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t' ••' '• V& •M íl '•'r- í; V FICHA' CATALOGRÁFICA 'Preparada pelo Centro de Catalogação-na-Fonte, Câmara Brasileira do Livro, SP) Meyerhoff, Hans, 1914 M559t O tempo na literatura; tradução de Myriam Cam- pello, revisão técnica de Afrânio Coutinho. São Paulo, McGraW-Hill do Brasil, 1976. P- I. Literatura História e crítica2. Tempo 3. Tempo na literatura. 17. CDD-809.933 18. -809.9338 17. e 18. -115 76-0215 17. e 18. -809 índices para carálogo sistemático: 1. Literatura: História e crítica 809 (17. e 18.) 2. Tempo: Metafísica 115 (17. e 18.) 3. Tempo na literatura: História e crítica 809.933 (17.) 809.9338 (18.) \ HANS MEYERHOFF Professor de Literatura na Universidade da Califórnia .>£> 0 Tempo na Literatura Tradução MYRIAM CAMPELLO Revisão Técnica AFRÃNIO COUTINHO Professor Catedrático de Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro Membro da Academia Brasileira de Letras EDITORA McGRAW-HILL DO BRASIL LTDA. SÃO PAULO RIO DE JANEIRO BELO HORIZONTE PORTO ALEGRE RECIFE Auckland Bogotá Diisseldorf Johannesburg Kuala Lumpur London México Montreal New Delhi New York Panamá San Francisco St. Louis Singapore Sydney

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VFICHA' CATALOGRÁFICA

'Preparada pelo Centro de Catalogação-na-Fonte,

Câmara Brasileira do Livro, SP)

Meyerhoff, Hans, 1914 —

M559t O tempo na literatura; tradução de Myriam Cam-

pello, revisão técnica de Afrânio Coutinho. SãoPaulo, McGraW-Hill do Brasil, 1976.

P-

I. Literatura — História e crítica2. Tempo 3.

Tempo na literatura.

17. CDD-809.933

18. -809.9338

17. e 18. -115

76-0215 17. e 18. -809

índices para carálogo sistemático:

1. Literatura: História e crítica 809 (17. e 18.)

2. Tempo: Metafísica 115 (17. e 18.)3. Tempo na literatura: História e crítica 809.933

(17.) 809.9338 (18.)

\

HANS MEYERHOFF

Professor de Literatura na Universidade da Califórnia .>£>

0 Tempona Literatura

Tradução

MYRIAM CAMPELLO

Revisão Técnica

AFRÃNIO COUTINHO

Professor Catedrático de Literatura naUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Membro da Academia Brasileira de Letras

EDITORA McGRAW-HILL DO BRASIL LTDA.

SÃO PAULORIO DE JANEIROBELO HORIZONTEPORTO ALEGRERECIFE

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Do OriginalTime in Literature

Copyright ©1974 by University of Califórnia Press

Copyright © 1976 da Editora McGraw-Hill do Brasil, Ltda.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guar

dada pelo sistema "retrieval" ou transmitida de qualquer modo ou porquafquer outro meio, seja este eletrônico, mecânico de fotocópiadegravação ou outros, sem prévia autorização por escrito da Editora.

Capa: Nairo Lambert Watson

1976

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela

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in memoriam parentum

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ASPECTOS DO TEMPO NA LITERATURA

Passo agora a um exame dos principais elementos do tempocomo são tratados em obras literárias" ou em tipos literários' de filosofia, em contraste com a_aaálise_._científica do conceitode tempo.Como dissemos, esses elementos referem-se invariavelmente a certas"qualidades" significativas na experiência e nas vidas dos seres humanos, posto que inadequadamente interpretados por uma teoriacientífica ou inteiramente omitidos por ela. Os comentários seguintessobre a teoria física do tempo pretendem servir de fundo geral paradefinir, por comparação e contraste, a estrutura do tempo tal comorevelada pela Literatura.

Um. sistema axiomático do tempo na natureza envolve a clarifi-cacão de pelo menos três conceitoTprlncipms: (1)~mensuração (oumétrica); (2)_ordem; e (3) direção. <*> Critérios objetivos devem ser

1) Essas subdivisões são tomadas da obra de Hans Reichenbach; cf.Philosophie der Raum-Zeitlehre (Berlim-Leipzig: W. de Gruyter, 1928 umatradução inglesa está em preparo); Atom and Cosmos (New York: Macmillan,1933), cap. III; e The Rise of Scientific Philosophy (Berkeley e Los Angeles:University of Califórnia Press, 1951), cap. IX. O termo "definição coordenadora" é também do Sr. Reichenbach.

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elaborados para esses conceitos de modo a sermos capazes de dizerque são válidos para uma série de tempo na natureza independentemente das experiências subjetivas dos seres humanos. Esses critériosdevem coordenar um conjunto de definições de processos na naturezaantes que de processos dentro dos seres humanos. Imaginar taisdefinições coordenadoras para o significado de uma ordem, direçãoe métrica objetiva do tempo na natureza tem sido o trabalho decientistas, filósofos da ciência e lógicos. Esses conceitos, como veremos, encontram expressão totalmente diversa dentro do contexto.daexperiência e da Literatura.

Relatividade Subjetiva

A\ mensuração] ou métrica do tempo, envolve considerações comparativamente simples. Todos sabemos que nossas próprias experiências são uma base pobre _para_ medir opjetivamente o tempo.NêjsteTnstante ele se escoã~~rapido; naquele, transcorre lentamente;agora, estamos ãgudameriT^conscientêT^e cada segundo que se escoa;no momento seguinte parecemos completamente alheios ou inconscientes da passagem do tempo. Essas subjetivas irregularidades,lapsos e interpretações errôneas indicam a necessidade de critériosobjetivos para a mensuração do tempo. Através da história da ciência,nossas unidades básicas de mensuração eram consideradãs_pbi.etívasqugndp3ço^!rderKada7~cÕm certos objetos na natureza para os quaisum padrão uniforme" mensurável dê movimentò~~podia """s"êT""aétermi-nado. Algumas vezes.esses objetos foram a Terra e a"Lliã~^"r¥empolunar''; outras vezes, a Terra e o Sol — "tempo solar"; õ~astrônomoescolheu agora? como base para a medida objetiva d"õ"têmpo, a rotaçãodjjerra com referência ao sistema de estrelas fixas""^^empõ~"siHeral".Esse é o padrão mais uniforme (embora nãlTperfêiTàmente) da mensuração, e por ele ajustamos nossos relógios e calendários. É tambémcojrrpleparnejTte_objetiyo no sentido de referir-se a movimentos cujauniformidade é indepénã^teda^lfpèTi^ aespécie de movimento seleciõliã^""p'ãFãníiénsiirãç'ão pode ser .chamada arbitrária ou convencional; os próprios movinientosTnão o são.Eles fazem parte da natureza independente do homem.

Semelhante mfdjda do tempo é absolutamente indispensável paraos obietivos práticos de ação e comunicação. Sem ela estaríamos p_ejr-didos num mar de relatividade subjeika. Contudo, embora indispensável para uma ampla série de atividades, essa análise estabelece

O TEMPO NA LITERATURA 13'

uma nítida separação entre o conceito científico do tempo' e .alguns,dos mais familiares e triviais elementos do tempo na experiência. N^a.medida em que permanecemos dentro do domínio da experiênciapessoal, há uma qualidade arbitrária, irreal, sobre a mensurãçãõ~obje-tiva do tempo estabelecido por relogiõsje calendários^sideraÍs7~ Nasquestões práticas fazemos constantemente parte de uma ordem detempo objetiva medida quantitativa e uniformemente de acordo como comportamento dos objetos na natureza; ao mesmo "tempo", temosconsciência também de que esses eventos têm uma qualidade inteiramente diferente porquanto são parte da ordem subjetiva de tempo daexperiência pessoal.

O tempo enquanto íêxperimentadoWostra a qualidade da relatividade subjetiva, qu_p_caracterizado por uma espécie de irregularidade,não-uniforrnid"ãde ejdjstrjbujçjlo desigual na medida pessoaldo tempo.Essa qualidade difere radicalmente das unidades regularès7~úniformes,quantitativas de um objetivo métrico. Esse fenômeno — bem lugar-comum e familiar — tem sido extensivamente registrado na literaturapsicológico-científica. onde as condições orgânicas e psicológicas responsáveis por essa relatividade subjetiva têm sido amplamente estudadas e interpretadas. Não é meu objetivo analisar ou comentar essesestudos, e sim apenas mostrar sucintamente que o mesmo fenômenotem sido também uma fonte freqüente de admiração na literatura;'"Quando parece longo, então "é" logo; quando parece curto, então"é" curto. Mas quão curto ou longo é realmente, isso ninguém sabe."Ou: "Para que seja suscetível de ser medido, o tempo deve fluiruniformemente, mas quem disse que isso acontece? No que concerneà nossa consciência ele não flui, apenas admitimos tal coisa porqueé convenienje; e nossas unidades de mensuração são convenções pura-mente arbitrárias e consumadas." <2> Proust registra o mesmo fenômeno: "O tempo que é^nosso parausar a cada dia é elástico: aspaixões que sentimos o dilatam, as que inspiramos o contraem e ohábito o preenche." (3> De novo, nas palavras de Virginia Woolf:"A mente do homem atua estranhamente sobre o corpo do tempo.Uma vez que se aloje no singular elemento do espírito humano, umahora pode ser esticada cinqüenta ou cem vezes sua duração no relógio; por outro lado, uma hora pode ser precisamente representada

2) Thomas Mann, op. cit., p. 66.3) Citado por André Maurois, Prousts Portrait of a Genius (New York;

Harper, 1951), p. 158.

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por um segundo através do relógio da mente". <4> Essas referências,que poderiam ser multiplicadas ad libitum, devem ser suficientes parachamar a atenção para a qualidade da relatividade subjetiva na medida pessoal do tempo, segundo o tratam alguns trabalhos contemporâneos. O conflito entre essa medida subjetiva e a medida objetivados relógios é perfeitamente familiar às observações do bom sensoe aos testes psicológicos. Além disso, não é de modo nenhum oaspecto mais significativo do tempo na experiência.

Do Tempo e do Rio

Muito mais significativo é outro fenômeno, o aspe^todajduraçã_o\.Estou usando oJejmo_deBe^gson porque esse foi_p_ara ele ojgpntode-partida para uma teoria construidaim articulada~õp5sTção aoconceito físico do tempo, e porquelãl teoria tornou-o'lmTpênsádormuito influente no que diz respeito à Literatura moderna. A duraçãosignifica simplesmente que experimentamos o'tempo como um fluxocontínuo. A experiência do tempo é caracterizada nao apenas pormomentos sucessivos e múltiplas mudanças mas também por algoque permanece dentro da sucessão e mudança. Foi um ponto sustentado por Bergson, e levantado novamente no tratamento literáriodo tempo, o fato de que essa qualidade de fluxo_ contínuo ou duraçãonão encontra uma correlação adequada no conceitojísico do tempo.

De acordo com esse ponto de vista, a Física transfere o tempopara a dimensão do espaço; o intelecto "espacializa" o tempo, comosustentava Bergson, querendo dizer com isso que a. qualidade defluxo contínuo, duração e "unidade dentro da multiplicidade", característica da ^xpengnHã^õ""Jfêmpõ7"é" convertida pela teoria física emquar^idj4.es_^epa_radasJ_dlstintas é~ménslTrãveis~que" peTmarrecem^sem-pre separadas, díspares e não relacionãd^sT^õmo pontos no espaçoou marcas^jiumjcronômetro. Ê esse contraste — ou o negligenciarda duração — que o faz falar do tempo físico como de uma distorção ou falsificação da "natureza essencial" do tempo. Essa linguagem é admissívelse usada para salientar a diferença entre certosaspectos-~quaTitativos da experiência e_çextojLiLuantitaTiv^^ng nafureya. De outro modo, obviamente ignora a questão~BcTqueé "essencial" quanto ao tempo, principalmente desde que os com-

4) Virgínia Woolf, Orlando (New York: Harcourt, 1928), citado porMadeleine B. Stern, op. cit., p. 351.

O TEMPO NA LITERATURA15

ponentes pessoais e subjetivos são inadequados para a construção deuma teoria objetiva.

Zenão usava esse dilema para negar a realidade do tempo; omesmo dilema tem figurado com freqüência em destaque na literaturafilosófica. Como veremos, Kant preocupava-se, bem antes de Bergson,com a questão de como as qualidades de continuidade e unidadepodiam surgir da sucessão temporal de eventos díspares, descontínuos:^ e.g., a "duração" sobrevindo à sucessão de sons separadosdo relógio batendo a hora. Na verdade, ao tempo em que Bergsonlançava seu ataque ao tempo físico como uma distorção do tempona experiência, a teoria matemática da continuidade e do infinitodesenvolvida por Cantor, Russell e outros resolvia o dilema de Bergsone os paradoxos de Zenão, apresentando uma reconstrução lógica precisa das propriedades relativas à experiência da duração, fluxo oumudança e movimento contínuos. <5> Não há qualquer evidência deque Bergson tenha levado em conta ou considerado a adequação dessateoria lógica.

A Literatura não lida com esse ou qualquer outro problema aonível da teoria abstrata. Entretanto, a qualidade do fluxo contínuoou duração tem sido um tejn^pej^ne^ejnJtmbaUiosJiterárirjs do Ecíe-siastes e Heráclito a Joyce, Eliot e Thomal" Wolfe. A_conotaçãoliterária mais comum paxa_tornar essa qualidade explícit^lTõ^rribo-lismo do. "rjo" e do mar, ou a perceptíveis imagens de "vôo" e"fluxo". (6)

"No mesmo rio entramos e não entramos, estamose não estamos."

"Ao menos uma coisa é certa — a vida escoa."

"O tempo é como um rio." "Do tempo e do rio.""E o tempo passando ainda. . . como uma folha. . . des-vanecendo-se como uma flor... o tempo passando comoum rio está dentro de nós, o mar está todo à nossa volta.""Cada homem na terra guarda na pequena morada de suacarne e espírito todo o oceano da vida e do tempohumanos."

5) Cf. Berlrand Russell, Principies of Mathematics (2» ed., Londres- G.Allen, 1937), Parte V: Infinity e Continuity; e Our Knowledge of the ExternaiWorld (New York: Norton, 1929), caps. V, VI, VII.

6) Os grupos seguintes de citações são de Heráclito, Ornar Khayyám,lhomas Wolfe, James Joyce e de novo Wolfe, nesta ordem.

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"Rio correndo, deixando para trás o passado de Adãoe Eva". "Ao lado das águas ribeirinhas, águas para cáe para lá."

"A vida é como um rio, e tão fixa, tão inexprimívelem seu movimento incessante e em sua imutável mudançacomo é o grande rio, e o próprio tempo."

A metáfora da "corrente" ligada à consciência tornou-se o símbolo de uma técnica literária. A "corrente de consciência" significao que o simbolismo do tempo e do rio__s^mjjre_guj:sjJransmi^ istoé, que o tempo experimentado tem a qualidade de "fluir", sendoessa qualidade um elemento perdurável dentro dos, momentos sucessivos e constantemente mutáveis do tempo. A qualidade da duraçãosõbrepõe-se, por assirrTdizêr, à mudança contínua. A Literatura temutilizado abundante e repetidamente esses temas através dos tempos.A expressão de Wolfe "mudança imutável", por exemplo, ou a descoberta da própria duração por Bergson foram antecipadas pela "duração dentro da mudança" de Goethe no poema do mesmo nome. <7>Mas essa não é a única espécie de simbolismo literário empregadopara transmitir a noção da duração. Por exemplo, na seguinte passagem escrita por Virgínia Woolf a duração é realmente projetada nomundo das coisas: "... há uma coerência nas coisas, uma estabilidade; algo, "ela queria dizer, está imune à mudança, e cintila (deuuma olhada à janela com sua ondulação de luz refletida) na facedo fluxo, do fugaz, do espectral, como um rubi; tanto que de novoela teve naquela noite o sentimento que já tivera uma vez duranteo dia, sentimento de paz, de repouso. A coisa que perdura, elapensou, é feita de tais momentos". (8) Thomas Wolfe descreve umavisão semelhante da janela de um trem que passa por uma mulherna soleira de uma porta: "Fixada no não-tempo, a desleixada desapareceu, fixada, sem um momento de transição." (9) Mais uma vez,o "não-tempo" é o momento que permanece. Que essa repetiçãonão tenha tornado o tema gasto, indica quão familiar e surpreendentedeve ser esse fenômeno na experiência humana.

7) Johann W. Goethe, "Dauer im Wechsel" na série de poemas chamada Gott und Welt.

8) Virgínia Woolf, To the Lighthouse (New York: Random House,1937), p. 158.

9) Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel (New York: Random House,1934), p. 192; citado por Margaret Church, "Thomas Wolfe: Dark Time",Publications of the Modem Language Association, LXIV (set, 1939), 629-638.

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Do ponto de vista psicológico, o fluxo contínuo e a duraçãosão freqüentemente encarados como constituintes da expênencia do'j?resente especioso". Este é apenas outro termo .introduzido paradescrever o aspecto de amplitude, extensão ou duração da experiênciamomentânea do tempo contra o ponto único, abstrato, definindo ;omomento do tempo físico. Contudo, o "momento especioso" é usadotambém para sugerir que o fluxo de tempo dentro do presente jácontém alguns elementos primitivos de ordem e direção apontando-para o "passado" e o "futuro," Como disse William James (influenciado por Bergson), o presente tem "uma certa largueza na qualnos empoleiramos e da qual olhamos em duas direções dentro dotempo." <10) James queria dizer que a extensão temporal perdurandoatravés jjo_presente inclui elementos^jjn^mória_e_da experiência, eque tais_ elementos,^embrados e antecipados, aglutinando-se na- experiência do presente^ especioso', hos""sugejel^de "antes" e "depois", de "anterior"' e "posterior", de "passado" e"Jumro^^-^^térmòs qüé"sé7éferérrrT^MênTe^direção do fêMpo,. Essasdivisões em termos de memória e expectativa foram, como vimos,as escolhidas por Santo Agostinho como chave de uma teoria filosófica do tempo, inteiramente baseada na experiência.

Ordem e Associação

A memória e a experiência, portanto, parecem introduzir umabase primordial para a distinção entre os eventos, que sãodenomi-nados "anteriores" (i.e., passado) e os eventos denominados "pos-teriores" (i.e., futuro), nem mesmo dentro do presente especioso.Essas distinções, entretanto, não conseguirão uma ordenação "objetiva" do tempo seriado no passado e no futuro. Elas não satisfazema exigência, geralmente endossada pelo bom senso e indispensávelpara uma teoria científica, de que haja uma série temporal de eventos na natureza e na história independente de nossas experiênciassubjetivas e às quais nossas recordações e antecipações podem ounão corresponder. Além disso, memória e expectativa são prover-bialmente vagas, ambíguas e falíveis. São vagas porquanto freqüentemente se fundem e se sobrepõem, mesmo no presente; e são falíveis ou uma constante fonte de erro e engano devido a numerosos

10) William James, Principies of Psychology (New York: Holt, 1899),I, cap. 17; o capítulo completo sobre o "Tempo", de James, ainda vale muitoa pena ser lido.

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r&, mecanismos psicológicos -«- tais -como esquecer, reprimir, distorcernç ou. projetai.' Esses efeitos têm sido freqüentemente estudados na

"•f^ - literatura psicológica.

^ V• ' Pode-se atribuir ao conceito da ordem do tempo um significadoI objetivcTqüando tafcõnceito é_c^or^na^_3m^_pjrhTçjr^__da_3ãu-\ sluTdãcTé. KãhTTèT^õlsã^eníélhante em sua famosa justificação do"l prTncTpío da causalidade. Em resposta ao ceticismo de Hume, Kant

tentou mostrar que a catisa]idade_erajndispensável para^unia^^r.de-nação~^õbjèüva dos eventos no tempo. Oque queremos dizer quandoafirmamos que A é "anterior" a B, falando objetivamente, i.e., independentemente do modo como experimentamos ou lembramos a seqüência de eventos, é que podemos construir uma relação causaientre os dois eventos. Se A é a causa_risJL então A deve ser "anterior" a B; A deve "precederi'_JB; ou A pertencerão passado, JB_aofutujxu Assim somente pressupondo o~p7mcípiô 3a causalidadej)ode-

' mgs_.distinffluTlmtK^^ .de_ seqüên-^ciás^temporais no mundo; e desde que essa distinção, por sua vez,

esta presslipÕstã^rn todo o nosso conhecimento sobre a natureza,Kant conclui que a causalidade em si deve ser um princípio objetivo na natureza. Se essa conclusão foi ou não justificada não nosinteressa aqui.

O uso do princípio causai para a definiçãr^ejjma__gjjdem de- tempo objetiva e visto maisij_.fj£Ílmenj£_iiox^am^d^g__p_roçgssos/irreversíveis da natureza; e.g., passar um filme de trás para frentefõu^õjíçs^tf^õvos batidos. <u> O que é tj^"estranho" jiessas

seqüências éJ_o_iato_dj_rdação causa e _gfeito ser violada; isto é,revolver os ovos com uma colher faz com que eles fiquem mexidos, e não vice-versa; daí dizermos que a ordem do tempo é erradae distorcida; passado e futuro são opostos. Um fato empírico destemundo vem a ser que causa_g_efeito_ definam essa única ordem serial

^oJempãTse não o fizessem, não poderíamos dar essa interpretaçãoempírica, objetiva das noções de "anterior" e "posterior" ou aosconceitos de passado e futuro.

A rigor, os processos irreversíveis mencionados definem nãoapenas a ordem mas também a direção do tempo. A ordem sozinhaé uma relação assimétrica determinada por causa e efeito, mesmose não sabemos que essa relação é irreversível. Dando-se A_comp

11) Hans Reichenbach, The Rise of Scientific Philosophy, pp. 148-149.

O TEMPO NA LITERATURA

causa e B como efeito, essa reja^ão_estjb_ej£jaeJJurria_o""Hõr" e~ "posterioFV^^assãcTr?"' e .''futoo^_s^m_quaIà direçaõjffiima dessa^ seqüência temporal. Contudo,wrsív£Ís_çj)rniLJriiejtejLi^^ordem causai unidirecional. Em outras palavras,conceito de ordem a noção de que a seqüência de "aiterior", "passado" e "futuro" avança apenas numa so

Outro critério empírico pode ser_usad.o_paia_.iiispassado e futuro. <12> £ um fato empírico sobre o mu"do nossas^próprias mentes — que o passadodeixa tr.regi_str_oSj_e_o futuro não. Assim, dizemos que um eventou pertence à ordem do passado se deixou um trregistro; eventos que ainda não deixaram um registrefuturo. Por passado queremos dizer, então, a colihistória^registrada — seja do universo ou do homeaquilo que não tem história. Traços e registros doser naturais ou feitos pelo homem. Assim, deixaminscrevemos marcas para nos orientar em relação a uitiva de tempo contra a vaga e falível ordem dos event

A_mente humana_é_também um ''jnstrurnento dea terra (registros geológicos) ou as "ferramentas e ihomem. Iregislros.;../ãrqueoTogicos); e o que chamamosrejjositó_rio_ ou reservatório de registros, traços e marpas_ados, análogos aos registros preservados nos estrato;Não háj^u^lç^r__jn_mória do futuro. É somente pcfato empírico que a memória serve como base subjetivaexperimentado. A rigor, esse fato é uma conseqücausai para uma ordem do tempo objetiva; pois onde itremos traços — sejam pegadas na areia, impressõearma ou faces indelevelmente gravadas na memória -esses registros foram causados por eventos que os 'não o resultado de eventos que ocorreram posteriorrr

12) Hans Reichenbach, "Les Fondements Logiques ddes Quanta", Annales de 1'Institute Henri Poincaré (1953),

13) A analogia entre a mente e a estratificação geo'lógica é encontrada em Mareei Proust. Remembrance of jYork: Random House, 1934), I, 143; e na eloqüente deno início de Civilization and Its Discontents (3* ed., Londn& Inst. of Psychoanalysis, 1946), pp. 15 ff. A Geologia e a .naturalmente, ciências "temporais" características, desenvodezenove.

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É perfeitamente óbvio que esses fatos empíricos permeiam profundamente nossas vidas. Sermos convidados para ir a uma festa ouregistrar e lembrar esse fato corresponde a dizermos que vem "antes"de realmente irmos à festa, pois o primeiro é a causa do último.Não ocorreria a ninguém pensar que nossa ida à festa, i.e., o futuro,foi a causa do chamado telefônico convidando-nos, i.e., o passado;daí, jamais se duvidaria, nesse contexto, do critério causai para umaordenação objetiva dos eventos temporais. Por isso, para todos„osobje^b/oj^práriços, reconhecemos uma ordem de. tempo.„p,bietiva definida pelo princípio da causalidade, exatamente como reconhecemos,para todos os objetivos práticos, um padrão objetivo de mensuraçãoem termos de tempo sideral. O tempo na natureza consiste nãoa2giia^jmi_umdajle_jd__jnensuraçgQ quantitativas e uniformes mastambém em uma "série uniforme" ou__"ordem_ linear" em termos- decausa e efeito. Não existe, como é dito algumas vezes, nenhumacorrente causai fechada na natureza.

Embora o princípio causai prevaleça na ordem temporal danatureza, e apesar de o corpo e mente humanos serem uma parteintegral dessa ordem física, os registros armazenados em nossas memórias colocam perguntas e criam dificuldades especiais; e estas têmsido freqüentemente exploradas por trabalhos literários. A memória é um instrumento de registro muito mais complicado e confusodo_que_a natureza, os in_strumentos_fejtos pelo homem ou~õs~registroshistóricos. Sua_çomplexidade e confusão surgerri_do_fato de q^ue, aoyi____d__jLma j)rdeinjejiaJ_uniIormex as relações^ da memória exibemuma, "ordem" de eventgs_"dinâmica, não uniforme". As~coisas'lembradas são fundidls e confundidascom_ as coisas, temidas. e__çomaqueTãiTque se tem esp_eransã_de que aconteçam.. Desejos e fantasiaspõdem_hão"só ser lembrados_como fatos^omo também os fatos lem-jrãrTos são constantemente modificados, reinterpjretados e revividosàju^daj^xlgeliciãs presentêsTTêmõres passücTòlPe esperanças futuras.

Assim, a ordem objetiva_das_seqüências temporais forma jipenasum aspecto p~arcial7~ embora indispénYáTCi7~da~~einíüTu7a "da nossa

J^5_-__i§-L e~umFÕraêrn parcial, por assim .dizer, para o.mundo dosr£lóg!°s> datas e registrosJJísicqs. Uma_porção importante do con-teú^ojdeno^ajnemória^jião exibe_ essa__espécie de ord~e_m" uniforme,serial, e sim, sobretudo, umaioiIa_í3ãrJê3 pela qual os eventos passados,presentes e futuros_são_djrjamicamente.jun^i^ uns aosojitiQS. Isso não significa, naturalmente, que o princípio dã~cãüsali-dade não se aplique ao conteúdo de nossa memória. Pelo contrário,

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dizemos que,.Q_orgulho, a vergonha, o medo e o anior, ou objetosde sonhos e| imaginaçãcj, causam, a confusão e distorção das coisaslembradas. TQelndTsso, o princípio de associação dentt*- do mundoprivado da experiência interior pressupõe tanto o princípio da causalidade quanto a conexão entre eventos físicos na natureza. Assim,a_cjm^aHdade .pjevalece..tanto .ÇL°. mundo interior quanto no exterior;porém as conexões causais (ou associações) entre eventosjfèntrò damemória não constituemjjma_ ordem objetiva, uniforme e consecutiva,do "anteriox'i-e_ "posterior" como oj^em_para e^el-tõsTrTa natureza.Ao invés,jjjjso. exibem,, como disse Bergson, uma qualidade de "interpenetração dinâmica". É esta qualidade que é particularmente significativa para a relação entre o tempo e o eu.

Essa característica do tempo na memória pode ser expressada•*\> mais precisamente: a laualidadd da interpenetração dinâmjca ;dos

^ eventos na^mgmória^jmarijfe,sta-se...-a. si mesma numq seqüência, tem-,<) põral muito ordenada. Os eventos lembrados, por mais distorcidos

e desordenados que possam ser quando encarados a partir de umquadro de _referência Jústóriço e objetivo, seguem um ao outro, deacordo" com o princípio causai, num modo ordenado; isto é, o eventoA segue o evento B etc. Assim, a questão é que essa ordem peculiarda vida interior aparece, ou deve ser julgada, como uma forma dedesordem" quando comparada com umaseqüência objetiva temporal.Em contraste com a última, a ordem dos eventos na memória exibea qualidade de associação e interpenetração dinâmicas.

Essa ordem — ou desordem — característica do tempo nasvidas humanas tornou-se um ponto central na "análise" literária dotempo e nas teorias filosóficas, como a de Bergson, que tomaramo mesmo fenômeno como ponto de partida. A notação literária para.esj^ejenôjnenoji^ E esta a "lógica^~que^rnpa-ra o método de livre associação e do monólogo interior.

A lógica de iraaggns é um mecanismo familiar na literatura,especialmente na poesia^ O termo "lógica" é, naturalmente, umadenominação inadequada, pois _essa lógica é caracterizada pelo ..fatode que suas conexões causais são totalmente diferentes, i. e^, "iló-

.Jgiçasü_==u-dâi_jconexõe_s apresentadas.pela. lógica comum, onde seinclui a lógica do senso comum ou a lógica das inferências indutivas,cjmsais,...definindo seqüências e conexões objetivas rio mundò_exter-nQ. Através disso, a lógica de imagens ou associação é uma tentativa de mostrar que, tanto quanto diz respeito às seqüências temporais

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e "Ordem" dos eventos dentro do mundo interior da experiência e damemória, precisamos empregar símbolos de "desordem" que violem aordem e progressão estritamente "lógicas" dos eventos, às quais fomosacostumados pela ciência e pelo senso comum. Precisamos fazer talcoisa porque o mundo interior da experiência e da memória exibeuma estrutura "qTjê~TlíãTfsaTmerite' determinàdãjrnais"" poT"associaçõessignificativas" do que por conexões causais objetivas no mundo exterior. Traiisrjiiíir_e^sa._es.tj.utura_p_eçuliar requer, assim7~um simbo-lisniQ_£inJmagís!icj^ de tempo —passado,,, presente e futuro — nãojjgjam serial, progressiva,_e_un_ifor-rnejagjiie__oaknadas__fi sim S£mpre_inextriçJ_vel_e _jftn_amicjimenteassociadas e mescladas umas às outras. «,,<-- s-\^-—-rs•- ^ _ — » pf^JCx^&Q

A lógica de imagens não é uma descoberta da literatura contemporânea; é impossível abordar qualquer trabalho literário sem usaresse mecanismo como chave para a sua estrutura, ordem e "significado". A característica da literatura moderna é_o_d_esenvolvimentode uma técnica elaborada e intricada de "associação" — de "asso-ciação~lTvre1ri, como às vezes é chamada segundo o termo psicanalíticocom o qual se relaciona mas do qual difere — para transmitir essalógica de imagens. "Amo a palavra 'associação'; para mim, eembora num sentido relativo, aquilo que está cheio de associações émuito precisamente aquilo que é significativo." <H>

A significação, de acordo com essa declaração de Thomas Mann,é uma função da qualidade da associação dinâmica dos eventos naexperiência. É por associação que as seqüências dos_ eventos^ naexperiência humana éstãõ~~cãfregã^as de valores ou desvalores. ASH7rn^caçãop^ãõ^_^^[e-se a j4.m^asp_e.c_tç7jdã experiência carregadode_valõÃ "embora num sentido relativo". É nesse sentido que euuso o termo ao longo deste estudo. Esse_sj^^^e__s]^nificacão,por isso, deve ser diferençado do termo "significado" no sentido ló-gicj^JõbjejTvòT Não~e^~pãxã usar linia" Terminologia diferente, umsenso de "significado" cognitivo, mas um senso de "significado"carregado de valor; a Literatura e as Artes têm sempre lidado predominantemente com essa espécie de significado no sentido da significação. Mais uma vez seria supérfluo citar qualquer evidênciaespecífica para o papel que a técnica associativa tem desempenhadona literatura moderna. Na_poesia dos simbolistas e imagistas, na

14) Joseph G. Brennan, Thomas Mann's World, (New York: ColumbiaUniversity Press, 1942), p. 142.

O TEMPO NA LITERATURA 23

corrente de consciência do romance, a fusão^dmâmica do£ elementostemporais é uma das cajnicjerístjc^da Literatura" moderna. "O monólogo interior aparece como o próprio romance do tempo." (15> E exemplos dessa espécie abundamna prosa contemporânea: em Proust e Valéry, Joyce e Virgínia Woolf,Doeblin e Hermann Hesse, Dos Passos e Faulkner.

Desejo examinar resumidamente um desenvolvimento extremodessa tendência. As qualidades^ de_jluxo_ contínuo, duração e associaçãodinâmica são muito vividas no sono, n^s""s^nTws~T~frãs~"fan-tàsias — aj_experiêira Na medida emqúelTTiteratura moderna, como a cúltuTãlfiõcIêrrnrem geral, se tornouespecialmente consciente do tempo, escolheu com freqüência tais estados do eu como chave para tornar esses aspectos do tempo explícitose articulados. Ao dormir, como no início de Du Cote de Chez Swann;em sonhos e fantasias, como em Finnegans Wake; e em estados dealucinação normais ou induzidos por drogas, como em The Confessionsof an Opium Eater, ou em Kubla Khan, há a experiência mais purada duração assim como da fusão dinâmica de todos os elementoscomumente divididos de acordo com uma ordem de tempo objetiva.Há um flux.p_£ojatínuo e uma mistura completa de "antes" e "depois"pjJ__de_^assAc!a_.e..iiituxo suspendendo e&sas..categorias objetivas e,embora possa ser estranho à lógica comum, abarcando_ todos ose^ejitoj_jle_jima_noite_ oj.i,_o jtcjrnp_ulado_estoque de experienciãsTeIJHâ-Jvida^ inteira, até mesmo estendendo-se alénTdãs fronteiras daexperiência e da memória individual para "perpetuar" aspectos davida da humanidade. Como De Quincey confessou sob a influênciade drogas: "O sentido de espaço e, no final, o sentido de tempoforam ambos poderosamente afetados... Às vezes, parecia-me tervivido cem anos em uma noite; mais ainda, por vezes eu tinha aimpressão de uma 'duração' bem além dos limites de qualquer experiência humana." <16> O registro de De Quincey corresponde estreitamente à enorme extensão e condensação do tempo obtidas em obrascomo Mrs. Dalloway ou Finnegans Wake. Um dia ou noite estende-se por uma vida inteira e mais além. Se tal perspectiva temporalé_iintroduzida,^fastando-se tão radicalmente de qualquer^õrcfem emedida objetivas1_não_é difícil dar outro passo e dizer que as_rn..odali-dades_comuns detempo __—_ passado, presente e futuro — são^ a

15) Jean Pouillon, Temps et Roman (Paris: Gallimard, 1946), Parte II,Caps. 1 e 2 intitulados Les Romans de Ia Durée.

16) Citado por Madeleine B. Stern, op. cit., p. 347. (Grifo do autor.)

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rigor, indiscerníveis na experiência; que estão contidas (mesmo asrealmente não experimentadas) como possibilidades infinitas dentrode_"qual£ueri^momento da duração da vida de um indivíduo; ou quepodem ser encaradas sob o aspecto de uma co-presença não subordinada pelo tempo. Então é possível dizer, como Wolfe, que "veremos começar em Creta há quatro mil anos atrás o amor que terminouontem no Texas". Essa peculiar noção de uma co-presença nãosubordinada ao tempo de elementos temporais na fantasia e naimaginação será considerada mais adiante.

Mais uma vez, não é apenas o escritor moderno ou "surrealista"— Baudelaire, Rimbaud, Strindberg, Schnitzler, Joyce, Cocteau eoutros — que escolhe escrever romances, peças e poesias fantásticas.Apenas esses temas se tornaram mais freqüentes na Literatura recentedo que o eram no passado. Spnj^s_je^a.nlasias_são_experiênciasespecialmente çonvenie.nLe.s._para iransmitir,. tanto. ..a. qualidade daduração quanto aqualidade da desordem e_ass.ociação dinâmicas.Muito caracteristicamente são esses os aspectos da experiência maisafastados dos dados relevantes para a construção de uma teoriaobjetiva sobre o tempo e para investigações práticas sobre a vida.O simbolismo fantástico em si é tão velho como The Sleeping Beauty.O conto de fada, contudo, expressa um aspecto bem diferente dotempo; pois a Bela Adormecida é despertada do sono eterno e dabeleza imortal para voltar ao mundo do tempo e da mortalidade.

Do Tempo e do Eu

Goethe chamou as suas lembranças do passado "Poesia e Verdade" (Dichtung und Wahrheit). O título indica que a reconstruçãoliterária de uma vida envolve invariavelmente duas dimensões: um

modelo subjetivo de associações significativas (poesia) e uma estruturaobjetiva de eventos biográficos e históricos verificáveis (verdade).Ambas as dimensões estão presentes, não apenas nas formas biográficas e autobiográficas de Literatura mas em qualquer retrato literário. Não hájmaneira de construir-se a vida.jjejrm homem, sejaela real ou ficcional, exceto através^ da Feconstrução de seu passaBolerrLjermos das associações significativas^sob.r.ep.on.do-s^^ã^_].7lãarbshistóricos,, objetivos, ou eplãomostrando a mistura inseparável dasduas dimensões. O que pode^ser chlirnadò~T.Tma "reconstrução literária" do homem tem usado sempre, além dos dados históricos, obje-Jiyos, o modelo das associações significativas nacorrente de cons-

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O TEMPO NA LITERATURA 25

ciência e na memória como a chave mais importante para aLeaíluturada personalidade ou identidade do eu.

Assim o problema do tempo na experiência tem suas implicações mais interessantes em conjunção com o problema do homem."O tempo é o veículo da narração como é também o veículo davida." Precisamos tentar mostrar agora como algumas das qualidadesdo tempo, que mal acabamos de elaborar, adquirem significado especial em conexão com o retrato literário do homem.

viNesse ponto, o tratamento literário do tempo e do eu funde-se

jrf Jx^mpercepüveh'nente com ° 9ue_ Çhamamo.s.. .l^tipos!._iiterárip_s,'' aVjilo-v'"" ^" sõfiaTComo disse Dlltrlêy, o homem pode não ter uma natureza, masV

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tem certamente uma história. Assim, o tempo, ou o aspecto histórico da existência humana, tornou-se o ponto focai para uma análise"existencialista" do homem. De acordo_g_om Heidegger,JL-teiD-BO—ea_£ategoria_J)ásica da existência, (17) o tempo tal como _é__exgerimen-

>., tado_peJp_pxópJÍoJiLdivírJuo,, nãp_çpnw. regr^tra"a5rpéIo„e.spciências nalu.rais.ou..peIo,hist.Qriado.r. O tempo é carregado de "signi-ficaçãoJLpJ.r_a jD.Jwm.em_ppr^ue_a^yida humana é vivida à sombra dotempo; porque a pergunta o que "sou" apenas faz sentido em termosHõ"êm que me tenho "tornado," isto é, em termos dos fatos históricosobjetivos juntamente com o modelo de associações significativasconstituindo a biografia ou a identidade do eu.

Em relação a isso — mas não apenas em relação a isso — todasas variedades de existencialismo, tanto passadas como contemporâneas, são tipos literários de filosofia. A "existência" a respeito daqual falam é a existência humana como jf direta~"é imediatamenteèxpèTímêntada pelo.próprio indivíduo, não a eskuturãjõb^tivã_de__suavidajipmo se apresenta a um observador.de fora, seja cientista, sejahistoriador. O tempo — ou qualquer outra categoria existencialista— só é significativo dentro do mesmo contexto de experiência pessoal,não dentro do contexto da natureza. Seria ridículo dizer que asteorias de Bergson ou Heidegger — não importa o que desejemospensar delas — dão uma contribuição para a solução do tempo na

17) Cf. título do Sein und Zeit de M. Heidegger (6* ed., Tübingen:Neomarius, 1949); o subtítulo da Parte I, que segundo a introdução constituitodo esse volume (a Parte II, que devia ser um segundo volume, nunca foipublicada), torna tal ponto ainda mais explícito. Lê-se: "A interpretação deDasein com base na temporalidade e a explicação do tempo como o horizontetranscendental da questão do Sein."

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mecânica do quantum; e, tanto quanto sei, ninguém jamais fez talafirmação. São diferentes questões saber se contribuem para esclarecer a "significação" do tempo como o sentimos em nossas vidaspessoais ou como o relacionamos com a biografia e a identidade doeu. Desse ponto de vista, a LiteraturaJambiarLLem.sido.sempre "existencial"; P^Í£^n2Pi!ÊJÍa^y_l0_nlenÍei com os aspectos_do tempo considerados nas vidas dos seres humanos. Assim, não é acidental que"os escritoè¥~exTstenciali"stas tenham sidcTTnuito mais homm.es deTéttres do que especlãTÍst"ãs~êm "alguma "disSpIinã_cieritíficã; ou queuma análise de artê^eHííteratüFa seja invariavelmente mais uma partecentral e integral de suas filosofias do que um aspecto periférico,tangencial, como nas maiorias das filosofias científicas; e que a metodologia desses escritores seja análoga à da Literatura ao apelar para omundo da experiência interior, dos estados subjetivos da mente epara a configuração total da vida de um homem em vez de paracritérios objetivos de evidência e prova reconhecidas por um métodocientífico. Essa correspondência entre literatura e o que denomineitipos literários de filosofia é elaborada no último capítulo.

Assim, o tempo sentido^ é uma categoria indispensável para avida. Entretanto, aplicando essa categoria a uma descrição de vida.humana, seja literária ou científica, somos confrontados de novo comum dilema peculiar. Por um lado, o tempo pertence à essência; poroutro lado, a natureza do tempo e as experiências no tempo são taisque parecem afastar o objetivo dessa descrição: a possibilidade dereconstruir e justificar a noção de uma vida contínua ou de um euidêntico. E não faz qualquer diferença olharmos o tempo como parteda natureza ou parte de nossa experiência pessoal. Os aspectos"gjfalitjtivo^jdo^empo_nas_experiências__e as nulidades "quantitativas"do tempo físico parecem originar o mesmo dilema: ambos parecemdescontínuos, difererr^ej_e_jTãj)^elacionados; p_or_jsso.Jnci2mpatív£Íscom acrença comum de que. a..vida. de_.uma. pessoa exibe algumsenTid5jiej:õritiríüidIde, correlatividade e identidade. O problema éparticularmente agudo porque emerge do contexto da experiência. (18)

A Literatura tem usado freqüentemente variações desse dilema.TalyezJHeráclito tenha sido o primeiro a preocupar-.se„explicitamentesobre coma podemos caminhar pelo "mesmo" rjp^duasyezeSj uma vezque águas novas — i.e., "diferentes" — estão correndo constantemente

18) A esse respeito, difere da discussão prévia baseada no contraste entretempo na experiência e tempo na natureza.

O TEMPO NA LITERATURA 27

pot_eie. O mesmo_£iiigma .aplica-se ao _xio de tempo dentro de. nós;mais uma vez, é difícil ye_r_.cj3mQ.pj3.d£mQS...mergu^ riode nossos próprios eus, seja no passado ou no presente, se os mo-m^nto^que^çapfa^mos são sempre diferentes. O que somos, nós osomos apenas no tempo e através dele: mas somos também constantemente "modfficãdos nQjemrxLX-DelQj&mpo. O tempo nos faz e nosdesfaz^J:anto_.no_. sentido...físico da mudança da estrutura celular docorpo — completamente renovada, afirma-se, a cada período de anos— e nosentidq psicológico de, um. fluxo de consciência constantemente mutável. O que é então esse.eu, função da sucessão temporaldos" diferentes eventos e seus resíduos armazenados na memória? Oquê" justifica a cFença comum, se algo a justifica, de que existe uma

"p^ssõ^"ü1rrêü"15ü~üma vicia humana exibindo algum.s"entido de_conti-'nüldãcle, identidade ou unidade estrutural no meio e através das mu-'̂ãnç'ãs~caTeidoscoptcas características do corpo físico, da experiência

momentânea e. da memória?

Foram essas questões metafísicas de antigo relevo e prestígioque absorveram algumas das maiores inteligências através da história do pensamento humano. Não proponho uma solução nova nemalgo como uma análise detalhada dessas questões. Desejo meramente ressaltar certos aspectos do problema do eu que parecem estardiretamente relacionados com algumas das qualidades do tempo naexperiência e para os quais a representação literária do homem pareceter dado uma contribuição interessante.

0._modo mais familiar de lidar-se com esse problema, na tradição filosófica e religí5sã^rmün'do ocidental, é dizer-se_que o eu"verdadeiro".'ou a—alma, é uma substância; isto é,uma_ entidadeseparadaj^dis_tinta_ do corpo mutável. Continuidade, identidade, unidade, simplicidade'"e individualidade podem então ser atribuídas aesse eu, ou alma, em virtude de esta ser uma substância, uma vez quesubstâncias são consideradas possuidoras dessas características. Éesse um ponto de vista antigo na história do pensamento humanoque ainda goza, a despeito de críticas freqüentes, de praticamente ummonopólio na linguagem e no pensamento do homem moderno.Uma razão parada sua popularidade é que inclui a confortadoracrençalde que~ a alma (ou pelo menos uma parte essencial dela)^éindestrutível —"isto" é, imortal. Essa opinião se choca com grandesobstáculos porque os argumentos lógicos e/ou empíricos em suadefesa não são muito convincentes. Não discutirei esses argumen-

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tos nem a crítica freqüente levantada contra eles. <19) É interessanteobservar quão pouco essa crítica, embora convincente e poderosa,foi capaz de influenciar nossos hábitos lingüísticos e o clima geralde pensamento. De acordo com ambos, o conceito do eu comoalgo sólido e substancial permanece uma auto-evidência aproximada,uma premissa maior inarticulada. Aparentemente a "significação"que reveste o conceito tende a prevalecer sobre quaisquer dificuldades encontradas na explicação de eu "significado" cognitivo.Abstenho-me de discutir essa opinião parcialmente porque os problemas que levanta conduziriam muito além do escopo deste ensaio,e parcialmente porque a Literatura contemporânea não empregao conceito tradicional de um eu substancial — embora, como veremos, tenha feito uma notável contribuição ao problema da unidadefuncional do eu.

Há outra teoria_.farniliar sobre o_eu que_defende o_ponto_devista_ oposto. Desacordo com ela, não existe o eu, e o Tradicionalççjicejtp^e^identidade .pessoal repousa num engano. Tal é" o" resultado da analise rJêTííime "sobre" o prõblérrm~riõ~T/-e:arwe of HumanNaíure, mas pensadores da Índia já haviam chegado a essa conclusãomuito tempo atrás, especialmente os pensadores budistas. Para ospensadores indianos — assim como para alguns de seus expoentesna literatura contemporânea — a_negação da individuajidade é. par-cÍ5Í01eilÍÊ„Ç1erivada de uma negação "do. têmpo7"e"pãTcialmente de umaanálise empírica antecipando a de Hume. <20> Como o tempo émau e ilusório, assim é o eu nascido e criado no tempo. Toda ahteraj^rjjT^stjcj^^ uma ilusão,e/ou um mal.4.Igalidade perfeita é encarada inva£iajelmente .conip_ estando além etorajdp.tempo; cp^sej^n^ten^ só pode ser"conseguida

19) Uma recente análise pormenorizada da argumentação enganosa envolvida na noção de um eu substancial pode ser encontrada em The Conceptof Mind de Gilbert Ryle (Londres: Hutchinson's, 1949). Creio que Rylepreocupa-se indevidamente com Descartes como se fosse este a bêtc noire.Descartes apenas apresentou uma versão sofisticada da crença geral predominantemente sustentada no ocidente até nossos dias.

20) Para uma explicação não-técnica da doutrina budista do eu composto de vários "feixes" (skandhas) análoga à análise de Hume, cf. F. HaroldSmith The Buddhist Way of Life (Londres: Hutchinson's, 1951), pp. 46 ff.;e o Buddhism de Christmas Humphreys (Harmondsworth, Middlesex, Inglaterra: Penguin Books. 1951). pp. 87 ff., 119, passim. Esse volume pequenoe barato contem também uma excelente bibliografia que se refere a estudosmais técnicos de vários aspectos do Budismo, inclusive a doutrina do eu.

O TEMPO NA LITERATURA 29

através da libertação do tempo, dos desejos e da personalidade.' Diz"o"^rotagonistã~deArdr3üV"Huxley em After Many-a Summer Dies lheSwann: "Quanto mais se respeita uma personalidade, riiais chancesse tem de descobrir que toda personalidade é uma prisão.' O bempotencial é qualquer coisa que nos ajude a sair da prisão. O bemreal está fora da prisão, no tempo que não pode ser medido, no estadode pura e desinteressada consciência." <21> Em seu Perennial Phi-losophy, Huxley cita uma passagem que toca no mesmo ponto com'uma linguagem muito mais forte: "Ele (homem) descobriu para sempre seu conhecimento e sentimento (de Deus) ocupado e preenchidocom um pedaço sujo e fétido de si mesmo, o qual deve ser sempre 'odiado, desprezado e abandonado, se ele for o perfeito discípulo deDeus. . . (22) A individualidade é assim reduzida ao nível de um

"pedaço sujo e fétido" —- expressão que é bastante comum na literatura religiosa do Ocidente aplicada ao eu físico, mas não ao euespiritual. De acordo com esse ponto de vista, o eu, na melhor dashipóteses, é uma ilusão; na pior, um terrível mal, porque os mesmosatributos são imputados ao tempo.

Entretanto, o status do eu pode também ser^rnea£ado_por_en-cararo.tempo por seu_ valor nominal. Essa é a premissa da anájisede Hume e da epistemologia budista que antecipou Hume. Ambasestão explicitamente firmadas sobre o fato da sucessão tempbral eda variação na experiência; e é interessante que o tratamento literáriodo_teinpo provenha .da mesma premissa. É precisamente porque aexperiência de Hume consiste em "percepções que se sucedem umasàs outras com uma rapidez inconcebível, e estão em fluxo e movimento perpétuos" que o eu não é nem podesersenão um feixe oucoleção de percepções diferentes sem^jmalquer_ espécie de unidade,identidade ou... estrutura.substancial. "A mente", escrevêü""èle numaanalogia reminiscente de Shakespeare, "é uma espécie de teatro ondevárias percepções aparecem sucessivamente; passam, repassam, deslizam e misturam-se numa infinita variedade de posturas e situações.Não há propriamente nenhuma "simplicidade" nela em um determinado tempo, nem "identidade" num tempo diverso; qualquer que sejaa propensão natural que possamos ter para imaginar tal simplicidadee identidade." Assim, "_4^yj^erite_Xpara_Hum.e) que a identidade., queatribuímos à mente humana. . . "não é capaz de fundir as várias per-

21) (New York: Avon Publications, Inc., 1952), p. 124.

22) (New York e Londres: Harper, 1945), p. 37.

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eepcoes.djferente^numa.sA" e_Xazê:iasjperder seu caráter de distinção.è diferença, essenciais para elas." (23>

A análise de Hume sobre a identidade pessoal apresentou omais sério desafio para o pensamento moderno, pois parecia estarbaseada no mundo da experiência e colocava o dilema básico emtermos surpreendentes. Pode aquilo que_é composto de_eIementoscaracterizados pela "distinção^ diferença",'"ser encarado como se tivesseuma espécie de estrutura jtinitjma."contínua~taTcõrnoTé" atribuído auinjj^ssoa.ou a uma vida humana completa?"" Naturalmente Humeestava plenamente consciente de nossa natural propensão a imputaridentidade a objetos e pessoas; e tentou explicar a origem e a basedessa propensão. Ele concluiu que as únicas relações constituindo

' a estrutura da memória eram "a fonte da identidade pftsSnal paraseres humanos"; ag relações primárias que acreditava terem dado origem a essa estrutura única denominada eu era "semelhança" e"causalidade" (ou associações). <24) Lord Russell elaborou uma teoriasimilar em nossa própria época.

Sem dúvida a memória entra como partejntegral na construção(QP-jeconstrucão) da identidade de uma pe"sgo£_plntTda liTim""retratolííSíáíiPi acredito entretanto que este tenha"ido invariavelmente alémda análise de Hume sobre a experiência, ap_ exibir um sentidóTdecontinuidade e unidade funcional do_eu em meio à sucessão e mu-dançalèmporãr Dois aspectos do éu..são_^.sae.cia.lmente relevantespara_e^seJra^ameiito_^&r^m7\^^^^Lji_saíjQ2x^s/s^^.^j^rQ.da _sucessão de impressões e idéias diferentes, uma tendência paraa organização dinâmica^ e_econômica. Não é apenas um gravadorpassivo, mas um participante ativo; eje_int£rprelai_prgamza_ e sinte-fÍ512_9u-?-Iê£ÊÍ'.i; EBílií1?.^ ° faz de um ponto de vista fecoiiômícõ",L--£^-dir^spJcjiva_do_eu como um "todo, sendcTessas "funções deeconomia_e^Qrganizáçjo cçãs]Heradaj]cjTacje7ísticas da individualidade.Ejrijgggujiflõjlugar, o eu é experimentado como exitandV "uma certaqualidade de continuidade. A despeito da rápida sucessão dos "diferentes momentos temporais e a despeito das mudanças físicas e orgânicas do corpo, o eu não é, simplesmente, um rótulo convenienteligado a um grupo ou coleção desses elementos, mas parece uma

23) David Hume, A Treatise of Human Nature, ed. de L.A. Selby-Bigge (Oxford: Clarendon, 1888), Livro I, Secção VI: Of Personal hlentityAs passagens ciladas são das pp. 252, 253, 259. Os grifos na última citaçãosão do autor.

24) Ibid., p. 261.

O TEMPO NA LITERATURA 31

espécie de estrutura exibindo continuidade e unidade das quais oindivíduo é diretamente consciente ao considerar-se a mesma pessoadurante toda a sua vida. Esses.,dois_aspectos são.apresentados comocaracterísticos do^gu, originando alg^jm_sentido de correlação e inte-gjagão entre a multiplicidade de partes heterogêneas "qíie associamosà idejitidaciê"~pessoálI„ Ambos"dévêm,~de "álgüm modo, ser explicados.Ambos parecem negligenciados ou descurados na análise de Hume.E ambos desempenharam uma parte importante na literatura filosófica e psicológica desde Hume, e vieram a representar um papelcentral na que é freqüentemente denominada "psicologia do ego" emnossos dias. (25>

AJLiteratura ocupou-se_corn_ freqüência desses aspectos da natureza humana. Sennsrejpjntõu o~homem como o centroje forçasativas, dinâmicas, capazes ou incapazes" de" controlar, sintetizar eojr£ajy^aj_ o_s_eiemer^^estrutura e identidade funcional denominada pessoa ou personagem.A esse respeito, a afirmação de Hume com relação ao "resto dahumanidade" (excluindo apenas os "metafísicos") de que os homens"são apenas um conjunto ou coleção de percepções diferentes" nãose ajusta ao retrato do homem descrito pela experiência de poetase escritores. Embora o quadro do eu como entidade substancialesteja geralmente ausente de_irabaThos literários, o modelo de unidadeffiiaonal éconstantemente.exposto. Õ homem é mostrado não ape-nãs__çomo jim repositório de percepções e memórias, maspredomi-nan^ejnejriie_^çi)mo"_um ativas, "auto-reguladoras". Esão essas_ funções que servem para transmitir à própria pessoa e aoleitor o fato de_quelumrcérta conjunto de experiências "diferentes"

25) O termo "psicologia do ego" é usado primeiramente na literaturapsicanalítica; cf. Anna Freud, The Ego and the Mechanism of Defense (NewYork: Norton, 1946) ou Otto Fenichel, The Psychoanalytic Theory of Neurosis(New York: Norton, 1945), pp. 463 ff. A frase "organização dinâmica eeconômica" usada no texto é de Fenichel, ibid., p. 466. Contudo, devo enfatizar de novo que não pretendo fazer uma análise psicológica do ego. Issoseria impossível dentro do objetivo deste ensaio. Introduzi as duas condições,os princípios da organização dinâmica e a continuidade temporal, como condições mínimas para o que é conhecido como identidade pessoal na experiência (negligenciada por uma análise como a de Hume) e a fim de mostrarem que sentido e por que meios o retrato literário (como em Proust, porexemplo) dá uma contribuição a esses aspectos do eu por sua análise dotempo. Para uma discussão dessas condições em uma teoria psicológica generalizada da personalidade, ver Gardner Murphy, Personality (Nova York eLondres: Harper, 1947). Parte IV.

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exibe a "qualidade" de estrutura e unidade que_n_os_çap_acita a afirmarpertencerem elas à mesma pessoa. Smülarmente, a consciência dacontiiiiiidãdé'~cõmõ um ingrediente essencial da identidade _é,"Tnva-riávèlmente, parte "do retrato literário. Nessa conexão, a relaçãoíntima^ recíproca, entre o tempo e o eiftõrna-se mais manifesta;pois a consciência de continuidade dentro do eu é correlativa aoaspecto de continuidade ou duração no tempo.

A_^orreiação__eiTtre; ..esses aspectos^do tempo e do eu. surge emdois contextos: (1) deritro_do_üv«o^emrwjaLdp presente^especioso;'f2J-dinJrõTdjis_j^laçóesT^que ^cõnsBtuem a estrutura da memória, _ouó passadcxpessoal, de um Indivíduo. Em ambos os contextos, nossasobservações prévias sobre o tempo podem agora ser aplicadas ao eu.

I

Como é possívej^j_^xpgXÍÍacia_do^>fhíXO. temporal, perguntava%Bkle--gs_eyentos ou momentos no .tempo,, como o relógjo_batendoa_h°ra> são, como na teoriajísica ou najeoria de HmnTTsobre aexperiência, encarados como separadõs7~ThÍerentes e descontínuos?Replicou~eleTprecisarmos" "presumir que alguma^ondiç^^nifjcante esnTtêtízante do" eu esteja em funcionamento a fim de tornar "inteligívelesse fenômeno de duração ou fluxo contínuo." Kant deu a essa cpn-d"i£|o_o FonhidawlTnQme AeT'.'_unidade; iJanscendental deaperçepção'';a terminologia, no entanto, é bem insignificante; pois o que Kantqueria dizer é que até mesmo a mais__simples sucessão temporal doseventos._na ^xpejicnda^essupõe certas funções sinietizantes e qrga-mzariles-do-eu. Desse ponto""de vista, o_eu_não é somente ,;um recipiente passivo de estímulos externos ou internos, mas um cen"tro_ativocontrolando," modifo^KãntTêconhéceu vários estágios de "síntese" mesmo no nível maisprimitivo da experiência sensorial. <26> Ele foi talvez o pensador moderno mais influente a chamar a atenção tanto para as funções auto-re-guladoras, dinâmicas, quanto para o sentido de continuidade comocaracterísticas de uma unidade "transcendental", funcional ou identidade do eu. Em outras palavras, pjempo tem a qualidade da duraçãoporque_algyjTia^unçõe^do eu perduram através do tempo; ou, ao

26) Emmanuel Kant, Critique of Purê Reason, tr. de Norman KempSmith (Londres: Macmillan, 1933), pp. 131 ff.

O TEMPO NA LITERATURA

contrário, ganhamos uma noção primitiva de um eu perdurante, idêntico, dentro da experiência da duração temporal e através dela. Kantrecusava-se expressamente a identificar essa unidade funcional dó eucom o tradicional conceito de um eu substancial.

Todas as formulações subseqüentes do problema no mundo moderno empregam um método e vocabulário "transcedentais"; seme-'lhantes em oposição ao vocabulário da psicologia empírica desenvol-.vida por Hume. Dg_.acordo... com Bergson, o tempo e o eu sãocjirac^eriza.dps pelo fato de serem "unidades de~ Interpenefração1Vêmconseqüência disso, deve haver uma ligação íntima entre essas duasunidades. Contudo, a frase bergsoniana simplesmente apresenta denovo a definição do eu como uma "unidade dentro da multiplicidade",de Leibniz. Comentando a declaração de Hume, de que "quando euentro mais intimamente dentro de "mim. . ." eu nunca posso apreender-me sem uma percepção, e nunca posso observar coisa nenhumasenão a percepção." <27> Whitehead replicou em nossos dias: como .pode Hume pressupor — ou como sabe — que está usando o mesmo"eu" na primeira e na segunda parte dessa sentença? A sentençaparece pressupor um senso de continuidade e unidade que esse eunega. O tempoj^o eu se condicionam mutuamente "integrando" ossepar^dõsTSãTiíp^riênciá^m alguma espécie de unidade. "O 'agora'rr^ntai é uma unidade porque, quaisquer que sejam os itens, estesse_c.onjug'am .num.mqdelo,.signIfc umT'agora' "serial Pensar noter^o^cojno_unificando as. experiências do momento faz^ do tempoò_injegrador jia mente; rn^s_a_jimfícaçãoj5ela mente de suas_expe-riências do momento pode também ser tomTdãTcjõinolúina integração,.A unificação da experiência do momento é um aspecto da unidade doeu\" <28> Mais uma vez para Sherrington essa unidade da mente,ou eu, é apenas funcional.

Penso que a_s obras, literárias sempre reconheceram a interde-pejidêjida^daj^cijM^ do tempo e~ do êüToiTos personagense ações descritas no tempo e através dele)7 Finalmente, isso é o queconstitui a unidade do trabalho artístico em"si, de tal~módõ que.háurna correiação funcional em três aspectos: o tempo, o^eu e a obrade arte exibem mútua e reciprocamente o mesmo padrão de conti-nuidade, unidade e identidade. Na literatura moderna, essa corre-

27) David Hume, op. cit., 252.28) Sir Charles Sherrington, Man on His Nature (New York: Double-

day, 1953), p. 222.

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lação _4,expressada pelo uso.do.mesmo simbolismo para o tempo epara .o eu.

É o "fluxo de consciência" quejserve para esclarecer ou tornarinteligíveis" o~dèmèlT[to"]3Q _e_o_aspe.ct_p de jim eu"p^Hurayêl. A técnica é destinada a dar uma espécie de impressãovisível e sensível de como é significativo e inteligível pensar sobre o

••eu como uma unidade contínua a despeito da multiplicidade maissurpreendente e caótica da experiência imediata. A_ continuidadedo "rio" do temp^cojrespoinde. assim, à continuidade do "fluxo" deconsciência dentro do eu. Em outras palavras, o mesmo símbolo,^no^fíuxó", expressa a mesma unidade de interpretação dentro dotempo e do eu.

Esse_aspecto do eu é transmitido mais especificamente pelo efeitodji^tjcmc^ dentro da•estrutura do fluxo_j^cõn"sciencia. Pois o que une as peças_caóticasflutuando através dos devaneios e fàhtásias_de um indivíduo em umaespiçJ£TdeJiriid^d^_que^ — sentido definido'em termos de imagens associativas, significantes — se^ãoreferidasou_yjstas_dentro da perspectiva do_^mesmo" eu. É essa "referência.simbólica" (29) dentro do mesmo" eu que as tornam significativas. Casocontrário, seriam na verdade um absurdo. Faze^serádçijtfecisa-mentepqrgue o autor construiu o personagem individual de tal modo

"que peças aparentemente caóticas são_todas interrelaçionadas.em.virtude das associações^^ sür5]ãcentes7~e porque^ sejsspera que o leitorjgçõnstraãTao menos até certo ponto, a^redeTde_ relações significativas. Se essa significação lhe escapa — ou se~o autor falha emsua construção — a obra "não tem sentido". Desnecessário dizerque tal retrato literário, mesmo tendo êxito, não estabelece qualquerprova do eu como entidade substancial. £ sobretudo um carmnho paramostrar uma unidade funcional, ou__estrutural do indivíduo de "modo

"g^oT^vêritord^scritos ou ãs associações despertadas-pelo. fluxo decoliscienêí^^eles à "mesma"Tpêssõã."

29) O termo "referência simbólica" é do ensaio de Joseph Frank, "Spa-tial Form in the Modern Novel", reeditado em John W. Aldridge, ed., Critiques and Essays on Modem Fiction 1920-1951 (New York: Ronald Press,1952), p. 46. Frank usa também termos como "referência reflexiva" ou "relações reflexivas". Não partilho a tese de Frank de que esse uso do tempopor certos escritores é um modo de introduzir o espaço como forma básicano romance moderno.

O TEMPO NA LITERATURA 35

Além disso, ng_contexto literário_éjprimordialmente o autor_.queJííipõe^essa. espéçie^e _ynM^.tado; em conseqüência disso "ele" representa as funções ativas, organizadoras e reguladoras do eu. O personagem ficcional pode falhar(ou ser retratado para falhar) nesse processo de auto-integração.Assim, acredita-se comumente que a técnica do "fluxo de consciência"najicção moderna mostra a desintegração total do cor7xéitõ~tiio!icio-

.IlâL^^SSividulaüçla^e. Isso "é verdadeiro no sentido óbvio de que_a noção ,.da_eu como uma entidade sólidji^substaricial, tornpu-sepnrt^rr^nte_insustentáyel. Mas ainda, esse método quêBFa, separae analisa conteúdos da vida consciente e inconsciente do homem nãotratados previamente de modo tão articulado; e j^reraiência_dessa

Jéçnica riaJiteraiu_ra_mode^^rfo,,muiLdo.moderno. Mas a_.t.4cniça.éj.amMm mn_m^o_sjujtil e engenhoso de transmitir um sentido de continuidade e unidade do eu "adesp„eÍtoTTd.Lcre.§c^^^ da experiência; poiso^hsseminados fragmentos da associação livre somente fazem'"sentido" se pressupomos pertencerem à mesma pessoa. A esse respeito,o retrato literário esboça, dentro do contexto estético, um conceitodo eu que é difícil justificar em qualquer outra linguagem; e a técnicade associação livre pode realmente servir mais à função de reconstruir do que de destruir um senso de identidade pessoal. Na verdade,'ojtermo "associação livre" é inadequado guando aplicado^ à Literatura;,po.is._ asTchamaclãsassociações livres são sempre selecionadas,gontroladas^ organizadas pelõiutor a fim de conseguir o efeito deçjcmtirruid_ade e estrutura; çlevido alsso, é ele — ou^seOrabálHõ —lüi^iyhe. .JS_fkinçõex-autorregulMQjas_^ara.cJerístic.as^^^de^identidade pessoal, mesmo quando seus personagens falham emfazê-lo.

A correlação entre esses aspectos do tempo e do eu dentro dopresente plausível é particularmente surpreendente quando consideramos novamente não uma extensão de tempo físico comparativamente pequena, uma fantasia ou devaneio momentâneo, mas umaunidade muito mais extensa como um dia ou uma noite inteira.Assim, é um dia inteiro que constitui o presente plausível em ZJlyssese Mrs.Dalloway; e a multiplicidade caótica das relações temporaisn^experiênciãTêstá ejxr^icitamente pontrastada, nas duas obras, coma relativa simplicidade da medida...objetiva, e. da ordem do tempo nanatureza- Joyce injeta^^ümente,jie_ntro_d_o..fluxo de consciência, ashoras deslizando durante o dia em Dublin. Virgínia Woolf consegueüm notávéT~eTeTto~de contraixinto interrompendo o fluxo de tempo

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das várias correntes de consciência com o ribombar do Big Ben. Essasobras criam, como disse uirL^ritiço_ de_ Ulysses, (3°] "a impressãp_desimultaneidade na vida de uma inteira cidade puMantg."; similarmente, transmitem a impressão de simultaneidade nas vidas pulu-lantes dos indivíduos descritos. A "identidade" da cidade tem amesma face que a "identidade" das pessoas na cidade. Os fragmentosdas vidas em cada uma são reunidos por um quadro "de rejerenciaumtarioJ^sTrriboIico, que constituiJ:ambérn a unidade da narrativa emsi. "Ação, personagem e"~comentário", diz Daiches discutindo Mrs.ualloway, "estão subordinados igualmente (a um tema): o tema dotempo, morte e personalidade e as relações desses três com cada umdos outros e com algum resultado final que os engloba a todos. Asignificação nos eventos é julgada crescentemente em termos dessestrês fatores. (31) Desse modo, afinal, todas as três unidades, tempo,eu_e_narrativa, são uma função das associações significativas.

Finnegans Wake é_ uma tentativa, em vasta escala, de exprimir.essas unidades dentro do prolongado presente de_.uma noite. O livrocomeça e termina no meio de uma sentença — símbolo para ateoria cíclica do tempo que Joyce adotou de Viço, e também ummodo de mostrar como o_corneço_e_..o_jHm_dos ripjs_do„,temp.Q-e davTd^^orrnaiÍLÍím^i^Fdê dentro da multiplicidade mais desnorteante."No início está o meu fim. . .; no meu fim está meu início" (Eliot).Goethe expressou o mesmo ponto de vista quase com as mesmaspalavras: "Deixemos o começo e o fim confundirem-se num só. . . "(32)O "rio-fluxo" do mundo joyceano de sonho e semi-sono perdura

30) Ibid., p. 45.

31) David Daiches, "Virginia Woolf", na John W. Aldridge, ed., op.cit., p. 492. O ensaio de Daiches contém uma excelente análise diagramá-tica do conceito do tempo de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway. Os ensaiosde Daiches e Frank são estudos muito perceptivos e detalhados do significadodo tempo em Virginia Woolf, Joyce, Proust e Djuna Barnes. Na minhaopinião, deixam de reconhecer a importância da distinção entre o tempofísico c o tempo psicológico — embora Daiches discuta, e Frank não, acorrelação entre a estnitura do tempo psicológico e a estrutura do eu. Cf.também o estudo de Daiches, Virginia Woolf (Norfolk: New Directions, 1942).

32) J. W. Goethe, op. cit.; lê-se a passagem em alemão: "Lass denAnfang mit dem Ende sich in Eins zusammenziehn"; e é relacionada a outramáxima de Goethe, citada abaixo, n<? 52: "Der ist der glücklichste Mensch,der das Ende sèines Lebens mit dem Anfang in Verbindung setzen kann,"de Maximen und Reflexionen, Parte II. As duas últimas linhas do órficoUrworte de Goethe, "Dámon", também cabem neste contexto: "Und keineZeit und keine Macht zerstückelt gepràgte Form, die libend sich entwickelt."

O TEMPO NA LITERATURA 3?

^dentro da multiplicidade mais completa e freqüentemente.mais obscura.Assim também perdura o indivíduo, _d.entr.a_. do_desconcertantefluxode consciência (ou inconsciência) que inclui elementos dá vida'acordada dos adormecidos, suas fauta^S-^_jneino7pis7"incluindo também•"urri_mundo_quase^impessoal de história.e_jnitoÍQgia. (33) Mais umavez, esses aspectos do tempõ~e~do eu são estritamente correlatos; coma exceção de que em Finnegans Wake o quadro de referência simbólico que fornece uma estrutura unitária quase deixa de se realizar— em parte porque as relações significativas são obscurecidas porgrandes dificuldades de linguagem e cultura, em parte o presenteplausível da noite é esticado até os limites do tempo e do eu. Otempo invocado é todo o passado da história humana; e dentro dessevasto quadro de referência, a identidade pessoal dos caracteres individuais pode realmente tornar-se indecisa ou transformada numa"identidade de "tipos" humanos. A continuidade e unidade consideradasnessa longa noite, cavando profundamente no poço da história humana, transmitem um senso de identidade que é mais "típico" que"pessoal". H. C. Earwicker não é apenas ele mesmo mas também"Here Gomes Everybody"; e a noite de H. C. E. e sua família torna-se um pesadelo da família do homem. Thomas Mann adota umquadro de referência semelhante na abertura de sua tetralogia bíblica:"Profundo é o poço do passado. Não se deveria chamá-lo insondável?"— e os caracteres individuais em Joseph and His Brothers revelama mesma ambigüidade entre a identidade típica e pessoal que os deFinnegans Wake.

Consideraremos posteriormente o significado dessa reconstruçãodo eu em termos de situações humanas típicas ou protótipos míticos;pois tal empreendimento provoca a memória e a dimensão do passadoque transcende o escopo do presente plausível. Entretanto a transiçãotalvez não seja tão incomum como foi por vezes considerada. Empregando as mesmas metáforas, Thomas Wolfe descreve uma experiênciasimilar.

Minha mente e memória "em sono" marcadas com um "rio"

ardente de imagens sem fim: todos os vastos reservatórios da memória foram exumados e derramavam-se nas torrentes desse impetuoso "fluxo", um milhão de coisas vistas e há muito esquecidas eramrestauradas e marcadas através da minha visão nessa "corrente" de

33) Cf. Harry Levin, James Joyce (Norfolk: New Directions, 1941),Parte III, Cap. I: "The Nightmare of History".

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&

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luz — e um milhão de coisas não vistas, rostos, cidades, ruas epaisagens ainda não vistas e há muito imaginadas •— os rostos desconhecidos ainda mais reais do que aqueles que eu conhecera, as vozesnão ouvidas mais familiares do que as vozes que eu ouvira sempre,

' os modelos, massas, formas e paisagens não vistas "muito mais reais,em sua essência, do que qualquer fato real ou substancial" que jamaisconhecera — tudo "fluía" através de minha mente inquieta e febril ofluxo de sua interminável pompa — e de repente eu soube que aquilonunca teria fim. <34>

II

Mais importante do que a preocupação com o fluxo de consciência momentâneo é a interdependência funcional das duas unidades de tempo e o eu com relação ao passado, A busca da descoberta de algum senso de continuidade, identidade e unidade dentrodo contexto do passado pessoaTdo indivíduo engajou a grande Literatura em toda parte. Não está de modo nenhum confinada aos documentos biográficos ou autobiográficos tais como as lembranças dotempo perdido de Goethe e Proust.

A chave para essa busca tem sido a memória — sua função0 Vo na experiência humana, por um lado, e seu lugar dentro da sucessão

j*~- objetiva e da ordem do tempo, por outro. Santo Agostinho foi oprimeiro a reconhecer a natureza da memória como uma~cTT_ãvé"pãraaTésTrutura^õ~"têrnpo e dõ~êuT TJèliêlnvõTveTniT^depois que as primeiras partes das "Confissões" mostraram, sob forma"literária," como a memória funciona na reconstrução da vida dealguém.

Grande_é_o_goder da memória, uma coisa temível, ó meu Deus,uma"~multiplicidade profunda e sem limite; e essa coisa é a mentee isso sou eu. 0^uej^ou_pntão, meu Deus? Déjquej^ãtürezãsou "eu?ÜrrlãTvidJ^^ e extraordinariamente imèrisà. Vejanas planícies, cavernas de minha memória, inumeráveis e inumera-velmente cheias de inumeráveis espécies de coisas, ou através de imagens, como todos os corpos; ou pela presença real, como as artes;ou por certas noções ou impressões, como as afeições da mente, asquais, "mesmo quando a mente não sente, a memória reteve," embora

34) Thomas Wolfe, The Slory of a Novel, reeditada em Only the Deadknow Brooklyn (New York; New American Libray, 1947), pp. 140-141.(Grifos do autor.)

O TEMPO NA LITERATURA 39

tudo o que esteja na memória está também na mente — sobre tudoisso eu corro, vôo; mergulho nesse lado e naquele, tão longe quantoposso, e não há fim. Tão grande é a força da memória, tão grandea força da vida, mesmo na mortal vida do nomeai35). -__. „ ^ fC^^>

Todas as_teorias_rjsicológicas desde então_salientaram a relaçãointegral entre a memória e o eu. Como vimos, o passado difere dofuturo, entre outras_cpi^asjryor^ue.o_pxÍmeu^ deixa registros ao passoque o se"gundolião os deixa. E a mente é um instrumento registrador,de sensibilidade e complexidade peculiares: sei quem sou eu em.vir-tude dos registros e relações que^constituem.a..memória_a que chamode^inhj7^Q.ue"?Jifgre~d^Jestrutura da memória de outros.

A pergunta agora pode ser colocada: como se relacionam_osdiferentes padrões de minha memória uns com os outros em temposdiferentes? Uma coisa é dizer que o princípio de associação explicaum campo de memória unificada em um determinado corte transversal do tempo; mas como podemos explicar, se é que o podemos,o senso de continuidade que o indivíduo sente existir entre os diferentes conteúdos de sua memória em tempos diferentes; coinojjodeinosexp_li_car ajreh|çãpjmaa_que cada, indivíduo tem (ou crê ter) corn asoma total de sua vida passada?_ A_qi^stãrx_é_mo_it__ar, se possível,não apenas a rede_associativa, de relações constituindo _um campounificado num_determinado momento, mas também a qualidade dacontinuidade prevalecendo entre as diferentes estruturas de memórianos "dj|erep^^"momentos_; em suma, como pode a mente "fundir asdiferentes percepções e memórias numa só". Hume pensava ser talcoisa impossível. E é a respeito da solução desse problema quepenso ter Proust feito uma contribuição memorável.

Os retratos literários em geral têm mostrado que o princípio da"unidade" dentro clã multiplicidade" deve~ser estendido além do presente ate o passado inteiro do indivíduo, a fim de apresentar o padrãodistintivo, característico, de respostas,_e associações, a. que denômi-namos o "caráter" do indivíduo. Contudo, A Ia recherche du tempsperduTúç, Proust, é um documento único por duas razões: primeiro,porque revela como a reconstrução do eu corresponde à recapturado_tempo na experiência; segundo, porque s_uajjusca do tempo e_doeu atribui à~melhòTíã~uma única função e emprega um niétoclb pararevelar um "senso dê^òlrfinuid^de^rrtre-'õT^cõiõfêuHrJs^cTiferentes da

35) Santo Agostinho, op. cit.; Livro X. (Grifo do autor.)

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memória de alguém. A memória se torna um símbolo para as funçõesativas, criadoras e reguladoras do eu. E esse aspecto criador dememória (na Arte)„_ exibe uma estrutura unificada, coerente, do eueme de outro modo não pode ser recobrado na experiência.

Wolfe, cuja dívida para com Proust (assim como para com Joyce)tem sido freqüentemente observada, (36> planejou uma tarefa similar.Há uma interessante passagem em The Story of a Novel em que eledescreve, em termos estritamente proustianos, a infinita complexidadee intensidade de suas memórias como uma chave para o fato de serele um escritor: "Minha memória trabalhava noite e dia de um modoque a princípio eu não podia examinar nem controlar, e que enxa-meava inesperada num fluxo de flamejante pompa através de minhamente, com os milhões de formas e substâncias da vida que eu deixara,que era a minha própria, América." Segue-se então o fluxo de associações livres através do qual ele descobre a si mesmo e a Américaem Paris: a balaustrada de ferro ao longo do passeio de tábuas emAtlantic City ("eu podia vê-la instantaneamente e exatamente comoera"); a ponte através do rio; o som dos trens, ou uma carroça deleite ao entrar numa rua americana à primeira luz acinzentada ("omais solitário e obsedante de todos os sons que conheço"); o alpendre de madeira no campo; a canção do pássaro surgindo na rua; etoda a multidão de sons e visões e cheiros e sabores das ruas e casasda cidade, rostos e pessoas, alojados em sua memória. Tudo issosoa exatamente como Proust, até ao ponto de incluir "os rostos,cidades, ruas e paisagens ainda não vistos e há muito imaginados",distinguindo a "essência" deles como "muito mais real do que qualquer fato real ou substancial que eu conhecera algum dia."

Contudo, o mais importante é que Wj)tfe_percebia também..queeisa^_imgressões e associações aparentemente caóticas eram a fontela^jviforl-ff^Glffi de suavida e seu trabalho era "organizar" toda a série (de impressões) numa"união" harmoniosa e coerente.. A estrutunirmiflcadade sua própriavida devia ser_ exibida_atnryés da^^lurnuídade eLuni.dade da .obracõnstnãidT^a_síntese_ da memória com a imaginação.

Eu me sentaria ali, olhando lá fora a avenida da Ópera eminha vida sofreria com toda a lembrança dela. . . E quandocompreendi tal coisa, vi que precisava encontrar para mim mes-

36) Cf. Herbert J. Muller, Thomas Wolfe, (Norfolk: New Directions,1947) e Margaret Church, op. cit. acima.

O TEMPO NA LITERATURA 41

mo a linguagem para expressar o que eu sabia mas hão. podiadizer. E a partir do momento daquela descoberta, a linlm e oobjetivo de minha vida tomaram forma. O fím a que se dirigiriatoda a energia de minha vida e do meu talento dali em dianteestava definido daquela maneira. Era como se eu tivesse descoberto todo um novo universo de elementos químicos e come-casse a ver certas "relações" entre alguns deles, embora não tivessecomeçado de modo algum a "organizar a série completa numaunião harmoniosa e coerente". Desse momento em diante, pensoque meus esforços poderiam ser descritos como o esforço paracompletar tal organização, descobrir a articulação pela qual meempenho, provocar a coerente união final, t37)

Seja o que for que se possa pensar do sucesso de Wolfe nesseempreendimento, <38> não há dúvida de que o método escolhido porele para transmitir a noção de um eu contínuo, coerente, na estru-,tura de seu trabalho seguiu as linhas previamente elaboradas porProust. Não há também qualquer dúvida a respeito de que Proustelaborou a interdependência da memória, o processo de criação.artística e o eu de maneira muito mais bela e explícita que Wolfe.

O feito de Proust é também muito mais notável porque eleaceitou" a premissa de que_as_impressões individuais, momentâneas,são..separadas., distintas e descontínuas: são "isoladas, muradas, imóveis, detidas e perdidas". Proust concluiu daí que mesmo a conti-nuidade e unidade atribuídas a uma única^pajxão,, como_o_amoroujo^ciúme, podem ser uma ilusão: "Q_que acreditamos ser nossoamoTjjiosso dúme, nãoé a única e mesma paixão, "contínua" e_l'indi-visível". É composta de uma infinidade^ de amores sucessivos, ciúmescrii_e^erit^TT^^"sarj~e"femêros .mas que, atraj^s_de._sua_ininterruptamultiplicidade,_dão__a_jmpressão de continujdade, a ilusão, da. unidade?' {3"9) Se_isÃo^3^ej^dj^uanto a umajaixão isolada^aplica-semais_ainda à alegada unidade, estãbüidadVepêmialieliclã~^õ~^u7 ouã~crença de que "nossa personalidade é construída em torno de um

37) Wolfe, The Story of a Novel, pp. 122-124. (Grifos do autor.)

38) Cf. o recente volume de ensaios críticos sobre Wolfe: Richard G.Walser, ed., The Enigma of Tliomas Wolfe, (Cambridge: Harvard UniversityPress, 1953). Ocorre que eu penso ter sido Wolfe um artista mais bemsucedido do que parece considerá-lo a opinião geral de críticos literários maisqualificados.

39) Citado por Georges Poulet, Etudes Sur le Temps Humain (Paris:Plon, 1950), pp. 396-397.

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núcleo compacto imutável, é uma espécie de estátua espiritual." (40>Maurois cita algumas passagens interessantes das cartas e anotaçõesnão publicadas de Proust:

Minha vida, como eu a via, apresentava-me o espetáculode uma sucessão de períodos de tal forma que, exceto por umbreve espaço de tempo, nada do que tinha sido a força susten-tadora de um período continuava a existir no que se seguia.Eu considerava a vida humana como um complexo do qual um"eu" individual, idêntico e permanente estava tão conspicuamenteausente, era algo tão inútil para o futuro, tão mergulhado nopassado, que a morte poderia muito bem intervir nesse pontoou naquele, uma vez que só conseguiria assinalar uma conclusãoarbitrária... A desintegração do eu é uma contínua morte.. .a natural estabilidade que supomos existir nos outros é tão irrealquanto a nossa. Ui)

São observações e conclusões empíricas ao modo das refutaçõesd.e Hume sobre a identidade pessoal. Antecipam o tema da desintegração do eu e sua significação especial em face da morte, o quedescobriremos ser um elemento importante na atitude do homemmoderno em relação ao tempo. Contudo Proust tinha também "umaintuição de si mesmo como uma entidade absoluta"J42J_e_empe-rTEõÍHse nãTãreia~d[ê~ descrever, nç^sjrnbojisjuo não-lógico da arte,urrPsigTiifiçado de continuidade e unidade do tempo e do eu .quenaojr^reciã~]ustificada na base de premissas empíricas, ceticas. "Nãose é mais uma pessoa. Como então, buscando-se a própria mente,a própria personalidade como se procura uma coisa que está perdida,recobra-se o próprio eu e não qualquer outro?" (43> Começando comuma total consciência de que, em bases empíricas e lógicas, o euparece uma entidade esquiva e ilusória e terminando por descobrirou redescobrir um significado de auto-identidade a despeito da premissa original — essa transição marca a fascinante dialética no pensamento e na obra de Proust. É realizada com um emprego da memória no sentido da imaginação criadora que difere radicalmente dolimitado reconhecimento de Hume da memória como uma função dohábito.

40) André Maurois, op. cit., p. 158.41) Ibid.

42) Ibid., p. 159.

43) Mareei Proust, Remembrance of Things PasX (New York, RandomHouse, 1927), I, 776.

O TEMPO NA LITERATURA 43

Como. Bergson. a quem seguiu nesse e em outros aspectos, <44)Pjxmst distinguiu duas espécies de memória: uma formada pelo há-bito e outra consistindo em eventos únicQS. A distinção não era tãooriginal quanto a função que Bergson e Proust atribuíam ao segundotipo de memória. Considerava-se geralmente que os seres humanosnão apenas lembravam as coisas por hábito, isto é, por um processode condicionamento através da repetição freqüente, mas tambémlembravam eventos que aconteciam apenas uma vez, nunca se repetiam e nunca poderiam repetir-se. Considerava-se também que osegundo tipo de memória poderia não ser explicado por associaçãobaseada na repetição freqüente. O novo em Bergson, Proust e outrosera que a esse tipo de memória — a lembrança de experiências iso-lg^^mc^Trrepetíveis ~^~era atribuída uma função especial, nabusca da recuperação do tempo e do eu.

A recordação desses eventos isolados em seu conteúdo original,quaJitaJiyx^. o_beijo de boa-noite, a sinetajro portão, os livros na

'biblioteca, a lanterna mágica, o pilriteirõ em ffõx^Tmlidlttne, ariêirada calçada, o tilintar de um garfo ou de uma colher — ürecordação desses e de uma infinidadejiej^tros^ eventos_ servejíaratjãnsmiiTr~um; sentidò~clêTndivi'd"uaTid'adp_gue poderia nãgT.ser_evo-cadoTdosj:onteúdos da experiência imediata. Essas recordações^ jus-tonente com_suas associações significativas, estabelecem o processoda imaginação criadora em operação e "a sustentam. A_jma^inaçaocriadora"l""recojdaçaó" criadora. A recordação é uma atividade, umaoperação^5* — não a reprodução passiva das respostas habituaisda memória. Construir uma obra de arte é reconstruir o mundo daexperiência e do eu. T3êsse mõdõT^atráVes do ato de" recordaçãocriadora traduzido no processo" de criação artística, emerge um con-"ceito do_eju[..exibindoparacterísticas de unidade e_ continuidade queÉõdiriãrri_pjto ser_atribuídas ao^eu como determinadas_.pe,la.experiência, imediata. Experiências recordadas na tranqüilidade revelamunia qualidade que falta com freqüência^^noJ^juntarnentoil^e_jiadQSque constitueÍn~o~nTundó""da~ experiência imediata. Daí o fato de

44) Cí. Fernand Vial, "Le Symbolisme Bergsonien Du Temps DansL'Oeuvre De Proust", Publication of the Modem Language Association, LV(1940), 1191-1212; ou Harry Slochower, "Mareei Proust: Revolt Against theTyranny of Time", The Sewanee Review, LI (1943), 370-387; ou a recentebiografia de Proust por André Maurois, citada acima. A teoria da memóriade Proust é desenvolvida em Matter and Memory de Henri Bergson (NewYork: Macmillan, 1911).

45) Ver Jean Pouillon, op. cit., p. 54.

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que memórias possam parecer mais "verdadeiras" do que as experiências originais das quais se derivam, como algumas pessoasafirmam.

O eu assim recriado pode ilustrar o que Kant denominou a"síntese na imaginação"; exceto que essa síntese não produz a unidade de um objeto na natureza, como em Kant, (46> mas a unidadedo próprio sujeito; e o processo pelo qual essa unificação é realizadanão envolve as categorias kantianas. De qualquer modo, o "eu verdadeiro" que Proust recaptura d_a_caótica multiplicidade de memó-rias_j_Jmp_ressões dos sentidos diferentes é_o_eu^uêjoj^aniza_ativae criadoramente a multiplicidade em alguma espécie de~lmíd~ade ejastnitunrr-^^ (memória) __eorganização criadora a~id^ntTdade do_eu_ é jxibWa.TeTp!'e^oiistradadentro_._da__i_objr_a, embora todos os elementos que a compõem secaracterizem pela "distinção e diferença". Para_j^^j^e^es_eventos únicos alojados^ na memória tornaram-se posteriormente "essên-çia^_jxieTãSsicas; jpas esse—aspecto, que discutiremos depois, não"I3odifjçj_JL_fj^_,^para a,_exibição de algum senso de _unidade..._funcional dentro do eu.En2_suj_jnaioraparte — e para a maioria das pessoas — eles...são'̂ esquecidos"». ja^ejn_jidjOTieçjal^^merite_ppd^m, tambérn..na^ojiscjênçj,aJjrj^^_jejrern__jgreendj^"consciente," do escritor como uma chave para o desdobramento daestrutura unitária e doL padrão_de_ cojitinuidadgde sua vida. Issoé exatamente análogo ao que Wolfe tentou descrever na passagemcitada anteriormente.

A seguir, o ato de recordação criadora mostra especificamenteo sentido em que uma qualidade de continuidade pode ser atribuídaao eu. A_ continuidade é apresentada pelo fato de que conteúdosdiferentes da memória de alguém em momentos diferentes são damesma dasse. ,Esse~sênsõ~de pertencer, por sua vez, émõsiirãSSpelofato de que a recordação de um simples e único evento torna possível,a_jecrastrucã_o_ dê~toda^ ajvida je uma"pessõã." '"ATTêcorSãçaÕ daTnadeíeirwé a pista" para a reconstrução da^vida de Proust, o quesignifica que a soma total de sua vida é "potencialmente" co-presente(ou simultânea) nesse evento isolado. Naturalmente, é apenas aobra total que mostra a co-presença potencial, ou simultaneidade, de

46) Cf. Emmanuel Kant, op. cit., pp. 149, 156, passim.

O TEMPO NA LITERATURA

todos os elementos com o eu (como em Ulysses ou Mrs. Dallowy);mas que a obra descanse na simultaneidade potencial de todos. oselementos heterogêneos nela contidos mostra a continuidade dó eudescrito na obra.

Assim, Proust podia escrever: "Um único minuto libertado daordem cronológica do tempo recriava em nós o ser humano similarmente libertado." <47> Nas palavras de Eliot: "Somente atravésdo tempo o tempo é conquistado." <48> Ou poderia dizer Proust: -"Todas as lembranças seguindo-se umas às outras eram condensadasnuma única substância." <49> Dentro de um contexto estético, issoé uma réplica à análise lógica de Hume (e à premissa original deProust), de acordo com a qual a identidade, atribuída por nós àmente humana, "não é capaz de canalizar as diferentes percepçõesem uma só". Pmmt nrrpdjfnva — acertadamente, penso eu — que_tinha "mostrado" através de sua obra como diferentes percepções po-alenijiej^anjíHzjidj^^ciaí", como as palavras de Proust poderiam erradamente indicar, masnuma^única substância" no_sentidodo eu^como uma estrutura unifica-j3a_à_quai continuidadeejdentidade podem ser legitimamenteatribuídas.

Que esse é o significado real de Proust está perfeitamente claro,penso eu, na recapitulação final de toda a obra nas últimas páginas.Uma vez mais ele retorna à lembrança melancólica de sua infância(o começo dos muitos volumes que acabou de terminar) quando esperava que o Sr. Swann deixasse a casa para que sua mãe pudessesubir a escada e dar-lhe o beijo de boa-noite:

Ouvi a porta abrir, a sineta tilintar e a porta fechar-se novamente. Mesmo nesse momento, na mansão do Príncipe de Guer-mantes, ouvi o som dos passos de meus pais enquanto acompanhavam o Sr. Swann e o reverberante, ferruginoso, interminável,agudo e desafinante tilintar de sineta que me anunciava finalmentea partida do Sr. Swann e que mamãe subiria as escadas — ouviesses sons de novo, os próprios sons idênticos, embora situadostão longe no passado. . . Quando a sineta tilintou, eu já existia,e, desde aquela noite, para que eu tenha sido capaz de ouviro som de novo, não deve ter havido nenhuma "quebra de continuidade," nem um momento de descanso para mim, nenhumaparada da existência, do pensamento, da consciência de mim

47) Mareei Proust, op. cit., II, 996.48) T. S. Eliot, "Burnt Norton", Four Quartets (New York: Harcourt,

1943), p. 5.49) Op. cit., I, 143.

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mesmo, uma vez que esse momento distante aderia a mim eeu podia recapturá-lo. . ., meramente ao descer mais profunda-

' , • mente dentro de mim mesmo. Era essa concepção de tempoencarnada de anos passados. . . que eu estava agora determinadoa expressar em ousado realce em meu livro. (5°)

Nesse sentido, na conclusão de muitos volumes o autor podeanunciar de modo bem legítimo, embora um tanto paradoxal, que

• escreverá agora os livros que acabou de completar; pois a históriaque acabou de contar é a yjda que_ viveu, e ao contá-la, _ele_.nãosó~mêrite~produziu uma obra de arte apresejitiindQ_corilinuidade,...uni-dade_xjdentida_de^omp^ exibindoas mesmas características. E nesse sentido, afinal, poderia legitimamente rejubilar-se com o seu feito, "embora o mero sabor da ma-deleine não pareça conter "justificativa lógica" para essa alegria", (51>não apenas, como Proust pensou, porque estava livre do medo damorte, mas também porque, como disse Goethe, "o homem maisfeliz é aquele que pode ver a conexão entre o fim e o início de suavida". (M)

A relação entre o tempo e o eu nesses retratos literários éuma tentatiya~liê"pl:êsê"rváF e justificar a crença dejjue o eu é umaunidadeJiuncionàl e contínua à qual a identidade pode ser atribuídaa_despeito da esmagadora complexidade dos elementos heterogêneosdps quais é composta. Estendi-me nesses aspectos do eu porque,como veremos em capítulo posterior, a significação desses retratosliterários (^grandemente aumentada no mundo moderno, onde a continuidade e a identidade do eu são severamente prejudicadas ou rompidas. Veremos que o significado dessas reconstruções literárias éo grau em que ajudam a mostrar e restaurar certos aspectos do euque são ameaçados e obscurecidos pelo impacto do tempo sobre avida do homem moderno.

Desejo aqui acrescentar algumas observações mostrando que acorrelação entre a recaptura do tempo e a identidade do eu tambémse~mantém no reverso. Se_há_rupturas severas na reconstrução ima-ginativa^ evqcativa do passado de alguém, a continuidade e a identidade do eu são danificadas igualmente. "'Esse é um aspecto familiar

50) Op. cit., II, 1.123, (Grifos do autor, pois penso ser a frase "nenhuma quebra de continuidade" crucial para a concepção de auto-identidadede Proust, em contraste com a de Hume).

51) Op. cit., II, 996.52) Cf. acima, n? 32.

O TEMPO NA LITERATURA 47

das condições psicopatológicas que conduzem freqüentemente a umcopàso completo do eu. As obras literárias descrevem por vezes umfen^rner^_sernelhante, como pode ser mostrado, por duas ilustrações,uma do mundo antigo, outra da literatura contemporânea.

A história de Édipo recontada por Sófogles_.ppde ser interpre-tada_de vários modos. Nesse contexto, desejo destacar o que bempode ser üin"ãspêctõ periférico, isto é, que pode "também" ser lidocomo a^ragédia de um homem que é súbita e brutalmente destruídoporque a continuidade do tempo em sua vida é_ irremediavelmenterompida. Abre-se uma terrível brecha: por um lado, naTsêu passadovTvTcToe lembrado desde a derrota da esfinge, à libertação de Tebase à conquista do trono e da esposa; por outro lado, existe o passadode sua infância e juventude, esquecido, reprimido ou simplesmentefalsificado, e subseqüentemente trazido à luz. Assim, pode-se dizerde Edipo que não teve auto-identidade. Ele é "na verdade", istoé,~effl~termos de sua própria experiência, duas pessoas diferentes —embora em termos dos "fatos" objetivos da natureza e da históriaele' seja uno e o mesmo. Dizemos que Édipo não sabia quem era,o que é correto quanto ao fato de que ele deixouT dè"^elcperimentarsua vida sob o aspectollã" continuidade temporal, a única que podeconferir.. urn.._sensp jle_identídadp'__^s?oáI. Em seu caso, naturalmente, o tratamento literário não atribui a ruptura na continuidadede sua vida a qualquer falha dele próprio; pelo contrário, Édipo éperfeitamente inocente nesse ponto. Eje_não_ sabe de onde veio, ouonde e por quem foi criado; outros sãn responsáveis por esponderemdele sua .verdadeirarorigem, _história e identidade. Mas sem levarem conta como podemos querer interpretar esses mecanismos literários, a tragédia de Édipo pode ainda ser vista à luz — emborade nenhum modo apenas sob essa luz — do fato de que a_.rupturaentre seus dois "passados" foi tão severa e as conseqüências dessacisão em sua personalidade tão desastrosas, que se tornou possível;emendar as peças quebradas do eu.

Urna_situacãq similar na literatura cpntempprâneaj num nívelmuito mais baixo de realização artística, é apresentada em TheGreat Gatsby. Gatsby também._çstâ„engajado .numa-busca — umabusca que se revela fútil — recuperar a si mesmo, achar seu "verda-deiro eu" através o!a_recuperaçao do passado. A ruptura crucial na

'contmuidãHê"^de^ua vida, a transformação de James Gatz em JayGatsby, ocorre quando Gatsby perde Daisy, a mulher que ele ama.Essa "má ruptura" é responsabilizada pela existência falsa, corrupta,

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enganadora que ele passa a viver desde então. Similarmente, é arecuperação daquela perda, o amor de Daisy que supostamente restaurará a continuidade da vida dele, emendará as peças quebradasdo eu e restabelecerá a verdadeira, "platônica concepção de si mesmo". (53) O narrador diz para Gatsby, quando este vai encontrarDaisy pela primeira vez depois de cinco anos:

"Eu não pediria demais dela. . . Não se pode repetir o passado.""Não se pode?... Ora, é claro que se pode!"Olhou selvagemente em torno dele como se o passado se em

boscasse na sombra de sua casa, bem ao alcance da mão.

Ele falou bastante sobre o passado, e deduzi que queriarecobrar algo, alguma idéia de si mesmo talvez, que perderaao amar Daisy. Sua vida tinha sido confusa e desordenadadesde então, mas se ele pudesse voltar, uma vez mais, a um certoponto de partida e a repassasse toda lentamente, poderia descobrir que coisa era essa. . . (54)

Gatsby (ou Fitzgerald) nunca descobriu. A recuperação de seu"eu verdadeiro" falhou, embora tenha tido êxito no caso de Proust.A divisão entre seu antigo eu (James Gatz) e seu posterior (JayGatsby) é profunda demais para ser emendada; o "sonho incorruptível"do puro e absoluto amor é uma ilusão; e o método de refazer suavida (restabelecer sua identidade pessoal) apostando tudo na anulação da perda desse amor é mecânico e elaborado em comparaçãocom a magnífica reconstrução de Proust de sua própria vida. Porémo tema da busca em si — e a significação que tem no romance epara o homem moderno — é exatamente análoga à procura de Proustdo tempo perdido como um meio de recuperar a continuidade e aidentidade do eu.

.Eternidade

Prgcisarnos_agora nos voltar para uma qualidade do tenipo_jiaexperiência para a qual não há correlato, na estrutura objetiva dotempo da. natureza. Esse é_ o aspecto da eternidade. "Um únicominuto libertado da ordem cronológica do tempo recriava em nós

53) F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby (New York: Bantam Books,1945), p. 106. Citado com permissão de Charles Scribners's Sons.

54) Ibid., p. 118."Ele (Fitzgerald) era acossado, como Malcon Cowley disse, pelo tempo,

se escrevesse numa sala cheia de relógios e calendários." Arthur Mizener, "F.Scott Fitzgerald: The Poet of Borrowed Time", na John W. Aldridge, ed.,op. cit., p. 287.-

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O TEMPO NA LITERATURA 49

o ser humano similarmente libertado." O que Proust queria dizer.era que o evento isolado lembrado em toda a sua .riqueza ..qualitativae realidade concreta parecia estar libertado da data que tinha origi-55l™.?ilÍLJlE^I^£íE^0i}£l^icA-4o_tlI^P; e que o mesmo vale parao eu recriado imaginativamente através desse ato de recordação.

_A_gternidade, por isso, significa a ausência de tempo, não o -.tempo infinito — uma__ç^i^d^d^_jla_xxpe4^ está além e.fora do tempo físico. Encontramos esse jispectó quixotesco do tempo •em_^árioscontextos: ~ TTrTTTT ~~7~~, """TTT"

-——nr. ^Ciecordação do evento isolado rpajizii^_sgJ2_iLJyspeetode,iLelermdadeI!-xrriTdiu^^ ("(£jYQ ato da recordação em sinão se situa no tempo na medida ejri_^ue_n|g_pareçeter qualquerd"ata~Õujngice temporal ligadojípie. É uma possibilidade permanente ou fora do tempo. A_jecor'dação_pode explodir na ponsriAnria

^ sjem.9_ualcluerJemP0 ou lugar, o que lhe dá_a_.quali.dade de estar alémto *.d£j.e°1P2...?-4?JyJê3r — apesar de que "após" ter acontecido podemos -* Ffixar a data dentro da seqüência do tempo físico e dizer "quando" '

v£) aconteceu. Apenas o fato de que a recordação pode acontecer em£-jqualquer tempo parece colocá-la numa dimensão sem tempo; Çfàfr

r^CLgae é lembrado — o conteúdo da recordação —.pertence à mesma dimensão. Njijnempjia^jaJ^ua^ pré-

a<Z servada em seu estado original — ao menos para algumas pessoas,^£se acreditarmos no testemunho de Proust, Wolfe ou Santayana —<* WTíiime_Jij3assjyg^ A coisa lem-^ *b£adj_ga2eçejrid^ adquire aS .qualidade de uma ."essência eterna". Essa "essências" não são como

as idéias platônicas, de que as coisas na experiência são cópias tênues;pelo contrário, a riqueza qualitativa e a singularidade de cada coisaexperimentada e lembrada constituem sua essência para Proust e Santayana. Há muito pouca poesia não preocupada em preservar anatureza sem tempo de certas qualidades na experiência humana.Para Proust, como vimos, a busca dessas- "essências eternas" tornou-se o ponto focai em torno do qual ele organizou sua vida etrabalho; para Santayana, elas são parte integrante de um sistemametafísico — se justificado ou não, não devemos nos preocupar aqui.

Meu objetivo é simplesmente mostrar como o aspecto da eternidade, p_ara_a_qual não há significadg_çpgnitivãmente correlato_dentrod^£?ilíexto_da riatureza, emerge de certos fenômenos na experiência0-H_!LEr-52d^_l^sÇ?.leln.?Jiepp_s. Essa espécie de eternidade, natural-

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mente, é ainda condicionada pela natureza material, orgânica, da memória, que presumivelmente é um fenômeno temporal. Esse modode considerar certas qualidades na experiência não implica ou provaque elas perdurem além dos limites temporais da mente humana.Nada é dito (nem pode ser dito, penso eu) sobre o significado daeternidade além da mortalidade da memória. Contudo essa mortali

dade não afeta o significado poético da eternidade. Recordar_eventosisolados, há muito^rnortos e ocorridos em termos objetivos, com aintensidade,, jsabpr, profundidade e variedadeJla expejiência_priginalsimplesmente mostra que — o que quer que possa acontecer à memória comó~pãrté~uo organismo humano — o, conteúd_o_dessas__expe-riências não é afetado pela data de tais experiências. Elas subsistem,parafusarmos um Têfmõ"Techico, nõ"s"uT5stfàTò~~cTá memória, que lhedá. o status temporal de um permanente "agora".

2. 'Similarmente, a_j^cpjwtrujjji.q_p^^ damemória manifesta um aspecto da ausência do tempo. TJm padrãou^cado,coptjnuador da vida é transmitido através do retrato lite-

"'rário em que a:,,multiplicidade de elementos ..diferentes que-xonipõemo eü"—.memórias, percepções e expectativas, ou passado, presentee futuro — podem tornar-se co-presentes. Isso, mais uma vez, pode

' ser encarado como uma possibilidade permanente ou sem tempo, maisuma possibilidade do que algo que seja realidade na vida da maioriadas pessoas. Entretanto, na medida em que esse alarde reconstruira totalidade_da vida de um homem^passível em "qualquer" tempo,novamente não é fixado por qualquer^data. E mais ainda: desde queo eu é encarado como uma unidade funcional em que elementosdiferentes estão sempre potencialmente co-presentes ou são simultâneos uns aos outros, ele tem também o status de um permanente"agora", isto é, manifesta um senso de estar libertado da ordemcronológica do tempo, por mais profundamente que esteja —• comoqualquer outro organismo —- engastado na estrutura temporal danatureza. Quejodos os elementos compreendendo o eu estejampoten-cialmente co-presentes eni_qmiljgu£rTjerr^^de considerar o eu como "situado" 'fora da esfera de ação' do tempo".Esse sensõ~3ê~êtêrnidade nâo tem como co!TseqüênciaTiê"m~pTüvà ofato de uma imortalidade espiritual ou física do eu — embora àsvezes Proust fale como se tal ocorresse.

3. Na medida em que corporifica as essênçjjis__sern__tejiiporecojp^asjia~Ea^^

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O TEMPO NA LITERATURA 51

gem do tempo, a obra de_artet rjartilhajambém a mesma qualidade.É sem tempo em revelar esse senso da~ãüsencia—cTcT~u^ípo7"õu" aoser uma possibilidade permanente para tal revelação. Isso foi comu-mente reconhecido; meramente declara o que uma obra de arterevela: que "uma coisa de beleza é"uma"alegria eterna", que "nuncadesaparecerá no nada"; que é "uma fonte infinita de bebida imortal". "Nem sentimos essas essências por uma curta hora. . ." Diferente dos filósofos literários, Keats não refletiu sobre o status metafísico de "essências", "nada" e "para sempre"; mas o que a passagemtransmite é característico de uma longa tradição estética. A obra dearte captura essências na experiência e uma fonte, permanente, semiejSEfi^PâLa-â^çaptura^ (55) Assim, pode-se dizer que°_JÍJeio__arifetiçpjBerd^rj^em_d^a, enquanto pepdurarem asjuali-dades__inc^j.poxadas nele, e os eus reconstruídos na~òBfã~dp jirte eatravés dela têm uma qualidade intemporal.

Esses, diferentes aspectos da eternidade têm uma_J3ase_jmipjricalegitima. Baseiam-se_no fato.,de...que nada,..na experiência humana.é esquecido:.nenhuma voz, traço ou engrama é inteiramente perdido,^memória é indestrutível, exceto por condições patológicas. Se issonão foi previamente reconhecido, como ocorreu em Santo Agostinho,era perfeitamente claro para Proust e muitos outros escritores nomundo moderno. O que parece esqiip.r.irln p pp.rdttkiJ^app.nai .p.m-purrado para o lado, enterrado ou reprimido, i.e., não acessível anossos eus conscientes; para Proust, o ato criador da recordação, emcontraste com o ato mecânico, consiste precisamente em descer "comoum mergulhador" às "camadas" profundas do "eu inconsciente" (56>e trazer à luz esses traços, impressões e associações que parecem tersido perdidos. Assim vemos novamente que esses aspectos da eternidade estão condicionados pela natureza orgânica, empírica, damemória.

A literatura tem pouco sentido a menos que assumamos a persistência dos processos inconscientes na motivação humana — não

55) Russell, comentando os versos de Shakespeare: "And yet to timesin hope my verse shall estand Praising thy worth, despite his cruel hand".

"No entanto tenho a esperança que meu verso resista no tempochama essa crença dos poetas de "que seus próprios versos sejam indestrutíveis" de uma "presunção literária convencional", Bertand Russell, A Historyof Western Philosophy (New York: Simon and Schuster, 1945), p. 46.

56) Op. cit., I, 141, 143; II, 1001, onde ocorre a frase "eu inconsciente",Proust, naturalmente, tinha um senso particularmente agudo dos processos"inconscientes" na motivação humana e na criação artística.

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importa quão recalcitrante tal suposição possa ser à análise lógica.É_interessante notar que a descoberta literária dos elementos semtempo enterrados nas camadas inconscientes do_eu é notavelmente"s^5êTh^n!e""""a~descnção de Freud das "características temporais .dosprocessos inconscientes na mente. "Os eventos do sistema inconsciente são sem tempo, isto é, não são ordenados no tempo, não sãomodificados pela passagem do tempo, não têm qualquer relação quespja_£mn o tempo. As relações temporais, também, estão conectadascom o trabalho do sistema consciente." <57> Freud repetiu a mesmaopinião em obra muito posterior:

No Id não há nada correspondendo à idéia do tempo e(coisa que é bem extraordinária e exige a atenção adequada dopensamento filosófico) nenhuma alteração dos processos mentaispela passagem do tempo. Impulsos que nunca foram além doId, e mesmo impressões recalcadas para dentro do Id pela repressão, apresentam-se virtualmente imortais e são preservadaspor décadas inteiras como se tivessem ocorrido recentemente (...)Tenho sido constantemente levado a sentir o pouco uso, em nossateoria, do fato indubitável de que o reprimido permanece inalterado pela passagem do _tempo. '"Isso parece oferecer-nos apõssTBÍirdãaé~Hê" uma abordagem em relação a algumas verdadesrealmente profundas. (58>

Essa dimensão intemporal do Id lembra as linhas de encerramento da famosa "Canção da Noite" de Nietzsche: "Doch alie LustwillEwigkeit, — will tiefe e, tiefe Ewigkeit!" As observações de Freud,contudo, não encontraram muita aprovação mesmo nos círculospsicanalíticos; mas não desejo lidar com os problemas técnicosque elas levantam. (59) Citei essas passagens apenas para comen-

57) Sigmund Freud, "Das Unbewusste", em Theoretische Schriften (Viena: Int. Psychoanalytischer Verlag, 1931), p. 121.

58) Sigmund Freud, New Introductory Lectures on Psychoanalysis (NewYork: Norton, 1933), p. 104.

59) O artigo mais interessante é o de Marie Bonaparte, "Time and theUnconscious", The International Journal of Psycho-Analys:s, XXI (Out., 1940),427-468. Esse trabalho aborda os aspectos psicológicos, literários e filosóficosdo tempo, alguns dos quais coincidem com os argumentos básicos do presenteestudo e o reforçam. Marie Bonaparte distingue três sentidos de "ausência detempo": (1) o inconsciente não tem nenhum conhecimento do tempo; (2) oinconsciente é completamente não afetado pelo processo do tempo; (3) oinconsciente não percebe o tempo. Ela conclui que: (1) é um "truísmo";(2) i.e., a tese de Freud no texto deve ser qualificada: "o conteúdo psíquicoreprimido sofre "alguma" modificação, por mais inalterável que possa parecera nossas mentes conscientes"; e que (3) "parece extremamente provável"; ibid.;pp. 438-439, Marie Bonaparte cita também um material literário muito bome ressalta o ponto interessante de que as próprias idéias filosóficas de Freud

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tarj abreviamente sua conexão com a discussão prévia, (a) Elasdeclaram em linguagem descritiva o que Os retratos literários .tentaram transmitir através da linguagem poética ou através da construção de personagens individuais na obra de arte. (b) Obviamentenão permitem qualquer inferência quanto a um significado objetivoda eternidade (ou imortalidade) além dessa vida ou, mais especificamente, além da função de uma memória orgânica. Tirar tal inferência transformaria em absurdo o que Freud tinha em mente, (c) Essacorrespondência entre declarações literárias e psicanalíticas sobre asignificação dos elementos sem tempo no inconsciente sugere umaanalogia de maior alcance.

A reconstrução. d_a_p.ersonalidade na terapia^ psicanalítica assemelha-se, em certos aspectos, à reconstrução estética do_eü que consideramos na secção anterior. Talvez seja essa uma razão pela qualtanta literatura científica séria nesse campo é lida como ficção literária, e certa ficção lida como a "história de um caso"; ou porquese possa especular, como Goethe fez, que uma vida bem vivida exibecertas qualidades que se parecem com as de uma obra de arte bemexecutada. A busca psicanalítica dos tesouros e agonias enterradasdo inconsciente serve[Kmbem aojpropósitp de reapresentapum senso''3F£ÕntmmHã3 '̂ uTiidade^fundcm^e idejiü^^ficada ou perdidaT"" O "sucesso" de tal reconstrução é parcialmenteindicado pelo grau em que um indivíduo reconhece e afirma talcontinuidade dentro do fluxo de elementos conscientes e inconscientesque constituem sua biografia de modo que eles sejam legitimamente"seus" e não alienados de si mesmos, e de modo que façam nascer umsenso de identidade pessoal genuíno. O "sucesso" é afirmado tambémpor certos mecanismos ativos, auto-reguladores, do ego, através dosquais esse processo de reorganização ou reintegração deve realizar-se.De modo oposto, inúmeras obras da literatura psicanalítica preocupam-se com as muitas causas de manifestações do fracasso em atingir-se alguma espécie de unificação ("integração", de acordo com aterminologia corrente) do eu devido às rupturas radicais (elementos

sobre o tempo seguiram estreitamente as de Kant, com a diferença de queFreud traduziu o conceito de Kant de uma forma "sintética" a priori de intuiçãopara a terminologia psicanalítica de projeção; ibid., pp. 466 ff. Cf. tambémLucille Dooley, "The Concept of Time in Defense of Ego Integrity", Psychia-try, IV (1941); Sabina Spielrein, "Die Zeit im unterschwelligen. Seelenleben",Imago, IX (1923); Paul Schilder, "Psychopathologie der Zeit", Imago, XXI(1935). Entre os psicólogos não analíticos, a Psychology de William James,I, cap. 17, ainda é uma excelente exposição.

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recalcados) no crescimento temporal do indivíduo. Desse ponto devista, um trauma' seria «ma experiência de "choque" criando umabrecha temporal. A severidade e sucessão de experiências- traumáticas ámejçlnl. romper a continuidade^ e^ estrutura^normais" do eu;por serem recalcadas_(pu_gspuecidas), essas experiências são pêrHfdaspara_ a história e identidade conscientes da pessoa, embora aindamõdeleirí seu caráter e destino. Ai rernoção delas seriá_ uma espéciede_restauraçjo^(la,unidl"de_^ntre^os processos do consciente e do inconsciente reunindo, de modo aparentemente sem relação e alienado,as peças do eu, estabelecendo um sentido da continuidade temporal'entre elas. cm í fr\ Ca 5 Mad

Devemos considerar agora outro aspecto dessa preocupação comuma Himensão~ íntempõrãTlnarexperiênci.a que temos também encontrado antes; isto é, sua afinidade com o misticismo. A ênfase sobrea_eternidade, ern_cojirappsipão.A.temporalida_de, é um eíemento_comum

"a^todas^as-icumias-uie_mistk.krno, oriental ou ocidental, passado oupresenífi. A literatura mística invariavelmente afirma a existência deuma ordem eterna da Realidade revelada e confirmada pela existência mística. "Olhado de fora de si mesmo, o momento místicoé um momento no tempo. Mas olhado de dentro de si, é toda a eternidade." (60) Em tod.as_as.j:ultu_ras e todas asjgras. os místicos sempredistinguiram entre uma ordem.e.terna_da -Realidade e.a_ordem temporalda natureza e da experiência.

Eazenda taLdisüncão, ojriisticismo afasta:_se_da análise dojempotantoi na exr^rj^ciacoprpjia,natureza. Traduz o aspectcTda eternidade considerado característico de certas qualidades dentro da experiência numa categoria metafísica, ontológica. Ora, o aspecto daeternidade encontrado na experiência é interpretado como uma justificativa para a crença de que há uma ordem eterna da Realidade —embora poucas declarações possam ser feitas sobre essa espécie deRealidade que não a eterna. O misticismo assim fornece um exemplo de como certas características reveladas na mais pessoal, íntimae subjetiva experiência são exteriorizadas e objetivadas de modo aserem tomadas como provas para a existência de um mundo diferentee mais "real" tanto do mundo da experiência comum dos sentidosquanto do mundo do conhecimento científico. O problema metafísico

60) W. T. Stace, Religion and the Modem Mind (New York: Lippincott,1952), p. 243. Para a vasta literatura sobre o misticismo, cf. Time and Eter-nity (Princeton: Princeton University Press, 1952), do mesmo autor.

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O TEMPO NA LITERATURA 55

do misticismo é mostrar em que sentido tal exteriorização é justificada,ou se o é sequer. Não podemos nos dedicar a esse problema aqui,pois este não é um ensaio sobre a natureza do misticismo. Mencionoo problema apenas para indicar resumidamente em que sentido o misticismo pertence à nossa prévia discussão sobre o tempo na experiência,e se afasta dessa mesma discussão.

A metafísica do misticismo envolve também uma revisão peculiardo termo "experiência". A experiência em si é dupla: a experiênciacomum dos sentidos e a experiência mística. A primeira inclui todasas experiências comumente reconhecidas, impressões, emoções e idéias,observadas do lado de fora ou introspectivamente; a experiência mística, por outro lado, consiste somente em umas poucas característicasespeciais, tais como um senso de eternidade, um sentimento da uniãocom a divindade, um senso de liberação do sofrimento e do eu, umestado de bênção e beatitude, e outros poucos aspectos que invariavelmente ressurgem na literatura mística — características ao finalincomunicáveis porque as palavras, também, são parte da ordem temporal da natureza. Contudo, o conteúdo da experiência mística semprecontém a reafirmação de que a ordem natural das coisas, incluindoo eu experimentado e lembrado, é uma ilusão, decepção ou um aspectode Maya.

O misticismo, assim, envolve uma negação do tempo tanto naexperiência quanto na natureza. Não distingue uma da outra, masdeclara ambos ilusórias e irreais do ponto de vista da experiênciamística que revela uma ordem eterna e transcendente da Realidade.No lugar de nossa prévia distinção metodológica entre tempo naexperiência e tempo na natureza, temos agora um dualismo metafísicoentre diferentes ordens de existência. Isso explica também por quea visão mística exclui, como temos visto, a noção da identidadepessoal.Unia vez que o tempo experimentado pertence ao mundo da ilusão,o eu, também, reconstruído dentro da experiência, é apenas enganoe decepção. O misticismo rejeita o conceito de um eu como "umamassa fétida" pertencente a um mundo irreal de tempo, e invariavelmente preconiza libertação desse eu em benefício de uma "união"com alguma outra espécie de ser, a Divindade, o Uno ou o Inefável.

Nesse aspecto o misticismo é um desvio de nossa discussão préviasobre os elementos do tempo na experiência. Representa uma transição da definição desses elementos na experiência para a exteriorização e objetivação deles num mundo além do tempo, ou define

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"experiência" de um modo que é totalmente diferente do significadocomum do termo.

Desse ponto de vista, também as "essências" de Proust não sãode nenhum modo místicas, e não permitem qualquer acesso a umaordem mística da"Realidade, não importa o quanto Proust possa terpensado que sim; pois à luzjia verdadeira visão mística,_elas pareceriamexatamente tão ilusórias, vazias e insignificantes "como. a ordem danatureza defimdã""pela ciência ou pelos empreendimentos práticos dohomem. Esse é um ponto nem sempre'observado na discussão sobreo alegado misticismo de Proust. Sem dúvida, Proust.queria ser "libertado" do tempo na natureza, da"ordem cronológica do tempo"; masnão dos elementos ou qualidades do tempo que recapturou enTsuaprópria experiência e imaginação. Pelo contrário, eram esses os mais"verdadeiros" e significativos aspectos de sua vida: Porém são exatamente essas experiências — os desejos, esperanças, desapontamentose lembrança das coisas passadas — que são rejeitadas pelo verdadeiromístico como fúteis, más e irreais. Mais ainda, a vasta obra deProust foi dedicada à tentativa de "encontrar." a si mesmo, seu. "euverdadeiro", não à "perda" de si mesmo, como faz o místico, em uniãocom algo fora da unidade de sua própria vida.

Assim, as essências de Proust, o eu, e mesmo a obra de arte quecriou seriam ainda aspectos de Maya, de acordo com um misticismoortodoxo. O que faz de Proust um "místico" num sentido diferenteé que se refere às qualidades dpscobertaspor^ ele dentro de si mesmocomo se tivessem unisiatus"metafísico, objetivo. Mas isso> •— como"em: Santayana—"(mas) na^tradição de um platonismo filosófico doque de um misticismo; não um platonismo no senso estrito segundoo qual as qualidades no mundo da experiência são cópias débeis domundo das idéias que é composto de formas e protótipos eternos,imutáveis, indestrutíveis; mas um tipo de platonismo invertido, porqueas qualidades "na" experiêncià^tirihàm, para Proust, todas as características que Platão atribuía às idéias "além" da experiência O dualismo no mundo de Proust separa as qualidades intemporais na experiência (e no eu) dos objetos mutáveis na natureza, ao passo quePlatão distinguia tanto as qualidades como os objetos no mundo da"aparência" das formas eternas que habitam um lugar "além dos céus".

Penso não haver dúvida de que esse processo de externar oselementos mais significativos na experiência como se pertencessem auma ordem objetiva da realidade foi sugerido a Proust como um

O TEMPO NA LITERATURA 57

modo de entrar em acordo com o caminho do tempo em direção àmorte.^ Voltaremos a esse problema dos objetos intemporais, e aoesteticismo (ou misticismo) como um modo de ter acesso'a uma dimensão intemporal, depois que tivermos considerado o significadoda direção do tempo na experiência humana.

Direção e Morte

— O problema de definir a direção do tempo apresenta gran- . . :des dificuldades para uma teoria física. Seria totalmente impossível .entrar nas tremendas complexidades técnicas desse assunto. O que •podemos e precisamos fazer é novamente um breve resumo da linhageral de pensamento adotada por uma análise objetiva da direçãodo tempo, a fim de termos um fundo sobre o qual considerar aabordagem inteiramente diferente desse problema da perspectiva daexperiência humana. T^eG^ÁO ± Oí^^m ^." '

O conceito^dejdireção emergiu previamente em conexão com o —--;problema da ordem.. Viu-se então que uma ordem temporal objetiva ^>

' era definida por processos causais na natureza, e que a ordem causai ^dos acontecimentos era exemplificada pelos denominados, processosirreversíveis tais como o dos ovos mexidos. A;'irreversibjlidadèi como "Kant ressaltou, j_um critério tanto para a 8iréçãó "qúánto^para a

~£rdsm; poisjijzer que um processq_é_.irreversível .significa que elecorre apenas numa direção, isto é, do acontecimento "mais anterior"para o "mais rjg^texipjl^ojj-da^p^ss^ o futuro. A flecha dotempo na natureza move-se, por isso, na_jdireçãO"des-.-processos

Tais processos irreversíveis são encontrados na termodinâmica. 0Na mecânica clássica, a interação de partículas era considerada re-^^r-versível; conseqüentemente, a descrição desses processos nas equações' 'c°da mecânica clássica era independente do índice temporal. Não fazianenhuma diferença para a solução dessas equações, ou para a descrição da natureza em termos dessas equações, se "t" era positivoou negativo, isto é, se o tempo apontava para a frente ou para trás.Do_ponto desista da mecânica clássica, o tempo não parecia ter umadireção.

Essa situação mudoupom p_estudo_do_c_alor. _P^_p_rocessos_tér-JBJgJ3ÍI-Ml£Míraiió"dõs" mecânicos, tinham uma direção irreversível,dejyjdo à inevipáTOr£ej^a_dg_energia do calor num deterrnjriado sistema

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' _e ao aumento correspondente na energja__térrnica em relação ao uni-^e-ri£..^0JE0_H.I5_ÍPA°- Esse fenômeno característico dos processos

. do calor na' natureza foi" incorporado na_jêguiu^T;eT3£T^rrrodi-'_nâmica e exposto como um aumento no que foí denominado entropia."SeTssa lei €~vaMãT^~ümã~Õpõ^significado da direção do tempo com certos processos físicos, obje

tivos, na natureza. Pode:.sejlizer que o tempo se orienta na direçãodjsçiita^peja_Se^unda_LeiudaJfeinioiioâmka^_xiu_njLQMreção de umjmrnentoja entropia. Se e quando o universo algum dia morresse

' de^ "morte de calor" ou, para usar uma linguagem menos antropo-•mórfica, se e quando o universo alcançasse um estado de equilíbrio

•perfeito sem mudanças nos estados de energia em qualquer partedentro do sistema total, o tempo ficaria parado, isto é, cessaria de

. ter uma direção ou qualquer outra propriedade topológica.

Esse ponto de vista, como já disse, levanta problemas extremamente difíceis, tanto empíricos como lógicos, mas para os nossos

.objetivos é suficiente notar-se que qualquer análise da direção do.t_gmgo na_ natureza precisa começar cpm_os_processos termodinâmicos-ÊJSS!Ürj!t3ejB!n_volta_d^ atéjque ponto tal.^2ldagem_é_apartada e alienada~da~direçã"o dei^ tempcTemêrgindo4£>líI°_i!°J^ejrto_jd^^ Qualquer que seja o^ato^ienlífico ou..lógico., daJSggunda Lei da Termodinâmica, há\UQa.^elasãQj^^da_ejLperiincià g definindo jelmodojkiciúsJfl.eguívoco..a direção do"tempptna.vida humana. Essa é a irreversibilidàdélio movimento emdireção à morte. "~~ —_—

Esse tema ressurge, dos tempos imemoriais, nas canções e nopensamento do homem. "Nem o sábio nem o tolo serão lembradospara sempre", diz o Eclesiastes. "Embora um homem seja tão forteque chegue aos oitenta anos, seu fim será somente trabalho e tristeza,tão rápido esse fim se escoa e desaparecemos." Ornar expressouo mesmo tema mais levemente: "Uma coisa ao menos é certa eo resto é mentira: a flor que uma vez desabrochou sempre morre";e Herrick invocou a mesma imagem: "O tempo passado ainda estávoando, e aquela mesma flor que sorri hoje, amanhã estará morrendo."

61) E. g., nas obras de Reichenbach citadas acima; ou Harold F. BIum,Time's Arrow and Evolution (Princeton: Princeton University Press, 1951).

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Mefistófeles (no "Fausto" de Goethe) coloca-o cinicamente: "Poistodas as coisas oriundas do Vazio merecem ser destruídas"; E Wolfe,de modo pungente: "O mistério do estranho tempo de milhares defaces que nos acossa com a brevidade de nossos dias." Por mais queas variações sejam engenhosas, o tema é sempre o mesmo: a direçãodo tempo na experiência humana é determinada para nós, como um

"TãfjíTrnflexwe^ na transito-riédade de nossa existência.

Fisse é, sem_dúvida, o aspecto mais significativo jdotempo naej^eriência_humana, porque _a perspectiva, dajnnorte entra, dessa ma-neinu. çQmo_jima^ajteJategraLeinerraditíNãn-M-lugar para o significado desse_aspecto do tempo numa teoriacientífica, exceto para dizer-se que ele representa uma resposta acidental, emocional, da parte dos seres humanos para com os processosfísicos, impessoais, na natureza. Não é de surpreender, assim, queessa explicação deixe algo a desejar, ou que seja considerada inadequada; ou que possamos apreciar a teoria objetiva apenas na medidaem que a frase "morte de calor" nos capacita a relacioná-la a algumaspecto do tempo em nossa própria experiência. Não é de surpreender, também, que essa qualidade de tempo — a„transjtoriedade daviç}a, a marcha inexorável do tempo em direção à morte -^^evessetornar-se o legítimo interesse de poetas, escritores religiosos_e filo- lsofos literários, não-científicos. r\n^ /-.fi,cr^n tv-, Tp-TppDtf7Zo&l2&S£fl'0

Seju_p^ritodereferência é invariavelmente, ajrogressão do tempo_\Mã_Ji™ianaIIf3lL^^ Como vimos, 0 existen-

cialismo ergueu esse princípio de temporalidade como pedra angularde uma elaborada análise metafísica do homem. Se o homem tem

qualquer natureza, essaj^turgza é a de ser um animal_acossadp__p~èloternpo.- A premissa básica da análise de. Heidegger é que só o homementre as"criaturas vivas, àjmedida em que se tornamais consciente desi mesmo, tejri_urn conhecimento prévio de sua própria morte.'"*'62*Mas essa percepção apenas reapresenta, dentro de um contexto secular, 'Ao que tem sido um lugar-comum numa longa tradição religiosa. O. l Oque^jiisfjnjme^Heidejrger, e outros escritores existencialistas não-reli- agiosos em nossos próprios dias, dessajradição não é o problema com ^4 S-que estão lidando, mas (a) a .çonclusão-de_que não há escapatória

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62) Martin Heidegger, op. cit., pp. 235 ff., onde Heidegger cita (p.245) um dito medieval no sentido de que "logo que o homem nasce, estábastante velho para morrer."

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Cf.r\AVl'~£lrl y.AÁ-{v\fiy:ifi^ °^ VI !»yWY>A •^G-rÁG LflAOi>~-wLo

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desseJjiexorável. destino humano. e_ (b) que essa conclusão é usadaÇornxLpase,ÍLa quaj._se.derivamJpdas__ã§. espécies^de outras categoriasCOTsidjiradjis^ara^ E^sas categoriasj^tencl3]!!1.^^ ajrmeflade, liberdade,_escpllia, ambigüidade etc, são invariavelmente" colocadas no çon-tMto_p^a_irrevej^ívd_oireç|ojlo^Jernpp...p^rjL.a_jnprte e só fazem sentido, se é que o fazem, quando interpretadas dentro desse contexto ,subjetivo./) cor-Oc^^ ckA. í^-xsk9wvi^~fo^ •=- c:í«_aj»-?i&Q>J~e—

Há dois modos diferentes pelos quais ^ssaju^iiHã^e^ÇTrerripopode ser experimentada: uni .modo positivo e um .modo."negativo, t63*"O tempo é inve.nção).._ou"'n.ão_éjiada", dis_se Bergson^ expressando o.^PJ^^siLi^ O mesmo pensamento é expressado numa recente declaração por Mann: "Aquilo em que eu maisacredito, que eu mais valorizo, é a transitoriedade. Mas a transitorie-dade — o perecível da vida — não é algo muito triste? Não! É aprópria alma da existência. Confere valor, dignidade, interesse àvida. A transitoriedade cria__^tempo" — e_'tempo é a essência\Ao

tcT^ rnenos potencialmente, o_Jgrrnpj3_é_j> presente supremo e^pjnãis~util.^elaciona-secomjudo b qu£J_criati.vo e ativo, e._é .mesmõ""identico

. a isso, a c!BI"pro^^ um objetivo mais alto." <64>

—•—"'O tempo, em outras palavras, move:se_jLa_direpão_daRevoluçãocriadora", qujorna manifesto o elemento produtivo, criador, nn pro-

Jge_gso evoluçipnario. FaTamos do "ventre do tempo", ou, numacuriosa, mistura de "metáforas, do "pai-tempo"; em suma, do tempocomo 9 gerador.de todas as coisas, a permanente possibilidade de.criação, novidade e crescimento. Considerado dessa perspectiva, otempo_é um elemento produtivo, criador, na' experiência — a fonte

.prmanente. da feitura^ e desenvolvimentp das coisas, dos benTTlToJu; na terminologiaTanstotélica, a condição perrrur1^^'^!^3 a conversão do vir-a-ser emjsgr, da potencialidade em realidarlp., dajmper-feicixi^sm^pèrfeição. A direção do tempo torna-se a condição goba^o^ual aderimos a crença na realização de esperanças e aspirações,

-™—-^ —- è^Pe-íZÀ^c/r-Ç-63) Essa distinção corresponde, grosso modo, a uma de Pierre lanet,

citada por Marie Bonaparte, op. cit., p. 454, que distingue entre um aspecto"criativo" e um aspecto "destrutivo" do tempo. Além disso, entretanto, lanetreconheceu um aspecto "conservador" correspondendo ao tempo dos historiadores.

64) Thomas Mann em This I Believe, ed. por Edward R. Murrow (NewYork: Simon and Schuster, 1952).

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O TEMPO NA LITERATURA61

na oportunidade para a criação e o progresso, no esforço e no empenho como meios para a felicidade e a salvação pessoal.

Esse é o modo positivo de encarar a transitoriedade. O movimento do tempo em direção à morte é também a condição de nascimento e renascimento. Assim, de Heráclitp_a_ Bergson, o tempo éidêntico ao "vir-a-ser". Na tradição religiosa do ocidente, esse pontode vista e expressado pela crença de que Deus realizou o ato dacriação dentro do tempo; na verdade, criou o tempo no ato de criaras cojsas noternppue juntamente com esse ato. <65>

-a i^j)rieptaçãp positiva para com a direção do tempo na experiência, entretanto, é_çomparativamente_ rara. Não foi a orientaçãodos pensadores no oriente; e não faz parte das maiores correntes dopensamento grego. Tanto os cultos populares^ dos. rnjstérjos_rjnantn'a_tradição filosóficaestabelecida por Platão e Aristóteles" desencora-jaram a imersã"õ"liõ"têmpó "desta vida ejn comparação com "umã""~exis-tência_sem"tempo alem desta vida. A "feitura" (ou"fruição)~de~cÕisas '"no" tempo era estritamente inferior à "contemplação" de coisas"além" do tempo. E Platão só poderia encarar o tempo na naturezacomo uma cópia imperfeita da eternidade além da natureza. <66) Atradição religiosa sempre adotou uma posição ambivalente sobre esseponto. Embora Deus criasse o mundo no tempo — expressando dessemodo a afirmação mais positiva do valor do tempo como um meio decriação —_a_religião também enfatizou, e talvez de modo mais marcante, ,Q_^sjãêçtçT negativo da_dirêçlõ~do tempo.: o.,medo_da morte,ajutilidade do esforço humano e aesperança de .salvação, nãõjtravésdos aspectos criadores do tempo ngsjta_yjd§, mas-^atxaiés-da.admissãoJia_xíejrj38__cidade <te_.Deus^ém_do_lempo. Mesmo "A SegundaVinda" é sempre considerada um evento suspendendo o tempo naexperiência e na natureza.

Que essa orientação positiva seja tão familiar em nossa cultura— tanto que muitas pessoas tendem a tomá-la como certa — éprimordialmente o resultado de transformações sociais durante unspoucos séculos passados e o impacto dessas transformações sobre aconcepção intelectual do homem, inclusive suas opiniões religiosas.E_somente_a partir do_J'ascenso do capitalismo" no.mundo, moderno9ie._..a_c.0.ncePÇão J^igi053' e mais particularmente a. concepção das

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65) Pelo menos de acordo com Santo Agostinho.66) Cf. Timaeus, 38 a.C.

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^seitaj^j3rotje^a.rit_ej£^Jiva do tempo na vida do homem: a_virtude é medida por esforçose jealizações neste mundo, não por um"'.estada-.Jda_!xnejitel"pu porrecómpensas_no mundo vindouro. O homem "bom" é o homem ativo,de sucesso, o homem que usou o seu tempo com um bom objetivo.

-Sucesso e realização durante a vida de alguém tornaram-se "sinais"de eleição e graça divina. (67> Mud_ancas_iordais^xislM^m._rn_oyi-mento pela surpreendente expansão econômica tinham..sido .tão..radicais^ revolucionárias que"jTssa"orientação.positiva para com a direção^.tempo tornara-se uma força dominante na_ concepção intelectualÊêial_dp rnundp ocidental. Qjternjw j[pssência. ..Ã" progressãoJem-.Eoral^é identificada.còm'oprojressphumanov' E, o tempo pede esforçoigcessant£_atividade e"produção. "Voltaremos a esse tema no próximo.capítulo. r^yp

O "Fausto" de Goethe é uma notável expressão literária dessaorientação positiva para com o tempo. A aposta de Fausto é baseadanas possibilidades infinitamente criadoras contidas na duração davida de um indivíduo. (*)

Desse ponto de vista (e estou distinguindo esse aspecto particular), a aposta é um teste de tempo. O teste é se o tempo pode ter

. jamais^ qualquer outra qualidade que a de estar prenhe de novasexperiências ou ser um instrumental para tais experiências; se essaqualidade inerente na direção do tempo através da vida de alguémpode ser algum dia invertida ou detida. Somos inclinados a pensarnisso como um teste que Aristóteles dificilmente teria achado compatível cóm sua idéia deum "homem dementalidade elevada"; contudo,é essa precisamente a espécie de aposta que o homem tem geralmenteaceito.

67) Cf. Max Weber, The Protestam Ethic and the Spirit of Capitalism(New York: Scribner, 1930); ou R. H. Tawney, Religion and the Rise ofCapitalism (New York: Harcourt, 1926).

*) Quando num leito de ocioso espreguiço-me quietamente, / Deixo ali,de uma vez, meu registro terminar!. .. / Quando saúdo, assim, o fugidio Momento: "Ah, demora-te ainda — és tão belo!" / Amarra-me então com teuslaços imortais, / Minha final ruína então declara, / Es sei die Zeif für michvorbei (68) (N. T.: Última estrofe em alemão, no original).

68) lohann W. Goethe, Faust, traduzido por Bayard Taylor (Boston cNew York: Houghton Mifflin, 1924), I, 68. Uma tradução literal de 'Therelet, at once, my record end" (a versão de Taylor) é "then let time have astop for me."

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O TEMPO NA LITERATURA63

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A resposta humana a esse teste é.esforço e atividade incessantesOs dois últimos são modos de neutralizar as implicacõg^jnfígativasda inexorável e inegável progressão do t.emj£Lprr1_jjir,f»çãr,.Xniórte.O esforço incessante característico do "homem faustiano" (Spengler)é um modo de esquecer o tempo. A busca ou o prazer da busca tem,valor intrínseco porque se esquece do objetivo perseguido ou do valordo objetivo; esquece-se também do objetivo finaJL estabelecido paracada_pjj^a,iia._viAaJ.istp_é}..amor. Capacita o indivíduo a viver"dentroda dimensão de um "agora" permanente, sem passado ou futuro.Assim, não é o "momento" que é rejeitado pelo homem faustiano;pelo contrário, ele vive no momento e por ele. Mas é a idéia deque o momento poderia alongar-se e perdurar que é insuportável.Pois se este fosse o caso, o esforço e a busca incessantes exclusivamente por si mesmos estariam refutados. Desse ponto de vista, asalvação de Fausto é perfeitamente consistente, embora o diabo seja

^enganado. (*) ffcl£W%_QjHííLi10 esforço incessante é combinado com a.producão de

mirjbalhpjlè grande." utilidade social, sugerindo p componente _eco-JlâíSico^ssa.via.de.salY.asão. Aprogressão dp^terripo"é'"vistÊTcomoa__e^trada_jkL_pjiigre.Si^^ Assim, não é" apenas" àtraveTdÕsprazeres da atividade que o tempo pode ser resgatado. Pode tambémhaver um objeto "sem tempo" redimindo a atividade; pois as_cpisas•Srlâdâsjlo^JPJJO^qdem não .apenas sobreviyer a nós mas perdurar.aMr&_dO...Íernpo-, desse .jnodo\ ^<^^úq à&j^qvo à^ qualidade da-âi^SSHPia^jfo Jejrnoo^^ aohomem mortal O momento de auto-realização, o momento de perdera aposta chega para Fausto quando ele tem a visão dos pântanossecados e convertidos na livre morada de um povo livre. É esse omomento pelo qual vale a pena perder a aposta, pois o ato de criação"no"tempo é visto perdurando "além" do tempo. (**)

A crença de resgatar o tempo através do esforço incessante e/ouatravés da feitura de um monumento perdurando eternamente é semprecontrabalançada pela perspectiva negativa que Mefistófeles traz à peça.

*) O nobre Espírito está agora livre/E salvo do ardiloso mal:/"Quemquer que se esforce infatigavelmente/Não está além da redenção." (69)

*") Os traços de meu ser terreno não podem/perecer nas eras, láestão eles! (70)

69) Ibid., II, 308.70) Ibid., II, 295.

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HAÍNC5 MÜYJáKHOFF

Apresentando-se a si próprio como "o espírito que nega; e com razão:pois todas as coisas suscitadas do Vazio merecem ser destruídas",ele encerra a cena de morte de Fausto no mesmo tom: "De quenos serve esse criar incessante? O que é criado sendo a seguir aniquilado?" Mais uma vez essa orientação niilista baseia-se numa negação explícita do valor do passado na vida e na história humanas. (*)

É esse o aspecto negativo da direção do tempo para a morte:"Es ist so gut ais waer' es nicht gewesen." O gênio de Goethe deviaver que, mesmo no mundo moderno do esforço incessante e realizaçãosem paralelo, havia ainda uma ação mútua constante, não resolvida,dos aspectos positivos e negativos inerentes na direção do tempopara a morte. --il>^c.- LoJ^r^^aíOe

Entretanto, £o_ aspecto negativo^_o_tema daJuj^ade_deJndo2_SSÉ£5£jH™^£La_19inbra. da jnorie.,^ue_.tem sido ajresposta maisfiOimirri__a_es^^2^ na..vida.."Jiiirãiri '̂'"'"Vão,"'"vãoJtudo é vão", disse o Pregador. A^coisas_feitas no tempo são tambémde^tj^petojenipo. "Num minuto há tempo para decisões elevísoes

mque um minuto inverterá." <«) QjijmiriaJraspjipJa^mejT^• "Nós matamos 9 te.rnpn- o tempo nos enterra." (73> Baudelaire in

vocou o antigo mito de"Cronos devorando seus próprios filhos. "Otempo devora nossas vidas, e o escuro Inimigo que nos conheceparece engordar com o sangue de nosso coração e crescer mais.""O tempo engole-me de minuto a minuto como a neve profundaengolfa um rígido corpo gelado." "O tempo é um jogador vorazque ganha em cada lance." "Somos esmagados a cada momento pelaidéia e sensação do tempo". W^^pj^y/D i ^^vo

^^H£ é^ParÃd-0 pelo ventre do tempo é engolido ^d^novojior.esse.japnstruosp_ser. Erri^ye^de^serjo^atjyo^eradpr^"^^^ou-5^..ai?dadje_jnerrate_na_direção do tempo, toma-sejmtão destrutiva,

*) Passado! Uma palavra estúpida./Se passado então por quê?/Passadoe puro Zero,^ completa monotonia!. . . /"E agora é passado!" Por que leruma página tão virada?/É exatamente como se ele nunca houvese existido. (71)

71) Ibid.

721 T. S. Eliot, Collected Poems (New York: Harcourt, 1934), p. 13.KQy Machado ris Assis Epitaph of a Small Winner (New York: Noonday,

1952), p. 188.

74) Cf. Charles Baudelaire, "UEnnemi", "Le Gout du Néant", e "L'Hor-loge" em Les Fleurs Du Mal, tradução de C. F. Maclntyre (Berkeley e LosAngeles: University of Califórnia Press, 1947).

.?

O TEMPO NA LITERATURA6*5.

má e odiosa. "E nada contra a foice do Tempo pode ser defesa." 'Ou: "E nada fica de pé senão para ser ceifado por sua foice." <7">Assim, o símbolo do homem com a foice, o cruel segador, é adicionado a Cronos, o devorador de seus próprios filhos; e "o Tempodevastadordebateu com a Decadência." "A ruína ensinou-me, assim;a ruminar." A^rpjre^s.lo,JaexpráyeldoJempo em ..direção à.morte-ÇJLdestruição torna-sei.a .".tirania,..do.j£rnpo''; "e. mmpW^mpjte jm,.giLejM_£QJii_QJrempjo^ fora o assustador fardo dessaürania.— Vhorrible jardeau du rem^^^Tncõhtfanclg^pehãs sõfri-mernP^angúslÍ£L_e jderrota _aqJpngo do caminho. PpisjiadFpeHura•e--Eodejerdp£ap!_de_açprdp^ojn nem_as obras da natureza,r^rn_j.s_oiraâJuimariasJ nem o próprio homem, nem seus sonhos éei£eran,ças. "Nada pode perdurar exceto a Mutabilídadê?^76)

Seria supérfluo dar uma documentação detalhada para essa res-pogtájiegativa^que permeia nao apenas nossas vidas "e a Literaturahojje_mas^^rejistrpJústóricp^ do homem"em^g^ajquerjpoca ou cultura. A nota pessimista "da angústia existencialista e o desespero niilista não são absolutamente característicosapenas^ da literatura "decadente" de nossos tempos. Através da Flis-tójiajênx. sido um tema^pjmirpJa_T^eratura, Janto religiosacomosecular. A característica de nossa própria época é que a resposta "negativa raramente é aliviada por qualquer orientação positiva "paracom o tempo. Mas o próprio niilismo já encontrara expressão inimitável no lamento melancólico de Macbeth. (*)

Tal visão, carregada até o amargo fim, é insuporável. Daí, "otempo deve parar" para Henry Percy e também para Huxley.' Ovôo do tempo para a morte e o nada deve ser invertido ou detido.

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_ 75) Os sonetos de Shakespeare, especialmente XII, XV, LXIV e LXVsao lembretes constantes desse tema da melancolia.

76) Percy Bysshe Shelley, "Mutability".a- *,\^maA]hà e amanhã e amanhã / Rasteja nesse insignificante passo dia adia, / Ate a ultima sílaba do tempo registrado; / E todos os nossos ontens iluminaram para tolos / O caminho para a poeirenta morte. Fora, fora brevecnama! / A vida nao e senão uma sombra caminhando, um pobre jogador /Que se pavoneia e desgata sua hora sobre o palco, / E então não se ouve maisffii^\2m/ C°ntada por um idiota' chei0 de SOm e™* ' **>

77) Notar como a qualidade da inexorável e melancólica progressãotLt"^0 Par\a m°rte e a futilidade de todos os esforços humanos sãotiaduzidas no ritmo e na qualidade tonai da poesia.

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.' .'-'.5(5 '• '• '"" ' ' • " •, • HANS MEYERHOFF

•' "Morte, tu deves morrer", é o grito de John Donne, como tem sidoa'fé de crentes religiosos através da história da humanidade.

'••' Descobrir um modo de deter ou inverter_esseJrreversiv.eIJIuxodo temp_o_ em~Hí'réçaõ ã morte torna-se, assim, a mais signifiçantebx^^.nâ^M^Ã^o^m —^^a busca de alguma base na experiência

"'"ou existência humana intocada por esse aspecto do tempo, que esteja•'além e fora do tempo. Devemos por isso considerar uma vez mais

. " ' essa busca de uma existência sem tempo, a fim de completar nossa" * prévia discussão sobre o tempo e a eternidade. Pois. o significado de

.* uma dimensão sem tempo na experiência^ noi eu, na obra_d_e_arte_ou'". ' aíém da experiência só pode.ser..completamente apreciado quando é

• colocado.dentro do contexto das_ reflexões melancólicas, sombrias,resultantes do...av.ançar_..do_tempo-para-..a.-rhorié.."Ie"Io...nada.

A literatura religiosj^jurn_rico_ repositório de documentos ex-J ' pondo"~em irnagens colõnd^s7_sempre repetidas, a futilidade da exis-

V« ' "tência humana em face da morte, e fornecendo ao mesmo tempo% ' unial^aída_p^ra.^ssa_djprimente perspectiva pela fé na ressurreição,•', ha salvaçãoje_.ria-yida...elern.a. Pouco foi o que as futuras gerações"^ puderam acrescentar ao que disse o Ecclesiastes sobre o conhecimento!'{. ' prévio do homem acerca de sua morte; mas essas tristes reflexões

9' encontraram lugar legítimo e presumivelmente construtivo nos rema-3 nescentes textos sagrados do mundo ocidental. Para o crente, essa

. atitude pessimista tende apenas a reforçar sua fé e esperança otimista, rrum^m^ç^X^íro^e-x»-tempo pára e Deus 'garante"a vida peYpétua.M Essa pode não ser a única razão para sua fé na vida eterna; maso não iiá duvida de__que_essa_fé, qu_alquer_que seja a base em que

possa se.apoiar, serve para neutralizar as conclusões pessimistas ti-•Ü taclãs"da..exp.eriênci_a sobre o tempo nesta vida. Qualquer que sejaT a religião, a negação da mortalidade do homem tem_jid^_sjmpr;e'"um

<~L? ingrediente essencial da fé religiosa"ê, indubitavelmente, tem contribuído para fortalecer tal fé.

CLmisticismo serve_a._uma. função similar: p_pbjetiyo último do"IlmrÍMdii!lJ^SÇ^rjarjo_Karma._d^.. reincarnação, o ciclo sem fim_de_nas£Íffien,to_.e. morte, anseios e mal, e. ingressar num estaciõ de.consciência (Nirvana) que é sem tempo, .e, conseqüentemente, umaUb^rajcJo_da_£xperiência .do..tempo. Assim, enquanto Mann pode

"-%.. escrever: "Potencialmente, pelo menos, o tempo é a dádiva suprema'̂̂ mais útil", Huxley pode dizer exatamente o oposto, escrevendo da

lectiva do misticismo: "Quanto ao tempo, o que é ele. . . senão

XX

O TEMPO NA LITERATURA 67

o meio em que o mal se propaga a si mesmo, o elemento em queo mal vive e fora do qual morre? Na verdade, é mais do que oelemento do mal, mais do que meramente seu meio. Se você estendero bastante sua análise, descobrirá que .aJempo é p mal." Assimé, de_acord.o__com o protagonista de Huxley no romance, porque

'""tempo e anseio'1JT7Í77 o "esforço~incessante^õ^h"omém' faustiano) sãodois aspectos da mesma coisa... Ojernpo_é_.o._mal potencial. e o"anseio converte a potencialidade, em mal real". (78> Embora essaseja úma visão^xjxernada^ é completamente consistente com o. queos esõritõres místicos sempre~disserám"sobre á falta de valor do.tempoe da_fisforço. É uma admirável ilustração de como duas atitudesdiametralmente opostas podem ser tomadas com relação à direçãodo tempo na vida humana. ^-^ -y-ç?-r\' c^M-^

fOfe£tetJcismd_cj)mo o de Proust, é outro "modo de vida",^79>revelando uma visão sub specie aeternitatis da qual surge o "regozijo"e a mais alta paz da mente possível", na linguagem de Spinosa. Arte,como diria Proust, seguindo mais Schopenhauer que Bergson, é uma"fórmula eternamente verdadeira, para sempre fecunda com uma alegria desconhecida, uma esperança mística (de que) algo mais exista. . .além do vazio que encontrei em todos os meus prazeres e mesmo noamor. . . algo além da vida, sem compartilhar sua futilidade e o seunada". O sabor da madeleine e todas as outras essências sem tempoentesouradas na memória e recriadas na arte preenchem assim a função de liberar o. homem "da ansiosa consciência de sua própria morte."Compreende-se prontamente como esse alguém possa estar confianteem seu júbilo; embora o mero sabor de uma madeleine não pareçaconter justificação lógica para esse júbilo, é fácil entender que apalavra "morte" não tivesse nenhum significado para ele; situado forado escopo do tempo, o que poderia temer do futuro?" (80) Em Eliot,os componentes místicos e estéticos dessa visão estão curiosamentemesclados. (*)

78) Aldous Huxley, After Many a Summer Dies the Swan, pp. 122-123.79) Cf. Van Meter Ames, Proust and Santayana: The Aesthetic Way

of Life (Chicago-New York: Willett, Clark, 1937).80) Proust, op. cit., II, 996.*) Tempo passado e tempo futuro/Permitem pouca consciência./Ser

consciente não é estar no tempo./Mas apenas no tempo o momento entre asrosas./O momento na ventania da igreja enevoada/Podem ser lembrados, envoltos em passado e futuro./Somente pelo tempo o tempo é conquistado. (81)

81) T. S. Eliot, Four Quartéis, p. 5.

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68 HANS MEYERHOFF

£ improvável ter Proust pensado que o senso de eternidade descoberto por ele liquidasse o fato bruto, persistente, da morte física.Às vezes, fala como se tal ocorresse: "Por vezes a ressurreição daalma após a morte deve ser concebida como um fenômeno de memória." (82> Mas há prova independente mostrando bem claramenteque Proust não era um crente na imortalidade.

É com grande lástima que me descubro aqui em desavençacom um ilustre filósofo... O Sr. Bergson afirma que a consciência transborda do corpo e estende-se além dele. No que tangeà memória ou ao pensamento filosófico, isso é obviamente verdadeiro. Mas não é isso que o Sr. Bergson quer dizer. De acordocom ele, o elemento espiritual, porque não está confinado aocérebro físico, pode e deve sobreviver a este. Mas o fato é quea consciência se deteriora como resultado de qualquer choquecerebral. Meramente desmaiar é aniquilá-lo. Então, como épossível acreditar que o espírito sobreviva à morte do corpo? (83)

A^sjni^_o_aiu£j>ropst.queria dizer, ao afirmar que "a palavra"morte", nãojünha.qualquer significado para ele," é que encaravaa_arte._çpmp um "modo de vida" colocando-nos além da perspectiva

^eraporaLda jmor_te., eliminando — ou p"elo menos"" ajudãndõ^òs achegar a um acordo — o_medoda._mo.rte. e o desespero do nadaque são tão freqüentemente parte integrante da vida do homem, seela é vista e vivida apenas sob o aspecto da temporalidade. Naturalmente isso pode ser chamado uma forma de "escapismo", escape davida sob a sombra da morte; mas não implica necessariamente talatitude. AJxas^sub^specie aeterni pode, não necessariamente, designar

.um afastamento da vida" e^dâ realidade; pode também.descrever^sim-plesmente um modo particular" de autó-orientação dentro dqjnundoclá:~expêfiênciã" humana: um pontcT "dê "vísTa" ou^perspectiva diferentesobre a vida; um_ç_e_rto^desligamento da tirania do tempo; uma_orien-tação em torno dessas qualidades na experiência que parece reverterou deter, a consciência dõ7pÍpgr"ésXoIa7õ7te^Nesse sentido^ pode ser partilhada mesmo por Tjêssò"ãs^qúê~"n'ão "ãpre-ciam o misticism.õ'TOmóivisao de uma "realidade mais profunda"". <84>Tal atitude pode então ser mesmo chamada um "modo de vida" ouuma "filosofia" (no sentido popular) tão logo o significado dessaperspectiva torne-se claro para o indivíduo de modo que ele escolha

82) Mareei Proust, op. cit., I, 777.83) André Maurois, op. cit., p. 6.84) Ver Bertrand Russel, Our Knowledge of the Externai World (New

York: Norton, 1929), p. 181.

O TEMPO NA LITERATURA ' *' .69,

essas qualidades sem tempo, ou a .arte humana de preservá-las erecuperá-las, como os únicos aspectos da experiência "dignos"' déserem cultivados. E ele pode aceitar esse modo de vida-mesmo'que a maioria da humanidade não tenha achado e não o ache merecedor de ser aceito.

Esjas observações decorrem de duas razões: em primeiro lugar.desde o declínio da fé religiosa,,o modo de vida estético tornou-seurrxÍLlrr£iIresj30ji£as_ seculareiLjmais significativas iantoL ao desafio" damorte quanto ao pessimismo_geral .que,, permeia o .clima, intelectualde_nossa._época. iA^i^0---P-QSÍÍiia^--secular — a__ênfase no esforçojricpjsante e na produção de bens úteis como um mod_g_ de^afirmartanto os aspectos criativos da vida como a suspensão da consciência4i_rnorte — e_ãindã~úm traço reconhecido em nossa cnjnjra_e parte.4e_lu^j3eplogia_oficial. Contudo, por uma variedade de razões, comoveremos no próximo capítulo, essa tradigional op[entapI_Q_perdeugran^parte de sua_aiitiga atração. Podemos "dizer que o esteíicismoganhou por eliminação, graças ao declínio ou falência dos "modosde vida" previamente aceitos.

Em segundo lugar, o_apelo_..dpj^Jeticismo como um novo modode: vida não.estaJiinitado à busca das essências proustianas. "Direia você o que farei e o que não farei. Não servirei àquilo em quenão mais acredito, chame-se ele meu lar, minha pátria ou minhaigreja: e tentarei expressar-me em algum modo de vida ou arte tãolivremente e tão inteiramente como puder, usando como defesa asúnicas armas que me permito usar, silêncio, exílio e astúcia." <85) Nofinal, é-o^jrnüpoJDep^is^j) "yeiha.pai" .de Infinitas--artes- e ofícios,j^uj3_Ainvocado_como justificativa.. e_appio .do .modo- -de..vida. estéticoe2L9Jie oJpy,em.embar.ca. Para Joyce. essa decisão não era o.resultadoc^aj^l.c^exjasi|p_i^ ao lar, à pátria e à igreja;e_a_jejté_dcja^e_amtj^jvem pie Aristóteles e S. Tomas. Çaníudjo,ta_reconstrugão de_siiajyida, _õ"lóTjâmemo ''da aniquilÀda consciência^mjriha raça" através da arte, tornou-se tambérn p'ú.nicja4..er.spectivaçj;ie_yjaíe_ja_pjejriçi_ müinjicamente_jaliosa^^ fluxo de sua cons-çiênçia._e_..da história do homem. É tal afirmação positiva da arteera tanto um "escape" ou alienação do tempo e da sociedade comoera para Proust — até mesmo ao ponto de exílio físico. Mas para .Joyce era mais mitologia que misticismo o que influenciara sua

85) lames loyce, Portrait of the Artist as a Young Man, em PortableJoyce, ed. por Harry Levin (New York: Viking, 1947), p. 518.

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perspectiva do tempo e despertara seu interesse na teoria cíclica deViço.

JPojsJiá, contudo, outro_ cjpMhoj)ara_chegar a um acordo coma^_impJÍGacões pessimistas na direção do_tempo para a morte, _quese__tornou^também particularmente "significativo em nossa época. ^Éa teorja rírliça do tempo, ou_a crença de que_nJo_jiá_nada^d.e_Iiovo

'sob ó Sol. Nietzsche chamou-a de princípio "do eterno retorna domesmo". Tão velha quanto Heráclito e tão nova quanto Nietzsche,

""Dàhilevski, Spengler e Toynbee, a teoria cíclica do tempo tem tidouma longa história e encontrou seu caminho em vários campos dopensamento contemporâneo — inclusive na Literatura. A^Jeoria émodelada segundo o ciclo do nascimento, crescimento, declínio e morte,de acordo com o qual experimentamos a direção do tempo no mundoorgânico, <86> ft, desse modo, uma projecãij^tejkica^njrrhist.ória ouno universo, de__certps_elementos considerados diretamente determinados na experiência humana; e sua capacidade de persuasão derivagrandemente, sem dúvida, de tal fato. ,A_teoria._ postula o mutável"ciclo de nascimentos e mortes como um ciclo imutável, ...permanente,Í7ê7, sem tempo, lei da História. Uma vez mais não discutirei ostatus dessa lei como conceito científico, mas considerarei apenas seu•significado em termos de experiência humana. (87> Fornece_ela_j3utroniojJgjie.,.enç.arat.urna dimensão sem tempo fora e.além da .históricarnarçha,..j3o ..tempo. Êjima_resposta neutra a esse mundo histórico,temporal, uma atitude nem positiva nem negativa. A lei sem tempodo eTèrno retorno é indiferente ao valor das manifestações temporaisdessa lei. Ojernpp_pode ser, e sempre será, uma fonte de bem e demal Na verdade, acéiíãT esse p"rincípiõ"""'significou para Nietzschetomar uma posição "além do bem e do mal". A maioria das pessoas,entretanto, sente que essa neutralidade-valor contém uma perspectivanegativa pessimista simplesmente porque o "bem" (assim como o mal)é excluído pelos ciclos eternos.

Na literatura a teoria cíclica do tempo é habitualmeníe-.apresen-tada" p,m conjunção. cnm:..temas_Jiiísticos. O mundo do mito temmuitas raízes e ramificações; e os mitos preencheram funções amplamente diferentes no passado. Nossa própria época testemunhou um

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86) Cf. Benjamin Lee Whorf, op. cit., pp. 32-33.87) Para uma interessante discussão dos méritos científicos da concepção

orgânica da história, ver H. Stuart Hughes, Oswald Spengler (New York:Scribner, 1952), especialmente o cap. III.

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O TEMPO NA LITERATURA

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crescente e contínuo interesse em mitologia como um assunto deestudo e de expressão artística. Uma vez mais, esse renascimentoda mitologia pode significar coisas muito diferentes. Na criptopsico-logia e na ideologia política, e. g., no culto nazista do mito, foi umpoderoso instrumento para a mobilização e santificação de forçasirracionais desencadeadas para fins humanos destrutivos. Isso nãodeve ser desdenhado.

Contudo, _o_ressurgir dos temas^mitológicos na grande literaturadgjossa época^serve, ou acredita-se servir, a um objetivo muito~dife-rente; não render-se a forças irracionais,_destrutivas, mas domesti-ei-las-através -da_arte. A-iedescoberta do mundo dejrnitõs põFJpyce,Gide, Mann, Camus e talvez mesmo Lawrence, significa uma força

Juimanística; ou pelo menos um ponto de partida para a exploraçãode possibilidades de um novo humanismo, não para justificar, emnome da mitologia, um renascimento do barbarismo. Se isso é possívelou não é outra questão. Mas julgo inegável. que jO_emprego de mitosna Literatura moderna deve ser colocado nesse quadro de referênciaJiyrnaníst.içp. Os mitos são escoíhidos^como símbolos literários comdois objetivos: sugerir, com_uji^rnbie_r^£jeçuTãr, mna_perspeçtiyasjrn^tejrnpp_obs^ryandp à situação,, humana; e transmitir um sentidode continuidade e identificação com a humanidade em geral.

O mito é um "esquema sem tempo", como disse Thomas Mann.É sem tempcTnãquilo' em"'quê esta sempre prêsênTe, um lembrete conf-tante do eterno ressurgir do mesmo. Desse modo, Prometeu e Teseu,Ulisses e Telêmaço, Orfeu e Eurídice, Paris e Helena, Agaménon eCTítemnestra, Orestes e Electra, Bdipo e Jocasta. Abraão e Isac, Jacóe Raquel, José e a mulher de Potifar e Jó e seus amigos podem serconsiderados sempre presentes, protótipos sem tempo da existênciaJjumana,. como símbolos que sugerem a repetição .cíclica da mesmaou similar situação humana. Podem ser revividos para significar umasiTuação que_perdurã fora de tempo...e.iugar — ainda que esteiamrepresentados pelos detalhes, de um caráter individual e_num lugar».e tempo definidos. H/705 - ô%f em' Ç-fiO c fcJ-io*

^s^ini^íazj^eriíidp" — .sentido estáticfX-.mítico — para Joyce.revivendo a teoria cíclica de Viço, invocar a imagem do mítico aoíhn_ÚQ^ortrait_of the Àrtist as a Young Man, ou redescobrir Ulissesde Itaca emjLeopold Bloom de.Dublin, ou contar a históriVde HTC.Earwicker ("Here Comes Everybody") como uma parábola e mitode Todo Homem. Assim, faz sentido voltar, como Gide, a Édipo e

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72 HANS MEYERHOFF

Teseu, redescobrir nós mesmos na paisagem mítica, e reviver os mesmos conflitos e opções sem tempo a nós impostas por "esta" época e otempo de "nossas" vidas. Descendo profundamente no "poço do passado", Mann recupera para nós, como um arqueólogo, o mundomítico do crescente fértil. "As profundezas finais da alma humanasao também a profundeza primordial do tempo." (88> E a mesmaperspectiva funciona no renascimento de temas míticos por Girau-

, .,, „doux, Anouilh, Camus, Kafka, Cocteau e outros escritores contem-\"? t poTàneos- Assim' Wolfe poderia "ver começar em Creta há quatro: .< ü mil anos atrás o amor que terminou ontem no Texas", ou ser. trans-

•portado por seu próprio amor à Senhora Jack à Trácia ou à Mace-Ndônia, ou tentar recuperar sua própria vida — seu próprio "sonhodo tempo" — sob o aspecto de protótipos míticos como Cronos, Rea,Prometeu e Orestes. Em Mann, como en; Joyce, as figuras..míticastB^M^pjra^ju^ajdpnMa.de^elas engastadas "nas repetições cíclicas: da jmesmâ situação humana.tão completamente identificadas com éncarnaçoes prévias' do"mesmotipo humano^ Esse eterno ressurgir de situação e tipo f. aprprnrlirlnno símbolo mítico. '"'" ~~,~-™?.*>*•••

Neste sentido, o tempo pára no mundo de imagens míticas querefletem os modelos cíclicos de possibilidades permanentes da existência humana. Mas cpmo_um. esquema sem tempo o_mito_podeservir também a outra função. Pode ser um símbolo para uma"formagenérica, .típica^ da i_dentidade_humana. A busca das'raízes míticas3^pde_nãp_sej^uma_.husi;iL^a^fÍÇ^cjto_^çjro„hjim^ Os mitos podem transmitir,umsentido de continuidade temporal e unidade estrutural para o* "eu"do_hom_em. Talvez seja isso o que empresta a"eles uma grandeza,uma qualidade civilizadora e confortadora, a respeito dos elementoscruéis, trágicos e irracionais que contêm e exprimem. Podem transportar-nos além do tempo e das exigências de nossa própria existência.Ao^s^econkeeermas-jia^ de lutas, triunfos e der-rojai^ofridajyDejoJw^^ podemos também reconciliar-noscomas inevitóyeisJLimitjiçõps.imP-as.tas, pela natureza e pela sociedade.àJõnlísIClyíiani^agora e em todos ps tempos. Podemos ao menosreconhecer nossa participação" na mesma comunidade humana, ou par-

icn^8) Tn°maS Mann' Freud und die Zukunft (Viena: Berman Fischer,1936), p. 30, no qual a frase "esquema sem tempo", citada acima, ocorre nomesmo contexto.

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O TEMPO NA LITERATURAIV

tilhar, dentro de um contexto secular, aquilo que a linguagem religiosachamou de fraternidade humana. ' .

Essa mensagem humanística foi o elemento mais 'importante náredescoberta dos temas míticos na Literatura moderna; mas é característica do emprego de mitos em Arte e Literatura também de outrosperíodos. É, por exemplo, um ingrediente do tratamento do "Fausto"de Goethe, que consideramos anteriormente num contexto diferente.No fim da parte I, Fausto sofre um colapso — causado pela culpaque sente pela morte de Margarida. No começo da Parte II, Arieladmoesta os espíritos presentes. (*)

Tal é cumprido. Quando Fausto desperta, esqueceu (ou recalcou,como poderíamos dizer hoje) o que aconteceu antes e sua responsabilidade pelos crimes e tragédia da primeira parte. Na verdade, -asegunda parte parece ter pouco a ver com o que veio antes, se é quetem alguma coisa: somente no final Fausto retorna para Margaridaatravés da mediação divina. (**)

Assim, após uma longa digressão, o final volta ao início da vidade Fausto — quando a peça como um todo une começo e fim noprólogo e epílogo no céu. Vista dessa perspectiva particular, a estranha segunda parte pode também ser lida como uma continuação daprimeira, no sentido de efetuar uma reconciliação com o passadode Fausto, ou de desfazer a severa ruptura que ocorreu no fim daParte I. Entretanto Goethe não mostra esse senso de continuidadeem termos muito pessoais. Em vez disso, Fausto torna a ganhar sua"identidade" ao ser colocado em contato com certas situações gerais,típicas da vida humana, e com certas figuras mitológicas (e.g., Helena ou as "mães") saídas do passado da história humana. Fausto-adqah:ê_.assini um ..senso da continuidade_e unidade de ,s.ua_própriayjdji_ao absorverou idehtifica£se corri"esses.aspectos de uma genérica,^Ça/Tierajiça míticai_Jã^ümariidade. Identidade pessoal_e_tvpjca•São_Jurjaj3as"g*e um modo que pode ta.rnbjrn_s^enc^titj^rjn_emJojce.j.JVíaria^ .

*) As ferozes convulsões deste coração apaziguem;/Removam as farpasardentes de seus remorsos,/E purifiquem seu ser dos pesares sofridos! (89)

**) Meu amado, meu amante/Terminadas suas provações/Naquele mundo, retorne para mim neste! (90)

89) Goethe, Faust, II, 4-5.90) Ibid., p. 313.