que nos falam e que nosconvidam a liberar jaacute eacute em si mesmoo efeito de uma sujeiccedilatildeo bem maisprofunda que ele Uma rsquoalmarsquo o ha-bita e o leva agrave existecircncia que eacute elamesma uma peccedila no domiacutenio exer-cido pelo poder sobre o corpo Aalma efeito e instrumento de umaanatomia poliacutetica a alma prisatildeo doscorpos (VP 31-2) Cumpre emprimeiro lugar chamar a atenccedilatildeopara essa inversatildeo foucaultiana doplatonismo Com efeito Platatildeoafirma no Fedro que ldquoa alma do fi-loacutesofo despreza profundamente ocorpordquo(65d) que o concebe comouma corrente uma janela umaprisatildeo que perturba a alma e opensamento ldquoesse fardo que car-regamos conosco e que chamamoscorpo e onde nos aprisionamosrdquo(250c) Nessa inversatildeo talvez es-teja a chave heuriacutestica da obraa alma moderna enquanto pri-satildeo disciplinada do corpo desde aeacutepoca claacutessica eacute a condiccedilatildeo de pos-sibilidade da prisatildeo institucional

7FOUCAULT M ldquoA evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de indiviacuteduo perigoso na psiquiatria legal do seacuteculo XIXrdquo in DE III8FOUCAULT Mesa redonda em 20 de maio de 1978 p337 Citando essa passagem Dreyfus e Rabinow con-

cluem acertadamente ldquoApesar de Vigiar e Punir ter como subtiacutetulo Nascimento da Prisatildeo seu objeto de estudo natildeoeacute exatamente a prisatildeo eacute a tecnologia disciplinar () O objeto de estudo de Foucault satildeo as praacuteticas de objetivaccedilatildeode nossa cultura conforme incorporadas numa tecnologia especiacuteficardquo (1995159) Embora apoiado no ensaio ldquoOsujeito e o Poderrdquo esses autores estabelecem uma interpretaccedilatildeo limitada dos conceitos de ldquomodos ou processos deobjetivaccedilatildeordquo e ldquomodos ou processos de subjetivaccedilatildeordquo que para ser mais precisa deveria levar em consideraccedilatildeo oprimeiro ldquoPrefaacutecio agrave Histoacuteria da Sexualidaderdquo o Verbete ldquoMichel Foucaultrdquo a conferecircncia ldquoVerdade e Subjetividaderdquo aaula do curso ldquoSubjetividade e Verdaderdquo e a ldquoIntroduccedilatildeordquo de O Uso dos Prazeres

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

que suavizou os castigosPara comprovarmos o duplo

sentido que a prisatildeo possui nessaobra eacute necessaacuterio resumir a in-troduccedilatildeo do Vigiar e Punir sali-entando que o que estaacute em jogonesse livro eacute uma ldquohistoacuteria corre-lativa da alma moderna e de umnovo poder de julgar uma genea-logia do atual complexo cientifico-judiciaacuterio onde o poder de punirse apoia recebe suas justificaccedilotildeese suas regras estende seus efeitose mascara sua exorbitante singula-ridaderdquo (p26)9 Antes contudocumpre evidenciar a estrutura daobra para localizar com precisatildeoo papel que essa outra prisatildeo ex-posta minudentemente na terceiraparte da obra desempenha no ar-gumento de Michel Foucault Aterceira parte funciona como umacharneira que une a segunda ea quarta partes e cujos capiacutetulosencadeiam-se numa sequecircncia or-denada a partir da constituiccedilatildeodisciplinada da alma moderna emldquoOs corpos doacuteceisrdquo A parte ldquodis-

ciplinardquo funciona como dobradiccedilaporque a segunda parte mostrouque a reforma natildeo previa a peni-tenciaacuteria e a quarta parte mostraraacuteque embora desde jaacute votada aofracasso ela se impocircs num curtoespaccedilo de tempo

O esforccedilo que empreendemosaqui eacute inspirado no modo comoGilles Deleuze e Frederic Grosaproximaram-se da peculiar obrade Michel Foucault Com efeitodiante da Histoacuteria da Loucura drsquoO Nascimento da Cliacutenica do Vi-giar e Punir ou da Histoacuteria da Se-xualidade que segundo seu au-tor ldquonatildeo satildeo tratados de filoso-fia nem estudos histoacutericos no maacute-ximo fragmentos filosoacuteficos emcanteiros histoacutericosrdquo10 eacute reco-mendaacutevel procurar encontrar aldquoarquitetura conceitual extrema-mente forterdquo sobre a qual repousaa narrativa que nos desencarregada ldquotarefa ambiacutegua de julgar avalidade dos conteuacutedos histoacutericosavanccedilados por Foucaultrdquo11

9Francois Boullant dedicou ao Vigiar e Punir um belo comentaacuterio cujo tiacutetulo no plural sinaliza o duplo sentidoque queremos enfatizar sem natildeo obstante alcanccedilar a alma-prisatildeo Cf Michel Foucault et les prisions Paris PUF2003

10Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p33611GROS F Foucault et la Folie Paris PUF 1997 p5 Coube a Deleuze fornecer um esquema de interpretaccedilatildeo

global de Foucault a partir da reelaboraccedilatildeo de artigos e dos dois cursos dedicados ao amigo que foram ministra-dos na Universidade de Paris VIII-Vincennes- Saint-Denis (de 2210 a 17121985 e de 701 a 27051986) queresultaram no livro Foucault publicado em 1986 Aqui ele afirma que ldquoo saber o poder e o si satildeo a tripla raiz deuma problematizaccedilatildeo do pensamentordquo (p124) constituindo os trecircs eixos ou ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoinstacircncias da topo-logiardquo (p121 127) da obra de Foucault Em cada uma salienta os dualismos peculiares do saber (ver e falar ou ovisiacutevel e enunciaacutevel ou a luz e a linguagem) do poder (afetar e ser afetado ou espontaneidade e receptividade ouativo e reativo) e a triacuteade da subjetivaccedilatildeo (singularidades ldquopresasrdquo em relaccedilotildees de poder ou que ldquoresistemrdquo a elasfissurando-as modificando-as e invertendo-as e ainda a singularidades ldquoselvagensrdquo que estatildeo fora natildeo ligadas eacima das relaccedilotildees de forccedila) GROS F Le Foucault de Deleuze une fiction meacutetaphysique in Philosophie nordm 421995 pp53-63

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1 - Estrutura do Vigiar e PunirNascimento da prisatildeo

Franccedilois Ewald assistente de Fou-cault no Collegravege de France emuma das primeiras recensotildees doVigiar e Punir afirmou que essaobra

natildeo comporta nem prefaacute-cio nem introduccedilatildeo nemconclusatildeo Justificaccedilatildeonenhuma Seu comeccedilouma hipoacutetese de trabalhouma proposiccedilatildeo o avan-ccedilar de uma possibilidade aser experimentada Podefazer-se uma histoacuteria doscastigos sob o fundo deuma histoacuteria dos corpos(SP p 30) ou aindaPode fazer-se a genea-logia da moral modernaa partir de uma histoacuteriapoliacutetica dos corpos ()Nada de imposiccedilotildees umapossibilidade entre ou-tras certamente natildeo maisverdadeira que as outras

mas talvez mais perti-nente mais eficaz maisprodutiva que uma outra(13) E eacute isso que importanatildeo produzir algo de ver-dadeiro no sentido queisso seria definitivo ab-soluto peremptoacuterio masdar peccedilas ou pedaccedilosde verdades modestas no-vos relances estranhosque natildeo implicam um si-lecircncio de estupefacccedilatildeo ouum burburinho de comen-taacuterios mas que sejam uti-lizaacuteveis por outros comoas chaves de uma caixa deferramentas 12

A esses poderiacuteamos acrescen-tar mais um estranhamento for-mal ela comeccedila com ilustra-ccedilotildees (iconografia do adestramentocomo nova forma de controle so-cial13) e no primeiro capiacutetuloFoucault comeccedila ldquoseurdquo texto coma colagem de dois relatos o relatojornaliacutestico do supliacutecio de Dami-ens (1757) e um Regulamento da

12EWALD F ldquoAnatomie et corps politiquesrdquo in Critique Paris 1975 p1234-513Cf a bela anaacutelise que Francois Boullant faz no item ldquoimagens et conceptsrdquo (pp32ss) ldquoA imagem desempenha

em VP um papel essencial () Anteriormente ao texto pois uma rajada de gravuras sobriamente intituladaIlustraccedilotildees premedita o assunto Primeira impregnaccedilatildeo ao mesmo tempo solta e precisa do conteuacutedo das anaacutelisesantecipaccedilatildeo flexiacutevel e metoacutedica das conexotildees por vir as imagens permitem ver a invisiacutevel solidariedade das dis-ciplinas antes de dar-lhes a pensar () Trinta gravuras ou fotografias escrupulosamente escolhidas numeradase classificadas segundo uma ordem que natildeo segue nem a cronologia nem a ordem dos assuntos e se organiza emanelrdquo Ele nota que uma paginaccedilatildeo infeliz insere na coleccedilatildeo ldquoTelrdquo [e nas ediccedilotildees de liacutengua portuguesa] esse con-junto de gravuras em um caderno central A ediccedilatildeo da Pleacuteiade natildeo restabeleceu a disposiccedilatildeo original mas deslocoualgumas ilustraccedilotildees comentadas por Foucault para o texto comentado

14Recurso estiliacutestico jaacute empregado em NC quando na introduccedilatildeo Foucault coloca em paralelo um texto do meacute-dico Pomme e uma descriccedilatildeo minuciosa de Bayle Cf BRAUNSTEIN J-F ldquoMort et naissance de la cliniquerdquo inLECOURT D et ali (dir) La mort de la clinique Paris PUF 2010 p 140

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

casa de correccedilatildeo dos jovens de Pa-ris assinado por Faucher (1838)14Devemos observar que esse pri-meiro capiacutetulo conteacutem todos oselementos de uma introduccedilatildeo (ob-jetivo justificativa metodologiaestado da arte) Ele soacute natildeo con-teacutem o plano geral da obra Em-bora Foucault natildeo o forneccedila aobra possui uma estrutura bemamarrada sendo pois bem com-posta Sem prefaacutecio nem conclu-satildeo a obra estaacute dividida em qua-tro partes supliacutecio (com 2 ca-piacutetulos) puniccedilatildeo (com 2 capiacutetu-los) disciplina (com 3 capiacutetulos)e prisatildeo (com 3 capiacutetulos) Paracompreender a articulaccedilatildeo do VPdevemos notar que nessa histoacuteriado nascimento da prisatildeo Foucaultcontrapotildee a puniccedilatildeo em dois ldquocor-tes epocaisrdquo recorrentes em suaobra (eacutepoca claacutessica e moderni-dade)15 acentuando sua rupturaou descontinuidade16 mostra queo suposto humanismo dos refor-madores eacute de fato uma busca demaximizaccedilatildeo e eficaacutecia da puniccedilatildeoque natildeo previa a prisatildeo como ins-

trumento privilegiado quiccedilaacute he-gemocircnico de punir localiza a des-coberta do corpo como objeto desaber e alvo do poder (corpo uacutetile doacutecil) nos seacuteculos XVII e XVIII17

para realccedilar uma de suas tesescentrais (sem o preacutevio disciplina-mento iniciado na eacutepoca claacutessicanatildeo seria possiacutevel mitigar as penascorporais na modernidade) tor-nando a reforma no miacutenimo am-biacutegua Sem o conhecimento dessatese a estrutura do VP pode pare-cer mal composta ou estruturada

A primeira parte do li-vro define o que eacute um su-pliacutecio explicitando a pri-meira imagem formuladaaquela da execuccedilatildeo de Da-miens A segunda parteobstina-se em fixar o mo-mento intermediaacuterio en-tre o supliacutecio de Dami-ens e o regulamento deFaucher Michel Foucaultapresenta entatildeo o projetodos filantropos do fim do

15De modo geral os cortes epocais recorrentes nas anaacutelises foucaultianas satildeo o renascimento (meados do seacuteculoXIV ateacute meados do seacutec XVI) eacutepoca claacutessica (meados do seacutec XVI ateacute fins do XVIII) e modernidade (1789 ateacute 1950)Nos trecircs uacuteltimos volumes da HS Foucault volta a antiguidade estabelecendo novos cortes seacutec IV aC seacutec IIdC e seacutec IV dC Em Michel Foucault e o Direito Marcio Alves da Fonseca pontua esses trecircs cortes epocais (p45n12) afirma acertadamente que o VP se restringe temporalmente aos dois uacuteltimos e espacialmente agrave penalidadena Franccedila mas fala em trecircs grandes eacutepocas da puniccedilatildeo pois inclui os projetos dos reformadores entre o supliacutecioda eacutepoca claacutessica e a prisatildeo na modernidade Ora na Franccedila houve somente duas eacutepocas porque as principaisideias diretrizes da reforma penal foram atropeladas pela penitenciaacuteria Exceto esses dois sistemas prisionais Mi-chel Foucault faz referecircncia agraves formas de penalidade experimentadas na Beacutelgica Filadeacutelfia e na Inglaterra que satildeocontemporacircneas ao projeto dos reformadores para explicar mediante a disciplinarizaccedilatildeo da sociedade qual dessasexperiecircncias serviu como modelo ou foi escolhida de preferecircncia sobre as outras na implantaccedilatildeo da prisatildeo

16Sobre isso cf BRAUNSTEIN J-F ldquoBachelard Canguilhem Foucault Le style franccedilais en eacutepisteacutemologierdquo inP Wagner (dir) Les philosophes et la science Paris Gallimard 2002

17VP pp184 126 e 191

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seacuteculo XVIII que deseja-vam suavizar as penas econstituir uma nova eco-nomia do poder mais uacutetile mais humana natildeo atra-veacutes da prisatildeo mas atra-veacutes de um jogo de ldquosinaisobstaacuteculordquo por uma tec-nologia da representaccedilatildeoque soacute reconhecia a posi-tividade da lei e na qualcada crime tem sua leicada criminoso sua penaA forma-prisatildeo natildeo temseu lugar de nascimentonessas teorias penais Du-rante a eacutepoca claacutessica co-existensivamente ao pro-jeto dos filantropos trecircsmodelos de instituiccedilatildeocarceraacuteria se formam oda Beacutelgica organizadopelo trabalho economica-mente e pedagogicamenteaproveitaacutevel o modelo in-glecircs que preconiza o iso-lamento individual comoinstrumento de conversatildeoe aquele da Filadeacutelfia queassocia isolamento e tra-balho religandounindoassim a reinserccedilatildeo morale material Michel Fou-cault descobre pois no fi-nal do seacuteculo XVIII trecircsmaneiras de organizar o

poder de punir o direitomonaacuterquico o projeto dosjuristas reformadores e oprojeto da instituiccedilatildeo car-ceral A sequecircncia da obradeve entatildeo compreenderporque a terceira tecnolo-gia finalmente se impocircs eclaro de onde ela proveacutemA terceira parte de Vigiare Punir daacute a impressatildeo desair do caminho que nosconduz ao nascimento daprisatildeo para entrar em umamultidatildeo de outras histoacute-rias18

Sem compreender o duplo sen-tido da palavra prisatildeo no VP numdos quais Foucault enuncia suatese principal (a alma modernaenquanto prisatildeo do corpo eacute umefeito e instrumento do poder dis-ciplinar que torna possiacutevel suavi-zar as penas e explicar a hegemo-nia da penitenciaacuteria) toda a ter-ceira parte parece indevidamenteinterposta na narrativa A cone-xatildeo entre o primeiro capiacutetulo daprimeira parte com o primeiro ca-piacutetulo da terceira precisa ser esta-belecida para garantir a boa com-posiccedilatildeo da obra

18KIEacuteFER Audrey Michel Foucault le GIP lrsquohistoire et lrsquoaction These de Philosophie Universiteacute de Picardienovembre de 2006 pp98-99

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2- A Penalidade da Eacutepoca Claacutes-sica agrave Modernidade

Quero dizer a minha pala-vra aos desprezadores docorpo Natildeo devem a meuver mudar o que apren-deram ou ensinaram masapenas dizer adeus ao seucorpo - e destarte emu-decer Corpo eu sou ealma - assim fala a cri-anccedila Por quecirc natildeo falarcomo as crianccedilas Mas ohomem jaacute desperto o sa-bedor diz corpo sou eutotalmente e nenhuma ou-tra coisa e alma eacute uma pa-lavra para algo do corpordquo

Nietzsche ZA I 4 sect 1-3

Vigiar e Punir abre-se com a cola-gem de dois relatos o do supliacute-cio de Damiens19 no Antigo Re-gime (1757) e o da utilizaccedilatildeo dotempo no regulamento da Casa dejovens detentos de Paris na mo-dernidade (1838) Como mencio-nei esse recurso estiliacutestico jaacute forautilizado em NC e essa colagem

indica a grande transformaccedilatildeo naeconomia do castigo ocorrida navirada do seacutec XVIII ao XIX Den-tre tantas transformaccedilotildees20 Fou-cault atem-se a uma o desapare-cimento dos supliacutecios

Ateacute entatildeo as teacutecnicas puni-tivas apoderavam-se do corpopara despedaccedilaacute-lo esquartejaacute-loamputaacute-lo marcaacute-lo simbolica-mente no rosto ou no ombroexpocirc-lo vivo ou morto oferececirc-loem espetaacuteculo O grande espe-taacuteculo da puniccedilatildeo fiacutesica compor-tava poreacutem dois perigos por umlado revela a tirania o excessoa sede de vinganccedila do poder poroutro acostuma o povo a ver san-gue jorrar e ensina-lhe que soacutepode vingar-se derramando san-gue com as proacuteprias matildeos Vistacomo uma fornalha em que seacende a violecircncia(15) a execu-ccedilatildeo puacuteblica foi suprimida Desdeentatildeo eacute a proacutepria condenaccedilatildeoque marcaraacute o delinquente comsinal negativo e uniacutevoco publici-dade portanto dos debates e dasentenccedila(15)

O desaparecimento dos supliacute-

19Segundo Rodinesco Franccedilois Robert Damiens oriundo de uma famiacutelia camponesa maltratado pelo pai inso-lente inclinado ao suiciacutedio e no miacutenimo estranho por seu haacutebito de falar sozinho pertencente a classe dos criadosespezinhados por seus patrotildees mas vivia na sombra e na intimidade da nobreza quando no dia 5011957 aten-tou contra a vida de Luiacutes XV tocando com a lacircmina de um canivete provocou um pequeno corte e assumiu seugesto () Foucault descreveu o horror do suplicio de Damiens um dos mais crueacuteis de todos os tempos A resis-tecircncia do corpo foi tal que os cavalos arremeteram sessenta vezes antes de romper os membros do desafortunadocriado jaacute mil vezes torturado (As Famiacutelias pp57-8) A cena do supliacutecio de Damiens apareceu na aula do dia301de 1973 do curso A Sociedade Punitiva p11

20As transformaccedilotildees satildeo as seguintes escacircndalos na justiccedila tradicional projetos de Reformas nova teoria da lei edo crime nova justificaccedilatildeo moral ou poliacutetica do direito de punir aboliccedilatildeo das ordenanccedilas supressatildeo dos costumesprojeto ou redaccedilatildeo de coacutedigos modernos (VP p13 Ver ainda p 21)

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cios eacute tanto a eliminaccedilatildeo do es-petaacuteculo da encenaccedilatildeo da dorquanto a extinccedilatildeo do domiacutenio so-bre o corpo Agora o sofrimentofiacutesico natildeo eacute mais constitutivo dapena o castigo passou de umaarte das sensaccedilotildees insuportaacuteveisa uma economia dos direitos sus-pensos(p16) ou seja a pena to-mou como objeto a perda de umdireito ou de um bem - a liber-dade Na modernidade a prisatildeopassa a ser a forma essencial docastigo21 e isso significa que a pu-niccedilatildeo fiacutesica foi substituiacuteda pelapenalidade incorporal Mesmoa pena capital atesta essa nova pe-nalidade ela eacute uma desmultipli-caccedilatildeo da proacutepria morte na medidaem que eacute um acontecimento visiacute-vel mas instantacircneo (p16- 7)

Todas as transformaccedilotildees se fa-zem concomitantes ao desloca-mento do objeto da accedilatildeo punitivanatildeo eacute mais o corpo agora eacute a alma(ldquoo coraccedilatildeo o pensamento a von-tade as disposiccedilotildeesrdquo) que eacute pu-nida castigada22 Haacute aqui umaprofunda modificaccedilatildeo no objetoltcrimegt Sob o nome de crimese delitos satildeo sempre julgados cor-retamente os objetos juriacutedicos de-

finidos pelo coacutedigo ou seja soacute haacutecrime se alguma accedilatildeo ou omissatildeofor tipificada pelo coacutedigo e se ojuiz mediante uma deduccedilatildeo silo-giacutestica como pensava a escola daexegese sancionar o crime Fou-cault argumenta que a subsunccedilatildeodo fato agrave norma e depois a par-ticularizaccedilatildeo da norma a algumacircunstacircncia especial (atenuanteou agravante) deslocou o julga-mento da accedilatildeo para o agente osjuiacutezes comeccedilaram a julgar coisabem diferente aleacutem de crimes altalmagt dos criminosos (p22)Ou seja rdquojulgam-se tambeacutem aspaixotildees os instintos as anoma-lias as enfermidades as inadapta-ccedilotildees os efeitos de meio ambienteou de hereditariedade Punem-se as agressotildees mas por meiodelas as agressividades que satildeotambeacutem impulsos e desejos Asentenccedila natildeo eacute soacute um julgamentode culpa que absolve ou condenamas eacute sobretudo um juiacutezo de nor-malidade de atribuiccedilatildeo de causa-lidade de apreciaccedilotildees de eventu-ais mudanccedilas de previsotildees sobreo futuro dos delinquentes(24)

Com a entrada da alma na cenajuriacutedica a justiccedila penal soacute funci-

21Foucault natildeo ignora que castigos como trabalhos forccedilados ou prisatildeo nunca funcionavam sem certos comple-mentos punitivos referentes ao corpo reduccedilatildeo alimentar privaccedilatildeo sexual expiaccedilatildeo fiacutesica masmorra (20) Tambeacutemnatildeo ignora que a tortura se fixou -- e ainda continua -- no sistema penal francecircs (p19)

22Cf VP p21 A alma -- subjetividade psique personalidade consciecircncia individualidade comportamentopouco importa (267) -- entendida como uma ldquosede de haacutebitosrdquo(31 141) eacute real e incorpoacuterea mas natildeo substacircnciaporque eacute o efeitoprodutoresultado de um poder que se exerce em torno na superfiacutecie e no interior do corpo(Foucault tambeacutem fala de uma ldquorealidade incorpoacutereardquo na p21) Sobre a anaacutelise foucaultiana da noccedilatildeo de haacutebitocf a aula de 28031973 de A sociedade Punitiva (p215ss)

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ona e se justifica atraveacutes da refe-recircncia ao saber dos peritos psi-quiaacutetricos e psicoloacutegicos perso-nagens extrajuriacutedicos que forne-cem uma justificaccedilatildeo cientiacutefica aodireitopoder de punir pois cabe-lhes dizer se o indiviacuteduo eacute peri-goso de que maneira se protegerdele como intervir para modificaacute-lo se eacute melhor tentar reprimir outratar(p25) Em resumo rdquojul-gar eacute qualificar um indiviacuteduo poisa sentenccedila implica uma aprecia-ccedilatildeo da normalidade e uma pres-criccedilatildeo teacutecnica para uma norma-lizaccedilatildeo possiacutevel Diagnoacutestico eterapecircutica O poder de punirentrelaccedilou-se com as diversas ci-ecircncias forenses psiquiatria psi-cologia sociologia antropologia epedagogia Nesse momento sur-giu a criminologia23 Nessa eacutepocaldquoa justiccedila criminal () soacute funcionae soacute se justifica por essa perpeacutetua

referecircncia a outra coisa que natildeoeacute ela mesma por essa incessantereinscriccedilatildeo nos sistemas natildeo juriacute-dicos Ela estaacute votada a essa re-qualificaccedilatildeo pelo saberrdquo (p25)24

Com isso posto Foucault podeformular nesses termos o objetivodo Vigiar e Punir ldquouma histoacute-ria correlativa da alma modernae de um novo poder de julgaruma genealogia do atual com-plexo cientiacutefico-judiciaacuterio ondeo poder de punir se apoia re-cebe suas justificaccedilotildees e suas re-gras estende seus efeitos e mas-cara sua exorbitante singulari-daderdquo(p26)25 Percebemos clara-mente que natildeo se trata de um ob-jetivo uacutenico mas de vaacuterios corre-lacionados A escrita dessa histoacute-ria da prisatildeo assemelha-se a umapartitura musical pois orquestravaacuterios objetivos simultaneamente

Antes de formular suas quatro

23Cf BOULLANT opcit pp99ss24Essa justificaccedilatildeo cientiacutefica do direito de punir aparece em sua aula inaugural no Collegravege de France A Ordem

do Discurso onde Foucault delineia um projeto de pesquisa centrado na anaacutelise histoacuterica das formas juriacutedicas epoliacuteticas produtoras de verdades ldquoEnfim creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte euma distribuiccedilatildeo institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade- uma espeacutecie de pressatildeo e como que um poder de coerccedilatildeo Penso na maneira como a literatura ocidental teve debuscar apoio durante seacuteculos no natural no verossiacutemil na sinceridade na ciecircncia tambeacutem - em suma no discursoverdadeiro Penso igualmente na maneira como as praacuteticas econocircmicas codificadas como preceitos ou receitaseventualmente como moral procuraram desde o seacuteculo XVI fundamentar-se racionalizar-se e justificar-se a par-tir de uma teoria das riquezas e da produccedilatildeo penso ainda na maneira como um conjunto tatildeo prescritivo quantoo sistema penal procurou seus suportes ou sua justificaccedilatildeo primeiro eacute certo em uma teoria do direito depois apartir do seacuteculo XIX em um saber socioloacutegico psicoloacutegico meacutedico psiquiaacutetrico como se a proacutepria palavra da leinatildeo pudesse mais ser autorizada em nossa sociedade senatildeo por um discurso de verdaderdquo(ODpp18-9)

25Sobre a razatildeo pela qual o poder de punir se apoia no complexo cientiacutefico-judiciaacuterio mas natildeo se confunde comele ver as distinccedilotildees estabelecidas na nota seguinte

26Na impossibilidade de comentar palavra por palavra a importante passagem na qual Foucault formula suasquatro regras e na desaconselhaacutevel prolixidade de transcrevemos o texto recomendamos vivamente sua leitura emeditaccedilatildeo ao leitor ao tempo em que citamos apenas a segunda regra (ldquoAnalisar os meacutetodos punitivos natildeo comosimples consequecircncias de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais mas como teacutecnicas que tecircmsua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder ()rdquo) para destacar uma importante distin-ccedilatildeo efetuada por Foucault que eacute essencial para a compreensatildeo de seu meacutetodo Trata-se da distinccedilatildeo entre ldquosistemapenitenciaacuteriordquo (Prisotildees Casas de Detenccedilatildeo Casas de Correccedilatildeo para menores etc) ldquosistema penalrdquo (poliacutecia incum-

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regras metodoloacutegicas que merece-riam um comentaacuterio minucioso26Foucault se pergunta como fazeressa histoacuteria da alma moderna emjulgamento e nesse momento pre-ciso indica dois erros a evitar pri-meiro natildeo se limitar agrave evoluccedilatildeodas regras de direito ou dos pro-cessos penais que redundariam naassunccedilatildeo de uma mudanccedila da sen-sibilidade coletiva dos modernosnum progresso do humanismo nodesenvolvimento das ciecircncias hu-manas que estariam na raiz dasubstituiccedilatildeo das penas corporaispela pena de privaccedilatildeo da liber-dade segundo natildeo estudar ape-nas as formas sociais gerais comofez Durkheim para natildeo ldquocorremoso risco de colocar como princiacutepioda suavizaccedilatildeo punitiva processosde individualizaccedilatildeo que satildeo antesefeitos das novas taacuteticas de podere entre elas dos novos mecanismospenaisrdquo27

Em suas regras gerais Foucaultafirma categoricamente que vaitomar a puniccedilatildeo como uma fun-ccedilatildeo social complexa repressiva[direito penal] e positiva ou in-dutiva [disciplina] adotando em

relaccedilatildeo aos castigos a perspectivada taacutetica poliacutetica que vai colocara tecnologia do poder [discipli-nar] no princiacutepio tanto da huma-nizaccedilatildeo da penalidade [moderna]quanto do conhecimento do ho-mem [criminologia]

Na sequecircncia Foucault prestahomenagem ao livro de Rusche eKirschheimer Puniccedilatildeo e estruturasocial (1939) distinguindo seuempreendimento do dos autoresda escola de Frankfurt pois reco-loca os castigos numa certa ldquoeco-nomia poliacuteticardquo do corpo Nesseponto Foucault menciona os his-toriadores que abordam a histoacuteriado corpo mas distancia-se delespois enfatiza que o corpo

tambeacutem estaacute diretamentemergulhado num campopoliacutetico as relaccedilotildees de po-der tecircm alcance imediatosobre ele elas o investemo marcam o dirigem osupliciam sujeitam-no atrabalhos obrigam-no acerimocircnias exigem-lhe si-nais Este investimentopoliacutetico do corpo estaacute li-

bidas do inqueacuterito ministeacuterio puacuteblico encarregado da denuacutencia e judiciaacuterio responsaacutevel pelo processo a sentenccedilacondenatoacuteria e o acompanhamento judicial da execuccedilatildeo penal) e o ldquosistema punitivordquo (sistema de controle socialmais amplo na medida em que engloba mas ultrapassa os outros dois)

27O artigo de Durkheim ldquoDeux lois de lrsquoeacutevolution peacutenalerdquo publicado no Anuaacuterio socioloacutegico em 1899-1900 cri-ticado aqui por Foucault encontra-se traduzido na Revista Primeiros Estudos Satildeo Paulo n 6 p 123-148 2014Uma anaacutelise da pertinecircncia ou natildeo das criacuteticas de Foucault excederia os objetivos desse trabalho e deveria levar emconta outros textos de Durkheim principalmente De la Division du travail social (1893) Paris PUF 12e eacutedition1960 pp 35-39 43-48 64-68 Les regravegles de la meacutethode sociologique (1894) Paris PUF 14e eacutedition 1960 pp 65-72Sobre isso cf COMBESSIE Philippe ldquoDurkheim Fauconnet et Foucault Eacutetayer une perspective abolitionniste agravelrsquoheure de la mondialisation des eacutechangesrdquo 2007 57-71

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gado segundo relaccedilotildeescomplexas e reciacuteprocas agravesua utilizaccedilatildeo econocircmicaeacute numa boa proporccedilatildeocomo forccedila de produccedilatildeoque o corpo eacute investidopor relaccedilotildees de poder ede dominaccedilatildeo mas emcompensaccedilatildeo sua consti-tuiccedilatildeo como forccedila de tra-balho soacute eacute possiacutevel se eleestaacute preso num sistemade sujeiccedilatildeo (onde a ne-cessidade eacute tambeacutem uminstrumento poliacutetico cui-dadosamente organizadocalculado e utilizado) ocorpo soacute se torna forccedilauacutetil se eacute ao mesmo tempocorpo produtivo e corposubmisso Essa sujeiccedilatildeonatildeo eacute obtida soacute pelos ins-trumentos da violecircncia ouda ideologia pode muitobem ser direta fiacutesica usara forccedila contra a forccedila agirsobre elementos materiaissem no entanto ser vio-lenta pode ser calculadaorganizada tecnicamentepensada pode ser sutilnatildeo fazer uso de armasnem do terror e no en-tanto continuar a ser deordem fiacutesica Quer dizerque pode haver um ldquosa-berrdquo do corpo que natildeo eacuteexatamente a ciecircncia deseu funcionamento e um

controle de suas forccedilasque eacute mais que a capa-cidade de vencecirc-las essesaber e esse controle cons-tituem o que se poderiachamar a tecnologia poliacute-tica do corpo Essa tecno-logia eacute difusa claro rara-mente formulada em dis-cursos contiacutenuos e siste-maacuteticos compotildee-se mui-tas vezes de peccedilas ou depedaccedilos utiliza um ma-terial e processos sem re-laccedilatildeo entre si O maisdas vezes apesar da coe-recircncia de seus resultadosela natildeo passa de uma ins-trumentaccedilatildeo multiformeAleacutem disso seria impossiacute-vel localizaacute-la quer numtipo definido de institui-ccedilatildeo quer num aparelhodo Estado Estes recor-rem a ela utilizam-navalorizam-na ou impotildeemalgumas de suas maneirasde agir Mas ela mesmaem seus mecanismos eefeitos se situa num niacute-vel completamente dife-rente Trata-se de algumamaneira de uma micro-fiacutesica do poder posta emjogo pelos aparelhos e ins-tituiccedilotildees mas cujo campode validade se coloca dealgum modo entre essesgrandes funcionamentos

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e os proacuteprios corpos comsua materialidade e suasforccedilasrdquo (p28)

Descrever essa ldquomicrofiacutesica do po-derrdquo que incide sobre o corpo eacute oobjetivo da 3ordf parte da obra Re-velar sua importacircncia na suaviza-ccedilatildeo das penas eacute um dos objetivosa que ela se propotildee em sua abor-dagem da criminalidade

Foucault tambeacutem menciona olivro Os dois corpos do rei (1959)de Ernst Kantorowitz para com-parar a tese do historiador do pen-samento poliacutetico medieval (ldquoo su-plemento de poder do lado dorei provoca o desdobramento deseu corpordquo na teologia poliacuteticado medievo que chega ateacute o An-tigo Regime) com a dele (o po-der excedente que se exerce so-bre o corpo submetido do conde-nado [na modernidade- KB] sus-citou um outo tipo de desdobra-mento o de um incorporal deuma almardquo(VP p31) Aqui Fou-cault formula a tese que seraacute de-monstrada no primeiro capiacutetuloda terceira parte o poder discipli-nar produz individualidade umaconsciecircncia de si uma alma umasubjetividade

A histoacuteria dessa micro-fiacutesica do poder punitivoseria entatildeo uma genea-logia ou uma peccedila para

uma genealogia da ldquoalmardquomoderna Em vez de vernessa alma os restos re-ativados de uma ideolo-gia antes reconheceriacutea-mos nela o correlativoatual de uma certa tec-nologia do poder sobreo corpo Natildeo se deveriadizer que a alma eacute umailusatildeo ou um efeito ide-oloacutegico mas afirmar queela existe que tem umarealidade que eacute produ-zida permanentementeem tomo na superfiacutecieno interior do corpo pelofuncionamento de um po-der que se exerce sobre osque se punem mdashde umamaneira mais geral so-bre os que satildeo vigiadostreinados e corrigidos so-bre os loucos as crian-ccedilas os escolares os co-lonizados sobre os quesatildeo fixados a um apare-lho de produccedilatildeo e contro-lados durante toda a exis-tecircncia Realidade histoacute-rica dessa alma que di-ferentemente da alma re-presentada pela teologiacristatilde natildeo nasce faltosae puniacutevel mas nasce an-tes de procedimentos depuniccedilatildeo de vigilacircncia decastigo e de coaccedilatildeo Estaalma real e incorpoacuterea natildeo

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eacute absolutamente substacircn-cia eacute o elemento onde searticulam os efeitos de umcerto tipo de poder e areferecircncia de um sabera engrenagem pela qualas relaccedilotildees de poder datildeolugar a um saber possiacute-vel e o saber reconduz ereforccedila os efeitos de po-der Sobre essa realidade-referecircncia vaacuterios concei-tos foram construiacutedos ecampos de anaacutelise foramdemarcados psique sub-jetividade personalidadeconsciecircncia etc sobre elateacutecnicas e discursos cien-tiacuteficos foram edificados apartir dela valorizaram-se as reivindicaccedilotildees mo-rais do humanismo Masnatildeo devemos nos enganara alma ilusatildeo dos teoacutelo-gos natildeo foi substituiacutedapor um homem real ob-jeto de saber de reflexatildeofilosoacutefica ou de interven-ccedilatildeo teacutecnica O homemde que nos falam e quenos convidam a liberar jaacuteeacute nele mesmo o efeito deum assujeitamento bemmais profundo que eleUma ldquoalmardquo o habita eo leva agrave existecircncia queeacute ela mesma uma peccedilano domiacutenio que o poderexerce sobre o corpo A

alma efeito e instrumentode uma anatomia poliacuteticaa alma prisatildeo do corpo(p31)

Como natildeo reconhecer nessa ldquoge-nealogia da alma modernardquo asegunda razatildeo aventada porFoucault em LrsquoImpossible Pri-son Como natildeo reconhecerna almasubjetividadepsique oefeito (positivo) do poder disci-plinar sobre o corpo Como natildeoobservar que o poder disciplinar eacuteconcebido em termos de incitaccedilatildeode produccedilatildeo mais que de repres-satildeo Como natildeo ver que o efeito apositividade da disciplina radica-se na produccedilatildeo de uma individua-lidade Como natildeo reconhecer quea alma moderna eacute uma outra pri-satildeo instalada no corpo cuja certi-datildeo de nascimento Foucault atestano mesmo ato notarial que certi-fica o nascimento da penitenciaacuteriae da criminologia

Veremos no proacuteximo item comoessa alma disciplinada eacute produ-zida por ora cumpre chamar aatenccedilatildeo para o fato de que ela eacutetambeacutem a condiccedilatildeo de possibili-dade dos direitos do homem eacute olado sombrio das luzes a ldquodialeacute-ticardquo foucaultiana do iluminismo

Historicamente o pro-cesso pelo qual a burgue-sia se tornou no decorrer

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do seacuteculo XVIII a classepoliticamente dominanteabrigou-se atraacutes da insta-laccedilatildeo de um quadro juriacute-dico expliacutecito codificadoformalmente igualitaacuterio eatraveacutes da organizaccedilatildeo deum regime de tipo parla-mentar e representativoMas o desenvolvimento ea generalizaccedilatildeo dos dispo-sitivos disciplinares cons-tituiacuteram a outra vertenteobscura desse processoA forma juriacutedica geral quegarantia um sistema de di-reitos em princiacutepio iguali-taacuterios era sustentada poresses mecanismos miuacute-dos cotidianos e fiacutesicospor todos esses sistemasde micropoder essencial-mente inigualitaacuterios e as-simeacutetricos que constituemas disciplinas E se deuma maneira formal o re-gime representativo per-mite que direta ou indi-retamente com ou semrevezamento a vontadede todos forme a instacircn-cia fundamental da sobe-rania as disciplinas datildeona base garantia da sub-missatildeo das forccedilas e dos

corpos As disciplinas re-ais e corporais constituiacute-ram o subsolo das liber-dades formais e juriacutedicasO contrato podia muitobem ser imaginado comofundamento ideal do di-reito e do poder poliacuteticoo panoptismo constituiacuteao processo teacutecnico uni-versalmente difundidoda coerccedilatildeo Natildeo paroude elaborar em profun-didade as estruturas juriacute-dicas da sociedade parafazer funcionar os meca-nismos efetivos do poderao encontro dos quadrosformais de que este dispu-nha As ldquoLuzesrdquo que des-cobriram as liberdades in-ventaram tambeacutem as dis-ciplinas (p194-5)28

3 - As Disciplinas como Condi-ccedilatildeo de Possibilidade da Suaviza-ccedilatildeo do Direito Penal Moderno

A terceira parte do Vigiar e Pu-nir contem trecircs importantes ca-piacutetulos ldquoos corpos doacuteceisrdquo ldquoOsmeios para o bom adestramentordquo eldquoo panoptismordquo Nesse item abor-daremos o primeiro capiacutetulo com

28Sobre essa tese fortiacutessima de que as liberdades dependeram da generalizaccedilatildeo do regime disciplinar e da nor-malizaccedilatildeo que o acompanha Foucault chega a corroborar numa entrevista com a afirmaccedilatildeo peremptoacuteria de que ldquoadisciplina eacute o avesso da democraciardquo(DE vol8 p39) Sobre a questatildeo da dialeacutetica foucaultiana do iluminismo cfHONNETH A ldquoFoucault et Adorno deux formes drsquoune critique de la moderniteacuterdquo in Critique nordm471-472 1986

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o objetivo de examinar o modocomo Foucault conceitua as dis-ciplinas estabelece sua diferenccedilaem relaccedilatildeo a outras modalidadesde poder determina o momentoem que elas se generalizaram nasociedade europeia e sobretudocomo ele efetua a descriccedilatildeo des-sas teacutecnicas de poder de modo quesua incidecircncia sobre o corpo re-sulte na produccedilatildeo de uma sub-jetividade Na descriccedilatildeo minu-dente das teacutecnicas disciplinaresdo corpo procuraremos eviden-ciar o esquema conceitual extrema-mente forte empregado por Fou-cault quando relaciona sua inci-decircncia perfeitamente acoplada agravesnotas principais do conceito decorpo por ele definido muito ni-etzscheanamente e quase que adhoc

31 ndash ldquoOs corpos doacuteceisrdquo ou a ar-ticulaccedilatildeo corpo-disciplina-alma

Foucault comeccedila esse capiacutetulocontrastando a figura do soldadona eacutepoca claacutessica e na moderni-dade Na eacutepoca claacutessica o soldadoera algueacutem cujas tradicionais vir-tudes do corpo se reconhecem delonge pois seu corpo eacute o brasatildeode sua forccedila e coragem29 Na mo-dernidade o soldado ldquotornou-sealgo que se fabrica de uma massa

informe de um corpo inapto fez-se o homem de que se precisardquoFoucault afirma que ldquohouve du-rante a eacutepoca claacutessica toda umadescoberta do corpo como objetoe alvo de poderrdquo Ele encontra ossinais dessa descoberta do corpoldquodessa grande atenccedilatildeo dedicadaentatildeo ao corpo mdash ao corpo que semanipula se modela se adestraque obedece responde se tornahaacutebil ou cujas forccedilas se multipli-camrdquo no livro O Homem -maacutequinade Julien Onffray de la Mettrie(1709-51) Segundo ele o livrofoi escrito em dois registros noanaacutetomo-metafiacutesico (corpo anali-saacutevel cognosciacutevel) e no teacutecnico-poliacutetico (corpo manipulaacutevel) Se-gundo Foucault esse livro ldquoeacute aomesmo tempo uma reduccedilatildeo mate-rialista da alma e uma teoria ge-ral do adestramento no centro dosquais reina a noccedilatildeo de ldquodocilidaderdquoque une ao corpo analisaacutevel o corpomanipulaacutevel Eacute doacutecil um corpo quepode ser submetido que pode ser uti-lizado que pode ser transformado eaperfeiccediloadordquo (p126) Isso cria umproblema para Foucault pois seele jaacute havia afirmado que o corpoestaacute sempre mergulhado em rela-ccedilotildees de poder (anatomia poliacutetica)qual a novidade dessa atenccedilatildeo queo corpo recebeu na eacutepoca claacutessica

Antes de responder a essa auto-

29A tradiccedilatildeo ocidental definiu como virtudes do corpo a forccedila (fortaleza) sauacutede beleza e coragem embora sempretenha valorizado as virtudes da almacf PIGEAUD J La maladie de lrsquoacircme Paris Belles Lettres 1981

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objeccedilatildeo Foucault retoma a ques-tatildeo do campo poliacutetico em que ocorpo estaacute mergulhado com umasurpreendente tese Sabemos quepor causa de seu nominalismoraras vezes Foucault formula te-ses gerais Neste passo do textoo filoacutesofo retoma a discussatildeo so-bre ldquoeconomia poliacutetica do corpordquoiniciada no capiacutetulo introdutoacuterioe afirma que ldquoem qualquer socie-dade o corpo estaacute no interior de po-deres muito apertados que lhe im-potildee constrangimentos (contraintes)proibiccedilotildees ou obrigaccedilotildeesrdquo (p 126)Em concordacircncia com a antropo-logia cultural30 essa tese geral co-loca o problema de sua especifi-cidade se o corpo eacute controladoem toda e qualquer sociedade oque haacute de novo no controle que so-bre ele exerce o poder disciplinarA novidade do poder disciplinarencontra-se na escala no objeto ena modalidade de controle

Em primeiro lugar a es-cala do controle natildeo setrata de cuidar do corpoem massa grosso modocomo se fosse uma uni-dade indissociaacutevel masde trabalhaacute-lo detalha-damente de exercer so-

bre ele uma coerccedilatildeo semfolga de mantecirc-lo ao niacute-vel mesmo da mecacircnicamdash movimentos gestos ati-tude rapidez poder in-finitesimal sobre o corpoativo O objeto em se-guida do controle natildeoou natildeo mais os elementossignificativos do compor-tamento ou a linguagemdo corpo mas a econo-mia a eficaacutecia dos movi-mentos sua organizaccedilatildeointerna a coaccedilatildeo se fazmais sobre as forccedilas quesobre os sinais a uacutenicacerimocircnia que realmenteimporta eacute a do exerciacutecioA modalidade enfim im-plica numa coerccedilatildeo inin-terrupta constante quevela sobre os processos daatividade mais que sobreseu resultado e se exercede acordo com uma codi-ficaccedilatildeo que esquadrinhaao maacuteximo [quadrille auplus preacutes les] o tempoo espaccedilo os movimentos(p126 gm)

Retenhamos a atenccedilatildeo nessa uacutel-tima e preciosa afirmaccedilatildeo do fi-

30Marcel Mauss antropoacutelogo e sobrinho de Durkheim no ensaio justamente ceacutelebre ldquoAs teacutecnicas corporaisrdquocompreendeu mais profundamente a definiccedilatildeo durkheimeana de educaccedilatildeo fiacutesica que concebia o corpo como umartefato cultural ao mostrar que ele era moldado inclusive nos miacutenimos gestos por teacutecnicas que satildeo sociais Eacuteindubitaacutevel o conhecimento profundo da tradiccedilatildeo socioloacutegica e antropoloacutegica de Durkheim a Levi Strauss bemcomo da antropologia cultural inglesa por Foucault

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loacutesofo a disciplina controla otempo o espaccedilo e os movimentosdo corpo Ela antecipa a definiccedilatildeodas disciplinas

meacutetodos que permitemo controle minucioso dasoperaccedilotildees do corpo queasseguram o assujeita-mento constante de suasforccedilas e lhes impotildeem umarelaccedilatildeo de docilidade-utilidade eacute isso que sepode chamar as discipli-nas (idem)

Como esse capiacutetulo tem o obje-tivo de repertoriar esses meacutetodosde descrever as teacutecnicas de disci-plinamento de efetuar uma mi-crofiacutesica do poder natildeo de fazer ahistoacuteria das instituiccedilotildees discipli-nares31 ndash exceto evidentemente de

uma delas da prisatildeo ndash aquela afir-maccedilatildeo precisa ser destacada

As disciplinas se exercem ldquodeacordo com uma codificaccedilatildeo queesquadrinha ao maacuteximo o tempoo espaccedilo os movimentosrdquo docorpo Essa afirmaccedilatildeo combinadacom o conceito de corpo fornecea chave heuriacutestica do capiacutetulo deseu esquema ou estrutura Comefeito o corpo seraacute definido ape-nas por quatro notas baacutesicas 1) eacutematerialvivo 2) portador de for-ccedilas (p29) 3) sede de uma dura-ccedilatildeo (p148) e 4) estaacute diretamentemergulhado num campo poliacutetico(p28) no qual obedece ou resiste(p259) Seguramente por causada ldquoNavalha de Occamrdquo o corpoeacute definido por um nuacutemero res-trito de notas que satildeo natildeo obs-tante suficientemente plaacutesticas32Se nos lembrarmos de que o prin-

31Eacute o que Foucault afirma categoricamente ldquoNatildeo se trata de fazer aqui a histoacuteria das diversas instituiccedilotildees dis-ciplinares no que podem ter cada uma de singular Mas de localizar apenas sob uma seacuterie de exemplos algumasdas teacutecnicas essenciais que de uma a outra se generalizaram mais facilmente Teacutecnicas sempre minuciosas muitasvezes iacutenfimas mas que tecircm sua importacircncia porque definem um certo modo de investimento poliacutetico e detalhadodo corpo uma nova ldquomicrofiacutesicardquo do poder e porque natildeo cessaram desde o seacuteculo XVII de ganhar campos cadavez mais vastos como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro Pequenas astuacutecias dotadas de um grande po-der de difusatildeo arranjos sutis de aparecircncia inocente mas profundamente suspeitos dispositivos que obedecem aeconomias inconfessaacuteveis ou que procuram coerccedilotildees sem grandeza satildeo eles entretanto que levaram agrave mutaccedilatildeo doregime punitivo no limiar da eacutepoca contemporacircneardquo (p128) Numa nota ele especifica que recolheraacute de algumasinstituiccedilotildees disciplinares os exemplos que lhe permitem efetuar a analiacutetica desse poder ldquoEscolherei os exemplosnas instituiccedilotildees militares meacutedicas escolares e industriais Outros exemplos poderiam ser tomados na colonizaccedilatildeona escravidatildeo nos cuidados na primeira infacircnciardquo (nota 8) Sobre a instituiccedilatildeo em Foucault cf ADORNO F P2002 laquoFoucault et les institutionsraquo 2002275-298

32Eacute bastante surpreendente que Bryan S Turner um dos mais renomados socioacutelogos do corpo e de sua racio-nalizaccedilatildeo na modernidade aponte um deacuteficit inexistente na compreensatildeo foucaultiana de corpo ldquoPor outro ladoFoucault tambeacutem disse que em vez de comeccedilar com a anaacutelise da ideologia seria mais materialista estudar pri-meiro a questatildeo do corpo e os efeitos do poder sobre ele (FOUCAULT 1981 139) Tal projeto materialista parecelevar a corporeidade da vida a seacuterio O que eacute o corpo eacute portanto uma questatildeo central para o pensamento deFoucault mas que natildeo eacute claramente respondida () Ateacute certo ponto Foucault inverteu essa situaccedilatildeo negandoqualquer centralidade agrave subjetividade (o pensamento sujeito cartesiano) e tratando o corpo como foco do discursomoderno Tendo rejeitado o Sujeito transcendental como mero substituto moderno de Deus ou Logos Foucaultparece relutante em ter o Corpo como um centro controlador da teoria social O corpo eacute portanto problemaacuteticopara sua teoriardquo TURNER BS The Body amp Society pp47-8

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ciacutepio de individuaccedilatildeo33 foi tradi-cionalmente definido como tempoe espaccedilo e que a duraccedilatildeo eacute umsegmento qualquer do tempo con-siderado em seu conjunto e quefoi pensado desde a Fiacutesica aris-toteacutelica como uma sucessatildeo infi-nita de instantes entatildeo um corpomaterial eacute espacial ou seja natildeoum pedaccedilo qualquer da extensatildeomas mateacuteria viva o corpo eacute por-tador de forccedilas e estaacute sempre ematividade em movimento poisvida = atividade por sediar umaduraccedilatildeo um corpo eacute temporalmais precisamente finito e enfimum corpo que estaacute submergidonum campo poliacutetico portantoem relaccedilatildeo com outros corpos

obedece-lhes ou cria-lhes resis-tecircncia34 Nesse conceito de corpo(material portador de forccedilas sedede duraccedilatildeo obedienteresistente)e na proacutepria definiccedilatildeo de disci-plina (ldquocontrole que esquadrinhaao maacuteximo o tempo o espaccedilo e osmoimentos do corpordquo) encontra-mos a articulaccedilatildeo das quatro teacutec-nicas disciplinares que seratildeo des-critas na sequecircncia 1ordf) arte daslocalizaccedilotildees ndash localizaccedilatildeo do corpono espaccedilo 2ordf) o controle da ativi-dade ndash dominaccedilatildeo dos movimen-tos do corpo 3ordf) organizaccedilatildeo dasgecircneses ndash controle da existecircnciatemporal ou mais precisamenteda duraccedilatildeo do corpo da apropria-ccedilatildeo do tempo das existecircncias sin-

33O princiacutepio de individuaccedilatildeo foi formulado para resolver o problema da individualidade a partir de uma subs-tacircncia ou natureza comum p ex constituiccedilatildeo deste homem ou deste animal a partir da substacircncia homem ou dasubstancia animal O que faz da substacircncia homem este ou aquele homem Esse eacute o problema que foi formuladopor Avicena e transmitido agrave escolaacutestica cristatilde Agostinho Tomas e Duns Scotus deram respostas divergentes Atra-veacutes de Suarez na escolaacutestica tardia esse problema chegou ao mundo moderno em De principii Individui (1663) deLeibniz e o Ensaio sobre o entendimento humano (1690) de Locke No segundo livro do Ensaio especificamente nocapiacutetulo 27 Locke afirma que uma das funccedilotildees da mente eacute comparar (comparar uma coisa com outra por seme-lhanccedilas e diferenccedilas comparar uma coisa consigo mesma em diferentes momentos do tempo) Esta uacuteltima accedilatildeogera a ideia de identidade e diversidade O verdadeiro ser das coisas eacute sua identidade sua inalterabilidade ao longodo tempo Existir num determinado tempo e lugar exclui outros objetos desse tempo e lugar Segundo Locke umacoisa natildeo pode ter dois comeccedilos na existecircncia nem duas coisas o mesmo comeccedilo Tambeacutem duas coisas natildeo podemocupar o mesmo espaccedilo Se tempo e espaccedilo individualizam as substancias materiais para as coisas vivas Lockeacrescenta o projeto e para os seres espirituais aleacutem de tempo espaccedilo e projeto ele acrescenta a consciecircncia desi Foi de Locke que essa noccedilatildeo chegou a Schopenhauer deste a Nietzsche e deste a Foucault

34No VP Foucault menciona ldquoos indiviacuteduos que resistem agrave normalizaccedilatildeordquo (p259) No ensaio ldquoNietzsche a ge-nealogia a histoacuteriardquo secccedilatildeo 5 ele expotildee a centralidade do corpo na genealogia nietzschiana e afirma que o corpocria resistecircncia Nessa nota do conceito de corpo podemos evidenciar o aspecto derivado ou dependente do capiacute-tulo ldquoOs meios para o bom adestramentordquo na medida em que a vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e oexame exercem-se principalmente sobre os corpos rebeldes e indoacuteceis desviantes e anormais Da mesma forma ocapiacutetulo ldquoo panoptismordquo que aborda a formaccedilatildeo da sociedade disciplinar deriva de tese ou estende uma posiccedilatildeojaacute afirmada em ldquoos corpos doacuteceisrdquo a generalizaccedilatildeo ou extensatildeo das disciplinas ao longo dos seacuteculos XVII e XVIIIEm razatildeo da dependecircncia loacutegica dos capiacutetulos II e III da 3ordf parte em relaccedilatildeo ao primeiro pode-se dizer que este(ldquoos copos doacuteceisrdquo) possui uma dupla centralidade em relaccedilatildeo ao livro e agrave terceira parte No seu belo estudosobre Michel Foucault e a constituiccedilatildeo do Sujeito Marcio Alves da Fonseca expotildee as ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo(distribuiccedilatildeo espacial controle das atividades capitalizaccedilatildeo do tempo e composiccedilatildeo das forccedilas) apoacutes a exposiccedilatildeodos instrumentos de puniccedilatildeo (vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e o exame) Ora se os instrumentosvisam a garantir ldquoo sucessordquo das disciplinas de modo a vigiar normalizar e examinar sobretudo agravequeles que natildeose conformam com elas julgo que a sequecircncia da terceira parte deve ser mantida pois aqui o acessoacuterio segue oprincipal Felizmente essa anaacutelise foi retomada sem essa inversatildeo em sua obra posterior e justamente ceacutelebreMichel Foucault e o Direito

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gulares 4ordf) composiccedilatildeo das for-ccedilas ndash controle da intercorporei-dade ou das relaccedilotildees de mandoe obediecircncia nas relaccedilotildees entrecorpos sempre mergulhados numcampo poliacutetico Foucault examinacada uma dessas teacutecnicas espe-cificando seus princiacutepios atraveacutesde exemplos Se eliminarmos osexemplos as teacutecnicas foram assimespecificadas pelo filoacutesofo

A arte das localizaccedilotildees1) Cerca especificaccedilatildeo deum local heterogecircneo a to-dos os outros e fechado emsi mesmo 2) Quadricula-mento cada indiviacuteduo noseu lugar e em cada lu-gar um indiviacuteduo 3) loca-lizaccedilotildees funcionais Luga-res determinados se defi-nem para satisfazer natildeo soacuteagrave necessidade de vigiar deromper as comunicaccedilotildeesperigosas mas tambeacutem decriar um espaccedilo uacutetil 4)Enfileiramento Na disci-plina os elementos satildeo in-tercambiaacuteveis pois cadaum se define pelo lugarque ocupa na seacuterie e peladistacircncia que o separa dosoutros A unidade natildeo eacuteportanto nem o territoacuterio(unidade de dominaccedilatildeo)nem o local (unidade deresidecircncia) mas a posiccedilatildeona fila o lugar que al-

gueacutem ocupa numa classi-ficaccedilatildeo o ponto em que secruzam uma linha e umacoluna o intervalo numaseacuterie de intervalos que sepode percorrer sucessiva-mente

O controle da atividade1) horaacuterio velha heranccedilaque emprega trecircs grandesprocedimentos mdash estabe-lecer as cesuras obrigara ocupaccedilotildees determina-das regulamentar os ci-clos de repeticcedilatildeo que pro-cura tambeacutem garantir aqualidade do tempo em-pregado controle inin-terrupto pressatildeo dos fis-cais anulaccedilatildeo de tudo oque possa perturbar e dis-trair mediante a constru-ccedilatildeo de um tempo integral-mente uacutetil 2) A elaboraccedilatildeotemporal do ato define-seuma espeacutecie de esquemaanaacutetomo-cronoloacutegico docomportamento O ato eacutedecomposto em seus ele-mentos eacute definida a posi-ccedilatildeo do corpo dos mem-bros das articulaccedilotildeespara cada movimento eacutedeterminada uma dire-ccedilatildeo uma amplitude umaduraccedilatildeo eacute prescrita suaordem de sucessatildeo Otempo penetra o corpoe com ele todos os con-

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troles minuciosos do po-der 3) Correlaccedilatildeo entreo corpo e o gesto o con-trole disciplinar natildeo con-siste simplesmente em en-sinar ou impor uma seacuteriede gestos definidos impotildeea melhor relaccedilatildeo entre umgesto e a atitude global docorpo que eacute sua condi-ccedilatildeo de eficaacutecia e de rapi-dez 4) A articulaccedilatildeo corpo-objeto a disciplina de-fine cada uma das relaccedilotildeesque o corpo deve mantercom o objeto que mani-pula Ela estabelece cui-dadosa engrenagem entreum e outro 5) A utili-zaccedilatildeo exaustiva o princiacute-pio que estava subjacenteao horaacuterio em sua formatradicional era essencial-mente negativo princiacutepioda natildeo-ociosidade eacute proi-bido perder um tempoque eacute contado por Deus epago pelos homens o ho-raacuterio devia conjurar o pe-rigo de desperdiccedilar tempomdash erro moral e desonesti-dade econocircmica Jaacute a dis-ciplina organiza uma eco-nomia positiva coloca oprinciacutepio de uma utiliza-ccedilatildeo teoricamente semprecrescente do tempo maisexaustatildeo que empregoimporta extrair do tempo

sempre mais instantes dis-poniacuteveis e de cada ins-tante sempre mais forccedilasuacuteteis O que significa quese deve procurar intensifi-car o uso do miacutenimo ins-tante como se o tempoem seu proacuteprio fraciona-mento fosse inesgotaacutevelou como se pelo menospor uma organizaccedilatildeo in-terna cada vez mais deta-lhada se pudesse tenderpara um ponto ideal emque o maacuteximo de rapidezencontra o maacuteximo de efi-ciecircnciardquo

Organizaccedilatildeo das gecircne-ses 1) Especificaccedilatildeo desegmentos da duraccedilatildeo di-vidir a duraccedilatildeo em seg-mentos sucessivos ou pa-ralelos dos quais cadaum deve chegar a umtermo especiacutefico 2) Or-ganizar essas sequecircnciastemporais segundo um es-quema analiacutetico mdash su-cessatildeo de elementos tatildeosimples quanto possiacutevelcombinando-se segundouma complexidade cres-cente 3) Finalizaccedilatildeo sele-tiva dos segmentos esta-belecer um teacutermino paraesses segmentos atraveacutesde uma prova que tema triacuteplice funccedilatildeo de indi-car se o indiviacuteduo atin-

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giu o niacutevel estatutaacuterio degarantir que sua aprendi-zagem estaacute em conformi-dade com a dos outros ediferenciar as capacidadesde cada indiviacuteduo 4) Se-rializaccedilatildeo das seacuteries paraespecificar niacuteveis e catego-rias estabelecer seacuteries deseacuteries prescrever a cadaum de acordo com seu niacute-vel sua antiguidade seuposto os exerciacutecios quelhe convecircm os exerciacutecioscomuns tecircm um papel di-ferenciador e cada dife-renccedila comporta exerciacuteciosespeciacuteficos Ao termo decada seacuterie comeccedilam ou-tras formam uma ramifi-caccedilatildeo e se subdividem porsua vez De maneira quecada indiviacuteduo se encon-tra preso numa seacuterie tem-poral que define especifi-camente seu niacutevel ou suacategoria35

Composiccedilatildeo das forccedilas1) Constituiccedilatildeo do corpo in-dividual como peccedila de umamaacutequina multissegmentaro corpo singular torna-

se um elemento que sepode colocar mover ar-ticular com outros Suacoragem ou forccedila natildeo satildeomais as variaacuteveis princi-pais que o definem mas olugar que ele ocupa o in-tervalo que cobre a regu-laridade a boa ordem se-gundo as quais opera seusdeslocamentos 2) Ajus-tamento das seacuteries crono-loacutegicas satildeo tambeacutem pe-ccedilas as vaacuterias seacuteries cro-noloacutegicas que a disciplinadeve combinar para for-mar um tempo compostoO tempo de uns deve-seajustar ao tempo de outrosde maneira que se possaextrair a maacutexima quan-tidade de forccedilas de cadaum e combinaacute-la num re-sultado oacutetimo 3) Insti-tuiccedilatildeo de um sistema deordens essa combinaccedilatildeocuidadosamente medidadas forccedilas exige um sis-tema preciso de comandoToda a atividade do in-diviacuteduo disciplinar deveser repartida e sustentada

35Sobre o controle da existecircncia diz Foucault ldquoA colocaccedilatildeo em lsquoseacuteriersquo das atividades sucessivas permite todoum investimento da duraccedilatildeo pelo poder possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenccedilatildeo pontual(de diferenciaccedilatildeo de correccedilatildeo de castigo de eliminaccedilatildeo) a cada momento do tempo possibilidade de caracterizarportanto de utilizar os indiviacuteduos de acordo com o niacutevel que tecircm nas seacuteries que percorrem possibilidade de acu-mular o tempo e a atividade de encontraacute-los totalizados e utilizaacuteveis num resultado uacuteltimo que eacute a capacidadefinal de um indiviacuteduo Recolhe-se a dispersatildeo temporal para lucrar com isso e conserva-se o domiacutenio de uma du-raccedilatildeo que escapa O poder se articula diretamente sobre o tempo realiza o controle dele e garante sua utilizaccedilatildeordquo(p144-5)

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por injunccedilotildees cuja efici-ecircncia repousa na brevi-dade e na clareza a ordemnatildeo tem que ser explicadanem mesmo formuladaeacute necessaacuterio e suficienteque provoque o compor-tamento desejado36

Se levarmos em conta que essasteacutecnicas controlam o espaccedilo otempo os movimentos do corpoe suas relaccedilotildees com outros cor-pos se levarmos em conta o prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo que subjaza esse diagrama do poder discipli-nar compreende-se porque Fou-cault conclui essa analiacutetica coma tese da produccedilatildeo da subjetivi-dade

Em resumo pode-se dizerque a disciplina fabrica apartir dos corpos que elacontrola quatro tipos de

individualidade ou antesuma individualidade do-tada de quatro caracteresela eacute celular (pelo jogo dareparticcedilatildeo espacial) ela eacuteorgacircnica (pela codificaccedilatildeodas atividades) ela eacute ge-neacutetica (pela acumulaccedilatildeodo tempo) ela eacute combina-toacuteria (pela composiccedilatildeo dasforccedilas)rdquo37

Aqui cada termo merece um co-mentaacuterio Individualidade celu-lar a espacialidade do corpo umldquofragmento de espaccedilo ambiacuteguocuja espacialidade proacutepria e ir-redutiacutevel se articula sobre o es-paccedilo das coisasrdquo eacute carceraacuteria pe-nitenciaacuteria incomunicada secci-onada divisoacuteria Individualidadeorgacircnica os movimentos corpo-rais satildeo codificados e como nosorganismos38 essa codificaccedilatildeo re-sulta em atividades de integra-

36SMJ a melhor esquematizaccedilatildeo das ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo ou do diagrama disciplinar encontra-seem MOREY M Lectura de Foucault Meacutexico Editorial Sexto Piso 1983 p344

37VP p150 E ainda ldquoMuitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indiviacuteduos como ele-mentos constituintes eacute tomada agraves formas juriacutedicas abstratas do contrato e da troca A sociedade comercial se teriarepresentado como uma associaccedilatildeo contratual de sujeitos juriacutedicos isolados Talvez A teoria poliacutetica dos seacuteculosXVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema Mas natildeo se deve esquecer que existiu na mesma eacutepocauma teacutecnica para constituir efetivamente os indiviacuteduos como elementos correlates de um poder e de um saber Oindiviacuteduo eacute sem duacutevida o aacutetomo fictiacutecio de uma representaccedilatildeo ldquoideoloacutegicardquo da sociedade mas eacute tambeacutem uma reali-dade fabricada por essa tecnologia especiacutefica de poder que se chama a ldquodisciplinardquo Temos que deixar de descreversempre os efeitos de poder em termos negativos ele ldquoexcluirdquo ldquoreprimerdquo ldquorecalcardquo ldquocensurardquo ldquoabstrairdquo ldquomascarardquoldquoesconderdquo Na verdade o poder produz ele produz realidade produz campos de objetos e rituais da verdade Oindiviacuteduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produccedilatildeordquo (p172)

38Desde os ensinamentos de Canguilhem e da redaccedilatildeo da HL do NC e de PC Foucault analisou a transformaccedilatildeoda histoacuteria natural para a biologia a mudanccedila da anatomia patoloacutegica para a fisiologia e alteraccedilatildeo da concepccedilatildeoestrutural para a concepccedilatildeo orgacircnica de corpo Como na biologia organicista o corpo natildeo eacute redutiacutevel agrave fiacutesica (con-cepccedilatildeo mecanicista) mas eacute uma complexa organizaccedilatildeo de ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos que coordenadamente realizamfunccedilotildees fisioloacutegicas (nutriccedilatildeo respiraccedilatildeo reproduccedilatildeo etc) para adaptar-se agraves mudanccedilas das condiccedilotildees ambientaise desse modo resistir agrave morte surgiram teorias da adaptaccedilatildeo que Foucault e antes dele Nietzsche rechaccedilaramprontamente e cujos ecos estatildeo presentes aqui

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ccedilatildeo coordenaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo agravescondiccedilotildees ambientais Individu-alidade geneacutetica a duraccedilatildeo docorpo sua radical finitude natu-ral estaacute presa agrave identidade poruma memoacuteria cumulada Indivi-dualidade combinatoacuteria nas rela-ccedilotildees intercorporais o indiviacuteduo eacutepermutaacutevel intercambiaacutevel mo-viacutevel entre os elementos do dis-positivoaparelho Essa passagemprecisa ser conjugada e lida comduas outras que a esclarecem edesdobram colhidas no capiacutetuloldquoOs meios do bom adestramentordquo

ldquo[A disciplina - kb] laquoades-traraquo as multidotildees moacuteveisconfusas e inuacuteteis de cor-pos e forccedilas numa multi-plicidade de elementos in-dividuais ndash pequenas ceacute-lulas separadas autono-mias orgacircnicas identida-des e continuidades geneacute-ticas segmentos combina-toacuteriosrdquo (VP p 153) Eainda ldquoAs grandes fun-ccedilotildees disciplinares de re-particcedilatildeo () de extraccedilatildeomaacutexima das forccedilas ()de acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua de composiccedilatildeooacutetima das aptidotildees Por-tanto de fabricaccedilatildeo da in-dividualidade celular or-gacircnica geneacutetica e combi-natoacuteria () Disciplinasque podemos caracteri-

zar numa palavra dizendoque satildeo uma modalidadede poder para o qual a di-ferenccedila individual eacute perti-nenterdquo (VP p 171)

Embora Foucault natildeo as formulepodemos desdobrar as hipoacutetesesinversas dos indiviacuteduos discipli-nados ao inveacutes da reparticcedilatildeo damultiplicidade de indiviacuteduos aldquomobilidade e confusatildeordquo das mul-tidotildees em vez da extraccedilatildeo maacute-xima das forccedilas pela codificaccedilatildeoda atividade sua ldquoinutilidaderdquo aocontraacuterio da acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua a ruptura da identidadepor fim em oposiccedilatildeo a composi-ccedilatildeo oacutetima das aptidotildees sua dis-persatildeo

Para finalizarmos dois escla-recimentos Agora que sabemosqual o conceito de disciplina ecomo se disciplina um corpo de-vemos determinar em qual eacutepocaemerge o momento histoacuterico dasdisciplinas e qual a importacircn-cia dessa dataccedilatildeo (assinalaccedilatildeo dolugar e tempo de nascimento)para o argumentotese de Fou-cault Tambeacutem precisamos mos-trar como ela se diferencia de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Emuma passagem lapidar o filoacutesofoesclarece essas questotildees

Muitos processos discipli-nares existiam haacute muito

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tempo nos conventosnos exeacutercitos nas oficinastambeacutem Mas as discipli-nas se tornaram no de-correr dos seacuteculos XVIIe XVIII foacutermulas geraisde dominaccedilatildeo Diferen-tes da escravidatildeo pois natildeose fundamentam numa re-laccedilatildeo de apropriaccedilatildeo doscorpos eacute ateacute a elegacircn-cia da disciplina dispen-sar essa relaccedilatildeo custosa eviolenta obtendo efeitosde utilidade pelo menosigualmente grandes Dife-rentes tambeacutem da domes-ticidade que eacute uma rela-ccedilatildeo de dominaccedilatildeo cons-tante global maciccedila natildeoanaliacutetica ilimitada e esta-belecida sob a forma davontade singular do pa-tratildeo seu ldquocaprichordquo Dife-rentes da vassalidade queeacute uma relaccedilatildeo de submis-satildeo altamente codificadamas longiacutenqua e que se re-aliza menos sobre as ope-raccedilotildees do corpo que sobreos produtos do trabalho eas marcas rituais da obe-diecircncia Diferentes aindado ascetismo e das ldquodis-ciplinasrdquo de tipo monaacutes-

tico que tecircm por funccedilatildeorealizar renuacutencias maisdo que aumentos de uti-lidade e que se implicamem obediecircncia a outremtecircm como fim principalum aumento do domiacuteniode cada um sobre seu proacute-prio corpo (p 126-7)

Note-se a concisatildeo e brevidadecom a qual Foucault coloca-se deacordo com os claacutessicos da socio-logia Durkheim Weber e MarxCom efeito eles escreveram sobrea origem das disciplinas nos con-ventos exeacutercitos e oficinas39 Sempolemizar com eles sobre a origemda disciplina interessa a Foucaultsalientar que apesar de sua ori-gem remota elas tornaram-se foacuter-mulas gerais de dominaccedilatildeo no de-correr dos seacuteculos XVII e XVIIIAo localizar a generalizaccedilatildeo dadisciplina na eacutepoca claacutessica Fou-cault reforccedila sua tese sobre a su-avizaccedilatildeo dos castigos a moder-nidade pocircde abrandar a penali-dade porque os corpos estavampreviamente disciplinados por-tanto natildeo por humanitarismo Emsuma a importacircncia de determi-nar o momento histoacuterico das dis-ciplinas na eacutepoca claacutessica eacute que a

39Notemos que Foucault natildeo contraria as teses da sociologia claacutessica (Durkheim Weber e Marx) sobre a origemdas disciplinas apropria-se delas acrescentando na sequecircncia dessa frase sua tese sobre a generalizaccedilatildeo delas emtodo tecido social preacute-moderno Cf DURKHEIM A educaccedilatildeo moral Weber ldquoO significado da disciplinardquo inEnsaios de Sociologia MARX O Capital

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lei penal suavizada deve se exer-cer sobre uma populaccedilatildeo previ-amente disciplinada por procedi-mentos infra-juriacutedicos que fazemcrescer em proporccedilotildees diretas ascapacidades e a docilidade dos in-diviacuteduos seu assujeitamento agravesnormas sociais razatildeo pela qualtambeacutem se lhes pode concederdireitos fundamentais A disci-plina se diferencia dessas outrasformas de dominaccedilatildeo porque dis-pensa a violecircncia sobre o corponatildeo o domina pelo capricho deuma vontade excessiva natildeo visaapenas os produtos da atividadecorporal natildeo exige renuacutencias queimplicam em autocontrole masexecuta um controle minuciosodo corpo faz dele uma aptidatildeoaumenta-lhe as capacidades in-vertendo o poder que poderia re-sultar disso e lanccedilando-o numasubmissatildeo estrita a outrem por-tanto afastando o autodomiacutenio eo empoderamento que poderia re-sultar desse incremento de utili-dade

4 - Conclusatildeo

Nesse artigo procuramos mostrarque existe um duplo sentido daprisatildeo indicada no subtiacutetulo doVigiar e Punir nascimento da pri-satildeo cujo desconhecimento impedeaos melhores inteacuterpretes do filoacute-sofo compreender o objetivo prin-cipal dessa histoacuteria da racionali-

dade subjacente agraves praacuteticas puni-tivas Mediante uma breve expo-siccedilatildeo sobre a peculiar estrutura daobra procuramos restituir agrave ter-ceira parte o valor posicional cen-tral que ela ocupa na economiadas tesesposiccedilotildees foucaultianassobre a mitigaccedilatildeo das penas no di-reito penal e mesmo sobre a con-cessatildeo das liberdades constitucio-nais na modernidade que recusatoda explicaccedilatildeo enfatizadora doprogresso da razatildeo ou do huma-nismo Em seguida escolhemosanalisar o capiacutetulo ldquoOs corpos doacute-ceisrdquo que melhor permitiria al-canccedilar os objetivos desse trabalhonatildeo somente pela impossibilidadede analisar toda a terceira parteda obra que excederia tanto nos-sos objetivos quanto as dimensotildeesde um artigo mas tambeacutem por-que ele possui uma dupla centrali-dade central para a obra e centralpara a parte em que estaacute inseridoDestarte procuramos efetuar umaleitura imanente do capiacutetulo quetorna possiacutevel levantar e respon-der as seguintes questotildees Qualo conceito de disciplina Comoas disciplinas acoplam-se ao con-ceito de corpo Em qual momentohistoacuterico elas emergem Qual aimportacircncia dessa dataccedilatildeo para oargumento central de FoucaultComo elas se diferenciam de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Comoessa modalidade de dominaccedilatildeoproduz corpos disciplinados O

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que resulta dessa produccedilatildeoNesse capiacutetulo Foucault des-

creveu minuciosamente essas teacutec-nicas que incidem sobre as no-tas principais do seu conceito decorpo mostrando que o poder dis-ciplinar natildeo vence as forccedilas docorpo atraveacutes da violecircncia masatraveacutes de uma forma materialde dominaccedilatildeo que se exerce emtorno na superfiacutecie e no inte-rior do corpo produzindo neleuma individualidade disciplinadae disciplinadora (alma subjetivi-dade psique personalidade ouconsciecircncia de si etc) que torna ocorpo uacutetil e doacutecil Se o exerciacutecio dopoder disciplinar natildeo eacute violentotampouco apresenta-se como me-ramente ideoloacutegico na medida emque produz saber pois as institui-ccedilotildees disciplinares suas funccedilotildees eseus instrumentos desbloquearamepistemologicamente as ciecircnciashumanas normalizadoras dadasas condiccedilotildees de vigilacircncia examee normalizaccedilatildeo essas instituiccedilotildeespunitivas transformam-se em la-boratoacuterio de anaacutelise sistemaacuteticodo indiviacuteduo escolarizado hos-pitalizado delinquente trabalha-dor etc

Eacute precisamente nessa articula-ccedilatildeo entre puniccedilatildeo-corpo-alma queFoucault retoma com novos meiosa tese defendida por Nietzschena segunda dissertaccedilatildeo de Para aGenealogia da Moral onde o filoacute-sofo alematildeo interpreta a gecircneseda consciecircncia moral como resul-tado de castigos oriundos da es-fera obrigacional presente na pro-toforma do direito e da moralComo vimos a tutela nietzschi-ana de sua pesquisa em geral edesta em particular foi expres-samente declarada por Foucaultna mesa redonda citada no iniacute-cio desse artigo e numa entrevistasobre o VP e seu meacutetodo ldquose eufosse pretencioso daria como tiacute-tulo geral ao que faccedilo genealo-gia da moralrdquo40 Mesmo Deleuzeamigo de Foucault e profundo co-nhecedor de sua obra e do que aaproximava da de Nietzsche queele conhecia tatildeo bem ao ponto dededicar-lhe um comentaacuterio mag-niacutefico natildeo aproximou aquilo queambiguamente chamava de ldquocate-gorias da forccedilardquo e ldquocategorias depoderrdquo (ldquodistribuiccedilatildeo no espaccedilordquoldquoordenar o tempordquo e ldquocompor no

40Entrevista sobre a prisatildeo e seu meacutetodo in DE vol4p174 Cf o final do texto da contracapa da obra41DELEUZE G El Poder curso sobre Foucault II Buenos Aires Cactus 2014 Talvez isso se deva ao fato de

interpretar a filosofia de Nietzsche separando forccedila e vontade de poder retomando-a nesse curso e por via deconsequecircncia negando a accedilatildeo da forccedila sobre o corpo ldquoMas a relaccedilatildeo da forccedila com algo ou algueacutem isto eacute a relaccedilatildeoda forccedila com um corpo ou com uma alma natildeo eacute o mesmo que a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila O que define amicrofiacutesica eacute a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila o que define a macrofiacutesica eacute os resultantes isto eacute a relaccedilatildeo da forccedilacom algo ou algueacutem Em outros termos a forccedila natildeo pode ser definida pela violecircncia Eacute uma forccedila sobre uma forccedilaou se preferem uma accedilatildeo sobre uma accedilatildeo Violecircncia eacute uma accedilatildeo sobre algordquo (p68-9 119 121 134 MF p82)Embora no livro sobre Foucault publicado um ano depois do curso Deleuze afirme que o poder afeta os corpos

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espaccedilo-tempordquo) das notas do con-ceito de corpo41 Tambeacutem JeanFranccedilois Bert num belo texto de-dicado ao tema natildeo percebeu aarticulaccedilatildeo entre as teacutecnicas dis-ciplinares e conjunto de caracte-res representativos do conceito decorpo

As disciplinas satildeo ummodo de racionalidadeque investe o corpo comoum pedaccedilo de espaccedilo nuacute-cleo de comportamentosduraccedilatildeo interna mas tam-beacutem como soma de forccedilasEles instalam o indiviacuteduoem um novo tipo de rela-cionamento que posicionao corpo entre obtenccedilatildeo desua docilidade e a de suautilidade Mais preci-samente a definiccedilatildeo pro-posta por Foucault se des-dobra em duas direccedilotildees Aprimeira insiste em umaanaacutelise histoacuterica do con-ceito pois define distin-gue compara e descrevecom minuacutecia a formaccedilatildeodesses meacutetodos que auto-rizam o controle das ope-raccedilotildees do corpo Na se-gunda direccedilatildeo ele tentacompor a partir de suasdescriccedilotildees uma grade de

anaacutelise da realidade so-cial que se tornou disci-plinar Em um primeironiacutevel portanto eacute um es-tudo quase microssoci-oloacutegico onde uma ver-dadeira ambiccedilatildeo explica-tiva domina O propoacutesitohistoacuterico de Foucault cir-cunscreve ademais essasteacutecnicas disciplinares emum espaccedilo - o das insti-tuiccedilotildees bem como em umtempo - o da abertura dacolocircnia prisional para jo-vens delinquumlentes de Met-tray que eacute o siacutembolo dotransbordamento da pri-satildeo em um conjunto deinstituiccedilotildees que acabamformando uma rede car-ceral Se tomarmos a se-gunda direccedilatildeo sua anaacute-lise eacute lida como o estabele-cimento de uma hipoacutetesede trabalho natildeo mais mi-crossocioloacutegica mas ma-cro ou meta-histoacuterica quevisa mostrar que nossa so-ciedade se tornou discipli-nar42

Tambeacutem os principais leacutexicos deFoucault dedicaram verbetes aosconceitos quase imantados deldquocorpordquo e ldquodisciplinardquo detendo-

essa afetaccedilatildeo natildeo foi estendida ateacute as notas do conceito foucaultiano de corpo42BERT F ldquoRationalisation et histoire des corps dans le parcours de Michel Foucaultrdquo pp38-9

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se natildeo obstante em efetuar suaaproximaccedilatildeo43

Ateacute onde sei a exceccedilatildeo honrosaque mais se aproxima dessa corre-laccedilatildeo entre as teacutecnicas disciplina-res e o conceito de corpo eacute a anaacute-lise que Frederic Gros efetuou doinvestimento poliacutetico dos corpos

A disciplina eacute entendidaantes de tudo como umanova anatomia poliacutetica aarte de reparticcedilatildeo dos in-diviacuteduos no espaccedilo (cadaum deve estar em seu lu-gar segundo sua posiccedilatildeosuas forccedilas sua funccedilatildeoetc) controle da ativi-dade (a dominaccedilatildeo deveatingir a proacutepria interiori-dade do comportamentoela deveraacute jogar no niacute-vel do gesto em sua ma-terialidade mais iacutentima)organizaccedilatildeo das gecircneses(o poder investe o corpona dimensatildeo de sua dura-ccedilatildeo interna submetendo-o a exerciacutecios progressivos

) composiccedilatildeo das forccedilas(trata-se entatildeo de combi-nar os corpos a fim de ex-trair uma utilidade maacute-xima) O poder investeo corpo como um pedaccedilode espaccedilo como nuacutecleo decomportamentos como du-raccedilatildeo interna e como somade forccedilas44

A inspiradora frase final dessapassagem deu origem a essa ten-tativa de expor o acoplamento datecnologia disciplinar com as no-tas principais do conceito foucaul-tiano de corpo A retomada eo desenvolvimento dessa ldquopistardquoforam motivados pelas questotildeespara as quais desejaacutevamos chamara atenccedilatildeo para os dois sentidosda palavra prisatildeo para a posiccedilatildeocentral da terceira parte e dentrodela para o capiacutetulo ldquoos corposdoacuteceisrdquo na estrutura argumenta-tiva da obra para o enunciadopressuposto do princiacutepio de indi-viduaccedilatildeo na tese do caraacuteter produ-tivo do poder disciplinar

43Cf na bibliografia os prestimosos trabalhos de Revel Castro e Taylor44GROS F Michel Foucault 5ordf ed ParisPUF 2017 p66-7 A primeira ediccedilatildeo eacute de 1996 e serviu como ins-

piraccedilatildeo para a primeira versatildeo desse trabalho que foi apresentado como conferecircncia (ldquoA Alma como prisatildeo docorpo segundo Michel Foucaultrdquo) em um seminaacuterio promovido pela linha de pesquisa Corpo e Cultura do Nuacute-cleo de Estudos Sociedade Poliacutetica e Cultura (NESPOC) do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL) daUniversidade Federal do Recocircncavo da Bahia no segundo semestre de 2008

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223115

Subjetividade e Formas de Vida em Foucault[Foucault on Subjectivity and Life Forms]

Lara Pimentel Figueira Anastacio

Resumo O artigo pretende mostrar que a noccedilatildeo foucaultiana de ldquosub-jetividaderdquo que aparece principalmente em suas genealogias da deacute-cada de 80 dedicadas agraves teacutecnicas de si na antiguidade tambeacutem com-potildee uma criacutetica da razatildeo governamental ao interpretar os modos desubjetivaccedilatildeo dos antigos como modelo de governo de si Apoacutes cir-cunscrevemos a questatildeo em O uso dos prazeres analisaremos o exem-plo da escrita de si como produccedilatildeo de subjetividade dos antigos paraargumentarmos que no pensamento de Foucault a noccedilatildeo de subjeti-vidade estaacute necessariamente vinculada agrave criaccedilatildeo de formas de vida oude um governo das proacuteprias condutas Em outros termos certa dis-posiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade corresponde a uma direccedilatildeoque Foucault identifica como eacuteticaPalavras-chave Michel Foucault Eacutetica Subjetividade Governo Teacutec-nicas de si

Abstract Foucauldrsquos notion of subjectivity which appears mainlyin his genealogies of the 80s dedicated to the techniques of the selfin antiquity also composes a critique of governmental reason sinceit interprets the modes of subjectivation of the ancients as a modelof self-government After we approach the question in The Use ofPleasure we will analyze the example of self-writing as a productionof subjectivity of the ancients to argue that in Foucaultrsquos thoughtthe notion of subjectivity is necessarily linked to the creation of lifeforms In other terms a certain disposition of the relation betweensubject and truth corresponds to a direction that Foucault identifiesas ethicsKeywords Michel Foucault Ethics Subjectivity Government Tech-niques of the self

Nas genealogias de Foucault en-contramos uma concepccedilatildeo de su-jeito imanente agraves relaccedilotildees de po-

der e seus processos de objetiva-ccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo A propoacutesito desua criacutetica a filosofias que reme-

Mestre em filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesmainstituiccedilatildeo E-mail larapfagmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-8631-9626

1 Referimo-nos aqui principalmente agrave fase arqueoloacutegica de Foucault que se propotildee a descobrir territoacuterios preacute-conceituais que prefiguram nos desenhos das epistemes a forma do saber que soacute pode ser compreendido a partirdesse campo preacutevio Foucault ressalta que para criticar certos modelos de referecircncia conceitual foi necessaacuteriorecuar ao campo discursivo da episteme moderna ao qual pertence esse sujeito fundador descrito pejorativamentepor ele como um narcisismo transcendental que ordena e impotildee sua loacutegica contiacutenua agrave acontecimentos irregulares

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tem agrave fixidez do sujeito de conhe-cimento1 seria possiacutevel afirmarque em suas pesquisas genealoacutegi-cas natildeo se encontra um sujeito quepressupotildee uma identidade estan-que que eacute afetada e que se modulaconforme a soma das experiecircn-cias mas um jogo constante entreuma desintegraccedilatildeo interna e suacontraparte externa que provecirc ou-tra integraccedilatildeo mediada pelas re-laccedilotildees de poder Trata-se de certareiteraccedilatildeo da mediaccedilatildeo materialdo mundo sobre os corpos e o su-jeito do qual fala Foucault forma-se atraveacutes das condiccedilotildees proacutepriasaos campos de forccedilas e portantonenhum conteuacutedo sobre ele estaacuteanteriormente posto Movimentode criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo perpeacutetuaso sujeito eacute uma singularidade porser tanto o diferenciado quanto opoder de diferenciaccedilatildeo se o to-marmos como um campo estrateacute-gico de relaccedilotildees de poder ou sejase tomarmos o sujeito no que eletem de moacutevel transformaacutevel re-versiacutevel abre-se entatildeo a possibili-dade do sujeito natildeo ser o mesmodesvinculando-o de qualquer tra-diccedilatildeo ontoloacutegica que fixa e essen-cializa Corpos criam e refletemteacutecnicas criadas no interior das re-laccedilotildees de forccedila e a Foucault in-teressa especialmente interpretare diferenciar processos que se re-

lacionam com a histoacuteria da pro-duccedilatildeo de verdade sobre os sujei-tos o sujeito formado pelo dis-positivo de sexualidade natildeo eacute omesmo daquele encontrado pelasteacutecnicas de si dos antigos e assimpor diante Nesse sentido o queFoucault afirma sobre Nietzscheilumina esse pressuposto que en-contramos em suas proacuteprias pes-quisas ldquoO corpo superfiacutecie deinscriccedilatildeo dos acontecimentos (en-quanto a linguagem os marca eas ideias os dissolvem) lugar dedissociaccedilatildeo do Eu (ao qual eletenta emprestar a quimera de umaunidade substancial) volume emperpeacutetua desintegraccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoNietzsche la geacuteneacutealogielrsquohistoirerdquo 2001a 10112)

Neste artigo escolhemos tra-tar essa questatildeo por meio de al-guns exemplos aos quais Foucaultdedicou-se especialmente a cri-accedilatildeo da subjetividade por meiode praacuteticas denominadas por elede ldquoteacutecnicas de sirdquo Interessa-nossublinhar como o autor apesarde ter expressamente deslocado otema de suas pesquisas a partirda deacutecada de 80 ainda se ocupouem delinear rupturas e continui-dades da histoacuteria de uma formade governo e portanto de umaforma de poder ou de jogo de for-ccedilas como mostram os exemplos

e dispersos Cf FOUCAULT Lrsquoarcheacuteologie du savoir Paris Tel Gallimard p 2652 Os textos citados na liacutengua original possuem traduccedilatildeo de nossa autoria

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

especiacuteficos tratados ao longo desteartigo A objetivaccedilatildeo do homempor saberes sobre a sexualidadeou por teacutecnicas de governo pas-torais ou biopoliacuteticas satildeo partede uma genealogia do governodas condutas que como resultadodo proacuteprio meacutetodo eacute repleta dedescontinuidades e inquietaccedilotildeese como pretendemos investigaralgumas das possiacuteveis respostasa problemas abordados anterior-mente por Foucault satildeo elabora-das por meio da interpretaccedilatildeo daproduccedilatildeo de verdade sobre si rea-lizada pelos antigos Natildeo se trataporeacutem de apontar perguntas erespostas objetivas que operamcomo soluccedilotildees agraves tramas do po-der descritas ao longo da deacutecadade 70 A filosofia de Foucault eacutecomo logo percebem seus leitoresrefrataacuteria a essas posiccedilotildees imedi-atas e nossa intenccedilatildeo resume-sea mostrar como alguns elementosdo que Foucault chamava de ldquogo-vernamentalidaderdquo satildeo retomadospor ele em genealogias de praacuteticasde si na antiguidade para pensarformas de vida capazes de rema-nejar os jogos de forccedilas em que seencontram

Antes poreacutem eacute preciso apenasregistrar que nos cursos ministra-dos em 1978 (Seguranccedila territoacute-rio populaccedilatildeo) e 1979 (O nasci-mento da biopoliacutetica) ambos de-dicados agraves teacutecnicas de governona modernidade Foucault de-

cide privilegiar em sua genea-logia do Estado Moderno o usodo termo ldquogovernamentalidaderdquoao voltar-se para os dispositivosconstituiacutedos por teacutecnicas de go-verno de direccedilatildeo de condutastrata-se de um campo de poderque designa um conjunto de for-ccedilas criadoras de uma nova loacute-gica de organizaccedilatildeo de uma mul-tiplicidade de indiviacuteduos As-sim ao voltar-se para o dispositivoldquoseguranccedila-populaccedilatildeo-governordquono curso de 1978 Foucault tra-balha com uma noccedilatildeo ampla degoverno tratando-o como formade racionalidade que determinaos ldquogovernos dos homensrdquo de-linquecircncia sexualidade pasto-rado liberalismo etc satildeo com-preendidos como saberes elabora-dos a partir de princiacutepios racionaisque modulam as accedilotildees dos indiviacute-duos Racionalidade portanto eacuteentendida como um conceito his-toricamente identificaacutevel que en-globa um mundo de componentesdiversos a racionalizaccedilatildeo da vidabaseia-se no caacutelculo rigoroso paradirigi-la com previsatildeo e atenccedilatildeopara o fim de uma forma determi-nada de governo Nesse sentidoeacute preciso interpretar o conceitode ldquorazatildeo governamentalrdquo comoum fundamento para produccedilatildeo deteacutecnicas cuja loacutegica incorpora mo-delos de governo das condutas esuas formas de objetivaccedilatildeo dos su-jeitos (FOUCAULT ldquoLe sujet et le

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pouvoirrdquo 2001b 1056) relaccedilotildeescalculadas e adequadas de acordocom o sentido de uma funccedilatildeo dopoder que tende para dominaccedilatildeoPor essa perspectiva os sujeitosteratildeo suas condutas submetidasa uma administraccedilatildeo cuja ldquorazatildeogovernamentalrdquo eacute dirigida agrave pro-duccedilatildeo de um saber sobre formasde governo e agrave criaccedilatildeo de teacutecni-cas que intervecircm nas condutas doshomens com vistas a um determi-nado fim No entanto natildeo eacute estaforma de governo que nos inte-ressa no momento

Considerando a noccedilatildeo de gover-namentalidade o caraacuteter moacutevel ea funccedilatildeo diferenciadora dos pro-cessos que constroem uma subjeti-vidade ndash que nos termos foucaul-tianos pode ser entendida comoldquoo conjunto de processos de sub-jetivaccedilatildeo aos quais os indiviacuteduosforam submetidos ou que execu-tavam (mis en oeuvre) em relaccedilatildeo aeles mesmosrdquo (FOUCAULT 2014287) eacute possiacutevel pensar a media-ccedilatildeo material do mundo a partir deuma accedilatildeo reflexionada do sujeitoEm outros termos eacute possiacutevel con-siderar o proacuteprio indiviacuteduo comoum eixo de governamentalidadee tomar a si mesmo como umaexternalidade de um processo desubjetivaccedilatildeo como uma forccedila queage sobre si mesma A respostaafirmativa de Foucault eacute interes-sante e complexa pois se a noccedilatildeode ldquogovernordquo serviu a Foucault

primeiramente para descrever osmodos de operaccedilatildeo da ldquorazatildeo go-vernamentalrdquo na modernidade edos sujeitos produzidos por eles oldquogoverno de sirdquo observa a mesmaloacutegica eacute preciso produzir um sa-ber aplicaacutevel aos corpos por meiode teacutecnicas que influenciam naconduta dos indiviacuteduos ndash no casoum saber direcionado para a con-duta de si mesmo

Problematizaccedilatildeo e constituiccedilatildeodo sujeito eacutetico

Como resumido na aula de 17 defevereiro de 1982 de A hermenecircu-tica do sujeito

() se considerarmos aquestatildeo do poder do po-der poliacutetico situando-ana questatildeo mais geral dagovernamentalidade ()entatildeo a reflexatildeo sobre anoccedilatildeo de governamentali-dade penso eu natildeo podedeixar de passar teoacutericae praticamente pelo acircm-bito de um sujeito que se-ria definido pela relaccedilatildeode si para consigo En-quanto a teoria do po-der poliacutetico como insti-tuiccedilatildeo refere-se ordina-riamente a uma concep-ccedilatildeo juriacutedica do sujeito dedireito parece-me que a

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anaacutelise da governamenta-lidade ndash isto eacute a anaacutelise dopoder como conjunto derelaccedilotildees reversiacuteveis ndash devereferir-se a uma eacutetica dosujeito definido pela re-laccedilatildeo de si para consigo(FOUCAULT 2001c 225)

Percebe-se pois parte do que estaacuteem jogo as genealogias das rela-ccedilotildees de si inserem-se na proble-maacutetica das teacutecnicas de governocomo um contraponto estrateacutegicoa culturas posteriores agrave antigui-dade que privilegiaram moraisimpostas aos indiviacuteduos a partirde instacircncias codificadoras de sis-temas morais No trecho menci-onado Foucault sugere que umdos instrumentos preponderan-tes para se pensar uma criacutetica domodo como determinada formade governo se estabelece eacute o ldquosu-jeito de direitordquo mediador teoacute-rico que confere legitimidade ju-riacutedica agraves formas de relaccedilatildeo possiacute-veis entre o indiviacuteduo e o EstadoCerta tradiccedilatildeo do pensamento criacute-tico dificilmente escapa de ela-borar accedilotildees poliacuteticas que se datildeofora dos campos institucionais ejuriacutedicos as potencialidades des-sas accedilotildees necessariamente perpas-sam o espaccedilo presente no com-plexo conceito de ldquoesfera puacuteblicardquoo qual natildeo nos cabe discutir aquiNatildeo eacute por meio de anaacutelises teoacute-ricas que Foucault estabelece seu

pensamento criacutetico daiacute sua re-cusa em se aproximar de anaacutelisescircunscritas a questotildees normati-vas e institucionais Se Foucaultafirma que natildeo haacute ldquoresistecircncia aopoder poliacutetico senatildeo na relaccedilatildeode si para consigordquo (FOUCAULT2001c 225) eacute porque encontrana histoacuteria um modo de accedilatildeo queintensifica uma capacidade do su-jeito de conduzir a proacutepria vida aopotencializar suas forccedilas por meiode uma dobra sobre si (para utili-zarmos a vocabulaacuterio de Deleuze)(DELEUZE 2005111-115) Eletorna-se apto a alcanccedilar inversotildeesdas relaccedilotildees de poder pois o jogode forccedilas dos antigos estabeleciaque somente os homens livresaqueles que dominam a si mes-mos podiam estabelecer relaccedilotildeeslivres entre si e tornavam-se aptosa ldquogovernar os outrosrdquo a governara famiacutelia e a cidade a conduzirrelaccedilotildees tanto no acircmbito privadoquanto no puacuteblico A filosofia daarte de viver em Foucault assumea tarefa da moldagem de um su-jeito capaz de se relacionar de ma-neira reflexiva consigo mesmo ecom outras formas de governo quesurgem e perpassam sobre ele e eacutenesse contexto que deve ser inse-rida a noccedilatildeo de subjetividade Aeacutetica elaborada como uma esteacuteticase define portanto como produtode altas intensidades tornando oproacuteprio sujeito em um objeto desi capaz de controlar as proacuteprias

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transformaccedilotildeesPara investigar essa forma refle-

xiva de governo Foucault voltou-se para os arquivos da atividadefilosoacutefica na antiguidade quandoaprender e produzir saberes pres-supunha que o sujeito exercesseum trabalho sobre si por meio deexerciacutecios que preparavam corpoe espiacuterito para a filosofia e parao governo dos outros ndash esta eacute aproveniecircncia do termo grego paraa noccedilatildeo de cuidado de si epimeacute-leia heautoucirc Nos termos de Pi-erre Hadot cuja colaboraccedilatildeo foifundamental para Foucault fun-damentar seu ponto de vista sobrea filosofia antiga ldquoA filosofia an-tiga admite bem de uma maneiraou de outra e desde o Banquete dePlatatildeo que o filoacutesofo natildeo eacute um saacute-bio pois a filosofia eacute ao mesmotempo e indissoluvelmente dis-curso e modo de vidardquo (HADOT199519-20) Se a sabedoria re-presenta a identificaccedilatildeo ideal dosaber com a virtude a oposiccedilatildeomarcada por Hadot entre filosofiae sabedoria reflete a busca cons-tante da primeira pela segundaa filosofia na tradiccedilatildeo grega natildeoeacute um saber puramente teoacutericomas um saber-viver que pressu-potildee uma praacutetica que sempre tendepara sabedoria E para que o su-jeito estivesse pronto para refle-tir sobre perguntas tatildeo complexasquanto aquelas produzidas pelafilosofia era preciso que optasse

por certo modo de vida que natildeo sesitua no fim do processo da ativi-dade filosoacutefica como o efeito deum caminho exterior a ele maspelo contraacuterio estaacute pressupostodesde seu iniacutecio em uma com-plexa interaccedilatildeo entre uma reaccedilatildeorefletida do indiviacuteduo agraves proacutepriasatitudes e uma visatildeo de certa ma-neira de viver e de ver o mundoEssa opccedilatildeo por um modo de vidadeterminava ateacute certo ponto a te-oria que era ensinada ao indiviacute-duo havendo portanto um pri-mado da praacutetica sobre a teoria en-tre os filoacutesofos gregos Portantode acordo com o princiacutepio de lei-tura de Hadot da qual Foucaultaproxima-se o discurso filosoacuteficotem sua origem em uma escolha devida e natildeo o contraacuterio e o filoacutesofoeacute aquele que ao buscar a sabedo-ria cria tanto um modo de vidaquanto um discurso

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos Essa escolha sobreas formas de vida diz respeito auma postura de questionamentoque ao relacionar filosofia e vidatorna-se capaz de reconhecer no-vas perspectivas sobre aquilo queexiste de mais familiar ou confereinteresse a accedilotildees ateacute entatildeo con-sideradas insignificantes ndash este eacute

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o recorte de inteligibilidade parasuas interpretaccedilotildees sobre o modocomo os filoacutesofos antigos proble-matizaram sensaccedilotildees simples e vi-tais como os prazeres do corpopor exemplo Trata-se de um novovocabulaacuterio para abordar relaccedilotildeesde forccedilas relacionadas agraves teacutecnicasde si e sua articulaccedilatildeo com a cria-ccedilatildeo de um pensamento que trans-forma a filosofia em uma praacuteticapara um domiacutenio de accedilatildeo ou certaconformaccedilatildeo do jogo de forccedilas en-trar no campo do pensamento eacutenecessaacuterio uma teacutecnica de si umaatitude criacutetica ou reflexiva que lo-caliza por meio do movimentoldquode sirdquo fatores que tornaram cer-tas accedilotildees incertas ou provoca-ram dificuldades em torno delaE esse processo de problematiza-ccedilatildeo do mundo natildeo requer respos-tas certas ou sistemas que con-ferem legitimidade a um eu defundo egoiacutesta ldquoTrata-se de ummovimento de anaacutelise criacutetica peloqual se tenta ver como puderamser construiacutedas as diferentes solu-ccedilotildees para um problema mas tam-beacutem como essas diferentes solu-

ccedilotildees resultam de uma forma espe-ciacutefica de problematizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoPoleacutemique politique etprobleacutematisationsrdquo 2001b 1417)Satildeo soluccedilotildees que assumem muacutel-tiplas formas teacutecnicas e saberesque satildeo definidos pelo contextode problemas nos quais se encon-tram em um cenaacuterio que deve sercompreendido a partir das forccedilasem que a simultaneidade dessesacontecimentos estaacute localizada

Em O uso dos prazeres a noccedilatildeode ldquoproblematizaccedilatildeordquo ressalta ocaraacuteter reflexivo das praacuteticas desubjetivaccedilatildeo dos antigos em rela-ccedilatildeo aos prazeres Ao longo da his-toacuteria dessas relaccedilotildees de si forccedilasatuaram de diferentes modos nasformas como os sujeitos produ-zem verdade sobre si se o ldquosujeitode desejordquo eacute interpretado como su-jeito objetivado pelas praacuteticas as-sociadas agrave tradiccedilatildeo cristatilde3 a for-maccedilatildeo do sujeito eacutetico na antigui-dade oferece um campo histoacutericono qual as teacutecnicas de subjetivaccedilatildeoeram desvinculadas da produccedilatildeode uma verdade sobre si de umaobjetivaccedilatildeo de si servindo entatildeo

3 No curso de 1980 Do governo dos vivos Foucault convoca pela primeira vez em seu percurso filosoacutefico a forccedilado ldquosirdquo nas relaccedilotildees produtoras de subjetividade A nova perspectiva parece sugerir uma mudanccedila do eixo analiacuteticoem relaccedilatildeo aos programas dos cursos anteriores trata-se poreacutem a nosso ver mais de uma realocaccedilatildeo do problemado governo das condutas do que de uma ruptura no modo de se pensar ldquose trata essencialmente ao passar danoccedilatildeo de saber-poder agrave noccedilatildeo de governo pela verdade de dar um conteuacutedo positivo e diferenciado a esses doistermos saber e poderrdquo (FOUCAULT 2012 13)

4 O receacutem publicado quarto volume da Histoacuteria da sexualidade As confissotildees da carne sublinha os contrastes queFoucault intencionava destacar entre a antiguidade claacutessica e o cristianismo que emerge no seacuteculo IV Ao abordarteacutecnicas como o batismo a confissatildeo a penitecircncia e as interdiccedilotildees sexuais Foucault argumenta que o cristianismodesenvolveu teacutecnicas de poder por meio de um governo do desejo essa verdade sobre si mesmo criada pelosprimeiros pensadores cristatildeos que satildeo obtidas por teacutecnicas de si que objetificam sujeitos por meio da produccedilatildeo

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como contraponto agraves teacutecnicas decontrole do desejo desenvolvidadesde o cristianismo primitivo4

() vamos encontrar tudoisso nas teacutecnicas espiritu-ais do cristianismo primi-tivo nas quais o desejo eacute oelemento fundamental eeacute sobre ele se apreendidode sua raiz ou de sua apa-riccedilatildeo que eacute preciso con-centrar todo esforccedilo ()Natildeo satildeo mais os aphrodi-sia natildeo eacute mais este ato pa-roxiacutestico eacute o nascimentoo desabrochar a primeiraponta a primeira picadado desejo eacute a concupis-cecircncia eacute a tentaccedilatildeo Eacute oque encontraremos poste-riormente deslocamentodo bloco dos aphrodisiae emergecircncia do desejo(FOUCAULT 2014 292)

Ao voltar-se para seu trabalho his-toacuterico e criacutetico ldquoa propoacutesito do de-sejo e do sujeito desejanterdquo (FOU-CAULT 1984 11) Foucault reor-

ganiza a pesquisa que antes eradedicada ao dispositivo de sexua-lidade Com o intuito de formularsua criacutetica histoacuterica do objeto ldquose-xualidaderdquo a Foucault interessouinterpretar as forccedilas que envol-vem o caraacuteter produtivo e criativodas relaccedilotildees que produzem sabe-res construiacutedos sobre certo con-ceito de desejo o que desloca osmecanismos de coerccedilatildeo a um pa-pel coadjuvante na problemaacuteticada sexualidade Suas interpreta-ccedilotildees dirigem-se agraves ldquopraacuteticas pelasquais os indiviacuteduos foram leva-dos a prestar atenccedilatildeo a eles proacute-prios (eux-mecircmes) a se decifrar ase reconhecer e se confessar comosujeitos de desejo jogando de sipara consigo (faisant jouer entreeux-mecircmes et eux-mecircmes) certa re-laccedilatildeo que lhes permite descobrirno desejo a verdade de seu serrdquo(FOUCAULT 1984 11) O projetosignificou um deslocamento ateacute aspraacuteticas de si dos antigos mesmodiante da constataccedilatildeo das dificul-dades oacutebvias em se produzir umagenealogia que percorra as rela-ccedilotildees entre o ldquodesejordquo e a produccedilatildeode verdade sobre si desde a an-

de um saber sobre si Essa subjetivaccedilatildeo eacute indissociaacutevel de um processo de conhecimento que faz da obrigaccedilatildeo debuscar e dizer a verdade de si mesmo uma condiccedilatildeo indispensaacutevel e permanente dessa eacutetica Toda subjetivaccedilatildeoimplica uma objetificaccedilatildeo indefinida de si mesmo por si mesmo mdash indefinida na medida em que sem nunca seradquirida de uma vez por todas natildeo tem um termo no tempo e no sentido de que se deve sempre ter tanto quantopossiacutevel o exame dos movimentos do pensamento tatildeo tecircnues e inocentes quanto possam parecer Por outro ladoessa subjetivaccedilatildeo na forma de uma busca pela verdade de si eacute realizada atraveacutes de relaccedilotildees complexas com os ou-tros E de muitas maneiras porque trata-se de descobrir em si mesmo o poder do Outro do Inimigo que se escondesob as aparecircncias de si mesmo porque trata-se de travar contra este Outro um incessante combate do qual natildeo sepode ser vitorioso sem a ajuda do Todo-Poderoso que eacute mais poderoso que ele porque finalmente a confissatildeoaos outros a submissatildeo aos seus conselhos a obediecircncia permanente aos diretores satildeo indispensaacuteveis para essecombate (FOUCAULT 2018 245)

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tiguidade Esse retorno histoacutericoradical forneceria as condiccedilotildees deampliaccedilatildeo de seu exerciacutecio criacuteticoem um projeto pelo qual novasquestotildees conduziriam sua ldquoanaacutelisedos jogos de verdaderdquo ldquoa questatildeoque deveria servir de fio condutorera a seguinte como por que esob que forma a atividade sexualfoi constituiacuteda como campo mo-ral Por que esse cuidado eacuteticotatildeo insistente () Por que essalsquoproblematizaccedilatildeordquorsquo (FOUCAULT1984 16) Perguntas cuja respostarelaciona-se com o conjunto depraacuteticas que Foucault denominade ldquoartes da existecircnciardquo

Por elas deve-se entenderpraacuteticas refletidas e vo-luntaacuterias atraveacutes das quaisos homens natildeo somente sefixam regras de condutacomo tambeacutem procuramtransformar-se modificar-se em seu ser singular e fa-zer de sua vida uma obraque seja portadora de cer-tos valores esteacuteticos e res-ponda a certos criteacuterios deestilo (FOUCAULT 198416-17)

A constituiccedilatildeo saudaacutevel de um ho-mem livre na Greacutecia Antiga pres-crevia uma ldquoesteacutetica de sirdquo no sen-tido de uma atividade terapecircuticaque tem como fim operar modi-

ficaccedilotildees eacuteticas no sujeito que setornava capaz de se adequar con-forme uma justa medida A ldquopro-blematizaccedilatildeordquo portanto eacute o con-ceito chave para Foucault inter-pretar na Histoacuteria da sexualidadeas relaccedilotildees de poder e as tecno-logias que satildeo imanentes a elascomo praacutetica que visa criar e for-mular problemas diante de umaanaacutelise reflexiva sobre as accedilotildeesos comportamentos as atitudesarticulando-se tambeacutem agraves teacutecni-cas criadas para interferir nessasaccedilotildees tendo em vista algum fimalguma estrateacutegia

Ao voltar-se para a praacutetica daproblematizaccedilatildeo como guia parasuas pesquisas sobre as teacutecnicasde si Foucault abre um novo ho-rizonte para a anaacutelise das relaccedilotildeesde poder mais proacuteximos agraves re-laccedilotildees de forccedilas envolvidas coma proacutepria atividade filosoacutefica Eacuteo que sugere algumas das men-ccedilotildees ao termo encontradas no li-vro ldquoas condiccedilotildees nas quais o serhumano lsquoproblematizarsquo o que eleeacute e o mundo no qual ele viverdquo(FOUCAULT 1984 16) ldquoas pro-blematizaccedilotildees atraveacutes das quais oser se daacute como podendo e devendoser pensadordquo (FOUCAULT 198417) ou ainda ldquoera preciso pesqui-sar a partir de quais regiotildees daexperiecircncia e sob que formas ocomportamento sexual foi proble-matizado tornando-se objeto decuidado elemento para reflexatildeo

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mateacuteria para estilizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT 1984 30) Natildeo interessaagrave anaacutelise de Foucault portantoexperiecircncias regidas por leis queservem de referecircncias a condutaspois seu ponto centraliza-se no es-paccedilo de incocircmodo que nasce nomomento em que o homem da An-tiguidade volta-se para sua proacute-pria constituiccedilatildeo a partir de ldquomo-rais orientadas para a eacuteticardquo defi-nidas pela ldquoecircnfase dada entatildeo agravesformas das relaccedilotildees consigo aosprocedimentos e agraves teacutecnicas pe-las quais satildeo elaboradas aos exer-ciacutecios pelos quais o proacuteprio su-jeito se daacute como objeto a conhe-cer e agraves praacuteticas que permitamtransformar seu proacuteprio modo deserrdquo (FOUCAULT 1984 37) Por-tanto o ldquosujeitordquo abordado na His-toacuteria da sexualidade e nos cursosministrados por Foucault na deacute-cada de 80 natildeo se refere ao indi-viacuteduo que eacute levado a se compor-tar de tal maneira por um con-trole externo a si mas o de algueacutemque adquire a capacidade de esco-lher como agir em determinadassituaccedilotildees por meio de uma refle-xatildeo centrada no domiacutenio das proacute-prias paixotildees dentro de um es-paccedilo de deliberaccedilatildeo sem que o as-pecto reflexivo se confunda comum eu egoiacutesta como observa Wi-lhelm Schmid ldquoO cuidado de sieacute a foacutermula para todas as praacuteti-cas nas quais o eu eacute constituiacutedo() O conceito de epimeleia estaacute

no centro da eacutetica antiga claacutessicaeacutetica entendida como domiacuteniocomo governo da relaccedilatildeo consigomesmo e das relaccedilotildees com os ou-tros O heatou (pronome refle-xivo da 3ordf pessoa) eacute essencial eacuteo si da praacutetica natildeo o eu doegoiacutesmo ou vocecirc do altruiacutesmordquo(SCHMID 1991 247) Foi essemodo de ser especiacutefico dos anti-gos preocupados em alcanccedilar asoberania de si sobre si mesmo apartir de uma reflexatildeo sobre a li-berdade e a eacutetica que atraiu Fou-cault para uma genealogia voltadapara a criaccedilatildeo de praacuteticas para aformaccedilatildeo do sujeito eacutetico

A escrita de si como criaccedilatildeo deformas de vida

Para compreendermos o funcio-namento das forccedilas que envolvemos exerciacutecios de si e o princiacutepiode accedilatildeo que fundamenta essas ati-tudes tomemos primeiramente omodo como Foucault elabora essasrelaccedilotildees pela perspectiva do exer-ciacutecio da leitura e da escrita de sientre os filoacutesofos estoicos que vi-veram durante o Impeacuterio Romanonos primeiros anos de nossa era Aquestatildeo da escrita de si parece-nosum exemplo especialmente ins-trutivo para uma anaacutelise das rela-ccedilotildees de forccedila em jogo nas praacuteticasde si por conter e evidenciar todosos elementos que buscamos des-tacar a relaccedilatildeo entre certo tipo

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de exerciacutecio e seu efeito sobre aforma do corpo por meio de umarelaccedilatildeo instrumental com os dis-cursos Apesar do exerciacutecio da lei-tura e escrita ter adquirido impor-tacircncia tardiamente como exerciacute-cio de si (FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1236) desde en-tatildeo ele desempenhou um papelconsideraacutevel na vida filosoacutefica an-tiga tornando-se um suporte parao acompanhamento ininterruptoda praacutetica asceacutetica

Em todo caso qual sejao ciclo de exerciacutecio emque ela tome lugar a es-crita constitui uma etapaessencial no processo aoqual tende toda askecircsis asaber a elaboraccedilatildeo de dis-cursos recebidos e reco-nhecidos como verdadei-ros em princiacutepios racio-nais de accedilatildeo Como ele-mento de exerciacutecio de sia escrita tem para uti-lizar uma expressatildeo queencontramos em Plutarcouma funccedilatildeo eacutethopoieacuteticaela eacute um operador detransformaccedilatildeo da verdadeem ecircthos (FOUCAULTldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1237)

Vemos aiacute uma seacuterie de conceitos ede relaccedilotildees entre eles que eacute pre-

ciso esclarecer o papel funda-mental atribuiacutedo agrave askecircsis de ins-trumento para o acesso agrave verdadee de consequente transformaccedilatildeode si atraveacutes de uma ldquofunccedilatildeo eacutetho-poeacuteticardquo presente nessa forma depoder Nesse sentido a ascese erao meio pelo qual o sujeito cons-titui a si mesmo ldquoNenhuma teacutec-nica () pode ser adquirida semexerciacutecio tambeacutem natildeo se podeaprender a arte de viver sem umaaskecircsis () aiacute residia um dosprinciacutepios tradicionais aos quaisdesde haacute muito os pitagoacutericosos socraacuteticos os ciacutenicos tinhamdado grande importacircnciardquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1236) Esses exerciacutecios que po-diam ser de ordem fiacutesica como oregime alimentar e dos prazeresou discursiva como o diaacutelogo aescrita e a leitura eram destina-dos a operar modificaccedilatildeo e trans-formaccedilatildeo no sujeito que o praticaesse era o fim da askecircsis A asceseportanto eacute o instrumento que per-mite que o sujeito efetivamente segoverne ao transformar seu proacute-prio corpo em algo que reteacutem osdiscursos verdadeiros

Para filoacutesofos como Secircneca ePlutarco esses discursos satildeo in-corporados por meio de exerciacute-cios em que eacute possiacutevel estabele-cer uma relaccedilatildeo adequada e aca-bada consigo mesmo e assim estarmais bem preparado para as cir-cunstacircncias da vida os exerciacutecios

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de si possuiacuteam o mesmo fim dosexerciacutecios praticados pelos atletasou seja era preciso construir parasi mesmo um corpo que seja umldquoequipamentordquo para a vida A as-cese garante que o discurso ver-dadeiro se materialize e afete ocorpo do sujeito Enfim ldquoa ascesefilosoacutefica a ascese da praacutetica desi na eacutepoca heleniacutestica e romanatem essencialmente por sentido efunccedilatildeo assegurar o que chamareide subjetivaccedilatildeo do discurso verda-deirordquo (FOUCAULT 2001c 297)ou seja trata-se de um modo dosujeito fixar a si mesmo como ob-jeto e a partir do exame do con-teuacutedo desse objeto definir a ati-tude a se tomar em relaccedilatildeo a eleNessa ascese pagatilde (ou filosoacutefica)interessa encontrar a si mesmotanto como meio quanto como fimde uma teacutecnica de vida de umaarte de viver Por meio dos exerciacute-cios o sujeito encontra a si mesmoem um movimento cujo momentoessencial natildeo eacute a objetivaccedilatildeo de siem um discurso verdadeiro comoeacute o caso da praacutetica da confissatildeopara os cristatildeos por exemplo masa subjetivaccedilatildeo de um discurso ver-dadeiro por meio de uma praacuteticareflexiva ou seja de um exerciacuteciode si sobre si

Essa subjetivaccedilatildeo do discursoverdadeiro eacute o que Foucault en-contra por exemplo no exerciacutecioda leitura da escrita das anota-ccedilotildees entre os filoacutesofos do estoi-

cismo tardio Natildeo haacute aiacute a ne-cessidade de compreensatildeo do queo autor lido queria dizer natildeohaacute a prescriccedilatildeo de uma ldquoherme-necircuticardquo mas a instrumentaliza-ccedilatildeo da leitura e da escrita demodo que o sujeito escolha os dis-cursos que lhe satildeo caros e as-sim construa uma trama soacutelida deproposiccedilotildees que funcionam comoprescriccedilotildees como uma forma deldquorazatildeo governamentalrdquo que incor-pora os discursos e os transfor-mam em princiacutepios de comporta-mento Ademais compreende-seporque sendo a leitura assim con-cebida como exerciacutecio e experiecircn-cia a leitura seja imediatamenteligada agrave escrita Essa relaccedilatildeo en-tre as duas atividades eacute elementofundamental de um fenocircmeno decultura e de sociedade presente noiniacutecio do Impeacuterio Romano o lugarrelevante assumido pela escritacomo teacutecnica de si Como Secircnecasugere na carta 84 era preciso al-ternar escrita e leitura ldquoA leiturase prolonga reforccedila-se reativa-sepela escrita escrita que tambeacutemela eacute um exerciacutecio de meditaccedilatildeordquo(FOUCAULT 2001c 341) Natildeo sedeve sempre escrever ou sempreler a primeira esgotaria a ener-gia a segunda ao contraacuterio a di-minuiria Eacute preciso temperar aleitura com a escrita e reciproca-mente de modo que a composiccedilatildeoescrita decirc corpo (corpus) ao que aleitura recolheu

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O papel da escrita eacute cons-tituir com tudo o quea leitura constituiu umldquocorpordquo (quicquid lectionecollectum est stilus redi-gat in corpus) E estecorpo haacute que entendecirc-lonatildeo como um corpo dedoutrina mas sim ndash deacordo com a metaacuteforatantas vezes evocada dadigestatildeo ndash como o proacute-prio corpo daquele queao transcrever as suasleituras se apossou de-las e fez sua a respectivaverdade a escrita trans-forma a coisa vista ou ou-vida ldquoem forccedilas e em san-guerdquo (in vires in sangui-nem) Ela transforma-seno proacuteprio escritor numprinciacutepio de accedilatildeo racional(FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1241)

Por meio da leitura o corpo ad-quire orationes logoacutei (discursoselementos de discursos) e a es-crita constitui e assegura essecorpo O exerciacutecio da escritatem a vantagem de ter dois usospossiacuteveis e simultacircneos eacute escre-vendo que o sujeito assimila a proacute-pria coisa na qual se pensa e as-sim implementa determinada lei-tura e pensamento na alma e nocorpo tornando-se assim comoque uma espeacutecie de haacutebito ou vir-

tude fiacutesica ldquoEra haacutebito e haacutebitorecomendado escrever aquilo quese tivesse lido e uma vez escritoreler aquilo que se tivesse escritoe relecirc-lo necessariamente em vozaltardquo (FOUCAULT 2001c 342)Assim o exerciacutecio de ler escre-ver e novamente ler o que se ti-nha escrito e as anotaccedilotildees parale-las constituiacutea um exerciacutecio fiacutesicode assimilaccedilatildeo do logos a se reterno corpo Nesse sentido a ldquoes-crita etopoieacuteticardquo tal como Fou-cault a interpreta estabeleceu-se no exterior de uma forma deexerciacutecio amplamente praticadana eacutepoca os hypomnemata (FOU-CAULT 2001c 341) formas deanotaccedilotildees do pensamento Exer-ciacutecio difundido entre os filoacutesofosno periacuteodo heleniacutestico era pre-ciso dispor aquilo que se se pen-sou por escrito transformando oconteuacutedo tambeacutem em leitura e re-leitura para si Escrevia-se apoacutesa leitura com o objetivo de relerapoacutes a passagem do texto pela me-moacuteria reler para si mesmo e assimincorporar o discurso verdadeiroque se ouve de outro ou que se lecircsob o nome de outro Deleuze su-blinha o papel da memoacuteria nessesexerciacutecios ldquo() os processos desubjetivaccedilatildeo satildeo acompanhadosde escrituras que constituiacuteam ver-dadeiras memoacuterias hypomnemataMemoacuteria eacute o verdadeiro nome darelaccedilatildeo consigo ou do afeto de sipor si () constituindo a estru-

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tura essencial da subjetividaderdquo(DELEUZE 2005 114-115) Esseduplo do presente exerciacutecios naforma de anotaccedilotildees sobre as lei-turas ou sobre diaacutelogos e aulassatildeo suportes de lembranccedilas re-forccedilo da memoacuteria e um modo dedispor o tempo a favor de umacapacidade de afetar a si mesmopor meio de incorporaccedilatildeo de dis-cursos agrave custa de uma forccedila apli-cada sobre si mesmo ldquo() trata-se natildeo de perseguir o indiziacutevelnatildeo de revelar o que estaacute ocultomas pelo contraacuterio de captar ojaacute dito reunir aquilo que se pocircdeouvir ou ler e isto com uma fi-nalidade que natildeo eacute nada menosque a constituiccedilatildeo de sirdquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1238) No interior da cultura ro-mana marcada e estruturada pelatradiccedilatildeo e valorizaccedilatildeo da recor-recircncia do discurso pela praacuteticadas citaccedilotildees que traziam em si osigno da autoridade da antigui-dade desenvolvia-se uma eacuteticaorientada pelo que Foucault de-nomina cultura de si ou seja praacute-ticas cujos objetivos eram da or-dem da construccedilatildeo de uma inte-rioridade de viver bem consigoproacuteprio alcanccedilar-se a si proacutepriobastar-se a si proacuteprio desfrutar desi proacuteprio

Os hypomneacutemata existiam comoforma de cuidado de si pois havianessa praacutetica uma troca em que osujeito colaborava consigo mesmo

nos exerciacutecios que compreendiama subjetivaccedilatildeo pela atividade daescrita e da leitura A escrita comopraacutetica praticada por si e para sieacute uma arte que conteacutem uma ma-neira refletida de combinar a au-toridade tradicional do discurso jaacutedito com a singularidade da ver-dade que nela se afirma a partirde uma livre escolha desses exer-ciacutecios pelo sujeito pois cada umescolhia suas leituras e era livrepara apropriar-se delas no mo-mento em que julgasse necessaacuterioconstruindo assim um estilo pormeio de exerciacutecio que aos poucoslimita e daacute consistecircncia ao erguerum edifiacutecio coerente para o sujeitoa partir do que ele adquiriu comsua leitura e escrita Como co-menta Schmid ldquo Neste escrito al-gueacutem molda e corrige a si mesmoeacute o signum de um constante exerciacute-cio de si () O si destaca-se e res-surge no traccedilo deixado pelo gestoda matildeo que escreve - esse gestoelementar que cria uma formaespalha a rede de uma estruturae produz uma tramardquo (SCHMID1991 310) Esses procedimentosconferiam aos sujeitos uma formaum limite para a materialidade deseu corpo trata-se menos de umaregra ou seja de uma prescriccedilatildeoa ser observada severamente doque de uma teacutekhne toucirc biacuteou umaarte de viver que transforma aproacutepria vida em uma obra quecomo tudo o que eacute produzido por

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

uma teacutekhne deve ser bela e boa apartir de modalidades de accedilatildeo queimplicam tambeacutem uma liberdadede escolha daquele que se utilizadela ldquo() nenhuma obediecircnciapode no espiacuterito de um romano ede um grego constituir uma obrabela A obra bela eacute a que obedeceagrave ideia de uma certa forma (umcerto estilo uma certa forma devida)rdquo (FOUCAULT 2001c 405)Por fim registramos que Foucaultlevou essa teacutecnica de si para suaproacutepria vida enquanto preparavaseus uacuteltimos livros como contouPaul Veyne ldquoDurante os uacuteltimosoito meses de sua vida a prepara-ccedilatildeo de seus dois livros desempe-nhou o papel que a escrita filosoacute-fica e o diaacuterio desempenhavam nafilosofia antiga o papel do traba-lho de si em si mesmo da auto-estilizaccedilatildeordquo (VEYNE 1986 940)

Enquanto na modernidade aproduccedilatildeo e o acesso agrave verdadeindependem de qualquer rela-ccedilatildeo que o sujeito mantenha con-sigo mesmo bastando o que po-demos chamar de maneira geneacute-rica de ldquoato de conhecimentordquo osfiloacutesofos antigos vincularam es-treitamente produccedilatildeo de discur-sos verdadeiros e modo de vidaEm outros termos durante a an-tiguidade podemos compreendero sujeito tanto como instrumentoe fim de uma verdade quantocomo alvo de uma governamenta-lidade no entanto esse processo

era demandado e executado peloproacuteprio sujeito atraveacutes de exerciacute-cios de askecircsis que transforma-vam a proacutepria vida do indiviacuteduoem objeto a ser modificado con-forme sua avaliaccedilatildeo Trata-se deuma forccedila reflexiva aplicada emsi mesmo que vinculava duas no-ccedilotildees fundamentais para a ativi-dade filosoacutefica o verdadeiro sa-ber eacute sempre um saber-fazer e apergunta ldquocomo conhecer a ver-daderdquo natildeo deveria ser respon-dida sem que tambeacutem o sujeitose questione ldquocomo devo viverrdquoOs antigos interpretados por Fou-cault articularam outro arranjode relaccedilotildees entre governo e ver-dade antes de ser capaz de filo-sofar ou seja de produzir discur-sos relacionados com a verdade osujeito deveria transformar-se eti-camente agindo de determinadomodo aplicando em si mesmouma seacuterie de exerciacutecios que for-mavam um ecircthos ou seja que tor-navam o sujeito um ser que ageconforme o discurso que produze que produz discursos coeren-tes com o modo como vive ldquoAverdade soacute eacute dada ao sujeito aum preccedilo que potildee em jogo o sermesmo do sujeito Pois tal comoele eacute natildeo eacute capaz de verdaderdquo(FOUCAULT 2001c 17) Temosem Foucault entatildeo uma defini-ccedilatildeo proacutepria de eacutetica ela deve serdefinida natildeo como uma teoria damoral ou criaccedilatildeo de normas mas

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como um problema de produccedilatildeode modos de vida Eacute necessaacuterioque o sujeito se relacione comsua proacutepria vida transformando-a em uma forma de modificaccedilatildeodo corpo conforme as circunstacircn-cias quando o indiviacuteduo estaacute cor-retamente orientado sendo entatildeocapaz de dominar-se e controlara produccedilatildeo de suas formas de ex-periecircncia de si os exerciacutecios ad-quirem sua justa significaccedilatildeo suaverdadeira validade Essa reflexatildeosobre si retifica cada traccedilo indi-vidual para que natildeo haja excessoou defeito para que se produzao verdadeiro equiliacutebrio na relaccedilatildeoentre sujeito e vida e entre sujeitoe verdade

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos As anaacutelises sobrea governamentalidade moderna esua relaccedilatildeo com as teacutecnicas cris-tatildes conduziram essa interpretaccedilatildeode Foucault ao mundo da Antigui-dade cujas relaccedilotildees de poder e sa-ber eram organizadas por meio deoutro diagrama de forccedilas E atra-veacutes dessa diferenccedila a proposta dereelaboraccedilatildeo da Histoacuteria da sexu-alidade que aparece em O uso dosprazeres parece-nos mais evidenteo paradigma de Foucault mesmose tratando de uma genealogia que

alcanccedila e se inicia com a Antigui-dade grega jamais deixou de seruma visatildeo criacutetica sobre o sujeitomoderno Portanto o ldquoretorno aosgregosrdquo ou a ldquovirada eacuteticardquo cu-jas pesquisas aparecem definitiva-mente a partir do curso de 1981Subjetividade e verdade em nadase assemelham agrave inauguraccedilatildeo deum percurso ainda natildeo exploradopor Foucault pois ampliam e res-pondem a muitos dos questiona-mentos deixados em aberto emsuas genealogias da deacutecada de 70como estabelecer um olhar criacuteticoagraves forccedilas de saber-poder que inci-tam os sujeitos a dizer a verdadesobre o seu desejo Como proble-matizar a instacircncia de obediecircnciae de supressatildeo do ldquosirdquo que encon-tramos no modo como os indiviacute-duos satildeo governados no presenteSatildeo questotildees que Foucault intentaresponder ao olhar para os antigosinvestigando os arquivos e suaspraacuteticas ancoradas em valores queviabilizaram a existecircncia da forccedilado ldquosirdquo tanto nas relaccedilotildees consigoquanto nas familiares e puacuteblicasPor meio da histoacuteria que perpassaas atividades voltadas para o si eacutepossiacutevel como buscamos mostrartambeacutem criticar certa forma de vi-olecircncia presente nas relaccedilotildees esta-belecidas entre sujeito e verdadena tradiccedilatildeo ocidental

As diferentes respostas de Fou-cault agrave pergunta ldquosob quais cir-cunstacircncias produziu-se verdade

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SUBJETIVIDADE E FORMAS DE VIDA EM FOUCAULT

sobre o sujeito no ocidenterdquo atra-vessam diversos momentos da his-toacuteria como seus leitores podemfacilmente constatar Tentamosdescrever aqui como a instrumen-talizaccedilatildeo da produccedilatildeo de verdaderealizada pelos antigos por meiodas teacutecnicas ldquode si para sirdquo propor-cionou novas condiccedilotildees para o au-tor remanejar essa grande questatildeoque percorreu toda sua produccedilatildeofilosoacutefica Encontramos portantoum modelo de criaccedilatildeo de subje-tividade que garante certa liber-dade de escolha aos sujeitos e re-estrutura as relaccedilotildees de forccedilas nasquais estatildeo envolvidos saiacuteda quegarantiu a Foucault interpretar re-laccedilotildees de poder por seu vieacutes pro-dutivo e potencialmente criadorde algum grau de autonomia paraos sujeitos Trata-se de uma boa

resposta a um incocircmodo presenteem seus textos sobre o poder re-sumido por Deleuze em texto de1977 da seguinte maneira

Daiacute em Michel o pro-blema do papel do intelec-tual daiacute sua maneira dereintroduzir a categoriade verdade que me leva aperguntar o seguinte re-novando completamenteessa categoria fazendo-adepender do poder po-deraacute ele encontrar nessarenovaccedilatildeo um modo devoltaacute-la contra o poderMas aqui natildeo sou capazde ver como fazecirc-lo (DE-LEUZE 1995 p 61)

Referecircncias

FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 2 Lrsquousage des plaisirs Paris Gal-limard 1984

FOUCAULT M Dits et eacutecrits I 1954-1975 Paris Gallimard 2001aFOUCAULT M Dits et eacutecrits II 1976-1988 Paris Gallimard 2001bFOUCAULT MA hermenecircutica do sujeito curso dado no Collegravege de France

(1981-1982) Traduccedilatildeo de Maacutercio Alves da Fonseca e Salma Tan-nus Muchail 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

FOUCAULT M Leccedilons sur la volonteacute de savoir Cours au Collegravege de France1970-1971 Paris Gallimard 2011

FOUCAULT M Du gouvernement des vivant Cours au Collegravege de France1979-1980 Paris SeuilGallimard 2012

FOUCAULT M Subjectiviteacute et veacuteriteacute Cours au Collegravege de France 1980-1981 Paris SeuilGallimard 2014

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FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 4 Les aveux de la chair ParisGallimard 2018

DELEUZE G ldquoDeacutesir et plaisirrdquo In Magazine Litteacuteraire ndeg 325 pp59-65

DELEUZE G Foucault Trad Claudia Martins Satildeo Paulo Ed Brasili-ense 2005

HADOT P Qursquoest-ce que la philosophie antique Paris Gallimard 1995SCHMID W Auf der Suche nach einer neuen Lebenskunst Frankfurt am

Main Suhrkamp 1991VEYNE P ldquoLe dernier Foucault et sa moralerdquo in Critique 47172 1986

Recebido 20022019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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Normas para Publicaccedilatildeo

Todas as submissotildees devem ser efetuadas exclusivamente atraveacutesdo site da Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea (RFMC) nomenu SOBRE SUBMISSOtildeES ONLINE

A RFMC publica apenas trabalhos filosoacuteficos ineacuteditos que estejamde acordo com as suas normas na forma de artigos resenhas ou tra-duccedilotildees de autoria de doutores eou mestres em filosofia (ou aacutereasafins)

A RFMC publica textos redigidos em portuguecircs espanhol francecircsitaliano inglecircs ou alematildeo Se for necessaacuterio o editor recomendaraacutea revisatildeo linguiacutestica dos textos

Todos os textos seratildeo submetidos agrave avaliaccedilatildeo cega por pares

A publicaccedilatildeo de originais implicaraacute automaticamente a cessatildeo dosdireitos autorais agrave RFMC

O autor deve informar os seguintes dados pessoais titulaccedilatildeo acadecirc-mica maacutexima viacutenculo profissional eou acadecircmico atual endereccedilode e-mail e nuacutemero do ORCID

Normas especiacuteficas para Artigos

1 O artigo deve ter no miacutenimo 5000 e no maacuteximo 15000 palavras

2 O texto do artigo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulo tiacutetuloem inglecircs (ou portuguecircs caso o texto natildeo tenha sido redigido emportuguecircs) nome do autor ou autores dados pessoais resumo (nomiacutenimo 50 e no maacuteximo 150 palavras) palavras-chave (no miacutenimo3 e no maacuteximo 5) abstract (resumo em inglecircs) keywords (palavras-chave em inglecircs) texto e bibliografia

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EDITORIAL

Normas especiacuteficas para Traduccedilotildees

1 As traduccedilotildees devem ter no maacuteximo 20000 palavras

2 O texto da traduccedilatildeo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulodo texto traduzido nome do autor do original nome do tradutordados pessoais do tradutor apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo (no miacutenimo500 e no maacuteximo 5000 palavras) e texto traduzido

3 Seratildeo aceitas apenas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa acompa-nhadas dos originais de textos de reconhecida relevacircncia filosoacutefica

4 Podem ser publicados na iacutentegra ou em partes traduccedilotildees de textosque jaacute estejam no domiacutenio puacuteblico ou que ainda possuam direitosautorais desde que seja apresentada por escrito AUTORIZACcedilAtildeOdo detentor dos DIREITOS AUTORAIS A obtenccedilatildeo da autorizaccedilatildeoeacute de exclusiva responsabilidade do tradutor e deveraacute ser enviadajuntamente com a traduccedilatildeo

Normas especiacuteficas para Resenhas

1 As resenhas devem ter entre 1500 e 5000 palavras

2 O texto da resenha deveraacute observar a seguinte sequecircncia referecircnciacompleta sobre o texto resenhado nome do autor da resenha dadospessoais do resenhista e texto

3 Seratildeo aceitas apenas resenhas de livros cuja publicaccedilatildeo tenha ocor-rido haacute no maacuteximo dois anos (caso o texto seja nacional) ou trecircs anos(caso o texto seja estrangeiro)

Normas para Apresentaccedilatildeo dos Originais

1 Todos os textos devem ser encaminhados em arquivo do MS Wordem formato DOCou DOCX e editados com fonte Times NewRoman tamanho 12 espaccedilamento 15

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2 Os textos devem empregar itaacutelico ao inveacutes de sublinhado (exceto emendereccedilos URL) especialmente para destacar palavras estrangeirasao idioma do texto

3 As notas explicativas devem aparecer ao peacute da paacutegina e ser ordenadasnumericamente A chamada das notas de rodapeacute deve ser colocadano corpo do texto antes do sinal de pontuaccedilatildeo

4 As citaccedilotildees e referecircncias devem obedecer agrave norma NBR 10520 daABNT

a) As citaccedilotildees diretas com ateacute 3 linhas devem estar no corpo do textoentre aspas e as com mais de 3 linhas devem se destacar docorpo do texto sem aspas

b) As referecircncias de citaccedilotildees diretas devem ser colocadas no corpo dotexto no formato autor-data (SOBRENOME DO AUTOR Anop)

c) As citaccedilotildees indiretas devem estar no corpo do texto independen-temente do tamanho sem aspas e as suas referecircncias devemser colocadas no corpo do texto no formato autor-data

5 As referecircncias bibliograacuteficas devem obedecer agrave norma NBR 6023 daABNT aparecer no final do artigo e ser ordenadas alfabeticamenteem ordem ascendente

a) Livro (monografia no todo) SOBRENOME DO AUTOR demaisnomes abreviados com ponto Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetuloNome do tradutor (se houver) Ediccedilatildeo Local da ediccedilatildeo Editoraano da publicaccedilatildeo

b) Artigo ou capiacutetulo de livro (coletacircnea) SOBRENOME DO AUTORdemais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo do artigo ou capiacute-tulo entre aspas com ponto Nome do tradutor (se houver) InSOBRENOME DO ORGANIZADOR OU EDITOR Nome (abre-viado) (Org ou Ed) Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetulo EdiccedilatildeoLocal da ediccedilatildeo Editora ano da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigoocupa na obra

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EDITORIAL

c) Artigos em perioacutedicos SOBRENOME DO AUTOR demais nomesabreviados com ponto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nomedo tradutor (se houver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico local depublicaccedilatildeo (quando houver) ano do perioacutedico (quando houver)volume e nuacutemero do perioacutedico paacuteginas que o artigo ocupa noperioacutedico data ou periacuteodo da publicaccedilatildeo

d) Artigo ou resenha em perioacutedicos eletrocircnicos (documentos eletrocircni-cos) SOBRENOME DO AUTOR demais nomes abreviados componto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nome do tradutor (se hou-ver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico volume e nuacutemero do perioacute-dico data da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigo ocupa no perioacute-dico (se houver) Disponiacutevel em [endereccedilo eletrocircnico] acessadoem [Data de acesso]

e) Teses dissertaccedilotildees e outros trabalhos acadecircmicos SOBRENOMEDO AUTOR demais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo emitaacutelico subtiacutetulo Local Nuacutemero total de paacuteginas Grau aca-decircmico e aacuterea de estudos (Dissertaccedilatildeo de mestrado ou Tese dedoutorado em []) Instituiccedilatildeo em que foi apresentada Ano

6 Havendo mais de uma referecircncia por autor estas devem seguir or-dem crescente de publicaccedilatildeo (primeiro a mais antiga e em seguidaas mais recentes) No caso de mais de uma obra por ano estas de-vem ser diferenciadas por letras

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Page 3: RReevviissttaa ddee FFiilloossooffiiaa MMooddeerrnn aa ee

A Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea eacute umapublicaccedilatildeo quadrimestral do Departamento de Filosofia e doPrograma de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade de

Brasiacutelia (UnB)The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a

triannual publication of the Department of Philosophy and theGraduate Program in Philosophy of the University of Brasiacutelia

Brasiacutelia volume 7 nuacutemero 2 2ordm quadrimestre de 2019ISSN 2317-9570 (publicaccedilatildeo eletrocircnica)

httpperiodicosunbbrindexphpfmc

Pareceristas desta EdiccedilatildeoReviewers of this Issue

Andreacute Luis Muniz Garcia (UnB) Antocircnio Maacuterio David Siqueira Ferreira(USP) Ericka Marie Itokazu (UnB) Fran de Oliveira Alavina (UFVJM)Giorgio Gonccedilalves Ferreira (UEBA) Giovanni Zanotti (UnB) Henrique

Piccinato Xavier (UFABC) Homero Santiago (USP) Jarlee Oliveira SilvaSalviano (UFBA) Jonas Roos (UFJS) Joseacute Miranda Justo (Universidade deLisboa) Leon Farhi Neto (UFT) Lorrayne Colares (UnB) Luis Cesar Oliva

(USP) Luiz Carlos Montans Braga (UEFS) Luiz Manoel Lopes (UFC)Malcom Guimaratildees Rodrigues (UEFS) Marcos Aureacutelio Fernandes (UnB)

Marilia Pacheco (UnB) Philippe Claude Thierry Lacour (UnB) Roberto deAlmeida Pereira de Barros (UFPA)

Sumario

i Paginas Iniciais 01

ii Editorial 07

iii Dossie Espinosa 17

Notas Sobre os Instrumentos Cientıficos em GalileuCristiano Novaes de Rezende 17

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e EspinosaVittorio Morfino 43

Dramas da Imanencia Gebhardt Deleuze Benjamin e o Infinito Bar-roco de EspinosaHenrique Piccinato Xavier 71

Ha Abstracao de Si na Origem de toda a Abstracao na Filosofia deEspinosaRafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende 89

Seguranca Liberdade e Concordia no Pensamento Republicano de Es-pinosaStefano Vinsentin 123

Comunicacao e Silencio na Experiencia Polıtica EspinosanaDaniel Santos da Silva 137

Sobre o Desespero Sao Paulo Junho de 2013Fernando Bonadia de Oliveira 147

iv Artigos 189

A Influencia de Schelling sobre SchopenhauerHelio Lopes da Silva 189

De Dicto and De Re A Brandomian experiment on KierkegaardGabriel Ferreira da Silva 221

Introduccion Historica al PsychologismusstreitMario Ariel Gonzalez Porta 239

A Antiguidade um Erro Profundo ndash Foucault a Filosofia e suas Ati-tudesJean Dyego Gomes Soares 271

Sobre a centralidade e a estrutura do capıtulo ldquoOs corpos doceisrdquo doVigiar e PunirKleverton Bacelar 293

Subjetividade e Formas de Vida em FoucaultLara Pimentel Figueira Anastacio 327

v Normas para Publicacao 345

DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228228

Editorial

Apresentaccedilatildeo do Dossiecirc Espinosa

No fio do tempo e da histoacuteria

A violecircncia nas palavras Defamiacutelia portuguesa escolhido onome de Bento (ou Baruch) aonascer na comunidade judaicade Amsterdatilde ningueacutem imagina-ria que Espinosa ainda na tenrajuventude e neste mesmo lugardela seria excomungado sob amais violenta acusaccedilatildeo que in-verteria o sentido de seu nometransformando-o sob a pecha deldquoMalditordquo Proscrito uma vez elogo depois mais uma vez acu-sado de herege pela Santa Seacute Es-pinosa seraacute o primeiro filoacutesofode origem judaica a ser incluiacutedono Index Mais ainda ningueacutemimaginaria que um seacuteculo de-pois a palavra ldquoespinosistardquo seriausurpada de seu sobrenome paratornar-se sinocircnimo de grave acu-saccedilatildeo da qual muitos tiveram quese defender e que contudo natildeose encerrou no seacuteculo XVIII pelocontraacuterio persevera nas polecircmi-cas das tantas querelas dos espi-

nosimos dos seacuteculos seguintesContudo se no fio da histoacute-

ria a filosofia de Espinosa eacute cons-tantemente retomada no turbi-lhatildeo por vezes ensurdecedor demuacuteltiplas acusaccedilotildees daqueles to-mados pelo horror frente ao seusistema eacute preciso ressaltar to-davia que sua retomada nuncaeacute consensual e que simultane-amente apresentaram-se inten-sos elogios por dissonantes vo-zes em reinterpretaccedilotildees por ve-zes divergentes que procuraramdefendecirc-lo muitos dos quais neleidentificaram o seu proacuteprio pro-jeto filosoacutefico e por isso de seaproximaram ou inversamentepor nele encontrarem um cami-nho sem volta rumo a uma filoso-fia encerrada em si mesma delaafastaram-se vigorosamente paraevitar o perigo de serem engolidosem sua trama geomeacutetrica aquelaldquomaacutequina infernalrdquo de proeza de-monstrativa inescapaacutevel

7

EDITORIAL

Satildeo tatildeo conhecidas as ima-gens do espinosismo quantosatildeo diversas e contraditoacuterias1ldquoMonstruoso ateu de sistemardquoou ldquofiloacutesofo eacutebrio de Deusrdquoldquopanteiacutestardquo ou ldquoateiacutesta virtuosordquodefensor de um ldquofatalismoinexpugnaacutevelrdquo onde a liberdadenatildeo tem lugar ou o maior ldquofiloacutesofoda liberdaderdquo ldquocartesianordquo ldquoanti-cartesianordquo ldquoultra-cartesianordquofortaleza de um ldquoidealismoabsolutordquo em que o indiviacuteduonatildeo tem lugar ou responsaacutevelpela mais potente ldquorefundaccedilatildeo domaterialismordquo num realismo po-liacutetico radical cravado no fulcro damodernidade enfim a lista se-gue indefinidamente Malebran-che Leibniz More Jacobi KantHegel Schelling Nietzsche Berg-son Einstein Deleuze Negri Ma-chado de Assis Jorge Luis Bor-ges Clarice Lispector Nise da Sil-veira Nenhum de seus leitoresparece ter permanecido incoacutelumeapoacutes atravessar o seu sistema filo-soacutefico

Perante tantas e diversas lei-turas possiacuteveis pelo menos em

um aspecto seriacuteamos obrigados aconcordar para lembrar em outrocontexto as palavras de J Israelldquoningueacutem nem mais remotamentechegou a rivalizar a notoriedadede Espinosardquo2 E se com essa brevedescriccedilatildeo antevemos o eterno re-torno ao espinosismo com issotambeacutem concluiacutemos que mesmono seacuteculo XXI haacute ainda algo revo-lucionaacuterio a ser pesquisado nestafilosofia que teima em nos esca-par Tal fenocircmeno talvez ocorraporque especificamente seja estauma filosofia que levou a termoa difiacutecil tarefa de fundamentar-se exclusivamente no difiacutecil con-ceito do absolutamente infinito ouinfinito positivo como causa de si eda natureza inteira mantendo comisso em seu interior aquele mis-teacuterio ao qual se referia Merleau-Ponty

O seacuteculo XVII eacute o momentoprivilegiado em que o conhe-cimento da natureza e a meta-fiacutesica julgaram encontrar umfundamento comum Criou

1Sobre as diversas imagens do espinosismo recomendo o beliacutessimo capiacutetulo ldquoA construccedilatildeo do Espinosismordquo inA Nervura do Real Imanecircncia e liberdade vol 1 Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 pp 113-330

2Israel J Radical Enlightenment Philosophy Making of Modernity 1650-1750 Oxford University Press 2001

8 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 7-15ISSN 2317-9570

uma ciecircncia da natureza e noentanto natildeo fez do objeto daciecircncia o cacircnone da ontolo-gia Admite que uma filoso-fia sombranceie a ciecircncia semser uma rival para ela ()Essa extraordinaacuteria harmoniaentre o exterior e o interior[da filosofia] soacute eacute possiacutevel pelamediaccedilatildeo de um infinito posi-tivo ou infinitamente infinito() Eacute nele que se comuni-cam ou se unem uma agrave outraa existecircncia efetiva das coisaspartes extra partes e a exten-satildeo pensada por noacutes que pelocontraacuterio eacute contiacutenua e infi-nita Se haacute no centro e comoque no nuacutecleo do Ser um in-finitamente infinito todo serparcial estaacute real ou iminente-mente contigo nele3

Eis porque Merleau-Ponty tomade empreacutestimo o ceacutelebre moteseiscentista ndash que visava explici-tar o desafio de compreender umuniverso aberto e infinito poacutes re-voluccedilatildeo galileana ndash deslocando-odo campo da Nova Ciecircncia para

aplica-lo agrave sua compreensatildeo dehistoacuteria da filosofia ldquoNatildeo haacute umafilosofia que contenha todas as fi-losofias a filosofia inteira estaacute emcertos momentos em cada umadelas Repetindo a famosa expres-satildeo seu centro estaacute em toda partee sua circunferecircncia em parte al-gumardquo4

Se concordarmos com Merleau-Ponty que o conceito fundadordo sistema de Espinosa eacute o ab-solutamente infinito a partir doqual emerge uma extraordinaacute-ria harmonia entre o ldquointeriorrdquoe o ldquoexteriorrdquo da filosofia tam-beacutem neste mesmo conceito pode-remos encontrar aquilo que numafilosofia escrita e datada no seacute-culo XVII ou seja escrita a par-tir da e contra as miseacuterias e vio-lecircncias de seu tempo pode atin-gir para utilizar uma expressatildeoespinosana ldquoum certo aspecto daeternidaderdquo no interior do qualfora de seu tempo ele dialoga tatildeointensamente com as filosofiasposteriores e natildeo somente issomas tambeacutem dialoga com aquiloque supostamente eacute exterior agrave fi-

3Merleau-Ponty M ldquoEm toda parte e em parte algumardquo in Signos Satildeo Paulo Martins Fontes 1991 p 1634Idem p 140

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EDITORIAL

losofia a saber as artes as ci-ecircncias as poliacuteticas enfim a his-toacuteria Mais ainda natildeo se res-tringindo ao campo acadecircmicoe transitando no campo da cul-tura e da literatura contra ou a fa-vor o ldquoespinosismordquo foi ganhandoterreno e certa popularidade quetanto o invade quanto o faz in-vadir a proacutepria vida Para lem-brar novamente as palavras deMerleau-Ponty

Assim os partidaacuterios de umafilosofia ldquopurardquo e os da ex-plicaccedilatildeo socioeconocircmica tro-cam de papel diante dos nos-sos olhos e natildeo devemos en-trar em seu perpeacutetuo debatenatildeo devemos tomar partidoentre uma falsa concepccedilatildeo deldquointeriorrdquo e ldquoexteriorrdquo A fi-losofia estaacute em toda partemesmo nos ldquofatosrdquo ndash e natildeopossui em parte alguma umcampo em que esteja preser-vada do contagio da vida5

2019 Brasiacutelia entrando na trama tecida pelo espinosismo

Dentre as diversas retomadasdo espinosismo um periacuteodo e lu-gar se destacam particularmenteem Paris e Vincennes nos anos 60do seacuteculo passado diversos estu-diosos voltam a estuda-lo muni-dos de novas ferramentas inter-pretativas como a anaacutelise estru-tural de sistemas filosoacuteficos golds-chmiditana a anaacutelise filosoacutefico-filoloacutegica e a anaacutelise filosoacutefico-histoacuterica A partir do trabalhodeste grupo o espinosismo ga-

nhou forccedila renovada e novas te-ses foram surgindo nas matildeos deM Gueacuteroult A Matheron P Ma-cherey G Deleuze L AlthusserEacute neste contexto que no calor de1968 parisiense uma jovem es-tudiosa brasileira que na eacutepocafazia seus estudos de doutoradona Franccedila com V Goldschmidt efrequentando Vincennes decidededicar-se tambeacutem agrave filosofia deEspinosa Marilena Chaui

Quase meio seacuteculo depois

5Idem p 141

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tornando-se reconhecidamenteuma das maiores estudiosas dofiloacutesofo holandecircs uma rede es-pinosana fortaleceu-se no Bra-sil sobretudo em grupos de SatildeoPaulo no Rio de Janeiro no Ce-araacute Tocantins Paranaacute com sin-gular importacircncia para o Grupode Estudos Espinosanos da USP(GEE-USP) ainda hoje sob a co-ordenaccedilatildeo de Marilena Esta redebrasileira fortemente articuladamuito colaborou para a constru-ccedilatildeo de um grupo ainda maiorcontribuindo para o desenvolvi-mento do espinosimo na AmeacutericaLatina e que no ano de 2018 co-memorou seus 15 anos de traba-lho contiacutenuo realizado em encon-tros anuais dos Coloacutequios Inter-nacionais de Espinosa na AmeacutericaLatina e que atualmente confi-gura o maior coloacutequio no mundodedicado ao filoacutesofo

Ora foi justamente neste anocomemorativo de 2018 que a Uni-versidade de Brasiacutelia conferiu agravefiloacutesofa Marilena Chaui o tiacutetulode doutora Honoris causa promo-vendo um coloacutequio em sua ho-menagem Devido agrave organiza-ccedilatildeo da vinda de Marilena agrave UnBe dos conferencistas que discuti-riam sua obra a UnB pode contar

naquele ano com a vinda de diver-sos estudiosos de Espinosa do Bra-sil e do exterior o que promoveuo coletivo esforccedilo por finalmentedar iniacutecio aos trabalhos do Grupode Estudos Espinosanos da UnBque integrando-se agrave rede brasi-leira celebrou a sua fundaccedilatildeo comrealizaccedilatildeo da I Jornada de Estu-dos Espinosanos na UnB Foi noclima celebrativo deste primeiroencontro intensa e afetivamentepotente que nasceu natildeo somenteo Grupo de Estudos Espinosanos daUnB (GEE-UnB) mas tambeacutem oprojeto para o Nuacutecleo de EstudosSeiscentistas do Cerrado O pre-sente ldquoDossiecirc Espinosardquo portantocontando a oportuna presenccedila einterlocuccedilatildeo com diversos especi-alistas do Brasil e do exterior con-gratula a criaccedilatildeo de duas institui-ccedilotildees que permitiratildeo participaccedilatildeode docentes e discentes pesquisa-dores da UnB e do Centro-oestepara continuar o trabalho de per-seguir atravessar reinterpretar erefletir a partir dessa filosofia tatildeouacutenica quanto histoacuterica e potente-mente revolucionaacuteria

Entre a Primeira Jornada Espi-nosana na UnB quando a maioriados textos que compotildeem este Dos-siecirc foi escrita e o presente ano de

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EDITORIAL

2019 muito se sucedeu na histoacute-ria poliacutetica brasileira um movi-mento histoacuterico ainda inconclusose pensarmos nos rumos do traba-lho universitaacuterio na fragilidadedo apoio ao desenvolvimento filo-soacutefico cultural e cientiacutefico Faz-senecessaacuterio portanto e novamenteperguntar-se sobre a filosofia apartir do seu interior levando-aao limite do entrecruzamento en-tre a ldquofilosofiardquo e seu ldquoexteriorrdquocomo diria Merleau-Ponty Narelaccedilatildeo da problemaacutetica conjun-tura que atualmente enfrentamoseacute preciso natildeo apenas voltar aosestudos filosoacuteficos mas tambeacutemvoltar a defender a sua importacircn-cia soacutecio-cultural pela relaccedilatildeo in-terna (partes intra partes) entre afilosofia e as ciecircncias entre a filo-sofia e as artes entre a filosofia eo mundo Mais uma vez precisa-mos retomar a defesa fundamen-tal da liberdade de pensamento eexpressatildeo ndash adaacutegio espinosano porexcelecircnciandash e talvez imbuiacutedos decerto espinosismo renovado en-contremos um caminho de umafilosofia contagiada pela vida

Ora o leitor encontraraacute no pre-sente Dossiecirc a proposta de re-flexatildeo destas mesmas relaccedilotildeesseja no interior dos artigos seja

no tema nele diretamente abor-dado seja na verve que o animae inspira Pensando nisso pro-pusemos um percurso temaacutetico-cronoloacutegico os temas tratam deentrecruzamentos notadamenteno diaacutelogo entre filosofia e ciecircn-cia (Cristiano Novaes de Rezende- UFG) metafiacutesica e histoacuteria (Vit-torio Morfino ndash Univ Milano-Bicocca) filosofia e as artes (Hen-rique Xavier - USP) ontologia eeacutetica (Rafael Teixeira - UFG) eacuteticae poliacutetica (Stefano Visentin ndash UnivDe Urbino e Daniel Santos Silva ndashUnespar) filosofia e ciecircncias poliacute-cias e sociais (Fernando Bonadia -UFRRJ) a cronologia segue prin-cipiando por artigos que tratamespecificamente do seacuteculo XVIIseguindo para a recepccedilatildeo do es-pinosimo nos seacuteculos posteriorespara finalmente propor o exerciacute-cio da reflexatildeo poliacutetica dos temposatuais numa perspectiva espino-sana

Que o leitor possa neles en-contrar na singularidade de cadaartigo o entrelaccedilamento das no-ccedilotildees comuns que os percorrepermitindo-se vivenciar e numpequeno passeio pela filosofia deEspinosa vislumbrar parte daimensa multiplicidade natildeo uniacute-

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voca muito menos uniacutessona depensamentos que ao olhar atentoperfazem um conjunto em mo-saico composto por distintas co-res formas texturas estilos e vo-zes numa articulaccedilatildeo interna so-mente possiacutevel porque todos com-partilham de um fundamento co-mum um conceito filosoacutefico uacutenicocapaz de produzir a partir de sium infinito de pensamentos dis-tintos e singulares mas interna-mente articulados num universode trabalhos intelectuais indivi-duais e coletivos tais como os queapresentamos neste Dossiecirc O con-ceito mesmo de substacircncia uacutenicaabsolutamente infinita ndash potecircn-cia infinita da natureza inteira daqual somos parte finita muacutelti-

pla e complexa entrelaccedilada en-tre outros tantos modos finitosndashportanto propotildee uma nova praacutexisfilosoacutefica que nascida no interiordesta filosofia nos conduz parafora dela e inversamente eacute estemesmo conceito que numa filo-sofia da imanecircncia natildeo permiteque o ldquoexteriorrdquo da filosofia lhepermaneccedila alheio e muito menosdeixe de contagiar tanto a filosofiacomo a proacutepria vida

Que este Dossiecirc seja tam-beacutem o convite permanentementeaberto para o leitor participar doGrupo Espinosano receacutem inaugu-rado na UnB e de tantos outrosencontros inspirados nessa filoso-fia

Ericka Marie Itokazu

Coordenadora do Grupo de Estudos Espinosanos da UnBMembro co-fundador do Nuacutecleo de Estudos Seiscentistas do Cerrado

(Organizadora do Dossiecirc)

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EDITORIAL

Aleacutem dos trabalhos que compotildeemo Dossiecirc o presente nuacutemero tam-beacutem conta com outras contribui-ccedilotildees recebidas em fluxo contiacutenuo

(1) Helio Lopes da Silva profes-sor da UFOP investiga as influecircn-cias legadas pela filosofia schel-linguiana no pensamento schope-nhaueriano Com isso procuramostrar que apesar do Schope-nhauer maduro ter rejeitado a fi-losofia de Schelling o jovem Scho-penhauer pode ter reformulado eincorporado algumas ideias desteuacuteltimo

(2) Em seu De Dicto and DeRe A Brandomian experimenton Kierkegaard Gabriel Ferreirada Silva professor do PPGFIL daUNISINOS expotildee o meacutetodo dereconstruccedilatildeo racional de RobertBrandom e em seguida o aplica aKierkegaard Esse exerciacutecio buscaexplicitar os compromissos on-toloacutegicos de Kierkegaard quantoexemplificar o valor dessa ferra-menta metodoloacutegica para a histoacute-ria da filosofia

(3) Mario Ariel Gonzaacutelez Portaprofessor titular da PUC-SP emseu artigo ldquoIntroduccioacuten Histoacutericaal Psychologismusstreitrdquo combate

a convicccedilatildeo de que a disputa emtorno do psicologismo foi uniacutevocateve seu epicentro nos ldquoProlegocirc-menosrdquo husserlianos e se concen-trou na loacutegica Em vez disso de-fende que essa disputa foi um pro-cesso com diferentes etapas ten-decircncias e nuacutecleos temaacuteticos

(4) A Antiguidade um ErroProfundo ndash Foucault a Filoso-fia e suas Atitudes artigo de JeanDyecircgo Gomes Soares doutor emfilosofia pela PUC-RJ e professordo Centro Universitaacuterio Unihori-zontes apresenta uma interpreta-ccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo foucaultianade que a Antiguidade teria sidoum erro profundo Para tantobusca explicitar o deslocamentoteoacuterico executado por Foucault naproblematizaccedilatildeo do sujeito

(5) Em seu ldquoSobre a centrali-dade e a estrutura do capiacutetuloldquoOs corpos doacuteceisrdquo do Vigiar e Pu-nirrdquo Kleverton Bacelar professorda UFBA propotildee uma hipoacutetese deleitura na qual o mencionado ca-piacutetulo cumpre uma funccedilatildeo centralno principal argumento foucaulti-ano da obra em questatildeo

(6) Por fim Lara Pimentel Fi-gueira Anastacio doutoranda em

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filosofia na USP defende que anoccedilatildeo foucaultiana de ldquosubjetivi-daderdquo tambeacutem deve ser entendidacomo uma criacutetica da razatildeo gover-namental Para tanto apoacutes ana-lisar a produccedilatildeo de subjetividadedos antigos argumenta que a no-ccedilatildeo de subjetividade m Foucaultestaacute necessariamente vinculada agravecriaccedilatildeo de um governo das proacute-

prias condutasGostariacuteamos de aproveitar o en-

sejo para agradecer a todos os au-tores por terem honrado a nossaRevista com as suas produccedilotildeesbem como aos membros do corpoeditorial avaliadores editores eleitores de provas pela funda-mental colaboraccedilatildeo na confecccedilatildeoda presente ediccedilatildeo

Os Editores

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225738

Notas sobre os Instrumentos Cientiacuteficos em Galileu[Notes on Scientific Instruments in Galileo]

Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Na primeira parte deste artigo procuramos caracterizaro conceito de instrumentalismo a partir dos problemas astronocircmi-cos poliacuteticos e teoloacutegicos que levaram agrave contraposiccedilatildeo desse pro-grama epistemoloacutegico mdash que limita a ciecircncia ao trabalho de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo mdash agrave concepccedilatildeo de ciecircncia que culminou na Revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVII Na segunda parte mostramos quehaacute certa concepccedilatildeo do conhecimento matemaacutetico que se alinha como instrumentalismo mas que tambeacutem haacute uma outra concepccedilatildeo sus-tentada por Galileu que considera a matemaacutetica como expressatildeo derelaccedilotildees estruturais constitutivas da proacutepria realidade fiacutesica Na ter-ceira parte defendemos que contra a ideia de instrumento contida noprograma instrumentalista Galileu entende seus instrumentos cien-tiacuteficos como teorias em estado concreto e operante Para demonstrarisso examinamos algumas posiccedilotildees de Galileu sobre o uso de algunsinstrumentos cientiacuteficos que ele proacuteprio confeccionou a saber o com-passo geomeacutetrico militar a balanccedila hidrostaacutetica e o telescoacutepioPalavras-chave realismo instrumentalismo ciecircncia teologia poliacute-tica

Abstract In the first part of this paper we try to characterize theconcept of instrumentalism analyzing the astronomical political andtheological problems that led to the contraposition of such episte-mological program mdash that reduces science to the work of savingappearances mdash to the conception of science that culminated withthe Scientific Revolution of the sixteenth and seventeenth centuriesIn the second part we show that there is a certain conception ofmathematical knowledge that aligns with instrumentalism but thatthere is also another conception supported by Galileo that considersmathematics as an expression of structural relations constitutive ofphysical reality itself In the third part we defend that against theidea of instrument contained in the instrumentalist program Galileounderstands his scientific instruments as theories in concrete andoperant state To demonstrate such interpretation we have examinedGalileorsquos positions on the use of some of the scientific instrumentshe has made namely the military-geometric compass the hydrostaticscale and the telescopeKeywords realism instrumentalism science theology politics

Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Doutor em filosofia pela USPE-mail cnrz1972gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0002-4935-629X

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

Para Marcelo Moschetti

1- Instrumentalismo Teologia epoliacutetica

O caso da condenaccedilatildeo de Ga-lileu Galilei pela inquisiccedilatildeo ro-mana articula de forma emblemaacute-tica um problema epistemoloacutegicoe um problema teoloacutegico-poliacuteticoUma defesa realista do coperni-canismo como a pretendida porGalileu no Diaacutelogo sobre os doisMaacuteximos Sistemas de Mundo Pto-lomaico e Copernicano de 1632exigia uma correlata interpretaccedilatildeonatildeo-realista mas sim metafoacutericadas passagens da Biacuteblia que pare-cem corroborar um sistema plane-taacuterio geocecircntrico e com uma Terraestacionaacuteria No entanto no con-texto da Contra Reforma onde omodo de interpretar as SagradasEscrituras dividia catoacutelicos e pro-testantes a admissatildeo de interpre-taccedilotildees do texto biacuteblico alternati-vas agraves autorizadas como seriamas interpretaccedilotildees metafoacutericas erauma questatildeo extremamente deli-cada Mormente se lembrarmosque de ambos os lados o poderpoliacutetico pretendia-se fundado naautoridade religiosa a qual porsua vez encontrava fundamentonas escrituras e em uacuteltima instacircn-cia na revelaccedilatildeo divina

Na ceacutelebre Carta a Foscarinide 1615 isto eacute antes da publica-

ccedilatildeo do Diaacutelogo e da consequentecondenaccedilatildeo de Galileu o Car-deal Belarmino mdash intelectual or-gacircnico da inquisiccedilatildeo romana mdashrecomendara aos adeptos do co-pernicanismo que por prudecircn-cia fizessem o contraacuterio deixas-sem a verdade ao encargo da au-toridade religiosa e reduzissem osistema copernicano natildeo propri-amente a uma metaacutefora mas sima um mero instrumento matemaacute-tico de reproduccedilatildeo e prediccedilatildeo dasposiccedilotildees observaacuteveis dos planetasBelarmino estaacute longe de ser umtolo Ele reconhece que o sistemacopernicano eacute superior em simpli-cidade e comodidade no niacutevel doscaacutelculos mas tambeacutem sabe que orealismo tem uma tarefa demons-trativa precisa primeiro mostrarque a teoria proposta eacute capaz dereproduzir os fenocircmenos passa-dos coincidir com os fenocircmenospresentes e predizer os fenocircme-nos futuros Para usar o jargatildeo daeacutepoca a tarefa liminar de uma te-oria eacute mostrar-se capaz de ldquosalvaras aparecircnciasrdquo Mas isso emboraabsolutamente necessaacuterio para averdade natildeo eacute suficiente Leia-mos as palavras de Belarmino nasquais ele aceita inclusive que sejadada outra interpretaccedilatildeo das pas-sagens biacuteblicas relevantes desdeque uma verdadeira demonstraccedilatildeo

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

seja apresentada

Dizer que se salvam melhoras aparecircncias de acordocom a suposiccedilatildeo de a Terraser moacutevel e o Sol imoacute-vel do que supondo osexcecircntricos e os epicicloseacute falar muito bem mdash natildeohavendo nenhum perigonisso e por ser isso sufi-ciente para o matemaacuteticoMas afirmar que na rea-lidade o Sol eacute imoacutevel nocentro do universo eacutearriscar-se natildeo somentea irritar todos os filoacuteso-fos escolaacutesticos e teoacutelogosmas tambeacutem a ofender aSanta Feacute tornando fal-sas as Sagradas Escrituras[ ] Se existir uma verda-deira demonstraccedilatildeo de queo Sol estaacute parado no cen-tro do mundo de que aTerra estaacute no terceiro ceacuteue de que o Sol natildeo cir-cula em torno da Terramas a Terra em torno doSol afirmo que deveremoscomeccedilar a trabalhar commuita ponderaccedilatildeo paraexplicar as Passagens dasEscrituras aparentementecontraacuterias a essa opiniatildeoe que deveremos dizernatildeo termos entendido es-sas passagens em vez desustentar ser falso o que

foi demonstrado Con-tudo natildeo acreditarei queexista tal demonstraccedilatildeoantes que algueacutem a mos-tre a mim pois demons-trar que supondo o Sol imoacute-vel no centro e a Terra semovendo pelo ceacuteu podere-mos salvar as aparecircnciasnatildeo eacute o mesmo que demons-trar que assim eacute na verdadeAcredito que a primeirademonstraccedilatildeo possa serdada mas tenho as mai-ores duacutevidas em relaccedilatildeo agravesegunda e em caso de duacute-vida natildeo devemos aban-donar a interpretaccedilatildeo dasSagradas Escrituras dadapelos Padres da Igreja [ ](BELARMINO apud LO-PARIC 2008 p 240 itaacute-licos nossos)

Para explicitar plenamente porque salvar as aparecircncias natildeo eacute omesmo que demonstrar que as-sim eacute na verdade cabe remetera expressatildeo ao seu contexto deorigem Ela deriva da criacutetica deAristoacuteteles aos arroubos teoacutericosdo pitagorismo (Metafiacutesica A 5985b 23ss apud KIRK RAVEN ampSCHFIELD 1994 p 347) cu-jos partiacutecipes diante de discre-pacircncias entre a teoria (logos) eos dados observacionais (phaino-mena) conservavam a teoria e mu-davam os dados forjando obje-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

tos exigidos pela teoria mas ja-mais observados (ou ateacute mesmojamais observaacuteveis) Contra issoo sensato Aristoacuteteles propotildee emcaso de discrepacircncia entre a te-oria e os fenocircmenos ldquoconservaros fenocircmenosrdquo (sozein ta phaino-mena) isto eacute literalmente ldquosalvaras aparecircnciasrdquo num uso do verboldquosalvarrdquo que significa mais pro-priamente manter guardar con-servar Ora muitos astrocircno-mos gregos mdash de Eudoxo e Ca-lipo no seacuteculo IV aC a Ptolo-meu no seacuteculo II dC mdash leva-ram agraves uacuteltimas consequecircncias essepreceito aristoteacutelico Diante dealguns fenocircmenos astronocircmicostradicionalmente desafiadores talcomo o chamado movimento re-troacutegrado aparente dos planetas1esses astrocircnomos propuseram ar-tifiacutecios geomeacutetricos2 artifiacutecios queeles nunca pretenderam que des-crevessem a real estrutura do uni-verso mas que ainda assim erameficazes justamente em ldquosalvar asaparecircnciasrdquo Ou seja uma teoriaassumidamente falsa mdash no sen-tido de jamais haver pretendidoque esses ciacuterculos matemaacuteticos emque os planetas eram colocadosdurante o caacutelculo existissem na re-alidade mdash pode perfeitamente re-produzir os fenocircmenos passados

coincidir com os fenocircmenos pre-sentes e predizer os fenocircmenos fu-turos Logo fazecirc-lo natildeo eacute condi-ccedilatildeo suficiente para afirmar a ver-dade da teoria embora natildeo fazecirc-lo seja suficiente para afirmar suafalsidade

Eacute nesse mesmo espiacuterito que oluterano Andreas Osiander mdash quesupervisionara a publicaccedilatildeo do DeRevolutionibus Orbium Coelestiumde Copeacuternico em 1543 mdash tentarapossivelmente proteger o autoradicionando a esta obra um pre-faacutecio apoacutecrifo com um programainstrumentalista de matriz pro-testante que constituiacutera quaseum seacuteculo antes um precedenteateacute mais radical que o da inquisi-ccedilatildeo romana

Com efeito eacute proacuteprio do as-trocircnomo compor por meiode uma observaccedilatildeo diligentee habilidosa o registro dosmovimentos celestes E emseguida inventar e ima-ginar as causas dos mes-mos ou melhor jaacute quenatildeo se podem alcanccedilar demodo algum as verdadeirasquaisquer hipoacuteteses queuma vez supostas per-mitam que esses mesmos

1 O movimento retroacutegrado corresponde ao fato de que em dado momento de sua trajetoacuteria anual os planetasparecem lsquoandar para traacutesrsquo para depois retomarem o sentido original

2 Por exemplo o artifiacutecio do epiciclo e deferente consistia em colocar o planeta orbitando natildeo diretamente aoredor da Terra mas ao redor de um ponto que este sim orbitava ao redor da Terra

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

movimentos sejam corre-tamente calculados tantono passado como no fu-turo de acordo com os prin-ciacutepios da geometria Oraambas as tarefas foramexecutadas com excelecircn-cia pelo autor Com efeitonatildeo eacute necessaacuterio que essashipoacuteteses sejam verdadeirase nem mesmo verossiacutemeisbastando apenas que for-neccedilam caacutelculos que concor-dem com as observaccedilotildees ( )Pois eacute mais do que patenteque essa arte ignora sim-plesmente e por completoas causas dos movimen-tos aparentes irregularesE se inventa algumas naimaginaccedilatildeo como certa-mente inventa muitas de-las todavia natildeo o faz demodo algum para persu-adir quem quer que sejade que assim eacute mas tatildeosomente para estabelecercorretamente o caacutelculo Ecomo agraves vezes vaacuterias hipoacute-teses se oferecem para ummesmo movimento ( )o astrocircnomo de preferecircnciatomaraacute aquela cuja compre-ensatildeo seja a mais faacutecil Ofiloacutesofo talvez exigisse antesa verossimilhanccedila contudonenhum dos dois compre-enderaacute ou transmitiraacute nadade certo a natildeo ser que lhe

seja revelado por Deus Per-mitamos pois que juntocom as antigas em nadamais verossiacutemeis faccedilam-se conhecer tambeacutem es-sas novas hipoacuteteses tantomais por serem elas aomesmo tempo admiraacuteveise faacuteceis e por trazeremconsigo um enorme te-souro de doutiacutessimas ob-servaccedilotildees E que ningueacutemespere da astronomia algode certo no que concerne ahipoacuteteses pois nada dissoprocura ela nos oferecer(OSIANDER 1980 - itaacuteli-cos nossos)

Eacute com base nesse prefaacutecio queBelarmino comeccedila sua argumen-taccedilatildeo na Carta a Foscarini di-zendo que para este uacuteltimo assimcomo para Galileu seria prudentecontentar-se em falar ldquopor suposi-ccedilatildeo (ex hypothesi) e natildeo de modoabsoluto como eu sempre cri quetenha falado Copeacuternicordquo (em GA-LILEU 2009 p 131 - itaacutelicosnossos) Assim a manutenccedilatildeo dosistema astronocircmico heliocecircntricona condiccedilatildeo de uma hipoacutetese eficazgarante que o direito ao discursorobusto sobre como as coisas efe-tivamente satildeo permaneccedila mdash porimpossibilidade do contraacuterio (Osi-ander) ou por prudecircncia (Belar-mino) mdash sob a guarda da religiatildeodireito no qual em uacuteltima anaacute-

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CRISTIANO NOVAES DE REZENDE

lise funda-se o poder teoloacutegico-poliacutetico Ora como se vecirc um pro-grama que trata o trabalho cien-tiacutefico como a mera elaboraccedilatildeo deinstrumentos eficazes de reprodu-ccedilatildeo e prediccedilatildeo de fenocircmenos em-piacutericos presta-se portanto a ope-rar como correlato epistemoloacutegicodo fundamentalismo religioso noplano poliacutetico Amansado cogni-tivamente o copernicanismo po-deria ser empregado como sendoapenas uma nova tecnologia decaacutelculo mais leve e aacutegil do que amaquinaria geomeacutetrica de Ptolo-meu mas em nada ameaccediladora noacircmbito do discurso sobre como ascoisas realmente satildeo E mdash supos-tamente mdash nada haveria de vergo-nhoso nessa deflaccedilatildeo epistemoloacute-gica nessa reduccedilatildeo instrumentalvisto que tantos outros do mesmomodo se resignaram

Nesse sentido o realismo deGalileu defendido no Diaacutelogo so-bre os dois Maacuteximos Sistemas deMundo e responsaacutevel por sua der-radeira condenaccedilatildeo eacute a reivindi-caccedilatildeo do direito ao discurso sobrea realidade desde fora dos par-ticulares grupos agraciados pelarevelaccedilatildeo divina ou fundados naautoridade dos mesmos

2 - Instrumentalismo e Matemaacute-tica

Em seu artigo ldquoDescartes e Gali-leu copernicanismo e o funda-mento metafiacutesico da fiacutesicardquo MFriedman (2011) apresenta umenunciado especialmente claro dorealismo de Galileu Trata-se doseguinte trecho da Primeira Cartasobre as Manchas Solares de 1612

os astrocircnomos filosoacuteficos[satildeo aqueles] que indoaleacutem da exigecircncia de dealguma forma salvar asaparecircncias procuraraminvestigar a verdadeiraconstituiccedilatildeo do universomdash o problema mais im-portante e admiraacutevel queexiste Pois esta consti-tuiccedilatildeo existe ela eacute uacutenicaverdadeira real e natildeo po-deria ser de outra formaE a grandeza e a nobrezadeste problema lhe con-fere o direito de ser co-locado agrave frente de todasas questotildees suscetiacuteveis desoluccedilatildeo teoacuterica (FRIED-MAN 2011 p 82)

Como explica Friedman nestacarta Galileu distingue osldquoastrocircnomos filosoacuteficosrdquo daquelesque o proacuteprio Galileu chama deldquoastrocircnomos matemaacuteticosrdquo sendo

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

estes uacuteltimos os que usam quais-quer instrumentos que possam fa-cilitar seus caacutelculos De nossaparte gostariacuteamos de notar quea bem dizer desde os pitagoacuteri-cos o que estaacute em questatildeo eacute o es-tatuto da relaccedilatildeo entre matemaacute-tica e realidade fiacutesica A criacuteticade Aristoacuteteles aos pitagoacutericos jaacuteera precisamente uma recusa decerto realismo matemaacutetico ldquooschamados pitagoacutericos dedicaram-se agraves matemaacuteticas foram eles osprimeiros a fazer progredir estesestudos e tendo sido criados ne-les pensaram que seus princiacutepioseram princiacutepios das coisas (archastocircn ontocircn)rdquo (Metafiacutesica A 5 985b23ss apud KIRK RAVEN amp SCH-FIELD 1994 p 347) Osian-der por sua vez coloca ldquoos prin-ciacutepios da Geometriardquo sob regimede completa recusa natildeo soacute da ver-dade mas ateacute mesmo da verossi-milhanccedila bastando a uma teoriareduzida agrave condiccedilatildeo de mera hi-poacutetese fornecer caacutelculos que con-cordem com as observaccedilotildees JaacuteBelarmino recomenda muita pru-decircncia aos copernicanos mas issojustamente em razatildeo da profundadiferenccedila que haacute entre a demons-traccedilatildeo ldquosuficiente ao matemaacuteticordquoe a ldquodemonstraccedilatildeo verdadeirardquo E o proacuteprio Galileu como se viutambeacutem reconhece tal diferenccediladefendendo consequentementeao contraacuterio de Osiander uma as-tronomia filosoacutefica que sem dei-

xar de salvar as aparecircncias fossealeacutem disso

Mas entatildeo cabe perguntar seo realismo possui duas tarefasdas quais apenas a primeira eacute sal-var as aparecircncias qual seraacute a se-gunda Isto eacute nas palavras de Fri-edman ldquocomo pode um sistemaastronocircmico ir aleacutem de salvar asaparecircncias de modo a capturar oucorresponder agrave lsquoverdadeira cons-tituiccedilatildeo do Universorsquordquo (FRIED-MAN 2011 p 83) Ora o modocomo o comentador reconstroacutei aresposta galileana eacute bastante elu-cidativo pois mostra que a con-cepccedilatildeo de conhecimento matemaacute-tico sustentada pela tradiccedilatildeo cien-tiacutefica em que se alinham GalileuDescartes e Newton eacute considera-velmente mais forte tanto frenteao instrumentalismo antigo e mo-derno quanto frente ao contem-poracircneo meacutetodo hipoteacutetico dedu-tivo limitado a cotejar os dadosobservacionais com as hipoacutetesesteoacutericas e suas consequecircncias

Segundo [a concepccedilatildeo ga-lileana] a matemaacutetica natildeoapenas poderia ser usadapara modelar os fenocirc-menos como haacute muitojaacute vinha sendo feito naastronomia tradicionalcomo poderia tambeacutem serempregada progressiva-mente para analisar asaccedilotildees das causas dos fenocirc-

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menos Quanto a isso aceacutelebre anaacutelise feita porGalileu da queda dos cor-pos e do movimento dosprojeacuteteis foi paradigmaacute-tica [ ] [No caso dos pro-jeacuteteis] a trajetoacuteria paraboacute-lica resultante natildeo eacute ob-tida somente pela adap-taccedilatildeo da curva aos dadosobservados ela eacute matema-ticamente derivada de umaanaacutelise das accedilotildees causais re-levantes [ ] Visto quenossa descriccedilatildeo proposita-damente abstrai de todasas outras accedilotildees (atrito re-sistecircncia do ar etc) este eacuteapenas um primeiro passoda anaacutelise Uma teoriamatemaacutetica completa iraacuteportanto proceder pro-gressivamente agrave medidaque formos capazes de in-corporar essas accedilotildees cau-sais adicionais [ ] Emconsequecircncia o resultadoseraacute muito mais que ummodelo entre outros parasalvar as aparecircncias [ ]Em vez disso a interaccedilatildeocontiacutenua e progressiva en-tre anaacutelises causais mate-maacuteticas e evidecircncias empiacuteri-cas resultaria esperava-seao final em um modelouacutenico - que entatildeo teria oestatuto de uma conclusatildeomatematicamente demons-

trada a partir dos fenocircme-nos (FRIEDMAN 2011 p83 - itaacutelicos nossos)

Haacute portanto um uso da mate-maacutetica que eacute puramente instru-mental e que como tal compotildee-se tranquilamente com o funda-mentalismo religioso tanto da Re-forma quanto da Contra Reformamas haacute tambeacutem uma outra atitudematemaacutetica de ascendecircncia pita-goacuterica que encontra-se ao contraacute-rio afinada com os anseios filosoacute-ficos que impulsionaram a Revo-luccedilatildeo Cientiacutefica dos seacuteculos XVI eXVII Ambos os usos da matemaacute-tica consistem na produccedilatildeo de ins-trumentos de caacutelculo Mas a proacute-pria concepccedilatildeo de instrumento aiacutepresente varia assim como varia oestatuto epistemoloacutegico da mate-maacutetica

3 - Os Instrumentos cientiacuteficosconstruiacutedos por Galileu

O que haacute de ser um instrumentocientiacutefico para Galileu Certa-mente natildeo parece equivaler agravemesma concepccedilatildeo de instrumentoque preside a proacutepria elaboraccedilatildeodo conceito de instrumentalismoEsse termo foi empregado porKarl Popper para designar um dostrecircs pontos de vista sobre o conhe-cimento humano apresentados emConjecturas e Refutaccedilotildees (POPPER

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1982 p 125-246) a propoacutesito dasdiferentes apreciaccedilotildees que podemser feitas sobre a ciecircncia de Gali-leu embora digam respeito agrave ci-ecircncia em geral A concepccedilatildeo deinstrumento que parece ter levadoPopper a usar precisamente essenome para designar uma tal ma-neira de compreender a ciecircncia eacutea de um meio de caacutelculo que en-quanto hipoteacutetico eacute literalmentesub-posto posto embaixo e depoismdash isto eacute como um sustentaacutecuload hoc mdash dos fenocircmenos observa-dos Um instrumento na acep-ccedilatildeo instrumentalista eacute algo pro-duzido lsquosob encomendarsquo para fun-cionar para salvar os phainomenacuste isso o que custar ao logosAssim como um homem venal esem princiacutepios tal instrumentonatildeo tem por assim dizer escruacute-pulos proacuteprios faz qualquer ne-goacutecio teoacuterico para sustentar os da-dos observacionais numa perfeitainversatildeo dos excessos dos pitagoacute-ricos que faziam qualquer negoacute-cio para salvar sua teoria (comoforjar sob encomenda da teoriarealidades inobservaacuteveis) Os uacuteni-cos princiacutepios a que o instrumen-talista obedece satildeo justamente osprinciacutepios da matemaacutetica (comodizia Osiander) Mas tais prin-ciacutepios natildeo passam disso mesmoou seja de princiacutepios da matemaacute-tica sem nenhuma conexatildeo comos princiacutepios que presidem a proacute-pria natureza Portanto o que ca-

racteriza o instrumento evocadopelo instrumentalismo eacute sua ex-terioridade independecircncia e se-cundariedade frente ao objeto aque ele portanto simplesmentese sub-mete Para o instrumenta-lismo o logos deveacutem assim umservo invertebrado das evidecircnciasempiacutericas pode ser usado e abu-sado vergado do jeito que fordesde que produza caacutelculos queconcordem com as observaccedilotildees

Uma criacutetica desse desrespeitopara com o logos pode ser lidanuma importante passagem daCarta-Prefaacutecio do proacuteprio Copeacuter-nico ao Papa Paulo III para a edi-ccedilatildeo do De Revolutionibus e quefora substituiacuteda agrave revelia de Co-peacuternico pelo prefaacutecio apoacutecrifo deOsiander

Assim natildeo quero escon-der de vossa Santidadeque nada mais me mo-veu a pensar a respeitode uma outra maneira decalcular (alia ratione sub-ducendorum) os movimen-tos das esferas do mundosenatildeo que entendi (intel-lexi) que os proacuteprios Ma-temaacuteticos natildeo satildeo consis-tentes consigo proacuteprios(sibi ipsis non constare) aoinvestigaacute-los [sc tais mo-vimentos] ( ) Tambeacutem aforma do mundo (mundiformam) e a exata sime-

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tria de suas partes (par-tium eius certam symme-triam) eacute a coisa principal(rem praeligcipuam) que elesnatildeo conseguiram encon-trar nem inferir (invenirevel colligere) ( ) Aocontraacuterio aconteceu-lhescomo se algueacutem tomasse(sumeret) de diversos lu-gares (agrave diversis locis) peacutescabeccedila e outros mem-bros pintados (depicta)ateacute mesmo de maneiraperfeita (optime quidem)mas sem comparaccedilatildeo comum corpo uacutenico (sed nonunius corporis comparati-one) de modo algum corres-pondendo reciprocamenteentre si (nullatenus invi-cem sibi respondentibus)de sorte a compor comeles (ex illis componeretur)mais um monstro do queum homem (monstrum po-tius quagravem homo) (COPEacuteR-NICO 2008 pp 262-263)

Mas aleacutem desse ldquoservil instrumen-tordquo meramente acoplado agrave Na-tureza mesmo que ao preccedilo doesquartejamento da organicidadedo logos parece-nos haver em Ga-lileu um pensamento do instru-mento ativo no qual se constatauma verdadeira unidade entre ologos e as operaccedilotildees teacutecnicas decaacutelculo sem que estas uacuteltimas cor-

rompam a dignidade daquele pri-meiro Enquanto por exemploo instrumentalismo reduz as te-orias a meros instrumentos natildeoestaria Galileu pensando seus ins-trumentos como teorias em estadoconcreto e operante Procurare-mos a seguir responder afirmati-vamente a essa questatildeo buscandojustificar tal resposta atraveacutes depassagens textuais de Galileu so-bre o uso de alguns instrumentoscientiacuteficos que ele proacuteprio confec-cionou a saber o compasso geomeacute-trico militar a balanccedila hidrostaacuteticae o telescoacutepio

31 - O Compasso Geomeacutetrico-Militar

Comecemos pelo Compasso geomeacute-trico e militar Tratava-se de algoque ldquono seu tempo correspondiamais ou menos agrave reacutegua de caacutelculoou agrave minicalculadorardquo (THUIL-LER 1986 p 139) ou nas pa-lavras do proacuteprio Galileu um ins-trumento que ldquoem pouquiacutessimosdias ensina tudo aquilo que da ge-ometria e da aritmeacutetica para usocivil e militar natildeo sem longuiacutes-simos estudos pelas vias ordinaacute-rias se receberdquo (GALILEU 1649p 369) Pode-se com ele porexemplo aplicar de diversas ma-neiras as regras de trecircs transporem proporccedilatildeo figuras semelhan-tes realizar divisotildees iguais e de-

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siguais no ciacuterculo extrair as raiacute-zes quadrada e cuacutebica estabelecerproporccedilotildees entre pesos de diver-sos materiais fazer medidas trigo-nomeacutetricas com a vista e inuacuteme-ras outras operazioni que satildeo ex-plicadas no manual de instruccedilotildeesque ensina o uso do instrumentoE de fato o que eacute mais relevantepara o nosso tema eacute justamente aexistecircncia desse manual mdash talvezum dos primeiros no gecircnero mdash eas consideraccedilotildees que nele Gali-leu faz a seu respeito e a respeitodo instrumento

Natildeo eacute pois de pouca relevacircnciaque neste manual de instruccedilotildeesGalileu se refira ao proacuteprio ma-nual e ao sentido de fazecirc-lo acom-panhar o instrumento soacute com issoGalileu jaacute nos daacute indiacutecios de queem tal instrumento encarna-se umcerto saber mdash o qual natildeo se li-mita ao mero manuseio da peccedilaparticular mas como dito acimaldquoinsegna tutto quello che dalla geo-metria e dallrsquoaritmetica [ ] si ri-ceverdquo Eis o que promete no pre-faacutecio do manual a i discreti let-tori ldquopoder seja qual for a pes-soa resolver em instantes as maisdifiacuteceis operaccedilotildees de aritmeacuteticadas frequentemente acontecemrdquo(idem ibidem)

Se por um lado o compassoeacute um instrumento de caacutelculo anecessidade da presenccedila de seumanual por outro diz respeito agraveproacutepria aquisiccedilatildeo da geometria

pensada de modo que pudesseser aprendida por aqueles quecomo os militares no campo debatalha ldquoestando em tantos ou-tros misteres ocupados e distraiacute-dos natildeo podem exercitar nestesaquela assiacutedua paciecircncia que aiacuteseria necessaacuteriardquo (idem ibidem)Mas leiamos tambeacutem por outrolado as seguintes palavras de Ga-lileu

Lamento somente be-nigno leitor que por maisque eu tenha engenhadoem explicar as seguintescoisas com toda a clarezae facilidade possiacutevel to-davia a quem as teraacute deextrair dos escritos perma-neceratildeo envoltas em al-guma obscuridade per-dendo por isso muito da-quela graccedila que ao vecirc-las operar atualmente e aoaprendecirc-las de viva voz astorna maravilhosas estaeacute poreacutem uma daquelasmateacuterias que natildeo supor-tam ser descritas com cla-reza e facilidade e enten-didas se antes de viva voznatildeo se as auscultam e no atomesmo natildeo se veem exerci-tar E esta teria sido po-derosa causa que me te-ria feito abster-me de im-primir esta obrardquo (GA-LILEU 1649 p 370 mdash

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itaacutelicos nossos)

Devemos portanto com tais pala-vras reforccedilar a ideia de que a com-preensatildeo que Galileu tem de seuCompasso Geomeacutetrico e Militar eacutetal que nem o instrumento podeser usado e atingir seus propoacutesi-tos sem o manual e toda a geome-tria mdash a ser ensinada mdash que eleconteacutem nem o manual seraacute sufici-ente a quem natildeo dispuser do ins-trumento para vecirc-lo ldquooperar atual-menterdquo A matemaacutetica aqui natildeovecircm de fora Muito pelo contraacuterioexiste de modo concreto como quenas inscriccedilotildees das linhas feitas nometal desse compasso a geome-tria aiacute presente natildeo eacute a dos astrocirc-nomos gregos instrumentalistasmas sim a de uma tradiccedilatildeo queassim como se passa nos pitagoacuteri-cos considera que os princiacutepiosda matemaacutetica eram princiacutepiosverdadeiros do comportamentodas coisas Nessa tradiccedilatildeo insere-se tambeacutem Arquimedes nominal-mente citado por Galileu no ma-nual do compasso como seu inspi-rador E com tal referecircncia a Ar-quimedes passamos diretamenteao contexto da tradiccedilatildeo em que seinscreve aquele outro instrumentode Galileu a balanccedila hidrostaacutetica

32 - A Balanccedila Hidrostaacutetica

Em La Bilancetta Galileu (1986pp 105-107) pretende resolvercom exatidatildeo o famoso problemada coroa de Hieron que aqui des-crevemos atraveacutes das palavras dePierre Lucie

Cerca de 250 ac Hie-ron rei de Siracusa en-comendou uma coroa deouro a seu ourives En-tregue a coroa Hierondesconfiou que o ouriveso tinha roubado mistu-rando prata ao ouro Cha-mou entatildeo Arquimedese o encarregou de apu-rar a possiacutevel fraude Ar-quimedes de fato confir-mou o roubo mas o len-daacuterio ldquoHeurekardquo eacute pra-ticamente tudo o que co-nhecemos do processo uti-lizado pelo ceacutelebre ma-temaacutetico para resolver oproblema (LUCIE 1986p 96)

Nesse pequenino texto sobre aconstruccedilatildeo da balanccedila hidrostaacute-tica Galileu afirma que ateacute seusdias natildeo se sabia exatamentecomo teria procedido Arquime-des para descobrir o furto do ou-rives e a quantidade exata de ourosubtraiacuteda e substituiacuteda por prata

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Galileu frisa que mdash a despeitoda informaccedilatildeo histoacuterica muito di-fundida de que Arquimedes te-ria posto a coroa na aacutegua depoisde haver mergulhado separada-mente ouro puro e prata puradeduzindo atraveacutes das propor-ccedilotildees de aacutegua deslocada em cadacaso a composiccedilatildeo da liga de quea coroa se compunha mdash isto se-ria no entanto ldquocoisa muito gros-seira e longe da perfeiccedilatildeordquo se tiver-mos em conta ldquoas mui engenhosasinvenccedilotildeesrdquo de Arquimedes (GA-LILEU 1986 p 105) Pierre Lu-cie mostra em seu artigo sobre LaBilancetta (LUCIE 1986 p 95)que o paradigma arquimedianopermanece em Galileu como basepara a geometrizaccedilatildeo de proble-mas fiacutesicos de maneira que a refe-recircncia agraves ldquoinvenccedilotildees engenhosasrdquode Arquimedes feita pelo proacuteprioGalileu poderia ser um exem-plo relevante da maneira especiacute-fica pela qual este paradigma ope-rava em seu pensamento paraconseguir ldquoa precisatildeo requeridanas coisas matemaacuteticasrdquo (GALI-LEU 1986 p 105) natildeo bastariano caso simplesmente ldquoutilizara aacuteguardquo mdash que era ldquoo pouco que[os contemporacircneos de Arquime-

des] haviam entendido de sua so-luccedilatildeo do problemardquo Era pre-ciso antes elaborar um instru-mento3 Contando com um ins-trumento Galileu pocircde acrescen-tar em seu texto agrave expressatildeo ldquopormeio da aacuteguardquo a expressatildeo ldquodemodo rigorosordquo

Eacute conhecido de toda a tradiccedilatildeointerpretativa focada na revoluccedilatildeocientiacutefica dos seacuteculos XVI e XVIIo texto de Aristoacuteteles na Eacutetica aNicocircmaco em que ele diz que ldquoaprecisatildeo natildeo deve ser procuradaigualmente em todas as discus-sotildees como natildeo deve ser procu-rada por exemplo na demiurgiardquo(ARISTOacuteTELES 1948 1094b ess) Ora tomando a falta de ri-gor e precisatildeo do procedimentovulgarmente considerado o de Ar-quimedes no caso da coroa de Hi-eron como sendo a principal mo-tivaccedilatildeo para a construccedilatildeo de suabalanccedila hidrostaacutetica Galileu estaacuterompendo com essa tradiccedilatildeo aris-toteacutelica que separa poieacutesis (produ-ccedilatildeo saber fazer com que algo ve-nha a ser) e episteacuteme (ciecircncia co-nhecimento do necessaacuterio) Des-tarte Galileu mdash como no caso docompasso geomeacutetrico e militar mdashsugerindo novamente que a exati-

3Cf Clavelin (1986 p 39) onde se demonstra que se eacute verdade que Galileu natildeo dispunha de todos os conceitose pressupostos dos quais depende o meacutetodo experimental moderno natildeo eacute menos verdade poreacutem que nele haacute ldquoummeacutetodo determinado mdash ou se preferirmos uma visatildeo coerente e estaacutevel das condiccedilotildees que uma teoria ou modeloexplicativo devem satisfazer para serem considerados verdadeiros intrinsecamente conformes agrave realidaderdquo Denossa parte pretendemos apenas propor que a construccedilatildeo do instrumento parece ser um dos pontos centrais dessemeacutetodo

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datildeo do procedimento depende deum uso apropriado dos elementosmateriais e de uma consequenteproduccedilatildeo de instrumentos mastambeacutem em contrapartida de umconhecimento teoacuterico nos contaque reviu ldquocuidadosamente os tra-tados de Arquimedesrdquo (GALILEU1986 p 105) e assim adverteque ldquoo meacutetodo [para resolver oproblema] procede por meio deuma balanccedila cuja construccedilatildeo e usoseratildeo expostos depois que se te-nha explicado o que eacute necessaacuteriopara entender o assuntordquo (idem su-pra itaacutelicos nossos) E o que eacute ne-cessaacuterio saber eacute primeiramente oPrinciacutepio de Arquimedes ou lei doempuxo

um soacutelido mais pesadoque um fluido quandoposto nele desce para ofundo do fluido e o soacute-lido pesado no fluido seraacutemais leve que seu ver-dadeiro peso [no ar] [deuma quantidade igual ao]peso do fluido deslocado(ARQUIMEDES Sobre oscorpos flutuantes Livro Iproposiccedilatildeo 7 apud LU-CIE 1986 p 98 - itaacuteliconosso)

Numa linguagem atual todocorpo mergulhado em um fluidosofre a accedilatildeo de um empuxo ver-

tical para cima igual ao peso doliacutequido deslocado de modo que opeso do corpo imerso eacute igual aoseu peso no ar menos o peso noar do volume de fluido que essecorpo deslocou Galileu assimnos propotildee

suspendamos entatildeo ummetal em uma excelentebalanccedila e no outro braccediloum contrapeso de mesmopeso no ar que o metalSe agora mergulharmos ometal na aacutegua deixando ocontrapeso no ar teremosde aproximar este uacuteltimodo fulcro [o ponto fixo en-tre os braccedilos da balanccedila]a fim de continuar equi-librando o metal (GALI-LEU 1986 p 106)

Explica-se tambeacutem que o pesoespeciacutefico do metal seraacute tantas ve-zes maior que o da aacutegua deslocadaquantas vezes a distacircncia inicialentre o contrapeso e o fulcro formaior que essa distacircncia no equi-liacutebrio hidrostaacutetico (que eacute quandoaproximamos o contrapeso do ful-cro a fim de manter os braccedilos dabalanccedila na horizontal) Trata-seagora do chamado princiacutepio da ala-vanca ou seja nas palavras doproacuteprio Galileu em Le mechaniche

pesos desiguais suspen-

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sos em distacircncias desi-guais pesaratildeo igualmentequando essas distacircnciasestiverem [em relaccedilatildeo aofulcro] em proporccedilatildeo in-versa agrave de seus pesos(GALILEU Le mechanicheOpere v 2 161 apud Lu-cie 1986 p 99)

Desse modo combinando a lei doempuxo e o princiacutepio da alavancaeacute possiacutevel pois calcular a partirdas diversas posiccedilotildees do contra-peso nos diversos equiliacutebrios hi-drostaacuteticos os pesos especiacuteficosem relaccedilatildeo agrave aacutegua do ouro daprata e da liga composta dos doisna coroa bem como a exata pro-porccedilatildeo desses primeiros nesta uacutel-tima

Algumas implicaccedilotildees dessesdois princiacutepios nos satildeo particu-larmente sugestivas A lei do em-puxo como nota Lucie ldquoconvenceGalileu de que natildeo haacute corpos pe-sados em si ou corpos leves emsirdquo (LUCIE 1986 p 98) massim dizendo em termos contem-poracircneos corpos que dispondo-se como corpos imersos ou comomeios de imersatildeo encontram-seem diferentes relaccedilotildees de densi-dade relaccedilotildees estas que variamconforme o caso de modo quemudada a relaccedilatildeo com o meio re-ferencial um mesmo corpo podeldquoflutuarrdquo ou ldquoafundarrdquo Con-sequentemente ldquoser pesadordquo ou

ldquoser leverdquo natildeo eacute uma qualidade docorpo tomado em si mesmo Natildeohaacute pois aquilo que Arquimedeschamava de ldquoo verdadeiro pesordquode um corpo Ora isso eacute o contraacute-rio do que supunha a fiacutesica aris-toteacutelica para a qual materiais in-trinsecamente pesados como se-ria a terra possuem seu lugar na-tural embaixo e por isso tendema descer enquanto materiais in-trinsecamente leves como seria ofogo possuem seu lugar naturalem cima e por isso tendem semprea subir O sistema aristoteacutelico aosupor corpos naturalmente levesou pesados pressupunha uma or-dem coacutesmica com seus lugares fi-xados ldquoem cimardquo e ldquoembaixordquo se-parando regiotildees qualitativamentedistintas no espaccedilo Assim aleacutemda jaacute comentada recusa galileanada epistemologia aristoteacutelica queseparava ciecircncia e demiurgia epis-teacuteme e poieacutesis essa pequena ba-lanccedila hidrostaacutetica atraveacutes de umproblema que parecia ser mera-mente teacutecnico (a coroa de Hieron)permite que Galileu a partir dosentido especulativo que ele ex-traiu do princiacutepio de Arquimedesrecuse juntamente com a episte-mologia de Aristoacuteteles tambeacutemsua cosmologia composta de dife-rentes lugares naturais para obje-tos feitos de diferentes materiais

Mas esse sentido especula-tivo do princiacutepio de Arquimedesajuda aleacutem disso a compreender

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melhor a proacutepria epistemologiagalileana Com efeito natildeo se tratade dizer que o ldquoser pesadordquo e oldquoser leverdquo sejam considerados porGalileu como qualidades secundaacute-rias que satildeo aspectos que parecempertencer aos objetos mas satildeo narealidade os efeitos que o objetoproduz em um sujeito percipientecomo as cores os odores os sabo-res etc que natildeo estatildeo nas proacute-prias coisas mais do que a dor oua coacutecega estatildeo na agulha que nosfere ou na pluma que nos toca (CfGALILEU 2013) Entre as quali-dades primaacuterias de um corpo istoeacute entre as coisas que satildeo necessa-riamente pensadas ao ser conce-bida uma substacircncia corpoacuterea emgeral encontra-se por exemploo ldquomover-serdquo e o ldquoestar paradordquo(idem ibidem) os quais sabemospor outro lado que para Gali-leu tambeacutem natildeo eram proprie-dades absolutas mas estados quese determinam num sistema de re-laccedilotildees4 Tambeacutem nos parece sereste o estatuto do pesado e do leveNo caso da gravidade dos corposassim como no estatuto do movi-mento temos algo que nem estaacuteobjetivamente na coisa tomada emsi mesma e isoladamente como

alguma sua qualidade intriacutensecanem estaacute em noacutes como se fossemera aparecircncia subjetiva o mo-vimento e a gravidade satildeo reaise natildeo fenomecircnicos mas natildeo satildeorealidades absolutas Isso mostracom efeito que a separaccedilatildeo entrequalidades primaacuterias matemati-camente apreensiacuteveis e qualida-des secundaacuterias sensiacuteveis natildeo eacutesuficiente para atribuir a Galileuuma ontologia de caraacuteter platocirc-nico que afirmaria o real comoessecircncias absolutas ocultas portraacutes das aparecircncias As qualida-des primaacuterias nos parecem an-tes algo que seria imanente aomundo justamente na medida emque existem no interior de um sis-tema de relaccedilotildees Em linguagemanacrocircnica diriacuteamos talvez quesegundo as articulaccedilotildees entre aepistemologia e a ontologia de Ga-lileu natildeo conhecemos tais essecircn-cias mas sim estruturas

[Galileu] manteacutem-se den-tro da perspectiva rea-lista pois a estrutura douniverso eacute dada objetiva-mente e cabe ao homemapenas desvendar partedessa estrutura Esse des-

4Abstemo-nos de explicar a superaccedilatildeo galileana da oposiccedilatildeo ontoloacutegica afirmada por Aristoacuteteles entre movi-mento e repouso bem como toda a concepccedilatildeo de Galileu sobre as condiccedilotildees de operatividade (mecacircnica eouoacutetica) do movimento pois julgamos que isso excederia demasiadamente nosso tema Limitamo-nos a sugerir quea retirada do movimento e da gravidade da condiccedilatildeo de realidades isoladas mas por outro lado sua qualificaccedilatildeocomo qualidades primaacuterias isto eacute como propriedades reais tende a indicar que a proacutepria natureza para Galileueacute precisamente um sistema de relaccedilotildees seu relativismo natildeo eacute uma negaccedilatildeo da realidade dos eventos naturais porele visados

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

vendamento se faz atraveacutesde demonstraccedilotildees neces-saacuterias cujo o protoacutetipo eacuteprecisamente a Geometria(NASCIMENTO 1986 p58 itaacutelicos nossos)

Ao mostrar que ldquoser pesadordquo eldquoser leverdquo eacute algo derivado de umsistema de relaccedilotildees e mais aindaao mostraacute-lo justamente produ-zindo esse sistema sob a forma deum instrumento material real eindicando a possibilidade de comele calcular tais relaccedilotildees Galileunos permite pensar os instrumen-tos natildeo como algo que o homemusa como um reles meio de repre-sentar a natureza distante Em vezde um sustentaacuteculo matemaacuteticoextriacutenseco acoplado desde fora agravenatureza os instrumentos cientiacutefi-cos galileanos parecem ser antespartes da natureza

Assim aproveitando uma se-gunda consideraccedilatildeo especulativados princiacutepios empregados na bi-lancetta poderiacuteamos fazer um usoalegoacuterico do princiacutepio da alavancapara responder por exemplo aDescartes que o ponto fixo arqui-mediano procurado nas Medita-ccedilotildees o fundamento para a ciecircn-cia e que ele julgava encontrarapenas no cogito Galileu o en-contra na possibilidade de fixarsob a forma de um instrumentoas relaccedilotildees matemaacuteticas operan-tes no seio da natureza Diriacutea-

mos tambeacutem ainda nesse regis-tro alegoacuterico que a proacutepria con-figuraccedilatildeo de uma balanccedila sugerede modo privilegiado a noccedilatildeo deestrutura que empregamos acimapara indicar a concepccedilatildeo de co-nhecimento envolvida nos instru-mentos galileanos eacute apenas na re-laccedilatildeo entre dois objetos colocadosnos pratos da balanccedila que tais ob-jetos se definem reciprocamentequanto agravequilo que se procura me-dir isto eacute no caso os pesos Osobjetos natildeo podem pois ser to-mados separadamente ou fora doinstrumento capaz de coordenaacute-los o instrumento como esta-mos tentando sugerir deve serpois a proacutepria existecircncia mate-rial de uma lei ou princiacutepio peloqual a natureza age Acrescen-tamos ademais que etimologi-camente tanto a palavra instru-mento quanto a palavra estruturaderivam do mesmo verbo struocujo sentido natildeo eacute outro senatildeoo de arranjar dispor ordenada-mente (eg as tropas militaresou as palavras numa frase) mastambeacutem construir produzir ouainda arquitetar maquinar pla-nejar Ora neste uacutenico verbo jaacutese conjugam a mutabilidade dasaccedilotildees e geraccedilotildees e a estabilidadeda consistecircncia interna o aspectopoieacutetico da construccedilatildeo e o epistecirc-mico da ordem e da inteligibili-dade

Vale lembrarmos tambeacutem a tiacute-

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tulo de breve exemplo algumaspassagens dos Discorsi circunja-centes agrave demonstraccedilatildeo do prin-ciacutepio do movimento uniforme-mente acelerado depois que Sim-pliacutecio o aristoteacutelico diz que ldquoteriasido oportuno apresentar neste lu-gar alguma experiecircnciardquo Salvi-ati o galileano responde

Voacutes como verdadeirocientista fazeis pedidomuito razoaacutevel [ ] e as-sim conveacutem nas ciecircnciasque aplicam agraves conclusotildeesnaturais as demonstraccedilotildeesmatemaacuteticas [ e] confir-mam com experiecircncias sen-siacuteveis os seus princiacutepios quesatildeo o fundamento de todaa estrutura subsequente(GALILEU 1988 p 174e ss - itaacutelicos nossos)

E a proacutepria teoria galileana mdash ex-posta previamente sob a formade definiccedilotildees axiomas teoremasproposiccedilotildees etc mdash eacute entatildeo des-crita como uma ldquo imensa maacute-quina de infinitas conclusotildeesrdquo(idem ibidem) Ora das citaccedilotildeessupra decorre que os princiacutepiosque por um lado jaacute haviam sidoformulados de acordo com todaa parte teoacuterica precedente da ter-ceira jornada dos Discorsi seriampor outro lado inconfirmaacuteveis evirtualmente externos agrave natureza

das coisas se natildeo fosse feita essaaplicaccedilatildeo mdash a qual haacute de ser por-tanto coisa muito diferente daaplicaccedilatildeo instrumentalista que natildeose comprometia com o valor deverdade das teorias (Cf NASCI-MENTO 1996) E se nos dois ca-sos mdash por exemplo em Osiandere em Galileu mdash as teorias mesmaspodem ser de algum modo chama-das de instrumentos a profundadiferenccedila entre suas concepccedilotildeesde conhecimento deve residir pre-cisamente no que se pode conside-rar como instrumento nos dois ca-sos em Osiander trata-se de merosinstrumentos de caacutelculo em Gali-leu trata-se de uma maacutequina teoacute-rica de conclusotildees verdadeiras quese prolonga em maacutequinas men-tais tais como no caso dos Dis-corsi o dispositivo do plano incli-nado mas tambeacutem como preten-demos haver mostrado aqui emmaacutequinas materiais tais como abilancetta e o compasso geomeacute-trico e militar

33 - O Telescoacutepio

Resta portanto que nos encami-nhemos ao telescoacutepio Tentar en-contrar nesse instrumento par-ticularmente os traccedilos da uniatildeoentre especulaccedilatildeo filosoacutefica e pro-duccedilatildeo teacutecnica que viemos apon-tando nos demais seraacute algo bas-tante significativo visto que dife-

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

rentemente do compasso e da ba-lanccedila ligados diretamente agrave tra-diccedilatildeo pitagoacuterica e arquimedianao telescoacutepio foi construiacutedo de ummodo bastante peculiar envol-vendo controveacutersias desde a eacutepocamesma de Galileu A controveacuter-sia histoacuterica diz respeito ao fatode que Galileu natildeo foi o inventorda ideia do telescoacutepio tendo sa-bido de sua existecircncia por meiode relatos de amigos numa via-gem a Veneza em 1609 mas ha-vendo segundo alguns de seuscontemporacircneos feito do telescoacute-pio um ldquofilhordquo seu Jaacute uma ou-tra controveacutersia epistemoloacutegicadiz respeito agrave questatildeo de saberse Galileu produziu o telescoacutepioprocedendo dentro dos cacircnonesracionalistas isto eacute partindo depremissas teoacutericas gerais e de-las deduzindo necessariamenteconsequecircncias particulares ouvalendo-se de um procedimentoeminentemente empiacuterico ou sejapor tentativa e erro Nossa lei-tura que pretende mostrar natildeo aperfeita conformidade da produ-ccedilatildeo deste instrumento com as de-mais mas sim uma mesma com-preensatildeo geral sobre a relaccedilatildeo en-tre racionalidade e teacutecnica procu-raraacute justamente coordenar as duascontroveacutersias a histoacuterica e a epis-temoloacutegica

Em Sidereus Nuncius Galileuescreve

Haacute cerca de dez meseschegou aos meus ouvi-dos a notiacutecia que certobelga tinha construiacutedo umpequeno telescoacutepio pormeio do qual objetos vi-siacuteveis embora muito dis-tantes dos olhos do ob-servador eram vistos cla-ramente como se estives-sem perto Desse efeitoverdadeiramente notaacutevelvaacuterias experiecircncias foramrelatadas agraves quais algu-mas pessoas davam creacute-dito enquanto outras recu-savam Uns poucos diasmais tarde a notiacutecia me foiconfirmada [ ] o que memotivou a dedicar-me sin-ceramente agrave investigaccedilatildeodo meio pelo qual eu po-dia chegar agrave invenccedilatildeo deum instrumento similaro que consegui pouco de-pois baseando-me na dou-trina das refraccedilotildees (GA-LILEU Sidereus Nunciusapud EacuteVORA 1994 p 37itaacutelicos nossos)

Todavia Faacutetima Eacutevora (1994Caps 2 e 3) mostra-nos que mdasha julgar seja pelos procedimentosapresentados pelo proacuteprio Gali-leu seja pelas teorias oacuteticas a queGalileu poderia ter tido acesso mdasha afirmaccedilatildeo de que o instrumentofoi produzido com bases na dou-

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trina da refraccedilatildeo deve ser tomadacomo deveras problemaacutetica5 Aargumentaccedilatildeo teoacuterica minuciosa ea ampla investigaccedilatildeo documentalde Faacutetima Eacutevora nos eacute completa-mente persuasiva e sua conclusatildeose nos impotildee de modo inelutaacutevel

A descoberta de Galileudo telescoacutepio nem foi obrado acaso nem simples re-produccedilatildeo de um disposi-tivo cuja as partes e dis-posiccedilotildees se conhecia pre-viamente Poreacutem tambeacutemnatildeo foi feita a partir deum raciociacutenio loacutegico de-dutivo [ ] Galileu conse-guiu o progresso graccedilas atentativa e errordquo (EacuteVORA1994 p 81)

Resta-nos poreacutem refletir umpouco sobre o que poderiam signi-ficar para nosso cientista-filoacutesofoessas investidas concretas e tate-antes que ele realizou mdash certa-mente sem seguir nenhum a pri-ori ou melhor nenhum a prioriparticular sobre oacutetica e produccedilatildeo deimagens atraveacutes de lentes O que se-ria afinal isso que se encontra en-tre o raciociacutenio loacutegico dedutivo epuro acaso sem se confundir com

ambos Eacute para tentar respondera essas perguntas que atentamosagraves controveacutersias histoacutericas sobre aautoria do instrumento

Respondendo em Il Saggiatoreagrave acusaccedilatildeo de plaacutegio feita porSarsi Galileu escreve que vistoque jaacute avisara no Sidereus Nun-cius ter sabido da existecircncia dotelescoacutepio antecipadamente res-taria somente explicar que espeacuteciede auxiacutelio podia lhe ter represen-tado esse conhecimento preacutevioReconhecendo que sem essa in-formaccedilatildeo talvez natildeo houvesse sequer pensado no assunto e ten-tado construir o aparelho Galileuno entanto adverte

que tal notiacutecia tenhafacilitado invenccedilatildeo natildeocreio e digo mais que en-contrar a soluccedilatildeo de umproblema marcado e no-meado eacute obra de muitomaior engenho do queaquela necessaacuteria paraencontrar a [soluccedilatildeo] deum problema ainda natildeopensado nem nomeadopois neste caso pode havergrandiacutessima influecircncia doacaso mas naquele eacute tudoobra do argumento (dis-

5ldquo os estudos existentes no seacuteculo XVI e comeccedilo do seacuteculo XVII sobre a formaccedilatildeo de imagens em lentes ousistemas de lentes natildeo ofereciam bases para a construccedilatildeo do telescoacutepio com exceccedilatildeo talvez do Ad VitellionemParalipomena quibus Astronomia pars Optica Traditur de Kepler (1604 Frankfurt) o qual Galileu ateacute outubrode 1610 natildeo havia conseguido lerrdquo (EacuteVORA 1994 p 43)

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

corso) (GALILEU SidereusNuncius apud EacuteVORA1994 p 44-45 - itaacutelicosnossos)

O que temos aqui Mais uma ale-gaccedilatildeo da qual devemos suspeitarTalvez natildeo Afinal o que Galileunos diz eacute que a certeza da existecircn-cia do instrumento afasta o acasoe torna a situaccedilatildeo um problemapara o engenho do cientista Natildeoera uma hipoacutetese a ser testadaempiricamente era uma certezaque a construccedilatildeo do telescoacutepio erapossiacutevel afinal ela era um fatoela era real e o que eacute real devepoder ser demonstrado com basena ciecircncia6 Este seria o a priori deGalileu um a priori geral que nadatem de platocircnico de idealista oude solipsista porque muito pelocontraacuterio diz respeito agrave inteligibi-lidade dos eventos empiacutericos con-siderados em seu acircmbito proacuteprio

Natildeo poderia ser essa uma ex-plicaccedilatildeo mais justa para com oilustre filoacutesofo e matemaacutetico doque a que supotildee que estaria men-tindo para garantir a legitimidadecientiacutefica do seu equipamento aodizer que fundava-se na doutrinada refraccedilatildeo Ora jaacute poderiacuteamoscom efeito perceber estas mesmas

ideias que julgamos encontrar noII Saggiatore quando no Side-reus Nuncius Galileu dizia quededicou-se sinceramente agrave inves-tigaccedilatildeo e que soacute o fez depois que anotiacutecia foi confirmada e natildeo en-quanto algumas pessoas davamcreacutedito eacute experiecircncia mas outrasnatildeo Talvez nessa sinceridade algoinsuspeitado se encontre natildeo es-tando as fontes de Galileu a in-ventar ficccedilotildees fabulosas sobre ummaravilhoso instrumento a exis-tecircncia do telescoacutepio passa a serpois de direito mateacuteria da ciecircn-cia e o procedimento tateante ocorrer sucessivo das tentativas dealgueacutem que no entanto sabe comcerteza que eacute realizaacutevel seu pro-jeto bem poderia constituir umadas conotaccedilotildees da expressatildeo dis-corso Se a existecircncia do telescoacute-pio natildeo era uma fantasia como oseventos narrados nas obras dos li-teratos entatildeo a empreitada de Ga-lileu para produzir o instrumentoainda que de modo tateante eratarefa a exigir-lhe engenho e argu-mento e ao senhor Sarsi que lheacusava de plaacutegio tambeacutem nessecontexto Galileu poderia dizer SrSarsi a coisa natildeo eacute assim Porqueum telescoacutepio existia tentativa eerro para encontraacute-lo jaacute natildeo era

6Natildeo se deve entender aqui o contraacuterio do que jaacute disseacuteramos a saber que Galileu recusa o conhecimento deessecircncias ldquoO que eacute acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico satildeo os acidentes as propriedades ou sintomas Estes agravemedida que revelam o real satildeo os acidentes primaacuterios isto eacute o que pode ser tratado geometricamenterdquo (NASCI-MENTO 1986 p 57) Eacute preciso simplesmente que natildeo esqueccedilamos que estes acidentes satildeo ldquoacidentes primaacuterios ereaisrdquo (Galileu 2013 p 13)

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vaguear inutilmente num escurolabirinto

Conclusatildeo

() A filosofia estaacute escritaneste grandiacutessimo livroque aiacute estaacute aberto continu-amente diante dos olhos(isto eacute o universo) masnatildeo se pode entendecirc-lo seprimeiro natildeo se aprendea entender a liacutengua e co-nhecer os caracteres nosquais estaacute escrito Eleestaacute escrito em liacutengua ma-temaacutetica e os caracteressatildeo triacircngulos ciacuterculos eoutras figuras geomeacutetri-cas meios sem os quais eacutehumanamente impossiacutevelentender-lhe sequer umapalavra sem estes trata-se de um inuacutetil vaguearpor um obscuro labirinto( ) (GALILEU Il Saggia-tore sect6 apud MOSCHETTI2013 p 56)

Quando Galileu diz na supraci-tada frase do paraacutegrafo 6 de Il Sag-giatore (Cf MOSCHETTI 2013)que o universo estaacute escrito em liacuten-gua matemaacutetica revela que o logos

encarna-se no seu tatear e no ins-trumento assim encontrado a ci-ecircncia natildeo estaacute fundada nos livrosescritos pelos homens nem no elu-cubrar subjetivo estaacute fundada nascoisas7 Assim eacute possiacutevel a umcientista ldquoapoacutes haver cuidadosa-mente revisto o que Arquimedesdemonstra em seus tratadosrdquo (GA-LILEU 1986 p 105) ir em direccedilatildeoda natureza e produzir uma ba-lanccedila hidrostaacutetica mas tambeacutemem contrapartida sabendo queexiste um telescoacutepio colocar-se aproduzi-lo consciente de que estaacutelidando na praacutetica com a dou-trina da refraccedilatildeo mdash a ser escritatalvez com mais perfeiccedilatildeo do queno momento podia secirc-lo por suasmatildeos num outro tratado pelasmatildeos de um outro cientista

Jaacute se pode portanto compre-ender quatildeo significativa eacute estacaracterizaccedilatildeo dos instrumentospara a mudanccedila na concepccedilatildeo ge-ral acerca da ciecircncia Por tudoque dissemos parece natildeo estar-mos muito enganados se reco-nhecermos em tais instrumentosa siacutentese entre a instrumentaccedilatildeomdash que valoriza o trabalho em-piacuterico e a tentativa de dar contados fenocircmenos particulares mdash ea postura ativa do homem dianteda natureza que valoriza o re-

7 Confira-se tambeacutem em Moschetti 2013 pp 92ss especialmente o trecho ldquoA famosa frase de Galileu pareceenunciar um princiacutepio natildeo apenas metodoloacutegico mas tambeacutem ontoloacutegico assim deve ser a fiacutesica porque a mateacute-ria eacute ela mesma estruturada geometricamenterdquo Tal leitura confirma por assim dizer o que noacutes aqui estamosapresentando quase como uma ldquorevancherdquo moderna da ontologia pitagoacuterica

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

torno ao proacuteprio intelecto para en-contrar os princiacutepios do conheci-mento Os princiacutepios da matemaacute-tica satildeo os princiacutepios da naturezaqualquer transcendecircncia de estiloplatocircnico eacute aqui excluiacuteda

Para salientar apenas uma dasimplicaccedilotildees dessa investigaccedilatildeopara a compreensatildeo do pensa-mento de Galileu e da proacutepriaRevoluccedilatildeo cientiacutefica dos seacuteculosXVI e XVII cabe salientar que elaincide diretamente na mdash jaacute umtanto envelhecida mdash polecircmica en-tre Alexandre Koyreacute e StillmanDrake reportada e resumida porTHUIILER (1994) no capiacutetulocujo tiacutetulo enuncia a perguntaao redor da qual polemizaram osdois primeiros comentadores ldquofezGalileu experiecircnciasrdquo A respostade Koyreacute eacute negativa ao passo quea de Drake eacute afirmativa Drakeanalisando por exemplo anota-ccedilotildees manuscritas de Galileu tentademonstrar que elas seriam me-diccedilotildees de dados concretos reco-lhidos em efetivos experimentos(THUIILER 1994 p 130) Koyreacutesublinhando entre outras coisasa impossibilidade de mediccedilotildees su-ficientemente precisas bem comoum possiacutevel fundo platocircnico parao estabelecimento das teorias ga-lileanas procura provar que esseestabelecimento em nada depen-deu de experimentos concretosos quais portanto poderiam natildeohaver sequer existido reduzindo-

se aqueles experimentos descri-tos nos livros de Galileu a merosexpedientes de pensamento As-sim se por um lado natildeo acei-tamos completamente a tese deKoyreacute mdash de que Galileu natildeo fezconcretamente seus experimentosmdash por julgaacute-la natildeo como sendofalsa mas como sendo difiacutecil deser demonstrada por outro ladoqueremos crer que mesmo queGalileu tenha efetivamente feitoexperimentos algo da concepccedilatildeobaacutesica de Koyreacute mdash ao menos na-quilo que concerne ao caraacuteter es-sencial da postura ativa da ciecircnciagalileana mdash pode ser mantido seatentarmos agrave maneira pela qualos instrumentos satildeo pensados porGalileu Se natildeo eacute certo que expe-rimentos existiram natildeo se podedizer o mesmo dos instrumen-tos Assim repetindo a questatildeoque se encontra no tiacutetulo do ca-piacutetulo de Thuillier mdash ldquofez Gali-leu experiecircnciasrdquo mdash poderemosarriscar uma conclusatildeo dizendonatildeo sabemos mas sabemos queem sua oficina ele construiu re-almente inuacutemeros instrumentoscomo o compasso geomeacutetrico mi-litar a balanccedila hidrostaacutetica e o te-lescoacutepio E tais instrumentos satildeoeles proacuteprios as concretizaccedilotildeesmateriais de certas leis da natu-reza legiacuteveis apenas matematica-mente Natildeo se tratam de arma-duras extriacutensecas ou armadilhaspara capturar e aprisionar os da-

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dos observacionais em uma relesldquoregra de caacutelculordquo mas uma realarticulaccedilatildeo inteligiacutevel no seio danatureza sensiacutevel

Ora natildeo eacute pouco o que ficaposto em jogo trata-se naquelemomento histoacuterico de fundaccedilatildeode um novo modo de pensar ldquodeuma determinada imagem da ci-ecircncia uma determinada maneirade interpretar o trabalho cientiacuteficordquo(THUIILER 1994 p 117) Hojeem 2019 mdash quando a poliacutetica ci-entiacutefica brasileira exibe uma ima-gem da ciecircncia que a recoloca naservil posiccedilatildeo de teacutecnica solucio-nadora de problemas praacuteticos (es-pecialmente daqueles necessaacuteriosagrave induacutestria e ao mercado de ser-

viccedilos) sem potecircncia para questio-nar o poder teoloacutegico-poliacutetico quepor natildeo haver sido superado mastatildeo somente recalcado calamito-samente retorna com tal reediccedilatildeodo programa instrumentalista mdasheacute imperioso portanto diferenciara despotencializadora instrumen-talizaccedilatildeo da ciecircncia limitada asalvar as aparecircncias de sua de-sejaacutevel instrumentaccedilatildeo Esta uacutel-tima com seus instrumentos si-multaneamente corporais e inte-lectuais recoloca um brado quepensaacutevamos havia sofrido sua ob-solescecircncia junto com as promes-sas natildeo cumpridas do iluminismomas que mostra hoje sua renovadaimportacircncia Sapere Aude

Referecircncias

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GALILEI GCiecircncia e Feacute - Org Trad e Notas Carlos Arthur R Nasci-mento Satildeo Paulo Ed Unesp 2009

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NOTAS SOBRE OS INSTRUMENTOS CIENTIacuteFICOS EM GALILEU

GALILEI G Duas Novas Ciecircncias Trad Letizio amp Pablo R MaricondaSatildeo Paulo Nova Stella 1988

GALILEI G La Billancetta - A pequena Balanccedila Hidrostaacutetica In Cader-nos de Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia No 9 1986 pp 105mdash107

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MOSCHETTI M ldquoMateacuteria e Geometria nrsquoO Ensaidor Revista GuairacaacuteVolume 29 nordm 2 - 2013

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OSIANDER A Sobre as Hipoacuteteses desta Obra (prefaacutecio ao De Revolutio-nibus Orbium Coelestium de Nicolau Copeacuternico) Trad Introd eNotas de Zeljko Loparic In Cadernos de Histoacuteria e Filosofia daCiecircncia No 1 1980 pp 44-61

POPPER K Conjecturas e Refutaccedilotildees Brasiacutelia UnB 1982THUILLIER P De Arquimedes a Einstein Satildeo Paulo Zahar 1994

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i228164

O Jogo das Trevas Heidegger Schelling e Espinosa

[The Game of Darkness Heidegger Schelling and Spinoza]

Vittorio Morfino

Resumo Este artigo visa analisar em primeiro lugar a problemaacute-tica do panteiacutesmo relativa ao determinismo e agrave liberdade tratada porSchelling quando este se posiciona sobre o erro de Espinosa Emsegundo lugar procuraremos entender tanto no pensamento schel-linguiano quanto na sua interpretaccedilatildeo heideggeriana a afirmaccedilatildeo deHeidegger de que haveria em Schelling um ldquotratado que abala a Loacute-gica de Hegel antes mesmo dela aparecerrdquo Em terceiro lugar se-guindo o percurso da linhagem Descartes-Kant-Hegel na histoacuteria dametafiacutesica procuraremos elaborar a trajetoacuteria do problema da ldquoliber-dade e do caraacuteter inteligiacutevelrdquo confrontando-a com a soluccedilatildeo schellin-guiana a fim de analisa-la mediante o conflito da origem do mal e aimpossibilidade da liberdade Finalmente procuraremos responderagrave acusaccedilatildeo de ldquoerro de Espinosardquo e com isso propor a abertura parainterpretaccedilotildees ulteriores de Espinosa principalmente no que diz res-peito ao problema de liberdade humanaPalavras-chave Schelling Heidegger Kant Espinosa Liberdade oMal

Abstract This article aims to analyze first the problem of pantheismconcerning determinism and freedom treated by Schelling when hedefines a position concerning Spinozarsquos error Secondly we will seekto understand both in Schellingian thought and in his Heideggerianinterpretation Heideggerrsquos statement that there would be in Schellinga treatise that shakes Hegelrsquos Logic even before it appears Thirdlyfollowing the path of the Descartes-Kant-Hegel lineage in the historyof metaphysics we will seek to elaborate the trajectory of the problemof ldquofreedom and intelligible characterrdquo confronting the former onewith the Schellingian solution in order to analyze it through theconflict of the origin of evil and the impossibility of freedom Finallywe will endeavor to respond to the accusation concerning ldquoSpinozarsquoserrorrdquo and thereby propose the opening for further interpretations ofSpinoza especially with regard to the problem of human freedomKeywords Schelling Heidegger Kant Spinoza Freedom Evilness

O presente artigo eacute uma versatildeo para o puacuteblico brasileiro de um texto originalmente publicado como capiacutetulodo livro Il tempo della moltitudine Materialismo e politica prima e dopo Spinoza Roma Manifestolibri 2005 pp149-172 A traduccedilatildeo do italiano foi realizada por Daniel Santos Silva [notaccedilatildeo de tradutor identificada como ldquoNotaDSSrdquo] a traduccedilatildeo das citaccedilotildees e filoacutesofos alematildees foram feitas por Fabio Nolasco [notaccedilatildeo de tradutor identificadacomo ldquoNota FNrdquo] revisatildeo geral feita por Ericka Marie ItokazuProfessor da Universitagrave degli Studi di Milano-Bicocca Doutor em Ciecircncia Poliacutetica pela Universiteacute de Paris VIII

(Vincennes - Saint-Denis) E-mail vittoriomorfinounimibit ORCID httpsorcidorg0000-0003-4512-9759

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VITTORIO MORFINO

() uma paixatildeo eacute para noacutes como um caraacuteter temporaacuterioe diferente que substitui o outro e elimina os signos

ateacute entatildeo invariaacuteveis pelos quais ele se exprimia(Marcel Proust Du cocircteacute de chez Swann)

Schelling na histoacuteria da metafiacute-sica

Em 1936 quando Heidegger in-troduz aos estudantes a obra deSchelling nas liccedilotildees dedicadas agravesInvestigaccedilotildees filosoacuteficas sobre a es-secircncia da liberdade humana eleapresenta-a nestes termos ldquo()eacute o que de maior fez Schellinge ao mesmo tempo uma dasobras mais profundas da filoso-fia alematilde e portanto da filosofiaocidentalrdquo1 Natildeo seria este poisum tratado que tem em mira umaquestatildeo particular como haviapensado Hegel mas sim uma obrafilosoacutefica fundamental dedicadanatildeo agrave questatildeo do livre-arbiacutetrio dohomem mas agrave liberdade do Serldquoao qual o homem tem de ser re-conduzido para que se torne ver-dadeiramente homemrdquo2 Entre-tanto em vez de restituir o con-junto da interpretaccedilatildeo heidegge-riana de Schelling como cume

e naufraacutegio do idealismo alematildeoou ainda apenas colher delaseu sentido no quadro da histoacute-ria da metafiacutesica tentarei inter-rogar o texto nas suas margenslaacute onde Heidegger desenha rela-ccedilotildees de oposiccedilatildeo ou de continui-dade com algumas figuras funda-mentais do pensamento modernoEspinosa Kant Hegel E talvez eacutedesses acenos marginais que seraacutepossiacutevel aceder agrave compreensatildeo da-quilo que estaacute em jogo na inter-pretaccedilatildeo heideggeriana de Schel-ling

1) Espinosa A proximidade deSchelling com respeito agrave filosofiaespinosana foi sublinhada por elemesmo (na ceacutelebre carta a Hegelde 1795 em que declara ich binindessen Spinozist geworden3)por escritos polecircmicos (primeiroentre todos como natildeo o de Jacobi)e por uma ininterrupta seacuterie de ar-tigos e ensaios ao longo de todo oNovecentos A afirmaccedilatildeo de Hei-

1HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) hrsg von H FeickTuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 p2 [lowast As traduccedilotildees de Heidegger foram feitas a partir do italiano por Da-niel Santos e revisadas em cotejo com o alematildeo por Fabio Mascarenhas Nolasco a natildeo ser quando especialmenteindicado Nota FN]

2 Ibidem p 11 Acrescenta Heidegger Note-se natildeo a liberdade como propriedade (Eigenschaft) do homem esim o homem como propriedade (Eigentum) da liberdaderdquo (Ibidem)

3 Carta de Schelling a Hegel em 4 de fevereiro de 1795 em Briefe von und an Hegel Bd I hrsg von J HOFF-MEISTER Hambruf Meiner 1952 p 22

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

degger tem entatildeo a forccedila de umtiro de canhatildeo para o senso co-mum filosoacutefico

O fato que a filosofia deSchelling tenha sido to-mada por espinosismo re-cai naquela histoacuteria curi-osa de malentendidos quetodos os filoacutesofos sofremda parte de seus contem-poracircneos Se haacute um sis-tema que Schelling com-bateu de modo radical[von Grund aus bekaumlmpfte]eacute propriamente aquele deEspinosa E se houve umpensador que reconheceuo verdadeiro erro de Espi-nosa este eacute Schelling4

Duas indicaccedilotildees fundamentais 1)natildeo somente Schelling natildeo eacute es-pinosista mas pelo contraacuterio sese quer ler Schelling de modo cor-reto deve-se colher na sua filo-sofia esta oposiccedilatildeo radical ao sis-tema espinosano que por assimdizer o atravessa 2) no sistemaespinosano existe segundo Hei-degger um erro fundamental queSchelling especificou da melhorforma

2) Kant A relaccedilatildeo Kant-Schelling vem caracterizada porHeidegger em termos de con-tinuidadeaprofundamento Seidealismo em sentido amplo sig-nifica interpretaccedilatildeo da essecircn-cia do Ser como lsquoideiarsquo comoser-representado pelo ente emgeralrdquo5 para entender a linhada metafiacutesica moderna Descartes-Leibniz somente com Kant o eurepresentativo ele atinge sua es-secircncia a liberdade abrindo cami-nho ao idealismo entendido emsentido histoacuterico6

Kant sobre a via que oleva da Criacutetica da razatildeopura agrave Criacutetica da razatildeopraacutetica reconhece todaviaque a essecircncia autecircnticado eu natildeo eacute o eu penso maso eu ajo dou-me a mimmesmo a lei trazendo-ado fundamento da essecircn-cia eu sou livre Nesseser-livre o eu estaacute verda-deiramente consigo natildeodistante de si mas ver-dadeiramente em si Oeu como eu representoa ideia vem entatildeo con-

4 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit (1809) FEICK H (org)Tuumlbingen Max Niemeyer Verlag 1971 tr it MAZZARELLA E e TATASCIORE C (orgs) Naacutepoles Guida 1998p 41

5 Ibidem p 1106 ldquoO idealismo como sistema foi fundado pela Doutrina da Ciecircncia de Fichte completado de maneira essencial

pela filosofia da natureza de Schelling elevado a um niacutevel superior pelo seu Sistema do idealismo transcenden-tal consumado por seu Sistema da identidade e fundado propriamente num movimento conclusivo apenas pelaFenomenologia do espiacuterito de Hegelrdquo ibidem p109

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cebido a partir da liber-dade O idealismo comointerpretaccedilatildeo do Ser en-tende entatildeo o ser-em-si doente como ser-livre o ide-alismo eacute dentro de si idea-lismo da liberdade7

Enquanto partiacutecipe do idealismoSchelling eacute segundo Heideggerprofundamente devedor de Kantpelo conceito de liberdade comoldquosubsistecircncia proacutepria e autodeter-minaccedilatildeo na proacutepria lei essencialrdquo(Eigenstaumlndigkeit und Selbstbestim-mung im eigenen Wesengesetz8) aoexceder esse movimento de pen-samento ele aprofunda o conceitode Kant mudando sua filosofia deterreno ldquoo idealismo alcanccedilou defato o conceito formal da liber-dade () mas ainda natildeo compre-endeu o fato [Tatsache] da liber-dade humana na sua facticidade[Tatsaumlchlichkeit]rdquo9

3) Hegel A perspectiva a par-tir da qual o senso comum filo-soacutefico considera a relaccedilatildeo Hegel-Schelling foi imposta pelo ceacutelebremovimento teoacuterico do Prefaacutecio daFenomenologia do espiacuterito o abso-luto de Schelling eacute a noite em quersquotodos os gatos satildeo pardosrsquo comose costuma dizer10 Quer se re-

fira ao amigo de um tempo oua seus maus divulgadores comolhe assegura em uma carta certoeacute que esse juiacutezo tem a forccedila deuma sentenccedila de condenaccedilatildeo quetransforma a filosofia schellin-guiana em um momento do pro-cesso histoacuterico-filosoacutefico que de-veria conduzir ao idealismo ab-soluto de Hegel Que Schellingcontinue a viver e a escrever apoacuteso florir daquele botatildeo tardio deSuaacutebia eacute uma pura contingecircnciasem significado algum do pontode vista da weltgeschichtlich Hei-degger distancia-se precisamentede uma perspectiva de tal gecircneroO simples movimento de dedicarum curso agrave uacutenica obra publicadapor Schelling em vida depois dosurgimento da Fenomenologia (sesatildeo excluiacutedas obras de caraacuteter po-lecircmico) eacute suficiente para mos-trar que existe um pensamento deSchelling para aleacutem de Hegel ouseja para aleacutem da filosofia schel-linguiana como posiccedilatildeo subordi-nada agravequela do saber absolutoLonge poreacutem de limitar-se a umavalorizaccedilatildeo somente impliacutecita dopensamento de Schelling Heideg-ger afirma explicitamente a forccediladesse pensamento proacuteprio em re-laccedilatildeo agravequele de Hegel

7 Ibidem p 1118 Ibidem p 1099 Ibidem

10 HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes in GW Bd 9 hrsg von W Bonsiepen - R Heede HamburgMeiner 1980 p 17 [Nota FN trad em portuguecircs de Paulo Meneses Parte I Petroacutepolis Vozes 1992 p 29]

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

Quando se cita o tratadoschellinguiano sobre a li-berdade apenas ocasional-mente a fim de assim do-cumentar uma certa vi-sada de Schelling sobre omal e a liberdade natildeo setem desse tratado conceitoalgum Torna-se agoratambeacutem visiacutevel em quemedida a avaliaccedilatildeo de He-gel sobre esse tratado em-bora reconhecedora eacute fa-lha trata-se apenas deuma questatildeo particularO tratado que abala [ers-chuumlttert] a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela apare-cer11

Natildeo apenas pois o pensamentode Schelling natildeo desvanece emfrente ao surgir do pensamentohegeliano mas potildee em questatildeoante-litteram os fundamentos deseu sistema (erschuumlttern significaabalar fazer tremer mas tambeacutemromper) a grande loacutegica laacute ondeos pensamentos de Deus satildeo reco-lhidos antes de tornar-se mundo

Antes de aproximarmo-nos doconteuacutedo verdadeiro e proacutepriodo tratado reassumamos breve-

mente as coordenadas atraveacutes dasquais Heidegger nos permite si-tuar o pensamento de Schelling nahistoacuteria da metafiacutesica modernaSchelling refuta Espinosa apro-funda Kant faz vacilar Hegel Re-tomaremos analiticamente essespontos contudo em ordem in-versa

O tratado sobre a liberdade

As Investigaccedilotildees12 schellinguianaspartem da polecircmica com algumasdas ceacutelebres teses de Jacobi pre-sentes em Sobre a doutrina de Es-pinosa em cartas ao Senhor MosesMendelssohn nas quais se conec-tavam de modo estreito raciona-lismo panteiacutesmo e fatalismo (bemresumida na ceacutelebre frase de Les-sing ldquonatildeo haacute outra filosofia senatildeoa de Espinosardquo13) Numa deta-lhada anaacutelise dos diferentes sen-tidos que se pode atribuir ao con-ceito de panteiacutesmo Schelling de-dica a primeira parte de sua obrapara mostrar como em realidadedo panteiacutesmo natildeo segue necessa-riamente a negaccedilatildeo da liberdadeAo contraacuterio se o compreende-mos corretamente o panteiacutesmoimplica liberdade

11HEIDEGGER M Schellings Abhandlung op cit p 11712 SCHELLING F W J Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die dammit

zusammenhaumlngenden Gegenstaumlnde in SW Bd 4 pp 238-23913 JACOBI FH Uumlber die Lehre des Spinoza hrsg von Hammacher et alii Hamburg Meiner 2000 p 23

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Se jaacute natildeo fosse vivente[por si] aquilo que eacute com-preendido em outro en-tatildeo haveria uma compre-ensibilidade sem compre-endido ie nada seriacompreendido Um pontode vista muito mais altoeacute assegurado pela consi-deraccedilatildeo da proacutepria essecircn-cia divina cuja ideia con-tradiria completamenteuma sequecircncia que natildeoeacute produccedilatildeo ie o pocircrde um autossubsistenteDeus natildeo eacute um Deus dosmortos mas dos viven-tes Eacute incompreensiacutevelcomo a essecircncia comple-tamente perfeita se apra-zeria mesmo que em faceda mais completa das maacute-quinas Como quer quese queira pensar o tipode sequecircncia das essecircn-cias a partir de Deusela nunca pode ser umasequecircncia mecacircnica demodo algum um mero efe-tuar ou colocar em queo efetuado natildeo eacute nadapor si proacuteprio tampoucouma emanaccedilatildeo em queo que emana permaneccedilao mesmo que aquele do

qual emanou portantonada proacuteprio autosubsis-tente A sequecircncia dascoisas a partir de Deuseacute uma automanifestaccedilatildeode Deus Deus contudopode se manifestar a siapenas naquilo que lhe eacutesemelhante em essecircnciaslivres que agem a partirde si proacuteprias para cujoser natildeo haacute nenhum outrofundamento senatildeo Deusas quais poreacutem satildeo talcomo Deus eacute Ele fala eaiacute estatildeo elas Mesmo sefossem todos os seres cri-ados apenas pensamentosdo iacutentimo divino jaacute porisso haveriam de ser vi-vos14

Assim o panteiacutesmo natildeo implicade maneira alguma conclusotildeesespinosistas como consideravaJacobi mas pelo contraacuterio se-gundo Schelling soacute internamenteao panteiacutesmo eacute possiacutevel pensar aliberdade ldquoimanecircncia em Deuse liberdade contradizem-se tatildeopouco que unicamente o livre ena medida em que eacute livre eacute emDeus o natildeo-livre e na medidaem que natildeo eacute livre [eacute] necessa-riamente fora de Deusrdquo15

14 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zu-sammenhaumlngenden Gegenstaumlande in Saumlmtliche Werke (SW) vol 4 pp 238-239 [Nota FN as traduccedilotildees para oportuguecircs a seguir foram feitas diretamente do alematildeo por Faacutebio Nolasco]

15 Ibidem p 239

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

Uma vez estabelecido que liber-dade e sistema podem conviverSchelling enfrenta a questatildeo fun-damental qual seja o problemada liberdade de que o idealismoteria fornecido apenas um con-ceito formal (forma no sentidodaquilo que determina a essecircn-cia anota Heidegger) mas natildeovivente que residiria em umaldquofaculdade do bem e do malrdquo(Vermoumlgen des Guten und des Bouml-sen)16 Aqui contudo um novoproblema para o panteiacutesmo jaacute queldquoou se concede um mal efetivo eassim eacute inevitaacutevel implicar o malna substacircncia infinita ou na proacute-pria vontade originaacuteria e com issoo conceito de uma essecircncia suma-mente perfeita eacute completamentedestruiacutedo ou eacute preciso que de al-guma maneira a realidade do malseja negada com o que no en-tanto o conceito real da liberdadeao mesmo tempo desaparecerdquo17Perde-se pois ou Deus ou a li-berdade ndash ao menos se natildeo nosabandonamos agrave teoria dos doisprinciacutepios (que Schelling chamano tratado de dualismo) e nestecaso perde-se entretanto a razatildeo(ldquoo dualismo eacute apenas um sis-tema do autodilaceramento e de-sespero da razatildeordquo18) A soluccedilatildeoschellinguiana pela qual procura

salvar Deus a razatildeo e a liberdadeno seu panteiacutesmo encontra-se emuma distinccedilatildeo que ele pocircs na fi-losofia da natureza ldquoa filosofia danatureza do nosso tempo estabele-ceu na ciecircncia em primeiro lugara diferenciaccedilatildeo entre a essecircnciaenquanto existe e a essecircncia en-quanto eacute mero fundamento [blosGrund] de existecircnciardquo19 Por essadistinccedilatildeo entre existecircncia e funda-mento Schelling chegaraacute a expli-car o mal

Deus deve ter em si mesmo ofundamento de sua existecircncia eesse fundamento se se quer tornaacute-lo humanamente compreensiacuteveldeve ser pensado como o desejoque o eterno experimenta ao gerara si proacuteprio um querer no qualnatildeo haacute intelecto mas um que-rer do intelecto (genitivo objetivo)pressaacutegio do intelecto Esse desejofoi desde muito tempo suplantadopelo ser mais alto surgido dele etodavia embora natildeo perceptiacuteveleacute concebiacutevel pelo pensamento

Segundo o ato eternoda automanifestaccedilatildeo nomundo tal como o vi-samos agora tudo eacute re-gra ordem e forma masno fundo subjaz sempre

16 Ibidem p 24417 Ibidem p 24518 Ibidem p 24619 Ibidem p 249

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ainda o sem-regra [Regel-lose] como se ele pudesseirromper mais uma veze em lugar nenhum pa-rece que a ordenaccedilatildeo ea forma seriam o origi-naacuterio mas que um sem-regra inicial teria sido or-denado Isso eacute nas coisas abase inapreensiacutevel da rea-lidade o resto que nuncase esvai aquilo que natildeose deixa dissolver no en-tendimento mesmo como maior esforccedilo mas quepermanece eternamenteno fundo [im Grunde]Dessa ausecircncia de enten-dimento nasceu em sen-tido estrito o entendi-mento Sem essa escuri-datildeo antecedente natildeo haacutequalquer realidade da cri-atura a treva eacute seu neces-saacuterio legado20

A partir pois da distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia em DeusSchelling desencadeia o processoatraveacutes do qual Deus mesmo segera gerando a natureza e a his-toacuteria Frente a essa verdadeirateocosmo-gonia combateu-seentre uma atitude de admiraccedilatildeo

agrave criativiadade filosoacutefica de Schel-ling e agrave ironia de Schopenhauerque diante de um ldquorelatoacuterio de-talhado sobre um Deus do qual osenhor autor daacute a entender pos-suir conhecimento iacutentimo postoque nos descreve ateacute mesmo o seusurgimentordquo deplora o fato deque ldquoele natildeo gaste uma soacute palavrapara mencionar como teria entatildeoalcanccedilado tal conhecimentordquo21Em tal contexto talvez seja maisinteressante tomaacute-la como puraestrateacutegia verdadeira e proacuteprialuta filosoacutefica para salvar a razatildeoDeus e liberdade22

Ora em cada ser da naturezaem cada graduaccedilatildeo sua estatildeo pre-sentes os dois princiacutepios mas ape-nas no homem de forma plenaldquono ser humano estaacute o poder in-teiro do princiacutepio tenebroso etambeacutem nele simultaneamentetoda a forccedila da luz Nele estaacute omais profundo abismo e o maisalto ceacuteu (der tiefste Abgrund undder houmlcheste Himmel) ou ambosos centrosrdquo 23 O mal entatildeo natildeopode ser compreendido como ma-lum metaphysicum como limita-ccedilatildeo (ou seja como privaccedilatildeo) mascomo positiva perversatildeo dos doisprinciacutepios

20 Ibidem p 251-25221 SCHOPENHAUER A Preisschrift uumlber die Freiheit des Willens in Werke (W) vol 4 p 8422 ldquoQuiccedilaacute derradeiramente e pos isso com extrema fuacuteria Schelling luta para ganhar a batalha da razatildeordquo (G

ALBIAC La sinagoga vaciacutea Madrid Ediciones Hiperioacuten 1987 p 337)23 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen cit p 255

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Pois jaacute a simples ponde-raccedilatildeo de que o ser hu-mano a mais perfeita detodas as criaturas visiacuteveiseacute a uacutenica capaz do malmostra que o fundamentodisso natildeo poderia de ma-neira alguma dever-se agravefalta ou privaccedilatildeo O diabosegundo a visada cristatildenatildeo era a mais limitadadas criaturas senatildeo quemuito mais a mais ilimi-tada A imperfeiccedilatildeo nosentido metafiacutesico geralnatildeo eacute o caraacuteter usual domal posto que ele fre-quentemente se mostraunificado a uma excelecircn-cia das forccedilas singularesas quais com muito menorfrequecircncia acompanhamo bem24

Schelling explica pois o mal pelofundamento o qual natildeo estaacute forade Deus mas eacute em Deus mesmoMas o mal natildeo eacute o fundamento jaacuteque contrariamente ldquoa vontadedo fundamento jaacute na primeira cri-accedilatildeo coexcita a vontade proacutepria da

criatura a fim de que quando sur-gir o espiacuterito como a vontade deamor este encontre algo que lheresista no qual possa se efetivarrdquo25 (e isso possa ser apreendido se-gundo Schelling no irracional eno acaso que se encontra conec-tado com o necessaacuterio especial-mente nos seres orgacircnicos signode uma individualidade ativa26operando neles) Sobretudo nofazer da individualidade mesmao mal consiste no perverter a re-laccedilatildeo entre os dois princiacutepios emvez de base e oacutergatildeo da espiritua-lidade um princiacutepio ldquodominantee vontade-total () e em contra-partida do espiritual em si ummeio ()rdquo 27 Uma perversatildeo dessegecircnero eacute possiacutevel somente no ho-mem ou seja no reino do espiacuteritoda histoacuteria enquanto no animal oviacutenculo entre os dois princiacutepioseacute determinado e natildeo passiacutevel deperversatildeo (o animal natildeo eacute assimcapaz de mal o ser capaz do mal eacutepropriamente aquilo que constituia essecircncia do homem)

Trata-se de compreender nessequadro em que sentido a liber-dade consiste em uma faculdadedo bem e do mal Schelling re-

24 Ibidem p 260-26125 Ibidem p 267-268 A propoacutesito escreve Parayson ldquoA impossibilidade de separar a liberdade humana da

liberdade divina implica que o mal posto que eacute o resultado da liberdade humana e dela apenas tem uma prehis-toacuteria sobrehumana um fundo metafiacutesico um pressuposto [antefatto] escuro e abissal Isso tem a sua origem remotano fundamento obscuro da essecircncia divina que o proacuteprio Deus supera e vence no evento portentoso do seu devire a sua causa proacutexima e imediata na liberdade humanardquo (Introduzione a FWJ Schelling Scritti sulla filosofia dellareligione la libertagrave op cit p 15)

26 Ibidem p 26827 Ibidem p 281

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cusa de modo preciso tanto a con-cepccedilatildeo da liberdade como liberumarbitrium indifferentiae quanto aconcepccedilatildeo determinista ou comoele a chama preacute-deterministaldquoem ambas eacute igualmente desco-nhecida aquela necessidade supe-rior () necessidade que brota daessecircncia do proacuteprio agenterdquo28 Aliberdade se identifica pois comessa mais alta necessidade quecoincide com a accedilatildeo que segue daproacutepria essecircncia O problema sedesloca entatildeo para a liberdade daessecircncia E eis a resposta schel-linguiana ldquoo ser humano eacute nacriaccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () mas ele proacute-prio pode decidir-se No entantoessa decisatildeo natildeo pode ocorrer notempordquo29 O homem eacute pois livrepara escolher o bem e o mal natildeono tempo mas na eternidade an-tes que o tempo seja escolhe suaessecircncia no eterno e dessa escolhaseguem necessariamente todas assuas accedilotildees no tempo o agir dohomem por assim dizer natildeo setorna mas eacute por natureza eterno

Para retomar o principal do tra-tado eis os dois movimentos teoacute-ricos fundamentais

- a liberdade como autodeter-minaccedilatildeo intemporal da sua proacute-

pria essecircncia- o mal como perversatildeo da re-

laccedilatildeo entre os dois princiacutepios co-originaacuterios em Deus

Estamos agora em condiccedilotildeespara retornar ao texto de Hei-degger e procurar compreendermelhor o sentido dessa relaccedilatildeode continuidade e de oposiccedilatildeoque ele estabeleceu com EspinosaKant Hegel

O princiacutepio das trevas e a trans-parecircncia do conceito

Assinalamos para o fato de queHeidegger potildee em discussatildeo a re-construccedilatildeo hegeliana da histoacuteriado idealismo na qual Schellingnatildeo seria senatildeo um momento ne-cessaacuterio (a reequilibrar o subjeti-vismo fichteano) mas parcial e su-bordinado ao idealismo absolutoEm realidade Schelling longe deser um momento do desenvolvi-mento em direccedilatildeo ao saber abso-luto eacute o pensador que ldquoempurrao idealismo alematildeo desde o seuinterior para fora e aleacutem de suaproacutepria posiccedilatildeo fundamentalrdquo30Aqui o que estaacute em jogo eacute a rela-ccedilatildeo com Hegel como mostra estaexclamaccedilatildeo de Heidegger ldquoo tra-

28 Ibidem p 27529 Ibidem p 27730 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 4

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tado que abala a Loacutegica de Hegelantes mesmo dela aparecerrdquo

Em que sentido o tratado deSchelling abala a Loacutegica A loacute-gica de Hegel eacute a completude dametafiacutesica moderna daquele mo-vimento filosoacutefico posto em atopela primeira vez por Descartespara quem a medida do ser estaacuteno pensamento no sujeito A loacute-gica eacute a ciecircncia da ideia natildeo maisentendida como o conteuacutedo men-tal cartesiano mas como cora-ccedilatildeo mesmo da totalidade comoaquele processo de pensamentoque no seu fazer-se institui aomesmo tempo as estruturas fun-damentais do ser da natureza e dahistoacuteria Costuma-se citar a desca-rada imagem hegeliana segundo aqual a loacutegica seria ldquoa apresentaccedilatildeo(Darstellung) de Deus tal como eleeacute em sua essecircncia eterna antes dacriaccedilatildeo da natureza e de um es-piacuterito finitordquo 31 Aqui eacute possiacutevelcompreender naturalmente soba condiccedilatildeo de renunciar a todatranscendecircncia de Deus e a todaanterioridade entendida em sen-tido temporal Natildeo se pode defato separar a ideia do processopelo qual ela continuamente potildeediante de si uma alteridade (o ou-tro do pensamento do conceitoou seja o acidental o contingente

o acaso) e continuamente a superadando-lhe forma

A identidade da ideia con-sigo mesma ndash escreve He-gel ndash eacute um com o pro-cesso o pensamento queliberta a efetividade daaparecircncia [Schein] da al-terabilidade sem finali-dade e a transfigura [ver-klaumlrt] em ideia natildeo tem derepresentar essa verdadeda efetividade como o re-pouso morto como umamera imagem fraca semimpulso e movimentocomo um gecircnio ou um nuacute-mero ou um pensamentoabstrato a ideia em vir-tude da liberdade que oconceito alcanccedila nela temtambeacutem a oposiccedilatildeo maisdura dentro de si seu re-pouso consiste na segu-ranccedila e na certeza com asquais ela eternamente agera e eternamente a su-pera e nela junta-se con-sigo mesma32

Em que sentido entatildeo o Schellingdo tratado abala a loacutegica de HegelEnquanto em Hegel Deus eacute o lu-

31 HEGEL GWF Wissenschaft der Logik in GW Bd 11 hrsg Von F Hogemann ndash W Jaescke p 21 [Nota FNtraduccedilatildeo portuguesa a cargo de Ch Iber F Orsini M Miranda vol 1 Petroacutepolis-Braganccedila Paulista Vozes 2016p 52]

32 Ibidem Bd 12 p 177 tr Br citada p 242 (grifos do autor)

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gar das puras estruturas loacutegicasdo ser que encontram a opacidadeda contingecircncia e da acidentali-dade no fazer-se mundo mas so-mente no caminho para a trans-parecircncia do espiacuterito (isto eacute deum Deus que enfim se sabe comotal) em Schelling a luz do pensa-mento eacute em Deus precedida emum sentido intemporal por umprinciacutepio tenebroso que a deseja eao mesmo tempo a individualizae assim natildeo eacute de modo algum a elaredutiacutevel Trata-se daquele con-ceito que Heidegger denomina deSeynsfuge encaixe do ser articula-ccedilatildeo do ser Como escreve EugenioMazzarela

o fundamental do tratadoschellinguiano de 1809consiste em ter levado aproblemaacutetica da dialeacuteticaespeculativa do idealismosobre um terreno a li-berdade de onde lsquosaltarsquo asoluccedilatildeo integralmente loacute-gica do nexo ontoloacutegico areinvindicaccedilatildeo de que nolsquoconceitorsquo o ser e o pen-sar se convertem integral-mente e que a participa-ccedilatildeo nessa compreensatildeo

reciacuteproca integral [seja]completamente atualizaacute-vel no sentido de uma suatranslucidez sem resiacuteduopara o pensamento hu-mano sub specie do traba-lho filosoacutefico do espiacuterito33

Em substacircncia Schelling faria va-cilar a concepccedilatildeo hegeliana da li-berdade como processo histoacutericode autoapropriaccedilatildeo da totalidadendash liberdade que nessa oacutetica natildeopode senatildeo ser coletiva inseridanas instituiccedilotildees poliacuteticas

Em Schelling a impossiacuteveltransparecircncia imposta pela Seyns-fuge mostra o limite do conceitoidealista de liberdade como au-todeterminaccedilatildeo a partir de umaessecircncia proacutepria a liberdade vi-vente necessita de uma definiccedilatildeomais profunda a liberdade vi-vente eacute faculdade do bem e domal Schelling faria assim vacilaro inteiro sistema hegeliano pen-sando a liberdade como poten-cialidade de transgressatildeo contraDeus o mal natildeo se cura sem ci-catrizes como na Fenomenologiahegeliana34 mas eacute o sintoma daexistecircncia do conflito no ser di-

33 MAZZABELLA E Presentazione a M Heidegger Schelling opcit p 3134 ldquoAs feridas do espiacuterito curam sem deixar cicatrizes O fato natildeo eacute o impereciacutevel mas eacute reabsorvido pelo espiacute-

rito dentro de si o que desvanece imediatamente eacute o lado da singularidade presente no fato ndash seja como intenccedilatildeoseja como negatividade e limitaccedilatildeo aiacute-essente do fatordquo (HEGEL GWF Phaumlnomenologie des Geistes opcit p 360)[Nota FN trad brasileira opcit p 444]

35 Sobre o mal fiacutesico e o mal moral cf MOISO F Vita natura libertagrave Schelling (1795-1809) Milatildeo Mursia 1990pp 294-335

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vino mesmo35

A liberdade e o caraacuteter inteligiacute-vel

No percurso da metafiacutesica mo-derna que conduz de Descartes aSchelling sem duacutevida em Kantestaacute o noacute fundamental eacute Kant defato que ndash segundo Heidegger ndashformula o conceito formal de li-berdade como ldquoautossubsistecircnciacomo subsistecircncia proacutepria na proacute-pria lei essencialrdquo 36 Haacute um evi-dente deacutebito no tratado sobre a li-berdade nos confrontos de Kantque todavia Schelling natildeo su-blinha de modo suficientementeclaro e que mesmo Heidegger emcomentaacuterios natildeo contribui parailuminar Escreve Schelling

O ser humano eacute na cria-ccedilatildeo originaacuteria () uma es-secircncia indecisa () masele proacuteprio pode decidir-se No entanto essadecisatildeo natildeo pode ocor-rer no tempo ela ocorrefora de todo tempo eportanto coincide coma primeira criaccedilatildeo (em-bora enquanto um ato di-verso dela) O ser hu-mano embora nasccedila no

tempo foi no entantocriado no comeccedilo da cri-accedilatildeo (o centro) O atomediante o qual sua vidaeacute determinada no temponatildeo pertence ele mesmoao tempo mas agrave eterni-dade ele natildeo antecede agravevida tambeacutem segundo otempo mas decorre atra-veacutes do tempo (inapreen-dido por ele) como umato eterno segundo a na-tureza Mediante esse atoa vida do ser humano al-canccedila ateacute ao comeccedilo dacriaccedilatildeo por isso ele me-diante tal ato e mesmofora do criado eacute livre e eleproacuteprio comeccedilo eternoEmbora essa ideia possaao modo comum de pen-sar parecer tatildeo incompre-ensiacutevel em cada ser hu-mano poreacutem haacute um sen-timento concordante comisso [Schelling se refere aosentimento de responsabi-lidade que sentimos pelasnossas accedilotildees VM] comose ele jaacute tivesse sido o queeacute desde toda eternidadee de modo algum apenasveio a ser no tempo Porisso a despeito da ine-gaacutevel necessidade de to-das as accedilotildees e mesmo que

36 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 109

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cada um quando atenta asi proacuteprio tenha de con-ceder que de modo al-gum eacute bom ou mau poracaso ou arbitrariamenteo mal pex aparece a sicomo nada menos que co-agido (posto que a coa-ccedilatildeo pode apenas ser sen-tida no devir natildeo no ser)mas faz suas accedilotildees comvontade natildeo contra suavontade Que Judas te-nha se tornado um trai-dor de Cristo natildeo o po-dia alterar ele proacuteprio ouqualquer criatura mudare ainda assim ele natildeo foicoagido a trair Cristo maspropositadamente e comtotal liberdade37

Schopenhauer sustenta que essapaacutegina natildeo seria nada mais queuma paraacutefrase explicativa ndash apre-ciaacutevel exclusivamente por seu tomvivaz ndash da teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel Ora na Criacutetica darazatildeo pura Kant estabelece umadupla causalidade operante nosatos de escolha humanos umacausalidade natural e uma por li-berdade De uma parte ldquotodasas accedilotildees do homem no fenocircmeno

se determinam segundo a or-dem da natureza pelo seu caraacutec-ter empiacuterico e pelas outras causasconcomitantesrdquo38 de outra tantoesse caraacuteter quanto as causas coo-perantes seriam a manifestaccedilatildeo deum ato uacutenico de escolha originaacute-rio e intemporal precisamente ocaraacuteter inteligiacutevel Malgrado algu-mas oscilaccedilotildees39 essa teoria vemretomada tambeacutem na ldquoElucidaccedilatildeocriacuteticardquo que conclui o primeiro li-vro da Criacutetica da razatildeo praacutetica

Nessa consideraccedilatildeo [comocoisa em si VM] o ser ra-cional pode agora dizercorretamente sobre cadaaccedilatildeo contraacuteria agrave lei prati-cada por ele que poderiatecirc-la omitido mesmo queela esteja enquanto fenocirc-meno suficientementedeterminada no passadoe seja nessa medida infali-velmente necessaacuteria poisessa accedilatildeo com todo o pas-sado que a determina per-tence a um uacutenico fenocirc-meno de seu caraacuteter queele [o ser racional VM]fornece a si mesmo e se-gundo o qual ele imputaa si mesmo enquanto

37 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit pp 277-27838 KANT I Criacutetica da Razatildeo Pura A549 B577 [Nota FN trad de M P dos Santos e A F Morujatildeo Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001]39 Cf a sismografia detalhada de LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 pp 251-266

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uma causa independentede toda a sensibilidade acausalidade desses fenocirc-menos40

Para reassumir a terminologiaproposta por Schopenhauer no es-crito sobre a Liberdade da Vontadea liberdade natildeo consiste no operarmas acima de tudo no ser comono mito platocircnico de Er uma vezescolhida uma dentre as vidas te-cidas pelas Moiras a alma natildeopode mais modificar o proacutepriodestino

Em que sentido Schelling apro-funda o discurso de Kant Ele fazemergir a teoria kantiana do ca-raacuteter inteligiacutevel de uma teogoniade origem boumlhmiana fundada so-bre aquilo que Heidegger chamade Seynsfuge A distinccedilatildeo entrefundamento e existecircncia permiteexplicar a origem do mal e as-sim fundar ontologicamente a li-berdade como vivente faculdadedo bem e do mal Todavia a pre-senccedila da teoria de Kant tem con-tornos vagos tanto na argumen-

taccedilatildeo de Schelling quanto no co-mentaacuterio de Heidegger41 Isso im-pede que se volte contra essa teo-ria a objeccedilatildeo fundamental que natildeoreside mais em conciliar a liber-dade de Deus com aquela do ho-mem (a ceacutelebre pergunta do Da irade Lactacircncio Si Deus unde ma-lum) mas em conciliar a plura-lidade das escolhas humanas en-tre si encontramo-nos frente auma pluralidade de centros livrescada um dos quais deveria fazer-se mundo (ainda que como su-blinha Landucci limitadamenteagraves seacuteries causais pertinentes agravesaccedilotildees do sujeito42) uma espeacutecie demonadologia sem harmonia preacute-estabelecida A resposta de Hegela essa objeccedilatildeo consistiraacute precisa-mente na re-instituiccedilatildeo de umaharmonia preacute-estabelecida a as-tuacutecia da razatildeo que tece a tramada histoacuteria com os fios das paixotildeese dos interesses individuais nessesentido a liberdade eacute sempre his-toacuterica e coletiva o indiviacuteduo quepossui o grau de liberdade queeacute dado a seu proacuteprio tempo natildeopode ser livre ndash quando o eacute ndash senatildeo

40 KANT I Criacutetica da Razatildeo Praacutetica A175 [Nota FN trad de M Hulshof Petroacutepolis ndash Braganccedila Paulista Vozesp 131]

41 Assim Heidegger retraduz na sua terminologia a teoria do caraacuteter inteligiacutevel ldquoeste ponto profundiacutessimo damais alta amplidatildeo do saber a si proacuteprio na decidibilidade [Entschiedenheit] da sua mais proacutepria essecircncia esteponto alcanccedilam apenas alguns poucos e raramente E se [alcanccedilam] entatildeo apenas enquanto esse piscar de olhos[Augen-Blick] do mirada mais iacutentima na essecircncia tambeacutem eacute instante [Augenblick] estritiacutessima historicidade Istoquer dizer a decidibilidade natildeo recolhe a essecircncia proacutepria num ponto vazio da mera contemplaccedilatildeo ociosa do eu[Ichbegaffung Nota FN] mas a decidibilidade da essecircncia proacutepria eacute apenas o que ela eacute como resolutidade [NotaFN Entschlossenheit] Com isso queremos dizer o estar dentro no aberto da verdade da histoacuteria a insistecircnciaque antes de toda contagem e inacessiacutevel a todo caacutelculo leva a cabo o que haacute de levar a cabordquo (HEIDEGGER MSchellings Abhandlung opcit p 187)

42 LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994 p 254

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dentro do processo histoacuterico e daproacutepria comunidade poliacutetica Aresposta de Schopenhauer consis-tiraacute inversamente na negaccedilatildeo detoda forma de harmonia o caraacuteterinteligiacutevel eacute sim ldquoum ato de von-tade extratemporal e indivisiacutevelrdquocujo caraacuteter empiacuterico natildeo eacute ou-tro que ldquoseu fenocircmeno [Erschei-nung] no espaccedilo tempo e causa-lidade (essas figuras do princiacutepiode razatildeo suficiente da forma dofenocircmenordquo43) mas esse ato que eacuteldquomanifestaccedilatildeo imediata [unmittel-bare Erscheinung] da vontaderdquo44natildeo eacute escolha tambeacutem das causascooperantes dos motivos45 e as-sim de um mundo (embora limita-damente agraves seacuteries causais que con-cernem agrave accedilatildeo do sujeito) Perde-se pois ou a Liberdade ou o Sen-tido natildeo eacute claro como Schellingpossa salvar a ambos

O erro de Espinosa

Resta agora enfrentar a questatildeodecisiva que consiste na tentativade compreender de que maneiraSchelling teria mostrado o errofundamental da filosofia de Espi-nosa Heidegger parece referir-

se a uma passagem do tratadode Schelling que nesse sentido eacuteinequiacutevoca

E aqui de uma vez por to-das portanto nossa opi-niatildeo determinada sobreo espinosismo Esse sis-tema natildeo eacute um fatalismoporque ele deixa as coi-sas serem conceituadasem Deus pois como mos-tramos o panteiacutesmo natildeotorna impossiacutevel pelo me-nos a verdade formal Es-pinosa haacute de ser por-tanto fatalista em virtudede uma razatildeo completa-mente diferente e inde-pendente dessa O errodo seu sistema natildeo estaacutede modo algum no fato deque ele potildee as coisas emDeus mas no fato de quesatildeo coisas ndash no conceitoabstrato dos seres criadossim ateacute mesmo substacircn-cia infinita que para eletambeacutem eacute uma coisa Porisso seus argumentos con-tra a liberdade satildeo com-pletamente deterministase de maneira alguma pan-

43 SCHOPENHAUER A Die Welt als Wille und Vostellung in Werke (W) vol II p 34144 Ibidem p 38845 O caraacuteter atinge pelo conhecimento os motivos segundo Schopenhauer Por essa razatildeo a conduta de um

homem (isto eacute a manifestaccedilatildeo do caraacuteter) pode mudar com base no grau de conhecimento ldquosem que seja liacutecitoinferir-lhe uma alteraccedilatildeo do caraacuteterrdquo pois o conhecimento natildeo pode exercitar alguma influecircncia sobre a vontadeldquomas [apenas] segundo o modo com o qual a vontade se revela nas accedilotildeesrdquo (ibidem pp 347 e 350)

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teiacutestas Ele trata tambeacutemda vontade como um fatoe demonstra entatildeo muitonaturalmente que ela ha-veria de ser determinadaem qualquer caso da efe-tuaccedilatildeo por um outro fatoo qual por sua vez eacute de-terminado por um outroe assim em diante infi-nitamente Daiacute a faltade vida do seu sistemaa falta de sentimento in-terno] da forma a cares-tia dos conceitos e expres-sotildees a intragaacutevel auste-ridade das determinaccedilotildeesque tatildeo bem coaduna coma forma de consideraccedilatildeoabstrata por isso e de ma-neira completamente con-sequente a sua visatildeo me-cacircnica da natureza46

O erro de Espinosa consiste emuma generalizada reificaccedilatildeo deDeus da natureza da vontadeHeidegger se deteacutem somente no

juiacutezo de Schelling glosa-o sim-plesmente afirmando que o errodo espinosismo natildeo eacute teoloacutegicomas ontoloacutegico o ente eacute conce-bido como coisa como presente(Das Vorhandene) jaacute que ele natildeoldquonatildeo conhece o vivente e nemmesmo o espiritual como modosproacuteprios e talvez mais originaacuteriosdo serrdquo47 Contudo Espinosa natildeoentra nunca realmente em jogo notexto de Heidegger quando eacute ci-tado o eacute de modo superficial e natildeosem uma ponta de desprezo (paradizer a verdade jamais racistacomo no Schmitt daqueles anosainda que seja difiacutecil natildeo percebero orgulho alematildeo que perpassaseu texto)48 Entretanto pelo me-nos em um caso a total ausecircnciade qualquer discussatildeo natildeo podenatildeo ser relevada Heidegger citaeste trecho de Schelling

A filosofia da natureza donosso tempo estabeleceupela primeira vez na ci-ecircncia a diferenccedila entre

46 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24147 HEIDEGGER M Schellings Abhandlung opcit p 10748 Relato em seguida algumas passagens de Heidegger ldquoo uacutenico sistema completo construiacutedo ateacute o fim em seu

nexo fundacional eacute a metafiacutesica de Espinosa [] Jaacute o tiacutetulo traz agrave tona o domiacutenio da exigecircncia cientiacutefica matemaacuteticandash ordine geometrico Que essa metafiacutesica ie ciecircncia do ser total se designa por ldquoEacuteticardquo isso traz agrave tona que o agire o comportamento do ser humano tem um significado determinante para o tipo de procedimento no saber e defundamentaccedilatildeo cientiacutefica Esse sistema poreacutem apenas se tornou possiacutevel com base numa singular unilateralidadesobre a qual falaremos mais tarde ademais porque os conceitos metafiacutesicos fundamentais da escolaacutestica medievalforam simplesmente acoplados no sistema com uma rara ausecircncia de criacutetica Para se levar a cabo o proacuteprio sistematomou-se a mathesis universalis a doutrina do meacutetodo cartesiana e o conceito metafiacutesico propriamente fundamen-tal adveacutem em todos os seus detalhes de Giordano Brunordquo (Ibidem p 40-41) ldquoPara evitar aqui um equiacutevoco estejaenfatizado que a filosofia de Espinosa natildeo pode ser igualada com a filosofia hebraica Jaacute apenas o fato conhecido deque Espinosa foi expulso da comunidade hebraica eacute significativo Sua filosofia eacute essencialmente determinada peloespiacuterito da eacutepoca Bruno Descartes e a escolaacutestica medievalrdquo (Ibidem p 80)

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a essecircncia enquanto elaexiste e a essecircncia en-quanto ela eacute apenas fun-damento de existecircnciaEmbora esse seja preci-samente o ponto em queela desvia da maneira amais determinada do ca-minho de Espinosa aindaassim se pocircde na Ale-manha ateacute hoje ser afir-mado que seus princiacutepiosmetafiacutesicos eram os mes-mos que os de Espinosae apesar de que precisa-mente aquela diferencia-ccedilatildeo eacute o que simultanea-mente conduz agrave diferen-ciaccedilatildeo mais determinadaentre natureza e Deusisso no entanto natildeo obs-tava a que se a acusasse demisturar Deus com a na-tureza49

Heidegger cita integralmente essapassagem Trata-se de uma pas-sagem fundamental na sua inter-pretaccedilatildeo jaacute que Schelling nela ex-prime a Seynsfuge que estaacute no cen-tro de toda leitura heideggerianaNela Espinosa desempenha umpapel central eacute a teoria da qual

Schelling se distancia no Kampf-platz filosoacutefico poderiacuteamos di-zer que Schelling identifica aquia proacutepria filosofia diferenciando-adaquela de Espinosa Ora mesmoreportando fielmente a referecircnciaa Espinosa Heidegger ignora-ocompletamente em seus comen-taacuterios Desde esse ponto o nomeEspinosa desaparece do texto porcerca das cem paacuteginas que se-guem Seriacuteamos tentados a atri-buir a essa ausecircncia uma signi-ficado sintomaacutetico de ver nela oaflorar de um problema para areflexatildeo heideggeriana como fezBalibar em um belo ensaio dedi-cado a Heidegger e Espinosa50Mas talvez seja suficiente pro-curar explicar o passo schellin-guiano para tentar compreenderse Espinosa com respeito a estepossa constituir um simples erro

O problema do mal

A passagem que citamos das In-vestigaccedilotildees sobre a Liberdade eacute achave teoacuterica que permite a Schel-ling resolver o problema do malsobre a Seynsfuge se constroacutei a te-oria schellinguiana do mal como

49 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 24950Balibar defende que o silecircncio de Heidegger sobre Espinosa seja sintomaacutetico do puissant finalisme qui para-

doxalement ne cesse de hanter la penseacutee rsquoneacutegativersquo de Heidegger [Nota DSS ldquopotente finalismo que paradoxal-mente natildeo cessa de assombrar o pensamento lsquonegativorsquo de Heideggerrdquo ] (BALIBAR E Heidegger et Spinoza inSpinoza au XX siegravecle BLOCH O (sous la direction de) Paris PUF 1993 ps 327-343 343 Cf tambeacutem VAYSSE J-M Totaliteacute et finitude Spinoza et Heidegger Paris Vrin 2004

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perversatildeo da relaccedilatildeo entre os doisprinciacutepios

A pergunta fundamental nesseponto diz respeito ao sentido da-quela referecircncia a Espinosa trata-se isto eacute de compreender em quesentido Espinosa negou a distin-ccedilatildeo entre fundamento e existecircn-cia Heidegger sobre tal pontonatildeo nos ajuda de fato simples-mente natildeo explica a referecircncia seentretanto tivesse que traduzir nasua filosofia a acusaccedilatildeo de Schel-ling teria talvez dito que Espi-nosa nega a diferenccedila ontoloacutegicaSchelling parece afirmar a ausecircn-cia de fundamento em Espinosaou seja daquele princiacutepio tene-broso que embora natildeo sendo maisperceptiacutevel no mundo da formae da ordem eacute todavia pensaacutevelPara Espinosa tudo eacute luz mas luzprivada de vida e de liberdadeporque eacute luz geomeacutetrica em queDeus o mundo e ateacute a vontadesatildeo petrificados satildeo tomados porsimples coisas Quando Schellingexpotildee a teoria espinosana do malparece-me que essa interpretaccedilatildeovenha perfeitamente agrave luz

[] a forccedila que se mostra

no mal [seria] de fato com-parativamente mais im-perfeita que aquela que semostra no bem mas con-siderada em si ou fora dacomparaccedilatildeo seria ela proacute-pria todavia uma perfei-ccedilatildeo que portanto comoqualquer outra precisaser derivada de Deus Oque chamamos nisso demal eacute apenas o menorgrau da perfeiccedilatildeo o qualaparece como uma faltaapenas para a nossa com-paraccedilatildeo natildeo sendo faltaalguma na natureza Natildeose deve negar que essa se-ria a verdadeira assunccedilatildeode Espinosa51

A luz da necessidade geomeacutetricailumina embora de modo dife-rente os graus do ser tornando defato impossiacutevel a liberdade

Alguns anos depois nas Liccedilotildeesde Munique Schelling rejeitaraacuteem Espinosa precisamente esse li-mite ou seja o fato de que neleo ser existe sem sujeito excluindotodo natildeo ser toda potecircncia todaliberdade trata-se pois de um ser

51 SCHELLING FWJ Philosophische Untersuchungen opcit p 246 Heidegger ao comentar tal passagem as-sente plenamente agrave interpretaccedilatildeo schellinguiana de tal aspecto sobre a teoria espinosana ldquoConcede-se que o malvalha como o natildeo-bom como falta como imperfeito o que falta natildeo estaacute aiacute natildeo-estar-aiacute natildeo estar presente -mdashassim chamamos o natildeo-ente Daquilo que segundo sua essecircncia eacute o que natildeo eacute natildeo pode contudo ser dito queseja um ente Assim a efetividade do mal eacute apenas uma ilusatildeo Aquilo que sempre eacute efetivo soacute pode ser o positivoE o que haacute pouco chamamos de mal e jaacute por nomeaacute-lo falseamo-lo em positivo esse imperfeito eacute na medida emque eacute sempre apenas um grau em cada caso diferente do bem ndash assim ensina Espinosardquo (M Heidegger SchellingsAbhandlung op cit p 122)

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impotente que natildeo tem em si o po-der de ser diverso daquilo que eacute52E na Filosofia da Revelaccedilatildeo (liccedilatildeoVII) faraacute dele o campeatildeo da fi-losofia negativa a que contraporaacutesua filosofia como filosofia posi-tiva

se no entanto Espinosausa aquela verdade ge-omeacutetrica como exemplopara elucidar como se-gundo a sua opiniatildeo ascoisas singulares seguemda natureza de Deus asaber de uma maneiraigualmente atemporaleterna entatildeo a sua expli-caccedilatildeo do mundo eacute bemanti-histoacuterica e em opo-siccedilatildeo a ela ao contraacuterio adoutrina cristatilde pela qualo mundo seria efeito deuma livre decisatildeo de umfato haveria de ser cha-mada uma explicaccedilatildeo his-toacuterica53

Se entatildeo a filosofia de Schellingfaz vacilar a loacutegica de Hegel jaacuteque mostra a impossibilidade doconceito de retraduzir-se sem re-siacuteduos no tempo de permear de sia temporalidade e a histoacuteria nelaanulando de fato a eventualidade

ela reconhece o erro fundamentalde Espinosa na ausecircncia total dehistoacuteria de um acircmbito humanoque de algum modo exceda a luzda necessidade geomeacutetrica Masse trata realmente de um erroOu existe no pensamento de Es-pinosa alguma coisa que perturbaa posiccedilatildeo da simples alternativaSchelling-Hegel

Coisas e pessoas

Antes de passar agraves conclusotildees al-guns breves pontos sobre a leituraschellinguiana de Espinosa Se-riacuteamos tentados a dizer que natildeo eacutetanto Espinosa que reifica Deusos modos e a vontade quantoprincipalmente Schelling que rei-fica uma palavra de Espinosa (eacutecerto pode-se reificar tambeacutem otermo res) fixando o seu conteuacutedo(de modo abstrato) exteriormenteagrave estrateacutegia teoacuterica na qual estaacuteinserida Eacute verdade que Espinosaassocia o termo res tanto a Deusquanto aos modos (natildeo agrave vontadeporque esta se trata de um ensrationis) e contudo natildeo se podeesquecer o fato de que no escoacute-lio I da proposiccedilatildeo 40 da segundaparte da Eacutetica haja uma criacutetica aostranscendentais

52 SCHELLING FWJ Muumlnchener Vorlesung in SW vol 5 pp 104-10553 SCHELLING FWJ Philosophie der Offenbarung in SW vol 6 pp 138-139

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() a Mente humana po-deraacute imaginar distinta-mente em simultacircneo tan-tos corpos quantas ima-gens possam ser forma-das simultaneamente emseu proacuteprio corpo Oraquando as imagens seconfundirem completa-mente no corpo tambeacutema Mente imaginaraacute confu-samente todos os corpossem qualquer distinccedilatildeoe os compreenderaacute comoque sob um uacutenico atri-buto a saber sob o atri-buto do Ser da Coisa etcIsso pode tambeacutem ser de-duzido de que as imagensnem sempre tecircm o mesmovigor e de outras causasanaacutelogas a estas que natildeoeacute preciso explicar aquipois para o escopo ao qualvisamos basta considerarapenas uma Com efeitotodas se reduzem a queestes termos significamideias confusas em sumograu54

O termo res indica uma ideia con-fusa que deriva tanto da incapa-cidade do corpo de conservar os

traccedilos de um nuacutemero indefinidode encontros com os corpos ex-ternos quanto de traccedilos de con-tornos indefinidos efeitos de en-contros receacutem mantidos trata-sepois de uma noccedilatildeo que perdeuou nunca possuiu o seu objetocomo escreve Macherey eacute umaquase-noccedilatildeo uma maneira defalar que se serve de articulaccedilatildeono discurso sem deter uma sig-nificaccedilatildeo racional nela mesmardquo55Natildeo haacute sentido algum assim emfixar a atenccedilatildeo sobre ocorrecircnciasdo termo res na escrita espino-sana perdendo a estrateacutegia teoacute-rica que a comanda56 para darapenas um exemplo se tomarmosem consideraccedilatildeo as duas primei-ras proposiccedilotildees da segunda parteda Eacutetica (Cogitatio attributum Deiest sive Deus est res cogitans Ex-tensio attributum Dei est sive Deusest res extensa) seria de todo ilu-soacuterio pocircr o acento sobre a reifica-ccedilatildeo de Deus ndashextrapolando o frag-mento () Deus est res () ndash semapreender a estrateacutegia que aiacute estaacuteoperando um trabalho de redefi-niccedilatildeo da linguagem cartesiana dastrecircs substacircncias agora no sentidoda teoria da substacircncia uacutenica daqual pensamento e extensatildeo satildeoatributos

54 Eth in G Bd II pp 120-121 [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira da Eacutetica doravante tr br Grupo de EstudosEspinosanos da USP Satildeo Paulo Edusp 2015 p 199]

55 MACHEREY P Introduction agrave lrsquoEacutethique de Spinoza II Paris PUF 1997 p 30756 Trata-se para ser exato de 893 ocorrecircncias (M Gueret ndash A Robinet ndash Tombeur Spinoza Ethica Concordances

Index Listes des freacutequences Tables comparatives Louvain-la-Neuve Cetedoc 1977 pp 289-298)

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Voltemos agrave leitura de SchellingQue coisa ele entende por coisaUma unidade fechada e privadade relaccedilotildees com o externo A=ANesse sentido em Espinosa natildeoexiste coisa alguma Deus eacutecausa de si no mesmo sentido emque eacute causa imanente dos modos(a sua essecircncia eacute pois potecircnciaprodutiva) os modos satildeo compos-tos instaacuteveis cuja essecircncia residena complexidade das relaccedilotildees ins-tituiacutedas entre suas partes e como ambiente externo (e Jonas com-preendeu com agudeza a origina-lidade da teoria do organismo es-pinosana) a vontade enfim natildeopassa de um puro ens rationis de-fronte agraves voliccedilotildees singulares (quesatildeo ao mesmo tempo intelecccedilotildees)e elas mesmas longe de seremcoisas satildeo o lugar de condensa-ccedilatildeo de complexas tramas relaci-onais que natildeo apenas natildeo reifi-cam o indiviacuteduo mas impedemque este seja pensado como tal emsentido estrito (como ao contraacute-rio o fazem tanto Schelling comoHeidegger) abrindo-o a uma di-nacircmica transindividual57 Talvezentatildeo a acusaccedilatildeo schellinguianade reificaccedilatildeo deva ser compreen-dida no seio da ideologia juriacute-dica (burguesa certamente - como

sublinha Althusser58 - mas reto-mada do direito romano e em par-ticular das Istitutiones de Gaio)res eacute aquilo que natildeo eacute personaaquilo que natildeo eacute dotado de li-berdade e assim de responsabi-lidade Natildeo eacute por acaso que a in-dicaccedilatildeo do erro fundamental deEspinosa faccedila um conjunto emSchelling com uma teoria do in-diviacuteduo humano entendido comopersona que eacute enquanto tal res-ponsaacutevel pelas proacuteprias accedilotildees natildeoporque seja livre no tempo (todaaccedilatildeo singular eacute de fato determi-nada por motivos e entatildeo ne-cessaacuteria) mas porque pocircde an-tes que o tempo fosse determi-nar a proacutepria essecircncia (tanto Kantquanto Schelling e Schopenhauerinsistem sobre a responsabilidadeque sente o homem por aquilo queeacute e por aquilo que faz como sin-toma desse ato originaacuterio de es-colha do proacuteprio caraacuteter inteligiacute-vel) Talvez entatildeo a identificaccedilatildeodo erro espinosano por parte deSchelling natildeo aponte tanto a rei-ficaccedilatildeo do indiviacuteduo quanto prin-cipalmente a impossibilidade desua classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave tra-diccedilatildeo teoloacutegico-juriacutedica da identi-dade pessoal que vecirc sua primeiragrande expressatildeo moderna no ca-

57 Cf MORFINO V Ontologia della relazione e materialismo della contingenza in ldquoOltrecorrenterdquo 6 2002 pp129-144 Cfr tambeacutem MONTAG W Chi ha paura della moltitudine in ldquoQuaderni Materialisttirdquo 2 2003 pp63-79 Inspiraccedilatildeo de ambos BALIBAR E Spinoza il transindividuale tr it di MARTINO L Di PINZOLO LMilatildeo Ghibli 2002

58 ALTHUSSER L Reacuteponse a John Lewis Paris Maspero 1972 p 73

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piacutetulo sobre Identidade e diferenccedilados Essay de Locke59 Nesse sen-tido o problema eacute sim o deter-minismo mas talvez de modoainda mais radical a natildeo impu-tabilidade juriacutedica de uma accedilatildeo auma multidatildeo60 que coisa eacute comefeito o indiviacuteduo na teoria de Es-pinosa se natildeo a configuraccedilatildeo de-terminada de uma multidatildeo (deideias e de corpos)

Aleacutem do bem e do mal

Voltando agrave questatildeo do mal comoprivaccedilatildeo eacute verdade que Espinosaparece autorizar uma tal leituraespecialmente nas cartas a Blyen-berg61 Trata-se poreacutem a meumodo de ver da necessidade decolocar-se sobre o terreno linguiacutes-tico do correspondente62 Pode-sereencontrar em seu pensamento

uma teoria bem mais profundado bem e do mal segundo a qualestes natildeo corresponderiam a umgrau maior ou menor de perfei-ccedilatildeo do ser mas principalmente aum efeito imaginaacuterio do precon-ceito antropocecircntrico a necessi-dade natural se encontra em re-alidade aleacutem do bem e do mal ea ontologizaccedilatildeo desses conceitosnatildeo eacute outra coisa senatildeo a con-sequecircncia da potecircncia da imagi-naccedilatildeo que potildee o homem comocentro e medida do ser63 QuandoEspinosa depois na quarta parteda Eacutetica define positivamente obem e o mal pode fazecirc-lo apenasem termos plurais e relativos ouseja natildeo como escolha intempo-ral e absoluta entre amor cristatildeo eegoiacutesmo (isto eacute a alternativa pro-posta por Schelling) mas na di-mensatildeo conjuntural do encontrodos corpos as coisas que fazem

59 Neste capiacutetulo satildeo perfeitamente compreensiacuteveis os enjeux teoloacutegico-juriacutedicos do conceito de identidade pes-soal a possibilidade da consciecircncia de redobrar-se sobre a linha tempo reconhecendo no passado aquele mesmoself que eacute agora presente garante a infalibilidade da justiccedila divina que pode perscrutar nos coraccedilotildees embora natildeodaquela terrena que pode ser enganada pela linguagem

60 Eacute ceacutelebre o passo hobbesiano em que a discriminaccedilatildeo entre povo e multidatildeo passa precisamente por esseponto O povo eacute uno tendo uma soacute vontade e a ele pode atribuir-se uma accedilatildeo mas nada disso se pode dizer deuma multidatildeo (Hobbes T De cive XII 8 in M vol II p 291) [Nota DSS traduccedilatildeo brasileira de Renato JanineRibeiro Satildeo Paulo Martins Fontes 2002 p189]

61 Esta passagem [de Espinosa] parece ser particularmente relevante na leitura de Schelling seguida por Heideg-ger ldquo[] a privaccedilatildeo natildeo eacute o ato de privar mas simples e mera carecircncia a qual natildeo eacute em si nada outro que umente de razatildeo ou seja uma espeacutecie de pensamento que formamos quando confrontamos as coisas entre si Diga-mos por exemplo que o cego eacute privado da vista porque somos levados a imaginaacute-lo como vidente por efeito doconfronto que fazemos seja com os outros que vecircem seja com o seu estado precedente E porquanto consideramoseste homem deste modo isto eacute comparando a sua natureza com aquela dos outros ou com aquela que perdeupor isso afirmamos que a visatildeo pertence agrave sua natureza e que portanto dela ele foi privado Mas se se considerao decreto de Deus e a sua natureza natildeo podemos afirmar daquele homem mais que a pedra que tenha lhe sidoretirada a vistardquo (Espinosa a Blyenberg XXI in G Bd IV p 128 tr it DROETTO A (org)Turim Einaudi 1938pp 133-134)

62 Eacute um dado de fato relevante que as 11 ocorrecircncias do termo privatio na Eacutetica natildeo digam respeito nunca agravequestatildeo do mal mas exclusivamente agrave da falsidade (GUERET M e ROBINET A Spinoza Ethica ConcordancesIndex Listes des freacutequences Tables comparatives p 275)

63 Eth I app pp 81-82 [Nota DSS trad br op cit pp 109-121]

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VITTORIO MORFINO

com que se conserve a proporccedilatildeode movimento e repouso que aspartes do Corpo humano tecircm en-tre si satildeo boas e maacutes ao contraacuterioas que fazem com que as partesdo Corpo humano tenham entresi outra proporccedilatildeo de movimentoe repouso64

Para Espinosa o homem temtanto direito a existir e a agirquanto o tem o leatildeo e o gato odireito equivale agrave sua potecircnciaMas ele natildeo pode escolher parasi sua essecircncia (em uma atempo-ralidade que ainda que natildeo pre-cedendo o tempo deve ser mesmoassim um lugar outro com rela-ccedilatildeo ao tempo) tanto quanto natildeopode escolher para si um corpo(satildeo ou doente) uma mente (satilde oudoente) um sexo uma cor de peleum ambiente um clima uma fa-miacutelia uma sociedade uma liacuten-gua um periacuteodo histoacuterico Maisnatildeo existe na filosofia de Espinosauma essecircncia feita de tal modoque preceda a existecircncia e nessesentido talvez ganhe pleno sig-nificado o silecircncio de Heideggersobre a ausecircncia da Seynsfuge Aessecircncia se faz na complexidadedas relaccedilotildees (dos corpos das men-tes com o ambiente com a famiacute-lia com a liacutengua com o proacutepriotempo) sem que tais relaccedilotildees to-

mem a coloraccedilatildeo do Zeitgeist quereduz sua complexidade e anula acontingecircncia As paixotildees natildeo satildeopropriedade do indiviacuteduo que satildeoativadas por motivos mas verda-deiras e proacuteprias forccedilas que exis-tem entre o indiviacuteduo e a causaque o gerou como aparece nasproposiccedilotildees 5 e 6 da quarta parte

Proposiccedilatildeo V A forccedila e ocrescimento de uma pai-xatildeo qualquer e sua per-severanccedila no existir natildeosatildeo definidos pela potecircn-cia pela qual nos esforccedila-mos para perseverar noexistir mas pela potecircn-cia da causa comparada agravenossa ()

Proposiccedilatildeo VI A forccedila deuma paixatildeo ou afeto podesuperar as demais accedilotildeesou a potecircncia do homemde tal maneira que o afetoadere pertinazmente aohomem65

Como escreve Montag ldquoos encon-tros com outros corpos necessaacuteriopara a conservaccedilatildeo da coisa singu-lar inclui simultaneamente inte-raccedilotildees regulares e lsquofortuitasrsquordquo 66

64 Eth IV pr 39 p 239 [Nota DSS trad br op cit p 439]65 Eth IV pr 5 e 6 p 214 [Nota DSS trad br op cit p 389]66 MONTAG W Bodies masses power Spinoza and his contemporaries London-New York 1999 p 3467 As ocorrecircncias do termo occursus satildeo extremamente raras sob a pena de Espinosa Uma entretanto eacute demais

66 Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 43-69ISSN 2317-9570

O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

O occursus67 o encontro torna-se entatildeo o conceito chave na de-terminaccedilatildeo da forccedila (vis) de umapaixatildeo encontro entre potecircncias(causae externae potentia cum nos-tra comparata) cujas despropor-ccedilotildees podem produzir a dominacircn-cia pertinaz (pertinaciter) de umapaixatildeo concernente ao comporta-mento complexivo de um homemsem que isso seja atribuiacutedo agrave imu-tabilidade de seu caraacuteter (isto eacutese natildeo a uma escolha intempo-ral pelo menos a uma constitui-ccedilatildeo essencial) Mas natildeo somenteo encontro pode inclusive mudara identidade mesma de um ho-mem o seu caraacuteter (na termino-logia kantiana) precisamente por-que a identidade natildeo reside emuma escolha intemporal mas emuma determinada proporccedilatildeo demovimento e de repouso entre aspartes Eacute o caso do ceacutelebre exem-plo de Gocircngora citado por Espi-nosa

Pois natildeo ouso negar queo Corpo humano manti-das a circulaccedilatildeo do san-gue e outras coisas pe-las quais se estima que oCorpo vive contudo possa

mudar para uma natu-reza de todo diversa dasua De fato nenhuma ra-zatildeo me obriga a sustentarque o Corpo natildeo morre se-natildeo mudado em cadaacutevere mais a proacutepria expe-riecircncia parece persuadir-me do contraacuterio Comefeito agraves vezes ocorre aum homem padecer taismudanccedilas que natildeo eacute faacute-cil dizer que continue omesmo como ouvi contarsobre um Poeta Espanholque fora tomado pela do-enccedila e embora se tenhacurado ficou poreacutem tatildeoesquecido de sua vida pas-sada que natildeo acreditavaserem suas as Faacutebulas eTrageacutedias que escrevera ecertamente poderia ser to-mado por um bebecirc adultose tambeacutem tivesse esque-cido a liacutengua vernaacutecula68

Nesse contexto teoacuterico a liber-dade toma duas faces 1) a liber-dade como idecircntica ao grau de po-tecircncia e como contraacuterio de coaccedilatildeo2) a liberdade como causalidadeadequada da accedilatildeo A primeira

significativa no escoacutelio da prop 29 da segunda parte da Eacutetica quando satildeo conectados conhecimento confuso epercepccedilatildeo da coisas ex communi naturae ordine hoc est () ex rerum () fortuito occursu (G BdII p 144) A im-portacircncia do tema do occursus em Espinosa foi sublinhado por DELEUZE G Spinoza Philosophie pratique ParisEditions de Munuit 1981 passim cf tambeacutem MARCUCCI M Occursus rsquoCosmologia negativarsquo e terzo genere inDEL LUCCHESE F MORFINO V (a cura di) Sulla scienza intuitiva in Spinoza Ontologia politica estetica MilanoGhibli 2003 pp 137-153

68 Eth IV prop 39 schol p 240 [Nota DSS trad br op cit p 441]

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VITTORIO MORFINO

diz respeito a todos os seres natu-rais quanto mais estes satildeo poten-tes mais satildeo livres A segunda eacutea liberdade da razatildeo enquanto co-nhecimento que nos permite agirndash sempre de forma parcial e confli-tiva poreacutem de outro modo umaparte da natureza se faria o todo ndashna complexidadde de relaccedilotildees quenos constitui A segunda concep-ccedilatildeo que para os corpos poliacuteticosse identifica com um processo dedemocratizaccedilatildeo estaacute todavia im-plicada na primeira enquanto arazatildeo natildeo eacute outro da natureza masum grau de potecircncia seu

O erro de Espinosa consistepois natildeo tanto na reificaccedilatildeoda vontade quanto na refutaccedilatildeomais precisa de toda forma de an-tropocentrismo que procure atri-buir a ela um impeacuterio no impeacute-rio da natureza E se esse erro

fosse precisamente o ponto cegodo idealismo e natildeo tanto a ne-gaccedilatildeo da histoacuteria (seja entendidacomo marcha da ideia ou comoadvento do Cristo) mas precisa-mente a desconstruccedilatildeo ante litte-ram da dupla natureza-histoacuteriaNesse sentido abre-se talvez umaulterior via de interpretaccedilatildeo qualseja ler o espinosismo natildeo tantocomo filosofia da luz em que anecessidade geomeacutetrica petrifica avida como Medusa sob seu olharmas como filosofia de um princiacute-pio tenebroso jamais sobrepujadopela luz em que a luz (ou seja aordem e a forma) e o espiacuterito (ouseja a razatildeo humana) natildeo satildeo se-natildeo efeitos aleatoacuterios ndash em nadadesejados porque a treva natildeo eacutedesejo mas potecircncia ndash do com-plexo jogo das trevas

Referecircncias

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HEEDE R (orgs) Hamburgo Meiner 1980HEGEL GWF Wissenschaft der Logik in GW Bd 11 HOGEMANN Von

F JAESCKEW (orgs)Hamburgo Meiner 1980HEIDEGGER M Schellings Abhandlung uumlber das Wesen der menschlichen

Freiheit (1809) FEICK H (org) Tuumlbingen Max Niemeyer Verlag

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O JOGO DAS TREVAS HEIDEGGER SCHELLING E ESPINOSA

1971 tr it MAZZARELLA E e TATASCIORE C (orgs) Naacutepo-les Guida 1998 p 41

JACOBI FH Uumlber die Lehre des Spinoza HAMMACHER et alii Ham-burgo Meiner 2000

KANT I Kants Werke (KW) Berlim Walter de Gruyer amp Co 1969LANDUCCI S Sullrsquoetica di Kant Milatildeo Guerini 1994MACHEREY P Introduction agrave lrsquoEacutethique de Spinoza II Paris PUF 1997MARCUCCI M Occursus rsquoCosmologia negativarsquo e terzo genere in DEL

LUCCHESE F e MORFINO V (orgs) Sulla scienza intuitiva inSpinoza Ontologia politica estetica Milano Ghibli 2003

MONTAG W Bodies masses power Spinoza and his contemporariesLondon-New York 1999

MORFINO V Ontologia della relazione e materialismo della contingenzain ldquoOltrecorrenterdquo 6 2002

SCHELLING FWJ Saumlmtliche Werke (SW) SCHROumlTER M (org) Mu-nique Beckrsquosche Verlagsbuchandung 1959

SCHOPENHAUER A Saumlmtliche Werke (W) HUumlBSCHER A (org) Wi-edsbaden Brockhaus 1972

SPINOZA B Ethica in Opera (G) GEBHARDT G (org) HeidelbergCarl Winters 1972

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225619

O Drama da Imanecircncia Gebhardt Deleuze Benjamin eo Infinito Barroco de Espinosa

[The Drama of Immanence Gebhardt Deleuze Benjamin and Spi-nozarsquos Baroque Infinite]

Henrique Piccinato Xavier

Resumo Investigando a filosofia de Espinosa visamos atravessar odrama da imanecircncia elaborado por Walter Benjamin em Origem dodrama barroco alematildeo isto eacute atravessar a peculiar interpretaccedilatildeo me-lancoacutelica que relaciona a ideia de imanecircncia presente na filosofia mo-derna agrave arte de sua eacutepoca ou seja a barroca Mais que um dramapara um olhar espinosano tal interpretaccedilatildeo eacute uma trageacutedia pois pro-duz uma teatralidade aporeacutetica que dilapida a positividade da ideiade imanecircncia Para compreendermos esta trageacutedia seraacute preciso pas-sar por dois preacircmbulos filosoacuteficos ao drama Rembrandt e Espinosade Carl Gebhardt e A dobra Leibniz e o barroco de Gilles Deleuze Damelancoacutelica trageacutedia para algo mais feliz reelaboraremos o dramaprocurando desfazer tais aporias conduzindo-nos agrave compreensatildeo dapositividade da imanecircncia ldquobarrocardquo em EspinosaPalavras-chave Espinosa Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter Ben-jamin Arte Barroca

Abstract With Espinosarsquos philosophy we aim to confront the dramaof immanence developed by Walter Benjamin in his The Origin of theGerman Tragic Drama in other words we aim to confront a peculiarmelancholic interpretation that relates the idea of immanence presentin modern philosophy to the art of its time that is baroque art Morethan a drama in a Spinosist perspective such interpretation is atragedy because it produces an aporetic theatricality that demolishesthe positivity in the idea of immanence To understand this tragedyit will be necessary to go through two philosophical preambles to thisdrama Rembrandt and Spinoza by Carl Gebhardt and Fold Leibnizand the Baroque by Gilles Deleuze We will rework the drama fromthe melancholic tragedy to something happier trying to undo theseaporias leading us to an understanding of the positivity of thebaroque immanence in SpinozaKeywords Spinoza Carl Gebhardt Gilles Deleuze Walter BenjaminBaroque Art

Doutor em Filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) E-mail henriquexavier0gmailcomORCIDhttpsorcidorg0000-0001-7325-0252

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HENRIQUE PICCINATO XAVIER

I - Preacircmbulos ao drama

O absolutamente infinito ou sejaa substacircncia (ou a natureza) nafilosofia de Espinosa eacute ordenadasegundo leis eternas universaise imutaacuteveis como nos afirma acada passo da Parte I da EacuteticaMas o que de fato satildeo estasleis eternas senatildeo a pura movi-mentaccedilatildeo da transformaccedilatildeo deauto-diferenciaccedilatildeo infinita de simesmo uma atividade infinita deuma essecircncia atuosa Lembremosda Proposiccedilatildeo 16 da parte I daEacutetica ldquoDa necessidade da natu-reza divina devem seguir infini-tas coisas em infinitos modos (istoeacute tudo que pode cair sob o inte-lecto infinito)rdquo (ESPINOSA 2015p 75) Assim a substacircncia pro-duz infinitas coisas sob infinitosatributos seus modos infinitos emodificaccedilotildees finitas Ademais sa-bemos que esta essecircncia atuosanatildeo age segundo um fim mas fluiabsolutamente livre pois a essecircn-cia atuosa da substacircncia conce-bida como causa sui radica na suacompleta liberdade afinal a subs-tacircncia eacute a causa de si ou seja suaexistecircncia exprime a si mesma eque por sua vez natildeo eacute limitadapor nada e nem por si mesmasendo ela mesma a abertura deuma transformaccedilatildeo infinita semteleologia e sem finalismo Defato pela relaccedilatildeo de imanecircncia dasubstacircncia infinita ateacute suas modi-

ficaccedilotildees finitas na natureza natildeohaacute nenhum evento excepcionalpara aleacutem de suas leis eternas porisso nela natildeo pode haver o mi-lagre como evento que se sairiada ordem da natureza pois nestecaso a natureza deixaria de sera natureza Exatamente por suaessecircncia atuosa radicar na maiscompleta liberdade em Espinosahaacute uma natureza absolutamenteinfinita que em sua imanecircncia eacutenecessariamente e por completosempre renovada ou seja temosuma natureza que apenas produzcoisas ideias e essecircncias singula-res

Se a passagem do infinito aofinito eacute deduzida como afirmar-mos a partir da Proposiccedilatildeo 16 daParte I da Eacutetica a operaccedilatildeo in-versa ou seja a passagem entreo finito (modos finitos) e o infinito(a substacircncia uacutenica) seraacute realizadapela siacutentese dinacircmica como lei deinteraccedilatildeo entre partes que natildeo se-gue uma finalidade preestabele-cida ou um modelo exterior masconstitui um infinito de relaccedilotildeesque produz a si mesmo em umaordenaccedilatildeo imanente este e umdos pontos centrais da filosofia deEspinosa Contudo ela nos co-loca diante do seguinte problemacomo agir individualmente nointerior da finitude sendo partede um fluxo dinacircmico e absoluta-mente infinito Como desde seuinterior natildeo apenas ser uma parte

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O DRAMA DA IMANEcircNCIA GEBHARDT DELEUZE BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DEESPINOSA

mas ao se-la tambeacutem jaacute tomarparte ativa neste infinito Cremosque o grande problema reside nadificuldade para entender a po-sitividade de um sistema abertoainda mais quando este e absolu-tamente infinito

Heinrich Woumllfflin em Renas-cenccedila e barroco1 (1888) e em Con-ceitos fundamentais da histoacuteria daarte2 (1915) textos fundantes dosestudos contemporacircneos acercada pintura claacutessica e barrocamostra-nos como o estilo barrocoproduz a liberaccedilatildeo das formas deseu isolamento o princiacutepio da re-presentaccedilatildeo barroca sendo a subs-tituiccedilatildeo da composiccedilatildeo de formasfechadas da arte claacutessica por ummovimento visual em direccedilatildeo a umaunidade entre parte e todo queem uma visualidade fluida dis-solve a anterior estrutura riacutegidados contornos das figuras do es-tilo claacutessico Woumllfflin afirma oentendimento da experiecircncia dapintura do XVII como um orde-namento que se transforma diantedos olhos do observador

Se consideramos a passagementre finito e infinito um dos gran-des desafios que a filosofia de Es-pinosa enfrenta como emendar

(ou seja curar) um melancoacutelicoproblema matemaacutetico epistemo-loacutegico e ontoloacutegico produzindoa continuidade na passagem en-tre noacutes seres limitados (ou sejamodos finitos da substacircncia infi-nita) e o absolutamente infinitoindivisiacutevel (ou seja a substacircnciauacutenica) A emenda da incomensu-rabilidade numeacuterica e imaginaacuteriado infinito iraacute garantir ao enten-dimento a conduccedilatildeo a uma novasiacutentese intelectual de um infinitopositivo este natildeo mais definidoem termos negativos indefinidosou potenciais (que se contentamem delinear a constacircncia ou in-constacircncia de relaccedilotildees truncadasna justaposiccedilatildeo de partes) massim como um absolutamente infi-nito real em ato positivo e indi-visiacutevel

Ao abordarmos portanto apassagem entre finito e infinito3

na filosofia de Espinosa e as afir-maccedilotildees de Woumllfflin acerca do bar-roco surge-nos a pergunta comoconceber ordem em uma naturezaque mescla a parte e o todo e pre-servar uma identificaccedilatildeo sem queesta se torne uma identidade es-tanque tanto na filosofia que ex-pressa o absolutamente infinito da

1 WOLFFLIN H (2005) Renascenccedila e barroco Satildeo Paulo Perspectiva2 WOLFFLIN H (1984) Conceitos fundamentais da Histoacuteria da Arte Satildeo Paulo Martins Fontes 19843 O presente artigo faz parte de um conjunto maior de trabalho e pesquisa Assim as questotildees aqui propostas

podem ser lidas em continuidade agraves questotildees trabalhadas no artigo lsquoEspinosa melancolia e o absolutamente infi-nito na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrsquo (XAVIER 2016) que tematiza a passagem entre finito e infinitona filosofia de Espinosa

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HENRIQUE PICCINATO XAVIER

substacircncia como no rompimentoda forma pela visualidade infini-tamente aberta do barroco Cre-mos que esta questatildeo constitui umdos problemas centrais de umaaproximaccedilatildeo criacutetica da filosofia deEspinosa agrave arte de sua eacutepoca Pararespondecirc-la iremos nos contrapora uma das mais ceacutelebres e histoacuteri-cas interpretaccedilotildees da relaccedilatildeo en-tre arte barroca e filosofia da ima-necircncia o drama da imanecircncia cu-nhado por Walter Benjamin Vere-mos que em uma perspectiva es-pinosana para aleacutem de um merodrama tal interpretaccedilatildeo seraacute umamelancoacutelica trageacutedia produzindouma teatralidade aporeacutetica quedilapida toda e qualquer positi-vidade para a ideia de imanecircnciaPara darmos conta deste dramaprecisaremos antes passar breve-mente por dois preacircmbulos duasinterpretaccedilotildees contemporacircneasuma de Gebhardt outra de De-leuze que relacionam a filosofiado seacuteculo XVII agrave arte seiscentista

Preacircmbulo I - Gebhardt Rem-brandt e Espinosa 1927

Em seu claacutessico texto intitu-lado Rembrandt e Espinosa CarlGebhardt em uma aproximaccedilatildeoentre a obra do filoacutesofo e a do pin-tor barroco afirma que

barroco daacute-lhes a inqui-etude de esboccedilos pri-vados de ordem e natildeofecha o ponto de vistaque devemos ter sobreeles a fim de que ainfinidade da obra dis-forme natildeo seja restrin-gida pela limitaccedilatildeo deuma forma (GEBHARDT2000 p106)

Gebhardt entende a composiccedilatildeoaberta barroca como algo privadode ordem cujo efeito produziriauma obra que natildeo seria restrin-gida pela forma fechada Prosse-guindo o autor extrapola tal ideiade matriz woumllffliniana ateacute chegaragrave radical conclusatildeo de que ldquoo Re-nascimento definiu a beleza comoa conspiraccedilatildeo das partes e a en-controu realizada na razatildeo natu-ral contudo a beleza do barrocoenquanto uma forma natildeo limi-tada eacute irracionalrdquo (GEBHARDT2000 p107) Gebhardt concluialgo sobre o barroco que buscaraacuteaproximar de Espinosa mas quecontradiz a proacutepria letra do filoacute-sofo De fato Gebhardt afirmaque algo por natildeo ser limitado seriairracional quando em Espinosaverificamos claramente o contraacute-rio pois de um lado a substacircn-cia ou o absolutamente infinito eacuteilimitado (em contraposiccedilatildeo ao li-mite que define o finito) mas eacute omais inteligiacutevel ou o mais racional

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O DRAMA DA IMANEcircNCIA GEBHARDT DELEUZE BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DEESPINOSA

de todos os seres (como vemos de-monstrado na Parte I da Eacutetica) suapotecircncia eacute livre porque determi-nada apenas por si mesma sendopor isso causa de si que flui na-turalmente por si mesma despro-vida de uma causa externa ou umlimite externo Por ser causa de siabsolutamente infinita eacute inteligiacute-vel pois a inteligibilidade decorredo conhecimento da causalidade ede suas accedilotildees ou seja a ausecircnciade limites conveacutem perfeitamentecom a razatildeo Contudo cremosque Gebhardt associa a deformi-dade e o irracionalismo agrave filosofiade Espinosa pois estaacute influenci-ado pela leitura de tradiccedilatildeo alematildeque vecirc em Espinosa uma opera-ccedilatildeo de dissoluccedilatildeo do singular noseio do absoluto como fora alme-jada pelos romacircnticos (Schellingprincipalmente) e que a partirde Hegel (inspirado em Bayle)toma a forma negativa de um acos-mismo4 Considerando na filoso-fia de Espinosa o absoluto comoindiferenciaccedilatildeo e indeterminaccedilatildeoabsolutas faltaria a essa filoso-fia um princiacutepio de identidadepara os modos finitos existindo

entatildeo realmente apenas a subs-tacircncia desprovida de qualidadese de diferenccedilas ndash portanto inde-terminada donde impensaacutevel ouirracional Em outras palavraso infinito eacute irracional e o finitoimpensaacutevel Gebhardt reproduzquase literalmente o texto hege-liano alegando que em Espinosaldquoabertura ao infinito da substacircn-cia acabaria com a possibilidadede existir identidadesrdquo e aindamais ele redobra essa afirmaccedilatildeopara o barroco de Rembrandt cujaobra seria uma arte espinosistaacosmista ldquoa categoria do bar-roco eacute a da substancialidade se-gundo a qual tudo o que eacute particu-lar possui apenas uma existecircnciarelativa tanto que a existecircncia ve-rificaacutevel pertence apenas agrave totali-dade infinita eis o que custo a di-zer (em relaccedilatildeo agraves coisas particu-lares) que soacute existe a substacircnciardquo(GEBHARDT 2000 p107)

4 Eacute vasta e complexa a criacutetica que Hegel faz a Espinosa contudo gostaria de insistir que um de seus pontos altoseacute identificaccedilatildeo da filosofia de Espinosa ao acosmismo Segundo Hegel na demonstraccedilatildeo espinosana da unidadeabsoluta da substacircncia o sujeito necessariamente se perderia se diluiria neste absoluto excluindo a possibilidadedo principio ocidental da individualidade Em grande parte a proacutepria dialeacutetica hegeliana e sua ontologia seriama tentativa de superar este dilema Nas Liccedilotildees sobre a histoacuteria da filosofia de 1825-26 Hegel escreve no paraacutegrafode abertura de seu artigo sobre Espinosa ldquoEsta profunda unidade de sua filosofia [de Espinosa] tal como ela foiexpressa na Europa ndash o espiacuterito o finito e o infinito idecircnticos em Deus e natildeo mais como um terceiro termo[]rdquoe mais adiante no mesmo paraacutegrafo ele explicita o acosmismo de Espinosa ldquoo modo como tal [definido por Espi-nosa] eacute justamente o natildeo-verdadeiro e somente a substacircncia eacute verdadeirardquo (HEGEL 1970 Leccedilons sur lrsquohistoire dela philosophie Paris Gallimard verbete sobre Espinosa)

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HENRIQUE PICCINATO XAVIER

Preacircmbulo II - Deleuze A dobraLeibniz e o barroco 1988

Gilles Deleuze na conclusatildeo de ADobra Leibniz e o Barroco segue eamplia uma ideia central no livrode Gebhardt de que obra de artebarroca opera a interaccedilatildeo ativa deuma continuidade entre o internoe o externo em um turbilhatildeo demovimentos que parece natildeo se de-limitar por nada nem por si sendocomo um gesto que se expandepara aleacutem de si mesmo em umamultiplicidade de relaccedilotildees simul-tacircneas5

O quadro eacute uma parte doinfinito que transborda damoldura a estaacutetua eacute umturbilhatildeo do rio infinitoque uiva por atraveacutes daigreja barroca e o espaccedilomesmo da igreja se cons-titui num quadro de altare uma estaacutetua natildeo eacute nadaoutro que a nave do infi-nito (GEBHARDT 2000p107)

Na versatildeo desdobrada de Deleuzeem uma das passagens mais belasdo livro

Se o Barroco instaurouuma arte total ou umaunidade das artes issose deu primeiramente emextensatildeo tendendo cadaarte a se prolongar emesmo a se realizar na se-guinte que a transbordaObservou-se que o Bar-roco restringiria frequen-temente a pintura e a cir-cunscreveria ao retaacutebulosmas isso ocorreria porquea pintura sai da sua mol-dura e realiza-se na es-cultura em maacutermore po-licromado e a esculturaultrapassa-se e realiza-sena arquitetura e a arqui-tetura a sua vez encon-tra na fachada uma mol-dura mas essa proacutepriamoldura desloca-se do in-terior e coloca-se em re-laccedilatildeo com a circunvizi-nhanccedila de modo que rea-liza a arquitetura no urba-nismo (DELEUZE 1991p187)

Ainda que o livro de Deleuze sejasobre Leibniz e o barroco a forccedilade tal ideia ndash que apresenta nas

5 Esta caracteriacutestica torna-se extremamente patente na produccedilatildeo artiacutestica seiscentista por exemplo no dramaem que palco fictiacutecio era posto no proacuteprio palco ou quando o auditoacuterio era incluiacutedo na cena (BENJAMIN W Ori-gem do drama barroco alematildeo Satildeo Paulo Brasiliense 1984) nas pinturas que possuem molduras pintadas dentroda sua representaccedilatildeo ou quando as proacuteprias molduras se tornam tatildeo importantes quanto as obras de arte por elascercadas no uso de espelhos da que refletem espaccedilos para aleacutem da proacutepria superfiacutecie da tela como nas Meninas deVelaacutezquez ou ainda na inacreditaacutevel dinacircmica dos movimentos em todas as direccedilotildees nas esculturas de Bernini

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O DRAMA DA IMANEcircNCIA GEBHARDT DELEUZE BENJAMIN E O INFINITO BARROCO DEESPINOSA

obras de arte seiscentistas umacausa atuosa que faz com que elasse expandam tanto internamentequanto externamente em um con-tiacutenuo como uma multiplicidadede relaccedilotildees ativas ndash iraacute abalar aargumentaccedilatildeo deleuziana acercade Leibniz Ora a tal ideia natildeonos afastaria de Leibniz pois aforccedila desta poeacutetica que nos levaa interpretaacute-la como expressatildeo daideia de um infinito em ato ou ab-solutamente infinito que nuncapoderia ser a decorrecircncia de umapredeterminaccedilatildeo mas se consti-tui exatamente como a proacutepria or-dem de interaccedilatildeo e de transfor-maccedilatildeo de uma realidade conce-bida em ato a partir de partes in-tra partes6 Natildeo haveriacuteamos nosaproximado de Espinosa De fatoa ideia de uma ordenaccedilatildeo comouma abertura para uma multi-plicidade simultacircnea se aproximamuito da imanecircncia em EspinosaAssim a despeito da intenccedilatildeo deuma leitura leibniziana do bar-roco vemos Deleuze em sua do-bradura necessariamente chegara uma conclusatildeo que o distancia

de Leibniz Neste sentido o espi-nosismo influecircncia inegaacutevel nasobras de Deleuze ainda que natildeoseja mencionado explicitamentefaz sentir-se em sua presenccedila ma-ciccedila natildeo teriacuteamos em sua conclu-satildeo um barroco espinosano Eisque na conclusatildeo de A dobra Leib-niz e o barroco apoacutes uma longaaproximaccedilatildeo sistemaacutetica entre aharmonia preacute-estabelecida das mocirc-nadas e a harmonia da muacutesicabarroca em acordosacordes mocirc-nadas tocircnicasdominantes Deleuzefaz o inesperado e rompe a basemais elementar do pensamento deLeibniz abre as mocircnadas Es-tas que necessariamente sempreestariam submetidas agrave clausuraem cujo interior se incluiria o uni-verso inteiro (natildeo podendo haverexistecircncia fora delas) ao seremabertas romperiam diretamentetanto com a filosofia de Leibnizquanto com a proacutepria sistemati-zaccedilatildeo entre a harmonia musical ea harmonia metafiacutesica que o au-tor acabara de propor SegundoDeleuze a seleccedilatildeo que as mocircna-das operam acabaria por desapa-

6 Tanto Espinosa como Leibniz operam com a ideia de absolutamente infinito ou infinito em ato uma ideia quese contrapotildee agrave noccedilatildeo de um infinito potencial e acumulativo ou seja composto pela adiccedilatildeo de partes discretas Oinfinito em ato faz com que as partes sejam partes intra partes em que cada parte se prolonga ao tomar parte emnovas relaccedilotildees com outras partes constituindo dinamicamente um novo indiviacuteduo ainda mais complexo (ou am-plo) o que tambeacutem exige que cada pequena parte seja constituiacuteda tambeacutem de partes intra partes ainda menoresPor um lado natildeo existe algo como um aacutetomo ou uma unidade discreta miacutenima por outro tudo estaria ao mesmotempo em uma relaccedilatildeo que constitui sempre algo maior lembremos como Espinosa define a proacutepria noccedilatildeo do li-mite como isso que podemos conceber no interior de outro ainda maior e que o envolve o que nos levaria ao limitede conceber a natureza como um uacutenico indiviacuteduo isso eacute a ldquofisionomia total do universordquo como escreve Espinosa aOldenburg (na carta 32) Contudo Espinosa demonstra que ambos limites (tanto o atocircmico como a natureza comoum uacutenico individuo) satildeo entes abstratos sem realidade concreta na imanecircncia da substacircncia ou melhor satildeo apenasauxila imaginari auxiliares imaginaacuterios ou entes de razatildeo de nossas operaccedilotildees intelectuais

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recer e assim a harmonia univer-sal perderia todo o seu privileacutegiode ordenaccedilatildeo e as dissonacircnciasagrave harmonia jaacute natildeo teriam de serldquoresolvidasrdquo e as divergecircncias po-deriam ser afirmadas em seacuteriesque escapariam agrave predetermina-ccedilatildeo e assim dissolver-se-ia a proacute-pria harmonia preestabelecida Se-gundo Deleuze

dir-se-ia que a mocircnada ocavaleiro de vaacuterios mun-dos eacute mantida semiabertacomo que por pinccedilasUma vez que o mundo eacuteagora constituiacutedo por seacute-ries divergentes (caosmos)ou que o lance de dadossubstitui o jogo do Plenoa mocircnada jaacute natildeo podeincluir o mundo inteirocomo um ciacuterculo fechadomodificaacutevel por projeccedilatildeomas ela se abre a uma tra-jetoacuteria ou espiral em ex-pansatildeo que se distanciacada vez mais de um cen-tro Jaacute natildeo se pode dis-tinguir entre [] o estadoprivado de uma mocircnadadominante (que produzem si mesma seus proacute-prios acordosacordes) eo estado puacuteblico das mocirc-nadas em multidatildeo (que

seguem linhas de melo-dia) mas as duas entramem fusatildeo numa espeacutecie dediagonal em que as mocirc-nadas interpenetram-semodificam-se [] consti-tuindo outras tantas cap-turas transitoacuterias A ques-tatildeo eacute sempre habitar omundo mas o habitat mu-sical [] e o habitat plaacutes-tico [] natildeo deixam sub-sistir a diferenccedila entre ointerior e o exterior en-tre o privado e o puacuteblicoeles identificam a varia-ccedilatildeo da trajetoacuteria e dupli-cam a monadologia comuma ldquonomadologiardquo (DE-LEUZE 1991 p 208)

Assim as mocircnadas satildeo desdobra-das em uma atividade muito proacute-xima agrave nossa concepccedilatildeo de ima-necircncia Leibniz ficaria horrori-zado mas a despeito de suas in-tenccedilotildees Deleuze estaacute correto poispara tornar a monadologia ade-quada ao que houve de mais radi-cal na arte do XVII esta teria quemudar a sua base mais elementara proacutepria mocircnada aproximando-se ao que com maior intensidadeprocurou negar a filosofia de Es-pinosa7

Neste turbilhatildeo imanente de

7 Cabe lembrar que em uma carta a Bourget Leibniz afirma que se natildeo fossem as mocircnadas sua filosofia cairiano espinosismo

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uma arte que cada gesto semqualquer predeterminaccedilatildeo trans-borda a si mesmo em um extremoimaginaacuterio onde o pintor se tornaurbanista e vice-versa eis queneste limite da imanecircncia ldquoas es-culturas satildeo aiacute verdadeiros perso-nagens e a cidade eacute um cenaacuteriosendo os proacuteprios espectadoresimagens pintadas ou esculturas Aarte inteira se torna socius espaccedilosocial puacuteblico povoado de baila-rinos barrocosrdquo (DELEUZE 1991p 187) como escrevera DeleuzeNesta arte em que a imagem deum desenho transborda-se na ar-quitetura naturalmente acaba-mos por atingir a proacutepria cidadeem sua realidade soacutecio-histoacutericaenquanto mais um limite destaldquorepresentaccedilatildeordquo poeacutetica Nestesentido temos uma arte que in-clui o espectador real em seu atopoeacutetico de transformaccedilatildeo (cria-ccedilatildeo) uma arte que natildeo se con-tenta em ser a mera representaccedilatildeode um modelo de beleza abstratoideal ou transcendente mas buscamesclar-se agrave proacutepria realidade vi-vida na e pela proacutepria cidade As-sim muito distante da busca deum ideal externo que transcendaa proacutepria realidade do artista te-mos uma arte que natildeo mais podeser tomada enquanto mera repre-sentaccedilatildeo ideal mas eacute efeito da eprocuraraacute voltar-se para a proacutepriarealidade em que toma parte nainterioridade de um discurso e de

uma accedilatildeo histoacuterica em pleno de-senvolvimento Assim chegamosa uma arte que sequer representaa realidade mas eacute parte de seuproacuteprio discurso social poeacuteticoe histoacuterico Contudo devemosnos lembrar que a multiplicidadedestes artistas-atores bailarinos-espectadores (e demais variaacuteveisatuantes) neste teatro vivo dan-ccedilam uma muacutesica imanente semuma harmonia preestabelecida quelhes fornecesse uma continuidadelinear e simples de suas tramasnarrativas

II - Drama da imanecircncia - Ben-jamin Origem do drama barrocoalematildeo 1928

O drama da imanecircncia seraacute figu-rado em uma das leituras filosoacute-ficas mais famosas e instigantesacerca do universo da arte seis-centista a Origem do drama bar-roco alematildeo de Walter Benjaminfazendo com que a multiplicidadesem predeterminaccedilatildeo da imanecircn-cia assuma um contorno comple-tamente contraacuterio ao espinosanopois esta seraacute tomada negativa-mente como um saldo de aleato-riedade e melancolia

Pretendemos mostrar como asprincipais ideias presentes nosdois preacircmbulos tambeacutem estatildeode certo modo articuladas e de-senhadas por Benjamin ao relacio-

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nar a imanecircncia a mais uma formade arte barroca o teatro Noprimeiro preacircmbulo vimos comoGebhardt concebe a imanecircncia ea visualidade da pintura barrocaenquanto formas natildeo limitadas eportanto irracionais No segundopreacircmbulo analisamos que paraDeleuze a imanecircncia e a muacutesicabarroca satildeo compreendidas comoaberturas para uma multiplici-dade de relaccedilotildees simultacircneas queem ato negam qualquer predeter-minaccedilatildeo proveniente de uma har-monia metafiacutesica transcendenteNesta uacuteltima parte analisaremoscomo tais teses encontram-se en-trelaccediladas na imanecircncia articu-lada entre irracionalidade e a ne-gaccedilatildeo de qualquer predetermina-ccedilatildeo transcendente que constituema chave da compreensatildeo do filoacute-sofo alematildeo acerca o luto que re-cobre a essecircncia mais iacutentima dodrama alematildeo seiscentista que en-contraraacute no solo histoacuterico sob o re-gime da imanecircncia um dos prin-cipais motivos se natildeo o proacutepriopara o desacerto do mundo

Benjamin conceberaacute a imanecircn-cia como um poccedilo de melancoliaque contrariamente agrave vitalidadeda proposta por Espinosa seraacute fi-gurada eminentemente na alego-ria de um cadaacutever assim con-duzimos nossa anaacutelise natildeo exa-tamente para uma obra de artemas para o interior de uma dasleituras mais melancoacutelicas acerca

do periacuteodo barroco onde vemoso drama da imanecircncia na expres-satildeo concebida Benjamin se trans-formar em uma pilha de corposA consequecircncia radical da assi-milaccedilatildeo da imanecircncia agrave cena te-atral alematilde seria o efeito quaseimediato da accedilatildeo histoacuterica de ummundo religiosamente incapaz deascender ao plano transcendentepois o misteacuterio da crocircnica cristatildeque abrangia a totalidade da his-toacuteria universal natildeo poderia maisser encontrado quando segundoBenjamin

a cristandade europeia es-tava dividida numa mul-tiplicidade de reinos cris-tatildeos cujas accedilotildees histoacuteri-cas natildeo mais aspiravama transcorrer dentro doprocesso de salvaccedilatildeo Oparentesco entre o dramabarroco e o misteacuterio eacuteposto em questatildeo pelo de-sespero radical que pare-cia ser a uacuteltima palavrado drama cristatildeo secula-rizado (BENJAMIN 1984p101)

De fato vaacuterios seacuteculos de cristia-nismo que precederam o XVII ti-nham no misteacuterio transcendenteda Graccedila Divina a garantia do seusentido uacuteltimo por uma histoacuteriauniversal ideal e revelada que nos

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conduziria em direccedilatildeo a nossa re-denccedilatildeo e assim todas as accedilotildeesdas mais simples na vida cotidi-ana ateacute as decisotildees mais contun-dentes e complicadas do Estadoteriam os seus papeacuteis justificadosainda que em um horizonte paraaleacutem de uma histoacuteria empiacuterica eprincipalmente para aleacutem do en-tendimento humano SegundoBenjamin o drama alematildeo aocontraacuterio do barroco literaacuterio ibeacute-rico teria se perdido inteiramentena desesperanccedila da condiccedilatildeo ter-rena e mesmo a renascenccedila comseu intenso desenvolvimento hu-manista em comparaccedilatildeo agrave condi-ccedilatildeo alematilde natildeo apareceria comouma eacutepoca increacutedula de paga-nismo mas como uma era profanae de grande liberdade miacutestica e re-ligiosa (BENJAMIN 1984 p 102)

Vemos entatildeo configurar-se noXVII alematildeo a origem do dramada imanecircncia expressatildeo cunhadapor Benjamin como a imanecircnciaque em si mesma nunca poderiaser aceita como um bem mas simentendida como um castigo neces-saacuterio enviado por Deus devido aomais antigo dos pecados o ori-ginal cometido por Adatildeo Nestaperspectiva a imanecircncia seria acondenaccedilatildeo de uma vida longe deDeus o personagem barroco re-baixado agrave mera condiccedilatildeo humanaseria completamente incapacitadoda existecircncia sacra e mesmo omundo que o cerca estaria aban-

donado por Deus constituindo-se como uma physis cega a proacute-pria natureza em um estado depura aleatoriedade Eis que maisbaixo que os animais que habita-riam um estado de ignoracircncia ino-cente restaria ao personagem bar-roco apenas o martiacuterio da culpa dehaver se perdido de Deus O bar-roco teria se perdido das leis queordenariam a vida mundana es-sas completamente derivadas deuma causa transcendente isto eacuteda vontade divina Leis que nainterpretaccedilatildeo de Benjamin fariamcom que a accedilatildeo humana carecessede qualquer poder efetivo e tam-beacutem de qualquer contingecircnciapois todas as accedilotildees seriam no maacute-ximo um produto secundaacuterio se-guindo a predeterminaccedilatildeo da von-tade divina no maacuteximo as suasaccedilotildees teriam um papel acessoacuteriocomo no ocasionalismo de Male-branche Esta causalidade trans-cendente que fornecera o sentidocomum a todos os seres humanosseria irreparavelmente fraturadanum seacuteculo XVII reformado emque o avanccedilo da ideia de imanecircn-cia irremediavelmente se propa-garia com sua exigecircncia de umavida em todos sentidos terrena eprofana

A imanecircncia nos forccedilaria aabandonar a imagem da ordemuniversal e predeterminada a par-tir de um aparato transcendenteEssa seria a velha imagem de or-

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dem transcendente que seria di-lapidada em prol de uma novaordem imanente como nos de-monstra a filosofia de Espinosapor um lado com esta na ausecircn-cia de qualquer transcendecircnciateriacuteamos que abandonar a ideiade uma predeterminaccedilatildeo em umavontade divina assim como a pos-sibilidade de que a Terra se es-pelhasse em leis divinas e tam-beacutem abandonar qualquer possiacute-vel redenccedilatildeo escatoloacutegica extrater-rena aleacutem disto a proacutepria ciecircn-cia que conceberia uma naturezahierarquizada dividida nas opo-siccedilotildees reais de categorias e gecircne-ros herdadas de Aristoacuteteles quepercorreriam toda a Idade Meacute-dia torna-se apenas um aparatoimaginaacuterio assim como os con-ceitos transcendentais como uni-dade ser verdade etc capazesde identificar qualquer objeto ourealidade tomados apenas comoentes de imaginaccedilatildeo e por fimmas natildeo por uacuteltimo em sua listade efeitos hereacuteticos qualquer fi-nalismo no seio da natureza de-veria ontologicamente ser aban-donado Como resultado da ima-necircncia chegariacuteamos agrave anulaccedilatildeo dequalquer teologia e mesmo tele-ologia Assim instala-se o malverdadeiro neste mundo barrocoreformado pois julgando o sen-tido da imanecircncia a partir dos en-raizados paracircmetros imaginaacuteriosda antiga ordem transcendente

fazemos da imanecircncia a imagemde algo absolutamente caoacutetico esob tais termos o drama da ima-necircncia barroca eacute necessariamentecompreendido como o efeito dacataacutestrofe de uma natureza abso-lutamente aleatoacuteria e desprovidade sentido E segundo Benjamin

se e homem religioso doBarroco adere tanto aomundo eacute porque se sentearrastado com ele em di-reccedilatildeo a uma catarata Obarroco natildeo conhece ne-nhuma escatologia o queexiste por isso mesmo eacuteuma dinacircmica que junta eexalta todas as coisas ter-renas antes que elas se-jam entregues agrave consuma-ccedilatildeo (BENJAMIN 1984 p89)

Contudo veremos que a grandecataacutestrofe melancoacutelica do dramada imanecircncia natildeo estaacute na ima-necircncia mas em um contraditoacute-rio sentimento barroco que porum lado exclui a transcendecircn-cia e por outro negativamenteainda a tem como um impossiacute-vel horizonte desejado Nestedrama a imanecircncia contraditori-amente apenas existe em relaccedilatildeo aaquilo que lhe eacute exterior ou sejaesta se apresenta como negaccedilatildeo datranscendecircncia Assim a imanecircn-

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cia eacute dada exclusivamente pelaperspectiva saudosista da trans-cendecircncia perdida Natildeo por acasoesta dramaturgia tem a imanecircnciaalegorizada no emblema do cadaacute-ver e a base de sua trama ocorresob o sentimento do luto diriacutea-mos que seria o luto de haver per-dido a proacutepria sacralidade trans-cendente Assim a vida nestedrama natildeo excederia ao estado deluto da lembranccedila do corte como divino o que provocaraacute o rei-nante sentimento de melancolia ea obsessatildeo pelo cadaacutever que mo-vem o drama alematildeo8 A proacuteprianoccedilatildeo da natureza imanente comouma physis cega e desgraccedilada poisaleatoacuteria soacute pode ser compreen-dida como a ideia de uma ima-necircncia incompleta e constituiacutedaapenas como a carecircncia da velhaordem predeterminada pela von-tade ou por um ideal transcenden-tes9 Ou seja a ordem imanenteeacute tida por aleatoacuteria pois a com-plexidade de sua ordem eacute a aber-tura para uma multiplicidade si-multacircnea que se desdobra no novoe excede a perspectiva restritae uniacutevoca de uma linha teleoloacute-gica desde sempre e para semprepredeterminada pela velha ordem

transcendente Por outro ladopara se encarar a imanecircncia com-pleta ou seja em sua plena po-sitividade seria preciso realmenteabandonar a velha ordem trans-cendente e natildeo fazer como a con-traditoacuteria maneira do drama bar-roco alematildeo que a nega somentepara interiorizaacute-la disfarccedilada soba forma de uma imanecircncia in-completa e melancoacutelica Con-tudo para a religiosidade aindaque reformada do barroco ale-matildeo seria quase impossiacutevel acei-tar um Deus realmente imanenteque natildeo fosse provido do atributohumano da livre escolha e da von-tade para realizar uma accedilatildeo lem-bremos como Espinosa na parte Ida Eacutetica demonstra como na ima-necircncia a espontaneidade da accedilatildeodivina na verdade segue de umanecessidade absoluta nunca preacute-refletida nem premeditada nemdecidida segundo uma escolha ar-bitraacuteria e esta seraacute a perfeiccedilatildeode uma accedilatildeo que decorre da ne-cessidade intriacutenseca da identidadeimanente entre essecircncia e existecircn-cia entre natureza naturante e anatureza naturada

8 Lembremos que em sua argumentaccedilatildeo Benjamin trabalha a gravura Melencolia I de Duumlrer como uma anteci-paccedilatildeo da amputaccedilatildeo do espiacuterito barroco expresso pelo drama da imanecircncia

9 Acompanhando Espinosa veremos justamente o contraacuterio do que propotildee o drama alematildeo pois se levarmosa rigor a possibilidade do mundo ser criado e ordenado por uma causa voluntaacuteria que lhe seja externa aleacutem deinuacutemeros problemas teoloacutegicos que restringem a proacutepria perfeiccedilatildeo de Deus teriacuteamos uma natureza desregrada econtingente como demonstra Marilena Chaui em lsquoOntologia do necessaacuteriorsquo quarto item do capiacutetulo 6 do Nervurado Real (CHAUI 1999 pp 901-918)

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Lembremos que para Espinosaum dos momentos cruciais davida eacutetica eacute afastar a tristeza so-bretudo a mais terriacutevel de todasas tristezas a melancolia e quepara ele ldquonatildeo haacute nenhuma coisaem que o homem livre pense me-nos do que na morte e sua sa-bedoria natildeo eacute uma meditaccedilatildeo so-bre a morte mas sobre a vidardquo(ESPINOSA 2015 p 483 EacuteticaIV P67) Natildeo poderia ser maiora distacircncia em relaccedilatildeo agrave concep-ccedilatildeo benjaminiana na qual a ima-necircncia eacute transformada na obses-satildeo com a morte sequer tratando-se da obsessiva reflexatildeo sobre ofim da vida mundana e os seusdesiacutegnios futuros no eterno aleacutemtuacutemulo (Inferno Purgatoacuterio e Pa-raiacuteso) mas como uma operaccedilatildeoque consiste em encarar a vida emsi mesma em seu estado presentee terreno jaacute como a encarnaccedilatildeoda morte Neste sentido o bar-roco de Benjamin sempre contraacute-rio agrave filosofia de Espinosa nuncaseraacute uma meditaccedilatildeo sobre a vidae ldquose os personagens do dramabarroco morrem [] se eles satildeodestruiacutedos natildeo eacute para que ascen-dam agrave imortalidade mas que as-cendam agrave condiccedilatildeo de cadaacuteverrdquo(BENJAMIN 1984 p241) As-sim em oposiccedilatildeo agrave vitalidade daconcepccedilatildeo espinosana o dramaalematildeo em sua imanecircncia nega-tiva produziria inuacutemeras coisasque ateacute entatildeo natildeo tinham entrado

em qualquer estruturaccedilatildeo artiacutes-tica como por exemplo as di-versas praacuteticas de martiacuterios cor-porais enumeradas por Benjaminnas quais fica expliacutecito o prazerda crueldade do dramaturgo e daspersonagens (que se deliciam como despedaccedilar da carne humana)Pois aos personagens de uma na-tureza desgraccedilada restaria da ima-necircncia somente o peso de seuscorpos cabendo-lhes apenas o lu-dismo sadomasoquista do martiacute-rio Dentre os diversos exem-plos citados por Benjamin saltaaos olhos a tentativa impossiacutevelde ascender a alguma significa-ccedilatildeo sacra por meio da ldquodissecaccedilatildeoanatocircmica em que as diversas par-tes do corpo satildeo numeradas comuma insofismaacutevel alegria na cru-eldade desse atordquo (BENJAMIN1984 p242) Pois se o corpohumano enquanto um organismovivo (em sua opulecircncia imanente)natildeo cabe na estreiteza de um iacuteconesimboacutelico que prometeria uma as-censatildeo as suas partes amputa-das classificadas e inertes talvezcoubessem Assim a imagem docorpo humano despedaccedilado seraacutemais uma das alegorias da ldquovidardquobarroca que no mais primoroso esaacutedico dilaceramento apenas pro-duz a dispersatildeo do corpo em umainuacutetil fragmentaccedilatildeo classificatoacuteriaem que inumeraacuteveis cortes apenasreconduzem agrave falta de sentido ao

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nada ao vazio10

lsquoIn Occasionemrsquo emblema CXXI do livro Emblemata de Andrea Alciato ediccedilatildeo de 1548

10Mais ainda para Benjamin o estado de exceccedilatildeo na poliacutetica seria fruto desta imanecircncia negativa que naturalmentelevaria agrave contraditoacuteria soberania dos tiranos Pois uma vez que a realidade natildeo possui uma ordem ao soberanoseria designada uma tarefa impossiacutevel dar ordem a isso que essencialmente eacute necessariamente desprovido delaAssim restar-lhe-ia um contraditoacuterio e inexoraacutevel papel tambeacutem de maacutertir pois sendo o soberano parte destamesma natureza as suas accedilotildees tambeacutem seriam desprovidas de ordem e somente pela violecircncia ele estabeleceriauma ordem social que contudo seria apenas a contingecircncia melancoacutelica redobrada Por outro lado em Espinosaa democracia eacute o mais natural dos regimes sendo explicado como um fruto da proacutepria imanecircncia Assim umdesdobramento futuro a ser desenvolvido por nossa pesquisa tem como horizonte a compreensatildeo da positividadeda imanecircncia na poliacutetica Gostariacuteamos de seguir as demonstraccedilotildees de como uma ontologia imanente eacute a causa daestruturaccedilatildeo da democracia real entendida por Espinosa como o mais perfeito dos regimes poliacuteticos e assim daruma resposta agrave equivocada aproximaccedilatildeo entre imanecircncia e estado de exceccedilatildeo

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Vimos como a experiecircncia hu-mana regulada pela imaginaccedilatildeoao buscar na natureza uma or-denaccedilatildeo preestabelecida linear euniacutevoca (como no drama de Ben-jamin) ao confrontar-se com amultiplicidade de uma ordena-ccedilatildeo imanente parece nos conde-nar a viver em um labirinto decontingecircncias de muacuteltiplas cau-sas simultacircneas em muacuteltiplos pla-nos de acontecimentos que estatildeoainda por cima em constantesmutaccedilotildees11 Como se estiveacutesse-mos obrigados a viver agrave mercecircda velha imagem feminina da for-tuna12 uma das alegorias mais fa-mosas da literatura barroca queno girar em falso de sua rodade uma mesma maneira arbitraacute-ria distribui e tira bens Con-tudo a Eacutetica de Espinosa vemjogar luz e reforccedilar o contrastedesta imagem desafortunada dolabirinto de contingecircncias produ-zindo um claro contraste em queo proacuteprio labirinto se desfaz aoexpor frente agrave multiplicidade doente absolutamente infinito umaacuterduo e complexo embora inequiacute-voco caminho rumo ao seu enten-dimento A Eacutetica sua obra maacute-xima nos fornece um claro exem-plo de como penetrar na ordem

imanente desta multiplicidade emato que imaginariamente tantoinspira o medo de nossa fragi-lidade frente agrave fortuna Pene-trar neste caminho implica ementender a proacutepria liberdade deuma natureza em um movimentoconstante de auto-diferenciaccedilatildeoou seja natildeo se busca simplificaacute-la ou estagnaacute-la mas reconhecera ordem desta transformaccedilatildeo in-cessante que apenas imaginaria-mente pode ser tomada enquantoaleatoriedade Entender acimade tudo seria um respeito ao queirredutivelmente eacute sempre com-plexo (e nunca poderia ser redu-zida a uma perspectiva simplesem uma linearidade predetermi-nada) Entender a sua complexi-dade eacute deslocar-se movimentar-se expandir-se e no interiordesta multiplicidade eacute conscien-temente ligar-se ao mundo o queao mesmo tempo significa agir ra-cionalmente pois eacute encontrar apotecircncia da mente humana imersano conhecimento da ordem fixa eimutaacutevel da natureza

Neste caso tambeacutem natildeo pode-mos cair no equiacutevoco da maacute e su-perficial interpretaccedilatildeo acerca doque seria ldquoa ordem fixa e imu-taacutevel da naturezardquo que nos leva-

11 Como Espinosa escreve na Eacutetica no escoacutelio da Proposiccedilatildeo 42 da Parte V ldquoCom efeito o ignorante aleacutem de seragitado pelas causas externas de muitas maneiras e de nunca possuir o verdadeiro contentamento do acircnimo vivequase inconsciente de si de Deus e das coisas[]rdquo (ESPINOSA 2015 p 579)

12 Como ilustrada no famoso emblema CXXI lsquoIn Occasionemrsquo do livro Emblemata de Andrea Alciato cuja pri-meira publicaccedilatildeo eacute de 1531

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ria a crer em um determinismo ndashou como se diz no XVII um fata-lismo ndash que impossibilitaria conce-ber a liberdade no interior da fi-losofia de Espinosa13 muito pelocontrario quando nos voltamoscom o filoacutesofo para a ordem e co-

nexatildeo necessaacuterias que definem anatureza imanente e que determi-nam a inteligibilidade de sua com-plexa atividade de transformaccedilatildeovemos que nesta se radica a maiscompleta liberdade

Referecircncias

ALCIATO A (1548) Emblemata PDF digital da ediccedilatildeo de 1548 obtidona internet

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na geometria dos indivisiacuteveis do seacuteculo XVIIrdquo In Cadernos Espi-nosanos nordm 35 pp 295-347

Recebido 02072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

13 O equiacutevoco imaginaacuterio de um fatalismo apenas ocorre quando supomos a ordem natural como linear e aliberdade como escolha voluntaacuteria em vista de fins

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225586

Haacute Abstraccedilatildeo de Si na Origem de Toda a Abstraccedilatildeo naFilosofia de Espinosa

[Is There an Auto-Abstraction within All Abstraction in Spinozarsquos Philo-sophy]

Rafael Arcanjo Teixeira Cristiano Novaes de Rezende

Resumo Inserido no contexto histoacuterico de criacuteticas agrave abstraccedilatildeo Espinosaretoma o tom de sua eacutepoca e faz severas advertecircncias contra as abstraccedilotildeesEntretanto a criacutetica espinosana difere de outras da mesma eacutepoca Acredi-tamos que a distinccedilatildeo de Espinosa ocorre porque para ele a abstraccedilatildeo natildeo eacuteapenas uma metodologia epistecircmica (o ato de separar e fragmentar os obje-tos do conhecimento) nem eacute o estabelecimento arbitraacuterio de princiacutepios paraconhecimento por meio da interferecircncia da vontade no intelecto Nossa hipoacute-tese eacute que para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorre quando a forccedila mental produtivanatildeo se encontra enquanto tal em outros termos quando a mente natildeo temconsciecircncia do seu proacuteprio produzir mdash eacute precisamente isso o que chamamosde abstraccedilatildeo de si Nosso artigo visa abordar essa hipoacutetese e apontar comoo conceito de abstraccedilatildeo de si pode auxiliar na interpretaccedilatildeo de algumas tesesespinosanas Ao final deste artigo analisaremos como o conceito de abstra-ccedilatildeo de si oferece uma chave interpretativa para a hipoacutetese-retoacuterica que abre oTratado Teoloacutegico-PoliacuteticoPalavras-chave abstraccedilatildeo Espinosa

Abstract Spinozarsquos criticism of abstraction retakes the common toneof his own time warning against etc Nevertheless the spinozistic critiquedifferentiates considerably from his contemporaries whereas he also criticizesome of the philosophers that stand against the concept of abstractions Webelieve that Spinozarsquos distinctiveness occurs because he consider abstractionnot only as some epistemic methodology (the act of select divide anddisintegrate the objects of knowledge) neither the arbitrary foundation ofprinciples for knowledge through the interference of Will in the Intellect Butrather as the productive mental force when it is not within itself thereforewhen the productive mental force isnrsquot what it should be as it naturally isIn other words when the mind has not the counscioness of its own work mdashitrsquos precisely this what we call auto-abstraction Moreover our article aimsto approach this hypothesis and elaborate how exactly the concept of self-abstraction can help us understand some of the spinozian thesis so that wemay focus on the rhetorical hypothesis that opens the Theological-PoliticalTreatiseKeywords abstraction Espinosa

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiaacutes (UFG) Atualmente realiza poacutes-graduaccedilatildeo latu sensu em Do-cecircncia do Ensino Superior (pela FARA - Faculdade Araguaia) Tambeacutem eacute membro do Programa de Direitos Humanos daPUC-Goiaacutes (extensatildeo) E-mail rarcanjo32gmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-5359-885X

Professor da Faculdade de Filosofia da UFG Doutor em filosofia pela USP E-mail cnrz1972gmailcom ORCID

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Em uma conceituaccedilatildeo geral abstrairconsiste em considerar a parte predi-cativa de uma sentenccedila separada desua parte nominal Em outras pa-lavras trata-se de tomar os predica-dos de maneira isolada desconside-rando que por definiccedilatildeo um predicadovincula-se a outra coisa sobre a qualele predica algo Podemos tambeacutemrecorrer agrave etimologia para compreen-dermos o que eacute uma abstraccedilatildeo Apalavra abstraccedilatildeo eacute a traduccedilatildeo por-tuguesa para o termo latino abstrac-tio que eacute originaacuterio de abstrahere eeste por sua vez eacute fruto da junccedilatildeodo prefixo ab (que tem o sentido deafastamento e distacircncia mdash como nocaso de abstinecircncia) com trahere (quesignifica puxar como no caso de ex-traho mdash extrair) Assim abstrahereem sua literalidade significa puxarpara longe separar e extrair algo dotodo ao qual pertence Abstracte eacute oque foi separado isolado ou afastadoAinda no niacutevel da linguagem valelembrar que os gramaacuteticos dividemos substantivos em abstratos e con-cretos Joseacute Vicente Ceacutesar comentaque satildeo considerados abstratos aque-les substantivos que natildeo subsistemsozinhos ndash em geral satildeo qualidadesde seres concretos como amor jus-ticcedila beleza etc Para Ceacutesar expres-sotildees como ldquoa bondade em pessoardquo satildeotentativas de concretizar substantivos

que por natureza satildeo abstratos (CEacute-SAR J V 1958 p 26) Ao con-traacuterio dos substantivos concretos quese referem agraves coisas cuja a existecircn-cia eacute autocircnoma os substantivos abs-tratos andam ldquoencostadosrdquo em sujei-tos (CEacuteSAR J V 1958) Domin-gos de Azevedo na Gramaacutetica Naci-onal de Lisboa classifica como abs-trato o ldquosubstantivo que designa pro-priedades ideais comuns a muitos in-diviacuteduos como virtude honra []e os adjetivos e os infinitos dos ver-bos substantivados pelo artigo expri-mindo qualidades ou sujeito indeter-minado como o belo o grande oviverrdquo (1889 p 43-4 apud idemp 28) Ceacutesar voltando-se maispara o terreno da filosofia comentaque na tradiccedilatildeo aristoteacutelica o ser en-quanto substacircncia (οὐσία) representaaquilo que natildeo depende ou natildeo de-corre de outro para ser e consequen-temente a substacircncia eacute a regiatildeo doconcreto Em contrapartida os aci-dentes se dividem em trecircs grupos (I)os que satildeo concretos (II) os que os-cilam conforme o uso e (III) os quesempre satildeo abstratos1 (CEacuteSAR J V1958) De acordo com Ceacutesar perten-cem ao primeiro grupo as categorias(ou predicamentos) que podem exis-tir sem estarem necessariamente vin-culadas a um sujeito a dizer lugar(ποῦ ubi) tempo (ποτέ quando) es-

1 Ceacutesar comenta que no caso da quantidade haacute uma oscilaccedilatildeo entre a gramaacutetica e a filosofia as gramaacuteticas tomam a quan-tidade como um substantivo concreto enquanto os filoacutesofos podem tomaacute-la em sentido transcendental e por isso de maneiraabstrata No caso o autor toma a posiccedilatildeo gramatical

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

tado (κεῖσθαι situs) haacutebito (ἔχεινhabere) Por sua vez encontram-seno grupo dos oscilantes a accedilatildeo (ποι-εῖν actio) e a paixatildeo (πάσχειν pas-sio) Finalmente quantidade (ποσόνquantitas) qualidade (ποιόν quali-tas) e relaccedilatildeo (πρός τι relatio) satildeopredicamentos abstratos uma vez queeles estatildeo intimamente vinculados aalgo (a um sujeito)2 A partir doque foi dito podemos observar queo termo abstraccedilatildeo geralmente apareceassociado (I) agrave ideia de impossibi-lidade de existecircncia concreta e autocirc-noma da coisa referida (II) agrave substan-tivaccedilatildeo daquilo que geralmente (ouconstantemente) eacute um adjetivo e (III)ao processo de isolar o predicado deum sujeito

Feitas essas consideraccedilotildees de acircm-bito geral faz-se necessaacuterio para ofim proposto neste artigo uma brevedigressatildeo a respeito do debate sobreas abstraccedilotildees no seacuteculo XVII Noacutes to-maremos dois exemplos paradigmaacuteti-cos Antoine Arnauld e Pierre Nicolecom a sua Logique e Francis Baconcom o Novum Organum Natildeo entra-remos nas minuacutecias dos textos dessesautores jaacute que antes de entrarmos nasanaacutelises do texto espinosano preten-demos fornecer ao leitor apenas umvislumbre amplo da discussatildeo seis-centista acerca da abstraccedilatildeo

Ao voltarmos nosso olhar para o

seacuteculo XVII vemos que o termo abs-traccedilatildeo possui sentidos diversos An-toine Arnauld e Pierre Nicole ex-plicam por exemplo no capiacutetulo Vda Logique que graccedilas agrave parca ex-tensatildeo de nosso espiacuterito soacute pode-mos compreender as coisas compos-tas de forma perfeita ldquose as conside-rarmos por partes e segundo os diver-sos aspectos que elas podem assumirrdquo(2016 [1683] p 81) e concluem ldquoeacuteisso que em geral se chama conhecerpor abstraccedilatildeordquo (idem ibidemndash itaacuteli-cos nossos) Deste modo para osjansenistas a abstraccedilatildeo eacute uma espeacuteciede metodologia que possibilita a com-preensatildeo das coisas complexas3

Arnauld e Nicole oferecem trecircsexemplos sobre essa maneira deldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo (I) a ana-tomia (II) a geometria e (III) o co-gito mdash que para noacutes eacute o mais abs-trato de todos Para eles o primeirocaso natildeo eacute uma abstraccedilatildeo propria-mente dita de fato o corpo eacute formadopor partes distintas uma das outrase seria impossiacutevel adquirir conheci-mento do corpo caso natildeo tomaacutessemosas suas partes separadas umas das ou-tras O exemplo anatocircmico eacute corres-pondente para os jansenistas ao casoda aritmeacutetica ldquotoda a aritmeacutetica sefunda tambeacutem nistordquo (idem p 82)Levando-se em conta que natildeo preci-samos de nenhuma capacidade espe-

2 Natildeo nos interessa aqui questionar a validade do comentaacuterio de Ceacutesar a respeito da loacutegica aristoteacutelica antes noacutes o citamosporque ele apresenta de maneira sucinta o sentido geral que o termo ldquoabstraccedilatildeordquo assume

3 Vale ressaltar que a definiccedilatildeo que Arnauld e Nicole oferecem para o ldquoconhecer por abstraccedilatildeordquo manteacutem-se fiel agrave origemetimoloacutegica do termo abstraccedilatildeo que traz em si a ideia de separaccedilatildeo e extraccedilatildeo

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cial ou de grande esforccedilo para con-tar os nuacutemeros pequenos ldquotoda a arteconsiste em contar por partes aquiloque natildeo poderiacuteamos contar pelo todordquo(idem ibidem) Destarte ao lidarmoscom nuacutemeros grandes eacute preciso fa-zer na aritmeacutetica o que o anatomistafaz com o corpo decompor em partese consideraacute-las uma a uma em sepa-rado Isso torna evidente que no casoda metaacutefora anatocircmica Arnauld e Ni-cole tomam a abstraccedilatildeo como meto-dologia que procede em ordem analiacute-tica O segundo exemplo dado por Ar-nauld e Nicole eacute o dos geocircmetras quesegundo eles para melhor conheceros corpos extensos partem primeira-mente de apenas uma das trecircs di-mensotildees o comprimento (chamando-os de linhas) depois os consideramsegundo duas dimensotildees o compri-mento e a largura (chamando-os desuperfiacutecies) e por fim consideramos corpos extensos em todas as trecircsdimensotildees comprimento largura eprofundidade (chamando-os de soacuteli-dos ou corpos) (idem ibidem) Em-bora agrave primeira vista o meacutetodo ex-posto neste segundo exemplo pareccedilapossuir alguma coisa da ordem sin-teacutetica mdash jaacute que se procede do maissimples ao mais complexo ordem de

composiccedilatildeo mdash os jansenistas expli-cam que os geocircmetras ldquonatildeo supotildeemde maneira nenhuma que haja linhassem larguras ou superfiacutecies sem pro-fundidades tatildeo somente acreditamque se pode considerar o compri-mento sem prestar atenccedilatildeo agrave largura[]rdquo (idem p 83) O que ocorreno caso dos geocircmetras eacute tambeacutemuma separaccedilatildeo do complexo em par-tes ou melhor eacute pelo menos no mo-mento inicial uma desconsideraccedilatildeodos fatores de complexidade mdash as in-tersecccedilotildees entre as dimensotildees ParaArnauld e Nicole eacute essa metodologiaque torna o espiacuterito ldquocapaz de melhorconhecerrdquo (idem ibidem)4

O terceiro exemplo oferecido porArnauld e Nicole eacute mais peculiar eem nossa leitura eacute o que mais pro-priamente pode ser qualificado comoabstraccedilatildeo5 Trata-se do cogito univer-salizado para todos os seres pensan-tes Arnauld e Nicole explicam que seeu reflito sobre o fato de estar a pen-sar e neste caso sou eu o que pensaposso a partir de um processo de abs-traccedilatildeo ldquoaplicar-me na consideraccedilatildeode uma coisa que pensa sem prestaratenccedilatildeo ao facto de ser eu [] eue aquele que pensa sejam a mesmacoisardquo (idem p 84) Neste caso haacute

4 Aqui assim como no caso da anatomia e da aritmeacutetica a abstraccedilatildeo eacute tomada como um meacutetodo de aprendizagem Noprimeiro caso o meacutetodo de decompor em partes menores eacute adequado graccedilas agrave incapacidade da mente e agrave natureza dos objetosque satildeo compostos por partes No segundo caso o meacutetodo facilita o conhecimento de coisas que em sua concretude natildeo exis-tem separadas umas das outras Vale ressaltar que a maneira em que Arnauld e Nicole tomam a geometria aqui natildeo permiteque ela seja concebida como ciecircncia puramente conceitual Ao afirmar que no real natildeo haacute linhas sem largura Arnauld e Nicolevinculam geometria e extensatildeo aliaacutes o proacuteprio conceito de linha (sem largura) eacute tomado como uma abstraccedilatildeo que tem papelmeramente metodoloacutegico e didaacutetico

5 Isto eacute segundo uma perspectiva espinosana

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uma cisatildeo imposta entre o pensantee o pensamento cisatildeo que se mani-festa na passagem da ideia do ldquoeupensordquo para a consideraccedilatildeo ldquode umacoisa que pensardquo Essa cisatildeo permitea generalizaccedilatildeo do cogito como ex-plica Arnauld e Nicole ldquoassim a ideiaque eu conceberia de uma pessoa quepensa poderia representar-me natildeo so-mente a mim mas a todas as outraspessoas que pensamrdquo (idem ibidem)Neste caso a abstraccedilatildeo opera por ci-satildeo e generalizaccedilatildeo Isso eacute possiacutevelporque nas palavras dos jansenistasldquoperante uma mesma coisa que temdiferentes atributos pensamos numdeles sem pensar nos outros aindaque haja entre eles uma tatildeo-soacute distin-ccedilatildeo de razatildeordquo (idem p 83) A re-ferecircncia agrave distinccedilatildeo ldquotatildeo-soacute de razatildeordquoeacute importante pois no cogito natildeo eacutepossiacutevel separar realmente o pensantee o pensamento (da mesma maneiraque natildeo eacute possiacutevel separar um passe-ante do passear) No entanto eacute pos-siacutevel transportar o cogito para umainstacircncia abstrata e generalizante acoisa que pensa Esse transporte soacutepode ocorrer graccedilas agrave cisatildeo ldquotatildeo-soacute derazatildeordquo entre o eu pensante e o pen-

samento isso eacute soacute pode ocorrer namedida em que eacute desfeita a autorre-ferecircncia presente no ldquoeu pensordquo pormeio da extraccedilatildeo do ldquoeurdquo mdash o que Ar-nauld e Nicole chamam de desconsi-derar alguns atributos de uma coisa6Assim o que a Loacutegica de Port-Royalchama de abstraccedilatildeo eacute uma metodolo-gia que opera por meio da decompo-siccedilatildeo do concreto em conceitos cadavez mais elementares e gerais pro-cesso que possibilita a ida do singu-lar concreto ao universal Por vezesos jansenistas parecem misturar o meacute-todo analiacutetico com o processo de abs-traccedilatildeo Ainda assim nos trecircs exem-plos dados por Arnauld e Nicole parao ldquoconhecer por partesrdquo haacute menccedilotildeesa uma suposta ampliaccedilatildeo do conhe-cimento no primeiro exemplo eacute ditoque natildeo eacute possiacutevel possuir um conhe-cimento da anatomia ou realizar caacutel-culos aritmeacuteticos se natildeo decompor ocorpo ou os nuacutemeros em partes nosegundo exemplo essa separaccedilatildeo empartes constitui a maneira pela qualos geocircmetras conhecem os soacutelidos epor fim no terceiro exemplo a abs-traccedilatildeo permite a ascese ao mais gerale mais elementar (aleacutem de permitir a

6 Arnauld e Nicole oferecem um exemplo complementar deste terceiro modo de conceber as coisas abstratamente a pas-sagem da imagem de um triacircngulo agrave ideia de extensatildeo pura Este exemplo estrutura-se da seguinte maneira (I) supondo queeu tenha desenhado sobre o papel um triacircngulo equilaacutetero na medida em que eu considerar apenas este triacircngulo poderei terapenas a ideia de um triacircngulo (II) No entanto se eu afastar o meu espiacuterito da consideraccedilatildeo de todos os acidentes que o de-terminam ndash fatores de singularizaccedilatildeo ndash e se eu aplicar-me a pensar que se trata de uma figura limitada por trecircs linhas iguais euficarei apenas com a ideia de triacircngulo equilaacutetero (III) Se eu for mais longe e ignorar a igualdade entre as linhas considerandoque se trata apenas de uma figura determinada por trecircs linhas retas poderei formar uma ideia que representa todos os triacircngulosndash um conceito universal de triacircngulo (IV) Se aleacutem disso eu desconsiderar as trecircs linhas e focar apenas no fato de que se tratade uma superfiacutecie plana limitada por linhas poderei chegar agrave ideia de figura retiliacutenea e ldquoassim posso subir grau a grau ateacute apura extensatildeordquo (ARNAULD A NICOLE P 2016 [1683] p84) Curiosamente este exemplo inverte a ordem do segundomodo de conhecer por abstraccedilatildeo pois aqui o ponto de partida eacute o complexo (um singular concreto o desenho de triacircngulo)enquanto que laacute parte-se do ponto para a reta e desta para o plano ateacute chegar agrave ao corpo (o complexo)

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generalizaccedilatildeo de conceitos como nocaso do cogito)

Em sentido oposto agrave loacutegica de Ar-nauld e Nicole Bacon faz severas criacute-ticas agraves abstraccedilotildees No aforismo XXIIdo Novum Organum o baratildeo de Ve-rulam fala que enquanto a verdadeiravia para o conhecimento se deteacutem deforma ordenada nos dados da expe-riecircncia sensiacutevel e se eleva gradual-mente agraves coisas que realmente satildeoas ldquomais comuns na naturezardquo a ou-tra via ldquodesde o iniacutecio estabelece cer-tas generalizaccedilotildees abstratas e inuacuteteisrdquo(BACON 1999 p 36) Para Bacontanto a via do erro quanto a da ver-dade partem dos dados sensiacuteveis e daexperiecircncia ou seja as vias natildeo sedistinguem quanto agrave origem de seusconteuacutedos Partindo ambas de ummesmo ponto elas soacute podem se dife-renciar quanto ao meacutetodo No afo-rismo IX Bacon fala que todos osmales na ciecircncia se originam quandoldquoadmiramos e exaltamos de modofalso os poderes da menterdquo (idem p34) e tambeacutem no aforismo X eleressalta que a ldquonatureza supera emmuito em complexidade os sentidose o intelectordquo (idem ibidem) Aleacutemdisso para Bacon ldquoa mente anseiapor ascender aos princiacutepios mais ge-rais para aiacute se deterrdquo (idem p 36)Assim a abstraccedilatildeo ocorre quando amente voluptuosa natildeo se deteacutem nosdados primaacuterios passando a experi-ecircncia na carreira a fim de estabele-cer os princiacutepios pelos quais passaraacutea julgar os novos dados sensiacuteveis mdash

princiacutepios estes que teratildeo bases pre-caacuterias e por isso aproximaratildeo maisda ficccedilatildeo que do conhecimento ver-dadeiro No aforismo XLVIII Baconafirma que o intelecto humano jamaispode encontrar repouso agitado elesempre procura ir aleacutem ldquoDaiacute ser im-pensaacutevel inconcebiacutevel que haja umlimite extremo e uacuteltimo do mundoAntes sempre ocorre como necessaacute-ria a existecircncia de algo aleacutemrdquo (idemp 43) Para Bacon o intelectohumano em um determinado domiacute-nio de suas atividades (aquele da viaque conduz ao erro) se vecirc atormen-tado por questotildees agraves quais natildeo podeevitar e no entanto natildeo pode res-ponder Como ele fala no aforismoXLVI ldquoo intelecto humano quandoassente em uma convicccedilatildeo tudo ar-rasta para seu apoio e acordordquo (idemp 42) No aforismo XLIX Baconafirma que ldquoo intelecto humano natildeo eacuteuma luz pura pois recebe a influecircn-cia da vontade e dos afetos dondepoder gerar a ciecircncia que se querrdquo(idem p 43) Deste modo sendoo intelecto uma luz afetada pela von-tade ele tende a produzir a ldquociecircnciaque se querrdquo (idem ibidem) ou sejapode compor como ciecircncia o que lheapetecer A conclusatildeo desses enca-deamentos vem no aforismo LI noqual Bacon fala que ldquoo intelecto hu-mano por sua proacutepria natureza tendeao abstrato []rdquo e assim ldquoeacute melhordividir em partes a natureza do quetraduzi-la em abstraccedilotildeesrdquo (idem p44) Desta maneira Bacon toma as

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abstraccedilotildees num registro diferente dotomado por Arnauld e Nicole No No-vum Organum a abstraccedilatildeo natildeo apa-rece como o meacutetodo de divisatildeo empartes mas como negligecircncia confu-satildeo arrogacircncia e cupidez que levamao estabelecimento de princiacutepios ge-rais incapazes de apreender a concre-tude e complexidade da natureza Ne-gligecircncia porque o intelecto estabe-lece na carreira os princiacutepios sobre osquais iraacute fundamentar-se sem se de-ter cuidadosamente nos dados empiacute-ricos Confusatildeo porque sem o devidocuidado o intelecto acaba misturandoaquilo que lhe eacute proacuteprio mdash as abstra-ccedilotildees mdash com aquilo que eacute da naturezaArrogacircncia porque tal confusatildeo nascede um narcisismo epistecircmico no qualo homem admira desmedidamente oengenho de seu intelecto Cupidezporque o intelecto opera sob a influecircn-cia da vontade e por isso faz a ciecircn-cia ldquoque se querrdquo

Enquanto para Arnauld e Nicole aabstraccedilatildeo estaacute mais vinculada ao sen-tido etimoloacutegico do termo isto eacute aoprocesso de separaccedilatildeo e decomposi-ccedilatildeo para Bacon ela se aproxima doficcional por ser o estabelecimento dealguns princiacutepios abstraiacutedos de par-cas experiecircncias ndash de sorte confusase misturadas com elementos que per-tencentes apenas ao espiacuterito humanoO nuacutecleo dessa divergecircncia se encon-tra na maneira pela qual cada uma dasduas perspectivas toma a relaccedilatildeo ho-mem e natureza Partindo do pressu-posto agostiniano de uma ordem hie-

raacuterquica dos seres os jansenistas Ar-nauld e Nicole tecircm cravado em suasmentes as palavras de Agostinho noDe Vera Religione ldquoo que julga eacutemaior do que o julgadordquo (AGOSTI-NHO 1987 p 88) Sendo assimo espiacuterito humano possui ontologi-camente garantida a capacidade e odireito de julgar e determinar o co-nhecimento segundo uma lei proacutepriaou melhor dizendo segundo uma leique transcende agrave proacutepria natureza eque se encontra assegurada na proacute-pria iluminaccedilatildeo divina Bacon poroutro lado parte do pressuposto deque o intelecto humano ldquopor sua proacute-pria naturezardquo eacute corrompido Issofica mais evidente se tomarmos notado que Bacon fala em The Interpre-tation of nature e tambeacutem no Theadvancement of learning No pri-meiro Bacon escreve que o homemsendo investido por Deus desde a cri-accedilatildeo ldquoda soberania de todas as coi-sas [] natildeo tinha necessidade de po-der ou de domiacuteniordquo (BACON 1963p 217 op cit in ZATERKA 2004p 96-7) jaacute no Advancement Ba-con afirma que o verdadeiro fim doconhecimento eacute a ldquorestituiccedilatildeo e res-tauraccedilatildeo do homem agrave soberania e aopoder que ele tinha no primeiro es-taacutegio da criaccedilatildeordquo (idem p 222 opcit idem p 98) Para Bacon o ho-mem perdeu aquele poder que tiveranos primoacuterdios da criaccedilatildeo quando elefoi capaz de lsquochamar as criaturas pe-los seus nomes e comandaacute-lasrsquo (idemibidem) Eacute a perda desse domiacutenio

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que consiste na proacutepria fraqueza dointelecto Se no aforismo III do pri-meiro livro do Novum Organum Ba-con afirma que ldquociecircncia e poder dohomem coincidemrdquo eacute porque ele estaacuteconvicto de que o projeto cientiacutefico eacuteuma restauraccedilatildeo de um poderio per-dido Aleacutem disso se no mesmo afo-rismo Bacon afirma que se deve obe-decer a natureza para vencecirc-la issoocorre porque na perspectiva baco-niana o intelecto jaacute natildeo possui maisaquela forccedila e capacidade necessaacuteriapara a partir de si mesmo fazer a ci-ecircncia Natildeo devemos esquecer as pala-vras finais do segundo livro do NovumOrganum ldquoPelo pecado o homemperdeu a inocecircncia e o domiacutenio dascriaturas Ambas as perdas podemser reparadas mesmo que em parteainda nesta vida a primeira com a re-ligiatildeo e com a feacute a segunda com asartes e com as ciecircnciasrdquo (BACON1999 p 218)7 Deste modo pode-mos concluir a partir da anaacutelise doexemplo de Bacon e dos jansenistasArnauld e Nicole que o tema da abs-traccedilatildeo nos seiscentos ultrapassa os li-mites da mera epstemologia e aparece

envolto de questotildees teoloacutegicas Aleacutemdisso tanto Bacon quanto Arnauld eNicole se encaixam naquilo que pode-mos chamar de epistemologias da do-minaccedilatildeo o primeiro critica as abstra-ccedilotildees pois acredita que por meio dissoos homens poderatildeo recuperar o domiacute-nio sobre a natureza os segundos to-mam a abstraccedilatildeo como metodologiapois acreditam que os homens pos-suem ontologicamente garantida a ca-pacidade de domiacutenio Entretanto pa-radoxalmente nos dois casos citadosa abstraccedilatildeo aparece vinculada agrave in-capacidade humana seja entendidacomo meacutetodo para a sua superaccedilatildeoseja entendida como desdobramentode nossa fragilidade

lowast lowast lowast

Espinosa se insere no contexto dascriacuteticas modernas agraves abstraccedilotildees Re-tomando o tom criacutetico de sua eacutepocaele faz severas advertecircncias contraas abstraccedilotildees No TIE8 ele asseveraldquoum maacuteximo engano [] origina-sedo seguinte eles concebem as coisasabstratamente demaisrdquo (TIE sect74-5)Alguns paraacutegrafos agrave frente ele faz aseguinte exortaccedilatildeo ldquonunca nos seraacute

7 Eacute justamente essa concepccedilatildeo abstrata que Espinosa implode na abertura do TTP Noacutes faremos uma anaacutelise detalhada sobreisso no toacutepico deste artigo intitulado ldquoUm exemplo de como opera a criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo de si a abertura do TratadoTeoloacutegico-Poliacuteticordquo

8 As obras de Espinosa seratildeo citadas com as seguintes siglas e abreviaturas E Eacutetica demonstrada em ordem geomeacutetricaAs partes seratildeo indicadas em algarismos romanos Em algarismos araacutebicos acompanhados de abreviaturas seratildeo indicados asdefiniccedilotildees suas explicaccedilotildees os axiomas os enunciados das proposiccedilotildees suas demonstraccedilotildees os seus escoacutelios os prefaacutecios eo apecircndice exemplo E III P24 schol TIE Tratado da Emenda do Intelecto (lat Tractatus de Intellectus Emendatione) Osparaacutegrafos seratildeo indicados com sect seguido da numeraccedilatildeo correspondente (TIE sect7) As seguintes abreviaturas seratildeo utilizadaspara se referir agraves obras de Espinosa TTP Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico TP Tratado Poliacutetico CM Cogitata Metafiacutesica Todasas citaccedilotildees da Eacutetica satildeo referentes agrave traduccedilatildeo realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos da USP publicada em 2015 pelaEditora Edusp (referenciada na Bibliografia) Todas as citaccedilotildees do Tratado da Emenda do Intelecto satildeo referentes agrave traduccedilatildeode Cristiano Novaes Rezende publicada em 2015 pela Editora da Unicamp (referenciada na Bibliografia) As demais obras deEspinosa (incluindo do TTP e o TP) seratildeo citadas de acordo com as normas vigentes da ABNT para citaccedilotildees

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

liacutecito enquanto tratarmos da Inquisi-ccedilatildeo das coisas concluir algo a par-tir de abstraccedilotildeesrdquo (idem sect93) As-sim Espinosa possui uma posiccedilatildeocontraacuteria agrave de Arnauld e Nicole jaacuteque para o filoacutesofo a abstraccedilatildeo jamaispode ser tida como um meacutetodo parao verdadeiro conhecimento Entre-tanto isso natildeo o aproxima de BaconAo contraacuterio ao ser questionado porOldemburg a respeito de quais errosele imputava a Bacon e a Descar-tes Espinosa responde que emboranatildeo esteja acostumado a assinalar oserros cometidos por outros iraacute ex-por os trecircs principais erros de ambosldquoprimeiro estatildeo muitiacutessimo distanci-ados de conhecer a primeira causa ea origem de todas as coisas [ de-pois] natildeo conhecem verdadeiramentea natureza da alma humana [ porfim] jamais aprenderam a causa doerrordquo (ESPINOSA 2014 p 42) Oconhecimento dessas trecircs coisas (acausa primeira a natureza da mentee a causa dos erros) eacute nas palavrasde Espinosa ldquoindispensaacutevel para oexato conhecimentordquo e ldquosomente oignora aqueles que carecem em ab-soluto de todo estudo e disciplinardquo(ESPINOSA 1988 p 82) Duras pa-lavras Espinosa natildeo se deteacutem apenasno anuacutencio dos erros alheios ele daacuteexemplos de como estes erros se tor-nam manifestos na teoria de Bacone Descartes No caso de Bacon Es-pinosa parafraseia os aforismos XLIXLVIII XLIX e LI do primeiro li-vro do Novum Organum resumindo-

os em trecircs conjuntos de crenccedilas queexemplificam os erros cometidos peloBaratildeo de Verulam (1) a suposiccedilatildeode que o entendimento humano errapor sua proacutepria natureza pois tudoconcebe segundo a sua imagem e natildeosegundo a imagem do universo (2)a crenccedila de que o intelecto por suaproacutepria natureza tende ao abstrato efinge ser fixo o que na verdade eacute cam-baleante e (3) que a vontade humanaeacute livre e mais ampla que o proacuteprioentendimento e que por isso ele natildeoeacute uma luz pura antes sofre interfe-recircncia da vontade e dos afetos Seconforme explica Liacutevio Teixeira paraEspinosa todos os erros que os filoacuteso-fos comentem envolvem algum niacutevelde abstraccedilatildeo entatildeo nosso filoacutesofo aocaracterizar como errada a criacutetica ba-coniana agrave abstraccedilatildeo acaba por apon-tar que a proacutepria criacutetica de Bacon eacuteuma abstraccedilatildeo Engenho

Diante do que foi exposto pode-mos perguntar em que Espinosa sedistingue dos filoacutesofos citados quantoao tema da abstraccedilatildeo Acreditamosque tal distinccedilatildeo ocorre porque paranosso filoacutesofo a abstraccedilatildeo natildeo con-siste apenas no ato de separar e frag-mentar os objetos do conhecimento enatildeo eacute o mero estabelecimento arbitraacute-rio de princiacutepios para conhecimentograccedilas agrave interferecircncia da vontade nointelecto Antes nossa hipoacutetese eacuteque para Espinosa a abstraccedilatildeo ocorrequando uma forccedila produtiva da mentenatildeo se encontra enquanto tal em ou-tros termos quando a mente natildeo tem

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consciecircncia do seu proacuteprio produzirndash eacute precisamente isso o que chama-mos de abstraccedilatildeo de si Assim se nasformulaccedilotildees presentes na Loacutegica dePort-Royal e no Novum Organum oproblema da abstraccedilatildeo aparece comoum problema na relaccedilatildeo sujeito e ob-jeto acreditamos que em Espinosa aabstraccedilatildeo possui sua origem na re-laccedilatildeo do indiviacuteduo consigo mesmo9Para melhor fundamentar tal hipoacuteteseresolvemos dividir o texto a seguirda seguinte maneira primeiro co-meccedilaremos com um panorama a res-peito do tema da abstraccedilatildeo na obra deEspinosa depois entramos no temada abstraccedilatildeo de si por fim noacutes da-remos um exemplo de como operaa criacutetica espinosana agrave abstraccedilatildeo desi Dessa maneira noacutes partiremos domais abrangente (a anaacutelise geral) ateacuteo mais concreto (um caso exemplarna obra de Espinosa o TTP) Prossi-gamos

O tema das abstraccedilotildees na obra deEspinosa

Em toda a sua obra Espinosa faz trintae trecircs menccedilotildees diretas ao termo abs-traccedilatildeo ou a algum termo derivado doradical latino abstrac Tais menccedilotildees

se distribuem em sua obra da seguintemaneira quatorze delas estatildeo no TIEonze na correspondecircncia de Espinosa(uma na Carta II oito na Carta XIIe duas na Carta XIX) uma no KVcinco na Eacutetica e por fim mais duasmenccedilotildees no TP Aleacutem das jaacute citadashaacute mais uma no prefaacutecio que Ludo-vicus Meyer fez para o PrincipiorumPhilosophie Entretanto a abordagemdo tema das abstraccedilotildees natildeo se limitaagraves jaacute citadas menccedilotildees Podermos ava-liar a importacircncia deste tema dentroda filosofia espinosana recorrendo aolevantamento feito por Samuel Ne-wlands sobre os diversos temas quesegundo o comentador aparecem re-lacionados a ele na obra espinosana

A visatildeo materialista da alma(TIE sect74)O paradoxo de Zenatildeo (carta12)Teoria da privaccedilatildeo do Mal(carta 19)Concepccedilotildees destorcidas so-bre a providecircncia e o co-nhecimento Divino (KV I 6CM II 7)Falsa concepccedilatildeo da fiacutesicamecacircnica (carta 12)Concepccedilotildees distorcidas daliberdade e da vontade hu-

9 Isso implica dizer que haacute um certo niacutevel de autorreferecircncia na questatildeo da abstraccedilatildeo em Espinosa ndash o que natildeo nos pa-rece absurdo diante do que eacute exposto no KV no Primeiro Diaacutelogo quando a Razatildeo responde para a Concupiscecircncia que ldquooentendimento eacute a causa de suas ideias [ ] pois que suas ideias dele dependem E de outro lado um todo tendo em vista sercomposto por suas ideiasrdquo (ESPINOSA B 2014 p 65) Isto eacute o entendimento natildeo produz seus conteuacutedos como realidadesexternas natildeo haacute cisatildeo entre o produzir e o produto do agir mental Essa identidade entre o entendimento como produtor de suasideias e o entendimento como a totalidade de suas ideias nos permite dizer que haacute uma espeacutecie de ldquorefluxordquo sobre o indiviacuteduoquando este produz ideias abstratamente Supomos que a supersticcedilatildeo seja uma das manifestaccedilotildees desse ldquorefluxordquo

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mana (KV II 16 carta 2 EII P49s)Falsas concepccedilotildees acerca daperfeiccedilatildeo e da imperfeiccedilatildeo(E IV prefaacutecio)O problema do Mal (KV I6 E I apecircndice E IV prefaacute-cio)Formas de antropomorfismoteoloacutegico (E I apecircndice)O conceito de faculdadespsicoloacutegicas (KV II 16 EII P48s E II P49s)Os afetos de culpa louvor emeacuterito (E I apecircndice)Esteacutetica objetiva (E Iapp G282)Teleologia divina ou natural(E I apecircndice)Realismo Moral (CM I 6KV I 10 KV II 4 KV I 6E IV prefaacutecio)Ceticismo (E I apecircndice)(NEWLANDS S 2015 p74-5)

O levantamento realizado por Ne-wlands revela que temas caros agrave Espi-nosa (como a criacutetica ao livre-arbiacutetrioagrave teleologia e ao antropomorfismo)satildeo na verdade consequecircncias edesdobramentos das criacuteticas erigidaspelo filoacutesofo contra as abstraccedilotildeesEmbora seja assim o primeiro grandeestudo dedicado ao tema das abstra-ccedilotildees na filosofia de Espinosa soacute veioa ser realizado na segunda metade doseacuteculo XX Trata-se da tese de livre-docecircncia de Liacutevio Teixeira apresen-

tada ao departamento de filosofia daUniversidade de Satildeo Paulo em 1953mdash um marco histoacuterico nos estudos so-bre a filosofia de Espinosa Sob o tiacute-tulo A doutrina dos modos de percep-ccedilatildeo e o conceito de abstraccedilatildeo na filo-sofia de Espinosa a tese de Liacutevio natildeoera pioneira apenas por tratar do temadas abstraccedilotildees mas por apresentarum original e ineacutedito estudo a respeitodo Tratado da Emenda do IntelectoAteacute entatildeo o TIE era tido por muitos(e ainda eacute para alguns) como um textodemasiado juvenil no qual Espinosanatildeo expotildee propriamente a sua epis-temologia mas a de Descartes Con-tudo Liacutevio Teixeira mostra que as criacute-ticas agraves abstraccedilotildees presentes no TIEsatildeo fundamentais para compreender-mos a recusa de Espinosa ao dualismosubstancial cartesiano e agrave teoria da fa-culdade da vontade O ponto nevraacutel-gico da tese de Liacutevio Teixeira eacute a rela-ccedilatildeo que ele mostra haver entre a epis-temologia e a ontologia espinosanaSem este viacutenculo natildeo eacute possiacutevel en-tender o acircmago do conceito de abstra-ccedilatildeo em Espinosa o fato de que parao filoacutesofo as ideias abstratas natildeo satildeoapenas entes de razatildeo desprovidos derealidades extramental mas tambeacutemqualquer conceito concebido agrave partedo Todo Liacutevio comenta ldquoabstraireacute querer compreender a parte semo todo Ou melhor eacute atribuir reali-dade ao que eacute parcialrdquo (TEIXEIRAL [1953] 2001 p 11) Ora umavez que o Real para Espinosa consisteem uma uacutenica Substacircncia que eacute causa

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imanente de si mesma e dado quepara o filoacutesofo conhecer eacute conhecerpela causa (ir das causas aos efeitos)conclui-se que ldquosoacute podemos conhecera parte a partir do todo ou integradaao todordquo (idem ibidem) Ideias satildeoabstratas natildeo porque satildeo mutiladasconfusas e desordenadas ao contraacute-rio justamente porque satildeo concebi-das agrave parte do Real concreto (o Todo)eacute que elas seratildeo mutiladas confusas edesordenadas isto eacute abstratas Con-ceber uma ideia abstratamente signi-fica concebecirc-la fora de suas relaccedilotildees enexos Conceber algo fora dos nexosque o constitui significa concebecirc-loparcialmente sem clareza e distinccedilatildeoAleacutem disso Liacutevio Teixeira defendeque a teoria dos modos de percep-ccedilatildeoconcepccedilatildeo realizada por Espinosano Emendatione no Breve Tratado ena Eacutetica eacute ldquoum apelo ao aprofunda-mento da consciecircnciardquo que simulta-neamente ldquoconstitui o processo de eli-minaccedilatildeo do pensamento abstrato e aomesmo tempo a identificaccedilatildeo da almahumana com a Realidaderdquo (idem p171)

Seguindo a via aberta por LiacutevioTeixeira faccedilamos uma breve anaacutelisedas diversas apariccedilotildees do tema dasabstraccedilotildees na filosofia de EspinosaPodemos apreender a visatildeo que Es-pinosa tem dos conceitos abstratos setomarmos como exemplo o que o fi-

loacutesofo diz no KV I 6 (7) ldquotodas ascoisas particulares e somente elastecircm causa e natildeo as universais poisestas nada satildeordquo Tambeacutem no mesmocapiacutetulo do KV mas agora no sect9 Es-pinosa toma os conceitos de bem male pecado como abstraccedilotildees e por issocomo natildeo sendo ldquooutra coisa do quemodos de pensar e de maneira ne-nhuma coisas ou algo que tenhamexistecircnciardquo (itaacutelicos de Espinosa) Emoutra passagem do KV ndash a nota de ro-dapeacute do sect4 de KV II 16 ndash Espinosafala que os conceitos de vontade eintelecto enquanto faculdades do es-piacuterito natildeo passam universais concebi-dos a partir de abstraccedilotildees realizadas apartir de voliccedilotildees mentais singularese por isso conclui que enquanto ensrationis ldquonatildeo posso atribuir-lhes nadarealrdquo Jaacute nos CM I 1 Espinosa dizque gecircnero espeacutecie tempo nuacutemero emedida ldquonatildeo satildeo ideias de coisas e demodo algum podem ser colocados en-tre as ideias por isso tambeacutem natildeo tecircmeles nenhum ideado que exista neces-sariamente ou que possa existirrdquo

Para Samuel Newlands essestrechos parecem endossar queEspinosa manteacutem um ldquostrong-anti-abstractionism (SAA)rdquo10 (NE-WLANDS 2015 [I] p 256) Emoutros termos para Newlands essestrechos aparentemente reforccedilam quepara Espinosa as abstraccedilotildees nada satildeo

10 Literalmente antiabstracionismo forte11 ldquo(SAA) There are no such things as abstract objects According to SAA abstracta do not exist full stoprdquo (NEWLANDS

2015 [I] p 256)

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Assim de acordo com a SAA ldquonatildeoexistem coisas como objetos abstra-tos [] ponto finalrdquo (idem ibidem)11Assim o strong-anti-abstractionismse caracterizaria por uma postura me-ramente eliminativa tomando as abs-traccedilotildees como meras quimeras ou ir-realidades a serem descartadas12 En-tretanto em outras passagens do textoespinosano noacutes encontramos umaposiccedilatildeo mais moderada em relaccedilatildeoagraves abstraccedilotildees aquilo que Newlandschama de ldquoweak-anti-abstractionism(WAA)rdquo13 (NEWLANDS 2015 [I]257) Um dos trechos levantados pelocomentador para reforccedilar a sua hipoacute-tese eacute a passagem dos Cogitata I 1Laacute Espinosa usa o exemplo da teacutecnicamnemocircnica que consiste em estabe-lecer relaccedilotildees entre conteuacutedos men-tais diversos para explicar os univer-sais

Que haja certos modos depensar que sirvam para maisfirme e facilmente reter ascoisas [ ] consta-o sufici-entemente os que utilizamaquela notoacuteria regra de me-moacuteria pela qual para retere imprimir na memoacuteria umacoisa noviacutessima recorre-se a

outra que nos seja familiar eque com ela convenha []de modo semelhante [huncsimiliter in modum] os filoacute-sofos reduziram todas as coi-sas naturais a certas classesagraves quais recorrem quandoocorre-lhes algo novo e a quechamam de gecircnero espeacutecieetc (CM I 1)

Esse trecho insere-se na parte dos Co-gitata dedicada a explicar o que satildeoos entia rationis (entes de razatildeo) eem vista disso Newlands comentaque na perspectiva de um WAA ldquoosobjetos abstratos satildeo entidades [en-tities] dependentes da mente Maisespecificamente Espinosa pensa queas abstraccedilotildees satildeo representaccedilotildees con-fusas de uma mente finitardquo (NE-WLANDS 2015 [I] 257)14 Assimna leitura de Newlands os objetosabstratos satildeo representaccedilotildees determi-nadas pelos modos finitos de pensa-mento15 A sequecircncia do texto dosCogitata parece reforccedilar a tese de Ne-wlands afinal Espinosa afirma quequando se indaga o que eacute uma es-peacutecie nada mais busca-se ldquodo que anatureza deste modo de pensar queeacute deveras um ente e distingue-se de

12 Outras passagens parecem endossar uma posiccedilatildeo do tipo SAA por exemplo Espinosa no sect99 do TIE escreve que ldquoeacute neces-saacuterio desde o iniacutecio sempre deduzir nossas ideias [] a partir de um ente real para outro ente real de modo que seguramentenatildeo passemos a ideias abstratas e universais [ ] pois interrompem o verdadeiro progresso do intelectordquo

13 Literalmente antiabstracionismo fraco14ldquo(WAA) Abstract objects are mind-dependent entities More specifically Spinoza thinks abstracta are confused represen-

tations of a finite mindrdquo (NEWLANDS 2015 [I] 257)15 ldquoIn Spinozarsquos preferred ontology abstract objects are the representational contents of particular finite modes of thinkingrdquo

(NEWLANDS 2015 [I] 257)

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outro modo de pensar esses modosde pensar contudo natildeo podem serchamados de ideias nem podem serditos verdadeiros ou falsosrdquo (CM I1) Aleacutem disso Espinosa distinguea ficccedilatildeo da abstraccedilatildeo ao afirmar queum ente de razatildeo natildeo ldquodepende soacuteda vontade e nem consta de termosconectados entre sirdquo (idem ibidem)Vinculando isso com o sect93 do TIE mdashno qual Espinosa fala que devemosnos acautelar e nunca concluir algoa partir de abstraccedilotildees ao tratarmosda inquisiccedilatildeo das coisas evitandodessa maneira confundir o que estaacutesomente no nosso intelecto com o queestaacute na coisa mdash Samuel Newlands ca-racteriza o weak-anti-abstractionism(WAA) como sendo uma preocupaccedilatildeode Espinosa sobre os efeitos de pen-sarmos abstratamente ao investigar-mos a natureza a dizer a reificaccedilatildeoda abstraccedilatildeo no conteuacutedo da investi-gaccedilatildeo16

Embora a interpretaccedilatildeo de Ne-wlands seja riquiacutessima17 haacute algunspontos que eacute uacutetil lembrar ao lidarmoscom os textos do Cogitata primeiroEspinosa manteacutem-se proacuteximo da lin-guagem cartesiana como pode-se no-tar pela referecircncia agrave vontade Aleacutemdisso Espinosa define o ente de razatildeocomo ldquoum modo de pensar que servepara mais facilmente reter explicar e

imaginar as coisas entendidasrdquo (idemibidem ndash itaacutelico nosso) e natildeo comoldquorepresentaccedilotildees confusasrdquo comoafirma Newlands A respeito da ideiade representaccedilatildeo vale ressaltar queEspinosa eacute contraacuterio a tal concep-ccedilatildeo De fato na Eacutetica Espinosa serefere agrave ideia como ldquoconceito que amente forma por ser coisa pensanterdquo(EII D3 ndash itaacutelico nosso) Na explica-ccedilatildeo dessa definiccedilatildeo ele acrescenta queusou o termo ldquoconceitordquo em vez deldquopercepccedilatildeordquo com o objetivo de indi-car o caraacuteter ativo da mente EmboraEspinosa diga diversas vezes nos Co-gitata que os entes de razatildeo natildeo satildeoideias e natildeo podem ser chamados deideias mdash afinal toda ideia possui umcaraacuteter objetivo e os ens rationis natildeomdash ele natildeo fala que os entes de ra-zatildeo satildeo representaccedilotildees Antes elese refere aos entes de razatildeo com a ex-pressatildeo ldquomodum cogitandirdquo que numatraduccedilatildeo flexiacutevel poderia ser chamadode ldquomaneiras de pensarrdquo Assim osentes de razatildeo se aproximam maisde um modo de operaccedilatildeo mental doque de uma representaccedilatildeo objetivaTambeacutem eacute preciso ressaltar que nadefiniccedilatildeo oferecida por Espinosa aosentes de razatildeo no CM ele fala queeles auxiliam na retenccedilatildeo explicaccedilatildeoe imaginaccedilatildeo das ldquocoisas entendidas[res intellectas]rdquo (CM I 1) O que o

16 ldquoSpinozarsquos main concern is that thinking abstractly while ldquoinvestigating naturerdquo often leads to a confused reification ofabstractardquo (NEWLANDS 2015 [I] 265)

17 As consideraccedilotildees de Newlands sobre o tema das abstraccedilotildees em Espinosa satildeo muito importantes na medida em que eleaponta para o processo de reificaccedilatildeo da abstraccedilatildeo Aleacutem disso Newlands faz uma inovadora leitura sobre a aplicaccedilatildeo queEspinosa faz no campo eacutetico das criacuteticas agraves abstraccedilotildees

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nosso filoacutesofo aponta repetidamentenesse primeiro capiacutetulo dos Cogitataeacute que o erro em relaccedilatildeo aos entes derazatildeo estaacute em afirmaacute-los como entes[ens] isto eacute estaacute em confundir umamaneira de pensar com uma realidadeobjetiva Neste sentido eacute significa-tivo que Espinosa compare os entesde razatildeo com uma teacutecnica mnemocirc-nica A relaccedilatildeo estabelecida por Es-pinosa natildeo eacute entre tipos de entes (umreal e o outro apenas mental) antes arelaccedilatildeo eacute estabelecida entre uma teacutec-nica e o que eacute comumente chamadode ens rationis Por fim Espinosa ex-plica a origem da confusatildeo existenteem chamar uma maneira de pensar deens

a causa por que esses mo-dos de pensar satildeo tidoscomo ideias de coisas eacute quetatildeo imediatamente provecircme originam-se das ideias deentes reais que satildeo facil-mente confundidos com elaspor aqueles que natildeo atentammui cuidadosamente [accu-ratissimegrave attendum] dondetambeacutem lhes terem impostonomes como se para signi-ficar entes que existem forade nossa mente e chamandotais entes ou antes natildeo en-tes de entes de razatildeo (idemibidem)

A causa da confusatildeo estaacute no fato deconfundir o processo com o proces-

sado Aqueles que natildeo attendum ac-curatissimegrave tendem a cometer o errodenunciado no sect93 do TIE mistu-rar aquilo que estaacute somente no inte-lecto (processo) com aquilo que estaacutena coisa (processado) A esta confu-satildeo acrescenta-se mais uma originaacute-ria natildeo apenas da falta de uma caute-losa atenccedilatildeo mas tambeacutem da dilata-ccedilatildeo linguiacutestica atribui-se nomes aosprocessos mentais da mesma maneiraque se nomeia coisas Essa duplaconfusatildeo permite natildeo apenas o totaldesconhecimento da natureza da ati-vidade mental quanto a sua reificaccedilatildeonuma suposta coisa independente umsuposto ente Assim embora dis-cordamos de Newlands quando elechama as abstraccedilotildees de representa-ccedilotildees confusas da mente finita concor-damos com ele quanto ao fato do pro-cesso de abstraccedilatildeo envolver uma reifi-caccedilatildeo Entretanto a respeito deste uacutel-timo ponto gostariacuteamos de acrescen-tar que a reificaccedilatildeo natildeo ocorre ape-nas no uso das abstraccedilotildees (por exem-plo nas ciecircncias ldquoao lidarmos com ascoisas naturaisrdquo) mas sobretudo aproacutepria produccedilatildeo de conceitos abstra-tos envolve um processo de reifica-ccedilatildeo Nossa hipoacutetese eacute que os proacutepriosconceitos abstratos satildeo reificaccedilotildees deprocessos mentais na categoria geralde ente Reificaccedilatildeo essa que soacute eacute pos-siacutevel mediante o apagamento do caraacute-ter produtivo (e portanto causal) dasideias Isso evidencia porque Espi-nosa diz que da mesma maneira quea teacutecnica mnemocircnica eacute apenas uma

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maneira de pensar e organizar os da-dos de nossa memoacuteria assim tambeacutemas classificaccedilotildees como gecircneros espeacute-cies etc satildeo modos de pensar Toma-dos sob esse prisma os universais osgecircneros e as espeacutecies natildeo passariamde associaccedilotildees mentais arbitraacuterias18

19 mdash natildeo satildeo coisas mas operaccedilotildeesmentais

No entanto para ficar mais evi-dente o ponto levantado tomemos emconsideraccedilatildeo outro trecho da obra deEspinosa em que o filoacutesofo fala sobreo tema das abstraccedilotildees a nota h dosect21 do TIE Laacute o filoacutesofo explica quequando chegamos agraves conclusotildees demaneira abstrata eacute preciso sermos ma-ximamente cautelosos [caventibus]Espinosa informa que tais conclusotildeesainda que sejam verdadeiras ldquonatildeo es-tatildeo suficientemente protegidasrdquo con-tra confusotildees Que tipo de confu-sotildees Espinosa explica aquilo queos homens concebem abstrata sepa-rada e confusamente ldquoeles impotildee no-mes os quais jaacute satildeo usados por elespara significar outras coisas mais fa-miliares o que faz com que aquelascoisas sejam imaginadas do mesmomodo que estasrdquo (TIE sect21 nota ndash itaacute-licos nossos) Gostariacuteamos de focar

apenas um aspecto dessa nota a refe-recircncia agrave linguagem Espinosa afirmaque os homens atribuem aos concei-tos abstratos os mesmos nomes queusaram para significar coisas que lhessatildeo familiares [res familiaria] Destemodo a nota h parece solidaacuteria doCogitata ao afirmar que haacute uma trans-posiccedilatildeo do campo das abstraccedilotildees parao campo das coisas quando se nomeiaas primeiras da mesma maneira queas uacuteltimas Assim podemos afirmarque quando o campo semacircntico quediscursa sobre coisas [res] passa aser usado para referir-se agraves abstra-ccedilotildees ocorre um mascaramento dasproacuteprias abstraccedilotildees que se ocultamsob o manto supostamente liacutempido dalinguagem que discursa a respeito dascoisas

Acreditamos tambeacutem que essaconfusatildeo ou melhor transposiccedilatildeo deum conjunto de signos (palavras queversam sobre coisas) para um campodiverso (o campo semacircntico das ope-raccedilotildees mentais) explica a primeiraparte da nota h20 Antes de tudodevemos nos lembrar que os nomessatildeo signos que pertencem ao campoda imaginaccedilatildeo aleacutem disso sabemosque a razatildeo (conforme o exemplo da

18 Que o leitor natildeo confunda arbitraacuterio com livre-arbiacutetrio ou como associaccedilotildees estabelecidas pela vontade (o que aproxi-maria Espinosa de Bacon) Arbitraacuterio aqui eacute tomado em seu sentido mais fraco como algo que natildeo necessariamente possuicorrespondecircncia com os entes extramentais

19 Ora uma vez que as associaccedilotildees satildeo dependentes de semelhanccedilas os universais tendem agraves generalidades abstratas quenatildeo conseguem alcanccedilar singularidades Isso parece ser reforccedilado pelo que Espinosa no TIE sect93 quando conclui que ldquoa partirtatildeo somente dos axiomas universais o intelecto natildeo pode descer agraves coisas singularesrdquo Assim cruzando a passagem do CMcom o sect93 do TIE podemos entender o que foi dito em KV I 6 (7) a respeito de que somente as coisas particulares possuemcausa e as universais natildeo eacute que somente as coisas singulares satildeo de fato realidades existentes fora da mente isto eacute satildeo coisas

20 O iniacutecio da nota h diz que os homens no uso da razatildeo ldquose natildeo se acautelam incidiratildeo imediatamente em erros pois quandose concebem as coisas assim abstratamente e natildeo pela verdadeira essecircncia satildeo imediatamente confundidos pela imaginaccedilatildeordquo

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quarta proporcional nos sect23 e sect24 doTIE) muitas vezes opera pelo merocaacutelculo sobre os signos sem se darconta dos verdadeiros processos men-tais que estatildeo envolvidos em tal accedilatildeoSobre esse ponto vale retomar aquibrevemente as consideraccedilotildees de Cris-tiano Rezende em seu artigo Os Pe-rigos da Razatildeo Segundo Espinosaa inadequaccedilatildeo do terceiro modo deperceber no tratado da emenda do in-telecto O comentador argumenta quea razatildeo abre chancela para a abstraccedilatildeona medida em que opera de maneirameramente mecacircnica Apoiando-seno exemplo dado por Espinosa no sect24do TIE a respeito da quarta proporci-onal Cristiano Rezende conclui queldquoa razatildeo realiza certas operaccedilotildees loacutegi-cas sem que no entanto sejam real-mente efetuados todos os atos mentaisem que se baseiam os sinaisrdquo (RE-ZENDE C N 2004 p 111) Esteoperar agraves cegas pode degenerar-se emmera ldquoteacutecnica teoacutericardquo aplicada demaneira generalizada e indistinta aqualquer objeto Para Cristiano Espi-nosa diz que a razatildeo opera de maneiranatildeo adequada justamente porque

a maneira racional de conhe-cer agrave diferenccedila da intelec-tual corre o risco de limitar-se agrave aplicaccedilatildeo externa de uminstrumento de caacutelculo deutilidade inquestionaacutevel masem essecircncia indistinta de umcompetente trabalho admi-nistrativo sobre um ldquojogo de

signosrdquo Portanto o verda-deiro perigo [] eacute que a ra-zatildeo se tome e se decirc por autocirc-noma limitando a percepccedilatildeoa essa capacidade de super-visionar o mundo entatildeo re-duzido ao objeto X das ope-raccedilotildees racionais (idem ibi-dem)

Para o comentador essa operatividadeda razatildeo pode desdobrar-se numapostura fetichista na qual a pes-soa se entreteria mais com a eficaacute-cia das operaccedilotildees racionais do quecom o proacuteprio estar no mundo oque redundaria na pessoa deixar deldquojuntar-se ao mundo atraveacutes de suasconstruccedilotildeesrdquo (idem p 112) Emsuma Cristiano Rezende diz dandoum sentido espinosano para a frase deMerleau-Ponty que a percepccedilatildeo redu-zida agrave sua forma meramente racionaldesemboca ldquonuma ciecircncia que mani-pula as coisas sem habitaacute-lasrdquo (idemibidem) Assim atribuir agraves abstraccedilotildeesum campo semacircntico cujo o uso co-mum eacute direcionado agraves coisas podeem uacuteltima instacircncia abrir margempara as confusotildees da imaginaccedilatildeo jaacuteque a razatildeo ao atuar com signos tendea operar de maneira meramente calcu-lativa

A nota h do TIE nos lembra ou-tro texto aleacutem dos Cogitata e escritoposteriormente a ambas as obras oCompecircndio de Gramaacutetica HebraicaEspinosa dedica o capiacutetulo V de suagramaacutetica para explicar o que satildeo no-mes ldquopor nome entendo uma pala-

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vra pela qual significamos ou indica-mos algo que cai sob o entendimentordquo(ESPINOSA B 2014 p 418) Nasequecircncia Espinosa faz uma ressalvanem tudo o que cai sob o enten-dimento satildeo coisas mas tambeacutemldquoatributos de coisas modos e rela-ccedilotildees ou accedilotildees e modos de relaccedilotildeesde accedilotildeesrdquo (idem ibidem) Sendo as-sim a linguagem possui uma dilata-ccedilatildeo maior do que o campo proacuteprio dascoisas Disso a preocupaccedilatildeo de Espi-nosa em distinguir o que eacute um subs-tantivo o que eacute um adjetivo o que eacuteum nome relativo um particiacutepio uminfinitivo e um adveacuterbio Espinosaafirma veementemente que um subs-tantivo e um nome proacuteprio soacute podemser ditos de coisas singulares mdash ldquonatildeopodemos indicar senatildeo um indiviacuteduosingularrdquo (idem p 419 ndash itaacuteliconosso) Capiacutetulos a frente Espinosavolta a insistir que substantivos satildeonomes de coisas ldquonomes [] paraindicar as coisas de modo absolutordquo(idem p 432) Natildeo satisfeito Es-pinosa faz uma lista com exemplosnos quais demonstra o que eacute um ad-jetivo e o que eacute um substantivo Emsiacutentese em toda a primeira parte doCompecircndio Espinosa demonstra umapreocupaccedilatildeo atenuada em distinguiro que eacute um adjetivo e o que eacute umnome proacuteprio ou um substantivo Es-pinosa tambeacutem alerta que um nomerelativo como adjetivos etc soacute fazsentido em relaccedilatildeo a algo e por issolsquorepugna agrave natureza dos nomes proacute-priosrsquo (idem ibidem) A partir do

Compecircndio podemos conjecturar quena nota h ao afirmar que noacutes nome-amos abstraccedilotildees da mesma maneiraque nomeamos coisas Espinosa de-sejava apontar a tendecircncia de subs-tantivar aquilo que natildeo eacute e natildeo podeser qualificado como um substantivo(como eacute o caso das abstraccedilotildees)

Haacute em todos esses textos algo cen-tral que ateacute o momento natildeo demosmuita atenccedilatildeo a referecircncia agrave cautelaEspinosa fala na supracitada nota hque a confusatildeo ocorre aos que natildeosatildeo ldquomaximamente cautelosos [ma-ximegrave caventibus]rdquo nos Cogitata elefala que isso ocorre aos que natildeo atten-dum accuratissimegrave Isso indica quetais confusotildees que redundam na afir-maccedilatildeo de conceitos ou termos abstra-tos podem ser evitadas por meio dacautela e da atenccedilatildeo ao operar men-talmente de determinada maneira mdashno caso dos Cogitata ao fazer associa-ccedilotildees mentais e no caso do TIE ao pro-ceder de maneira analiacutetica indo dosefeitos para a causa Esse ponto nosinteressa pois acreditamos que todaabstraccedilatildeo envolve um certo desconhe-cimento de si Nossa hipoacutetese eacute quepara Espinosa os problemas originaacute-rios no uso dos conceitos abstratosnatildeo se estabelecem de maneira imedi-ata na relaccedilatildeo de um suposto sujeito eum objeto antes eles satildeo originaacuteriosdo fato de aquele que se coloca comosujeito natildeo se perceber enquanto pro-dutor das abstraccedilotildees Assim abre-seuma fenda entre o agir mental desteindiviacuteduo e o produto dessa accedilatildeo de

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

tal maneira que aquele que produz asabstraccedilotildees natildeo tem consciecircncia plenade seu proacuteprio produzir e nem dos re-sultados de sua produccedilatildeo Eacute precisa-mente isso que chamamos de abstra-ccedilatildeo de si E eacute este o proacuteximo foco denossa atenccedilatildeo

Haacute abstraccedilatildeo de si na origem detoda abstraccedilatildeo

Ateacute onde sabemos nenhum comenta-dor da obra de Espinosa usou a ex-pressatildeo abstraccedilatildeo de si no entantoa tradiccedilatildeo interpretativa jaacute trabalha eindica a presenccedila deste tema na filo-sofia espinosana haacute um certo tempoEm seu Nervura do Real MarilenaChaui ressalta que para Espinosauma vez que somos partes de umacausalidade imanente nossa mente eacuteconcebida como vis nativa e espon-tacircnea para o conhecimento (CHAUIM 1999 p 83) Isso significa quenossa mente na medida em que eacutepartiacutecipe do agir da Realidade agepor si mesma segundo a sua neces-sidade interna e as conexotildees entre assuas ideias ou seja a mente eacute nas pa-lavras de Espinosa um ldquoautoma spi-ritualerdquo Chaui chama a nossa aten-ccedilatildeo para as seguintes palavras de Es-pinosa no Breve Tratado ldquochamo oIntelecto de causa enquanto eacute causade seus conceitos (ou enquanto de-pende de seus conceitos) e o chamode todo enquanto constituiacutedo por to-dos os seus conceitosrdquo (ESPINOSAB 2012 p 65) Agrave guisa dessas pala-

vras Chaui comenta

nossa mente eacute uma potecircn-cia pensante que causa asuas proacuteprias ideias e as arti-cula com outras ideias [ ]Ideias satildeo pois aconteci-mentos mentais que quandoverdadeiras ou adequadassatildeo atos intelectuais quepotildeem sua proacutepria necessi-dade tanto quanto agrave sua gecirc-nese como quanto aos seusefeitos e agraves relaccedilotildees com ou-tras ideias afirmando o mo-vimento e o trabalho do pen-samento que somos e no qualestamos (CHAUI M 1999p 88 ndash itaacutelicos nossos)

Como acontecimento mental umaideia eacute originaacuteria na atividade internaagrave proacutepria mente na qual tambeacutem par-ticipa efetivamente Nas palavras deChaui a atividade mental consiste emcompreender a gecircnese das afecccedilotildeescorporais as relaccedilotildees necessaacuterias en-tre os corpos a gecircnese de suas proacute-prias ideias e as conexotildees necessaacuteriasentre elas de tal maneira a apreenderos nexos que constituem a realidadeinteira e as essecircncias singulares porela produzidas (idem ibidem) Eacute apartir da compreensatildeo dos nexos queconstituem as relaccedilotildees entre os cor-pos as relaccedilotildees entre as ideias e aarticulaccedilatildeo entre corpos e ideias quea mente pode enveredar-se por assim

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dizer na nervura do real Ou seja amente pode apreender-se como parteativa da Realidade Liacutevio Teixeirandash conforme o que comentamos an-teriormente ndash e Marilena Chaui nosmostram que para Espinosa a mentesoacute pode compreender-se como partede um Todo no momento em queela encontra-se em plena identidadeconsigo mesma Essa identificaccedilatildeonasce do esforccedilo reflexivo da menteem apreender a sua proacutepria gecircnesee a gecircnese de suas ideias O cora-ccedilatildeo dessa via interpretativa estaacute emmostrar que na filosofia espinosanao caminho reflexivo consiste simul-taneamente na saiacuteda das abstraccedilotildees ena descoberta da mente como partiacute-cipe da atividade do Real concreto mdasho que poderiacuteamos chamar de saiacuteda deuma condiccedilatildeo propriamente abstratana qual o proacuteprio homem se concebeagrave parte da realidade e do Todo Assimcruzando (I) a tese de Liacutevio Teixeirana qual a abstraccedilatildeo consiste em con-siderar a parte fora do todo (II) oscomentaacuterios de Marilena Chaui quemostram que a superaccedilatildeo da abstra-ccedilatildeo eacute a verdadeira entrada da mentena nervura do real isto eacute o seu en-contro consigo mesma como parteda atividade do Real (III) os traba-lhos de Cristiano Rezende nos quaisevidencia-se que para Espinosa a abs-traccedilatildeo envolve a construccedilatildeo de umaracionalidade meramente instrumen-tal e incapaz de compreender todosos atos mentais implicados em seuscaacutelculos e por fim (IV) as pesquisas

de Newlands que demonstram queo processo de abstraccedilatildeo envolvem areificaccedilatildeo dos conteuacutedos meramentementais qual eacute a conclusatildeo Peloprisma dessas interpretaccedilotildees a abstra-ccedilatildeo natildeo eacute apenas uma ideia confusae mutilada mas sobretudo um pro-cesso que reflui sobre o indiviacuteduo eenvolve uma perda de si mesmo Sejauma perda enquanto parte do Todo(Liacutevio Teixeira e Marilena Chaui)seja uma perda em relaccedilatildeo agrave cons-ciecircncia de suas proacuteprias atividadesmentais (Cristiano Rezende e SamuelNewlands) Acreditamos que tal in-terpretaccedilatildeo possui lastro no proacutepriotexto espinosano

Em nossa anaacutelise do texto espino-sano noacutes frisamos a repetida expres-satildeo espinosana ldquoda mesma maneirardquo(eodem modo no TIE e hunc simili-ter in modum no CM) Eacute muito cu-rioso que em vaacuterios dos momentosque Espinosa explica o processo deabstraccedilatildeo ele usa exemplos de outrosprocessos mentais que operam ldquodamesma maneirardquo Nos dois casos aquicitados (a formaccedilatildeo dos conceitos deespeacutecie e gecircnero no CM e o ato de no-mear na nota h do TIE) Espinosa usaexemplos comuns e cotidianos As-sim Espinosa parece vincular a abs-traccedilatildeo a uma atividade banal e semgrandes misteacuterios (o ato de nomearcalcular uma regra de trecircs ou uma teacutec-nica mnemocircnica) A diferenccedila entreessas accedilotildees comuns e as abstraccedilotildeesnatildeo nos parece estar associada aosprocessos dessas atividades A dis-

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tinccedilatildeo entre a teacutecnica mnemocircnica ea formaccedilatildeo dos gecircneros por exem-plo natildeo parece encontrar-se na loacutegicaoperativa pela qual cada um dessesprocessos ocorrem Antes ela pa-rece residir no grau de consciecircnciaque a pessoa tem a respeito do seuproacuteprio agir mental Um gecircnero eacuteformado hunc similiter in modum agraveteacutecnica mnemocircnica Nomeia-se umconceito abstrato da mesma maneiraque nomeia-se uma coisa A dife-renccedila poreacutem eacute que aquele que aplicae teacutecnica de associaccedilatildeo mental dasmemoacuterias sabe que fez tal associ-accedilatildeo e em consequecircncia sabe queela eacute arbitraacuteria e natildeo algo que existafora de sua mente Ocorre o mesmocom aquele que nomeia algo e sabeo que nomeou ainda mais sabe oque eacute nomear e que tipo de nomedar de acordo com o que se nomeiaPor outro lado aquele que concebeabstratamente ldquovive quase inconsci-ente de si de Deus e das coisasrdquo (EV P42 sch)21 Ou seja natildeo sabeque os gecircneros satildeo frutos de seu la-bor mental natildeo sabe o que nomeia enem sabe nomear O mais traacutegico eacuteque este natildeo saber permite a reifica-ccedilatildeo do labor mental numa abstraccedilatildeoque aparece para o indiviacuteduo comocoisa real desconectada dele e a elerevelada Quando operamos de ma-neira abstrata confundimos os frutos

de nosso trabalho mental com desco-bertas que aparecem como indepen-dentes de noacutes e existentes em si mes-mas A abstraccedilatildeo envolve um modode produccedilatildeo no qual a causalidadeimanente eacute apagada em detrimento deuma causalidade transitiva que pendepara o transcendente de tal maneiraque produtor e o produzido natildeo seidentificam Aliaacutes essa eacute a marca dacausalidade transcendente a cisatildeo ir-remediaacutevel entre causa e efeito

A urgecircncia de um autoconheci-mento aparece diversas vezes no TIENo sect105 do TIE Espinosa escreveque o meacutetodo para se chegar ao co-nhecimento das coisas eternas eacute refle-xivo e consiste em conhecer o proacutepriointelecto suas forccedilas e suas propri-edades Tambeacutem no mesmo paraacute-grafo Espinosa fala que este autoco-nhecimento por parte do intelecto eacute omeio para a aquisiccedilatildeo do fundamentoa partir do qual ldquodeduziremos nos-sos pensamentos na medida em quenossa capacidade suportardquo No sect25TIE o primeiro ponto levantado porEspinosa para alcanccedilar o ldquonosso fimrdquoaquele que se encontra no sect13 doTIE (o ldquoconhecimento da uniatildeo que amente tem com a Natureza inteirardquo ndashque eacute tambeacutem a saiacuteda da abstraccedilatildeo) eacuteldquo(i) Conhecer exatamente a nossa na-tureza que desejamos aperfeiccediloar esimultaneamente da natureza das coi-

21 Eacute importante lembrarmos que quando Espinosa critica Descartes e Bacon agrave Oldemburg na Carta II ele fala que ambos osfiloacutesofos encontram-se em situaccedilatildeo relativamente proacutexima da citada neste escoacutelio ldquoo primeiro e maior erro de ambos consisteem que estatildeo muitiacutessimos distanciados de conhecer a primeira causa e a origem de todas as coisas [Deus] A segunda eacute quenatildeo conhecem verdadeiramente a natureza da alma humana [inconsciecircncia de si]rdquo (ESPINOSA 2014 p 42)

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sas quanto seja necessaacuteriordquo (TIE sect25ndash itaacutelicos nossos) De outro modosair da abstraccedilatildeo e conhecer a uniatildeoque a nossa mente tem com a natu-reza inteira envolve necessariamentee em primeiro lugar ldquoconhecer exa-tamente nossa naturezardquo (idem ibi-dem) Tambeacutem no mesmo sentidoo sect16 do TIE afirma ldquoantes de tudo[ante omnia] poreacutem haacute de se exco-gitar um modo de remediar o inte-lecto e expurgaacute-lo o quanto permiteo iniacutecio para que ele intelija as coisascom felicidade sem erro e da melhormaneirardquo Na sequecircncia Espinosa falaque para realizar tal intento faz-se ne-cessaacuterio ldquoque eu resuma aqui todos osmodos de perceber de que ateacute agoradispus para afirmar ou negar algo []para que eu eleja o melhor de todose simultaneamente comece a conhe-cer minhas forccedilas e natureza que de-sejo aperfeiccediloarrdquo (TIE sect18 ndash itaacuteliconosso) Se nos textos em que Espi-nosa trata da abstraccedilatildeo ele faz refe-recircncias aos que natildeo satildeo cautelososnatildeo prestam atenccedilatildeo e natildeo conhecema natureza do intelecto nos textos emque ele propotildee a maneira de sair daabstraccedilatildeo ele sempre exorta o retornoa si na busca do autoconhecimento

Para acrescentar um exemplo a res-peito de quatildeo determinante eacute o co-nhecimento de si noacutes citaremos aindaque brevemente a questatildeo das hipoacutete-ses em Espinosa Acreditamos que eacute

o autoconhecimento ou melhor o co-nhecimento reflexivo o que impede ahipoacutetese de ser classificada no sect57 doTIE como mera abstraccedilatildeo Vejamos

Cristiano Rezende comenta que oestatuto epistecircmico das hipoacuteteses eraalgo em disputa no seacuteculo XVII22A tradiccedilatildeo havia caracterizado as hi-poacuteteses como um tipo de proposiccedilatildeoda qual natildeo eacute possiacutevel num primeiromomento haver demonstraccedilatildeo e queestabelece ou natildeo o ser de algo Ori-ginaacuteria da palavra ὑπόθεσις do gregoantigo lsquohypoacutethesisrsquo (transliteraccedilatildeo) eacuteformada pela uniatildeo de lsquohyporsquo (lsquosobrsquolsquoabaixo dersquo) e lsquotheacutesisrsquo (lsquoposiccedilatildeorsquo)Assim uma lsquohypothesisrsquo caracteriza-se pelo ato de fazer deduccedilotildees concisasa partir da accedilatildeo de colocar algo sob[hypo] uma certa perspectiva intelec-tual [a thesis] mdash perspectiva essa quesoacute pode ser intelectual pois natildeo haacutecomo realizar experimentos daquiloque natildeo eacute efetivo mas contrafactualNos seiscentos poreacutem as hipoacuteteseshaviam sido reduzidas ao instrumen-talismo O exemplo maacuteximo dissoencontra-se na disputa entre teoacutelo-gos e cientistas com relaccedilatildeo agrave vali-dade das hipoacuteteses do De Revolutio-nibus Orbium Coelestium de Copeacuter-nico Andreas Osiander em vistas deabrandar os teoacutelogos inseriu apocri-famente no Revolutionibus um prefaacute-cio no qual dizia ldquonatildeo eacute necessaacuterioque essas hipoacuteteses sejam verdadei-

22 Cf REZENDE Cristiano N O Estatuto das Hipoacuteteses Cientiacuteficas na Epistemologia de Espinosa Cadernos de Histoacuteriade Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 18 n 1 jan-jun 2008 p 147-71

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ras e nem mesmo verossiacutemeis bas-tando apenas que forneccedilam caacutelculosque concordem com as observaccedilotildeesrdquo(OSIANDER A apud REZENDE2018 v 18 p 150)23 Dessa ma-neira a questatildeo que surge a respeitodas hipoacuteteses pode ser sintetizada daseguinte forma seriam elas apenasum instrumento abstrato sem com-promisso com o conhecimento da re-alidade ou estariam elas de acordocom a lsquonorma da verdadersquo isto eacute ca-pazes de proporcionar aos homensconhecimentos verdadeiros Espi-nosa estava consciente dessa discus-satildeo prova disso eacute que ao tratar dashipoacuteteses no TIE ele faz referecircncia aotema copernicano24 Faz-se necessaacute-rio perguntar o que nos fala Espinosasobre as hipoacuteteses No sect57 do Emen-datione Espinosa comeccedila por definiro que eacute uma quimera e o que eacute umaficccedilatildeo somente apoacutes isso eacute que elededica-se a tratar da hipoacutetese Ao fa-zer isso a primeira coisa que o filoacute-sofo estabelece satildeo as fronteiras entreas duas primeiras e a uacuteltima25 Dissouma conclusatildeo eacute imediata uma hi-poacutetese natildeo eacute uma quimera e natildeo eacuteuma ficccedilatildeo e portanto natildeo pode seruma ferramenta de caraacuteter meramenteficcional Entretanto essa conclusatildeonatildeo protege a hipoacutetese de ser consi-

derada uma abstraccedilatildeo afinal comovimos no caso dos entes de razatildeo noCM Espinosa tambeacutem os distingueda mera ficccedilatildeo e da quimera Veja-mos como prossegue nosso filoacutesofo

Definida a quimera e a ficccedilatildeo Es-pinosa fala no sect57 do TIE que tra-taraacute das ldquoquestotildees supostas o quepor vezes tambeacutem acontece a pro-poacutesito de impossibilidadesrdquo isto eacutedas hipoacuteteses Espinosa recorre en-tatildeo ao exemplo da vela lsquoardente quenatildeo ardersquo Ele propotildee entatildeo duas su-posiccedilotildees hipoteacuteticas nas quais umavela ainda que flamejante perdurasem se consumir (I) quando dizer-mos ldquosuponhamos que esta vela ar-dente natildeo arde agorardquo (idem ibidemndash itaacutelicos nossos) isto eacute quando tra-zemos agrave mente a ideia de uma ou-tra vela natildeo acesa (II) quando aocontraacuterio falamos ldquosuponhamos ar-der em algum espaccedilo imaginaacuterio ouonde natildeo se daacute corpo algumrdquo (idemibidem) Agrave primeira vista essas duassuposiccedilotildees encaixam-se como a matildeoe a luva naquilo que poderiacuteamos cha-mar de processos abstratos ou de abs-traccedilatildeo De fato no primeiro casosubstitui-se uma coisa real um entepor uma coisa imaginaacuteria Por suavez no segundo caso abstraimos algodas diversas relaccedilotildees concretas que

23 Como o proacuteprio Osiander posteriormente assumiu em carta ldquoos teoacutelogos seratildeo facilmente abrandados se lhes for dito que[] que essas hipoacuteteses satildeo propostas natildeo porque de fato satildeo verdadeiras mas porque regulam a computaccedilatildeo do movimentoaparenterdquo O trecho da carta se encontra traduzido para portuguecircs na introduccedilatildeo que Zeljko Loparic fez para sua traduccedilatildeo doldquoPrefaacuteciordquo de Andreas Osiander publicado nos Cadernos de Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia v 1 n1 pp 44-61 1980

24 Cf TIE sect56-725 O mesmo que ele fez no CM ao definir o que era os ldquoentes de razatildeordquo primeiro ele distinguiu o que eacute uma quimera e uma

ficccedilatildeo (cf CM I 1)

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ele estabelece imaginando-o em umespaccedilo imaginaacuterio no qual nada lheafeta Nada poderia ser mais abs-trato do que esses dois casos Entre-tanto Espinosa faz a seguinte obser-vaccedilatildeo ldquoembora claramente se intelijaque esta uacuteltima eacute impossiacutevel masquando isso se faz absolutamentenada eacute fingidordquo (idem ibidem ndash itaacuteli-cos nosso)26 Embora tal experimentoseja fisicamente impossiacutevel pois elesupotildee mover a vela para um espaccedilono qual ela natildeo esteja circuncidadade corpos ldquonada eacute fingidordquo A pri-meira pergunta que nos vem agrave menteeacute por que nada eacute fingido A primeiraparte da resposta a essa pergunta eacuteevidente ldquosabe-se que eacute impossiacutevelrdquoDe saiacuteda jaacute estamos de posse do co-nhecimento a respeito da impossibi-lidade real de tal experimento quejustamente por isso soacute pode ser men-tal A segunda parte da resposta eacuteque a inteligibilidade a respeito doque eacute vela e o conhecimento das leisde ineacutercia garantem que em um es-paccedilo no qual natildeo exista nada que aimpeccedila de continuar na existecircncia avela perduraria sem consumir-se (cfCHAUI M 2016 p 24) Desta ma-neira Espinosa desloca o problemada correspondecircncia entre o conteuacutedode uma hipoacutetese e alguma realidadepara a construccedilatildeo intelectual de uma

experiecircncia Embora uma hipoacuteteseseja um experimento realizaacutevel ape-nas no niacutevel mental ela natildeo eacute meraabstraccedilatildeo ou ficcionismo instrumen-tal Isso porque ela opera a partir doconhecimento que o indiviacuteduo possuitanto de si quanto a respeito da coisasobre a qual ele formula a hipoacuteteseAleacutem disso a hipoacutetese inclui o conhe-cimento das leis da natureza Uma hi-poacutetese natildeo nasce do encontro fortuitoda mente com as coisas mdash como seela fosse aprendiz delas mdash antes elaorigina-se da accedilatildeo do intelecto queatua como juiz que julga a partir desuas regras e do conhecimento preacuteviode como algo se comporta em situ-accedilotildees diversas (Cf REZENDE C2008 p 147-71) No exemplo dasvelas o ponto cardeal eacute que em am-bos os casos temos uma ideia clara edistinta da vela e eacute justamente por issoque podemos tanto movecirc-la para o es-paccedilo imaginaacuterio quanto alterar racio-nalmente suas caracteriacutesticas tirandodisso conclusotildees acertadas (CHAUIM 2016 p 24) Pois como nos ex-plica Chaui temos a construccedilatildeo deldquouma essecircncia em sua inteligibilidadede tal maneira que ela permita dedu-ccedilotildees ordenadas e por conseguintebem fundamentadasrdquo (idem ibidem)Enquanto a abstraccedilatildeo envolve o des-conhecimento de si e a confusatildeo do

26 O tom usado aqui por Espinosa nos lembra Galileu Galilei que ao tratar das hipoacuteteses referentes agrave queda de uma bolade canhatildeo perpendicular a um mastro de navio em movimento coloca na boca da personagem Salviati as seguintes palavrasemblemaacuteticas ldquoEu sem experiecircncia estou certo de que o efeito seguir-se-aacute como vos digo porque assim eacute necessaacuterio que sesigardquo GALILEU Galilei Diaacutelogo sobre os dois maacuteximos sistemas do mundo ndash ptolomaico e copernicano Trad Pablo RubeacutenMariconda 3ordm ed Editora 34 Satildeo Paulo 2011 p 226

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que haacute em nossa mente com o queconstitui a essecircncia de algo a hipoacute-tese justamente porque ldquosabe-serdquo eacutepara Espinosa originaacuteria da potecircnciada mente em compreender a essecircn-cia singular das coisas e tambeacutem emdeduzir seu comportamento em es-paccedilos ou condiccedilotildees imaginaacuterias Porisso como comenta Cristiano NovaesRezende uma hipoacutetese eacute uma ideiaverdadeira

quando inserida no processoregular e contiacutenuo no qual amente natildeo eacute determinada defora isto eacute determinada peloencontro fortuito das coisase com as coisas as quais porsi mesmas natildeo nos levam aconsiderar umas de preferecircn-cia a outras A hipoacutetese eacuteuma ideia verdadeira quandoa mente natildeo funda a verdadenos fenocircmenos mas sim emsi proacutepria isto eacute quando amente se determina desde dedentro ao mesmo tempo emque vai ao encontro dos ob-jetos da experiecircnciardquo (RE-ZENDE C N 2008 p 165)

Sendo assim podemos concluir quea hipoacutetese eacute uma ideia verdadeiraquando natildeo opera a partir da abstra-ccedilatildeo de si quando sua formulaccedilatildeo eacuteacompanhada de um duplo conheci-mento (I) o conhecimento de si istoeacute da forccedila e natureza do intelecto e

(II) o conhecimento da essecircncia obje-tiva sobre a qual opera

Em suma seja nos Cogitata sejano TIE (para natildeo citarmos as outrasobras de Espinosa) a abstraccedilatildeo sem-pre vem acompanhada da ideia deuma perda de si uma ignoracircncia emrelaccedilatildeo a si mesmo Em sentido con-traacuterio no KV Espinosa chama o mo-mento em que a mente descobre a simesma como potecircncia para o verda-deiro de ldquorenascimentordquo pois ldquosema soberania do entendimento tudo seencaminha para a perda sem que pos-samos gozar de qualquer descansovivendo como se estiveacutessemos forade nosso elementordquo (KV II 26)

Um exemplo de como opera a criacute-tica espinosana agrave abstraccedilatildeo de sia abertura do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico

O leitor haacute de estranhar que escolhe-mos justamente o TTP para servir deexemplo afinal esta eacute a uacutenica obraem que Espinosa natildeo faz referecircnciadireta ao tema abstraccedilatildeo Entretantopretendemos mostrar que as conside-raccedilotildees a respeito das abstraccedilotildees sus-tentam algumas teses de Espinosa noseu polecircmico tratado Para demons-trar isso noacutes analisaremos a primeirafrase do prefaacutecio do TTP Haacute trecircs as-pectos dessa sentenccedila inicial que con-sideramos serem os mais importan-tes (1) trata-se de uma proposiccedilatildeocondicional negativa que se estrutura

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agrave maneira de uma hipoacutetese (2) ela eacutereferente agrave natureza humana e agraves re-laccedilotildees que essa natureza estabeleceno mundo (3) trata-se uma sentenccedilacom efeito retoacuterico que corroacutei umaimagem abstrata do homem27

Espinosa abre o TTP com a se-guinte proposiccedilatildeo ldquose os homens pu-dessem em todas as circunstacircnciasdecidir pelo seguro ou se a fortuna selhes mostrasse sempre favoraacutevel ja-mais seriam viacutetimas da supersticcedilatildeordquo(ESPINOSA B 2003 p 5)rdquo O ldquoserdquoinicial nos coloca diante de uma pro-posiccedilatildeo condicional e negativa Ma-rilena Chaui comenta que ldquoEspinosacritica indiretamente os medievais eDescartes reescrevendo as teses quecombate na forma de oraccedilotildees hipoteacute-ticas (se entatildeo) retirando das hi-poacuteteses conclusotildees que as negamrdquo(CHAUI M 1974 p 56) A co-mentadora ressalta que esse procedi-mento eacute tatildeo constante em Espinosaque quase poderiacuteamos tomaacute-lo comonorma de leitura ldquoas oraccedilotildees hipoteacute-ticas apresentam teses que natildeo satildeo es-pinosanas que satildeo levadas agrave autodes-truiccedilatildeo no decorrer da argumentaccedilatildeordquo(idem ibidem)28 Assim a aberturado TTP eacute polecircmica primeiro por-que conforme veremos ela retoma a

imagem do homem que foi tecida pelatradiccedilatildeo teoloacutegica em segundo lugaressa retomada daacute-se no seio de umahipoacutetese negativa ou seja tal ima-gem eacute tomada como esvaziada de re-alidade Acreditamos ser este o cerneda hipoacutetese que abre o TTP

Em sua tese de doutoramento Ma-rilena Chaui defende que o termomais importante da proposiccedilatildeo ini-cial do TTP eacute a conjunccedilatildeo condicio-nal ldquoserdquo pois ela abre as duas condi-ccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia dasupersticcedilatildeo (CHAUI 1970 p 134)Ora em que consistem essas duascondiccedilotildees Consistem numa mu-danccedila ou na natureza humana ou nanatureza do mundo que permitisseaos homens serem iguais agrave vela ar-dente que natildeo arde Se lermos atenta-mente o enunciado da primeira parteda hipoacutetese na abertura do TTP no-taremos que Espinosa propotildee a mu-danccedila imaginaacuteria de uma das carac-teriacutesticas dos ldquohomensrdquo Qual Achave para compreender isso estaacute napalavra latina regere que na traduccedilatildeoespanhola do TTP de Atilano Domin-guez foi traduzida por ldquoconducirrdquo naportuguesa de Diogo P Aureacutelio porldquodecidirrdquo e na brasileira de J Guins-burg e Newton Cunha por ldquoregrarrdquo

27 Conforme veremos dessas trecircs caracteriacutesticas seguem-se algumas consequecircncias (1) a supersticcedilatildeo deixa de ser umacaracteriacutestica acidental jaacute que supressatildeo absoluta da supersticcedilatildeo soacute eacute possiacutevel com uma concepccedilatildeo abstrata natureza humana(2) Sendo inerente agrave natureza humana a supersticcedilatildeo deixa de servir como distintiva entre as diversas religiosidades e etnias(3) Espinosa desvincula o conceito de supersticcedilatildeo do mito fundador da moral judaica-cristatilde ou seja do mito da queda originalAo final pretendemos deixar evidente a maneira pela qual opera a criacutetica espinosana agraves abstraccedilotildees na abertura do TTP

28 A mesma chave de leitura eacute mobilizada pela comentadora ao comentar a abertura do TTP em sua tese de doutoramentoldquoO prefaacutecio do TTP comeccedila com uma proposiccedilatildeo condicional e negativa caracteriacutestica peculiar de Espinosa todas as vezes emque para demonstrar a necessidade de um conceito passa pela hipoacutetese a ser recusada mdash toda proposiccedilatildeo negativa eacute ausecircnciade definiccedilatildeo e portanto de realidaderdquo (CHAUI M 1970 p 133)

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

Embora distintos uns dos outros cadavocaacutebulo escolhido nessas traduccedilotildeesressalta aspectos daquilo que consti-tui o poder regencial poder de deci-satildeo de conduccedilatildeo e de regulaccedilatildeo Ori-ginaacuteria do campo poliacutetico regere eacute aforma no infinitivo presente do verbolatino rego que tem sentido de regecircn-cia Reger eacute ter o dominium29 sobre osassuntos internos de um imperium Aabertura do TTP alude a um poder re-gencial que redunda num ldquocerto con-siliordquo sobre ldquores omnes suasrdquo aludepotanto para uma deliberaccedilatildeo certasobre todas suas coisas Eacute muito in-teressante que essa forma de regecircnciaimpotildee a exterioridade jaacute que ldquoa deli-beraccedilatildeo supotildee exterioridade mdash os ho-mens estatildeo diante das coisas situadosna natureza e face a elardquo (CHAUI M1970 p 134) Considerar-se fora danatureza em face a ela eacute encontra-se em estado de abstraccedilatildeo do TodoO que Espinosa faz eacute partir de umaimagem abstrata dos homens (ima-gem que oferece a ilusatildeo de um con-trole imperial decidir conduzir e re-grar todas as suas coisas) entretantose assim fosse os homens jamais se-riam viacutetimas da supersticcedilatildeo explica onosso filoacutesofo

A segunda parte da hipoacutetese con-tinua ldquoou se a fortuna se lhesmostrasse sempre favoraacutevelrdquo (ES-

PINOSA Op Cit) Oriundado universo teoloacutegico a fortuna eacuteldquoimperatrix mundirdquo nos escrevem osCarmina Burana Deusa da gloacuteriae da riqueza a fortuna representa oimprevisto a volatilidade da vida ascircunstacircncias que fogem ao nossocontrole Ora nossa sorte ora nossaperdiccedilatildeo a fortuna deteacutem a roda davida Como disse Boeacutecio ldquoAssimela brinca assim ela daacute prova de seupoder e oferece aos seus suacuteditos umgrande espetaacuteculo o de um homemque em uma hora passa da desgraccedilaagrave gloacuteriardquo (2012 p 42) Experiecircnciada contingecircncia a fortuna tambeacutem eacutea experiecircncia da inseguranccedila e porisso do medo Nenhuma alma pode-ria descrever melhor essa experiecircnciado que a do melancoacutelico afinal comoescreve Espinosa ldquoa sua senhora eacute aFortunardquo Robert Burton melancoacute-lico confesso descreveu-se nas pri-meiras paacuteginas de sua Anatomia daMelancolia como um observador dasfortunas do mundo

[Sou] um mero especta-dor das fortunas e venturasalheias de como atuam emseus papeacuteis que penso satildeo-me tatildeo diversamente apre-sentados como se num te-atro ou cena puacuteblica []

29 Em latim casa se chama domus e o poder sobre ela dominium O regente que possui o dominium absoluto sobre o pa-trimonium eacute o Pater A instacircncia do pater natildeo eacute a de um progenitor natural (genitor) eacute maior do que isso trata-se do poderjudicial e senhoril Eacute neste sentido preciso que a igreja dizia ldquoDeus eacute Pairdquo Cf CHAUI Marilena Mito Fundador e SociedadeAutoritaacuteria in Escritos de Marilena Chaui Vl II ndash Manifestaccedilotildees ideoloacutegicas do autoritarismo brasileiro Org Andreacute RochaAutecircntica Editora Satildeo Paulo 2013 p 156

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Um eacute liberto o outro aprisio-nado um enriquece o outroquebra este prospera e seuvizinho estaacute falindo ora far-tura ora carestia e fome umcorre outro cavalga com-bate ri chora etc Isso euouccedilo a cada dia e outro tantode notiacutecias puacuteblicas e priva-das entre a galanteia e a mi-seacuteria do mundo jovialidadeorgulho perplexidades e pre-ocupaccedilotildees simplicidade evilania sutileza patifariacandor e integridade mutua-mente misturado e ofertadordquo(BURTON R 2013 [I] p58)

No palco da vida e no coro do mundoquem abre e fecha os atos eacute a For-tuna No espetaacuteculo em que a Fortunaeacute roteirista a protagonista eacute a melan-colia Um ponto importante eacute que afortuna acentua ainda mais a exterio-ridade como manifesta as palavras deBurton ldquo[sou] um mero espectadorrdquoSob essa perspectiva o mundo se abrecomo espaccedilo no qual as coisas se rela-cionam entre si contingentemente emuma ldquoincerta fortunardquo Expectadoro homem natildeo possui a capacidade de-liberativa natildeo eacute regente restando-lheapenas esperar pela ldquobona fortunaerdquoAqui tambeacutem a conclusatildeo eacute nega-tiva ldquoSi fortuna ipsis prospera sem-per foretrdquo Se a fortuna se mostrassesempre proacutespera se na lsquocena puacuteblicarsquoas coisas sempre fossem boas se no

palco do mundo soacute se apresentasse obonum entatildeo os homens natildeo seriamviacutetimas da supersticcedilatildeo

A abertura do TTP aponta as condi-ccedilotildees necessaacuterias para que os homensjamais sejam viacutetimas da supersticcedilatildeo(I) a presenccedila de um certo consiliosobre ldquoomnes resrdquo ou (II) uma for-tuna ldquosemper prosperardquo Ora umavez que a fortuna eacute aquilo que escapaao nosso poder podemos supor que oproblema da supersticcedilatildeo possa ser re-solvido pela via da deliberaccedilatildeo certa(o certo consilio) ou seja pela con-tiacutenua ampliaccedilatildeo de nossa capacidadedeliberativa Isso parece asseguradopela presenccedila do vocaacutebulo vel [ou] in-dicando que basta a presenccedila de ape-nas uma das condiccedilotildees ndash (I) ou (II) ndashpara que a supersticcedilatildeo deixe de impe-rar sobre os homens Entretanto valenotar que todas as expressotildees satildeo to-tais nenhuma supersticcedilatildeo delibera-ccedilatildeo certa sobre todas as coisas umafortuna sempre proacutespera Embora sejatotalmente aceitaacutevel do ponto de vistade outros trechos da obra de Espinosadeduzir que quanto mais capenga fora nossa capacidade deliberativa maisatuaraacute sobre noacutes o imperioso poder dafortuna e consequentemente da su-persticcedilatildeo natildeo nos parece que na aber-tura do TTP haja condiccedilotildees para a de-duccedilatildeo de uma soluccedilatildeo Esperar queos homens sempre deliberem de ma-neira certa ou que o mundo natildeo lhesapareccedila fortuito eacute o mesmo que de-sejar que a vela queime sem se quei-mar As uacutenicas duas maneiras de con-

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

ceber os homens como estando abso-lutamente fora das garras da supersti-ccedilatildeo satildeo (I) concebendo mentalmenteoutros homens isto eacute substituindo anatureza humana por outra abstrataou (II) concebendo os homens numespaccedilo imaginaacuterio no qual eles se en-contram abstraiacutedos de toda experiecircn-cia da contigecircncia Embora conceberessas condiccedilotildees natildeo nos seja impossiacute-vel mediante um experimento mental(uma hipoacutetese) eacute certo que in rerumnatura elas versam sobre impossibi-lidades Apesar de lsquonada ser fingidorsquoclaramente lsquointelige-se que eacute impos-siacutevelrsquo Em uacuteltima instacircncia as duascondiccedilotildees redundam em que a huma-nidade deixe de ser humanidade e queo mundo deixe de ser mundo Con-fundir a hipoacutetese inicial do TTP mdashuma espeacutecie de experimento mental -ndash com a fala sobre possibilidades ex-tramentais reais eacute entrar no campo daabstraccedilatildeo Na verdade o sentido maisprofundo da hipoacutetese na abertura doTTP consiste em mostrar que a proacute-pria noccedilatildeo de ldquonulla superstitionerdquo eacuteuma abstraccedilatildeo30

A liccedilatildeo oferecida por Espinosa naabertura do TTP eacute a que a supersti-

ccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave condiccedilatildeo humanafaz parte do que significa ser humanoe viver neste mundo Se eacute preciso fa-zer uma criacutetica agrave supersticcedilatildeo eacute precisoprimeiro reconhececirc-la e trabalhaacute-laIsto eacute eacute preciso positivaacute-la enquantoobjeto da reflexatildeo tomaacute-la a partir desuas causas e observar o desenvolvi-mento de sua trama Em suma eacute pre-ciso abandonar a concepccedilatildeo abstratamdash postura do sentinela que vigia agravedistacircncia nas fortalezas de sua torremdash e entrar na concretude do RealEm outros termos eacute preciso deixarde tomar a supersticcedilatildeo como coisa ex-terior e alheia pertencente aos ou-tros (de sorte hereges ou ignorantes)A postura de sentinela da supersticcedilatildeoredunda numa accedilatildeo que impotildee umarelaccedilatildeo autoritaacuteria entre aqueles quedizem-se natildeo-supersticiosos e os ti-dos por supersticiosos Na tradiccedilatildeocristatilde isso se deu pelos senhores damoral e oficiantes do culto na tra-diccedilatildeo cientiacutefica assumiram este papelos portadores das luzes na sua mar-cha pelo aufklaumlrung Ora se tivermosem mente que para Espinosa a abstra-ccedilatildeo eacute considerar a parte fora do Todoentenderemos que a ideia de um ho-

30 Se levarmos em conta o que Espinosa fala sobre o cavalo e o inseto na Eacutetica visualizaremos o que a hipoacutetese de aberturado TTP aponta todo projeto de erradicaccedilatildeo absoluta da supersticcedilatildeo eacute um projeto genocida ldquoO fato eacute que um cavalo porexemplo eacute destruiacutedo [destruitur] tanto ao ser mudado em homem como em insetordquo (E IV praef) Natildeo haacute evoluccedilatildeo do cavalopara o homem assim como tambeacutem natildeo a haacute decliacutenio do cavalo para o inseto tanto num caso como no outro haacute apenas des-truiccedilatildeo Querer que cavalos atuem como homens eacute em uacuteltima instacircncia desejar a destruiccedilatildeo dos cavalos Essa metaacutefora ganhaforccedila quando vinculada agrave hipoacutetese inicial do TTP afinal desejar que as pessoas estejam absolutamente livres da supersticcedilatildeo eacuteo mesmo que desejar que elas deixem de ser humanas Desejo esse que natildeo passa de uma das faces do desejo de destruiccedilatildeo doshomens e do mundo Trata-se de um desejo suicida mdash quando referido agrave subjetividade mdash e de um desejo genocida mdash quandoreferido ao mundo e agrave intersubjetividade A abertura do TTP indica que pela primeira vez na histoacuteria da filosofia a supersticcedilatildeonatildeo seraacute tratada como algo a ser erradicado e eliminado uma espeacutecie de posiccedilatildeo higienizadora mas como algo intriacutenseco aoshomens e com o qual devemos aprender a lidar

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mem regente consiste em pura abstra-ccedilatildeo autorreferente pois nela noacutes natildeoestamos mudando ou abstraindo ca-racteriacutesticas de um objeto antes noacutesmesmos nos tomamos numa perspec-tiva abstrata separados do mundo eregentes dele mdash versatildeo extrema daabstraccedilatildeo de si Natildeo eacute apenas umperder-se de si eacute a reificaccedilatildeo em simesmo de uma imagem abstrata de si

O engenho de Espinosa natildeo paranisso antes o filoacutesofo aponta que talabstraccedilatildeo se inscreve na proacutepria ima-gem fundante da sociedade ocidentalO leitor natildeo demoraraacute a perceber issose fizermos a seguinte pergunta den-tro da mitologia judaico-cristatilde qual eacuteo momento em que o homem possuiplena regecircncia sobre o mundo go-zando de perfeiccedilatildeo e vive num para-disiacuteaco mundo afortunado A hipoacute-tese de abertura do TTP aponta para oJardim do Eacuteden paraiacuteso onde nossopai terrestre Adatildeo antes da quedagozava de perfeiccedilatildeo (poder regencialsobre si e domiacutenio sobre todas as coi-sas) e vivia em um mundo em que afortuna sempre se lhe mostrava beneacute-fica O engenho da hipoacutetese inicial doTTP estaacute no fato de Espinosa afirmarque se em algum momento o homemgozasse de tais condiccedilotildees ou de tal na-tureza ele jamais seria viacutetima da su-persticcedilatildeo31 Eis a retoacuterica da hipoacuteteseinaugural do TTP propor um expe-

rimento mental que agrave primeira vistapode ser tomado como abstrato masque ao fim e ao cabo implode a proacute-pria concepccedilatildeo abstrata que os ho-mens possuem de si Retoacuterica con-tra os retoacutericos o ato inaugural doTTP subverte o mito adacircmico nos ar-rebata da abstraccedilatildeo lanccedilando-nos natrama do Real A abertura do TTPeacute uma guerra contra a imagem abs-trata do homem e contra as propostasgenocidas que decorrem dessa abstra-ccedilatildeo Falamos em guerra porque elaopera de maneira retoacuterica partindo doque eacute comum mdash a concepccedilatildeo teoloacute-gica do homem mdash para em seguidasubvertecirc-la A instacircncia dessa guerraeacute a mente dos leitores lsquoque poderia fi-losofar mais livremente caso natildeo jul-gassem que a razatildeo deva ser serva dateologiarsquo (ESPINOSA 2003 p 14)

A hipoacutetese-retoacuterica do iniacutecio doTTP eacute um convite a pensar a condi-ccedilatildeo humana sem as abstraccedilotildees e osfantasmas que a tradiccedilatildeo teoloacutegica cu-nhou Afastado o paraiacuteso mdash agoraperdendo-o de nossas vistas para sem-pre mdash qual eacute a condiccedilatildeo humana Aresposta vem logo em sequecircncia re-duzidos amantes e desejosos experi-mentando a perda constante dos obje-tos amados e o escape dos desejadosos homens se encontram arrastados deum lado ao outro num turbilhatildeo deafetos que por fim os leva agrave supers-

31 A formulaccedilatildeo mais evidente da questatildeo posta na hipoacutetese inaugural do TTP se encontra no capiacutetulo II sect6 do TratadoPoliacutetico onde Espinosa questiona sobre ldquocomo pode acontecer aleacutem disso que o primeiro homem estando de posse de siproacuteprio e sendo e senhor de sua vontade se deixasse seduzir e enganarrdquo (ESPINOSA 2014 [I] p 376)

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ticcedilatildeo (ESPINOSA 2003 p 5) mdash eisa realidade desesperadora a qual Es-pinosa nos apresenta em todas as suastramas Mas se o nosso filoacutesofo fazisso eacute porque sabe que a uacutenica pos-sibilidade de fazer uma poliacutetica ver-dadeira eacute quando partimos da reali-dade concreta e natildeo das abstraccedilotildeesUma verdadeira poliacutetica dos homensnatildeo uma utopia ou uma saacutetira exigecomo seu princiacutepio a veemente recusada abstraccedilatildeo de si

lowast lowast lowast

Neste ponto ao final do artigo pode-mos afirmar que a abstraccedilatildeo eacute natildeo me-ramente uma operaccedilatildeo mental mastambeacutem uma abstraccedilatildeo de si Justa-mente porque nos encontramos arre-

batados de noacutes mesmos eacute que pro-duzimos abstraccedilotildees Neste sentidoeacute interessante lembramos as pala-vras de Espinosa no Breve Tratadoa respeito do conhecimento claroldquodenominamos conhecimento claroagravequele que natildeo eacute por convencimentoda razatildeo mas sim por um sentir e go-zar a proacutepria coisardquo (KV II cap 2 sect2)e caso algum homem chegue a con-templar algo por essa maneira de co-nhecer ldquodiraacute em verdade que a coisa eacuteassim considerando que ela estaacute nelee natildeo fora delerdquo (idem cap 4 sect2)Eacute que a verdade ao contraacuterio da abs-traccedilatildeo envolve uma interioridade umencontro consigo mesmo que eacute outronome da liberdade

Referecircncias

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ARNAULD A amp NICOLE P Loacutegica ou a arte de pensar Trad Nuno Fonseca1 ediccedilatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Guilbenkian 2016

BACON F Novum Organum ou Verdadeiras Indicaccedilotildees Acerca da Interpre-taccedilatildeo da Natureza in Coleccedilatildeo Os Pensadores Trad e Notas de JoseacuteAluysio Reis de Andrade Satildeo Paulo Editora Nova Cultural 1999

BOEacuteCIO Consolaccedilatildeo da Filosofia Trad Willian Li 2ordm Ediccedilatildeo Satildeo PauloMartins Fontes 2012

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CHAUI M A Nervura do Real ndash Tomo I Satildeo Paulo Companhia das Letras1999

_____ Introduccedilatildeo agrave leitura de Espinosa Tese de Doutoramento apresentada agraveFaculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade deSatildeo Paulo Satildeo Paulo 1970

_____ Da Realidade Sem Misteacuterios ao Misteacuterio do Mundo (Espinosa VoltaireMerleau-Ponty) Ed Brasiliense Madrid e Satildeo Paulo 1981

ESPINOSA Eacutetica Traduccedilatildeo do Grupo de Estudos Espinosanos CoordenaccedilatildeoMarilena Chaui Satildeo Paulo Editora Edusp 1ordf Ed 2015

_____ Breve Tratado de Deus do Homem e do seu Bem-estar Pref MarilenaChaui Intr Emanuel Angelo da Rocha Fragoso Erika Itokazu Trad enotas Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luis Ceacutesar Guimaratildees OlivaBelo Horizonte Autecircntica Editora 2012

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_____ Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico Trad introd e notas de Diogo Pires Aureacute-lio Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

_____ Correspondencia Trad Introd notas e In de Atilano DomiacutenguezMadrid Alianza Editorial 1998

_____ Tratado da Emenda do Intelecto Trad Cristiano Novaes de RezendeCampinas Editora da Unicamp 2015

_____ Spinoza Obra Completa Vl II Correspondecircncia Completa e Vida OrgJ Guinsburg Newton Cunha e Roberto Romano Trad e Notas J Guins-burg e Newton Cunha Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2014

NEWLANDS S Reconceiving Spinoza 1ordf Ediccedilatildeo New York Oxford Uni-versity Press 2018

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SANTIAGO Homero Geometria do Instituiacutedo mdash Estudo sobre gramaacuteticahebraica espinosana Fortaleza Editora UECE 2014

LIacuteVIO Teixeira A Doutrina dos Modos de Percepccedilatildeo e o Conceito de Abstra-ccedilatildeo na Filosofia de Espinosa Editora UNESP Satildeo Paulo 2001

REZENDE C N O Estatuto das Hipoacuteteses Cientiacuteficas na Epistemologia deEspinosa Cadernos de Histoacuteria de Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie3 v 18 n 1 jan-jun 2008 p 147-71

_____ Os Perigos da Razatildeo Segundo Espinosa A inadequaccedilatildeo do terceiromodo de perceber no Tratado da Emenda do Intelecto Cadernos de His-

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HAacute ABSTRACcedilAtildeO DE SI NA ORIGEM DE TODA A ABSTRACcedilAtildeO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

toacuteria de Filosofia e Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 14 n 1 jan-jun2004 p 59-118

_____ A gecircnese textual da doutrina da educaccedilatildeo das crianccedilas no Tratado daEmenda do Intelecto de Espinosa Filosofia e Educaccedilatildeo volume 5 Nordm 1abril ndash setembro de 2013 p 52-110

ZATERKA L A Filosofia Experimental na Inglaterra do Seacutec XVII FrancisBacon e Robert Boyle Satildeo Paulo Humanitas 2004

Recebido 02072019Aprovado 08092019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225781

Seguranccedila Liberdade e Concoacuterdia no PensamentoRepublicano de Espinosa

[Security Freedom and Concordia in Spinozarsquos Republican Thought]

Stefano Visentin

Resumo O artigo pretende apresentar a construccedilatildeo dos conceitos deseguranccedila e liberdade nos escritos poliacuteticos de Espinosa para rearti-cular sua construccedilatildeo em diaacutelogo com a tradiccedilatildeo humanista mais espe-cificamente de Thomas More e Erasmo de Rotterdam Tal diaacutelogo seraacuterelacionado com o problema da pietas no seu aspecto moral e a con-cordia em seu aspecto poliacutetico para serem reconsiderados e articula-dos com o realismo poliacutetico introduzido por Maquiavel e Hobbes Fi-nalmente pretendemos analisar a peculiaridade do filoacutesofo holandecircsproblematizando tais conceitos na escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoe do Tratado PoliacuteticoPalavras-chave Espinosa Humanismo Poliacutetica Seguranccedila e Liber-dade

Abstract This paper intends to present the construction of theconcepts of security and freedom in the Spinozarsquos political writingsrethinking its construction in dialogue with the humanist traditionmost specifically with Thomas More and Erasmus of RotterdamThis dialogue is related to the humanist problem of pietas in themoral aspect and concordia in politics aspect to be reconsideredand articulated with the political realism introduced by Machiaveland Hobbes Finally we aim to analyze the peculiarity of the dutchphilosopher problematizing such concepts in the Theological-politicalTreatise and the Political TreatiseKeywords Spinoza Humanism Politics Security and Freedom

1 - A tradiccedilatildeo irenista nos PaiacutesesBaixos dos seacuteculos XVI e XVII

Em 1517 Erasmo de Rotterdampublicou a Querela Pacis consi-derada juntamente com a Uto-

pia por Thomas More o manifestomais significativo do humanismodo seacuteculo XVI1 Os fundamentosda defesa erasmiana da paz satildeoessencialmente a pietas cristatilde noreferente agrave moral e a busca cons-

Uma versatildeo anterior e distinta deste artigo foi publicada em inglecircs na Revista Theoria vol 66 n 15 2019Traduccedilatildeo desta versatildeo por Ericka Marie Itokazu e Mariacutelia PachecoProfessor assistente (ricercatore confermato) de Histoacuteria das Doutrinas Poliacuteticas no Departamento de Economia

Sociedade e Poliacutetica (Desp) da Universitagrave di Urbino Carlo Bo e professor da Scuola di Scienze politiche e socialiE-mail stefanovisentinuniurbit ORCID httporcidorg0000-0001-6963-4798

1Il lamento della pace Testo latino a fronte Federico Cinti (org) com um ensaio de Jean-Claude Margolin MilatildeoBUR 2005

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STEFANO VISENTIN

tante da concordia no referenteagrave poliacutetica em particular esta uacutel-tima torna-se nas deacutecadas seguin-tes um elemento de grande im-portacircncia dentro do debate poliacute-tico e religioso distinguindo-se datoleracircncia que insiste na necessi-dade de aceitar a coexistecircncia deuma pluralidade de feacutes no interiordo mesmo espaccedilo poliacutetico con-trariamente agrave concoacuterdia que visaconstruir um terreno comum paraas diferentes correntes do cristi-anismo em outros termos en-quanto a toleracircncia quer despoli-tizar a religiatildeo (segundo a famosafrase pronunciada por Michel deLrsquoHospital em 1562 segundo aqual ldquoil nrsquoest pas icy de constitu-enda religione sed de constituendarepublica et plusieurs peuvent es-tre cives qui non erunt christianirdquo2) a concoacuterdia diversamente pro-potildee a tarefa de transformar a poliacute-tica segundo uma perspectiva re-ligiosa3

O legado erasmiano percorretodo o seacuteculo XVI influenciandotambeacutem muitos teoacutelogos reforma-dos como Seacutebastien Castellion naFranccedila Sebastian Franck na Ale-

manha Dirck Coornhert nos Paiacute-ses Baixos4 Especialmente nosPaiacuteses Baixos entre o final do seacute-culo XVI e o comeccedilo do seacuteculo se-guinte numerosas tentativas satildeofeitas para elaborar e colocar empraacutetica uma doutrina religiosafundada em dogmas universal-mente aceitos por todas as cren-ccedilas cristatildes presentes no territoacuterioe uma das tentativas mais origi-nais eacute realizada por um grupo decrentes provenientes de diferen-tes seitas (calvinistas arminianosmenonitas quakers socinianos)chamados Colegiantes que esta-belecem uma comunidade fun-dada exclusivamente na leituracomum do texto biacuteblico e na praacute-tica do amor fraterno5 Sabe-seque alguns amigos de Espinosaparticipam desses encontros de-nominados colloquia propheticaentre os quais certamente JarigJelles e Pieter Balling e que pro-vavelmente o proacuteprio Espinosa ofrequenta durante sua estada emRijnsburg no iniacutecio dos anos 60do seacuteculo XVII6

Em resumo natildeo haacute duacutevida deque o contexto histoacuterico e biograacute-fico no qual Espinosa amadurece a

2 de LrsquoHOSPITAL M (1561) Oeuvres complegravetes de Michel de LrsquoHospital Ed por PSJ DUFEY vol 1 ParisBoulland 1824-5 p 452

3 Sobre este tema veja-se TURCHETTI M ldquoReligious Concord and Political Tolerance in Sixteenth- andSeventeenth-Century Francerdquo in Sixteenth Century Journal 122 1991 pp 15-25

4 Cfr BIETENHOLZ PG Encounters with a Radical Erasmus Erasmusrsquo Work as a Source of Radical Thoughtin Early Modern Europe Toronto Toronto University Press 2009

5 FIX AC Prophecy and Reason The Dutch Collegiants in the Early Enlightenment Princeton Princeton Univer-sity Press 1990

6 Cfr NADLER S Spinoza A Life Cambridge Cambridge University Press 1999 cap 7

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

escrita do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoexerce sobre ele uma influecircnciaerasmiana no sentido de umabusca de como estabelecer umarepuacuteblica livre e paciacutefica tantono seu proacuteprio interior quantono confronto com os outros Es-tados e de fato o subtiacutetulo do li-vro jaacute mostra essa orientaccedilatildeo ldquoemque se demonstra que a liberdadede filosofar natildeo soacute eacute compatiacutevelcom a preservaccedilatildeo da piedade eda paz como inclusivamente natildeopode ser abolida sem se abolir aomesmo tempo a paz da repuacuteblicae a proacutepria piedaderdquo 7

No entanto ao lado do idealhumanista irecircnico uma reflexatildeoteoloacutegico-poliacutetica se desenvolveuna Repuacuteblica das Proviacutencias Uni-das durante o seacuteculo XVII colo-cando o realismo poliacutetico no cen-tro da cena e inspirando-se nopensamento de Nicolau Maqui-avel e Thomas Hobbes8 Semaprofundar a recepccedilatildeo do traba-lho desses dois autores na Ho-landa seiscentista eacute preciso lem-brar que tanto o desenvolvimentodo neoestoicismo nas universida-des quanto o do republicanismofora do mundo acadecircmico satildeo afe-tados fundamentalmente pela lei-

tura e discussatildeo dos escritos dosecretaacuterio florentino e do filoacutesofoinglecircs Em particular nesse arca-bouccedilo teoacuterico marcado por umaabordagem realista da naturezae da poliacutetica humanas o espaccedilopara um elogio e a busca pela con-coacuterdia entre indiviacuteduos e Estadosparece ter sido reduzido ao miacute-nimo senatildeo ateacute mesmo cancelado

Espinosa conhece bem o traba-lho desses dois escritores maldi-tos cita-os em seus escritos e ex-trai muitas ideias ndash em particularmas natildeo apenas do agudiacutessimoMaquiavel consequentementeseria muito difiacutecil acreditar que areflexatildeo espinosana sobre a paz ea concoacuterdia natildeo seja afetada pelacriacutetica maquiaveliana e hobbesi-ana da visatildeo humanista da reli-giatildeo e da poliacutetica

2 - Paz concoacuterdia e liberdade noTratado teoloacutegico-poliacutetico

No Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico Es-pinosa repetidamente insiste nanecessidade de instituir dentro darepuacuteblica holandesa uma coexis-tecircncia paciacutefica entre as diferen-tes feacutes religiosas O prefaacutecio por

7Tratado Teoloacutegico-poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2004 p 121 Doravante TTP

8 Sobre a recepccedilatildeo de Maquiavel cfr HAITSMA MULIER EOG ldquoA Controversial Republican Dutch Views onMachiavelli in the Seventeenth and Eighteenth Centuriesrdquo in BOCK G SKINNER Q VIROLI M (orgs) Machi-avelli and Republicanism Cambridge Cambridge University Press 1990 pp 247-263 sobre a recepccedilatildeo de Hobbescfr SECREacuteTAN C ldquoLa reacuteception de Hobbes aux Pays-Bas au XVIIeacuteme siegraveclerdquo in Studia Spinozana 3 1987 pp27-46

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exemplo conteacutem um elogio da re-puacuteblica onde se concede a cadaum inteira liberdade de julgar ede prestar culto a Deus agrave sua ma-neira e onde natildeo haacute nada que seconsidere mais caro e mais doceque a liberdade9 Um elogio anaacute-logo dirigido no entanto apenas aAmsterdatilde estaacute presente no capiacute-tulo final onde Espinosa escreveque na cidade holandesa todos oshomens seja qual for a sua na-ccedilatildeo e sua seita vivem na maisperfeita concoacuterdia10 No seu es-tudo da repuacuteblica teocraacutetica fun-dada por Moiseacutes tambeacutem surgemrazotildees pelas quais um governo re-publicano eacute naturalmente levadoa apoiar a paz e a concoacuterdia emvez de fomentar a guerra e as di-visotildees internas De fato a histoacuteriajudaica mostra que os ritos e ce-rimocircnias religiosas desempenha-ram um papel poliacutetico fundamen-tal (na verdade eles foram ende-reccedilados ldquoagrave contingente felicidadedo corpo e do Estadordquo 11) umavez que envolveram toda a comu-nidade sem a necessidade de umclero que agisse como um corposeparado ndash e de fato foi precisa-mente o nascimento de um apa-rato eclesiaacutestico distinto da co-

letividade de fieacuteis que produziua degeneraccedilatildeo da repuacuteblica ndash edessa maneira gerou uma narra-tiva compartilhada12 que consoli-dou as relaccedilotildees afetivas e a confi-anccedila muacutetua entre os cidadatildeos

Geralmente a reconstruccedilatildeo his-toriograacutefica que Espinosa realizada repuacuteblica mosaica (em parti-cular no capiacutetulo XVII) e os en-sinamentos poliacuteticos que dela de-duz (no capiacutetulo XVIII) propotildeem-se a dois objetivos fundamentais(1) mostrar o perigo que todo or-ganismo poliacutetico corre quando oclero se torna um poder separadoda comunidade e assim assu-mindo um papel poliacutetico mantidopara si (2) enfatizar a superiori-dade de um governo exercido portodo o povo com relaccedilatildeo ao go-verno monaacuterquico uma superio-ridade baseada no imaginaacuterio co-letivo que apesar do risco semprepresente de se tornar supersticcedilatildeodispotildee da potecircncia para estabele-cer um regime no qual pelo me-nos por um certo periacuteodo reinema pietas religiosa e a concoacuterdia

Ao lermos o uacuteltimo capiacutetulo doTratado ndash cujo tiacutetulo afirma ondese demonstra que numa republicalivre eacute uma liacutecito a cada um pen-

9 TTP p 12710 TTP p 39011 TTP p 19112 Retomo estes termos de JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo in

MELAMED YY ROSENTHAL MA (orgs) Spinozarsquos Theological-Political Treatise A Critical Guide CambridgeCambridge University Press 2010 pp 250-267

13 TTP p 383

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sar o que quiser e dizer aquilopensa13 ndash tendo em mente o ensi-namento dos capiacutetulos histoacutericosentatildeo a liberdade a piedade e apaz natildeo soacute aparecem inextricavel-mente conexas mas tambeacutem jun-tas elas contribuem para a formademocraacutetica da repuacuteblica que Es-pinosa considera o melhor regimeorientando seus leitores nessa di-reccedilatildeo A referecircncia agrave paz por-tanto natildeo expressa simplesmentea necessidade de garantir a cadacidadatildeo um espaccedilo intangiacutevel porparte das autoridades no interiordo qual ele possa pensar e dizeraquilo em que acredita sem medode ser perseguido ao contraacuterioa paz eacute a expressatildeo da partici-paccedilatildeo ativa de todos na discus-satildeo puacuteblica seja sobre os prin-ciacutepios da religiatildeo seja sobre osassuntos do Estado somente seos cidadatildeos participam das deci-sotildees poliacuteticas de modo que visemao bem comum eacute possiacutevel afir-mar como no capiacutetulo XVI queldquonuma repuacuteblica e num Estadoonde a lei suprema eacute a salvaccedilatildeode todo o povo e natildeo daquele quemanda quem obedece em tudoao soberano natildeo deve dizer-se es-cravo e inuacutetil a si mesmo masapenas suacuteditordquo 14 Esta referecircncia

agrave figura do suacutedito eacute particular-mente interessante porque quebraa oposiccedilatildeo dicotocircmica entre o es-cravo e o homem livre ndash tiacutepica emmuitos aspectos da ideologia re-publicana da eacutepoca ndash abrindo es-paccedilo para uma concepccedilatildeo dinacirc-mica de liberdade individual queEspinosa define a partir da evo-luccedilatildeo do sistema de relaccedilotildees soci-ais e poliacuteticas na direccedilatildeo de umarepuacuteblica livre ndash isto eacute daquelaem que se liberta das restriccedilotildeesda supersticcedilatildeo e da dominaccedilatildeo dohomem pelo homem Analoga-mente a defesa extrema da li-berdade de expressatildeo no Tratadoteoloacutegico-poliacutetico constitui o grauzero de um percurso de emanci-paccedilatildeo que procede de uma con-cepccedilatildeo individualista de toleracircn-cia muacutetua para o envolvimento decada cidadatildeo na constituiccedilatildeo deuma paz ativa ou melhor deuma concoacuterdia universal entre oscorpos e mentes de cada um inte-grando imaginaccedilatildeo e razatildeo15

Neste ponto resta entenderquais seratildeo de acordo com Espi-nosa os instrumentos que permi-tem a uma repuacuteblica estabelecere defender a paz e a concoacuterdiasem pocircr em risco a seguranccedila co-mum Este uacuteltimo passo requer

14 TTP p 33115 Sobre esta passagem decisiva da reflexatildeo poliacutetica de Espinosa veja-se dois recentes artigos que seguem em

direccedilatildeo anaacuteloga JAMES S ldquoNarrative as the means to freedom Spinoza on the uses of imaginationrdquo cit e SKE-AFF C Becoming Political Spinozarsquos Vital Republicanism and the Democratic Power of Judgment Chicago ChicagoUniversity Press 2018

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levar em consideraccedilatildeo o segundoescrito poliacutetico espinosista o Tra-tado poliacutetico

3 - O processo coletivo de cons-truccedilatildeo da paz no Tratado poliacutetico

A transiccedilatildeo do primeiro para o se-gundo Tratado de Espinosa apre-senta imediatamente um pro-blema teoacuterico relevante que dizrespeito precisamente agrave relaccedilatildeoentre liberdade paz e seguranccedilaDe fato enquanto nas uacuteltimas paacute-ginas do Tratado Teoloacutegico-Poliacuteticoaparece a famosa definiccedilatildeo se-gundo a qual o verdadeiro fimda repuacuteblica eacute de fato a liber-dade16 por outro lado o TratadoPoliacutetico principia por uma afir-maccedilatildeo que parece ir na direccedilatildeooposta

Nem importa para a se-guranccedila do estado queacircnimo dos homens sejaminduzidos a administrarcorretamente as coisascontanto que as coisas se-jam corretamente admi-nistradas A liberdade deacircnimo ou fortaleza eacute comefeito uma virtude pri-vada ao passo que a se-guranccedila eacute a virtude do es-

tado17

Essas duas afirmaccedilotildees tecircm sido in-terpretadas como um sinal de mu-danccedila na atitude de Espinosa emrelaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo poliacutetica de seupaiacutes uma mudanccedila em direccedilatildeoa um maior realismo (ou pessi-mismo) do que o Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico mais militante e demo-craacutetico no segundo Tratado a se-guranccedila torna-se assim um ele-mento a ser salvaguardado maisimportante que a liberdade e por-tanto a paz deve ser entendidamais como toleracircncia e respeitomuacutetuo do que como concoacuterdia euniatildeo dos acircnimos

Na realidade uma leitura maiscuidadosa mostra que as coisassatildeo mais complexas e que natildeo eacutepossiacutevel contrapor claramente osdois escritos Em primeiro lugarmesmo no primeiro Tratado a se-guranccedila eacute considerada um obje-tivo fundamental de todo regimepoliacutetico e em particular da repuacute-blica cujo objetivo eacute

natildeo eacute dominar nem con-ter os homens pelo medoe submetecirc-los a um di-reito alheio eacute pelo con-traacuterio libertar o indiviacuteduodo medo a fim de que ele

16 TTP p 38317 Tratado Poliacutetico Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Diogo Pires Aureacutelio revisatildeo de Homero Santiago Satildeo Paulo

WMF Martins Fontes 2009 p 9 Doravante TP

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viva tanto quanto possiacute-vel em seguranccedila isto eacutea fim de que ele preserve omelhor possiacutevel sem pre-juiacutezo para si ou para osoutros o seu direito na-tural a existir e a agir18

Nessas paacuteginas portanto Espi-nosa mostra como a questatildeo daseguranccedila estaacute implicada na da li-berdade por outro lado no Tra-tado Poliacutetico parece que entreos dois planos haacute uma distinccedilatildeoclara uma vez que a primeiradiz respeito agrave esfera puacuteblica en-quanto a segunda parece estarconfinada agrave dimensatildeo da existecircn-cia individual ou ainda da vidaprivada para a qual a paz de-penderia mais da criaccedilatildeo de umespaccedilo de seguranccedila individualdo que da interaccedilatildeo entre os ci-dadatildeos como se Espinosa tivesseassumido uma inclinaccedilatildeo hobbe-siana (isto eacute negativa) em rela-ccedilatildeo agrave possibilidade de estabelecerum espaccedilo comum de concoacuterdiano interior do Estado

Neste ponto eacute necessaacuterio apro-fundar as teses presentes no Tra-tado poliacutetico Dois satildeo os aspectosmais significativos que devem serevidenciados (1) o tema da segu-

ranccedila eacute assumido por Espinosa nointerior de um regime temporalimaginaacuterio como uma medida deflutuaccedilotildees afetivas no sentido deque a busca por seguranccedila se ex-prime como uma tentativa de que-brar definitivamente a sucessatildeocontiacutenua de medo e esperanccedila queproduz incerteza e mal-estar noshomens19 (2) se a seguranccedila eacute oobjetivo do Estado contudo nemtodo regime poliacutetico eacute adequadopara garanti-lo na verdade umEstado eacute seguro somente se fororganizado de modo a defenderseus suacuteditos natildeo apenas de amea-ccedilas externas mas tambeacutem de pe-rigos ldquointernosrdquo Assim evita-se por um lado que a sociedadese polarize em grupos de indiviacute-duos sui juris e alterius juris ndash ouainda estes subordinados agraveque-les20 ndash e por outro lado que abusca por seguranccedila leve a umaconcentraccedilatildeo de poder nas matildeosde poucos uma vez que os gover-nantes e em particular os reisnatildeo satildeo deuses mas homens quese deixam muitas vezes apanharpelo canto das sereias21 O prin-cipal problema com que Espinosase confronta portanto diz res-peito ao fato de que se o uacutenicomodo de vida seguro eacute estabili-

18 TTP p 38519 Cfr ISRAEumlL N ldquoLa question de la seacutecuriteacute dans le Traiteacute politiquerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY

A (eds) La multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008 pp 81-9320 Cfr TP II sect 921 TP VII sect 1 p 64

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zar os direitos naturais atraveacutesde leis esse processo envolve orisco de que um modelo de se-guranccedila seja imposto (para usarum termo do leacutexico poliacutetico con-temporacircneo) que isola os indiviacute-duos e os controla atraveacutes de umdispositivo que mistura medo econfianccedila cega na accedilatildeo das auto-ridades para escapar desse riscomais uma vez eacute necessaacuteria umaestrateacutegia coletiva22

Cabe ao Capiacutetulo V esclareceros princiacutepios dessa estrateacutegia quedeve necessariamente envolver omaior nuacutemero possiacutevel de cida-datildeos De fato se o direito deum Estado se define pela potecircn-cia da multidatildeo23 segue-se quesomente a participaccedilatildeo ativa damultidatildeo de cidadatildeos torna pos-siacutevel produzir leis que atinjam oobjetivo de uma comunidade po-liacutetica ou melhor ldquoa paz e a se-guranccedila de vida pelo que o me-lhor estado eacute aquele onde os ho-mens passam a vida em concoacuterdiae onde os direitos se conservaminvioladosrdquo 24 Emerge a essa al-tura uma definiccedilatildeo de paz quese opotildee explicitamente agrave famosatese hobbesiana que define a pazcomo o tempo residual em rela-

ccedilatildeo ao tempo da guerra25 con-trariamente Espinosa escreve queldquoda cidade cujos suacuteditos toma-dos pelo medo natildeo pegam em ar-mas deve antes dizer-se que estatildeosem guerra do que dizer-se quetecircm paz Porque a paz natildeo eacute au-secircncia de guerra mas virtude quenasce da fortaleza de acircnimordquo 26

O conceito de seguranccedila eacute assimredefinido com base em uma con-cepccedilatildeo ativa de paz que retomaa mesma loacutegica encontrada nas uacutel-timas paacuteginas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico e que pressupotildee a possibi-lidade concreta de que a multidatildeopossa exercer uma forccedila de auto-emancipaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves con-diccedilotildees determinadas pelas leis einstituiccedilotildees

A multidatildeo ndash um nome que noTratado Poliacutetico define o conjuntode relaccedilotildees que vincula os indi-viacuteduos em uma comunidade po-liacutetica ainda que em uma dimen-satildeo dinacircmica e transformadora ndasheacute portanto a portadora de umaliberdade especiacutefica natildeo expliacutecitaou completamente racional No-vamente o capiacutetulo V afirma quea multidatildeo livre ldquoconduz-se maispela esperanccedila que pelo medo aopasso que uma multidatildeo subju-

22 Sobre a natureza estrateacutetgica do pensamento eacutetico e poliacutetico espinosano cfr BOVE L La strateacutegie du conatusAffirmation et reacutesistance chez Spinoza Paris Vrin 1996

23 TP II sect 17 p 2024 TP V sect 2 p 4425 ldquoA natureza da guerra natildeo consiste na luta real mas na conhecida disposiccedilatildeo para tal durante todo o tempo

em que natildeo haacute garantia do contraacuterio Todo o tempo restante eacute de pazrdquo (T Hobbes Leviatatilde I XIII traduccedilatildeo livre)26 TP V sect 4 pp 44-45

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gada conduz-se mais pelo medoque pela esperanccedilardquo 27 Nesse sen-tido a multidatildeo existe em funccedilatildeoda liberdade natildeo porque a de-seje conscientemente mas porquepertence agrave sua natureza a tendecircn-cia a se libertar ndash ao menos comouma fuga da solidatildeo e da escra-vidatildeo uma liberdade necessaacuteriaembora enigmaacutetica como a de-fendeu Franccedilois Zourabichvili28

em um belo ensaio haacute alguns anosatraacutes

Segundo Zourabichvili a liber-dade da multidatildeo coincide com oproblema poliacutetico da transiccedilatildeo deuma condiccedilatildeo de escravidatildeo paraum regime de autonomia talvezsomente parcial Isto significaque para Espinosa a liberdadenatildeo tem valor fundacional natildeosendo um direito natural originalque deve ser salvaguardado nemeacute um princiacutepio regulador que di-reciona a accedilatildeo de um sujeito paraum fim externo a ele a liberdadeeacute o iacutendice de uma praacutetica transfor-madora em contiacutenuo devir o re-sultado conjuntural e ao mesmotempo dos processos de transfor-maccedilatildeo sempre em ato da estruturade uma comunidade

Para retornar ao conceito espi-

nosano de paz creio que estaacute claroque a concepccedilatildeo erasmiana se-gundo a qual a paz coincide coma concoacuterdia e a uniatildeo fraterna doshomens encontra no Tratado po-liacutetico uma reinterpretaccedilatildeo poliacuteticaque pretende responder ao desa-fio proveniente do realismo ma-quiaveacutelico e hobbesiano Isso sig-nifica que por um lado o textoespinosano refuta uma concepccedilatildeoda concoacuterdia puramente moral ouutoacutepica uma vez que natildeo seria ca-paz de construir um Estado quegaranta a seguranccedila de seus cida-datildeos no entanto a paz natildeo podeser considerada como a mera au-secircncia de conflito jaacute que ldquodaquelacidade cuja paz depende da ineacuter-cia dos suacuteditos os quais satildeo con-duzidos como ovelhas para queaprendam soacute a servir mais cor-retamente se pode dizer uma so-lidatildeo do que uma cidaderdquo 29 Ocontraste ndash tambeacutem terminoloacutegicondash entre a multidatildeo e a solidatildeoque aparece nestas paacuteginas ex-prime com a maacutexima clareza oque definimos como estrateacutegia po-liacutetica de Espinosa o seu realismoanocircmalo como define Diego Ta-tiaacuten30 capaz de unir a forccedila ana-liacutetica de Maquiavel e Hobbes com

27 TP V sect 6 p 4528 ZOURABICHVILI F Lrsquoeacutenigme de la ldquomultitude librerdquo in JAQUET C SEacuteVEacuteRAC P SUHAMY A (orgs) La

multitude libre Nouvelles lectures du Traiteacute politique cit pp 69-8029 TP V sect 4 p 4530 TATIAacuteN D ldquoSpinoza un realismo anoacutemalo de la pazrdquo in Araucaria Revista Iberoamericana de Filosofiacutea

Poliacutetica y Humanidades1632 2014 pp 93-109

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uma perspectiva poliacutetica que pre-tende dar efetividade aos proces-sos coletivos de emancipaccedilatildeo Asolidatildeo de fato natildeo representauma condiccedilatildeo apoliacutetica uma es-peacutecie de retorno do estado de na-tureza mas define aquele regime(que anteriormente era definidocomo de seguranccedila) no qual apotecircncia comum da multidatildeo estaacuteem seu grau miacutenimo fazendo comque os cidadatildeos individuais vivamem uma condiccedilatildeo de isolamento eindiferenccedila muacutetuos ndash condiccedilatildeo ge-rada pelo poder poliacutetico ndash o quetorna extremamente difiacutecil a co-municaccedilatildeo e com ela a ativaccedilatildeode processos de muacutetuo acordo ecolaboraccedilatildeo

Para combater esta tendecircncia ndashalimentada pela ineacutercia e passi-vidade proacutepria das paixotildees tris-tes e da supersticcedilatildeo que sempreem certa medida atravessam amultidatildeo ndash Espinosa desenvolveuma seacuterie de medidas institucio-nais que desempenham a tarefa defortalecer os afetos alegres contri-buindo assim agrave produccedilatildeo de di-reitos coletivos comuns e ao forta-lecimento da uniatildeo e da concoacuterdiados acircnimos Vale a pena recordar

rapidamente algumas dessas ins-tituiccedilotildees da multidatildeo (que se) li-berta uma para cada forma de go-verno (1) o exeacutercito popular quesobretudo em uma monarquiaimpede o soberano de fazer guerrapara seu ganho pessoal e contrao interesse de seus suacuteditos31 (2)as formas de controle dos regi-mes aristocraacuteticos por parte doscidadatildeos em particular o sistemade remuneraccedilatildeo dos governantesde tal modo que ldquopara eles sejade mais utilidade a paz do que aguerrardquo 32 (3) a abertura de car-gos puacuteblicos para todos os cida-datildeos em uma democracia o queimpede que um grupo limitado deindiviacuteduos monopolize os postosdo governo33 No entanto aleacutemdas numerosas medidas de enge-nharia institucional que Espinosapropotildee no Tratado Poliacutetico haacute tam-beacutem outro instrumentordquo de fun-damental importacircncia ndash aleacutem dasleis e instituiccedilotildees ndash para impedira gecircnese de um regime baseadona solidatildeo qual seja o direito deguerra que constitui o baluarte ex-tremo da liberdade da multidatildeode fato se as leis de um Estado

31 Cfr TP VI sect 10 p 51 ldquoO exeacutercito deve ser formado soacute por cidadatildeos sem excetuar nenhum e por maisningueacutem de maneira que todos tenham de ter armas e ningueacutem seja admitido no nuacutemero dos cidadatildeos a natildeo serdepois de ter preparaccedilatildeo militar e se comprometer a exercitaacute-la em determinadas alturas do anordquo

32 TP VIII sect 31 p 10533 Cfr TP XI sect 1 p 137 ldquotodos aqueles cujos pais satildeo cidadatildeos ou que nasceram no solo paacutetrio ou que satildeo

benemeacuteritos da repuacuteblica ou a quem a lei por outros motivos manda atribuir o direito de cidade todos essesdigo reclamaratildeo para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado o qualnatildeo eacute liacutecito recusar-lhes a natildeo ser devido a crime ou infacircmiardquo

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satildeo de natureza tal quenatildeo podem ser violadassem que ao mesmo tempose debilite a robustez dacidade isto eacute sem que aomesmo tempo o medo co-mum da maioria dos cida-datildeos se converta em indig-naccedilatildeo a cidade por issomesmo dissolve-se e cessao contrato o qual porconseguinte natildeo eacute defen-dido pelo direito civil maspelo direito de guerra34

A referecircncia a um direito (oumelhor a uma forccedila para natildeocair no equiacutevoco de pensar emum Espinosa monarcocircmaco) queexcede o niacutevel do direito estataltambeacutem estaacute presente nas paacuteginasconclusivas do Tratado teoloacutegico-poliacutetico onde se afirma que namaioria dos homens haacute uma ten-decircncia inevitaacutevel para resistir agraveopressatildeo a ponto de ldquojulgaremque eacute uma coisa mais honesta enatildeo uma vergonha que natildeo sejasomente com as pretensotildees decrimesrdquo 35

Para concluir nas paacuteginas dosdois tratados poliacuteticos espinosa-

nos mesmo que trilhando per-cursos diferentes eacute apresentadaa mesma tentativa de repensara concepccedilatildeo humanista de paze concoacuterdia apoacutes o desafio tra-zido pelo realismo antropoloacutegicoe poliacutetico de Maquiavel e Hob-bes Para tornar eficaz o projetode Erasmo eacute necessaacuterio politizaacute-lo ou melhor reconhecer que soacute eacutepossiacutevel atraveacutes do envolvimentoativo da multidatildeo em cuja potecircn-cia se radica a busca do bem co-mum (a res publica) se natildeo paragarantir a paz de forma definitivapelo menos para impedir que setransforme em solidatildeo e subservi-ecircncia ao poder de um Somenteuma praacutetica comum que potildee emjogo a imaginaccedilatildeo os afetos e a ra-zatildeo coletivas pode gerar uma pazque consiste natildeo apenas em evitara morte mas tambeacutem e sobretudono cultivar a vida Por essa ra-zatildeo natildeo pode haver uma condiccedilatildeode paz que natildeo seja tambeacutem umacondiccedilatildeo de liberdade tanto indi-vidual quanto coletiva uma liber-dade sempre por recomeccedilar oucomo escreve Marilena Chaui porintroduzir o novo no mundo36contra a repeticcedilatildeo interminaacutevel emortal da guerra e da escravidatildeo

34 TP IV sect 6 p 4135 TTP XX p 38836 CHAUI M ldquoSeguranccedila e liberdade Espinosa e a construccedilatildeo da pazrdquo in Discurso 35 2005 pp 158-159

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SEGURANCcedilA LIBERDADE E CONCOacuteRDIA NO PENSAMENTO REPUBLICANO DE ESPINOSA

du Traiteacute politique Paris Eacuteditions Amsterdam 2008

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225780

Comunicaccedilatildeo e Silecircncio na Experiecircncia PoliacuteticaEspinosana

[Communication and Silence in the Spinozist Political Experience]

Daniel Santos da Silva

Resumo Um problema fundamental eacutetico e poliacutetico a comunicaccedilatildeoencerra menos a preocupaccedilatildeo com a verdade como mero objeto doque com os afetos como exerciacutecio de vida e explicitaccedilatildeo praacutetica daexperiecircncia que ensina Aqui alguns elementos satildeo elencados paracaracterizar a difiacutecil relaccedilatildeo do filoacutesofo ndash da filosofia da reflexatildeo dopensamento criacutetico ndash com a violecircncia (anti)poliacutetica que se expressaem muitas ocasiotildees no verbo idiota ndash poreacutem agraves vezes efetivo ndash e naproliferaccedilatildeo do oacutedio do medo e da exclusatildeoPalavras-chave Comunicaccedilatildeo silecircncio afetos poliacutetica

Abstract A fundamental ethical and political problem communica-tion has less concern with truth as a mere object than with affectionsas the exercise of life and the practical explanation of the experiencethat teaches Here some elements are listed to characterize thephilosopherrsquos - philosophy reflection critical thinking - difficultrelationship with the (anti)political violence that is often expressedin the verb idiot - but sometimes effective - and in the proliferationof hatred fear and exclusionKeywords Communication silence affections politics

A cautela era reconhecidamentea marca de Espinosa A palavracaute figurava no anel de sinetecom o qual selava suas correspon-decircncias ao se comunicar com ami-gos em muitas das quais eramressaltados alguns dos perigos queatingem a quem pensa livrementepor outro lado tambeacutem outrastantas cartas e escritos de Espi-nosa nos permitem tomar essa fi-losofia por uma exposiccedilatildeo clara

de como a paixatildeo do medo des-figura nossas potecircncias amorteceas veias de comunicaccedilatildeo essenci-ais agrave proacutepria existecircncia da vidacoletiva Ora como distinguir aprudecircncia presente no emblemaCaute para a comunicaccedilatildeo do pen-samento livre sem a confundircom a paixatildeo de medo que a des-figura Afinal segundo Espinosauma eacute a potecircncia de viver e resistirpela esperanccedila de vida outra eacute a

Professor da Universidade Estadual do Paranaacute (UNESPAR) Doutor em Filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo E-mail danidani_ssyahoocombr ORCID httpsorcidorg0000-0002-3841-2516

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potecircncia (ou impotecircncia) na confi-guraccedilatildeo de meios e fins para ape-nas existir com o medo da morte

a multidatildeo livre conduz-se mais pela esperanccedilaque pelo medo ao passoque uma multidatildeo subju-gada conduz-se mais pelomedo que pela esperanccedilaaquela procura cultivara vida esta procura so-mente que evitar a morteaquela sublinho procuraviver para si esta eacute obri-gada a ser do vencedor edaiacute dizermos esta eacute servae aquela eacute livre () Eembora entre o estado queeacute criado pela multidatildeo li-vre e aquele que eacute adqui-rido por direito de guerrase atendermos generica-mente ao direito de cadaum natildeo haja nenhumadiferenccedila essencial con-tudo quer o fim como jaacutemostramos quer os meioscom os quais cada um de-les se deve conservar tecircmenormes diferenccedilas (ESPI-NOSA 2009 p 45)

Poreacutem ainda que o medo indi-que servidatildeo ele eacute paixatildeo inso-luacutevel e encarnada em muitos dosmovimentos afetivos que realiza-mos entre outras pessoas muitas

vezes a serviccedilo de barrar a ambi-ccedilatildeo de quem se imagina melhore vive como melhor frente agrave po-tecircncia da multidatildeo De qualquermaneira ao propormos a questatildeosobre comunicaccedilatildeo e o silecircncio napoliacutetica raramente a prudecircnciaa deliberaccedilatildeo ou a cautela foramreduzidas na filosofia agrave paixatildeo domedo Haacute linhas que podem serbem demarcadas entre as duasposturas na cautela um certo co-nhecimento das coisas do mundotende a orientar os passos a se-rem dados se temos em vista umfim o medo em geral apenas des-nuda nossa impotecircncia e ignoracircn-cia por isso natildeo nos surpreendeque inclusive quem se guia portal paixatildeo se ponha a vociferar e afingir destemor quando instacircnciasdeterminadas garantem proteccedilatildeoou anonimato O medo pode fa-zer calar mas pode igualmente fa-zer gritar alucinadamente A cau-tela por sua vez tambeacutem podenos fazer calar mas nunca com-pletamente como mostraremos aseguir e o grito que pode acompa-nhar a cautela eacute de outra naturezaque a do medo - uma espeacutecie deconhecimento que acompanha acautela faz do grito algo expres-sivo de quem se comunica a cau-tela esconde o que pode ser escon-dido (natildeo haacute desejo de martiacuterio)mas expotildee o que pode e deve servivido

Satildeo sentidos de urgecircncia dis-

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tintos mesmo assim natildeo dicotocirc-micos pois somos habitados porafetos muacuteltiplos e a coerecircncia quedeles podemos trazer conosco eacutesempre esforccedilo (conatus) A praacuteticaespinosana da filosofia funda-seno desejo (conatus-cupiditas) tam-beacutem de comunicar-se e a coerecircn-cia de nossos esforccedilos estaacute mais nanecessidade de fazer fluir experi-ecircncias vitais do que em produzirdiscursos sem contradiccedilotildees Nessesentido o mais determinante satildeoos afetos comuns que nos asseme-lham e nos diferenciam em nossasexperiecircncias vitais e se expressama nossas proacuteprias vistas A expe-riecircncia de comunicar-se entatildeo eacutepor demais complexa e natildeo resideapenas em disseminar ideias ade-quadas (em uma sorte de vanguar-dismo filosoacutefico) tampouco emsimplesmente informar (um certotipo de razatildeo instrumental discur-siva) Em vez disso o ponto co-mum de que partimos para com-preender as experiecircncias poliacuteticassatildeo as paixotildees os afetos comunscomo medo e esperanccedila tal comose apresentam na praacutetica aqui re-tomada para relembrar o lema es-pinosano do Tratado poliacutetico a rei-vindicaccedilatildeo por uma filosofia po-liacutetica que compreenda as paixotildeesde modo realista e natildeo utoacutepico eque portanto natildeo seja apenas sa-ber teoacuterico discursivo distante dapraacutetica Sem serem condenadaspela imagem de uma natureza de-

caiacuteda e viacuteciosa as paixotildees seratildeoali compreendidas como proprie-dades humanas tal com o planoe a reta satildeo propriedades das fi-guras geomeacutetricas As paixotildeesentretecem as relaccedilotildees dos sereshumanos como prevalentementeambiciosos invejosos e aacutevidos dedistinccedilatildeo ao mesmo tempo emque pelas mesmas propriedadesda natureza humana compreen-demos tambeacutem a solidariedade agenerosidade a fortaleza

Os afetos mais ativos que decor-rem de nossa natureza satildeo con-cretamente exerciacutecio vivo de rela-ccedilotildees que carregam consigo o pen-samento reflexivo satildeo igualmenteproduccedilotildees efetivas de laccedilos entreo indiviacuteduo e o que o cerca maisfirmes que a parceria efecircmera comas coisas e pessoas fundada na ri-queza no prazer ou na gloacuteria ouem outras paixotildees dessa estirpepara lembrar o proecircmio Tratadoda emenda do intelecto (Espinosa2015b) Ao fim natildeo eacute a ldquoideiada verdaderdquo que determina nos-sas accedilotildees pois mesmo no campoda compreensatildeo racional a po-tecircncia intelectual que somos eacute to-mada como expressatildeo de afetos Averdade portanto natildeo opera comonegaccedilatildeo das paixotildees e nem umaideia verdadeira eacute capaz de refrearas paixotildees afinal eacute a forccedila de umafeto contraacuterio e mais forte (sejaele racional ou irracional ade-quado ou inadequado) que pode

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suprimir por exemplo o medo1Esse contexto nos aproxima deideias fundamentais da eacutetica es-pinosana e poderaacute nos oferecer oreal sentido afetivo do que o filoacute-sofo entende por cautela

Certo dia encontrei um textode Joaquim de Carvalho sobre oanonimato de Espinosa na publi-caccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-poliacuteticoque traduz o que aqui defendemosa propoacutesito de sua cautela

Espinosa natildeo nascera comalma de maacutertir Ele ti-nha que dizer aos con-temporacircneos e aos vin-douros preocupava-o odestino da mensagem enatildeo a fama de a haverproferido Se declarasseo nome abriam-se-lhe asportas do caacutercere e agrave infacirc-mia da pessoa sucederiama reclusatildeo e a ignoracircnciado seu pensamento Ondeestaacute o filoacutesofo que natildeo an-teponha a discussatildeo dasideias ao renome da pes-soa ao viver o pervivere para resguardar o des-tino das suas meditaccedilotildeesnatildeo recate o ser fiacutesico seisso for propiacutecio Natildeo

o anonimato do TratadoTeoloacutegico-Poliacutetico natildeo eacuteprova de repulsiva cobar-dia pelo que sabemosou antes ignoramos daiacutendole de Espinosa pen-samos antes que eacute teste-munho da humanitas seumodestia virtude que aEacutetica admiravelmente de-fine (CARVALHO 2019)

O anonimato recobre a prudecircn-cia e natildeo menos a urgecircncia deintervir filosoficamente na expe-riecircncia comum poliacutetica que porsua vez intervinha diretamenteem sua vida a ponto de quase sermorto quando esfaqueado por umldquoinimigordquo amedrontado pelo livrepensar No caso a pobre expe-riecircncia poliacutetica do medo das li-vres ideias natildeo se identifica pron-tamente agraves atitudes violentas dequem teme o livre comunicar-sendash ao contraacuterio podemos afirmarque a violecircncia eacute a fronteira paralaacute da qual a experiecircncia poliacuteticatorna a ser experiecircncia de guerra(natildeo de conflito nos moldes a queestamos acostumados contempo-raneamente pois aqui retomamosa partir de Maquiavel e Espinosaa reflexatildeo sobre direito de guerra)

1 Remeto agrave quarta parte da Eacutetica Proposiccedilatildeo I (Espinosa 2015a p 383) ldquoNada que uma ideia falsa tem depositivo eacute suprimido pela presenccedila do verdadeiro enquanto verdadeirordquo e a Proposiccedilatildeo VII (Espinosa 2015a p389) ldquoUm afeto natildeo pode ser coibido nem suprimido a natildeo ser por um afeto contraacuterio e mais forte que o afeto aser coibidordquo

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Espinosa seguia as trilhas de ummundo poliacutetico em seu tempoque insinuava constantemente oterror como forccedila capaz de manterunida a repuacuteblica de fazer passara disseminaccedilatildeo da violecircncia porforccedila integradora e restauradorade potecircncia poliacutetica

Assim a cautela provoca silecircn-cios estrateacutegicos e pode ocultarum nome enquanto expotildee algoprofundamente poliacutetico e devesaber discernir na experiecircncia po-liacutetica o que esta experiecircncia re-vela de violento de antipoliacuteticode desejo de exclusatildeo e destrui-ccedilatildeo A maior dificuldade surgeexatamente quando a comunica-ccedilatildeo ela mesma e suas condiccedilotildeesde efetividade satildeo deturpadas ateacuteque a violecircncia que perpassa cer-tas accedilotildees seja vista como ato poliacute-tico ndash como as que se substanciamna negaccedilatildeo da alteridade das di-ferenccedilas ndash e que as possibilidadesde comunhatildeo sejam tatildeo bloquea-das agraves nossas vistas cansadas docotidiano que o que diz respeitode fato agrave cidade passa a ser ne-gligenciado ou mesmo excomun-gado como peacuterfido e prejudicial ndashpodemos reconhecer bem a persis-

tecircncia nesse caso da imagem dopoliacutetico2 peacuterfido sempre a pre-parar armadilhas e sua extrapo-laccedilatildeo justamente segue na mesmaesteira daquilo que poderia produ-zir o reverso alguma forma de es-clarecimento na multiplicaccedilatildeo dosmeios de comunicaccedilatildeo

O falar e o calar sentimos mui-tas vezes constituem uma expe-riecircncia eacutetica tanto quanto poliacute-tica Espinosa escreve no escoacutelioda segunda proposiccedilatildeo da terceiraparte da Eacutetica as coisas humanasdar-se-iam muito mais felizmentese nos homens estivesse igual-mente o poder (potestate) tanto defalar quanto de calar Ora a expe-riecircncia ensina mais que suficien-temente que os homens nada tecircmmenos em seu poder do que a liacuten-gua e que nada podem menos doque moderar seus apetites (Espi-nosa 2015 p 245) Se a poliacuteticaexiste em funccedilatildeo da dificuldadeintriacutenseca agrave existecircncia humana demoderar os apetites existe tam-beacutem como esfera de moderaccedilatildeo dafala - e o moderar tambeacutem nos en-via ao governar ao criar medidas(impor a justeza) Nesse sentidoo campo poliacutetico potildee-se tambeacutem

2 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 pp 6-7) ldquoOs poliacuteticos pelo contraacuterio crecirc-se que em vez de cuidaremdos interesses dos homens lhes armam ciladas e mais do que saacutebios satildeo considerados habilidosos A experiecircnciana verdade ensinou-lhes que enquanto houver homens haveraacute viacutecios Daiacute que ao procurarem precaver-se damaliacutecia humana por meio daquelas artes que uma experiecircncia de longa data ensina e que os homens conduzidosmais pelo medo que pela razatildeo costumam usar pareccedilam adversaacuterios da religiatildeo principalmente dos teoacutelogos osquais creem que os poderes soberanos devem tratar dos assuntos puacuteblicos segundo as mesmas regras da piedadeque tem um homem particular Eacute no entanto inquestionaacutevel que os poliacuteticos escreveram sobre as coisas poliacuteticas demaneira muito mais feliz que os filoacutesofos Dado com efeito que tiveram a experiecircncia por mestra natildeo ensinaramnada que se afastasse da praacuteticardquo

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como produtor de sentido de falase pode ser encarado como condi-ccedilatildeo de muitas expressotildees comunsmas inversamente pode ser ter-reno de violecircncia agravequilo que seconstitui comunitariamente

A violecircncia pode estar no calaraquela a que mais atentamos nor-malmente pode estar tambeacutemcontudo no fazer falar no induziragrave expressatildeo falada forma menoscostumeira aparentemente masdas mais recorrentes em nossosdias O transtorno dessa formade induccedilatildeo agrave tagarelice eacute legiacutevelna escrita de Espinosa seja por-que admite que apesar de natildeo sertatildeo faacutecil submeter acircnimos comose submetem liacutenguas os acircnimosestatildeo de certa forma sob os pode-res soberanos e se submetem aosmeios capazes de levar a maioriaa amar e odiar o que querem taispoderes ndash mais a gritar de oacutedio oude amor com a medida a mode-raccedilatildeo requerida para suas finali-dades (ESPINOSA 2008 p 252)seja enfim porque prognosticanessa menor dificuldade em do-minar as liacutenguas que os acircnimosa necessaacuteria violecircncia em que re-cai toda forma de poder que seexerce sobre nossa liberdade deraciocinar e de ajuizar Em rela-ccedilatildeo a isso lembremos as primei-ras linhas do uacuteltimo capiacutetulo doTratado Teoloacutegico-Poliacutetico

Se fosse tatildeo faacutecil mandar

nos acircnimos como eacute man-dar na liacutenguas natildeo have-ria nenhum governo quenatildeo estivesse em segu-ranccedila ou que recorresse agraveviolecircncia uma vez que to-dos os suacuteditos viveriam deacordo com o desiacutegnio dosgovernantes e soacute em fun-ccedilatildeo das suas prescriccedilotildees eacuteque ajuizariam do que erabom ou mau verdadeiroou falso justo e iniacutequo(ESPINOSA 2008 p 300)

O tom quase matemaacutetico natildeo sur-preende pelo menos a quem natildeoespera juiacutezo moral dessa filoso-fia poliacutetica o que temos no con-texto dessa citaccedilatildeo eacute uma sorte dealerta a quem pretende dominar ndashe como isso apenas eacute possiacutevel sea potecircncia de muitos daacute suportea tamanha ambiccedilatildeo a consequecircn-cia mais necessaacuteria que daiacute segueeacute a violecircncia sempre agrave sombrade pensamentos e praacuteticas irredu-tiacuteveis em sua persistecircncia eacutetico-poliacutetica A liberdade de fala es-tudo e ensino diferencia-se do cul-tivo da fala violentamente antipo-liacutetica como a resistecircncia de quemdeseja a liberdade diferencia-se dodesejo de abandonar a potecircnciaproacutepria Nessa configuraccedilatildeo emque a fala antipoliacutetica exerce o do-miacutenio poliacutetico satildeo os indiviacuteduosmais notaacuteveis pelo conhecimentoe pelo exerciacutecio da comunicaccedilatildeo

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pelo envolvimento livre e afetivocom as partes mais violentadas dacidade que seratildeo os primeiros per-seguidos nos confrontos ndash aindaque verbais ndash que se instalam emmeio agrave ldquocomunidaderdquo3

O ldquomandar nos acircnimos e nasliacutenguasrdquo em nome da seguranccedilaa que busca o exerciacutecio violentode poder no Tratado Teoloacutegico-poliacutetico natildeo se identifica poiscom a definiccedilatildeo de seguranccedila doTratado poliacutetico4 entendida comouma virtude da cidade correspon-dente agrave virtude privada que jus-tamente preserva a liberdade e afortaleza do acircnimo Neste caso aindividual liberdade de acircnimo (oufortaleza) se realiza na mesma me-dida em que sinaliza a concreccedilatildeodos direitos naturais dos indiviacute-duos em atividade comum comovemos muito bem articulado nosegundo Tratado Paralelamentea ilusoacuteria liberdade de expres-sar em fala o oacutedio ndash ou de per-seguir odiosamente a fala livre ndashnessa configuraccedilatildeo em que com-plexos imaginaacuterios (efetivos) de

dominaccedilatildeo formatam a poliacuteticaeacute impregnada de arrebatamentoem crenccedilas e em desprezos quesurgem como escreve Espinosasob a autoridade e a orientaccedilatildeo dequem domina ndash o que a experi-ecircncia abundantemente confirma(ESPINOSA 2008 p252)

E porque satildeo muitos os indi-viacuteduos orientados pela liberdadeilusoacuteria e arrebanhados pela am-biccedilatildeo de domiacutenio de poucos oua imagem da poliacutetica se apro-xima da dinacircmica de um sindi-cato de ladrotildees ou ela eacute reformu-lada Ora isso que implica ou-tra armadura para o que se consi-dera a experiecircncia poliacutetica outramedida (moderaccedilatildeo) para o quese tem vulgarmente por accedilatildeo po-liacutetica e na mesma corrente poraccedilatildeo puacuteblica Se o pouco poderque temos sobre nossas liacutenguaspode ser deixado a quem desejadominar se aleacutem disso para do-minar eacute preciso atacar os acircnimosdos indiviacuteduos um meio eficazpara isso seria exatamente emprimeiro lugar dar agrave voz submissa

3 No Tratado Teoloacutegico-poliacutetico (ESPINOSA 2008 p 307) ldquoQuanto mais natildeo valeria conter a ira e o furordo vulgo em vez de promulgar leis inuacuteteis que soacute podem ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e asartes leis que reduzem o Estado a uma situaccedilatildeo tal que eacute incapaz de defender os homens livres Que coisa piorpode imaginar-se para um Estado que serem mandados para o exiacutelio como indesejaacuteveis homens honestos soacute por-que pensam de maneira diferente e natildeo sabem dissimular () os que sabem que satildeo honestos natildeo tecircm como oscriminosos medo de morrer nem imploram clemecircncia na medida em que natildeo os angustia o remorso de nenhumfeito vergonhoso recusam-se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e tecircm por uma gloacuteria dar a vidapela liberdade Que exemplo poderaacute entatildeo ter ficado da morte de pessoas assim cujo ideal eacute incompreendido pelosfracos e moralmente impotentes odiado pelos revoltosos e amado pelos homens de bem Ningueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum a natildeo ser para os imitar ou pelo menos admirarrdquo

4 No Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 9) ldquoNem importa para a seguranccedila do estado (imperium) com queacircnimo os homens satildeo induzidos a administrar corretamente as coisas contanto que as coisas sejam corretamenteadministradas A liberdade de acircnimo ou fortaleza eacute com efeito uma virtude privada ao passo que a seguranccedila eacute avirtude do estadordquo

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todo incentivo agrave fala (entendidaaqui como falsa liberdade de co-municaccedilatildeo) e em segundo lugarinversamente agrave verdadeira liber-dade de juiacutezo e de acircnimo dar aresde subversatildeo de amotinamento oqual eacute fundado em realidade nacomunicaccedilatildeo do que eacute verdadeira-mente uacutetil ao comum

Nessa configuraccedilatildeo em ambosos casos o medo eacute o afeto mais co-mum ainda assim traccedilos diversosdenunciam a natural diferenccedila en-tre os locais em que habita se pen-samos em termos maquiavelianosnotamos que o desejo de domiacute-nio eacute inseparaacutevel do medo a tudomedo da verdade ndash como desejode ser enganado5 ndash eis uma dasrazotildees de natildeo poder durar e Es-pinosa relembra Secircneca para afir-mar que o despotismo tem neces-sariamente vida curta (Espinosa2008 p 86) Por outro lado o de-sejo de natildeo ser dominado ndash e tam-beacutem o desejo que persiste em natildeoser governado por semelhantes ndashenlaccedila o medo inevitaacutevel pela proacute-pria sobrevivecircncia mas especial-

mente questiona a permanecircnciada vida como simples sobrevida6

Talvez entatildeo possamos pers-pectivar como resistecircncia a ne-gaccedilatildeo a aderir agrave fala orientada equem sabe ateacute possamos ver nissoo silecircncio como constituiccedilatildeo emalguns momentos de verdadeiraalianccedila comunicativa Em certasconfiguraccedilotildees haacute resistecircncia ativano silecircncio assim como haacute igual-mente cautela no pronunciar-seou no anunciar-se inevitavel-mente existe o vazio das falassubmissas e fundadas na negaccedilatildeoe no medo da liberdade comumPara que uma asserccedilatildeo como essafaccedila sentido hoje natildeo liguemosagrave ideia de dominaccedilatildeo apenas go-vernantes poliacuteticos jaacute que meiose instrumentos de subjugaccedilatildeo doacircnimo muito se complexificaram erefinaram-se A eficaacutecia atual so-bre os acircnimos jaacute eacute capaz de fazerparecer bobagem falar ndash critica-mente natildeo como frase pronta demercadoria ndash em desejo de liber-dade

Portanto a violecircncia poliacutetica

5 Cf essa bela passagem de MARILENA CHAUI em Poliacutetica em Espinosa p 279 ldquoO soberbo no orgulhodesmedido considera que tudo lhe eacute permitido o abjeto na humilhaccedilatildeo desmedida considera que nada lhe eacutepermitido O primeiro se torna dominador insolente o outro servo adulador invejoso e ressentido Ambos sub-missos agraves suas paixotildees satildeo fonte de novas servidotildees pois o soberbo julga-se livre porque domina e despreza osoutros enquanto o abjeto adulador imagina-se dependente dos favores do soberbo que por definiccedilatildeo nunca hatildeode vir Assim o segundo movimento do texto do Poliacutetico (VII 27) inicia-se quando transferido o topos livianoda plebe para o vulgar passamos daquele que se deixa enganar por inexperiecircncia e ignoracircncia agravequele que desejaser enganado por orgulho e ambiccedilatildeo ou por auto-abjeccedilatildeo Por isso servidatildeo e liberdade natildeo andam juntas pois osoberbo eacute servo de suas paixotildees que o fazem servo de seus aduladores e estes servos de suas paixotildees que os fazemservos do dominadorrdquo

6 Cf Tratado Poliacutetico (ESPINOSA 2009 p 45) ldquoQuando por conseguinte dizemos que o melhor estado eacuteaquele onde os homens passam a vida em concoacuterdia entendo a vida humana a qual natildeo se define soacute pela cir-culaccedilatildeo do sangue e outras coisas que satildeo comuns a todos os animais mas se define acima de tudo pela razatildeoverdadeira virtude e vida da menterdquo

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natildeo existe porque haacute acircnimos in-submissos ndash simplesmente exis-tem potecircncias singulares e ativi-dades comuns e a violecircncia acom-panha o desejo de dominar o qualem geral tem braccedilos curtos e vozrouca pois para homenagear LaBoeacutetie precisa invariavelmente demuitos braccedilos e vozes estridentespara agir e a arena poliacutetica eacute umpalco bem iluminado para isso Eacutenessa linha que do oacutedio do des-prezo e de tudo mais surgido dodesejo de dominar de poucos Es-pinosa afirma

E se bem que esses senti-mentos natildeo surjam direta-mente por ordem do sobe-rano muitas vezes comoa experiecircncia abundante-mente confirma eles sur-gem no entanto por forccedilade sua autoridade e sobsua orientaccedilatildeo daiacute quepossamos conceber semviolentar minimamente ainteligecircncia homens quenatildeo acreditem odeiemdesprezem ou sejam arre-batados por qualquer ou-tro sentimento a natildeo serem virtude do direito doEstado (ESPINOSA 2008p252)

Suponho pois que a cautela e apotecircncia que ela envolve mais quenunca passam por resistir a certasfalas a calar o nome de si em oca-siotildees determinadas a comunicarateacute no silecircncio mas repudia maxi-mamente o medo mesmo que delenatildeo se livre completamente mui-tas vezes Por outro lado supo-nho que a comunicaccedilatildeo constitu-tiva da experiecircncia poliacutetica muacutel-tipla obviamente eacute hostil agrave pro-liferaccedilatildeo do oacutedio e da exclusatildeoe que toda resistecircncia ou accedilatildeo li-vre quando poliacutetica eacute conflito di-reto com quem usurpa o direitodo indiviacuteduo dando-lhe voz ndash quequando uacutetil eacute conquistada natildeodada ndash e orientando de mil modossua fala que assim seraacute constan-temente uma fala contra generali-zante nem por isso todas e todosque assim falam aderem de fatoao oacutedio ao desprezo eacute de se no-tar que violecircncias satildeo exercidas so-bre indiviacuteduos quando na cidade osinstrumentos mais eficazes de comu-nicaccedilatildeo satildeo antipoliacuteticos e a poliacute-tica passa a alimentar a ilusatildeo deque a voz publicizada eacute jaacute voz poliacute-tica ocultando que a experiecircncia queaiacute se constitui eacute primordialmente denegaccedilatildeo de subserviecircncia ndash de circopor que natildeo

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Referecircncias

CARVALHO J de Espinosa e a publicaccedilatildeo do Tratado teoloacutegico-poliacuteticoArtigo eletrocircnico [Acessado em 03 de junho de 2019]

CHAUI M Poliacutetica em Espinosa Satildeo Paulo Companhia das Letras2003

ESPINOSA B de Tratado poliacutetico Trad de Diogo Pires Aureacutelio SatildeoPaulo Martins Fontes 2009

_____________ Eacutetica Trad do Grupo de Estudos Espinosanos SatildeoPaulo Edusp 2015a

_____________ Tratado teoloacutegico-poliacutetico Trad Diogo Pires AureacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2008

_____________ Tratado da emenda do intelecto Trad de Cristiano No-vaes de Rezende Campinas Editora da Unicamp 2015b

LA BOEacuteTIE Etienne Discurso da servidatildeo voluntaacuteria Trad LaymertGarcia dos Santos Satildeo Paulo Brasiliense 1999

Recebido 04072019Aprovado 09112019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225632

Sobre o Desespero Satildeo Paulo Junho de 2013[Of Despair Satildeo Paulo June 2013]

Fernando Bonadia de Oliveira

Resumo Este artigo pretende analisar as jornadas de junho de 2013na cidade de Satildeo Paulo assumindo como perspectiva a definiccedilatildeo dedesespero elaborada por Bento de Espinosa (1632-1677) na parte IIIda Eacutetica A partir da ideia de que houve um sequestro da narrativasobre as jornadas o texto reconstitui a cobertura midiaacutetica dos qua-tro primeiros atos contra o aumento da tarifa do transporte puacuteblicoocorridos na cidade entre os dias 6 e 13 de junho Em seguida arti-cula uma discussatildeo a respeito das interfaces possiacuteveis entre a filosofiapraacutetica de Espinosa e estes acontecimentos evidenciando como se-gundo certa interpretaccedilatildeo o desespero pode ser considerado o afetopredominante das jornadas tendo como principal protagonista umajuventude organizada combativa e criacuteticaPalavras-chave Jornadas de Junho de 2013 Bento de Espinosa De-sespero Movimento Social Juventud

Abstract This article intends to analyze the journey occurred inJune 2013 in the city of Satildeo Paulo assuming the definition of despairdeveloped by Benedictus Spinoza (1632-1677) in his treatise Ethics IIIas perspective From the point of view that the narrative about thejourneys was sequestered the text reconstitutes the media coverageof the four initial actsprotests against the public transport tax raiseoccurred among june 6th to 13th Following this a discussion aboutthe correlations between the practical philosophy of Spinoza andthese events is developed showing how according to a way of in-terpreting the case despair can be considered the predominantaffect of those acts with an organized combative and critic youth asprotagonistKeywords June Journeys in Satildeo Paulo Benedictus Spinoza DespairSocial Movement Youth

Uma introduccedilatildeo necessaacuteria

Este artigo corresponde agrave pri-meira parte de um estudo ainda

em desenvolvimento sobre as jor-nadas de junho de 20131 na cidade

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Doutor em Filosofia pela Universidade deSatildeo Paulo (USP) E-mail fernandofilosofiahotmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-4627-3162

1 As jornadas de junho de 2013 correspondem a ldquovaacuterias manifestaccedilotildees populares por todo o paiacutes que inici-almente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte puacuteblico principalmente nas principaiscapitaisrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiJornadas_de_Junho Acesso 23 de fevereiro de 2019 Aforma de nomear o evento varia muito Entre as designaccedilotildees mais comuns estatildeo atos (denominaccedilatildeo do MovimentoPasse Livre) acontecimentos (SINGER 2013 p 26) protestos (GOHN 2014 p 435) e manifestaccedilotildees (CHAUI

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de Satildeo Paulo segundo a percepccedilatildeode um leitor-filoacutesofo de Espinosa2As inquietaccedilotildees que conduziramao problema aqui examinado nas-ceram de minha participaccedilatildeo noseventos poliacuteticos entatildeo deflagra-dos nas ruas e por conseguinteenvolvem uma dimensatildeo maior desubjetividade

A metodologia de pesquisa en-sina os casos em que a coleta dedados por meio de uma observa-ccedilatildeo cientiacutefica rigorosamente pla-nejada pode ser um excelente re-curso de investigaccedilatildeo de tal modoque as impressotildees pessoais do pes-quisador natildeo deformem a reali-dade observada Um investigadoresclarecido ao preparar devida-mente a observaccedilatildeo da situaccedilatildeo apesquisar potildee agraves claras para suaproacutepria consciecircncia as ideias preacute-concebidas que podem vir a de-turpar a apreensatildeo rigorosa dosfatos e dessa maneira permanecemetodicamente prevenido delasCoisa diferente eacute algueacutem viven-ciar uma situaccedilatildeo determinadade forma contingente ou interes-sada e em seguida descrevecirc-lacom base em emoccedilotildees vagas pre-tendendo ingenuamente chegar a

conclusotildees dignas de creacutedito cien-tiacutefico

Como minha presenccedila no mo-vimento das jornadas de junho de2013 natildeo resultou de uma obser-vaccedilatildeo planejada a uacutenica maneirade produzir um estudo coerentedepende do reconhecimento emprimeiro lugar das noccedilotildees de queeu dispunha conscientemente na-quele momento e em segundo lu-gar do respaldo de uma bibliogra-fia que tendo abordado as jorna-das com o distanciamento neces-saacuterio a uma realizaccedilatildeo cientiacuteficasustente o sentido de minhas in-terpretaccedilotildees As noccedilotildees aqui ex-plicitadas estatildeo no universo con-ceitual de Espinosa e em especialem uma noccedilatildeo especiacutefica a de de-sespero que em geral natildeo aparececom destaque em estudos feitossobre o espinosismo Natildeo haacute duacute-vida de que os comentaacuterios so-bre a poliacutetica de Espinosa atra-vessam o debate eacutetico em tornodeste afeto e sobretudo do parque ele compotildee com a seguranccedilaApesar disso natildeo haacute tantos tra-balhos que circunscrevam espe-cialmente o desespero no campopoliacutetico como os que abordam o

2013) Exceto o uacuteltimo termo que evitaremos por ter adquirido depois de 2013 uma conotaccedilatildeo de ldquofestardquo muitodifundida pela grande miacutedia empregaremos todas as outras expressotildees O termo jornada foi especialmente esco-lhido por conter entre outros o sentido militar de batalha expediccedilatildeo de guerra fenocircmenos que conforme o leitorperceberaacute espelham melhor os fatos transcorridos na cidade de Satildeo Paulo no periacuteodo que seraacute enfatizado aqui asaber os dias 6 a 17 de junho

2 As referecircncias agrave obra de Espinosa seratildeo feitas pela indicaccedilatildeo da parte de obra citada ou mencionada Aleacutemdisso seraacute indicado o nuacutemero do volume e da paacutegina de acordo com a referecircncia padratildeo das obras espinosanaspor Carl Gebhardt (SPINOZA 1972) registradas pela inicial ldquoGrdquo A traduccedilatildeo da Eacutetica utilizada corresponde agrave daEdusp (ESPINOSA 2015) e a traduccedilatildeo do Tratado Teoloacutegico-Poliacutetico agrave da Martins Fontes (ESPINOSA 2003)

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medo a esperanccedila e a seguranccedilamesmo quando enfatizam o de-sespero tomam-no estritamentenaquilo que ele tem de evidenteo fato de ser uma tristeza Nestetrabalho conveacutem destacar o de-sespero seraacute entendido na dimen-satildeo da tristeza como natildeo pode-ria deixar de ser mas uma tristezaque pode se ligar a outros afetose em coletividade tornar-se ale-gria3

A bibliografia sobre as recen-tes mobilizaccedilotildees de rua no Brasilpor sua vez eacute vasta e apreende asjornadas a partir de vieses distin-tos tais como a atuaccedilatildeo dos mo-vimentos sociais os dados sobre operfil dos insurretos4 as anaacutelisesmidiaacuteticas dos eventos entre ou-tros Ocorre poreacutem que as refe-recircncias bibliograacuteficas localizadasnatildeo datildeo a devida consideraccedilatildeo aum dado que a experiecircncia reve-lou importante no cotidiano dasjornadas os atos desde a perspec-tiva de seus originais organizado-res tiveram no dia 13 de junhoum divisor de aacuteguas que delineouduas narrativas distintas A pri-

meira narrativa assim defende-remos tem como afeto predomi-nante o desespero a segunda temcomo afeto hegemocircnico a indigna-ccedilatildeo

Haacute sem duacutevida referecircncias bi-bliograacuteficas que levam em conta atemporalidade dos atos que cons-tituiacuteram os acontecimentos de ju-nho Neste trabalho contudo acompreensatildeo da distinccedilatildeo de na-tureza entre os atos de 6 a 13 dejunho e os atos de 17 de junho emdiante eacute o paradigma central doentendimento das jornadas aquipretendido5 Ademais diferente-mente da maioria das bibliogra-fias disponiacuteveis tomaremos comobasilar algo que sempre em dis-cussatildeo tambeacutem natildeo costuma re-ceber a devida ecircnfase o pivocirc detodas as accedilotildees que chamaram aatenccedilatildeo do puacuteblico naquela oca-siatildeo foi a juventude paulistanaNeste artigo conceberemos a ju-ventude como a principal ativa-dora do iniacutecio das movimentaccedilotildeesde rua que tomaram o Brasil eao mesmo tempo como o prin-cipal objeto da necessidade per-

3 Sobre as noccedilotildees de alegria e tristeza aqui empregadas cabe ressaltar seu sentido espinosano a ldquoalegria eacute apassagem do homem de uma perfeiccedilatildeo menor a uma maiorrdquo a ldquotristeza eacute a passagem do homem de uma perfei-ccedilatildeo maior a uma menorrdquo (GII p 191) Ao lado do desejo tais noccedilotildees compotildeem a triacuteade dos principais afetos dafilosofia praacutetica de Espinosa

4 Apontamos aqui os militantes como ldquoinsurretosrdquo tomando como ldquoinsurreiccedilatildeordquo aquilo que para Negri (2003p 197) ldquoeacute a forma de um movimento de massa resistente quando se torna ativa em pouco tempo ()rdquo A insur-reiccedilatildeo nesse sentido eacute o que ldquoaperta as diversas formas de resistecircncia em um uacutenico noacuterdquo Tal descriccedilatildeo se aproximadas caracteriacutesticas poliacuteticas que definiram as jornadas enquanto certa espeacutecie de batalha

5 Ampara-nos neste ponto o livro Vinte Centavos A Luta Contra o Aumento que se opotildee a interpretaccedilotildees queembaladas pelos meios de comunicaccedilatildeo e pelo descuido de analistas natildeo atentam para o comeccedilo dos protestos e osseus precedentes permitindo que se torne consensual a tese de que a reivindicaccedilatildeo pela reduccedilatildeo das tarifas foi ummero acidente das jornadas de junho (ORTELLADO 2015)

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cebida pelos dominantes de secriar o quanto antes pela ideo-logia um discurso diferente da-quele das ruas bem como umapoliacutetica objetiva contra os direitosdos jovens e das geraccedilotildees futurasdo paiacutes conforme seraacute tematizadonas conclusotildees

O objetivo deste texto foi emsuma interpretar as jornadas dejunho de 2013 na cidade de SatildeoPaulo a partir de um diaacutelogo coma noccedilatildeo espinosana de desesperodeixando para outro momento odiaacutelogo com a noccedilatildeo de indigna-ccedilatildeo Uma vez que a percepccedilatildeodas jornadas depende da formapela qual concebemos sua traje-toacuteria completa naqueles dias ini-ciaremos tratando o problema doldquosequestro da narrativardquo sobre oque foram afinal os atos contra atarifa Em seguida mostraremoscomo estavam estruturados essesatos e como a concepccedilatildeo espino-sana de desespero pode ser relaci-onada a eles Por fim buscaremosidentificar a contribuiccedilatildeo da lei-tura de Espinosa para se pensara transformaccedilatildeo poliacutetica dos afe-tos tristes em alegres ou noutraspalavras para conhecer como amultidatildeo pode vir a formar comparticipaccedilatildeo e accedilatildeo direta a soli-dariedade entre desesperados

Interpretada em perspectiva es-pinosana esta solidariedade con-forme seraacute visto pode ser uma ex-periecircncia de estar-com capaz de fa-zer nascer no seio da condiccedilatildeo deservidatildeo (caracteriacutestica do indiviacute-duo desesperado) um gosto pelalibertaccedilatildeo isto eacute pela passagempara uma vida coletivamente li-vre mantida pelo auxiacutelio muacutetuoA experiecircncia de lutar constitu-tiva do potencial democraacutetico deum coletivo quando eacute vivenciadapor aqueles que em desesperoafrontam todas as formas de lide-ranccedila e comando que se dirigemcontra o bem comum conteacutem umdevir-ativo6

O sentimento de uma alegre li-berdade em meio ao caos da re-pressatildeo eacute comum entre os que jaacuteestiveram em situaccedilatildeo de orga-nizaccedilatildeo poliacutetica guiada por umaestrateacutegia revolucionaacuteria contra aopressatildeo No documentaacuterio Ma-righella (Ferraz 2012) o depoi-mento de Guiomar Silva Lopesmeacutedica e ex-militante contra a di-tadura civil-militar brasileira eacuteum bom exemplo disso afinalpara ela sua vida em combate sesituava ldquono fio da navalhardquo mashavia algo fantaacutestico ldquouma sen-saccedilatildeo de liberdade inacreditaacutevelrdquode estar em meio agrave resistecircncia

6 Expressatildeo empregada por Gilles Deleuze (2017 p 358) Ver Michael Hardt (1996 p 156-157) que explica odevir-ativo de Deleuze na leitura de Espinosa como passagem da tristeza agrave alegria produzida pela descoberta dasnoccedilotildees comuns e pela formaccedilatildeo de ideias adequadas

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No mesmo sentido descrevendoas imagens francesas de maio de1968 Marilena Chaui conta emdiscurso emocionado a percepccedilatildeoque teve

Vocecircs natildeo imaginam o queeacute passar pela experiecircn-cia revolucionaacuteria Eacute umacoisa eacute uma coisa Eudigo que todo mundo temque viver uma grande pai-xatildeo amorosa e ter uma ex-periecircncia pela possibili-dade de revoluccedilatildeo Semessas duas coisas vocecirc natildeoviveu uma vida completaTem que ter porque omundo se abre com to-das as janelas a um fu-turo completamente ne-buloso e que estaacute laacute vocecircsabe que estaacute laacute e vocecircsabe que vocecirc vai para eleque vai acontecer que elevai acontecer com as tuasmatildeos (CHAUI 2016a p28)

Embora Chaui (2018 p 417) de-fenda que a ocupaccedilatildeo das escolaspelos jovens em 2015 foi o maisautecircntico movimento brasileirocapaz de traduzir o maio de 68

francecircs (e natildeo as jornadas de ju-nho conforme se disseminou ge-neralizadamente) seu relato potildeeem paralelo a paixatildeo revolucio-naacuteria e a grande paixatildeo amorosararidades afetivas dignas de umavida bem vivida O impulso dosregistros jaacute oferecidos reaparececom outras cores em certa reflexatildeode Antonio Negri e Michael Hardt(2005 p 276) no livro MultidatildeoDispostos a mostrar como os con-flitos sociais mobilizam o comumeles escrevem

O conflito direto com opoder para o melhor oupara o pior eleva essa in-tensidade comum a umniacutevel ainda mais alto ocheiro caacuteustico do gaacutes la-crimogecircneo mobiliza ossentidos e os confrontosde rua com a poliacutecia fa-zem o sangue ferver deraiva elevando a intensi-dade ao ponto da explo-satildeo Finalmente a intensi-ficaccedilatildeo do comum produzuma transformaccedilatildeo antro-poloacutegica de tal ordem quedas lutas surge uma novahumanidade

7 Esta expressatildeo emerge na descriccedilatildeo feita por Gohn (2014 p 432) das diversas tendecircncias que apareciam nosatos Entre elas revela a autora ldquo() haacute tambeacutem um novo humanismo na accedilatildeo de alguns expresso em visotildees ho-liacutesticas e comunitaristas que critica a sociedade de consumo o egoiacutesmo a violecircncia cotidiana ndash real ou monitoradapelo medo nas manchetes diaacuterias sobre assaltos roubos mortes etc a destruiccedilatildeo que o consumo de drogas estaacute

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Esta nova humanidade espeacutecie deldquonovo humanismordquo7 nasceu naresistecircncia ativa e criativa de jo-vens contra um sistema brutal derepressatildeo a Poliacutecia Militar do Es-tado de Satildeo Paulo Quem expe-rimentou a emoccedilatildeo revolucionaacute-ria de 2013 se deixou marcar pelaluta coletiva e pela descoberta daaccedilatildeo no seio da paixatildeo isto eacute pelaliberdade contida no acircmbito dasexperiecircncias da proacutepria passio-nalidade e natildeo em algum idealtranscendente ou em certo deusex machina No contexto dos atosaqui estudados como veremos apaixatildeo em pauta eacute o desespero quesurge ndash na parte III da Eacutetica de Es-pinosa ndash da ausecircncia de duacutevidasquanto a um futuro amedronta-dor que acena cada vez mais deperto A accedilatildeo consiste na arte daorganizaccedilatildeo coletiva mediada pelaperformance de jovens que tornamo proacuteprio desespero capaz de cau-sar desespero

Eacute certo que o dispositivo queincendiou as ruas natildeo parece tersido motivado pela accedilatildeo de jo-vens reivindicando o direito agrave iraou ao exerciacutecio gratuito do deses-pero quanto ao futuro mas umaquestatildeo de circulaccedilatildeo urbana (oaumento da tarifa) A linha argu-mentativa deste artigo se orientajustamente no sentido de reconhe-cer isso mas tambeacutem de eviden-

ciar ter sido sobre jovens assimdesesperanccedilados que em junhode 2013 um aumento rotineiro detarifa natildeo caiu bem

Antes de tudo vale a penaainda uma uacuteltima observaccedilatildeo so-bre o criteacuterio com que abordare-mos o problema examinado Sem-pre que nos voltamos a estudoshistoacutericos sobre o Brasil precisa-mos ter em pensamento a indaga-ccedilatildeo que Carlos Alberto Vesentini(1997 p 15) coloca em seu es-tudo sobre 1930 ldquoCom que criteacute-rio um historiador fala das lutase agentes de uma eacutepoca que natildeoeacute a suardquo No caso das jornadasde junho inversamente estamostratando de uma eacutepoca que vive-mos e de agentes que acompanha-mos integrando-nos como parteda narrativa Ainda assim paranossos intentos cabe refletir sobrea pergunta de Vesentini em sen-tido filosoacutefico tomar a definiccedilatildeode um afeto da filosofia de Espi-nosa (no seacuteculo XVII) para inter-pretar a vivecircncia das jornadas dejunho de 2013 natildeo envolve umacontradiccedilatildeo temporal que podeeventualmente turvar a proacutepriainterpretaccedilatildeo A fim de esclare-cer este ponto devemos advertirque conforme sustentou AntonioNegri (1993 p 26) em sua obra Aanomalia selvagem (publicada em1981) Espinosa pode ser tomado

causando na juventude e outrosrdquo

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como um filoacutesofo contemporacircneoisto eacute atento a tensotildees que soacute es-tatildeo se explicitando agora seacuteculosdepois de sua eacutepoca ldquoEspinosa eacuteum filoacutesofo contemporacircneo poissua filosofia eacute a de nosso futurordquoescreveu ele8 Por motivos simila-res observamos que neste traba-lho o espinosismo seraacute entendidopelos princiacutepios de sua teoria dosafetos cuja dinacircmica pode dialo-gar com os afetos em circulaccedilatildeo nocenaacuterio poliacutetico brasileiro atual

Tais consideraccedilotildees introdutoacute-rias satildeo necessaacuterias para natildeo in-cidirmos no erro comum expli-citado por Maria da Gloacuteria Gohn(2014 p 437) em relaccedilatildeo a umaseacuterie de abordagens sobre as jor-nadas Para ela muitos analistasde junho de 2013

fazem uma leitura com osoacuteculos de uma dada abor-dagem e como natildeo encon-tram os elementos dessaabordagem nas manifes-taccedilotildees descaracterizam-nas Natildeo querem ver ounatildeo aceitam que elas tecircm

outros pressupostos ou-tros referenciais

Este trabalho buscou tantoquanto possiacutevel natildeo aplicar ver-ticalmente a teoria poliacutetica deEspinosa sobre os fatos de ju-nho a ponto de formar uma ideiade totalidade sobre as jornadasmas construir uma articulaccedilatildeo pormeio da qual pudessem ser apre-sentadas sobre estes eventos im-pressotildees que parecem ter ficadoateacute agora senatildeo inauditas margi-nais

Antecedentes Satildeo Paulo 20139

As jornadas surgiram na cenasocial e poliacutetica do Brasil comoum problema de transporte SatildeoPaulo como outras metroacutepoles eacuteceacutelebre pela rotina urbana do en-garrafamento isto eacute pela cotidi-anidade do tracircnsito lento ocasio-nado pelo excesso de veiacuteculos nasvias urbanas A poluiccedilatildeo pelo gaacutescarbocircnico e pelo som ataca prin-cipalmente os pedestres mas eacute

8 Para Negri (1993 p 30) ldquoestudar Espinosa eacute colocar o problema da desproporccedilatildeo na histoacuteriardquo Situado naHolanda dos seiscentos um paiacutes anocircmalo cuja forma poliacutetica permaneceraacute em aberto Espinosa natildeo esteve dispostoa propor uma fundamentaccedilatildeo para as relaccedilotildees econocircmicas e sociais do capitalismo do seu tempo Natildeo esteve embusca de uma resposta para as crises que entatildeo se anunciavam Ao contraacuterio esteve envolvido em criar uma formapoliacutetica futura a democracia absoluta da qual podemos progressivamente nos aproximar no mundo contemporacirc-neo Sobre isso ver Negri (1993 prefaacutecio e capiacutetulo 1)

9 Apesar de afirmarem em geral que as jornadas ganharam impulso em todo o Brasil a partir de Satildeo Paulo eacutenecessaacuterio tratar de antecedentes Aqui nos limitaremos aos antecedentes do cotidiano paulistano mas eacute precisotrazer agrave memoacuteria o mecircs fevereiro de 2013 quando uma relevante agitaccedilatildeo promovida pelo Bloco de Lutas porum Transporte Puacuteblico de Porto Alegre-RS depois de protestos de rua conseguiu fazer a Justiccedila reverter mesesdepois um aumento de tarifa Para natildeo estender ainda mais esta parte introdutoacuteria limito-me a indicar sobre issoos trabalhos de Cardoso e Di Faacutetima (2013 p 158-159) e de Scherer-Warren (2014 p 418)

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posta geralmente como dificul-dade de menor importacircncia emcomparaccedilatildeo com todos os outrosmales de uma cidade cujos indi-viacuteduos parecem ter incorporadoem definitivo o haacutebito de evitarhoraacuterios e trajetos muito visadosA vida ou ndash em termos mais pau-listanos ndash a agenda eacute determinadapela loacutegica do transporte privadoque impede sistematicamente odireito agrave cidade

A descriccedilatildeo de Wilheim (2013p 8-9) feita precisamente no anodas jornadas oferece em um soacutelance o retrato urbano da capital

Satildeo Paulo apresenta umadinacircmica urbana de in-cessante movimento comescassos espaccedilos para ogozo individual ou cole-tivo de paisagens cujopotencial natural foi des-perdiccedilado pela cupidezcom que cada lote foi edi-ficado Os espaccedilos puacutebli-cos encontram-se degra-dados seja no aspecto fiacute-sico de difiacutecil uso pelospedestres seja pela sina-lizaccedilatildeo defeituosa e pelosmuros hostis que por vezescercam quarteirotildees intei-ros de propriedades pri-vadas A arborizaccedilatildeo isto

eacute a proteccedilatildeo da sombraem paiacutes semitropical eacute es-cassa a natildeo ser em certosbairros como os Jardinssubtraindo da maior partedos cidadatildeos o prazer es-teacutetico de ver belas flora-das multicores a assinalara sequecircncia das estaccedilotildeesAs principais vias estatildeopreenchidas por veiacuteculosque mal circulam reve-lando uma peacutessima rela-ccedilatildeo entre nuacutemero de veiacute-culos e vias disponiacuteveispara sua circulaccedilatildeo Emresumo a qualidade ur-bana estaacute muito aqueacutem daexpressatildeo econocircmica deSatildeo Paulo muito abaixodas expectativas de suapopulaccedilatildeo e com serviccedilose equipamentos mal dis-tribuiacutedos (grifos do origi-nal)

O pedestre ldquoprincipal elemento eusuaacuterio do sistema de transportepuacuteblicordquo natildeo tem suas expecta-tivas atendidas10 e se em tese eacuteldquoa partir de suas necessidades eexpectativasrdquo que a mobilidadedeveria ser pensada (WILHEIM2013 p 16) Satildeo Paulo eacute umexemplo de como natildeo proceder agravepoliacutetica urbana

10 Wilheim assinala com razatildeo (2013 p 16) ldquoo pedestre paulistano eacute especialmente prejudicado pelo mauestado das calccediladas e ruas em que pisardquo

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Ao longo dos meses de maio ejunho de 2013 em meio a essecaos urbano a cidade transbor-dou vivacidade poliacutetica Duranteo mecircs de maio o Grupo de Estu-dos Espinosanos da Universidadede Satildeo Paulo (USP) organizou aJornada Marxistas Leitores de Es-pinosa com a colaboraccedilatildeo expres-siva de colegas cariocas do campodo Direito da PUC-Rio A jornadauma jornada acadecircmica ocorreunos dias 27 28 e 29 (segundaterccedila e quarta-feira) na Faculdadede Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-manas Antes deste encontro ndash nodia 25 de maio ndash ocorrera a Mar-cha Feminista das Vadias inici-ada agraves 12 horas no cruzamentoda Avenida Paulista com a Rua daConsolaccedilatildeo (Praccedila do Ciclista) Oanuacutencio da marcha deixava a ame-accedila ldquoSatildeo Paulo vai pararrdquo O finaldo ato comoveu por ter feito ecoarpara aleacutem dos gritos convencio-nais tiacutepicos da luta por igualdadede gecircnero uma ira poliacutetica e umrefinamento discursivo que apon-tava para um combate mais ge-ral mais proacuteximo da negaccedilatildeo doImpeacuterio substrato que origina emanteacutem a forma mais arquetiacutepicado machismo contemporacircneo

A grande miacutedia por essa se-mana alardeava com a naturali-dade costumeira o aumento das

tarifas de ocircnibus e metrocirc na ci-dade de Satildeo Paulo de trecircs reaispassariam a trecircs reais e vinte cen-tavos a partir de dois de junholdquoVinte centavos a mais para umtransporte cada vez mais precaacuterioe insegurordquo comentavam todosNa eacutepoca o aumento da tarifa metocou de perto Para um dou-torando professor da rede par-ticular do ensino da cidade vi-vendo ininterrupta contenccedilatildeo degastos o valor da passagem as-sustava Ir e voltar do centro aobairro do Morumbi algumas ve-zes por semana consumia meutempo meu descanso e meu di-nheiro Em meio aos preparati-vos para o iniacutecio da redaccedilatildeo domeu texto de qualificaccedilatildeo de dou-torado eu lia Espinosa e especifi-camente relia A anomalia selvagemde Antonio Negri De um ladoenvolvia-me sua defesa intransi-gente de que Espinosa expulsou anoccedilatildeo de mediaccedilatildeo de seu sistemanegando o recurso agrave representa-ccedilatildeo e ao contrato em sua formaclaacutessica (NEGRI 1993) De ou-tro percebia a coerecircncia da ad-vertecircncia de Marilena Chaui quefoi posteriormente explicitada emtexto (CHAUI 2013) acentuandoo risco agrave democracia que assumi-mos quando incautamente dese-jamos suspender as ideias de me-

11 Explicitei melhor esse ponto em ldquoEspinosa um anarquistardquo texto apresentado em outubro de 2016 na Uni-versidade de Satildeo Paulo e publicado no volume do VI Coloacutequio Espinosa de Fortaleza (OLIVEIRA 2017)

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diaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacutetica11Percebiacuteamos nas escolas nas

universidades e na proacutepria socie-dade os esforccedilos para formar mo-vimentos sociais que se caracte-rizassem pela horizontalidade epela ausecircncia de lideranccedilas traccedilosque permitiam efeitos incriacuteveis acomeccedilar pela satisfaccedilatildeo de gritarpor novos direitos e pela radica-lizaccedilatildeo de direitos que existiamapenas na letra da lei Poreacutem vi-mos o quanto a capacidade de or-ganizar o desespero estava midi-aticamente vulneraacutevel agrave capturapor um comando de vieacutes reacio-naacuterio capaz de inserir uma medi-accedilatildeo para o conservadorismo12

A narrativa sequestrada

O aumento da tarifa do transportepuacuteblico foi dado e as pessoas saiacute-ram agraves ruas13 No dia 06 de junhode 2013 o Movimento Passe Livre(MPL)14 chamou o primeiro ato

No dia 07 o segundo no dia 11 oterceiro e no dia 13 o quarto to-dos tendo iniacutecio no final da tardecomeccedilo da noite15 Hoje eacute difiacutecilpor em xeque a tese de que houveum sequestro da narrativa soci-almente estabelecida sobre essesencontros16 e por este motivo eacutepreciso entender como este raptose deu acompanhando ato a atoateacute o dia 13 O primeiro o me-nos destacado de todos em termosde intensidade e visibilidade foi(como muitos outros) alvo de criacuteti-cas na grande miacutedia Anelise Ma-radei (2013 p 4) teve o cuidadode acompanhar no jornal Folha deSatildeo Paulo como foi a cobertura decada ato do dia 6 ao dia 20 de ju-nho

Na capa do jornal Folha deS Paulo do dia 6 natildeo ha-via menccedilatildeo agrave manifesta-ccedilatildeo que ocorreria no pe-riacuteodo noturno Nenhumachamada sobre o que es-

12 Eacute amplamente conhecido o desvio do movimento (de junho de 2013) da esquerda em direccedilatildeo ao conservado-rismo que desaguaraacute a partir de 2015 nos chamados ldquoprotestos antigovernordquo tipicamente de direita e contraacuteriosagrave presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores)

13 Natildeo foi evidentemente a primeira vez que houve mobilizaccedilatildeo intensa pela melhoria no transporte puacuteblico noBrasil Sobre o histoacuterico das mobilizaccedilotildees em defesa do transporte de qualidade ver Gondim (2016 p 366-368)

14 De acordo com Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 158) o MPL se apresentava no tempo das jornadas comoldquoum movimento social autocircnomo apartidaacuterio horizontal e independente que luta por um transporte puacuteblico deverdade gratuito para o conjunto da populaccedilatildeo e fora da iniciativa privadardquo Foi constituiacutedo desde a PlenaacuteriaNacional pelo Passe Livre (Porto Alegre-RS 2005) por ldquoum grupo de pessoas comuns () para discutir e lutar poroutro projeto de transporte para a cidaderdquo Presente em diversas cidades brasileiras o MPL sustenta lutar ldquopelademocratizaccedilatildeo efetiva do acesso ao espaccedilo urbano e seus serviccedilos a partir da tarifa zerordquo

15 Outros atos se seguiram a esses no mesmo mecircs mas neste primeiro trabalho apenas os consideraremos emseus traccedilos gerais

16 Veja-se por exemplo Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 119) e Eliana Carlos (2015 p 11) que tratam otema respectivamente como ldquodeslocamento narrativordquo e ldquomudanccedila de discursordquo Outras denominaccedilotildees satildeo da-das ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo ldquodesvio de discursordquo entre outras

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SOBRE O DESESPERO SAtildeO PAULO JUNHO DE 2013

taria por vir foi esboccediladaJaacute no dia 7 o tema me-receria destaque na capaFolha em decorrecircncia evi-dentemente das manifes-taccedilotildees do dia anterior Emtom contraacuterio aos mani-festantes o jornal estam-pou ldquoVandalismo marcaato por transporte maisbarato em SPrdquo A cha-mada era para o cadernoCotidiano Uma fotoem destaque na capa daediccedilatildeo trazia a legendaldquoManifestantes lideradospelo Movimento Passe Li-vre ligado a estudantesao PSOL e ao PSTU quei-mam catracas de papelatildeona Avenida 23 de MaiordquoEm Opiniatildeo e Tendecircnciase Debates natildeo havia umalinha sobre o tema de-monstrando que a publi-caccedilatildeo ainda natildeo conside-rava o tema relevante paramerecer destaque nos edi-toriais

Nada de novo aparece a quemsempre acompanhou o citado jor-nal e nunca se questionou sobre acausa do protesto e a respeito dascondiccedilotildees urbanas da metroacutepolecuja situaccedilatildeo de caos era entatildeo ex-

perimentada generalizadamenteNo dia 8 subsequente ao segundoato a capa da Folha de Satildeo Pauloestampava ldquoManifestantes cau-sam medo param marginal e pi-cham ocircnibusrdquo Ainda sem ne-nhuma novidade os militanteseram identificados por este veiacute-culo da grande imprensa comovacircndalos causadores de terrorAteacute mesmo o terceiro ato na ma-nhatilde do dia 11 natildeo recebeu muitodestaque nem neste nem em ou-tros meios de comunicaccedilatildeo A se-ccedilatildeo ldquoPainel do Leitorrdquo do mesmojornal por exemplo natildeo deu des-taque ao tema do transporte e dosatos (MARADEI 2013 p 4) nemmesmo pelo toacutepico da suposta vi-olecircncia dos militantes

No dia 12 depois do ato danoite do dia 11 a manchete foildquoContra tarifa manifestantes van-dalizam centro e Paulistardquo e o sub-tiacutetulo frisava ldquoNo 3ordm e mais vio-lento protesto ativistas enfrentamPM e atacam ocircnibus e estaccedilotildees dometrocirc 20 cidadatildeos satildeo detidosrdquoEstimado pelas fontes estatais emcinco mil pessoas e pelo o MPLem 10 mil17 o terceiro ato foi mar-cado por cenas de grande violecircn-cia que a Folha de Satildeo Paulo entreoutros oacutergatildeos da imprensa colo-cou na conta do povo Embora asredes sociais jaacute publicassem ima-

17 Como observou Singer (2013 p 24) eacute muito difiacutecil apontar o nuacutemero exato de pessoas que foram as ruas nosquatro atos iniciais

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gens da forccedila desproporcional daPoliacutecia Militar contra os insurre-tos natildeo havia destaque social a al-gum sentimento de injusticcedila con-tra os cidadatildeos Na amanhatilde do atoda quinta-feira dia 13 o governa-dor do Estado Geraldo Alckmin(PSDBSP) tomou o palco paradivulgar com indisfarccedilaacutevel tomde ameaccedila que haveria um enri-jecimento ainda maior no trata-mento policial militar (SINGER2013 p 25) Este quarto e uacutel-timo ato da seacuterie que seraacute aquianalisada ocorrido naquela noitefoi um verdadeiro massacre poli-cial Assim como nos atos anteri-ores muitas imagens da repressatildeochegaram agraves redes sociais provo-cando nos internautas um oacutedio si-milar ao que foi sentido por aque-les que registraram o terror

Os jornais impressos em seusnoticiaacuterios da manhatilde do dia 14ainda afirmavam sem pudores queos manifestantes haviam provo-cado os policiais iniciando comisso um tratamento de choque18A intenccedilatildeo de criminalizaccedilatildeo daaccedilatildeo do movimento era ateacute entatildeoevidente os manifestantes eramestimados publicamente comomeros marginais vacircndalos e play-boys todos irresponsaacuteveis a in-cendiar a cidade Natildeo havia duacute-

vida de que o discurso se firma-ria afinal ateacute aquele momentohavia se firmado ningueacutem per-guntava se a poliacutecia devia estarpreparada para suportar supos-tas provocaccedilotildees ou mesmo se taisprovocaccedilotildees eram reais Mais faacute-cil do que discutir a razoabilidadeda informaccedilatildeo segundo a qual ci-vis desarmados ousam provocartropas armadas foi justificar pu-blicamente a accedilatildeo repressiva dapoliacutecia Mas como seria viaacutevel jus-tificar nos jornais a repressatildeo danoite do dia 13 depois que cen-tenas de pessoas compartilharamna rede a cena claacutessica em que ospoliciais bombardeavam minutosa fio grupos de cidadatildeos a gritarencurralados ldquoSem violecircnciardquo19

A concessatildeo apelativa dagrande miacutedia agrave causa da violecircnciado Estado contra o povo foi par-cial momentacircnea e interessadapois na noite do dia 13 sete jorna-listas da Folha de Satildeo Paulo foramatingidos pela fuacuteria destrutiva daPoliacutecia Militar A jornalista Giuli-anna Avalone foi gravemente atin-gida em um dos olhos por um dis-paro de bala de borracha dado porum policial que intencional e gra-tuitamente apontou para ela Oestarrecimento foi geral

Antes disso ainda no dia 13

18 A manchete da Folha de Satildeo Paulo no dia 14 foi ldquoPoliacutecia reage com violecircncia a protesto e SP vive noite de caosrdquoComo se nota o termo ldquoviolecircnciardquo se liga agrave ldquopoliacuteciardquo e natildeo aos que reivindicavam a reduccedilatildeo da tarifa Poreacutem aatuaccedilatildeo dos policiais foi posta como ldquoreaccedilatildeordquo dando a entender que os insurgentes iniciaram o tumulto

19 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=U3ohG4IYqdQ Acesso 25 de fevereiro de 2019

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deu-se o famoso ataque de Ar-naldo Jabor ao movimento e aosseus participantes majoritaria-mente jovens durante o Jornal daGlobo A ofensiva de Jabor se en-cerrava com a frase ldquoRealmenteesses revoltosos de classe meacutedianatildeo valem nem vinte centavosrdquo20

Joseacute Luiz Datena acircncora de umprograma de TV protagonizouuma das situaccedilotildees mais pitores-cas da televisatildeo brasileira justa-mente nesse dia quando o ato es-tava para comeccedilar Ele decidiu fa-zer uma enquete ao vivo e saberdos expectadores se eles concor-davam ou natildeo com a realizaccedilatildeo deldquoprotestos com badernardquo A in-tenccedilatildeo de desmoralizar os agentesdos atos contra a tarifa era clariacutes-sima mas a opiniatildeo do puacuteblicocresceu para o lado dos que res-pondiam que concordavam com oprotesto dito violento Surpresocom o resultado o jornalista pe-diu para que os programadoresreelaborassem a pergunta a fimde que o puacuteblico a ldquoentendessemelhorrdquo Mas o resultado se re-petiu e ele entatildeo teve de reconhe-cer ldquoJaacute deu para sentir o povoestaacute tatildeo pecirc da vida com o aumentode passagem ndash natildeo interessa se eacutede ocircnibus se eacute de trem ou de me-trocirc ndash que apoia qualquer tipo de

protestordquo21 O programa com altoniacutevel de popularidade demons-trava aquilo que as redes sociais jaacutepodiam captar natildeo obstante a miacute-dia ainda centralizasse seu alvo decriacutetica nos militantes a pauta damobilidade urbana de Satildeo Paulotinha de ser profundamente re-pensada porque a revolta contraos carteacuteis das empresas de trans-porte era intensa

O pronunciamento de Jabortornou-se emblemaacutetico em outrosentido afinal cinco dias depoisde ridicularizar o povo nas ruasseu parecer foi outro ldquoEstamosvivendo um momento histoacutericolindo e novo Os jovens teratildeonos dado uma liccedilatildeo a democraciajaacute temos agora temos de formaruma repuacuteblicardquo22 Como pergun-taram todos jovens indignos ateacutede ldquovinte centavosrdquo se convertemtatildeo rapidamente em porta-vozesde um momento histoacuterico ldquolindo enovordquo Como a mobilizaccedilatildeo dosjovens baacuterbaros se transformouem movimento que aceita a tesede que jaacute vivemos em uma demo-cracia e entatildeo eacute preciso tornaacute-lauma repuacuteblica Natildeo se trata deum equiacutevoco de anaacutelise mas deum deslocamento estrateacutegico danarrativa

Em geral essa situaccedilatildeo ndash o des-

20 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=tZNkg26g-Ng Acesso 25 de fevereiro de 201921 Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=7cxOK7SOI2k Acesso 25 de fevereiro de 201922Ver viacutedeo disponiacutevel em httpswwwyoutubecomwatchv=8zQ9TnTpeKw Acesso 25 de fevereiro de 201923 A percepccedilatildeo de uma ldquoampliaccedilatildeo de pautardquo eacute bem descrita por Gohn (2013 p 431) ldquoO crescimento das

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locamento da narrativa ndash foi to-mada como expansatildeo da pauta23A pauta do transporte havia pas-sado subitamente a abranger tam-beacutem outros domiacutenios da socie-dade como sauacutede e educaccedilatildeo ateacutechegar ao ponto da criacutetica aos de-tentores do poder que impunese corruptos estavam indiferentesaos gritos da populaccedilatildeo ldquoNatildeo eacutesoacute por vinte centavosrdquo comeccedila-vam a bradar as redes sociais emuniacutessono Nesse momento ndash a pas-sagem do dia 13 para o dia 14 ndash anarrativa das jornadas ficou emsuspensatildeo sem autor pois a linhaque conduzia os acontecimentosateacute entatildeo era a reduccedilatildeo da tarifamas subitamente passou a ser arepressatildeo policial forccedila motriz darevolta que tomou conta da popu-laccedilatildeo da cidade jaacute no dia seguinteao quarto ato O policiamentodespreparado e incapaz era repu-tado como insuficiente para pro-mover a ordem e proteger o cida-datildeo comum o mero transeunte ouo profissional da comunicaccedilatildeo queatravessava os atos

Conquanto natildeo tenha sido ape-nas uma questatildeo de extensatildeoou ampliaccedilatildeo indevida de pautao lema ldquoNatildeo eacute soacute por vinte

centavosrdquo sugeria de fato umaampliaccedilatildeo ou ateacute mesmo um apro-fundamento Em si mesma a am-pliaccedilatildeo natildeo teria motivo para sernociva ou falsa No ato de quinta-feira dia 13 outras bandeiras li-gadas agrave pauta da tarifa foram em-punhadas24 Mas durante o finalda semana entre os dias 15 e 16(saacutebado e domingo) enquanto apauta estava solta e sem identi-dade a grande miacutedia tramava acaptura do discurso reivindicatoacute-rio e a substituiccedilatildeo dele por umadefesa do espiacuterito nacional contraa Proposta de Emenda agrave Consti-tuiccedilatildeo (PEC) n 37201125 queentatildeo se debatia nos noticiaacuteriose no Congresso Nacional (MELOVAZ 2018 p 36)

A fala de Jabor na noite das acu-saccedilotildees (a crocircnica do dia 13 agrave noite)jaacute era um sintoma ele dizia que aoinveacutes de os jovens estarem lutandocontra a PEC 37 (que daria per-missatildeo de ldquoimpunidade eternardquopara todos os poliacuteticos corruptos)estavam por aiacute arruaccedilando Tam-beacutem no comentaacuterio do ldquomomentohistoacuterico lindo e novordquo proferidono dia 18 ele jaacute repetia a decla-raccedilatildeo sobre a necessidade de lutarcontra a PEC

manifestaccedilotildees levou agrave ampliaccedilatildeo das demandas com um foco central a maacute qualidade dos serviccedilos puacuteblicos espe-cialmente transportes sauacutede educaccedilatildeo e seguranccedila puacuteblicardquo

24 Por exemplo contra a corrupccedilatildeo no governo Alckmin (no Estado de Satildeo Paulo) a ineacutepcia da Prefeitura de SatildeoPaulo as condiccedilotildees de trabalho na cidade e a repressatildeo policial cada vez mais crescente naqueles dias

25 A PEC 37 foi proposta pelo deputado Lourival Mendes (PTdoBMA) e conhecida como ldquoPEC da impunidaderdquoa proposta previa tomar a apuraccedilatildeo de investigaccedilotildees criminais como atividade privativa da poliacutecia judiciaacuteria etramitou sem aprovaccedilatildeo final ao longo do primeiro semestre de 2013

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Seria simples demais (e talvezimpossiacutevel) demonstrar que foi oapelo de Jabor agrave luta contra a PEC37 que teria levado tanta gentejaacute nos atos da semana do dia 17agraves ruas de Satildeo Paulo para gritarcontra a corrupccedilatildeo O fato eacute quemesmo a tese do deslocamento dapauta natildeo confere com o que se-ria mais natural de se esperar Sea surpresa das massas nasceu darepressatildeo policial ao ato por queo objeto das jornadas natildeo se con-verteu em luta contra o governa-dor do Estado ou em reivindicaccedilatildeopelo fim da Poliacutecia Militar masem combate aos poliacuteticos corrup-tos

Doravante a esquerda prota-gonista dos acontecimentos ateacuteentatildeo se dividiu a centro-esquerda atocircnita com a possibi-lidade de que recaiacutessem sobre elamesma as reivindicaccedilotildees paulis-tanas sentia-se incomodada dedefender o Partido dos Trabalha-dores e o trabalhismo alinhandosua retirada de campo brutal-mente ela era afrontada nas pas-seatas pela extrema direita26 A

esquerda mais radical aproveitavaa ocasiatildeo para lanccedilar reivindica-ccedilotildees mais profundas com as quaissomente ela mesma aceitava intei-ramente27 a esquerda local par-tidariamente organizada alcan-ccedilava expressiva coerecircncia no dis-curso mas teve pouca organizaccedilatildeopara resistir agrave mordacidade da vi-olecircncia policial28 a esquerda ati-vista fazia o que podia e o que lherestava fazer organizar a propa-ganda (pelos muros da cidade) epreparar a depredaccedilatildeo de emble-mas do Estado e do grande capitalem especial da induacutestria automo-biliacutestica especialmente conveni-ada ao problema do transporte29

Diante de toda a fragmentaccedilatildeoda esquerda o discurso reinanteenclausurou o grande propoacutesitodo MPL o passe livre Mesmo omovimento continuando a exis-tir com a convicccedilatildeo vitoriosa deque afinal havia conseguido re-verter o aumento algo sorratei-ramente o superou Uma partedos militantes acreditou que omelhor seria assumir que ldquonatildeoera apenas por vinte centavosrdquo

26 Ficaram conhecidas as accedilotildees de grupos de extrema direita que passaram a frequentar as manifestaccedilotildees e a im-pedir que os partidos poliacuteticos se expressassem com suas bandeiras Os partidos sempre bem recebidos pelos queprotestavam junto ao MPL (movimento apartidaacuterio mas natildeo antipartidaacuterio) precisavam agora ser socorridos pelosdemais militantes para natildeo serem agredidos Sobre a abordagem que miacutedias progressistas fizeram desta situaccedilatildeover a reportagem do dia 20 de junho (AZENHA 2013)

27 Ver por exemplo o panfleto de orientaccedilatildeo para o ato do dia 20 de junho publicado pela corrente ldquoEsquerdaMarxistardquo (ESQUERDA MARXISTA 2013)

28 Ver por exemplo os posicionamentos de Vladmir Safatle professor de Filosofia da Universidade de Satildeo Paulo(USP) que atuou fortemente nos atos ao lado PSOLSP partido pelo qual seria cogitado a concorrer como candidatoao governo do Estado no ano seguinte (2014) Entre os artigos do professor que evidenciam a contundecircncia de seudiscurso com os propoacutesitos das esquerdas partidariamente organizadas ver Safatle (2013)

29 Referimo-nos aqui aos jovens que seguiam a taacutetica Black Bloc sobre os quais trataremos adiante

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e especializar a luta contra algomaior como o ldquoImpeacuteriordquo sejano ldquodomiacutenio globalrdquo mantidopelo capital transnacional seja noldquodomiacutenio localrdquo mantido pelo car-tel dos donos de empresas de ocircni-bus outra parte mais rigorosa in-sistia em dizer que todos os atosforam sim justamente por vintecentavos Foi neste ponto ndash o des-pertar do sentimento de indigna-ccedilatildeo socialmente propagado pelasredes e pela grande miacutedia ndash quese pocircs em flutuaccedilatildeo30 a narrativasobre as jornadas

Desesperados e pacifistas

Quando eu soube o que ocorrerano dia 11 mediado por amigos epelos jornais programei-me parair ao quarto ato Era uma quinta-feira e eu havia acabado de encer-rar minha jornada de trabalho se-manal segui para o Teatro Muni-cipal (Anhangabauacute) no centro da

cidade onde estava programada aconcentraccedilatildeo e a saiacuteda em passe-ata Eu tinha em mente o que asmiacutedias comunicavam os manifes-tantes eram em sua maioria arru-aceiros e criminosos Mesmo sus-peitando da informaccedilatildeo ao che-gar ao Viaduto do Chaacute em meio ajornalistas poliacuteticos e muitos po-liciais vi qual era a massa cha-mada de bagunceira e criminosapela grande miacutedia Eram jovens ndashmeninos e meninas ndash entre quinzee vinte anos pelo menos a maio-ria Muitos tinham a idade e doperfil dos meus alunos de entatildeomatriculados na primeira e na se-gunda seacuterie do Ensino Meacutedio31Alguns estavam mascarados ou-tros vestidos de vermelho e pretoou somente preto jamais de verdeeou amarelo Eles se conversa-vam se entreolhavam faziam-sesinais e aguardavam a definiccedilatildeoda rota da passeata decidida cole-tiva e horizontalmente

Quando a marcha partiu se-

30 Ver Ceacuteli Regina Jardim Pinto (2017 p 123-138) e sua reflexatildeo acerca da flutuaccedilatildeo do discurso sobre as jorna-das sustentada a partir de Ernesto Laclau e das noccedilotildees de significante vazio e significante flutuante

31 Esta observaccedilatildeo em um primeiro momento me levou a ponderar sobre a possibilidade de eu estar projetandoesta imagem muito pessoal para a anaacutelise dos fatos Por atuar como docente (e profissional) junto a um puacuteblicocujo perfil era semelhante agravequele que estava nos atos algo de projetivo poderia estar prejudicando a correccedilatildeo deminha percepccedilatildeo Conforme escreve Espinosa certas ldquonoccedilotildees natildeo satildeo formadas por todos da mesma maneira masvariam em cada um conforme a coisa pela qual o corpo foi mais frequentemente afetado e que mais facilmente aMente imagina ou recorda Por exemplo os que mais frequentemente contemplaram com admiraccedilatildeo a estatura doshomens inteligem sob o nome de homem o animal de estatura ereta os que poreacutem se acostumaram a contemplaroutra coisa formaratildeo outra imagem comum dos homens () e assim () cada um formaraacute imagens universais dascoisas de acordo com a disposiccedilatildeo de seu corpo Por isso natildeo eacute de admirar que entre os Filoacutesofos que quiseramexplicar as coisas naturais soacute pelas imagens das coisas tenham nascido tantas controveacutersiasrdquo (GII p 121) Natildeoforam encontrados dados seguros sobre o perfil dos militantes nos primeiros atos de modo a permitir a confirma-ccedilatildeo ou natildeo de minha impressatildeo Apesar disso sinto-me amparado pelos fatos uma vez que mesmo as estatiacutesticasdo evento colhidas no dia 17 (quando os atos jaacute estavam permeados de grupos mais heterogecircneos) indicavam apredominacircncia do puacuteblico jovem ateacute 25 anos (SINGER 2013 p 28)

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guindo para a Avenida Conso-laccedilatildeo o policiamento jaacute osten-sivo comeccedilava a ficar provocativoDesnecessariamente a Poliacutecia Mi-litar continha com truculecircncia osmilitantes criando barreiras late-rais Natildeo tardou a iniciar os pri-meiro conflitos da poliacutecia com oscidadatildeos (fossem eles manifestan-tes ou mero transeuntes) e de-pois jaacute agrave altura da Praccedila Roose-velt as primeiras bombas ressoa-ram Nesse instante veio a grandedispersatildeo inicial

O grupo com o qual me refu-giei no iniacutecio da Rua Augusta foijogado para cima de automoacuteveisguiados por motoristas perplexosdiante da barbaridade e do estam-pido das balas de borracha Ogosto do explosivo travava a gar-ganta o ar irrespiraacutevel Vinagreera atirado agraves camisetas porquediziam que a respiraccedilatildeo melho-rava ao inalaacute-lo Se no primeiroinstante a paralisaccedilatildeo foi geral ndashateacute porque os olhos ardiam muitondash tatildeo logo garotos e garotas per-cebiam as brechas continuavamNa esquina adiante encontravamoutro grupo e sentiam a alegriado encontro comemorada comgritos amplificados Prosseguiacutea-mos Adiante outra sequecircncia de

bombas e nova dispersatildeo mui-tas explosotildees muitas dispersotildeesmuitos reencontros foram se su-cedendo No meio do caminhomascarados destruiacuteam lixeiras in-cendiavam o lixo jogavam pedrasnos bancos e batiam em tudo quefosse emblema das concessionaacute-rias automobiliacutesticas Ao grito deldquosem vandalismordquo emitido porum par pacifista que ali se ma-nifestava eles respondiam algocomo ldquoVandalismo eacute o que fazEstadordquo ldquoVacircndalos satildeo banquei-ros e industriaisrdquo Quando ou-tro bom cidadatildeo contribuinte declasse meacutedia lhes dizia ldquoParemde desrespeitar a nossa lutardquoou coisa semelhante eles respon-diam ldquoNatildeo vamos fugir sem fa-zer nadardquo Uma garota pintavano muro o seu recado enquantoberrava que aquilo natildeo era vanda-lismo mas propaganda de liberta-ccedilatildeo

As accedilotildees eram discutidas nofazer do ato os conflitos ali sedavam como diaacutelogos mal aca-bados no meio do caos ao somdos gritos dos tiros e das bom-bas Ningueacutem brigava fisicamentecom ningueacutem havia decerto umentendimento de que lutavam nomesmo campo mas com meacutetodos

32 Uma reaccedilatildeo muito comum do puacuteblico pacifista dos atos de Satildeo Paulo era sentar no chatildeo no momento em queos ativistas iniciavam o processo de destruiccedilatildeo de siacutembolos A ideia consistia em permitir que os policiais locali-zassem os supostos ldquovacircndalosrdquo e os distinguessem dos demais Em vatildeo faziam isso pois as bombas tinham sempreo mesmo destino e deixavam pairar a mesma fumaccedila igualmente intragaacutevel Sem alternativas eles tambeacutem selevantam e corriam

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diferentes Eacuteramos igualmentealvo privilegiado do mesmo he-licoacuteptero que sondava de perto32

Afinal o que diferenciava osdois tipos que conviviam na mul-tidatildeo Em primeiro lugar o deses-pero da condiccedilatildeo social dos ditosvacircndalos desespero que natildeo es-tava presente nos pacifistas Emsegundo lugar o modo de reagir agraveofensiva policial os desesperadosimpunham a potecircncia ainda quedestrutiva jaacute os cidadatildeos de es-querda com suas bandeiras eramsurpreendidos pelo simples medoEstes fugiam aqueles avanccedilavam

O desespero eacute de acordo comEspinosa afeto feito de medo

a Esperanccedila eacute nada ou-tro que a Alegria incons-tante originada da imagemde uma coisa futura ou pas-sada de cuja ocorrecircnciaduvidamos O Medo aocontraacuterio eacute a Tristeza in-constante originada da ima-gem de uma coisa duvidosaAleacutem disso caso a duacutevidaseja suprimida desses afe-tos da Esperanccedila faz-se aSeguranccedila e do Medo o

Desespero a saber a Ale-gria ou a Tristeza origina-das da imagem de uma coisaque temiacuteamos ou esperaacuteva-mos (GII p 155)

Na proposiccedilatildeo 18 da terceira parteda Eacutetica como se lecirc acima o de-sespero eacute tomado como ldquotristezaoriginada da imagem de umacoisardquo da qual antes duvidaacuteva-mos que pudesse acontecer masagora jaacute natildeo temos mais moti-vos para dela duvidar Portantoimaginamos que aconteceraacute irre-versivelmente Em sua defini-ccedilatildeo no conjunto das definiccedilotildeesdos afetos o desespero eacute consi-derado a ldquoTristeza originada daideia de uma coisa futura ou pas-sada da qual foi suprimida a causade duvidarrdquo (Eacutetica III Def Af 15GII p 194) Espinosa jaacute natildeo tratamais o problema como imagemmas como ideia A accedilatildeo de su-primir a causa da duacutevida de quevenha a acontecer algo que teme-mos natildeo equivale imediatamentea ter certeza daquilo ldquoEmboranunca possamos estar certos daocorrecircncia das coisas singulares() pode contudo acontecerque natildeo duvidemos da ocorrecircn-

33 Na explicaccedilatildeo dada logo depois das definiccedilotildees de desespero e esperanccedila tendo em mente o escoacutelio da Propo-siccedilatildeo 49 da parte II da Eacutetica Espinosa escreve ldquouma coisa eacute natildeo duvidar de algo outra eacute ter certeza daquilo e porisso pode acontecer que a partir da imagem de uma coisa passada ou futura sejamos afetados pelo mesmo afeto deAlegria ou Tristeza pelo qual seriacuteamos afetados a partir da imagem de uma coisa presenterdquo (GII p 194-195) Noque concerne aos desdobramentos eacuteticos e poliacuteticos da operaccedilatildeo imaginativa pela qual um indiviacuteduo chega agrave au-secircncia de duacutevida sobre algo que teme ou espera Marilena Chaui (2016b p 339-340) esclarece que nessa situaccedilatildeoo indiviacuteduo imagina presentes coisas passadas ou futuras de sorte que o presente em si mesmo toma a forma de

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cia delasrdquo (Eacutetica III Def Af 15expl GII idem)33 Trata-se de umprocesso imaginativo dominadospela imagem da ausecircncia de duacute-vida sobre a ocorrecircncia de algoque tememos somos levados aodesespero a exata contrapartidada seguranccedila A seguranccedila ldquoeacute aAlegria originada da ideacuteia de umacoisa futura ou passada da qualfoi suprimida a causa de duvidarrdquo(Eacutetica III Def Af 15 GII idem)O desespero entretanto natildeo selimita meramente agrave noccedilatildeo de in-seguranccedila mas eacute precisamente aconsciecircncia (imaginativa) de queo pior da desesperanccedila estaacute porvir

Nitidamente se via no olhardos jovens que destruiacuteam a ci-dade a ausecircncia de esperanccedilaquanto ao futuro fazia-se pre-sente nos gestos e nas palavraso sentimento de quem nada tinhaa perder mesmo que pudesse terEles agiam como se fosse possiacutevelretribuir o mal recebido a qual-quer custo natildeo importando o quelhes sobreviesse A banalizaccedilatildeodas consequecircncias do ato de ba-ter quebrar depredar e incendiaras coisas foi o indiacutecio maior desse

desespero e natildeo uma evidecircnciada consciecircncia de impunidadepor parte da juventude transvi-ada como sempre defenderam osmais reacionaacuterios34 Parecia claroque o medo nos jovens da ativaconvertia-se em desespero masum desespero elaborado a partirda experiecircncia de saber que lhesestaacute (e estaraacute) inviabilizado o di-reito agrave cidade A veemecircncia dodesespero aumentava diante darepressatildeo preparada por gover-nantes que raramente entram emocircnibus Refeacutem dos carteacuteis agenci-ados pelo Estado quem lutava porum transporte justo e recebia emtroca as balas e o gaacutes lacrimogecircneoda Poliacutecia se revoltava profunda-mente O medo dos que fugiam aosom da primeira explosatildeo expres-sava o entendimento dos que simtinham muito a perder para es-tes o melhor era voltar para casae continuar a opinar nas redes so-ciais ateacute o proacuteximo ato e ateacute a proacute-xima primeira bomba

O pesadelo desses jovens de-sesperados envolvia a insatisfaccedilatildeocom a maacute administraccedilatildeo do es-paccedilo puacuteblico o descontentamentocom a vida familiar com a escola e

um ldquovaziordquo repleto de afetos referidos aos outros tempos O acontecimento temido ou esperado foi ou seraacute mas eacutesentido como presente Segundo Chaui (2011 p 158) ldquoa ausecircncia de duacutevida no caso da seguranccedila e do desespero() natildeo eacute o mesmo que a presenccedila da certezardquo mas a imaginaccedilatildeo que ldquotraz o passado e o futuro para o presenteexcluindo imagens de tudo aquilo quanto possa impedir essa presenccedilardquo

34 Basta constatar que no dia 16 de abril de 2013 antes mesmo das jornadas o deputado Carlos Sampaio(PSDBSP) jaacute apresentara o Projeto de Lei n 5385 que previa o aumento do periacuteodo maacuteximo de internaccedilatildeodos jovens de trecircs para oito anos isto eacute o aumento do grau de puniccedilatildeo

35 Foi o caso muito conhecido de Rafael Braga jovem detido no dia 20 de junho de 2013 por simplesmente

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com a sociedade iniacutequa capaz deprender um indiviacuteduo por portede vinagre ou ldquoPinho Solrdquo35 eao mesmo tempo conceder liber-dade e poder a comprovados cor-ruptos (RIBEIRO-JR 2011) Elespareciam querer bradar contra aPoliacutecia Militar assim como Espi-nosa ousara afrontar os assassi-nos dos irmatildeos De Witt provo-cando ldquoVocecircs satildeo os uacuteltimos dosbaacuterbarosrdquo

O desespero no entanto nas-cido de certa suspensatildeo da insta-bilidade36 que caracteriza o medoeacute uma tristeza viacutetimas dele noacutesestamos em pleno campo da passi-vidade No escoacutelio da proposiccedilatildeo47 da parte IV da Eacutetica Espinosaexplica

[Esperanccedila e medo] in-dicam defeito do conhe-cimento e impotecircncia daMente e por este motivotambeacutem a Seguranccedila oDesespero o Gozo e o Re-morso satildeo sinais de im-potecircncia do acircnimo Poisembora a Seguranccedila e oGozo sejam afetos de Ale-gria contudo supotildeem te-rem sido precedidos porTristeza a saber por Es-

peranccedila e Medo E as-sim quanto mais nos es-forccedilamos para viver sob aconduccedilatildeo da razatildeo tantomais nos esforccedilamos paradepender menos da Espe-ranccedila para nos libertardo Medo para comandar(imperare) o quanto pu-dermos a fortuna e paradirigir nossas accedilotildees peloconselho certo da razatildeo(GII p 246)

A passagem acima suscita a in-teraccedilatildeo entre afeto e conheci-mento Afetos instaacuteveis espe-ranccedila e medo indicam (indicant)defeito e impotecircncia um defeitodo conhecimento que desde aparte I da Eacutetica eacute considerado acausa de percebermos as coisascomo contingentes e natildeo necessaacute-rias e uma impotecircncia da menteque incapaz de afirmar a exis-tecircncia de uma coisa ou excluiacute-lade vez oscila e fica instaacutevel maissuscetiacutevel a afetos contraacuterios a suaproacutepria natureza Em primeirolugar o defeito do conhecimentose deve agrave limitaccedilatildeo do proacuteprioconhecimento enquanto coisa fi-nita impedida de saber da essecircn-cia de cada uma de todas as coi-

portar o produto36 Macherey (1995 p 174) alerta que a suspensatildeo da instabilidade que redunda em desespero ou em seguranccedila

natildeo eacute absoluta De acordo com Luiz Carlos Braga (2016 p 110) ldquoo fim da duacutevida nos casos da securitas e da despe-ratio natildeo implica total estabilidade uma cristalizaccedilatildeo afetiva absoluta pois as coisas que vecircm agrave mente do homemficam apenas menos contingentes uma vez finda a duacutevidardquo

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sas existentes Por isso facilmentetal conhecimento deixa escapar aordem necessaacuteria das causas dosfenocircmenos

Uma coisa cuja essecircnciaignoramos envolver con-tradiccedilatildeo ou da qual sa-bemos bem que natildeo en-volve nenhuma contradi-ccedilatildeo e de cuja existecircn-cia contudo natildeo pode-mos afirmar nada de certoporque a ordem das cau-sas nos escapa tal coisanunca pode ser vista pornoacutes nem como necessaacute-ria nem como impossiacute-vel e por isso chamamo-la ou contingente ou pos-siacutevel (Eacutetica I Prop 33 esc1 GII p 74)

A esperanccedila e o medo por envol-verem duacutevida quanto a algumacoisa que implicaraacute alegria ou tris-teza manifestam em segundo lu-gar a impotecircncia da mente pelaqual ela nem afirma nem excluia existecircncia da coisa que teme ouespera nem a toma como neces-saacuteria nem como impossiacutevel mascomo contingente ou possiacutevel

Agrave primeira vista eacute estranho pen-sar que a seguranccedila e o gozo sejamcolocados pelo filoacutesofo na lista dosafetos que apesar de alegres si-nalizam a impotecircncia Se atentar-mos poreacutem ao modo pelo qual

de acordo com Espinosa o serhumano chega a gozar de umacoisa ou vem a se sentir seguroem dada situaccedilatildeo sem dificuldadeveremos a presenccedila do elementoda parcialidade do conhecimentoque ele possui a respeito do queo circunda O gozo nasce as-sim como o remorso daquilo queocorre ldquocontra toda a esperanccedilardquoportanto de uma condiccedilatildeo de ini-cial de instabilidade entre alegriae tristeza

O Gozo eacute a Alegria con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocorreucontra toda Esperanccedila ORemorso eacute a Tristeza con-juntamente agrave ideia de umacoisa passada que ocor-reu contra toda Esperanccedila(Eacutetica III Def Af 16 e 17GII p 195)

A filosofia de Espinosa visa emtermos eacuteticos promover uma vidadependente no menor grau pos-siacutevel da esperanccedila e do medo demodo a ser maximamente condu-zida pela razatildeo que percebe as coi-sas como necessaacuterias e natildeo comocontingentes (Eacutetica II Prop 44cor 2 dem GII p 126) Eacute oconhecimento da ordem necessaacute-ria da natureza que permite aovivente imperar na medida dopossiacutevel sobre a contingecircncia (ex-

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pressa na figura da Fortuna) e natildeosucumbir diante dela O deses-pero faz cessar o medo mas nempor isso ao entrar em desesperosentiremos alegria os desespera-dos ficam livres da esperanccedila e domedo mas natildeo da tristeza que soacutepoderaacute ser abalada se uma alegriaem sentido contraacuterio se der (EacuteticaIV Prop 7 GII p 214) Destaalegria eacute que pode um ser humanorealmente afastar a tristeza e pas-sar a entender adequadamente ascoisas

Desesperados os indiviacuteduos fa-zem muitas coisas das quais pos-teriormente sentem remorso noentanto apenas desesperados po-dem experimentar este tipo espe-cial de alegria que eacute o gozo (a ale-gria contra toda a esperanccedila) Aparticipaccedilatildeo dos jovens nas jorna-das de 2013 parece ter evidenci-ado uma forma de se viver o de-sespero na qual o remorso eacute aomaacuteximo evitado e o gozo se con-verte em meta final de cada atoComo seria isso possiacutevel

Durante as jornadas conformejaacute foi expresso cada vez que con-seguiacuteamos avanccedilar e encontraroutro grupo de militantes ndash depoisde termos sido dispersados pelasbombas ndash a sensaccedilatildeo era de umaverdadeira apoteose de alegria oucomo diria Leminski (2004) deum ldquogozo fabulosordquo Um gozoque mesmo passivamente dadoproduzia no cerne do desespero a

emoccedilatildeo de estar avanccedilando con-tra quem esperava de noacutes umaresposta de medo Isto explicaeacute certo a ligaccedilatildeo entre desesperoe a busca do gozo mas podemosindagar como os militantes po-diam contornar os riscos do re-morso expondo-se daquela ma-neira agrave violecircncia policial A res-posta soacute pode ser uma fazendoda movimentaccedilatildeo e da destrui-ccedilatildeo dos siacutembolos do Estado e docapital uma performance e natildeouma expressatildeo de puro oacutedio des-governado que no intuito de des-truir o que deve ser destruiacutedo feree ataca pessoas inocentes (merostranseuntes ou militantes pacifis-tas dos atos)

Em entrevista agrave revista CartaCapital um jovem Black Bloc afir-mou

Nossa sociedade eacute perme-ada por siacutembolos Partici-par no Black Blocs eacute usaacute-los para quebrar precon-ceitos natildeo somente o alvoatacado mas a ideia devandalismo Natildeo haacute vi-olecircncia mas performanceEu natildeo me sinto represen-tado pelos partidos E natildeosou a favor da democra-cia representativa mas dademocracia direta Natildeoeacute depredaccedilatildeo pelo sim-ples prazer de quebrarcoisas mas atacar siacutembo-

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los que estatildeo representa-dos laacute (ORTELLADO SO-LANO VIEIRA LOCA-TELLI 2013)

Em mateacuteria da Folha de Satildeo Paulopublicada no final do ano de 2013e citada por Gohn (2013 p 434)jornalistas que ouviram os jovensprotagonistas das jornadas de ju-nho afirmam

Muitos Black Blocs jaacute medisseram que para eles aviolecircncia eacute a uacutenica formade expressatildeo pela qual defato satildeo ouvidos Eacute difiacutecilcontestar esse raciociacutenioSe a imprensa soacute daacute voz agravesformas de protestos vio-lentos se o governo reagecom mais forccedila diante dofator violecircncia como im-pedir que a violecircncia setorne uma forma de pro-testo generalizada A vio-lecircncia como forma de pro-testo natildeo estaria sendo le-gitimada e reforccedilada portoda a sociedade que jogao jogo da espetaculariza-ccedilatildeo

Natildeo se trata naturalmente deafirmar que a juventude que in-corporava em Satildeo Paulo a taacuteticaBlack Bloc agia com afetuosidadee ternura em suas operaccedilotildees Era

efetivamente a expressatildeo de umdesespero de quem natildeo tem a li-berdade de dizer o que pensa massabe se expressar e viver sem es-peranccedilas tristeza de quem tocouo nuacutecleo mais iacutentimo do problemapoliacutetico que vivencia o grande ca-pital e o patrociacutenio do Estado parao livre desenvolvimento dos capi-talistas (sobretudo os da induacutestriados transportes) pela exploraccedilatildeoda forccedila produtiva

Para a anaacutelise dessa questatildeoo escoacutelio da Proposiccedilatildeo 49 daparte IV da Eacutetica pode oferecer umexemplo que nos interessa em par-ticular a accedilatildeo de bater uma accedilatildeoque corresponde com exatidatildeo aoque faziam os jovens durante osatos

() a accedilatildeo de bater en-quanto eacute considerada fi-sicamente e soacute prestamosatenccedilatildeo a que um homemlevanta o braccedilo fecha amatildeo e move com forccedilatodo o braccedilo de cima parabaixo eacute uma virtude queeacute concebida pela estruturado Corpo humano Se en-tatildeo um homem movidopela Ira ou Oacutedio eacute deter-minado a fechar a matildeo oumover o braccedilo isso comomostramos na SegundaParte ocorre porque umae a mesma accedilatildeo pode unir-se a quaisquer imagens de

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coisas e assim tanto apartir daquelas imagensdas coisas que concebe-mos confusamente quantodaquelas que concebemosclara e distintamente po-demos ser determinados auma e mesma accedilatildeo (GII p255)

Em si mesmas consideradas asaccedilotildees de quebrar depredar e in-cendiar natildeo satildeo necessariamentesintomas de passividade Se es-tas accedilotildees se relacionam a algo quecom o cuidado de natildeo ferir ne-nhum dos pares deponha con-tra os inimigos do bem verdadei-ramente comum elas podem serconsideradas virtudes Planejadae realizada como accedilatildeo dramaacuteticanatildeo como expressatildeo de ira ou oacutediogratuito a accedilatildeo Black Bloc cora-josamente se embebia do deses-pero em performance exercitandoo gozo e afastando o remorso Atristeza neste caso se situava ine-quivocamente ao lado do Estadoque impedia a livre expressatildeoademais estava ao lado dos ges-tores da cidade que natildeo se inte-ressam pela livre circulaccedilatildeo doscidadatildeos e enfim ao lado do po-liciamento que ao inveacutes de prote-ger o povo o oprimia

O problema dos jovens estavaprincipalmente na ausecircncia de li-berdade de expressatildeo No Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico (Capiacutetulo

20 GIII p 243) Espinosa es-creve ldquolonge de uma coisa des-sas poder acontecer ou seja detodos se limitarem a dizer o queestaacute prescrito quanto mais se pro-cura retirar aos homens a liber-dade de expressatildeo mais obstina-damente eles resistemrdquo Excetoos bajuladores e avaros (estes simde acircnimo verdadeiramente impo-tente) ningueacutem que se sinta livrerecusar-se-aacute a resistir contra umEstado opressor

Sob a mesma perspectiva dosdesesperados que gritavam aospacifistas nas ruas de Satildeo Pauloque o verdadeiro vandalismo ad-vinha do Estado iniacutequo o filoacutesofoescreveu em certa passagem damesma obra

Que coisa pior podeimaginar-se para um im-peacuterio que serem manda-dos para o exiacutelio como in-desejaacuteveis homens hones-tos soacute porque pensam demaneira diferente e natildeosabem dissimular Ha-veraacute algo mais perniciosorepito do que conside-rar inimigos e condenaragrave morte homens que natildeopraticaram outro crime ouaccedilatildeo criticaacutevel senatildeo pen-sar livremente e fazer as-sim do cadafalso que eacute oterror dos delinquentesum palco beliacutessimo em

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que se mostra para vergo-nha do soberano o maissublime exemplo de to-leracircncia e virtude Por-que os que sabem que satildeohonestos natildeo tecircm comoos criminosos medo demorrer nem imploram aclemecircncia na medida emque natildeo os angustia o re-morso de nenhum feitovergonhoso ndash pelo contraacute-rio o que fizeram era ho-nesto ndash recusam-se a con-siderar castigo o morrerpor uma causa justa e tecircmpor gloacuteria dar a vida pelaliberdade Que exemplopoderaacute entatildeo ter ficado damorte de pessoas assimcujo ideal eacute incompreen-dido pelos fracos e moral-mente impotentes odiadopelos sediciosos e amadopelos homens de bemNingueacutem certamente aiacutecolhe exemplo algum anatildeo ser para os imitar oupelo menos admirar (Tra-tado Teoloacutegico-Poliacutetico 20GIII p 245)

Eacute bem verdade que os jovens dejunho em Satildeo Paulo natildeo foram exi-lados do paiacutes nem mortos peloEstado Todavia muitiacutessimos fo-ram presos interrogados e sub-metidos agrave execraccedilatildeo puacuteblica Forade duacutevida estaacute o fato de que eles

passaram a ser admirados por jo-vens ainda mais jovens que elescujo desejo de imitaccedilatildeo talvez te-nha sido o estopim para outrasaccedilotildees de desobediecircncia civil leva-das a cabo por jovens paulistas nosanos de 2015 e 2016 Uma marcandash natildeo se pode questionar ndash elesdeixaram e com um eco profun-damente espinosano que podemosentrever se nos servirmos de umapassagem da anaacutelise de MarilenaChaui (2011 p 167) ldquoos verda-deiros sediciosos satildeo () aque-les que em uma sociedade livrequerem suprimir a liberdade depensamento e de expressatildeo por-que natildeo conseguem destruiacute-lardquo

Finalmente e os pacifistas Ospacifistas provavelmente natildeo te-riam feito as jornadas de junhopois natildeo teriam afrontado a vio-lecircncia policial risco essencial paradestruir as engrenagens que man-tecircm o Estado produtor de iniqui-dades Eles natildeo teriam feito asjornadas acontecerem como acon-teceram natildeo por discordarem dapauta da reduccedilatildeo da tarifa e darepressatildeo policial mas porque se-guiram agrave risca a primeira partedo enunciado da Proposiccedilatildeo 39 daparte III da Eacutetica ldquoQuem odeia al-gueacutem esforccedilar-se-aacute para lhe fazero mal a natildeo ser que tema originar-se daiacute um maior mal para sirdquo (GIIp 169 grifos nossos) Os de-sesperados em contrapartida ti-nham a temer um mal maior mas

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agiam como se o mal maior parasi mesmos jaacute estivesse dado ldquosemduacutevidasrdquo

Do desespero ao encontro da co-munidade

Em geral o desespero eacute estimadono campo poliacutetico como um afetoa ser evitado Ao contraacuterio oque todos buscam na vida socialeacute o seu oposto o afeto de segu-ranccedila Em especial nos estudossobre o impacto poliacuteticos da teoriados afetos de Espinosa o livro deBraga (2016 p 244) nos faz lem-brar disso algumas vezes (e comrazatildeo) ldquoafeto triste no qual a duacute-vida acerca do medo antes sentidocessa o desespero eacute o retrato deuma cidade cujos suacuteditos natildeo tecircmacircnimo virtude potecircnciardquo Nas so-ciedades ldquoo afeto predominantedeve ser a seguranccedila advinda daesperanccedila e natildeo o desespero ad-vindo do medordquo (p 260) Eacute certoque aqui exploramos o desesperopara aleacutem de sua dinacircmica indivi-dual (isolada de outros afetos) epor isso pudemos perceber comoele vem a se ligar agrave alegria do gozoe agrave performance

O que tornou isso possiacutevel foium elemento presente em todaa nossa anaacutelise mas que apenasaqui colocamos em evidecircncia odesejo ldquoO desejordquo para Espinosaeacute ldquoa proacutepria essecircncia do homemrdquo

como declara a primeira das de-finiccedilotildees dos afetos da parte IIIda Eacutetica (GII p 190) ldquoo esforccedilopelo qual o homem se esforccedila paraperseverar em seu serrdquo conformeexplicita a demonstraccedilatildeo da Pro-posiccedilatildeo 18 da parte IV (GII p221-222) Enquanto esforccedilo porcontinuar a existir nosso desejopode ter origem na alegria ou natristeza no amor e no oacutedio Aoexperimentarmos uma tristezaobserva Espinosa nos esforccedilare-mos por afastaacute-la contrariamenteao experimentarmos uma alegrianos esforccedilaremos por reforccedilaacute-laisto eacute por fazer com que ela natildeose afaste de noacutes A demonstra-ccedilatildeo da Proposiccedilatildeo 37 da parte IIIemerge como um excelente auxiacute-lio para pensarmos como cada serhumano age quando vivencia umatristeza

A Tristeza () diminui oucoiacutebe a potecircncia de agirdo homem isto eacute () di-minui ou coiacutebe o esforccedilopelo qual o homem se es-forccedila para perseverar noseu ser por isso () elaeacute contraacuteria a este esforccediloe afastar a Tristeza eacute tudopara que se esforccedila o ho-mem afetado de TristezaOra () quanto maior eacutea Tristeza tanto maior eacute aparte da potecircncia de agirdo homem agrave qual eacute neces-

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saacuterio que se oponha logoquanto maior eacute a Tristezatanto maior eacute a potecircnciade agir com que o homemse esforccedilaraacute para afastaacute-la isto eacute () com tantomaior desejo ou seja ape-tite se esforccedilaraacute para afas-tar a Tristeza (GII p 168)

Um indiviacuteduo impotente eacute aqueleque natildeo consegue aplacar a tris-teza e dela permanece como re-feacutem Jaacute o indiviacuteduo que emboraaplacado por uma tristeza eacute ca-paz de encontrar uma alegria con-traacuteria agrave tristeza este sim expressacerto grau de potecircncia uma vezque mesmo no campo passionalalcanccedila uma primeira fonte de ati-vidade pela qual jaacute natildeo pode sedizer plenamente passivo em rela-ccedilatildeo ao que ocorre nele e fora dele

Neste ponto ganha plena rele-vacircncia a afirmaccedilatildeo jaacute feita aqui depassagem e que aparece em diver-sos comentadores de Espinosa arazatildeo natildeo surge aos homens comoum deus ex machina vinda doaleacutem mas no proacuteprio seio da pai-xatildeo De acordo com Chaui (2011p 169) ldquoa passagem do medo agraveesperanccedila deveraacute ocorrer no proacute-prio campo passional sem qual-quer intervenccedilatildeo da razatildeo passa-gem que ocorreraacute quando a espe-ranccedila da vida for para o conatusum desejo mais forte que o medoda morterdquo Para a autora ldquoo efeito

da estabilizaccedilatildeo da esperanccedila e deseu ultrapassamentordquo eacute precisa-mente o fato de ldquocomeccedilarmos aperceber que as coisas necessaacuteriasndash ou seja aquelas sobre as quaisnatildeo pesam duacutevidas ndash satildeo mais for-tes que as contingentesrdquo

No mesmo sentido comen-tando o pensamento eacutetico de Espi-nosa Lorenzo Vinciguerra (2003p 13) afirma que em uma para-doxal flutuaccedilatildeo ldquoonde o espiacuteritoconhece a suprema impotecircncia eonde conhece tambeacutem a supremapotecircnciardquo natildeo eacute a razatildeo que operacomo uma espeacutecie de mediaccedilatildeopara o conflito afetivo dado Se-gundo o comentador ldquoa razatildeordquoabalada ldquotoma partido do con-flito e potildee a mente em sua uacuteltimatrincheirardquo De acordo com Givigi(2018 p 79) Vinciguerra consi-dera que no sistema de Espinosaldquopode vir a ser do agravamento dafluctuatio ao ponto de uma deses-peratiordquo que advenha uma delibe-raccedilatildeo ativa dos indiviacuteduos sobreseus impasses

Negri (2016 p 223) natildeo apre-senta um parecer diferente Paraele tambeacutem eacute no campo proacuteprioda passividade que se conquistaem termos espinosanos a pleni-tude do ser

a multitudo nasce julgae se comporta como umconjunto de brutos masde qualquer forma ela

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eacute sempre investida pelametamorfose do ser ouseja por uma metamor-fose que o ser humanoconduz na plenitude co-letiva do gecircnerordquo

O espinosismo de Negri (2007 p39) no livro Joacute ndash a forccedila do escravonos explica antes de tudo qual eacuteo sentido da miseacuteria experimen-tada pela multidatildeo enleada ao seudesejo de luta Acerca desta obraescrita no caacutercere ndash assim como oclaacutessico sobre Espinosa A anoma-lia selvagem ndash ele assevera

A realidade de nossa mi-seacuteria eacute aquela de Joacute as per-guntas e as respostas quefazemos ao mundo satildeoas mesmas de Joacute com omesmo desespero as mes-mas blasfecircmias noacutes nosexprimimos () Pode-remos noacutes tambeacutem guiara nossa miseacuteria atraveacutes deuma anaacutelise do ser e dador E a partir dessa pro-fundidade ontoloacutegica re-montar a uma teoria daaccedilatildeo ou melhor a umapraacutetica de reconstruccedilatildeo domundo

A resposta negriana eacute afirmativaJoacute inicia um processo de liberta-ccedilatildeo que o revelaraacute natildeo como pa-ciente mas potente37 A sua dora dor com que luta contra os fla-gelos impostos pela Natureza eacuteldquouma chave que abre a porta da co-munidaderdquo Segundo Negri (2007p 139-140)

todos os coletivos satildeoformados pela dor pelomenos aqueles que lu-tam contra a exploraccedilatildeodo tempo da vida porparte do poder aquelesque descobriram o tempode novo como potecircnciacomo recusa do trabalhoexplorado e dos manda-mentos que se instauramcom base na exploraccedilatildeoA dor eacute o fundamento de-mocraacutetico da sociedade po-liacutetica na mesma medidaem que o medo eacute seu fun-damento ditatorial auto-ritaacuterio Hobbes e todos oschamados ldquorealistasrdquo dafilosofia poliacutetica satildeo antesde tudo homens imoraispois de maneira infamefalam do medo ndash daquelemedo que eles acrescen-tam agrave dor da vida ndash como

37 ldquoJoacute natildeo eacute paciente eacute potente Os proacuteprios textos que recordamos compotildeem a imagem de um homem queatraveacutes da luta mesmo na dor e na miseacuteria mais tremendas afirma seu domiacutenio sobre o ser A potecircncia forma-sena dor mas se desenvolve na relaccedilatildeo com o serrdquo (NEGRI 2007 p 128)

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de um fundamento ()A potecircncia instaura-se nador eacute potecircncia do natildeo-sereacute potecircncia da comunidadendash uma essecircncia inconclusadentro de um processo in-definidamente criativo

De onde se pode extrair tanta afir-maccedilatildeo na dor e ndash acrescentamosnoacutes ndash do desespero Para Negri oque permite ao desesperado e so-fredor desviar-se para a alegria emmeio agrave proacutepria dor eacute manter umaatitude diferente diante da vidaou seja ter em vista um horizontecoletivo e ter disposiccedilatildeo de com-partilhar com os outros a mesmador Tal disposiccedilatildeo consiste emlutar para ter o sofrimento reco-nhecido e desejar com o outroldquosofrer juntordquo Pode parecer pesa-rosa tal constataccedilatildeo uma vez quereuacutene uma seacuterie de sofrimentosmas natildeo eacute Citemos ainda umavez Negri (2007 p 145)

Natildeo posso reconhecer ooutro tomado pela dorse natildeo a compartilho comele Mas atraveacutes dessaaccedilatildeo de colocar-me nelecom amor dessa accedilatildeo decompaixatildeo posso levara efeito a construccedilatildeo domundo Natildeo eacute a divin-dade um significado quevem do alto mas o sofri-

mento e a dor que vecircm debaixo que constroem o serproacuteprio do mundo Spi-noza moveu-se ele tam-beacutem nesse mesmo terrenoe nessa mesma perspec-tiva A funccedilatildeo univer-sal e constitutiva do so-frimento encontra-se laacuteonde a paixatildeo transforma-se em compaixatildeo e a tris-teza desenvolve-se em ale-gria da comunhatildeo como outro A ontologia dacomunidade eacute descobertaatraveacutes do sofrer junto ndashum sofrer que se subtraiagrave passividade e torna-seconstrutivo Eacutetico

Vecirc-se a partir dessa citaccedilatildeo quea coletividade-comunhatildeo nascidano desespero pode converter a po-tecircncia contra o poder

Experimentamos nos dias dejunho de 2013 a ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo por garotos e garotaspaulistanas Foi entretanto deacordo com a explicaccedilatildeo de Ne-gri uma accedilatildeo de compaixatildeo e natildeoa compaixatildeo contra a qual Nietzs-che se voltou isto eacute a compai-xatildeo ldquohipoacutecritardquo a ldquocomiseraccedilatildeoque natildeo se faz universalidaderdquo(NEGRI 2007 p 145) Natildeodiremos portanto ldquoaccedilatildeo decompaixatildeordquo porque nesse con-texto pode soar anti-espinosanodiremos ldquosolidariedaderdquo princiacute-

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pio libertaacuterio por excelecircncia e queencontra certo respaldo na ideiaespinosana de ldquoauxiacutelio muacutetuordquo aaccedilatildeo fundadora da vida comum38Em funccedilatildeo de ler Espinosa eu (emuitos outros movidos pela proacute-pria aprendizagem da luta) des-pertei para essa espeacutecie de solida-riedade que produz o desejo de co-munidade e de estar junto com ajuventude contra a qual no Brasiltudo eacute liacutecito

Muitos professores intelectu-ais e lideranccedilas partidaacuterias de es-querda cientes na maioria dasvezes do que se passava nos atosnatildeo podiam afirmar categorica-mente que a luta da juventudeera legiacutetima Por recear a reta-liaccedilatildeo dos controladores sociais(sobretudo os midiaacuteticos) mui-tos deixaram a juventude maisradical na vala comum ao fei-tio de ldquofascistas depredadores dopatrimocircnio puacuteblicordquo Na classemeacutedia politizada pela esquerdahavia sempre o medo tiacutepico dosque se sentem solitaacuterios e fogemmesmo estando em coletivo sim-plesmente porque sentem queainda tecircm muito a perder

Natildeo resolve nenhum problemaapontar supostas covardias ou fa-zer alguma autocriacutetica circunstan-cial A maioria dos intelectuais e

professores dos partidos e de todaa geraccedilatildeo adulta foi constituiacuteda aolongo do processo histoacuterico sem ogosto da participaccedilatildeo poliacutetica e namais profunda inexperiecircncia dademocracia direta Nos meios in-telectuais a revolta da juventuderadical soacute poderia mesmo indiciaroacutedio agrave poliacutetica ao inveacutes de simbo-lizar oacutedio agrave representaccedilatildeo poliacuteticaPara uma parte dos intelectuaisque se acostumou a desempenharo papel de reproduccedilatildeo da ideolo-gia da classe dominante a poliacute-tica eacute (e deve continuar a ser) issoque os partidos fazem em nomedeles e para eles Uma fatia im-portante da dita elite pensanteuma vez abandonada pelo jogo darepresentaccedilatildeo poliacutetica do pactoda mediaccedilatildeo exclusivamente par-tidaacuteria do poder e de outras tantasinvenccedilotildees fantasiosas da burgue-sia sente ter tudo a perder Po-reacutem estando o jogo da represen-taccedilatildeo assegurado jaacute respira a es-peranccedila (mais forte em alguns doque em outros) de constituir umacidade livre e para todos Bastaessa tecircnue esperanccedila cotidiana-mente negada para que se recu-sem a atacar as instituiccedilotildees sa-tisfeitos com seus representantesmesmo quando estes atiram bom-bas

38 No escoacutelio da Proposiccedilatildeo 35 da parte IV da Eacutetica Espinosa argumenta que os seres humanos ldquodificilmentepassam a vida em solidatildeordquo Em seguida afirma ldquoos homens com o auxiacutelio muacutetuo podem prover-se muito maisfacilmente das coisas de que precisam e soacute com as forccedilas reunidas podem evitar os perigos que em toda parte osameaccedilamrdquo (GII p 234)

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Eacute tambeacutem pelo processo histoacute-rico que se compreende natildeo tersido enfatizada pela maioria dasanaacutelises a presenccedila diferencial dajuventude brasileira no papel dereal disparadora das jornadas dacidade de Satildeo Paulo Conformejaacute foi aqui registrado todos osanalistas tiveram que reconhecera presenccedila jovem no movimentomas poucos souberam perceber opotencial caracteristicamente jo-vem do impulso revolucionaacuteriodaqueles atos As forccedilas reacionaacute-rias por outro lado parecem terpercebido bem esse elemento

Jaacute apontamos em nota que a16 de abril de 2013 o deputadoCarlos Sampaio (PSDBSP) apre-sentou o Projeto de Lei n 5385requerendo o aumento do tempomaacuteximo de internaccedilatildeo de jovensque passaria de trecircs para oitoanos Soacute em 2013 foram apresen-tadas pelo menos duas PECs pelareduccedilatildeo da maioridade penal Emjulho de 2015 por meio de ma-nobra (SANTOS 2015 p 910)o entatildeo presidente da Cacircmarados Deputados Eduardo Cunha(PMBDRJ) conseguiu algo ineacute-dito a aprovaccedilatildeo da PEC n1711993 na Comissatildeo de Consti-tuiccedilatildeo e Justiccedila Tal emenda comooutras 35 que viriam a tramitar de1993 ateacute 2013 (SILVA HUumlNING2017 p 237) propunha alterar aredaccedilatildeo do artigo 228 da Consti-tuiccedilatildeo Federal justamente aquele

sobre a imputabilidade penal doindiviacuteduo maior de 16 anos

A paacutegina de notiacutecias do SenadoFederal na internet no dia 30 demaio de 2016 afirmou

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)() A PEC 332012 dosenador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anosrdquo (SE-NADO 2016)

Em setembro de 2017 em situa-ccedilatildeo pura de repeticcedilatildeo anunciou arevista Carta Capital

A reduccedilatildeo da maioridadepenal volta agrave pauta da Co-missatildeo de ConstituiccedilatildeoJusticcedila e Cidadania (CCJ)do Senado () A Pro-posta de Emenda agrave Cons-tituiccedilatildeo (PEC) 332012do senador Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP) abre apossibilidade de penaliza-ccedilatildeo de menores de 18 anose maiores de 16 anos ()A proposta tramita emconjunto com mais trecircsPECs que versam sobre otema (BELCHIOR 2017)

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Logo no iniacutecio do ano de 2018o tema foi novamente ventiladopela imprensa

Apesar de ser ano de elei-ccedilatildeo quando os parlamen-tares deixam os trabalhoslegislativos em segundoplano e costumam evitartemas polecircmicos o rela-tor da mateacuteria senadorRicardo Ferraccedilo (PSDB-ES) acredita que o pro-jeto [de reduccedilatildeo da maio-ridade penal] seraacute votadoem 2018 (MARIZ 2018)

A PEC 332012 consta como ar-quivada desde 21 de dezembrode 2018 mas tem sempre retor-nado nos uacuteltimos cinco anos comopauta para as grandes reportagenstelevisivas sobre menores reputa-dos criminosos e como bode ex-piatoacuterio de toda a desigualdadesocial brasileira Podemos aleacutemdisso mencionar a forte repres-satildeo que jovens estudantes de vaacute-rios lugares do Brasil sofreram notempo das ocupaccedilotildees de escolasdepois de junho de 2013 tanto noano de 2015 em Satildeo Paulo contrauma decisatildeo do governador Ge-raldo Alckmin (PSDBSP) de fe-char escolas no Estado quanto em2016 no paiacutes inteiro contra a re-forma do Ensino Meacutedio que viriaa se tornar a Lei n 134152017

(BRASIL 2017)

A verdade vindo agrave tona

O espiacuterito das jornadas de junhode 2013 na cidade de Satildeo Paulopara quem se fazia leitor de Espi-nosa foi a combinaccedilatildeo entre taacute-tica e horizontalidade contra ossiacutembolos e as forccedilas do Impeacuterioencarnadas na loacutegica hierarqui-zada da repressatildeo das tropas dechoque Foi em suma conformepropusemos a experiecircncia poliacute-tica de colocar medo nos deten-tores de privileacutegio fazecirc-los sen-tir por algumas noites o deses-pero das minorias poliacuteticas quese metamorfoseiam em multidatildeoNatildeo evidentemente apenas peloconsenso mas tambeacutem pelo con-flito Natildeo foi jamais o caso deldquotocar o terrorrdquo pela cidade por-que os insurretos natildeo tinham ar-mas para aterrorizar Tratava-sede encontrar na Avenida Paulistao grande capital financeiro paraapedrejaacute-lo apedrejaacute-lo sim massem violecircncia A atuaccedilatildeo dos jo-vens de vermelho e preto tam-beacutem eles com seus gritos compu-seram um ldquoprocesso indefinida-mente criativordquo como eacute criar umldquocorpo-sem-oacutergatildeosrdquo segundo De-leuze e Guattari (1996) Criar algoassim natildeo eacute exatamente um pro-

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cesso suave mas tenso39Nesse percurso natildeo pode faltar

uma palavra final sobre os possiacute-veis descaminhos autoritaacuterios dodesespero coletivo sobretudo di-ante do cenaacuterio de reaccedilatildeo conser-vadora que se sobrepocircs a essa pri-meira fase das jornadas (DEMIERHOEVELER 2016) Eacute precisopois renovar neste momento a ad-vertecircncia segundo a qual a lutacontra as instituiccedilotildees e todas asformas de representaccedilatildeo fomen-tada por afetos feitos de tristezapode culminar no aparecimentode forccedilas tiracircnicas que se legiti-mam pelo exerciacutecio do poder Odebate eacute amplo e natildeo teremos con-diccedilatildeo de aprofundaacute-lo aqui Nocaso brasileiro entretanto a cau-tela contra o iacutempeto destrutivo decertos movimentos tem justifica-tivas histoacutericas e teoacutericas impor-tantiacutessimas Citemos Pliacutenio Sal-gado (1953 p 56) e em seguidaum conjunto de breves comentaacute-rios de Marilena Chaui ao integra-lismo

Uma Revoluccedilatildeo se efetivaobjetivamente na Histoacute-ria obedecendo na apa-recircncia a certas causas di-retas mas essas causas

passam a ser simples con-junto de efeitos desde queo concurso de circunstacircn-cias que atuam durante operiacuteodo da transiccedilatildeo re-volucionaacuteria comeccedila a pocircrem evidecircncia fatores no-vos e desconhecidos pelalimitada visatildeo dos com-parsas

Pliacutenio Salgado figura autoritaacute-ria e de direita pensava o Es-tado como ldquoum joguete nas matildeosdos poderososrdquo (CHAUI 2014ap 110) Para ele como paraos conservadores da segunda me-tade do seacuteculo XIX uma crise ex-pressa sempre um sintoma da in-competecircncia dos seres humanosem dominar a histoacuteria (p 115)de modo a exigir a intervenccedilatildeo daldquoclasse meacutedia urbanardquo ldquoa uacutenicaclasse que soacute pode representar-se a si mesma como lsquoideiarsquo ecomo lsquoideadorarsquordquo Para mobili-zar esta classe os integralistasse apoiavam em uma pretensaldquocrise radical das ideiasrdquo culti-vando o recanto da ausecircncia depensamento bem ali onde plan-tam seu programa poliacutetico ldquoAirracionalidaderdquo das ideias ndash ge-neralizada na sociedade ndash eacute o

39 ldquo[Criar um Corpo-sem-Oacutergatildeos] Natildeo eacute tranquilizador porque vocecirc pode falhar Ou agraves vezes pode ser aterrori-zante conduzi-lo agrave morte Ele eacute natildeo-desejo mas tambeacutem desejo Natildeo eacute uma noccedilatildeo um conceito mas antes umapraacutetica um conjunto de praacuteticas Ao Corpo sem Oacutergatildeos natildeo se chega natildeo se pode chegar nunca se acaba de chegara ele eacute um limiterdquo (DELEUZE amp GUATTARI 1996 p 8-9)

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que ldquodesencadeia a racionalidadeintegralistardquo (p 113)

Chaui (2014a p 113) retra-tando a loacutegica de Pliacutenio Salgadoescreve

a tarefa destrutiva deveser feita pela sociedadeenquanto o momentoconstitutivo da revoluccedilatildeoseraacute obra do Estado ex-pressatildeo positiva dos an-seios da sociedade Estasoacute pode ser levada agrave accedilatildeodestrutiva se perceber aconstruccedilatildeo por vir massobretudo se perceber acrise existente

Na histoacuteria do Brasil sequestrarnarrativas criar o caos das ideiase exercer o poder destrutivo con-tra quem eacute a causa direta do fer-vor revolucionaacuterio natildeo satildeo tramasisoladas mas praacuteticas constantesteoricamente orientadas

Em dezembro de 2001 tivemosnotiacutecia da ldquobaderna argentinardquo(HOPSTEIN 2002) movimentocom muitas semelhanccedilas e dife-renccedilas em relaccedilatildeo a junho de 2013no Brasil No contexto deste mo-vimento o cientista poliacutetico Guil-lermo OrsquoDonnell em entrevistaao jornal Clariacuten em setembro de2002 declarou ldquo iquestUn Hitler iquestUnMussolini Bueno que venga No-sotros ya estamos en ese tobogaacutenrdquo

(p 49) Embora natildeo seja plausiacute-vel sequer ousar pocircr em discus-satildeo agora o caso argentino gos-tariacuteamos de pensar esta declara-ccedilatildeo agrave luz da experiecircncia brasileiraainda que desviemos o contextoda afirmaccedilatildeo original Ao dizerdestemidamente que venham en-tatildeo os autoritaacuterios esquecemos adiferenccedila substancial entre estese aqueles que apesar de agiremcontra a multidatildeo fazem ques-tatildeo de manter em certos limitesa institucionalidade Os autoritaacute-rios de tipo hitlerista soacute saem dopoder depois de terem destruiacutedotodos os opositores ao passo queos demais ao deixarem o exerciacuteciodo poder legalmente obtido aindacogitam voltar ao poder pela ins-titucionalidade e para isso preci-sam dos adversaacuterios vivos O ldquoyardquoda sentenccedila ldquoya estamosrdquo eacute um tiacute-pico caso de expressatildeo do deses-pero poliacutetico momento em quenatildeo temos duacutevida da ocorrecircnciade algo que temiacuteamos acontecernatildeo obstante na ordem da reali-dade isso natildeo tenha efetivamentese dado

Natildeo se pode colocar em xequea existecircncia de situaccedilotildees em quetodos os poliacuteticos e poderosos deuma cidade proviacutencia ou paiacutesatuem como ditadores ao modode Hitler e Mussolini Portantohaacute todo um sentido legiacutetimo emse bradar ldquoque se vayan todos queno quede ni uno soacutelordquo lema fre-

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quente durante as agitaccedilotildees daArgentina em 2001 (HOPSTEIN2002 p 48) A pergunta necessaacute-ria eacute a seguinte depois de destruira todos os fantasmas da represen-taccedilatildeo qual eacute a forccedila constitutivadesses movimentos que apenasaparecem na cena midiaacutetica comovacircndalos Ningueacutem levou a seacuterioo potente movimento constitutivode luta horizontal que antecediae determinava os assim chamadosldquoatos com quebra-quebrardquo obser-varam apenas o quebra-quebra40

No final das contas desta forccedilaconstituinte ou ndash nas palavras deChaui ndash desta ldquoconstruccedilatildeo porvirrdquo radicalmente democraacutetica(porque direta) quem mais pa-receu ter entendido foi o conser-vadorismo modulador das narra-tivas sociais Certamente sobreesta forccedila constitutiva dos insur-retos os conservadores souberammais do que qualquer outro setorpoliacutetico pois a combateram como auxiacutelio daquela classe social re-dentora dia a dia ato a ato

Uma ressalva deve ser feitaTrinta anos antes de junho de2013 Chaui (2014b p 265) es-creveu um curto artigo a respeito

de manifestaccedilotildees e saques jaacute ob-servando a potecircncia constitutivapor traacutes das accedilotildees de rua Na-quela ocasiatildeo ndash nos primeiros diasde abril de 1983 ndash a accedilatildeo popular(realizada tambeacutem na cidade deSatildeo Paulo) foi uma resposta agrave criseeconocircmica e fazia ecoar generali-zadamente o horror social frenteagrave agressividade reinante Chaui(2014b p 266) entatildeo compa-rou a reaccedilatildeo social de comiseraccedilatildeoem relaccedilatildeo ao espetaacuteculo midiaacute-tico das cenas de miseacuteria expostasdiariamente para a sociedade como medo despertado pelas manifes-taccedilotildees de rua ditas violentas Emseu parecer as agitaccedilotildees urbanasdo povo ndash que a miacutedia de massaquer converter em espetaacuteculos ndashinvadem o domiacutenio do poliacuteticonatildeo existem para que sejam vistasldquomas para criar participaccedilatildeo e so-lidariedade suscitando o contra-ataque repressivordquo O resultadoda confrontaccedilatildeo violenta conduzao desejo geral de ldquopreservaccedilatildeoda ordemrdquo pois a populaccedilatildeo sabeque ldquoindependentemente dos re-sultados da accedilatildeo popular sua sim-ples existecircncia revela a injusticcedilada ordem vigenterdquo Segundo a au-

40 Reaccedilatildeo similar se deu ao que tudo indica tambeacutem na Argentina em 2001 Ao comentar o modo pelo qualmuitos responderam aos movimentos daquele entatildeo Hopstein (2002 p 47) assinala ldquoAs anaacutelises e reflexotildees quesurgiram em torno desses acontecimentos geraram os mais diversos diagnoacutesticos apocaliacutepticos lsquorevoluccedilatildeo socia-listarsquo lsquofascismo antidemocraacuteticorsquo lsquoamalucado estalido irracionalrsquo lsquomorte lenta da democraciarsquordquo Ningueacutem pareceter visto como Hopstein acentua que ldquoestas lutasrdquo (na Argentina mas poderiacuteamos tambeacutem estender ao caso doBrasil) ldquopor serem em sua essecircncia constituintes satildeo antitranscendentes e antiteleoloacutegicas e se opotildeem portantoa todo signo de institucionalizaccedilatildeo de definiccedilatildeo externa contribuindo desta forma para criar novos espaccedilos puacutebli-cos e novas formas de comunidade (p 57)rdquo Apenas recentemente temos nos deparado com estudos que relevam aforccedila e solidez dos ativistas de Satildeo Paulo (FRUacuteGOLI 2018) e de sua racionalidade poliacutetica (MORENO 2018)

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tora o medo causado pela accedilatildeo dopovo ldquonatildeo estaacute no perigo de suasintenccedilotildees expliacutecitas ndash () contes-tar a poliacutetica econocircmica do go-verno ndash nem na desordem mo-mentacircnea causada por sua apa-riccedilatildeo ndash o quebra-quebra () ndashmas no seu sentido taacutecito reve-laccedilatildeo do avesso Verdade vindoagrave tonardquo (CHAUI 2014b p 266)Realizado tambeacutem por indiviacuteduostomados pela cultura jovem em si-tuaccedilatildeo de desespero41 (criada bemantes de junho de 2013) o ato foirepreendido pela administraccedilatildeode Satildeo Paulo com a brutalidadee a forccedila militar habituais produ-zindo a tristeza e negando a cons-truccedilatildeo democraacutetica por vir isto eacutea verdade que sempre vem agrave tonatacitamente a proliferar solidarie-dade e participaccedilatildeo

Para encerrar estas reflexotildeesapresentamos um texto que emsuas dimensotildees literaacuterias e exis-tenciais propotildee uma ressignifi-caccedilatildeo do desespero e nos lanccedila auma seacuterie de conexotildees que con-trariam a dureza do discurso re-acionaacuterio O fragmento abaixode Andreacute Comte-Sponville (2001p 26) embala a imaginaccedilatildeo po-eticamente para contemplar for-mas criativas de pensar o sentidode afetos como esperanccedila e deses-pero

O que tento pensar eacute que odesespero pode ser alegreque a felicidade seja de-sesperada e o desesperofeliz Isso quer dizerque o desespero no sen-tido em que eu o tomonatildeo eacute o extremo da infe-licidade ou o acabrunha-mento depressivo do sui-cida Eacute antes o contraacuterioemprego a palavra numsentido literal quase eti-moloacutegico para designar ograu zero da esperanccedilaa pura e simples ausecircn-cia de esperanccedila Tam-beacutem poderiacuteamos chamaacute-lo de inesperanccedila Masnatildeo gosto muito de neolo-gismos e aleacutem do mais otermo inesperanccedila daria afalsa impressatildeo da facili-dade como se nos tornaacutes-semos saacutebios de um diapara o outro como se bas-tasse decidir como se pu-deacutessemos nos instalar nasabedoria como quem seinstala numa poltrona Apalavra desespero em suadureza em sua luz escuraexprime a dificuldade docaminho Ela supotildee umtrabalho no sentido em

41 Segundo Chaui (2014b p 267) os responsaacuteveis pelo quebra-quebra eram ldquohomens robustosrdquo vestindoldquojaquetas de courordquo ldquotendo por traacutes sabe-se laacute que garantiardquo

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que Freud fala de traba-lho do luto e no fundo eacuteo mesmo trabalho A es-peranccedila eacute primeira por-tanto eacute necessaacuterio perdecirc-la o que eacute quase sem-pre doloroso Eu gostona palavra desespero quese ouccedila um pouco essador esse trabalho essa di-ficuldade Um esforccedilodizia Spinoza para nostornar menos dependen-tes da esperanccedila Por-tanto o desespero no sen-tido em que emprego a pa-lavra natildeo eacute a tristeza me-

nos ainda o niilismo a re-nuacutencia ou a resignaccedilatildeo eacuteantes o que eu chamariade um gaio desespero umpouco no mesmo sentidoem que Nietzsche falavado gaio saber Seria o de-sespero do saacutebio seria asabedoria do desespero

O contato com jovens que personi-ficavam a inesperanccedila trouxe ine-gavelmente uma espeacutecie nietzs-chiana de ldquogaia ciecircnciardquo um saberque uma vez descoberto traz ale-gria ndash uma forte alegria ndash a quemo obteacutem

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ccedilados n 79 p 7-26 2013

Recebido 02072019Aprovado 08082019Publicado 17112019

Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea Brasiacutelia v7 n2 ago 2019 p 147-187ISSN 2317-9570

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224828

A Influecircncia de Schelling sobre Schoppenhauer[Schellingrsquos Influence on Schopenhauer]

Helio Lopes da Silva

Resumo Neste artigo investigo as contribuiccedilotildees positivas que a filo-sofia de Schelling fez ao desenvolvimento do pensamento filosoacutefico deSchopenhauer Deixando de lado a rejeiccedilatildeo desta filosofia por parte doSchopenhauer maduro examinarei algumas ideias que o jovem Scho-penhauer (1811-1813) atraveacutes da leitura e estudo dos livros de Schel-ling poderia ter aceitado reformulado e incorporado ao seu pensa-mento filosoacutefico originalPalavras-chave Schopenhauer Schelling Influecircncia

Abstract In this paper I investigate the positive contributions thatSchellingrsquos philosophy have made to the development of Scho-penhauerrsquos philosophical thought Leaving aside Schopenhauerrsquosmature rejection of this philosophy I will examine some ideas whichthe young Schopenhauer (1811-1813) through reading and studyingSchellingrsquos books could have accepted re-formulated and introdu-ced into his original philosophical thoughtKeywords Schopenhauer Schelling Influence

Introduccedilatildeo

Schopenhauer sempre manifes-tou ao longo de toda sua obrauma completa rejeiccedilatildeo da filosofiade Schelling assim como da de Fi-chte e da de Hegel qualificando-as como tentativas de restauraccedilatildeode uma metafiacutesica dogmaacutetica etranscendente que em vista dosresultados da Criacutetica kantiana jaacutedeveria ter sido considerada comocompletamente impossiacutevel Masenquanto que em relaccedilatildeo a Fi-

chte e a Hegel a atitude de Scho-penhauer eacute sempre a de animo-sidade e ateacute de desrespeito emrelaccedilatildeo a Schelling aquela rejei-ccedilatildeo eacute de certa forma mais nuan-ccedilada mais amena em funccedilatildeo demotivos que procuraremos des-cortinar Jaacute na primeira ediccedilatildeode sua obra-prima O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo1 de 1818-1819 Schopenhauer depois dedesqualificar o idealismo de Fi-chte como uma tentativa de de-rivar o objeto a partir do sujeito

Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Doutor em filosofia pela USPE-mail heliolopes2009bolcombr ORCID httpsorcidorg0000-0003-2117-4854

1 SCHOPENHAUER A Die Welt als Wille und Vorstellung VolI e II (Mundo 1 e Mundo2) Frankfurt InselVerlag 1996 The World as Will and Representation Payne EFJ(trad) New York Dover Publications 1969

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ldquocomo a teia sai da aranhardquo dizque embora sua filosofia afirme adependecircncia muacutetua entre sujeitoe objeto enquanto partes constitu-tivas do mundo como representa-ccedilatildeo ela natildeo deve ser confundidacom a ldquoFilosofia da Identidaderdquo(de Schelling) pois apesar destafilosofia natildeo tomar como pontode partida nem o sujeito nemo objeto mas sim a identidadeou indiferenccedila entre ambos numldquoAbsolutordquo tal absoluto supos-tamente acessiacutevel atraveacutes de umaldquointuiccedilatildeo racionalrdquo (Vernunft-Anschauung) intuiccedilatildeo que dizdesafiadoramente Schopenhauerele natildeo possui ao se desdobrarnas duas seacuteries do ldquoIdealismoTranscendentalrdquo onde o ob-jeto eacute agrave maneira de Fichte ex-traido do sujeito e da ldquoFilosofiada Naturezardquo onde o sujeito eacuteextraiacutedo do objeto faz com queSchelling esteja na realidade in-corporando as duas versotildees a ide-alista e a materialista do mesmoerro anteriormente denunciadopor ele a saber o de supor queentre sujeito e objeto haja qual-quer relaccedilatildeo segundo o Princiacutepiode Razatildeo Suficiente Isso sali-enta ironicamente Schopenhauereacute aquilo que ao menos podemossupor a partir do depoimento da-quelas pessoas que se dizem ca-pazes de tal ldquointuiccedilatildeo racionalrdquo

(Mundo1 p 6026) EmboraSchopenhauer denuncie assimo esoterismo envolvido na intui-ccedilatildeo racional ou ldquointelectualrdquo deSchelling eacute bastante significativoque nesta primeira publicaccedilatildeo doseu sistema filosoacutefico completoSchopenhauer jaacute se defenda e jaacutese antecipe agrave suspeita da aproxi-maccedilatildeo de sua filosofia para comaquela de Schelling

Apesar desta defesa o puacuteblicofilosoacutefico para grande irritaccedilatildeo deSchopenhauer imediatamente de-tectou semelhanccedilas entre a sua fi-losofia e a filosofia de Schelling ndashtal como nos informa Cartwright2praticamente todas as poucas re-senhas que imediatamente aco-lheram em 1819 O Mundo comoVontade e Representaccedilatildeo notaramnele vestiacutegios do pensamento deSchelling (CARTWRIGHT p 180ss) ndash por exemplo a resenha feitapor Herbart nota que apesarde Schopenhauer denunciar emSchelling o uso transcendente daforma do tempo quando este falanum ldquovir-a-serrdquo num ldquotornar-serdquo num ldquovir agrave luz a partir daescuridatildeordquo etc no Absoluto elemesmo ao falar de sua Vontadecomo vindo a se conhecer no oucomo mundo passando de umnatildeo-querer originaacuterio a um que-rer e depois deste a um querer-nada estaria ldquoapresentando uma

2 CARTWRIGHT D Schopenhauer a biography (CARTWRIGHT) Cambridge Cambridge UnivPress 2010

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histoacuteria como se fosse filosofia deuma maneira semelhante agrave histoacute-ria natural de Deus de Schellingrdquo(CARTWRIGHT p 386) As-sim tambeacutem Safranski em cone-xatildeo com o ensaio de Schelling so-bre a liberdade que discutiremosem breve diz que dos contem-poracircneos de Schopenhauer Schel-ling foi o que mais se aproximoudo conceito schopenhaueriano devontade3 No mesmo sentidoRappaport4 comentando em 1899as relaccedilotildees de Schopenhauer paracom Espinosa afirma que

A filosofia de Schellingque Schopenhauer pocircdeaprender em traccedilos ge-rais atraveacutes de Schulzeem Goumlttingen foi para eleobjeto de zeloso estudoem Berlim ldquoSchellingeacute aquele a quem Scho-penhauer na medida emque se diferencia de Kante de sua escola deveseus mais importantespensamentosrdquo diz Edu-ard v Hartmann em Ge-genwart de 1898 (RAPPA-PORT p 126)

E de um modo geral a impressatildeode que Schelling jaacute houvera ante-cipado ideias importantes da suafilosofia foi tal que em Parerga eParalipomena5 o proacuteprio Schope-nhauer procurou defender-se daacusaccedilatildeo de plaacutegio ndash diante da ob-servaccedilatildeo de que Schelling jaacute ha-via falado da vontade como o ldquoSerprimal e coisas parecidasrdquo Scho-penhauer diz em primeiro lugarque dado que ambas as filoso-fias a sua e a de Schelling par-tem da filosofia de Kant eacute natu-ral que hajam semelhanccedilas entreelas Aleacutem disso continua Scho-penhauer eacute comum acontecer nahistoacuteria do pensamento da des-coberta de uma grande ideia porparte de um autor ser antes pre-cedida em pensadores anterio-res por vaacuterias antecipaccedilotildees va-gas e nebulosas a seu respeito pordivagaccedilotildees hesitantes proferidasnum estado quase sonambuacutelicoMas diz Schopenhauer o verda-deiro autor de uma ideia eacute ape-nas aquele que reconheceu clara-mente a sua importacircncia e a ex-plorou em todas as conexotildees ndash defato acrescenta ele apenas apoacuteso verdadeiro autor da ideia terfeito isto eacute que a ideia em questatildeo

3 SAFRANSKI R Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia Lagos W(trad) Satildeo Paulo GeraccedilatildeoEditorial 2011 p 582-583

4 RAPPAPORT S Spinoza und Schopenhauer Halle-Wittenberg Halle Als 1899httpsepdftipsspinoza-und-schopenhauerhtm (RAPPAPORT)

5 SCHOPENHAUER A Parerga and Paralipomena VolI e II (PP1 e PP2) Payne EFJ(trad) Oxford OxfordUnivPress 2010

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seraacute procurada em autores anteri-ores ndash da mesma maneira como eacuteColombo o descobridor da Ameacute-rica e natildeo algum naufrago queporventura pudesse laacute ter sido jo-gado pelas ondas E finalmenteconclui Schopenhauer se for paralocalizar alguma fonte anterior aele daquela ideia natildeo seraacute pre-ciso parar em Schelling pois vaacute-rios outros autores da antiguidadejaacute haviam feito alusotildees a ela (PP1p 132-134)

Esta defesa da originalidade desua obra por parte de Schope-nhauer nos parece perfeitamenteadequada e suficiente Apesardisso e como nota Welchman6 ela natildeo eacute desprovida de uma certaambiguidade - ela se assemelhadiz Welchman agrave famosa piadacontada por Freud a respeito dosujeito que diante da reclama-ccedilatildeo de que havia devolvido comfuros um balde anteriormentetomado emprestado defendeu-se dizendo em primeiro lugarldquoque jaacute recebera o balde comfurosrdquo e que em segundo lu-gar ldquoquando devolveu o baldeeste estava intactordquo e finalmenteem terceiro lugar que ldquonunca ja-mais tomou emprestado baldealgumrdquo Cada uma destas ale-gaccedilotildees tomadas isoladamenteserviria como defesa mas todas

juntas natildeo e todas juntas equi-valem quase a uma confissatildeo deculpa Eacute como se diz WelchmanSchopenhauer estivesse dizendoldquoSou original mas Schelling tam-beacutem natildeo eacuterdquo Mesmo sem ir tatildeolonge esta observaccedilatildeo de Welch-man nos serve no entanto paranotar que Schopenhauer mesmodefendendo adequadamente a ori-ginalidade de sua obra acaba ad-mitindo algumas semelhanccedilas en-tre a sua filosofia e a de SchellingE de um modo geral precisamosnotar que no que segue natildeo es-taremos de modo algum interes-sados em determinar a autoria oua prioridade intelectual de Schel-ling ou de Schopenhauer relativa-mente a algumas ideias presentesna filosofia deste uacuteltimo O quenos interessa eacute averiguar a ma-neira como a leitura dos livros deSchelling realizadas pelo jovemSchopenhauer no periacuteodo anterioragrave publicaccedilatildeo em 1818-1819 de OMundo como Vontade e Representa-ccedilatildeo possa ter estimulado Schope-nhauer na formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico Conforme dizacertadamente Gardner emboraSchopenhauer tenha sempre rejei-tado as filosofias de Schelling e deFichte como prolongamentos ile-giacutetimos da filosofia de Kant e em-bora tenha ele sempre pretendido

6 WELCHMAN A Schopenhauerrsquos Understanding of Schelling (WELCHMAN) p 03(httpswwwresearchgatenet)

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estar realizando contra estas duasfilosofias um ldquoretorno a Kantrdquo eacutepreciso reconhecer que dado quenos seus anos de formaccedilatildeo Scho-penhauer natildeo estudou mais ne-nhum outro filoacutesofo com exceccedilatildeode Kant do que Schelling e Fichteentatildeo este seu retorno a Kant foium retorno ldquoa partir de Schellinge Fichterdquo foi um retorno a partirde ideias que Schopenhauer sejapela recusa e rejeiccedilatildeo seja pelaaceitaccedilatildeo e re-elaboraccedilatildeo encon-trou na leitura destes filoacutesofos7Dado que o jovem Schopenhauerjaacute desde 1811 estudava os livrosde Schelling e neles fez anotaccedilotildeesimportantes reunidas em seu Ma-nuscritos Poacutestumos8 assim comodiscutiu aspectos da filosofia deSchelling em sua primeira publi-caccedilatildeo a ediccedilatildeo de 1813 de sua tesedoutoral Sobre a quaacutedrupla raizdo Princiacutepio de Razatildeo Suficiente9acreditamos poder determinar apartir deste material a contribui-ccedilatildeo positiva do pensamento filo-soacutefico de Schelling para a forma-ccedilatildeo da filosofia de SchopenhauerEmbora Schopenhauer jaacute desde

muito cedo tenha feito uma dis-tinccedilatildeo entre os filoacutesofos genuiacutenosque manifestam um espanto ouadmiraccedilatildeo diretamente diante domundo da vida e aqueles filoacutesofosque como Fichte manifestam es-panto apenas diante de livros oude um sistema filosoacutefico jaacute exis-tente (MR1 p 81) eacute preciso reco-nhecer que mesmo partindo da-quela intuiccedilatildeo direta do mundoa intuiccedilatildeo schopenhaueriana pre-cisou ser expressa em conceitosconceitos que ele natildeo poderia terencontrado em outro lugar quenatildeo nos livros e nos sistemas filo-soacuteficos que lhe eram disponiacuteveis

Consciecircncia ldquomelhorrdquo e intuiccedilatildeointelectual

Um dos pontos em que segundoalguns comentadores10 a incipi-ente filosofia do jovem Schope-nhauer se aproxima da de Schel-ling diz respeito agrave noccedilatildeo deldquoconsciecircncia melhorrdquo ndash jaacute desdeseus mais precoces manuscritos(1808-1813) Schopenhauer fala

7 GARDNER S Schopenhauerrsquos Deconstruction of German Idealism (GARDNER) p 03(httpswwwdiscoveryudacuk)

8 SCHOPENHAUER A Manuscript Remains Vol I e II (MR1 e MR2) Huumlbscher A (ed) e Payne EFJ(trad) Oxford Berg 1988Aus Arthur Schopenhauerrsquos handschriften Nachlass (HN) Fraumluenstadt J (ed) LeipzigBrockhaus 1864 (httpbooksgooglecom)

9 SCHOPENHAUER A Uumlber die vierfache Wurzel des Satz vom zureichend Grunde (RAIZES) RudolstadtBayerische Staats Bibliothek ndash Muumlncher Digitalisierungs Zentrum 1813

10 CfSEGALA M e DE CIAN N ldquoWhat is willrdquo In Schopenhauer-Jahrbuch 83 2002 p06 Cartwrightmenciona tambeacutem alguns autores (Kamata Y Zint H Malter R Safranski R e Decher F) que se dedicaramao estudo das relaccedilotildees entre a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo do jovem Schopenhauer e a descriccedilatildeo da ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling nas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (CARTWRIGHT p 181-182 n5)

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de um estado de consciecircncia noqual noacutes nos retiramos das deter-minaccedilotildees principalmente da de-terminaccedilatildeo temporal da consci-ecircncia empiacuterica e mundana e en-tramos num estado a partir doqual contemplamos calma e se-renamente aqueles mesmos ob-jetos e acontecimentos que nooutro estado de consciecircncia naldquoconsciecircncia empiacutericardquo nos tra-zem agitaccedilatildeo e sofrimento (MR1p 8 14-15 44 86) Trata-se da-quele estado de espiacuterito que nafase madura de sua filosofia cons-tituiraacute o acircmago de suas belas e in-teressantes descriccedilotildees do estadode espiacuterito seja da contemplaccedilatildeoesteacutetica seja do ecircxtase do santoe do asceta Mas que este es-tado ldquomelhorrdquo de consciecircncia dojovem Schopenhauer se aproximedaquilo que Schelling chama deldquointuiccedilatildeo intelectualrdquo isto aque-les comentadores afirmam base-ados numa passagem da oitavadas Cartas Filosoacuteficas sobre o Dog-matismo e o Criticismo passagemque o jovem Schopenhauer anotaagrave margem como ldquocontendo grandee genuiacutena verdaderdquo onde Schel-ling procurando mostrar que aintuiccedilatildeo espinosista do absolutojunto ao anseio por unificaccedilatildeoneste absoluto e a anulaccedilatildeo de simesmo ou a intuiccedilatildeo do mundoldquosob o aspecto da eternidaderdquo sebaseava na intuiccedilatildeo que Espinosatinha a respeito de si mesmo diz

Presente em todos noacutes haacuteuma capacidade secreta emaravilhosa de retirarmo-nos da mudanccedila e da su-cessatildeo do tempo em di-reccedilatildeo ao nosso ser maisiacutentimo que eacute despido detudo aquilo que lhe adveiode fora e de entatildeo intuir oeterno em noacutes mesmos soba forma da imutabilidadeEsta intuiccedilatildeo (Anschau-ung) eacute a nossa experiecircn-cia a mais iacutentima e apenasdela depende tudo aquiloque sabemos e acredi-tamos a respeito de ummundo supra-sensiacutevel Eacuteesta intuiccedilatildeo aquilo queem primeiro lugar nosconvence de que algo eacuteno sentido real do termoao passo que tudo o maispara o qual noacutes transferi-mos esta palavra apenasaparece (erscheint) (MR2p 347HN p 250 - itaacuteli-cos de Schelling)

Mas se eacute claro que esta descriccedilatildeopor parte de Schelling daquilo quese daacute agrave sua ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquose aproxima bastante daquilo queo jovem Schopenhauer entendecomo sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoeacute preciso reconhecer que ela se as-semelha tambeacutem tanto agrave intuiccedilatildeo

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ldquomais altardquo de Fichte cujos cur-sos foram presenciados pelo jo-vem Schopenhauer em 1811-1812(MR2 p 79-80) como agrave acimamencionada intuiccedilatildeo ou conheci-mento de ldquoterceiro gecircnerordquo de Es-pinosa (MR1 p 306) Pode-se di-zer que a ldquoconsciecircncia melhorrdquo dojovem Schopenhauer coincide per-feitamente com aquilo que Schel-ling Fichte e Espinosa dizem arespeito da intuiccedilatildeo do mundosupra-sensiacutevel ou com aquilo queestes chamaratildeo de ldquoAbsolutordquo mas diferentemente destes Scho-penhauer ao menos nestes anosiniciais de formaccedilatildeo de seu pen-samento filosoacutefico recusa-se a co-locar este mundo supra-sensiacutevelcomo fundamento do mundo sen-siacutevel ele recusa-se a derivar aldquoconsciecircncia empiacutericardquo a partirda sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo as-sim como incansavelmente qua-lifica como transcendente e con-traditoacuteria as tentativas de Fichte eSchelling no sentido de derivar aconsciecircncia empiacuterica a partir doldquoAbsolutordquo - pois segundo elequalquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer de relaccedilotildees (tem-porais causais de fundamento-consequecircncia etc) que soacute exis-tem na e satildeo condiccedilotildees apenasda consciecircncia empiacuterica e natildeose pode colocar duas coisas emrelaccedilatildeo segundo os termos deuma relaccedilatildeo que eacute vaacutelida apenaspara uma delas (MR1 p 20 37

72-73 MR2 p 385-385 429-430 436) Pode-se assim di-zer que de um modo geral o jo-vem Schopenhauer concorda comSchelling (e com Fichte tambeacutem)em que (1) eacute possiacutevel uma intui-ccedilatildeo do supra-sensiacutevel (tanto doEu quanto do mundo) enquantoatemporal e que (2) o mundosensiacutevel e temporal apresenta-secomo ldquovazio e irrealrdquo como umamera ldquoaparecircnciardquo tal como men-cionado acima mas ele rejeita atentativa de Schelling (e de Fichte)de suprir este vazio e irrealidadedo mundo sensiacutevel mediante umaderivaccedilatildeo deste mundo sensiacutevel apartir do mundo supra-sensiacutevelou mediante uma fundamenta-ccedilatildeo daquele mundo sensiacutevel nestemundo supra-sensiacutevel

Eacute assim e em particular noque diz respeito a Schelling queSchopenhauer jaacute em sua pri-meira publicaccedilatildeo a QuaacutedruplaRaiz do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente de 1813 diz que se aNaturphilosophie pretende comsua ldquoidentidade entre subjetivoe objetivordquo significar a mera de-pendecircncia muacutetua entre sujeito eobjeto enquanto pressupostos portoda aplicaccedilatildeo do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente entatildeo diz Scho-penhauer ele ldquoestaria de acordordquocom ela se bem que para isso natildeoeacute preciso nenhuma intuiccedilatildeo in-telectual (intellektuale Anschau-ung) mas sim a mera reflexatildeo (Be-

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sinnen) a mesma reflexatildeo que nosmostra por exemplo as expres-sotildees ldquopairdquo e ldquofilhordquo como mutu-amente dependentes Daiacute conti-nua Schopenhauer que quandose faz abstraccedilatildeo de toda determi-naccedilatildeo do ser-objeto assim comode todas as faculdades do ser-sujeito restaratildeo de cada ladoapenas um ldquoxrdquo e um ldquoyrdquo e se qui-sermos ainda assim afirma-loscomo idecircnticos estaremos aleacutemda duvidosa ldquovantagemrdquo de trocarduas incognitas por uma soacute apli-cando uma categoria a categoriada identidade que no entanto foieliminada por aquela abstraccedilatildeoe que eacute condiccedilatildeo apenas do ser-objeto e natildeo do ser-sujeito Ouseja natildeo eacute possiacutevel derivar nemo objeto nem o sujeito a par-tir disto que Schelling chama deldquoidentidade sujeito-objetordquo poisqualquer derivaccedilatildeo deste tipo pre-cisaraacute se valer seja de categoriasque pertencem apenas ao sujeito(se houver alguma categoria quede fato seja aplicaacutevel ao sujeito)seja de categorias que pertencemapenas ao objeto (RAIZES p 108-111) Mas ao contraacuterio do tomrespeitoso e cauteloso11 adotadopelo jovem Schopenhauer nesta

sua tese doutoral as anotaccedilotildees fei-tas por ele aos livros de Schellingsatildeo a este respeito bem mais inci-sivas ndash por exemplo numa anota-ccedilatildeo ao Sobre o Eu como o princiacutepioda filosofia Schopenhauer diz quena concepccedilatildeo de uma existecircnciaqualquer jaacute pressupomos a duali-dade representante-representadoe que se quisermos falar de umser que existe fora de toda re-laccedilatildeo que existe em si por sia partir de si e por nada forade si etc estaremos falando dealgo completamente inconcebiacutevel(MR2 p 342-3) Da mesma ma-neira numa longa anotaccedilatildeo aoSistema do Idealismo Transcenden-tal12 o jovem Schopenhauer dizque dado que a dualidade sujeito-objeto natildeo eacute causa da mas sim eacuteanaliticamente idecircntica agrave cons-ciecircncia empiacuterica a pergunta deSchelling sobre se o objetivo pre-cede o subjetivo ou ao contraacute-rio o subjetivo precede o obje-tivo esta pergunta eacute sem-sentidojaacute que anterior e posterior causae efeito jaacute pressupotildeem a consci-ecircncia empiacuterica e com esta aqueladualidade sujeito-objeto Tomarqualquer um desses dois isola-damente para daiacute tentar deri-

11 Cartwright sugere que o tom cauteloso adotado por Schopenhauer em relaccedilatildeo a Schelling nesta tese doutoraldeveu-se ao fato de Schopenhauer estar se dirigindo agrave Academia e de natildeo querer ferir alguma suscetibilidade deseus avaliadores (CARTWRIGHT p 196) De fato poreacutem e como jaacute mencionamos sua atitude mesmo em suasanotaccedilotildees privadas em relaccedilatildeo a Schelling eacute bem mais amena do que aquela manifesta em relaccedilatildeo a Fichte ou aHegel

12 SCHELLING FWJ System des transzendentalen Idealismus Hamburg Meiner 2000 (SCHELLING-SISTEMA)

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var o outro eacute uma tarefa con-traditoacuteria e impossiacutevel pois aodesvincular um do outro estare-mos abolindo a proacutepria consci-ecircncia ndash ou dito de outro modotentar pensar um ldquosujeitordquo quenatildeo seja algo que representa umobjeto ou um ldquoobjetordquo que natildeoseja algo representado por um su-jeito eacute tentar algo impossiacutevel econtraditoacuterio (MR2 p 378-379)As relaccedilotildees anterior-posteriorcausa-efeito etc aplicam-se ape-nas a objetos mas natildeo agrave rela-ccedilatildeo sujeito-objeto (MR2 p 380)e diz Schopenhauer ldquoque o su-jeito mesmo se torne objeto (Schel-ling usa a expressatildeo ldquoSich-selbst-Objekt-Werden des Subjektivenrdquondash SCHELLING-SISTEMA p 15)esta eacute a mais monstruosa contradi-ccedilatildeo jamais formulada pois objetoe sujeito soacute satildeo concebiacuteveis umem referecircncia ao outro e esta refe-recircncia eacute sua uacutenica caracteriacutesticardquo(MR2 p 381) O sujeito dizSchopenhauer nunca pode tornar-se objeto e isto devido agrave razatildeomuito simples de que fosse esteo caso entatildeo jaacute natildeo haveria ne-nhum sujeito para quem este ob-jeto (em que se transformou o su-jeito) seria objeto (MR2 p 383)Assim a filosofia da identidadesubjetivo-objetivo de Schelling eacuteem muitas passagens destes ma-nuscritos denunciada pelo jovemSchopenhauer como um empreen-dimento contraditoacuterio que pro-

cura apreender conceitualmenteo supra-sensiacutevel assim como suarelaccedilatildeo para com o sensiacutevel atra-veacutes de relaccedilotildees que satildeo pertinen-tes apenas a este uacuteltimo domiacuteniondash por exemplo quando Schellingprocura fazer o tempo surgir apartir da eternidade o relativo apartir do absoluto o finito a par-tir do infinito ele estaacute diz Scho-penhauer simplesmente abolindoo princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo(MR2 p 340) e fazendo um usotranscendente (MR2 p 376 385)de relaccedilotildees que embora sejamcondiccedilotildees a priori da consciecircnciaempiacuterica para aleacutem dela natildeo seestendem como jaacute havia ensinadoKant

Ao fazer tais objeccedilotildees o jovemSchopenhauer parece natildeo ter com-preendido ou melhor natildeo teraceitado mesmo que de formanatildeo muito clara e expliacutecita parasi mesmo a principal motivaccedilatildeoda elaboraccedilatildeo filosoacutefica de Schel-ling ndash pois este concordaria comaquela afirmaccedilatildeo da tese douto-ral de Schopenhauer no sentidode que toda determinaccedilatildeo do su-jeito natildeo eacute uma determinaccedilatildeo doobjeto e toda determinaccedilatildeo doobjeto natildeo eacute uma determinaccedilatildeodo sujeito Mas diria Schellingo que eacute preciso explicar eacute justa-mente o encontro a ldquosiacutenteserdquo deambos no conhecimento e eacute esteproblema acerca das condiccedilotildeesde possibilidade do conhecimento

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sinteacutetico problema que segundoKant a sua Criacutetica da Razatildeo Puraprocurara resolver Para expli-car como sujeito e objeto se en-contram um ao outro no conhe-cimento sinteacutetico (ou mais pre-cisamente como se daacute o encon-tro entre a ldquounicidaderdquo do En-tendimento e a ldquomultiplicidaderdquodo dado proveniente da Sensibili-dade) e como o elemento comuma ambos que permitiria sua siacuten-tese ou uniatildeo natildeo pode provirnem de um nem de outro to-mados isoladamente entatildeo seraacutepreciso admitir que antes noldquoabsolutordquo eles eram idecircnticos eque depois de uma cisatildeo aiacute ocor-rida eles agora satildeo juntados nova-mente por aquele juiacutezo sinteacuteticode modo que tal juiacutezo soacute pode dizSchelling ser compreendido comouma restauraccedilatildeo daquela identi-dade e unidade perdida ndash a siacuten-tese empiacuterica entre o sujeito e oobjeto condicionados assim soacuteeacute possiacutevel enquanto restauraccedilatildeoda siacutentese e identidade incondi-cionada sujeito-objeto O mesmoocorre continuaria Schelling comos objetos conectados pelo Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente de quetrata aquela tese doutoral de Scho-penhauer ndash a necessidade com queeste princiacutepio conecta seus ob-jetos (fundamento-consequecircnciacausa-efeito etc) soacute pode ser ex-plicada mediante referecircncia a umldquoabsolutordquo anterior onde estes ob-

jetos seriam idecircnticos entre si eque forneceria assim a explicaccedilatildeotranscendental da necessidade desua conexatildeo Mas o jovem Schope-nhauer jaacute nesta sua tese doutoralde 1813 e embora ele natildeo se en-derece explicitamente a esta ques-tatildeo daacute mostras de que recusariaestes desenvolvimentos do empre-endimento filosoacutefico de Schelling(e de Fichte tambeacutem) ndash falando daexigecircncia de uma ldquoprovardquo do Prin-ciacutepio de Razatildeo Suficiente ele dizque toda prova eacute o remontar dealgo duvidoso a algo admitido ese pedirmos uma prova deste ad-mitido chegaremos ultimamentea proposiccedilotildees que satildeo simples-mente a condiccedilatildeo de todo o pen-sar e conhecer e que satildeo mesmoaquilo em que consistem o proacute-prio pensar e conhecer de modoque a certeza (Gewissheit) nadamais eacute que a concordacircncia com es-tas proposiccedilotildees e natildeo pode ser re-montada a proposiccedilotildees mais cer-tas do que estas (RAIZES p 20)E um pouco mais adiante o jo-vem Schopenhauer jaacute manifestauma recusa de todo o empreendi-mento transcendental kantiano deque Schelling (e Fichte) se preten-dem herdeiros

Desde a Deduccedilatildeo das Ca-tegorias de Kant () pa-rece quase natildeo haver nadade mais originaacuterio e ime-diato que jaacute natildeo tenha

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sido deduzido a prioriTais coisas cujo remon-tar aos seus fundamen-tos nenhuma eacutepoca an-terior imaginava ser pos-siacutevel deu a ocasiatildeo paraque Goumlethe dissesse lsquoOfiloacutesofo chega e nos de-monstra que assim preci-sava serrsquo (RAIZES p 25)

Apesar desta rejeiccedilatildeo que na fasemadura de sua filosofia se tornaraacutecompletamente expliacutecita da pre-tensatildeo fundacionista que a filosofiade Schelling compartilha com a fi-losofia do Idealismo alematildeo comoum todo vemos no entanto o jo-vem Schopenhauer numa anota-ccedilatildeo ao ldquoadendo agrave Introduccedilatildeordquo agravesIdeias para uma Filosofia da Natu-reza descortinar aquilo que es-taria por detraacutes desta concepccedilatildeode Schelling a respeito da coinci-decircncia do absolutamente ideal (osaber filosoacutefico como saber abso-luto) com o absolutamente real (oproacuteprio Absoluto)

() pois quando adentra-mos profundamente emnoacutes mesmos constatamosque () o tempo nos eacute ines-sencial tal como o eacute a divi-satildeo de nossa consciecircncia emsujeito e objeto noacutes sen-timos ateacute mesmo um an-seio (Sehnsucht) de nos

livrarmos de todas estasdeterminaccedilotildees (este eacute meparece o fundamento detodo esforccedilo filosoacutefico ge-nuiacuteno)() mas soacute pode-mos ir ao ponto de dizerque precisa haver um es-tado no qual natildeo haacute nemsujeito nem objeto e por-tanto natildeo haacute nada de anaacute-logo agrave minha consciecircnciaatual e embora haja neleum esforccedilo e pressenti-mento (Vorgefuumlhl) destesnunca pode ser-lhe espe-cificado um conceito jus-tamente porque ele estaacuteacima e aleacutem de todo En-tendimento(MR2 p 360HN p 212 -itaacutelicos nos-sos)

De fato a ldquoconsciecircncia melhorrdquodo jovem Schopenhauer tambeacutemnatildeo inclui nem tempo nem su-jeito nem objeto (MR1 p 73-74)de modo que segundo ele o errode Schelling estaria natildeo na afir-maccedilatildeo da possibilidade de tal in-tuiccedilatildeo do supra-sensiacutevel mas simno querer colocaacute-la em relaccedilatildeocom a consciecircncia atual ou em-piacuterica mediante categorias que soacutesatildeo vaacutelidas para esta uacuteltima cons-ciecircncia Em particular o jovemSchopenhauer recusa a tentativade apreender este supra-sensiacutevelatraveacutes de conceitos Eacute assim quenuma anotaccedilatildeo ao Filosofia e Re-

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ligiatildeo Schopenhauer discutindoa afirmaccedilatildeo de Schelling no sen-tido de que antes e ainda na au-secircncia de uma intuiccedilatildeo direta doInfinito a razatildeo filosoacutefica atraveacutesde seus conceitos natildeo pode fazeroutra coisa que natildeo uma alusatildeoindireta a este mediante a cons-tataccedilatildeo ldquodo vazio e irrealidade detodos os contrastes finitosrdquo diz

Bom e inteiramente deacordo com minha opi-niatildeo Mas entatildeo que afilosofia se contente emmostrar a natureza limi-tada do Entendimentocomo fez Kant e acres-cente que haacute em noacutesuma faculdade inteira-mente diferente do En-tendimento () Mas queela natildeo leve este (Enten-dimento) a pocircr o absolutocomo um conceito e dardele explicaccedilotildees que natildeopassam de impossibilida-des loacutegicas () (MR2 p372 - itaacutelicos nossos)

Assim diz Schopenhauer ao in-veacutes de corretamente dizer ldquoaquitermina o domiacutenio do Entendi-mento e comeccedila o da consciecircnciamelhorrdquo Schelling diz que ldquoemDeus o sujeito eacute o objeto o ge-ral eacute o particularrdquo e como taissentenccedilas violam o princiacutepio de

natildeo-contradiccedilatildeo nada eacute conce-bido realmente por seu intermeacute-dio embora elas possam ser pro-feridas da mesma maneira comopode-se desenhar um edifiacutecio quenatildeo se sustenta de acordo com alei da gravidade (MR2 p 374)Para o jovem Schopenhauer a Ra-zatildeo em particular a Razatildeo filo-soacutefica tem atraveacutes de seus con-ceitos apenas esta funccedilatildeo de aofazer uma apresentaccedilatildeo negativada ldquoconsciecircncia melhorrdquo (natildeo estaacuteno tempo natildeo estaacute no espaccedilo natildeoestaacute em nenhuma conexatildeo atra-veacutes do Princiacutepio de Razatildeo Sufici-ente etc) na consciecircncia empiacute-rica fazer com que esta tenha aomenos o pressentimento de quealeacutem e acima dela haacute uma ou-tra consciecircncia uma consciecircncialdquomelhorrdquo que ela (MR1 p 23-24 53-54) E eacute por isso que eleacima concorda com a afirmaccedilatildeode Schelling no sentido de a ra-zatildeo filosoacutefica deve se limitar agrave ta-refa de demonstrar o vazio e ir-realidade dos contrastes estabe-lecidos pelo Entendimento Maspara ele a razatildeo filosoacutefica deveparar aiacute mantendo-se assim comoo verdadeiro ldquocriticismordquo o quesegundo ele natildeo eacute o que ocorreem Schelling que procura estabe-lecer uma ponte ou uma uniatildeo en-tre estes dois mundos o sensiacutevele o supra-sensiacutevel que falam lin-guagens tatildeo incomensuraacuteveis en-tre si produzindo entatildeo uma con-

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fusatildeo ldquobabilocircnicardquo de linguagenssem se dar conta de que ldquouniatildeordquo jaacuteeacute um conceito inexoravelmente li-gado ao mundo espaccedilo-temporale portanto aplicaacutevel apenas aomundo sensiacutevel (MR1 p 37)

Mas em relaccedilatildeo agrave ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling o jovemSchopenhauer em conexatildeo como Tratado para o esclarecimento doIdealismo da Doutrina da Ciecircncia arecusa e a diferencia de sua no-ccedilatildeo de ldquoconsciecircncia melhorrdquo namedida em que segundo ele aintuiccedilatildeo de Schelling depende-ria do cultivo do Entendimento(Verstandeskultur) que estaacute su-jeito a vaacuterias circunstacircncias aci-dentais e da vontade empiacuterica ouda ldquoescolha do arbiacutetrio (Willkuumlhr)atraveacutes de conceitosrdquo ao passoque sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo natildeodepende destes embora dependade uma ldquovontade purardquo (reinenWillen) (MR2 p 350-351HN p256 MR2 p 373 HN p 230)Mas tal como exposta por Schel-ling estas conclusotildees do jovemSchopenhauer parecem natildeo seremmuito exatas ndash segundo Schelling

(A intuiccedilatildeo intelectual) eacuteuma intuiccedilatildeo cujo objetoeacute uma accedilatildeo originaacuteria (urs-pruumlngliches Handeln) ede fato eacute uma intuiccedilatildeoque natildeo podemos tentardespertar em outras pes-soas de iniacutecio atraveacutes de

conceitos (Befriffe) masque estamos justificadosem exigir a priori de todosporque eacute uma accedilatildeo sem aqual a lei moral em outraspalavras um comando po-sitiva e incondicionalmenteimposto a todas as pessoasna mera qualidade de suanatureza humana lhe se-ria inteiramente ininteli-giacutevel(MR2 p 350 HNp 255 - itaacutelicos de Schel-ling)

Schelling parece aqui afastar desua intuiccedilatildeo intelectual tanto anecessidade de um cultivo do En-tendimento como a accedilatildeo arbitraacute-ria possiacutevel atraveacutes de conceitos ndashpara ele a pessoa deve ser capazde tal intuiccedilatildeo apenas em fun-ccedilatildeo de sua qualidade de ser hu-mano em funccedilatildeo de como talver-se obrigada ou submetida aum comando moral incondicio-nal (a autonomia conectada aoldquoimperativo categoacutericordquo de Kant)Assim diz Schelling embora eleexprima aquela accedilatildeo originaacuteriacomo uma proposiccedilatildeo fundamen-tal (Grundsatz) em relaccedilatildeo agrave pes-soa com quem ele fala trata-se deum postulado (uma ordem para re-alizar uma accedilatildeo tal como o pos-tulado da geometria ldquotrace umalinha talrdquo) e ldquoquem quer queseja incapaz de cumpri-lo ao me-nos deveria ser capaz de cumpri-

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lordquo ao que o jovem Schopenhauerobjeta ironicamente ldquoEste eacute umnovo uso da expressatildeo lsquopostuladorsquoteoacuterico ou vocecirc admite que seurepresentar eacute uma accedilatildeo originaacuteriasua sobre vocecirc mesmo ou vocecirc eacuteum canalha (Schurke)rdquo (MR2 p350 HN p 255) Ora podemosver aqui a maneira como emborarejeite este ponto de partida da fi-losofia de Schelling (e de Fichtetambeacutem) embora rejeite o esote-rismo de seus postulados ndash poisdiante da ordem proferida porSchelling e Fichte para que se efe-tue ou se realize tal accedilatildeo a pessoanatildeo sabe decidir entre o ldquorealizeia accedilatildeo mas encontrei resultadosdiferentesrdquo e o ldquonatildeo cheguei real-mente a realizar a accedilatildeordquo e esta eacutea fonte das constantes criacuteticas deSchopenhauer a Schelling e a Fi-chte no sentido de que estes se di-rigem apenas a um grupo de pes-soas ldquoconvertidasrdquo - natildeo haacute umadiferenccedila no conteuacutedo entre am-bas as intuiccedilotildees pois diz Schel-ling

Este princiacutepio iacutentimo natildeoeacute outro que natildeo a accedilatildeo ori-ginaacuteria do espiacuterito sobre simesmo a autonomia ori-ginaacuteria que vista de umponto de vista teoacuterico eacuteum representar (Vorstel-len) ou o que eacute o mesmoo construir de coisas fi-nitas (Construiren endli-

cher Dinge) e visto de umponto de vista praacutetico eacuteum querer (Wollen) (HNp255 - itaacutelicos nossos)

Representaccedilatildeo e Vontade satildeoapresentados aqui ao jovem Scho-penhauer como dois aspectos da-quela accedilatildeo originaacuteria dada agrave in-tuiccedilatildeo intelectual de Schellinge embora Schopenhauer recusea maneira como Schelling (e Fi-chte tambeacutem) a pretende estabe-lecer ndash eacute como se Schopenhauerdiante do postulado em questatildeo oencarasse da mesma forma comoFreud considerou uma possiacutevelobjeccedilatildeo concernente ao caraacuteterarbitraacuterio das interpretaccedilotildees psi-canaliacuteticas ldquolancemos um mo-eda se der cara eu ganho seder coroa vocecirc perderdquo ndash parecebastante plausiacutevel supor que es-tes desenvolvimentos da filosofiade Schelling tenham posterior-mente contribuiacutedo para formu-laccedilatildeo por parte de Schopenhauerde seu pensamento filosoacutefico ori-ginal Voltaremos a este pontoquando mais adiante discutir-mos as anotaccedilotildees feitas por Scho-penhauer nas Ideias para uma Filo-sofia da Natureza de Schelling

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As investigaccedilotildees sobre a liber-dade de Schelling

Antes disso poreacutem precisamosconsiderar o objeto que provo-cou aquela defesa realizada porSchopenhauer no Parerga e Pa-ralipomena da originalidade desua obra frente agrave observaccedilatildeo deque Schelling jaacute houvera avan-ccedilado a ideia da vontade como oldquoSer primalrdquo Constataremos queembora Schelling avance aiacute ideiasque claramente seratildeo incorpora-das por Schopenhauer agrave sua filo-sofia natildeo haacute como recusar a de-fesa de Schopenhauer no sentidode que tais ideias encontram ex-pressatildeo aiacute de uma forma muitodifusa e nebulosa

Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas so-bre a Essecircncia da Liberdade Hu-mana13 Schelling no interior dafamosa ldquocontroveacutersia panteiacutestardquo e contestando a denuacutencia de Ja-cobi no sentido de que o pan-teiacutesmo espinosista conduz inevi-tavelmente ao fatalismo e agrave ne-gaccedilatildeo da liberdade comeccedila porapontar que este natildeo eacute o caso jaacuteque eacute justamente a preocupaccedilatildeocom a liberdade o que em pri-meiro lugar conduz agrave afirmaccedilatildeodo panteiacutesmo ndash pois diz Schel-ling eacute de modo a fazer com quea liberdade pessoal natildeo entre em

conflito com a onipotecircncia di-vina que se chega a afirmar queldquoestamos em Deus e natildeo foradelerdquo Daiacute continua Schellingnatildeo estar o panteiacutesmo necessari-amente conectado agrave negaccedilatildeo daliberdade Mesmo o fatalismo deEspinosa diz Schelling eacute devidonatildeo ao seu panteiacutesmo natildeo ao fatodele dizer que as coisas estatildeo con-tidas em Deus mas sim ao fatodele conceber estas coisas indi-viduais como coisas submetidasao mecanicismo Ateacute mesmo suanoccedilatildeo de vontade diz Schellingeacute a noccedilatildeo de uma coisa (Sache)determinadas por forccedilas exter-nas Agora diz Schelling quandoos conceitos fundamentais de Es-pinosa satildeo espiritualizados (ver-geistg) pelo Idealismo temos a Fi-losofia da Natureza que como aparte real do sistema desaguaraacutena parte ideal na parte do sistemaonde reina a Liberdade

Admite-se que nesteemergir (da liberdade) seencontra o ato potencia-lizador final atraveacutes doqual o todo da naturezatransfigura-se em senti-mento inteligecircncia e fi-nalmente em vontade Nojuiacutezo final e mais alto

13 SCHELLING FWJ Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom Love J e SchmidtJ(trad) New York State Univ of NY Press 2006 Philosophische Untersuchungen uumlber das Wesen der mensch-lichen Freiheit httpdatabnffr (SCHELLING-LIBERDADE)

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natildeo haacute outro Ser (Sein)a natildeo ser o querer ou aVontade (Wollen) A Von-tade eacute o Ser primal (Ur-sein) ao qual unicamentese aplicam todos os pre-dicados do Ser infunda-bilidade (Grundlosigkeit)eternidade independecircn-cia em relaccedilatildeo ao tempo(Unabhaumlngigkeit von derZeit) auto-afirmaccedilatildeo(Selbstbejahung) Otodo da filosofia pro-cura apenas dar expres-satildeo a isto (SCHELLING-LIBERDADE p 2103 -itaacutelicos nossos)

Vemos aqui Schelling anunciarseu Idealismo como resultando deuma inversatildeo do Espinosismo ndashquando trocamos a ldquosubstacircnciardquoou a ldquocoisardquo de Espinosa peloldquoespiacuteritordquo ou pela ldquointeligecircnciardquoa Vontade se revela na parteIdeal do sistema como mais fun-damental do que o sentimentoe ateacute mesmo do que a inteli-gecircncia (Intelligenz) E Schellingalinha como predicados desteSer primal os mesmos predica-dos que frequentemente Scho-penhauer atribui agrave sua Vontademetafiacutesica Natildeo podemos po-reacutem deixar de dar razatildeo a Schope-nhauer quando ele naquela pas-sagem do Parerga e Paralipomenaafirma que estas alusotildees de Schel-ling agrave vontade satildeo feitas como que

em meio a um sonho ou deliacuteriopois Schelling natildeo procura argu-mentar e demonstrar tal tese agravemaneira tradicional ndash tanto eacute as-sim que Love e Schmidt quali-ficam esta passagem das Investi-gaccedilotildees como ldquoextremamente radi-cal e enigmaacuteticardquo (SCHELLING-LIBERDADE p 143 n24)Quando poreacutem levamos em con-sideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo do jovemSchopenhauer a estes devaneiosdo ldquonaufragordquo Schelling podemosconstatar que ao elaborar sua fi-losofia a noccedilatildeo de ldquoVontaderdquo natildeoera de modo algum algo comple-tamente ausente nas elaboraccedilotildeesfilosoacuteficas por ele estudadas

A seguir Schelling diz que foi oIdealimo o que nos elevou agrave posi-ccedilatildeo de obter o primeiro conceitoformal de liberdade mas ape-sar disso diz Schelling este ide-alismo ainda eacute incompleto poisnatildeo basta mostrar como mostraFichte que a ldquoatividade vida eliberdaderdquo eacute tudo o que haacute de ver-dadeiramente real mas tambeacutem eacutepreciso mostrar que tudo a natu-reza e o mundo das coisas possuia atividade a vida e a liberdadepor fundamento Daiacute diz Schel-ling antecipando um movimentoem relaccedilatildeo a Kant exatamentesimilar agravequele a ser posterior-mente adotado por Schopenhauerno apecircndice ldquoCriacutetica da FilosofiaKantianardquo de O Mundo como Von-tade e Representaccedilatildeo (Mundo1 p

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570422) que

Permaneceraacute sempre algoestranho o fato de queKant apoacutes primeiro terdistinguido as coisas-em-si dos fenocircmenos apenasnegativamente atraveacutes dasua (das coisas-em-si) in-dependecircncia em relaccedilatildeoao tempo e apoacutes tratara independecircncia em re-laccedilatildeo ao tempo e a liber-dade como conceitos cor-relatos na discussatildeo me-tafiacutesica da Criacutetica da Ra-zatildeo Praacutetica natildeo foi adianteno propoacutesito de transfe-rir este uacutenico conceito po-sitivo do em-si tambeacutempara as coisas por estemeio teria ele se elevado aum ponto da reflexatildeo maiselevado situado acima danegatividade que eacute carac-teriacutestica de sua filosofiateoacuterica (SCHELLING-LIBERDADE p 22-2304)

Mesmo aceitando aquela defesada originalidade de seu pensa-mento mesmo aceitando quecomo dizia Schopenhauer naquelapassagem do Parerga e Paralipo-mena eacute Colombo o descobridor daAmeacuterica e natildeo algum naufragoque houvesse divagado sobre este

continente eacute preciso reconhecerque Schelling mesmo que emmeio a um sonho ou deliacuterio es-teve muito proacuteximo daquilo quesegundo o proacuteprio Schopenhauerconstitui o ponto inicial e fun-damental de sua filosofia ndash poisdiz Schelling acima trata-se detransferir ou estender para o em-si das coisas em geral o conceitopositivo do em-si que de iniacutecioapresenta-se apenas na liberdadee vontade humanas e eacute exata-mente isto o que conforme Scho-penhauer diz naquele ldquoapecircndicerdquomencionado acima ele pretendeestar avanccedilando como seu maisimportante e original acreacutescimoagrave e prolongamento da doutrinakantiana Mas continua Schel-ling o panteiacutesmo natildeo foi des-truiacutedo pelo Idealismo jaacute quepara o panteiacutesmo tanto faz afir-mar que as coisas individuais es-tatildeo na substacircncia absoluta e te-riacuteamos aiacute um panteiacutesmo-realista-espinosista quanto ldquoafirmar queas vontades individuais (ein-zelne Willen) estatildeo na Vontadeprimal (Urwillen)rdquo e aqui te-riacuteamos um panteiacutesmo-idealista(SCHELLING-LIBERDADE p22-2304) Assim diz Schellingnatildeo devemos esperar que as maisimportantes questotildees sobre a li-berdade sejam resolvidas querpelo idealismo quer pelo rea-lismo tomados isoladamente Ea questatildeo mais importante acerca

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da liberdade diz Schelling eacute aquestatildeo do Mal ndash pois ou o Malrepresenta algo de positivo (enatildeo tal como ocorre na maio-ria das ldquoteodiceiasrdquo tradicionaisuma mera ausecircncia ou privaccedilatildeodo Bem) e neste caso o Mal te-ria que ser colocado ldquono interiorda substacircncia infinita ou da Von-tade primal (Urwillen) mesmardquoou a realidade e positividade doMal deveria de alguma maneiraser negada caso em que serianegado tambeacutem o conceito realde liberdade jaacute que esta precisaser tambeacutem liberdade para oMal (SCHELLING-LIBERDADEp 2304)

Natildeo pretendemos examinar amaneira como Schelling procuraatraveacutes da distinccedilatildeo entre o Serna medida em que existe e o Serna medida em que eacute mero fun-damento (Grund) da existecircncia14resolver este grande problema doMal com que se ocupa a TeodiceacuteiaDo ponto de vista da evoluccedilatildeodo pensamento do jovem Schope-nhauer eacute preciso considerar quefalando deste fundamento dascoisas ldquoem Deus que natildeo eacute Deusmesmordquo ou falando da Natureza

Schelling o caracteriza como umanseio (Sehnsucht) que quer darnascimento agrave unidade infundadaao Uno a Deus mas que natildeo eacute estaunidade mesma

Daiacute que ele eacute consi-derado por si mesmotambeacutem Vontade (Wille)mas Vontade na qual natildeohaacute nenhum Entendimento(Verstand) e por estarazatildeo natildeo eacute uma von-tade completa e inde-pendente () Apesardisso ele eacute uma Vontadede Entendimento a sa-ber eacute um anseio e desejodeste uacuteltimo ele natildeo eacuteuma vontade conscientemas sim uma vontadepremonitoacuteria (ahnenderWille) cuja premoni-ccedilatildeo eacute o Entendimento() Foi a partir destealgo desprovido de En-tendimento (Verstandlo-sen) que o Entendimentono sentido proacuteprio nas-ceu (SCHELLING-LIBERDADE p 28-2905

14 Na terceira ediccedilatildeo (1847) de sua A Quaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Razatildeo Suficiente Schopenhauer diraacute queesta distinccedilatildeo de Schelling nada mais eacute do que um aprofundamento da confusatildeo de que Espinosa tambeacutem foiviacutetima relativamente ao argumento ontoloacutegico de Descartes ndash enquanto Espinosa teria indevidamente assimi-lado a relaccedilatildeo causa-efeito agrave relaccedilatildeo fundamento-consequecircncia Schelling tentando tornar mais ldquorealrdquo esta uacuteltimarelaccedilatildeo teria procurado separar em Deus o ldquofundamentordquo da ldquoconsequecircnciardquo o que lhe permitiraacute falar comofalaraacute a seguir de um ldquofundamento em Deus que natildeo eacute Deus mesmordquo Nesta ocasiatildeo Schopenhauer aleacutem de dizerque Schelling nisto estaacute simplesmente plagiando JBoumlhme pretende ter descoberto a fonte (os ldquoValencianosrdquo umaseita hereacutetica do secII dC) de que se valeu o proacuteprio Boumlhme CfSCHOPENHAUER A The Fourfold Roots of thePrinciple of Sufficient Reason Hillebrand K(trad) London GBell and Sons 1903 p18

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- itaacutelicos nossos)

Gardiner no artigo jaacute mencio-nado enfatiza em conexatildeo comesta passagem das Investigaccedilotildeesque o fato de Schelling falar aquide uma vontade ldquocegardquo em nadadepotildee contra a originalidade daconcepccedilatildeo schopenhaueriana devontade jaacute que esta vontade deSchelling eacute completamente vol-tada em direccedilatildeo ao Entendimento(GARDINER p 19) Aleacutemdisso continua Gardner apesarde Schelling ser aqui pioneiro naafirmaccedilatildeo da positividade do Maleste Mal para ele eacute apenas o malmoral humano e natildeo tal comoocorrem em Schopenhauer eacute algoinscrito na proacutepria essecircncia domundo (GARDINER p 38) Defato talvez pudeacutessemos dizer queembora Schelling afirme a positi-vidade do Mal ele natildeo chega emmomento algum a afirmar comoafirmaraacute Schopenhauer a nega-tividade do Bem o fato do Bemser apenas a ausecircncia ou priva-ccedilatildeo de um Mal positivo Ape-sar desta diferenccedila natildeo pode ha-ver duacutevida alguma de que estaselaboraccedilotildees de Schelling estuda-das pelo jovem Schopenhauer em1812 devem ter deixado algumasmarcas em seu pensamento filosoacute-fico se bem que em suas anota-ccedilotildees a esta obra de Schelling o jo-vem Schopenhauer se mostre bas-tante criacutetico segundo ele emboranela hajam ldquoaqui e alirdquo algumas

observaccedilotildees verdadeiras Schel-ling ao querer adaptar a essecircn-cia atemporal do homem agraves con-diccedilotildees de sua apariccedilatildeo fenome-nal no tempo acaba produzindoldquoabsurdidades monstruosasrdquo ede um modo geral estas Investi-gaccedilotildees de Schelling seriam apenasuma re-elaboraccedilatildeo (para natildeo dizerplaacutegio) daquilo que em JBoumlhmecorrespondia a uma intuiccedilatildeo vivae direta da verdade (MR2 p 353-354)

Em sua primeira publicaccedilatildeo AQuaacutedrupla Raiz do Princiacutepio de Ra-zatildeo Suficiente de 1813 o jovemSchopenhauer procurando atri-buir agrave relaccedilatildeo motivo-accedilatildeo ou agraveLei da Motivaccedilatildeo a mesma neces-sidade que vigora nas outras trecircsfiguras do Princiacutepio de Razatildeo Su-ficiente recorre numa seccedilatildeo in-teiramente excluiacuteda das ediccedilotildeesposteriores desta obra agrave doutrinakantiana do caraacuteter ldquointeligiacutevelrdquoenquanto contraposto ao caraacute-ter ldquoempiacutericordquo e a este respeitoele natildeo economiza elogios a Kante a Schelling ndash Kant teria dadouma explicaccedilatildeo desta distinccedilatildeoassim como da relaccedilatildeo da liber-dade para com a natureza quediz o jovem Schopenhauer eacute umadas mais admiraacuteveis peccedilas da sa-bedoria de que eacute capaz o espiacute-rito humano ao passo que Schel-ling teria dado desta explicaccedilatildeokantiana uma ldquoapresentaccedilatildeo alta-mente esclarecedorardquo em suas In-

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vestigaccedilotildees sobre a Liberdade (RAI-ZES p 119-120) De fato o leitorde Schopenhauer ao deparar-secom estas paacuteginas (SCHELLING-LIBERDADE p 49 ss10 ss)das Investigaccedilotildees em que Schellingfaz a apresentaccedilatildeo da doutrina deKant (eacute bem verdade que comonota asperamente o jovem Scho-penhauer Schelling natildeo menci-ona o nome de Kant) a respeito docaraacuteter ldquointeligiacutevelrdquo e da coexis-tecircncia da liberdade com a neces-sidade natural natildeo poderaacute deixarde reconhecer o quanto as expo-siccedilotildees acerca dos mesmos temaspor parte de Schopenhauer (porexemplo na seccedilatildeo 55 de O Mundocomo Vontade e Representaccedilatildeo as-sim como em seus ensaios Sobre aLiberdade da Vontade e Sobre o Fun-damento da Moral15) devem a ela eo quanto os elogios mencionadosacima a Kant e a Schelling fei-tos pelo jovem Schopenhauer emsua tese doutoral eram realmentejustificados e sinceros A uacutenicacoisa que em toda esta apresenta-ccedilatildeo eacute rejeitado por Schopenhauereacute que ela seja realmente de Schel-ling isto eacute ele incessantementeacusa Schelling de estar querendopassar como de sua autoria umadoutrina que de fato eacute de KantMas dado que a respeito desta

doutrina Schopenhauer natildeo rei-vindica nenhuma originalidadedado que ele confessadamentea aceita integralmente se natildeo deSchelling ao menos de Kant natildeoprecisamos nos deter em sua anaacute-lise Mesmo porque parece-nos eacuteem conexatildeo com a leitura de outraobra de Schelling as Ideias parauma Filosofia da Natureza que seencontra a principal contribuiccedilatildeodeste ao desenvolvimento do pen-samento filosoacutefico do jovem Scho-penhauer

As ideias para uma filosofia danatureza de Schelling

Tal como nos informa Cartwrighto jovem Schopenhauer antesainda de frequentar seu primeirocurso de filosofia o curso deSchulze em 1810 retirou na bi-blioteca da Universidade de Goumlt-tingen aleacutem do A Alma do Mundotambeacutem as Ideias para uma Filo-sofia da Natureza16 de Schelling(CARTWRIGHT p 147 n 21)Jaacute nos referimos ao modo comocomentando o ldquoadendordquo agrave Intro-duccedilatildeo a esta obra que trata daldquoExposiccedilatildeo da Ideia Universal daFilosofia em geralrdquo (SCHELLING-NATUREZA p65-88) o jovem

15 SCHOPENHAUER A The Two Fundamental Problems of Ethics Cartwrigh D e Erdmann E(trad) OxfordOxford UnivPress 2010 p 73 ss 183 ss

16 SCHELLING FWJ Ideen zu einer Philosophie der Natur (2ordf ed) Landshut PKruumlll 1803(SCHELLING-NATUREZA)

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Schopenhauer entrevecirc como pordetraacutes desta exposiccedilatildeo a intui-ccedilatildeo de sua ldquoconsciecircncia melhorrdquoa intuiccedilatildeo de noacutes mesmos comonum estado em que o tempo ea distinccedilatildeo entre sujeito e objetodeixam de importar Mas tal es-tado dizia laacute Schopenhauer natildeotem nada de anaacutelogo agrave consciecircn-cia empiacuterica e atual e estaacute paraaleacutem de toda apreensatildeo possiacute-vel atraveacutes de conceitos do En-tendimento E conforme vimoso que o jovem Schopenhauer re-cusa de Schelling eacute a tentativade colocar esta ldquoindiferenccedilardquo en-tre sujeito e objeto como funda-mento da consciecircncia empiacutericaeacute a tentativa segundo Schope-naheur levada a efeito por Schel-ling neste ldquoadendordquo de mostrarcomo este Uno em primeiro lugarpassa perpetuamente como o infi-nito no finito e em segundo lu-gar ao mesmo tempo volta comoo finito no infinito e por uacuteltimoe em terceiro lugar manteacutem-seeternamente numa identidade eunidade absoluta consigo mesmoIsto tudo conclui o jovem Scho-penhauer natildeo passa de uma pa-roacutedia da ldquosantiacutessima trindaderdquo(1-Deus-filho 2-Espiacuterito Santo3-Deus-pai) cuja necessidade natildeopode ser demonstrada e que eacute ob-tida mediante a aboliccedilatildeo do prin-ciacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (MR2 p360-361)

Apesar desta rejeiccedilatildeo do pro-

cedimento baacutesico da filosofia deSchelling e da tentativa de ateacutemesmo ridicularizaacute-lo haacute no en-tanto nesta obra de Schelling umcapiacutetulo que parece-nos deve tervivamente impressionado o jovemSchopenhauer ndash trata-se do capiacute-tulo IV intitulado ldquoPrimeira ori-gem do conceito de mateacuteria a par-tir da natureza da intuiccedilatildeo e doespiacuterito humanordquo Nele Schel-ling comeccedila dizendo que o fra-casso na tentativa de explicar aforccedila de atraccedilatildeo (Anziehung) atra-veacutes de causas fiacutesicas leva agrave con-clusatildeo de que o conceito de taisforccedilas natildeo obteacutem sua certificaccedilatildeo(Beglaubigung) no interior destasproacuteprias ciecircncias fiacutesicas mas simnuma ciecircncia ldquomais altardquo ndash estasciecircncias fiacutesicas precisam assimconfessar que se apoiam em prin-ciacutepios que lhe satildeo fornecidos poroutra ciecircncia E no entanto a im-pressatildeo de que as forccedilas de atra-ccedilatildeo e repulsatildeo pertencem agrave essecircn-cia (Wesen) da mateacuteria jaacute deveriadiz Schelling ter feito com queos investigadores da natureza seperguntassem sobre a origem doconceito de mateacuteria ndash pois ldquoas for-ccedilas (Kraumlfte) natildeo satildeo algo que acon-teccedila de ser apresentaacutevel (darstell-bar) na intuiccedilatildeordquo (SCHELLING-NATUREZA p 299-300) Mas aconfianccedila nos conceitos de atraccedilatildeoe repulsatildeo eacute tal que eles precisamser senatildeo objetos (Gegenstaumlnde)da intuiccedilatildeo ao menos condiccedilotildees

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de possibilidade de todo conhe-cimento objetivo Trata-se por-tanto diz Schelling de uma dis-cussatildeo transcendental do conceitode mateacuteria em geral que co-meccedila por perguntar ldquode ondevem o conceito de forccedila atrativae repulsivardquo

Dos raciociacutenios (Schluumls-sen) responder-se-aacute tal-vez e com isto se acreditater posto fim agrave questatildeo Oconceito de forccedila eu devoeacute claro aos raciociacuteniosque fiz Soacute que conceitossatildeo meras sombras projeta-das (Schattenrisse) da reali-dade Eles compotildeem umafaculdade uacutetil o Entendi-mento que soacute entra em cenaquando a realidade jaacute estaacuteaiacute e que soacute compreendeagarraconceitua (be-greift) e fixa aquilo que soacuteuma (outra) faculdade cri-adora pocircde produzir emseu lugar(SCHELLING-NATUREZA p 301 - itaacute-licos nossos)

Ora Schelling parece aqui carac-terizar os conceitos de uma ma-neira muito semelhante agravequela aser posteriormente adotada porSchopenhauer ndash os conceitos proacute-prios a uma faculdade uacutetil satildeosombras projetadas a partir de

uma realidade apreendida ouproduzida em outra instacircncia ndashdaiacute Schelling dizer a seguir queos homens cuja forccedila do espiacuteritoeacute toda voltada agrave faculdade de fa-zer conceitos e de analisar concei-tos natildeo conhecem nenhuma rea-lidade (Realitaumlt) de modo que aproacutepria pergunta a respeito destalhes parece sem-sentido E quemnatildeo conhece o real (Reales) emsi e fora de si quem apenas viveem e joga com conceitos aquelescuja existecircncia proacutepria eacute apenasum pensamento embaccedilado (mat-ter Gedanke) estes diz Schellingsatildeo como cegos que pretendemfalar das cores toda a realidadecomportada pelos meros conceitoslhes adveacutem da intuiccedilatildeo (Anschau-ung) Se o todo de nosso saber re-pousasse continua Schelling emconceitos entatildeo nunca poderiacutea-mos nos convencer a respeito dealguma realidade ndash mas afirma-mos a mateacuteria como existindo re-almente fora de noacutes e como com-portando as forccedilas de atraccedilatildeo e re-pulsatildeo

Ela (a mateacuteria) natildeo ape-nas existe para noacutes real-mente como tambeacutem eacuteimediatamente dada sema mediaccedilatildeo de conceitossem nenhuma consciecircn-cia de nossa liberdade Enada de outro nos chegaimediatamente a natildeo ser

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atraveacutes da intuiccedilatildeo e porisso a intuiccedilatildeo eacute o que haacutede mais alto em nosso co-nhecimento(SCHELLING-NATUREZA p 303 - itaacute-licos nossos)

Eacute na intuiccedilatildeo diz Schelling quedeve ser encontrado o funda-mento pelo qual aquelas forccedilaspertencem agrave mateacuteria ou dito deoutro modo o fundamento peloqual o objeto da intuiccedilatildeo externase apresenta como o produto des-tas forccedilas que passam assim aser entendidas como condiccedilotildeesde possibilidade desta intuiccedilatildeoexterna e explica a necessidadecom a qual as pensamos Maspergunta Schelling o que eacute a in-tuiccedilatildeo Diz-se que a intuiccedilatildeosegue-se a uma impressatildeo (Ein-druck) externa mas continuaSchelling seria melhor perguntarcomo eacute possiacutevel haver uma im-pressatildeo sobre noacutes Mesmo a massa(Masse) morta natildeo pode ser atu-ada (bewirkt) sem que ela atue devolta (zuruumlckewirke) Mas em noacutesnada atua sem que essa atuaccedilatildeoou efeito chegue agrave consciecircncia demodo que esta impressatildeo natildeo ape-nas incide sobre uma atividadeoriginaacuteria em noacutes mas esta ativi-dade mesma precisa permanecerlivre para elevar esta impressatildeo agraveconsciecircncia Daiacute diz Schelling

Haacute filoacutesofos que acredi-

tam ter esgotado a es-secircncia (o fundo) do ser-homem quando remon-tam tudo em noacutes ao pen-sar (Denken) e ao repre-sentar (Vorstellen) Soacuteque natildeo se compreendecomo um tal ser que ori-ginalmente eacute apenas pen-sante e representante po-deria ter uma realidadefora de si Para um talser o todo do mundo real(que ainda existe ape-nas em suas representa-ccedilotildees) seria um mero pen-samento Que algo existae que exista independen-temente de mim isto eusoacute posso saber na medidaem que eu simplesmentesinto necessaacuterio me repre-sentar este algo e eu natildeopoderia sentir esta neces-sidade sem ao mesmotempo sentir que sou ori-ginariamente livre em re-laccedilatildeo a todo represen-tar e que o representarnatildeo constitui o meu Ser ouessecircncia (Wesen) mesmamas sim e ao contraacute-rio eacute apenas uma modi-ficaccedilatildeo (Modifikation) demeu Ser (SCHELLING-NATUREZA p 304-305 -Itaacutelicos nossos)

Apenas uma atividade livre

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em mim enquanto contrapostaagravequilo que livremente sobre mimatua comporta diz Schelling apropriedade da efetividade ndash eacute soacutena ldquoforccedila originaacuteria de meu Eurdquoque irrompe a ldquoforccedila do mundoexternordquo Mas por outro lado etal como a luz soacute se torna cor noscorpos sobre os quais incide ape-nas nos objetos esta forccedila originaacute-ria em mim se torna um pensarum representar auto-conscienteAssim a consciecircncia e a crenccedilanum mundo externo se datildeo con-juntamente com a consciecircncia ecrenccedila em mim mesmo e vice-versa e juntas constituem o ele-mento do todo de nossa vida eatividade Haacute homens continuaSchelling que acreditam que noscertificamos a respeito da reali-dade apenas atraveacutes de uma pas-sividade absoluta mas de fato ecomo mostra a experiecircncia nosmomentos mais altos da intui-ccedilatildeo o conhecer e o usufruir (Ge-nusses) a atividade e a passivi-dade ou sofrimento (Leiden) es-tatildeo numa completa atuaccedilatildeo reciacute-proca de modo que que eu so-fra isto eu soacute sei na medida emque sou ativo e que eu seja ativoisto soacute sei na medida em que sofroQuanto mais ativo o espiacuterito dizSchelling mais alta a sua sensibi-lidade (Sinn) e vice-versa quantomais embotada estaacute a sensibili-dade mais rebaixado se encontrao espiacuterito Aquilo que eacute intuiacutedo

como outro eacute outro e o que eacute ou-tro eacute intuiacutedo como outro Daiacutecontinua Schelling

Todo o pensar e represen-tar em noacutes eacute necessaria-mente precedido por umaatividade originaacuteria quepor anteceder todo o pen-samento eacute nesta medidasimplesmente indetermi-nada e ilimitada Apenasapoacutes algo ser-lhe contra-posto torna-se ela umaatividade limitada e porisso determinada (pensaacute-vel) Fosse esta atividadede nosso espiacuterito original-mente limitada (tal como aimaginam os filoacutesofos queremontam tudo ao pen-sar e representar) entatildeoo espiacuterito nunca poderiasentir-se limitado Ele soacutesente sua limitaccedilatildeo na me-dida em que ao mesmotempo sente sua originaacute-ria ilimitaccedilatildeoSobre esta atividade ori-ginaacuteria agora atua ()uma (outra) atividade quelhe eacute contraacuteria e queateacute agora eacute igualmentecompletamente indeter-minada de modo que te-mos duas atividades quese contrapotildeem mutuamentecomo condiccedilotildees necessaacuteriasda possibilidade de uma

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intuiccedilatildeo De onde pro-veacutem esta atividade con-traacuteria (SCHELLING-NATUREZA p 306-307- itaacutelicos de Schelling)

Agora vemos em que sentido opensar e representar natildeo cons-titui conforme dizia Schellingacima a essecircncia do ser-homemndash pois todo representar eacute um re-presentar determinado e limitadodeterminaccedilatildeo e limitaccedilatildeo quedado o lema espinosista de queldquotoda determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquosoacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do e emoposiccedilatildeo ao indeterminado e ili-mitado Mas a seguir e respon-dendo agrave uacuteltima questatildeo Schellingdiz que este eacute um problema queprecisamos indefinidamente ten-tar resolver mas que nunca re-solvemos de fato de modo queo todo de nosso conhecimento eacuteapenas uma contiacutenua aproxima-ccedilatildeo deste ldquoxrdquo ao que o jovemSchopenhauer observa que apenaso conhecimento filosoacutefico consistenesta aproximaccedilatildeo e que ldquoNesteensaio haacute em geral muita coisa boae verdadeira Mas tudo isto natildeopoderia ser reduzido agrave afirmaccedilatildeode que nossa consciecircncia neces-sariamente se divide em objeto esujeitordquo (MR2 p 363) Scho-penhauer nesta ocasiatildeo parecenatildeo se dar conta de que Schellingestaacute justamente procurando expli-car como eacute que sujeito e objeto se

encontram um com o outro no co-nhecer e na intuiccedilatildeo ou entatildeo eleestaacute rejeitando que tal coisa possaser explicada ndash eacute assim que emconexatildeo com o Sistema do Idea-lismo Transcendental e a respeitoda afirmaccedilatildeo inicial de Schellingno sentido de que no conhecero subjetivo e o objetivo precisamldquoconcordarrdquo (Uumlbereinstimmung)um com o outro (SCHELLING-SISTEMA p 09) Schopenhauerdiz que tais expressotildees satildeo sem-sentido pois ldquoum objetivo quenatildeo concorde com um subjetivordquoeacute algo tatildeo impossiacutevel quanto umciacuterculo triangular (MR2 p 378)Mas continuando com Schellingeste diz que

Como uma primeira ten-tativa de definir este ldquoxrdquoo conceito de forccedila (Kraft)logo se apresenta Jaacute os ob-jetos mesmos soacute podem serconsiderados como produtosde forccedilas e com isso desa-parece automaticamente aquimera (Hirnegespinst)da coisa-em-si que era su-posta ser a causa de nos-sas representaccedilotildees Emgeral aquilo que eacute capazde atuar sobre o espiacuterito(precisa atuar) como estemesmo (espiacuterito) atua outer uma natureza aparen-tada agrave (natureza) dele Eacutenecessaacuterio portanto re-

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presentar a natureza comoum produto de forccedilaspois apenas a forccedila eacute aquiloque haacute de natildeo-sensiacutevel(Nichtsinnliche) nos obje-tos e apenas aquilo que eacuteanaacutelogo ao espiacuterito podeeste espiacuterito contrapor asi mesmo(SCHELLING-NATUREZA p 308 - itaacute-licos nossos)

Ora aqui Schelling fala do ob-jeto da intuiccedilatildeo empiacuterica da ma-teacuteria como o produto de forccedilasque para constituiacuterem aquele ldquoxrdquopara constituiacuterem aquela ativi-dade que se contrapotildee agrave ativi-dade originaacuteria ilimitada e inde-terminada do espiacuterito precisamser ldquoaparentadasrdquo a este espiacuteritoprecisam dado que elas atuam so-bre o espiacuterito ser elas mesmasforccedilas ldquodo espiacuteritordquo Eacute apenasdevido agravequilo que no objeto haacutede menos sensiacutevel de mais es-piritual que este objeto ldquoatuardquosobre o espiacuterito Com isto dizSchelling desaparece o famosoproblema17 acerca da coisa-em-sikantiana como causa da ldquomateacuteriardquo(enquanto contraposta agrave forma)do fenocircmeno ndash jaacute natildeo seraacute precisosupor que algo essencialmente di-

ferente do espiacuterito atue sobre eleDeste modo a intuiccedilatildeo do objetoeacute resultante da contraposiccedilatildeo en-tre a ldquoforccedila do Espiacuteritordquo e a forccedilaldquofiacutesicardquo que ultimamente eacute apa-rentada agrave forccedila do Espiacuterito E nointerior do proacuteprio espiacuterito o quehaacute de mais aparentado agrave forccedila doque a Vontade

Mas eacute curioso que a respeitodestes desenvolvimentos da refle-xatildeo schellinguiana o jovem Scho-penhauer inicialmente a recuserecusa que no entanto inequivo-camente prenuncia a descobertade sua filosofia - eacute assim que eleanota agrave margem da passagem deSchelling acima

Se ao inveacutes de coisas-em-si mesmas tivermos forccedilas-em-si mesmas isto natildeo nosajudaraacute a avanccedilar ndash Aforccedila eacute tatildeo pouco o supra-sensiacutevel que antes ela eacuteapenas um conceito abs-trato retirado do sensiacute-vel e que eacute apenas figura-damente transferido parao supra-sensiacutevel que deveser (MR2 p 364 - itaacutelicosde Schopenhauer)

O jovem Schopenhauer recusanesta ocasiatildeo a sugestatildeo de Schel-

17 A possiacutevel aplicaccedilatildeo transcendente por parte de Kant da categoria da causalidade na concepccedilatildeo da coisa-em-si como causa da mateacuteria sensiacutevel dos fenocircmenos foi objeto de inuacutemeras criacuteticas por parte de Jacobi Schulze e doproacuteprio Schopenhauer quando jovem (MR1 p61 104 MR2 p 270 290-294) Pode-se dizer que esta ldquopolecircmicaacerca da coisa-em-sirdquo esteve na origem tanto do Idealismo alematildeo como da proacutepria filosofia de Schopenhauer

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ling jaacute que para ele as ldquoforccedilasrdquonada mais satildeo do que marcasou sinais que fazemos para de-notar regularidades observadasentre fenocircmenos ndash eacute assim quenuma anotaccedilatildeo anterior a estao jovem Schopenhauer recusa asugestatildeo de Schelling no sen-tido de que a origem do con-ceito de forccedila estaacute ldquopara aleacutem detoda a consciecircncia como a condi-ccedilatildeo de sua possibilidaderdquo e ex-plica o fato deste conceito ldquonatildeoser apresentaacutevel em nenhumaintuiccedilatildeordquo como dizia Schellingacima como significando ape-nas que seu objeto eacute apenas su-posto em favor do avanccedilo doconhecimento das cadeias cau-sais como uma marca que fa-zemos na esperanccedila de desfazecirc-la e de empurraacute-la sempre umpouco mais para adiante (MR2p 363) Desta forma e como ateacuteentatildeo vinha incansavelmente cri-ticando no procedimento da filo-sofia de Schelling o jovem Scho-penhauer estaacute aqui afirmando queo conceito de ldquoforccedilardquo tal como oconceito de ldquocoisardquo eacute inexoravel-mente ligado agrave consciecircncia em-piacuterica e sensiacutevel de modo quetransferi-lo de maneira literal enatildeo-metafoacuterica ao supra-sensiacutevelagrave sua ldquoconsciecircncia melhorrdquo eacute umprocedimento transcendente queviola as interdiccedilotildees kantianas

Poreacutem e conforme mostramseus manuscritos posteriores

(1814-1818) a esta fase que es-tamos considerando (1811-1813)manuscritos onde o jovem Scho-penhauer procede a uma re-avaliaccedilatildeo do status metafiacutesico dasldquoforccedilasrdquo empregadas pela ciecircnciaeacute plausiacutevel supor que estas suges-totildees de Schelling tenham contri-buiacutedo decisivamente para a suadescoberta de que a Vontade apa-rentada agrave ldquoForccedilardquo seja aquilo emrelaccedilatildeo ao qual os objetos da in-tuiccedilatildeo empiacuterica sejam objetivaccedilotildeesVimos anteriormente Schope-nhauer recusar vigorosamente asugestatildeo de Schelling no sentidode que o sujeito ele proacuteprio po-deria tornar-se objeto ou de quepudesse haver um ldquotornar-se ob-jeto do subjetivordquo ndash e agora ve-mos Schelling sugerir que o quese torna objeto nestas objetiva-ccedilotildees natildeo eacute o sujeito mas sim umaldquoforccedila do espiacuteritordquo forccedila queneste sujeito soacute pode ser a Von-tade

Numa nota acrescentada em1849 a um de seus manuscritosde 1814 o maduro Schopenhauerafirma que estas ldquofolhas escritasem Dresden nos anos 1814-1818mostram o processo fermentativode meu pensamento a partir doqual naquela ocasiatildeo o todo deminha filosofia emergiurdquo (MR1 p122) ndash trata-se da ideia de que ocorpo eacute a objetidade da vontadeou eacute a vontade tornada objeto visiacute-vel ou eacute a apariccedilatildeo fenomecircnica da

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vontade (MR1 p 115 121 130137 146 156) de que entre a von-tade e o corpo natildeo haacute uma relaccedilatildeode causalidade mas sim de iden-tidade (MR1 171) enfim trata-seda ideia que um pouco mais tarde(1817) Schopenhauer designaraacutecomo a ldquopedra angularrdquo de sua fi-losofia (MR1 p 490-491) Parece-nos que a sugestatildeo de Schellingno sentido de que ldquojaacute os objetossoacute podem ser considerados comoprodutos de forccedilasrdquo contribuiudecisivamente para a descobertaoriginal de Schopenhauer a res-peito do corpo como produto daVontade

Conclusatildeo

Vimos que desde o iniacutecio de suaelaboraccedilatildeo filosoacutefica (1811-1813)o jovem Schopenhauer ainda im-buiacutedo do como o chama Rappa-port ldquofenomenalismo ceacuteticordquo deseu professor Schulze (RAPPA-PORT p 127) rejeita o prin-cipal do empreendimento filosoacute-fico a que se dedicava Schelling ndashembora compartilhasse com estea mesma intuiccedilatildeo a respeito domundo supra-sensiacutevel chamadopor ele entatildeo de ldquoconsciecircnciamelhorrdquo um estado de consci-ecircncia em que seja o Eu sejao mundo se apresentam comoatemporais e como natildeo compor-tando a distinccedilatildeo sujeito x ob-

jeto e embora compartilhasse comSchelling tambeacutem a constataccedilatildeodecorrente desta intuiccedilatildeo do ca-raacuteter vazio irreal e meramenteaparente da experiecircncia sensiacute-vel e temporal o jovem Schope-nhauer no entanto e ao contraacuteriode Schelling rejeitava que tal in-tuiccedilatildeo supra-sensiacutevel pudesse serposta como fundamento da intui-ccedilatildeo sensiacutevel e empiacuterica rejeitava atentativa transcendental de colo-car a primeira intuiccedilatildeo como con-diccedilatildeo de possibilidade da uacuteltimaE isto porque como incansavel-mente denuncia o jovem Schope-nhauer nestes anos qualquer rela-ccedilatildeo que se queira estabelecer entreestes dois mundos precisaraacute valer-se de relaccedilotildees (temporais causaisfundamento-consequecircncia etc)vaacutelidas apenas para o mundo sen-siacutevel de modo que tais tentativasao aplicar sobre o mundo supra-sensiacutevel sobre a sua ldquoconsciecircnciamelhorrdquo relaccedilotildees e categorias re-tiradas do mundo sensiacutevel estaraacutefazendo um uso transcendentedestas categorias uso este jaacute de-monstrado por Kant como equi-vocado e impossiacutevel

Para aleacutem desta discordacircnciafundamental de Schopenhauerpara com a pretensatildeo fundacio-nista da filosofia de Schelling oque procuramos descortinar fo-ram temas presentes na obra deSchelling estudadas pelo jovemSchopenhauer que pudessem ter

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contribuiacutedo para o desenvolvi-mento filosoacutefico deste uacuteltimo Arespeito da obra de Schelling ondenormalmente se vecirc as maiores an-tecipaccedilotildees da filosofia de Schope-nhauer a respeito das Investiga-ccedilotildees Filosoacuteficas sobre a Essecircncia daLiberdade Humana constatamosque embora Schelling aiacute avanceideias (como a da Vontade comoo Ser primal e da liberdade comoo aspecto positivo da coisa-em-sikantiana assim como sua expo-siccedilatildeo da teoria kantiana do caraacute-ter ldquointeligiacutevelrdquo) que inequivoca-mente deixaram marcas no pensa-mento de Schopenhauer este temno entanto razatildeo quando afirmaque tais ideias satildeo aiacute avanccediladaspor Schelling de maneira hesi-tante e nebulosa como que numestado quase sonambuacutelico

Mas mais do que estas alu-sotildees do ldquonaufragordquo Schelling oque nos pareceu mais importantecomo contribuiccedilatildeo de Schellingao desenvolvimento futuro dopensamento filosoacutefico de Schope-nhauer foram ideias que destaca-mos acima de seu Ideias para umaFilosofia da Natureza ndash nesta o jo-vem Schopenhauer viu Schellingqualificar os conceitos como som-bras projetadas de uma realidadeapreendida ou produzida em ou-tra instacircncia a saber na intuiccedilatildeoEle viu Schelling afirmar que todarealidade comportada por umconceito eacute uma realidade que lhe

eacute emprestada pela intuiccedilatildeo que oreal eacute apreendido por esta intui-ccedilatildeo de forma completamente in-dependente de qualquer conceitoetc chegando mesmo Schellingao final a concluir que ldquo() aintuiccedilatildeo natildeo eacute como muitos pre-tensos filoacutesofos imaginam o maisbaixo estaacutegio mas sim o maisalto (Houmlchste) estaacutegio do espiacuteritohumano eacute aquilo que propria-mente constitui sua espirituali-dade (Geistigkeit)rdquo (SCHELLING-NATUREZA p 312) Mesmo sempoder examinar suficientementea questatildeo aqui ousariacuteamos di-zer que eacute justamente esta valori-zaccedilatildeo da intuiccedilatildeo (e uma conse-quente desvalorizaccedilatildeo do pensa-mento meramente conceitual) oque Schopenhauer considera maisatraente na filosofia de Schellingenquanto contrastada agrave de Fichtee sobretudo de Hegel o que ex-plica talvez aquele caraacuteter maisameno e contido de suas criacuteticasa Schelling enquanto compara-das agraves que ele endereccedila aspera-mente a Fichte e Hegel Se talcomo pretende Welchman o queSchopenhauer rejeita na ldquointuiccedilatildeointelectualrdquo de Schelling natildeo eacutea sua transcendecircncia natildeo eacute suapretensatildeo metafiacutesica de acesso agravescoisas-em-si-mesmas mas sim asua dependecircncia do pensamentoconceitual envolvido no ldquofato (mo-ral) da Razatildeordquo proacuteprio a todos osseres racionais puros detentores

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de conceitos cuja realidade supos-tamente prescinde de qualquerapelo agrave intuiccedilatildeo (WELCHMANp 07 ss) entatildeo vemos que di-ante das passagens das Ideias parauma Filosofia da Natureza discu-tidas acima a rejeiccedilatildeo de Scho-penhauer agrave ldquointuiccedilatildeo intelectualrdquode Schelling deveria ter sido bemmenor do que aparentemente foindash pois aiacute e como vimos Schel-ling explicitamente nega que osconceitos possam comportar qual-quer realidade independente daque lhe eacute fornecida pela intuiccedilatildeoDe qualquer forma ao conectarexplicitamente e como vimos sualdquointuiccedilatildeo intelectualrdquo agrave autono-mia praacutetica dos puros seres raci-onais kantianos Schelling teriaparece dificuldades na acomoda-ccedilatildeo destas ideias avanccediladas nestecapiacutetulo IV de suas Ideias para umaFilosofia da Natureza e merece-ria as criacuteticas de Schopenhauer nosentido de que tal como as diva-gaccedilotildees do naufrago falta-lhe cla-reza e consistecircncia

Mas foi sobretudo a sugestatildeode Schelling avanccedilada acima nosentido de que o objeto materialreal da intuiccedilatildeo empiacuterica soacute atuasobre o espiacuterito (soacute eacute afinal in-tuiacutedo por este espiacuterito) porque elemesmo eacute resultante de ldquoforccedilasrdquoforccedilas que satildeo o que haacute de me-

nos sensiacutevel nestes objetos forccedilasestas ultimamente aparentadas agravesldquoforccedilasrdquo do proacuteprio espiacuterito demodo que os objetos materiais satildeocomo que apariccedilotildees sensiacuteveis de for-ccedilas espirituais natildeo-sensiacuteveis satildeo es-tas sugestotildees o que nos pareceuanunciar diretamente a inovaccedilatildeode Schopenhauer relativamenteaos corpos materiais como objeti-vaccedilotildees da Vontade Vimos o jovemSchopenhauer rejeitar desde suascriacuteticas agrave filosofia da identidadesujeito-objeto de Schelling a su-gestatildeo deste uacuteltimo no sentido deque o sujeito poderia apresentar-se (tambeacutem a si mesmo) comoobjeto ndash para o jovem Schope-nhauer o fato de natildeo haver emsua ldquoconsciecircncia melhorrdquo tal dis-tinccedilatildeo entre sujeito e objeto emnada contribui para o esclareci-mento da distinccedilatildeo sujeito-objetopresente na e de fato idecircntica agraveconsciecircncia empiacuterica Mas estasuacuteltimas passagens do capIV dasIdeias para uma Filosofia da Natu-reza alude agrave possibilidade de senatildeo o sujeito ao menos algo pre-sente neste sujeito ou neste espiacute-rito eacute que se torna objeto ndash e estalsquoforccedila do Espiacuteritordquo cuja apariccedilatildeovisiacutevel produz o objeto da intui-ccedilatildeo empiacuterica que eacute entatildeo objetiva-ccedilatildeo desta forccedila natildeo pode ser outrasenatildeo a Vontade

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HELIO LOPES DA SILVA

Recebido 25052019Aprovado 16072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i224797

De Dicto and De Re A Brandomian Experiment onKierkegaard

[De Dicto e De Re um Experimento Brandomiano sobre Kierkegaard]

Gabriel Ferreira da Silva

Abstract The recent historical turn within the analytic traditionhas experienced growing enthusiasm concerning the procedure ofrational reconstruction whose validity or importance despite itsparadigmatic examples in Frege and Russell has not always enjoyeda consensus Among the analytic philosophers who are the fron-trunners of such a movement Robert Brandom is one of a kind hiswork on Hegel as well as on German Idealism has been increasinginterest in as well as awareness of Hegelrsquos contributions to somecurrent problems in that tradition Thus this work aims to showBrandomrsquos methodology of rational reconstruction based on thedistinction between de dicto and de re inferences Afterwards I turnto Kierkegaard in order to make explicit some of his ontologicalcommitments by applying Brandomrsquos approach as a valuable tool fordoing history of philosophyKeywords Kierkegaard Brandom Rational Reconstruction Onto-logy Metaphilosophy

Resumo A recente virada histoacuterica no interior da filosofia analiacuteticatem contribuiacutedo para o crescimento no interesse acerca do procedi-mento da reconstruccedilatildeo racional cuja validade ou importacircncia a des-peito de ter exemplos paradigmaacuteticos em Frege e Russell natildeo foi sem-pre um consenso Entre os filoacutesofos analiacuteticos pioneiros nesse movi-mento Robert Brandom merece especial destaque seu trabalho sobreHegel e o Idealismo Alematildeo tem despertado a atenccedilatildeo tanto sobre aexegese do filoacutesofo de Jena quanto acerca de suas possiacuteveis contribui-ccedilotildees para problemas atuais Assim este trabalho tem como objetivoexpor o meacutetodo de Brandom baseado na distinccedilatildeo entre inferecircnciasde dicto e de re Num segundo momento faccedilo um exerciacutecio de aplica-ccedilatildeo de tal meacutetodo a Kierkegaard explicitando seus comprometimen-tos ontoloacutegicos evidenciando tal abordagem como uma valiosa ferra-menta para a histoacuteria da filosofiaPalavras-chave Kierkegaard Brandom Reconstruccedilatildeo Racional On-tologia Metafilosofia

Professor do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)ORCID httpsorcidorg0000-0003-2255-5173 E-mail gabrielferreiraunisinosbr

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1 - Introduction

Analytic philosophy had a self-image as a trend or philosophi-cal perspective that was not onlynon-historic but even opposed toany interference of a historical ap-proach to philosophy (see BEA-NEY 2016 RECK 2013) Howe-ver such a view has been chal-lenged in different ways amongthem I would like to point twothat are especially relevant formy purposes here Firstly as itis now widely acknowledged thequarrel between Dummett andSluga on the influences of previ-ous philosophers ndashmainly Lotzendashon Frege as well as Soamesrsquos bookand the debates after it revea-led new facets of the then stan-dard narratives about analyticphilosophers As Beaney (2016)points out even the view aboutsome of the archetypical figuresof the anti-historical approachlike Frege himself but also Rus-sell and Wittgenstein have chan-ged since then The second aspectwhere we can see the ldquohistoricalturnrdquo in analytic philosophy is notrelated to what we could call a his-torical sensibility when it comesto interpretation of now canonicalanalytic philosophers like Fregeor Russellmdashwhich is a historicalenterprise in itselfmdashbut in thereassessment of possible contri-butions to current philosophical

problems by philosophers fromthe past Starting with differentmodes of engagement with Kan-tian philosophy by analytic philo-sophers like Sellars Strawson andRawls but also with DescartesLeibniz Hume and even ancientphilosophy analytic philosophershave been increasing the placeand importance for dialogue withthe history of philosophy It is inthis scenario that the ldquoPittsburghSchoolrdquo led by Robert Brandomand John McDowell moves intowhat Paul Redding calls ldquoAnalyticNeo-Hegelianismrdquo (2011) Bran-dom himself presents some as-pects of his philosophical contri-butions in terms of an approxi-mation to Hegel In fact quo-ting Richard Rorty Brandom saysthat his work as well as Mc-Dowellrsquos helps to push analy-tic philosophy from its Kantianphase into its unavoidable Hege-lian phase (BRANDOM 2011)

From a historical point of viewsuch a move is quite interestingif we consider that a major partof contemporary philosophy rai-sed upon the explicit and deli-berate rejection of Hegelrsquos philo-sophy and his epigones Almostevery aspect of the philosophy ofthe second half of 19th centuryand beginning of 20th was direc-tly or indirectly influenced by therefusal of Absolute Idealism andits consequences not only for logic

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and natural sciences but also forhistory sociology and culture Yetdespite the specific importance ofthat revival of philosophers fromthe past what is particularly no-teworthy is the progressive ack-nowledgement of the procedureof rational reconstruction as a va-lid justified and profitable way ofdoing philosophy even inside theanalytic tradition

Following Beaneyrsquos definitionldquoA rational reconstruction of a(purported) body of knowledgeor conceptual scheme or set ofevents is a redescription and reor-ganization of that body or schemeor set that exhibits the logical(or rational) relations betweenits elementsrdquo (BEANEY 2013 p253)1 In modern philosophy itsroots can be broadly found inNeo-Kantianism and in logicismwhich is itself another interestingsign of proximity between the twophilosophical trends in the 19th

century On the one hand thedistinction between quid juris andquid facti is crucial to Kant andhis followers Such a differenti-ation was reworked and presen-ted under various other termslike Lotzersquos distinction betweengenesis (Genese) and validity (Gel-tung) or Windelbandrsquos distincti-

ons between the genetic and thecritical method or the differenti-ation between discovery and jus-tification All of them are con-ditions of possibility of a ldquoredes-criptionrdquo or ldquoreorganizationrdquo of agiven body or set of claims aimingto make explicit its sometimes-hidden internal logic On theother hand the logicist projectwhich assumes the idea that oneset of elements can be reconcei-ved in terms of another (numbersin terms of extensions of conceptsfor example) is also a type of ratio-nal reconstruction2 Carnaprsquos Auf-bau is another Frege himself isabsolutely committed to the prin-ciple exposed in the Grundlagenthat ldquoThere must be a sharp sepa-ration of the psychological fromthe logical the subjective from theobjectiverdquo (FREGE 1997 p 90)

However because rational re-construction is a philosophicalprocedure that focuses on the in-dependence and precedence ofthe logical validity and structureover the psychological dimensionof a set of claims it is totally justi-fied when it comes to taking sucha set or body of claims like theset of claims of a third personor even a philosopher from thepast In fact once again even

1The general reconstruction presented in the next paragraphs are drawn from BEANEY 20132 Like Beaney points out despite Frege uses the term ldquoreductionrdquo it is a sort of rational reconstruction (2013

p 235)

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inside the analytic tradition wehave examples of such exercises inRussellrsquos book on Leibniz (A Cri-tical Exposition of the Philosophyof Leibniz 2005) and Dummettrsquoswork on Frege (Frege Philosophyof Language 1973) not to mentionStrawsonrsquos on Kant In Russellrsquosown words in the scope of ratio-nal reconstruction

We may even learn by ob-serving the contradictionsand inconsistencies fromwhich no system hithertopropounded is free whatare the fundamental ob-jections to the type inquestion and how theseobjections are to be avoi-ded But in such inqui-ries the philosopher is nolonger explained psycho-logically he is examinedas the advocate of what heholds to be a body of phi-losophic truth By whatprocess of developmenthe came to this opinionthough in itself an impor-tant and interesting ques-tion is logically irrelevantto the inquiry how farthe opinion itself is cor-rect and among his opi-nions when these havebeen ascertained it be-comes desirable to pruneaway such as seem incon-

sistent with his main doc-trines before those doctri-nes themselves are subjec-ted to a critical scrutiny(RUSSELL 2005 xx)

We arrive here at a very inte-resting metaphilosophical pointIn reconstructing an authorrsquosthought we are not simply ex-tracting ideas from the text butdoing at least two creative proces-ses Firstly when we talk aboutldquoreconstructionrdquo we should re-ally mean it The interpreter-reconstructor is not only unders-tanding theses or ideas from apreviously given set of claimsbut is actively suggesting a dif-ferent composition or structurefor that set of claims that couldbe eventually for the sake of anargument for instance even bet-ter than the original made by theauthor himself Of course suchmeaning of reconstruction pre-supposes the possibility of deta-chment of the rationale from theoriginal form and frame But suchpresupposition is the very basisof rational reconstruction and isusually not so hard to defend suf-fice it to say that the same pre-supposition is being held when itcomes to the translation of a sta-tement or argument to a symboliclanguage

The second and for my purpo-ses here the most important crea-

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tive aspect of rational reconstruc-tion is the procedure of ascrip-tion In a rational reconstructionthe interpreter is not being me-rely prompted by a given work(cf BEANEY 2013 p 253) but isactively ascribing inferential pro-positions to an author And herewe are at the very tensional pointregarding an approach that wantsto be both historically informedand coherent and philosophicallyrelevant Like Beaney says ldquoa ra-tional reconstruction is better themore it is historically informedand vice versa so that ideal workin history of philosophy combinesbothrdquo (BEANEY 1996 p 3)3

Of course that is a regula-tive ideal which presents manyobstacles and can be reachedonly to varying degrees We canhave a glimpse of such difficul-ties in Daniel Garberrsquos exampleof reading Descartesrsquo Meditations(2005) Everybody knows thatits metaphysics is supposed to bethe ground of a broader projectfor Descartesrsquo system of sciencesThus it should be read togetherwith his other works having inmind his analogy of a tree and itsbranches But like Garber sayswhy stop here To fully unders-

tand his project it is important toknow that it was designed againstthe Aristotelian model taught atLa Flegraveche which takes us to otherproponents of similar candida-tes ndash like Gassendi and Galileoas well as to Aristotle himself inorder to understand and evalu-ate how Descartesrsquo thoughts aregood against their self-imposedaim But once again why stophere Garber reminds us that Des-cartes project was also designedagainst the whole social theolo-gical and university system ba-sed on authority and it is reallyhelpful to know its elements andstructures Well why then stophere It would be really usefulto know about the Church de-pendence on some views basedon an Aristotelian metaphysicsGarberrsquos example can be puzz-ling because it is very justifiableand actually it is justified for meeven though as Garber says ldquoIcan see certain readers becomingmore and more impatient whereis the philosophical interest in allof thisrdquo (GARBER 2005 p 138)

I certainly donrsquot intend to pre-sent any final solution to such aproblem However I do thinkthat Brandomrsquos approach to his-

3Thus I can see no reason for identifying Rational Reconstruction and Appropriationism as Mercer (2019 p30) does Of course a deeper engagement with her thesis would demand another paper but I think it is a defen-sible position to say that GTRC principle can include what (logically) follows from a statement in other words tounderstand what a philosopher is saying can include its inferential consistence even though such inferences werenot fully explicit

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tory of philosophy can be seen as agood tool to deal with it To someextent it is what Brandom doeswhen he turns to Kant Frege Hei-degger and mainly Hegel Butmore than that Brandomrsquos wayof dealing with philosophers fromthe past is also a device to expandour understanding of them

2 - History of Philosophy DeDicto and De Re

In order to fully understand Bran-domacutes approach we need to ex-plore a bit of its backgroundwhich is rooted on a concept of ra-tionality which at the same timeprovides the foundations for hisinferentialism In the Introduc-tion of TMD Brandom presentsfive models of rationality (logicalinstrumental translational infe-rential and historical) The dis-tinctive mark of the first two isthat they see rationality ldquoas beinga matter of the structure of re-asoning rather than its contentrdquo(TMD 4) Instead the last th-ree understand being rational asa matter of what makes a proposi-tion interpretable or playing a rolein a material inference For Bran-domacutes purpose -and mine- the in-ferential model not only explains

how reason works but provides atool to evaluate philosophical po-sitions and commitments

It is important to see that it isnot necessary that one commitshimself to Brandomacutes inferentia-lism from cover to cover Consi-dered in itself inferentialism isa view about what language isand how it works i e throughthe process of making inferencesrather than representations (as arepresentationalist would argue)However it is fundamental to seethe importance of making mate-rial inferences and what it meansconcerning philosophical commit-ments For the inferential modelldquoto be rational is to be a producerand consumer of reasons thingsthat can play the role of both pre-mises and conclusions of inferen-ces So long as one can assert andinfer one is rationalrdquo (TMD 6) Itmeans that to be rational meansto be able to articulate conceptualcontents in material rather thanlogical inferences like ldquoIf A is atthe right of B B is at the left ofArdquo4

If we accept such a core infe-rentialist view we can unders-tand how Brandom develops sucha view as a device for rational in-terpretation If rationality is inhe-rently inferential conceptual in-

4As Brandom says the inferential incorporates the logical and the interpretational models since logic does notdefine what rationality is but makes it possible for us to express our commitments and its structure

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terpretation can be seen not onlyas a matter of making more or lessexplicit what is hidden somehowin a concept or a set of conceptsjudgements and arguments butalso as a matter of drawing infe-rences from them In Brandomrsquoswords conceptual interpretationunder an inferential role is ldquotheability to distinguish what followsfrom a claim and what would beevidence for or against it whatone would be committing oneselfto by asserting it and what couldentitle one to such a commitmentrdquo(TMD 95)

Brandom presents then bothin Making it Explicit and in Ta-les of the Mighty Dead two majorways of doing that namely whathe calls de dicto and de re inferen-tial interpretations The distinc-tion traces back to Quine (1956)and his account on propositionalattitudes which is to some extentwhat we are dealing with Undersuch inferentialist point of viewconceptual or textual interpreta-tion is to be seen as ascription ofpropositional attitudes roughlyunderstood as an attitude some-one has towards a proposition5Its structure can be also roughlyunderstood like

S believes (hopesthinks) that

Q Ps

Exs

(a) Gabriel believes that Marioconsiders Brentano a greatphilosopher

(b) Gabriel thinks that Ernestoagrees with Mario about thecontent of the former exam-ple

Where the main parts are verbslike believe hopes thinks and whatliterature usually calls the ldquothatclauserdquo followed by a proposi-tion

In order to interpret conceptualcontent and ascriptions in thisway Brandom reminds us that wemust always appeal to a contextldquofor the inferential significance ofa claim ndashwhat follows from itndash de-pends on what other claims onecan treat as auxiliary hypothesesin extracting those consequencesrdquo(TMD 95) When it comes spe-cifically to such ascriptions rela-ted to making conceptual and in-ferential interpretations of philo-sophical texts which is the goalof Brandomrsquos book one of themain sources for such a set ofauxiliary or collateral hypothesesis provided by other claims thatthe author who is being analyzedacknowledges as expressing his

5See Quine 1956 and Russell 2010 Russell does not like using the term ldquoattituderdquo (p 60) because it points toa psychological trace but the expression ldquopropositional attituderdquo has been used notwithstanding it

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thoughts or simply as true Suchclaims can be extracted from hisother writings historical contextsletters disputes etc as long asthe (interpreter knows that the)author acknowledges them as sta-ting his own claims Hence insuch a way the textual interpre-tation of ascription is a sort of pa-raphrase (see TMD 96) that ta-kes its premises from the authorrsquosacknowledged or acknowledgea-ble universe of claims When itfollows such a way we have whatBrandom calls a de dicto specifi-cation of content or commitmentThus

De dicto =df an inferential con-ceptual interpretation or specifi-cation of a claim through appe-aling only to collateral premisesor auxiliary hypotheses that areco-acknowledged with that claim(TMD 97)

In other words de dicto ascrip-tions want to determine ldquowhatthe author would in fact havesaid in response to various questi-ons of clarification and extensionrdquo(TMD 99) The context is sup-plied by the author himself eitherdirectly (in the text itself or not)or indirectly (via historical con-text connections etc) For ins-tance if ldquoS believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180ordquo we can infer that

ldquoS co-acknowledge6 that the sum ofthe internal angles of every triangleequals two right anglesrdquo

For Brandom de dicto interpre-tation is a very important and de-manding mode of doing intellec-tual history (see TMD 99) In or-der to do so one has to have amastery over what a philosopherwrote said and read as well aswhat he to some extent lived

However the process of makingclearer and more explicit what aphilosophical text says bringingto the surface its hidden assump-tions or pretexts reveals only onephilosophical dimension of it Byinterpreting a text we want to un-derstand

( ) what speakersthink they are committingthemselves to by whatthey say what they insome sense intend to becommitting themselvesto what they would taketo be consequences of theclaims they made But be-sides the question of whatone takes to follow from aclaim one has made thereis the issue of what reallyfollows from it (TMD100)

6(TMD 97)

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Thus beyond the process of ma-king explicit some claims th-rough paraphrase substitutionsand conceptual interpretationsBrandom points out to a diffe-rent perspective or inferential ap-proach whose goal is now ma-king explicit what inferentially re-ally follows from a claim Suchemphasis in the ldquoreally followsrdquoclause is very important here forwhat it means in interpretationalterms It means above all thatinferences derived under suchperspective are independent ofthe authorrsquos acknowledgement orin other words it derives actualcommitments independently ofwhat the author actually ackno-wledges For instance if one be-lieves that the content of this bot-tle is water and that water quen-ches thirst one is committed tothe fact that H2O quenches thirstwhether one realizes or not thechemical formula of water Thatis what Brandom calls de re infe-rence But in order to make suchkind of inferences the interpre-ter also needs an auxiliary set ofclaims However in de re ascripti-ons such a set does not come from

what the analyzed author wouldldquoco-acknowledgerdquo as his own setbut comes from what the interpre-ter takes as being true Gettingback to the former example

(P1) S believes that the sum ofthe internal angles of every trian-gle equals 180o

(P2 De Dicto) S believes that thesum of the internal angles of everytriangle equals two right angles

(P3) S is committed to the truthof Euclidacutes proposition I 32(DeRe)

Hence De re =df an inferen-tial conceptual ascription of whatreally follows from the premi-ses even against a different back-ground or starting from a dif-ferent set of auxiliary hypothe-ses that is now supplied by whatthe interpreter rather than theauthor holds to be true Thus ldquoinde re readings by drawing conclu-sions from the text in the contextthe interpreter is actively media-ting between two sets of commit-ments Text-and-context on theone hand and interpreter on theother both have their distinctive

7Brandom points to D Lewis as a precursor of such way of thinking ldquoThis sort of stripping down and buildingback ndash a process whose moto is ldquoreculer pour mieux sauterrdquo ndash is a form of understanding When I was a graduatestudent my teacher David Lewis advocated a picture of philosophy like this The way to understand some regionof philosophical terrain is for each investigator to state a set of principles as clearly as she could and then rigo-rously to determine what follows from them what they rule out and how one might argue for or against them Themore disparate the starting points the better sense the crisscrossing derivational paths from them would give usof the topography of the landscape they were embedded in What is recommended is hermeneutic triangulationachieving a kind of understanding of or grip on an object (a conceptually articulated content) by having manyinferential and constructional routes to and through it The more paths one knows through the wood the better

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rolesrdquo (TMD 109)7 Therefore asBrandom sums it up in Making itexplicit

The ascriber of a doxas-tic commitment has gottwo different perspecti-ves available from whichto draw those auxiliaryhypotheses in specifyingthe content of the commit-ment being ascribed thatof the one to whom it is as-cribed and that of the oneascribing it Where thespecification of the con-tent depends only on au-xiliary premises that ac-cording to the ascriberthe target of the ascriptionacknowledges being com-mitted to it is put in dedicto position within thersquothatrsquo clause Where thespecification of the con-tent depends on auxiliarypremises that the ascriberendorses but the targetof the ascription may notit is put in de re position(MIE 506 Cf 507)

It is noteworthy that Brandom ad-vocates the importance and legi-timacy of De Re inferences as an

approach to the history of phi-losophy Besides the usual DeDicto perspective we should ack-nowledge the worth of De Re his-toriography since it aims at thesame kind of universe of infe-rences or ascriptions namely theauthorrsquos commitments The onlydifference is upon where the setof auxiliary claims comes from8In the end such type of histori-ography is precisely what Bran-dom did in part two of TMD withLeibniz Hegel Frege Heideggerand Sellars through the four fol-lowing steps (see TMD 112-114)

1 Selecting the texts

2 Further selection (aiming cen-tral claims which will be used)and supplementation

3 Deriving (from multipremiseinferences) claims

4 Assessing the adequacy ofsuch inferred claims

Well that is what I am going todo as a little exercise with a cou-ple excerpts by Kierkegaard in thenext section

one knows oneacutes way around in itrdquo (TMD 114-115)8ldquoAs was indicated by the discussion of de re readings there is no reason why the target claims need be restricted

to de dicto characterizations of what appears in the textrdquo (TMD 112)

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4 - Kierkegaard De Dicto and DeRe

For better or for worse the phi-losophical network of Kierkega-ardrsquos relations sometimes seemsto be completely done9 Whetherit be the range of philosophicaltopics or his relations to the phi-losophical context of 19th and 20th

century the interpretative litera-ture seems to have little space forimprovements However a cou-ple of works have pushed thoseboundaries in recent years brin-ging to the surface hidden the-mes or connections like Kierke-gaardrsquos reception of and depen-dence on Trendelenburgrsquos logischeFrage when it comes to his cri-ticism on Hegelrsquos logic for ins-tance10 Among the unexploredtopics Kierkegaardrsquos ontology isone of the most interesting If it istrue on the one hand that Kier-kegaardrsquos existential turn becamecommonplace in the literature onthe other hand its metaphysicalroots and unfoldings are still analmost untouched topic Just toshed some light on what I am tal-king about consider that one ofKierkegaardrsquos philosophical wor-ries is in a nutshell in his claim

that

( ) speculative thoughtrepeatedly wants to ar-rive at actuality and gi-ves assurances that whatis thought is the actualthat thinking is not onlyable to think but also toprovide actuality whichis just the opposite and atthe same time what it me-ans to exist is more andmore forgotten (CUP1319 SKS 7 291)

And yet when we read throughmost of his interpreters we findthat they focus exclusively on theethical or religious effects of hisquest for the meaning of existenceand rarely say a word about themetaphysical ground Moreoversuch a perspective also plays adominant role when it comes toevaluating his thematic relationsto later philosophy However ifwe agree with Brandom and withthe reasons I presented above onthe legitimacy of a De Re histori-ographicphilosophic approach Ithink we can push the boundariesa lit bit through Kierkegaardrsquos de

9I am fully aware of the bundle of aspects and problems one can face when ignoring Kierkegaardrsquos use ofpseudonyms and ascribe views and statements to Kierkegaard himself However what is at stake here are thephilosophical inferences one can derive from his work and rather than verify if such and such theses belong to hispersonal set of beliefs

10See FERREIRA 2013 2015 2017 For excellent examples of such ldquopushing the boundariesrdquo on other topicssee WEBB 2017 and THONHAUSER 2016

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re interpretation In order to illus-trate allow me to carry out a shortexperiment along these lines

One of the central problems inontology can be stated like thiswe surely know that there are dif-ferent kinds of existing things na-mely humans tables propertiesgeometrical relations numbersfictional characters and maybeeven God But does it mean thatthere are different ways of existingor being If it does are all of suchways of being on the same levelor are there degrees of being Isany of them primitive and othersderived On the other hand if dif-ferent kinds of existing things donot mean different ways of beinghow can we understand such adifference in a unified (or univo-cal) way

In contemporary analytic philo-sophy partially inspired by Fregeand Russell and fully by Quinethe dominant view is that thereare not different ways of beingwhich means that whatever beingmeans it has the same meaningfor all entities about which wecould they are Nevertheless his-tory has plenty of examples ofphilosophers who endorse the op-posite position We could men-tion Plato Aristotle AquinasMeinong Lotze Husserl Moore

Heidegger but also young Bren-tano young Russell and argua-bly Frege11 Nowadays we are ha-ving a revival of this dispute withsome new contenders on the sideof what has been called Ontologi-cal Pluralism (OP) (see MILLER2002 TURNER 2010 CAPLAN2011 BERTO 2013 GABRIEL2015 MCDANIEL 2009 2017)12

One of the strategies of Ontolo-gical Pluralists has been besidesthe straightforward argumenta-tion revisiting old philosopherslooking for their arguments forOP as well as their reasons forholding such a position In thissense it is noteworthy that someof them call themselves as ldquoNeo-Meinongniansrdquo If ldquoexistencerdquo isthe central theme of Kierkegaardrsquosthought does he have any side insuch a dispute Letrsquos briefly con-sider some propositions from Ki-erkegaardrsquos work

(P1) God does not exist (existe-rer ikke) he is eternal (CUP1 p332 SKS 7 303)

(P2) A human being exists (exis-terer) (CUP1 p 332 SKS 7 303)

(P3) Ideas have a thought-existence (Tanke realitet) which isneither humanrsquos existence (CUP1p 329 SKS 7 301)

(P4) nor a physical objectrsquos way

11See Turner (2010) and McDaniel (2017)12McDaniel (2017) just won the American Philosophical Associationrsquos 2018 Sanders Book Prize

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of being (CUP1 p 330-331 SKS7 301)

(P5 De dicto paraphrase) Thereare irreducible different modes ofbeing

(P6 ndash Interpreteracutes claim) Aphilosopher who assumes thereare irreducible different modesof being believes that ontologicalpluralism is true

(P7 De Re) Kierkegaard belie-ves that ontological pluralism istrue13

Concerning the propositionsabove some things are no-teworthy As indicated by the re-ferences P1 to P4 are extracteddirectly from quotations by Kier-kegaard and have their truth va-lue drawn from the philosopheracutesown statements P5 on the otherhand is never asserted like thatby Kierkegaard but follows direc-tly from the claims above with noneed of any other premise Whenit comes to P7 our De Re con-clusion things are slightly diffe-rent The interpreter in this caseis deeply interested in ontologi-cal questions and provides an au-xiliary claim (P6) which comesfrom a different context Howe-

ver Kierkegaardacutes claims (P1 toP4) and what de dicto follows fromthem (P5) can now be put against(P6) in order to see what followsWhen it comes to (P6) it is worthnoticing that there is a twofoldway on the one hand we couldproceed to examine if the authorKierkegaard in this case providesany arguments supporting it andon the other hand we could as-sume (P6) as true on the interpre-terrsquos basis Therefore in assumingthe second way namely that (P6)is true ndashand that is the interpre-teracutes responsibility as Brandomsaysndash it is also true that (P7) eventhough the author of (P1) to (P4)never heard about (P6)14

If we turn back to Kierkegaardrsquosmain concern ndash in order to verifythe adequacy of our conclusionndash namely ldquowhat does it mean toexistrdquo one can see that ontolo-gical pluralism is absolutely cen-tral to his philosophical endea-vor Reversely understanding Ki-erkegaardrsquos ontological commit-ments in terms of ontological plu-ralism helps us to understand hisown objectives in a better andclearer fashion The main pro-blem for which ontological plu-

13As McDaniel defines ldquoSo I offer up the following more general sufficient condition one believes in ways ofbeing if one believes that there is more than one relatively fundamental meaning for an existential quantifierrdquo(2017 37)

14It is important to have in mind that the burden of proof regarding the truth-value of auxiliary claims must notnecessarily be on the author since it can be the case he never explicitly formulated it The point is that since suchauxiliary claim is provided such and such consequences follow from it

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ralism is an answer can be statedas ldquoDo some objects enjoy morebeing or existence than other ob-jectsrdquo (see MCDANIEL 2017 1)The way Kierkegaard understandsthe mode of existence of humanbeings cannot be fully graspedunless we recognize two ontolo-gical features of reality Thus onone hand it is true that some en-tities can be said to be univocallyactual like God human beingsand a fly since actuality is notsubject to degrees (see PF 41- 42 SKS 4 246) But on the other handKierkegaard is ontologically com-mitted to degrees of being that areirreducible to any other namelythe eternal uncreated being (ofGod) the infinite created beingor subsistence (or what he callsldquoideasrdquomdashie logical and mathe-matical relations and properties)the intermediate existential being(of human beings) and finite being(of physical objects)

Now we have some very in-teresting roads before us Onepossible next step of our de reinferential exercise would be tokeep on this track and try to findout whether Kierkegaard has anyhints on the primitiveness of arestricted existential quantifier(over an unrestricted existentialquantifier) since contemporarydefenders of Ontological Plura-lism argue that the Quinean un-restricted existential quantifier is

not enough to deal with differentmodes of being because usingDavid Lewis-Platorsquos terminologythey do not ldquocarve nature at thejointsrdquo But another interestingpath would be to evaluate howKierkegaardrsquos ontological com-mitments are close to or distantfrom for instance Meinongrsquos Isthere for Kierkegaard any spaceand arguments for Auszligerseiendor is he another victim of ldquotheprejudice in favor of the actualrdquo(MEINONG 1999 sectsect2 11) Yetanother road would lead us to dere infer Kierkegaardrsquos positions oncentral quarrels of 19th centuryphilosophy that are despite thechronology inside his scope likeMaterialismusstreit and Psicologis-musstreit for instance The Da-nish philosopher we know wasa fierce critic of what we wouldcall ldquoreductionismrdquo or ldquoelimina-tivismrdquo concerning consciousnesstoday but he also dealt with thequestion of how an actual existentrelates to ideal entities for ins-tance It seems to me that we havepromising roads to tread

4 - Conclusion

Therefore as far as I can see Bran-domrsquos approach is interesting inthree ways

1 By getting back to philo-sophers from the past in order

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DE DICTO AND DE RE A BRANDOMIAN EXPERIMENT ON KIERKEGAARD

to infer De Re commitmentsBrandom does at the sametime (a) a rational recons-truction exposing how KantHegel Frege and Heideggerforesaw some aspects of hispragmatic semantics and infe-rentialism but also how suchpositions help us to unders-tand theirs Thus by connec-ting a contemporary view todead philosophersrsquo positionsvia inferential commitmentswe can leave aside Rortyrsquos andBeaneyrsquos worries about ana-chronism it is not a mat-ter of suspiciously and doubt-fully ascribing contemporaryviews to a philosopher fromthe past but rather makingexplicit what is so to speakalready there As Brandom re-minds us de dicto and de reascriptions are not two diffe-rent realms of truths or com-mitments but ldquospecify thesingle conceptual content ofa single belief in two diffe-rent ways from two differentperspectives in two different

contexts of auxiliary commit-mentsrdquo (TMD 102)15

2 Therefore de re textual in-terpretations of philosophersfrom the past are as legiti-mate as de dicto ones Inother words specifying dere inferences should be seenas a logically justified sourcefor doing history of philo-sophy and conversely helpsus to deal with Garberrsquos-style-problems If like Beaney re-minds us a rational recons-truction is better the moreit is historically informed inthe case of de re inferences itis evident that putting suchinferences against a histori-cal background is essential atleast to evaluate if on theone hand a logically justi-fied position is not on theother hand contextually con-tradictory However since inthis inferential game we arenot trying to exclusively un-derstand a philosopherrsquos the-sis but rather to expose whatfollows (logically) from his

15The controversy about anachronism is long and it would demand another paper However there are goodworks reassessing and even defending its importance for doing history of philosophy See LAEligRKE SMITH SCH-LIESSER (2013) and LENZ ( ) who makes a very interesting point ldquoOf course Descartes did not read Wittgens-tein But does that also mean that reading Wittgenstein can tell us nothing about Descartes Let me consider twoobjections to the historianrsquos answer Firstly this answer ignores the fact that philosophers and other authors oftenwrite for future generations Descartes Spinoza but also Kant Nietzsche and others were clearly writing decidedlyfor future audiences To explain their texts only by reference to their time impoverishes the philosophical potentialIn fact this point generalizes any research project is future directed We would not begin to do research had wenot the hope that it might lead to more knowledge in the future If we study the development of ideas itrsquos crucialto look at their potential futures and this could very well involve Wittgensteinrsquos reaction to the Cartesian conceptof mindrdquo (p 4)

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positions it seems at leasteasier to have a clue abouthow to answer Garberrsquos ldquoin-convenientrdquo ldquowhy stop hererdquoquestion namely because thecontextual-fact x cannot be dere connected to the ascriptionA16

3 TMD connects a ldquomotleygrouprdquo of philosophers (Spi-noza Leibniz Hegel FregeHeidegger and Sellars) (TMD16) However one of theexplicit goals of the book isto make such a connectionldquoseem less so after we workthrough this material than

they would beforerdquo (TMD16) Hence more specificallyabout Kierkegaard and thebroader scenario of 19th20th

century philosophy such away can also make an ap-proximation of Kierkega-ard Lotze and Meinong lessweird as well as for ins-tance Kierkegaard and Hei-degger ndashthrough the ontolo-gical commitment to ways ofbeingndash less obvious and lessclicheacute As one can see a desi-rable outcome such reassess-ments provide us tools and ar-guments for rethink the veryphilosophical canon

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16Since the approximation between Garberrsquos example and Brandomrsquos model of rational reconstruction is beingmade by me Brandom does not offer as far as I know such a kind of answer However it makes sense to thinkthat a good reason to stop is the awareness of the distance of a contextual or historical remark H from the de reascription A Letrsquos consider the Geometry example given above Let it be the subject S as having the belief expres-sed in the proposition (P1) We could infer (P3) de re However a possible historical fact H1 that S firmly believedthat Euclid was totally wrong (as expressed in one of S letters to Z for instance) is a very relevant historical fact toevaluate S positions in this case S was either wrong about his belief on Euclid or wrong about square trianglesThe same for the historical fact H2 namely that S never really read Euclidrsquos Elements and knew it only by secondhand readings what we can know reading his autobiography But when it comes to the historical fact H3 namelywhat are the mathematical textbooks S had in his personal library we can say that it is not so relevant since eventhough we come to know one of those books had a really good exposition of proposition 32 In this case H3 is notrelevant for the inference of (P3) from (P1) like H1 is but at most for our knowledge that S maybe never had readthat book

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i225478

Introduccioacuten Histoacuterica al Psychologismusstreit[A Historical Introduction to Psychologismusstreit]

Mario Ariel Gonzaacutelez Porta

Resumen Es una conviccioacuten usual que el Psychologismusstreit fue unaunidad indivisa que tiene como epicentro los ldquoProlegoacutemenosrdquo husser-lianos y se concentra en la loacutegica Esta conviccioacuten es falsa El Psycho-logismusstreit fue un proceso en el cual se pueden y deben diferenciaretapas tendencias y nuacutecleos temaacuteticosPalabras claves psicologismo poleacutemica en torno al psicologismo meacute-todo psicoloacutegico neokantianismo platonismo

Abstract It is commonly believed that the Psychologismusstreit was anindivisible unit that had as its epicenter the husserlian ldquoProlegome-nardquo and focuses on logic This is a false belief The Psychologismusstreitwas a process through which stages tendencies and central themescan and must be differentiatedKeywords Psychologism polemic surrounding psychologism neo-kantianism platonism

1 - Introduccioacuten

El Psychologismusstreit (PS) no esun proceso linear y unidimensio-nal sino que se caracteriza porposeer diferentes oriacutegenes moti-vaciones vertientes y etapas1 Esesta caracteriacutestica peculiar del PSque deseamos estudiar en detalleen el presente trabajo Mas si de

lo que se trata primariamente esde distinguir aspectos que son de-cisivos para constituir el horizontedel PS esto no acontece sin em-bargo para mantenerlos separa-dos sino para interrelacionarlos ymostrar la complejidad de sus ne-xos Lo que nos proponemos es al-go asiacute como una separacioacuten quiacute-mica de substancias para de es-

Professor titular da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) E-mail marioporpucspbrORCID httpsorcidorg0000-0001-8220-1540

1Manifestacioacuten de lo anterior es que es un rasgo distintivo de esta poleacutemica el no plantearse entre dos parti-dos previamente establecidos y claramente diferenciados sino consistir en buena medida en el trazado de la liacuteneadivisoria entre ambos de tal manera que lo que se entiende por psicologismo va variando a traveacutes del tiempo y au-tores considerados anti-psicologistas en un momento pasan a ser considerados psicologistas en otro o autores quepueden ser considerados anti-psicologistas en una perspectiva deben ser considerados psicologistas en otras Porejemplo Stuart Mill es psicologista en loacutegica pero no en semaacutentica Fries es psicologista en epistemologiacutea pero noen loacutegica Herbart por otra parte es antipsicologista con respecto a Beneke y Sigwart con respecto a Lipss pues con-sideran la loacutegica como ciencia normativa diferente de la psicologia Ambos sin embargo son psicologistas desde elpunto de vista de Frege pues aceptan el principio de inmanencia (PI) Entendereacute por PI la tesis cartesiano-lockeanade que el uacutenico objeto directo e inmediato de mi conocimiento son mis propias representaciones (Vorstellungen) oideas (ideas)

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ta forma entender mejor la inter-accioacuten entre las mismas y obteneruna comprensioacuten maacutes diferencia-da del compuesto

2 - Consideraciones previas

Aun cuando todo lo que habremosde decir colaboraraacute a fijar el pro-pio concepto de psicologismo estees un presupuesto de nuestro tra-bajo y por tanto es exigible queya en el comienzo establezcamosal menos una primera aproxima-cioacuten al mismo Conviene distin-guir entre concepto o definicioacuteny tesis Entenderemos por ldquopsi-cologismordquo la reduccioacuten de leyesyo entidades de cualquier tipoa leyes yo entidades psicoloacutegicas(definicioacuten) Por tanto el psicolo-gismo es un tipo peculiar de re-duccionismo A partir de Husserlse sobreentiende que tal reduccio-nismo conduce al relativismo (te-sis)

ldquoPsicologismordquo y ldquoPSrdquo son dosconceptos categorialmente dife-rentes el primero se refiere auna teoriacutea filosoacutefica el segundo aun proceso histoacuterico efectivo Paraque haya un PS es ciertamente unacondicioacuten necesaria que haya psi-cologismo pero la afirmacioacuten in-versa es obviamente falsa o seaque puede haber psicologismo sin

que haya PS Si por psicologismose entiende una teoriacutea reduccio-nista del tipo que hemos defini-do entonces no hay ninguna ra-zoacuten para limitar la aplicacioacuten deeste concepto al s XIX Posturastendencias o deslices psicologistasse dejan constatar desde los pri-mordios de la filosofiacutea en GreciaEl PS sin embargo es un procesoque se concentra entre los comien-zos de los siglos XIX y XX quetiene su auge entre los antildeos 1880y 1920 y que posee como epicen-tro el aacutembito linguumliacutestico germaacuteni-co aun cuando no se limita a eacutelextendieacutendose a Inglaterra Fran-cia e Italia Este proceso es absolu-tamente sui generis y no tiene nin-guacuten paralelo en la historia de la fi-losofiacutea anterior o posterior

Existen dos perspectivas baacutesi-cas posibles de abordaje del PSa saber la temaacutetico-sistemaacutetica yla histoacuterica2 El trabajo que siguese va a concentrar en la segun-da colocando principalmente elacento en cuestiones referentes alorden cronoloacutegico e interrelacio-nes factuales efectivas Sin embar-go es justamente sobre la base deeste estudio primariamente his-toacuterico que cuestiones temaacutetico-sistemaacuteticas recibiraacuten una impor-tante clarificacioacuten

Del punto de vista histoacuterico

2Debido a la distincioacuten categorial que hemos subrayado conviene no confundir el estudio puramente sistemaacuteticodel psicologismo con la perspectiva temaacutetico ndash sistemaacutetica en el estudio del PS

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

se debe establecer una distincioacutenfundamental entre los oriacutegenes yantecedentes del PS en el procesoque va del siglo XVII al XVIII yel desarrollo de la poleacutemica pro-piamente dicha en el siglo XIX ycomienzos del XX Con el primerpunto nos ocupamos en el capiacutetu-lo 3 con el segundo en el 4

3 - Oriacutegenes y antecedentes delPS

En los oriacutegenes del PS hay dosnombres se destacan a saber Des-cartes y Kant Si todos los cami-nos conducen a Roma y en el casodel PS conducen a Husserl todosellos asiacute mismo parten de Descar-tes y pasan por Kant aun cuandono obstante no parten y no pasande la misma forma

El PS hunde sus raiacuteces en lavirada moderna a la subjetividadcon Descartes y en la ulteriorlectura empirista de esta viradasiendo posible distinguir en ellacinco elementos que de una for-ma u otra juegan un rol decisi-vo el establecimiento del PI laapertura del way of ideas la loacutegi-ca de Port Royal el inicio de laoposicioacuten entre concepcioacuten intui-cionista y logicista de racionali-dad y la central contraposicioacuten deexperiencia interna y extern Es-tos cinco elementos experimentanun desarrollo ulterior a traveacutes deKant en quien adquieren la forma

especiacutefica de fenomenismo dis-tincioacuten loacutegica-epistemoloacutegica quidfacti ndash quid iuris intuicionismomatemaacutetico y colocacioacuten de las ba-ses del proceso de la constitucioacutende la psicologiacutea como ciencia au-toacutenoma Debido a este paralelis-mo efectuamos en nuestra exposi-cioacuten un corte temaacutetico transversaly partiendo en todos los casos deDescartes llegamos en todos loscasos a Kant

31 - PI ndash Inmanentismo - feno-menismo

La virada moderna a la subjeti-vidad estaacute iacutentimamente vincula-da al establecimiento del PI co-mo punto de partida o presupues-to de toda filosofiacutea En realidad eacuteles una de sus derivaciones o im-plicaciones maacutes fundamentales ypese a todas las diferencias entreempirismo y racionalismo comuacutena ambos Una consecuencia de laaceptacioacuten de este principio o talvez simplemente su contracara esun cierto tinte idealista que se ha-ce presente tanto en la variante ra-cionalista cuanto en la empirista

Si el PI es un elemento caracte-riacutestico del pensamiento modernocomo tal el convive desde Reid yla tradicioacuten escocesa con una ten-dencia minoritaria que mantienevivo el realismo directo y se oponea todo representacionalismo Estatendencia estaacute presente en el siglo

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XIX viacutea Hamilton en Stuart MillQue el PI se establezca como

principio dominante con la edadmoderna y permanezca en tal fun-cioacuten hasta fines del siglo XIX noimplica que estemos en presen-cia de una mera prolongacioacuten Enrealidad el PI adquiere en la fi-losofiacutea alemana del siglo XIX al-gunos acentos especiacuteficos que sondecisivos para luego entender supapel en el marco del PS Al me-nos cuatro inflexiones merecen sersubrayadas Con Kant el PI se ra-dicaliza en el sentido de un fe-nomenismo que se extiende delmundo externo al interno culmi-nando en la tesis de que el suje-to soacutelo se conoce a siacute mismo comofenoacutemeno y no como cosa en siacuteCon posterioridad a Kant Rein-hold situacutea expliacutecitamente el PIcomo fundamental en el horizon-te de la filosofiacutea alemana al hacerdel mismo la base uacuteltima de la fi-losofiacutea transcendental correspon-diendo a Schopenhauer con sudualidad del mundo como repre-sentacioacuten y como voluntad popu-larizarlo y a Muumlller con su teoriacuteade la energiacutea especifica de los oacuter-ganos sensoriales dar pie a que selo interprete fisioloacutegicamente y selo considera como cientiacuteficamentefundado

32 - Del way of ideas al ldquomeacutetodopsicoloacutegicordquo (MP)

321 - De la isla al continente

Con Locke se inicia no meramen-te al empirismo como una posi-cioacuten teoacuterico-epistemoloacutegica sinocomo una alternativa metoacutedicaal racionalismo La oposicioacuten ra-cionalismo ndash empirismo es vis-ta en Alemania no primariamen-te como una oposicioacuten epistemo-loacutegica sino metoacutedica siendo elpropio Kant pre-criacutetico un ejem-plo paradigmaacutetico de este movi-miento La contraposicioacuten meacutetodomatemaacutetico- meacutetodo empiacuterico omeacutetodo sinteacutetico ndash meacutetodo ana-liacutetico se constituye en una liacuteneadivisoria fundamental en la filo-sofiacutea alemana del siglo XVIII Se-raacute justamente Kant sin embargoquien llevando la discusioacuten delplano primariamente metoacutedico alpropiamente epistemoloacutegico es-tableceraacute claramente a traveacutes dela distincioacuten quid iuris - quid factila cuestioacuten ldquotranscendentalrdquo es-to es daraacute un paso decisivo pa-ra liberar el problema de la ob-jetividad de toda interpretacioacutenpsicoloacutegico-geneacutetico (KANT AkIII 99s)

322 - El MP en Alemania I elsurgimiento

No obstante lo anterior el esta-

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

blecimiento de la idea de una re-flexioacuten transcendental no pondraacuteun punto final a la cuestioacuten enAlemania Si no puede caber dudaqueacute el MP tiene sus oriacutegenes en lalectura empirista de la virada car-tesiana a la subjetividad tampocopuede ser dudado que eacutel adquiereun perfil especifico en la filosofiacuteaalemana del siglo XIX

Con Reinhold se inicia un movi-miento revisionista del kantismoque transforma la filosofiacutea criacuteti-ca en un racionalismo aprioriacutesti-co en el cual el criticismo devie-ne saber especulativo Como reac-cioacuten a este desenvolvimiento sur-ge con Fries otra tendencia que in-tenta rescatar el elemento criacuteticofrente al especulativo el empiris-ta frente al apriorismo radical laautonomiacutea de la ciencia y su ca-raacutecter de Faktum frente a la pre-tensioacuten de una filosofiacutea como sa-ber absoluto y en definitiva el da-to y la correlativa reflexioacuten frentea toda construccioacuten

La tendencia empirista de Friestiene su fundamento en la consi-deracioacuten de la triunfante Natur-wissenschaft y por tal razoacuten con-vive con una aceptacioacuten del ele-mento a priori (SM p 183) La ta-rea baacutesica de la filosofiacutea criacutetica esdar cuenta del mismo Mas au-teacutenticos principios no pueden enmodo alguno ser probados sinotan solo constatados Esta cons-tatacioacuten por su vez no puede

ser sino empiacuterica En consecuen-cia el meacutetodo de la filosofiacutea comocriacutetica del a priori no puede serni transcendental ni especulativosino ldquopsicoloacutegicordquo (RFS p 200ssNKV I p 28ss)

El MP friseano no consiste enuna simple constatacioacuten de esta-dos internos tendiente a estable-cer sus regularidades legales en eltiempo sino que posee un aborda-je estructural del psiquismo queofrece cierta similitud con la in-tuicioacuten eideacutetica husserliana Eacutel noprocede asimismo por induccioacuten(SM p 183 PS p 347) sinopor ldquoabstraccioacutenrdquo efectuando unldquoanaacutelisisrdquo del conocimiento dadoque explicita y pone en evidenciasus presupuestos (NKV sect 78 I p38s sect 97 p 314s SM sect22 p 99)Por reflexioacuten a partir de una leyparticular por ejemplo se ldquoabs-traerdquo el principio de causalidad

En el argumento que conducea la fundamentacioacuten de la filoso-fiacutea en la psicologiacutea juega un papelcentral la presuposicioacuten del PISobre este base Fries asume quesi todo conocimiento es una acti-vidad del espiacuteritu el estudio delconocimiento es un estudio de laexperiencia interna (SM p 104s)Mas iquestqueacute se debe entender aquiacutepor ldquoconocimientordquo iquestNo seriacutea po-sible y necesario distinguir entreel conocer como proceso psicoloacute-gico real (Erkennen) y el conoci-miento como su contenido loacutegico-

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objetivo (Erkenntnis) Hay pues enFries una ambiguumledad en el pun-to de partida que condiciona ulte-riormente una ambiguumledad en elproceso regresivo desarrollado apartir del mismo de modo tal quela consideracioacuten puramente fun-cional de elementos loacutegicos del co-nocimiento se hipostasia en unateoriacutea de las facultades (Vermouml-gen) La criacutetica del MP y la evolu-cioacuten posterior del mismo se efec-tuaraacute en la direccioacuten de estas dis-tinciones

Si tomamos como referencia aFries podemos establecer el papelde Beneke en la evolucioacuten del MPapuntando sus diferencias con eacutes-te

a Para Fries el MP es el meacuteto-do de la puesta al descubier-to del a priori para Benekepropiamente de su disolucioacutenBeneke es un empirista radi-cal que en uacuteltima instanciaintenta derivar lo a priori de laexperiencia En la base de estadiferencia se encuentra otramucho maacutes fundamental re-ferente la propia concepcioacutendel a priori en tanto Bene-ke tiende a identificar a priorie innato Fries lo combate deforma expliacutecita en este pun-to negando tal identificacioacuteny subrayando el caraacutecter pro-piamente loacutegico de la prece-dencia (GPh II p 514)

b Vinculado a lo anterior mien-tras que Beneke tiene una con-cepcioacuten esencialmente geneacuteti-ca de psicologiacutea consistien-do su programa en uacuteltimainstancia en derivar todo dela sensacioacuten Fries resiste ex-pliacutecitamente a tal tendencia(FRIES NKV I p 36-37 Be-neke LPsNW p 14ss)

c Del empirismo de Beneke ysu perspectiva geneacutetica se si-gue un reduccionismo radicalLa psicologiacutea no es en Bene-ke simplemente la base de lafilosofiacutea en el sentido de sucomienzo metoacutedico sino queella es la filosofiacutea (KPhAG p89 SL I p 35-42)

d Si desde Fries era esencial alMP su caraacutecter introspecti-vo lo que era en este obje-to de mencioacuten ocasional sevuelve tema central en Bene-ke (VPsPh p 116-130 SMp 201 SL II p 302) En es-ta radicalizacioacuten influye deci-sivamente la situacioacuten exter-na Beneke ya tiene frente a siacuteel raacutepido desenvolvimiento dela fisiologiacutea e incluso los pri-mordios de su consecuenciafundamental a saber el Mate-rialismusstreit Dado que pre-tende ser espiritualista Bene-ke resiste tenazmente a la di-solucioacuten de la psicologiacutea en fi-siologiacutea Esta resistencia daraacute

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lugar a la idea de una ldquopsi-cologiacutea purardquo esto es librede elementos fisioloacutegicos y ba-sada exclusiva y consecuente-mente en la percepcioacuten inter-na

e Beneke distingue claramenteentre Naturwissenschaft y psi-cologiacutea en lo que dice respectoa su objeto y modo de accesoconcentraacutendose para ello enla oposicioacuten experiencia ex-terna ndash experiencia internano obstante inequiacutevocamen-te orienta el proceder empiacuteri-co de la psicologiacutea a la Natur-wissenschaft La psicologiacutea co-mo la Naturwissenschaft aspi-ra al establecimiento de leyesy se sirve para ello de un pro-cedimiento ldquoinductivordquo Es-ta induccioacuten parece por mo-mentos poseer una cierta es-pecificidad aun cuando nun-ca queda totalmente claro enqueacute consiste positivamente eacutes-ta (LPsNW p 20)

323 - El MP en Alemania II Ladiversificacioacuten

De Fries se derivaraacute una escuelaque aun cuando con una signifi-cativa interrupcioacuten se mantienehasta las primeras deacutecadas del si-glo XX y que en su primera fa-se tiene como nombre de refe-rencia a Apelt en su segunda a

Nelson Esta escuela haraacute pocasy muy puntuales contribucionesa la doctrina original motivadaspor regla general por las diferen-cias de contexto cientiacutefico y filo-soacutefico Beneke por su parte auncuando no forma una escuela ensentido estricto encuentra eco enalgunas figuras significativas dela generacioacuten siguiente (UumlberwegFortlage) y ejerce una importanteaun cuando difusa influencia

Una novedad realmente signifi-cativa aparece en las deacutecadas del60 y del 70 cuando desde fuerade la tradicioacuten generada por Friesy Beneke se comienza a delinearel fenoacutemeno de una diversifica-cioacuten de tendencias dentro del MPfenoacutemeno que se prolonga en losantildeos 80 El primer motivo para es-ta diversificacioacuten seraacute proporcio-nado por el positivismo el cualincentiva el surgimiento de dosvariantes ldquoexternalistasrdquo del MP

a Si con Beneke comienza aexistir una tensioacuten entre elMP y la fisiologiacutea esta ten-sioacuten daraacute lugar a un desarro-llo particularmente importan-te con Helmholtz quien man-tiene los principios de la inter-pretacioacuten psicoloacutegica de Kantpor un lado pero por otropolemiza con el abordaje in-trospectivo abriendo el MP auna integracioacuten de los resulta-dos de la fisiologiacutea sin por ello

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incurrir en un reduccionismofisiologista (UumlSM p 34-3685 118 189) La aceptacioacutende procesos psiacutequicos incons-cientes seraacute elemento esencialpara el mantenimiento de esecompromiso

b La segunda tendencia que de-be ser aquiacute mencionada es laVoumllkerpsychologie de Lazaruse Steintahl quienes siguien-do la misma inspiracioacuten exter-nalista de Helmholtz se pro-ponen extender el herbartia-nismo al estudio de los fenoacute-menos de la cultura (EGV p1ss)

El surgimiento de tendencias ex-ternalistas en el MP no va a signi-ficar el desaparecimiento total desus variantes internalistas sinomuy por el contrario seraacute acom-pantildeada por una renovacioacuten de lasmismas Para ello juega un pa-pel decisivo la criacutetica del modelocientiacutefico natural Si el MP comen-zoacute con la intencioacuten de una psico-logiacutea empiacuterica primero modela-da en su idea de experiencia enla ciencia natural su desarrollotermina conduciendo a una revi-sioacuten del concepto de experienciay a la negacioacuten de la identifica-cioacuten de meacutetodo cientiacutefico y meacute-todo de la Naturwissenschaft Estarevisioacuten ya se anunciaba tiacutemida-mente en Fries pero sin fructificar

en la propuesta de una alternativadefinida Esta situacioacuten muda demodo radical con Dilthey (IBZP) yBrentano (DP) quienes defiendenla idea de que un procedimien-to auteacutenticamente empiacuterico debeser adecuado a su objeto y con-secuentemente exigen de la psi-cologiacutea un proceder descriptivo yestructural claramente delimita-do frente a perspectivas geneacuteticasy explicativo-causales

Como vimos el MP surgioacute vin-culado a una interpretacioacuten deKant y se mantiene de una for-ma u otra ligado al kantianismohasta la deacutecada del 70 cuando laaparicioacuten del neokantianismo seraacutedecisiva para disputarle al mismosu interpretacioacuten de Kant propo-niendo una interpretacioacuten alter-nativa A partir de ahora ser kan-tiano y ser defensor del MP ya noson mas sinoacutenimos

Pero el neokantianismo no me-ramente contribuye a desligar elMP de la interpretacioacuten de Kantsino de toda forma de idealismoconsolidando asiacute indirectamen-te una tendencia que ya se veniaanunciando desde Beneke peroque va a culminar en la escuelade Brentano Beneke es una figu-ra decisiva no solo para entenderel MP sino para entender el PS yesto porque al mismo tiempo eacuteles la forma maacutes radical de psico-logismo por un lado y por otroabre el camino para conciliar MP

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y realismo Como todos los defen-sores del MP Beneke presupone lavalidad irrestricta del PI efectuacuteasin embargo una importante pre-cisioacuten pues si bien mantiene el fe-nomenismo kantiano con respec-to al mundo externo afirma queen el auto-conocimiento el suje-to accede a una realidad en siacute Suargumento baacutesico que anticipa eldel archienemigo del psicologis-mo Frege reza no todo puede serVorstellung (SM p 69 NGM p 9)Lo anterior implica replantear laperspectiva eminentemente epis-temoloacutegica esencial al MP en suorigen friseana abriendo la posi-bilidad de una variante ontoloacutegicadel mismo El MP ya no es me-ramente un camino para una re-fundamentacioacuten de la teoriacutea delconocimiento sino tambieacuten de lametafiacutesica como saber del en-siacute

324 - PS y MP

Debemos distinguir entre Psicolo-gismo y MP entendiendo por elprimero como ya hemos hechouna tesis filosoacutefica por el segun-do por el contrario una posturapuramente metoacutedica en principioneutra con respecto a cualquiertesis o teoriacutea filosoacutefica especiacuteficaLa distincioacuten entre psicologismo yMP permite colocar expliacutecitamen-te una cuestioacuten discutida intensa-mente en el siglo XIX referente a

si el MP conduciacutea necesariamenteo no al psicologismo Un aspectobien definido pero poco estudiadodel Psychologismusstreit giroacute no entorno a una discusioacuten entre psico-logistas y anti-psicologistas sinoentre anti-psicologistas y defenso-res del MP

En tanto que los auto-proclamados anti-psicologistastendieron a suponer sin maacutes laidentidad de psicologismo y MPalgunas variantes del MP re-sistieron tal identificacioacuten y seconsideraron a siacute mismas anti-psicologistas como es el caso dela tendencia realista-metafiacutesicaplasmada en la escuela de Bren-tano Mas si las variantes rea-listas del MP tendieron al anti-psicologismo las variantes idea-listas tendieron al psicologismoEsta diferencia se va a profundi-zar con el surgimiento de la logis-che Frage

33 - La evolucioacuten de la loacutegica dePort Royal a la logische Frage

Sabidamente la filosofiacutea modernase inicia con la criacutetica del meacuteto-do escolaacutestico y el proceder silo-giacutestico y la correlativa exigenciade una reorientacioacuten metodoloacutegi-ca de la ciencia Por tal razoacuten auncuando de su pluma nunca sur-gioacute un texto que tratase de loacutegi-ca ni una contribucioacuten significa-tiva en este campo Descartes es

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una figura decisiva en la historiade esta disciplina por interrumpirel desenvolvimiento continuo quese veniacutea efectuando a partir de laloacutegica aristoteacutelica y establecer lasbases de un nuevo rumbo

Un producto fundamental deeste movimiento para el desarro-llo posterior fue la loacutegica de PortRoyal3 la cual presenta tres ele-mentos que merecen especial des-taque en el actual contexto a sa-ber la idea de que la loacutegica esesencialmente una teacutecnica que sepropone orientar procesos menta-les y que por tanto tiene estos co-mo objeto idea esta que se concre-tiza en dos formas caracteriacutesticaspor un lado en una cierta con-cepcioacuten semaacutentica de lo que seala significacioacuten de teacuterminos y porotro en la identificacioacuten de leyesloacutegicas y leyes del pensamiento

La tradicioacuten iniciada por la loacute-gica de Port Royal termina por serpredominante en el siglo XVIIIdesplazando la aristoteacutelica Ellasin embargo va a tener su deci-siva interrupcioacuten en Kant quiensiguiendo el camino iniciado porLeibniz critica expresamente latendencia moderna en la loacutegicaconsiderando en una famosa pa-saje que sus contribuciones y en-riquecimientos simplemente des-

conocen el verdadero objeto de ladisciplina de forma tal que maacutesla desfiguran que la enriquecen ysobre esa base vuelve a la idea deuna loacutegica general (Ak III p 8)

De la virada kantiana se nutredirectamente el resurgimiento dela loacutegica formal promovido porHerbart en el comienzo del sigloXIX el cual sin embargo pron-tamente tiene que enfrente ar unnuevo enemigo la loacutegica metafiacutesi-ca hegeliana

Logische Frage en sentido estric-to denomina la poleacutemica desatadapor Trendelenburg contra Herbarty Hegel esto es tanto contra ladeterminacioacuten de la loacutegica comodisciplina formal como contra suinterpretacioacuten metafiacutesica en basea la tesis de la identidad de ser ypensar Ahora bien la discusioacutende Trendelenburg con Herbart yHegel es el horizonte de referenciade todo lo que se escribe en la loacute-gica alemana de los antildeos posterio-res y en particular en las deacutecadasdel 80 y 90 Las loacutegicas de este pe-riacuteodo parten de un similar statusquestionis procurando distanciar-se simultaacuteneamente del formalis-mo herbartiano y del metafisicisi-mo hegeliano (Sigwart ErdmannWundt y Lipps) Es como reaccioacutena la identificacioacuten hegeliana de loacute-

3Vamos a contar una historia abreviada y en buena medida esquemaacutetica siendo que muchas de nuestras afirma-ciones no soportariacutean un anaacutelisis histoacuterico maacutes rigoroso Si la loacutegica de Port Royal inicia una tradicioacuten no siempreesta tradicioacuten se nutre directamente de ella Un papel fundamental juega en Alemania la loacutegica hamburguesa deJungius que es el modelo directo de muchos manuales de loacutegica del siglo XVIII (BOSCHENSKI 1976 p 270)

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gica y metafiacutesica que se desata enAlemania una marcada tendenciainmanentista que potenciando elrol central del PI mucho maacutes allaacutedel seguimiento o no del progra-ma especiacutefico del MP lleva a unarestriccioacuten de la loacutegica al aacutembitodel pensar (Denken) y que si en unprimero momento con Lotze selimita a negar el caraacutecter objetivo-real de categoriacuteas loacutegicas funda-mentales afirmado por Hegel (co-mo concepto o silogismo) termi-na motivando la insistencia en elcaraacutecter de las leyes loacutegicas comoldquoleyes del pensamientordquo (Denkge-setze) Es este acento en la limi-tacioacuten de la loacutegica al Denken loque provocaraacute no solo una ciertatendencia laxa al idealismo querevierte en buena medida el movi-miento iniciado por Beneke sinoal relativismo

Psicologismusstreit y logischeFrage no pueden ser identificadosmas estaacuten en estrechiacutesima rela-cioacuten pues justamente las deriva-ciones de la logische Frage jugaronun papel esencial para incentivaruna nueva oleada de psicologis-mo El psicologismo de los loacutegicosen los 80rsquo y 90rsquo con su relativismoantropoloacutegico caracteriacutestico no esprimariamente el resultado de latradicioacuten de Port Royal o del desa-rrollo del MP sino del cruzamien-

to de este uacuteltimo desenvolvimien-to primariamente en sus varian-tes idealistas con aquel desenca-denado por la logische Frage

34 - Intuicioacuten

Con Leibniz se inicia en el racio-nalismo un proceso de diversifi-cacioacuten en dos corrientes con dosconcepciones eminentemente di-ferentes de racionalidad que po-driacuteamos llamar de ldquointuicionistardquoy ldquologicistardquo4 o de una concep-cioacuten en la cual racionalidad estaacuteiacutentimamente vinculada a la ideade evidencia y otra en que la ra-cionalidad estaacute vinculada a prin-cipios objetivos (identidad y no-contradiccioacuten) Estas dos concep-ciones de racionalidad se proyec-tan en dos modos de concebir lainferencia como remitiendo en uncaso a una sucesioacuten de intuicionesdiscontinuas en el otro a la ideade algoritmo

La oposicioacuten entre una concep-cioacuten intuicionista o logicista deracionalidad estaacute estrechamentevinculada a una diferente concep-cioacuten de la relacioacuten entre racionali-dad y subjetividad En la concep-cioacuten intuicionista el sujeto epis-temoloacutegico a traveacutes de la idea deevidencia es indisociable de la ra-cionalidad en tanto en la otra se-

4Nos servimos de una oposicioacuten terminoloacutegica ya consagrada en el aacutembito de la filosofiacutea de las matemaacuteticas yle damos un sentido maacutes general

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parable tendieacutendose de una for-ma u otra a variantes de platonis-mo

Con Kant esta oposicioacuten entredos concepciones de racionalidadpasa a replantearse sobre la for-ma de una oposicioacuten entre pensa-miento y sensibilidad Si Kant cla-ramente toma partido por la con-cepcioacuten leibniziana de racionali-dad identificada con la analitici-dad la idea de intuicioacuten no pierdesu importancia sino que se trasla-da del plano intelectual al sensi-ble

Las diferentes concepciones deintuicioacuten y de la relacioacuten de intui-cioacuten y racionalidad en DescartesLeibniz y Kant estaacuten iacutentimamentevinculadas a diferentes concepcio-nes de matemaacutetica Estas diferen-cias desenvuelven todo su poten-cial en el s XIX con la artimetiza-cioacuten del caacutelculo y posteriormen-te con el surgimiento de las geo-metriacuteas no-euclideanas y sus deri-vaciones Si en Newton la funda-mentacioacuten uacuteltima del caacutelculo re-mitiacutea a la intuicioacuten temporal yKant dada su admiracioacuten incon-dicional por Newton aceptaba talidea sin cuestionamiento en el si-glo XIX se procesa un movimientode logizacioacuten de las matemaacuteticasque volviendo a Leibniz terminaeliminando cualquier idea de in-tuicioacuten de su fundamentacioacuten

La tendencia logicista que enuacuteltima instancia sobre diferentes

formas se inclina a la postulacioacutende objetos abstractos va a ser unfuerte factor para el surgimientode un platonismo con contornospeculiares en el siglo XIX El pla-tonismo del siglo XIX en la loacutegi-ca estaacute indisociablemente vincula-do al logicismo en las matemaacuteti-cas desde Bolzano a Frege y Hus-serl Junto con la eliminacioacuten dela intuicioacuten el logicismo eliminala necesidad de una consideracioacutenesencial de la subjetividad en lafundamentacioacuten de las matemaacuteti-cas y tiende a asumir una direc-cioacuten objetivista que lo termina co-locando en estrecha relacioacuten conel platonismo

35 - Psicologiacutea despueacutes de Kantde la psicologiacutea como cienciafundamental de la filosofiacutea a lapsicologiacutea como ciencia autoacuteno-ma

Si el siglo XIX es el siglo de laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia esta constitucioacuten se da-raacute en el transfondo de presupues-tos establecidos en los siglos XVII-XVIII a saber

a La virada cartesiana a la sub-jetividad en la filosofiacutea moder-na la lectura empirista de es-ta virada por Locke y la ideade una ciencia de la naturale-za humana correlata de la Na-turwissenschaft por Hume

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b La constitucioacuten de la ciencianatural como ciencia empiacutericaindependiente de la filosofiacutea

c La clasificacioacuten de las cienciasde Wolff con su distincioacuten en-tre psicologiacutea racional comoparte de la metafiacutesica especialy psicologiacutea empiacuterica5

d La negacioacuten de la posibilidadde la metafiacutesica como cienciapor parte de Kant y por tantode la psicologiacutea racional

e y su negacioacuten de que la psico-logiacutea empiacuterica pueda consti-tuirse como una ciencia equi-valente a la ciencia natural(Leary 1978 y 1982)

Como en la filosofiacutea de las ma-temaacuteticas el status questionis esta-blecido por Kant en la ldquoCriacutetica dela razoacuten purardquo es el punto de par-tida de la poleacutemica en torno a lapsicologiacutea o Psychologiestreit estoes de la discusioacuten que lleva a laconstitucioacuten de la psicologiacutea comociencia autoacutenoma en el siglo XIX

Aun cuando PS y Psychologies-treit son procesos que se encuen-tran interligados y presentan nu-merosas interacciones ellos nopueden ser sin maacutes identificados

Ciertamente la constitucioacuten de lapsicologiacutea como ciencia autoacutenomaes un factor importante para ex-plicar tanto la prioridad cuanto laintensidad que asume el PS en el sXIX Sin embargo el no es el uacuteni-co factor pues como ya hemos in-sinuado la logische Frage y el de-senvolvimiento de las matemaacuteti-cas no son menos decisivos

No menos importante que dis-tinguir PS y Psychologiestreit es eldistinguir entre dos sentidos de laexpresioacuten MP La expresioacuten ldquoMPrdquotiende a ser usada desde fines delsiglo XIX y comienzos del XX enel sentido de ldquomeacutetodo de la psi-cologiacuteardquo o sea para referirse a lacuestioacuten de cual deba ser el modode proceder de una cierta discipli-na para constituirse como cienciaautoacutenoma En mediados del sigloXIX sin embargo dicha expresioacutentiene un otro sentido usual refe-rente a cuaacutel deba ser el meacutetodode la filosofiacutea cuestioacuten eacutesta gene-ralmente colocada en el horizontede una caracterizacioacuten de la filo-sofiacutea como ciencia que asegure suderecho a existencia en la llama-da ldquocrisis de identidadrdquo6 La ideabaacutesica es queacute si toda ciencia de-be fundarse en la experiencia y la

5Investigacioacuten psicoloacutegica ciertamente existioacute antes de Descartes pero no es arbitrario establecer un intereacutes es-pecifico en la subjetividad a partir de eacutel Investigacioacuten psicoloacutegica por su vez existioacute obviamente antes de Wolffpero es el sistema de clasificacioacuten de las ciencias de Wolff lo que va a dar a la psicologiacutea su lugar caracteriacutesticocomo disciplina a partir del cual debe ser entendido el proceso de su constitucioacuten como ciencia autoacutenoma

6Claro que los proponentes del MP teniacutean tambieacuten propuestas con respecto a cuaacutel debiacutea ser el meacutetodo de lapsicologiacutea pero la inversa no vale muchos actores decisivos en el debate en torno al meacutetodo de la psicologiacutea notuvieron intereacutes en la cuestioacuten del MP

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Naturwissenschaft trata de la expe-riencia externa corresponde a lafilosofiacutea fundarse en la experien-cia interna En este sentido la ex-presioacuten ldquoMPrdquo fue originariamen-te el opuesto primero del meacuteto-do especulativo propio del idea-lismo alemaacuten despueacutes del meacuteto-do transcendental neokantiano yfinalmente del meacutetodo fenome-noloacutegico Mas si como vimos laidea del MP constituye en la fi-losofiacutea alemana como alternativade perfil especifico a partir de laobra de Fries y Beneke la expre-sioacuten ldquoMPrdquo sin embargo fue solointroducida deacutecadas despueacutes porBona Meyer (KPs p 122) y po-pularizada por sus oponentes neo-kantianos

4 - El desarrollo del PS

Si damos una mirada retrospecti-va al conjunto de lo expuesto ylo unificamos tenemos que decirque si Descartes puede ser consi-derado el inicio remoto del psi-cologismo Kant puede ser consi-derado el inicio proacuteximo del mo-vimiento anti-psicologista y estotanto en el plano de la epistemo-logiacutea cuanto en el plano de la loacute-gica pues en ambos establece ladistincioacuten fundamental quid fac-

ti - quid iuris y procura mante-ner separadas cuestiones de geacutene-sis y de validez (Geltung) (Ak IIIp 8 99s) Ahora bien en tantoque el anti-psicologismo kantianoen la loacutegica va a ser decisiva pa-ra el platonismo del siglo XIX elanti-psicologismo kantiano en laepistemologiacutea va a ser decisivo pa-ra el neokantianismo7

Con lo dicho llamamos la aten-cioacuten sobre un aspecto medular delPS que tiende a ser pasado poralto a saber que se pueden ydeben diferenciar claramente dosvertientes en el mismo que provie-nen de una diversa raiacutez histoacutericaque en uacuteltima instancia remite aKant en dos formas caracteriacutestica-mente diferentes tienen un relati-vo grado de autonomiacutea en su desa-rrollo histoacuterico efectivo y se dis-tinguen claramente por el acentotemaacutetico-sistemaacutetico que asume elanti-psicologismo en cada una deellas

Mas si bien no cabe duda deque Kant estaacute en el origen de lasdos formas principales del anti-psicologismo del siglo XIX so-lo pasamos del anti-psicologismokantiano al anti-psicologismo ca-racteriacutestico del siglo XIX a tra-veacutes de mediaciones que por suvez son diferentes seguacuten se tra-

7Si en estos dos planos Kant contribuye decisivamente al anti-psicologismo existe un tercero a saber aquel re-ferente a la intuicioacuten en el cual Kant estaacute en el inicio de una variante psicologista que tiene su base en la discusioacutensobre la teoriacutea del espacio (Helmholtz)

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ta del tipo de anti-psicologismokantiano y del tipo de anti-psicologismo del s XIX que coneste se relaciona En tanto que delanti-psicologismo kantiano en laloacutegica se deriva el platonismo pre-sente en el PS esto no acontecesino a traveacutes de la logische Fragede la logizicacioacuten del caacutelculo y enuacuteltima instancia de la confluen-cia conflictiva de ambos procesosPor su vez en tanto que del anti-psicologismo kantiano en la epis-temologiacutea se deriva el neokantia-nismo esto no acontece sino a tra-veacutes del MP y en buena medidadel surgimiento de ciertas varian-tes especiacuteficas del mismo como lapsicologiacutea fisioloacutegiacuteca y Voumllkerpsy-chologie Veamos ahora estos pro-cesos en mayor detalle

41 - La vertiente platoacutenica delantipsicologismo

Uno de los primeros capiacutetulosdel PS o tal vez el primer ca-piacutetulo es el producto de la reto-mada de la idea kantiana de unaloacutegica general libre de elementospsicoloacutegicos a traveacutes de Herbartpor un lado y por Bolzano deotro8 Pero este anti-psicologismono puede ser entendido sin mas

como una mera continuacioacuten delkantiano pues hay en eacutel elemen-tos nuevos que lo van a distinguirclaramente del kantiano a sabersu vies platoacutenico Mas aun cuan-do tanto Herbart como Bolzanoson en cierto sentido ldquoplatoacutenicosrdquoel tipo de platonismo es diferen-te no menos que en definitiva supropia concepcioacuten de loacutegica

Si Herbart distingue claramen-te loacutegica y psicologiacutea lo hace co-mo una distincioacuten de dos pun-tos de vista sobre la misma reali-dad en uacuteltima instancia psicoloacute-gica no como una distincioacuten en-tre dos esferas de objetos realesy abstractos (PsW sect 120 p 160-161)9 Justamente por lo anteriorsi Herbart afirma aparentementela identidad del elemento idealen la multiplicidad de sus reali-zaciones subjetivas ese elementoideal es concebido como limes deaproximacioacuten de procesos psiacutequi-cos reales no como objetos en-siexistentes

Bolzano entre tanto es el pri-mero que introduce claramente laidea de que la loacutegica es el es-tudio de objetos abstractos10 Sudiferencia esencial con Kant pe-ro tambieacuten con Herbart es queel portador de verdad deja de ser

8Con Herbart se da un paso decisivo a la constitucioacuten del PS como poleacutemica (Streit) a traveacutes de su discusioacuten conBeneke y posteriormente de eacuteste con Drobisch

9Vinculada a esto estaacute su idea de la normatividad esencial de la loacutegica10Con esto ya en el propio inicio del PS el concepto de psicologismo muda fenoacutemeno eacuteste que auacuten habraacute de

repetirse varias veces Veacutease nota 1

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el juicio y pasa a ser la proposi-cioacuten motivo por el cual eacutesta y noaquel se constituyen en el objetode la loacutegica (WL sect 24 25) Masauacuten con esta mudanza el plato-nismo va a introducir una dimen-sioacuten propiamente semaacutentica en elanti-psicologismo que no estabapresente en ninguna forma ni enKant ni en Herbart maacutes que se-raacute esencial para el desarrollo pos-terior el mismo A partir de aho-ra el anti-psicologismo loacutegico yel semaacutentico se desenvuelven enestrecha unioacuten El platonismo deBolzano a diferencia del de Her-bart estaacute esencialmente vincula-do al programa logicista derivadode la nueva situacioacuten de las ma-temaacuteticas y la aritmetizacioacuten delcaacutelculo

Este platonismo exigido por laconsolidacioacuten de una tendencialogicista derivada de la evolucioacutende las propias matemaacuteticas sinembargo entra en rota de coli-sioacuten con el inmanentismo anti-metafiacutesico derivado de la logischeFrage y sus apelos francamente re-lativistas Si el primer elementoera decisivo en el platonismo deBolzano el segundo lo seraacute en elde Frege y posteriormente en elde Husserl Seraacute primariamenteeste relativismo psicologista deri-vado de la logische Frage lo que da-raacute al PS su forma canoacutenica defi-nitiva o al menos mas conocidaEl psicologismo en la loacutegica que

Frege y Husserl critican no tienesu uacutenica y ni siquiera su maacutes im-portante fuente en la tradicioacuten dePort Royal o del MP sino en lasderivaciones de la logische Frage

Mirado retrospectivamente enel proceso del PS con respectoa la loacutegica se dejan diferenciarclaramente tres momentos a sa-ber la reaccioacuten kantiana a la loacutegi-ca moderna y su prolongacioacuten enHerbart el platonismo bolzanianoreflejo del logicismo matemaacuteti-co y el platonismo fregueano-husserliano reflejo de una reac-cioacuten ulterior al relativismo antro-poloacutegico derivado de la logischeFrage

42 - La vertiente neokantianadel antipsicologismo

Si en Kant el problema episte-moloacutegico se anuncia en su especi-ficidad es con el neokantianismoque esta idea es desenvuelta entodas sus consecuencias de modotal que el criticismo deviene ldquomeacute-todo transcendentalrdquo (COHENKTE1 p 124-127 KTE2 p 296-299 373-379 601-602 WINDEL-BAND KGM p 318ss WPh p58-59 RIEHL UumlBFph p 31 65PhK I V p 8) Este hecho mar-ca decisivamente la peculiaridaddel anti-psicologismo caracteriacutesti-co del neokantianismo La grandiferencia entre la vertiente pla-toacutenica y la neokantiana del anti-

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-psicologismo es que si la prime-ra se concentra en la loacutegica y porderivacioacuten esencial en la semaacutenti-ca (aun cuando segundo los casosno desconoce totalmente la episte-mologiacutea) la segunda se concentraen la epistemologiacutea y desconside-ra o ignora la dimensioacuten propia-mente loacutegica yo la semaacutentica

Existe una extendida concep-cioacuten de que el PS es un fenoacutemenoque gira primariamente en torno ala loacutegica Esto es falso y deja fue-ra de consideracioacuten un capiacutetulofundamental del mismo protago-nizado por el neokantianismo To-das las diferencias decisivas entrela vertiente neokantiana y la pla-toacutenica del anti-psicologismo des-aparecen si decimos sumariamen-te que el psicologismo consistioacute enuna psicologizacioacuten de la loacutegica ypasamos por alto el hecho decisivode que

a en un caso la loacutegica es loacutegi-ca general o formal en el otrotranscendental y

b que la loacutegica transcendentalneokantiana es sinoacutenimo deepistemologiacutea

Para entender lo que realmentesignifica lo anterior tenemos quetener en cuenta cuatro puntos

a Para el neokantianismo elconcepto de ldquoloacutegicardquo se defi-ne en el horizonte de la oposi-cioacuten primariamente epistemo-

loacutegica entre el pensar y la in-tuicioacuten sensible

b La intuicioacuten sensible inclusoen sus formas puras espacioy tiempo no es para el neo-kantianismo una fuente au-tosuficiente de conocimientono pudiendo ser consideradade forma desligada del pen-sar Por tal razoacuten para un neo-kantiano la epistemologiacutea noconsiste en dos capiacutetulos auto-suficientes una esteacutetica y unaloacutegica transcendental

c Pero si la intuicioacuten no puedeser desligada del pensar estepensar por su vez no puedeser desligado de su funcioacuten deestar al servicio de la objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos esto esdel conocimiento y por tan-to la propia idea de una con-sideracioacuten del pensar en siacute ode una loacutegica formal separadade la loacutegica transcendental nohace sentido

d Dicho de otra forma en elneokantianismo la loacutegica ge-neral y la esteacutetica transcen-dental pierden su autonomiacuteay pasan a estar subordinadasyo esencialmente vinculadasa la loacutegica transcendental lacual por tal razoacuten terminasiendo identificada con epis-temologiacutea

Ahora el hecho de que el anti-psicologismo kantiano no sea un

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anti-psicologismo loacutegico- formalsino esencialmente epistemoloacutegi-co estaacute vinculado a tres elementosde extrema importancia para efec-tuar un estudio diferenciado el PSa saber

a El psicologismo que el neo-kantianismo combate en pri-mera instancia no es aquel de-rivado de la logische Frage co-mo sucediacutea con el platonismodel siglo XIX sino aquel vin-culado al MP y sus derivacio-nes

b El antipsicologismo neokan-tiano y por dirigirse a la epis-temologiacutea y no a la loacutegica ge-neral es un anti-psicologismoque tiene esencialmente porobjeto las formas puras deintuicioacuten espacio y tiempopues fueron estas las que ju-garon un rol decisivo para psi-cologizar a Kant a partir deMuumlller y a traveacutes de los des-cubrimientos fisioloacutegicos has-ta Helmholtz11

c Si el anti-psicologismo neo-kantiano se opone caracteriacutes-ticamente al psicologismo delas formas pura de la intui-cioacuten no se limita a ellas sinoque se extiende al DenkenLo haraacute sin embargo uacutenica-mente en cuanto el Denken es

un instrumento de objetiva-cioacuten de los fenoacutemenos Justa-mente por ello lo que estaacute enel centro de la atencioacuten no esel principio de identidad y nocontradiccioacuten sino de causali-dad

43 - Relaciones entre anti-psicologismo platoacutenico y neo-kantiano

Tan importante como es el distin-guir claramente las dos vertientesprincipales del anti-psicologismoy los tipos de psicologismo queellas respectivamente combatenlo es el estudiar la relacioacuten entrelas mismas Las diferentes concep-ciones de loacutegica de neokantianis-mo y realismo loacutegico estaacuten en uacutelti-ma instancia vinculadas a diferen-tes concepciones de la teoriacutea del apriori y de las matemaacuteticas

a Para el neokantianismo exis-te conocimiento a priori sien-do uno de los objetivos princi-pales del movimiento el fun-damentar el mismo frente alos ataques empiristas y po-sitivistas El conocimiento apriori de los neokantianosno obstante no es como enel platonismo conocimientode objetos abstractos o supra-empiacutericos sino conocimiento

11Frege por el contrario nunca estuvo preocupado con el problema del psicologismo en el espacio

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de las condiciones de la po-sibilidad de la experiencia ypor tanto jamaacutes se desliga deella para adquirir la formade una logische Erkenntnisque-lle autoacutenoma como en Frege

b La diferente concepcioacuten del apriori entre el platonismo y elneokantianismo se expresa enforma paradigmaacutetica en susdiversas concepciones del sa-ber matemaacutetico Dicho de for-ma maacutes general pero tambieacutenmaacutes precisa el neokantianis-mo tiene un punto de coinci-dencia y un punto de diferen-cia esencial con el realismo loacute-gico La coincidencia radica enque en tanto ambos son re-ceptivos de la evolucioacuten de lasmatemaacuteticas ambos son ldquolo-gicistasrsquo esto es niegan cual-quier papel de las intuicionespuras de espacio y tiempo enla fundamentacioacuten de las ma-temaacuteticas y pretenden fundarlas mismas en el pensar (Den-ken)12 Solo que en un casose trata de un formales Den-ken en el otro de un trans-zendentales Denken Esto moti-va una diferencia esencial enla concepcioacuten de las matemaacute-ticas que se expresa en el jar-goacuten neokantiano en la oposi-cioacuten entre ldquoteoriacuteardquo y ldquomeacuteto-

dordquo En tanto para los realistasloacutegicos la matemaacutetica es unateoriacutea que trata de una esferaespecifica de objetos los abs-tractos para los neokantianola matemaacutetica es meacutetodo osea un conjunto de procedi-mientos yo instrumentos deobjetivacioacuten de los fenoacutemenosy en consecuencia en uacuteltimainstancia siempre referidos ynunca separable de los obje-tos empiacutericos (Cohen PIM)La consecuencia de lo ante-rior es que para los neokan-tianos el problema de la apli-cacioacuten de las matemaacuteticas a lafiacutesica eventualmente sobre laforma de un pasaje de enun-ciados analiacuteticos a sinteacuteticoses simplemente un problemamal planteado

Si hasta ahora hemos trabajadocon una oposicioacuten entre neokan-tianismo y platonismo convieneobservar que esta oposicioacuten no estotalmente exacta y seria mas jus-to decir que la diferencia aquiacute pre-sente es una diferencia entre dostipos de platonismo vinculadosa dos tomas de posiciones esen-cialmente diversas en la cuestioacutendel chorismo y que tienen su ex-presioacuten paradigmaacutetica en las dosgrandes interpretaciones de Pla-toacuten del siglo XIX propuestas por

12Es importante no perder de vista que los neokantianos nunca fueron sin maacutes kantianos sino que mantuvieronimportantes diferencias con Kant vinculadas siempre a su atencioacuten al Faktum de la ciencia

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Natorp y por Lotze En tanto queLotze desontologiza Platoacuten Na-torp va maacutes allaacute y lo transzenden-taliza para legitimar su peculiarlectura platonizada de Kant

En su comentario a los ldquoPro-legoacutemenosrdquo husserlianos Natorpno dejaba de manifestar una cier-ta extrantildeeza frente al impacto deestos y no sin toda razoacuten afirma-ba que el neokantianismo nada te-nia a aprender der Husserl (Na-torp FLM p 271) Esta observa-cioacuten natorpiana obliga a la pre-gunta del porqueacute del fulminanteimpacto del primer volumen delas ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo Novamos a agotar esta cuestioacuten aquiacutepero es importante establecer al-gunas observaciones al respectoDesde el punto de vista estric-tamente histoacuterico-cronoloacutegico lasprimeras etapas del PS se concen-tran en la loacutegica y estaacuten vincu-ladas al anti-psicologismo platoacute-nico Posteriormente la vertienteplatoacutenica recibe un nuevo impul-so con Frege para alcanzar toda sumadurez con Husserl Entre am-bos momentos sin embargo acon-tece un fenoacutemeno peculiar que esla verdadera explosioacuten que se ope-ra en el PS a partir de la deacutecadadel 70 Este fenoacutemeno estaacute esen-cialmente vinculada al neokantia-nismo y seria incomprensible sineacuteste En efecto un factor decisi-vo para que el PS ocupe duran-te tanto tiempo el primer lugar en

la agenda de la discusioacuten filosoacutefi-ca fue el hecho que la criacutetica delpsicologismo era esencial para eltriunfo del meacutetodo transcenden-tal frente al psicoloacutegico por un la-do por otro que este triunfo diceya no respecto a un problema fi-losoacutefico particular (por ejemplo ala cuestioacuten referente a una filoso-fiacutea de las matemaacuteticas) sino res-pecto del propio destino de la filo-sofiacutea y su especificidad como dis-ciplina Mas a la fase programaacute-tica sigue en el neokantianismouna fase institucional que termi-na resultando en el casi absolutodominio de la universidad alema-na Cuando se estudia el problemadel PS no hay que olvidar nun-ca que si del punto de vista desus consecuencias y proyeccionesen el siglo XX Frege y Husserl sonfiguras decisivas y mucho maacutes im-portantes que el Neokantianismodesde el punto de vista del sigloXIX el neokantianismo tiene unatotal preeminencia de forma talque solo a traveacutes de eacutel el PS pu-do tomar la dimensioacuten que efecti-vamente tomoacute El impacto de lasldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo husser-lianas se construye sobre una his-toria que ya comenzoacute a ser escri-ta por el neokantianismo y su no-vedad no consistioacute en plantear eltema sino en focalizarlo directa-mente a la luz de los resultados dela logische Frage en el relativismo

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y no ya en el MP13

5 - Maacutes allaacute de las variantes neo-kantiana y platoacutenica

Con la distincioacuten entre dos varian-tes fundamentales en el antipsi-cologismo presente en el PS nohemos agotado en forma algunalas distinciones decisivas que de-ben ser hechas sino dado simple-mente un primer esquema orde-nador Sobre su base es posibleintroducir otras distinciones quesuponen la anterior maacutes al mismotiempo la refinan y completan

51 - Antipsicologismo semaacutenti-co y problema del sentido Lasdiferentes formas del problemade la objetividad en el s XIX

Ya hemos observado que no huboen el neokantianismo un intereacutesparticular en el combate al psico-logismo semaacutentico Esto no es pro-ducto de un cierto descuido sinouna derivacioacuten sistemaacuteticamentenecesaria a partir del modo en quese construye el problema de la ob-jetividad en dicho movimiento Apartir de Frege es usual distinguirentre el sentido y el valor de ver-dad de un enunciado y junto con

esta distincioacuten el distinguir ulte-riormente entre el problema de lafundamentacioacuten de la objetividaddel valor de verdad y el problemade la fundamentacioacuten de la objeti-vidad del sentido El pensamientoalemaacuten pre-fregueano sin embar-go estaacute dominado por el conceptode validez (Geltung) el cual se re-fiere primariamente a la cuestioacutende la objetividad epistemoloacutegica(resumido a su maacutes simple expre-sioacuten en el neokantianismo en elconcepto de ldquoleyrdquo) y solo de modoindirecto secundario e inespeciacutefi-co a la cuestioacuten de la objetividaddel sentido

Esta situacioacuten comienza a expe-rimentar una mudanza significati-va a partir de los antildeos 90rsquo En efec-to el desarrollo de las Geisteswis-senschaften (GW) pone en eviden-cia que la cuestioacuten del sentido lin-guumliacutestico es meramente un aspectode la cuestioacuten mucho mas generaldel sentido en la enorme diversi-dad de las manifestaciones cultu-rales De tal forma el problemacolocado primeramente en la loacute-gica a traveacutes de la distincioacuten en-tre el juicio el enunciado y la pro-posicioacuten experimente una decisi-va ampliacioacuten Con esta surge unnuevo capiacutetulo del PS que tiene aDilthey y a la escuela de Baden co-

13Obseacutervese la diferencia de perspectiva de Natorp Objektive und subjektive Methode y los Prolegoacutemenos de Hus-serl Lo que estaacute en el centro de la atencioacuten de Natorp es mostrar la primaciacutea del meacutetodo transcendental y enconsecuencia del proceder objetivo sobre el subjetivo En Husserl lo que estaacute en el centro de atencioacuten son por unlado los presupuestos por otro las consecuencias del psicologismo como posicioacuten filosoacutefica

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mo principales protagonistas Loanterior no significa decir sin em-bargo que con esta poleacutemica yase establezca en el neokantianis-mo la criacutetica del psicologismo se-maacutentico como central sino uacuteni-camente que se abre un caminoque en figuras como Rickert ter-mina culminando en una crecien-te atencioacuten a la cuestioacuten de la ob-jetividad del sentido En los antildeosnoventa la resistencia neokantia-na al psicologismo del MP en lasGW diltheano asume auacuten caracte-res maacutes ldquoclaacutesicosrdquo tomando comohorizonte una ampliacioacuten del con-cepto de validez (Geltung) que lle-va a introducir como central la no-cioacuten de valor (Wert)

Pero si por un lado convie-ne percibir la especificidad de unproblema del psicologismo con-centrado en las GW por otro con-viene tambieacuten no perder de vis-ta los viacutenculos esenciales que estepsicologismo posee con aquel quese plantea en la loacutegica El recono-cimiento de la especificidad de lasGeisteswissenschaften es un proce-so que estaacute iacutentimamente vincula-do a la discusioacuten en torno a losfundamentos de la loacutegica tanto enun caso como en otro el problemade la objetividad del sentido tien-de a delinearse con contornos pro-pios frente al problema maacutes claacutesi-co de la verdad

52 - Objetivismo y subjetividad

Pese todas las diferencias que exis-ten entre las dos vertientes delanti-psicologismo mencionadashasta ahora hay algunos rasgoscomunes que motivan una simi-lar (aun cuando no absolutamenteideacutentica) objecioacuten de parte de lospsicologistas y que se deja resu-mir en el tiacutetulo ldquoobjetivismordquo conel cual se apunta a subrayar des-consideracioacuten del caraacutecter en uacutelti-ma instancia subjetivo del conoci-miento La liacutenea de confrontacioacutenentre psicologistas y antipsicolo-gistas tiene una de sus expresio-nes maacutes importantes en la oposi-cioacuten ldquoobjetivismordquo- relativismo

Si comenzamos con el antipsi-cologismo de cuntildeo platoacutenico di-gamos que ya Exner objetaba aBolzano que la admisioacuten de ldquore-presentaciones en siacuterdquo objetivas eirreales nos enfrenta al proble-ma irresoluble de coacutemo un suje-to real como en uacuteltima instancialo es el sujeto del conocimientopuede acceder a algo que de prin-cipio no es real una objecioacuten queobviamente tiene su raiacutez uacuteltimaen la presuposicioacuten incondicionaldel PI o sea en este caso en quesolo puedo captar lo que de alguacutenmodo es real ldquoen miacuterdquo (Exner a Bol-zano 10121834 p 74-75 y 78)Bolzano intenta varias respuestasa esta objecioacuten pero ninguna esconvincente en uacuteltima instancia

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porque en todas ellas no consigueevidenciar el supuesto de Exnerconcediendo a este sin maacutes los de-rechos de una psicologiacutea natura-lista La criacutetica de Exner a Bol-zano se repite en teacuterminos praacutec-ticamente ideacutenticos entre Kerry(UumlAPsV IV p 305) y Frege conla gran diferencia que ella termi-naraacute llevando a Frege a una decisi-va profundizacioacuten de su posicioacuten(FREGE L (1897) p 157 GGA Ip XIVss)

La tendencia objetivista de losanti-psicologistas se mantieneaun cuando en otra variante enla vertiente neokantiana siendodecisiva tanto en Cohen cuanto enWindelband (BRELAGE 1965 p94-95) Como consecuencia de sutajante distincioacuten de todo lo psico-loacutegico la asiacute llamada ldquoconcienciatranscendentalrdquo deviene en reali-dad una mera faccedilon de parler queno expresa otra cosa que el con-junto sistemaacutetico de principios devalidez No obstante surgiraacute delas propias filas neokantianas ypor un proceso inmanente el in-tento de superacioacuten de esta ten-dencia Natorp es el primero encomprender que al fin de cuen-tas una filosofiacutea transcendentalsin sujeto es un sin-sentido y quetoda criacutetica al psicologismo queno deacute cuenta de su justa exigen-cia subjetiva estaraacute condenada alfracaso Por tal razoacuten Natorp con-centra su criacutetica al psicologismo

en una criacutetica del concepto psi-cologista de subjetividad (UumlOSMp 285-286 EPs sect 13-15) Su tesisfundamental que lo opondraacute alpsicologismo no menos que al ldquolo-gicismordquo radical de Cohen rezael psicologismo es la consecuenciade una falsa teoriacutea de la subjeti-vidad propia del naturalismo (yen uacuteltima instancia del dualismo)y por tanto solo puede ser defi-nitivamente superado si se superaesta Sobre esta base la salida queNatorp propone es disolver la riacutegi-da oposicioacuten sujeto-objeto presu-puesta en toda visioacuten naturalistade la subjetividad substituyeacutendo-la por una oposicioacuten relativa entresubjetivacioacuten y objetivacioacuten comodiferentes direcciones en que sepuede considerar un uacutenico pro-ceso fundamental Si el sujeto nopuede ser simplemente elimina-do el soacutelo puede ser integradocoherentemente en el horizonte dela reflexioacuten filosoacutefica si no se con-tradicen los principios del meacutetodotranscendental o sea el caraacutecterde la filosofiacutea como discurso desegunda orden Por tanto la sub-jetividad tiene que ser tematizadaen un procedimiento reconstruc-tivo a partir de la objetividad y enestricta correlacioacuten con la misma(NATORP AP p 213)

Si queremos entender el desen-volvimiento posterior que tomaraacutela lucha antipsicologista y en par-ticular el papel que Frege y Hus-

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serl habraacuten de desempentildear en lamisma tenemos que observar quejunto con el mencionado cambiofundamental existe en Natorp unotro punto en el cual eacutel conserva elstatus quo a saber en el manteni-miento del PI En tal sentido sal-vemos del olvido un hecho impor-tante a saber que en 1894 cuan-do Twardowsky escribe su histoacuteri-co texto ldquoSobre contenido y objetode la representacioacutenrdquo Natorp lededica una resentildea en donde delcontexto surge que eacutel consideraque Twardowsky se encuentra enla direccioacuten errada (NATORP BD-SE II p 198-201) impresioacuten eacutes-ta que se reafirma si se atiendea la correspondencia con Husserlde esa eacutepoca (Hua BriefwechselBand V p 39-58) y se confirmadefinitivamente en textos poste-riores (AP p 153)

Pues bien un antildeo antes en1893 en el prefacio de las GGAen su criacutetica de Erdmann Fregees el primero que en el horizontede la filosofiacutea alemana del sigloXIX abandona el PI14 Esta de-cisiva virada claro estaacute quedaraacutetotalmente opacada a la luz de lacentralidad que la cuestioacuten de unaperspectiva subjetiva adquiere en

la fenomenologiacutea husserliana Lacriacutetica husserliana del psicologis-mo en los ldquoProlegoacutemenosrdquo no de-be ser vista como un todo auto-subsistente sino que se prolonga ycompleta en el segundo volumende ldquoInvestigaciones loacutegicasrdquo con lapropuesta de una elaborada teoriacuteade la subjetividad coherente conlas exigencias del platonismo15

El movimiento iniciado por Na-torp en el neokantianismo mar-burgueacutes tiene un cierto paraleloaun cuando maacutes tardiacuteo en el neo-kantianismo de Baden con Rickert(ZWE) y una interesante radica-lizacioacuten en Houmlgnigswald (PDPs)quien levanta la tesis de la no in-compatibilidad de principio y he-cho (Prinzip und Tatsache) tantoen el caso del yo como del lengua-je

53 - Fenomenologiacutea transcen-dental ndash facticidad

Como deberiacutea ser sabido peroes generalmente ignorado la criacute-tica husserliana al psicologismoni termina ni culmina en 1900sino que acompantildea todo el desa-rrollo de Husserl y experimentauna novedad decisiva con la des-

14El papel de Frege en el PS es sistemaacuteticamente mal comprendido su radical antipsicologismo no excluye sinoque supone una cierta idea de subjetividad El centro de su criacutetica a Husserl en PhA es justamente que este como lacasi totalidad de los disciacutepulos de Brentano en esta eacutepoca mantiene expresamente la afirmacioacuten del PI (HUSSERLHua XII p 94)

15Obviamente que en este desarrollo Natorp ha jugado un papel fundamental y tal vez Frege ha hecho unacontribucioacuten decisiva

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cubierta de la reduccioacuten y la vira-da al idealismo fenomenoloacutegico-transcendental (Husserl HuaXXIV p 209ss) Con esto apa-rece una nueva variante de anti-psicologismo que tiene un perfilespecifico distinto de todas aque-llas ya existentes e incluso obligaa repensar con maacutes exactitud lasdistinciones de las cuales partiacutea-mos16

En la variante fenomenoloacutegico-transcendental del anti-psicologis-mo si bien se da cuenta por ex-tenso de la relacioacuten subjetividadndash objetividad los problemas delanti-psicologismo anterior no des-aparecen sino que se trasladan dela relacioacuten de un sujeto concebidopsicoloacutegicamente a un objeto con-cebido platoacutenicamente a la rela-cioacuten entre subjetividad psicoloacutegi-ca y transcendental un problemaque ya como vimos se anunciabaen Natorp pero que ahora se radi-caliza por la propia reduccioacuten

La buacutesqueda de una mediacioacutenentre ambas subjetividades per-mea la uacuteltima etapa del pensa-miento de Husserl con su concep-cioacuten monaacutedica del sujeto trans-cendental que introduce nocio-nes tales como Verweltlichung

Verzeitlichung y Verraumlumlichung(HUSSERL Hua III1 p 67 VIIp 71) pero solo alcanzaraacute todo sudesarrollo cuando a traveacutes de lapoleacutemica en torno al artiacuteculo de laEnciclopedia Britaacutenica Heideggerintroduzca la tesis de que el ver-dadero sujeto transcendental es elsujeto faacutectico en su facticidad ycomience a desenvolver eacutesta en elhorizonte de un replanteo generalde las relaciones entre el ser y eltiempo17

54 - Objetivismo psicologismorefinado y nuevamente MP

Si con Natorp el anti-psicologismomarburgueacutes se desenvuelve en ladireccioacuten de una consideracioacutensubjetiva existen formas de anti-psicologismo como las represen-tadas por Bauch que se desen-vuelven en la direccioacuten exacta-mente contraria Su idea baacutesicaes que la lucha contra el psicolo-gismo debe ser radicalizada puesen todas las formas de pretendidoanti-psicologismo inclusive puesen la escuela de Marburgo per-manece un ldquopsicologismo refina-dordquo (verfeinerter Psychologismus)el cual debe ser superado si la lu-

16Si sobre el criterio de Frege quien aceptaba el PI era psicologista sobre el criterio de Husserl quien no efectuacuteala reduccioacuten es psicologista y por tanto tambieacuten Frege Ver nota 1

17Con esto adquiere su uacuteltima expresioacuten el proceso iniciado por Beneke y desenvuelto por Lotze y la escuela deBrentano en el siglo XIX

18En base a lo dicho podriacuteamos diferenciar en la lucha anti-psicologista del neokantianismo institucional porlo menos tres etapas una primera la de los fundadores del programa una segunda de los disciacutepulos destacados

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cha debe llegar a su fin (IKPhAGp 141 Compare LASK LU p 171y MOOG LPsPs p 53 77)18

Dentro del horizonte descrip-to otro capiacutetulo importante esprotagonizado en la escuela deBrentano en la cual el objetivismoadquiere una variante realista yno-transcendental sobre la formade la Gegenstandstheorie de Mei-nong la cual se propone progra-maacuteticamente una ldquoconsideracioacutena-psicoloacutegicardquo (apsychologische Be-trachtung) del objeto y de la ver-dad

Asiacute como Bauch se ve condu-cido en el neokantianismo a unapoleacutemica con Natorp Houmlfler si-guiendo a Meinong se ve conduci-do en la escuela de Brentano a unapoleacutemica con Marty quien reco-nociendo la necesidad y legitimi-dad de la lucha anti-psicologistaresiste sin embargo a toda substi-tucioacuten del MP por la Gegenstandst-heorie y su propuesta de eliminartoda consideracioacuten subjetiva (HOuml-FLER UumlA p 216 219 MARTYUG p 304 307) A esta tendenciadirige la acusacioacuten de ldquoApsycho-logismusrdquo para diferenciarla delAnti-psychologismus que como

ya indicamos tambieacuten la escuelade Brentano pretende defender

Si efectuamos ahora una visioacutenretrospectiva tenemos que obser-var que si cuando se trata el PSla atencioacuten tiende a concentrarseen el conflicto entre psicologistasy anti-psicologistas este conflictoes un aspecto particular cierta-mente central y esencial de un to-do maacutes abrangente Asiacute como exis-tioacute una reaccioacuten antipsicologistaal psicologismo reinante existioacuteademaacutes de la reaccioacuten psicologis-ta una reaccioacuten al antipsicologis-mo considerado ahora como meroantipsicologismo u objetivismo

6 - Conclusioacuten

En las liacuteneas que anteceden hemospuesto en evidencia que el PS lejosde haber sido como generalmentese tiende a creer una unidad in-divisa concentrada en la loacutegica ycon epicentro en los ldquoProlegoacuteme-nosrdquo husserlianos fue un procesoen el cual se pueden y deben di-ferenciar etapas tendencias nuacute-cleos temaacuteticos y liacuteneas de evolu-cioacuten

Rickert y Natorp que integran la perspectiva subjetiva en el horizonte transcendental y auacuten una tercera que conHoumlnigswald y Bauch van en direcciones no solo diferentes sino opuestas

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_________ 1990 ldquoIdeen uumlber eine beschreibende und zergliederndePsychologie (1894)rdquo In Gesammelte Schriften (1913-1958) Bd V4 Aufl Hrsg Georg Misch Goumlttingen Vandoeck and Ruprecht(IBZPs)

FISCHER Kuno 1862 Die beiden kantischen Schulen in Jena StuttgartCottascher Verlag (bKS)

FREGE Gottlob Die Grundlagen der Arithmetik Eine logisch mathematis-che Untersuchung uumlber den Begriff der Zahl Hamburg Meiner 1988(GA)

_______ Grundgesetze der Arithmetik Jena Pohl 1893 (GGA)_______ Logik (1897) In Frege G Nachgelassene Schriften Edited by

Gottfried Gabriel Walter Roumldding Hans Hermes Friedrich Kam-bartel and Friedrich Kaulbach Hamburg Felix Meiner Verlag1969 p 137-163 (L(1897))

FRIES J Friedrich 1803 Reinhold Fichte Schelling Leipzig August Le-brecht Reineicke (RFS)

______ 1811 ldquoSystem der Logik Ein Handbuch fuumlr Lehrer und zumSelbstgebrauchrdquo Book Renaissance Heidelberg Mohr und Winter(SL)

_______1819 Grundriss der Logik Ein Lehrbuch zum Gebrauch von Schu-len und Universitaumlten Heidelberg Mohr und Winter 2te verbes-serte Auflage (GL) (NKV)

_______ 1824 Polemische Schriften 2 Bde Hallen und Leipzig Reinec-ke and Comp (PS)

_______ 1824 System der Metaphysik Heidelberg Christiana FriedrichWinter (SM)

_______ 1834 Geschichte der Philosophie Halle Verlag der Buchhand-lung des Weisenhauses (GPh)

_______ 1935 Neue oder anthropologische Kritik der Vernunft 3 BdeBerlin Verlag Oumlffentliches Leben (NKV)

HELMHOLTZ Hermann 1903 ldquoUumlber das Sehen des Menschenrdquo Einpopulaumlr wissenschaftlicher Vortrag gehalten zu Koumlnisberg in PreussenZum Besten von Kants Denkmal Am 27 Februar 1855 LeipzigVoss 1855 In Vortraumlgen und Reden 4te Aufl Brauchschwieg FVieweg und Sohn (UumlSM)

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

HERBART J Friedrich 1993 Lehrbuch zur Einleitung in die PhilosophieHamburg Meiner Verlag (LEPh)

_________ 2003 Lehrbuch zur Psychologie Koumlnigsberg August WilhelmUnzer 1816 Ed Margret Kaiser ndash el Safti Wuumlrzburg Koumlnigshau-sen and Neumann (LPs)

_________ Psychologie als Wissenschaft Neu begruumlndet auf ErfahrungMetaphysik und Mathematik Hersg Hartenstein Leipzig Leo-pold Voss 1850 (PsW)

HUSSERL Edmund Briefwechsel Brentano Schuler Husserliana Doku-mente III1Briefe

_________ Philosophie der Arithmetik Mit ergaumlnzenden Texten (1890-1901) Ed Lothar Eley The Hague Martinus Nijhoff 1970 Hus-serliana XII (Hua XII)

_________ Briefwechsel Band V Die Neukantianer Hua ndash DokumenteDordrecht Boston London Kluwer 1994

_________ Logische Untersuchungen Zweiter Band Erster Teil Unter-suchungen zur Phaumlnomenologie und Theorie der Erkenntnis EdUrsula Panzer The Hague Martinus Nijhoff 1984 HusserlianaXIX1 (Hua XIX1)

_________ Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und phaumlnomenolo-gischem Philosophie Erstes Buch Allgemeine Erfahrung in diereine Phaumlnomenologie Rev Ed Karl Schuhmann The Hague Mar-tinus Nijhoff 1976 Husserliana III1 (Hua III1)

_________ Erster Philosophie (1923-1924) Zweiter Teil Theorie der phauml-nomenologischen Reduktion Ed Rudolf Boehm The Hague Marti-nus Nijhoff 1959 Husserliana VIII (Hua VIII)

_________ Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie Vorlesungen1906-1907 Ed Ulrich Melle Dordrecht Martinus Nijhoff 1987Husserliana XXIV (Hua XXIV)

HOumlNIGSWALD Richard Die Grundlagen der Denkpsychologie Studienund Analysen Muumlnchen 1921 2 Auflag Leipzig-Berlin 1925(GDPs)

KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Kants gesammelte SchriftenHsg Von der Preussischen Akademie der Wissenschaften Berling1902ss Vol III IV (AK)

KERRY B Uumlber Anschauung und ihre psychische Verarbeitung Vier-ter Artikel Vierteljahresschrift fuumlr wissenschaftliche Philosophie 111887 pp 249-307 (UumlApsV)

LASK Emil Die Lehre vom Urteil Tuumlbingen 1912 (LU)

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MARIO ARIEL GONZAacuteLEZ PORTA

LAZARUS Moritz 1860 ldquoEinleitende Gedanken uumlber Voumllkerpsycho-logierdquo Zeitschrift fuumlr Voumllkerpsychologie und Sprachwissenschaften I1-73 (EGV)

LEARY David E The psychological development of the conception of psy-chology in Germany 1780mdash1850 Journal of History of Behavioralscience 14 1978 113-121

__________ The psychology of Jakob Friedrich Fries (1773-1843) its con-text nature and historical significance Storia e critica della psico-logia vol III No 2 1982 217-248

LIEBMANN Otto 1912 ldquoKant und die Epigonen Eine kritische Ab-handlungrdquo In Herausgegebene von der Kantgesellschaft Ed BrunoBauch Berlin Reuther and Reichard (KE)

LIPPS Theodor 1883 Grundtatsachen des Seelenlebens Bonn Verlag vonMax Cohen und Sohn (GT)

LOTZE Herman Logik Drei Buumlcher vom Denken vom Untersuchen undvom Erkennen Misch Georg (ed) Leipzig Meiner 1912 (L)

______ Die Philosophie in den letzten 40 Jahren (1880) In LOTZEHermann Logik Drei Buumlcher vom Denken vom Untersuchen und vomErkennen Misch Georg (ed) Leipzig Meiner 1912 pp XCIV-CXXII

MARTY Anton 1908 Untersuchungen zur Grundlegung der allgemeinenGrammatik und Sprachphilosophie Halle Niemeyer (UG)

MEYER Juumlrgen Bona 1870 Kants Psychologie Dargestellt und eroumlrtertBerlin Verlag von Wilhelm Hertz (KPs)

MOOG Willy Logik Psychologie Psychologismus Wissenschaftssystema-tischen Untersuchungen Halle Nyemeier 1919 (LPsPs)

NATORP Paul 1912 Allgemeine Psychologie nach kritischer Methode Ers-tes Buch Objekt und Methode der Psychologie Tuumlbingen Verlag vonJ C B Mohr (AP)

________ 1888 Einleitung in die Psychologie nach kritischer MethodeFreiburg Verlag von J C B Mohr (EPs)

________ Uumlber objektive und subjektive Methode Philosophische Mo-natshefte XXIII 1887 pp 257-286 (UumlOSM)

________ Bericht uumlber deutsche Schriften zur Erkenntnistheorie ausden Jahren 1894 und 1985 Archiv fuumlr systematische PhilosophieErstes Stuumlck 3 1897 pp 101-121 Zweites Stuumlck 3 1897 pp193-209 Drittes Stuumlck 3 1897 pp 391-402 (BDSE)

________ Zur Frage der logischen Methode M Bez auf E HusserlsProlegomena zur reinen Logikrdquo Kant Studien 6 1901 pp 270-

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INTRODUCCIOacuteN HISTOacuteRICA AL PSYCHOLOGISMUSSTREIT

283 (FLM)________ Platos Ideenlehre 2da Aufl Leipzig 1921 (PI)REINHOLD K Leonhard Versuch einer neuen Theorie des menschlichen

Vorstellungsvermoumlgens 2te Auflage Prag und Jena C Widtmannund I M Mauke 1796 (Versuch)

__________ Beitraumlge zur Berichtigung bisheriger Missvestaumlndnisse der Phi-losophen Erster Band Hamburg Felix Meiner 2003 (Beitraumlge)

Rickert Heinrich Der Gegenstand der Erkenntnis Ein Beitrag zum Pro-blem der philosophischen Transzendenz Freiburg Mohr 1892 (GE)

___________ Zwei Wege der Erkenntnistheorie Transzendentalpsycholo-gie und Transzendentallogik Halle Kaemmerer 1909 (ZWE)

RIEHL Aloys 1872 Uumlber Begriff und Form der Philosophie Eine allgemei-ne Einleitung in das Studium der Philosophie Berlin Carl DunckersVerlag (UumlBFPh)

_______ 1876 Der philosophische Kritizismus und seine Bedeutung fuumlr diepositive Wissenschaft 2 Bde Leipzig Verlag von Wilhelm Engel-mann (PhK)

STUMPF Carl 1892 Psychologie und Erkenntnistheorie Muumlnchen Ver-lag der K Akademie (PsE)

_______ 1924 ldquoSelbstdarstellungrdquo R Schmidt Hrsg Die Philosophieder Gegenwart in Selbstdarstellungen 5 Band 204-65 Leipzig Mei-ner (SD)

_______ 2011 Erkenntnislehre Lengerich Pabst Science Publishers (EL)TWARDOWSKI K 19821894 Zur Lehre von Inhalt und Gegenstand der

Vorstellung Eine psychologische Untersuchung Muumlnchen Philosop-hia Verlag A Houmllder (ZL)

WINDELBAND W 1884 ldquoKritische oder genetische Methoderdquo In Prauml-ludien Aufsaumltze und Rede zur Philosophie und ihrer GeschichteTuumlbingen Verlag von JCB Mohr 3a 318-54 1907 (KGM)

_____________ 1884 ldquoWas ist Philosophierdquo In Praumlludien Aufsaumltze undRede zur Philosophie und ihrer Geschichte Tuumlbingen Verlag vonJCB Mohr 3a 24-77 1907 (WPh)

Recebido 29062019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i221193

A Antiguidade um Erro Profundondash Foucault a Filosofiae suas Atitudes

[Antiquity a Deep Error ndash Foucault Philosophy and its Attitudes]

Jean Dyecircgo Gomes Soares

Resumo Esse artigo visa compreender a afirmaccedilatildeo de Michel Fou-cault de que a Antiguidade seria ldquoum erro profundordquo Quando ele falade suas relaccedilotildees com a filosofia ele se desloca da pretensatildeo ontoloacutegicatradicional para uma praacutetica ao inveacutes de se perguntar ldquoo querdquo seriamo poder e a filosofia ele busca compreender ldquocomordquo funcionam Di-ante desse deslocamento teoacuterico em torno das chamadas ldquoproblema-tizaccedilotildeesrdquo esboccedila-se uma problematizaccedilatildeo especiacutefica a do sujeito Aodestacar descontinuidades desde a Antiguidade ateacute a Modernidadeentre estiliacutesticas de si e teorias do sujeito Foucault permite vislum-brar uma resposta agrave questatildeo do tiacutetulo O expediente seria pensar aAntiguidade como um erro profundo sem com isso desconsiderar aatitude tambeacutem erraacutetica do homem modernoPalavras-chave Problematizaccedilatildeo Sujeito Atitude ModernidadeBaudelaire

Abstract This paper aims to comprehend Michel Foucaultrsquos state-ment that Antiquity would be ldquoa deep errorrdquo When he talks on poweror its relations with philosophy he displaces himself from a traditi-onal and ontological pretension to a practical one instead of askingldquowhatrdquo would be power and philosophy he seeks to comprehendldquohowrdquo they work Having in mind this theoretical displacementon ldquoproblematizationsrdquo we take as an example that on the subjectFoucault shows discontinuities soughed up for him since Antiquityto Modernity detailing differences between stylistics of self andtheories of the subject In such a way we found and answer to thetitle question The strategy is to think Antiquity as an error as wellas considering the erratic attitudes of the modern humankindKeywords Problematization Attitude Subject Modernity Baude-laire

Michel Foucault dedicou parte re-levante de sua vida agrave AntiguidadePor maiores que sejam as criacuteticasa suas posiccedilotildees teoacutericas ou a suasleituras seus trabalhos consti-

tuem uma referecircncia estimulantesobre a esteacutetica da existecircncia e ocuidado de si E no entanto emsua uacuteltima entrevista lemos o se-guinte juiacutezo ldquoToda a Antiguidade

Professor do Centro Universitaacuterio Unihorizontes Doutor em filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica doRio de Janeiro (PUC-RJ) E-mail jeandyegogmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0003-1096-9686

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me parece ter sido um lsquoerro pro-fundordquorsquo Como entender algo tatildeoassertivo decidido e direto Se-ria contraditoacuterio estudar um de-terminado periacuteodo considerando-o um ldquoerro profundordquo Devemosignorar ou relativizar o que estaacutedito ou devemos tomaacute-lo a seacuterio

O enunciado em questatildeo surgepara noacutes hoje em meio a um con-junto de textos que recobrem tra-balhos do autor francecircs desde1954 ateacute poacutestumos publicados em1988 Os Dits amp Eacutecrits (FOU-CAULT 1994) de fato existe agraverevelia das recomendaccedilotildees testa-mentaacuterias de seu autor Sem nosdetermos sobre a questatildeo edito-rial pois tambeacutem eacute verdade queo agora publicado em conjuntofora antes publicado ou aprovadoseparadamente eacute preciso dizerque optamos por trabalhar nossaquestatildeo a partir de uma obra in-completa e natildeo aprovada por seuautor que se estabelece pelo seufocirclego ldquoespontacircneordquo em forma-tos diversos como uma espeacutecie deensaios de um montaigne no seacute-culo XX se o leitor me permite aexpressatildeo Ali reunidos eles pro-porcionam uma dimensatildeo uacutenicadas relaccedilotildees possiacuteveis entre as par-tes reunidas Assumindo tal pers-pectiva buscaremos compreenderessa afirmaccedilatildeo aparentemente ra-dical em correlaccedilatildeo com outrosenunciados que talvez ajudem asustentaacute-la Ao menos em um sen-

tido a analogia procede ambosfazem convergir um pensamentoinquieto em constante retomadacom a forma de vida em que seencontram (NEHAMAS 1998) eisso bastaria para dar atenccedilatildeo agravequestatildeo que Michel Foucault fezdespertar em noacutes

Contra ou a favor Em maio de1981 Foucault concede uma en-trevista a Didier Eribon seu fu-turo bioacutegrafo em que reitera umaposiccedilatildeo Ali ele sugere uma no-taacutevel atitude diante de ldquoum go-vernordquo ainda que aparentementefavoraacutevel ele natildeo soacute se dirigiaagravequele que acabava de ser eleitoFranccedilois Mitterand mas se refe-ria a um tema que agrave eacutepoca lhe erabastante caro

Eacute preciso sair do dilemaou se eacute a favor ou con-tra Depois de tudo pode-se estar de peacute e olhandoadiante Trabalhar comum governo natildeo implicanem sujeiccedilatildeo nem aceita-ccedilatildeo global Eacute possiacutevel agravesvezes trabalhar e ser re-belde Acho mesmo queas duas coisas vatildeo jun-tas (Foucault 1994-IV p180)

A configuraccedilatildeo do dilema eacute claraSe considerarmos haver um con-flito contiacutenuo em curso ser a fa-

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vor ou contra de maneira irrefle-tida ajuda pouco a sair do dilemaIsso porque suporiacuteamos posiccedilotildeestatildeo rigidamente encerradas queou se seria completamente a fa-vor ou completamente contra ig-norando uma infinita gradaccedilatildeo deposiccedilotildees entre os extremos A dig-nidade de olhar adiante passa pormanter uma atitude emancipadaque sabe simultaneamente traba-lhar e ser rebelde diante de umgoverno Trata-se de natildeo se sujei-tar de natildeo agir contra si mesmotampouco assumir uma posiccedilatildeode aceitaccedilatildeo mouca e global Fou-cault se propotildee a tarefa de con-frontar o presente isso implicaem ao experimentaacute-lo aprendera tomar posiccedilotildees discutir dialo-gar sobre o que nos tornamos eseremos Nessa medida poderiacutea-mos ceder a uma sugestatildeo tenta-dora a de que ele agiria como oexplorador que vai ateacute uma colocirc-nia penal Ali ele observaria osprocedimentos do aparelho ouem termos foucaultianos o fun-cionamento do dispositivo tirariasuas conclusotildees e esperaria que asimples discordacircncia performati-vamente bem cuidada diante dooficial fosse suficiente para pocircrtermo a uma situaccedilatildeo injusta

Em 1984 em conversa comAlessandro Fontana ele rechaccedilaessa posiccedilatildeo numa clara respostaa essa criacutetica Ali explicita a am-biguidade dos saberes relaciona-

dos ao corpo ciente de que aque-les sobre os quais ele havia se de-bruccedilado ao longo de sua trajetoacuteriaapresentaram mudanccedilas que ldquoti-nham sido profundamente beneacute-ficasrdquo Fontana emenda ldquoEntatildeoesses saberes nos ajudam a vivermelhorrdquo e ele esclarece

Natildeo houve uma simplesmudanccedila nas preocupa-ccedilotildees mas no discursofilosoacutefico teoacuterico e criacute-tico com efeito na maiorparte das anaacutelises feitasnatildeo se sugere agraves pessoaso que elas deveriam sero que deveriam fazer oque deveriam crer ou pen-sar Trata-se mais de fazeraparecer como ateacute o pre-sente os mecanismos soci-ais teriam se colocado emjogo como as formas derepressatildeo e de coerccedilatildeo te-riam agido e assim a par-tir daiacute me parece que sedaria agraves pessoas a possibi-lidade de se determinarde fazer ciente de tudoisso a escolha de sua exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 732)

Foucault natildeo sugere como jogar ojogo ou seja natildeo manifesta pre-ocupaccedilotildees normativas e vecirc issocomo uma mudanccedila no discurso

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filosoacutefico Como no caso de umtexto de jornal de Kant (2012Foucault 1978 2010) trata-se me-nos de dizer como o outro deveou natildeo agir e mais de sugerir queele pode agir diferentemente quepode ousar saber Em uma for-mulaccedilatildeo simples natildeo se trata deensinar como o jogo da verdadedeve ser jogado mas de analisarcomo ele vem sendo jogado parapermitir que cada um avance porsi mesmo nas jogadas Ao fazerisso todavia Foucault natildeo assumeuma posiccedilatildeo de observador exte-rior cujo objetivo seria o de sem-pre se posicionar ldquofora daquirdquoquixotescamente sem quaisquerprovisotildees e disposto a morrer defome se as condiccedilotildees forem ad-versas Ele faz suas anaacutelises parapermitir que cada um escolha osconflitos os jogos que deseja en-frentar Com isso ele natildeo desejaencontrar um lugar de plena auto-nomia individual mas sim permi-tir que cada um faccedila as escolhasde sua existecircncia um processocomplexo que depende simulta-neamente do desenvolvimento decapacidades bioloacutegicas e sociaiscapaz de permitir que ldquoos indi-viacuteduos determinem a si mesmosrdquosem que isso exija uma recusada liberdade social muito pelocontraacuterio permitindo simultanea-mente esse exerciacutecio por parte detodos

Judith Butler fornece uma com-

paraccedilatildeo bastante elucidativa sobreas relaccedilotildees entre o poder e os su-jeitos Para ela acostumamo-nosa pensar no poder como algo quepressiona o sujeito exteriormentesubordinando e relegando-o a or-dens inferiores o que seria umadescriccedilatildeo justa mas parcial doque faz o poder A autora no en-tanto adverte ldquose entendemoso poder tambeacutem como algo queforma o sujeito que determina aproacutepria condiccedilatildeo de sua existecircnciae a trajetoacuteria de seu desejo o po-der natildeo eacute apenas aquilo a que nosopomos mas tambeacutem e de modobem marcado aquilo de que de-pendemos para existir e que abri-gamos e preservamos nos seresque somosrdquo (Butler 2017 p 9)Em outros termos ela sugere queesses processos natildeo soacute perpetuamo jogo tal como foi jogado e contrao qual se opotildee como tambeacutem seo situarmos enquanto problemaisso assim o seraacute porque o quesomos estaacute ligado a ele Atraveacutesdeste problema compreendemoscomo nos tornamos o que somos

No iniacutecio do verbete sobre simesmo Foucault fornece duas de-finiccedilotildees negativas de sua histoacute-ria criacutetica do pensamento eluci-dativas nesse ponto a saber elanatildeo constitui uma ldquohistoacuteria dasideias que seria ao mesmo tempouma anaacutelise dos erros que se po-deria retrospectivamente mensu-rarrdquo tampouco ldquouma decifraccedilatildeo

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dos desconhecimentos pelos quaiselas estavam ligadas e das quaiso que pensamos hoje poderia de-penderrdquo (Foucault 1994-IV p631) Essa definiccedilatildeo desvia a posi-ccedilatildeo de Foucault de uma histoacuteriadas soluccedilotildees que desejasse res-ponder a problemas atuais comrespostas de um ontem Eacute pre-ciso considerar que para aceitarsoluccedilotildees de outrora para o agorapressuporriacuteamos uma medida a-histoacuterica para o que eacute certo e er-rado e a posiccedilatildeo de Foucault emseu retorno agrave antiguidade natildeo eacutea de decifrar algo que estaacute es-condido que supotildee agora mos-trar para solucionar um problemaatual

As duas definiccedilotildees negativasfornecidas colaboram para perce-ber como Foucault pretende natildeoceder agrave loacutegica do ldquocontra ou a fa-vorrdquo Ao propor uma histoacuteria criacute-tica ele natildeo cede agrave vontade de nor-malizar a histoacuteria a partir de cri-teacuterios ahistoacutericos ndash natildeo denega opresente em nome de uma nostal-gia do passado tampouco desen-volve uma necessidade incessantede tornar obsoleto o que passou apartir da hegemonia dos criteacuteriosdo presente Nota-se que ele natildeose arroga a pretensatildeo de falar dealgo que ningueacutem falou de deci-frar o desconhecido passando aolargo de preocupaccedilotildees com o des-velamento de totalidades escondi-das de sentidos profundamente

encobertos e de verdades uacuteltimase universais natildeo-reveladas

Antes de passarmos agrave definiccedilatildeopositiva eacute notaacutevel o sintagma su-gerido por ele para definir seu tra-balho de pesquisa a saber histoacuteriacriacutetica do pensamento Notaacutevel por-que uma ldquohistoacuteria criacuteticardquo por si soacutechama a atenccedilatildeo remete simulta-neamente ao legado kantiano dacriacutetica enquanto criacutetica da razatildeode seus limites de suas condiccedilotildeesde possibilidade transcendentaise remete tambeacutem ao trabalho deum historiador que nega a ne-cessidade de transcendentalidadepara se inspirar em um estilo bas-tante nietzschiano de fazer a his-toacuteria a ponto de aceitar a sugestatildeode que o que fazia no fundo erauma ldquonova genealogia da moralrdquo(Foucault 1994-IV p 731) En-tatildeo natildeo seria a ldquohistoacuteria criacutetica dopensamentordquo um sintagma para afilosofia de Foucault Ou ao menospara sua ldquohistoacuteria da filosofiardquo

A definiccedilatildeo positiva eacute fornecidaalgumas linhas depois a saberldquouma histoacuteria criacutetica do pensa-mento seria uma anaacutelise das con-diccedilotildees pelas quais satildeo formadas emodificadas certas relaccedilotildees entresujeito e objeto na medida em queambos satildeo constitutivos de um sa-ber possiacutevelrdquo (Foucault 1994-IVp 632) Aqui esbarramos em umdeslocamento importante Menosdo que saber o que eacute o sujeito ouo objeto questotildees caracteriacutesticas

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da histoacuteria tradicional da filosofiaFoucault fala de condiccedilotildees de for-maccedilatildeo e modificaccedilatildeo em termossemelhantes agraves condiccedilotildees de pos-sibilidade da criacutetica kantiana Po-reacutem nota-se um tom genealoacutegicoinconfundiacutevel uma vez que essascondiccedilotildees parecem remeter agraves en-fatizadas condiccedilotildees de proveniecircn-cia e emergecircncia de que fala o au-tor em seu ensaio sobre Nietzsche(Foucault 1994-IV p 136-57) Asquestotildees portanto satildeo diferentesMenos do que se perguntar peloldquoo que eacuterdquo numa busca que situaseu discurso num espaccedilo radical-mente a-historicizante Foucaultcoloca a pergunta ldquocomo se tor-nourdquo Eacute por isso que na sequecircnciadessa definiccedilatildeo ele precisaraacute o quechama de modos de subjetivaccedilatildeo ede objetivaccedilatildeo porque seu pen-samento dedica-se a se perguntarsobre como quais possibilidadesquem porque nos tornamos issoque somos atualmente

Nessa medida seu modo de fa-zer filosofia estaacute diretamente li-gado agrave histoacuteria mas natildeo eacute umahistoacuteria estrita da filosofia por-que para perceber como essesldquomodosrdquo satildeo constitutivos de umsaber possiacutevel ele natildeo se restringeaos ldquomodosrdquo da filosofia tradicio-nal que se potildee a pergunta sobre oque natildeo pode responder em buscade um saber impossiacutevel sobre aessecircncia atemporal a origem dascoisas ou o fundamento universal

da eacutetica ldquoHistoacuteria criacutetica do pen-samentordquo pode ser um dos sintag-mas da filosofia na medida em quepercebemos a filosofia como ativi-dade de compreensatildeo de nossaspraacuteticas como um modo de sabero que nos tornamos bem comotornamos certos objetos possiacuteveisEla seria uma nova maneira de nu-trir essa amizade pelo que aindanatildeo sabemos mas que ao contraacute-rio de dirigir suas duacutevidas na di-reccedilatildeo do infinito se pergunta pe-las coisas da vida presente pelomodo de vida atual

Assim ele escapa aos dilemas daquestatildeo ontologicamente norma-tiva a saber de se perguntar ldquooque eacuterdquo Se aceitarmos que os im-passes para responder a essa ques-tatildeo estatildeo ligados a uma demandapor ser ldquoa favor ou contrardquo a cer-tos pressupostos ontoloacutegicos in-conscientes percebemos simulta-neamente a historicidade da ques-tatildeo ou seja como cada eacutepoca ex-clui ou aceita respostas especiacutefi-cas para a questatildeo segundo pres-supostos partilhados Isso ine-vitavelmente salienta a normati-vidade implicada por esse tipode suposiccedilatildeo ontoloacutegica A issoFoucault denominaraacute atos de pro-blematizaccedilatildeo Embora soacute a te-nha ldquoisoladordquo suficientemente emseus uacuteltimos escritos como ad-mite ldquoas coisas mais gerais satildeo asque aparecem em uacuteltimo lugarrdquo(Foucault 1994-IV p 670) ele

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deixa claro que problematizaccedilatildeoldquoeacute o conjunto das praacuteticas discur-sivas e natildeo-discursivas que faz al-guma coisa entrar no jogo do ver-dadeiro e do falso e o constituicomo objeto para o pensamentordquo(Foucault 1994-IV p 671)

Um exemplo pode jaacute ser obser-vado retroativamente Em As pa-lavras e as coisas Foucault sugereuma histoacuteria do mesmo de comocada eacutepoca dentro daquele recortefoi capaz de estabelecer para simesmo um modo especiacutefico decolocar a questatildeo ldquoo que eacuterdquo erespondecirc-la segundo certas possi-bilidades regulando e excluindorespostas Ao fazer essa histoacuteriado mesmo ele natildeo estaacute sugerindoque o que se deu foi mesmo assimmas que esse mesmo alterou-secom a passagem de um conjuntode saberes formados a partir dasemelhanccedila para outros forma-dos a partir da representaccedilatildeo e dasignificaccedilatildeo (FOUCAULT 2007)O modo de problematizar se alte-rou Assim ele encontra uma ma-neira de narrar como nos tornamoso que somos e natildeo de responderdefinitivamente agrave questatildeo sobre oque somos

Mas em quecirc tudo isso encerrao dilema de ser contra ou a favorde alguma coisa Como essa his-toacuteria criacutetica do pensamento ajudaa se situar na luta Na medidaem que ela desafia o que existemenos do que propotildee alternati-

vas na medida em que situa seutrabalho ldquoentre as pedras de es-pera e os pontos de suspensatildeordquo demodo a ldquoabrir um canteiro ten-tar e falhar recomeccedilar outra vezrdquo(Foucault 1994-IV p 20) As me-taacuteforas arquitetocircnicas constantesno trabalho de Foucault (Deleuze2006 p 280) remetem a um pro-cesso inacabado e contiacutenuo as pe-dras de espera satildeo aquelas queengastadas em outras peccedilas ou pi-sos permitem o acoplamento pos-terior de uma peccedila exterior (Al-bernaz amp Lima 1998-I p 235)os pontos de suspensatildeo lembramos balancins que sobem e descemas construccedilotildees os guindastes queelevam caccedilambas de concreto Eisuma obra a desse francecircs de Poiti-ers que natildeo termina porque abrecanteiros porque natildeo se funda emprofundidades imemoriais por-que natildeo tem intenccedilotildees panoacutepti-cas mas se dedica ao presente aum solo temporal sobre o qual ca-minhar e questiona construccedilotildeesteoacutericas demasiado faraocircnicas

Evidentemente as metaacuteforasarquitetocircnicas jaacute satildeo quase ca-tacreses na histoacuteria da filosofiafala-se da busca por ldquofundamen-tosrdquo com a mesma espontanei-dade de um arquiteto que fala dosldquodentesrdquo de uma ldquocolunardquo Aoutilizaacute-las Foucault nitidamentedesvia-se de seu uso naturalizadoao se remeter para um conjunto deelementos errantes e passageiros

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nada fundacionais uma vez quetanto as esperas quanto os pon-tos de suspensatildeo nos remetem aosceacuteticos para quem a busca de umfundamento natildeo faz qualquer sen-tido Em 1984 um entrevistadorlhe pergunta se na medida emque natildeo afirma verdade univer-sais em que conduz o pensamentoa paradoxos bem como ldquofaz da fi-losofia uma questatildeo permanenterdquoFoucault natildeo seria um pensadorceacutetico sua resposta foi a seguinte

- Completamente [Absolu-ment] A uacutenica coisa quenatildeo aceitaria no programaceacutetico eacute a tentativa queos ceacuteticos fizeram de che-gar a um certo nuacutemero deresultados em uma dadaordem ndash pois o ceticismonunca foi um ceticismo to-tal Tentei levantar os pro-blemas nos campos dadose em seguida fazer va-ler no interior de outroscampos as noccedilotildees efetiva-mente consideradas comovaacutelidas em segundo lu-gar me parece que paraos ceacuteticos o ideal seria serceacutetico sabendo relativa-mente pouca coisa mas assaber de maneira segurae imprescritiacutevel enquantoque o que gostaria de fa-zer eacute um uso da filosofiaque permita limitar os do-

miacutenios do saber (Foucault1994-IV p 707)

Uma interpretaccedilatildeo distorcida doque Foucault gostaria de fazer en-quanto pensador ceacutetico pode serdesastrosa Ele natildeo eacute contra oua favor dos domiacutenios do saber ndashnatildeo se trata de saber pouco se-guramente tudo a partir de umaduacutevida radical ou nada como fi-nalidade ataraacutexica do ceacutetico Seuobjetivo claro de ldquolimitar os do-miacutenios do saberrdquo eacute ceacutetico na me-dida em que assinala que a apli-caccedilatildeo e o uso desses saberes satildeovaacutelidas para a experiecircncia poreacutemdevem ser confrontadas com ou-tras praacuteticas que natildeo se consti-tuem como saberes ndash e o trabalhoda filosofia parece ser o de assi-nalar as possibilidades emergen-tes quando nos deparamos comessas experiecircncias-limite Em ou-tros termos ldquolimitar os domiacuteniosdo saberrdquo passa por ldquoproblemati-zarrdquo as ldquoexperiecircncias-limiterdquo quefuncionam como ldquopontos de sus-pensatildeordquo e ldquoesperasrdquo no jogo doverdadeiro e do falso

Atraveacutes dessa perspectiva esta-mos mais aptos a notar como suamaneira de fazer histoacuteria ajuda acompreender que ldquoimaginar umoutro sistema atualmente aindafaz parte do sistemardquo Numaconversa em 1971 Foucault citaexemplos dessa problematizaccedilatildeodos modos de vida ldquoa sociedade

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futura se esboccedila talvez atraveacutesde experiecircncias como a droga osexo a vida comunitaacuteria umaoutra consciecircncia um outro tipode individualidade Se o socia-lismo cientiacutefico se libera das uto-pias do seacuteculo XIX a socializaccedilatildeoreal liberar-se-aacute talvez no seacuteculoXX das experiecircnciasrdquo (Foucault1994-II p 234) Menos do queser a favor ou contra as drogas osexo liberal a vida comunitaacuteriaFoucault assinala a importacircnciadessas experiecircncias como iacutendicesdos limites do saber meios para aproblematizaccedilatildeo dos modos pelosquais vivemos Para compreendermelhor a analogia feita nessa con-versa pode ser instrutivo retornarao Manifesto Comunista cito-o

A importacircncia do soci-alismo e do comunismocriacutetico-utoacutepicos estaacute narazatildeo inversa de seu de-senvolvimento histoacutericoAgrave medida em que a lutade classes se acentua etoma formas mais defi-nidas a fantaacutestica oposi-ccedilatildeo que lhe eacute feita perdequalquer valor praacutetico equalquer justificativa teoacute-rica Por isso se em mui-tos aspectos os fundado-res desses sistemas eramrevolucionaacuterios as seitasformadas por seus disciacute-pulos formam sempre sei-

tas reacionaacuterias Aferram-se agraves velhas concepccedilotildeesde seus mestres apesar dodesenvolvimento histoacute-rico contiacutenuo do proletari-ado Procuram portantoe nisto satildeo consequentesatenuar a luta de classese conciliar antagonismosContinuam a sonhar coma realizaccedilatildeo experimen-tal de suas utopias sociaisinstituiccedilatildeo de falansteacuteriosisolados criaccedilatildeo de colocirc-nias no interior fundaccedilatildeode uma pequena Icaacuteria ndashediccedilatildeo em formato redu-zido da nova Jerusaleacutem ndashe para dar realidade a to-dos esses castelos no arveem-se obrigados a ape-lar para os bons sentimen-tos e os cofres dos filan-tropos burgueses Poucoa pouco caem na catego-ria de socialistas reacionaacute-rios ou conservadores des-critos anteriormente e soacutese distinguem deles porum pedantismo mais sis-temaacutetico uma feacute supersti-ciosa e fanaacutetica nos efeitosmiraculosos de sua ciecircn-cia social (Marx amp Engels2010 67-8)

Esse trecho exprime sumaria-mente a relaccedilatildeo dos autores dosocialismo cientiacutefico com as uto-

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pias do seacuteculo XIX Eles ressal-vam com precisatildeo os riscos quea adesatildeo irrefletida a uma posiccedilatildeogera nomeadamente quando ela eacuteutoacutepica ou seja quando quer de-fender e ldquodar realidaderdquo a castelosno ar Inspirando talvez as ceacutele-bres comparaccedilotildees de Slavoj Žižek(2018) sobre como o uso do po-liticamente incorreto responde agraveexigecircncia normativa do politica-mente correto como duas faces deuma mesma moeda Karl Marx eFriedrich Engels sugerem que ossocialistas utoacutepicos diferenciam-se em muito pouco de socialistasreacionaacuterios e conservadores Oque os separa eacute somente um pe-dantismo baseado na ciecircncia so-cial bastante semelhante agravequelede quem busca raiacutezes etimoloacutegi-cas ou histoacutericas para justificarinterditos politicamente corretosem torno de palavras jaacute ressignifi-cadas pelo uso Ao criticar uto-pistas tais como Fourier Cabete Owen Marx e Engels marcamuma posiccedilatildeo que retoma as praacuteti-cas reais das classes para alterara realidade ao inveacutes de dar reali-dade a um objeto de uma imagi-naccedilatildeo singular Eles natildeo satildeo con-tra ou a favor dos utopistas masmostram simultaneamente a im-portacircncia e a posterior decadecircn-cia dessa posiccedilatildeo Aleacutem disso orecurso ldquoaos bons sentimentos eaos cofres filantropos burguesesrdquodestaca o quanto ldquoimaginar ou-

tro sistema atualmente faz partedo sistemardquo Sem esses bons sen-timentos nutridos por burguesesseria bastante improvaacutevel que ahistoacuteria do socialismo e do anar-quismo pudesse assinalar o pio-nerismo utoacutepico dos falansteacuterios eicaacuterias

Com esse exemplo pretende-mos esclarecer melhor a ambi-guidade presente no segundo ele-mento da comparaccedilatildeo anterior-mente elaborada por Foucault Aosugerir que uma sociedade futurase esboccedila a partir de certas praacute-ticas marginalizadas ele assinalacomo se daacute o processo atraveacutes doqual imaginar outra existecircncia sedaacute dentro dessa existecircncia A cul-tura hippie dos anos 1970 expe-rimentou com propriedade essapossibilidade Uma geraccedilatildeo dejovens criados em famiacutelias estru-turadas e com condiccedilotildees variadassonhou com um futuro de paz e deamor em um mundo sem paiacuteses esem religiotildees em que todos vive-riam intensamente o agora O queestaacute culturalmente manifesto emfilmes como Hair de Milos Formanou em canccedilotildees como ldquoImaginerdquode John Lennon soa semelhanteaos experimentos dos utopistas aomenos em um aspecto satildeo sonhosgeminados e resultantes dos limi-tes colocados pelos proacuteprios sabe-res vigentes de entatildeo Diante deuma economia baseada na propri-edade privada que separa posses-

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sotildees pessoais da mesma maneiraque paiacuteses inteiros em um mundoem que as divergecircncias datildeo azo aguerras por territoacuterios sagradospor poccedilos de petroacuteleo ou mesmopor condiccedilotildees miacutenimas de vidaenfim diante de tantos conflitosimaginar outro sistema em que to-dos partilham o mesmo mundo eacutealgo que natildeo deve nos demover depensar que esses sonhos satildeo pro-dutos derivados desses conflitoscomo uma reaccedilatildeo utoacutepica eacute ver-dade mas uma reaccedilatildeo um vetorde forccedila

A socializaccedilatildeo real de que falaFoucault todavia natildeo corres-ponde a essa utopia hippie Suasugestatildeo eacute a de que da mesmamaneira que o socialismo cientiacute-fico precisou criticar o socialismoutoacutepico compreendendo todaviasua originalidade assim tambeacutemnum futuro proacuteximo um conjuntode saberes compreenderaacute a origi-nalidade contida nas experiecircnciasdessa geraccedilatildeo todavia criticando-a em aspectos considerados utoacute-picos A execuccedilatildeo de projetos epesquisas cientiacuteficas atraveacutes de fi-nanciamento coletivo a profissio-nalizaccedilatildeo da prostituiccedilatildeo em luga-res como a Holanda ou a legaliza-ccedilatildeo de certas drogas pode ser vistacomo a socializaccedilatildeo real resul-tante dessas ldquoutopiasrdquo do seacuteculoXX Manifestaccedilotildees essas diga-sede passagem tambeacutem sujeitas acriacuteticas bem como foi o caso do

socialismo cientiacutefico de Marx eEngels pois eacute nesse jogo de rein-venccedilatildeo contiacutenua entre atos de pro-blematizaccedilatildeo incessantes que natildeose para de imaginar outro sistemaou outro problema atualmente na-quele em que se vive

A atitude Com isso em mentepodemos retomar a questatildeo Senatildeo se trata de ser a favor ou con-tra mas de problematizar comosupor que a Antiguidade eacute umerro O enunciado surgiu em ldquoOretorno da moralrdquo uacuteltima entre-vista concedida por Foucault

- Um estilo de existecircnciaeacute admiraacutevel Vocecirc acha osgregos admiraacuteveis

- Natildeo

- Nem exemplares nemadmiraacuteveis

- Natildeo

- O que vocecirc acha deles

- Natildeo tatildeo excelentes Elestoparam imediatamentecontra o que me pareceser o ponto de contradi-ccedilatildeo da moral antiga en-tre de um lado a buscaobstinada por um certoestilo de existecircncia e deoutro o esforccedilo por tornaacute-lo comum a todos estiloque os aproximou sem duacute-vida mais ou menos obs-curamente de Secircneca e de

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Epiteto mas que soacute en-controu a possibilidade dese investir no interior deum estilo religioso Todaa Antiguidade me pareceter sido um ldquoerro pro-fundordquo (Foucault 1994-IV p 698)

Natildeo seria difiacutecil acusar Foucaultde generalizaccedilatildeo apressada ao di-zer que ldquotoda a Antiguidade pa-rece ter sido um lsquoerro profundordquorsquoUm comentador distraiacutedo pode-ria se desviar desse enunciado eapresentar as diversas anaacutelises doautor sobre a esteacutetica da existecircn-cia a parresiacutea o uso dos prazereso cuidado de si sobre as tentaccedilotildeesda carne enfim toda uma histoacute-ria criacutetica da sexualidade que en-contraraacute na Antiguidade em sen-tido amplo do termo dos gregosdo seacuteculo IV aC aos cristatildeos umfoco de atenccedilatildeo nos uacuteltimos anosde vida como assinala FreacutedeacutericGros editor dos uacuteltimos cursos deFoucault (in Lawlor 2014 p 556)Com isso essa personagem se des-viaria do problema e natildeo fariamais do que parafrasear leiturassem exercer uma atitude criacuteticatanto diante do que sugere Fou-cault quanto da proacutepria Antigui-dade sustentando assim uma ade-satildeo irrefletida aos temas de pes-quisa levantados por Foucault Oproacuteprio Freacutedeacuteric Gros natildeo se de-mite de salientar algo relevante

fornecendo uma pista sobre comocompreender esse enunciado aosugerir que ldquoos antigos para Fou-cault perturbam nossas moder-nas certezas E eles estavam ap-tos para tanto para nos perturbardesse modo natildeo porque as verda-des deles seriam mais verdadei-ras do que as nossas mas porqueelas eram outrasrdquo (Idem p 559)Assim menos do que adotar umapostura nostaacutelgica o comentaacuteriode Gros sugere que as problema-tizaccedilotildees da Antiguidade feitas porFoucault constituem uma alteri-dade relevante para a nossa atu-alidade e natildeo simplesmente umrepositoacuterio de soluccedilotildees a seremnovamente traduzidas e cataloga-das Com isso em mente tentare-mos perceber melhor em que me-dida Foucault estaria se referindoagrave Antiguidade como um erro pro-fundo uma vez cientes de que eleretorna a ela despertando um en-canto indisfarccedilaacutevel por parte demuitos leitores

Mais adiante ainda na mesmaentrevista ele continua ldquoTodaa experiecircncia Grega pode ser re-vista um pouco da mesma ma-neira tendo em conta em cadacaso as diferenccedilas de contextoe indicando a parte dessa expe-riecircncia que pode talvez se sal-var e aquela que pelo contraacuteriose pode abandonarrdquo (Foucault1994-IV p 702) A sugestatildeo eacutea de que ao retornar aos antigos

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e problematizar certas experiecircn-cias tornamo-nos aptos a perce-ber o quanto somos diferentes enatildeo tanto o quanto podemos sersemelhantes Nesse sentido par-tes da experiecircncia da AntiguidadeGrega podem ser abandonadase evidentemente outras acabampor ser salvas Essa sugestatildeo aindaum tanto vaga natildeo especifica qualseria esse erro profundo mas per-mite supor que haacute algo de erradoa ser abandonado

No final da entrevista no en-tanto ao ser confrontado com aquestatildeo sobre se haveria ou natildeouma teoria do sujeito entre os gre-gos Foucault esclarece que natildeoacredita ser necessaacuterio reconsti-tuir ldquouma experiecircncia do sujeitordquona Greacutecia Isso porque a experi-ecircncia ou seja a maneira de pro-blematizar a si mesmos dos gre-gos natildeo exigia uma ldquodefiniccedilatildeo desujeitordquo Ele sugere ainda que ba-seado na literatura se ldquonenhumpensador grego nunca encontrouuma definiccedilatildeo de sujeito nemnunca a buscou diria simples-mente que natildeo haacute um sujeitordquo istoeacute natildeo haacute uma teoria nesse sen-tido porque natildeo haacute problemati-zaccedilatildeo nesse sentido Todavia eleressalva

O que natildeo quer dizer queos gregos natildeo se esfor-cem por definir as condi-ccedilotildees pelas quais se daria

uma experiecircncia que natildeo eacuteaquela do sujeito mas doindiviacuteduo na medida emque ele busca se constituircomo mestre de si Faltavaagrave Antiguidade Claacutessica terproblematizado a consti-tuiccedilatildeo de si como sujeitoinversamente a partir docristianismo houve o con-fisco da moral pela teo-ria do sujeito Ora umaexperiecircncia moral essen-cialmente centrada sobreo sujeito natildeo me parecemais satisfatoacuteria hoje Epor isso mesmo um certonuacutemero de questotildees secolocam a noacutes nos mes-mos termos em que elasse colocaram na Antigui-dade (Foucault 1994-IVp 706)

Do fato histoacuterico de natildeo haveruma noccedilatildeo de sujeito natildeo se se-gue que natildeo haja algum tipo deexperiecircncia de si na Greacutecia ou emoutros termos se o sujeito natildeo eacuteproblematizado pelos gregos haacutetodavia uma problematizaccedilatildeo so-bre si mesmo presente na Antigui-dade Claacutessica como Foucault vaidesenvolver no segundo volumede sua histoacuteria da sexualidade Ouso dos prazeres (1984) A esteacuteticada existecircncia eacute vista por Foucaultcomo um dos modos de sujeiccedilatildeopelos quais o indiviacuteduo se encon-

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tra vinculado a um conjunto deregras e de valores caracterizadoneste caso pelo ideal de viver be-lamente de ser mestre de si ede deixar uma memoacuteria de umaexistecircncia bela (Foucault 1994-IV p 384 397 CASTRO 2009p151) Todavia o que natildeo haacutena problematizaccedilatildeo grega sobrecomo ser mestre de si eacute a subor-dinaccedilatildeo dessa esteacutetica da existecircn-cia a uma moral o que seraacute feitopelo cristianismo atraveacutes de umateoria do sujeito ou seja da subor-dinaccedilatildeo da sujeiccedilatildeo do indiviacuteduoa um conjunto de princiacutepios mo-rais Com essa teoria do sujeitoo cristianismo proporaacute uma novaproblematizaccedilatildeo que ldquoconfisca amoralrdquo restringindo-a a possibi-lidades dadas por essa teoria Jaacutenatildeo se pensa mais em como criarpara si uma existecircncia boa e belanuma esteacutetica da existecircncia seme-lhante agrave dos gregos mas a partirde uma teoria sobre como o indi-viacuteduo deve ou natildeo se sujeitar

Evidentemente toda a criacuteticaempreendida em direccedilatildeo agrave no-ccedilatildeo de sujeito natildeo estaacute sendo re-negada por Foucault em nomede uma nova teoria do sujeito epor isso ldquouma experiecircncia moralrdquocentrada sobre tal noccedilatildeo natildeo pa-rece satisfatoacuteria para a problema-tizaccedilatildeo da atualidade Nos tem-pos em que ldquoDeus morreurdquo nummundo desencantado natildeo faz maissentido insistir numa problema-

tizaccedilatildeo centrada na noccedilatildeo de su-jeito Ela tornou-se uma posiccedilatildeoestrateacutegica dissolvida na praacuteticada linguagem natildeo estando elamais submetida necessariamentea uma experiecircncia moral especiacute-fica como a do cristianismo (Fou-cault 2007) Como Foucault su-gere na entrevista a AlessandroFontana ldquopenso efetivamente quenatildeo haacute um sujeito soberano fun-dador uma forma universal desujeito que se poderia reencon-trar em todos os lados Sou bas-tante ceacutetico e bem hostil para comessa concepccedilatildeo de sujeitordquo (Fou-cault 1994-IV p 733) Natildeo se-ria a primeira vez que esse ceti-cismo se manifestaria A despeitodos deslocamentos teoacutericos ofe-recidos pelos textos em torno daAntiguidade a problematizaccedilatildeoem torno desse sujeito soberanoemergente no cristianismo eacute re-corrente (FOUCAULT 1944-IV p223 633-4 657) Com isso emmente podemos retomar o trechosupracitado de sua uacuteltima entre-vista

A busca de estilos de exis-tecircncia tatildeo diferentes unsdos outros quanto possiacute-veis me parece um dospontos pelos quais a buscacontemporacircnea de umaforma de moral que se-ria aceitaacutevel para todomundo ndash no sentido de

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que todo mundo deveriaa ela se submeter ndash me pa-rece catastroacutefica Mas se-ria um contrassenso que-rer fundar uma moral mo-derna sobre a moral an-tiga passando por cima damoral cristatilde Se eu empre-endi um estudo tatildeo longoseria para tentar eviden-ciar como o que chama-mos de moral cristatilde estaacuteincrustado na moral euro-peia natildeo soacute desde os pri-moacuterdios do mundo cris-tatildeo mas desde a moral an-tiga (Foucault 1994-IV p706-7)

Esse comentaacuterio colabora paraelucidar com mais clareza porqueele considera que Antiguidade se-ria um erro profundo sem quecom isso se incorra em algum tipode avaliaccedilatildeo anacrocircnica Foucaultsalienta que a busca de uma moralpara todos seria catastroacutefica emsua atualidade exatamente porquea problematizaccedilatildeo atualmente eacuteoutra Uma vez que natildeo haacute maiso problema do sujeito soberanoa questatildeo deixa de ser aquela re-lativa agrave forma universal para aqual uma esteacutetica da existecircnciaou uma teoria do sujeito morali-zadora para todos se remeteriam

Em todo caso para que isso setornasse claro Foucault argumen-tou em sua Histoacuteria da Sexuali-

dade (1984 1985 2018) no sen-tido de mostrar como o sujeito natildeoeacute um problema que desde sem-pre existiu para a moral europeiaponto de emergecircncia das moraisditas ocidentais Ele emergiu emdeterminado momento criandoum problema que natildeo existia paraos gregos surgiu a partir dos cris-tatildeos graccedilas ao ldquoconfisco da moralrdquoda Antiguidade e que provavel-mente com a busca por estilos deexistecircncia tatildeo diferentes uns dosoutros na atualidade ele deixoude poder ser problematizaacutevel tal equal Segundo a sugestatildeo de Be-atrice Han ldquoo modelo grego de-sempenha o papel de uma matrizmais simples de avaliar a moder-nidade a contrariordquo (Han 2012p 10) Em termos simplificado-res por um lado Foucault sugereque para os gregos haacute esteacutetica daexistecircncia sem uma teoria do su-jeito mas com um objetivo deter-minado ndash o de ser mestre de sio de ter segundo o estilo idealuma existecircncia boa e bela e poroutro para boa parte do cristia-nismo (Foucault ressalva algumasseitas asceacuteticas) essa experiecircnciade busca de um estilo eacute confiscadapela moral permitindo o surgi-mento de uma teoria do sujeito oque anula a necessidade de se tor-nar mestre de si uma vez que seestaacute assujeitado Cito-o

Esta elaboraccedilatildeo de sua

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proacutepria vida como umaobra de arte pessoalmesmo que ela obedeccedilaa cacircnones coletivos es-tava no centro me pareceda experiecircncia moral davontade de moral da An-tiguidade bem como noCristianismo com a reli-giatildeo do texto a ideia deuma vontade de Deus e oprinciacutepio de obediecircncia amoral ganha muito maisa forma de um coacutedigo deregras (somente algumaspraacuteticas asceacuteticas estive-ram mais ligadas ao exer-ciacutecio de uma liberdadepessoal) Da Antiguidadeao cristianismo passe-sede uma moral que era es-sencialmente uma buscade uma eacutetica pessoal auma moral como obedi-ecircncia a um sistema de re-gras E se eu me inte-ressei pela Antiguidadeeacute que por toda uma seacute-rie de razotildees a ideia deuma moral como obediecircn-cia a um coacutedigo de regrasestaacute prestes agora a de-saparecer senatildeo jaacute desa-pareceu E a essa ausecircnciade moral deve responderuma busca que eacute aquelade uma esteacutetica da exis-tecircncia (Foucault 1994-IVp 731)

O ldquoerrordquo aparece aqui de formamais clara e menos vaga apesarde terem sabido elaborar uma es-teacutetica da existecircncia ou seja ape-sar de terem sido capazes de con-ceber a proacutepria existecircncia en-quanto indiviacuteduos como umaobra de arte pessoal os antigos ofaziam tendo em vista cacircnones co-letivos Eacute por isso que por maisintrigante e estimulante que sejapensar na problemaacutetica de umaesteacutetica da existecircncia a partir dosgregos ela eacute completamente dis-tinta da nossa experiecircncia porqueali se tratava de criar uma vidacomo obra a partir de uma esti-liacutestica preacute-concebida ou se qui-sermos de uma retoacuterica do queseria a boa vida A Antiguidadeseria um erro para Foucault namedida em que entatildeo se acredi-tava ser possiacutevel imaginar um es-tilo que seria o bom e o belo es-tabelecendo uma verdade do bemagir Essa estilizaccedilatildeo engessada dobem viver daacute lugar com o cristia-nismo a um coacutedigo de regras fun-dado presumidamente na vontadede seu Deus e no princiacutepio de obe-diecircncia Desaparece a experiecircn-cia da estilizaccedilatildeo da existecircncia apartir de modelos preacute-concebidospara dar lugar agrave teoria do sujeitoRetornar a ambos natildeo seria umasoluccedilatildeo para pensar a moderni-dade mas serve para compreen-der agrave nossa maneira de problema-

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tizar que conforme a sugestatildeo an-terior de Foucault depende dessesdois elementos a saber da reto-mada plural de uma esteacutetica daexistecircncia de um modo desconhe-cido ateacute entatildeo e de uma dissoluccedilatildeoda teoria do sujeito soberano

Se os gregos satildeo uma matriz aocontraacuterio isso se daacute porque se in-vertermos o modo como eles pro-blematizavam a proacutepria existecircn-cia encontramos algo semelhantea atitude moderna Ao retirar-mos daquela esteacutetica da existecircn-cia sua finalidade ou seja a ne-cessidade de fazer coincidir a vidacomo obra de arte com a vidaboa e bela segundo um estilopreacute-determinado estaremos di-ante da atitude moderna que Fou-cault exemplifica atraveacutes de certaleitura de Kant como vemos emldquoO que satildeo as Luzesrdquo

Ao me referir ao texto de Kantme pergunto se natildeo se pode con-siderar a modernidade como umaatitude mais do que como um pe-riacuteodo histoacuterico Por atitude querodizer um modo de relaccedilatildeo queconcerne agrave atualidade uma esco-lha voluntaacuteria que se faz por al-guns enfim uma maneira de pen-sar e de sentir uma maneira tam-beacutem de agir e de se conduzir quede uma soacute vez marca uma perti-necircncia e se apresenta como umatarefa Um pouco sem duacutevidacomo o que os gregos chamamde eacutethos Por conseguinte mais

do que querer distinguir o ldquope-riacuteodo modernordquo das eacutepocas ldquopreacuterdquoe ldquopoacutesrdquo modernas creio que seriamelhor investigar como a atitudeda modernidade desde que ela seforma se encontra em luta comatitudes de ldquocontramodernidaderdquo(Foucault 1994-IV p 568)

Nota-se aqui como esse ldquoerrordquoprofundo ajuda a pensar Comosugere Deleuze ldquoFoucault dizos gregos fizeram muito menosou muito mais como quiseremrdquo(1988 p 121) de modo que natildeose trata de reproduzir o eacutethos ou aatitude dos gregos Se eacutethos eacute co-mumente traduzido por haacutebito oucostume perde-se evidentementea especificidade que essa palavrapossui e mesmo a disputa emtorna de seu sentido Barbara Cas-sin sugere em seu verbete ldquoMo-raisrdquo do Dicionaacuterio dos intraduziacute-veis (2014 p 691-3) que muitasdas dificuldades e mesmo das con-fusotildees entre costumes e moraisentre morais e eacuteticas derivam deuma concepccedilatildeo de eacutethos Ela as-sinala em sua sumaacuteria abordagemdesse problema um interessantequiasma inicial presente entre ossentidos filosoacuteficos do termo atri-buiacutedos por Platatildeo e Aristoacutetelesldquoonde Platatildeo conforta o natura-lista com o argumento de que ohaacutebito eacute inato Aristoacuteteles neutra-liza o que eacute dado para noacutes comonatural argumentando pela res-ponsabilidade praacuteticardquo (2014 p

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693) Se por um lado haveria umanaturalizaccedilatildeo do eacutethos por outroele seria da ordem do que eacute inven-tado nutrido criado Aristoacutetelesque teria inovado com o tiacutetulo desua Eacutetica (2014 p 692) eacute particu-larmente importante para a com-preensatildeo do sentido de eacutetica comoaccedilatildeo ou ato como sugere Cassinao recolher passagens da Poeacuteticada Retoacuterica e da Eacutetica NicomaqueiaO que gostariacuteamos de salientarantes de retomar o nosso pontoeacute o elemento ativo destacado pelaautora em sua leitura de Aristoacutete-les Ao contraacuterio do que as tradu-ccedilotildees por haacutebito ou costume pode-riam levar a supor a saber de queeacutethos eacute algo que passivamente seforma no indiviacuteduo Cassin sugerea ligaccedilatildeo fundamental entre eacutethose a praacutetica ativa de uma virtude(2014 p 692) Por fim ela su-gere ldquoque a maioria dos filoacutesofosque buscaram definir os termos[gregos ligados ao eacutethos] em suasproacuteprias linguagens como Ciacuteceroou GWF Hegel tentaram encon-trar um conjunto de problemaacuteti-cas equivalentes para a Greacutecia as-sim situando a tarefa da traduccedilatildeono coraccedilatildeo de sua reflexatildeordquo (2014p 693)

O primeiro elemento de con-traste da sugestatildeo de Foucaultcom uma tradiccedilatildeo de interpreta-ccedilatildeo do eacutethos surge indiciariamenteaqui porque a equivalecircncia en-tre eacutethos e atitude eacute improvaacutevel

apesar de possiacutevel O autor pro-vavelmente ciente da disputa emvolta do termo sugere menos doque afirma Ele diz ldquoum poucosem duacutevidardquo ldquoUm poucordquo por-que evidentemente a problemati-zaccedilatildeo grega natildeo eacute equivalente agravemoderna e por isso eacutethos e ati-tude seriam duas coisas distintase intraduziacuteveis entre si Sem duacute-vida guardam alguma coisa emcomum porque em ambos os ca-sos algo da conduccedilatildeo de si estaacuteem questatildeo Natildeo agrave toa atitudeeacute definida aqui como uma ma-neira de governar a si mesmoisto eacute de agir de se conduzirperante os outros todavia ativauma vez resultante de uma es-colha e imbuiacuteda de uma tarefaA atitude da modernidade defi-nida no texto de Kant como aquelade sapere aude (KANT 2012) ouseja de emancipar-se numa ati-tude de maioridade de ousadiae de coragem de buscar a ver-dade seraacute exemplificada por Fou-cault atraveacutes da figura de Baude-laire em uma vontade de ldquoheroi-cizar o presenterdquo Heroicizaccedilatildeoirocircnica uma vez que natildeo se tratada sacralizaccedilatildeo de um momentoou da tentativa de perpetuaacute-lobem como natildeo se trata de se re-colher numa curiosidade fugidiade uma atitude de flanecircrie que secontenta em prestar atenccedilatildeo emcoisas distraidamente e colecio-nar lembranccedilas sem qualquer cri-

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A ANTIGUIDADE UM ERRO PROFUNDOndash FOUCAULT A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

teacuterio A essa atitude Baudelaireopotildee aquela do homem da moder-nidade Cito um trecho de O pin-tor da vida moderna

Ele vai corre procuraSeguramente esse ho-mem esse solitaacuterio do-tado de uma imaginaccedilatildeoativa sempre viajandoatraveacutes do grande desertode homens tem uma ta-refa mais elevada do queaquela de um puro flacirc-neur uma tarefa mais ge-ral diferente da do pra-zer fugidio da circunstacircn-cia Ele busca algo quenos permitiratildeo chamar demodernidade Trata-separa ele de destacar damoda o que ela pode con-ter de poeacutetico no histoacute-rico (Baudelaire apud Fou-cault 1994-IV p 569-70)

Com essa retomada de Baude-laire Foucault enceta uma ma-neira diferente de encarar a in-venccedilatildeo de si mesmo porque natildeose trata simplesmente de se rela-cionar com uma interioridade fu-gidia mas de atraveacutes do enfren-tamento dessa solidatildeo encontraralgo ldquopoeacutetico no histoacutericordquo Se aAntiguidade eacute um erro profundoassim seria na medida em quea tarefa de viver uma vida bela

e boa natildeo dependeria desse ca-raacuteter continuamente investigativoe imaginativo tiacutepico do homemmoderno Evidentemente umaavaliaccedilatildeo justa desse erro soacute se-ria possiacutevel sob a pecha de ana-cronismo Mas o alerta passageiroe ocasional de Foucault natildeo me-rece desprezo Ele quer que evite-mos assumir uma atitude de flanecirc-rie em relaccedilatildeo ao modo de proble-matizar grego que em muito eacute dis-tinto do moderno Somente a par-tir da modernidade quando daemergecircncia de fenocircmenos como amoda quando se pocircde tanto estili-zar os corpos quanto submetecirc-losa certos padrotildees faz sentido suge-rir que a atitude emancipada eacute ade perceber o que ldquoela pode conterde poeacutetico no histoacutericordquo ou sejao que em meio a tantos padrotildeessurge como algo que desafia osnossos limites perturba uma ex-periecircncia que acumula estilos sempensar na invenccedilatildeo de si mesmo

A atitude de contramoderni-dade aparece como aquela quebusca traduzir o eacutethos para soluci-onar um problema presente que eacutea favor de uma tendecircncia de cortesde roupa contra todas as outrasque acumula incessantes citaccedilotildeesdos antigos citando-as como sinalde sabedoria num gesto tatildeo auto-maacutetico quanto a subida ou descidade um elevador O modo de viverdos antigos natildeo soacute pode ter sidouma maneira de errar como serve

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de exemplo de erracircncia de cami-nho jaacute percorrido e sobre o qual soacutenos cabe perceber as pegadas en-tender as marcas e investigar seusproblemas A atitude do filoacutesofo eacuteessa de ensaiar afinal de esboccedilaralgo de poeacutetico no histoacuterico de tal

modo que menos do que mais umquadro na parede seus gestos sir-vam como uma experiecircncia modi-ficadora de si e de seu entorno deum jeito tal que ningueacutem na Anti-guidade pocircde experimentar

Referecircncias

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Trad Salma T Muchail Satildeo Paulo Martins Fontes 2007 9ordf Ed

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A ANTIGUIDADE UM ERRO PROFUNDOndash FOUCAULT A FILOSOFIA E SUAS ATITUDES

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___ ldquoA liccedilatildeo da vitoacuteria de Corbynrdquo Blog da Boitempo Satildeo Paulo jun2017 Disponiacutevel em Blog da Boitempo Acesso em 17 de junhode 2017

___ ldquoO que Hegel nos ensina sobre como lidar com Trumprdquo Blog daBoitempo Satildeo Paulo jan 2018 Disponiacutevel em Blog da BoitempoAcesso em 18 de janeiro de 2018

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Recebido 29122018Aprovado 30072019Publicado 17112019

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223147

Sobre a Centralidade e a Estrutura do Capiacutetulo ldquoOsCorpos Doacuteceisrdquo de Vigiar e Punir

[On the Centrality and Structure of the Chapter The Docile Bodiesof Discipline and Punish ]

Kleverton Bacelar

Resumo Esse artigo tem por objetivo expor a centralidade do pri-meiro capiacutetulo da terceira parte do Vigiar e Punir para a demonstra-ccedilatildeo de seu argumento principal bem como sua amarraccedilatildeo estruturalno conceito de corpo O valor posicional central desse capiacutetulo na or-ganizaccedilatildeo peculiar da obra soacute pode ser demonstrado mediante a expo-siccedilatildeo do conceito de disciplina de sua diferenciaccedilatildeo de outras formasde dominaccedilatildeo (escravidatildeo da domesticidade da vassalidade e do as-cetismo) da especificaccedilatildeo do momento histoacuterico em que emerge e dorealce da importacircncia dessa dataccedilatildeo para o argumento central de Fou-caultPalavras-chave corpo disciplina eacutepoca claacutessica reforma penal mo-derna

Abstract This paper explores the centrality of the first chapter of thethird part of Discipline and Punish for the demonstration of its mainargument as well as its structural tying in the concept of body Thecentral positional value of this chapter in the peculiar organizationof the work can only be demonstrated by exposing the concept ofdiscipline its differentiation from other forms of domination (slaverydomesticity vassality and asceticism) and the specification of thehistorical moment in which it emerges and the highlight of theimportance of this dating to Foucaultrsquos central argumentKeywords body discipline classical period modern penal reform

Antes e depois da publicaccedilatildeodo Vigiar e Punir em 9 de feve-reiro de 1975 Michel Foucaultpronunciou-se sobre o objetivodessa obra No curso A SociedadePunitiva ministrado entre o iniacuteciode janeiro e o final de marccedilo de1973 ele explicou dessa maneirao problema teoacuterico que a prisatildeo

lhe colocava

No fundo o ponto de par-tida foi o seguinte porque essa instituiccedilatildeo estra-nha a prisatildeo Essa per-gunta se justificava de vaacute-rias maneiras Em pri-

Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Mestre e doutor em filosofia pela Universidade de SatildeoPaulo (USP) E-mail kbacelarufbabr ORCIDhttpsorcidorg0000-0003-3643-5201

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meiro lugar do ponto devista histoacuterico pelo fatode que a prisatildeo como ins-trumento penal foi apesarde tudo uma inovaccedilatildeo ra-dical no iniacutecio do seacuteculoXIX De repente todas asformas das antigas puni-ccedilotildees todo aquele maravi-lhoso e fulgurante folcloredas puniccedilotildees claacutessicas -pelourinho esquarteja-mento forca fogueira etc- desapareceu em proveitodessa funccedilatildeo monoacutetonada reclusatildeo Do ponto devista histoacuterico portantoeacute uma peccedila nova Aleacutemdisso teoricamente acre-dito que natildeo se pode de-duzir das teorias penaisformuladas na segundametade do seacuteculo XVIIIa necessidade da prisatildeocomo sistema de puniccedilatildeocoerente com essas novasteorias Teoricamente eacuteuma peccedila estranha Porfim por uma razatildeo fun-cional desde o comeccediloa prisatildeo foi disfuncionalPercebeu-se que em pri-meiro lugar esse novo sis-

tema de penalidade natildeoreduzia de modo algum onuacutemero de criminosos eem segundo que levavaagrave reincidecircncia que refor-ccedilava de modo muito per-ceptiacutevel a coesatildeo do grupoconstituiacutedo pelos delin-quentes O problema quepropus portanto era o se-guinte por que haacute cento ecinquenta anos e durantecento e cinquenta anos aprisatildeo1

Desses questionamentos (a novi-dade histoacuterica da prisatildeo sua es-tranheza teoacuterica e sua aparentedisfuncionalidade congecircnita) anovidade seraacute exposta na primeiraparte da obra a estranheza na se-gunda e a explicaccedilatildeo do fracassoaparente da prisatildeo eacute inteiramenteexplicado na quarta parte da obramediante a conjugaccedilatildeo dos con-ceitos de ilegalismo e delinquecircn-cia correlacionados com as ldquoagecircn-cias do poder punitivordquo a pri-satildeo (que produz a delinquecircncia)a poliacutecia (que utiliza a eficaacutecia in-versa da prisatildeo para tornar acei-taacutevel seu poder exorbitante) o ju-diciaacuterio (que eacute mero instrumento

1Cf aula de 28 de marccedilo de 1973 que encerra o curso A Sociedade punitiva pp205-6 (gm)2Embora Foucault mencione o ldquosistema poliacutecia-prisatildeordquo(VP p250) e acrescente o ldquonoticiaacuterio policialrdquo quando

analisa trecircs publicaccedilotildees de espectro poliacuteticos distintos (direita centro e esquerda) usei o termo agecircncia tal qualempregado por Zaffaroni em seus escritos que mencionam as ldquoagecircncias do poder punitivordquo ou seja agecircncias judi-ciais (tribunais) ldquoagecircncias executivas do sistema penalrdquo (poliacutecias e cadeias) e as agecircncias ideoloacutegicas (os meios decomunicaccedilatildeo de massa) por causa da fortiacutessima inspiraccedilatildeo e conotaccedilatildeo foucaultiana natildeo explicitamente declarada

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

de seleccedilatildeo dos ilegalismos) e a im-prensa (que difunde o medo so-cial do delinquente)2 Mas o fi-nal destacado da citaccedilatildeo enunciaa problemaacutetica geral que articulaos trecircs questionamentos a impo-siccedilatildeo hegemocircnica da prisatildeo apesarde sua estranheza teoacuterica e de suaaparente disfuncionalidade con-gecircnita Explicar o porquecirc dessaldquouniversalizaccedilatildeo da prisatildeo comoforma geral dos castigosrdquo ou suascondiccedilotildees de possibilidade eacute o ob-jetivo da terceira parte3

Em L rsquoimpossible Prison recher-ches sur le systeme peacutenitentiaire auXIXegraveme siegravecle publicado em 1980Michel Foucault voltou a esclare-cer as razotildees pelas quais pareceu-lhe legiacutetimo tomar a prisatildeo comoobjeto de estudo em Vigiar e Pu-nir 1ordm) porque ela foi bastante ne-gligenciada na medida em que seestudava apenas o problema soci-oloacutegico da populaccedilatildeo delinquenteou o problema juriacutedico do sistemapenal e de seu fundamento 2ordm)porque queria retomar o tema dagenealogia da moral mas seguindoo fio do que se poderia chamarde rsquotecnologias moraisrsquo e 3ordm) por-

que a prisatildeo e () numerosos as-pectos da praacutetica penal estavamsendo postos () em questatildeo naFranccedila na Inglaterra e na Itaacutelianos EUA4 Da primeira razatildeo po-demos concluir a contrario sensuque a investigaccedilatildeo natildeo eacute uma soci-ologia da populaccedilatildeo delinquentenem tampouco uma discussatildeo jus-filosoacutefica sobre o problema do di-reito penal e de seu fundamento(por que punir Como puniretc) mas uma histoacuteria social eeconocircmica da prisatildeo (Nascimentoda prisatildeo)5 Da terceira razatildeo po-demos concluir que essa histoacuteriada prisatildeo se vincula aos aconte-cimentos do presente agraves revoltase o engajamento de Foucault noGrupo de Informaccedilatildeo sobre as pri-sotildees ou seja esse discurso histoacute-rico pretende contribuir com osdebates e lutas de sua eacutepoca6Dela muito jaacute se falou seja o proacute-prio Foucault seja seus comen-tadores mas talvez de maneirapouco articulada com a segundarazatildeo (genealogia da consciecircnciamoral) e sobretudo com os mo-tivos declarados no curso A So-ciedade Punitiva particularmente

Cf ZAFFARONI R Em Busca das Penas Perdidas RJ Editora Revan 1991 p 1083No resumo do curso A Sociedade Punitiva Foucault afirma isso categoricamente ldquoPara compreender o fun-

cionamento real da prisatildeo por traacutes de sua aparente disfunccedilatildeo bem como seu profundo sucesso por traacutes de seusfracassos superficiais eacute preciso sem duacutevida retornar agrave anaacutelise das instacircncias parapenais de controle nas quais elafigurou como se viu no seacuteculo XVII e sobretudo no XVIIIrdquo (SP p 234ss)

4Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p336-75Nesse ponto o nietzcheanismo de Foucault (histoacuteria como meacutetodo filosoacutefico) o diferencia de H L A HART

Punishment and Responsibility Oxford 19676Sobre essa referecircncia a atualidade da questatildeo ver Vigiar e Punir p32 Sobre o envolvimento de Foucault no

GIP e sobre seu ativismo na primeira metade dos anos 70 ver o relato de ERIBON Michel Foucault

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a problemaacutetica geral que articulaas questotildees da novidade do estra-nhamento e da disfuncionalidadeDessas articulaccedilotildees dependem ajusta apreciaccedilatildeo da tese central eda estrutura do Vigiar e Punir

Com efeito o filoacutesofo dedicou34 da obra e algumas entrevis-tas para explicar por que a pri-satildeordquo enquanto projeto de correccedilatildeodos indiviacuteduos fracassou (longede transformar os criminosos empessoas honestas soacute serve para fa-bricar delinquentes ou para enter-rar ainda mais os criminosos nacriminalidade) e embora as cons-tataccedilotildees do fracasso tenham sidoimediatas (1825-35) tornou-se oinstrumento de puniccedilatildeo hegemocirc-nico na modernidade Isso sig-nifica que a principal funccedilatildeo daprisatildeo natildeo eacute diminuir a crimi-nalidade nem ressocializar o cri-minoso mas consiste em fabricara delinquecircncia o indiviacuteduo pe-rigoso7 Mas nessa mesma oca-siatildeo ele se perguntava sobre o queo livro tratava ndash ldquodas prisotildees naFranccedila entre 1760 e 1840rdquo e res-pondia ldquonada dissordquo8 Talvez oobjeto visado no subtiacutetulo (Nas-cimento da Prisatildeo) natildeo seja so-

mente nem principalmente a ins-tituiccedilatildeo penitenciaacuteria Haacute no Vi-giar e Punir uma outra prisatildeo queFoucault revela da seguinte formano fim do primeiro capiacutetulo Ohomem de que nos falam e que nosconvidam a liberar jaacute eacute em si mesmoo efeito de uma sujeiccedilatildeo bem maisprofunda que ele Uma rsquoalmarsquo o ha-bita e o leva agrave existecircncia que eacute elamesma uma peccedila no domiacutenio exer-cido pelo poder sobre o corpo Aalma efeito e instrumento de umaanatomia poliacutetica a alma prisatildeo doscorpos (VP 31-2) Cumpre emprimeiro lugar chamar a atenccedilatildeopara essa inversatildeo foucaultiana doplatonismo Com efeito Platatildeoafirma no Fedro que ldquoa alma do fi-loacutesofo despreza profundamente ocorpordquo(65d) que o concebe comouma corrente uma janela umaprisatildeo que perturba a alma e opensamento ldquoesse fardo que car-regamos conosco e que chamamoscorpo e onde nos aprisionamosrdquo(250c) Nessa inversatildeo talvez es-teja a chave heuriacutestica da obraa alma moderna enquanto pri-satildeo disciplinada do corpo desde aeacutepoca claacutessica eacute a condiccedilatildeo de pos-sibilidade da prisatildeo institucional

7FOUCAULT M ldquoA evoluccedilatildeo da noccedilatildeo de indiviacuteduo perigoso na psiquiatria legal do seacuteculo XIXrdquo in DE III8FOUCAULT Mesa redonda em 20 de maio de 1978 p337 Citando essa passagem Dreyfus e Rabinow con-

cluem acertadamente ldquoApesar de Vigiar e Punir ter como subtiacutetulo Nascimento da Prisatildeo seu objeto de estudo natildeoeacute exatamente a prisatildeo eacute a tecnologia disciplinar () O objeto de estudo de Foucault satildeo as praacuteticas de objetivaccedilatildeode nossa cultura conforme incorporadas numa tecnologia especiacuteficardquo (1995159) Embora apoiado no ensaio ldquoOsujeito e o Poderrdquo esses autores estabelecem uma interpretaccedilatildeo limitada dos conceitos de ldquomodos ou processos deobjetivaccedilatildeordquo e ldquomodos ou processos de subjetivaccedilatildeordquo que para ser mais precisa deveria levar em consideraccedilatildeo oprimeiro ldquoPrefaacutecio agrave Histoacuteria da Sexualidaderdquo o Verbete ldquoMichel Foucaultrdquo a conferecircncia ldquoVerdade e Subjetividaderdquo aaula do curso ldquoSubjetividade e Verdaderdquo e a ldquoIntroduccedilatildeordquo de O Uso dos Prazeres

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

que suavizou os castigosPara comprovarmos o duplo

sentido que a prisatildeo possui nessaobra eacute necessaacuterio resumir a in-troduccedilatildeo do Vigiar e Punir sali-entando que o que estaacute em jogonesse livro eacute uma ldquohistoacuteria corre-lativa da alma moderna e de umnovo poder de julgar uma genea-logia do atual complexo cientifico-judiciaacuterio onde o poder de punirse apoia recebe suas justificaccedilotildeese suas regras estende seus efeitose mascara sua exorbitante singula-ridaderdquo (p26)9 Antes contudocumpre evidenciar a estrutura daobra para localizar com precisatildeoo papel que essa outra prisatildeo ex-posta minudentemente na terceiraparte da obra desempenha no ar-gumento de Michel Foucault Aterceira parte funciona como umacharneira que une a segunda ea quarta partes e cujos capiacutetulosencadeiam-se numa sequecircncia or-denada a partir da constituiccedilatildeodisciplinada da alma moderna emldquoOs corpos doacuteceisrdquo A parte ldquodis-

ciplinardquo funciona como dobradiccedilaporque a segunda parte mostrouque a reforma natildeo previa a peni-tenciaacuteria e a quarta parte mostraraacuteque embora desde jaacute votada aofracasso ela se impocircs num curtoespaccedilo de tempo

O esforccedilo que empreendemosaqui eacute inspirado no modo comoGilles Deleuze e Frederic Grosaproximaram-se da peculiar obrade Michel Foucault Com efeitodiante da Histoacuteria da Loucura drsquoO Nascimento da Cliacutenica do Vi-giar e Punir ou da Histoacuteria da Se-xualidade que segundo seu au-tor ldquonatildeo satildeo tratados de filoso-fia nem estudos histoacutericos no maacute-ximo fragmentos filosoacuteficos emcanteiros histoacutericosrdquo10 eacute reco-mendaacutevel procurar encontrar aldquoarquitetura conceitual extrema-mente forterdquo sobre a qual repousaa narrativa que nos desencarregada ldquotarefa ambiacutegua de julgar avalidade dos conteuacutedos histoacutericosavanccedilados por Foucaultrdquo11

9Francois Boullant dedicou ao Vigiar e Punir um belo comentaacuterio cujo tiacutetulo no plural sinaliza o duplo sentidoque queremos enfatizar sem natildeo obstante alcanccedilar a alma-prisatildeo Cf Michel Foucault et les prisions Paris PUF2003

10Foucault Mesa redonda em 20 de maio de 1978 in DE vol4 p33611GROS F Foucault et la Folie Paris PUF 1997 p5 Coube a Deleuze fornecer um esquema de interpretaccedilatildeo

global de Foucault a partir da reelaboraccedilatildeo de artigos e dos dois cursos dedicados ao amigo que foram ministra-dos na Universidade de Paris VIII-Vincennes- Saint-Denis (de 2210 a 17121985 e de 701 a 27051986) queresultaram no livro Foucault publicado em 1986 Aqui ele afirma que ldquoo saber o poder e o si satildeo a tripla raiz deuma problematizaccedilatildeo do pensamentordquo (p124) constituindo os trecircs eixos ou ldquodimensotildeesrdquo ou ldquoinstacircncias da topo-logiardquo (p121 127) da obra de Foucault Em cada uma salienta os dualismos peculiares do saber (ver e falar ou ovisiacutevel e enunciaacutevel ou a luz e a linguagem) do poder (afetar e ser afetado ou espontaneidade e receptividade ouativo e reativo) e a triacuteade da subjetivaccedilatildeo (singularidades ldquopresasrdquo em relaccedilotildees de poder ou que ldquoresistemrdquo a elasfissurando-as modificando-as e invertendo-as e ainda a singularidades ldquoselvagensrdquo que estatildeo fora natildeo ligadas eacima das relaccedilotildees de forccedila) GROS F Le Foucault de Deleuze une fiction meacutetaphysique in Philosophie nordm 421995 pp53-63

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KLEVERTON BACELAR

1 - Estrutura do Vigiar e PunirNascimento da prisatildeo

Franccedilois Ewald assistente de Fou-cault no Collegravege de France emuma das primeiras recensotildees doVigiar e Punir afirmou que essaobra

natildeo comporta nem prefaacute-cio nem introduccedilatildeo nemconclusatildeo Justificaccedilatildeonenhuma Seu comeccedilouma hipoacutetese de trabalhouma proposiccedilatildeo o avan-ccedilar de uma possibilidade aser experimentada Podefazer-se uma histoacuteria doscastigos sob o fundo deuma histoacuteria dos corpos(SP p 30) ou aindaPode fazer-se a genea-logia da moral modernaa partir de uma histoacuteriapoliacutetica dos corpos ()Nada de imposiccedilotildees umapossibilidade entre ou-tras certamente natildeo maisverdadeira que as outras

mas talvez mais perti-nente mais eficaz maisprodutiva que uma outra(13) E eacute isso que importanatildeo produzir algo de ver-dadeiro no sentido queisso seria definitivo ab-soluto peremptoacuterio masdar peccedilas ou pedaccedilosde verdades modestas no-vos relances estranhosque natildeo implicam um si-lecircncio de estupefacccedilatildeo ouum burburinho de comen-taacuterios mas que sejam uti-lizaacuteveis por outros comoas chaves de uma caixa deferramentas 12

A esses poderiacuteamos acrescen-tar mais um estranhamento for-mal ela comeccedila com ilustra-ccedilotildees (iconografia do adestramentocomo nova forma de controle so-cial13) e no primeiro capiacutetuloFoucault comeccedila ldquoseurdquo texto coma colagem de dois relatos o relatojornaliacutestico do supliacutecio de Dami-ens (1757) e um Regulamento da

12EWALD F ldquoAnatomie et corps politiquesrdquo in Critique Paris 1975 p1234-513Cf a bela anaacutelise que Francois Boullant faz no item ldquoimagens et conceptsrdquo (pp32ss) ldquoA imagem desempenha

em VP um papel essencial () Anteriormente ao texto pois uma rajada de gravuras sobriamente intituladaIlustraccedilotildees premedita o assunto Primeira impregnaccedilatildeo ao mesmo tempo solta e precisa do conteuacutedo das anaacutelisesantecipaccedilatildeo flexiacutevel e metoacutedica das conexotildees por vir as imagens permitem ver a invisiacutevel solidariedade das dis-ciplinas antes de dar-lhes a pensar () Trinta gravuras ou fotografias escrupulosamente escolhidas numeradase classificadas segundo uma ordem que natildeo segue nem a cronologia nem a ordem dos assuntos e se organiza emanelrdquo Ele nota que uma paginaccedilatildeo infeliz insere na coleccedilatildeo ldquoTelrdquo [e nas ediccedilotildees de liacutengua portuguesa] esse con-junto de gravuras em um caderno central A ediccedilatildeo da Pleacuteiade natildeo restabeleceu a disposiccedilatildeo original mas deslocoualgumas ilustraccedilotildees comentadas por Foucault para o texto comentado

14Recurso estiliacutestico jaacute empregado em NC quando na introduccedilatildeo Foucault coloca em paralelo um texto do meacute-dico Pomme e uma descriccedilatildeo minuciosa de Bayle Cf BRAUNSTEIN J-F ldquoMort et naissance de la cliniquerdquo inLECOURT D et ali (dir) La mort de la clinique Paris PUF 2010 p 140

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casa de correccedilatildeo dos jovens de Pa-ris assinado por Faucher (1838)14Devemos observar que esse pri-meiro capiacutetulo conteacutem todos oselementos de uma introduccedilatildeo (ob-jetivo justificativa metodologiaestado da arte) Ele soacute natildeo con-teacutem o plano geral da obra Em-bora Foucault natildeo o forneccedila aobra possui uma estrutura bemamarrada sendo pois bem com-posta Sem prefaacutecio nem conclu-satildeo a obra estaacute dividida em qua-tro partes supliacutecio (com 2 ca-piacutetulos) puniccedilatildeo (com 2 capiacutetu-los) disciplina (com 3 capiacutetulos)e prisatildeo (com 3 capiacutetulos) Paracompreender a articulaccedilatildeo do VPdevemos notar que nessa histoacuteriado nascimento da prisatildeo Foucaultcontrapotildee a puniccedilatildeo em dois ldquocor-tes epocaisrdquo recorrentes em suaobra (eacutepoca claacutessica e moderni-dade)15 acentuando sua rupturaou descontinuidade16 mostra queo suposto humanismo dos refor-madores eacute de fato uma busca demaximizaccedilatildeo e eficaacutecia da puniccedilatildeoque natildeo previa a prisatildeo como ins-

trumento privilegiado quiccedilaacute he-gemocircnico de punir localiza a des-coberta do corpo como objeto desaber e alvo do poder (corpo uacutetile doacutecil) nos seacuteculos XVII e XVIII17

para realccedilar uma de suas tesescentrais (sem o preacutevio disciplina-mento iniciado na eacutepoca claacutessicanatildeo seria possiacutevel mitigar as penascorporais na modernidade) tor-nando a reforma no miacutenimo am-biacutegua Sem o conhecimento dessatese a estrutura do VP pode pare-cer mal composta ou estruturada

A primeira parte do li-vro define o que eacute um su-pliacutecio explicitando a pri-meira imagem formuladaaquela da execuccedilatildeo de Da-miens A segunda parteobstina-se em fixar o mo-mento intermediaacuterio en-tre o supliacutecio de Dami-ens e o regulamento deFaucher Michel Foucaultapresenta entatildeo o projetodos filantropos do fim do

15De modo geral os cortes epocais recorrentes nas anaacutelises foucaultianas satildeo o renascimento (meados do seacuteculoXIV ateacute meados do seacutec XVI) eacutepoca claacutessica (meados do seacutec XVI ateacute fins do XVIII) e modernidade (1789 ateacute 1950)Nos trecircs uacuteltimos volumes da HS Foucault volta a antiguidade estabelecendo novos cortes seacutec IV aC seacutec IIdC e seacutec IV dC Em Michel Foucault e o Direito Marcio Alves da Fonseca pontua esses trecircs cortes epocais (p45n12) afirma acertadamente que o VP se restringe temporalmente aos dois uacuteltimos e espacialmente agrave penalidadena Franccedila mas fala em trecircs grandes eacutepocas da puniccedilatildeo pois inclui os projetos dos reformadores entre o supliacutecioda eacutepoca claacutessica e a prisatildeo na modernidade Ora na Franccedila houve somente duas eacutepocas porque as principaisideias diretrizes da reforma penal foram atropeladas pela penitenciaacuteria Exceto esses dois sistemas prisionais Mi-chel Foucault faz referecircncia agraves formas de penalidade experimentadas na Beacutelgica Filadeacutelfia e na Inglaterra que satildeocontemporacircneas ao projeto dos reformadores para explicar mediante a disciplinarizaccedilatildeo da sociedade qual dessasexperiecircncias serviu como modelo ou foi escolhida de preferecircncia sobre as outras na implantaccedilatildeo da prisatildeo

16Sobre isso cf BRAUNSTEIN J-F ldquoBachelard Canguilhem Foucault Le style franccedilais en eacutepisteacutemologierdquo inP Wagner (dir) Les philosophes et la science Paris Gallimard 2002

17VP pp184 126 e 191

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seacuteculo XVIII que deseja-vam suavizar as penas econstituir uma nova eco-nomia do poder mais uacutetile mais humana natildeo atra-veacutes da prisatildeo mas atra-veacutes de um jogo de ldquosinaisobstaacuteculordquo por uma tec-nologia da representaccedilatildeoque soacute reconhecia a posi-tividade da lei e na qualcada crime tem sua leicada criminoso sua penaA forma-prisatildeo natildeo temseu lugar de nascimentonessas teorias penais Du-rante a eacutepoca claacutessica co-existensivamente ao pro-jeto dos filantropos trecircsmodelos de instituiccedilatildeocarceraacuteria se formam oda Beacutelgica organizadopelo trabalho economica-mente e pedagogicamenteaproveitaacutevel o modelo in-glecircs que preconiza o iso-lamento individual comoinstrumento de conversatildeoe aquele da Filadeacutelfia queassocia isolamento e tra-balho religandounindoassim a reinserccedilatildeo morale material Michel Fou-cault descobre pois no fi-nal do seacuteculo XVIII trecircsmaneiras de organizar o

poder de punir o direitomonaacuterquico o projeto dosjuristas reformadores e oprojeto da instituiccedilatildeo car-ceral A sequecircncia da obradeve entatildeo compreenderporque a terceira tecnolo-gia finalmente se impocircs eclaro de onde ela proveacutemA terceira parte de Vigiare Punir daacute a impressatildeo desair do caminho que nosconduz ao nascimento daprisatildeo para entrar em umamultidatildeo de outras histoacute-rias18

Sem compreender o duplo sen-tido da palavra prisatildeo no VP numdos quais Foucault enuncia suatese principal (a alma modernaenquanto prisatildeo do corpo eacute umefeito e instrumento do poder dis-ciplinar que torna possiacutevel suavi-zar as penas e explicar a hegemo-nia da penitenciaacuteria) toda a ter-ceira parte parece indevidamenteinterposta na narrativa A cone-xatildeo entre o primeiro capiacutetulo daprimeira parte com o primeiro ca-piacutetulo da terceira precisa ser esta-belecida para garantir a boa com-posiccedilatildeo da obra

18KIEacuteFER Audrey Michel Foucault le GIP lrsquohistoire et lrsquoaction These de Philosophie Universiteacute de Picardienovembre de 2006 pp98-99

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2- A Penalidade da Eacutepoca Claacutes-sica agrave Modernidade

Quero dizer a minha pala-vra aos desprezadores docorpo Natildeo devem a meuver mudar o que apren-deram ou ensinaram masapenas dizer adeus ao seucorpo - e destarte emu-decer Corpo eu sou ealma - assim fala a cri-anccedila Por quecirc natildeo falarcomo as crianccedilas Mas ohomem jaacute desperto o sa-bedor diz corpo sou eutotalmente e nenhuma ou-tra coisa e alma eacute uma pa-lavra para algo do corpordquo

Nietzsche ZA I 4 sect 1-3

Vigiar e Punir abre-se com a cola-gem de dois relatos o do supliacute-cio de Damiens19 no Antigo Re-gime (1757) e o da utilizaccedilatildeo dotempo no regulamento da Casa dejovens detentos de Paris na mo-dernidade (1838) Como mencio-nei esse recurso estiliacutestico jaacute forautilizado em NC e essa colagem

indica a grande transformaccedilatildeo naeconomia do castigo ocorrida navirada do seacutec XVIII ao XIX Den-tre tantas transformaccedilotildees20 Fou-cault atem-se a uma o desapare-cimento dos supliacutecios

Ateacute entatildeo as teacutecnicas puni-tivas apoderavam-se do corpopara despedaccedilaacute-lo esquartejaacute-loamputaacute-lo marcaacute-lo simbolica-mente no rosto ou no ombroexpocirc-lo vivo ou morto oferececirc-loem espetaacuteculo O grande espe-taacuteculo da puniccedilatildeo fiacutesica compor-tava poreacutem dois perigos por umlado revela a tirania o excessoa sede de vinganccedila do poder poroutro acostuma o povo a ver san-gue jorrar e ensina-lhe que soacutepode vingar-se derramando san-gue com as proacuteprias matildeos Vistacomo uma fornalha em que seacende a violecircncia(15) a execu-ccedilatildeo puacuteblica foi suprimida Desdeentatildeo eacute a proacutepria condenaccedilatildeoque marcaraacute o delinquente comsinal negativo e uniacutevoco publici-dade portanto dos debates e dasentenccedila(15)

O desaparecimento dos supliacute-

19Segundo Rodinesco Franccedilois Robert Damiens oriundo de uma famiacutelia camponesa maltratado pelo pai inso-lente inclinado ao suiciacutedio e no miacutenimo estranho por seu haacutebito de falar sozinho pertencente a classe dos criadosespezinhados por seus patrotildees mas vivia na sombra e na intimidade da nobreza quando no dia 5011957 aten-tou contra a vida de Luiacutes XV tocando com a lacircmina de um canivete provocou um pequeno corte e assumiu seugesto () Foucault descreveu o horror do suplicio de Damiens um dos mais crueacuteis de todos os tempos A resis-tecircncia do corpo foi tal que os cavalos arremeteram sessenta vezes antes de romper os membros do desafortunadocriado jaacute mil vezes torturado (As Famiacutelias pp57-8) A cena do supliacutecio de Damiens apareceu na aula do dia301de 1973 do curso A Sociedade Punitiva p11

20As transformaccedilotildees satildeo as seguintes escacircndalos na justiccedila tradicional projetos de Reformas nova teoria da lei edo crime nova justificaccedilatildeo moral ou poliacutetica do direito de punir aboliccedilatildeo das ordenanccedilas supressatildeo dos costumesprojeto ou redaccedilatildeo de coacutedigos modernos (VP p13 Ver ainda p 21)

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cios eacute tanto a eliminaccedilatildeo do es-petaacuteculo da encenaccedilatildeo da dorquanto a extinccedilatildeo do domiacutenio so-bre o corpo Agora o sofrimentofiacutesico natildeo eacute mais constitutivo dapena o castigo passou de umaarte das sensaccedilotildees insuportaacuteveisa uma economia dos direitos sus-pensos(p16) ou seja a pena to-mou como objeto a perda de umdireito ou de um bem - a liber-dade Na modernidade a prisatildeopassa a ser a forma essencial docastigo21 e isso significa que a pu-niccedilatildeo fiacutesica foi substituiacuteda pelapenalidade incorporal Mesmoa pena capital atesta essa nova pe-nalidade ela eacute uma desmultipli-caccedilatildeo da proacutepria morte na medidaem que eacute um acontecimento visiacute-vel mas instantacircneo (p16- 7)

Todas as transformaccedilotildees se fa-zem concomitantes ao desloca-mento do objeto da accedilatildeo punitivanatildeo eacute mais o corpo agora eacute a alma(ldquoo coraccedilatildeo o pensamento a von-tade as disposiccedilotildeesrdquo) que eacute pu-nida castigada22 Haacute aqui umaprofunda modificaccedilatildeo no objetoltcrimegt Sob o nome de crimese delitos satildeo sempre julgados cor-retamente os objetos juriacutedicos de-

finidos pelo coacutedigo ou seja soacute haacutecrime se alguma accedilatildeo ou omissatildeofor tipificada pelo coacutedigo e se ojuiz mediante uma deduccedilatildeo silo-giacutestica como pensava a escola daexegese sancionar o crime Fou-cault argumenta que a subsunccedilatildeodo fato agrave norma e depois a par-ticularizaccedilatildeo da norma a algumacircunstacircncia especial (atenuanteou agravante) deslocou o julga-mento da accedilatildeo para o agente osjuiacutezes comeccedilaram a julgar coisabem diferente aleacutem de crimes altalmagt dos criminosos (p22)Ou seja rdquojulgam-se tambeacutem aspaixotildees os instintos as anoma-lias as enfermidades as inadapta-ccedilotildees os efeitos de meio ambienteou de hereditariedade Punem-se as agressotildees mas por meiodelas as agressividades que satildeotambeacutem impulsos e desejos Asentenccedila natildeo eacute soacute um julgamentode culpa que absolve ou condenamas eacute sobretudo um juiacutezo de nor-malidade de atribuiccedilatildeo de causa-lidade de apreciaccedilotildees de eventu-ais mudanccedilas de previsotildees sobreo futuro dos delinquentes(24)

Com a entrada da alma na cenajuriacutedica a justiccedila penal soacute funci-

21Foucault natildeo ignora que castigos como trabalhos forccedilados ou prisatildeo nunca funcionavam sem certos comple-mentos punitivos referentes ao corpo reduccedilatildeo alimentar privaccedilatildeo sexual expiaccedilatildeo fiacutesica masmorra (20) Tambeacutemnatildeo ignora que a tortura se fixou -- e ainda continua -- no sistema penal francecircs (p19)

22Cf VP p21 A alma -- subjetividade psique personalidade consciecircncia individualidade comportamentopouco importa (267) -- entendida como uma ldquosede de haacutebitosrdquo(31 141) eacute real e incorpoacuterea mas natildeo substacircnciaporque eacute o efeitoprodutoresultado de um poder que se exerce em torno na superfiacutecie e no interior do corpo(Foucault tambeacutem fala de uma ldquorealidade incorpoacutereardquo na p21) Sobre a anaacutelise foucaultiana da noccedilatildeo de haacutebitocf a aula de 28031973 de A sociedade Punitiva (p215ss)

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ona e se justifica atraveacutes da refe-recircncia ao saber dos peritos psi-quiaacutetricos e psicoloacutegicos perso-nagens extrajuriacutedicos que forne-cem uma justificaccedilatildeo cientiacutefica aodireitopoder de punir pois cabe-lhes dizer se o indiviacuteduo eacute peri-goso de que maneira se protegerdele como intervir para modificaacute-lo se eacute melhor tentar reprimir outratar(p25) Em resumo rdquojul-gar eacute qualificar um indiviacuteduo poisa sentenccedila implica uma aprecia-ccedilatildeo da normalidade e uma pres-criccedilatildeo teacutecnica para uma norma-lizaccedilatildeo possiacutevel Diagnoacutestico eterapecircutica O poder de punirentrelaccedilou-se com as diversas ci-ecircncias forenses psiquiatria psi-cologia sociologia antropologia epedagogia Nesse momento sur-giu a criminologia23 Nessa eacutepocaldquoa justiccedila criminal () soacute funcionae soacute se justifica por essa perpeacutetua

referecircncia a outra coisa que natildeoeacute ela mesma por essa incessantereinscriccedilatildeo nos sistemas natildeo juriacute-dicos Ela estaacute votada a essa re-qualificaccedilatildeo pelo saberrdquo (p25)24

Com isso posto Foucault podeformular nesses termos o objetivodo Vigiar e Punir ldquouma histoacute-ria correlativa da alma modernae de um novo poder de julgaruma genealogia do atual com-plexo cientiacutefico-judiciaacuterio ondeo poder de punir se apoia re-cebe suas justificaccedilotildees e suas re-gras estende seus efeitos e mas-cara sua exorbitante singulari-daderdquo(p26)25 Percebemos clara-mente que natildeo se trata de um ob-jetivo uacutenico mas de vaacuterios corre-lacionados A escrita dessa histoacute-ria da prisatildeo assemelha-se a umapartitura musical pois orquestravaacuterios objetivos simultaneamente

Antes de formular suas quatro

23Cf BOULLANT opcit pp99ss24Essa justificaccedilatildeo cientiacutefica do direito de punir aparece em sua aula inaugural no Collegravege de France A Ordem

do Discurso onde Foucault delineia um projeto de pesquisa centrado na anaacutelise histoacuterica das formas juriacutedicas epoliacuteticas produtoras de verdades ldquoEnfim creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte euma distribuiccedilatildeo institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade- uma espeacutecie de pressatildeo e como que um poder de coerccedilatildeo Penso na maneira como a literatura ocidental teve debuscar apoio durante seacuteculos no natural no verossiacutemil na sinceridade na ciecircncia tambeacutem - em suma no discursoverdadeiro Penso igualmente na maneira como as praacuteticas econocircmicas codificadas como preceitos ou receitaseventualmente como moral procuraram desde o seacuteculo XVI fundamentar-se racionalizar-se e justificar-se a par-tir de uma teoria das riquezas e da produccedilatildeo penso ainda na maneira como um conjunto tatildeo prescritivo quantoo sistema penal procurou seus suportes ou sua justificaccedilatildeo primeiro eacute certo em uma teoria do direito depois apartir do seacuteculo XIX em um saber socioloacutegico psicoloacutegico meacutedico psiquiaacutetrico como se a proacutepria palavra da leinatildeo pudesse mais ser autorizada em nossa sociedade senatildeo por um discurso de verdaderdquo(ODpp18-9)

25Sobre a razatildeo pela qual o poder de punir se apoia no complexo cientiacutefico-judiciaacuterio mas natildeo se confunde comele ver as distinccedilotildees estabelecidas na nota seguinte

26Na impossibilidade de comentar palavra por palavra a importante passagem na qual Foucault formula suasquatro regras e na desaconselhaacutevel prolixidade de transcrevemos o texto recomendamos vivamente sua leitura emeditaccedilatildeo ao leitor ao tempo em que citamos apenas a segunda regra (ldquoAnalisar os meacutetodos punitivos natildeo comosimples consequecircncias de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais mas como teacutecnicas que tecircmsua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder ()rdquo) para destacar uma importante distin-ccedilatildeo efetuada por Foucault que eacute essencial para a compreensatildeo de seu meacutetodo Trata-se da distinccedilatildeo entre ldquosistemapenitenciaacuteriordquo (Prisotildees Casas de Detenccedilatildeo Casas de Correccedilatildeo para menores etc) ldquosistema penalrdquo (poliacutecia incum-

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regras metodoloacutegicas que merece-riam um comentaacuterio minucioso26Foucault se pergunta como fazeressa histoacuteria da alma moderna emjulgamento e nesse momento pre-ciso indica dois erros a evitar pri-meiro natildeo se limitar agrave evoluccedilatildeodas regras de direito ou dos pro-cessos penais que redundariam naassunccedilatildeo de uma mudanccedila da sen-sibilidade coletiva dos modernosnum progresso do humanismo nodesenvolvimento das ciecircncias hu-manas que estariam na raiz dasubstituiccedilatildeo das penas corporaispela pena de privaccedilatildeo da liber-dade segundo natildeo estudar ape-nas as formas sociais gerais comofez Durkheim para natildeo ldquocorremoso risco de colocar como princiacutepioda suavizaccedilatildeo punitiva processosde individualizaccedilatildeo que satildeo antesefeitos das novas taacuteticas de podere entre elas dos novos mecanismospenaisrdquo27

Em suas regras gerais Foucaultafirma categoricamente que vaitomar a puniccedilatildeo como uma fun-ccedilatildeo social complexa repressiva[direito penal] e positiva ou in-dutiva [disciplina] adotando em

relaccedilatildeo aos castigos a perspectivada taacutetica poliacutetica que vai colocara tecnologia do poder [discipli-nar] no princiacutepio tanto da huma-nizaccedilatildeo da penalidade [moderna]quanto do conhecimento do ho-mem [criminologia]

Na sequecircncia Foucault prestahomenagem ao livro de Rusche eKirschheimer Puniccedilatildeo e estruturasocial (1939) distinguindo seuempreendimento do dos autoresda escola de Frankfurt pois reco-loca os castigos numa certa ldquoeco-nomia poliacuteticardquo do corpo Nesseponto Foucault menciona os his-toriadores que abordam a histoacuteriado corpo mas distancia-se delespois enfatiza que o corpo

tambeacutem estaacute diretamentemergulhado num campopoliacutetico as relaccedilotildees de po-der tecircm alcance imediatosobre ele elas o investemo marcam o dirigem osupliciam sujeitam-no atrabalhos obrigam-no acerimocircnias exigem-lhe si-nais Este investimentopoliacutetico do corpo estaacute li-

bidas do inqueacuterito ministeacuterio puacuteblico encarregado da denuacutencia e judiciaacuterio responsaacutevel pelo processo a sentenccedilacondenatoacuteria e o acompanhamento judicial da execuccedilatildeo penal) e o ldquosistema punitivordquo (sistema de controle socialmais amplo na medida em que engloba mas ultrapassa os outros dois)

27O artigo de Durkheim ldquoDeux lois de lrsquoeacutevolution peacutenalerdquo publicado no Anuaacuterio socioloacutegico em 1899-1900 cri-ticado aqui por Foucault encontra-se traduzido na Revista Primeiros Estudos Satildeo Paulo n 6 p 123-148 2014Uma anaacutelise da pertinecircncia ou natildeo das criacuteticas de Foucault excederia os objetivos desse trabalho e deveria levar emconta outros textos de Durkheim principalmente De la Division du travail social (1893) Paris PUF 12e eacutedition1960 pp 35-39 43-48 64-68 Les regravegles de la meacutethode sociologique (1894) Paris PUF 14e eacutedition 1960 pp 65-72Sobre isso cf COMBESSIE Philippe ldquoDurkheim Fauconnet et Foucault Eacutetayer une perspective abolitionniste agravelrsquoheure de la mondialisation des eacutechangesrdquo 2007 57-71

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gado segundo relaccedilotildeescomplexas e reciacuteprocas agravesua utilizaccedilatildeo econocircmicaeacute numa boa proporccedilatildeocomo forccedila de produccedilatildeoque o corpo eacute investidopor relaccedilotildees de poder ede dominaccedilatildeo mas emcompensaccedilatildeo sua consti-tuiccedilatildeo como forccedila de tra-balho soacute eacute possiacutevel se eleestaacute preso num sistemade sujeiccedilatildeo (onde a ne-cessidade eacute tambeacutem uminstrumento poliacutetico cui-dadosamente organizadocalculado e utilizado) ocorpo soacute se torna forccedilauacutetil se eacute ao mesmo tempocorpo produtivo e corposubmisso Essa sujeiccedilatildeonatildeo eacute obtida soacute pelos ins-trumentos da violecircncia ouda ideologia pode muitobem ser direta fiacutesica usara forccedila contra a forccedila agirsobre elementos materiaissem no entanto ser vio-lenta pode ser calculadaorganizada tecnicamentepensada pode ser sutilnatildeo fazer uso de armasnem do terror e no en-tanto continuar a ser deordem fiacutesica Quer dizerque pode haver um ldquosa-berrdquo do corpo que natildeo eacuteexatamente a ciecircncia deseu funcionamento e um

controle de suas forccedilasque eacute mais que a capa-cidade de vencecirc-las essesaber e esse controle cons-tituem o que se poderiachamar a tecnologia poliacute-tica do corpo Essa tecno-logia eacute difusa claro rara-mente formulada em dis-cursos contiacutenuos e siste-maacuteticos compotildee-se mui-tas vezes de peccedilas ou depedaccedilos utiliza um ma-terial e processos sem re-laccedilatildeo entre si O maisdas vezes apesar da coe-recircncia de seus resultadosela natildeo passa de uma ins-trumentaccedilatildeo multiformeAleacutem disso seria impossiacute-vel localizaacute-la quer numtipo definido de institui-ccedilatildeo quer num aparelhodo Estado Estes recor-rem a ela utilizam-navalorizam-na ou impotildeemalgumas de suas maneirasde agir Mas ela mesmaem seus mecanismos eefeitos se situa num niacute-vel completamente dife-rente Trata-se de algumamaneira de uma micro-fiacutesica do poder posta emjogo pelos aparelhos e ins-tituiccedilotildees mas cujo campode validade se coloca dealgum modo entre essesgrandes funcionamentos

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e os proacuteprios corpos comsua materialidade e suasforccedilasrdquo (p28)

Descrever essa ldquomicrofiacutesica do po-derrdquo que incide sobre o corpo eacute oobjetivo da 3ordf parte da obra Re-velar sua importacircncia na suaviza-ccedilatildeo das penas eacute um dos objetivosa que ela se propotildee em sua abor-dagem da criminalidade

Foucault tambeacutem menciona olivro Os dois corpos do rei (1959)de Ernst Kantorowitz para com-parar a tese do historiador do pen-samento poliacutetico medieval (ldquoo su-plemento de poder do lado dorei provoca o desdobramento deseu corpordquo na teologia poliacuteticado medievo que chega ateacute o An-tigo Regime) com a dele (o po-der excedente que se exerce so-bre o corpo submetido do conde-nado [na modernidade- KB] sus-citou um outo tipo de desdobra-mento o de um incorporal deuma almardquo(VP p31) Aqui Fou-cault formula a tese que seraacute de-monstrada no primeiro capiacutetuloda terceira parte o poder discipli-nar produz individualidade umaconsciecircncia de si uma alma umasubjetividade

A histoacuteria dessa micro-fiacutesica do poder punitivoseria entatildeo uma genea-logia ou uma peccedila para

uma genealogia da ldquoalmardquomoderna Em vez de vernessa alma os restos re-ativados de uma ideolo-gia antes reconheceriacutea-mos nela o correlativoatual de uma certa tec-nologia do poder sobreo corpo Natildeo se deveriadizer que a alma eacute umailusatildeo ou um efeito ide-oloacutegico mas afirmar queela existe que tem umarealidade que eacute produ-zida permanentementeem tomo na superfiacutecieno interior do corpo pelofuncionamento de um po-der que se exerce sobre osque se punem mdashde umamaneira mais geral so-bre os que satildeo vigiadostreinados e corrigidos so-bre os loucos as crian-ccedilas os escolares os co-lonizados sobre os quesatildeo fixados a um apare-lho de produccedilatildeo e contro-lados durante toda a exis-tecircncia Realidade histoacute-rica dessa alma que di-ferentemente da alma re-presentada pela teologiacristatilde natildeo nasce faltosae puniacutevel mas nasce an-tes de procedimentos depuniccedilatildeo de vigilacircncia decastigo e de coaccedilatildeo Estaalma real e incorpoacuterea natildeo

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eacute absolutamente substacircn-cia eacute o elemento onde searticulam os efeitos de umcerto tipo de poder e areferecircncia de um sabera engrenagem pela qualas relaccedilotildees de poder datildeolugar a um saber possiacute-vel e o saber reconduz ereforccedila os efeitos de po-der Sobre essa realidade-referecircncia vaacuterios concei-tos foram construiacutedos ecampos de anaacutelise foramdemarcados psique sub-jetividade personalidadeconsciecircncia etc sobre elateacutecnicas e discursos cien-tiacuteficos foram edificados apartir dela valorizaram-se as reivindicaccedilotildees mo-rais do humanismo Masnatildeo devemos nos enganara alma ilusatildeo dos teoacutelo-gos natildeo foi substituiacutedapor um homem real ob-jeto de saber de reflexatildeofilosoacutefica ou de interven-ccedilatildeo teacutecnica O homemde que nos falam e quenos convidam a liberar jaacuteeacute nele mesmo o efeito deum assujeitamento bemmais profundo que eleUma ldquoalmardquo o habita eo leva agrave existecircncia queeacute ela mesma uma peccedilano domiacutenio que o poderexerce sobre o corpo A

alma efeito e instrumentode uma anatomia poliacuteticaa alma prisatildeo do corpo(p31)

Como natildeo reconhecer nessa ldquoge-nealogia da alma modernardquo asegunda razatildeo aventada porFoucault em LrsquoImpossible Pri-son Como natildeo reconhecerna almasubjetividadepsique oefeito (positivo) do poder disci-plinar sobre o corpo Como natildeoobservar que o poder disciplinar eacuteconcebido em termos de incitaccedilatildeode produccedilatildeo mais que de repres-satildeo Como natildeo ver que o efeito apositividade da disciplina radica-se na produccedilatildeo de uma individua-lidade Como natildeo reconhecer quea alma moderna eacute uma outra pri-satildeo instalada no corpo cuja certi-datildeo de nascimento Foucault atestano mesmo ato notarial que certi-fica o nascimento da penitenciaacuteriae da criminologia

Veremos no proacuteximo item comoessa alma disciplinada eacute produ-zida por ora cumpre chamar aatenccedilatildeo para o fato de que ela eacutetambeacutem a condiccedilatildeo de possibili-dade dos direitos do homem eacute olado sombrio das luzes a ldquodialeacute-ticardquo foucaultiana do iluminismo

Historicamente o pro-cesso pelo qual a burgue-sia se tornou no decorrer

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do seacuteculo XVIII a classepoliticamente dominanteabrigou-se atraacutes da insta-laccedilatildeo de um quadro juriacute-dico expliacutecito codificadoformalmente igualitaacuterio eatraveacutes da organizaccedilatildeo deum regime de tipo parla-mentar e representativoMas o desenvolvimento ea generalizaccedilatildeo dos dispo-sitivos disciplinares cons-tituiacuteram a outra vertenteobscura desse processoA forma juriacutedica geral quegarantia um sistema de di-reitos em princiacutepio iguali-taacuterios era sustentada poresses mecanismos miuacute-dos cotidianos e fiacutesicospor todos esses sistemasde micropoder essencial-mente inigualitaacuterios e as-simeacutetricos que constituemas disciplinas E se deuma maneira formal o re-gime representativo per-mite que direta ou indi-retamente com ou semrevezamento a vontadede todos forme a instacircn-cia fundamental da sobe-rania as disciplinas datildeona base garantia da sub-missatildeo das forccedilas e dos

corpos As disciplinas re-ais e corporais constituiacute-ram o subsolo das liber-dades formais e juriacutedicasO contrato podia muitobem ser imaginado comofundamento ideal do di-reito e do poder poliacuteticoo panoptismo constituiacuteao processo teacutecnico uni-versalmente difundidoda coerccedilatildeo Natildeo paroude elaborar em profun-didade as estruturas juriacute-dicas da sociedade parafazer funcionar os meca-nismos efetivos do poderao encontro dos quadrosformais de que este dispu-nha As ldquoLuzesrdquo que des-cobriram as liberdades in-ventaram tambeacutem as dis-ciplinas (p194-5)28

3 - As Disciplinas como Condi-ccedilatildeo de Possibilidade da Suaviza-ccedilatildeo do Direito Penal Moderno

A terceira parte do Vigiar e Pu-nir contem trecircs importantes ca-piacutetulos ldquoos corpos doacuteceisrdquo ldquoOsmeios para o bom adestramentordquo eldquoo panoptismordquo Nesse item abor-daremos o primeiro capiacutetulo com

28Sobre essa tese fortiacutessima de que as liberdades dependeram da generalizaccedilatildeo do regime disciplinar e da nor-malizaccedilatildeo que o acompanha Foucault chega a corroborar numa entrevista com a afirmaccedilatildeo peremptoacuteria de que ldquoadisciplina eacute o avesso da democraciardquo(DE vol8 p39) Sobre a questatildeo da dialeacutetica foucaultiana do iluminismo cfHONNETH A ldquoFoucault et Adorno deux formes drsquoune critique de la moderniteacuterdquo in Critique nordm471-472 1986

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

o objetivo de examinar o modocomo Foucault conceitua as dis-ciplinas estabelece sua diferenccedilaem relaccedilatildeo a outras modalidadesde poder determina o momentoem que elas se generalizaram nasociedade europeia e sobretudocomo ele efetua a descriccedilatildeo des-sas teacutecnicas de poder de modo quesua incidecircncia sobre o corpo re-sulte na produccedilatildeo de uma sub-jetividade Na descriccedilatildeo minu-dente das teacutecnicas disciplinaresdo corpo procuraremos eviden-ciar o esquema conceitual extrema-mente forte empregado por Fou-cault quando relaciona sua inci-decircncia perfeitamente acoplada agravesnotas principais do conceito decorpo por ele definido muito ni-etzscheanamente e quase que adhoc

31 ndash ldquoOs corpos doacuteceisrdquo ou a ar-ticulaccedilatildeo corpo-disciplina-alma

Foucault comeccedila esse capiacutetulocontrastando a figura do soldadona eacutepoca claacutessica e na moderni-dade Na eacutepoca claacutessica o soldadoera algueacutem cujas tradicionais vir-tudes do corpo se reconhecem delonge pois seu corpo eacute o brasatildeode sua forccedila e coragem29 Na mo-dernidade o soldado ldquotornou-sealgo que se fabrica de uma massa

informe de um corpo inapto fez-se o homem de que se precisardquoFoucault afirma que ldquohouve du-rante a eacutepoca claacutessica toda umadescoberta do corpo como objetoe alvo de poderrdquo Ele encontra ossinais dessa descoberta do corpoldquodessa grande atenccedilatildeo dedicadaentatildeo ao corpo mdash ao corpo que semanipula se modela se adestraque obedece responde se tornahaacutebil ou cujas forccedilas se multipli-camrdquo no livro O Homem -maacutequinade Julien Onffray de la Mettrie(1709-51) Segundo ele o livrofoi escrito em dois registros noanaacutetomo-metafiacutesico (corpo anali-saacutevel cognosciacutevel) e no teacutecnico-poliacutetico (corpo manipulaacutevel) Se-gundo Foucault esse livro ldquoeacute aomesmo tempo uma reduccedilatildeo mate-rialista da alma e uma teoria ge-ral do adestramento no centro dosquais reina a noccedilatildeo de ldquodocilidaderdquoque une ao corpo analisaacutevel o corpomanipulaacutevel Eacute doacutecil um corpo quepode ser submetido que pode ser uti-lizado que pode ser transformado eaperfeiccediloadordquo (p126) Isso cria umproblema para Foucault pois seele jaacute havia afirmado que o corpoestaacute sempre mergulhado em rela-ccedilotildees de poder (anatomia poliacutetica)qual a novidade dessa atenccedilatildeo queo corpo recebeu na eacutepoca claacutessica

Antes de responder a essa auto-

29A tradiccedilatildeo ocidental definiu como virtudes do corpo a forccedila (fortaleza) sauacutede beleza e coragem embora sempretenha valorizado as virtudes da almacf PIGEAUD J La maladie de lrsquoacircme Paris Belles Lettres 1981

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objeccedilatildeo Foucault retoma a ques-tatildeo do campo poliacutetico em que ocorpo estaacute mergulhado com umasurpreendente tese Sabemos quepor causa de seu nominalismoraras vezes Foucault formula te-ses gerais Neste passo do textoo filoacutesofo retoma a discussatildeo so-bre ldquoeconomia poliacutetica do corpordquoiniciada no capiacutetulo introdutoacuterioe afirma que ldquoem qualquer socie-dade o corpo estaacute no interior de po-deres muito apertados que lhe im-potildee constrangimentos (contraintes)proibiccedilotildees ou obrigaccedilotildeesrdquo (p 126)Em concordacircncia com a antropo-logia cultural30 essa tese geral co-loca o problema de sua especifi-cidade se o corpo eacute controladoem toda e qualquer sociedade oque haacute de novo no controle que so-bre ele exerce o poder disciplinarA novidade do poder disciplinarencontra-se na escala no objeto ena modalidade de controle

Em primeiro lugar a es-cala do controle natildeo setrata de cuidar do corpoem massa grosso modocomo se fosse uma uni-dade indissociaacutevel masde trabalhaacute-lo detalha-damente de exercer so-

bre ele uma coerccedilatildeo semfolga de mantecirc-lo ao niacute-vel mesmo da mecacircnicamdash movimentos gestos ati-tude rapidez poder in-finitesimal sobre o corpoativo O objeto em se-guida do controle natildeoou natildeo mais os elementossignificativos do compor-tamento ou a linguagemdo corpo mas a econo-mia a eficaacutecia dos movi-mentos sua organizaccedilatildeointerna a coaccedilatildeo se fazmais sobre as forccedilas quesobre os sinais a uacutenicacerimocircnia que realmenteimporta eacute a do exerciacutecioA modalidade enfim im-plica numa coerccedilatildeo inin-terrupta constante quevela sobre os processos daatividade mais que sobreseu resultado e se exercede acordo com uma codi-ficaccedilatildeo que esquadrinhaao maacuteximo [quadrille auplus preacutes les] o tempoo espaccedilo os movimentos(p126 gm)

Retenhamos a atenccedilatildeo nessa uacutel-tima e preciosa afirmaccedilatildeo do fi-

30Marcel Mauss antropoacutelogo e sobrinho de Durkheim no ensaio justamente ceacutelebre ldquoAs teacutecnicas corporaisrdquocompreendeu mais profundamente a definiccedilatildeo durkheimeana de educaccedilatildeo fiacutesica que concebia o corpo como umartefato cultural ao mostrar que ele era moldado inclusive nos miacutenimos gestos por teacutecnicas que satildeo sociais Eacuteindubitaacutevel o conhecimento profundo da tradiccedilatildeo socioloacutegica e antropoloacutegica de Durkheim a Levi Strauss bemcomo da antropologia cultural inglesa por Foucault

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

loacutesofo a disciplina controla otempo o espaccedilo e os movimentosdo corpo Ela antecipa a definiccedilatildeodas disciplinas

meacutetodos que permitemo controle minucioso dasoperaccedilotildees do corpo queasseguram o assujeita-mento constante de suasforccedilas e lhes impotildeem umarelaccedilatildeo de docilidade-utilidade eacute isso que sepode chamar as discipli-nas (idem)

Como esse capiacutetulo tem o obje-tivo de repertoriar esses meacutetodosde descrever as teacutecnicas de disci-plinamento de efetuar uma mi-crofiacutesica do poder natildeo de fazer ahistoacuteria das instituiccedilotildees discipli-nares31 ndash exceto evidentemente de

uma delas da prisatildeo ndash aquela afir-maccedilatildeo precisa ser destacada

As disciplinas se exercem ldquodeacordo com uma codificaccedilatildeo queesquadrinha ao maacuteximo o tempoo espaccedilo os movimentosrdquo docorpo Essa afirmaccedilatildeo combinadacom o conceito de corpo fornecea chave heuriacutestica do capiacutetulo deseu esquema ou estrutura Comefeito o corpo seraacute definido ape-nas por quatro notas baacutesicas 1) eacutematerialvivo 2) portador de for-ccedilas (p29) 3) sede de uma dura-ccedilatildeo (p148) e 4) estaacute diretamentemergulhado num campo poliacutetico(p28) no qual obedece ou resiste(p259) Seguramente por causada ldquoNavalha de Occamrdquo o corpoeacute definido por um nuacutemero res-trito de notas que satildeo natildeo obs-tante suficientemente plaacutesticas32Se nos lembrarmos de que o prin-

31Eacute o que Foucault afirma categoricamente ldquoNatildeo se trata de fazer aqui a histoacuteria das diversas instituiccedilotildees dis-ciplinares no que podem ter cada uma de singular Mas de localizar apenas sob uma seacuterie de exemplos algumasdas teacutecnicas essenciais que de uma a outra se generalizaram mais facilmente Teacutecnicas sempre minuciosas muitasvezes iacutenfimas mas que tecircm sua importacircncia porque definem um certo modo de investimento poliacutetico e detalhadodo corpo uma nova ldquomicrofiacutesicardquo do poder e porque natildeo cessaram desde o seacuteculo XVII de ganhar campos cadavez mais vastos como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro Pequenas astuacutecias dotadas de um grande po-der de difusatildeo arranjos sutis de aparecircncia inocente mas profundamente suspeitos dispositivos que obedecem aeconomias inconfessaacuteveis ou que procuram coerccedilotildees sem grandeza satildeo eles entretanto que levaram agrave mutaccedilatildeo doregime punitivo no limiar da eacutepoca contemporacircneardquo (p128) Numa nota ele especifica que recolheraacute de algumasinstituiccedilotildees disciplinares os exemplos que lhe permitem efetuar a analiacutetica desse poder ldquoEscolherei os exemplosnas instituiccedilotildees militares meacutedicas escolares e industriais Outros exemplos poderiam ser tomados na colonizaccedilatildeona escravidatildeo nos cuidados na primeira infacircnciardquo (nota 8) Sobre a instituiccedilatildeo em Foucault cf ADORNO F P2002 laquoFoucault et les institutionsraquo 2002275-298

32Eacute bastante surpreendente que Bryan S Turner um dos mais renomados socioacutelogos do corpo e de sua racio-nalizaccedilatildeo na modernidade aponte um deacuteficit inexistente na compreensatildeo foucaultiana de corpo ldquoPor outro ladoFoucault tambeacutem disse que em vez de comeccedilar com a anaacutelise da ideologia seria mais materialista estudar pri-meiro a questatildeo do corpo e os efeitos do poder sobre ele (FOUCAULT 1981 139) Tal projeto materialista parecelevar a corporeidade da vida a seacuterio O que eacute o corpo eacute portanto uma questatildeo central para o pensamento deFoucault mas que natildeo eacute claramente respondida () Ateacute certo ponto Foucault inverteu essa situaccedilatildeo negandoqualquer centralidade agrave subjetividade (o pensamento sujeito cartesiano) e tratando o corpo como foco do discursomoderno Tendo rejeitado o Sujeito transcendental como mero substituto moderno de Deus ou Logos Foucaultparece relutante em ter o Corpo como um centro controlador da teoria social O corpo eacute portanto problemaacuteticopara sua teoriardquo TURNER BS The Body amp Society pp47-8

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ciacutepio de individuaccedilatildeo33 foi tradi-cionalmente definido como tempoe espaccedilo e que a duraccedilatildeo eacute umsegmento qualquer do tempo con-siderado em seu conjunto e quefoi pensado desde a Fiacutesica aris-toteacutelica como uma sucessatildeo infi-nita de instantes entatildeo um corpomaterial eacute espacial ou seja natildeoum pedaccedilo qualquer da extensatildeomas mateacuteria viva o corpo eacute por-tador de forccedilas e estaacute sempre ematividade em movimento poisvida = atividade por sediar umaduraccedilatildeo um corpo eacute temporalmais precisamente finito e enfimum corpo que estaacute submergidonum campo poliacutetico portantoem relaccedilatildeo com outros corpos

obedece-lhes ou cria-lhes resis-tecircncia34 Nesse conceito de corpo(material portador de forccedilas sedede duraccedilatildeo obedienteresistente)e na proacutepria definiccedilatildeo de disci-plina (ldquocontrole que esquadrinhaao maacuteximo o tempo o espaccedilo e osmoimentos do corpordquo) encontra-mos a articulaccedilatildeo das quatro teacutec-nicas disciplinares que seratildeo des-critas na sequecircncia 1ordf) arte daslocalizaccedilotildees ndash localizaccedilatildeo do corpono espaccedilo 2ordf) o controle da ativi-dade ndash dominaccedilatildeo dos movimen-tos do corpo 3ordf) organizaccedilatildeo dasgecircneses ndash controle da existecircnciatemporal ou mais precisamenteda duraccedilatildeo do corpo da apropria-ccedilatildeo do tempo das existecircncias sin-

33O princiacutepio de individuaccedilatildeo foi formulado para resolver o problema da individualidade a partir de uma subs-tacircncia ou natureza comum p ex constituiccedilatildeo deste homem ou deste animal a partir da substacircncia homem ou dasubstancia animal O que faz da substacircncia homem este ou aquele homem Esse eacute o problema que foi formuladopor Avicena e transmitido agrave escolaacutestica cristatilde Agostinho Tomas e Duns Scotus deram respostas divergentes Atra-veacutes de Suarez na escolaacutestica tardia esse problema chegou ao mundo moderno em De principii Individui (1663) deLeibniz e o Ensaio sobre o entendimento humano (1690) de Locke No segundo livro do Ensaio especificamente nocapiacutetulo 27 Locke afirma que uma das funccedilotildees da mente eacute comparar (comparar uma coisa com outra por seme-lhanccedilas e diferenccedilas comparar uma coisa consigo mesma em diferentes momentos do tempo) Esta uacuteltima accedilatildeogera a ideia de identidade e diversidade O verdadeiro ser das coisas eacute sua identidade sua inalterabilidade ao longodo tempo Existir num determinado tempo e lugar exclui outros objetos desse tempo e lugar Segundo Locke umacoisa natildeo pode ter dois comeccedilos na existecircncia nem duas coisas o mesmo comeccedilo Tambeacutem duas coisas natildeo podemocupar o mesmo espaccedilo Se tempo e espaccedilo individualizam as substancias materiais para as coisas vivas Lockeacrescenta o projeto e para os seres espirituais aleacutem de tempo espaccedilo e projeto ele acrescenta a consciecircncia desi Foi de Locke que essa noccedilatildeo chegou a Schopenhauer deste a Nietzsche e deste a Foucault

34No VP Foucault menciona ldquoos indiviacuteduos que resistem agrave normalizaccedilatildeordquo (p259) No ensaio ldquoNietzsche a ge-nealogia a histoacuteriardquo secccedilatildeo 5 ele expotildee a centralidade do corpo na genealogia nietzschiana e afirma que o corpocria resistecircncia Nessa nota do conceito de corpo podemos evidenciar o aspecto derivado ou dependente do capiacute-tulo ldquoOs meios para o bom adestramentordquo na medida em que a vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e oexame exercem-se principalmente sobre os corpos rebeldes e indoacuteceis desviantes e anormais Da mesma forma ocapiacutetulo ldquoo panoptismordquo que aborda a formaccedilatildeo da sociedade disciplinar deriva de tese ou estende uma posiccedilatildeojaacute afirmada em ldquoos corpos doacuteceisrdquo a generalizaccedilatildeo ou extensatildeo das disciplinas ao longo dos seacuteculos XVII e XVIIIEm razatildeo da dependecircncia loacutegica dos capiacutetulos II e III da 3ordf parte em relaccedilatildeo ao primeiro pode-se dizer que este(ldquoos copos doacuteceisrdquo) possui uma dupla centralidade em relaccedilatildeo ao livro e agrave terceira parte No seu belo estudosobre Michel Foucault e a constituiccedilatildeo do Sujeito Marcio Alves da Fonseca expotildee as ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo(distribuiccedilatildeo espacial controle das atividades capitalizaccedilatildeo do tempo e composiccedilatildeo das forccedilas) apoacutes a exposiccedilatildeodos instrumentos de puniccedilatildeo (vigilacircncia hieraacuterquica a sanccedilatildeo normalizadora e o exame) Ora se os instrumentosvisam a garantir ldquoo sucessordquo das disciplinas de modo a vigiar normalizar e examinar sobretudo agravequeles que natildeose conformam com elas julgo que a sequecircncia da terceira parte deve ser mantida pois aqui o acessoacuterio segue oprincipal Felizmente essa anaacutelise foi retomada sem essa inversatildeo em sua obra posterior e justamente ceacutelebreMichel Foucault e o Direito

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

gulares 4ordf) composiccedilatildeo das for-ccedilas ndash controle da intercorporei-dade ou das relaccedilotildees de mandoe obediecircncia nas relaccedilotildees entrecorpos sempre mergulhados numcampo poliacutetico Foucault examinacada uma dessas teacutecnicas espe-cificando seus princiacutepios atraveacutesde exemplos Se eliminarmos osexemplos as teacutecnicas foram assimespecificadas pelo filoacutesofo

A arte das localizaccedilotildees1) Cerca especificaccedilatildeo deum local heterogecircneo a to-dos os outros e fechado emsi mesmo 2) Quadricula-mento cada indiviacuteduo noseu lugar e em cada lu-gar um indiviacuteduo 3) loca-lizaccedilotildees funcionais Luga-res determinados se defi-nem para satisfazer natildeo soacuteagrave necessidade de vigiar deromper as comunicaccedilotildeesperigosas mas tambeacutem decriar um espaccedilo uacutetil 4)Enfileiramento Na disci-plina os elementos satildeo in-tercambiaacuteveis pois cadaum se define pelo lugarque ocupa na seacuterie e peladistacircncia que o separa dosoutros A unidade natildeo eacuteportanto nem o territoacuterio(unidade de dominaccedilatildeo)nem o local (unidade deresidecircncia) mas a posiccedilatildeona fila o lugar que al-

gueacutem ocupa numa classi-ficaccedilatildeo o ponto em que secruzam uma linha e umacoluna o intervalo numaseacuterie de intervalos que sepode percorrer sucessiva-mente

O controle da atividade1) horaacuterio velha heranccedilaque emprega trecircs grandesprocedimentos mdash estabe-lecer as cesuras obrigara ocupaccedilotildees determina-das regulamentar os ci-clos de repeticcedilatildeo que pro-cura tambeacutem garantir aqualidade do tempo em-pregado controle inin-terrupto pressatildeo dos fis-cais anulaccedilatildeo de tudo oque possa perturbar e dis-trair mediante a constru-ccedilatildeo de um tempo integral-mente uacutetil 2) A elaboraccedilatildeotemporal do ato define-seuma espeacutecie de esquemaanaacutetomo-cronoloacutegico docomportamento O ato eacutedecomposto em seus ele-mentos eacute definida a posi-ccedilatildeo do corpo dos mem-bros das articulaccedilotildeespara cada movimento eacutedeterminada uma dire-ccedilatildeo uma amplitude umaduraccedilatildeo eacute prescrita suaordem de sucessatildeo Otempo penetra o corpoe com ele todos os con-

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troles minuciosos do po-der 3) Correlaccedilatildeo entreo corpo e o gesto o con-trole disciplinar natildeo con-siste simplesmente em en-sinar ou impor uma seacuteriede gestos definidos impotildeea melhor relaccedilatildeo entre umgesto e a atitude global docorpo que eacute sua condi-ccedilatildeo de eficaacutecia e de rapi-dez 4) A articulaccedilatildeo corpo-objeto a disciplina de-fine cada uma das relaccedilotildeesque o corpo deve mantercom o objeto que mani-pula Ela estabelece cui-dadosa engrenagem entreum e outro 5) A utili-zaccedilatildeo exaustiva o princiacute-pio que estava subjacenteao horaacuterio em sua formatradicional era essencial-mente negativo princiacutepioda natildeo-ociosidade eacute proi-bido perder um tempoque eacute contado por Deus epago pelos homens o ho-raacuterio devia conjurar o pe-rigo de desperdiccedilar tempomdash erro moral e desonesti-dade econocircmica Jaacute a dis-ciplina organiza uma eco-nomia positiva coloca oprinciacutepio de uma utiliza-ccedilatildeo teoricamente semprecrescente do tempo maisexaustatildeo que empregoimporta extrair do tempo

sempre mais instantes dis-poniacuteveis e de cada ins-tante sempre mais forccedilasuacuteteis O que significa quese deve procurar intensifi-car o uso do miacutenimo ins-tante como se o tempoem seu proacuteprio fraciona-mento fosse inesgotaacutevelou como se pelo menospor uma organizaccedilatildeo in-terna cada vez mais deta-lhada se pudesse tenderpara um ponto ideal emque o maacuteximo de rapidezencontra o maacuteximo de efi-ciecircnciardquo

Organizaccedilatildeo das gecircne-ses 1) Especificaccedilatildeo desegmentos da duraccedilatildeo di-vidir a duraccedilatildeo em seg-mentos sucessivos ou pa-ralelos dos quais cadaum deve chegar a umtermo especiacutefico 2) Or-ganizar essas sequecircnciastemporais segundo um es-quema analiacutetico mdash su-cessatildeo de elementos tatildeosimples quanto possiacutevelcombinando-se segundouma complexidade cres-cente 3) Finalizaccedilatildeo sele-tiva dos segmentos esta-belecer um teacutermino paraesses segmentos atraveacutesde uma prova que tema triacuteplice funccedilatildeo de indi-car se o indiviacuteduo atin-

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giu o niacutevel estatutaacuterio degarantir que sua aprendi-zagem estaacute em conformi-dade com a dos outros ediferenciar as capacidadesde cada indiviacuteduo 4) Se-rializaccedilatildeo das seacuteries paraespecificar niacuteveis e catego-rias estabelecer seacuteries deseacuteries prescrever a cadaum de acordo com seu niacute-vel sua antiguidade seuposto os exerciacutecios quelhe convecircm os exerciacutecioscomuns tecircm um papel di-ferenciador e cada dife-renccedila comporta exerciacuteciosespeciacuteficos Ao termo decada seacuterie comeccedilam ou-tras formam uma ramifi-caccedilatildeo e se subdividem porsua vez De maneira quecada indiviacuteduo se encon-tra preso numa seacuterie tem-poral que define especifi-camente seu niacutevel ou suacategoria35

Composiccedilatildeo das forccedilas1) Constituiccedilatildeo do corpo in-dividual como peccedila de umamaacutequina multissegmentaro corpo singular torna-

se um elemento que sepode colocar mover ar-ticular com outros Suacoragem ou forccedila natildeo satildeomais as variaacuteveis princi-pais que o definem mas olugar que ele ocupa o in-tervalo que cobre a regu-laridade a boa ordem se-gundo as quais opera seusdeslocamentos 2) Ajus-tamento das seacuteries crono-loacutegicas satildeo tambeacutem pe-ccedilas as vaacuterias seacuteries cro-noloacutegicas que a disciplinadeve combinar para for-mar um tempo compostoO tempo de uns deve-seajustar ao tempo de outrosde maneira que se possaextrair a maacutexima quan-tidade de forccedilas de cadaum e combinaacute-la num re-sultado oacutetimo 3) Insti-tuiccedilatildeo de um sistema deordens essa combinaccedilatildeocuidadosamente medidadas forccedilas exige um sis-tema preciso de comandoToda a atividade do in-diviacuteduo disciplinar deveser repartida e sustentada

35Sobre o controle da existecircncia diz Foucault ldquoA colocaccedilatildeo em lsquoseacuteriersquo das atividades sucessivas permite todoum investimento da duraccedilatildeo pelo poder possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenccedilatildeo pontual(de diferenciaccedilatildeo de correccedilatildeo de castigo de eliminaccedilatildeo) a cada momento do tempo possibilidade de caracterizarportanto de utilizar os indiviacuteduos de acordo com o niacutevel que tecircm nas seacuteries que percorrem possibilidade de acu-mular o tempo e a atividade de encontraacute-los totalizados e utilizaacuteveis num resultado uacuteltimo que eacute a capacidadefinal de um indiviacuteduo Recolhe-se a dispersatildeo temporal para lucrar com isso e conserva-se o domiacutenio de uma du-raccedilatildeo que escapa O poder se articula diretamente sobre o tempo realiza o controle dele e garante sua utilizaccedilatildeordquo(p144-5)

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por injunccedilotildees cuja efici-ecircncia repousa na brevi-dade e na clareza a ordemnatildeo tem que ser explicadanem mesmo formuladaeacute necessaacuterio e suficienteque provoque o compor-tamento desejado36

Se levarmos em conta que essasteacutecnicas controlam o espaccedilo otempo os movimentos do corpoe suas relaccedilotildees com outros cor-pos se levarmos em conta o prin-ciacutepio de individuaccedilatildeo que subjaza esse diagrama do poder discipli-nar compreende-se porque Fou-cault conclui essa analiacutetica coma tese da produccedilatildeo da subjetivi-dade

Em resumo pode-se dizerque a disciplina fabrica apartir dos corpos que elacontrola quatro tipos de

individualidade ou antesuma individualidade do-tada de quatro caracteresela eacute celular (pelo jogo dareparticcedilatildeo espacial) ela eacuteorgacircnica (pela codificaccedilatildeodas atividades) ela eacute ge-neacutetica (pela acumulaccedilatildeodo tempo) ela eacute combina-toacuteria (pela composiccedilatildeo dasforccedilas)rdquo37

Aqui cada termo merece um co-mentaacuterio Individualidade celu-lar a espacialidade do corpo umldquofragmento de espaccedilo ambiacuteguocuja espacialidade proacutepria e ir-redutiacutevel se articula sobre o es-paccedilo das coisasrdquo eacute carceraacuteria pe-nitenciaacuteria incomunicada secci-onada divisoacuteria Individualidadeorgacircnica os movimentos corpo-rais satildeo codificados e como nosorganismos38 essa codificaccedilatildeo re-sulta em atividades de integra-

36SMJ a melhor esquematizaccedilatildeo das ldquograndes funccedilotildees disciplinaresrdquo ou do diagrama disciplinar encontra-seem MOREY M Lectura de Foucault Meacutexico Editorial Sexto Piso 1983 p344

37VP p150 E ainda ldquoMuitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indiviacuteduos como ele-mentos constituintes eacute tomada agraves formas juriacutedicas abstratas do contrato e da troca A sociedade comercial se teriarepresentado como uma associaccedilatildeo contratual de sujeitos juriacutedicos isolados Talvez A teoria poliacutetica dos seacuteculosXVII e XVIII parece com efeito obedecer a esse esquema Mas natildeo se deve esquecer que existiu na mesma eacutepocauma teacutecnica para constituir efetivamente os indiviacuteduos como elementos correlates de um poder e de um saber Oindiviacuteduo eacute sem duacutevida o aacutetomo fictiacutecio de uma representaccedilatildeo ldquoideoloacutegicardquo da sociedade mas eacute tambeacutem uma reali-dade fabricada por essa tecnologia especiacutefica de poder que se chama a ldquodisciplinardquo Temos que deixar de descreversempre os efeitos de poder em termos negativos ele ldquoexcluirdquo ldquoreprimerdquo ldquorecalcardquo ldquocensurardquo ldquoabstrairdquo ldquomascarardquoldquoesconderdquo Na verdade o poder produz ele produz realidade produz campos de objetos e rituais da verdade Oindiviacuteduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produccedilatildeordquo (p172)

38Desde os ensinamentos de Canguilhem e da redaccedilatildeo da HL do NC e de PC Foucault analisou a transformaccedilatildeoda histoacuteria natural para a biologia a mudanccedila da anatomia patoloacutegica para a fisiologia e alteraccedilatildeo da concepccedilatildeoestrutural para a concepccedilatildeo orgacircnica de corpo Como na biologia organicista o corpo natildeo eacute redutiacutevel agrave fiacutesica (con-cepccedilatildeo mecanicista) mas eacute uma complexa organizaccedilatildeo de ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos que coordenadamente realizamfunccedilotildees fisioloacutegicas (nutriccedilatildeo respiraccedilatildeo reproduccedilatildeo etc) para adaptar-se agraves mudanccedilas das condiccedilotildees ambientaise desse modo resistir agrave morte surgiram teorias da adaptaccedilatildeo que Foucault e antes dele Nietzsche rechaccedilaramprontamente e cujos ecos estatildeo presentes aqui

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

ccedilatildeo coordenaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo agravescondiccedilotildees ambientais Individu-alidade geneacutetica a duraccedilatildeo docorpo sua radical finitude natu-ral estaacute presa agrave identidade poruma memoacuteria cumulada Indivi-dualidade combinatoacuteria nas rela-ccedilotildees intercorporais o indiviacuteduo eacutepermutaacutevel intercambiaacutevel mo-viacutevel entre os elementos do dis-positivoaparelho Essa passagemprecisa ser conjugada e lida comduas outras que a esclarecem edesdobram colhidas no capiacutetuloldquoOs meios do bom adestramentordquo

ldquo[A disciplina - kb] laquoades-traraquo as multidotildees moacuteveisconfusas e inuacuteteis de cor-pos e forccedilas numa multi-plicidade de elementos in-dividuais ndash pequenas ceacute-lulas separadas autono-mias orgacircnicas identida-des e continuidades geneacute-ticas segmentos combina-toacuteriosrdquo (VP p 153) Eainda ldquoAs grandes fun-ccedilotildees disciplinares de re-particcedilatildeo () de extraccedilatildeomaacutexima das forccedilas ()de acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua de composiccedilatildeooacutetima das aptidotildees Por-tanto de fabricaccedilatildeo da in-dividualidade celular or-gacircnica geneacutetica e combi-natoacuteria () Disciplinasque podemos caracteri-

zar numa palavra dizendoque satildeo uma modalidadede poder para o qual a di-ferenccedila individual eacute perti-nenterdquo (VP p 171)

Embora Foucault natildeo as formulepodemos desdobrar as hipoacutetesesinversas dos indiviacuteduos discipli-nados ao inveacutes da reparticcedilatildeo damultiplicidade de indiviacuteduos aldquomobilidade e confusatildeordquo das mul-tidotildees em vez da extraccedilatildeo maacute-xima das forccedilas pela codificaccedilatildeoda atividade sua ldquoinutilidaderdquo aocontraacuterio da acumulaccedilatildeo geneacuteticacontiacutenua a ruptura da identidadepor fim em oposiccedilatildeo a composi-ccedilatildeo oacutetima das aptidotildees sua dis-persatildeo

Para finalizarmos dois escla-recimentos Agora que sabemosqual o conceito de disciplina ecomo se disciplina um corpo de-vemos determinar em qual eacutepocaemerge o momento histoacuterico dasdisciplinas e qual a importacircn-cia dessa dataccedilatildeo (assinalaccedilatildeo dolugar e tempo de nascimento)para o argumentotese de Fou-cault Tambeacutem precisamos mos-trar como ela se diferencia de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Emuma passagem lapidar o filoacutesofoesclarece essas questotildees

Muitos processos discipli-nares existiam haacute muito

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tempo nos conventosnos exeacutercitos nas oficinastambeacutem Mas as discipli-nas se tornaram no de-correr dos seacuteculos XVIIe XVIII foacutermulas geraisde dominaccedilatildeo Diferen-tes da escravidatildeo pois natildeose fundamentam numa re-laccedilatildeo de apropriaccedilatildeo doscorpos eacute ateacute a elegacircn-cia da disciplina dispen-sar essa relaccedilatildeo custosa eviolenta obtendo efeitosde utilidade pelo menosigualmente grandes Dife-rentes tambeacutem da domes-ticidade que eacute uma rela-ccedilatildeo de dominaccedilatildeo cons-tante global maciccedila natildeoanaliacutetica ilimitada e esta-belecida sob a forma davontade singular do pa-tratildeo seu ldquocaprichordquo Dife-rentes da vassalidade queeacute uma relaccedilatildeo de submis-satildeo altamente codificadamas longiacutenqua e que se re-aliza menos sobre as ope-raccedilotildees do corpo que sobreos produtos do trabalho eas marcas rituais da obe-diecircncia Diferentes aindado ascetismo e das ldquodis-ciplinasrdquo de tipo monaacutes-

tico que tecircm por funccedilatildeorealizar renuacutencias maisdo que aumentos de uti-lidade e que se implicamem obediecircncia a outremtecircm como fim principalum aumento do domiacuteniode cada um sobre seu proacute-prio corpo (p 126-7)

Note-se a concisatildeo e brevidadecom a qual Foucault coloca-se deacordo com os claacutessicos da socio-logia Durkheim Weber e MarxCom efeito eles escreveram sobrea origem das disciplinas nos con-ventos exeacutercitos e oficinas39 Sempolemizar com eles sobre a origemda disciplina interessa a Foucaultsalientar que apesar de sua ori-gem remota elas tornaram-se foacuter-mulas gerais de dominaccedilatildeo no de-correr dos seacuteculos XVII e XVIIIAo localizar a generalizaccedilatildeo dadisciplina na eacutepoca claacutessica Fou-cault reforccedila sua tese sobre a su-avizaccedilatildeo dos castigos a moder-nidade pocircde abrandar a penali-dade porque os corpos estavampreviamente disciplinados por-tanto natildeo por humanitarismo Emsuma a importacircncia de determi-nar o momento histoacuterico das dis-ciplinas na eacutepoca claacutessica eacute que a

39Notemos que Foucault natildeo contraria as teses da sociologia claacutessica (Durkheim Weber e Marx) sobre a origemdas disciplinas apropria-se delas acrescentando na sequecircncia dessa frase sua tese sobre a generalizaccedilatildeo delas emtodo tecido social preacute-moderno Cf DURKHEIM A educaccedilatildeo moral Weber ldquoO significado da disciplinardquo inEnsaios de Sociologia MARX O Capital

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

lei penal suavizada deve se exer-cer sobre uma populaccedilatildeo previ-amente disciplinada por procedi-mentos infra-juriacutedicos que fazemcrescer em proporccedilotildees diretas ascapacidades e a docilidade dos in-diviacuteduos seu assujeitamento agravesnormas sociais razatildeo pela qualtambeacutem se lhes pode concederdireitos fundamentais A disci-plina se diferencia dessas outrasformas de dominaccedilatildeo porque dis-pensa a violecircncia sobre o corponatildeo o domina pelo capricho deuma vontade excessiva natildeo visaapenas os produtos da atividadecorporal natildeo exige renuacutencias queimplicam em autocontrole masexecuta um controle minuciosodo corpo faz dele uma aptidatildeoaumenta-lhe as capacidades in-vertendo o poder que poderia re-sultar disso e lanccedilando-o numasubmissatildeo estrita a outrem por-tanto afastando o autodomiacutenio eo empoderamento que poderia re-sultar desse incremento de utili-dade

4 - Conclusatildeo

Nesse artigo procuramos mostrarque existe um duplo sentido daprisatildeo indicada no subtiacutetulo doVigiar e Punir nascimento da pri-satildeo cujo desconhecimento impedeaos melhores inteacuterpretes do filoacute-sofo compreender o objetivo prin-cipal dessa histoacuteria da racionali-

dade subjacente agraves praacuteticas puni-tivas Mediante uma breve expo-siccedilatildeo sobre a peculiar estrutura daobra procuramos restituir agrave ter-ceira parte o valor posicional cen-tral que ela ocupa na economiadas tesesposiccedilotildees foucaultianassobre a mitigaccedilatildeo das penas no di-reito penal e mesmo sobre a con-cessatildeo das liberdades constitucio-nais na modernidade que recusatoda explicaccedilatildeo enfatizadora doprogresso da razatildeo ou do huma-nismo Em seguida escolhemosanalisar o capiacutetulo ldquoOs corpos doacute-ceisrdquo que melhor permitiria al-canccedilar os objetivos desse trabalhonatildeo somente pela impossibilidadede analisar toda a terceira parteda obra que excederia tanto nos-sos objetivos quanto as dimensotildeesde um artigo mas tambeacutem por-que ele possui uma dupla centrali-dade central para a obra e centralpara a parte em que estaacute inseridoDestarte procuramos efetuar umaleitura imanente do capiacutetulo quetorna possiacutevel levantar e respon-der as seguintes questotildees Qualo conceito de disciplina Comoas disciplinas acoplam-se ao con-ceito de corpo Em qual momentohistoacuterico elas emergem Qual aimportacircncia dessa dataccedilatildeo para oargumento central de FoucaultComo elas se diferenciam de ou-tras formas de dominaccedilatildeo Comoessa modalidade de dominaccedilatildeoproduz corpos disciplinados O

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que resulta dessa produccedilatildeoNesse capiacutetulo Foucault des-

creveu minuciosamente essas teacutec-nicas que incidem sobre as no-tas principais do seu conceito decorpo mostrando que o poder dis-ciplinar natildeo vence as forccedilas docorpo atraveacutes da violecircncia masatraveacutes de uma forma materialde dominaccedilatildeo que se exerce emtorno na superfiacutecie e no inte-rior do corpo produzindo neleuma individualidade disciplinadae disciplinadora (alma subjetivi-dade psique personalidade ouconsciecircncia de si etc) que torna ocorpo uacutetil e doacutecil Se o exerciacutecio dopoder disciplinar natildeo eacute violentotampouco apresenta-se como me-ramente ideoloacutegico na medida emque produz saber pois as institui-ccedilotildees disciplinares suas funccedilotildees eseus instrumentos desbloquearamepistemologicamente as ciecircnciashumanas normalizadoras dadasas condiccedilotildees de vigilacircncia examee normalizaccedilatildeo essas instituiccedilotildeespunitivas transformam-se em la-boratoacuterio de anaacutelise sistemaacuteticodo indiviacuteduo escolarizado hos-pitalizado delinquente trabalha-dor etc

Eacute precisamente nessa articula-ccedilatildeo entre puniccedilatildeo-corpo-alma queFoucault retoma com novos meiosa tese defendida por Nietzschena segunda dissertaccedilatildeo de Para aGenealogia da Moral onde o filoacute-sofo alematildeo interpreta a gecircneseda consciecircncia moral como resul-tado de castigos oriundos da es-fera obrigacional presente na pro-toforma do direito e da moralComo vimos a tutela nietzschi-ana de sua pesquisa em geral edesta em particular foi expres-samente declarada por Foucaultna mesa redonda citada no iniacute-cio desse artigo e numa entrevistasobre o VP e seu meacutetodo ldquose eufosse pretencioso daria como tiacute-tulo geral ao que faccedilo genealo-gia da moralrdquo40 Mesmo Deleuzeamigo de Foucault e profundo co-nhecedor de sua obra e do que aaproximava da de Nietzsche queele conhecia tatildeo bem ao ponto dededicar-lhe um comentaacuterio mag-niacutefico natildeo aproximou aquilo queambiguamente chamava de ldquocate-gorias da forccedilardquo e ldquocategorias depoderrdquo (ldquodistribuiccedilatildeo no espaccedilordquoldquoordenar o tempordquo e ldquocompor no

40Entrevista sobre a prisatildeo e seu meacutetodo in DE vol4p174 Cf o final do texto da contracapa da obra41DELEUZE G El Poder curso sobre Foucault II Buenos Aires Cactus 2014 Talvez isso se deva ao fato de

interpretar a filosofia de Nietzsche separando forccedila e vontade de poder retomando-a nesse curso e por via deconsequecircncia negando a accedilatildeo da forccedila sobre o corpo ldquoMas a relaccedilatildeo da forccedila com algo ou algueacutem isto eacute a relaccedilatildeoda forccedila com um corpo ou com uma alma natildeo eacute o mesmo que a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila O que define amicrofiacutesica eacute a relaccedilatildeo da forccedila com a forccedila o que define a macrofiacutesica eacute os resultantes isto eacute a relaccedilatildeo da forccedilacom algo ou algueacutem Em outros termos a forccedila natildeo pode ser definida pela violecircncia Eacute uma forccedila sobre uma forccedilaou se preferem uma accedilatildeo sobre uma accedilatildeo Violecircncia eacute uma accedilatildeo sobre algordquo (p68-9 119 121 134 MF p82)Embora no livro sobre Foucault publicado um ano depois do curso Deleuze afirme que o poder afeta os corpos

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

espaccedilo-tempordquo) das notas do con-ceito de corpo41 Tambeacutem JeanFranccedilois Bert num belo texto de-dicado ao tema natildeo percebeu aarticulaccedilatildeo entre as teacutecnicas dis-ciplinares e conjunto de caracte-res representativos do conceito decorpo

As disciplinas satildeo ummodo de racionalidadeque investe o corpo comoum pedaccedilo de espaccedilo nuacute-cleo de comportamentosduraccedilatildeo interna mas tam-beacutem como soma de forccedilasEles instalam o indiviacuteduoem um novo tipo de rela-cionamento que posicionao corpo entre obtenccedilatildeo desua docilidade e a de suautilidade Mais preci-samente a definiccedilatildeo pro-posta por Foucault se des-dobra em duas direccedilotildees Aprimeira insiste em umaanaacutelise histoacuterica do con-ceito pois define distin-gue compara e descrevecom minuacutecia a formaccedilatildeodesses meacutetodos que auto-rizam o controle das ope-raccedilotildees do corpo Na se-gunda direccedilatildeo ele tentacompor a partir de suasdescriccedilotildees uma grade de

anaacutelise da realidade so-cial que se tornou disci-plinar Em um primeironiacutevel portanto eacute um es-tudo quase microssoci-oloacutegico onde uma ver-dadeira ambiccedilatildeo explica-tiva domina O propoacutesitohistoacuterico de Foucault cir-cunscreve ademais essasteacutecnicas disciplinares emum espaccedilo - o das insti-tuiccedilotildees bem como em umtempo - o da abertura dacolocircnia prisional para jo-vens delinquumlentes de Met-tray que eacute o siacutembolo dotransbordamento da pri-satildeo em um conjunto deinstituiccedilotildees que acabamformando uma rede car-ceral Se tomarmos a se-gunda direccedilatildeo sua anaacute-lise eacute lida como o estabele-cimento de uma hipoacutetesede trabalho natildeo mais mi-crossocioloacutegica mas ma-cro ou meta-histoacuterica quevisa mostrar que nossa so-ciedade se tornou discipli-nar42

Tambeacutem os principais leacutexicos deFoucault dedicaram verbetes aosconceitos quase imantados deldquocorpordquo e ldquodisciplinardquo detendo-

essa afetaccedilatildeo natildeo foi estendida ateacute as notas do conceito foucaultiano de corpo42BERT F ldquoRationalisation et histoire des corps dans le parcours de Michel Foucaultrdquo pp38-9

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se natildeo obstante em efetuar suaaproximaccedilatildeo43

Ateacute onde sei a exceccedilatildeo honrosaque mais se aproxima dessa corre-laccedilatildeo entre as teacutecnicas disciplina-res e o conceito de corpo eacute a anaacute-lise que Frederic Gros efetuou doinvestimento poliacutetico dos corpos

A disciplina eacute entendidaantes de tudo como umanova anatomia poliacutetica aarte de reparticcedilatildeo dos in-diviacuteduos no espaccedilo (cadaum deve estar em seu lu-gar segundo sua posiccedilatildeosuas forccedilas sua funccedilatildeoetc) controle da ativi-dade (a dominaccedilatildeo deveatingir a proacutepria interiori-dade do comportamentoela deveraacute jogar no niacute-vel do gesto em sua ma-terialidade mais iacutentima)organizaccedilatildeo das gecircneses(o poder investe o corpona dimensatildeo de sua dura-ccedilatildeo interna submetendo-o a exerciacutecios progressivos

) composiccedilatildeo das forccedilas(trata-se entatildeo de combi-nar os corpos a fim de ex-trair uma utilidade maacute-xima) O poder investeo corpo como um pedaccedilode espaccedilo como nuacutecleo decomportamentos como du-raccedilatildeo interna e como somade forccedilas44

A inspiradora frase final dessapassagem deu origem a essa ten-tativa de expor o acoplamento datecnologia disciplinar com as no-tas principais do conceito foucaul-tiano de corpo A retomada eo desenvolvimento dessa ldquopistardquoforam motivados pelas questotildeespara as quais desejaacutevamos chamara atenccedilatildeo para os dois sentidosda palavra prisatildeo para a posiccedilatildeocentral da terceira parte e dentrodela para o capiacutetulo ldquoos corposdoacuteceisrdquo na estrutura argumenta-tiva da obra para o enunciadopressuposto do princiacutepio de indi-viduaccedilatildeo na tese do caraacuteter produ-tivo do poder disciplinar

43Cf na bibliografia os prestimosos trabalhos de Revel Castro e Taylor44GROS F Michel Foucault 5ordf ed ParisPUF 2017 p66-7 A primeira ediccedilatildeo eacute de 1996 e serviu como ins-

piraccedilatildeo para a primeira versatildeo desse trabalho que foi apresentado como conferecircncia (ldquoA Alma como prisatildeo docorpo segundo Michel Foucaultrdquo) em um seminaacuterio promovido pela linha de pesquisa Corpo e Cultura do Nuacute-cleo de Estudos Sociedade Poliacutetica e Cultura (NESPOC) do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL) daUniversidade Federal do Recocircncavo da Bahia no segundo semestre de 2008

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SOBRE A CENTRALIDADE E A ESTRUTURA DO CAPIacuteTULO ldquoOS CORPOS DOacuteCEISrdquo DE VIGIAR EPUNIR

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DOI httpsdoiorg1026512rfmcv7i223115

Subjetividade e Formas de Vida em Foucault[Foucault on Subjectivity and Life Forms]

Lara Pimentel Figueira Anastacio

Resumo O artigo pretende mostrar que a noccedilatildeo foucaultiana de ldquosub-jetividaderdquo que aparece principalmente em suas genealogias da deacute-cada de 80 dedicadas agraves teacutecnicas de si na antiguidade tambeacutem com-potildee uma criacutetica da razatildeo governamental ao interpretar os modos desubjetivaccedilatildeo dos antigos como modelo de governo de si Apoacutes cir-cunscrevemos a questatildeo em O uso dos prazeres analisaremos o exem-plo da escrita de si como produccedilatildeo de subjetividade dos antigos paraargumentarmos que no pensamento de Foucault a noccedilatildeo de subjeti-vidade estaacute necessariamente vinculada agrave criaccedilatildeo de formas de vida oude um governo das proacuteprias condutas Em outros termos certa dis-posiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade corresponde a uma direccedilatildeoque Foucault identifica como eacuteticaPalavras-chave Michel Foucault Eacutetica Subjetividade Governo Teacutec-nicas de si

Abstract Foucauldrsquos notion of subjectivity which appears mainlyin his genealogies of the 80s dedicated to the techniques of the selfin antiquity also composes a critique of governmental reason sinceit interprets the modes of subjectivation of the ancients as a modelof self-government After we approach the question in The Use ofPleasure we will analyze the example of self-writing as a productionof subjectivity of the ancients to argue that in Foucaultrsquos thoughtthe notion of subjectivity is necessarily linked to the creation of lifeforms In other terms a certain disposition of the relation betweensubject and truth corresponds to a direction that Foucault identifiesas ethicsKeywords Michel Foucault Ethics Subjectivity Government Tech-niques of the self

Nas genealogias de Foucault en-contramos uma concepccedilatildeo de su-jeito imanente agraves relaccedilotildees de po-

der e seus processos de objetiva-ccedilatildeo e subjetivaccedilatildeo A propoacutesito desua criacutetica a filosofias que reme-

Mestre em filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) Atualmente realiza doutorado em filosofia na mesmainstituiccedilatildeo E-mail larapfagmailcom ORCID httpsorcidorg0000-0001-8631-9626

1 Referimo-nos aqui principalmente agrave fase arqueoloacutegica de Foucault que se propotildee a descobrir territoacuterios preacute-conceituais que prefiguram nos desenhos das epistemes a forma do saber que soacute pode ser compreendido a partirdesse campo preacutevio Foucault ressalta que para criticar certos modelos de referecircncia conceitual foi necessaacuteriorecuar ao campo discursivo da episteme moderna ao qual pertence esse sujeito fundador descrito pejorativamentepor ele como um narcisismo transcendental que ordena e impotildee sua loacutegica contiacutenua agrave acontecimentos irregulares

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LARA PIMENTEL FIGUEIRA ANASTACIO

tem agrave fixidez do sujeito de conhe-cimento1 seria possiacutevel afirmarque em suas pesquisas genealoacutegi-cas natildeo se encontra um sujeito quepressupotildee uma identidade estan-que que eacute afetada e que se modulaconforme a soma das experiecircn-cias mas um jogo constante entreuma desintegraccedilatildeo interna e suacontraparte externa que provecirc ou-tra integraccedilatildeo mediada pelas re-laccedilotildees de poder Trata-se de certareiteraccedilatildeo da mediaccedilatildeo materialdo mundo sobre os corpos e o su-jeito do qual fala Foucault forma-se atraveacutes das condiccedilotildees proacutepriasaos campos de forccedilas e portantonenhum conteuacutedo sobre ele estaacuteanteriormente posto Movimentode criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo perpeacutetuaso sujeito eacute uma singularidade porser tanto o diferenciado quanto opoder de diferenciaccedilatildeo se o to-marmos como um campo estrateacute-gico de relaccedilotildees de poder ou sejase tomarmos o sujeito no que eletem de moacutevel transformaacutevel re-versiacutevel abre-se entatildeo a possibili-dade do sujeito natildeo ser o mesmodesvinculando-o de qualquer tra-diccedilatildeo ontoloacutegica que fixa e essen-cializa Corpos criam e refletemteacutecnicas criadas no interior das re-laccedilotildees de forccedila e a Foucault in-teressa especialmente interpretare diferenciar processos que se re-

lacionam com a histoacuteria da pro-duccedilatildeo de verdade sobre os sujei-tos o sujeito formado pelo dis-positivo de sexualidade natildeo eacute omesmo daquele encontrado pelasteacutecnicas de si dos antigos e assimpor diante Nesse sentido o queFoucault afirma sobre Nietzscheilumina esse pressuposto que en-contramos em suas proacuteprias pes-quisas ldquoO corpo superfiacutecie deinscriccedilatildeo dos acontecimentos (en-quanto a linguagem os marca eas ideias os dissolvem) lugar dedissociaccedilatildeo do Eu (ao qual eletenta emprestar a quimera de umaunidade substancial) volume emperpeacutetua desintegraccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoNietzsche la geacuteneacutealogielrsquohistoirerdquo 2001a 10112)

Neste artigo escolhemos tra-tar essa questatildeo por meio de al-guns exemplos aos quais Foucaultdedicou-se especialmente a cri-accedilatildeo da subjetividade por meiode praacuteticas denominadas por elede ldquoteacutecnicas de sirdquo Interessa-nossublinhar como o autor apesarde ter expressamente deslocado otema de suas pesquisas a partirda deacutecada de 80 ainda se ocupouem delinear rupturas e continui-dades da histoacuteria de uma formade governo e portanto de umaforma de poder ou de jogo de for-ccedilas como mostram os exemplos

e dispersos Cf FOUCAULT Lrsquoarcheacuteologie du savoir Paris Tel Gallimard p 2652 Os textos citados na liacutengua original possuem traduccedilatildeo de nossa autoria

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especiacuteficos tratados ao longo desteartigo A objetivaccedilatildeo do homempor saberes sobre a sexualidadeou por teacutecnicas de governo pas-torais ou biopoliacuteticas satildeo partede uma genealogia do governodas condutas que como resultadodo proacuteprio meacutetodo eacute repleta dedescontinuidades e inquietaccedilotildeese como pretendemos investigaralgumas das possiacuteveis respostasa problemas abordados anterior-mente por Foucault satildeo elabora-das por meio da interpretaccedilatildeo daproduccedilatildeo de verdade sobre si rea-lizada pelos antigos Natildeo se trataporeacutem de apontar perguntas erespostas objetivas que operamcomo soluccedilotildees agraves tramas do po-der descritas ao longo da deacutecadade 70 A filosofia de Foucault eacutecomo logo percebem seus leitoresrefrataacuteria a essas posiccedilotildees imedi-atas e nossa intenccedilatildeo resume-sea mostrar como alguns elementosdo que Foucault chamava de ldquogo-vernamentalidaderdquo satildeo retomadospor ele em genealogias de praacuteticasde si na antiguidade para pensarformas de vida capazes de rema-nejar os jogos de forccedilas em que seencontram

Antes poreacutem eacute preciso apenasregistrar que nos cursos ministra-dos em 1978 (Seguranccedila territoacute-rio populaccedilatildeo) e 1979 (O nasci-mento da biopoliacutetica) ambos de-dicados agraves teacutecnicas de governona modernidade Foucault de-

cide privilegiar em sua genea-logia do Estado Moderno o usodo termo ldquogovernamentalidaderdquoao voltar-se para os dispositivosconstituiacutedos por teacutecnicas de go-verno de direccedilatildeo de condutastrata-se de um campo de poderque designa um conjunto de for-ccedilas criadoras de uma nova loacute-gica de organizaccedilatildeo de uma mul-tiplicidade de indiviacuteduos As-sim ao voltar-se para o dispositivoldquoseguranccedila-populaccedilatildeo-governordquono curso de 1978 Foucault tra-balha com uma noccedilatildeo ampla degoverno tratando-o como formade racionalidade que determinaos ldquogovernos dos homensrdquo de-linquecircncia sexualidade pasto-rado liberalismo etc satildeo com-preendidos como saberes elabora-dos a partir de princiacutepios racionaisque modulam as accedilotildees dos indiviacute-duos Racionalidade portanto eacuteentendida como um conceito his-toricamente identificaacutevel que en-globa um mundo de componentesdiversos a racionalizaccedilatildeo da vidabaseia-se no caacutelculo rigoroso paradirigi-la com previsatildeo e atenccedilatildeopara o fim de uma forma determi-nada de governo Nesse sentidoeacute preciso interpretar o conceitode ldquorazatildeo governamentalrdquo comoum fundamento para produccedilatildeo deteacutecnicas cuja loacutegica incorpora mo-delos de governo das condutas esuas formas de objetivaccedilatildeo dos su-jeitos (FOUCAULT ldquoLe sujet et le

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pouvoirrdquo 2001b 1056) relaccedilotildeescalculadas e adequadas de acordocom o sentido de uma funccedilatildeo dopoder que tende para dominaccedilatildeoPor essa perspectiva os sujeitosteratildeo suas condutas submetidasa uma administraccedilatildeo cuja ldquorazatildeogovernamentalrdquo eacute dirigida agrave pro-duccedilatildeo de um saber sobre formasde governo e agrave criaccedilatildeo de teacutecni-cas que intervecircm nas condutas doshomens com vistas a um determi-nado fim No entanto natildeo eacute estaforma de governo que nos inte-ressa no momento

Considerando a noccedilatildeo de gover-namentalidade o caraacuteter moacutevel ea funccedilatildeo diferenciadora dos pro-cessos que constroem uma subjeti-vidade ndash que nos termos foucaul-tianos pode ser entendida comoldquoo conjunto de processos de sub-jetivaccedilatildeo aos quais os indiviacuteduosforam submetidos ou que execu-tavam (mis en oeuvre) em relaccedilatildeo aeles mesmosrdquo (FOUCAULT 2014287) eacute possiacutevel pensar a media-ccedilatildeo material do mundo a partir deuma accedilatildeo reflexionada do sujeitoEm outros termos eacute possiacutevel con-siderar o proacuteprio indiviacuteduo comoum eixo de governamentalidadee tomar a si mesmo como umaexternalidade de um processo desubjetivaccedilatildeo como uma forccedila queage sobre si mesma A respostaafirmativa de Foucault eacute interes-sante e complexa pois se a noccedilatildeode ldquogovernordquo serviu a Foucault

primeiramente para descrever osmodos de operaccedilatildeo da ldquorazatildeo go-vernamentalrdquo na modernidade edos sujeitos produzidos por eles oldquogoverno de sirdquo observa a mesmaloacutegica eacute preciso produzir um sa-ber aplicaacutevel aos corpos por meiode teacutecnicas que influenciam naconduta dos indiviacuteduos ndash no casoum saber direcionado para a con-duta de si mesmo

Problematizaccedilatildeo e constituiccedilatildeodo sujeito eacutetico

Como resumido na aula de 17 defevereiro de 1982 de A hermenecircu-tica do sujeito

() se considerarmos aquestatildeo do poder do po-der poliacutetico situando-ana questatildeo mais geral dagovernamentalidade ()entatildeo a reflexatildeo sobre anoccedilatildeo de governamentali-dade penso eu natildeo podedeixar de passar teoacutericae praticamente pelo acircm-bito de um sujeito que se-ria definido pela relaccedilatildeode si para consigo En-quanto a teoria do po-der poliacutetico como insti-tuiccedilatildeo refere-se ordina-riamente a uma concep-ccedilatildeo juriacutedica do sujeito dedireito parece-me que a

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anaacutelise da governamenta-lidade ndash isto eacute a anaacutelise dopoder como conjunto derelaccedilotildees reversiacuteveis ndash devereferir-se a uma eacutetica dosujeito definido pela re-laccedilatildeo de si para consigo(FOUCAULT 2001c 225)

Percebe-se pois parte do que estaacuteem jogo as genealogias das rela-ccedilotildees de si inserem-se na proble-maacutetica das teacutecnicas de governocomo um contraponto estrateacutegicoa culturas posteriores agrave antigui-dade que privilegiaram moraisimpostas aos indiviacuteduos a partirde instacircncias codificadoras de sis-temas morais No trecho menci-onado Foucault sugere que umdos instrumentos preponderan-tes para se pensar uma criacutetica domodo como determinada formade governo se estabelece eacute o ldquosu-jeito de direitordquo mediador teoacute-rico que confere legitimidade ju-riacutedica agraves formas de relaccedilatildeo possiacute-veis entre o indiviacuteduo e o EstadoCerta tradiccedilatildeo do pensamento criacute-tico dificilmente escapa de ela-borar accedilotildees poliacuteticas que se datildeofora dos campos institucionais ejuriacutedicos as potencialidades des-sas accedilotildees necessariamente perpas-sam o espaccedilo presente no com-plexo conceito de ldquoesfera puacuteblicardquoo qual natildeo nos cabe discutir aquiNatildeo eacute por meio de anaacutelises teoacute-ricas que Foucault estabelece seu

pensamento criacutetico daiacute sua re-cusa em se aproximar de anaacutelisescircunscritas a questotildees normati-vas e institucionais Se Foucaultafirma que natildeo haacute ldquoresistecircncia aopoder poliacutetico senatildeo na relaccedilatildeode si para consigordquo (FOUCAULT2001c 225) eacute porque encontrana histoacuteria um modo de accedilatildeo queintensifica uma capacidade do su-jeito de conduzir a proacutepria vida aopotencializar suas forccedilas por meiode uma dobra sobre si (para utili-zarmos a vocabulaacuterio de Deleuze)(DELEUZE 2005111-115) Eletorna-se apto a alcanccedilar inversotildeesdas relaccedilotildees de poder pois o jogode forccedilas dos antigos estabeleciaque somente os homens livresaqueles que dominam a si mes-mos podiam estabelecer relaccedilotildeeslivres entre si e tornavam-se aptosa ldquogovernar os outrosrdquo a governara famiacutelia e a cidade a conduzirrelaccedilotildees tanto no acircmbito privadoquanto no puacuteblico A filosofia daarte de viver em Foucault assumea tarefa da moldagem de um su-jeito capaz de se relacionar de ma-neira reflexiva consigo mesmo ecom outras formas de governo quesurgem e perpassam sobre ele e eacutenesse contexto que deve ser inse-rida a noccedilatildeo de subjetividade Aeacutetica elaborada como uma esteacuteticase define portanto como produtode altas intensidades tornando oproacuteprio sujeito em um objeto desi capaz de controlar as proacuteprias

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transformaccedilotildeesPara investigar essa forma refle-

xiva de governo Foucault voltou-se para os arquivos da atividadefilosoacutefica na antiguidade quandoaprender e produzir saberes pres-supunha que o sujeito exercesseum trabalho sobre si por meio deexerciacutecios que preparavam corpoe espiacuterito para a filosofia e parao governo dos outros ndash esta eacute aproveniecircncia do termo grego paraa noccedilatildeo de cuidado de si epimeacute-leia heautoucirc Nos termos de Pi-erre Hadot cuja colaboraccedilatildeo foifundamental para Foucault fun-damentar seu ponto de vista sobrea filosofia antiga ldquoA filosofia an-tiga admite bem de uma maneiraou de outra e desde o Banquete dePlatatildeo que o filoacutesofo natildeo eacute um saacute-bio pois a filosofia eacute ao mesmotempo e indissoluvelmente dis-curso e modo de vidardquo (HADOT199519-20) Se a sabedoria re-presenta a identificaccedilatildeo ideal dosaber com a virtude a oposiccedilatildeomarcada por Hadot entre filosofiae sabedoria reflete a busca cons-tante da primeira pela segundaa filosofia na tradiccedilatildeo grega natildeoeacute um saber puramente teoacutericomas um saber-viver que pressu-potildee uma praacutetica que sempre tendepara sabedoria E para que o su-jeito estivesse pronto para refle-tir sobre perguntas tatildeo complexasquanto aquelas produzidas pelafilosofia era preciso que optasse

por certo modo de vida que natildeo sesitua no fim do processo da ativi-dade filosoacutefica como o efeito deum caminho exterior a ele maspelo contraacuterio estaacute pressupostodesde seu iniacutecio em uma com-plexa interaccedilatildeo entre uma reaccedilatildeorefletida do indiviacuteduo agraves proacutepriasatitudes e uma visatildeo de certa ma-neira de viver e de ver o mundoEssa opccedilatildeo por um modo de vidadeterminava ateacute certo ponto a te-oria que era ensinada ao indiviacute-duo havendo portanto um pri-mado da praacutetica sobre a teoria en-tre os filoacutesofos gregos Portantode acordo com o princiacutepio de lei-tura de Hadot da qual Foucaultaproxima-se o discurso filosoacuteficotem sua origem em uma escolha devida e natildeo o contraacuterio e o filoacutesofoeacute aquele que ao buscar a sabedo-ria cria tanto um modo de vidaquanto um discurso

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos Essa escolha sobreas formas de vida diz respeito auma postura de questionamentoque ao relacionar filosofia e vidatorna-se capaz de reconhecer no-vas perspectivas sobre aquilo queexiste de mais familiar ou confereinteresse a accedilotildees ateacute entatildeo con-sideradas insignificantes ndash este eacute

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o recorte de inteligibilidade parasuas interpretaccedilotildees sobre o modocomo os filoacutesofos antigos proble-matizaram sensaccedilotildees simples e vi-tais como os prazeres do corpopor exemplo Trata-se de um novovocabulaacuterio para abordar relaccedilotildeesde forccedilas relacionadas agraves teacutecnicasde si e sua articulaccedilatildeo com a cria-ccedilatildeo de um pensamento que trans-forma a filosofia em uma praacuteticapara um domiacutenio de accedilatildeo ou certaconformaccedilatildeo do jogo de forccedilas en-trar no campo do pensamento eacutenecessaacuterio uma teacutecnica de si umaatitude criacutetica ou reflexiva que lo-caliza por meio do movimentoldquode sirdquo fatores que tornaram cer-tas accedilotildees incertas ou provoca-ram dificuldades em torno delaE esse processo de problematiza-ccedilatildeo do mundo natildeo requer respos-tas certas ou sistemas que con-ferem legitimidade a um eu defundo egoiacutesta ldquoTrata-se de ummovimento de anaacutelise criacutetica peloqual se tenta ver como puderamser construiacutedas as diferentes solu-ccedilotildees para um problema mas tam-beacutem como essas diferentes solu-

ccedilotildees resultam de uma forma espe-ciacutefica de problematizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT ldquoPoleacutemique politique etprobleacutematisationsrdquo 2001b 1417)Satildeo soluccedilotildees que assumem muacutel-tiplas formas teacutecnicas e saberesque satildeo definidos pelo contextode problemas nos quais se encon-tram em um cenaacuterio que deve sercompreendido a partir das forccedilasem que a simultaneidade dessesacontecimentos estaacute localizada

Em O uso dos prazeres a noccedilatildeode ldquoproblematizaccedilatildeordquo ressalta ocaraacuteter reflexivo das praacuteticas desubjetivaccedilatildeo dos antigos em rela-ccedilatildeo aos prazeres Ao longo da his-toacuteria dessas relaccedilotildees de si forccedilasatuaram de diferentes modos nasformas como os sujeitos produ-zem verdade sobre si se o ldquosujeitode desejordquo eacute interpretado como su-jeito objetivado pelas praacuteticas as-sociadas agrave tradiccedilatildeo cristatilde3 a for-maccedilatildeo do sujeito eacutetico na antigui-dade oferece um campo histoacutericono qual as teacutecnicas de subjetivaccedilatildeoeram desvinculadas da produccedilatildeode uma verdade sobre si de umaobjetivaccedilatildeo de si servindo entatildeo

3 No curso de 1980 Do governo dos vivos Foucault convoca pela primeira vez em seu percurso filosoacutefico a forccedilado ldquosirdquo nas relaccedilotildees produtoras de subjetividade A nova perspectiva parece sugerir uma mudanccedila do eixo analiacuteticoem relaccedilatildeo aos programas dos cursos anteriores trata-se poreacutem a nosso ver mais de uma realocaccedilatildeo do problemado governo das condutas do que de uma ruptura no modo de se pensar ldquose trata essencialmente ao passar danoccedilatildeo de saber-poder agrave noccedilatildeo de governo pela verdade de dar um conteuacutedo positivo e diferenciado a esses doistermos saber e poderrdquo (FOUCAULT 2012 13)

4 O receacutem publicado quarto volume da Histoacuteria da sexualidade As confissotildees da carne sublinha os contrastes queFoucault intencionava destacar entre a antiguidade claacutessica e o cristianismo que emerge no seacuteculo IV Ao abordarteacutecnicas como o batismo a confissatildeo a penitecircncia e as interdiccedilotildees sexuais Foucault argumenta que o cristianismodesenvolveu teacutecnicas de poder por meio de um governo do desejo essa verdade sobre si mesmo criada pelosprimeiros pensadores cristatildeos que satildeo obtidas por teacutecnicas de si que objetificam sujeitos por meio da produccedilatildeo

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como contraponto agraves teacutecnicas decontrole do desejo desenvolvidadesde o cristianismo primitivo4

() vamos encontrar tudoisso nas teacutecnicas espiritu-ais do cristianismo primi-tivo nas quais o desejo eacute oelemento fundamental eeacute sobre ele se apreendidode sua raiz ou de sua apa-riccedilatildeo que eacute preciso con-centrar todo esforccedilo ()Natildeo satildeo mais os aphrodi-sia natildeo eacute mais este ato pa-roxiacutestico eacute o nascimentoo desabrochar a primeiraponta a primeira picadado desejo eacute a concupis-cecircncia eacute a tentaccedilatildeo Eacute oque encontraremos poste-riormente deslocamentodo bloco dos aphrodisiae emergecircncia do desejo(FOUCAULT 2014 292)

Ao voltar-se para seu trabalho his-toacuterico e criacutetico ldquoa propoacutesito do de-sejo e do sujeito desejanterdquo (FOU-CAULT 1984 11) Foucault reor-

ganiza a pesquisa que antes eradedicada ao dispositivo de sexua-lidade Com o intuito de formularsua criacutetica histoacuterica do objeto ldquose-xualidaderdquo a Foucault interessouinterpretar as forccedilas que envol-vem o caraacuteter produtivo e criativodas relaccedilotildees que produzem sabe-res construiacutedos sobre certo con-ceito de desejo o que desloca osmecanismos de coerccedilatildeo a um pa-pel coadjuvante na problemaacuteticada sexualidade Suas interpreta-ccedilotildees dirigem-se agraves ldquopraacuteticas pelasquais os indiviacuteduos foram leva-dos a prestar atenccedilatildeo a eles proacute-prios (eux-mecircmes) a se decifrar ase reconhecer e se confessar comosujeitos de desejo jogando de sipara consigo (faisant jouer entreeux-mecircmes et eux-mecircmes) certa re-laccedilatildeo que lhes permite descobrirno desejo a verdade de seu serrdquo(FOUCAULT 1984 11) O projetosignificou um deslocamento ateacute aspraacuteticas de si dos antigos mesmodiante da constataccedilatildeo das dificul-dades oacutebvias em se produzir umagenealogia que percorra as rela-ccedilotildees entre o ldquodesejordquo e a produccedilatildeode verdade sobre si desde a an-

de um saber sobre si Essa subjetivaccedilatildeo eacute indissociaacutevel de um processo de conhecimento que faz da obrigaccedilatildeo debuscar e dizer a verdade de si mesmo uma condiccedilatildeo indispensaacutevel e permanente dessa eacutetica Toda subjetivaccedilatildeoimplica uma objetificaccedilatildeo indefinida de si mesmo por si mesmo mdash indefinida na medida em que sem nunca seradquirida de uma vez por todas natildeo tem um termo no tempo e no sentido de que se deve sempre ter tanto quantopossiacutevel o exame dos movimentos do pensamento tatildeo tecircnues e inocentes quanto possam parecer Por outro ladoessa subjetivaccedilatildeo na forma de uma busca pela verdade de si eacute realizada atraveacutes de relaccedilotildees complexas com os ou-tros E de muitas maneiras porque trata-se de descobrir em si mesmo o poder do Outro do Inimigo que se escondesob as aparecircncias de si mesmo porque trata-se de travar contra este Outro um incessante combate do qual natildeo sepode ser vitorioso sem a ajuda do Todo-Poderoso que eacute mais poderoso que ele porque finalmente a confissatildeoaos outros a submissatildeo aos seus conselhos a obediecircncia permanente aos diretores satildeo indispensaacuteveis para essecombate (FOUCAULT 2018 245)

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tiguidade Esse retorno histoacutericoradical forneceria as condiccedilotildees deampliaccedilatildeo de seu exerciacutecio criacuteticoem um projeto pelo qual novasquestotildees conduziriam sua ldquoanaacutelisedos jogos de verdaderdquo ldquoa questatildeoque deveria servir de fio condutorera a seguinte como por que esob que forma a atividade sexualfoi constituiacuteda como campo mo-ral Por que esse cuidado eacuteticotatildeo insistente () Por que essalsquoproblematizaccedilatildeordquorsquo (FOUCAULT1984 16) Perguntas cuja respostarelaciona-se com o conjunto depraacuteticas que Foucault denominade ldquoartes da existecircnciardquo

Por elas deve-se entenderpraacuteticas refletidas e vo-luntaacuterias atraveacutes das quaisos homens natildeo somente sefixam regras de condutacomo tambeacutem procuramtransformar-se modificar-se em seu ser singular e fa-zer de sua vida uma obraque seja portadora de cer-tos valores esteacuteticos e res-ponda a certos criteacuterios deestilo (FOUCAULT 198416-17)

A constituiccedilatildeo saudaacutevel de um ho-mem livre na Greacutecia Antiga pres-crevia uma ldquoesteacutetica de sirdquo no sen-tido de uma atividade terapecircuticaque tem como fim operar modi-

ficaccedilotildees eacuteticas no sujeito que setornava capaz de se adequar con-forme uma justa medida A ldquopro-blematizaccedilatildeordquo portanto eacute o con-ceito chave para Foucault inter-pretar na Histoacuteria da sexualidadeas relaccedilotildees de poder e as tecno-logias que satildeo imanentes a elascomo praacutetica que visa criar e for-mular problemas diante de umaanaacutelise reflexiva sobre as accedilotildeesos comportamentos as atitudesarticulando-se tambeacutem agraves teacutecni-cas criadas para interferir nessasaccedilotildees tendo em vista algum fimalguma estrateacutegia

Ao voltar-se para a praacutetica daproblematizaccedilatildeo como guia parasuas pesquisas sobre as teacutecnicasde si Foucault abre um novo ho-rizonte para a anaacutelise das relaccedilotildeesde poder mais proacuteximos agraves re-laccedilotildees de forccedilas envolvidas coma proacutepria atividade filosoacutefica Eacuteo que sugere algumas das men-ccedilotildees ao termo encontradas no li-vro ldquoas condiccedilotildees nas quais o serhumano lsquoproblematizarsquo o que eleeacute e o mundo no qual ele viverdquo(FOUCAULT 1984 16) ldquoas pro-blematizaccedilotildees atraveacutes das quais oser se daacute como podendo e devendoser pensadordquo (FOUCAULT 198417) ou ainda ldquoera preciso pesqui-sar a partir de quais regiotildees daexperiecircncia e sob que formas ocomportamento sexual foi proble-matizado tornando-se objeto decuidado elemento para reflexatildeo

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mateacuteria para estilizaccedilatildeordquo (FOU-CAULT 1984 30) Natildeo interessaagrave anaacutelise de Foucault portantoexperiecircncias regidas por leis queservem de referecircncias a condutaspois seu ponto centraliza-se no es-paccedilo de incocircmodo que nasce nomomento em que o homem da An-tiguidade volta-se para sua proacute-pria constituiccedilatildeo a partir de ldquomo-rais orientadas para a eacuteticardquo defi-nidas pela ldquoecircnfase dada entatildeo agravesformas das relaccedilotildees consigo aosprocedimentos e agraves teacutecnicas pe-las quais satildeo elaboradas aos exer-ciacutecios pelos quais o proacuteprio su-jeito se daacute como objeto a conhe-cer e agraves praacuteticas que permitamtransformar seu proacuteprio modo deserrdquo (FOUCAULT 1984 37) Por-tanto o ldquosujeitordquo abordado na His-toacuteria da sexualidade e nos cursosministrados por Foucault na deacute-cada de 80 natildeo se refere ao indi-viacuteduo que eacute levado a se compor-tar de tal maneira por um con-trole externo a si mas o de algueacutemque adquire a capacidade de esco-lher como agir em determinadassituaccedilotildees por meio de uma refle-xatildeo centrada no domiacutenio das proacute-prias paixotildees dentro de um es-paccedilo de deliberaccedilatildeo sem que o as-pecto reflexivo se confunda comum eu egoiacutesta como observa Wi-lhelm Schmid ldquoO cuidado de sieacute a foacutermula para todas as praacuteti-cas nas quais o eu eacute constituiacutedo() O conceito de epimeleia estaacute

no centro da eacutetica antiga claacutessicaeacutetica entendida como domiacuteniocomo governo da relaccedilatildeo consigomesmo e das relaccedilotildees com os ou-tros O heatou (pronome refle-xivo da 3ordf pessoa) eacute essencial eacuteo si da praacutetica natildeo o eu doegoiacutesmo ou vocecirc do altruiacutesmordquo(SCHMID 1991 247) Foi essemodo de ser especiacutefico dos anti-gos preocupados em alcanccedilar asoberania de si sobre si mesmo apartir de uma reflexatildeo sobre a li-berdade e a eacutetica que atraiu Fou-cault para uma genealogia voltadapara a criaccedilatildeo de praacuteticas para aformaccedilatildeo do sujeito eacutetico

A escrita de si como criaccedilatildeo deformas de vida

Para compreendermos o funcio-namento das forccedilas que envolvemos exerciacutecios de si e o princiacutepiode accedilatildeo que fundamenta essas ati-tudes tomemos primeiramente omodo como Foucault elabora essasrelaccedilotildees pela perspectiva do exer-ciacutecio da leitura e da escrita de sientre os filoacutesofos estoicos que vi-veram durante o Impeacuterio Romanonos primeiros anos de nossa era Aquestatildeo da escrita de si parece-nosum exemplo especialmente ins-trutivo para uma anaacutelise das rela-ccedilotildees de forccedila em jogo nas praacuteticasde si por conter e evidenciar todosos elementos que buscamos des-tacar a relaccedilatildeo entre certo tipo

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de exerciacutecio e seu efeito sobre aforma do corpo por meio de umarelaccedilatildeo instrumental com os dis-cursos Apesar do exerciacutecio da lei-tura e escrita ter adquirido impor-tacircncia tardiamente como exerciacute-cio de si (FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1236) desde en-tatildeo ele desempenhou um papelconsideraacutevel na vida filosoacutefica an-tiga tornando-se um suporte parao acompanhamento ininterruptoda praacutetica asceacutetica

Em todo caso qual sejao ciclo de exerciacutecio emque ela tome lugar a es-crita constitui uma etapaessencial no processo aoqual tende toda askecircsis asaber a elaboraccedilatildeo de dis-cursos recebidos e reco-nhecidos como verdadei-ros em princiacutepios racio-nais de accedilatildeo Como ele-mento de exerciacutecio de sia escrita tem para uti-lizar uma expressatildeo queencontramos em Plutarcouma funccedilatildeo eacutethopoieacuteticaela eacute um operador detransformaccedilatildeo da verdadeem ecircthos (FOUCAULTldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1237)

Vemos aiacute uma seacuterie de conceitos ede relaccedilotildees entre eles que eacute pre-

ciso esclarecer o papel funda-mental atribuiacutedo agrave askecircsis de ins-trumento para o acesso agrave verdadee de consequente transformaccedilatildeode si atraveacutes de uma ldquofunccedilatildeo eacutetho-poeacuteticardquo presente nessa forma depoder Nesse sentido a ascese erao meio pelo qual o sujeito cons-titui a si mesmo ldquoNenhuma teacutec-nica () pode ser adquirida semexerciacutecio tambeacutem natildeo se podeaprender a arte de viver sem umaaskecircsis () aiacute residia um dosprinciacutepios tradicionais aos quaisdesde haacute muito os pitagoacutericosos socraacuteticos os ciacutenicos tinhamdado grande importacircnciardquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1236) Esses exerciacutecios que po-diam ser de ordem fiacutesica como oregime alimentar e dos prazeresou discursiva como o diaacutelogo aescrita e a leitura eram destina-dos a operar modificaccedilatildeo e trans-formaccedilatildeo no sujeito que o praticaesse era o fim da askecircsis A asceseportanto eacute o instrumento que per-mite que o sujeito efetivamente segoverne ao transformar seu proacute-prio corpo em algo que reteacutem osdiscursos verdadeiros

Para filoacutesofos como Secircneca ePlutarco esses discursos satildeo in-corporados por meio de exerciacute-cios em que eacute possiacutevel estabele-cer uma relaccedilatildeo adequada e aca-bada consigo mesmo e assim estarmais bem preparado para as cir-cunstacircncias da vida os exerciacutecios

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de si possuiacuteam o mesmo fim dosexerciacutecios praticados pelos atletasou seja era preciso construir parasi mesmo um corpo que seja umldquoequipamentordquo para a vida A as-cese garante que o discurso ver-dadeiro se materialize e afete ocorpo do sujeito Enfim ldquoa ascesefilosoacutefica a ascese da praacutetica desi na eacutepoca heleniacutestica e romanatem essencialmente por sentido efunccedilatildeo assegurar o que chamareide subjetivaccedilatildeo do discurso verda-deirordquo (FOUCAULT 2001c 297)ou seja trata-se de um modo dosujeito fixar a si mesmo como ob-jeto e a partir do exame do con-teuacutedo desse objeto definir a ati-tude a se tomar em relaccedilatildeo a eleNessa ascese pagatilde (ou filosoacutefica)interessa encontrar a si mesmotanto como meio quanto como fimde uma teacutecnica de vida de umaarte de viver Por meio dos exerciacute-cios o sujeito encontra a si mesmoem um movimento cujo momentoessencial natildeo eacute a objetivaccedilatildeo de siem um discurso verdadeiro comoeacute o caso da praacutetica da confissatildeopara os cristatildeos por exemplo masa subjetivaccedilatildeo de um discurso ver-dadeiro por meio de uma praacuteticareflexiva ou seja de um exerciacuteciode si sobre si

Essa subjetivaccedilatildeo do discursoverdadeiro eacute o que Foucault en-contra por exemplo no exerciacutecioda leitura da escrita das anota-ccedilotildees entre os filoacutesofos do estoi-

cismo tardio Natildeo haacute aiacute a ne-cessidade de compreensatildeo do queo autor lido queria dizer natildeohaacute a prescriccedilatildeo de uma ldquoherme-necircuticardquo mas a instrumentaliza-ccedilatildeo da leitura e da escrita demodo que o sujeito escolha os dis-cursos que lhe satildeo caros e as-sim construa uma trama soacutelida deproposiccedilotildees que funcionam comoprescriccedilotildees como uma forma deldquorazatildeo governamentalrdquo que incor-pora os discursos e os transfor-mam em princiacutepios de comporta-mento Ademais compreende-seporque sendo a leitura assim con-cebida como exerciacutecio e experiecircn-cia a leitura seja imediatamenteligada agrave escrita Essa relaccedilatildeo en-tre as duas atividades eacute elementofundamental de um fenocircmeno decultura e de sociedade presente noiniacutecio do Impeacuterio Romano o lugarrelevante assumido pela escritacomo teacutecnica de si Como Secircnecasugere na carta 84 era preciso al-ternar escrita e leitura ldquoA leiturase prolonga reforccedila-se reativa-sepela escrita escrita que tambeacutemela eacute um exerciacutecio de meditaccedilatildeordquo(FOUCAULT 2001c 341) Natildeo sedeve sempre escrever ou sempreler a primeira esgotaria a ener-gia a segunda ao contraacuterio a di-minuiria Eacute preciso temperar aleitura com a escrita e reciproca-mente de modo que a composiccedilatildeoescrita decirc corpo (corpus) ao que aleitura recolheu

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O papel da escrita eacute cons-tituir com tudo o quea leitura constituiu umldquocorpordquo (quicquid lectionecollectum est stilus redi-gat in corpus) E estecorpo haacute que entendecirc-lonatildeo como um corpo dedoutrina mas sim ndash deacordo com a metaacuteforatantas vezes evocada dadigestatildeo ndash como o proacute-prio corpo daquele queao transcrever as suasleituras se apossou de-las e fez sua a respectivaverdade a escrita trans-forma a coisa vista ou ou-vida ldquoem forccedilas e em san-guerdquo (in vires in sangui-nem) Ela transforma-seno proacuteprio escritor numprinciacutepio de accedilatildeo racional(FOUCAULT ldquoLrsquoeacutecriturede soirdquo 2001b 1241)

Por meio da leitura o corpo ad-quire orationes logoacutei (discursoselementos de discursos) e a es-crita constitui e assegura essecorpo O exerciacutecio da escritatem a vantagem de ter dois usospossiacuteveis e simultacircneos eacute escre-vendo que o sujeito assimila a proacute-pria coisa na qual se pensa e as-sim implementa determinada lei-tura e pensamento na alma e nocorpo tornando-se assim comoque uma espeacutecie de haacutebito ou vir-

tude fiacutesica ldquoEra haacutebito e haacutebitorecomendado escrever aquilo quese tivesse lido e uma vez escritoreler aquilo que se tivesse escritoe relecirc-lo necessariamente em vozaltardquo (FOUCAULT 2001c 342)Assim o exerciacutecio de ler escre-ver e novamente ler o que se ti-nha escrito e as anotaccedilotildees parale-las constituiacutea um exerciacutecio fiacutesicode assimilaccedilatildeo do logos a se reterno corpo Nesse sentido a ldquoes-crita etopoieacuteticardquo tal como Fou-cault a interpreta estabeleceu-se no exterior de uma forma deexerciacutecio amplamente praticadana eacutepoca os hypomnemata (FOU-CAULT 2001c 341) formas deanotaccedilotildees do pensamento Exer-ciacutecio difundido entre os filoacutesofosno periacuteodo heleniacutestico era pre-ciso dispor aquilo que se se pen-sou por escrito transformando oconteuacutedo tambeacutem em leitura e re-leitura para si Escrevia-se apoacutesa leitura com o objetivo de relerapoacutes a passagem do texto pela me-moacuteria reler para si mesmo e assimincorporar o discurso verdadeiroque se ouve de outro ou que se lecircsob o nome de outro Deleuze su-blinha o papel da memoacuteria nessesexerciacutecios ldquo() os processos desubjetivaccedilatildeo satildeo acompanhadosde escrituras que constituiacuteam ver-dadeiras memoacuterias hypomnemataMemoacuteria eacute o verdadeiro nome darelaccedilatildeo consigo ou do afeto de sipor si () constituindo a estru-

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tura essencial da subjetividaderdquo(DELEUZE 2005 114-115) Esseduplo do presente exerciacutecios naforma de anotaccedilotildees sobre as lei-turas ou sobre diaacutelogos e aulassatildeo suportes de lembranccedilas re-forccedilo da memoacuteria e um modo dedispor o tempo a favor de umacapacidade de afetar a si mesmopor meio de incorporaccedilatildeo de dis-cursos agrave custa de uma forccedila apli-cada sobre si mesmo ldquo() trata-se natildeo de perseguir o indiziacutevelnatildeo de revelar o que estaacute ocultomas pelo contraacuterio de captar ojaacute dito reunir aquilo que se pocircdeouvir ou ler e isto com uma fi-nalidade que natildeo eacute nada menosque a constituiccedilatildeo de sirdquo (FOU-CAULT ldquoLrsquoeacutecriture de soirdquo 2001b1238) No interior da cultura ro-mana marcada e estruturada pelatradiccedilatildeo e valorizaccedilatildeo da recor-recircncia do discurso pela praacuteticadas citaccedilotildees que traziam em si osigno da autoridade da antigui-dade desenvolvia-se uma eacuteticaorientada pelo que Foucault de-nomina cultura de si ou seja praacute-ticas cujos objetivos eram da or-dem da construccedilatildeo de uma inte-rioridade de viver bem consigoproacuteprio alcanccedilar-se a si proacutepriobastar-se a si proacuteprio desfrutar desi proacuteprio

Os hypomneacutemata existiam comoforma de cuidado de si pois havianessa praacutetica uma troca em que osujeito colaborava consigo mesmo

nos exerciacutecios que compreendiama subjetivaccedilatildeo pela atividade daescrita e da leitura A escrita comopraacutetica praticada por si e para sieacute uma arte que conteacutem uma ma-neira refletida de combinar a au-toridade tradicional do discurso jaacutedito com a singularidade da ver-dade que nela se afirma a partirde uma livre escolha desses exer-ciacutecios pelo sujeito pois cada umescolhia suas leituras e era livrepara apropriar-se delas no mo-mento em que julgasse necessaacuterioconstruindo assim um estilo pormeio de exerciacutecio que aos poucoslimita e daacute consistecircncia ao erguerum edifiacutecio coerente para o sujeitoa partir do que ele adquiriu comsua leitura e escrita Como co-menta Schmid ldquo Neste escrito al-gueacutem molda e corrige a si mesmoeacute o signum de um constante exerciacute-cio de si () O si destaca-se e res-surge no traccedilo deixado pelo gestoda matildeo que escreve - esse gestoelementar que cria uma formaespalha a rede de uma estruturae produz uma tramardquo (SCHMID1991 310) Esses procedimentosconferiam aos sujeitos uma formaum limite para a materialidade deseu corpo trata-se menos de umaregra ou seja de uma prescriccedilatildeoa ser observada severamente doque de uma teacutekhne toucirc biacuteou umaarte de viver que transforma aproacutepria vida em uma obra quecomo tudo o que eacute produzido por

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uma teacutekhne deve ser bela e boa apartir de modalidades de accedilatildeo queimplicam tambeacutem uma liberdadede escolha daquele que se utilizadela ldquo() nenhuma obediecircnciapode no espiacuterito de um romano ede um grego constituir uma obrabela A obra bela eacute a que obedeceagrave ideia de uma certa forma (umcerto estilo uma certa forma devida)rdquo (FOUCAULT 2001c 405)Por fim registramos que Foucaultlevou essa teacutecnica de si para suaproacutepria vida enquanto preparavaseus uacuteltimos livros como contouPaul Veyne ldquoDurante os uacuteltimosoito meses de sua vida a prepara-ccedilatildeo de seus dois livros desempe-nhou o papel que a escrita filosoacute-fica e o diaacuterio desempenhavam nafilosofia antiga o papel do traba-lho de si em si mesmo da auto-estilizaccedilatildeordquo (VEYNE 1986 940)

Enquanto na modernidade aproduccedilatildeo e o acesso agrave verdadeindependem de qualquer rela-ccedilatildeo que o sujeito mantenha con-sigo mesmo bastando o que po-demos chamar de maneira geneacute-rica de ldquoato de conhecimentordquo osfiloacutesofos antigos vincularam es-treitamente produccedilatildeo de discur-sos verdadeiros e modo de vidaEm outros termos durante a an-tiguidade podemos compreendero sujeito tanto como instrumentoe fim de uma verdade quantocomo alvo de uma governamenta-lidade no entanto esse processo

era demandado e executado peloproacuteprio sujeito atraveacutes de exerciacute-cios de askecircsis que transforma-vam a proacutepria vida do indiviacuteduoem objeto a ser modificado con-forme sua avaliaccedilatildeo Trata-se deuma forccedila reflexiva aplicada emsi mesmo que vinculava duas no-ccedilotildees fundamentais para a ativi-dade filosoacutefica o verdadeiro sa-ber eacute sempre um saber-fazer e apergunta ldquocomo conhecer a ver-daderdquo natildeo deveria ser respon-dida sem que tambeacutem o sujeitose questione ldquocomo devo viverrdquoOs antigos interpretados por Fou-cault articularam outro arranjode relaccedilotildees entre governo e ver-dade antes de ser capaz de filo-sofar ou seja de produzir discur-sos relacionados com a verdade osujeito deveria transformar-se eti-camente agindo de determinadomodo aplicando em si mesmouma seacuterie de exerciacutecios que for-mavam um ecircthos ou seja que tor-navam o sujeito um ser que ageconforme o discurso que produze que produz discursos coeren-tes com o modo como vive ldquoAverdade soacute eacute dada ao sujeito aum preccedilo que potildee em jogo o sermesmo do sujeito Pois tal comoele eacute natildeo eacute capaz de verdaderdquo(FOUCAULT 2001c 17) Temosem Foucault entatildeo uma defini-ccedilatildeo proacutepria de eacutetica ela deve serdefinida natildeo como uma teoria damoral ou criaccedilatildeo de normas mas

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como um problema de produccedilatildeode modos de vida Eacute necessaacuterioque o sujeito se relacione comsua proacutepria vida transformando-a em uma forma de modificaccedilatildeodo corpo conforme as circunstacircn-cias quando o indiviacuteduo estaacute cor-retamente orientado sendo entatildeocapaz de dominar-se e controlara produccedilatildeo de suas formas de ex-periecircncia de si os exerciacutecios ad-quirem sua justa significaccedilatildeo suaverdadeira validade Essa reflexatildeosobre si retifica cada traccedilo indi-vidual para que natildeo haja excessoou defeito para que se produzao verdadeiro equiliacutebrio na relaccedilatildeoentre sujeito e vida e entre sujeitoe verdade

Cada modo de vida invoca di-ferentes forccedilas que impotildeem re-flexotildees sobre problemas praacuteticasque abrem um horizonte de sen-tido e que satildeo portanto necessaacute-rias para a criaccedilatildeo da filosofia eseus conceitos As anaacutelises sobrea governamentalidade moderna esua relaccedilatildeo com as teacutecnicas cris-tatildes conduziram essa interpretaccedilatildeode Foucault ao mundo da Antigui-dade cujas relaccedilotildees de poder e sa-ber eram organizadas por meio deoutro diagrama de forccedilas E atra-veacutes dessa diferenccedila a proposta dereelaboraccedilatildeo da Histoacuteria da sexu-alidade que aparece em O uso dosprazeres parece-nos mais evidenteo paradigma de Foucault mesmose tratando de uma genealogia que

alcanccedila e se inicia com a Antigui-dade grega jamais deixou de seruma visatildeo criacutetica sobre o sujeitomoderno Portanto o ldquoretorno aosgregosrdquo ou a ldquovirada eacuteticardquo cu-jas pesquisas aparecem definitiva-mente a partir do curso de 1981Subjetividade e verdade em nadase assemelham agrave inauguraccedilatildeo deum percurso ainda natildeo exploradopor Foucault pois ampliam e res-pondem a muitos dos questiona-mentos deixados em aberto emsuas genealogias da deacutecada de 70como estabelecer um olhar criacuteticoagraves forccedilas de saber-poder que inci-tam os sujeitos a dizer a verdadesobre o seu desejo Como proble-matizar a instacircncia de obediecircnciae de supressatildeo do ldquosirdquo que encon-tramos no modo como os indiviacute-duos satildeo governados no presenteSatildeo questotildees que Foucault intentaresponder ao olhar para os antigosinvestigando os arquivos e suaspraacuteticas ancoradas em valores queviabilizaram a existecircncia da forccedilado ldquosirdquo tanto nas relaccedilotildees consigoquanto nas familiares e puacuteblicasPor meio da histoacuteria que perpassaas atividades voltadas para o si eacutepossiacutevel como buscamos mostrartambeacutem criticar certa forma de vi-olecircncia presente nas relaccedilotildees esta-belecidas entre sujeito e verdadena tradiccedilatildeo ocidental

As diferentes respostas de Fou-cault agrave pergunta ldquosob quais cir-cunstacircncias produziu-se verdade

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sobre o sujeito no ocidenterdquo atra-vessam diversos momentos da his-toacuteria como seus leitores podemfacilmente constatar Tentamosdescrever aqui como a instrumen-talizaccedilatildeo da produccedilatildeo de verdaderealizada pelos antigos por meiodas teacutecnicas ldquode si para sirdquo propor-cionou novas condiccedilotildees para o au-tor remanejar essa grande questatildeoque percorreu toda sua produccedilatildeofilosoacutefica Encontramos portantoum modelo de criaccedilatildeo de subje-tividade que garante certa liber-dade de escolha aos sujeitos e re-estrutura as relaccedilotildees de forccedilas nasquais estatildeo envolvidos saiacuteda quegarantiu a Foucault interpretar re-laccedilotildees de poder por seu vieacutes pro-dutivo e potencialmente criadorde algum grau de autonomia paraos sujeitos Trata-se de uma boa

resposta a um incocircmodo presenteem seus textos sobre o poder re-sumido por Deleuze em texto de1977 da seguinte maneira

Daiacute em Michel o pro-blema do papel do intelec-tual daiacute sua maneira dereintroduzir a categoriade verdade que me leva aperguntar o seguinte re-novando completamenteessa categoria fazendo-adepender do poder po-deraacute ele encontrar nessarenovaccedilatildeo um modo devoltaacute-la contra o poderMas aqui natildeo sou capazde ver como fazecirc-lo (DE-LEUZE 1995 p 61)

Referecircncias

FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 2 Lrsquousage des plaisirs Paris Gal-limard 1984

FOUCAULT M Dits et eacutecrits I 1954-1975 Paris Gallimard 2001aFOUCAULT M Dits et eacutecrits II 1976-1988 Paris Gallimard 2001bFOUCAULT MA hermenecircutica do sujeito curso dado no Collegravege de France

(1981-1982) Traduccedilatildeo de Maacutercio Alves da Fonseca e Salma Tan-nus Muchail 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

FOUCAULT M Leccedilons sur la volonteacute de savoir Cours au Collegravege de France1970-1971 Paris Gallimard 2011

FOUCAULT M Du gouvernement des vivant Cours au Collegravege de France1979-1980 Paris SeuilGallimard 2012

FOUCAULT M Subjectiviteacute et veacuteriteacute Cours au Collegravege de France 1980-1981 Paris SeuilGallimard 2014

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FOUCAULT M Histoire de la sexualiteacute 4 Les aveux de la chair ParisGallimard 2018

DELEUZE G ldquoDeacutesir et plaisirrdquo In Magazine Litteacuteraire ndeg 325 pp59-65

DELEUZE G Foucault Trad Claudia Martins Satildeo Paulo Ed Brasili-ense 2005

HADOT P Qursquoest-ce que la philosophie antique Paris Gallimard 1995SCHMID W Auf der Suche nach einer neuen Lebenskunst Frankfurt am

Main Suhrkamp 1991VEYNE P ldquoLe dernier Foucault et sa moralerdquo in Critique 47172 1986

Recebido 20022019Aprovado 08082019Publicado 17112019

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Normas para Publicaccedilatildeo

Todas as submissotildees devem ser efetuadas exclusivamente atraveacutesdo site da Revista de Filosofia Moderna e Contemporacircnea (RFMC) nomenu SOBRE SUBMISSOtildeES ONLINE

A RFMC publica apenas trabalhos filosoacuteficos ineacuteditos que estejamde acordo com as suas normas na forma de artigos resenhas ou tra-duccedilotildees de autoria de doutores eou mestres em filosofia (ou aacutereasafins)

A RFMC publica textos redigidos em portuguecircs espanhol francecircsitaliano inglecircs ou alematildeo Se for necessaacuterio o editor recomendaraacutea revisatildeo linguiacutestica dos textos

Todos os textos seratildeo submetidos agrave avaliaccedilatildeo cega por pares

A publicaccedilatildeo de originais implicaraacute automaticamente a cessatildeo dosdireitos autorais agrave RFMC

O autor deve informar os seguintes dados pessoais titulaccedilatildeo acadecirc-mica maacutexima viacutenculo profissional eou acadecircmico atual endereccedilode e-mail e nuacutemero do ORCID

Normas especiacuteficas para Artigos

1 O artigo deve ter no miacutenimo 5000 e no maacuteximo 15000 palavras

2 O texto do artigo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulo tiacutetuloem inglecircs (ou portuguecircs caso o texto natildeo tenha sido redigido emportuguecircs) nome do autor ou autores dados pessoais resumo (nomiacutenimo 50 e no maacuteximo 150 palavras) palavras-chave (no miacutenimo3 e no maacuteximo 5) abstract (resumo em inglecircs) keywords (palavras-chave em inglecircs) texto e bibliografia

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EDITORIAL

Normas especiacuteficas para Traduccedilotildees

1 As traduccedilotildees devem ter no maacuteximo 20000 palavras

2 O texto da traduccedilatildeo deveraacute observar a seguinte sequecircncia tiacutetulodo texto traduzido nome do autor do original nome do tradutordados pessoais do tradutor apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo (no miacutenimo500 e no maacuteximo 5000 palavras) e texto traduzido

3 Seratildeo aceitas apenas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa acompa-nhadas dos originais de textos de reconhecida relevacircncia filosoacutefica

4 Podem ser publicados na iacutentegra ou em partes traduccedilotildees de textosque jaacute estejam no domiacutenio puacuteblico ou que ainda possuam direitosautorais desde que seja apresentada por escrito AUTORIZACcedilAtildeOdo detentor dos DIREITOS AUTORAIS A obtenccedilatildeo da autorizaccedilatildeoeacute de exclusiva responsabilidade do tradutor e deveraacute ser enviadajuntamente com a traduccedilatildeo

Normas especiacuteficas para Resenhas

1 As resenhas devem ter entre 1500 e 5000 palavras

2 O texto da resenha deveraacute observar a seguinte sequecircncia referecircnciacompleta sobre o texto resenhado nome do autor da resenha dadospessoais do resenhista e texto

3 Seratildeo aceitas apenas resenhas de livros cuja publicaccedilatildeo tenha ocor-rido haacute no maacuteximo dois anos (caso o texto seja nacional) ou trecircs anos(caso o texto seja estrangeiro)

Normas para Apresentaccedilatildeo dos Originais

1 Todos os textos devem ser encaminhados em arquivo do MS Wordem formato DOCou DOCX e editados com fonte Times NewRoman tamanho 12 espaccedilamento 15

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2 Os textos devem empregar itaacutelico ao inveacutes de sublinhado (exceto emendereccedilos URL) especialmente para destacar palavras estrangeirasao idioma do texto

3 As notas explicativas devem aparecer ao peacute da paacutegina e ser ordenadasnumericamente A chamada das notas de rodapeacute deve ser colocadano corpo do texto antes do sinal de pontuaccedilatildeo

4 As citaccedilotildees e referecircncias devem obedecer agrave norma NBR 10520 daABNT

a) As citaccedilotildees diretas com ateacute 3 linhas devem estar no corpo do textoentre aspas e as com mais de 3 linhas devem se destacar docorpo do texto sem aspas

b) As referecircncias de citaccedilotildees diretas devem ser colocadas no corpo dotexto no formato autor-data (SOBRENOME DO AUTOR Anop)

c) As citaccedilotildees indiretas devem estar no corpo do texto independen-temente do tamanho sem aspas e as suas referecircncias devemser colocadas no corpo do texto no formato autor-data

5 As referecircncias bibliograacuteficas devem obedecer agrave norma NBR 6023 daABNT aparecer no final do artigo e ser ordenadas alfabeticamenteem ordem ascendente

a) Livro (monografia no todo) SOBRENOME DO AUTOR demaisnomes abreviados com ponto Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetuloNome do tradutor (se houver) Ediccedilatildeo Local da ediccedilatildeo Editoraano da publicaccedilatildeo

b) Artigo ou capiacutetulo de livro (coletacircnea) SOBRENOME DO AUTORdemais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo do artigo ou capiacute-tulo entre aspas com ponto Nome do tradutor (se houver) InSOBRENOME DO ORGANIZADOR OU EDITOR Nome (abre-viado) (Org ou Ed) Tiacutetulo da obra em itaacutelico subtiacutetulo EdiccedilatildeoLocal da ediccedilatildeo Editora ano da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigoocupa na obra

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EDITORIAL

c) Artigos em perioacutedicos SOBRENOME DO AUTOR demais nomesabreviados com ponto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nomedo tradutor (se houver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico local depublicaccedilatildeo (quando houver) ano do perioacutedico (quando houver)volume e nuacutemero do perioacutedico paacuteginas que o artigo ocupa noperioacutedico data ou periacuteodo da publicaccedilatildeo

d) Artigo ou resenha em perioacutedicos eletrocircnicos (documentos eletrocircni-cos) SOBRENOME DO AUTOR demais nomes abreviados componto Tiacutetulo do artigo entre aspas Nome do tradutor (se hou-ver) Tiacutetulo do perioacutedico em itaacutelico volume e nuacutemero do perioacute-dico data da publicaccedilatildeo paacuteginas que o artigo ocupa no perioacute-dico (se houver) Disponiacutevel em [endereccedilo eletrocircnico] acessadoem [Data de acesso]

e) Teses dissertaccedilotildees e outros trabalhos acadecircmicos SOBRENOMEDO AUTOR demais nomes abreviados com ponto Tiacutetulo emitaacutelico subtiacutetulo Local Nuacutemero total de paacuteginas Grau aca-decircmico e aacuterea de estudos (Dissertaccedilatildeo de mestrado ou Tese dedoutorado em []) Instituiccedilatildeo em que foi apresentada Ano

6 Havendo mais de uma referecircncia por autor estas devem seguir or-dem crescente de publicaccedilatildeo (primeiro a mais antiga e em seguidaas mais recentes) No caso de mais de uma obra por ano estas de-vem ser diferenciadas por letras

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