Rimbaud Na África

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Rimbaud na África; os últimos anos de um poeta no exílio. Charles Nicholl (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007)

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Rimbaud na frica; os ltimos anos de um poeta no exlio. Charles Nicholl (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007)Angela C. Bernardes"O HOMEM DAS SOLAS DE VENTO"Charles Nicholl um escritor britnico que, assim como outros de sua gerao, chegou poesia de Arthur Rimbaud atravs da influncia deste sobre Bob Dylan. Seu livro sobre o perodo africano do poeta, recm lanado no Brasil, um relato biogrfico de grande flego e cumpre seu papel na (re)construo de seus ltimos anos de vida. E como se ele perguntasse ao poeta desaparecido como se sentiria ele sendo um completounknown, like a rolling stone, with no direction home... A partida do poeta, da literatura e da Europa, constitui um enigma nunca totalmente decifrado por seus leitores, admiradores e bigrafos. O livro de Nicholl se inscreve na srie de tentativas de preencher as lacunas da histria e dar sentido ao insondvel da posio subjetiva desse gnio rebelde. Devoyantavoyou,Rimbaud foi visto e retratado de mil maneiras diferentes e contraditrias - no necessariamente incompatveis - por aqueles que conviveram com ele ou ajudaram de algum modo a compor sua lenda. O quanto a vida de um poeta importa para o leitor de sua poesia? Ser que nos aproximamos mais de sua arte pela sua histria de vida? Nicholl acredita que, nesse caso, a vidauma obra de arte: "aps a poesia da palavra, a poesia da ao" escreve ele, citandoRimbaud Mercante in Africade Giuseppe Raimonde. Ele supe que seu perodo na frica est prefigurado nos seus poemas. Lembra-nos os versos dasIluminaesem que o velho viajante diz:"Aqui exilado, tive um palco onde representar as obras-primas dramticas de todas as literaturas". Assim, o livro persegue o sentido da vida do escritor como se estivesse lendo seus poemas. Com isso, o autor gera alguns efeitos literrios que vo alm de uma narrativa estritamente historiogrfica.O livro nos transporta ao universo rimbaldiano, animando as cartas africanas ao situar os cenrios e os personagens dessa aventura em regies onde "o estrangeiro ainda mais estrangeiro". Alm das fontes bibliogrficas, entre elas as cartas da frica, as reminiscncias dos que conviveram com ele e documentos oficiais, Nicholl segue seus passos, perfazendo ele prprio os caminhos do viajante. O historiador relata sua prpria viagem de forma mesclada com o trajeto do biografado, dando ao livro uma verossimilhana impressionante. Trata-se de um relato particularmente confivel, pois o autor distingue com clareza fatos, rumores e suas prprias conjecturas. Permite-se, por vezes, "atirar no escuro" ao imaginar possveis encontros em roteiros que se cruzaram cronologicamente ou ao supor uma ou outra reao de Rimbaud frente realidade narrada.Os primeiros captulos do livro retomam os principais dados biogrficos do jovem poeta, sempre com a nfase nos itinerrios. Suas primeiras fugas de casa, suas longas travessias a p, dormindo ao relento. "Segue-se pela estrada vermelha para se chegar hospedaria deserta".A chegada a Paris, a "fuga da normalidade" com Verlaine. E depois Londres. O inferno de Verlaine. Bruxelas. A ruptura dramtica. Uma temporada na casa da famlia em Roche. O retorno a Londres. Sempre partindo. A liberdade livre. As solas de vento...Assez vu, assez eu, assez connu. Ele deixa para trs as cidades europias e parte para o calor do sul. A segunda vez que parte para a Alexandria decide embarcar em Gnova - na primeira tentativa tivera que ser desembarcado do vapor devido infeco que o abateu depois de percorrer a Frana at Marselha. Faz, uma vez mais, o percurso terrestre a p. A descrio minuciosa da travessia dos Alpes, documentada por suas cartas, d o tom de um livro de aventuras. Pois aventuras e riscos no faltaram na vida incomum desse andarilho.A literatura? "Je ne pense plus a", teria respondido a Delahaye no final dos anos 1870. Em 1880, depois de muitas viagens, diferentes ocupaes - de marinheiro a supervisor de obras em Chipre - e graves doenas, desembarca no porto rabe de Aden. A se emprega numa companhia comercial da qual, mais tarde, ser o representante em Harar onde se fixar por um tempo. nessa regio da Etpia que descobriremos o expedicionista, o gegrafo, o fotgrafo... A instalado, Rimbaud fez planos, mais uma vez frustrados, de fazer dinheiro enviando Europa e Socit de Gographieem particular, seus relatrios e fotografias das excurses. O livro fornece detalhes das transaes comerciais em que o ex-poeta se envolveu e desmistifica a lenda do mercador de armas e de escravos. O ofcio de comerciante favorecia o seu contato com diferentes culturas e paisagens e a descoberta de "curiosidades" at ento desconhecidas do europeu. "Sua facilidade com os idiomas, sua grande fora de vontade e sua pacincia diante de cada obstculo situam-no entre os perfeitos viajantes", l-se nas memrias de Jules Borelli,L'thiopie Mridionale. Bardey, um dos donos do estabelecimento comercial de Aden para o qual trabalhou, fez questo de escrever para aSocit de Gographie, depois de sua morte, dizendo que:Ele mais conhecido na Frana como um poeta decadentista do que como viajante mas, por este ltimo ttulo, merece ser igualmente lembrado [...] por sua paixo pelo desconhecido, e por sua personalidade, absorvia avidamente os aspectos intelectuais das regies onde viajava. Aprendia idiomas a ponto de conversar com fluncia em cada regio; e assimilava, tanto quanto possvel, as maneiras e os costumes dos povos nativos[...]Este tributo de Bardey apenas um dos depoimentos que ajudam a compor a figura de um excursionista sagaz, corajoso, instigado pelo desconhecido e capaz de conquistar o respeito de europeus e dos "nativos" naquelas regies ridas, perigosas e to alheias ao ideal francs que ele tanto detestou.Vale observar a referncia freqente, em nada surpreendente, sua facilidade com os diferentes idiomas. Seu dom lingstico j se fazia notar desde os bancos do colgio, quando ainda garoto, ao que consta, era virtuose de versificao em latim. o caso de se perguntar se essa aptido no afim ao que o poeta faz com a lngua francesa: encontrar novas formas, extrair dela outras lnguas... Da a dificuldade de traduzir sua poesia, "at mesmo em francs", como disse Pleynet no seminrio organizado por Adauto Novaes,Poetas que pensaram o mundo. Ao subttulo "os ltimos anos de um poeta no exlio" na edio brasileira deRimbaud na frica, quero contrapor uma frase do adolescente em carta a Izambard de 1870, queixando-se do isolamento e da pobreza de esprito de sua cidade natal: "on est exil dans sa patrie!!!", exilado na prpria ptria! Ou seja, no a residncia no estrangeiro o que define exlio para o poeta. Muito menos para quem, como ele, parece ter feito do estrangeiro sua casa. Esse , alis, um tema pouco elaborado pelo autor que, diga-se, no responsvel pelo subttulo que sua obra ganhou em portugus. Mas no mago da relao estrangeiro/lar, estranho/ntimo,alter/ipse, h uma questo essencial apontada por Rimbaud em sua clebre afirmativa, em outra carta a Izambard: "Je est un autre". a prpria questo do "Outro no mesmo", para usar a feliz expresso que intitula o artigo de Michel Collot publicado recentemente nesta revista.*Essa questo no s escapa ao mbito dessa preciosa biografia como, o que me parece mais grave, mal compreendida pelo autor. Nicholl faz uma dicotomia entre oJee oautreda expresso rimbaldiana. O ttulo original do livro j d uma indicao: "Somebody Else: Arthur Rimbaud in Africa". O autor acredita que um outro Rimbaud, o africano. Ao comentar as transformaes e o desgaste aparentes em suas ltimas imagens, fornece uma interpretao questionvel: "(...) tem-se a medida de quo longe foi Rimbaud em sua jornada para tornar-se uma outra pessoa." Ora, "Eu outro" no tem absolutamente o sentido de "um outro eu" ou de "algum outro" (somebody else). Justamente ao contrrio, o que Rimbaud pe em questo nas suas "cartas do vidente", na sua prtica da lngua e na sua vida, seria o caso de dizer, a polaridade do Eu. Assim como Coprnico tirou a Terra do centro do universo, o poeta, antes de Freud, ensina que o Eu no o senhor em sua prpria casa. A questo da identidade virada pelo avesso, literalmente, com a sua expresso. Ao apontar a alteridade intrnseca ao Eu, Rimbaud se separa docogitocartesiano, colocando assim em questo o pilar racionalista do pensamento francs: "eu no penso:on me pense", escreve ele na mesma carta. Mas esse no o objeto do livro de Nicholl. Sua leitura, entretanto, nos d uma nova dimenso da solido. Os efeitos de despreendimento trazidos pela conscincia da alienao estruturante do Eu no so sem "uma temporada no inferno". Nesse sentido, concordo com o historiador quando este se refere queles anos africanos como umaoeuvre vie: Rimbaud no deixou de ser poeta quando abandonou a literatura, fez poesia - no sentido de ato potico - at o fim.But that's another story.