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5/26/2018 RabossiComoPensamosaTrpliceFronteira-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/rabossi-como-pensamos-a-triplice-fronteira 1/23 1 Publicado em RABOSSI, F. Como pensamos a Tríplice Fronteira? In: Lorenzo Macagno, Silvia Montenegro e Verónica Giménez Belivau (orgs.)  A Tríplice Fronteira: espaços nacionais e dinâmicas locais. Curitiba : Editora UFPR, 2011, p. 39-61. Como pensamos a Tríplice Fronteira?  1  Fernando Rabossi - IFCS/UFRJ São vários os lugares do mundo em que três limites internacionais se encontram. O local  preciso do encontro é chamado ponto de trijunção na linguagem dos especialistas em fronteiras – demarcadores, administradores e pesquisadores (  punto trifinio ou  punto tripartito na linguagem técnico-diplomática que se expressa em espanhol). Assim como as fronteiras, estes pontos também são assinalados com marcos construídos pelo homem e, nos locais onde os acidentes geográficos o permitem, os próprios lugares transformam-se em marco de tijunção: o Cerro Zapaleri entre Argentina, Chile e Bolívia ou o Monte Roraima, entre Venezuela, Guiana e Brasil. 2  Os espaços onde tais pontos estão localizados são nomeados de formas diversas. Região ou área de três fronteiras ou tríplice fronteira são as mais comuns. Em geral, a utilização destes termos está associada à presença de população; do contrário, esses espaços só adquirem significado como pontos cartográficos singulares. Em outras palavras, sua transformação em espaços considerados como regiões depende de sua ocupação. No caso da América Latina, a presença de população nestes lugares é decorrente da própria existência dos limites internacionais: é por sua causa que cidades são fundadas, geralmente dentro de um contexto mais amplo de ocupações e conexões. Ainda que existam localidades relativamente antigas, a ocupação dos três lados − que está por trás da 1  Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Painel “La Triple Frontera: Diversidades, flujos y conflictos en la construcción social de un espacio de fronteras”, organizado por Lorenzo Macagno e Paulo Hilu da Rocha Pinto, no IX Congreso Argentino de Antropología Social, realizado de 5 a 8 de agosto de 2008, em Posadas. Alguns dados e ideias foram apresentados em outras ocasiões, especialmente em Rabossi, 2004. Algumas reflexões incorporadas a esta versão emergiram do diálogo com os colegas que participaram do Seminário “Investigando desde la ‘Triple Frontera’: Temas y perspectivas”, coordenado por Verónica Giménez Belivau e Silvia Montenegro, de 4 a 6 de março de 2009, em Buenos Aires. Elementos apresentados neste artigo foram desenvolvidos em outros trabalhos, especialmente em Rabossi, 2008. 2  O que não significa que o pico destes montes seja “naturalmente” reconhecido como marco de trijunção. O Cerro Zapaleri, por exemplo, tem dois picos de altura exatamente igual, sendo um deles o ponto de trijunção. O Monte Roraima é um elevado cujo cume é um platô de 90 km 2  no qual se encontra o marco de trijunção.

Rabossi Como Pensamos a Tríplice Fronteira

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    Publicado em RABOSSI, F. Como pensamos a Trplice Fronteira? In: Lorenzo Macagno, Silvia Montenegro e Vernica Gimnez Belivau (orgs.) A Trplice Fronteira: espaos nacionais e dinmicas locais. Curitiba : Editora UFPR, 2011, p. 39-61.

    Como pensamos a Trplice Fronteira? 1

    Fernando Rabossi - IFCS/UFRJ

    So vrios os lugares do mundo em que trs limites internacionais se encontram. O local

    preciso do encontro chamado ponto de trijuno na linguagem dos especialistas em

    fronteiras demarcadores, administradores e pesquisadores (punto trifinio ou punto

    tripartito na linguagem tcnico-diplomtica que se expressa em espanhol). Assim como as

    fronteiras, estes pontos tambm so assinalados com marcos construdos pelo homem e,

    nos locais onde os acidentes geogrficos o permitem, os prprios lugares transformam-se

    em marco de tijuno: o Cerro Zapaleri entre Argentina, Chile e Bolvia ou o Monte

    Roraima, entre Venezuela, Guiana e Brasil.2

    Os espaos onde tais pontos esto localizados so nomeados de formas diversas.

    Regio ou rea de trs fronteiras ou trplice fronteira so as mais comuns. Em geral, a

    utilizao destes termos est associada presena de populao; do contrrio, esses espaos

    s adquirem significado como pontos cartogrficos singulares. Em outras palavras, sua

    transformao em espaos considerados como regies depende de sua ocupao. No caso

    da Amrica Latina, a presena de populao nestes lugares decorrente da prpria

    existncia dos limites internacionais: por sua causa que cidades so fundadas, geralmente

    dentro de um contexto mais amplo de ocupaes e conexes. Ainda que existam

    localidades relativamente antigas, a ocupao dos trs lados que est por trs da

    1 Uma primeira verso deste trabalho foi apresentada no Painel La Triple Frontera: Diversidades, flujos y conflictos en la construccin social de un espacio de fronteras, organizado por Lorenzo Macagno e Paulo Hilu da Rocha Pinto, no IX Congreso Argentino de Antropologa Social, realizado de 5 a 8 de agosto de 2008, em Posadas. Alguns dados e ideias foram apresentados em outras ocasies, especialmente em Rabossi, 2004. Algumas reflexes incorporadas a esta verso emergiram do dilogo com os colegas que participaram do Seminrio Investigando desde la Triple Frontera: Temas y perspectivas, coordenado por Vernica Gimnez Belivau e Silvia Montenegro, de 4 a 6 de maro de 2009, em Buenos Aires. Elementos apresentados neste artigo foram desenvolvidos em outros trabalhos, especialmente em Rabossi, 2008. 2 O que no significa que o pico destes montes seja naturalmente reconhecido como marco de trijuno. O Cerro Zapaleri, por exemplo, tem dois picos de altura exatamente igual, sendo um deles o ponto de trijuno. O Monte Roraima um elevado cujo cume um plat de 90 km2 no qual se encontra o marco de trijuno.

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    utilizao das categorias que designam tais espaos como regio , em todos os casos,

    relativamente recente.3

    De todas as trplices fronteiras da Amrica Latina, aquela abordada nesse livro a

    que tem as maiores cidades e articuladas mais precocemente comeando em finais da

    dcada de 50 com a fundao da ltima cidade que comps a ocupao dos trs lados,

    Puerto Presidente Stroessner (mais tarde, Ciudad del Este). Em vrias publicaes da

    regio, possvel observar de que modo pessoas distintas comeam a se referir quele

    espao como algo que pode ser englobado em um conceito. A forma mais comum trplice

    fronteira (ou triple frontera em espanhol), embora no sejam poucas as menes rea

    das trs fronteiras.

    A utilizao desta primeira frmula como substantivo prprio para nomear aquela

    trplice fronteira especfica ocorre paulatinamente aps o atentado Asociacin de

    Mutuales Israelitas Argentinas, em 1994.4 De modo distinto as outras formas de

    denominao em minscula, a categoria Trplice Fronteira proposta e imposta por atores

    externos regio, estando associada determinada forma de conceber a rea, caracterizada

    pela falta de controle do movimento atravs dos limites internacionais que favoreceu o

    desenvolvimento de uma ampla gama de atividades ilcitas. Ao pressupor a existncia de

    uma rea particular caracterizada de determinada maneira, esta forma de denominao

    participa da criao desta rea, possibilitando a emergncia de um lugar (a partir de ento,

    com um nome prprio que o identifica), ali onde esto em contato mais de trs cidades,

    3 Os povoados mais antigos localizados em reas onde os limites internacionais de trs pases se encontram so o povoado de So Francisco Xavier de Tabatinga (Brasil), que data de finais do sculo XVIII; o porto de San Antonio (Peru), fundado em 1867, renomeado como Leticia, pouco tempo depois, e Paso de Higos, fundada em 1829, primeira fundao do que mais tarde seria Monte Caseros (Argentina). 4 No Acuerdo de los Ministros del Interior de la Repblica Argentina, de la Repblica del Paraguay y de Justicia de la Repblica Federativa del Brasil, assinado em Buenos Aires, em maro de 1996, possvel observar a convivncia dos substantivos comum e prprio, refletindo um processo de nominao ainda em construo. Assim, o documento parte do interesse de acordar medidas comuns, na zona da trplice fronteira, que une os pases participantes nas Cidades de Puerto Iguaz, Foz de Iguau e Ciudad del Este, estabelecendo, ao final do documento, uma srie de medidas para o controle de veculos e pessoas a ser aplicada na Zona da Trplice Fronteira. Em janeiro de 1998, com a assinatura do Plan de Seguridad para la Triple Frontera o qual estabelece a criao de uma srie de comisses e aes especficas a ser implementadas na rea esse processo de nominao j estava consolidado.

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    inseridas em tramas polticas, culturais, econmicas e demogrficas interligadas, mas

    diferentes.5

    Historicizar e desconstruir a categoria Trplice Fronteira o ponto de partida

    necessrio de uma investigao sobre a rea que pretenda basear-se em outros pressupostos

    que aqueles estruturantes de tais retratos.6 Para aqueles que comigo compartilham esta

    perspectiva, a pergunta que formularia seria a seguinte: com base em que pressupostos

    estamos pensando nossas pesquisas? O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre

    esses pressupostos, a partir de algumas observaes e situaes registradas durante minha

    pesquisa.7

    Se tivesse que fazer uma descrio geral da regio que constitusse um mnimo

    denominador comum presente nos trabalhos acadmicos e nas matrias da imprensa, diria

    que a mesma uma regio interconectada, caracterizada pela diversidade cultural

    decorrente da presena de pessoas com origens distintas, articulada transnacionalmente e

    movida por uma economia comercial baseada em fluxos de produtos e pessoas, que muitas

    vezes se inscrevem fora da legalidade. Algumas dimenses derivadas dessa descrio geral

    so as que me interessa analisar a seguir. A primeira delas a percepo da regio como

    unidade urbana. A segunda a passagem do reconhecimento da diversidade de origens de

    seus habitantes ao postulado de uma interao harmoniosa entre eles. A terceira, a idia de

    que as imagens sobre os outros so produto das interaes com eles. Me interessa explorar

    tais dimenses como forma de chamar a ateno para alguns aspectos que, a meu ver,

    devem ser levados em conta na hora de se falar sobre aquela regio.

    Unidades

    5 Alm de Puerto Iguaz, na Argentina, Foz do Iguau, no Brasil e Ciudad del Este, no Paraguai, dentro da Trplice Fronteira tambm esto as cidades de Ciudad Presidente Franco e Hernandarias, em territrio paraguaio. 6 Ver Rabossi, 2004. O livro de Silvia Montenegro e Vernica Belibau explora especificamente a forma como a Trplice Fronteira foi construda por alguns meios de comunicao, seja em sua verso hegemnica ou na verso alternativa dos chamados alter-mdia (Montenegro & Blivau, 2006). 7 Realizei trabalho de campo na regio por mais de dez meses, entre 1999 e 2001, ano em que passei mais de oito meses vivendo em Ciudad del Este, trabalho este que se materializou em minha tese de doutorado. Em 2006 e 2008, voltei por curtos perodos regio para dar continuidade a outras investigaes.

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    Alguns autores caracterizaram o espao no qual se encontram os limites internacionais de

    Brasil, Paraguai e Argentina como constituindo uma unidade urbana singular. Reinaldo

    Penner fala de uma nica rea urbana das Trs Fronteiras (PENNER, 1998, p.5). Carmen

    Ferrads fala de um complexo espao urbano trinacional (FERRADS, 1998, p. 12) e,

    mais adiante, como uma cidade mundial incomum (idem, p. 18). A expresso mais clara

    desta forma de retratar aquela regio aparece em um trabalho de pesquisadores do Instituto

    Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social (IPARDES), revelia das causas

    institucionais e/ou econmicas que provocam alteraes nas oportunidades e reforam a

    demarcao das fronteiras, o cotidiano das relaes estabelece um pacto, ainda que

    informal, de cooperao e parcerias, no propriamente entre os trs pases, mas sim entre as

    trs fronteiras. Um espao que no pertence a nenhum pas, um espao do Mundo. Isso

    significa a prpria negao da fronteira (KLEINKE ET. AL., 1997, p.160).

    H vrios elementos que poderiam ser citados para fundamentar essa caracterizao.

    Desde o movimento pela Ponte da Amizade, as compras mensais realizadas pelos

    habitantes de uma cidade nos supermercados da cidade vizinha, ou a presena de membros

    das foras armadas de um pas no desfile de independncia de seu vizinho. No entanto, tais

    relaes assentam-se precisamente na existncia da fronteira. Assim ocorre com as compras

    no supermercado da cidade vizinha: dependem das conjunturas econmicas que fazem com

    que, em um determinado momento, os preos no pas vizinho sejam vantajosos. Os

    membros das foras armadas que participam em desfiles de seus vizinhos so convidados

    em cerimnias e no foras de segurana que operam em um espao contnuo. O

    movimento pela Ponte da Amizade e as atividades que tal movimento supe para mim

    o principal motivo por trs dessa caracterizao da TF como unidade. Por este motivo, vale

    a pena analis-lo mais detidamente.

    Em 2001, ano em que realizei o maior perodo de trabalho de campo, o movimento

    pela ponte era intenso. De acordo com os clculos da Direo Nacional de Estradas e

    Rodagem (DNER)8 a agncia brasileira encarregada de rodovias e pontes em mdia,

    18.500 veculos e 20.000 pedestres a atravessavam diariamente. O diretor do escritrio da

    8 Em 2003, a DNER mudou de nome para Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), integrando o Ministrio dos Transportes do governo federal. Para uma anlise do movimento pela ponte de uma perspectiva comparativa histrica e geogrfica ver Rabossi, 2004:42-ss. Para uma descrio dos dados utilizados em tal comparao, ver idem, p. 310.

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    DNER em Foz de Iguau me indicava que o movimento registrado na ponte corresponde

    quele de uma ponte urbana e no ao de uma rodovia o corredor conformado pela

    Rodovia Internacional VII (PY) e a BR-227 (BR), que conectam o centro do Paraguai

    costa atlntica brasileira. O movimento que tem aqui, de fato, o movimento de uma

    ponte urbana, como aquela de Recife. A existncia da fronteira o que torna este lugar

    diferente. J com a Argentina a coisa diferente. Antes tinha muito movimento tambm,

    mas depois do problema do peso argentino, deixou de ser atrativo para os compristas.9

    claro que tal movimento no corresponde a 18.500 veculos ou a 20.000 pessoas

    diferentes, sendo possvel desmembr-lo a partir de situaes distintas. Por um lado, h os

    que cruzam uma nica vez e no voltam mais naquele dia minoritariamente , os que vo

    e voltam uma vez ao dia os que trabalham em Ciudad del Este ou em Foz do Iguau e

    vivem do outro lado e, os que passam vrias vezes por dia, seja comprando, carregando,

    transportando ou conduzindo. O que todo esse movimento revela uma profunda inter-

    relao entre as reas comerciais conectadas pela ponte: o micro-centro de Ciudad del Este

    com sua oferta de produtos importados de diversas partes do mundo e os bairros de Vila

    Portes e Jardim Jupira de Foz do Iguau com sua oferta de produtos brasileiros

    (industrializados novos e usados e frutas e verduras). Os compradores presentes em

    cada um desses espaos comerciais vm principalmente do outro lado da fronteira,

    existindo toda uma infra-estrutura de transporte e passagens para levar as mercadorias ao

    outro lado. Alm disso, muitos vendedores donos e empregados vivem na cidade

    vizinha.10

    Em termos de comerciantes, empregados, vendedores, compradores, transportadores

    e interesses comerciais, as inter-relaes entre ambos os lados so tantas que o limite

    internacional pode parecer uma abstrao em um espao urbano contnuo. No entanto, no

    podemos nos esquecer que precisamente pela presena de tal limite que este movimento

    acontece. Em outras palavras, pelo fato de cada cidade pertencer a estados diferentes

    ergo espaos econmicos diferentes que os comerciantes vendem o tipo de mercadoria

    9A mesma descrio fornecida no trabalho de Kleinke, Cardoso, Ultramari e Moura, ... a Ponte da Amizade que, para Foz do Iguau e Ciudad del Este, como uma avenida de um mesmo espao urbano (Kleinke et. al. 1997:151). 10 Muitos libaneses, chineses, brasileiros e hindus que tm seus negcios em Ciudad del Este vivem em Foz do Iguau, bem como o grosso dos empregados, que so brasileiros. Apesar de configurar um nmero pequeno quando comparado com o anterior, muitos dos donos das exportadoras de comestveis em Foz do Iguau so paraguaios e vivem em Ciudad del Este, bem como seus empregados.

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    que vendem, que os compradores vo compr-la e que milhares de pessoas trabalham

    possibilitando as passagens que permitem ao comprador chegar em seu pas com o que

    comprou.

    Ainda que se aceite que o movimento ocorre pela presena do limite, poderamos

    postular a possibilidade de que, para as pessoas, tal limite seja insignificante. Formulando-o

    como hiptese: o limite est ali, abre possibilidades de negcios e trabalho (faz uma

    diferena), mas do ponto de vista social irrelevante. Ser? Como poderamos avaliar essa

    proposio? Em primeiro lugar, teramos que analisar se, na tomada de decises vitais tais

    como lugar de residncia, casamento ou educao dos filhos, a varivel nacional

    irrelevante ou, ao menos, secundria. Em segundo lugar, no caso de as decises serem

    tomadas independentemente da varivel nacional que meu companheiro seja de outra

    nacionalidade, que minha casa ou a escola de meus filhos estejam do outro lado da ponte

    deveramos avaliar como as pessoas experimentam essa situao.

    At onde sei, ainda no temos os dados que nos permitam estabelecer com preciso

    esta avaliao. No entanto, a partir da experincia de mais de dez meses de trabalho de

    campo e de algumas visitas posteriores, no duvidaria em afirmar que a varivel nacional

    continua sendo fundamental na vida dos habitantes da regio. As pessoas tendem a viver no

    territrio nacional em que nasceram e, no caso de viverem do outro lado da ponte, a

    experincia a de um imigrante e no a de um vizinho de um bairro da mesma cidade que

    seus conterrneos do outro lado da fronteira. Com os casamentos ocorre algo similar.

    claro que h mais casamentos cruzados em termos de nacionalidade que em outras reas.

    No entanto, no se trata de algo generalizado. E nos casos de casamentos mistos, a

    nacionalidade do cnjuge no algo irrelevante para familiares, amigos ou vizinhos.

    bem verdade que se trata de um lugar profundamente inter-relacionado. No

    entanto, no que diz respeito dinmica social e s trajetrias histricas no a similitude o

    que caracteriza seus habitantes, nem a continuidade o que caracteriza suas experincias de

    vida. Mesmo ali onde as inter-relaes so constitutivas como o caso do movimento

    comercial operado pela Ponte da Amizade elas ocorrem a partir de distines e diferenas

    que se inscrevem em terrenos de sociabilidade particulares, algo que veremos em detalhe na

    seo seguinte.

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    Ainda que se aceite a importncia da fronteira para a existncia de certas atividades

    que parecem neg-la e admitindo que parte importante da experincia das pessoas ainda

    esteja ancorada em distines nacionais, poderamos sugerir como hiptese que a trama

    urbana o que confere certa unidade regio. Tendo como base uma imagem de satlite,

    ficamos tentados a confirmar essa hiptese.11 Em cada lado do rio h uma mancha urbana

    interconectada com a outra por pontes que garantem o fluxo entre elas. No entanto,

    conhecendo a regio do plano em que a maior parte dos sujeitos a experimentam no plano

    terrestre a perspectiva e as distncias so outras. A distncia entre Puerto Iguaz e suas

    vizinhas fronteirias suficientemente grande a ponto de haver uma rea no-urbana antes

    de se chegar Ponte Tancredo Neves, que permite atravessar at o Brasil. De fato, o

    movimento por esta ponte pouco tem de urbano: no h movimento de pedestres e, em

    2001, 5.040 veculos em mdia a atravessavam diariamente.

    A Ponte da Amizade tem outra dinmica e conecta duas reas urbanas intensamente

    interligadas. No entanto, o lugar que cada rea ocupa em sua cidade bem distinto, revelando

    os diferentes processos histricos que operaram na origem de cada uma delas e a orientao que

    ainda hoje tm em termos de atividades e de espaos. Em Foz do Iguau, a rea prxima

    ponte perifrica dentro da cidade, sendo que o centro que concentra a maior quantidade de

    servios as reparties centrais dos servios pblicos e privados e o centro comercial da

    cidade est localizado a alguns quilmetros dali. Por outro lado, a rea de Ciudad del Este

    prxima ponte o centro da cidade, onde se concentram os servios privados (a maior

    11 A utilizao de imagens de satlite muito comum nos trabalhos sobre a regio e nas matrias da imprensa. A primeira imagem de meu trabalho precisamente uma dessas (Rabossi, 2004:7). interessante notar que a utilizao de tal imagem paralela ao uso da categoria Trplice Fronteira. Em alguma medida, a forma de representao que torna visvel a regio. verdade que a disponibilidade desse tipo de imagem relativamente recente. Outras possibilidades de representao area incluindo os trs lados da fronteira existiam, contudo foram pouco utilizadas. interessante que quando o foram, no representavam a regio. Por exemplo, no livro que narra a fundao de Puerto Presidente Stroessner, escrito por seu fundador, o ento ministro do interior do Paraguai, Edgar Ynsfran, aparece uma imagem area da rea que inclui os trs lados da fronteira (YNSFRAN, 1990:189). O ttulo do anexo que tal fotografia inicia O que era e o que Ciudad del Este. Abaixo da foto, a legenda diz: Esta era a conformao florestal antes da fundao da Ciudad del Este. As fotos areas de tal anexo que mostram Ciudad del Este e Foz do Iguau apresentam, em suas legendas, exclusivamente, o crescimento da primeira. At onde sei, a utilizao de imagens abarcadoras explicitamente representando a regio apareceram na dcada de 90, com as fotografias de satlite. Seria preciso explorar estas impresses sistematicamente, historicizando as formas de se retratar as cidades e a regio e sua relao com as formas de nominao. Esta problematizao das imagens de satlite como naturalmente retratando a regio surgiu nas discusses no seminrio realizado em Buenos Aires (ver nota 1), especialmente em dilogo com Lindomar Coelho Albuquerque.

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    quantidade de entidades bancrias e comrcios) e em cujo limite se encontram os principais

    rgos pblicos.

    Foz do Iguau foi fundada como colnia militar, em 1889, e seu centro administrativo e

    comercial cresceu ao redor do lugar de sua fundao. As terras prximas Ponte da Amizade

    permaneceram marginais a seu desenvolvimento urbano. Logo aps a inaugurao da ponte, na

    dcada de 60, tal rea comeou a urbanizar-se, desenvolvendo-se os bairros de Vila Portes e

    Jardim Jupira, orientados ao comrcio com o Paraguai. Por sua vez, a fundao de Puerto

    Presidente Stroessner, em 1957, esteve vinculada futura conexo com o Brasil. O primeiro

    edifcio de importncia construdo em Puerto Presidente Stroessner reflete a centralidade de tal

    conexo no desenvolvimento da cidade: o edifcio da Alfndega, ao lado da estrada que leva

    Ponte da Amizade. No entorno desta rodovia, desenvolve-se a rea comercial de produtos

    importados que se transformaria no grande fator de desenvolvimento da cidade.

    As diferenas que estruturam o espao daquela fronteira so fundamentais para

    entend-lo. Explorar as diferenas e as distines que operam na estruturao daquele

    espao nos permite, precisamente, conceb-lo de forma mais precisa e sutil. Observemos,

    por exemplo, o transporte coletivo urbano que opera entre as cidades. Em 2001, havia

    quatro linhas paraguaias, duas brasileiras e duas argentinas que operavam

    internacionalmente. As mesmas atuavam por meio de um convnio internacional que

    garantia a possibilidade de funcionamento sem restries nas cidades vizinhas.12 Os nibus

    urbanos internacionais tal como so conhecidos legalmente constituem um indcio do

    grau de inter-relao entre as cidades. No obstante, interessante observar atentamente os

    percursos que realizavam at 2001. As quatro linhas urbanas internacionais paraguaias

    cruzavam Foz do Iguau: duas partiam de Ciudad del Este, uma de Ciudad Presidente

    Franco e outra de Hernandarias. Havia duas empresas brasileiras que faziam o percurso Foz

    Ciudad del Este, uma empresa argentina que ligava Puerto Iguaz a Ciudad del Este

    (atravessando Foz do Iguau) e outra, Puerto Iguaz at Foz. Diferentemente de todas as

    demais que iam de terminal em terminal de nibus, esta ltima era uma linha circular que

    comeava e terminava seu percurso no terminal de nibus argentino, adentrando em Foz at

    12 Para operar, as mesmas deviam ter um seguro internacional e eram obrigadas a trabalhar com moedas dos pases que atravessavam. O preo era estabelecido com a concordncia dos organismos de controle de cada lado. Quando ocorriam flutuaes no valor das moedas de cada pas, o reajuste devia ser aprovado por tais organismos. Por esse motivo, em momentos de desvalorizao de alguma moeda, convinha pagar em uma ou outra at que o reajuste correspondente fosse aprovado.

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    a entrada da Ponte da Amizade e a empreendendo o retorno. A trajetria das linhas urbanas

    internacionais ilumina a centralidade da Ponte da Amizade no movimento das cidades da

    fronteira: todas a atravessam, exceto a ltima mencionada, que passa a seu lado. Em

    comparao, a Ponte Tancredo Neves, que une Brasil e Argentina, somente atravessada

    por linhas argentinas e nenhuma das linhas brasileiras ou paraguaias dela se aproxima.

    Os nibus internacionais que circulam entre as cidades dessa trplice fronteira

    constituem um exemplo interessante do tipo de exerccio que o material daquela regio nos

    exige. Se, por um lado, a presena das linhas de nibus demonstra o grau de inter-relao

    existente entre as cidades, nos contentarmos com esta concluso suporia encerrar a

    investigao justamente no ponto em que ela se torna interessante. A anlise dos circuitos

    que tais linhas recorrem nos mostra a organizao diferencial dessas relaes, revelando de

    que modo, junto a espaos no-conectados, existem espaos de conexo privilegiados. Essa

    constatao no faz outra coisa seno impor outra srie de perguntas, que vai desde o uso

    cotidiano dessas linhas at as experincias dos trabalhadores que nelas trabalham, entre

    muitas outras.

    Se, at agora, tentei enunciar algumas hipteses sobre como conceber aquele

    espao, os elementos que fui incorporando para test-las tiveram como objetivo

    complexificar nosso entendimento sobre a regio. Pensando em termos mais gerais, a

    constatao das inter-relaes o disparador de uma srie de perguntas. Que inter-relaes

    so essas? Articuladas a partir de quais atividades? Que atores participam delas?

    Constituem coletivos sociais? Em que circunstncias? Uma localizao fundamental para

    responder a estas perguntas a vida cotidiana naquela regio, sobretudo a partir das

    experincias daqueles que vivem ou circulam por ali. A essas experincias me dedicarei a

    seguir.

    Dizer que a experincia que as pessoas tm de uma cidade heterognea uma

    obviedade. No entanto, no caso que nos importa aqui, uma obviedade que deve ser

    repetida pelos pressupostos que informam nossa imagem da regio. Fluxos intensos e

    cruzamentos recorrentes no se traduzem necessariamente em uma experincia ou

    conhecimento homogneo da mesma. Se cada cidade imaginada como uma totalidade

    vivida de forma parcial, de acordo com recortes de classe, de gnero, de idade e de origem,

    o so ainda mais a experincia e o conhecimento das outras cidades da fronteira.

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    Apesar de muitas pessoas trabalharem nas cidades vizinhas especialmente

    brasileiros em Ciudad del Este outras jamais cruzaram a fronteira. Uma das coisas que me

    chamaram profundamente a ateno durante meu trabalho de campo em Ciudad del Este foi

    conhecer pessoas que nunca haviam estado em Puerto Iguaz, e mesmo algumas que jamais

    haviam cruzado at Foz do Iguau.13

    Ter cruzado tampouco significa que se tenha um conhecimento abarcador e

    homogneo da cidade. Muitas vezes, quando os cruzamentos so por trabalho, esse

    conhecimento inscreve-se de forma restrita nos espaos em que as atividades so

    realizadas. A experincia de muitos dos paraguaios, que trabalhavam nas exportadoras de

    produtos brasileiros localizadas no bairro de Vila Portes (Foz do Iguau) e que atendiam

    clientes paraguaios, restringia-se a esse espao e seu mundo de interaes articulava-se

    principalmente em torno de seus compatriotas algo que tambm particularmente visvel

    na relao estabelecida por muitos brasileiros que trabalham em Ciudad del Este. Em um

    deles me concentrarei a seguir.14

    Interaes

    Baixinho era empregado em um comrcio de eletrnicos de Ciudad del Este, cujo dono era

    libans. Em 2001, no negcio trabalhavam o dono que costumava estar presente a maior

    parte do tempo e quatro empregados: trs deles brasileiros e o restante de origem

    libanesa, recm-chegado regio. Baixinho vivia em Foz do Iguau. Todas as manhs, de

    segunda a sbado, chegava na entrada da ponte de nibus, a atravessava a p e ia

    caminhando at a loja, na qual trabalhava at as quatro ou cinco da tarde dependendo do

    movimento do dia quando ento voltava Foz do Iguau. Baixinho era o empregado mais

    13 Para dar alguns exemplos: Alberto, 21 anos, trabalhava em um hotel no centro da cidade. Tinha uma experincia cosmopolita, em algum sentido, interagindo com os estrangeiros que passavam pelo hotel, interao que no se limitava a meramente atender os clientes, mas com eles compartilhar horas e horas em frente televiso do hall de entrada. No entanto, ele nunca havia estado na Argentina. Carla tinha 17 anos. Nasceu em Ciudad del Este e era a mais nova de dez irmos. Trabalhava em um bar. Nunca havia estado na Argentina e somente por duas vezes estivera em Foz do Iguau, no bairro vizinho ponte. Letcia, a mulher de Antnio um mesitero (camel) que trabalhava h 12 anos no centro de Ciudad del Este no conhecia nem a Argentina, nem o Brasil. Havia chegado em Ciudad del Este h 22 anos e tinha trs filhas, a mais velha com 21 anos. Nenhuma delas tampouco conhecia os pases vizinhos. Seria interessante fazer um estudo especfico sobre localizao e circulao na regio. 14 Os nomes utilizados no texto so fictcios.

  • 11

    antigo e mantinha uma boa relao com os mesiteros os vendedores de rua paraguaios

    que se localizavam na entrada da loja em que trabalhava.

    H mais de oito anos trabalhava como vendedor nos comrcios de Ciudad del Este.

    Nos primeiros anos, ganhou muito dinheiro e, assim como ganhava, gastava. Alm das

    sadas em Foz do Iguau, gastava com as viagens que fazia a Florianpolis: praia, bebida e

    mulheres. Ficou noivo de uma moa de Foz do Iguau e, aps economizar por cinco anos,

    conseguiu comprar uma casa nessa cidade e se casou.

    Um sbado tarde, j escurecendo e apesar da loja em que trabalhava estar fechada,

    Baixinho ainda estava por ali. Com uma lata de cerveja Skol na mo, esperava por um

    grupo de brasileiros que pesquisava preos junto aos mesiteros. Neste dia, comemorava seu

    primeiro aniversrio de casado e ainda no sabia o que fazer. No tinha carro, algo que a

    seu ver dificultava qualquer sada. Pensando na logstica do assunto, lhe perguntei se tinha

    filhos. Uma menina de sete meses, me respondeu. Csar, o mesitero que tinha sua banca de

    CDs em frente loja em que Baixinho trabalhava, ao escutar a resposta, interveio:

    - Ela pode namorar com meu filho, gostoso como eu. Podemos fazer

    brasiguaios. - (Baixinho) Mas voc no sabe o linda que a minha filha. Mas no

    por ser minha filha que eu falo... - (Csar) O problema que meu filho tiene seis aos - (Eu) Mas isso a no problema, Csar. Quando ele tiver 26 anos, a

    filha dele vai ter 20, a j d. - (Csar) certo.15

    Os outros brasileiros se juntaram e comearam a ir embora. Baixinho, sem cumprimentar,

    tambm. Csar era uma das pessoas com quem Baixinho mais interagia. No entanto, como

    ele prprio me confirmaria, Csar no sabia que ele tinha uma filha. claro que, depois de

    sab-lo, a futura relao entre seus filhos passou a ser um dos motivos de piadas entre

    eles.

    O que me interessa destacar com essa histria o tipo de relao que ela permite

    entrever. E ter escolhido de Baixinho no foi por acaso. H mais de dois anos trabalhava

    naquela loja e, de todos os que ali trabalhavam, ele era quem mais tempo passava fora do

    15 O uso do portugus por parte dos trabalhadores de rua paraguaios muitos dos quais tm por lngua materna o guarani . bastante apurado, ainda que muitas vezes utilizem palavras em espanhol ou partes das frases sejam completadas nesta lngua.

  • 12

    local e que maior relao mantinha com os mesiteros e os outros paraguaios que

    trabalhavam na rua: se cumprimentavam, comentavam algumas notcias, falavam de como

    iam os negcios. Compartilhava algo mais que o espao. Mas o que mais, alm disso? Em

    todos os meses em que estive por ali, s por duas vezes o vi jogar damas com os mesiteros,

    nunca cartas; jogos estes que eram cotidianos entre os paraguaios. No conhecia a casa de

    nenhum dos colegas paraguaios nem eles a sua. Sabia como se compunha a famlia de dois

    ou trs camels, do resto tinha somente alguma referncia ou menos do que isso. Mantinha

    uma relao de cotidianidade, marcada por certa cordialidade. No entanto, no havia

    intimidade. s vezes, ao final do trabalho, tomava cerveja brasileira ou caipirinha de

    mesma origem, daquelas que se compram prontas. s vezes, bebia junto aos paraguaios,

    mas no com eles. Os trabalhadores paraguaios tomavam cerveja em garrafa geralmente

    paraguaia e o faziam de uma forma singular: compartilhavam o mesmo copo, que

    circulava entre os que estivessem bebendo juntos. Baixinho no bebia com eles.16

    O tempo de descontrao equivalente ao tempo depois do trabalho dos mesiteros

    especialmente sextas e sbados Baixinho passava em um pequeno mercado em Vila

    Portes, o bairro localizado em Foz do Iguau, na sada da ponte, onde muitas vezes se

    encontrava com um amigo brasileiro tambm empregado no comrcio em Ciudad del

    Este como quem tomava cerveja enquanto jogavam individualmente nos caa-nqueis do

    bar. Nas sextas e sbados, as ruas do centro de Ciudad del Este se transformavam em um

    espao de descontrao: os aparelhos de som continuavam a tocar, as pessoas bebiam,

    conversavam ou jogavam. Na medida que os empregados e compradores brasileiros

    voltavam para Foz, as ruas de Ciudad del Este tinham uma freqncia que contrastava com

    a diversidade observada durante o dia: em geral, eram homens, adultos e paraguaios os que

    ali estavam.

    Um dia, perguntei a Baixinho por que os brasileiros que trabalhavam em Ciudad del

    Este no ficavam por ali para tomar algo. Ele me respondeu: difcil que um brasileiro

    fique bebendo aqui. Se bebe muito... L [em Foz do Iguau] tambm, mas... Aqui voc

    nunca sabe se vai dar briga ou no. L mais tranquilo. Em outro trabalho, explorei a

    socializao mediada pela bebida e pelos jogos nas ruas do centro de Ciudad del Este e o

    16 Para uma anlise das formas de se beber entre os mesiteros paraguaios, ver Rabossi, 2004:167ss.

  • 13

    lugar ocupado pelas brigas.17 O que me interessa destacar aqui a diferenciao que ocorre

    nas prticas de pessoas que interagem cotidianamente. Diferenciao esta que mostra o

    grau de compromisso que tais relaes supem; algo que apareceu de forma taxativa aps

    os conflitos de setembro de 2001, como veremos a seguir.

    Em setembro de 2001, as obras na Ponte da Amizade que reduziram seu movimento

    durante os quatro meses seguintes detonaram uma violenta manifestao em ambos os

    lados da fronteira. Primeiro, do lado paraguaio, solicitando a postergao das obras e

    melhores condies para o comrcio da regio. Em seguida, do lado brasileiro, pedindo a

    interrupo da expulso dos empregados brasileiros sem documentos uma das medidas

    implementadas pelo governo paraguaio depois do protesto ocorrido daquele lado da

    fronteira visando aumentar o emprego e pressionar o governo brasileiro a diminuir os

    controles fronteirios. Como forma de sair do impasse instaurado pelo protesto brasileiro, o

    governo paraguaio comprometeu-se a suspender as expulses sumrias dos brasileiros sem

    documentos e concedeu um perodo de um ms para que os trabalhadores regularizassem

    sua situao.18

    Em outubro, um homem, agenda na mo, chegou na loja em que trabalhava

    Baixinho, que comeou a falar com ele, chamou o dono e juntos ficaram vendo papis que 17 Como tentei mostrar, elas esto inscritas em formas de sociabilidade marcadamente masculinas que caracterizam as interaes nos espaos pblicos de Ciudad del Este (Rabossi, 2004:175ss). Formas que, longe de se conformarem ao que poderia ser interpretado como uma realidade violenta de Ciudad del Este e tranqila em Foz de Iguau, est ancorada em diferentes formas de violncia, de resoluo de conflitos e de sociabilidade. Se em Ciudad del Este, a possibilidade da violncia interpessoal o resultado de certas formas de compartilhar coletivamente, so essas mesmas formas que estabelecem uma presena no espao pblico que inibe outro tipo de violncia mais impessoal, como os assaltos violentos, por exemplo. precisamente nesta dimenso comparativa que se inscrevem os discursos sobre a tranqilidade de Ciudad del Este, discursos estes compartilhados no somente pelos trabalhadores paraguaios do centro de Ciudad del Este, mas tambm por muitos brasileiros, especialmente dos setores mais populares, entre os quais h uma distino mais sutil entre distintas violncias. Uma, entendida como problema social impessoal e imprevisvel e a outra, como parte do funcionamento social normal pessoal (no-annima) e sujeita a determinadas regras que definem espaos e tempos para que ocorra. 18 O protesto canalizou anos de retrao comercial, produto de uma srie de fatores entrada em vigncia do MERCOSUL, reduo de tarifas de importao no Brasil, desvalorizao do Real ainda que um deles fosse cotidianamente observado por todos aqueles envolvidos no comrcio de fronteira: o endurecimento dos controles exercidos pela Receita Federal brasileira. O pedido de postergao das obras feito por todas as organizaes e sindicatos paraguaios, unidos em uma coordenao que aglutinou o descontentamento, transformou-se em um protesto generalizado contra a poltica econmica do governo paraguaio e a poltica de fiscalizao do governo brasileiro. A polcia paraguaia conseguiu recuperar a ponte aps violentas confrontaes com os manifestantes, mas a medida foi suspensa aps um acordo com os ministros, que contemplava, entre outras coisas, a expulso dos trabalhadores brasileiros sem documentos. Esse foi o detonador do protesto do lado brasileiro, que durou vrios dias, incluindo tambm violentas confrontaes com a Polcia Federal brasileira.

  • 14

    Baixinho lhe tinha entregue. O chefe o olhava com desconfiana, escutava o que dizia e, em

    seguida, deixou-os para ir atender uns clientes. Baixinho entrou na loja e, pouco tempo

    depois, voltou para lhe entregar 60 mil guaranis equivalentes, na poca, a pouco menos

    de U$15. Baixinho estava regularizando sua situao em Ciudad del Este e aquele era seu

    gestor. Como o restante dos brasileiros que trabalhavam sem documentos, tinha que

    declarar seu domiclio na cidade, empregador e documentos em dia.

    A sensao que Baixinho me passava nesses dias, quando eu falava com ele, era a

    de uma grande solido. Estava cuidando de seus papis e como ele prprio dizia: Eu tenho

    a sorte de ter quase tudo em dia. Mas os outros brasileiros que no tinham a mesma sorte

    j no estavam ali para compartilhar o momento.19 Os colegas paraguaios com os quais

    interagia cotidianamente, tampouco. Muitos tinham participado da manifestao que tivera

    como resultado a fiscalizao dos comrcios do centro e, por mais sentidos que pudessem

    estar pela dispensa de algum empregado em particular, essa era uma medida que

    consideravam justa. Com as dificuldades econmicas que todos estavam enfrentando,

    consideradas em grande parte responsabilidade do governo brasileiro diante das medidas

    cada vez mais restritivas ao comrcio de fronteira, no era justo que os postos de trabalho

    no comrcio da cidade fossem para os paraguaios?

    Nesses dias, as relaes entre brasileiros e paraguaios pareciam congeladas.

    Baixinho chegava e olhava para o interior da galeria que ficava ao lado da loja em que

    trabalhava. Os colegas brasileiros de outras lojas eram cada vez menos numerosos. Nesse

    momento, a briga de Baixinho era uma briga individual. No entanto, para ele, a causa no o

    era. Tal como me diria repetidas vezes, a poltica, cara, a poltica.

    Foram despedidos muitos brasileiros, contratados menos paraguaios e, aps alguns

    meses, quando a fiscalizao mais intensa passou, os comerciantes comearam a contratar

    novamente empregados brasileiros para atender ao fluxo de compradores brasileiros que

    chegaria antes das festas de final de ano.

    Se as disputas entre brasileiros e paraguaios somente explodiram de forma relativa e

    contida durante os conflitos, contrariamente ao que se podia esperar durante esses dias de

    dispensas e contrataes, no houve conflitos entre eles. O perodo instaurado para

    19 Como veremos, essa sorte dependia, basicamente, do interesse do patro em querer manter o empregado em seu negcio.

  • 15

    regularizar a situao dos empregados brasileiros transformou uma situao que comeou

    sendo coletiva em uma questo individual: cada um devia conseguir seus papis e tentar

    ordenar sua situao. A importncia da nacionalidade na estruturao do conflito perdeu

    peso no somente pela individualizao das solues, mas tambm porque a deciso de

    manter ou despedir um empregado irregular estava nas mos daqueles que os haviam

    contratado, muitos dos quais no eram nem paraguaios nem brasileiros, mas libaneses,

    chineses ou coreanos, entre outros. Assim, o conflito desmembrou-se em diferentes linhas.

    Marwan, o libans dono da loja em que Baixinho trabalhava, decidiu apoi-lo para

    que continuasse ali. Marwan o contrataria formalmente como empregado, e Baixinho tinha

    de conseguir um domiclio na cidade. Seus companheiros brasileiros no tiveram a mesma

    sorte e perderam o trabalho. A relao de Baixinho e Marwan era meramente de trabalho.

    Ele era um vendedor com experincia, valorizado por seu patro. Apesar do tempo que

    trabalhava para ele, Baixinho pouco sabia sobre sua vida, a interao entre eles centrando-

    se exclusivamente no trabalho.20 Baixinho queixava-se, sobretudo, do trato dispensado por

    seu patro. Certa vez, o encontrei com a cara amarrada na frente da loja. Meu chefe me

    pediu para ajud-lo a carregar umas caixas. Tive que ir at ali em cima, quase chegando a

    Osis... Voc acha que o cara me agradeceu? No disse nada. Eu disse a ele: Nunca mais

    me pea esse favor.

    A raiva de Baixinho transformou-se em uma queixa generalizada. Pouco depois,

    comeou a contar sua briga com um libans quando trabalhava em outra loja. Estava na rua

    carregando um televisor, a caixa estava suja; um libans tal como o descrevera Baixinho

    passou e sujou a cala com a caixa. O homem se aborreceu e o insultou. Ele no deu

    importncia. Esperando o nibus na volta para casa, o homem apareceu na parada. Quando

    Baixinho passou pela catraca, o libans, que ainda no havia passado, lhe deu um tremendo

    empurro para dentro do nibus.

    Nessa poca, usava coturnos, camiseta at aqui (passando o joelho)... era a moda. Me pendurei nas barras e p! Uma patada na cara, e o seu nariz era todo sangue. O outro era bem grande, mas estava do outro lado da roleta, e seguraram ele. Eu vou te matar Baixinho! Vem, vem... Seguiu me

    20 Marwan era originrio do sul do Lbano e vivia com sua famlia em Ciudad del Este. Em geral pessoa de poucas palavras, nunca consegui estabelecer um dilogo com ele. Baixinho comentou comigo que ele tinha uma grande desconfiana em relao a mim: essa histria de estar fazendo uma pesquisa para uma universidade brasileira no o convencia.

  • 16

    xingando, at que falei: Para com isso, cara! Vou te denunciar na Polcia Federal para ver se voc tem documentos. O cara ficou quieto. No dia seguinte, apareceu na loja, tinha o nariz quebrado. Ele veio se queixar com meu patro que tambm era rabe, queria bater em mim. A, todos os companheiros, que eram brasileiros, pararam na minha frente. Riam na cara dele. Riam, e eu tambm.

    Carlos, um mesitero paraguaio que tinha se inserido na conversa, concluiu: rabe

    muito prepotente. Agora, inclusive, esto muito mais tranqilos. Passado um ms do 11 de

    setembro de 2001, este agora tinha um referencial bem especfico.

    A histria contada por Baixinho interessante pelo contexto no qual foi narrada.

    Uma histria na qual o fato de quebrar o nariz do outro estava em sintonia com a raiva que

    sentia. Em certa medida, era uma forma de resolver discursivamente a falta de trato que

    ressentia na relao com seu chefe. Mas, para alm disso e independentemente de a

    histria ter ou no existido, de fato, ou de ele ter agido da forma como narrou o que

    importa o tipo de relaes que ela apresenta e os imaginrios colocados em jogo. A

    imagem singular de Baixinho era construda em referncia a um quadro mais amplo no qual

    os caracteres se subsumiam, quadro este compartilhado por muitos dos brasileiros e

    paraguaios que trabalhavam no centro de Ciudad del Este: libaneses prepotentes e

    agressivos cuja posio como donos de lojas e casas importadoras os revestia de poder

    efetivo nas relaes. Poder que era contrabalanado nas situaes sociais que assim o

    permitiam com mais agressividade ou com a manipulao da possvel irregularidade legal

    na qual se encontravam os rabes. No entanto, junto aos comerciantes de outras origens,

    eram eles que podiam garantir a permanncia no trabalho ou ter de haver-se com a

    dificuldade em consegui-lo. Os conflitos e as tolerncias eram pautados por essas posies.

    Em 2001, todas as lojas de artigos eletrnicos nessa quadra pertenciam a libaneses.

    A forma como eram retratados por seus empregados brasileiros ou pelos mesiteros

    paraguaios era similar: considerados um conjunto com caractersticas similares. Claro que

    cada um individualmente no somente era distinto como mantinha distintas relaes com

    todos eles. O que mais interagia com os empregados e com os trabalhadores de rua era

    Rida. Falava bem espanhol e portugus, algo que lhe permitia uma interao fcil o que

    fazia utilizando a linguagem das brincadeiras e das zombarias que, muitas vezes, primava

    nas ruas, agressiva e provocadora. Ele sabia o que se passava com as pessoas que estavam

  • 17

    por perto, brincava com isso ou fazia um comentrio mais srio se fosse o caso. Quando

    havia algum jogo no horrio de trabalho ou imediatamente depois, era ele quem emprestava

    a televiso para coloc-la em cima de alguma mesinha ou caixa dos mesiteros. Apesar das

    claras diferenas entre Marwan e Rida aos olhos de todos, quando se falava dos rabes da

    quadra, nem as caractersticas deste ltimo nem a dos demais que no se encaixavam no

    retrato conseguiam desarm-lo.21

    Baixinho, Cesar, Marwan, Carlos e Rida so somente alguns personagens que

    ganhavam suas vidas em Ciudad del Este. Escolhi apresentar algumas interaes e

    situaes centradas em Baixinho como forma de abrir uma janela para o tipo de relaes e

    conflitos ali vivenciados, que considero fundamental comear a registrar de forma

    sistemtica para entender aquela regio.

    A primeira questo que poderamos colocar que todas elas so interaes que

    ocorrem no espao do mercado, espao privilegiado das relaes impessoais ou

    interessadas, tal como retratado por vrios autores clssicos como Tnnies, Simmel,

    Durkheim ou Weber. verdade. No entanto, apesar desta caracterstica atravessar todas

    essas relaes, elas no deixam de estar inscritas em matrizes sociais e quadros culturais

    nos quais se realizam e significam e nos quais relaes personalizadas e desinteressadas

    tambm so a regra. Mas antes disso, e o que me interessa destacar aqui, me atreveria a

    dizer que a imagem da diversidade, dos cruzamentos e das interaes que temos da Trplice

    Fronteira deriva do espao do mercado. ali que rabes, paraguaios, chineses, brasileiros,

    coreanos, hindus e turistas de todas as partes do mundo se encontram e interagem. ali que

    a imagem que contrastamos com a dos meios de comunicao forjada; por isso

    fundamental analis-la detalhadamente.

    Apesar de que para muitos dos que ali participam as relaes com pessoas de outras

    origens limitem-se a esse espao, para outros elas continuam em outros lugares ou

    atividades que fundamental analisar. A vida cotidiana em alguns bairros um desses

    lugares. As atividades religiosas outro, tal como vem sendo demonstrado nos trabalhos de

    vrios pesquisadores. Me interessa destacar, contudo, dois lugares estratgicos nos quais

    analisar as dinmicas de interao da regio: a noite e a educao. Os circuitos de diverso

    21 Em Rabossi (2008), realizei uma anlise deste caso luz do jogo de representaes e esteretipos a partir do comrcio de fronteira, especialmente centrado nos rabes da regio.

  • 18

    noturna lugares para se danar, bares e restaurantes so locais especialmente relevantes

    para se observar as interaes entre pessoas de diversas origens, onde limites so traados e

    outros apagados. A educao, especialmente locais de educao no-formal cursos de

    idiomas e de computao e de formao universitria so espaos nos quais pessoas de

    diferentes origens convivem e nos quais relaes e distines so produzidas e

    reproduzidas. Se destaco estes dois lugares a noite e a educao pela percepo que

    tive dos mesmos durante meu trabalho de campo como espaos sociais que se inserem em

    outra lgica que aquela que rege o dia a dia do mercado, e porque so espaos nos quais

    quem se encontra so principalmente os jovens. Precisamente, aqueles cuja experincia

    social est sendo modelada naquela regio e que esto modelando formas possveis de

    serem assumidas pela mesma no futuro.

    Imagens

    Na seo anterior, privilegiei algumas interaes como forma de assinalar certos elementos

    que nos ajudam a repensar a imagem que temos daquela regio. Interaes que, muitas

    vezes, esto guiadas por imagens sobre os outros como a de Baixinho sobre os libaneses

    as quais so construdas a partir de esteretipos sobre como so eles, bem como na prpria

    dinmica das interaes. claro que a experincia dos outros no necessariamente deriva

    da relao com os outros do outro lado ou com aqueles com quem interagem

    cotidianamente. Dois exemplos situados em Ciudad del Este so bastante interessantes para

    pensar este deslocamento referencial na formao de imagens sobre os outros.

    O primeiro deles est vinculado ao Brasil. Jorgito, de cinco anos, o caula de

    Ramona e Gregorio o mesitero que me convidou para viver com sua famlia durante meu

    trabalho de campo s vezes me convidava para ver televiso com ele. Um de seus

    programas favoritos era Chaves e quando o assistia, ria especialmente dos problemas de

    Seu Madruga, o pai de Chiquinha. Na primeira vez em que ouvi Jorgito chamando o Chavo

    del Ocho, Don Ramn e a Chilindrina pelos nomes que so usados na verso brasileira da

    srie mexicana, fiquei muito surpreso. Jorgito tinha o guarani como primeira lngua, mas

    apesar das dificuldades, sabia se expressar em espanhol. O fato de que usasse os nomes em

    portugus de personagens cujos nomes originais eram em espanhol nunca deixou de me

  • 19

    chamar a ateno. E eis que o que se via em sua casa eram os canais de televiso

    brasileiros.

    Em toda fronteira, uma das marcas do poder relativo que cada pas tem, pode ser

    medida pelo alcance das transmisses de rdio e televiso. claro que, em tempos de TV a

    cabo e via satlite, essa marca no to exclusiva. No entanto, para aqueles que no tm

    acesso a essas possibilidades, ela se mantm. Esse era o caso na casa de Gregorio.

    Naquela ocasio, fazia pouco mais de dois anos que eu vivia no Brasil, e no estava

    muito familiarizado com a televiso, nem com algumas realidades brasileiras. Porm, meus

    prprios anfitries paraguaios me iniciaram nesse universo atravs, precisamente, dos

    programas de televiso brasileira que, na poca, faziam grande sucesso, tambm, no outro

    lado da fronteira: a primeira edio da Casa dos Artistas, Ratinho, os programas de fofoca

    sobre os famosos, as novelas e, claro, O Jornal Nacional, o noticirio da Rede Globo.

    Vendo televiso com eles, uma das coisas que comeou a revelar-se de forma clara

    foi que tanto o conhecimento do portugus como do Brasil em geral de seu dia a dia

    retratado na televiso, que tambm inclua os conflitos na fronteira passava por algo mais

    que as interaes cotidianas com os milhares de sacoleiros os revendedores brasileiros

    que se abasteciam de mercadorias em Ciudad del Este e com os empregados e laranjas

    os que passam as mercadorias para os sacoleiros que estavam nas ruas e nas lojas da

    cidade. Transcendia, inclusive, as relaes que mantinham com Foz do Iguau.

    Algo similar ocorria com a msica. Os vendedores de CDs copiados vendiam muita

    msica brasileira, desde ax, forr, meldicos, funk carioca, rap paulista, brega, sertanejo e

    msica gacha at os evanglicos de todos os ritmos e os hits infantis. De modo distinto a

    muitos compradores brasileiros de mesma posio social, o conhecimento dos vendedores

    paraguaios era, em muitos casos, mais abarcador. Em algum sentido, se a msica brasileira

    se expressava em todos esses ritmos, seu conhecimento abrangia uma totalidade mais

    compreensiva.

    O segundo exemplo de Ciudad del Este est vinculado Argentina. Quase todas as

    pessoas que conheci nesta cidade durante meu trabalho de campo tinham um parente ou um

    amigo prximo que vivia ou tinha vivido na Argentina, se no eram eles prprios que l

    haviam estado como imigrantes. Por outro lado, nos dez meses de trabalho de campo, s

  • 20

    conheci dois paraguaios que tinham vivido no Brasil fora de Foz do Iguau, cidade na qual

    residiam muitos paraguaios.

    Sabendo da minha origem, as referncias que me davam para contarem suas vidas

    na Argentina eram espaciais: bairros, ruas, linhas de nibus que pegavam. E eis que a

    Argentina era mais que uma imagem: havia sido uma experincia para muitos deles. Uma

    experincia que, antes de estar localizada na fronteira, ancorava-se principalmente em

    Buenos Aires ou em sua periferia. A imigrao paraguaia na Argentina muito importante.

    O censo de 2001 registrou 325.046 paraguaios/as vivendo no pas, constituindo o maior

    grupo de imigrantes residente na Argentina. Destes, 70,6% concentravam-se na rea

    metropolitana que inclui a cidade de Buenos Aires e o denominado conurbano bonaerense

    (SANTILLO, 1999). Para aqueles que no viajavam cotidianamente a Puerto Iguaz a

    maioria a imagem que tinham dessa cidade era projetada a partir dessa experincia

    migratria.

    Durante meu trabalho de campo, o lugar ocupado por Ciudad del Este para aqueles

    que voltavam da Argentina era diferente daquele que havia tido para aqueles que

    comearam a chegar na dcada de 70 com a construo de Itaipu e a consolidao do

    mercado de artigos importados. Em geral, a maior parte chegava porque suas famlias j

    estavam instaladas na regio. Essa transformao de um lugar para onde ir em um lugar

    para onde voltar assinala a consolidao de uma populao local para a qual Ciudad del

    Este deixou de ser exclusivamente um espao de oportunidades trabalho e dinheiro

    passando a ser um espao de responsabilidades com a famlia e a casa.22

    O impacto que este movimento tinha no dia a dia de Ciudad del Este sempre me

    chamou profundamente a ateno. Apesar dos milhares de brasileiros que estavam

    diariamente na cidade e da importncia da televiso brasileira, a Argentina estava presente

    de uma forma muito mais imbricada na vida das pessoas.

    Observadas de Ciudad del Este, as relaes que seus habitantes tm com o Brasil e a

    Argentina transcendem as interaes locais do contexto fronteirio. Claro que elas so

    fundamentais, mas o que me interessa chamar a ateno uma questo de ordem mais

    22 As trajetrias migratrias dessas diferentes geraes mostram igualmente as transformaes ocorridas na Argentina e nas formas de insero dos grupos imigrantes. As pessoas com mais de 40 anos que viveram na Argentina, em sua maioria, trabalharam como operrios industriais ou na construo. Os mais jovens que l tinham vivido e que trabalharam durante a dcada de 90, o haviam feito no comrcio ou em servios.

  • 21

    geral. Se a diversidade que compe a Trplice Fronteira assenta-se nos diferentes grupos ali

    presentes, as relaes entre eles so mais complexas que o quadro que imaginamos. Para

    entender as relaes dos habitantes paraguaios da fronteira com seus vizinhos, devemos

    incorporar todas estas dimenses, assim como muitas outras: seus lugares de origem

    majoritariamente do interior do Paraguai, imigrantes rurais em uma cidade em formao a

    presena de brasileiros no Paraguai os chamados brasiguayos a relao com mercados

    simblicos em espanhol, especialmente o musical (argentino, mexicano, colombiano, entre

    outros).

    Mas esta complexidade no uma caracterstica dos paraguaios de Ciudad del Este,

    e sim constituinte da diversidade que caracteriza a regio. A importncia do Centro de

    Tradies Gacha em Foz do Iguau to somente um desses elementos na hora de pensar

    Foz do Iguau. E o mesmo exerccio torna-se necessrio ao pensar nos grupos imigrantes

    de fora da regio, inclusive de forma mais urgente pela facilidade com que so

    objetificados com que os objetificamos em categorias genricas como chineses, rabes

    ou coreanos. As regies de procedncia, suas experincias rurais ou urbanas, suas

    trajetrias migratrias e os imaginrios sobre o lugar de chegada seja o genrico Amrica

    do Sul, os pases ou as prprias cidades em que vivem so elementos bsicos para

    compreender aquilo que se coloca em jogo na fbrica social e cultural da regio.

    Apesar de a descrio em categorias tnico-nacionais ser necessria na hora de se

    apresentar um quadro da regio, elas no podem ser a matriz a partir da qual pens-la

    culturalmente. Tais categorias nos fornecem alguns dos elementos necessrios para encarar

    esse trabalho, mas devemos incorporar outras distines e dinmicas na hora de pensar

    seriamente sobre a mesma. As formas de apropriao dos meios de comunicao ou as

    experincias particulares de cada grupo que tentei apresentar nessa seo, so alguns dos

    elementos que nos ajudaro nessa tarefa.

    Concluses

    Como para muitos dos que trabalham na e sobre a regio de confluncia dos limites

    internacionais de Argentina, Brasil e Paraguai, uma das primeiras questes que se colocou

    em meu trabalho foi tentar pens-la fora dos retratos produzidos por certas agncias

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    governamentais e meios de comunicao. Esforo igualmente compartilhado por diversos

    atores locais. As respostas que muitas vezes construmos produzem outras imagens,

    ancoradas em vises particulares daquela regio. Algumas delas enfatizam sua unidade,

    outras sua harmonia, outras sua auto-referencialidade. O exerccio que tentei realizar ao

    longo deste artigo foi o de levantar uma srie de elementos que colocam em questo tais

    imagens. Meu interesse no descart-las, e sim chamar a ateno para elementos que

    devem ser considerados e analisados mais profundamente na hora de se produzir nossos

    retratos dessa regio.

    Cada uma das sees deste artigo poderia ser um artigo em si mesmo. Muitos dos

    elementos levantados poderiam ter sido tratados a partir da bibliografia especfica e das

    discusses tericas que esto por trs da forma de abordar cada tema. Nominao e

    representao, urbanizao e regionalizao, interaes e produo de esteretipos,

    objetificao e grupos sociais, diversidade cultural e organizao social das diferenas so

    alguns desses temas. No entanto, preferi apresentar uma srie de questes que foram

    surgindo em distintos momentos de meu trabalho. Por isso, resolvi adotar aqui um tom

    explicitamente ensastico e etnograficamente ancorado. Se ajudar a visualizar aquela regio

    de forma mais sutil e informada, ento ter servido para alguma coisa. Se, para alm disso,

    ajudar a formular novas perguntas e caminhos de investigao, ter valido a pena.

    Bibliografia

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    Ediciones y Arte SRL.