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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDESINSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO - IUPERJPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA
Seleção para o doutorado – Turma de 2009
“Mercadores da Proteção. As milícias do Rio de Janeiro”
Isabel Mansur Figueiredo
Projeto de pesquisa
Outubro de 2008
1
1. RESUMO
Ao discutir os “grupos criminosos armados com domínio de território”
recentemente nomeados como “milícias”, o presente projeto de trabalho propõe-se a
investigar a lógica sobre a qual está engendrada sua formação e expansão, bem como a
produção prática da legitimidade desses agrupamentos. Indaga-se sobre a medida em que a
ordem pública deixa de ser entendida como função do Estado democrático e se converte em
uma mercadoria comercializada de forma irregular e ilegal e procura extrair algumas
implicações prático-discursivas para a sociabilidade no Rio.
2. JUSTIFICATIVA
O tema sobre o qual versa a proposta de pesquisa diz respeito à expansão de grupos
criminosos armados com domínio de território1 identificados como “milícias”2, atuantes na
cidade do Rio de Janeiro. Tais grupos proliferaram rapidamente na última década e têm
constituído um fenômeno novo que merece atenção da sociologia.
Um amplo conjunto de intelectuais e pensadores têm se dedicado a refletir sobre a
relação entre as diferentes formas de violência, o controle dos mercados informais, ilícitos e
criminais e a questão da segurança pública. No coração deste debate parece estar dois
tópicos que envolvem as atividades das milícias, a respeito das quais há pouca informação
empírica, uma vez que, além de recentes, estudá-las é sem dúvida difícil e perigoso. Tais
tópicos são: a) processos de exclusão/segregação sócio-territorial; b) as políticas de
segurança pública e a atuação prática das polícias.
O estudo específico das atividades das milícias é, portanto, relevante como
contribuição ao debate constitutivo do campo temático acima esboçado.
1 “Grupos criminosos armados com domínio de território são redes criminosas territorializadas que atuam em diversas atividades econômicas ilícitas e irregulares, como o tráfico de drogas, serviços de segurança e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir de uma base territorial especifica, fazendo uso da força física e da coação – especialmente pelo uso de armas de fogo – como principais meios de manutenção e reprodução de suas práticas.” (SOUZA e SILVA, 2008).2 O termo “milícias” – como é compreendido hoje – vem sendo utilizado desde março de 2005 (SANTOS, 2007, p.02).
2
3. APRESENTAÇÃO
3.1. “Milícias”: um panorama preliminar
É sabido que as “milícias” controlam, através da coação armada sobre os moradores,
diversas localidades que compõem o que pode ser denominado de “territórios da pobreza”
do Rio de Janeiro, principalmente as localizadas nas Zonas Oeste e Norte. Diz-se que esses
grupos são formados, em grande parte, por policiais militares e civis ou ex-policiais,
bombeiros, agentes de segurança privada e agentes penitenciários. A relação entre as
“milícias” e o aparato público tornar-se-ia evidente, à medida que há fortes indícios de que
seus membros utilizam o equipamento de segurança do Estado – como viaturas,
armamento, entre outros – e contam com a colaboração das forças policiais regulares para o
exercício de suas atividades.
O termo “milícias” começou a ser empregado rotineiramente por órgãos de
imprensa quando as mesmas observaram um vertiginoso aumento, embora já existissem,
em menor proporção e com menos visibilidade pública, localizadas na Zona Oeste3 pelo
menos desde a década de 1980 na cidade do Rio de Janeiro. O termo consolidou-se após os
atentados de dezembro de 2006, que foram atribuídos a uma represália de determinadas
facções de traficantes à propagação das “milícias”, um caso de disputa pelo controle
territorial voltado para atividades econômicas ilícitas. Um relatório da Subsecretaria de
Inteligência da prefeitura do Rio de Janeiro identificou, 92 comunidades dominadas
naquele momento pelos citados grupos4. O termo se tornou bastante popular muito embora
ainda não possua um significante preciso5. Portanto, trata-se de uma categoria ainda em
processo de construção, cuja reconstrução e acompanhamento é um dos objetivos deste
projeto.
Ao que tudo indica, uma das atividades centrais das “milícias” é a cobrança de
proteção, não apenas às empresas locais mas também aos moradores em geral. É claro que
isto as aproxima das máfias, sobre as quais existe ampla bibliografia que a proponente
necessita conhecer melhor. Mas o leque de formas de acumulação econômica é muito mais
3 BURGOS, Marcelo (Org.) A utopia da Comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. Rio de Janeiro: PUC - Rio: Loyola, 2002. 4 O Globo on line 10/12/2006. Milícias expulsam os traficantes de drogas e já controlam 92 favelas da cidade. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2006/12/09/286975035.asp 5 Relatório da Sociedade Civil para o Relator especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.
3
amplo, envolvendo pelo menos (a pesquisa deverá detalhar este ponto) a venda de serviços
ilícitos, como a captação e distribuição do sinal da TV a cabo, o transporte irregular
(empresas, muitas delas semi-clandestinas, que operam o sistema de vans), a distribuição
local do gás de cozinha e os jogos eletrônicos (caça níqueis). Lideranças locais e moradores
que se opõem à dominação das “milícias” são torturadas, expulsas de suas localidades ou
mortas, segundo denúncias amplamente divulgadas pela imprensa6.
A interpenetração entre a atividade das milícias e a atividade político-institucional7
tem levantado fortes suspeitas sobre a formação de “currais eleitorais” constituídos pela
força das armas. Uma observação a partir de dados sobre a territorialização dos votos no
Rio de Janeiro8 – mapas eleitorais das eleições para deputado estadual em 2006 e para
vereador em 2004 – aponta que regiões dominadas por milicianos têm correlação direta
com a eleição de candidatos com parte muito significativa de votos em territórios
determinados. Nesse aspecto, as milícias podem significar um novo desenho para a
representação política dos territórios populares, e caberá a esse trabalho, pesquisar qual o
novo desenho que vem se configurando. Parece provável que essa questão esteja
relacionada ao clientelismo, e, possivelmente, à coação armada9.
Apesar desses apontamentos preliminares, relevante desconhecimento ainda paira
sobre a atuação dos grupos. Sua pesada dominação e sua ação ostensiva e violenta foram,
até o momento, obstáculos significativos para que os estudos sobre as mesmas avançassem
na direção de uma compreensão mais clara de suas atividades. Nos últimos dois anos, no
entanto, pesquisas acadêmicas, da imprensa e de órgãos públicos tornaram-se mais
freqüentes e vêm contribuindo para um melhor entendimento sobre o referido caso10.
O episódio a que se pode atribuir clara contribuição para uma reversão da tendência
de desconhecimento e de legitimação ao tratar-se de “milícias”, refere-se ao acontecimento 6 O Dia 23/08/2008. “Morte após acusar grupo paramilitar”, disponível em: http://odia.terra.com.br/rio/htm/morte_apos_acusar_grupo_paramilitar_194788.asp7 Ao menos um deputado estadual, Natalino José Guimarães e o seu irmão, o vereador Jerônimo Guimarães Filho já foram indiciados e presos por participação e favorecimento às milícias.8 O globo, 11 de Fevereiro de 2007 “A força eleitoral das milícias”. 9 Há de se considerar, no entanto, que para uma população com poucos recursos, dispor de certos serviços (TV a cabo, por exemplo), da “ausência” do tráfico e da ausência da “barbárie policial”, entre outros, pode ser motivo para que se configure uma “semi-legitimidade” interna às milícias. Esses motivos, além da possibilidade de coação armada e da tão conhecida relação entre clientelismo e política junto às classes populares, podem ser o elemento principal da interpenetração das “milícias” com a política institucional. A relação entre política e tráfico de drogas, por exemplo, precisa ser sistematicamente escondida, de modo que a política não protege nem pode se transformar em recurso econômico. O contrário tem parecido se desenvolver com a relação entre milícias e poder político, uma vez que a exposição e visibilidade dessa relação significa mais uma fonte de sua legitimidade e proteção. 10 A maior parte desses documentos está mapeada no item 3.3 do presente projeto.
4
do dia 14 de junho de 2008, quando jornalistas do jornal “O Dia”, que circula no estado Rio
de Janeiro, foram torturados por integrantes de uma “milícia” da favela do Batan,
localizada na zona oeste da cidade, enquanto realizavam uma reportagem investigativa
sobre o modo de atuação da “milícia”11.
Esse episódio teve grande repercussão nacional e internacional, evidenciando o
controle de grupos de milicianos de favelas e as práticas sistemáticas de violação de direitos
humanos a que pode estar submetida a população que vive diariamente sob seu domínio. A
lógica da “cidadania de geometria variável” 12 permite entender porque esse episódio atraiu
grande interesse da sociedade em geral e foi considerado um golpe no Estado de Direito,
enquanto moradores dessas comunidades convivem, cotidianamente, com a mesma
presença coercitiva dos grupos, até então considerados pela opinião pública como um “mal
menor”. Diante do fato, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou uma
Comissão Parlamentar de Inquérito13 para investigar o assunto.
3.2. Hipóteses de trabalho
As principais questões sobre as quais focarei o trabalho convergem para
compreender como as “milícias” se tornaram um grupo de controle de comércio e serviços
a partir do domínio de território. Inseridos em uma base territorial, esses grupos se
favoreceriam de condições específicas, sendo a principal delas a “participação diferenciada
do Estado”14 na regulação e garantia de direitos. As modalidades específicas de atuação das
instituições estatais nos “territórios da pobreza” favorece a desconcentração da violência
física, altera a organização da sociabilidade local e abre a possibilidade de novas formas de
clientelismo que incluem direta ou indiretamente o uso da força. Reconstruir a história
11 Durante a sessão de tortura as vítimas confirmaram ter presenciado a participação de milicianos com fardas da polícia militar. 12 Ao analisar diferentes questões relacionadas à violência urbana, Machado da Silva (2008) recorre à noção de "cidadania de geometria variável" (LAUTIER, 1997), pautada pela incapacidade do Estado de "definir estatutos sociais, ajustá-los e unificá-los em um sistema único de direitos-deveres" (LAUTIER, 1997: 89).13 A “Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar a Ação de Milícias no Estado do Rio de Janeiro”, foi aprovada dia 10 de junho de 2008 por unanimidade na ALERJ, após o episódio de tortura de jornalistas do O Dia na favela Batan. Ela é presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo – autor de seu requerimento, protocolado em março de 2007 – e seus trabalhos se encerrarão em 15 de novembro de 2008.14 No intuito de compreender formas diferenciadas da presença do Estado em territórios tidos como marginais, Das e Poole (2004) lêem as margens como: 1) periferias habitadas por pessoas tidas como insuficientemente socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos, leis e disciplina.
5
recente desses processos e compreender as formas específicas de seu impacto é um dos
objetivos principais da presente proposta.
O núcleo temático em torno do qual se organizará a análise é a relação entre
privatização da segurança, militarização da política de segurança pública e criminalização
da pobreza. A hipótese aqui aventada diz respeito a como esses grupos se favoreceriam e se
impulsionariam a partir de uma lógica privatista15 que, calcada no “isolamento social dos
pobres” e na política de segurança executada (com ligeiras oscilações) no Estado do Rio de
Janeiro nos últimos 30 anos – cujo cerne é o confronto e a militarização –, legitimariam a
lógica de “mercadores da proteção” que ganham cheque em branco para atuar em
determinados territórios. A validade de tais grupos também residiria no binômio “omissão
do Estado e criminalização conjuntural”, uma vez que diante da possibilidade de guerra, a
população preferiria “comprar a paz”, mesmo que a “paz armada” 16.
Portanto, buscar-se-á compreender as milícias não de forma isolada, mas como parte
de um sistema que, preocupado em gerar maiores lucros, lança mão de métodos menos
convencionais de exploração. Da mesma forma, tentar-se-á especificar quais as
modalidades específicas da atuação dos aparatos institucionais nas periferias podem
constituir-se em condições de possibilidade do surgimento das milícias, procurando
relacionar o aumento de suas fronteiras à política de segurança pública levada a cabo pelos
governos estaduais dos últimos anos.
Neste quadro, há perguntas específicas que precisam ser respondidas:
a) Quais foram as condições sociais, políticas e econômicas, que sustentaram a
formação desses grupos em certos territórios da cidade? Isso implica, é claro,
uma reconstrução histórica com foco no tema aqui tratado.
b) O que são as “milícias”? Esta categoria do senso comum permite compreendê-
las?
15 Essa demanda é diferenciada, no entanto, na medida em que “no caso dos grupos parapoliciais das favelas do Rio de Janeiro, o objeto de sua ação é declarado — pelas lideranças da Associação e pelos informantes — como sendo prioritariamente a segurança da comunidade. Diferentemente das empresas de segurança privada, não se estabelece uma relação a princípio igualitária de comércio. Um grupo armado se impõe à comunidade, e a obriga a reconhecer a sua existência, financiar o seu custo, pagar pelos serviços que furta do Estado ou de empresas privadas (como é o caso dos serviços de TV a cabo), e a obedecer as suas regras de sociabilidade. Não existe nem a autonomia da população para se negar aos “serviços” impostos ou aos “termos” do “contrato”, nem é reconhecida a autoridade do Estado, que considera ilegal a existência desses grupos, mas que, na comunidade, pode estar representado por agentes dispostos à prevaricação e a negociatas.” (SANTOS, 2007)16 (...) “paz armada”: todos obedecem porque (e enquanto) sabem ser mais fracos, a desobediência implicando necessariamente retaliação física (MACHADO DA SILVA, 1995).
6
c) Existe um “comando único” das milícias, ou elas são grupos heterogêneos que
estão sendo considerados de uma única forma?
d) Qual relação entre o surgimento e expansão das “milícias” e a política de
segurança pública implementada?
e) Como as milícias interferem na vida dos moradores dos territórios por elas
dominados? Como estes avaliam a presença das milícias?
f) Que novo desenho para a representação política dos territórios populares vem se
configurando a partir desse fenômeno? De que maneira ele está relacionado com
o tradicional clientelismo que marca a relação entre o mundo popular e a
representação política?
g) Como as milícias legitimam-se enquanto agentes da ordem, interna e
externamente às localidades em que atuam? O principal fator de sua
legitimidade reside, de fato, na coação pelo uso da força?
h) De que maneira ocorre à ocupação e dominação dos territórios pelas milícias?
3.3. Discussões pertinentes ao projeto
Conforme aventado nas “hipóteses de investigação”, a relação entre Estado, política
e polícia é um dos cernes do contexto no qual as “milícias” se constituem. Aqui, a hipótese
inicial é que as milícias se desenvolveriam em circunstâncias de marcada criminalização da
pobreza combinada à presença diferenciada do Estado e ampliação da política de segurança
pautada no confronto, que, somados, desempenhariam o pano de fundo para uma demanda
por expansão de serviços e negócios de segurança informais, ilegais e ilícitos – neste caso
específico, notadamente provido por agentes de segurança pública.
A respeito das relações entre o Estado e a economia informal, Lautier (1997)17
sistematiza três respostas comumente atribuídas às razões pela ausência de controle estatal
sobre esse setor: a primeira diz respeito à fraca capacidade de controle do Estado; a
segunda – oposta à primeira – crê que o excesso de intervenção estatal faz com que certos
atores se refugiem na informalidade; e a terceira recusa a postura apriorística segundo a
17 Lautier (1997) tece, neste mesmo texto, uma contundente crítica a respeito da exclusão das atividades criminais do campo da economia informal.
7
qual o Estado procura generalizar seu controle, firmando a idéia de tolerância estatal à
ilegalidade.
Segundo o ponto de vista de tolerância do Estado à informalidade,18 o não
cumprimento das obrigações legais e fiscais não pode ser interpretado como simples sinal
de fraqueza do Estado:
(...) Quer ele não queira ou não possa impor seu controle sobre a atividade econômica, a relação com a informalidade tornou-se um modo de governo. O Estado tolera a informalidade por múltiplas razões, mas elas se relacionam antes à necessidade política do que à funcionalidade econômica.
(...) A questão da tolerância estatal ao desrespeito à lei tem, portanto, aspectos extremamente diferentes: controle direto, concessão ao pequeno patronato, modo de perenização de dependências pessoais. No entanto, emerge uma característica geral: a economia informal não está “fora” da regulação estatal; negocia-se tanto a não observância do direito, quanto o seu respeito. (LAUTIER,1997, pg 78)
Essa relação de tolerância e permissividade que permeia o campo da informalidade
– e, em nosso caso, acrescentar-se-á da “ilicitude criminal” – também se encontra em
Lautier (1997) ao discutir a corrupção resultante dessas mesmas circunstâncias:
Mais do que empreender uma análise microeconômica da corrupção, é interessante mostrar que se trata de um elemento da reprodução de um sistema global, aparecendo, então, estreitamente ligada ao clientelismo (Morice, 1991). O dinheiro da corrupção é em grande parte redistribuído através das redes de clientela, de modo a permitir a formação de “reservas” eleitorais e reeleição do político corrupto ou seus aliados. Essa redistribuição não se reveste apenas de forma de renda monetária, mas também de bens e equipamentos sociais (escolas, remédios, etc.) e, sobretudo de empregos, como inúmeros estudos brasileiros sobre o empreguismo mostram (LAUTIER, 1997, pg 85).
No caso carioca, o reduzido interesse na garantia de uma ordem social homogênea
abrangendo todo o tecido urbano, combinada ao incremento da sua presença através de um
viés estritamente repressivo e distante, se encontra casada à prática de Estado e de
mandatos policiais leiloados (MUNIZ, 2008)19. Nesse quadro, se criariam complexas redes
sociais (MISSE,1997) de “arranjos de proteção” (MUNIZ, 2008).
Múltiplas e complexas redes sociais se desenvolvem a partir dessas diferentes estratégias aquisitivas, legais e ilegais, relacionando “mundos” que o imaginário
18 Cuja semelhança com o quadro vivenciado na cidade do Rio de Janeiro e com a hipótese ora sob investigação parece mais apropriada para a interpretação proposta. 19 “Estado leiloado” é uma expressão utilizada por Muniz (2008) para caracterizar o processo de mercantilização do mandato público a partir de apropriações privatistas de mandatos policiais: “Estado leiloado é o Estado terceirizando, fazendo franchising daquele poder para a constituição de governos paralelos que tem uma finalidade lucrativa e exploratória” (MUNIZ, 2008).
8
moral prefere considerar como inteiramente separados entre si. (MISSE, 1997, pg. 95).
Misse (1997), em estudo sobre as “ligações perigosas” entre as relações do Estado
com o mercado informal ilegal20 aponta para a intrínseca relação – de sobreposição – entre
diferentes tipos de mercadorias ilegais com mercadorias políticas21. Tais ligações perigosas
dizem respeito às práticas ilícitas da polícia do Rio de Janeiro e aos vários mercados ilegais,
informais e criminosos, que, banalizadas pelo apelo da criminalização conjuntural,
acabaram por produzir uma recepção moral ambivalente.
Não há como dissociar, funcionalmente, a expansão regular do comércio de mercadorias ilegais, o emprego da violência na base das relações de poder e a expansão do mercado potencial de mercadorias políticas. Diferentes redes sociais de violência e transação atravessam seja o território, seus agentes criminais e sua população seja os agentes encarregados pelo Estado de prover a ordem pública e a preservação efetiva do monopólio de emprego legítimo da violência. Enquanto “agência informal” o Estado não foge, entretanto, às mesmas condições econômicas que podem impor aos seus agentes o estabelecimento de um mercado informal de serviços e mercadorias, cujo fundamento seja exatamente o controle, individualizado e ilegal, dos meios de administração da violência que a posição de agente do Estado dá acesso. (MISSE, 1997, pg 108)
Todas essas redes que interligam mercadorias ilegais, mercadorias políticas, Estado
e atividades ilícitas, percorrem de maneira complexa o conjunto do tecido social, político e
econômico. Apesar disso, a cultura do medo e da criminalização produz um contorno
espacial definido às mesmas, que, no caso carioca, restringe-se às comunidades e zonas
periféricas.
Por um lado, essa territorialização reforça estereótipos e estigmatiza importantes segmentos sociais do espaço urbano, por outro passa a construir efetivamente novas redes de sociabilidade, as quais emergem das relações de poder que demarcam esse território22. (MISSE, 1997)
20 Nesse estudo, Misse refere-se às ligações entre mercado informal ilegal, narcotráfico e violência. Os conceitos e diagnósticos aqui firmados, tem, no entanto, utilidade extensiva ao caso que nos propomos a investigar. 21 Sobre as mercadorias políticas, refere-se, em nota: “Chamo de “mercadorias políticas” o conjunto de diferentes bens ou serviços compostos por recursos “políticos” (não necessariamente bens ou serviços políticos públicos ou de base estatal) que podem ser constituídos como objeto privado de apropriação para troca (livre ou compulsória, legal ou ilegal, criminal ou não) por outras mercadorias, utilidades ou dinheiro. O que tradicionalmente se chama de “corrupção” é um dos tipos principais de “mercadoria política” ilícita ou criminal. O “clientelismo” é, por sua vez, uma forma de poder baseada na troca de diferentes mercadorias (políticas e econômicas), geralmente legal ou tolerada, mas moralmente condenada por seu caráter hierárquico e sua estrutura assimétrica.” (MISSE, 1997, pg 94)22 Nota Original: “Sobre a emergência de uma nova forma de sociabilidade, marcadamente violenta, nas áreas de pobreza no Rio, ver Machado da Silva, 1995”. Em Machado da Silva, o conceito de “sociabilidade violenta” é um paradigma para a reflexão sociológica sobre como a força, de meio de obtenção de interesses, transforma-se no próprio princípio de regulação das relações sociais estabelecidas.
9
Problematizando a correlação entre “máfias” italianas23 e o contexto do Rio de
Janeiro, Misse atribui à diferença entre tais contextos o fato de que, neste último, a partir do
sentimento de insegurança e medo crescente na cidade desde os anos 70, inúmeras
empresas privadas legais de proteção e segurança e muitos agentes do Estado encarregados
do uso legítimo da violência “privatizaram” esse serviço transformando-o em “mercadoria
política”. Onde essa proteção encontrava-se problemática, pequenos empresários e
comerciantes apelaram à formação de grupos de extermínio que nunca chegaram a se
expandir – como no caso das máfias – e constituir redes abrangentes.
O quadro apontado por Misse – há uma década – detectava a rede de “ligações
perigosas” entre mercados informais de bens econômicos ilegais ou criminalizados e
mercadorias políticas – alimentados das próprias políticas de criminalização que os
demarcavam – que perpetuavam políticas cuja lógica reside no “excesso de poder” e não a
da violência legítima e legal (MISSE, 1997, pg 112). Esse quadro, ao que tudo indica,
adequa-se com pertinência ímpar ao momento atual cujo debate sobre emergência e
expansão de “milícias” remonta a controvérsia sobre constituição de redes abrangentes de
mercado ilegal e ilícito, especialmente de segurança. Essa possibilidade já se encontrava
apontada por Misse no mesmo estudo, cujo caráter pioneiro não pode deixar de ser
mencionado:
(...) As ligações perigosas entre os mercados informais ilegais podem desenvolver, em tal contexto, uma radicalização especificamente perversa dos custos de “proteção” dos agentes envolvidos em todos esses mercados e redes, com uma conseqüente generalização da violência. De tanto falar em “máfia”, ela pode estar por vir. (MISSE, 1997, pg. 113)
Para Muniz e Proença (2008) “a milícia é a expressão da emancipação lucrativa do
mandato de polícia”, e, em Soares (2008) “a milícia é uma espécie de degradação
metastática do processo de segurança privada informal e ilegal”.
(...) A milícia é uma expressão da emancipação lucrativa do mandato de polícia. São grupos armados – não são paramilitares – de integrantes de meios de força que exploram negócios de proteção autonomizados. Expressão mais sensível de governos paralelos, de mercadização desse poder, de aluguel e terceirização de um mandato que é público. O seu surgimento e a sua manutenção requerem tanto o respaldo político ou tolerância governamental, como apoio de segmentos de agentes policiais. (MUNIZ, 2008)
23 Fenômeno que comporta uma grande organização privada criminal e oferta de “proteção” (MISSE, 1997, pg. 110).
10
O circuito privado e ilegal praticado por policiais do Rio de Janeiro, origina-se tanto
na busca pela complementação salarial – perpetuando os “bicos” de policiais na segurança
informal e ilegal –, assim como pode se dar a partir do extremo grau de emancipação
lucrativa dos mandatos, caso do qual as “milícias” são um bom exemplo (Muniz, 2008).
Essa emancipação parece, para Soares (2008), uma espécie de “conseqüência lógica” da
ilegalidade por parte do Estado e, para Muniz (2008) “essa cultura de ilegalidade
aprofunda e permite um “cheque em branco” tanto para o controle dos agentes do próprio
Estado, como para qualquer um grupo de controle que tenha a força como seu método de
imposição”.
Esse quadro de referência se agrava diante do “medo”, que é, para a autora, a
origem mais clara da legimitidade “informal” dos grupos de controle. Ele instrumentalizaria
de tal forma a insegurança que tornaria viável a crença e aceitação de “justiceiros”,
“salvadores” ou qualquer sorte de “libertador” que ofereça serviços de segurança. A
abstenção no oferecimento de uma alternativa de segurança pública para a população
somada ao medo criaria uma incontestável demanda para a segurança privada, seja ela a
partir da “economia da corrupção”, seja a segurança formal e legal, seja a informal e ilegal,
sejam os mercados de proteção de “mercadores da proteção” regidos pela coação e domínio
territorial. Para Muniz (2008), podemos resumir essa equação na expressão “fabricar
guerras para vender paz”.
Soares (2008) afirma que a partir da autonomia do agente público e do
desfinanciamento da segurança pública estariam postas as condições para que a prioridade
da polícia não mais seja “servir ao público” e menos ainda ao “Estado”. É nesse sentido que
ocorre a perpetuação de diversas “redes de economia informal”.
Em boa parte a corrupção é filha da política ou do método de enfrentamento, porque quando se dá ao policial, na ponta, liberdade para matar, dá-se, indiretamente, liberdade para negociar a vida e a liberdade. Pagar pouco e dar esse poder é mais ou menos natural que o resultado seja desastroso do ponto de vista da lógica social. (SOARES, 2008)
Diante desse quadro, é provável que as utilizações da força e da coação se tornem
um circuito “em espiral” uma vez que quanto maior será o escalonamento da força ainda
maior será a perda de confiança na organização policial, e, ainda maior será a utilização da
força. Como bem destacam Proença e Muniz (2008), “maior ainda será a fragilidade dos
11
governos, que leiloados e vendidos, alimentam dinâmicas destrutivas e autodestrutivas de
acumulação e reprodução de práticas de governabilidades vulneráveis”.
Nesse sentido, ambos apontam a fragilidade da governabilidade e da soberania do
Estado diante de seus territórios, e que o instrumento de disputa pelos mesmos – a polícia,
que desde que regida por uma lógica de Segurança Pública é a expressão “deliberada do
exercício de governo, é a governabilidade nas ruas, é a expressão de uma forma de
governar” (MUNIZ, 2008) – pode converter-se em seu principal inimigo.
A “Milícia”, conhecida em sua origem como “Mineira”, organiza-se territorialmente a partir de áreas de influência, não tendo limites espaciais bem definidos, atuando, sobretudo, a partir da idéia de fronteira, o que significa estar em franca expansão de seus domínios territoriais. Sua área de expansão privilegiada são os loteamentos ilegais e irregulares da periferia urbana da região metropolitana do Rio de Janeiro. Atuam em um ramo que vem ganhando força desde os anos 70, em que as invasões de terrenos por grupos autônomos de sem-teto foram substituídas pela figura de uma espécie de “empreendedor imobiliário”. Ele agencia lotes em áreas públicas, muitas vezes sob respaldo de vereadores e deputados, ou outras figuras públicas que garantem o funcionamento de um esquema de venda ilegal de lotes na periferia urbana. Esse fenômeno, que vem se ampliando desde os anos 70, ganha força na medida em que estes grupos, por sua origem de “justiceiros”, vendem um modelo de urbanização baseado na “segurança”, a exemplo do que ocorre, de maneira sofisticada e regularizada, nos empreendimentos imobiliários para ricos que começam a se multiplicar nos anos 80 – os condomínios exclusivos. (SOUZA E SILVA, 2008, pg.33)
A origem da “milícia” é controversa, mas, segundo Souza e Silva (2008) ligar-se-ia,
em particular, a uma narrativa quase mitológica focada em justiceiros locais24. Este grupo,
que originalmente atuaria em matança ou espancamento de assaltantes, com o tempo
passaria a atuar de maneira profissional, expandindo suas atividades. Hoje em dia, aquele
grupo criminoso que mais se assemelharia a um “grupo de extermínio”, passa a ter
contorno de rede de comércio ilegal abrangente, convergindo com características de máfias.
Para o autor, o discurso moralista que permeia a atuação dos milicianos pode ser,
em linha geral, tratado como um novo “re-encantamento do mal”, conforme assinalou
Zaluar (1994) quanto à visão construída pela sociedade em torno das drogas e dos
traficantes. É com base nesse re-encantamento do mal que a “milícia” ocuparia um espaço
cada vez maior nas áreas pobres da cidade, vendendo um modelo de urbanização centrado
na segurança e na moralidade. Algo que viria seduzindo muitos moradores desses
territórios, uma vez que com a presença de facções criminosas ou a “ameaça” de domínio
24 Como é o caso de Rio das Pedras, maior favela da Zona Oeste da cidade.
12
pelas mesmas – conseqüentemente, diante do cotidiano da “guerra” ou “confronto” com a
polícia – prefeririam “comprar” a sua “paz armada”.
Burgos (2008) assinala que, sobre a “lição” de Rio das Pedras, haveria sido a
percepção de impotência em face dos conflitos entre as facções de traficantes e entre
traficantes e policiais que teria animado e legitimado para boa parte dos moradores o
arranjo institucional “de proteção” lá construído. Neste arranjo prevalecia uma espécie de
“pacto hobbesiano”, no qual a segurança e a integridade física tornaram-se bem supremo,
em nome do qual se alienariam todos os demais direitos e prerrogativas. Para ele, esse
arranjo só é possível em uma metrópole na qual a sinalização para o mundo popular é a de
que o acesso à cidade e ao mundo dos direitos é muito restrito, e, portanto, o individualismo
transforma-se em tônica. Nesse sentido:
(...) em casos aonde o tráfico e a polícia vêm historicamente se confundindo no trabalho de humilhação de sua população (...) não é de admirar que a pauta da cidadania se veja ainda mais amesquinhada, freqüentemente reduzida à afirmação do mais primário dos direitos que é o direito à integridade física. Assim é que nossa pesquisa levava à conclusão de que a solução hobbesiana de RDP apresentava-se como uma resposta meramente adaptativa a uma cidade que relegava seus moradores pobres a um mundo sem regulação estatal e sem ordem pública, a começar pelo acesso ao solo urbano, à habitação e ao transporte local, estruturados em mercados, cujo arbítrio somente encontra limite na lei do mais forte, vigente nos territórios. (BURGOS, 2008, on-line)
Como alvos permanentes da polícia e do preconceito (MACHADO DA SILVA &
FRIDMAN, 2004), moradores de comunidades seriam humilhados cotidianamente pelo
tripé narcotráfico, ação policial atrabiliária e violenta e pelo preconceito dos que não
moram nas favelas. Burgos (2008), a partir do caso de Rio das Pedras, procura demonstrar
o quanto as “milícias” surgiriam como expressão dessa profunda segregação urbana a que
são submetidos parte dos moradores da cidade e como esse sofisticado arranjo se organizou
nessa localidade:
O poder militar ‘autorizado’ pelo Estado empresta à associação uma impressionante capacidade de enforcement sobre a vida local; em contrapartida, a associação – fortalecida pela forma como o poder público lhe delegou a gestão do território – empresta ao poder militar uma legitimidade que ele dificilmente encontraria sem ela. Cria-se uma dinâmica institucional até certo ponto sofisticada, na qual uma força regula e impõe limites à outra, acabando por conferir ao ‘rito jurídico’ local mais transparência e estabilidade do que o encontrado nas favelas dominadas pelo tráfico. (...)
A partir desse arranjo institucional, organiza-se uma espécie de política tributária e social, que passa pelo controle sobre o pujante comércio de varejo da favela, sobre seu aquecido mercado imobiliário, e sobre serviços como o do transporte
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através de vans, de clínicas e creches, de casas de show, etc. (BURGOS, 2008, on-line)
Em recente estudo sobre as mudanças na economia política do crime no Rio de
Janeiro, Alves (2008) aponta a similaridade entre milícias e grupos de extermínio e chama a
atenção de que a emergência de ambos não enfrentou qualquer tipo de processo de
impedimento por parte do Estado. Em suas considerações, aliada a esse processo a política
de segurança adota cada vez mais a prática da execução sumária na reconfiguração do
controle militar de áreas pobres e favelizadas, numa relação direta e indireta com os
movimentos geopolíticos das milícias e grupos de extermínio25.
Em apreciação recente se confirmaria, no entanto, que a relação entre milícias e
“moralidade” – atribuída a não comercialização de drogas – pode ser considerada
extemporânea, na medida em que “(...) em 65% das comunidades que hoje estão sob o
controle dos milicianos não havia antes atividade de tráfico de drogas. E, em locais onde
as milícias são menores, ainda sem braços políticos e com maior limitação econômica, o
mercado ilegal de entorpecentes continua a existir.” (FREIXO, 2008).
O objetivo final dessas quadrilhas privadas é o lucro, obtido de atividades ilícitas ocorridas no vácuo do poder público. É assim que esses bandos armados liderados por agentes públicos – policiais, bombeiros, agentes penitenciários e até militares – dominam determinadas áreas da cidade, em geral de baixa renda. Trata-se, na verdade, de uma das modalidades de crime mais organizadas do Rio de Janeiro, justamente porque surge dentro do Estado, utilizando-se do aparato estatal. Mas não se trata de um Estado paralelo, e sim de um Estado leiloado, que atende a interesses particulares (FREIXO, 2008).
Cano (2008), em estudo exploratório sobre “milícias” afirma que as mesmas não
possuem um conteúdo preciso e que o termo é aplicado a cenários bastante variados. No
seu trabalho, procura definir “milícia” em função de cinco eixos que devem acontecer
simultaneamente: “o primeiro é o controle de um território e da população que nele habita
por parte de um grupo armado irregular; o segundo é o caráter coativo desse controle; o
terceiro é o ânimo de lucro individual como motivação central; o quarto é um discurso de
legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem, e o quinto é
uma participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado” (CANO, 2008). A
25 Essas hipóteses e a correlação entre as atividades das milícias, grupos de extermínio e grupos mafiosos devem ser objeto de um aprofundamento por parte desse estudo.
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confluência desses cinco elementos definiria uma realidade que permitiria ser chamada de
“milícia”. Há dois aspectos dignos de destaque, que referem-se ao quarto e quinto eixo:
O discurso de legitimação relativo à proteção dos habitantes é um ponto central da milícia. Ela se apresenta como proteção contra a ameaça do crime, contra a desordem e, em última instância, contra o “mal”, simbolizado na figura do narcotraficante. Diferentemente do tráfico, que não precisa de legitimação - se justifica pela simples violência - a milícia não pode se apresentar como um grupo a mais do crime organizado; pelo menos tem que se apresentar como alternativa a algo pior, ao narcotráfico. Portanto, ela tenta se legitimar pelo seu oposto, como um “mal menor”.
O último dos cinco pontos é a participação de agentes do Estado. Essa participação precisa ser divulgada localmente para que todos saibam que os milicianos são policiais, bombeiros, entre outros. Em suma: a maior parte dos milicianos é membro ativo ou inativo do quadro de funcionários do Estado, não raro afastados por desvio de conduta. As milícias também incorporam civis, algumas vezes, inclusive, derrotados do narcotráfico. Se é bem comum que as estruturas criminais no Rio de Janeiro contem com participação de agentes públicos, o diferencial, nesse caso, é que o comando da estrutura está nas mãos dos agentes públicos além da publicidade do seu papel. O policial corrupto que recebe dinheiro do tráfico tenta ser discreto para não ser identificado, enquanto que o miliciano faz questão de dizer que ele é policial, agente penitenciário ou bombeiro (CANO, 2008).
Uma sexta hipótese que merece ser investigada e possivelmente acrescida às cinco
características apontadas por Cano (2008), diz respeito à busca pelo poder político a partir,
possivelmente, da formação de “currais eleitorais armados”. A confluência desses seis
elementos definiria então como “milícia”, determinado grupo armado com controle de
território.
Conclusivamente, o projeto em questão deverá, ainda, sublinhar o quadro
extremamente avançado de reorganização da ordem pública sob o impacto da
mercantilização irregular e ilegal da segurança. No momento, como tentou-se indicar
acima, está relativamente mapeada a literatura nacional pertinente. Deve ser avaliada, junto
ao orientador da pesquisa, a direção e natureza da incorporação de uma bibliografia mais
ampla para a compreensão e debate sobre o tema, cuja natureza complexa e avançado
quadro tornam-na extremamente grave. Retomando Lautier (1997):
Todo o conjunto de direitos que não está ligado ao cumprimento de deveres (em particular fiscais ou contributivos) aparece como um favor concedido pela autoridade política, base de um clientelismo que se desenvolve em nome da cidadania. Se os Estados de terceiro mundo não chegarem à reconstrução dos estatutos sociais e à unificação dos direitos-deveres, a democratização em curso em toda região e o “sucesso” da economia informal, podem avançar para o caos social. (LAUTIER, 1997, pg.90).
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4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
No campo dos procedimentos pretendo combinar a metodologia qualitativa com a
análise de dados quantitativos. Nesse sentido, trabalharei com documentos oficiais do
Instituto de Segurança Pública (ISP/RJ) e com relatórios já publicados26 que apontem
estatísticas no que tange à abrangência das milícias.
Também buscarei dados que permitam correlacionar o aumento da criminalidade
nas últimas duas décadas, o aumento do confronto entre polícia e crime com o surgimento
das milícias.
Analisar a cobertura de jornais e revistas (cuja metodologia está em elaboração)
sobre as “milícias” permitirá remontar o cenário vivenciado até o atual momento,
especialmente as avaliações difundidas pela mídia sobre as mesmas, através das quais será
possível analisar a produção da legitimidade – ou o questionamento da sua ação – nos
distintos momentos onde o debate foi suscitado.
Pretendo também, realizar entrevistas com grupos focais de moradores. Parto do
pressuposto de que grupos focais funcionam melhor do que o acompanhamento etnográfico
nesses casos, reduzindo o medo e a desconfiança que muitos deles têm de fazer denúncias
sobre os grupos que os oprimem. Acredito que não haverá dificuldade em organizar os
citados grupos especialmente porque meu trabalho anterior permitiu o estabelecimento de
boas relações de confiança com um amplo conjunto de moradores das localidades em
questão. Um roteiro com questões sobre a rotina dos moradores em locais dominados pelas
“milícias”, que tipo de coerções são impostas, quais são as estratégias para viver sob essa
submissão (entre outras), deve ser elaborado para o trabalho com os grupos.
Outro importante material a ser analisado será o relatório com os dados coletados
pela Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação das milícias no âmbito do Estado
do Rio de Janeiro, da ALERJ. Dados do “disque-milícias” 27 devem ser utilizados para uma
aprofundada análise sobre as denúncias feitas por moradores. Os dados sobre a base
territorial dos eleitores de deputados e vereadores suspeitos de envolvimento nos grupos,
26 Tanto a prefeitura como o Governo do Estado do Rio de Janeiro já tornaram pública a elaboração de relatórios que mapeiam a presença de milícias na cidade e no Estado do Rio de Janeiro. 27 Durante todo o período de investigação da CPI, as denúncias por parte de moradores das comunidades foram registradas através do número do “disque-milícias”, locado na sala da comissão parlamentar de inquérito.
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também serão de grande valia – especialmente no que diz respeito às eleições municipais de
200828 – junto a uma análise do mapeamento do TRE sobre as eleições.
Por fim, levantar, sistematizar e debater referências bibliográficas que avaliem
outras formas de controle e mercado ilícito, como tráfico de drogas, grupos de extermínio,
esquadrões da morte, máfias, grupos paramilitares entre outros, buscando problematizar as
semelhanças e diferenças entre os mesmos, são parte essencial para a compreensão do
desenvolvimento de fenômenos circunscritos a um mesmo espectro investigativo.
Referências Bibliográficas
28 Já há pesquisas da imprensa que mapeiam satisfatoriamente os dados de distribuição territorial dos votos de supostos “milicianos” nas eleições de 2004 e 2006. Soma-se a elas a necessidade de observar o quadro referente às eleições municipais de 2008, especialmente porque, nesse momento, já havia grande quantidade de denúncias públicas sobre a atuação das “milícias” em eleições, resultando, inclusive, na realização da “Operação Guanabara”. Iniciada no dia 11 de setembro, a “Operação Guanabara” foi uma ação das forças armadas de “reforço à segurança nas eleições de outubro” em áreas dominadas pelo tráfico ou por “milícias”. Atendendo ao pedido do Tribunal Superior Eleitoral, cerca de 45 mil homens e mulheres do Exército e da Marinha permaneceram nesses territórios durante todo o período de campanha eleitoral. Segundo o Ministério da Defesa, em média 2 mil soldados trabalharam todos os dias em comunidades dominadas pelo tráfico de drogas e por milícias. A operação terminou oficialmente em 29 de outubro, marcada por uma solenidade pública de encerramento.
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