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r: Vi j 4t ;*> £ ^ A' \- O ? ^ P798c 3.ed. CIP-Brasll.Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP Poe, Edgar Allan, 1809-1849. Contos de Edgar Allan Poe / tradução José Paulo Paes ; estudo crítico Lúcia Santaella, - 3. ed. -- São Paulo : Cultrix, 1986. 1. Contos estadunidenses I. Pais, José Paulo, 1926- II. San taella, Lúcia. III. Título. 85-0188 CDD-813 índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Literatura estadunidense 813 CONTOS DE EDGAR ALLAN POE Tradução José Paulo Paes Estudo crítico Lúcia Santaella EDITORA CULTRIX SÃO PAULO j ytvó

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P798c

3.ed.

CIP-Brasll. Catalogação-na-PublicaçãoCâmara Brasileira do Livro, SP

Poe, Edgar Allan, 1809-1849.

Contos de Edgar Allan Poe / tradução José Paulo Paes ;estudo crítico Lúcia Santaella, - 3. ed. -- São Paulo : Cultrix,1986.

1. Contos estadunidenses I. Pais, José Paulo, 1926- II. Santaella, Lúcia. III. Título.

85-0188 CDD-813

índices para catálogo sistemático:

1. Contos : Literatura estadunidense 813

CONTOS

DE

EDGAR ALLAN POE

TraduçãoJosé Paulo Paes

Estudo crítico

Lúcia Santaella

EDITORA CULTRIXSÃO PAULO j ytvó

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Copyright © : Editora Cultrix

Edição

3-4-5-6-7-8-9 6-87-88-89-90-91-92-93

Direitos reservados.

EDITORA CULTRIX

Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 São Paulo, SP - Fone 63 3 14 1

Impresso nas oficinas da Editora Pensamento.

SUMÁRIO

Ligéia

A Carta Roubada

O Barril de Amontillado

Berenice

A Queda da Casa de Usher

O Escaravelho de Ouro

William Wilson

O Retrato Ovalado

O Homem da Multidão

Estudo crítico: Edgar Allan Poe (O que em mim sonhouestá pensando)

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Nessa expedição ao "Hotel do Bispo", fora acompanhado porJúpiter, que observava desde algumas semanas meu aspecto preocupado e tinha muito cuidado em não me deixar só. Mas, no diaseguinte, levantei-me de madrugada e, disposto a escapar-lhe, corripara a montanha à procura de minha árvore. Após muito trabalho,consegui encontrá-la. Quando voltei para casa, à noite, meu criadoestava disposto a me dar uma sova.

— Suponho — disse eu — que você ficou desorientado na primeira tentativa, quando Júpiter deixou cair o escaravelho pelo olhodireito do crânio, em vez do olho esquerdo.

— Justamente. Isso fazia uma diferença de duas polegadas emeia, mais ou menos relativamente ao peso, isto é, à posição da ca-vilha perto da árvore. Se o tesouro estivesse no local marcado pelopeso, esse erro não teria importância; mas o peso e o ponto maispróximo da árvore eram dois pontos servindo para estabelecer umalinha de direção. Naturalmente, o erro, pequeno no começo, aumentaria em proporção a uma distância de cinqüenta pés da linhae nos desviaria do local. Sem a idéia fixa que tinha, teríamos perdido o tesouro escondido.

— Mas, a sua ênfase; suas atitudes solenes balançando o escaravelho! Quantas coisas bizarras! Julguei-o positivamente umlouco. E por que quis deixar cair do crânio esse inseto, em vez deum peso?

— Por Deus! Para ser franco, confesso que me senti um tantoacabrunhado com as suas suposições sobre o meu estado de espíritoe resolvi puni-lo tranqüilamente, ao meu modo, com essa pequeninamistificação! Eis porque balançava o escaravelho, e eis porquequeria vê-lo cair do alto da árvore. Uma observação que você mefez sobre o seu peso singular me trouxe essa idéia.

— Sim, compreendo. Agora só há um ponto que me embaraça. Como explicar o que significavam os esqueletos que encontramos no buraco ?

— Ah! É uma pergunta que não posso responder melhor doque você. Só vejo uma maneira viável para explicá-la, e minhahipótese implica numa atrocidade tal, que é horrível de acreditar.É claro que Kidd — se foi Kidd quem escondeu o tesouro, do quenão duvido —• é claro que ele precisou de ajudante para o seutrabalho. Mas, terminada a tarefa, julgou conveniente fazer desaparecer todos os que soubessem do segredo. Dois bons tiros de pistolatalvez bastassem, enquanto seus ajudantes estavam no buraco. Talvez ele matasse até uma dúzia. Quem é que poderia saber averdade?

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WILLIAM WILSON

("What say oj it? What say ofCONSCIENCE grim? - fv-Ç •••>>•,• .

That spectre in my path?")

Chamberlayne, "Pharronida"

DMITAM por momentos que me chamoWilliam Wilson. O meu verdadeiro nomenão deve sujar as páginas em branco quetenho na minha frente. Tenho sido o

horror e a abominação do mundo — a vergonha e o opróbrio deminha família! E os ventos indignados não terão levado a suaincomparável infâmia até às mais distantes regiões da terra?

Sou o mais abandonado dos proscritos! Para mim, o mundo,as suas horas, as suas douradas aspirações, tudo acabou! E, entreas minhas esperanças e o céu, paira, eternamente, uma espessa nuvemnegra, sinistra e ilimitada!

Mesmo que pudesse não quereria escrever nestas páginas, todasas recordações dos meus últimos'anos de miséria e crime. O últimoperíodo da minha vida atingiu, rapidamente, tais proporções de

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torpeza, que seria tão horrendo como difícil descrevê-lo. Pretendo,simplesmente, determinar a origem do meu rápido desenvolvimentona perversidade. A corrupção, em geral, atinge os homens gradualmente, mas de mim a virtude separou-se de uma vez como se foraum manto. De um salto gigantesco passei, duma perversidaderelativamente banal, vulgar mesmo, a enormidades dignas dum Helio-gábalo.

Permitam que vos conte do princípio ao fim do caso, o acidente fatal que deu motivo a essa maldição. Aproxima-se a mortee a sombra que a precede lançou já no meu coração uma benéficainfluência de arrependimento e de paz.

Quase a transpor o sombrio vale, suspiro pela piedade — ia aescrever pela simpatia! — dos meus semelhantes. Quereria convencê-los de que fui arrastado por forças superiores à resistênciahumana. Desejaria que descobrissem para mim, no vasto desertode crime que vou descrever, um pequeno oásis de jataíidade. Desejaria que concordassem — e talvez não possam deixar de concordar— que jamais, num mundo repleto de tentações, apareceu uma iguala esta. E que nunca um ser humano sucumbiu vítima de torturassemelhantes!

Não será tudo isto um sonho, na verdade? Acaso não morrerei vítima do horror e do mistério da mais estranha de todas asalucinações?

Descendo duma raça há muito conhecida pela força da imaginação e por um temperamento irritável em extremo, e desdepequeno confirmei o caráter peculiar de minha família, caráteresse que se desenvolveu com a idade e me prejudicou mais tardedum modo tão terrível como singular.

Fracos de espírito e sofrendo, além disso, do mesmo mal,meus pais pouco ou nada fizeram no sentido de modificar os mausinstintos que eu tinha. No entanto, fizeram algumas tentativas;mas sem energia, sem direção, falharam inteiramente, redundandonum triunfo completo para mim. Desde então, passei a mandarem minha casa, ditando ordens numa idade em que poucas criançaspensam em deixar "cTregaço materno, entregue ao meu livre-arbítrio,senhor absoluto de todas as minhas ações.

As primeiras recordações da minha vida escolar ligam-se a umcasarão exótico, de estilo isabelino, situado numa aldeia triste daInglaterra, onde as casas eram todas de uma antigüidade respeitável.De fato, aquela aldeia antiga constituía o tipo próprio para excitara imaginação. Hoje mesmo, ao recordá-la, sinto em meu espírito

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as mesmas impressões de desolação que me deram asi suas riias*respiro os mesmos aromas das suas numerosas matas; sinto, amesma voluptuosidade indefinível, quando me recordo das badaladas profundas do sino, atravessando, de hora em hora, com o seusom breve e plangente, a quietude da atmosfera escura onde seerguia o majestoso campanário gótico da aldeia.

Estas lembranças do colégio são hoje para mim o único prazer,o único que ainda posso sentir. Imerso na desgraça como estou,decerto me absolverão por procurar um consolo, aliás bem ligeiroe breve, nestas vagas e pueris minúcias! Mas, por vulgares e simples que pareçam, elas têm na minha imaginação um lugar damaior importância, em virtude da sua íntima ligação com a épocaem que distingo agora os primeiros e vagos avisos do destino, quemais tarde me envolveria tão profundamente com a sua sombra.Deixem-me, pois, recordar.

Como disse, a casa era velha e de construção irregular. Tinhaum parque grande, rodeado por um muro alto e sólido, de tijolos,encimado por uma camada de argamassa e vidros quebrados.Aquele muro digno duma prisão, limitava o nosso domínio. Somente saíamos dali três vezes por semana: uma vez no sábado detarde, para passeios curtos e monótonos pelos campos próximos,na companhia dos vigilantes, e duas vezes ao domingo, emque, com a regularidade dum regimento em parada, íamos assistiraos ofícios da manhã e da tarde na única igreja da aldeia.

O pároco dessa igreja era o diretor do colégio. Nós o contemplávamos do nosso lugar especial com um sentimento de reservae de admiração, quando ele subia ao púlpito, com passos vagarosose graves. Acaso aquele personagem digno de veneração, com tãosimples e modesto aspecto, umas vestes tão novas e tão religiosamenteondulantes, uma cabeleira tão bem empoada, tão empertigado etão nobre, poderia ser o mesmo homem que, momentos antes, deaspecto severo e carrancudo, com o casaco sujo de rape nos obrigava,de palmatória na mão, a cumprir as rigorosas leis do colégio?

Mas voltemos à descrição deste. Num ângulo de parede maciça, havia uma porta, mais maciça ainda, cheia de fechaduras,e coberta de ferragens chapeadas. Essa porta — que profundossentimentos ela inspirava! — apenas se abria para as três entradase saídas de que já falei. Achávamos, então, no chiar dos seusgonzos, uma superabundância de mistério, um mundo completo deobservações solenes e de meditações mais solenes ainda.

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O recinto do parque era irregular e muito dividido; três ouquatro partes maiores constituíam o pátio de recreio. Situado naparte de trás da casa, esse pátio era de terra batida, coberto por umacamada de areia, desprovido de bancos e árvores ou de outraqualquer coisa semelhante — lembro-me perfeitamente. Â frentedo colégio, havia um pequeno jardim, ornado de buxo e outros arbustos; no entanto, só nos franqueavam esse oásis sagrado em diassolenes, tais como o dia da entrada no colégio, e o da saída definitiva, quando partíamos alegremente para a casa paterna nas fériasde Natal ou de Páscoa.

E o edifício? Que curiosa construção! Eu considerava-ocomo um verdadeiro palácio encantado! Era um nunca acabar dedesvões, de divisões incompreensíveis. Dificilmente se poderiadizer quando nos encontrávamos no primeiro ou no segundo andar.De compartimento para compartimento, sempre havia degraus asubir ou a descer.

Além disso, as divisões laterais eram inúmeras, sem razão de ser,com tantas voltas e reviravoltas que a idéia que fazíamos do conjuntodo edifício se aproximava da que fazíamos do infinito. Vivi alidurante cinco anos, e nunca consegui determinar com exatidão opequeno dormitório que eu ocupava com mais dezoito ou vinte colegas.

A sala de estudo era a maior de toda a casa (e, pelo menos assimme parecia, de todo o mundo). Era muito comprida e muito estreita,de teto baixo e de janelas em formato ogival. Num canto afastado,donde provinha o terror, havia um recinto quadrado de oito ou dezpés, que fazia as vezes de Sanctum do nosso diretor, o reverendodoutor Bransby, durante as horas de estudo.

Viam-se, noutros dois cantos, mais dois estrados semelhantes,olhados com menor terror, mas ainda alvos dum considerável receio:um, era o assento do professor de humanidades; o outro, o do professor de inglês e de matemática. Espalhados pelo meio da sala,achavam-se, em grande desordem, inúmeros bancos e estantes cheiasde livros velhos e enxovalhados; estas estantes, negras, velhas, estragadas pelo tempo, cheias de golpes de letras e de nomes de desenhosgrotescos e de outras muitas obras-primas de canivete, mal lembravamo seu primitivo formato.

Num dos extremos da sala, estava um grande balde cheio deágua e, no outro, o relógio, de tamanho enorme.

Encerrado nas paredes daquele colégio venerável, passei, contudo,sem aborrecimentos nem tristezas, os primeiros anos da minha vida.

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A fecunda imaginação da infância não necessita dum mundo exterioracidentado para se entreter ou divertir e, por isso, na vida monótonado colégio, achei impressões mais vivas e mais intensas do que todasas que mais tarde encontrei na devassidão e no crime.

O meu primeiro desenvolvimento intelectual foi muito extraordinário, direi mesmo desregrado.

Geralmente os fatos da vida infantil só nos fornecem impressões que são mal definidas. Tudo são sombras, vagas e irregulareslembranças, ditusa confusão de prazeres pueris e mágoas sem fundamento. Não sucedem assim comigo. Devo ter sentido na minha infância, com o vigor de um homem feito, tudo aquilo que aindahoje tenho gravado na minha memória, em traços indeléveis, tãoprofundos e tão duradouros como os da cunhagem das moedas cartaginesas.

E, vistas as coisas friamente, essa época da minha vida nãoera digna de recordações! O levantar, o deitar, o estudo das lições,as recitações, os feriados periódicos e os passeios, o pátio do recreio,com as suas disputas, os seus entretenimentos e as suas intrigazinhas,e nada mais! Mas isso tudo, por uma espécie de magia física quesó se possui naquela idade, encerrava em si tal quantidade de sensações, todo um mundo rico de acontecimentos, um universo de emoçõesvariadas e de inebriantes excitações. Oh, que bom foi esse duroperíodo!

O meu caráter ardente, entusiasta e dominador, deu-me umasituação preeminente entre os meus colegas e, gradualmente, umascendente poderoso sobre todos os que eram mais novos ou damesma idade que eu; sobre todos, exceto sobre um. Era este umaluno que, sem ter comigo qualquer parentesco, tinha o mesmonome de batismo e o mesmo nome de família, fato este pouconotável, visto que o meu nome, apesar da sua nobre origem, eraum nome vulgar, um destes nomes que, desde tempos imemoriais,são também propriedade do povo. Tomei nesta narrativa o nomede William Wilson — nome falso, que não é muito diferente doverdadeiro. Como já disse, só um colega meu, o meu homônimo, rivalizava comigo nas lições, nos jogos e nas lutas do recreio; nãoacreditava nas minhas afirmações, assim como não se submetia àminha vontade; recusava, enfim, suportar a minha ditadura e manifestava-o sempre que lhe era possível.

A rebeldia de William constituía para mim fonte de desgostos,tanto mais que, apesar do desdém com que afetava tratá-lo e àssuas pretensões, bem no fundo temia-o; não conseguia poder olhar

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a igualdade que ele facilmente mantinha comigo senão como umaprova de completa superioridade, porque, pela minha parte, sóconseguia conservar-me à sua altura graças a grandes esforços. Masera eu o único a reconhecer essa igualdade, ou, melhor, essa superioridade; os outros rapazes inexplicavelmente, pareciam não dar portal fato.

William não parecia, igualmente, cheio de ambição, dessa ambição que a mim me impelia a dominar, nem da energia que me davaautoridade. Parecia que o único fim da sua rivalidade era o caprichoso desejo de me contradizer, de me atemorizar, de me atormentar,embora muitas vezes não pudesse deixar de notar, com um sentimento misto de espanto, de raiva e de humilhação, que o meurival associava às suas contradições impertinentes uns assomos deafeto muito intempestivos e muito desagradáveis. E eu nem sequerconseguia explicar a mim próprio a sua conduta, senão julgando-acomo o resultado duma insolência presunçosa, que se permitia aresde superioridade e de proteção.

O fato de termos o mesmo nome, junto ao fato, puramente acidental, de termos entrado no mesmo ano para o colégio, espalharaentre os rapazes mais adiantados a idéia de que éramos irmãos. Vulgarmente, os colegas mais velhos não procuram conhecer comexatidão a vida dos mais novos. Já frisei que Wilson não era, nemno grau mais remoto, aparentado com a minha família. Mas, sefôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos, porque, já depois de sair docolégio do Dr. Bransby, soube casualmente que o meu homônimonascera no dia 19 de janeiro de 1813, e, por interessante coincidência, esse dia é precisamente aquele em que eu nasci.

Não obstante a rivalidade de Wilson e o seu insuportável espírito de contradição, não chegamos nunca ao ódio absoluto. Todosos dias tínhamos, na verdade, uma questão, na qual Wilson meconcedia publicamente a palma da vitória, não deixando, porém, deme fazer sentir, de qualquer modo, que a vitória lhe pertencia.Porém havia de minha parte um sentimento de orgulho e da suauma grande dignidade, e assim nos conservávamos sempre dentrodas mais estritas conveniências. E os nossos caracteres iguais emmuitos pontos, teriam desabrochado em verdadeira amizade, se nãofosse aquele sentimento de reserva e de hostilidade. Na verdade,é-me difícil definir os verdadeiros sentimentos que nutria por ele.Eram uma mistura confusa e heterogênea: animosidade petulante,sem chegar a ser ódio; amizade, receio, grande temor e uma curiosidade imensa com muito de expectativa. O psicólogo decerto jáadivinhou que éramos companheiros inseparáveis.

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Em conseqüência dessas confusas relações, todos qs meus ataques dirigidos contra Wilson — e, embora abertos ou dissimulados,esses ataques eram numerosos •— revestiam mais o aspecto da ironiaou da troça do que o de uma inimizade franca e determinada. Dirigiatodos os meus esforços nesse sentido, sem que obtivesse um grandetriunfo, muito embora eu os planejasse engenhosamente; e istoporque o meu homônimo possuía aquela austeridade plácida e reservada que empresta a quem a possui o privilégio de ferir a outremsem descobrir os seus pontos vulneráveis. E eu só pude achar neleum ponto vulnerável, mas esse mesmo era um defeito físico quetalvez fosse o resultado duma enfermidade de constituição; qualqueroutro antagonista menos encarniçado do que eu tê-lo-ia respeitado.William tinha uma fraqueza nas cordas vocais que o impedia de falaralto. Quando falava, a sua voz dir-se-ia um murmúrio. E dessedefeito tirava eu as minhas mesquinhas desforras.

O meu homônimo usava, por seu lado, várias represálias, euma havia que particularmente me irritava. Sem que eu soubessecomo, ele teve conhecimento de que semelhante futilidade produziaem mim um grande efeito. Mas, logo que o soube, isso constituiupara ele o seu gênero de tortura predileto.

O meu nome de família, falho de graça e ,de elegância, emesmo o meu nome próprio, tão trivial e tão plebeu, eram e sempreforam para mim motivo de grande desgosto. Logo no dia da minhachegada, se apresentou também o outro William Wilson; isto foi osuficiente para que eu sentisse contra ele certa má vontade, visto quedaí em diante ouviria pronunciar o__dobro das vezes aquelas sílabasque eram o tormento dos meus ouvidos.

Constantemente o teria junto de mim, porque a sua vida, noarrastar dos trabalhos e divertimentos do colégio, freqüente e inevitavelmente, seria confundida com a minha. E tudo isso me levava adesgostar-me cada vez mais do meu nome.

Esta irritação crescia com cada fato que mostrasse qualquer semelhança física ou moral entre mim e o meu homônimo. Por essaépoca, não descobrira eu ainda o fato muito notável da igualdade dasidades; notava, no entanto, que tínhamos a mesma altura, e chegueiaté a descobrir uma certa semelhança de fisionomia, o que muito mecontrariava. Corria a fama, geralmente acreditada pelos alunosmais velhos, de que éramos parentes, o que também me desesperava domesmo modo. Resumindo: nada me irritava mais — embora euforcejasse por não o demonstrar — do que as alusões às nossassemelhanças físicas ou morais, ou ao nosso suposto parentesco. Con-

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'tudo, eu não podia crer quê essas analogias fossem assunto de comentários ou tivessem, mesmo, sido notadas pelos nossos colegas.Seria natural que Wilson lhes desse tanta atenção como eu; nãoachava, porém, natural que Wilson descobrisse nelas um filãotão pródigo de desgostos para mim.

Tendo, por isso, notado quanto essas semelhanças me desgostavam, William tornava-as mais notadas, arremedando-me com prodigiosa habilidade. Copiava-me os gestos e as palavras; imitavaa minha maneira de vestir, o meu andar, os meus modos e, enfim,nem sequer a minha voz lhe havia escapado, não obstante o seudefeito. Não podia imitar o meu tom alto, mas o timbre e aentonação eram idênticos. Quando eu falava baixo, a sua vozdir-se-ia o eco da minha.

Não tentarei contar-vos até que ponto aquele curioso retratome desagradava (porque não posso chamar-lhe, com propriedade,uma caricatura). Havia, porém, um fato que até certo ponto meconsolava: apenas eu notava essa imitação perfeitíssima; e, destemodo, eu não tinha de suportar senão os sorrisos enigmáticos esingularmente sarcásticos do meu homônimo, que, contente comproduzir em mim o efeito desejado, parecia deleitar-se secretamenteem apunhalar-me, sem pensar no êxito que o seu engenho porcerto facilmente conquistaria. Como era possível que os nossoscolegas não a compreendessem, não lhe percebessem as manobras,não tomassem parte naquela maliciosa zombaria? Para mim, issofoi, durante muitos meses de sobressaltos, um verdadeiro enigma.Talvez a lentidão com que ele graduava os tormentos que me infligia, os tornasse despercebidos; ou talvez a minha liberdade dependesse da grande mestria do pintor, que, desprezando a técnica (únicacoisa que os espíritos atrasados sabem apreciar na pintura), apenasse ocupava de originalidade, o que me causava um sentimento mistode admiração e desgosto.

Já me referi, freqüentemente, aos cruciantes ares protetoresque ele tomava para comigo e à intervenção que tinha em todas asminhas vontades. Essa intervenção tomava, por vezes, a forma dumconselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado,e que era por mim recebido cada vez mais de má vontade, conformeme ia tornando mais velho. Quero contudo, fazer-lhe a justiça, depoisde tantos anos, de confessar que todos os conselhos sugeridospelo meu rival eram cheios de bom senso, superiores mesmo à suaidade, destituída ordinariamente de reflexão e de experiência. Asua sensatez, o seu talento e o seu conhecimento da vida e das coisaseram muito superiores aos meus, e eu seria hoje um homem melhor

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e, por isso mesmo, mais feliz, se tivesse seguido os conselhos queessas sensatas sugestões continham e que, então, só me inspiravamraiva e desprezo.

Finalmente revoltei-me por completo contra a sua vigilânciaodiosa, detestando cada vez mais o que eu considerava uma intolerável insolência. Já disse que, nos primeiros tempos da nossacamaradagem, os meus sentimentos para com William poderiamter-se convertido em amizade, se as circunstâncias fossem outras;porém, no decorrer dos últimos meses em que estive no colégio,apesar de as suas maneiras habituais de me importunar teremdeixado de ser tão freqüentes, os meus sentimentos tinham evoluídonitidamente para o ódio. Julgo que, certa vez, Wilson o percebeuclaramente e, desde então, evitou-me ou afetou evitar-me. Foipor essa altura, mais ou menos, que discutimos violentamente; Wilson perdeu a sua reserva ordinária, falou e mostrou-se de uma negligência estranha à sua natureza, e eu descobri, ou julguei descobrir,na sua voz, nas suas maneiras e no seu aspecto geral, qualquercoisa que me era muito familiar. Estremeci, ao descobrir isso, masa descoberta passou a interessar-me profundamente.

Acudiam ao meu cérebro obscuras recordações da minha primeirainfância, confusas, estranhas, quase apagadas recordações duma épocaque a memória já não podia alcançar. Dir-se-ia que tinha já vistoo ente que me falava, numa época muito afastada, muito remota.Contudo essa ilusão apagou-se' tão rapidamente como aparecera. Senarro esse fato é unicamente para determinar o dia da minha discussão com o meu estranho rival.

A velha casa em que estava instalado o colégio, nas suas inúmerassubdivisões, tinha grandes compartimentos, que comunicavam entresi e que serviam de dormitórios à maior parte dos alunos. Alémdisso, havia — como era inevitável num edifício tão irregular —inúmeros cantos e recantos — sobras e remates da construção •—que o talento econômico do diretor Bransby transformara tambémem dormitórios; eram, porém, divisões tão pequenas que apenascomportavam uma pessoa. Wilson ocupava um desses quartos. Umanoite, no fim do meu quinto ano de colégio, depois da discussão aque já me referi, aproveitei o fato de todos estarem dormindo, levantei-me, peguei num candeeiro e furtivamente dirigi-me, atravésdum verdadeiro labirinto de estreitos corredores, ao quarto dele. Jáhá muito que projetara pregar-lhe uma peça, e pensara numa daquelastroças que lhe fazia freqüentemente, das quais, repito, nunca tiraragrande resultado. Resolvera executar o meu plano nessa noite, afim de lhe mostrar toda a minha animosidade. Chegando à

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porta do seu quarto, entrei sem o menor ruído, deixando o candeeirofora, coberto com um quebra-luz, e avancei até lhe perceber o ruídotranqüilo da respiração. Logo que me certifiquei de que ele dormiaprofundamente, voltei atrás, peguei no candeeiro e de novo meaproximei da cama. As cortinas estavam fechadas. Afastei-as e aluz bateu de chapa em Wilson, ao mesmo tempo que eu olhava fixamente o seu rosto. . . Senti-me penetrado por uma sensação de frio;o coração pulsava-me furiosamente no peito, as pernas vacilavam-me;senti uma sensação de horror inexplicável! Minha respiraçãotornou-se convulsa, quando aproximei mais a luz do candeeiro. Seriam realmente aquelas as feições de William Wilson? Sim, eram!Que havia então de extraordinário no seu rosto para que eu mesentisse assim impressionado? Contemplei-o durante algum tempo,trêmulo, emocionado; o meu cérebro agitava-se sob a ação de milpensamentos sem nexo. Ele não era assim, não! Nunca fora assim,nos momentos em que me contrariava! Seria humanamente possível,ou o que eu agora contemplava era o resultado desse hábito deimitação sarcástica?

Apaguei o candeeiro, gelado de espanto, e, silenciosamente, saído quarto, abandonando para sempre o ambiente de mistério daquele velho e espantoso colégio.

II

Decorridos alguns meses que passei em casa de meus pais, emcompleta ociosidade, entrei para o colégio de Eton. Esse pequenointervalo foi o suficiente para que eu me esquecesse do colégiode Bransby ou, pelo menos, para que as lembranças dele não meinspirassem os mesmos sentimentos. O acontecimento que fizeracom que eu abandonasse o colégio aparecia-me agora como umefeito de pura imaginação. A realidade, o lado trágico do incidente, desaparecera por completo. Quando sucedia lembrar-me desemelhante ocorrência, admirava até onde pode chegar a credulidadehumana e troçava da prodigiosa força de imaginação que herdarada minha família.

Aquela espécie de desalento, de ceticismo, não diminuiu coma vida que passei a levar em Eton. Mergulhei num turbilhão deloucura e, de súbito, todo o passado desapareceu, menos as sólidase sérias impressões que dele me restavam.

Não vou aqui narrar miudamente os meus baixos desregra-mentos, que nenhuma lei ou imposição podiam impedir. Passaram-se

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três anos; três anos gastos em desvarios, durante ,os, quais a minhkalma se adaptou ao vício e o meu corpo se desenvolveu anormalmente.Um dia, depois de uma semana de estúpida dissipação, convideialguns dos meus colegas mais dissolutos para uma orgia secreta, arealizar-se no meu quarto. Juntamo-nos, altas horas da noite, e afarra devia prolongar-se, infalivelmente, até pela manhã. O vinhocorria com abundância, e mesmo outras seduções, por ventura maisperigosas, não tinham sido esquecidas. Ao nascer o sol, o delírio eas extravagâncias tinham atingido o seu auge.

Com um entusiasmo que me vinha da embriaguez e do jogo,obstinava-me em propor um brinde absolutamente indecente, quandome distraí com a entrada precipitada dum criado, anunciando-mealguém, muito apressado, que me pedia que lhe fosse falar novestíbulo.

Inflamado como estava pelo vinho, aquela interrupção causou-memais prazer do que surpresa. Saí do quarto, cambaleando, e empouco tempo estava no vestíbulo, uma sala baixa, estreita, apenasiluminada pela fraca luz da madrugada que entrava pelas janelas emarco. A pessoa que me esperava era um jovem pouco mais oumenos da^ minha estatura, vestido com um fato de casimira branca,absolutamente igual ao que eu então vestia. Mal me viu, veio paramim, agarrou-me por um braço com um gesto imperativo e impaciente e disse-me ao ouvido: "William Wilson". Como por encanto,a minha embriaguez dissipou-se completamente àquelas palavras.

Havia qualquer coisa de sobrenatural nos seus modos, no tremornervoso do seu dedo erguido à altura dos meus olhos. A importânciae a solenidade repreensiva que as suas palavras surdas e sibilantescontinham, o modo, o timbre, a chave dessas sílabas simples, familiares, mas segredadas em mistério, fizeram-me estremecer comose na minha alma se tivesse produzido a descarga duma pilhaelétrica.

Durante alguns momentos, o espanto e o terror paralisaram-meo cérebro; quando voltei a mim, o estrangeiro desaparecera.

A minha imaginação desvairada sofreu um poderoso abalo comeste acontecimento, que, no entanto, se foi desvanecendo gradualmente. Na verdade, durante muitas semanas, eu pensei nele entre-gando-me umas vezes a sérias indagações, absorvido outras vezes cmmórbidos pensamentos. Não tinha dúvidas sobre a identidade dapessoa que tanto se intrometia na minha vida. Mas quem era?.—Oque era William Wilson? Donde vinha e o que pretendia? Nuncaconsegui aclarar esses pontos. Só consegui saber, de todas as investigações que fiz a seu respeito, que, no mesmo dia em que eu fugira,

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ele saíra também do colégio, forçado por um acontecimento qualquer.'Passado algum tempo, deixei, porém, de pensar nisto, absorvido comoandava com a idéia da minha próxima partida para Oxford.

Apenas cheguei àquela cidade e porque a generosidade pródigade meus pais me permitia um luxo — direi, mesmo, uma opulência— de que já não sabia prescindir, comecei a rivalizar em dissipaçõescom os primeiros herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha.

Levado ao vício por tais meios, dei livre expansão àquilo aque era naturalmente propenso. Na louca embriaguez dos meusdesregramentos, passava por cima dos conceitos mais vulgares dahonra e da decência. Seria, porém, absurdo relatar aqui essasloucuras. Acho suficiente dizer que ultrapassei as extravagânciasde Herodes. Inventei inúmeras loucuras, ajuntando assim um bemfornecido apêndice ao longo catálogo dos vícios que então reinavamna universidade mais devassa de toda a Europa.

Enfim, levado no turbilhão da libertinagem e do vício do jogo,desci até ao ponto de adquirir os ardis mais baixos dos jogadores profissionais, praticando habitualmente essa desprezível ciência comoum meio para aumentar a minha já grande fortuna à custa dos meuscolegas. Esse crime, já de si incompatível com os mais rudimentaressentimentos de honra e dignidade, constituía, por isso mesmo, aminha salvaguarda. Com efeito, qual dos meus colegas, incluindomesmo os mais depravados ousaria suspeitar do alegre, do franco, dogeneroso William Wilson, o rapaz mais honesto e mais liberal deOxford, cujas extravagâncias não eram mais do que simples expansõesda sua mocidade exuberante, cujas faltas não eram senão originalida-des inimitáveis e cujos tenebrosos vícios não passavam de simplesloucuras ?

E assim passei dois anos, quando veio para a universidade umjovem de nobreza recente, ao que diziam fabulosamente rico, denome Glendinning, que não hesitava em gastar a sua fortuna. Procurei relacionar-me com ele, e, verificando que não tinha grandeinteligência, logo decidi torná-lo vítima das minhas habilidades.

Freqüentemente o convidava a jogar, deixando que, a princípio,ganhasse consideráveis importâncias (de acordo com o processo vulgar dos jogadores). Pensei maduramente no meu plano e encontramo-nos (eu com a firme decisão de pôr em prática o que planejara)em casa dum camarada nosso, Mr. Preston, conhecido de ambos, masque, manda a verdade que se diga, nem sequer sonhava que sefosse jogar em sua casa. A fim de ocultar melhor os meus planos,fiz-me acompanhar dum grupo de oito ou dez rapazes, preparando

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tudo para que a aparição das cartas parecesse perfeitamente naturale que fosse a própria vítima a propor o jogo. Resumindo (paraabreviar um assunto de tanta vileza), basta dizer que não me esquecide nenhum dos processos usados em idênticas circunstâncias, processostão estúpidos e tão divulgados, que custa acreditar haja sempre pessoastão simples capazes de se deixarem enganar por eles. O jogo queescolhemos foi o écarté.

Só alta noite dispus as coisas de forma a ter Glendinningcomo único adversário. Os outros, interessados pelas proporçõesque o nosso jogo adquiria, haviam deixado de jogar e rodeavam anossa mesa. Glendinning baralhava, dava as cartas e jogava comum nervosismo singular; mas, durante a primeira parte da noite,obrigara-o a beber copiosamente, e eu próprio julgava que o estado denervos em que se encontrava fosse um efeito da embriaguez. Emmuito pouco tempo me ficou a dever uma considerável quantia.Bebeu, então, mais um cálice de vinho do Porto e fez precisamenteo que eu previra: quis dobrar a parada, já muito elevada. Afeteirecusar — e fi-lo com felicidade; e só quando a minha recusa ter-minante lhe provocou palavras azedas e duras, que davam à minhaanuência o aspecto duma vingança, eu acedi. O resultado foi oque não podia deixar de ser. A vítima caíra perfeitamente na armadilha e, em menos de uma hora, a sua dívida quadruplicara. Notei,então, que na fisionomia do meu adversário a vermelhidão do vinho fora substituída, quase subitamente, por uma terrível palidez.Notei-o com espanto, porque, conforme as informações que obtiveraa respeito de Glendinning, eu o supunha fabulosamente rico, e asoma que estava a perder, ainda que, na verdade, bastante elevadanão podia (pelo menos assim imaginava) causar-lhe grandes embaraços e, muito menos, impressioná-lo daquela maneira. Uma vez mais,julguei que a sua perturbação fosse conseqüência do vinho que bebe-ra. E então, para salvaguardar perante os meus colegas a reputaçãoem que era tido — que não por desinteresse — ia insistir pe-remptoriamente para que o jogo acabasse, quando percebi, por umaspalavras ditas a meu lado e por uma exclamação de desespero domeu adversário, que Glendinning estava totalmente arruinado. Ser-me-ia difícil dizer como me conduziria em tal circunstância. A deplorável situação da minha vítima sensibilizava e entristecia todos. Seguiram-se alguns minutos de silêncio profundo, durante os quaissenti, bem contra minha vontade, ruborizarem-se minhas faces sobos olhares indignados que me lançavam os menos endurecidos dogrupo. Devo mesmo confessar que senti o coração aliviado dumpeso que o amarfanhava quando se produziu uma interrupção ex-

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traordinária. As pesadas portas da sala onde estávamos abriram-serepentinamente de par em par, com tal ímpeto que todas as velasse apagaram como que por encanto. Antes, porém, que a luz se extinguisse, pudemos ver quem entrava. Era um indivíduo com aminha estatura, aproximadamente, embuçado numa capa. Agoraporém, imersos em profunda escuridão, sentíamos a sua presençaentre nós. E, antes que pudéssemos recobrar-nos do enorme espantoque ele provocara com a sua violenta entrada, ouvimos-lhe a voz:"Meus senhores", disse ele com uma voz muito baixa, ainda que suficientemente audível, uma voz inesquecível, que me causou arrepiosaté à medula dos ossos: "Não vos peço desculpas da forma intempestiva como entrei, porque, procedendo assim, nada mais fiz do que cumprir aquilo que considero um dever. Por certo não conheceis o caráterda pessoa que acaba de ganhar ao êcarté uma quantia enorme aLord Glendinning. Vou, pois, indicar-vos um modo fácil de ad-quirirdes esse conhecimento. Para isso, rogo-vos que examineis oforro do punho da sua manga esquerda e alguns pequenos maços queencontrareis nos largos bolsos do seu casaco".

Era escutado em tão profundo silêncio que, se um alfinetetivesse caído no chão, ter-se-ia ouvido o ruído. Assim que disse aúltima palavra, o estranho personagem desapareceu, e tão bruscamente como entrara. Por fim, acaso poderei eu descrever ou saberei eu próprio quais foram as minhas impressões? Apenas senti queera agarrado por muitas mãos e que se acendiam de novo as íuzes; emseguida, revistaram-me cuidadosamente. No forro da manga, encontraram as cartas principais do êcarté e, nos bolsos do jaquetão, algunsbaralhos de cartas, em tudo iguais às que usávamos nos nossos jogos,apenas com a diferença de que as minhas eram, como se costumadizer, marcadas, sendo as de maior valor um tanto mais convexasdo lado menor e as ordinárias impercepivelmente convexas dolado maior. Graças a este estratagema, o "ingênuo" que cortao baralho no sentido do comprimento — como habitualmente sefaz — corta, infalivelmente, de maneira a dar ao adversário umacarta principal, enquanto o "esperto" corta no sentido da largura,não dando assim à sua vítima senão cartas inferiores.

A descoberta que fizeram foi seguida por um silêncio desde-nhoso. Havia em todos os rostos sorrisos sarcásticos que me ferirammuito mais profundamente do que os mais indignados insultos."Senhor Wilson", disse o dono da casa, enquanto levantava do chãouma capa esplêndida forrada de ótimas peles, "senhor Wilson, istopertence-lhe" (fazia frio e eu trouxera uma capa, que tirara aoentrar), "julgo eu", acrescentou ele, fitando a capa com um sorriso

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dúbio. "Acho que é desnecessário procurar nesta capa mais provas"das suas habilidades; bastam as que já encontramos. Por certo, compreenderá a necessidade de abandonar Oxford; entretanto, convido-oa sair imediatamente de minha casa".

Enxovalhado, humilhado até a lama, é provável que eu tivessecastigado quem falava uma linguagem tão aviltante, como umaagressão pessoal, se não estivesse tão completamente absorvido porum fato excepcionalíssimo. A minha capa era riquíssima, forrada deboas e variadas peles, e — seria desnecessário acentuá-lo — de elevado preço. O talhe, inventado por mim, porque nessa altura mepreocupava muito com essas futilidades do luxo, era de fantasia.Creio mesmo que levava a minha fúria pelas modas até ao exagero.Foi por isso que, quando Mr. Preston me estendeu a capa que levantara do chão eu vi, com um espanto que melhor se diria terror, já terno braço a que me pertencia e que aquela era em tudo semelhante àminha, mesmo nos pormenores mais ínfimos. Contudo, conservei apresença de espírito; peguei-a, pu-la sobre a minha, sem que ninguémdesse por tal, e abandonei a casa com um olhar rancoroso. Nessemesmo dia, de madrugada, saí precipitadamente de Oxford e fugipara o estrangeiro cheio de medo e coberto de opróbrio.

Mas a minha fuga era vã! Triunfante, o meu amaldiçoado destino perseguiu-me, mostrando-me, à evidência, que o seu misteriosopoder mal começara. Apenas cheguei a Paris, tive imediatamenteprovas da influência de William Wilson. Os anos decorriam e elesempre a perseguir-me. Miserável!

Em Roma, com que interesse impertinente, com que ternura deespectro, ele veio colocar-se entre mim e a minha ambição! O mesmoem Viena, em Berlim, em Moscou! Onde poderia eu ir que nãotivesse imediatamente tristes razões para o amaldiçoar com todo oódio que transbordava da minha alma? E, ao fugir, cheio de pânicoe terror, da sua perseguição tirânica, dir-se-ia que procurava fugirda peste. Fugi até ao fim do mundo, mas a minha fuga era vã!

E eram sempre as mesmas perguntas as que eu fazia continua- 6mente a mim próprio. Quem é? Donde vem? E punha-me entãoa analisar minuciosamente os traços mais característicos da suajeú Imosa vigilância. Mas nem sequer nisso eu consegui algo que mepudesse servir de base às conjeturas que arquitetava. Era digno denota o fato de que, sempre que Wilson se intrometia na minha

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• vida e sempre que me desfazia planos, tratava-se de enormes loucuras,quê, a terem sido levadas a cabo, por certo me acarretariam desgraça.Por certo que é esta, para uma autoridade usada tão imperiosamente,justificação bem triste! E é também, na verdade, uma mesquinhaindenização do direito de dispor de mim próprio, o qual me era tiradoduma maneira tão insolente como contínua!

Caso curioso: embora o meu carrasco persistisse, com grandedestreza e habilidade, em imitar a minha maneira de vestir, haviamuito tempo, contudo, que, sempre que intervinha, nunca me mostrava o rosto. Fosse quem fosse esse maldito William Wilson ocerto era tal mistério ser o cúmulo do esnobismo e da tolice.

Acaso poderia eu imaginar que no meu conselheiro de Eton, nodestruidor da minha reputação em Oxford, naquele que obstara arealização das minhas ambições em Roma, a minha vingança emParis, os meus amores em Nápoles e a minha cobiça no Egito, quenesse ser, simultaneamente meu inimigo e meu gênio mau, eu nãoreconhecia o William Wilson do colégio, o meu homônimo, o meucamarada, o temido e odiado rival da casa do doutor Bransby? Eraimpossível! Mas já é tempo de contar a terrível cena com que

i terminou este" drama.

Eu sempre me submetera, até então, duma maneira covarde, àsua imperiosa vontade. Habituara-me a acatar com todo o respeitoo elevado caráter, a grande sabedoria, as ilusórias onipotência eonipresença do meu homônimo. Acatava-o com um sentimentomisto de terror e de admiração, graças a certos aspectos da suamaneira de ser e a certos privilégios que ele possuía e me davam umaidéia de fraqueza e de impotência. Era esta idéia que me obrigava a uma humildade completa, embora cheia de revolta e repugnância pelas suas arbitrárias imposições. Ultimamente, porém, abandonara-me por completo ao álcool, que atuava de forma irritante sobreo meu caráter hereditário, tornando-me mais e mais rebelde a todasas censuras. Comecei a resmungar, a hesitar, a opor resistência.Senti-me, então, possuído pelo pressentimento duma grande esperançaque me obcecava cada vez mais. Por fim, tomei, de súbito, umaresolução sombria e desesperada: — nada menos que libertar-me devez da minha submissão.

Passou-se isto em Roma, no carnaval de 18 . .; encontrava-meeu num baile de máscaras dado no palácio do duque Di Broglio.Nessa noite, bebera mais do que o costume, e sentia-me excepcionalmente irritado pela atmosfera pesada dos salões repletos de gente.Havia grande dificuldade em passar por entre os pares, o que me exasperava sobremaneira; procurava ansiosamente (não confessei aqui o

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meu indigno propósito) a jovem, alegre e bonita esposa do duque,homem velho e excêntrico. Ela contara-me, imprudentemente, amaneira como viria vestida ao baile. Quando, finalmente, a avistarano outro extremo e me dirigia para ela, senti que alguém me tocavade leve no ombro e ouvi o bem conhecido, porque inesquecível,murmúrio ao ouvido, murmúrio que eu tantas vezes já amaldiçoara!

Furioso, voltei-me para o indivíduo que ousava distrair-me domeu fim e, violentamente, segurei-o pelos ombros. Vestia, como erade prever, roupa absolutamente igual à minha: um manto de veludoazul, à espanhola, uma espada suspensa da cintura por um talimvermelho. Tinha o rosto completamente oculto por uma máscarade seda preta.

"Miserável!" exclamei com voz rouca de cólera, cólera quecrescia em mim a cada palavra que dizia. "Miserável! Embusteiro!Maldito patife! Não voltarás mais a perseguir-me, a atormentar-me!Acompanha-me, ou mato-te aqui mesmo!"

Disse estas palavras, abri passagem por entre os pares quedançavam no salão de baile e dirigi-me para uma pequena antecâma-ra contígua, sabendo que ele me seguiria irresistivelmente.

Mal entrei, empurrei-o contra a parede fronteira; fechei aporta, ao mesmo tempo que proferi uma tremenda praga, e ordenei-lhe que desembainhasse a espada. Pareceu hesitar um momento;por fim, com ligeiro suspiro, pôs-se em guarda, silenciosamente, demonstrando uma calma extraordinária.

O combate não durou muito. Exaltado como estava, nervoso echeio de ódio, sentia o meu braço forte e firme como nunca. Empoucos minutos fi-lo recuar até à parede e, uma vez ali, vendo-oimpotente para defender-se, trespassei-lhe o peito sucessivas vezes,com selvagem ferocidade.

Nesse instante, ouvi mexer na fechadura da porta. Rapidamente, tratei de impedir a importuna entrada de alguém e, em seguida,voltei de novo para junto do meu inimigo agonizante. Ah! Sóentão senti como a linguagem humana é impotente para exprimir oespanto e o horror que experimentei perante o espetáculo que seme deparou! Durante o curto momento em que me afastara, oaposento mudara completamente nas suas disposições!

No lugar onde momentos antes eu nada vira, havia agora umgrande espelho (pelo menos assim me pareceu na minha exaltação).Aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mim a minhaprópria imagem, com o rosto extremamente pálido e todo salpicadode sangue, avançando com passos lentos e vacilantes.

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Disse ser isto que se me afigurou, mas, na realidade, nadadisto ocorria. Tratava-se do meu inimigo, de William Wilson, queagonizante, se erguia perante mim. A máscara e o manto jaziam nochão. Não havia uma só peça do seu traje nem um só traço do seurosto (tão característico e tão esquisito) que não fossem meus;realizava o absoluto na identidade!

Era Wilson, mas um Wilson que já não murmurava ao falar!

Pelo contrário, falava de tal maneira alto que tive a impressãonítida de ouvir a minha própria voz dizendo:

"Venceste e eu pereço. Mas daqui para o futuro também tuestarás morto. Morreste para o mundo, para o céue para a esperança!Existias em mim. Olha bem agora para a minha morte, e nessaimagem — que é a tua — verás o teu próprio suicídio!"

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0 RETRATO- •Q.VALAI)® \.

CASTELO no qual meu criado estavadecidido a entrar à viva força, não consentindo que eu, ferido como estava, tivesse que passar a noite debaixo da

chuvarada, era um grande edifício senhorial e melancólico, quedurante muitos e muitos séculos, fora grito de guerra nos MontesApeninos.

Segundo nos disseram, tinha sido abandonado temporariamente por seus donos. Acomodamo-nos numa das salas menores, queera também a mais modestamente mobiliada. Estava situada num

torreão um tanto afastado do corpo principal do castelo; seusmóveis, seus adornos, ricos e luxuosos, pareciam maltratados pelaação do tempo e apenas conservavam poucos vestígios do antigoesplendor. Sobre as paredes caíam tapeçarias e troféus heráldicos,bem como grande quantidade de quadros modernos encerrados emmolduras de ouro e madeiras finíssimas. Devido talvez ao delírioque me produzia a alta febre, senti crescer dentro de mim um grande amor por aqueles quadros que, como prodigioso e estranho mu-

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