Retórica da Agudeza Hansen

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    1/26

    LETRAS CLAsSICAS, 11 . 4, p. 317-342. 2000.

    RETORICA DA AGUDEZA

    ]oAo ADOLFO HANSEN*Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanasda Universidade de Sao Paulo

    RESUMO: 0 texto e u m a e xp os ~a o c I a doutr iTUIsei scent i s ta da agudeza . Aagudeza e 0e f ei to i n e sp e r a d o de s en ti do o b tid o p el a c on d en s~ a o m e ta f6 ri ca dec on ce it os e xt re m os . R e la c io n an d o a p ra ti ca da agudeza a racional idade de Co r -te da s mona r q u ia s a b s o lu t is ta s d o secula XVI I , exemp l i f lCa co m p o e ta s , o r ad o -re s e p re ce ptista s, c om o G 6 ng ora , G ra cid n, D o nn e, S ha ke sp ea re , G re g6 rio deMa t o s, V r e ir a , T e sa u ro , P a ll av ic in o , P e r eg r in i etc. , a a pr op ~ ao e a a p li c~ a oda s a u to r id a d es r e w ri ca s g r eg a s e las inas TU I prod t u ;ao d o "bela ef ico:" .PALAVRAS-CHAVE: racional idade de C o rt e; r eta ri ca ; m e ta fo ra ; a gu d e-z a ; c o n ce it o.

    Nas preceptivas ret6ricas do seculo XVII, a agudeza e definida como a metaforaresultante da faculdade intelectual do engenho, que a produz como "belo eficaz" ouefeito inesperado de maravilha que espanta, agrada e persuade. A agudeza tambem poderesultar do furor e do exercfcio . Aqui, vou s6 falar das engenhosas, citando preceitos eexemplos de seus grandes te6ricos seiscentistas, Matteo Peregrini, Sforza Pallavicino,Baltasar Gracian e Emanuele Tesauro. Quando definem suas varias especies, propoernque a principal e a de arti f icio ou ar t i f lC iosa , que busca a "formosura sutil", Alias, 0primei-ro sinonimo do termo agl tdeza dado no Teso ro de l a ! e n g lt a c a s te l la TU l ,editado em Madriem 1611 par Sebastian de Covarrubias Orozco, e "sutileza".Em Agudeza y Arre d e lngenio ,de 1644 , Gracian apresenta a seguinte definicao dela: "Consiste, pois, este artificioconceituoso em lima primorosa concordancia, em lima harmonica correlacao entre doisou tres cognosdveis extrcmos, expressa por um ato do entendimento" (Gracian, 1960 , p.239). Confonne Gracian, ha tres especies de agudezas artificiosas:

    1. agudeza de "conceiro'', que supoe a "sutileza do pensar", ou, especificamen-te, 0ato do entendimento que descobre correspondencias inesperadas entrecoisas;

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    2/26

    HANSEN. J()(IO Adolfo. Retorica da agudeza,

    2. agudeza de "palavra" ou "verbal", que consiste nas correspondencias ines-peradas estabelecidas entre as representacoes graficas , sonoras e conceituais;

    3. agudeza de "ac;ao", rclativa a sentidos agudos produzidos por gestos enge-nhosos.

    A agudeza que resulta da comparacao de conceitos e a mais perfeita, encon-trando-se na base mesma da inventioret6rica: cla c "raio" e "luz" gerados pelo "enten-dimento" do autor discreto. Na comparacao dos conceitos, 0 jufzo os decompoedialeticamente, no sentido dado ao termo "dialetica" no seculo XVII, "anatomia" ou"analise", para estabelecer semelhancas e diferencas entre cles. No caso, 0 juizo Cperspicaz, penetrando nas mais reconditas partes dos conceitos analisados. Simultane-amente, a versatilidade do autor sintetiza asscmelhancas e diferencas que foram acha-das em uma forma nova e inesperada, que causa espanto ou maravilha. Essa forma cuma metafora e, quando mctafora continuada, uma alegoria. Como a agudeza rcsultade uma operacao dialetica, como analise, e de uma operacao retorica, como elocucao,tropo ou figura,os preceptistas do seculoXVII costumam chama-la de "ornate dialetico",E,quando c herrnetica, como ocorre na poesia magnifica de Gongora, "ornata dialeticoenigmatico".

    Bom exemplo de agudeza verbal c 0 caso narrado por Baldassare Castiglioneem II U bm d e l Cortegiano, de 1528, sobre urn fidalgo castclhano que, vendo entrar nasala do trono um casal nobre vestido com roupas de damasco branco, 0marido fefssimoe a mulher belfssima, diz para a rainha Isabel, a Cat6lica: "Esta e a darna, aquelc 0asco", A expressao e aguda, pois resulta da decomposicao ou anatomia da palavra"darnasco" em dois conceitos mctaforicos, "dama" c "asco", apropriados engenhosa-mente a ocasiao. Exemplo de agudeza de ac;fiopodia ser aqui0de outro espanhol, quecomandava um dos navios da armada que veto a Pernambuco em 1640 para combatcros holandeses de Mauricio de Nassau. Seu barco bate em llll1 recife e fazagua; cnquan-to a tripulacao foge, cle abre 0 livrinho das Mctamorfosese comeca a comentar com 0imediato 0 sentido de uma metafora, afundando com Ovfdio, Segundo a opinifio dosconrcmporancos, elc aprovcirou a ocasiao para fazer agudamcntc bern 0que de qual-quer modo scmprc acontcce depois, nunc a sc sabe sc mal. Um excmplo de agudcznque se podc achar na correspondencia de objetos code um A c t o E S / J I : C l l l a t i v o e P i a c u c orealizado numa academia de Mcdicina da Univcrsidadc de Coimbra, em 3 de fcvercirode 1733, em que forum feitas anatomias do Sol, da Lua, do Ar, da Luz e dos Olhos.Uma das proposicoes defendidas afirma 0scguinte: "Aclara-se que a luz C cousaobscurfssima", dcmonsrrando-se que a luz visfvel, clarfssima, c sombra, por ser cmana-c;floou criacao de Deus, an passo que 0proprio Deus, por ser perfeito, c luz absoluta,

    -318-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    3/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4, p. 317-342, 2000.

    m as invis fve l, e , logo , e s curfs s im a, M ais um exem plo d e a gud eza , que m is rura voz ege s to e a gra d a m uito , po is a o m esm o tem po m ove d o is s e ntid o s , e d ad o pe lo cond eEm anue le Te s a uro no se u tra ta d o s obre 0 conce ito e nge nhoso , I I Cannoc c h i a l eA r i s t o t e l i c o , d e 1 654 , e le m es mo urn te xto a gud fs sirno , po ls T es auro a firm a te -lo cs critose guind o um a a na logia d e p ropon ..a o : a s s im com o Ga lile u a p licou a lune ta re ce nre -m ente inve nta da na Ho la nd a a obs erva ca o d os pla ne ta s, s e u tra ta do a a plica a Ret6r icaa ris to te lic a, p ara v er d e p erto 0qu e 0 fil6 so fo v iu d e lo ng e, a m p lific an d o 0que no re xtod o gre go C pe que no e o bs erva nd o va ria s ve ze s 0que viu um a s6 . A agud eza d e que fa lc ie 0 e xem plo d e um his tria o que , re c ita nd o pa ra Ne ro e 0 Sena d o re un id os um ve rs opa te tico d e um po eta a ntigo ,

    H eu m i P ate r. H eu m ea Mate r . O rc us v os tene t ,a o d ize r H eu m i Pate r , a com panhou a s pa la vra s com ge s to d e pe s soa que be be . E , d ize n-d o Heu m ea M ate r, fe z 0ge s to d e pe s s oa que na d a, a lud ind o com e le s a o s d ois crim es d eNe ro , 0d o e nve ne nam ento d o pa d rinho e 0d a m ae a foga da . D ize nd o d epo is O rc us v ostene t , e rgue u a voz e a pon tou Ne ro a o s s e na d o re s , com o s e d is s e s s e Eis 0 d emon i o q u ev o s d o m in a , s e nd o m uito ap la ud id o, Pe la a gud eza d e urn ge s to , um fa ro d igno d e la gri-m a s to rn ou -s e rid fc ulo ,

    ***

    N as pra tica s d e rep re se nta ca o d o se culo XV I I , ha outros nom es pa ra oo rna tod ia le tic o a u a gud e za : c on ce ito , conce t t o , c o nc e pt o, c o nc e it o e n ge n ho s o , a r gUc i a , a r gu t e z z a ,a c ut ez za , w i t, W i tz , p o in te , e ntim em a e s i lo g i smo r e t 6 ri c o . E nta o, s ua d outrina e s ua pra ti-ca s ao inte rn ac io na liza da s e re cic la m a Re t6r i ca a r is t o te l ic a ( p ri nc ip a lm en t e 0Livro I I I ,1450 , que tra ta d a e lo cuca o) e a Poe t i ca , XX I , a le m d e va rie s a uto re s la tino s. Ba sica -m ente , a d ourrin a re tom a 0 pre ss upo sto a ris ro te lico , e xp os to no D e an ima , d e queq ua lq ue r d is cu rs o e por na ture za m eta f6 rico , po is o s no e t a , o s co nce ito s, s ao im age nsm enta is que s ubs titue m os a i s t he ta , o s o bje to s d a pe rce pca o, O s s igno s ve rba is , o ra is ee scrito s , s a o e n tend id os com o im age ns d as im age n s m enta is . A ris t6 te le s tam bem d izem outro luga r que s a o pr6pria s d o o ra d or e d o poe ta a s m eta fo ra s que tom am a obraa gud a: "A gud as , po is , s ao a s e xpre ss oe s d o pe ns am ento que pe rm ite m um a prend iza dorapido" (A ris t., I41O b). Prod uzid a propo rc iona lm en te pe lo e nge nho , a a gud eza con -ve rn a o d is cu rs o c iv il: a ris ro te lic arn en re , e la e a s u i a , te rm o tra duzid o po r urban i t as , emRom a. No se culo X V I I , c ia d efine a c ivilid ad e ou 0 e stilo p r6 prio d o c orte sa o.

    -319-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    4/26

    HANSEN. Joiio Adolfo. Ret6rica da agudeza.

    A agudeza deve ser formulada rapidamente, porque so rem efeito se a premed i-ta~ao nao for evidente: obtem-se a rapidez eliminando-se 0 conectivo da comparacaodos conceitos, a protase da similitude, "como". Por exemplo, vamos supor a compara-~ao "Esse papagaio do Brasil e verde como 0 mes de abril da Europa", em que secompara 0 conceito Ipapagaio I com 0 conceito /abril/ por meio do conceito /verde/,que e umgenero comum a ambos. A comparacao, no caso, implica 3 termos: A ( J X l p a g a i o )-B ( v e rd e ) -C( abri l ): "Esse papagaio e verde como abril". Se eliminamos a protase dasimilitude, 0 conectivo "como", podemos dizer: " Essepapagaio e abril", e, assim, pelaequivalencia -'~ e B", substituir 0 termo A("papagaio") par B("abril"): "Esse abril".Como se trata de /papagaio/, podemos propor, com agudeza: "Esse abril falante", comoencontramos em urn poema da Fenix Renasc ida , a grande antologia da poesia da agude-zafeita em Portugal no seculo XVIII. A imagem resultante e algo nonsens e , como todametafora, mas agrada justamente pela diflculdadc inicial de estabelecer a relacao ime-diata entre os conceitos. A imagem obtida e urn entimema ou um silogismo retorico,como diz Quintiliano, quando retoma os Anal i t icos de Aristotelcs (1,11,27,70a 10):uma deducao baseada na semelhanca de dois termos com um terceiro. Funciona comouma condensacao rapida deles, efetuada como metafora engenhosa pela analogia deatribuicao: A : B : C .o Anonirno da R e u n i c a pa r a He t i n i o (IV, 19) e Cicero ( Patt i t iot ies ora tonaeVI, 18,22; D e o ra t or e III) escrevem que 0discurso ilustre au brilhante e obtido pelo usode palavras escolhidas (de lec ta) , de metaforast t raslata) , de hiperboles ( s u p ra l a ta ) e desinonirnos (dupUca ta ) . Tais palavras produzem a evident ia au a visualizacao imaginosada materia tratada no discurso. De novo, Aristotelcs: para estimular 0 pa ihos em simesmo enos ouvintes, 0orador que pretende qualificar determinado assunto produzrepresentacoes chamadas p h a n ta s ia i ( R et o ri ca , 1,3,1358 b). Retomando Arisrotelcs eCicero, Quintiliano escreve, na I n s ti tu t io a r a t o ri a 6,2,29, que as imagens fantasrlcas saoproduzidas pelo engenho e que este e cultivado com 0 cxercicio da imitacao dasal lc tori tates dos varies generos. A figura das fantasias e a evidclltia, como disse, feitacomo descncao detalhada de urn objeto par mcio da enumeracao ornada de suas par-ticularidades reais ou fantasticas. Na rcpresentacao do scculo XVII, a ev ident ia e prcfe-rcncialmente aguda. Por exemplo, no infcio da So l edad P t ime t a , como sabem, Gongorafigura JUpiter com imagens que nos fazem vcr urn touro que apascenta estrelas numcampo de safira:

    Era d e e l Q110 la es taci6n f lor idaen q ue e l m e ntid o ro ba do r d e E uro pa

    - m ed ia lu na la s a rm as d e su [ren te ,

    -320-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    5/26

    LETRASCLAsSICAS. n. 4. p. 317342.2000.

    y e l S o i w do s l o s ra y a s d e SH peio-,i uc i e i ue h o n o r de l c i e l o ,

    en ccm pos d e z a f i ro / Ja s c e e s t r e l la s .Mais urn belfssimo cxemplo de e v i d e n t i a cngenhosa e 0 produzido por Vieira

    como alegoria de hipocriras, no sennao de Santo Antonio, que pregou no Maranhaoem junho de 1654. Oucam, por favor, como vai desdobrando 0 termo "polvo" emimagcns, para depois fornccer ao ouvintc 0 sentido que as mtcrpreta:

    [ . . . J tcmos Ia 0 irrnfio polvo, contra 0 qual tern suas queixas, e grandes,nao menos que Sao Basilio e Santo Ambrosio. 0 polvo com aquele seucapelo, parcce urn monge: com aqucles seus raios cstcndidos, pareccuma estrcla; com aquele nfio ter osso nem espinha, parece a mesmabrandura, a mesma mansidao, E debaixo desta aparencia tao modesta,ou desta hipocrisia tao santa, testemunham contestamente osdous gran-des Dourores da Igreja latina, e grega, que 0dito polvo e 0maior traidordo mar. Consiste esta traicao do polvo primeiramente em se vestir, oupintar das mesmas cores de todas aquelas cores, a que esta pegado. Ascores, que no camaleao sao gala, no polvo sao malfcia; as figuras, queem Proteu sao fabuJa, no polvo sao verdade, e artificio.

    ***No seculo XVII, os preceptistas afirmam nfio so que a agudeza e metafora, mas,

    principalmente, que a merafora e 0 proprio fundarnenro da agudcza e, de modo geral,de toda reprcscntacao. Como sc I e no tratado de Tesauro, a metafora e :

    [ . .. J Grande Mae de todo engenhoso Conceito: clarfssimo lume da Ora-toria, & Elocucao Poetics: cspirito vital das mortas Paginas:agrndabilfssimo condimento da conversacao Civil, ultimo esforco doInrelccto: vestfgio da Divindade no animo Humano (Tesauro, 1670).As dourrinas italianas e ibcricas da agudeza dos seculos XVII e XVIII que circu-

    laram nas colonias cspanholas e portuguesas da America, principalmente por mcio dasordcns religiosas, como a Companhia de Jesus - e novamente lembro os tratados deMatteo Pcregrini, Sforza Pallavicino, Emanuele Tesauro, Baltasar Gracian, FranciscoLcitao Ferreira - sao uma interprctacao neo-escolastica de Aristoteles e de autorcslatinos. Todas elas inclucrn-sc na racionalidade de Corte das monarquias absolutistas c

    - 321-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    6/26

    HANSEN. Jodo Adolfo. Ret6rica du agudeza.

    propocm a agudeza como a forma propria das maneiras de falar e agir do cortcs fio .Lcmbro, com isso, que a agudcza deve ser entendida como uma categoria historica, ouseja, como um modo de pensar e uma forma poctica especfficos do Antigo Regime,na o como a f uti lid a d e a fc ta d a e vazia de que ainda va o falando os nossos manuais dehistoria literaria caudatarios do idealismo alemao.

    Acred i r a - s e no s e culo X V II que 0 intclecto humano c ur n espelho sernprcidentico a si mesmo e sirnulranearnente sempre vario, que exprime imagens dos pen-samentos das coisas pastas 11sua frente. Assim, 0discurso interior do pcnsamcnto cenrcndido como urn contexto ordenado de imagens chamadas [ a n t a s m a s , que exis-tem na mente antes da rcpresentacao exterior; quando os fantasmas sao exteriorizados,o discurso e outras formas sao definidos como ordem de signos sensfveis copiadosdas imagens mentais como tipos do arquctipo. Por isso, os signos, em geral, sao en-tendidos como" definicao ilustrada", como encontramos no prefacio do t r a r ado deCesare Ripa, I c ono log ia , de 1593. Obviamentc, as representacocs de que falo nfiosaocartesianas, por isso nao fazem distincao entre conceito e imagem. Todo signo centao definido como a metafora que relaciona 0 pensamento e a sua representacaoexterior, ou, em termos seiscentistas, como a mctafora que relaciona a "arguciaarquetipa" e suas formas exteriores. As formas exteriores- pintura, escultura, poesia,n uis ica , d an ca , e m blc ma tica , ve stua rio , cores, gestos etc. - sao class if icadas segundoo sentido antigo de g r aph e i n , verbo rela t ivo a faculdade do descnho, s ignificando-sccom a no

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    7/26

    LETRAS CLAsSIC AS, n 4, p 317-342,2000

    Como dissc, a mctaforu aguda evrd enc ia para 0destmatario a excelencia do jufzodo auror ilunnnado pcla luz cia Graca no estabelecimento de relacocs inesperadas entrecoisas c palavras N() Gl,O, 0 desnnarano capaz de refazer u processo de construcao ciaagudcza e rfio pcrsptcaz c vcrsanl, ou seja, engenhoso, como ()autor; por ISSO, nas socic-dadcs de Corte do scculo XVII, a agudeza era um disposinvo politico que conferia drsnn-~ilo, Ou seja. as praticas sctsccnnstas cia agudeza nfio sao "barrocas", como sao classifica-das hoje; c nclas nao ha ncnhuma nocao modermsta, modema, vanguardista ou j5 pos-utopica de autonomia das artcs ou de csretica. Nelas, como disse, a rcprcscntacao cxtc-nor muta as arnculacoes do pensamento, que silo as das cmsas , as re s da lJlvmtio; por issomesmo, as artes que operant com agudezas pressupoern uma 16gr ca d a l 7 lwgem , sernprcdcfimda como a linage III retorica que funciona nas obras como um argumento sensivelaplicado ao dcscnvolvimcnto das topicas. No ato da invencao, quando 0pocta improvisaoralmcnte ou cscreve, a forma do conceito interior da sua mente e recortada em umamatena, som da voz ou letra escrita com pluma de ganso, A forma tambcm poderia serrccortada em uma substancra plasnca, como pintura ou escultura, desde que obedecesseaos mesmos cntcrios mimcticos do genero. Os process os da lJlventio e da euxuuo funda-mentarn nao uma "esteuca", que pressupoe a psicologia do autor, a autonomia estetica ea hvre-concorrencia da obra no mercado como a mercadoria "originalidadc" apropriadapor publicos dot ados de autonomia critic a, mas uma t c c n i c a , que e um saber-fazer ou umaciencia retorica dos preceitos, procedimentos tec111COse efeitos verossimcis e decorososespecffica da racionahdadc nao-psicologica da mimes i s aristotelica reciclada neo-escolasncamcnte. Dizendo de outro modo, 0 concerto representado exteriormcnte e 0rcsulrado de um juizo que atua no engenho como causa eficiente da imagem mental.Vejamos urn exemplo dado por Gracian:

    [",J juntou [",J Ovidio, em uma pedra chamada onix em latim, e nonosso castclhano cornarina, este mote: Flam m a m ea , e a enviou assimsobrescrita, querendo dizer : 0, n ix , fia mm a m ea !, que ainda em roman-ce diz agudeza: "Oh, neve, chama minha!" (Gracian, 1960, II),

    Ovfdio e agudo porque dccompoe, no vocative: 0, n i x , com que se dmge aarnantc, chamada Nix , /neve/, 0 nome da pedra: onix. E escreve, na mesrna pedra, 0termo j l amma , chama, associado as nocoes de /fogo/ e /calor/ , em oposicao a n i x , termoassociado ib nocoes de /brancura/ e /frio/, Com isso, alern de /fno/quentc/, produzoutro contraste, /prcto/branco/, ambos adequados a Eros,

    * * *- 323-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    8/26

    HANSEN, Joiio Ad"ljo

    T S. Eliot dizm sobre a poesia mcraflsica mglesa que os autorcs do scculo XVIIpossufam uru mccamsmo de sensibihdadc que podm devorar mrclccrualmcnte qualquerespccic de expcncncia . Segundo Eliot, a" unagcns produzidas por poctas como Donne,ao caracrcnzadas por uma compulsao da scmelhanca, que faz com que construum upocma como h.umorua de dissonancms. Nesse mcsmo scnudo, podfamos dizcr que tam-bern ourros grandcs poctas do scculo XVII, como Gongora, Quevedo, Manno, D. Fran-cisco Manuel de Melo, Sor Juana lnes de la Cruz, Honore d'Urfe, Andreas Gryphius,Shakespeare, Marvell, Gregorio de Matos, cstavam cmpenhados, em rnaior ou mcnorgrau, em cncontrar cquivalcntcs verbals para os mars variados estados da mente c dmafctos. Por lS"O, toda metafora que produzern e mtelectual; a, paixoes sao naturals, masniio mformais, porque sua codificacfio e reronca; por lS"O,tambcrn as aguda, basciam-scem tenias e tennos J < i conhccidos do costume anonimo, ou seja, em elcncos de tOP1CI"Iormas c gcncros armazcnados como uma memoria colenva de usos auronzados. Ospocras scmpre huscam a novidadc da clocucao engcnhosa, mas as t6plGIS com que traba-lham fazcm parte do todo social objctivo. Geralmcntc, vao do concerto n1

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    9/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4. p. 317-342. 2000.

    que a amaria dez anos antes do Dihivio e que ela, sc isso a agradasse, continuariarecusando-se a entrcgar-se a de ate a conversao dos [udeus, declara: "M y v e g et ab le l ov es ho u ld g ro w l VtlSter th a n e m lJ ir es a n d more s l ow . . . " versos em que 0 amor C vegetal quecresce, verde-erotico da esperance mais vasta que os imperios, e mais lento. No caso,o lcitor tern que dcscobrir qual e a rclacao semantica entre 0 adjetivo e nome em" v cg e ta b u: l ov e ". Ela nao c imcdiaramente evidcnte, aprescntando-se com ccrtaindeterminacao conceitual: mas sua evidencia sensfvel impoe-se como natural. Outroexemplo: Gongora, em urn sonero de 1583 dirigido a uma dama, propoe-lhe que gozeo corpo e varias partes dele, enquanto c tempo, pois 0ouro polido do cabelo, 0 lfrio daface, 0cravo d o s l ab io s etc. s c t ra n s fo rma ra o em violera truncada, imagem que conden seas rugas da velhice e 0 roxo cat6lico das exequias, alertando-a de que tudo sera terra,po , cinza, fumo, nada. Um dos sonetos da lfrica ambuf d a a Gregorio de Matos 0 imita;nele, a per sona l lr ic a d i ri ge - s e a um a dama chamada Maria. Para figurar a pa s sag em dotempo e a m otte no fim de tudo, substitui a transformacao dos l fr io s e cravos d a j uv cn -tude na violeta da velhice, que encontramos em Gongora, pcla figura

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    10/26

    HANSEN. Joito Adolfo. Rct6rica da agudeza.

    Basicamente, a emulacao visa a produzir, por outros modos e por outros meios,urn prazer semelhante ou superior ao da obra imitada. Para isso, pretcnde produziragudeza s mais agucias que as cia obra imitada. Definindo a ernulacao, 0 cardeal SforzaPallavicino propoe, em s eu A rte d ello Sti le, ave ne ! cercarsi d eU ' Ideal d e l scrivere Insegnar ivo ,de 1647, um exemplo fornecido por Platao: na in ve n ca o d a fa bu la , nos lugares em queos caracteres aparecem maiores, p o d e- se r ef ig ur a- lo s , mas como caracteres diruinui-dos, mantendo-se a mesma fabula, Assim, obviamente, ha regras para emular os auto-res scm rouba-los ou meramente imita-los, A primeira delas, como regra universal,consiste em procurar qual c a propriedade ou 0 predicado que produz prazer na obraque se vai emular. Pallavicino adverte que tal predicado c um genero comum queinclui especies muito diversas de invencoes possfveis, Depois que se descobre 0gcncro,o passo seguinte c encontrar, com 0 engenho, uma das espccies que seja semelhante aobra imitada quanto ao prcdicado, duma pane, e que, pelo faro de ser apenas sernc-lhante, seja tambem diferente, A diferenca deve ser de tal sorte que fac;a com que 0predicado enconrrado participe mais e melhor nela. Assim, 0modo de produzir seme-lhancas e dfferencas agudas distingue emuial ; i io de i m ic a ~ a o s e rv i l, que lembra a imita-~ao escolar.

    Segundo esses criterios, as preceptivas seiscentistas sao formuladas como uma1 6 g i c a de t6picas da invencao e da disposicao e uma cecnica da sua elocucfio aguda. Porexemlo, em 1639 , em seu De ll e Acu te z ze , Sobre a s A g ud ez as , de que pre tendo falaradiante, Matteo Peregrini prop6c muito minuciosamente "2 5 cautelas para 0 uso d a sagudezas"; em 1644 , Baltasar Gracian formula, em sell Agudeza y A rte de Ingenio, varias"crisis", analises, defini

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    11/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4. p. 317-342. 2000.

    Tesauro cxplica que, sob a categoria de sllbstilncia, vern Deus, ainda que estejaacima de toda categoria: as divinas pessoas da Trindade; a Ideia; os deuses fabulosos.Os deuscs celestes, aercos, marinhos, terrenos, infernais: os herois, homens deificados.Anjos e deruonios. 0 ceu c as estrclas. Os signos celestes e as consrelacoes, ou imagensda oitava csfera. 0Zodiaco e rodos os cfrculos e esferas imaginaries Os quatro elemen-tos, os vapores, que sao fumos qucntes, e as exalacoes, frios. 0fogo, a esfera Ignca, osfogos subrcrraneos. 0 ar c seus meteoros, estrelas cadentes, cometas, raios, ventos,ncves, chuvas. A ~'iguae os mares, rios, fontes, lagos. A terra, campos, prados, soiidoes,montes, colinas, promontorios, vales, precipfcios. Os corpos, mistos inanirnados, pe-dras, nuirmores, gcmas, metais, minerais, plantas, ervas, flores, arvores, arbustos, co-rais. Animais terrestres, ferns, e aquaticos, e acreos, passaros, e os monstros. Homcm,mulher, hermafrodita ... Existc tambern a s l lb s t il n c ia aT t i fi c ia l , ou as obras de toda arte:nas ciencias, livros, penas, tintas: na marematica, globos, rnapas-mundi, compassos,esquadros, Na arquitetura, palacios, rernplos, tugurios, torres, fortalezas. Na arte mili-tar, armas, escudos, cspadas, tambores, tubas, cornetas, bandeiras, trofeus. Na pinturae escultura, quadros, pinceis, cores, estatuas, escalpelos. Alem da s l lb s t il n c ia f is i ca , 0engenho tambem considera a s u b st a n ci a m e t a fi si ca , como 0Gcnero, a Especie, a Dife-renca, 0 Proprio, 0 Acldenre em geral: 0 nome, 0 cognome e no

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    12/26

    HANSEN. Jocio Adolfo. Retorica da agudcza

    A categoria de re la~i io da conta do parcntesco e da companhia, da amizade esimpatias, das inimizades e antipanas, dos seruclhanres, dos contraries, dos opostos, dosuperior, do inferior e tarnbem das causas das coisas: causa eficiente, efciro, causa ma-terial, forma, causa final, privacao, nomes, tftulos, verdade e f a l s i d ade . Com as catego-rias de a~ i i o e pa i x c io podemos pcnsar em: potcnte, impotente: facil, dificil: nocivo,inofensivo: util, danoso etc. E em o p e ra ~ 6 e s n a tu r a is : nutrir, produzir. Em op e r a~6e s/Jol i t icas: reinar , julgar, guerrear, t iranizar, Em a~oe s mecanicas: fazer, d e s fa z er , c a ns a co ,ocio, calma. Em a~oe s cerimoniais: festivas, funebres, sagradas etc. Quante a categoriade s i t t ta~i io, lembramos : alto, baixo, plano, jacente, pendente, cruzado, direito, esqucr-do, medio, dentro, fora etc. E a com a categoria de t empo : momentaneo, dunivel, novo,velho, principiar, acabar. Quante a de I t tgar: plcno, vazio. Movimento: vcloz, lento,direito, oblique: de um lugar, por um lugar, perto de um lugar, em direcao a um lugaretc. Quanto ao rer, ou a posse : rico, pobre; vestes, empresas, divisas, arruas, ornamcn-tos, instrumentos.

    A aplicacao das dez categorias aristotelicas a urn terna dctcrminado permiteinventar dez definicocs ilustradas ou conceitos basicos, como disse; ao mesmo tempo,a versatilidade do autor encontra, para cada um dos conceitos obtidos, uma ructaforaadequada, a cada vez mais scmanticamente distante, para produzir 0 espanto. Comodizia Marino com um hiperbaro maravilhoso, " e do poera 0fim a maravilha". 0 cspan-to pode ser intcsificado, pois a combinacao das categorias, que traduz cada uma das de:metaforas iniciais par outras scmanticamente mais distantes, produz fcrmulacocsagudfssimas. Imaginemos, por cxemplo, que varnos compor um poema de gencro baixoe que resolvemos aplicar 0 termo an i i o para caracterizar 0 personagem como tipo ridi-culo. Quando examinamos 0 termo repassando-o pelas categorias - por excmplo, acategoria q t t an t i dade , que e a primeira das acidcntais - podemos achar iruimeras meta-foras de coisas pequenas em coisas elcrncnrarcs, como "atomo" e "grao de areia"; emcoisas humanas, como "pigmcu" e "unha": em animals, como "formiga", "pulga", "mos-ca", "acaro", "escama de pcixe" etc; em plantas, como "grao de trigo", e, ainda, emohjetos; entre des, os militares, como "umbigo do escudo" etc. Por meio da categoria(jtumtiJadc, podernos d i zc r, p o r cxcmplo, " Esse umbigo do escudo" para significar "ESSl:- "nan .

    A formulacao e aguda, mas tambem bastante hcrmetica c, por isso, corre IIrisco de scr apenas incomprccnsivcl. No seculo XVII, 0 hcrrnctismo nfio era sempreurn dcfcito, como hoje, pois tambcm distinguia os cngcnhosos capazcs de produzir eentcnder a agudcza, Gongora foi acusudo por sells inimigos, como [uurcgui, Quevedoc Lope de Vega, de ser ObSClIfO e incongruentc nas So / cdade s , pois tratou lim assuntohumilde em estilo sublime. Como sabcm, respondeu ter desejado escrever cscurissimo,

    -328-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    13/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4. p. 317-342. 2000.

    em grego, dcclarando " escribono p a ra m u c h o s" , para afirmar a concepcao tipicamentcaristocratic a segundo a qual 0engenho inventa coisas agudas proprias para agudos,n50 para vulgares. Como sabem, data de 1624 a cunhagem do termo "culterano", querelaciona "culto" e "luterano'', usado para classificar a poesia de Gongora como heresiapoerica, Mas disso falamos depois, sc for 0caso, Saio agora de Gongora e desco nova-mente ao "anao",

    Quando repassamos todas as coisas pequenas necessarias para inventar meta-foras adcquadas a representacao do tema, e mais convcniente invcntar uma formula-c;aoainda mais engenhosa e de maior dificuldade. Por exemplo, juntamos a urn termoinventado pela categoria q u a n t i d a d e outro termo inventado por meio de outras catego-rias. Assim, quando ja repassamos 0 Indice "pequcno" por todas as classes que pude-mos achar da categoria q u a n t i d a d e , nos 0cruzarnos com outras classes obtidas por meiodas outras categorias. Com termos da mesma categoria q u a n t i d a d e , podemos dizer, nacomedia ou na satira, que " E ss e u m b ig o d o e s c u d o e u m a p ulg a" . Os generos baixosadmitem, por deflnicao, essas incongruencias inverossfrneis que se tomarn verossfrne ispara figurar a desproporcao dos vfcios e tipos viciosos. Os seiscentistas as chamavamde "inconvcniencias convenientes". A mesma metafora "pulga", por exernplo, podeser a base de novas metaforas ou de novos poemas. No deJohn Donne, "The Flea", ''APulga", 0 animal c traduzido pela metafora " e sc u to t em p l o ", parque sugou 0 sangue dohomem que fala a mulher tambem picada; como 0 casamento e fusao de sangues e ossangues de ambos estao misturados no interior do animal, estao casados; e como 0casamento costuma ser oficiado em templos, a "pulga" que os picou e um "temple",

    Tesauro acompanha as receitas de duas advertencias: a primeira e a de quenem todas aspartes encontradas pela aplicacao das categorias sao sempre combinaveisentre si de modo prazeroso, util e persuasivo, devendo-se evitar a mala a f f ec ta t io , aafetac;ao e a decorrente frieza. A nao ser nos generos baixos ou comicos, como disse,em que a inverossimilhanca c aplicada de proposito, pois 0 excesso e verossfrnil parareprescntar a falta de unidade dos vfcios, Em um poema contra 0governador Sousa deMeneses atribufdo a Gregorio de Matos e Guerra, a p e r s o n a satfrica afirma: "0que tevir ser todo rabadilhal did que te perfilha uma quaresma, chato percevejo", traduzin-do a figura do governador pm "rabadilha'', termo que significa 0 c6ccix da galinha,aquele lugar onde nascem as penas da cauda da ave. E uma figuracao s6rdida e obsce-na, que nos t : 1 Z ver urn c6ccix que, cnquanto anda, encolhe-sc, pais esrd sendo chupa-do por um percevejo. No caso, a imagem do govemador como "rabadilha" correspondea categoria aristotelica s u b st fi n c ia ma t e r ia l , que 0 poema vai cruzando com outras. Asegunda advertencia de Tesauro e complementar: nao se deve ficar totalmente presoao Indice e a ordem das partes das categorias, pois elas podem ser misturadas, antepos-

    -329-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    14/26

    HANSEN, Joik Adolfo. Retorica da agudeza.

    ras ou pospostas. No caso, e 0 jufzo dos autores das agudezas que deve ser 0 "compa-nheiro indivisfvel do engenho" (Tesauro, 1670, p. 112). Por exemplo, 0mesmo poernaatribufdo a Greg6rio mistura as categorias l u ib iw , q u a li d ad e e quan t i dade , para figurar 0govemador como um tipo vulgar, subserviente e puxa-saco, 0tfpico porteiro de pala-cio que conhecemos aqui e 1.1:"0 rabo erguido em cortesias mudas/ Como quem pelocu tomava ajudas", Os versos talvez fiquem ainda mais divertidamente agudos, se nosl embramos de que no seculo X V I I 0 terrno "ajuda" ta m b em s ig nif ic av a "clisrer",

    Assim, na poesia da agudeza, uma coisa ou t6pica da invcncao pode sersignificada POf meio de tres especies de signos e relacoes. 1".par mera convencao, 2 ".pcla relacao de inclusao ou sinedcque entre a coisa significada e a significantc; J'. pelasemelhanca entre elas. Pela simples convencao, propoe-se a relacao arbitraria de sig-nos que inicialrnente nao tern relacao: por exemplo, assim como um traje vermelhorepresenta a guerra, c muito usual 0uso das "metaforas f6sseis", como "cristal", quepode significar qualquer coisa lisa, transparcnte, i irnida , fria ou lfquida: agua, ccu, ros-to, olhos, vidro, espelho.neve e cristal. Pela segunda relacao, tem-sc duas coisas quenao tern sernelhanca entre si, mas que podern ser juntadas em urn genero comUI11,como causa, conseqtiencia, instrumento, habito etc. E 0 caso de sinedoqucsalegorizantes, como a espada pela guerra, a pena pela doutrina, 0 arado pela agricultu-ra etc. A terce ira e propriamente a relacao de semelhanca, Com cia, propocm-se duascoisas semelhantes entre si, ambas ffsicas, ou uma ffsica e outra moral, ambas anima-das, ou uma animada e outra inanimada etc. Quante a pr6pria semelhanca, pela qualum signo e substirufdo por outro, pode ser de tres especies, de atribuicao, de proporcaoe de proporcionalidade. Assim, por atribuicao, tem-se a scmelhanca de duas coisas queparticipam em uma iinlca forma, chamada "unfvoca'': por proporcao, a scmelhanca deduas coisas que nao tern uma forma comum, mas duas formas proporcionalmcnrcanalogas; por proporcionalidadc, tem-se a rucsma rclacao de proporcao, mas operadacom concertos distantissimos, que sao entcndidos como alegorias ou enigmas quecorrespondem a s anamorfoses da pintura. Pela primeira dessas rclacocs, os poems apro-ximam coisas difcrcntes em cssencia, mas semclhantes segundo uma propricdadc qual-quer em comum; por excmplo, 0 l ir io e a neve, segundo a br anc l t r a j ou 0 f ogo e 0a l lw r ,fisicamente impctuoso 0primciro, moral mente 0 segundo, com transferencia de espc-cie a espccie: fala-sc do arnor como " f ogo do p e uo " , do lfrio como "neve do ptcuu?' , daneve Clll110 "lir io do inwrllo". Sao as segundas e as terceiras, porem, as metaforas deproprociio c de proporcionalidade, que exigent maier engcnhosidadc, pois aproxirnamduns coisas diversas, dando mais prazer ao destinatario quando este e apto para cnten-der as operacoes artificiosas que condensam em urn scntido duas coisas ate entiiodistantfssimas. Na Bahia do final do XV I I , segundo 0 franciscano Frei Antonio do

    -330-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    15/26

    LETRAS CLAsSICAS.Il. 4, p. 317-342.2000.

    Rosario, em um sermfio em que prcgou a docura do amor de Cristo em forma demeraforas de vinte e cinco fnuas tropicais, 0a n a n a s e a cxpressao latina Anna nascitltTscrelacionam por proporcionalidade; em Gregorio de Matos, t empo e c am i o , no pocmaque referi, relacionam-se por proporcao, por mcio da metonimia t ro ta - "0 t em p o t ro taa w da i i g e i T c z a / e i m J J T im e e m t o d a fl o T su a J J i s a d a " . Entre asmetaforas, 0poeta engenhosoprefere a mctafora de proporcao, pela qual "0 c o p o e 0 escudo d e Bsco'', assim como "0es cudo e ( ) co/)() de M a r t e " , como se pode ler na Poe t i ca . A metafora de proporcao evi-dencia a "erudi

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    16/26

    HANSEN. lotio Adolfo. Rct6rica da agudcza.

    mesma coisa c significante e significada. Por isso, nenhum Anjo pede ser poeta, umavez que e a significacao de uma coisa por outra - a metafora - que fundamenta a poesiae a representacao em geral. Assim, os Anjos tambem nao podem fabricar emblemas,empresas, divisas, hier6glifos, cifras, r e b u s , charadas enigrnaticas.Iabirintos, metaforas,alegorias, irnagens, flguras, pinturas, discursos, sermoes, poemas, aulas, palestras sobrea agudeza seiscentista etc. Na Bfblia,porem, Deus demonstra que a natureza humanas6 se exprime como representacao exterior, por issoinventa um Pao voador, uma Esca-da que sobe ao Ceu, um Livro fechado com Sete Selos e outras imagens como maneirametaf6rica ou aleg6rica de agir na mente extatica de seus Profetas. Dizia-se rotineira-mente no seculo XVII que e pr6prio do homem amar 0que admira, mas s6 admirar averdade vestida, nao a verdade nua (Tesauro, 1670, p. 17). Logo, 0 amor das imagenstambem e causa eficiente e instrumental das agudezas.

    Robert Klein demonstrou, quando estudou os livros de empresas italianos doseculo XVI, que os preceptistas teorizam asimagens por meio da comparacao do inte-Iecto humano com 0 intelecto angelico (Klein, 1998; p.117 -140). Do mesmo modo,para os preceptistas do seculo XVII, e a representacao que define 0homem. Tambemafirmam, com Arist6teles, que uma inteligencia superior se caracteriza pela capacida-de de estabelecer relacoes rapidas e inesperadas entre conceitos. A representacao euma mediacao; na poesia da agudeza, uma mediacao agudamente indireta.

    A primeira especie de represcntacao exterior da agudeza e a fala. A fala agudae dirigida ao ouvido, que goza com sua pintura, que tern 0som por cor e a lingua porpinccl. A agudeza vocal deve ser elfptica e cheia de subentendidos, porque, nos ditosmulto claros, perde 0brilho, assim como as estrelas, que necessitam da escuridao parabrilhar. Pressupoe-se, portanto, a condensacao sutil e tendencialmente herrnctica.Segundo os seiscentistas, ha urn duplo gozo nas agudezas vocais, pois quem as emitetern 0prazer de dar vida no intelecto de outro a um efeito do seu e, 0ouvinte, a prazerde encontrar 0que estava oculto. Aqui novamente esta implicada a pragmatic a corte-sa tfpica das monarquias absolutistas do seculo XVII, que define os produrorcs deagudezas como tipos urbanos dotados de instrumentos dialeticos e ret6ricos proporci-onados pelo jufzo prudente nas ocasi6es em que a elegancia discrcta e a primeira nor-ma da etiqueta. Por issomesmo, 0que cspecifica ()sentido da agudeza vocal C 0dccoro,que considera a circunstancia: urna mesma mcnifora aguda pode ser fincza, brincadci-ra, jogo, ironia, obscenidade, sarcasmo au agressao, conforme a ocasiao c as pessoascircunstantes, 0que implica sell regramento por um sistema de decoros externos queespecificam as ocasiocs do usa conveniente e0sentido adequado em cada uma debs.Como exemplo de agudeza vocal engcnhosa, lembro urna carta de Vieira, datada de1683, em que diz que a freta que naquele ano leva 0 a

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    17/26

    LETRAS CLASSICAS, n. 4, p. 317-342, 2000.

    carrega mais "queixas" que "caixas". Como exemplo de agudeza vocal imprudcntc, urncaso contado pelo licenciado Manuel Pereira Rabelo, que no seculo XVIII escrcvcuuma "Vida do Excclentc Pocta Lfrico, 0 Dourer Gregorio de Matos e Guerra" comonotfcia sobre os poemas que compilou e atribuiu ao poeta. Um dia, em Salvador, 0jovern Sebastian da Rocha Pita se aproxima de Gregorio de Matos c, depois de Ihedizer que passou 0dia todo rentando escrever um soneto, declara: " falta uma rimapara mim ", ao que Gregorio imediaramente responde " c a p im" . Segundo os preceptistas,as agudczas orais s50 " a rg u m e nt os u s ba n o s J a la z es " (Tesauro, 1670, p. 489). Nesse caso,a rima " c a p im" n50 e propriamcntc urbana. E uma agudeza perfeita, mas imprudcnte,porque feita cxprcssamente com 0 proposito de ferir. Por isso mesmo, dizia-sc no seculoXVII que 0 fim dos engenhosos costuma ser 0 hospital.

    A segundo rcprescnracao aguda exterior, a agudeza escrita, e urna imagem ciaagudeza vocal, como propoe Aristoteles, A agudeza esc rita permite jogos ilimitados deconceitos e e considerada superior a vocal porque e duravel. E dela que surgem, porexcmplo, as inscricoes agudas; os motes das ernprcsas: as sentencas; asmissivas laconicas;os epigram as; os caligramas; os hierogramas e todos os variadfssimos jogos do engenho.Como na divisa dos Sabinos, S .P .Q .R , S ab in is P o pu lis Q u is R e si ste t? , que os romanosmantiveram, mas eliminando os sabinos, como diz Tesauro com muita graca. Alguemusou a letra A para significar urn fil6sofo ignorante, pois 0A significava Bo i . Heracles,o orador, fez um panegfrico a Ptolomeu com 0 titulo grego PONU ENCOMION, istoc , E n co m io d a To l eranc i a ; 0 rei apagou a primeira lerra, escrevendo O NU E NC OM IO N,Encdnuo d o A sn o , para afirmar, barbaro, que a tolerancia e virtu de de jumento e nao dereis. Nessc mesmo genero ablativo, um antigo, depois de ser interrogado ace rca dossinais pelos quais se reconhece 0 verdadeiro amigo, escreveu em latim a formulacaoem eco:

    AMOREMOREORERE

    Significava que 0amigo se conhece pelo afeto, pelos costumes, pelas palavras epela s acoes. Tambem se pode utilizar a escrita artiflciosamenre, de modo que 0 versoseja lido ao reverso, formando um palfndromo, isto e , desdizendo, quando e lido dadireira para a csqucrda, 0que diz quando lido da esquerda para a dircita , d e modo queo louvor se torna censura. E o que acontccc nos versos anouirnos dirigidos a HenriqueVIII da Inglaterra, marido de adultera e adultero :

    -333 -

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    18/26

    HANSEN, Joiio Adolfo. Retorica da agudcza,

    C on iu giu m tib i R ex [ oe cus u l e n : Num i na longosemine nee sterilis sit tibi progenies.

    Em II Cannocchiale Aris tote l ico, no capitulo em que trata da causa formal dasfiguras engenhosas, Tesauro lcmbra as " pa r o le f im e " , as palavras fingidas, citando Limtrecho de Plauto (P seud . , 834-836) como exernplo de agudeza : "Haec ad Neptuni / Jec! ldescondimenta s um . T e rr es tr es p e cu d es C I C IM ANDRO candia: A lit H APPA LOPS ID E, au tCATARACTR IA " , Mais excelenres exemplos de "palavras fingidas" acham-se nos so-netos de Quevedo contra Gongora. Neles, invcntando barbarismos parodicos descultimos das So l edade s , ataca as inovacocs de Gongora, imitando 0 estilo culto com"palavras fingidas" que fazem alusoes obscenas. Por exemplo, assim comcca Limsonetoque acusa Gongora de estuprar os poetas neotericos latinos: " Su i q u iv agan t e , p r c te 71 lo r d eE sto lo ./ p li es q u e 1 0 e xp u es to a l No t o s o li fi ca s / y o b tu s a s s p el ll T iC a Sc om u n i c a s ] des/Jec i lOdela s m usa s a ti s o lo ./ h u ye no c a t p a de tu D a fn c A /Jo lo /s uT cu lu s sla bro s d e te re tes / J iscas , /l J orque con tu s pcr-eersos d am n i fi ca s / l o s i n st it ll to s de s u s ac ro T o lo ",

    A agudeza escrita tambem pode ser pintura ou pocsia, como argucia de corposfigurados. Tesauro e outros preccptistas afirmam que a pintura, pondo frente aos olhosos simulacros das coisas, pela imitacfio material produz 0 engano da maravilha queagrada, pois consistc em fazer crer que 0fingido C0verdadeiro, de modo que ccnas quehorrorizam deleitarn. Comentando Limverso de Petrarca no qual Ull1soldado scdentobebe a agua de Limrio tinto do sangue dos mortos na batalha, 0cardeal Sforza Palla vicinoreitera, em seu tratado Arre d e l lo S t il e , 0 intelectualismo da cloutrina do conceito engc-nhoso, afirmando que 0 principal gosto do intelecto e maravilhar-se, e nao com

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    19/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4. p. 317-342. 2000.

    rancias, lembrando 0diro de Tiberio citado por Tacite nos A n n al es : Q u i n e sc it f in g er e,n e s c i t vit'ere (Senault, 1987). Como na oratoria, em que as palavras sao proprias emctaforicas, naturals c vulgares, comuns c engenhosas: Quintiliano chamou de a g u d a sas maos de Hortensia. Tesauro lembra que tambern era mctaforico 0 gesto de crguersobrancclhas, afetadamente severo e orgulhoso, do duumviro de Capua, que Cfcerointerpretou ironicamcnre como modo de fazer crer que sustentava a Republica com asobrancclha, como Atlas sustcnta 0ceu com as ombros. Conforme Tesauro, agudfssimodiscurso de gestos metaforicos foi a disputa do sabio grego com 0 romano esnipido quee contada por Acurcio, a jurista, Falando um ao outro com gestos, cles cquivocavam-se; c do equivoco nascia 0prazer dos observadores. Diz Acurcio, citado por Tesauro:

    Antes de os Gregos concederem as leis aos Romanos, mandaram urn descus sabios investigar se os rornanos cram dignos de leis. Estes, depoisde sc aconselharcm, enviaram um hornem esuipido ao encontro dosabin grego( .. .). 0Grego comecou a disputa e ergueu urn dedo parasignificar De u s IEinn so . E 0 ncscio, acreditando que ele quisesse Ihefurar lim olho, ergueu dois, junto com 0 polegar, como natural menteocorre, para furar as dois olhos do Grego. Acreditou este que 0Roma-no, com os tres dedos, quisesse dizer De u s e Tr ino , e mostrou a palma damao aberta para significar J iu lo e st a nu e a be rto fre nte a D e us . 0estulto,pensando que cle queria dar-lhe um bofetao, levantou 0 punho pararctribuir pancada com pancada. 0Grego imaginou que quisesse dizerD e us s eg ur a t u d o na mi i o e, admirando a agudeza do engenho romano,julgou que aquela Republica era digna de leis (Tesauro, 1670, p. 25-26).

    Tambem se utiliza a simples cor, scm figura, conferindo-lhe sentido alcgorico,como foi usado pelos pintores antigos: amarclo significa 0 Sol; branco, a Lua; azul,JUpiter; verde, Venus; vermelho, Marte; violeta ou purpura, Mercurio; negro, Satumo,As mesmas cores, na pintura, nos emblemas au referidas na pocsia, sao metaforas: como amarelo, relacionado ao Sol, significa-se /esplendor do sangue e riquczas/; com 0branco, lunar, /Inocencia e Fe/; com 0 azul, de JUpiter, /pensamcntos altos e celestes/;com 0 verde, vencreo, /prazeres esperados Oll conseguidos/, com 0 vermelho, marcial,/Vinganca e Valor/; com 0purpura, ou violeta, mercurial ou hermetico, /Industria eArte/; com 0negro, satumino, /pcnsamcnto profundo de dor/. Oa mistura das coresrambem se aza mistura de pensarncnros ou a indicacfio de propositos, como os Rossi,os Bianchi e os Ncri das fac,!oes guclfas e gibelinas do tempo de Frederico II. Quante asernpresas esculpidas, podcmos lembrar, com Tesauro c outros, um elcnco de objctostalhados em pcdra, como as hieroglifos egfpcios, ou cunhados em metal, como as me-

    -335-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    20/26

    HANSEN. Joik Adolfo. Retorica da agudeza.

    dalhas; ou os feitos em relevo, como 0 escudo de Eneias: e, ainda, os esculpidos emmarmore, marfim, ouro etc.; tambem os arcos, as colunas rostras, com imagens deinimigos encndcados, de rios e provfncias subjugadas, de cidades veneidas, de coroas.Domesmo genero sao as esculturas da proa de navios, como a Quimera, e outros monstrosproduzidos para ameacar 0 mar; tambem sao metaforas frisos, capiteis, cariatidcs,metopes e modilhocs, na arquitetura,Agudezas que lancam mao de "prototipo morro" fazem com que 0 original setome irnagern: como ados Argonautas que, como pintou Valerio Flaco, usavam despojosde Monstros e, como elmo, nao simulacros, mas as proprias cabecas das feras que tinhamabatido. No caso, como propoe Tesauro, os despojos sao uma "empresa em original".Alciato deu 0exemplo de Marco Antonio, que lcvava leoes sob 0carro, significando quehavia domado os espfritos mais ferozes do Senado de Roma. Da mesma maneira, conta-se que uma romana mandou uma lebre a Marcial, lembrando 0proverbio latino "Quemcome lebre fica belo", para significar IEs feio/, ao que a poeta respondeu:

    E dis ti n un qu am G e llia ttl l epo r em.Conta-se que, da mcsma rnaneira, utilizando uma empresa em original, Petrarca en-viou a Laura algumas lebres acorrenradas, representando a si mesmo pclos animaisporquc, pcrdida a liberdade com 0 amor, tinha-se tornado presa da amada, fazendo aslebres falar.

    Quante as emprcsas flguradas por meio de personagem vivo ou de aC;ao, comoensina Aristore les , as me t af or as r ep re s e nm n re s sao m a is a gu da s que as s igni[ ica l l t es , poiscom a ac;ao trazcm 0 objeto para a frente dos olhos. Ele as chama justamcntc dep r o s o l1 u ! to n , " n a [rente d o 0 1 1 1 0 " . Cita-sc a sua admiracao pelo engenho de Isocrates que,tendo de dizer "a Grecia deve estar tristissima pela morte de sells cidadaos em Salamina",disse " a Grecia dcve cortar os cabclos sobrc 0nimulo dos seus cidadaos em Salamina",Por ser metafora continuada, a cxpressfio c uma alcgoria, podendo ser rcprescntada napintura: por excmplo, pela nnagem de uma mulher que corta os cabclos sobre ()n imulodos filhos. Nas letras seisccntisras, Cuso muito valorizudo, articulando-se na formula-"ao rneraforica como pintura de tipos, ac;f)es e cenas, na mcdida mcsma em que aimagem c proposta como elcmeuto da argumcntacao formulada como visualizacfioscnsorialmcnte dramatica. Na medida em que a mettifora rcprescntantc implica limaw,fio, pode ser usada como um entimerna rcrorico, lima agudeza que fundc 0dim como faro, Tcsauro cita 0cxcmplo do nuisico de 80101\ha que, tendo ido assisnr a aprescn-mc;fio de outro nuisico cstrnngciro, que passava p O T lim novo Orfeu, depots de longaespera ouviu lima voz fraca, rrernula e de sa f in ada . Imediatamentc, pus urua capa de

    -336-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    21/26

    LETRAS CLAsSICAS. n. 4. p. 317-342. 2000.

    chuva no ombro, 0que significou para todos as assisrcntes "0tempo e de chuva porquca r a coaxa", caso em que a capa, como uma mctafora, tambem e urn cntimcma satirico(Tesauro, 1670).

    ** *As discussocs seisccntistas da agudeza tern por objeto principal a verossirnilhanca

    c ()dccoro da sua aplicacfio: nebs sempre esta em paura a questfio do efeito persuasive.Em posicoes por vezcs inimigas, os autorcs das polemicas concordam todos quanto uoartiflcio. Para des, que cvidcnrcmcnte nao sao idealist as alemaes, romanticos adcptosdo realismo sociaiisra, c impensavel a critica da instituicfio retorica; discordam quantoao limite dos usos, E ( ) caso, fundamental, de Matteo Peregrini, autor de De l l e ACH t e z z e ,ch e a l lr imcn t i s / Ji ri ti , v iwzze e c o nc et ti v o lg a n nc n te s i a p p el la n o (1639), que j , ' i referi , Elepropoe-se a teorizar " l'i n d is c re ta a f fe ta z io n e d e ll e acu ie r z e" , "a indiscreta afeta~fio dasagudczas", ou seja seu usn indecoroso. Por isso mesmo, admire seu uso, desde queregrade com proporcao atenta a verossimilhanca C ao decoro.

    Como norma geral, Pcregrini rclaciona a agudeza com 0 genera comico paraprescrever que, nos ditos espirituosos, que visarn 0 de l e c t are , ela c mais toleravel quenos argumentos series ( Peregrini, 1639; XII). Assim, discutindo 0 decoro dos gcnerosbaixos, afirma que c llcito 0uso de agudczas ernpoladas e frias, evidentemente prcmc-diradas, para fazer rir. Adverre, porem, que 0dcfeito do juizo ou a inepcia do motejador,de urn lado, c a fciura da coisa motejada, de outro, tomam a agudeza mais desprazcrosaque 0mero prnzer da sua novidade. Composicocs viciosamcntc agudas nfio sao agra-daveis, exccto para os que sao privados de jufzo e se deleitam com elas: por isso, aagudeza c scm pre louvada pela "turba popular". Levada pelo efeito da novidade, aplebe c incapaz de ajuizar seu artiflcio c sua adequacao. Tambem os adeptos do estilo"moderno", como Percgrini chama 0 discurso dos praticantcs do conceptismo cnge-nhoso hoje classificado de "barroco", os " infari luut i di l e ue re " , louvarn a agudeza scm-pre, porque, com sua prcsuncfio de sempre saber tudo, apllcam-na a rorto e a dirciro,dcmonstrando que tem 0 jufzo muito corrompido e que efcrivamente pouco ou nadasabcm. Nos dois casos, ignorancia do vulgo c afctacao de letrados, a agudeza c criticadasegundo ()crirerio do dCCOfO, que necessariamente implica 0 do jufzo, Os que nao tern() juizo pcrfciro admirnm-na pcla novidadc, que c grande, e que sempre produz 0cfcitode grandemcnrc agradar. A fciura do caso retorico necessita, contudo, para ser hemconhecida, urna "discrctczza giudiciosa'', uma "discricao judiciosa". No capitulo XII descu rratado, como disse, Peregrini expoe " 25 cautclas para 0 uso das agudezas". Voufalar debs rupidamente, porque sao pertinentes para conccituarmos a recepcfio con-tcmporftnca das reprcscnrucoes seiscentistas.

    -337-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    22/26

    HANSEN. Joiio Adolfo. Retoricu da agudeza,

    1.De v em ser e v it a d os t o d os os g e n e r o s de a g u d e za s v ic io s a s. No caso, Percgrini levaem conta 0decoro interno e cxterno na qualificacao de "vicio". 0 vicio c uma inepciaque fere a verossimilhanca,

    2 . D e o e- se e vi ta r 0e x ce s so : " g u a rd a r si d a l la c o p ia " . 0 preceito vale principalmen-te nos generos baixos. No caso, Peregrini cita Cfcero: A r ar ez a d o s d ito s a g ud o s d is tm g llco o ra d or d o bu f a o

    3 . D eo e -se e v ita r a a fe ta qiio : " l'a cu te zze ha nn o d e e s s e r lu n gi d a og ni co lo red ' a f { e t t a z i one " . A agudeza decorre da rapidez do engenho; na afetac;ao, cvidencia-se 0estudo ou a premeditacao do dito agudo , que fica "frio" e perdc a graca, Obviamente,em generos baixos, a afetacao estd pre vista como ironia e sarcasmo - por exemplo, nacomposicao de tipos vulgares, como 0 palhaco sem tato, que nunca para de produzirditos agudos e maledicentes .

    4 . D e oe -s e m a n te r 0d e c o r o . Esta prescricao c nuclear e Peregrini cita Quintilianocom ela: "q ue m e s ob re 0qu e e d e qu em e con tra q u em e 0q ue d ig a" . E tambem 0 caso doserrnao sacro que, segundo Vieira, no sermao da Sexagesima, de 1655, e transformadoem cena de Plauto ou Terencio quando as agudezas s50 dissociadas da teologia: "Pregam palavras de Deus, mas nfio pregam a palavra de Deus", diz Vieira dos sermoesde seus inimigos, os dominicanos do Santo Oflcio da Inquisicao.

    5 . D e ve -s e e vita r a a g ud ez a T l U S l ugare s - comul l S a f e t H o s o s . No caso, Peregrini refe-re as agudezas que evidcnciam a preocupacao de ser engenhosas Oll que tern sabor dezombaria. 0 lISO de agudezas com esse sentido c uma topica corrente no seculo XVIIna constituicao de tipos infames, que preferem perder amizades a perder a oporrunida-de de mais uma vez demonstrar sua baixeza com ditos agudos que ferem. E 0modocomo 0 Licenciado Rabelo compoe a pcrsonagem Gregorio de Matos como um ripeinfame, em seu "Vida do Excelente Poeta Lfrico, 0DOLI tor Gregorio de Matos Guerra".PO I exemplo, nu nnedota em que 0 poetu, conversando com urn scnhor de engenhopcmambucano, ve um bo i com urn 56 chifrc. 0 animal pertcncc no fazcndeiro eGregoriodiz que seu destine sera 0 de scmpre ser acusado de satfrico, porque assim sera inter-pretado se, naquele memento, disscr que 0 animal c "boi de um como so". SegundoPeregrini, a brincadeira nos lugares-comuns de afeto nfio s6 rorna seu au tor ridfculo eindecoroso, como tambern Impede a comocao e estraga totalmente 0efeito prcrcndidopela arte .Contudo, como ironia, a agudeza produzida c muito cficaz, pl>r excmplo, emdeclaracocs de amor jocosas ou em satiras em que se fingc a arnizade para melhoragredir.

    6 . D ev e-se u sa r a a gu de za p ar a J im r ele va nle . Cicero distingue 0 bufao do enge-nho desdenhoso pela frequencia do uso das agudezas.

    -338-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    23/26

    LETRAS CLAsSICAS, n. 4, p. 317-342, 2000.

    7 . Id em . Pessoas prudentes e graves usam poueo as agudezas joeosas e somentena conversacao, quando respondem. Segundo Peregrini, produzi-las 0 tempo todo cIndice de "cngenho ventoso",

    8 . D e o e-s e e vita r a a g lld ez a em c om p o s i~ i io g r a v e. "Grave", no caso, aplica-se aespecificacao da materia do discurso. Por exemplo, na orat6ria deliberativa e na judici-al, generos gcralmente series, a agudeza nao e tao pr6pria quanto no genero demons-trativo, que e grave, como louvor, c nfio-grave, como vituperacao.

    9. No gcnero demonstrative ou soffstico, de assunto ameno e ligeiro, a dos t ema t i o l l em c o t n p o s i t um , e que so dcmanda a audicntium v o l u p t a t em , impoe-se a agu-deza [ocosa. 0 que tambem acontece na satira - por exemplo, em Quevedo, Caviedes,Lord Rochester c na poesia atribuida a Greg6rio de Matos.

    10. Evita-se a agudeza no gencro doutrinario puro (ou didatico), porque 0mesrre susrenra lima p e r s o n a grave, alheia a brincadeiras, eontudo, adrnire-se a agude-za seria,

    11. Evira-se a agudeza no discurso narrativo, ou historico, porque prejudica 0p r o va v e l , logo, 0verossimil. Se Plutarco eserevesse a vida de Alexandre com agudezasjocosas, 0 argumcnto heroico scria ridicule. Na obra hist6rica, e vetada a agudezacomo obra do narrador, mas nao a agudeza das pr6prias eoisas narradas, devendo-secsrabelecer difercnca entre 0 objeto e a qualidade da sua eloquencia, Na narrativafantastica, contudo, adrnite-se, quase que par definicao,

    12. Admire-se a agudeza como exercfcio, como as composicoes feitas por jo-vens para adquirir destreza recnica.

    13. A comcdia, segundo a qualidade das personagens, admite todos os generosde agudezas, principalmente as jocosas e as pungentes,

    14. Agudezas serias sao proprias de composicoes serias c sao convenicnres paracnsinar e comover,

    15. As agudezas jocosas convem moderadamente na conversacao: do contra-rio, tern-se a b ufo n er ia .16. As agudezas pungentcs usarn-se em todos os lugares em que se aeuse, re-

    preenda ou coisa do genero. Lembro 0poema atribufdo a Gregorio de Matos que,atacando Antonio Sousa de Meneses, governador da Bahia entre 1682-1684, cxplicita() lIS0 da varianrc comicn maledicentia: " E ja vclho em Poetas elcgantes/ 0 cair emtorpczas scmclhantes". 0 gcnero demonstrative nao so admite tais torpezas agudas,mas as exige: no cnso, Peregrini Ja eomo exemplo 0Apoco l ocyn t o s i s , de Seneca.

    -339-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    24/26

    HANSEN. foiio Adolfo. Retorica da agudcza.

    17. As agudezas puras, ou graciosas, nao tern lugar em tcma que nao seja pornatureza apto para jogos e brincadeiras. Alias, c inepcia nao usa-las quando 0 lema ehidico.

    18. E mais toleravel a abundancia dc agudezas pungentes que a excesso depuros jogos, pois estes fazem do homem que os enuncia um tipo de engenho vao.

    19. Os motes e os ditos agudos ridfculos devem ser usados com muitacircunscpeccao nao s6 quando escritos, mas em toda ocasiao, Agudezas lascivas ouobscenas sao proprias para pcssoas vis .

    20. Composigoes breves, como epigramas, sonetos e madrigals, cxigcm ugudc-za proporcionada ao seu tema, grave sc 0 tcma c grave; jocosa, sc jocoso; ironica, seironico; c ridicula ou maledicentc, se 0 tenia c baixo. 0 que c longo tcm lugar paraoutros ornamcnros e a falta da agudeza podc scr suplcmentada por eles. Por isso, nosdiscursos breves, a agudeza se impoe porque, se nao ocorre, 0discurso parece ter sidofeito s6 para dizer a coisa, nfio para evidenciar 0engenho.

    21. Quando 0principal f im c mover com 0 r iso, as agudezas fr ias ou viciosaspodem scr usadas, mas deve ser claramente cvidente que se desrinam ao riso.

    22. 0peso do afeto pode justif icar 0 vicio da figura que porvcntura esteja naagudeza. No caso, Peregrini discute a paronomasia, ou rrocadilho, dando como excm-plo um de Cicero contra Verres: " Devcrias ter exigido um navio que navcgasse contraos 1 J r c d a d o r c s , nao com a p r c s a " .

    23. As partfculas "tcmpcradas" podem justiflcar OLl purgar 0 vfcio no usn e nasubstancia das agudczas: "quase": "como"; "talvcz"; "diria que"; "soja-me permitido":"parcce": "por assim dizcr" etc. Como um rernedio para 0 cxcesso, as partfculas indi-cam 0 posicionamcnto da cnunciacao quanro ao tema e a circunstftncia do uso dodiscurso, revelando 0 conhecimento do defclto por parte da 1 J c r s 07 w .

    24. Nas composicoes longas, c escusavcl algum tipo de agudeza viciosa, Licaode Horacio, que afirma que nas composicocs longus IEpermitido insinuar 0 sono,

    25. Nos recirativos, principalmente os feitos por jovcns, tolcra-se alguma li-ccnca na qualidade e na quantidndc dos ditos agudos. 0 defeito do juizo, se a agudezae viciosa, c facilmente perdoado, pois alcga-se a idadc juvcnil, naturalrncnte impru-dcnte, segundo Peregrini e outros preceptistas.

    NOTA

    * Professor Douror de Lirerarura Brasileira dn FFLCH-USP.-340-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    25/26

    LETRAS CLASSICAS. n. 4. p. 317-342, 2000.

    REFERF:NCIAS BIBLIOGRAFICAS

    ANONIMO. R l te to r iq t te a H ere nnius . Tra d. H en ri Bo rne cque . Pa ris : G arn ie r, s /d .ARIST6TELES. Rhe to r ique . T ra d . M e de ric D ufo ur. P aris : B elle s L cttrc s, 1931 .__ . P oe tiq lle . Tra d. d e J. H ard y. Pa ris : B elle s L ettre s, 1952.__ . Organon. I - C ate go rie s. I I - De I ' in terpreta t ion . Trad . J . T ric ot. P aris : L ib ra iriePhilosophique J . Vrin , 1936 .__ . Eth iq ue a N i c omaqu e . Trad . J . T ric ot. P aris : L ib ra irie P hilo so ph iq ue J . V r in , 1967 .ctcsno, M. T. De I ' orateur . Tra d. F ra ncois R ich ard . Pa ris : G arnie r, s /d .EL IO T, T.S. T he V a rie tie s o f M e ta ph ys ic al P oe tr y. Th e Cla rk L ecture s a t Trin ity C olle ge ,

    Cambr idge , 1926 a nd The Turnbull Le cture s a t The Johns Hopkins Unive rs ity,1933 . Ne w Y ork I Sa n D ie go I Lond on: Ha rcourt Bra ce &Company , 1994 .

    GRACIAN, B. A rtific io y A rte d e l ng en io . O b ra s C o m p le ta s. Ma d rid : A gu ila r, 1960 .KLEIN , R . A Teo ria d a Exprcs s a o F igura d a nos Tra ta d os I ta lia no s sobre a s lmpr es e ,

    1555 -1612. A Fo rma e 0 l nt el ig iv e l. E s cr it o s s a br e 0 Renas c imen to e a Arte Mod ema .Tra d. Ce ly A re na . Re vis a o te cn ica d e L eon K ossovitch e Elisa A ngotti K ossovitch.S 50 P au lo : E DU Sp , 1998 . cap . 4 , p. 117-140.

    PALLAV ICINO, S. A rte d ella S tile , a ve n el c erc ars i l' I de a l d e ll o s cr iv er e I ns eg n at iv o.Roma : 1647 .

    PEREGRINI . M . Del l e Acurezze c h e a lt ri m en ti s pi ri ti , v iv ez ze e c o n ce tt i v o lg a rm e n te s ia/J/Jel lano( 1639) . In : RAIMONDI, E. Trat ta t is t i e Narrator i d e l S e i ce n to . M i la n o IN ap o li :R ic ca rd o R ic ci ar d i, 1960 .

    Q UIN TlL IA NO , M . E Ins titution orato ire . T ra d . H en ri B orn ec qu e. P aris : G arn ie r, 1933 ,4 v ol.

    SENAULT, J.-E De I 'u sa g e d es p a ss io n s (1641) . T ou rs : F a ya rd , 1987.SENECA R ETO R. Co nrro oe rs es e r suasoires . T ra d. H en ri B orn ec que . P aris : G arn ie r,

    1932 ,2 vol.TESAURO, E. I I Can l lo c c h ia l e A r i st o te l ic o 0s ia I d e a d e l l' ar g l. lt a e t ingeniosa e lo cu tu m e c he

    serve c I t la ta I ' ar te otatotia, la /J idar ia; e t s im b o l ic a e sam i n at a co' p r in c ip i i d e l divinoAris to te le . 5" im pre ss ion e. To rino: B arto lo me o Z ava tta , 1670 .

    H AN SEN , J0 50 A dolfo . Rhe to r ique d e la po in t e .RESUME: Le rexre e st u n e e xp o si ti on d e la doctr ine rhetor ique d e l a p o in t ea u X VIle s ie cle . L a p oin te e st l'ef fe t d e s en s i na t endu qu ' on ob t i en t pe r moyen

    -341-

  • 5/5/2018 Ret rica da Agudeza Hansen

    26/26

    HANSEN. JO( ;O Ado/fo. Rctorica da ugudcza.

    d e la condensat ion mctalJ / tor i l lue d e c on ce pts e /o ig nc s. E n e t a bl is s a n t l a l ia i so nentre lil IJT(l tu l t ted e la ponue e r la vat ionol iu: d e Cour des m01U 1rch ie sab so l t te sd u X VIle s ie c/e , I e tex te e n d onne d es exemples m'ec d e s l J o et e s, o r a te l lT s e tI Jr ec e p ti st es , c omme Go n g o ra , G ra cid n, D on ne , S h a ke st Je a re , G r e g or io d eMaw s , V ie ir a, T e sa u so , P a ll av ic in o , P ere g rin i c rc ., p ou r d cm o ntr er a w c euxI 'a /J /nn /J ri a ti on e r l 'a /J /J li ca ti o n d es a u a ot it es r h Cw ri q ue s g r ec q u es e t l at iu e s c lI I I I Jro d uc tio n d ll " b ea u e ff ic a ce " .MOTSCLEFS: ra t ional i te de Cour ; r l ie to r i ll t te ; mc ta lJ /UJr e ;po in t e ; concepr,

    -342-