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http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
QUILOMBO CAFUNDÓ (SALTO DE PIRAPORA-SP):AS DINÂMICAS DO LUGAR E A AÇÃO DO ESTADO
NO PLANEJAMENTO DO TERRITÓRIOQUILOMBOLA
André Luís Gomes
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana/Mestrado
Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
Ao tratarmos da questão dos quilombos contemporâneos, somos levados a
realizar uma revisão histórica sobre a economia colonial baseada na escravidão negra,
enquanto instituição que marcou profundamente a formação econômica, social e espacial
brasileira (ANJOS, 2006; PRADO JR., 1994). Tal instituição, durante mais de três séculos,
representou a base de sustentação do sistema de exploração colonial baseado na
exportação de produtos agrícolas tropicais e minérios (PRADO JR., 1994), estabelecendo
desde os primórdios a desigualdade social e racial entre, de um lado, aqueles que eram os
detentores de terras, poderes e privilégios, e do outro, as levas de africanos trazidos
forçadamente para o trabalho em cativeiro, assim como os indígenas, brancos e mestiços
desprovidos dos meios de produção (MARTINS, 1990).
Embora o trabalho escravo e a economia colonial tenham há muito tempo
deixado de ser instituições aceitas legalmente, algumas de suas conseqüências sociais,
econômicas e territoriais são constatadas hoje em dia: as atividades agroexportadoras que
resultam na/da concentração de terra e capital, a continuidade de um processo tardio de
industrialização – marcado pela dependência tecnológica e do capital provenientes dos
países capitalistas ditos avançados ou centrais – e um dos piores índices mundiais de
desigualdade social e econômica (VIOTTI DA COSTA, 1998).
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Nesse aspecto, a abordagem histórico-geográfica nos tem auxiliado na
compreensão das origens do atual arranjo da economia, da sociedade e da (re) produção do
espaço brasileiro, assim como no entendimento das principais causas do estabelecimento e
da permanência por tempo prolongado da escravidão, enquanto forma de sujeição do
trabalho à produção capitalista (MARTINS, 1990) e contexto principal do surgimento das
comunidades quilombolas (PRADO JR., 1994).
A transição do regime de trabalho cativo para o livre (KOWARICK, 1994) pode ser
analisada a partir da revisão histórica sobre a cafeicultura paulista (MARTINS, 1998), uma vez
que, no período de transição da escravidão para o trabalho livre, compreendido entre 1850
e 1888, a exportação de café representava a principal atividade geradora de riquezas e
concentração de capital no país (MONBEIG, 1984). Todavia, a região de Sorocaba, na qual se
encontra a comunidade estudada, não se caracterizou pela expansão cafeeira, tal como em
outras áreas do oeste paulista. No século XVIII, Sorocaba consolida-se como um centro de
comercialização de muares e gados, trazidos de fazendas instaladas nos campos do sul do
país. Esses animais eram amansados e deixados durante um período em fazendas
denominadas “invernadas”, situadas principalmente em Itapetininga, cidade próxima de
Sorocaba, para recuperar o peso perdido durante a longa viagem (STRAFORINI, 2001).
Enquanto outras regiões, como o Vale do Paraíba, Campinas e posteriormente o
conjunto do Oeste Paulista conhecem o ciclo da cafeicultura, a agricultura de Sorocaba,
assim como a de Salto de Pirapora, esteve voltada para a produção de alimentos destinados
ao abastecimento interno do país, além da produção de algodão (STRAFORINI, 2001).
Embora não tenha conhecido a expansão cafeeira, Sorocaba e seu entorno foram por ela
influenciados indiretamente, pois o crescimento da produção e a concentração de escravos
nas áreas de expansão cafeeira ampliavam a demanda por animais utilizados no transporte,
assim como pelo fornecimento de alimentos, tanto para o abastecimento das tropas como
também das fazendas de café (STRAFORINI, 2001).
A pesquisa apresentada nesta comunicação tem seu objeto de estudo focado
nas relações entre as comunidades quilombolas e os territórios ocupados, tomando como
estudo de caso a comunidade remanescente de Quilombo Cafundó, localizada em Salto de
Pirapora, município vizinho a Sorocaba, no interior do Estado de São Paulo.
No esforço de entender os quilombos e seus territórios na contemporaneidade,
somos levados a nos apropriar do debate conceitual de cunho histórico, sociológico e
político, realizado na primeira metade dos anos 1990 pela Associação Brasileira de
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Antropologia (ABA), cujo documento resultante “procurou desfazer os equívocos referentes
à suposta condição de remanescente” (LEITE, 2000) opondo-se à formulação do conceito
com base em critérios arqueológicos ou biológicos e a uma visão estática e isolada das
comunidades,
“evidenciando seu aspecto contemporâneo, organizacional, relacional e
dinâmico, bem como a variabilidade das experiências capazes de serem
amplamente abarcadas pela ressemantização do quilombo na atualidade. Ou
seja, mais do que uma realidade inequívoca, o quilombo deveria ser pensado
como um conceito que abarca uma experiência historicamente situada na
formação social brasileira” (LEITE, 2000: 342).
A partir do referido debate, que compôs as disputas políticas e institucionais –
entre setores conservadores e progressistas da sociedade brasileira – envolvidas na
elaboração das normas de regularização dos compartimentos quilombolas (SILVA, 2010),
oriundas do Artigo 68 da Constituição de 1988, o conceito de quilombo passa a abranger,
além das comunidades diretamente originadas a partir da fuga e resistência dos escravos,
também as originadas da ocupação de terras devolutas por escravos libertos, ou de doações
de terras de antigos senhores a escravos alforriados (ANDRADE et. al. 2000). Essa revisão
conceitual tem colaborado para a compreensão dos territórios quilombolas na atualidade,
permitindo a ampliação da abrangência da legislação e perspectiva da garantia dos direitos
territoriais para um número maior de comunidades.
A pesquisa tem como objetivo analisar os processos de planejamento, uso e
apropriação social do território em um contexto local, representado pela comunidade negra
do bairro Cafundó, situado na área rural do município de Salto de Pirapora (SP). Esse esforço
de análise teórica e empírica abrangeu o trabalho dos agricultores quilombolas, a
exploração de minério de areia e o manejo de uma área plantada com eucalipto, situados
dentro dos limites da comunidade, a atuação dos órgãos estatais (INCRA e ITESP),
responsáveis pelas ações regularização fundiária e assessoria técnica às comunidades
quilombolas, assim como o uso do território a partir de formas simbólicas e identitárias, das
quais a que mais se destaca é a realização de uma festa religiosa, em todos os anos, no mês
de maio. A realidade complexa, observada empiricamente, nos fornece ainda elementos
para a reflexão sobre questões mais amplas no tocante ao uso social da terra, aos dilemas
da organização comunitária na contemporaneidade, às relações de gênero e à preservação
dos “bens culturais” de origem afro-descendente na sociedade brasileira. Para a consecução
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desse objetivo mais amplo, nosso trabalho de pesquisa teve como objetivos específicos:
- Realizar um levantamento das políticas de Estado (esferas municipal, estadual e
federal) para os quilombos, investigando a maneira como essas políticas orientam o
planejamento do território no quilombo Cafundó.
- Discutir as questões relacionadas ao funcionamento da associação comunitária
e à gestão e manejo das áreas do quilombo ocupadas pelo plantio de eucalipto, por uma
mineradora de areia e pela produção agropecuária quilombola;
- Identificar e analisar as formas de uso e ocupação do solo na comunidade.
A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E A IMPORTÂNCIA DE OUVIR, COMPREENDER E (RE) CONSTRUIR OS SENTIDOS MAIS AMPLOS DA FALA DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Com base nas referências metodológicas da pesquisa participante, da abordagem
qualitativa e da observação participante, a investigação empírica tem se pautado pela busca
da coerência com os interesses e necessidades do grupo social pesquisado, a partir de uma
compreensão epistemologicamente articulada da realidade na qual o mesmo se insere, com
o propósito de socializar o conhecimento democratizar os processos de investigação
(GIANOTTEN & WIT, 1999). Nesse aspecto, os contextos gerados pelo trabalho de campo
assumem uma dimensão de troca, em que a comunidade pesquisada é ao mesmo tempo
fornecedora de informação e receptora constante dos dados coletados e articulados pela
pesquisa.
A partir da participação do pesquisador em atividades da Associação
Comunitária, como as assembléias e os mutirões, as informações articuladas pela pesquisa
são passíveis de serem diretamente apropriadas em benefício da organização comunitária e
da reivindicação de direitos, ao mesmo tempo em que tal postura estabelece uma situação
de confiança mútua entre comunidade e pesquisador, possibilitando ainda que a pesquisa
obtenha informações privilegiadas a respeito do grupo pesquisado. O propósito maior
desse aspecto metodológico é que a informação seja gerada a partir da comunidade,
buscada em contextos mais amplos – como o dos órgãos de Estado – e depois retorne para
a comunidade, em benefício do seu desenvolvimento. Desse modo, além da discussão de
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caráter teórico, a pesquisa assume claramente um compromisso com o desenvolvimento da
organização comunitária quilombola, o que define o seu caráter participante e ativo.
A adoção de tal postura política pela pesquisa torna-se ainda mais importante
tendo em vista as imposições burocráticas e judiciais a que são submetidas as lideranças
comunitárias a partir do momento em que seu território é reconhecido e demarcado como
uma comunidade remanescente de quilombo (ANDRADE et. al., 2000). Embora a
comunidade em questão seja assessorada por técnicos do INCRA e do ITESP, além de outras
instituições e figuras políticas1, a observação empírica evidencia as dificuldades das
lideranças em compreender o sentido das ações e do funcionamento da burocracia dos
órgãos de Estado, em um contexto de pouca ou nenhuma alfabetização. “Indiretamente ou
diretamente se recoloca um enfrentamento com as mesmas estruturas que,
sistematicamente, ao longo da história, os vêm submetendo ao campo da ilegalidade ou da
clandestinidade” (ANDRADE et. al. 2000: 55).
Desse modo, a investigação participante procura, através do diálogo constante
entre a teoria e a realidade, superar a falsa dicotomia entre “sujeito” e “objeto”, ao partir da
experiência e das necessidades populares (GIANOTTEN e WIT, 1999) e envolver “um
compromisso que subordina o próprio projeto científico de pesquisa ao projeto político dos
grupos populares cuja situação de classe, cultura ou história se quer conhecer porque se
quer agir” (MARCOS, 2006: 109). Entendemos que a pesquisa participante, enquanto
referencial metodológico, permite a reflexão sobre a relação entre as pesquisas geográficas
e as comunidades quilombolas, abordagem que também dialoga com o método etnográfico
ou qualitativo de pesquisa (TEIS & TEIS, 2006).
Além da participação direta nas atividades da Associação Comunitária, utilizamos
ferramentas como entrevistas semi-estruturadas, estruturadas e gravações em áudio e/ou
vídeo. As entrevistas, quando realizadas, não se limitam ao seu aspecto passivo da simples
escuta, pois durante a sua realização nos colocamos como parte da situação estudada, em
uma posição de não-neutralidade. Além dos roteiros semi-estruturados, foram gravadas,
com autorização dos entrevistados, várias conversas que começaram espontaneamente, nas
quais as falas dos interlocutores revelaram aspectos importantes das suas histórias de vida
e das relações destas com o lugar em que vivem.
1 Nesse aspecto, deve ser mencionada a atuação de um advogado do Instituto Luís Gama, no acompanhamento doprocesso de desapropriação das terras particulares, pelo INCRA, para fins de titulação em nome da AssociaçãoComunitária. Assim como a atuação do Deputado Estadual Simão Pedro (PT-SP) na obtenção de recursos para aimplantação de infra-estruturas produtivas.
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“A pesquisa etnográfica permite, assim, um plano de trabalho aberto e flexível,
em que os focos de investigação vão sendo constantemente revistos, as técnicas de coleta,
reavaliadas, os instrumentos reformulados e os fundamentos teóricos, repensados” (TEIS &
TEIS, 2006: 7). Por isso, reafirmamos o caráter interpretativo dos resultados da pesquisa de
campo, acreditando que, ao levar em conta a perspectiva e os interesses dos próprios
quilombolas, os resultados finais da pesquisa ficarão mais próximos da situação real da
comunidade e passíveis de serem apropriados por ela.
ESPAÇO, TERRITÓRIO E SOCIEDADE: CONCEITOS-CHAVE PARA A COMPREENSÃO DAS ORIGENS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL DO BRASIL.
Buscamos nossos fundamentos teórico-conceituais e metodológicos no âmbito
do movimento de renovação crítica do pensamento geográfico, ocorrido a partir dos anos
1960 e cujo aspecto central consistiu na incorporação dos conceitos e das perspectivas
ideológicas oriundas da teoria social marxista2. Antonio C. R. Moraes (2000) propõe a adoção
da perspectiva histórico-dialética no âmbito da investigação geográfica, entendendo a
Geografia enquanto “uma modalidade de abordagem histórica, dedicada à análise dos
processos sociais de formação dos territórios” (MORAES, 2000: 11). Na visão deste autor, o
espaço social é construído por meio do trabalho humano, entendido enquanto “ato
teleológico de incorporação e criação de valor” (MORAES, 2000); daí o emprego do conceito
de valorização do espaço em referência ao processo de construção do espaço social.
Por outro lado, Milton Santos (1986) define a produção do espaço enquanto
objeto teórico e empírico central da investigação geográfica, concebendo o espaço a partir
da acumulação de materialidades – rugosidades – produzidas nas especificidades dos
diferentes modos de produção ou de seus diferentes momentos (SANTOS, 1986), propondo
a não separação das categorias de tempo e espaço3.
Isso não significa que o estudo da organização do espaço social, ao pensar
espaço e tempo dentro da totalidade presente do modo de produção, deva tomar a história
como fator de explicação da geografia; pelo contrário, é necessário pensar a geografia
historicamente (SANTOS, 1986), o que equivale a conceituar o espaço enquanto
2 Na Geografia brasileira, podemos citar como alguns dos principais expoentes dessa corrente Milton Santos, AntonioCarlos Robert Moraes, Ruy Moreira, Armando Corrêa da Silva, dentre outros (REIS, 2009).
3 “(...) a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pesquisar como o tempo se torna espaço e como o tempo passadoe o tempo presente têm, cada qual, um papel específico no funcionamento do espaço atual” (SANTOS, 1986: 105).
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materialização do tempo histórico, através do trabalho humano, no contexto do modo de
produção e da divisão internacional do trabalho vigente (SANTOS, 1986; 2004)
Os espaços se diferenciam tanto do ponto de vista da valorização, da história, da
natureza e das relações estabelecidas com outros pontos do planeta (MORAES, 2000), o que
permite afirmar que “espacializar é de imediato particularizar, pois as determinações
oriundas das características do meio (natural e construído) acabam dando às relações
próprias de um modo de produção tonalidades locais específicas em cada lugar” (MORAES,
2000: 16-17). Desse modo, enquanto os lugares correspondem à mediação entre a
totalidade da formação econômico-social e as particularidades temporais e espaciais, a
espacialidade representa um elemento particularizador dos fenômenos históricos (MORAES,
2000).
Embora a reflexão geográfica se baseie em exemplos sociais e lugares concretos,
como é o caso do tema da pesquisa, ela pressupõe a contextualização no âmbito do espaço
total, compreendido por meio do pensamento teórico organizado, permitindo deduções,
generalizações e o entendimento do todo a partir das particularidades (SANTOS, 1986),
tendo em vista que, “do ponto de vista teórico e epistemológico, o conceito de espaço
precede o conceito de lugar. (...) O que se passa em um lugar depende da totalidade de
lugares que constroem o espaço” (SANTOS, 1986: 121-122).
O entendimento do espaço enquanto categoria teórica e realidade empírica,
“considerado como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que
se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do
presente” (SANTOS, 1986: 122), representa uma importante contribuição para a
compreensão geográfica dos quilombos contemporâneos. Tais formações territoriais
surgiram no contexto das estruturas econômicas, sociais e políticas do passado, como
formas de contestação e luta contra a opressão representada pela escravidão, ou mesmo
enquanto organizações sociais subordinadas à divisão do trabalho hegemônica (PRADO JR.,
1994). Sua permanência até os dias de hoje as torna, assim, representativas dos processos e
estruturas sócio-econômicas do passado e ao mesmo tempo partes significativas da
constituição do espaço e da sociedade no momento histórico atual.
Ao ser produzido pelo trabalho humano historicamente contextualizado, o
espaço constitui um fato social, o que implica “recusar sua interpretação fora das relações
sociais que o definem” (SANTOS, 1986: 130). Todas as relações sociais, econômicas e
políticas ocorrem no espaço e são influenciadas por sua organização, desde a escala local
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até a mundial; por outro lado, o espaço é produzido e modificado de acordo com a
organização social, econômica e política própria de cada momento histórico (SANTOS, 1986).
O espaço humano – “matéria trabalhada por excelência”, socialmente construído a partir da
sobreposição de materialidades oriundas de distintos períodos da história humana – exerce
significativa influencia sobre a sociedade, o que levou Milton Santos (1986) a atribuir-lhe o
caráter de instância social e incorporá-lo em sua compreensão teórica da sociedade, a qual
inclui ainda base econômico-produtiva, a organização político-jurídica e a superestrutura
ideológica.
O conceito de território, intrinsecamente relacionado ao de espaço, também tem
sido fundamental em nossas reflexões teóricas. Nesse aspecto, Raffestin (1993) conceitua o
território como uma fração do espaço definida a partir de relações de poder4, enquanto
para Moraes (2000) a formação do território é entendida a partir do resultado empírico do
processo abstrato de valorização do espaço. Para Haesbaert (2012) a freqüente associação
do conceito de território à geopolítica do Estado-Nação e à delimitação deste por meio das
fronteiras, tornou-o impregnado desse sentido.
O conceito de território tem sido ressemantizado a partir do movimento de
renovação crítica do pensamento geográfico, ocorrido desde a década de 1960, em ruptura
ao enfoque teorético-quantitativo e que incorporou o marxismo histórico-dialético no
âmbito dos seus fundamentos teórico-metodológicos (SANTOS, 1986). Ao se enfatizar os
aspectos políticos e econômicos da sociedade, o conceito de território – entendido enquanto
expressão das relações de poder que mediam as relações sociedade-espaço – tem
recuperado sua centralidade na análise geográfica, em um enfoque que o qualifica pelo seu
uso social, que pressupõe a apropriação e o domínio (MORAES, 2000).
Por outro lado, a partir de uma abordagem antropológica, podemos também
pensar o território como um espaço de referência cultural, qualificado de acordo com os
significados a ele atribuídos por um dado grupo social, onde “diversas territorialidades
exercitam-se, sobrepondo-se num mesmo espaço, rompendo com a idéia de ‘exclusividade’
presente nas visões anteriores” (MORAES, 2000: 21). Ao mesmo tempo em que os territórios
quilombolas constituem territorialidades particularizadas, delimitadas dentro do território
mais amplo do Estado-Nação, também denominadas “compartimentos quilombolas” (SILVA,
4 De acordo com o autor, “o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado deuma ação conduzida (...). Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente, o ator territorializa o espaço”(RAFFESTIN, 1993: 143).
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2010), sobre os quais “vigora um conjunto de leis próprias, que não servem a outros
compartimentos”5 (SILVA, 200: 18).
Desse modo, julgamos conveniente compreender o território em uma
perspectiva integradora (HAESBAERT, 2012), que o considere enquanto expressão das
relações de poder, base de recursos naturais, expressão material das relações econômicas e
construído a partir de referências simbólico-culturais. “Isto significa que o território
carregaria sempre, de forma indissociável, uma dimensão simbólica, ou cultural em sentido
estrito, e uma dimensão material, de natureza predominantemente econômico-política”
(HAESBAERT, 2012: 74).
Para dar conta das esferas políticas, econômicas e culturais que se manifestam
empiricamente no território quilombola é necessária uma perspectiva abrangente, que
incorpore a concepção de espaço como um híbrido, formado a partir da interação
sociedade-natureza e possuindo dimensões políticas, econômicas e culturais (HAESBAERT,
2012). “O território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de
poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico
das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2012: 79). Em uma
perspectiva dialética, é possível afirmar que, em todas as sociedades, os aspectos materiais
e simbólicos da cultura se influenciam mutuamente, constituindo um todo indissociável.
Sendo assim, a partir de uma abordagem integradora, a relação dos quilombolas com o
território e a garantia dos seus direitos territoriais, podem ser entendidas em termos
econômico-materiais, políticos e simbólico-culturais (HAESBAERT, 2012).
Os territórios das comunidades quilombolas, assim como o conjunto das
comunidades tradicionais no Brasil – nas quais além dos quilombos, incluem-se as terras
indígenas, comunidades extrativistas, ribeirinhas, fundos de pasto e faxinais – constituem
“unidades de mobilização” (ALMEIDA, 2004) que representam formas lugarizadas e
contemporâneas de organização política, baseadas em identidades fundadas na tradição, na
ancestralidade e nas profundas relações estabelecidas com os lugares habitados e com os
recursos dos ecossistemas locais. “Mesmo distantes da pretensão de serem movimentos
para a tomada do poder político, logram generalizar o localismo das reivindicações e
5 “Analiticamente o território político brasileiro é constituído por entes federativos, delimitados por fronteiras, ondevigoram leis próprias (União – Constituição Nacional; Estado – Constituição estadual; Município – Lei Orgânica),mantendo contigüidade entre cada território. Por sua vez, outros recortes territoriais aparecem compondo oterritório político, como os compartimentos indígenas e quilombolas. Apesar de estarem também circunscritos porfronteiras, não produzem as leis que os regulam, possuindo legislações específicas elaboradas de fora. Não sãoentes da federação e dependem das formalidades intrínsecas a eles” (SILVA, 2010: 18).
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mediante estas práticas de mobilização, aumentam seu poder de barganha com o governo e
o Estado” (ALMEIDA, 2004: 23).
A consideração dos critérios de tradicionalidade e ancestralidade, diretamente
relacionados à territorialidade – amparados pelos artigos 215 e 216 e pelo Artigo 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988, além
da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho6 – nos processos de
reivindicação territorial, representa ainda uma forma de ruptura com o “monopólio” das
categorias de “camponês”7, “trabalhador rural” e “agricultor familiar”8 na análise dos
processos de mobilização popular voltados para a garantia do acesso à terra. No caso das
comunidades negras rurais, não se trata somente da luta pela conquista de um pedaço de
terra ou da contradição capital/trabalho, mas da permanência em um território
ancestralmente ocupado e de uma luta contra a invisibilidade social e a discriminação racial
às quais esses grupos foram historicamente submetidos.
A COMUNIDADE QUILOMBOLA CAFUNDÓ: O LUGAR E A LUTA PELA GARANTIA DOS DIREITOS TERRITORIAIS
A origem do bairro Cafundó, no município de Salto de Pirapora (SP), constitui um
exemplo da formação de um bairro rural negro a partir da doação das terras em testamento
aos escravos alforriados, pelo antigo proprietário – Joaquim Manuel de Oliveira – que
faleceu se deixar herdeiros, por volta da segunda metade do século XIX (VOGT e FRY, 1996).
Todavia, ao longo dos anos, desde a herança das terras pela parentela de escravos, até os
6 “Em junho de 2002, evidenciando a ampliação do significado de ‘terras tradicionalmente ocupadas’ e reafirmando oque os movimentos sociais desde 1988 tem perpetrado, o Brasil ratificou, através do Decreto Legislativo n.143,assinado pelo presidente do Senado Federal, a Convenção 169 da OIT, de junho de 1989. Esta Convenção reconhececomo critério fundamental os elementos de auto-identificação, reforçando, em certa medida, a lógica dosmovimentos sociais” (ALMEIDA, 2004: 13).
7 “As palavras ‘camponês’ e ‘campesinato’ são das mais recentes no vocabulário brasileiro, aí chegadas pelo caminhoda importação política” (MARTINS, 1990: 21). Antes dessa importação, os camponeses tinham aqui suasdenominações próprias, específicas para cada região: caipira, caiçara, tabaréu ou caboclo. “Em várias regiões épalavra que designa o homem do campo, o trabalhador” (MARTINS, 1990: 22). Mas a partir do mesmo debate quepôs em uso o termo “camponês”, os grandes proprietários de terra passaram a ser designados como latifundiários.“Essas novas palavras – camponês e latifundiário – são palavras políticas, que procuram expressar a unidade dasrespectivas situações de classe e, sobretudo, que procuram dar unidade às lutas dos camponeses. (MARTINS, 1990:22-23).
8 Wanderley (2004) discute o conceito de agricultor familiar, apontando suas principais vertentes: aquela formuladapelo Estado brasileiro, que define a aptidão dos agricultores para a participação no PRONAF (Programa Nacional deFortalecimento da Agricultura Familiar, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário) e outra, de cunho maisteórico, que enfatiza a capacidade dos agricultores de “se adaptar às modernas exigências do mercado em oposiçãoaos demais ‘pequenos produtores’ incapazes de assimilar tais modificações. (...) A idéia central é a de que o agricultorfamiliar é um ator social da agricultura moderna e, de certa forma, ele resulta da própria atuação do Estado”(WANDERLEY, 2004: 43-44).
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dias atuais, a comunidade (atualmente composta por 24 famílias) foi pouco a pouco
perdendo as terras, em decorrência da invasão por fazendeiros vizinhos.
A ampliação das possibilidades de conquista de direitos étnicos e territoriais
pelas comunidades negras rurais, a nível nacional, após a promulgação da Constituição
Federal de 1988, possibilitou que a luta e a resistência dos moradores do Cafundó tivesse
como resultado o seu reconhecimento enquanto quilombolas em 1999 (SÃO PAULO, 1999) e
a demarcação das terras pelo INCRA em 2011, amparado pela Lei Federal 4.887/20039.
Contudo, a área atualmente demarcada, correspondente a 209,64 ha de terra (ANDRADE et.
al. 2000: 26), representa somente uma parte das terras originalmente doadas, pois as
sucessivas invasões, expropriações e valorizações do espaço (MORAES, 2000) ali ocorridas
resultaram na atual estrutura fundiária e de uso e ocupação do solo nas áreas vizinhas,
originalmente pertencentes às terras doadas. Tais áreas encontram-se atualmente
ocupadas, em sua maioria, por loteamentos e condomínios de chácaras de médio e alto
padrão, com uso predominantemente ocasional (veraneio), além de fazendas de eucalipto e
mineradoras de areia10.
O planejamento do uso do território, iniciado pela Associação Comunitária com
apoio do ITESP, ainda enfrenta dificuldades e complexidades decorrentes da demarcação do
quilombo sobre áreas particulares, cuja desapropriação envolve um demorado e complexo
processo judicial. Tal situação reflete a diversidade e complexidade das situações fundiárias
específicas a cada comunidade reconhecida como quilombola:
Os quilombos em São Paulo ocupam territórios com situações jurídicas
diferenciadas. O Governo Estadual pode agir diretamente e de forma mais ágil,
9 Segundo Almeida (2004), “oficialmente o Brasil tem mapeadas 743 comunidades remanescentes de quilombos. Essascomunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares [3% do território nacional], com uma população estimada em2 milhões de pessoas. Em 15 anos, apenas 71 áreas foram tituladas. (...) O reconhecimento público do númeroinexpressivo de titulações realizadas funcionou como justificativa para uma ação governamental específica, postoque nesta mesma data [20/11/2003] o presidente Lula assinou o Decreto n. 4.887, regulamentando o procedimentopara identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentesdas comunidades de quilombos. Este ato do Poder Executivo teria correspondido, portanto, à necessidade de umaintervenção governamental mais acelerada e ágil, condizente com a gravidade dos conflitos envolvendo ascomunidades remanescentes de quilombos” (ALMEIDA, 2004: 13). Por outro lado, a elaboração do decreto visandoregulamentar os procedimentos para titulação das terras de quilombo se insere nos embates com interessespolíticos conservadores, contrários à efetivação da reforma agrária e dos direitos territoriais das comunidadestradicionais. Nesse aspecto, cabe mencionar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) perpetrada pelo Partidoda Frente Liberal (PFL, atual DEM) na mesma data do decreto 4.887/03, visando impugnar a aplicação do Artigo 68 doADCT, assim como o “critério de identificação dos remanescentes de quilombo pela auto-definição” (ALMEIDA, 2004:20).
10 De acordo com o Zoneamento estabelecido pelo Plano Diretor do município de Salto de Pirapora (Lei Complementarnº 012 de 14 de dezembro de 2010), o Cafundó, os loteamentos vizinhos e as mineradoras estão inseridos na Zonade Recreação e Lazer, enquanto as fazendas de eucalipto fazem parte da Zona Rural.
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quando se tratam de terras já julgadas devolutas, pela emissão do título de
propriedade, nos moldes da Lei 9.757/97. Quando se tratam de terras
particulares ou ainda em fase de discriminatória judicial, é necessária a ação
conjunta com o Governo Federal” (ANDRADE et. al. 2000: 12).
Desse modo, os trâmites necessários à titulação integral e definitiva das terras
em nome da Associação Remanescente de Quilombo Kimbundu do Cafundó (fundada em
22/09/2002)11 ficaram a cargo do INCRA, que dividiu a área em quatro “glebas” (A, B, C, D), de
acordo com os limites das antigas propriedades que estão sendo desapropriadas. Esse
órgão estatal é também responsável pela mediação do conflito fundiário envolvendo a
demarcação das terras e o processo de desapropriação. A titulação integral e definitiva só
poderá ocorrer após a realização dos “procedimentos de desintrusão” (termo técnico
utilizado pelo INCRA), que consistem na retirada das famílias de posseiros que ainda
ocupam partes das glebas A, B e C. A retirada dessas famílias, o seu transporte e o dos seus
bens, assim como a demolição das casas, caso seja decidido pela Associação dos
quilombolas, também é judicialmente de competência exclusiva do INCRA. A tabela e o
mapa das páginas seguintes permitem a visualização da situação fundiária da comunidade.
11 “No que se refere ao título da terra, ele é concedido à Associação (não pertencendo, portando, a um membroespecífico do quilombo) e é inalienável. Quando existem posseiros, o Estado paga, baseado em laudos feito peloITESP, pelas benfeitorias, entendendo que o posseiro entrou de boa fé na área” (SILVA, 2010: 71).
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Figura 1. Divisão fundiária da comunidade de quilombo Cafundó e localização do município de Saltode Pirapora no estado de São Paulo.
Fonte: Google Maps Brasil (https://www.google.com.br/maps/@-22.5461407,-48.6355227,9z), adaptado por GOMES,André Luís. Acesso em 19/07/2014.
A emissão de posse nas glebas C e D e o Contrato de Concessão de Direito Real
de Uso Coletivo (CCDRU) da última, registrados em nome da Associação em 2012, tem
constituído conquistas significativas no que se refere à garantia da posse da terra para os
quilombolas. A gleba D, que possui a maior área (122,02 ha) e foi a primeira sobre a qual a
Associação recebeu a emissão de posse (fevereiro de 2012), encontra-se ocupada com
aproximadamente 60 ha de eucalipto, plantado pelo antigo proprietário. De acordo com o
INCRA, após o corte da madeira, previsto para o ano de 2017, a receita obtida deverá ser
repassada à Associação (após o abatimento dos gastos com a manutenção do eucalipto até
o ponto de corte e o corte da madeira), para ser investida em melhorias para a comunidade.
O órgão estabeleceu também que após o corte o eucalipto deverá ser retirado e a área
dividida em lotes para a prática da agricultura.
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Tabela 1. Situação fundiária da comunidade quilombola Cafundó – junho de 2014.
Gleba Data da ação doINCRA-SP
Área (ha)
Situação atualizada Detalhes
A 22/09/2011 17,65 Imóvel avaliado, ação ajuizada, aguardando imissão.
Área ocupada por nove famílias de posseiros que serão retirados e indenizados pelas benfeitorias. O INCRA aguarda os trâmites para liberação das indenizações e a definição do transporte e destino dos bens que serão retirados. A comunidade precisa decidir o que será feito das casas, se serão demolidas ou ocupadas por quilombolas. Somente após resolver essas questões o INCRA poderá conceder Imissão de Posse.
B 18/11/2011 46,16 Imóvel avaliado, ação ajuizada, aguardando imissão.
Área ocupada por três famílias de posseiros. O INCRA aguarda a retirada dos posseiros para Imissão de Posse.
C 19/07/2011 32,59 Emissão provisória de posse (dezembro/2012).
Emissão de Posse em dezembro de 2012. Havia um casal de posseiros (com 30 cabeças de gado), que foi assentado em Iperó pelo INCRA. Porém o antigo empregado deles ainda ocupa um terreno, apesar de não morar no local.
D 04/11/2011 122,02 Emissão provisória de posse (fevereiro/2012).
Emissão de Posse em 02/2012 e Contrato de Concessão de Direito Real de Uso Coletivo em 02/08/2012. Todavia, o antigo proprietário recorreu da sentença, o que tem configurado uma situação jurídica instável. A mineradora de areia, que ocupa parte da área, não pagou o período de fevereiro a agosto de 2012, nem para a Associação e nem para o antigo proprietário, pois aguarda a sentença judicial definitiva.
Fonte das informações: Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas/Superintendência Regional do INCRA-SP.Trabalho de campo realizado por GOMES, André Luís em 26/06/2014.
Na área da gleba D também se encontra uma mineradora de areia, que
arrendou parte da antiga propriedade e obteve licença ambiental para a exploração do
minério. De acordo com a licença, o limite da área a ser explorada é de 50 ha, durante no
máximo cinco anos após a assinatura do CCDRU pela Associação. As condicionantes da
licença ambiental prevêem ainda a recuperação da área, por meio da contenção da erosão
nos taludes com o plantio de árvores, além da recuperação de nascentes e cursos d’água. A
obtenção do CCDRU possibilitou também a regularização do repasse mensal, pela
mineradora, de uma espécie de arrendamento para a Associação. Desse modo, ainda que
com base no uso predatório da área, o que futuramente poderá representar prejuízos
irreparáveis, em curto prazo esse “arrendamento” possibilitou à comunidade ter orçamento
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próprio, que somado a outras fontes de recursos (que serão descritas a seguir), está sendo
investido na aquisição de maquinários (caminhonete, trator e microtrator, implementos,
roçadeiras, motobomba para irrigação) utilizados no trabalho agrícola.
Além dos problemas fundiários anteriormente mencionados, a Associação se
depara com dificuldades de organização, cujo principal aspecto tem sido a participação
numericamente pouco expressiva das famílias nas atividades coletivas, situação cuja causa,
apontada por algumas lideranças, é o fato de o Cafundó ter perdido as terras ao longo das
décadas, levando muitos moradores a procurar ocupações fora da comunidade. Soma-se a
isso o fato de a luta pela recuperação das terras ter sido encabeçada por lideranças – que no
passado possuíam fortes vínculos com as terras, enquanto camponeses – cuja maioria já
faleceu12. Buscando compreender a organização do espaço e o uso do território no contexto
local, temos acompanhado as atividades da Associação Comunitária, o trabalho dos
agricultores quilombolas, os principais eventos culturais da comunidade e o trabalho do
INCRA e do ITESP, responsáveis pelas ações de regularização fundiária e assessoria técnica
às comunidades quilombolas.
As atividades agropecuárias da comunidade atualmente são realizadas nas
glebas A (na qual se encontra o núcleo de casas e equipamentos comunitários) e C, e
destinadas tanto para o consumo próprio como para a comercialização dos excedentes. A
área destinada à agricultura na gleba A é composta por três estufas13 (nas quais trabalham
seis famílias de agricultores), hortas e pomares situados nos quintais de algumas
residências, sistemas agro-florestais em fase inicial de implantação14, compostos por mudas
de árvores nativas e frutíferas e espécies leguminosas utilizadas para a recuperação do solo
(adubação verde), além de áreas destinadas à criação de algumas cabeças de gado bovino e
12 “A aproximação de casos reais traz a percepção da complexidade de relações que envolvem as comunidades quedecidem se auto-identificar “remanescentes de quilombo” e adentram a luta jurídica pela posse da terra. Os casossão repletos de conflitos e de transformações na estrutura sócio-espacial dos grupos. Um caso emblemático atual éo da comunidade da Caçandoca, litoral norte de São Paulo. (...) As transformações das relações na comunidadeforam muitas. Atualmente não existe uma vida comunitária e as atividades ligadas ao uso dos recursos foramtolhidas graças às leis ambientais e também à racionalidade de que o ideal é o modelo urbano. Atualmentetrabalham como vendedores, empregadas domésticas nos centros urbanos ou nos condomínios próximos, algunspoucos plantam banana ou pescam, mas isto se configura como uma atividade do passado, com poucasperspectivas de sobrevivência” (SILVA & ISOLDI, 2008).
13 Duas instaladas em 2011 e uma em 2014, com verbas da ordem de R$ 30 mil, oriundas de emendas parlamentaresaprovadas pelo Deputado Estadual Simão Pedro (PT-SP).
14 Por meio de um projeto elaborado pela OSCIP Iniciativa Verde, sediada em São Paulo, com recursos de R$ 8 milcaptados através de um edital da empresa Petrobrás para projetos socioambientais. Esse recurso está sendoutilizado para a compra de mudas, insumos, combustível para trator e roçadeira e pagamento dos dias de trabalhodos moradores envolvidos.
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caprino. Na Gleba C, após a obtenção da emissão de posse, em dezembro de 2013, oito
famílias de agricultores plantaram milho, feijão, mandioca, batata-doce e abóbora, com
sementes e mudas fornecidas pelo ITESP, realizando o preparo da terra e algumas etapas da
colheita com as máquinas e implementos adquiridos. O feijão (colhido em junho de 2014) e
o milho (colhido em julho de 2014) foram divididos entre os agricultores que participaram
dos mutirões de plantio e colheita. Nessa gleba, a Associação também realiza a recuperação
da Área de Preservação Permanente (APP) situada no entorno das nascentes e cursos
d’água, no âmbito do projeto financiado pela Petrobrás.
A partir de 2010, através do Projeto “Valorização da Cultura Quilombola e
Geração de Renda Agrícola”, elaborado com o apoio da Fundação ITESP, doze produtores
obtiveram a Declaração de Aptidão da Agricultura Familiar (DAP) e conseguiram aprovar
junto à CONAB um Projeto de Doação Simultânea (PDS), no âmbito do Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA)15 no valor total de R$ 74.400,00 (divididos entre 12 famílias,
que receberão o valor anual de R$ 6.200 cada uma) para entregarem produtos orgânicos a
entidades dos municípios de Salto de Pirapora e Porto Feliz (SP). Esse projeto dispõe ainda
de recursos no valor de R$ 70.000, obtidos junto à Secretaria de Justiça e Defesa da
Cidadania (à qual é vinculada a Fundação ITESP), para a aquisição de uma estufa agrícola de
210 m2, implementos agrícolas, além de equipamentos de palco e som para a realização de
festas e eventos comunitários16.
A comunidade também é beneficiária de recursos oriundos do “Projeto de
Desenvolvimento Rural Sustentável - Microbacias II”, da Secretaria de Agricultura e
Abstecimento (SAA) do governo do Estado de São Paulo, cujo repasse previsto é de R$
30.928, destinados à compra de um microtrator, aquisição de equipamentos de irrigação e
ampliação em 1ha da área de cultivo de hortaliças para a comercialização através do PAA,
beneficiando 17 famílias de agricultores cadastrados.
15 Este Programa “promove o acesso a alimentos às populações em situação de insegurança alimentar e promove ainclusão social e econômica no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. O programa propicia aaquisição de alimentos de agricultores familiares, com isenção de licitação, a preços compatíveis aos praticados nosmercados regionais. Os produtos são destinados a ações de alimentação empreendidas por entidades da redesocioassistencial; equipamentos públicos de alimentação e nutrição como restaurantes populares, cozinhascomunitárias e bancos de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade social. Instituído pelo artigo 19 daLei 10.696/2003, o PAA é desenvolvido com recursos dos Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome(MDS) e do Desenvolvimento Agrário (MDA)” (Disponível em http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/decom/paa/programa-de-aquisicao-de-alimentos-paa acesso em 23/07/14).
16 Informações obtidas em trabalho de campo realizado no Escritório Regional do ITESP em Sorocaba, em 05 de julhode 2014.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos considerar o reconhecimento do território quilombola enquanto uma
conquista subordinada às ações afirmativas e às políticas de ordenamento territorial,
promovidas pelo Estado, com base nos dispositivos constitucionais e na legislação
subseqüente, regulamentando o reconhecimento, a demarcação e a titulação das áreas
ocupadas pelas comunidades. No processo de desapropriação de áreas particulares, o
controle da terra passa primeiro para o INCRA, antes de ser entregue à comunidade, que
deve ser representada coletivamente por uma associação, o que revela que tais grupos
dependem da articulação de poderes e decisões que ultrapassam a esfera local, para verem
garantidos seus direitos à permanência e trabalho autônomo nas terras de ocupação
comprovadamente ancestral.
Sendo assim, podemos afirmar que a garantia dos direitos territoriais das
comunidades negras identificadas como “remanescentes de quilombos” depende ao mesmo
tempo de estratégias territoriais de resistência social, realizada por grupos historicamente
subalternizados e que hoje reivindicam seus direitos de participação política a partir dos
lugares, com base no território usado (SILVA, 2010); da complexidade dos interesses e
poderes econômicos e políticos envolvidos nas questões agrárias, presentes no país desde
os primórdios da sua formação territorial; e do poder de decisão do Estado, enquanto uma
das instâncias hegemônicas no ordenamento do território nacional.
A partir do entendimento dos territórios quilombolas enquanto compartimentos
de legislação especial, no contexto da divisão do território nacional em entes federativos
(União, Estados e Municípios), devem ser identificados “os limites e possibilidades do poder
político assentado numa forma de organização na qual seja dada efetiva possibilidade de
voz na forma de autonomias relativas, a todos aqueles que historicamente foram
subalternizados” (SILVA, 2010: 4). Do mesmo modo, o caso estudado fornece referências
empíricas para refletirmos a respeito do uso do território por outros protagonistas, que
emergem como interlocutores políticos entre os lugares e as instâncias de poder federativas
(SILVA, 2010).
A partir da constatação da realidade da ocupação territorial do bairro rural negro
Cafundó, podemos afirmar que a demarcação das terras e a obtenção da concessão de uso
sobre a maior parte da área demarcada representa um grande avanço no processo de
conquista e usufruto dos direitos territoriais, pois representa a conquista formal de uma
fração do território, por um grupo historicamente subalternizado e que agora se torna
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detentor de direitos especiais, a partir do reconhecimento da ancestralidade das relações
com o lugar e do uso do território. Essa conquista representa no presente a possibilidade de
planejar coletivamente o futuro de forma autônoma a partir do lugar, o que pode ser
entendido enquanto garantia de direitos previstos constitucionalmente e uma estratégia de
desenvolvimento rural sustentável. Para isso, é necessário agora que a associação
comunitária amadureça sua capacidade de organização coletiva e de gestão do uso e
apropriação do patrimônio representado pelo território ocupado, para que possa fazer dele
uma verdadeira fonte de recursos, local de moradia e condição para a busca da melhoria
das condições de vida das famílias que o habitam, ou seja, da plena cidadania.
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QUILOMBO CAFUNDÓ (SALTO DE PIRAPORA-SP): AS DINÂMICAS DO LUGAR E A AÇÃO DO ESTADO NO PLANEJAMENTO DO TERRITÓRIO QUILOMBOLA
EIXO 2 – Dinâmicas e conflitos territoriais no campo e desenvolvimento rural
RESUMO
O trabalho apresentado trata dos dilemas vinculados à garantia dos direitos territoriais e ao
planejamento do território na comunidade quilombola Cafundó, situada em Salto de Pirapora-SP, a
partir da compreensão da luta pela permanência nas terras ancestralmente ocupadas, frente ao
processo de expropriação fundiária. Ao longo dos anos – desde a herança das terras pela
parentela de escravos, junto com a alforria, em meados do século XIX, até os dias atuais – as
terras da comunidade foram pouco a pouco sendo invadidas por fazendeiros vizinhos. Com a
ampliação das possibilidades de conquista de direitos étnicos e territoriais, a nível nacional, pelas
comunidades negras rurais após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a luta e a
resistência dos moradores do Cafundó resultaram no seu reconhecimento enquanto quilombolas
e na demarcação das terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
amparado pela Lei Federal 4.887/2003. Todavia, o planejamento do uso do território, realizado
pela Associação Comunitária com apoio do ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo),
depara-se com dificuldades e complexidades decorrentes da demarcação do quilombo sobre
áreas particulares (resultado da expropriação fundiária sofrida pelos quilombolas), cuja
desapropriação envolve um demorado e complexo processo judicial. Além da persistência dos
problemas fundiários, a Associação encontra dificuldades de organização, cujo principal sintoma
têm sido a participação numericamente pouco expressiva das famílias nas atividades coletivas,
situação que tem como causa principal o fato de a comunidade ter perdido as terras ao longo das
décadas, levando muitos moradores a procurar ocupações fora da comunidade. Soma-se a isso o
fato de que a luta pela recuperação das terras foi encabeçada por lideranças – que no passado
possuíam fortes vínculos com as terras, enquanto camponeses – cuja maioria já faleceu. Buscando
compreender a organização do espaço e o uso do território, exercidos no contexto local, temos
acompanhado as atividades da Associação Comunitária, o trabalho dos agricultores quilombolas,
os principais eventos culturais da comunidade e o trabalho do INCRA e do ITESP, responsáveis
pelas ações regularização fundiária e assessoria técnica às comunidades quilombolas. Desse
modo, a pesquisa apresentada abrange o planejamento, uso e apropriação do território no
contexto local, através das atividades produtivas, do trabalho dos órgãos estatais que atuam nos
quilombos e de formas simbólicas e identitárias. Nesse sentido, espaço e território têm sido
conceitos fundamentais para a compreensão da realidade, ao entendermos o espaço enquanto
acúmulo de materialidades de modos de produção pretéritos ou de distintas fases de um mesmo
modo de produção, que ao se territorializarem nos lugares, adquirem especificidades que os
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valorizam diferentemente. O território é concebido em uma perspectiva integradora, enquanto
manifestação das relações de poder, base de recursos naturais, expressão material das relações
econômicas e construído a partir de referências simbólico-culturais. Sendo assim, temos
constatado que a garantia dos direitos territoriais depende de um conjunto de relações,
representado pela luta e resistência da comunidade, pelos interesses político-econômicos e pela
atuação do Estado com base em um sistema normativo voltado para o ordenamento do território.
Palavras-chave: comunidades quilombolas; espaço; planejamento do território.
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