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ISSN 2238-0205 53 DOSSIÊ SABORES GEOGRÁFICOS Geograficidade | v.1, n.1, Verão 2012 O MERCADO CENTRAL DE BELO HORIZONTE: ENTRE QUEIJOS E SABORES The Mercado Central of Belo Horizonte: between cheeses and flavors Marcos Mergarejo Netto 1 1 Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP). [email protected]. RuaTrairas, 95, apto 103, Carlos Prates. 30710-130. Belo Horizonte, MG. RESUMO O Mercado Central de Belo Horizonte/MG é reconhecidamente um lugar em que se evoca a diversidade de sabores. O presente artigo tem o foco de conhecer e descrever parte desse universo, identificando sua organização espacial, abrangência e heterogeneidade, enquanto ambiente cultural plenamente aceito pela sociedade em suas atividades e ligações, que aponta para uma geografia do sabor. Dentre esse extraordinário mundo de sabores oferecido pelo Mercado Central encontra-se o Queijo Minas Artesanal, cujo consumo é hábito e tradição, tendo sido transformado em patrimônio imaterial, uma herança cultural de caráter identitário geográfico. Palavras-chave: Geograficidade. Paladar. Queijo minas artesanal. Mercado. Pimenta. ABSTRACT The Mercado Central of Belo Horizonte/MG is noteworthy as a place that evokes a diversity of flavors. This article seeks to understand and describe part of this universe, identifying its spatial organization, scope and heterogeneity, as a cultural environment fully accepted by society in its activities and links, fact which points to a Geography of Taste. Among the extraordinary world of flavors offered by the Central Market lies the Artisanal Cheese Minas, whose consumption is habit and tradition, having been transformed into intangible heritage, a cultural heritage of geographical identity character. Key words: Geographicity. Taste. Artisanal Cheese Minas. Market- place. Pepper.

RESUMO ABSTRACT O Mercado Central de Belo Horizonte/MG … · 1 Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP). [email protected]. ... lugar em que

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O MERCADO CENTRAL DE BELO HORIZONTE: ENTRE QUEIJOS E SABORESThe Mercado Central of Belo Horizonte: between cheeses and flavors

Marcos Mergarejo Netto1

1 DoutoremGeografiapelaUniversidadeEstadualJúliodeMesquitaFilho(UNESP)[email protected]. RuaTrairas,95,apto103,CarlosPrates.30710-130.BeloHorizonte,MG.

RESUMO

OMercadoCentral de Belo Horizonte/MG é reconhecidamente umlugaremqueseevocaadiversidadedesabores.Opresenteartigotemo foco de conhecer e descrever parte desse universo, identificandosuaorganizaçãoespacial,abrangênciaeheterogeneidade,enquantoambiente cultural plenamente aceito pela sociedade em suasatividades e ligações, que aponta para uma geografia do sabor.DentreesseextraordináriomundodesaboresoferecidopeloMercadoCentralencontra-seoQueijoMinasArtesanal,cujoconsumoéhábitoe tradição, tendo sido transformado em patrimônio imaterial, umaherançaculturaldecaráteridentitáriogeográfico.

Palavras-chave: Geograficidade. Paladar. Queijo minas artesanal.Mercado.Pimenta.

ABSTRACT

TheMercadoCentralofBeloHorizonte/MGisnoteworthyasaplacethat evokes a diversity of flavors. This article seeks to understandanddescribepartofthisuniverse,identifyingitsspatialorganization,scopeandheterogeneity,asaculturalenvironmentfullyacceptedbysocietyinitsactivitiesandlinks,factwhichpointstoaGeographyofTaste.AmongtheextraordinaryworldofflavorsofferedbytheCentralMarket liestheArtisanalCheeseMinas,whoseconsumption ishabitand tradition, having been transformed into intangible heritage, aculturalheritageofgeographicalidentitycharacter.

Key words: Geographicity. Taste. Artisanal Cheese Minas. Market-place.Pepper.

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INTRODUÇÃO

O paladar, por conseguinte o sabor, em proveito da visão é umsentido ainda pouco explorado, embora seja dos cinco sentidos, omaisíntimoeaquelequenospermitegrandessatisfações.Opaladartemacapacidadederemontaràlembrançanumaverdadeiraviagemao passado, próximo ou distante, ainda que efêmero. No mesmosentido,Tuan (1980, p. 11) afirma que o olfato tem esse poder deevocarlembrançasvívidas,carregadasemocionalmentedeeventosecenaspassadas.Essaligaçãotemcarátergeográfico,pois,aorecuarseupensamentoemsaboresdopassado,osujeitotambémorelacionacomo lugar, estabelecendo assim a sua geograficidade, em funçãodoscostumeseculturaqueenvolvetaldinâmica.Alémdisso,segundoBrillat-Savarin(1995,p.42)ogosto,osabordoalimentonosconvida,pelo prazer, a reparar as perdas contínuas decorrentes da ação davidaeajudaaescolher,entreasdiversassubstânciasqueanaturezaoferece,asquesãoprópriasaservirdesustento.Nessecontexto,oMercadoCentraldeBeloHorizontereproduzemseuespaçolabirínticoa oportunidade para umamaravilhosamiríade de sabores, onde sedestaca o Queijo Minas Artesanal, que se mantém culturalmentevibranteemmeioàsvariedades,coresesabores,sendoumprodutoreconhecidoporsuaqualidadeenotabilidade,quenãofaltaàmesa,maisoumenosabastada.O presente trabalho reúne informações de pesquisas realizadas

em2003,2006eem2011,noMercadoCentraldeBeloHorizonte.Aprimeirapesquisarealizouumdiagnósticodomercadocomoumtodo,incluindooscomercianteseusuáriosdaquelecentrovarejista.CombasenaquelapesquisafoiconstatadoqueomaiormovimentodoMercadoCentral ocorre em função do comércio de laticínios.A constataçãodestedesempenhopautouasegundapesquisa,procurandoampliaro

conhecimentosobreosqueijosartesanais,quefazpartedaculturaedopatrimôniodopovomineiro,reconhecidamenteasvariedadesdotipo“Canastra”e“Serro”,queconstituemositensmaisprocuradosdentreagradedelaticíniosàvendanaquelemercado.Noentanto,oMercadoCentral de Belo Horizonte oferece, ainda, um singular universo desabores,que lheconfereumacaracterística todaespecialexploradapelaterceirapesquisa.Assim,opresenteestudoexploraesseuniversofundadonatradiçãodosestudosperceptivoseculturaisemgeografia,quando,segundoGratão(2011),ossentidossãoevocadosenquantomediadoresdaexperiênciaambiental,basedoenvolvimentoentreohomemeapaisagem.Gratãoacrescentaqueseriaumsentimentodepertencimentoenraizadonarelaçãoconcretaentreohomemeaterra.Comerebeber:este,segundoClaval(2007,p.255)éoterrenode

análisemaisfascinanteparaosgeógrafos,poisexprimedemododiretoas relações dos homens com seu ambiente, pormeio do consumoalimentar.Claval salienta que os grãos, legumes, frutas, carne e oslaticíniosvêmdeterrascultivadasoudepastagens.Alémdisso,apescaeacaçaresultamdaapropriaçãoefetuadanafaunanaturaleacolheitadeoutrasplantaseoutrosgrãosservemdetemperoearomatizaçãoparaacozinha.Tudoissoaliadoaosaberfazer,docomoprocessaresseselementosqueseconstituememalimento,salvoaquelesdeconsumoinnatura;emresumo,oqueseconstituicomoculturaalimentareseencontraenraizadanoterritório.Nessesentido,PaulClavalregistradaseguinteforma:

A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, dastécnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelosindivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, peloconjunto dos grupos de que fazemparte.A cultura é herançatransmitida de uma geração a outra. [...] Não é, portanto umconjuntofechadoeimutáveldetécnicasedecomportamentos(CLAVAL,2007,p.63).

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Csergo (1998, p. 814) acrescenta que: “através dessa funçãomemorial, as cozinhas regionais assim reconstruídas permitem àmodernidade urbana reatar com suas ligações provinciais, com opratoconsagradopelalembrança.”Ouseja,aalimentaçãoacabaporconstituirumaidentidadeeumfatordecoesãoentregrupossociaisque, por qualquer motivo acabam por se dispersar, principalmentedomeioruralparaourbano.Aautorasalientaoêxodoparaourbanoempregador,masquenemporissoabandonasuasligaçõesdeorigem,como “prato” consagrado pela lembrança.Assim,Csergo (1998, p.814)apontaparaa“práticadeumasociabilidadequesearticulaemtornodoscostumesculinários,dapartilhafestivadasespecialidadestrazidas da terra por aquele que acaba de chegar.” Dessemodo, aidentidadeorigináriatorna-seumfatorimportantenaestruturaçãodeumarededenotabilidade,pormeiodeumaparticularidadeculinária.Entretanto, La Blache (1954, p. 27) afirma que “o espetáculo das

diferençasdeorganizaçãosocial,associadoàdiversidadedoslugares,nuncadeixoudedespertar a atenção.”Oqueacontece tambémnofascinantemundo dos alimentos, suas ligações com suas origens ea indissociável ideia de região, traduzidas pelos meios alimentaresde um povo. La Blache (1954, p. 195) acrescenta que: “entre asrelaçõesqueligamohomemaumcertomeio,umadasmaistenazeséaqueaparecequandoseestudamosmodosdealimentação.”Osquais, segundo o meio natural onde os diferentes grupos vivem,ocorremàsnecessidadesdoorganismoedessemododesenvolvem,empiricamente, as melhores combinações para seu sustento,firmando-se como hábito que persiste como tradição e herançaalimentarconstruídasculturalmentepelamemória.

O mercado central de Belo HorizonteO Mercado Central de Belo Horizonte é referência no contexto

citadino da metrópole, como centro de comércio varejista, ponto

turísticoede lazer,alémdeguardiãodeumasignificativaesingularhistória para milhares de pessoas, belo-horizontinas ou não, quemantêm uma relação de afeto com aquele centro de compras.Ademais,umespaçodegrandeecletismo,frequentadopelosdiversossegmentos da sociedade, que encontram no Mercado Central umverdadeiro mosaico da diversidade e lugar de afeto. No MercadoCentral realiza-seoencontroentreosofisticadoeoprosaico,numaboa sintonia com a gastronomia regional mineira; uma verdadeirausinadesaboresearomas,numapaletadecores.Assim,oMercadoCentralconcedeumcaráterexclusivoaocomércioalipraticado,ondea origem de determinados produtos é um de seus componentesprincipais, criando, simultaneamente,umaespecializaçãoediversasopções.Dessamaneira,comumavariadagamadeprodutosdeváriasregiõescriaoferta,emmeioaumademandacadavezmaisexigente.Omercadovemdedicando-sedurantedécadasdeinstalação,aofereceraosseususuáriosumaboaequalificadagamadeprodutos,incluindoosprodutosregionais.Segundo nossa pesquisa realizada em 2003, independente de

faixa salarial,escolaridade,vinculaçãoeconômicaeprofissão, todosfrequentamoMercadoCentral,evidentemente,umapreferênciadosusuáriospeladiversidade,qualidadeecustodosprodutosalioferecidos,oquelhedáidentidadedemagnetismoeaproximaçãodaspessoas,conferindo-lheessaqualidadedeespaçoeclético.AnotabilidadedoMercadoCentraleoseureferencialnomeiourbanoecomercial,enfim,asuasingularidadeperanteosdemaiscentrosdecomércioémovidadiretamentepelo seuusuário,que sedeslocadequalquerpontodacidade,oumesmodaregiãometropolitana,parabuscarnomercadosuasatisfação,sejapeloprincipalmotivo,ascompras;oupelo lazerqueomercadoproporcionaaosseusfrequentadores,contumazesounão.

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Netto(2003)apontaqueafragmentaçãodosprodutosdasdiversasregiões do Estado articula-se num representativo comércio deprodutosregionais.Poroutrolado,omercadopossibilitaoreencontrodequembuscanumfragmentodesuaculturadeorigemumsímbolo,umasatisfação;quandosepromoveareunião,ouaarticulaçãodeumpelo outro naquele espaço também cultural.Ali, emmeio a tantoscorredores,conformeafigura1,umaenormefreguesiacompareceacercade400bancas,entreelas,29queijarias,cujoprincipalprodutoé o Queijo Minas Artesanal. Netto (2009) afirma que, segundo os

comerciantes, uma boa parcela são clientes habituais, até mesmono tocante aos dias de frequência. Essa freguesia tem seu timing.Segundoos queijeiros, sexta-feira (56%), seguidado sábado (40%),sãoosmelhoresdiasdemovimentoparavendadequeijos,sendoqueamaioria desses clientes sãomulheres, com uma idademédia quevariade40a59anos.Para Netto (2003), a condição central domercado, localizado na

intercessãodeimportanteseixosviários,emmeioaumagranderededetrajetosdeônibus,juntamentecomoseuamploestacionamento,proporcionaumafluxodeusuáriosmuitomaiordoqueseestivesseàmargemdomeioviário.OMercadoCentraldeBeloHorizonteé,acimadetudo,umcentrodereferência,carregadodetodaumasimbologiaque certamente ultrapassa os produtos vendidos ali; toda umamemóriadeconfiabilidadeetradição.ConsumirumqueijoadquiridonoMercadoCentralcomcertezateráummelhorsabordoqueaquelecompradoemqualquersupermercado.

O queijo artesanal de Minas Gerais

Oqueijoéumadasformasmaisantigasdealimentomanufaturado,eseobtémpelacoagulaçãoefermentaçãodoleitedecabras(Capra hircus),ovelhas (Ovis aries) e vacas (Bos taurus).Tambémépossívelproduzi-lo a partir do leite de outros mamíferos, como: búfalas(Bufalus),camelas(Camelus bactrianus),lhamas(Lama glama),renas(Rangifer tarandus), fêmeasdebisões (Bison bonasus) e iaques (Bos grunniens). Sua massa é comprimida e moldada, adquirindo formacaracterística, consistência variável e forma característica, sendoutilizadaparauntar,cortarouralar,desimplesmanuseio,transporteedurabilidade.Quantoaoiníciodesuaprodução,aceita-sesermaisprovávelqueoprocessodeproduçãodoqueijotenhasidodescoberto

Figura1:PlantaCadastraldoMercadoCentraldeBeloHorizonte/MG.Fonte:ArquivosdoMercadoCentraldeBeloHorizonte/MG)

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acidentalmenteaoestocaroleiteemumrecipientefeitodoestômagodeumanimal,easuaquimosina(coalhonatural)tenharesultadonatransformaçãodoleiteemcoalhadaesoro.Ouseja,simultaneamenteàdomesticaçãodecabras,ovelhasevacas.Segundo sua etimologia e definição, a origem da palavra queijo

encontra-se no latim, caseus, pelo arcaico queiso (FARIA, 1978).Schmidt(1995,p.4)tambémregistraessaorigemdamesmaforma,acrescentandoamodernaereconhecidacheese paraosingleses;kaas para os holandeses e käse para os alemães e austríacos. SegundoSchmidt, para as terminações formaggio e fromage, do italiano e

francês respectivamente, a origem está no conceito romano de

coagulum formatum,quesetraduz“coáguloformado”.Magaldi(1941,

p. 7) ofereceoutrasmanifestaçõesfilológicas, aindaque contemple

a mesma origem latina de caseus. Assim, pelo italiano derivou o

nomecacio,oespanholquesoeoportuguêsqueijo.Oautorentende,

ainda,queadenominaçãofrancesa,fromage,foiretiradadoitaliano

formaggio,derivado,porsuavez,deforma.

Referênciasaoqueijosãoencontradasnosescritosdascivilizações

babilônica, hebraica e egípcia, povos tradicionalmente de pastores,

encontrandoaltoníveldeproduçãoequalidadenascivilizaçõesgrega

eromana.NaIdadeMédiaosqueijosjáatingiamelevadasofisticação

em sua elaboração e até mesmo no formato. Ordens religiosas

encarregaram-se de lhe dar reputação pela qualidade e regras dehigiene.Entretanto,foinoséculoXIXqueaconteceuograndeboom

no consumo do queijo, afinal, sua produção, que era artesanal,

passouparaaordemindustrial, incorporandoumfatocrucialparaa

indústriaqueijeira,apasteurização.Dessaforma,oqueijoevoluiuaté

oqueconhecemoshoje,tornando-seumprodutodeconsumo,comapreciadores espalhados pelos quatro cantos do mundo, existindo

centenasdetiposdequeijosconhecidosefabricados.Emalgunspaíses,sobretudoeuropeus, os queijos artesanais conquistaramposiçãodedestaquenagastronomiamundial.

Minas Gerais é reconhecidamente o mais tradicional produtor

dequeijosdoBrasil,merecendodestaqueoQueijoMinasArtesanal

(QMA),porserumprodutosecular.Nessesentidoéconsideradoum

QMA, aquele queijo produzido na propriedade agrícola a partir de

leite cru, integral e recém ordenhado de vacas, utilizando para sua

coagulaçãoocoalhoeolactofermentonatural,alémdaprensagem

realizadade formamanual.Deveapresentar consistênciafirme, cor

e sabor próprios, isento de corantes e conservantes, com ou sem

olhadurasmecânicas,feitoconformeatradiçãohistóricaeculturalda

regiãoondeéproduzido.Umadessascaracterísticasqueécomuma

todasasregiõeséautilizaçãodo“pingo”.Estelactofermentonatural

éresultantedadessoragemdosqueijosjásalgadosecoletadodeum

diaparaooutroequeconfereaoqueijocaracterísticasfísico-químicas

típicasdesuavariedade.

Essa produção artesanal de queijos exerce um importante papel

social eeconômicoparaoestadodeMinasGerais,por conseguinte

paraoBrasil,porquantoessaatividademantémnaagriculturafamiliar

cercade30milfamíliasdepequenosprodutores(EMATER-MG,2002).

Ainda que se destaque as tradicionais regiões queijeiras de Araxá,

Campo das Vertentes, Canastra, Cerrado e Serro, conforme figura

2, inclusive contempladas em legislação específica, o Estado temsuaproduçãodequeijosespalhadaporcercadedois terçosdos853municípiosmineiros.Essapulverizaçãoterritorialevidencia-secomoumadasjustificativasparaqueaproduçãodequeijossejaincentivada,sob pena de um desastre para a agricultura familiar, com gravesconsequênciasnarendademilharesdefamílias.

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Alémdessevalorsocialeeconômico,ressalte-seovalorculturaldeprodutosecular,cujaproduçãoteveinícionoprincípiodoséculoXVIII.

Ouseja,umvaloridentitárioeculturalhistoricamenteproduzidopelas

relaçõesdosgrupossociais.Talfatovemaserconfirmado,emprincípio,

pelograndemovimentodequeijos,noséculoXIX,tendosidodescrito

pelos viajantes que percorreram o sertão mineiro. Ademais haviaindicaçõesdequeaquelesqueijoseramoriundosdasvilasdosudoestemineiro,provavelmentecomentrepostoemSãoJoãoDelRei.Quanto

aosqueijosdoSerro,semmenortradição,não é comum sua referência nos escritosdos viajantes. Entretanto, não há dúvidaquanto à sua produção naquela região,tambémcominícionoSetecentos.Pioneiramente o Instituto Estadual do

PatrimônioHistóricoeArtísticodoEstado

de Minas Gerais (IEPHA-MG) resolveu

registrar o processo de fabricação do

Queijo Minas Artesanal (QMA) como

patrimônio imaterial do Estado de Minas

Gerais. Mais tarde, também o Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (IPHAN) procedeu ao mesmo

tombamento.Taisações são importantes,

poisresgatamaimportânciadesteproduto,

salientando seu valor cultural, social e

ainda valoriza o potencial econômico do

patrimônio preservado, incentivando odesenvolvimento e fortalecimento dessaatividade secular de agricultura familiar.

Figura2:MapadasTradicionaisRegiõesQueijeirasdeMinasGerais.Fonte:Netto(2011).

Tantaimportânciarequeratenção,assimogovernomineiroeditouaLei14.185de31dejaneirode2002,regulamentadapeloDecreto42.645de05dejunhode2002erecentementealteradapelaLei19.492de13dejaneirode2011,ondeexplicitaoqueéoQueijoMinasArtesanal,suadistribuiçãogeográfica, seumétododeproduçãoeapontasoluções

paraasquestõessanitáriasedesegurançaalimentar.Assim,combase

aindanalegislaçãoanterior,foramdescritascincotradicionaisregiões

que possuemparticularidades naturais, socioculturais e econômicas

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emcomum,comoadeAraxá,CampodasVertentes,Canastra,CerradoeSerro.Oqueijoestáenraizadonaculturamineira.Écomose fosseuma

paixão pelo queijo nosso de cada dia, sempre presente de variadasmaneiras, seja seu consumo em gordas fatias, ou acompanhandodoces pastosos, moídos ou pedaços em calda dos mais variadosingredientes como o leite, a goiaba, o mamão, a cidra, o limão, aabóbora,alaranjadaterra,abanana,issoparacitarsomenteosmais

conhecidos, conformefigura3.Alémdoprosaicoacompanhamento

aumbomcafé,oqueijotambémserveaumenormelivrodereceitas

queocontemplamcomoingredientenobredepães,bolosetortas.O

queijoaindasetransformaemdeliciososacepipesqueacompanham

umaboabebida,aogostodecadaum.Sófaltamesmoacriaçãodo

“DiaMineirodoQueijo”,tamanhoéoseusignificadocomosímbolo

datradiçãomineira.Dessaformaoqueijotornou-sefatordominante

edereconhecimentodeumaregiãooudeumasociedade,porsisóumacultura.

Entre os queijos artesanais do Mercado Central

OMercadoCentral de BeloHorizonte caracteriza-se pela grande

diversidadedeprodutosqueoferece,alémdosserviçosdealimentação

que também se tornaram referência no dia a dia belorizontino.

Contudo,determinadoproduto fogeao lugarcomumeocupa lugar

dedestaquenaquelecentrodecompras,conformeafigura4:oQueijo

MinasArtesanal.OQMA,sejaqualdenominaçãorecebapelovendedor

ouconsumidor(Araxá,Canastra,Salitre,Serro),semanaapóssemana

éadquiridoparasuprirsuadespensa,sejaparaodesjejum,olanche,a

culinária,otira-gostooucomomelhoraprouveraodegustador.

Netto(2003)identificouque,demodogeral,ousuáriodoMercadoCentralgeneralizaa identidadegeográficadoQMA,simplificando-acomo proveniente daCanastra ou doSerro e não exatamente pelasuarealorigemgeográfica,aindaqueutilizedeoutrasdenominações

deorigemdoqueijo.Todavia,prevalecenoprocessodeaquisiçãodo

produtoumalógicaquelevaemconsideraçãofatoresobjetivos,como

qualidade, preço e oferta.Contudo, no caso dos queijos artesanais,

constata-se uma preocupação com relação à variedade domesmo,

poisopaladareatexturaressaltamessarepresentatividaderegional

de Minas Gerais. Há, ainda, uma multiplicidade de referências aosqueijosprovenientesdoSudoestedeMinas,sendoelesreconhecidoscomo:“AltoParanaíba”,“Araxá”,“Canastra”,“Cerrado”,“SãoRoque”

Figura3:VitrinecomvariedadededocesnoMercadoCentraldeBeloHorizonte.Fonte:Netto(2011).

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e “Serra do Salitre”, que no final das contas fica sintetizado comoqueijo Canastra. De outro lado, aqueles com origem no NordestedeMinas seriam designados como “Serro”. NoMercadoCentral deBelo Horizonte, das 29 queijarias, apenas uma não comercializa osqueijosartesanaisfabricadosapartirdoleitecru,sendoque,dasduasvariedades(CanastraeSerro),oqueijomaisprocuradoéoCanastra.EvidentementeaáreadeproduçãodaCanastrasuperaem6,8vezesadoSerro.OsqueijeirosapontamqueoqueijodotipoSerroéumpoucomaisácidoemuitoprocuradoparaatividadesculinárias,enquantootipoCanastraatendeaumaclientelamaisdiversaeservebematodooconsumo.TodooqueijoartesanalvendidonoMercadoCentralédirecionado

apenas ao consumo direto, não constituindo um setor atacadista.

SegundoNetto (2009), a quantidade comercializada semanalmentealcançacercade18toneladas,porocasiãodapesquisaem2006,emborajáseconstate,pormeiodeconversasinformaiscomosqueijeirosdoMercado, que esta cifra possa passar dos 25.000 quilogramas porsemana.Notável,portanto,amovimentaçãoquesefazemtornodeumproduto, somenteparaabastecimentodoméstico localizadoemapenasumcentrodecompras,aindaquedistribuídoemtrêsdezenasdeestabelecimentos.Alémdisso,apesquisadeNetto(2009)revelou,também, que nenhum outro produto supera o queijo artesanal emvolumedevendas.NasequênciaapareceoqueijodotipoMussarela,seguidodoProvoloneeemseguidaoParmesão,numalistadepelomenos 12 outros tipos de queijos comercializados nas queijarias doMercadoCentral.

Oqueijoévaliosoporserdefáciltransporte,terlongadurabilidade

e alto teor de gordura, proteína, cálcio e fósforo, portanto um

alimento praticamente completo, ou um excelente complemento

alimentar.Mas,acimadetudo,oprazerdecomer,debemdegustar

um bom alimento, pode também ser expresso como ummomento

de felicidade. Segundo Oliveira (2011) este seria o momento da

sobremesa.Atualmente,nãocontaapenasoprazerdecomer;cada

vez mais o interessante é também conhecer. Esse conhecimento

refere-se à origem do alimento e seu processo produtivo. Há um

interesse relativamente novo em se experimentar novos e resgatar

saboresantigos.Acuriosidadeteimaemaguçaredespertarparauma

fase cultural, que eventualmente possa ser ummodismo,mas tem

sereveladoduradoura,comgrandereflexonavalorizaçãodocaráter

gastronômico e cultural do queijo. ParaNascimento (2007, p. 196),

serumgourmetsignifica,alémdeconsumidoravisadoeinteressado

emtudoquecomeebebe,serumapessoaqueaprendeuadegustar

Figura4:VitrinecomvariedadedequeijosartesanaisdaCanastraedoSerro,noMercadoCentraldeBeloHorizonte.Fonte:Netto(2007).

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prazerosamente os alimentos, sabendo avaliá-los segundo critériosquenãoadvêmexclusivamentedasocialização.O consumo de queijos também está intimamente ligado aos

hábitosdosdiversosgrupossociais,etaiscostumessãoconstruídosdesdetenraidade.SegundoEngelmann&Holler(2008,p.71),oquegostamosdecomerquandomaiorjásedecidenosprimeirosanosdevida. É possível então que, para conseguir que osmenores comamqueijo,naavaliaçãodosautores,ospais jádeveriam“praticar”comelesdesdepequenos.Nascimento(2007,p.48)afirmaque,comoumadas formas de condicionamento reflexo, o pala¬dar, assim como oolfato,temopoderdetrazerdevoltaàmemóriasituaçõesjávividas.Assim,oprazerde comerencheolhos eboca, os cheiros e saboresconduzemaopassado,alugaresconhecidosounão,poisasensaçãode reviver momentos pode ser provocada por lembranças. Brillat-Savarin(1995,p.50)afirmaquecomeréoprazersuperiordohomem,poiséoúnicoquepermanecequandotodososoutrosforamembora.Segundo o autor, o prazer damesa pode nos preparar para outrosprazeresetambémnosconsolaroucompensarperdas.Nascimento(2007,p.191)acrescentaqueentreosprazeresperseguidospeloserhumanoparalidarcomomal-estardaexistência,oprazerdecomeréumdosquetemsereveladocomoumdosmaisvalorizadosnaépocacontemporânea.Umamantedoqueijo,um“queijófilo”,sabevalorizaraqualidadede

umqueijocomseuscincosentidos:visão,olfato,ouvido,tatoegosto.Nascimento(2007,p.45)acrescentaqueosórgãosdossentidosforamosmeiosprimevosdeapreensãodomundo,poiscertamenteprimeirocheiramos, provamos, tocamos os objetos ao redor e, só depois,passamosanoscontentaremolhá-los,emdeixaraosolhosocuidadodefornecertodasasinformaçõesquedelesesperáva¬mos.Ademais,segundo a autora, já se admite que a arte culinária não está ligada

ape¬nasaopaladar,masprovocaoscincosentidos,umaexperiênciasensorial total.Alémdossabores,con¬sistências, texturaseodores,aautoraenunciacomofundamentaisocenário,ossons,ascores,aluz,asalfaias,otilintardoscristaise,evidentemente,ainteraçãoentreosconvivas.MasBrillat-Savarin(1995,p.39)argumentaqueogosto,maisprudente,maiscomedido,nãomenosativo,alcançouomesmoobjetivocomcertalentidãoquelheasseguraaduraçãodeseusucesso.Parasedeterminaraqualidadedeumqueijo,osprincipaissentidos

continuamsendooolfatoeopaladar.Pormeiodoaromaedosaboréquesevaidistinguirumbomqueijodosdemais.SegundoEngelmann&Holler(2008,p.74),noqueijo,oaromasediferenciaentreagradável,claro,fresco,doceeácido.Pormuitodistintosquesejamosaromasdosqueijos,oaromadoleiteutilizadosempredevesernotável,poiscadatipodeleite,sejadevaca,deovelhaoudecabra,temseupróprioodor. Para Brillat-Savarin (1995, p. 46), nada se come sem que setenhaumaconsciênciamaioroumenordeseucheiro.Namelhordashipóteses,oolfatoéumasentinelaavançadaapropósitodogosto.O autor reconhecia estar convencido de que sema participação doolfato,nãohádegustaçãocompleta.Portanto,essaassociaçãoentreocheiroeosaboréfatorprimordialnaidentificaçãodeumqueijocomqualidade.

Entre os sabores do Mercado Central

Na perspectiva demelhor entender essa diversidade de sabores,apontandoparaavalorizaçãodaculinárialocalouregionalfoirealizadauma entrevista informal com dois chefes de cozinha do MercadoCentral. Oliveira (2011) afirma que o homem aprendeu a cozinharseusalimentos.Entãoépropíciocompreenderqueaculináriapassoua representar um simbolismo, oumelhor, passou a identificar uma

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característicadeumgruposocial.Montanari(2008,p.135)acrescentaque os pratos locais, ligados aos produtos locais, evidentemente,estariam ligados aos recursos do lugar. Dessa forma é presumívelqueavalorizaçãodeumaculinárialocalconstituiriaumaestratégicaafirmaçãodaidentidadedogrupo,quecomissosemantémhistóricaeeconomicamenteinseridonumcontextocultural.Daí saber com os dois chefes de cozinha qual a relação que

estabelecementreaelaboraçãodeseuspratoseadisponibilidadedosprodutosnecessáriosdentrodoMercadoCentral.Oumelhor,dequeformaelaboramseuspratosemfunçãodosprodutosencontradosnoMercadoCentral,bemcomoseutilizamoujáutilizaramoQMAparapreparação de seus pratos, alémdos temperos que utilizam. Entãoserá possível conhecer quais são esses ingredientes e identificar aorigem desses produtos, estabelecendo seu caráter geográfico.Ou“o comer geográfico”, na acepçãodeMontanari (2008, p. 135), queconsidera conhecer ou exprimir uma cultura de território pormeiodeumacozinha,dosprodutosedasreceitas,sobaformadehábitosalimentares.Nessa perspectiva, a primeira entrevistada, a chefe ElisaCristina

Fonseca, proprietária de um bar (também chamado boteco),denominado Bar da Lora, que tradicionalmente serve porções decarnescomalgumacompanhamentoaosclientesquesemantémempé,apoiadosnobalcão,ouempoucosbancosdispostosaolongodomesmo.SegundoodepoimentodeElisa,tradicionalmentesãoservidasporções,comoofígadocomjilóecebola,opernilacebolado,opernilfeijoada,opernilcomjilóecebolaeochouriço,ereforçadizendoque:“FoiaBHenãocomeuofígadocomjiló,entãonãofoiaoMercadoCentral”.Recentemente,oBardaLorafoiovencedordotradicionalconcursodeComidadeButeco2010,notabilizandoaindamaisoseubaremmeioaoscongêneres.

Nessecontextoencaixa-seperfeitamenteosentidodestetrabalho,jáqueoconcurso“ComidadeButeco2011”exigequesejamutilizadosingredientesregionais,doNortedeMinas,napreparaçãodospratos.Aorganizaçãodoconcursoofereceuuma listadeonze ingredientese,comovencedoradoconcursopassado,Elisaestáautomaticamenteincluídanocertamedesteano.Então,segundoseudepoimento, iráutilizarseisingredientesdalistaoferecida,sendoeles:acarnedesol,a mandioca, a manteiga de garrafa, polpa de seriguela, rapadura,requeijãodonorteeóleodepequi,napreparaçãodoprato,nomeado“NÃOACREDITO”,comcarnedesol,linguiçadefumada,mandiocanamanteigadegarrafa,requeijãodoNorte,acompanhadosdemolhodeseriguela,melaçoderapaduraefarinhadepequi,conformefigura5.Paranãofugiràtradiçãodeumacomidabempicante,Elisasalientaque ainda utilizará um bom molho de pimentas malagueta, alho,cachaçaeazeitededendê,empregandotambémapimentabiquinhonadecoraçãodoprato.ConvémdestacarqueaculináriadonortedeMinas tem forte tradição em Belo Horizonte, provavelmente pelamigraçãodepessoasdaquelepedaçodeMinasGeraisparaacapital.Comissotrouxeramtambémseucostumealimentar,disseminando-oemboapartedoterritóriomineiro.Perguntada,então,sobreaorigemdessesprodutos,Elisainformou

que praticamente os adquire todos no Mercado Central. Em suaspalavras: “Está tudo pertinho, é só telefonar e o que precisa chegarápido”.Daíafacilidadedousodetemperosfrescosnaelaboraçãodeseuspratos,alémdostemperosdesidratadosfacilmenteencontradosnasinúmerasbancasdomercado.ElisatambémrevelouquejáutilizouoQueijoMinasArtesanalemsuaculinária,salientandoapreparaçãode purê de batatas, commuito queijoCanastra.Ou seja, não só sedesenhaumageografiaregionaldosabornapreparaçãodeseuspratos,comprodutosdeorigemreconhecida,mastambémseevidenciauma

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geografiadepercurso,emescalareduzida,oumelhor,ageografiadopróprioMercadoCentral.O segundo chefe é Ilmar Antônio de Jesus, proprietário do

restauranteCasaCheia,característicoporservirrefeiçõesepetiscos.Aocontráriodoprimeiro,esterestaurantepossuiumespaçoamplo,commesasecadeirasemaiorenvolvimentocomumagastronomiamaiselaborada,inclusivejátendosidopremiadotambémnofamosoFestival Comida de Buteco. Ilmar revelou que em geral usa váriosingredientestipicamentemineiroscomo:oorapronobis,acostelinhade porco, o queijo minas, a couve e a taioba, dentre outros. Estaúltima,umahortaliçadaépocadaságuas foi componentedoprato“COSTELADEADÃO”,comcostelinhadeporco,mandiocacozidaetaioba,quandocuriosamentepercebeuquemuitagentenãoconheciaataioba.

ParaIlmar,cadaingredientetemseusegredo,suamaneiradeser

feito, comooorapronobis, tambémumahortaliça, oumelhor, uma

pequenafolhaencontradaemarbustoespinhento,queéutilizadano

preparodediversospratos.Ilmarargumentaquemuitagentefalado

orapronobis,masnãosabecomofazer,poisele“baba”muito,sendo

queosegredoélavarafolhaesecarcadauma.Nocostumepopular,o

orapronobistambéméconhecidocomoacarnedospobres,dadoseu

altovalorproteico.

Entre os ingredientes que normalmente utiliza estão a carne de

porco,asverdurasea linguiçadotipocaseira. Ilmarsalientaqueas

melhores são as de Santa Luzia, Formiga e a Bete, de Paraopeba.

NãosedeveolvidarqueohábitodecomercarnedeporcoemMinas

Gerais vemdoperíodo colonial, quando a carnebovina era escassa

edepreçoelevado.Jáacarnedesol,normalmentevemdeMontes

Claros,mastemtambémadeFreiInocêncio.Nopreparodospratos,

Ilmardizquegostadecozinharcommuitaservas,usaomanjericão

fresco,otomilhoeoalecrim.Ascarnes,notadamentedeporco,levam

o alecrim.Omanjericão também é utilizado no creme de abóbora,

quando a cozinha, na forma de um bouquet garni, no preparo do

prato “ALMONDEGAS EXÓTICAS”, feito com carne de sol, queijo

Minaseabóbora,conformefigura6,equefoicampeãonofestivalde

“ComidadeButecode2008”.ParaIlmarépossíveladquirirtodosesses

ingredientesnomercado.Emsuaspalavras,umautênticojustintime,

poistemosprodutosemmãosnoprópriolocaldoestabelecimento.

Assim,nãomantémestoquedecarnes,verduras,queijosoutemperos.

SomenteoscereaisadquirenaCEASA.Nomercadotemoprivilégio

dereceberdofornecedortudooqueprecisa,sendoqueascarnesjá

vêmpreparadasemcortes.Figura5:Prato“NãoAcredito”doBardaLora,noMercadoCentraldeBeloHorizonteFonte:Netto(2011).

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Indagado a respeito do queijo artesanal, Ilmar foi enfático aoafirmarquenormalmenteutilizaoQMAemsuaculinária.Inclusiveemseuprato“MINEIRINHOVALENTE”,quefoipremiadonoconcursode2005doFestivalComidadeButeco,emBH.Vemaserumacanjiquinha,produtotipicamentemineiro,comqueijoCanastra,lombodefumado,linguiça caseira, espinafre e o creme de espinafre, conforme figura7.Ochefesalienta,ainda,queopratoficou“bacana”e tambémfoipremiado no “31º Festival Internacional de Hotelaria, GastronomiaeTurismo deMadri”, na Espanha. Ilmar destaca que sempre buscaconhecimentoeinspiraçãonointeriordeMinas.RecentementefoiaAlpinópolis/MGparaverumasenhorafazerumacanjiquinhaespecial.Elacozinhaacanjiquinhacomleite,duranteumbomtempojuntaostemperoseparafinalizaradicionabastantequeijo,deixandooprato

bem cremoso. Ilmar salienta: “Tem de ser consumido na hora, nãodápráguardar”.Segundoochefe, “ficasensacional”.Acanjiquinha,uma comida tipicamente do interior e tradicionalmente feita comcostelinha de porco e couve, recebeu sofisticação, entretanto nãodeixoudetocaramemóriadopaladarinteriorano.Ilmarafirmouconhecerquase todososmercadosdoBrasil enão

conheceumquetenhatodaessavariedadedeprodutosencontradosnoMercadoCentraldeBH,alémdisso,temostemperos,tudoquesepossaprecisaremboaculinária.Nessecampomágicodostemperos,IlmardestacaousodapimentaDedodeMoça,alémdaMalagueta,queébásica,etambémumelevadoconsumodapimentaBiquinho,que serve como tira gosto. Ilmar considera a culinária mineira degranderiqueza,masgostadaexperiênciadejuntarsaboresregionais.

Figura6:Prato“AlmôndegasExóticas”,doRestauranteCasaCheia,noMercadoCentraldeBeloHorizonte.Fonte:Netto(2011).

Figura7:Prato“MineirinhoValente”,doRestauranteCasaCheia,noMercadoCentraldeBeloHorizonte.Fonte:Netto(2011).

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Por isso,trouxedonortedopaísoTucupieofezcomcostelinhadeporcoeorapronobis,umaboacombinaçãodecozinharegional,ousepreferir,umafusãodesabores.Na mesma perspectiva de perscrutar os sabores que movem o

MercadoCentral,nadamaismarcantedoqueconhecerofascinantemundode formasdiversase cores vibrantesdoamarelo, vermelho,verde, laranjaevioletadaspimentas,cujoelementodeardênciaéacapsaicinaencontradaemsuasmembranas,veiosesementes,aqual

émedidadesde1912,pelaEscaladeScoville.Assim,foirealizadauma

entrevistacomAntônioCarlosBatista,oToninho,daCasadePimentas

doProfeta.Toninhoéherdeirodopai,queéconhecidocomooProfeta

das Pimentas, um grande entendido desse mundo de ardência.

Toninhoafirmouque tementreseusclientesprincipaisosdonosde

restaurantesdoprópriomercado,sendoquecomercializacommaior

volume,naordem,aspimentasBiquinho,MalaguetaeDedodeMoça,

conformefigura8.SendoqueapimentaBiquinhonãotemqualquer

ardor,apenasumasensaçãopicante.Arespeitodapimentamalagueta,

Freedman(2009,p.59)afirmaqueéumexemplodaplantaaromática

cultivadanapré-história,tendosidodomesticadajuntocomomilhoe

aabóbora,naAméricaCentral,eerausadanaculinária.

Alémdessasespéciesmaiscomuns,existe tambémumapimenta

comoaBhutJolokia,deorigemindianaeconsideradaamaisardida

de todas. Já as pimentas Malagueta e Dedo de Moça são sucesso

absoluto,emmeioagrandevariedadedepimentascomoadeBode,

de Cheiro, Cumari, Japaleno, Tabasco, Cheiro do Norte, Rocoto,

Caiena,Habanero,dentreoutras,alémdafamosapimentadoReino.

Indagado sobre a procedênciadessas pimentas,Toninho respondeu

que a maioria vem do norte de Minas, nas redondezas de MontesClaros,mastambémaregiãometropolitanaproduzboapartedessas

pimentas,emboraaorigemsejadefora,aexemplodaButhJolokia,plantadaemMinas.Não há dúvida de que a culinária torna-se marcante e mais

saborosacomautilizaçãodepimentas, independentede seuardor.Entretanto, a pimenta também pode ser multifuncional, pois aomesmotempoemquerealçaosabor,tambémpodetornarpalatávelumalimentosemumbompreparo.Assim,apimentafazmaisdoqueconferirsaboraosalimentos,aspimentaspassaramafazerpartedocotidiano e da identidade culinária de cada sociedade ao redor domundo, caracterizandomaneiras de uso e tradições gastronômicase provavelmente outros usos, como medicamentos, por exemplo.Inclusive, há quem diga que comer pimenta é uma boa dieta para

Figura8:Bandejascomvariedadesdepimentas,naBancadoProfetadasPimentas,doMercadoCentraldeBeloHorizonte.Fonte:Netto(2011).

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emagrecimento. A propósito desse universo, é de pertinência oensinamentodeBrillat-Savarin (1995,p.47)dequeogostopropiciasentimentos de três ordens diferentes, a saber: a sensação direta,a sensação completa e a sensação refletida. Ou seja, enquanto oprimeirosaboréodominante,asensaçãodiretaeprimeiraimpressão.Osegundoépercebidoumpoucodepois,quandoosdoisseexaltamreciprocamente. Enfim, o terceiro sabor emerge na experiência deprovarjuntos,umacomidainesquecível,quesejasimplesecaseiraourefinadaeexótica.Éasensaçãorefletida,ojulgamentofeitopelaalmasobreasimpressõesqueoórgãolhetransmite.

Considerações finais

Na perspectiva de um trabalho que envolve tradição, cultura esabores,nãohaveriadúvidaemapontaroMercadoCentraldeBeloHorizonte como uma referência apropriada para uma abordagemdessanatureza.Suaposiçãocentrallheconfereumpapelarticuladoreorganizadordeatividadescomerciais tornando-oelementochave,para que ali se reproduzam as relações sociais de que a dimensãocultural não pode prescindir. Este trabalho busca esse intento, aoassociar um dos locais mais tradicionais de Belo Horizonte, quiçáde MinasGerais, com um reconhecido produto como o queijo e asaborosaculináriamineiraesuaspeculiaridadesregionais.Ouseja,umconjuntodefatoresqueincluemtradição,valores,atitudesesaberes,quepermeiamocotidianoculturaldeumasociedade,quebuscanomelhordesuamemóriaasatisfaçãoalimentar.Assim, numa breve descrição de algumas características do

Mercado Central são destacados aspectos relevantes acerca dessaoficina de satisfação que é a culinária mineira e seus pratos quepermeiam a história e o imaginário de uma sociedade que procura

preservar determinadas tradições e encontra naquele espaço oambiente propício para o encontro, a prosa e a degustação, dentretantas outras oportunidadesmemoriais queomercadooferece.Oumelhor,aliosujeitoalémderevigorarasforçaspelaaçãodecomer,tambémexercitadeliciosamenteossentidosdoolfatoepaladar,nabuscadoprazeredaalegriadebemsealimentar.OMercadoCentralpermiteaousuárioumapeculiargeograficidade,porquantoépossívelpercorrerdiversasregiõesdeMinasGeraisnumsóespaçoorganizado.Ali se encontram produtos consagrados regionalmente, oumesmoespecíficosdedeterminadascidadesmineiras,comoopasteldeangucomrecheiodeumbigodebananeira,deItabirito/MG.Noentanto,nãohádúvidadequeoqueijosejaoprodutoquemais

chama a atenção ao frequentador doMercadoCentral.No caso doQueijoMinasArtesanalexisteumaorigemgeográficaqueocaracterizaequemoveapreferênciadeseuconsumidor,porumqueijomaissuaveouumpoucomaisácido,ouentãoquesejaumqueijomaisfrescooumaturado. Tais características irão indicar a região de procedênciadosqueijos, incluindoaítodaumatradiçãoqueseperpetuaportrêsséculos. Entretanto, o queijo não é simplesmente uma paisagem esomentepormeiodopaladaredemaissentidosassociadoséquesealcançarão suaspropriedadesorganolépticas. Então, naperspectivade que o mundo é apreendido por meio dos sentidos e de formasingular, o sabor tambémevoca essa individualidade e aponta paraumadimensãode identidade cultural e fatordeuniãoentregrupossociais.

Agradecimentos

Agradecimentos a Antônio Carlos Bastos, Elisa Cristina Fonsecae IlmarAntônio de Jesus, que gentilmente atenderam à entrevistarealizadanomêsdeMaiode2011.

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SubmetidoemNovembrode2011.RevisadoemJaneirode2012.AceitoemJaneirode2012.