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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
Prof. Dr. CELSO CORRA PINTO DE CASTRO
CLAUDIUS GOMES DE ARAGO VIANA
HISTRIA, MEMRIA E PATRIMNIO DA ESCOLA MILITAR DO REALENGO
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentao de
Histria Contempornea do Brasil - CPDOC como requisito parcial para a obteno do
grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.
Rio de Janeiro, maro de 2010
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
2
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Viana, Claudius Gomes de Arago
Histria, memria e patrimnio da Escola Militar do Realengo / Claudius Gomes de
Arago Viana. - 2010.
176 f.
Dissertao (mestrado) - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria
Contempornea do Brasil, Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens
Culturais.
Orientador: Celso Correa Pinto de Castro.
Inclui bibliografia.
1. Escola Militar do Realengo. 2. Espao urbano - Realengo (Rio de Janeiro, RJ). I.
Castro, Celso, 1963-. II. Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea
do Brasil. Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais. III. Ttulo.
CDD - 355.2098153
3
FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
HISTRIA, MEMRIA E PATRIMNIO DA ESCOLA MILITAR DO REALENGO
Trabalho de concluso de curso apresentado por
CLAUDIUS GOMES DE ARAGO VIANA
E aprovado em 16 de maro de 2010
pela banca examinadora:
Professor orientador:
Prof. Dr. CELSO CORRA PINTO DE CASTRO - CPDOC/FGV.
Professor externo do programa:
Prof. Dr. FERNANDO DA SILVA RODRIGUES - Arquivo Histrico do Exrcito.
Professor interno do programa:
Profa. Dra. NGELA MARIA DE CASTRO GOMES - CPDOC/FGV.
Suplente:
Profa. Dra. LETCIA BORGES NEDEL - CPDOC/FGV.
Rio de Janeiro, maro de 2010
4
Para Yukimi,
com amor.
5
AGRADECIMENTOS
A realizao deste trabalho s foi possvel devido contribuio e ao apoio de
diversas pessoas. Nesse momento final, o risco de omitir referncias a alguma delas no
supera a necessidade de agradecer a outras tantas.
especialmente importante agradecer Fundao Getulio Vargas, instituio de
excelncia, pelas condies que permitiram meu ingresso e permanncia no Programa de
Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais. Registro a motivao transmitida
pelos professores Maria Celina D'Araujo, Vitor Fonseca, Fernando Lattman-Weltman,
Dulce Chaves Pandolfi e Helena Bomeny, a cada um dos quais agradeo tambm pelos
ensinamentos recebidos.
Agradeo a todos os colegas de turma pelas sugestes, contribuies e idias
apresentadas, tanto em sala de aula quanto durante as discusses que tivemos oportunidade
de travar, e pela amizade que certamente se estender alm dessa fase de nossas vidas.
Devo agradecimentos especiais jovem revisora Jeovana Costa, responsvel pelo
que houver de correto no uso da linguagem neste trabalho, e ao meu irmo Anderson
Viana, tanto pelas belas fotografias quanto pela disponibilidade constante em me
acompanhar nas "excurses" de campo em Realengo.
Aos professores Angela de Castro Gomes e Fernando da Silva Rodrigues, pelas
valiosas contribuies apresentadas na banca de qualificao, meus sinceros
agradecimentos, estendidos ao professor Matias Spektor pela incansvel boa vontade e
pelas sugestes apresentadas, e professora Letcia Nedel, pela disponibilidade ao aceitar
o convite para compor a banca examinadora.
Esta pesquisa no existiria - literalmente - se faltasse a confiana que me foi
concedida desde os primeiros momentos pelo professor Celso Castro, que ultrapassando
em muito as obrigaes de uma boa orientao, forneceu-me amplas amostras do
profissionalismo, da inteligncia e da generosidade que constituem suas marcas pessoais; e
nem sem os incentivos constantemente recebidos, com todo entusiasmo e paixo, do meu
irmo Luiz Claudio, credor do meu mais intenso respeito.
Finalmente, estendo os mais profundos agradecimentos a todos aqueles que
comemoram comigo a concluso deste trabalho.
6
Ultrapassado o "momento atual", todas as
suas incgnitas e indeterminaes aparecem
aos olhos do observador como relativamente
ingnuas ou falsas. Iluses aparentemente
desfeitas pela ao eficaz de leis
rigorosamente estruturais, cegas e
independentes da vontade. No limite, os
conflitos passados parecem ter sido mera
encenao ideolgica. O que um engano,
porque toda conjuntura passada tambm teve
seus conflitos, expectativas e projetos coletivos
- uns vitoriosos, outros derrotados - que
explicam o caminho tomado pela histria.
(Jos Lus Fiori - O vo da coruja).
7
SUMRIO
DEDICATRIA ........................................................................................................... 04
AGRADECIMENTOS ................................................................................................. 05
SUMRIO .................................................................................................................... 07
LISTAS ......................................................................................................................... 09
1. Figuras ...................................................................................................................... 09
2. Tabelas ...................................................................................................................... 11
RESUMO ...................................................................................................................... 12
ABSTRACT ................................................................................................................... 13
INTRODUO ............................................................................................................ 14
I. TERRAS REALENGAS ........................................................................................... 23
1.1. O Realengo do Campo Grande .............................................................................. 23
1.1.1. Origem do termo ................................................................................................. 23
1.1.2. Breve histria fundiria ...................................................................................... 24
1.2. Os militares no Realengo do sculo XIX .............................................................. 28
1.2.1. A Escola Geral de Tiro do Campo Grande (1857 - 1890) .................................. 29
1.2.2. A Escola Prtica do Exrcito na Capital Federal (1891 - 1897) ......................... 45
1.2.3. A Escola Preparatria e de Ttica do Realengo (1898 - 1905) ........................... 49
1.2.4. A Fbrica de Cartuchos do Realengo ................................................................. 50
1.2.5. A Escola de Sargentos (1893 - 1896) ................................................................. 57
1.3. Algumas consideraes sobre o captulo ............................................................... 59
II. A ESCOLA MILITAR DO REALENGO ............................................................... 64
2.1. Da Casa do Trem Escola Militar do Brazil ........................................................ 64
2.1.1. Sedes das escolas militares nos sculos XVIII e XIX ........................................ 64
2.1.2. O ensino militar no incio do sculo XX ............................................................ 67
8
2.2. A Escola Militar, em Realengo .............................................................................. 72
2.2.1. Preldio: o perodo de 1905 a 1911 .................................................................... 73
2.2.2. A dcada de 1910 ................................................................................................ 80
2.2.3. As reformas das dcadas de 1920 e 1930 ........................................................... 84
2.2.4. O longo adeus ..................................................................................................... 93
2.3. Outras reas militares ............................................................................................ 96
2.3.1. A Fbrica de Cartuchos ...................................................................................... 96
2.3.2. A Vila Militar de Deodoro .................................................................................. 104
2.3.3. O Campo dos Afonsos ........................................................................................ 111
III. PATRIMNIO E MEMRIA DA ESCOLA MILITAR ...................................... 120
3.1. Primeiras consideraes ......................................................................................... 120
3.2. Depois da escola .................................................................................................... 123
3.3. As reas militares no Realengo .............................................................................. 127
3.4. reas militares e urbanizao ................................................................................ 137
3.5. Lugar de memria, lugar de histria ..................................................................... 145
CONCLUSO .............................................................................................................. 162
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 167
1. Fontes primrias ........................................................................................................ 167
2. Livros e artigos ......................................................................................................... 167
3. Filmes ....................................................................................................................... 174
4. Pginas da internet ................................................................................................... 175
9
LISTAS
1. Figuras
Figura 1 - rea geogrfica de interesse da pesquisa ..................................................... 21
Figura 2 - Freguesias do Rio de Janeiro, no final do sculo XIX ................................. 28
Figura 3 - O Bartolomeu de Gusmo, de Augusto Severo ........................................... 47
Figura 4 - Vista da fbrica de plvora, prxima lagoa Rodrigo de Freitas ................ 52
Figura 5 - Mapa da cidade do Rio de Janeiro, 1895 ..................................................... 61
Figura 6 - Praia da Saudade e Escola Militar ............................................................... 74
Figura 7 - O Balo Militar nmero 1 ............................................................................ 75
Figura 8 - Parquia de Nossa Senhora da Conceio ................................................... 81
Figura 9 - Escola Militar, em data anterior a 1920 ....................................................... 82
Figura 10 - Fachada da Escola Militar, em 2009 .......................................................... 83
Figura 11 - Visita de Santos Dumont Escola de Aviao Militar, 1928 .................... 85
Figura 12 - "Bonequinha de seda" ................................................................................ 87
Figura 13 - Cine-Teatro Realengo ................................................................................ 90
Figura 14 - IAPI de Realengo ....................................................................................... 91
Figura 15 - Vista area de Realengo, 1940 ................................................................... 92
Figura 16 - Vista area da Escola Militar do Realengo, 1940 ...................................... 93
Figura 17 - Obras de ampliao da Fbrica de Cartuchos do Realengo ....................... 98
Figura 18 - Oficina de cartuchos da Fbrica do Realengo ............................................ 99
Figura 19 - Vista de oficina da Fbrica de Cartuchos do Realengo ............................. 100
Figura 20 - Casa do diretor da Fbrica do Realengo .................................................... 101
Figura 21 - Projeto da Vila Militar ............................................................................... 104
Figura 22 - Lanamento da pedra fundamental da Vila Militar ................................... 106
Figura 23 - Estao da Vila Militar .............................................................................. 107
10
Figura 24 - Quartel-general da Infantaria Divisionria, na Vila Militar de Deodoro ... 110
Figura 25 - Aeroplano sobrevoa a Fazenda de Afonsos ............................................... 112
Figura 26 - Escola de Aviao na dcada de 1910 ....................................................... 114
Figura 27 - Vista da Escola de Aviao em Afonsos ................................................... 115
Figura 28 - Terraplenagem da Escola de Aviao ........................................................ 116
Figura 29 - Oficinas da Escola de Aviao Militar ...................................................... 117
Figura 30 - Vista do Campo dos Afonsos em 1940 ...................................................... 118
Figura 31 - Vista lateral da antiga Escola Militar ......................................................... 122
Figura 32 - Runas da Fbrica do Realengo .................................................................. 123
Figura 33 - Detalhe da fachada da Fbrica do Realengo .............................................. 126
Figura 34 - Porto da Fbrica de Cartuchos na rua Carlos Wenceslau ......................... 132
Figura 35 - Residncia funcional da Fbrica de Cartuchos .......................................... 134
Figura 36 - Coreto do Campo de Marte ........................................................................ 135
Figura 37 - Picadeiro da Escola Militar ........................................................................ 136
Figura 38 - Residncias funcionais da Fbrica de Cartuchos do Realengo .................. 137
Figura 39 - Antiga fachada, rua Bernardo de Vasconcelos .......................................... 138
Figura 40 - Antiga fachada, rua Bernardo de Vasconcelos .......................................... 139
Figura 41 - Antigo estabelecimento comercial em Realengo ....................................... 141
Figura 42 - Vista da rea III da Fbrica de Cartuchos ................................................. 142
Figura 43 - Vistas da Fbrica de Cartuchos .................................................................. 144
Figura 44 - Edificao em runas na Fbrica de Cartuchos .......................................... 145
Figura 45 - Fachada de uma antiga residncia .............................................................. 148
Figura 46 - Residncia na estrada So Pedro de Alcntara .......................................... 149
Figura 47 - Residncia na estrada So Pedro de Alcntara .......................................... 150
11
2. Tabelas
Tabela 1 - Matrculas na Escola Geral de Tiro do Campo Grande ............................... 43
Tabela 2 - Instituies de ensino do Exrcito em Realengo (1859 - 1912) .................. 59
12
RESUMO
Esta dissertao analisa a influncia das instituies militares, particularmente a Escola
Militar, no perodo de 1912 a 1944, na configurao urbana de Realengo, bairro localizado
no subrbio do municpio do Rio de Janeiro. Tendo como principal corpus documental os
relatrios do Ministrio da Guerra e a legislao pertinente, so estabelecidos marcos
histricos para anlise do processo de transformao da antiga zona rural do municpio em
uma rea militar, enfatizando os impactos que incidiram sobre a regio em decorrncia da
transferncia da sede da Escola Militar do Brazil, da Praia Vermelha para o Realengo.
Preliminarmente, so identificadas as primeiras unidades militares que ocuparam a regio,
estabelecendo conexes entre o funcionamento dessas organizaes, a constituio do seu
patrimnio e o desenvolvimento urbano de Realengo. Para contextualizao, tambm so
apresentadas as sedes ocupadas pela Escola Militar ao longo do sculo XIX e as
circunstncias que motivaram sua sada da Praia Vermelha no incio do sculo XX. O
recorte temporal se inicia no perodo compreendido entre o incio do sculo XIX, quando
as chamadas terras realengas foram doadas Cmara da cidade do Rio de Janeiro por D.
Joo VI; atravessa o sculo XX, quando se consolidaram o patrimnio da Escola Militar
em Realengo e a urbanizao do bairro; e chega aos dias atuais, quando, aps a extino da
escola, a decadncia e o abandono so as marcas das antigas edificaes militares do
bairro. Tambm so assinalados o funcionamento da Fbrica de Cartuchos e a criao de
duas grandes reas militares, a Vila Militar de Deodoro e o Campo dos Afonsos. Por fim,
so levantadas as perspectivas e aes do Exrcito Brasileiro e de outros rgos da
sociedade na preservao do patrimnio e da memria da antiga escola.
Palavras-chave: Exrcito Brasileiro. Escola Militar. Realengo.
13
ABSTRACT
This thesis examines the influence of the military, particularly the Military School in the
period 1912 to 1944, on the urban form of Realengo, located on the suburb of Rio de
Janeiro. With the main body of documentary formed by the reports of the War Department
and related laws, are established marks for analysis of the transformation process of the
former rural municipality in a military area, emphasizing the impact that focused on the
region due to the transfer of the Military School of Brazil, from the Praia Vermelha to
Realengo. Preliminarily, we identify the first military units that occupied the region,
establishing connections between the functioning of these organizations, the constitution of
their heritage and the urban development of Realengo. For background, are also presented
the seats occupied by the Military School during the nineteenth century and the
circumstances that motivated his departure from Praia Vermelha in the early twentieth
century. The time line begins in the period from the early nineteenth century, when the
calls realengas lands were donated to the town of Rio de Janeiro by D. Joo VI, through
the twentieth century, when it had consolidated assets of the Military School in Realengo
and urbanization of the neighborhood, and reaches the present day, when, following the
end of the school, the decay and neglect are the hallmarks of the old military buildings in
the neighborhood. Also indicated are the operation of the factory cartridges and the
creation of two large military areas, the Vila Militar de Deodoro and the Campo dos
Afonsos. Finally, we investigate the perspectives and actions of the Brazilian Army and
other organs of society in preserving the heritage and memory of the old school.
Key-words: Brazilian Army. Military School. Realengo.
14
INTRODUO
Entre os anos de 1912 e 1944, o bairro de Realengo, localizado na Zona Oeste do
municpio do Rio de Janeiro, sediou a Escola Militar do Realengo, instituio de formao
dos oficiais do Exrcito Brasileiro. Juntamente com a Fbrica de Cartuchos, construda no
final do sculo XIX, a Escola Militar exerceu influncia no processo de desenvolvimento e
na configurao urbana da regio, formando um patrimnio material ligado memria, no
apenas de sua prpria histria, mas tambm das origens do bairro, singularizado pelo valor
paisagstico e simblico das antigas construes militares, representativas de diversos
estilos arquitetnicos e perodos histricos.
Aps a extino da Escola Militar, em 1944, e da Fbrica de Cartuchos, em 1977,
demolies e reformas desfiguraram os antigos prdios - alguns construdos ainda no
sculo XIX - em um processo de deteriorao que se acelerou a partir da dcada de 1990.
O fracionamento dos terrenos desocupados pelas instalaes militares e os novos usos
pblicos das reas que as constituam, bem como a venda de fraes dessas reas para
entidades particulares, tambm descaracterizaram o bairro, e poucas aes efetivas foram
realizadas para a preservao da memria das origens e da presena da Escola Militar e da
Fbrica de Cartuchos na regio. Para preencher essa lacuna, a proposta desta dissertao
pesquisar a ocupao de Realengo pelas instituies militares e o papel dessas instituies
no desenvolvimento urbano local, baseando-se na histria de suas antigas reas e
edificaes.
A Zona Oeste do Rio de Janeiro concentra, ainda hoje, vrias unidades do
Exrcito Brasileiro, bem como da Marinha do Brasil, da Fora Area Brasileira e das
Foras Auxiliares1. A criao da Escola Geral de Tiro do Campo Grande, na segunda
metade do sculo XIX, assinalou o incio da ocupao de extensas reas dessa regio da
cidade pelos efetivos militares, que buscavam locais nos quais fossem possveis o emprego
de armamentos e a realizao de experincias, exerccios e manobras. J no incio do
sculo XX, os processos de modernizao e profissionalizao do Exrcito podem ser
citados entre os fatores que determinaram a transferncia da Escola Militar para Realengo,
e, posteriormente, de outras unidades militares para as proximidades, o que influenciou
sobremaneira na configurao do espao urbano da regio.
1 Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro e Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro.
15
Cabe inicialmente uma explicao sobre a pertinncia do tema, a partir da
premissa de que a organizao espacial urbana est ligada aos contextos polticos,
econmicos e sociais que a moldaram ao longo do tempo. Nessa tica, esta dissertao se
constitui em uma contribuio histrica, e presta subsdios para o conhecimento das
transformaes atravessadas por uma expressiva parte do territrio do Rio de Janeiro a
partir da segunda metade do sculo XIX. Em outro sentido, a mesma premissa se aplica
instituio que moldou o territrio em questo, pois a pesquisa tambm aborda aspectos da
evoluo institucional do Exrcito Brasileiro e de suas relaes com a sociedade. Cabe
tambm ressaltar que, segundo novos programas de ao governamental, encontra-se em
progresso a desmobilizao das funes militares das reas que constituram o objeto de
pesquisa, crescendo de importncia a apresentao de um estudo que registre esse processo
de maneira sistemtica.
A explicao acima conduz ao objetivo geral da pesquisa: analisar a influncia das
instituies militares, particularmente a Escola Militar, no perodo de 1912 a 1944, na
configurao urbana do bairro de Realengo.
Esse objetivo tem relevncia na medida em que contribui tanto com os estudos
sobre a organizao do espao urbano do Rio de Janeiro, quanto com aqueles que dizem
respeito ao desenvolvimento das instituies militares, nesse caso particular, o Exrcito
Brasileiro. Nesse aspecto, a histria da Escola Militar do Realengo exemplar, pois rene
tpicos sobre ocupao fundiria e desenvolvimento urbano, paralelamente com eventos
relativos a evoluo do Exrcito, que retrocedem at a segunda metade do sculo XIX. A
ocupao das reas do Realengo tambm ilustra objetivos e projetos polticos dos perodos
imperial e republicano: a regio, que nesses perodos serviu como palco de acontecimentos
relevantes na histria militar do pas, conserva em seus prdios, ruas e praas variadas
informaes sobre o funcionamento dos estabelecimentos militares que a ocuparam,
agiram sobre a paisagem do bairro e formaram uma estrutura urbana peculiar ao longo do
sculo XX, tornando-se, durante certo tempo, o centro da vida social da localidade nos
aspectos econmico, social e cultural, e constituindo-se em um reflexo dos ideais de
progresso e modernidade propostos para o Exrcito e para a sociedade brasileira naquele
perodo.
O princpio bsico do trabalho foi buscar a compreenso das finalidades e das
aes das instituies militares que, ao longo dos sculos XIX e XX, foram implantadas
em grandes reas da regio de Realengo e suas adjacncias, modificando essas reas
16
atravs da construo das instalaes fsicas necessrias ao seu funcionamento. A partir
desse princpio, foram selecionadas fontes que trouxessem informaes sobre os projetos e
discusses relacionados com tais implantaes. Na medida em que foi observada a estreita
ligao entre as reas em estudo e o desenvolvimento da instruo militar no Exrcito, foi
necessrio incluir tambm no plano de trabalho pesquisas sobre as diversas reformas dos
regulamentos militares de ensino.
Os critrios para apurao e anlise do material e das fontes selecionadas se
sustentaram em dois pontos principais. Primeiro, a pesquisa e a reunio de dados sobre as
instituies militares como agentes modeladores do espao urbano, papel que exerceram a
partir da constituio de reas destinadas ao atendimento de suas necessidades e objetivos
especficos. A partir da, e como segundo ponto, nas constataes particulares do
pesquisador, tambm militar e morador da localidade, que possui memrias e impresses
pessoais sobre a configurao do bairro, e valeu-se dessa condio para organizar,
interpretar, revisar e ordenar as informaes obtidas do conjunto composto pela
documentao, bibliografia e iconografia relacionadas ao assunto. Desse modo, o resultado
da seleo de materiais de pesquisa buscou reunir elementos que explicassem 1) as razes
da constituio das reas militares em Realengo, e 2) qual a influncia dessas reas no
desenvolvimento e na configurao da localidade e suas adjacncias.
Cabe ressaltar que a pesquisa sobre a ocupao fundiria do bairro e sobre a
histria de seu desenvolvimento urbano, em si, no indita. Encontram-se referncias a
esses processos tanto em textos mais antigos, como as crnicas de Noronha Santos (1934,
1965, 1981) e Brasil Gerson (1954), quanto em pesquisas mais recentes, como as
apresentadas por Fridman (1998 e 1999). Mas, embora esses trabalhos assinalem a
presena de tropas militares em Realengo a partir de 1850, no detalham sua natureza, suas
particularidades e nem os processos sociais e polticos mais amplos que determinaram sua
transferncia para a regio, ou mesmo as consequncias da sua permanncia no bairro em
longo prazo; de fato, atentam principalmente para o processo de ocupao das terras nas
primeiras dcadas do sculo XIX, quando as sesmarias localizadas ao longo da antiga
estrada Real de Santa Cruz foram retomadas pela Coroa Portuguesa e cedidas Cmara
Municipal.
Noronha Santos, escritor e cronista, produziu diversas descries da paisagem e
hbitos cariocas, bem como da formao histrica do territrio da cidade, nas obras Meios
de transporte no Rio de Janeiro (1934), As freguesias do Rio antigo (1965) e Cronicas da
17
cidade do Rio de Janeiro (1981), em um trabalho de natureza semelhante ao realizado por
Brasil Gerson em Histria das ruas do Rio de Janeiro (1954). Ambos destacam que as
primeiras ocupaes do Realengo se deram atravs da concesso de sesmarias a foreiros
que utilizavam as terras da regio para pastagem do gado e para o cultivo de pequenas
plantaes. J as pesquisas de Fania Fridman, apresentadas nos textos As propriedades
pblicas no Rio de Janeiro (1998) e Donos do Rio em nome do rei - uma histria fundiria
da cidade do Rio de Janeiro (1999), realizam levantamentos e anlises mais minuciosos da
constituio fundiria e imobiliria na cidade do Rio de Janeiro, em uma perspectiva
histrica, ligada s questes relativas formao dos territrios carioca e fluminense.
Nesse contexto, a autora dedica ateno formao das terras realengas, e ao
apossamento das primeiras propriedades na regio.
necessrio, ainda, destacar o trabalho mais recente de Fernandes (2006), que
cita a existncia de vrias unidades militares, algumas com a extenso de diversos bairros,
na rea urbana do Rio de Janeiro, e prope a investigao das Foras Armadas como um
agente modelador do espao urbano da cidade na primeira metade do sculo XX.
As pesquisas acima descritas esto mais diretamente relacionadas com as questes
das apropriaes e da formao histrica do territrio do Rio de Janeiro, mas, como dito
anteriormente, concedem pouco destaque ao detalhamento das estruturas urbanas que se
formaram no Realengo devido presena das tropas militares. Tambm no concedem
ateno ao que se refere influncia da Escola Militar no desenvolvimento do bairro e ao
patrimnio material construdo durante sua existncia; acrescente-se que, a esse respeito,
os registros em trabalhos acadmicos so relativamente escassos, exceto pelas referncias
em alguns livros de memrias de antigos alunos da escola. J no caso da pesquisa ora
apresentada, o tema aprofundado atravs da reunio de informaes sobre o papel da
Escola Militar, e das instituies que a antecederam, como agentes da organizao espacial
urbana. Nesse aspecto, a abordagem singular, pois apesar da existncia de importantes
estudos sobre a Escola Militar, esses concedem maior destaque aos aspectos sociais e
polticos da ao de seus integrantes na histria nacional, ou se interessam pela questo da
evoluo tcnica e pedaggica do ensino militar.
O principal corpus documental da pesquisa para os perodos anteriores a 1940 foi
a srie de relatrios do Ministrio da Guerra2, disponibilizado na pgina eletrnica da
2 Cujas referncias neste trabalho adotaro o seguinte formato: Relatrio do Ministro da Guerra (nome),
(ano), (pgina).
18
Universidade de Chicago3. As fontes primrias consultadas incluem, ainda: a Coleo das
Leis da Repblica Federativa do Brasil; o Almanak Laemert, publicao editada entre
1844 e 1889, composta de informaes sobre os membros da Corte e dos ministrios,
sees sobre as provncias, legislao, dados do censo e propaganda comercial; os Annaes
do Parlamento Brazileiro, publicados pela Typographia Imperial e Constitucional de J.
Villeneuve & C. e os Annaes do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa.
O uso de leis, regulamentos e relatrios como fonte de informaes no deve ser
tomado como indicao de que foi assumida integralmente a ideia de que o funcionamento
das instituies militares corresponde ao cumprimento automtico de normas;
compreende-se que, algumas vezes, as aes descritas ou propostas nesses documentos, na
realidade, no foram alm de tentativas, nem sempre bem sucedidas ou executadas de
modo muito mais desordenado do que os registros apresentam, alm de esbarrarem em
resistncias tais como as frequentes restries oramentrias. Desse modo, essas fontes
servem ao trabalho muito mais como indicao de intenes ou como subsdios para a
ordenao cronolgica de eventos do que, no mais das vezes, como referncia concreta a
resultados. Para interpretao dos contextos da produo desses registros, recorreu-se a
referncias bibliogrficas compostas por estudos e anlises sobre a histria dos militares e
da Escola Militar, tomando como base as obras de autores destacados no tema,
prioritariamente os trabalhos de Motta (1976), Castro (1990, 1995, 2002) e Rodrigues
(2008).
Jeovah Motta foi autor do livro Formao do oficial do Exrcito Brasileiro:
currculos e regimes na Academia Militar / 1810-1944 (1976), no qual descreve o
funcionamento das instituies de formao militar, analisando as modificaes realizadas
nos currculos, planos de ensino e na estrutura da Escola Militar, desde a criao da Real
Academia at a implantao da Academia Militar em Resende. Essa obra permanece como
uma das principais referncias em grande parte dos estudos sobre o assunto.
Entre os trabalhos de Celso Castro, destacam-se como orientao para esta
pesquisa as obras que tm a Escola Militar como tema: O esprito militar: um estudo de
antropologia social na Academia Militar das Agulhas Negras (1990), produzido a partir de
3 O Latin-American Microform Project do Center for Research Libraries um projeto patrocinado pela
Fundao Andrew W. Mellon para produzir imagens digitais de sries de publicaes emitidas pelo Poder
Executivo do Governo do Brasil entre 1821 e 1993, e pelos governos das provncias, desde as mais antigas
disponveis para cada provncia at o fim do Imprio em 1889. O projeto proporciona acesso via internet aos
documentos, facilitando assim a sua utilizao por pesquisadores e prestando apoio s pesquisas latino-
americanas. Disponvel em .
19
pesquisas de campo realizadas pelo autor, que discute os processos de construo da
identidade militar entre oficiais; Os militares e a repblica: um estudo sobre cultura e
ao poltica (1995) onde apresentada a tese da influncia do Exrcito no governo
republicano, fundamentada na ideia da excepcionalidade da instituio; e A inveno do
Exrcito Brasileiro (2002), que analisa rituais e smbolos do Exrcito, destacando o
perodo em que o coronel Jos Pessoa foi comandante da Escola Militar, e as aes desse
personagem na implantao de projetos para constituio de uma elite no Exrcito
Brasileiro, concentrada em modificaes nos modelos de formao acadmica.
Em trabalho mais recente, Uma carreira: as formas de acesso escola de
formao de oficiais do Exrcito brasileiro no perodo de 1905 a 1946 (2008), Rodrigues
traou um panorama histrico bastante completo da Escola Militar, demonstrando, ainda,
que os critrios de seleo de candidatos para o ingresso no oficialato possuam um carter
discriminatrio, destinado a constituir uma elite na instituio, e destacando os
mecanismos institucionais que conduziam esse processo.
Assim como as referncias bibliogrficas citadas acima foram selecionadas para
apoiar as anlises sobre os contextos histricos, tambm foram eleitas referncias tericas
que balizam certos momentos da pesquisa. Esses conceitos esto desenvolvidos no terceiro
captulo, ponto da dissertao no qual foram necessrios para subsidiar a compreenso de
determinadas constataes com as quais a investigao se defrontou.
Considerando as questes envolvidas, o primeiro conceito utilizado foi o de
lugares de memria (Nora, 1993), que leva a entender que o espao fsico, suporte da
memria coletiva, carregado de sentidos. Os lugares de memria so tambm construes
histricas, revelando processos sociais que possuem significados e funes prprias, ideia
que conduziu o pesquisador nas indagaes sobre os objetivos, finalidades e aes dos
agentes que constituram os espaos militares do Realengo.
O segundo conceito adotado foi o de representao (Pesavento, 1995), que
permite refletir sobre a variao das percepes atravs do tempo e sobre a ligao das
memrias a diferentes interesses. O conceito subsidia a interpretao do significado do
abandono e da deteriorao das antigas construes, constatados nas pesquisas de campo,
bem como a interpretao dos discursos sobre os espaos e sociabilidades. Leva, ainda,
reflexes sobre o que a autora chama de "pasteurizao" ou uniformidade do urbano: a
20
destruio da memria, a substituio do "velho" pelo novo, a uniformizao das
construes e a generalizao da impessoalidade no contexto urbano.
A pesquisa buscou ainda outras referncias, encontrando por vezes obstculos
relacionados existncia, ao estado de conservao, ou s possibilidades de acesso a
monumentos, documentos e outros registros histricos. Entre essas fontes, assinala-se:
a. Os livros escritos por ex-alunos, como por exemplo as obras: Cadete do
Realengo (Arago, 1959); Cadetes em desfile (Pedroso, 1969); Recordaes de uma velha
escola (Bley, 1974); Memrias do Realengo (Lins, 1981); A ltima noite da Escola Militar
da Praia Vermelha (Lobato Filho, 1992).
b. Os arquivos de documentos produzidos na Escola Militar e em outras
organizaes militares j extintas que existiram na localidade, pertencentes atualmente ao
acervo do Arquivo Histrico do Exrcito.
c. Acervos de legislaes, cuja crescente digitalizao e disponibilizao na rede
mundial de computadores facilitou consideravelmente a pesquisa, sobretudo nas consultas
aos stios eletrnicos do Senado Federal, da Cmara dos Deputados e da Imprensa
Nacional, que possuem colees completas de leis do Imprio e da Repblica. Quanto
documentao histrica referente ao Exrcito Brasileiro, embora em sua maior parte no se
encontre em formato digital, foi possvel consult-la com relativa facilidade de acesso,
desde as Ordens do Dia do sculo XIX at o atual Boletim do Exrcito. Essas consultas
foram realizadas no Arquivo Histrico do Exrcito, na Biblioteca do Exrcito e no
Batalho Escola de Engenharia, hoje localizado no palcio de Santa Cruz, que foi criado
em 1855 e foi contemporneo das primeiras instituies militares que ocuparam a
localidade de Realengo.
Inicialmente, o projeto de trabalho previa o recurso de utilizao da metodologia
da histria oral para realizao de entrevistas com antigos militares da Escola Militar, com
trabalhadores da Fbrica de Cartuchos e com moradores da regio. De fato, no foi
possvel encontrar moradores do bairro que possussem recordaes sobre o perodo de
funcionamento da Escola Militar; algumas poucas pessoas foram contemporneas da
Fbrica do Realengo, e os ex-alunos da escola concentraram suas recordaes nas
atividades militares, ou reforaram discursos j encontrados na bibliografia. Como o
resultado obtido ficou aqum do esperado, as entrevistas no foram includas na
dissertao.
21
Por fim, foi realizada uma srie de visitas s antigas construes do bairro, e
nessas oportunidades foram realizados registros fotogrficos de sua localizao e estado.
Esse procedimento teve como objetivo a composio de um acervo, formado por imagens
que ilustrassem as diversas referncias apresentadas ao longo do trabalho. A perspectiva de
que em breve o acesso a essas edificaes no ser mais possvel tornou oportuna essa
ao. Em relao s imagens antigas utilizadas, todos os esforos foram feitos para
determinar e citar sua origem, mas nem sempre isso foi possvel. Dada a natureza deste
trabalho, a inteno de sua exposio to somente organiz-las como informao
acadmica e torn-las acessveis e teis. Eventuais omisses ou equvocos nos crditos
sero corrigidos com prazer, caso as fontes se manifestem.
Figura 1 - rea geogrfica de interesse da pesquisa.
Situao geogrfica da rea de interesse da pesquisa. esquerda, no alto, o estado do Rio
de Janeiro, dividido em regies e municpios; abaixo, o municpio do Rio de Janeiro,
dividido em bairros. A rea destacada em verde corresponde ao bairro de Realengo.
direita: O detalhe ampliado o centro do bairro, onde se destacam os grandes espaos
ocupados pela antiga Escola Militar e pelas reas da Fbrica de Cartuchos, desativada na
dcada de 1970. Fonte: Atlas Escolar 2000 e Google Maps Brasil (com adaptaes).
A dissertao est estruturada em trs captulos. O primeiro se constitui pela
apresentao da formao histrica e da ocupao fundiria do bairro, com nfase na
ocupao da regio pelos efetivos militares. Esse captulo tem como objetivo especfico
identificar as primeiras organizaes militares que ocuparam as terras de Realengo,
estabelecendo conexes entre seu funcionamento e o incio da constituio do patrimnio
do Exrcito na regio, bem como com o desenvolvimento do bairro. Os eventos narrados
esto situados no perodo compreendido entre o incio do sculo XIX, quando as chamadas
22
terras realengas foram doadas Cmara da cidade do Rio de Janeiro por D. Joo VI, e o
incio do sculo XX, quando a Escola Militar foi transferida para a localidade.
O segundo captulo est dividido em trs sees. A primeira apresenta as sedes
ocupadas pela Escola Militar ao longo do sculo XIX e expe as circunstncias que
motivaram sua sada da fortaleza da Praia Vermelha, no incio do sculo XX. A segunda
descreve a constituio do patrimnio da escola no Realengo e a urbanizao do bairro na
primeira metade do sculo XX. A terceira seo trata do funcionamento da Fbrica de
Cartuchos e da criao de duas grandes reas militares nas adjacncias de Realengo: a Vila
Militar de Deodoro e o Campo dos Afonsos. So descritas as transformaes introduzidas
na regio e, secundariamente, nas reas prximas, aps a construo dos conjuntos
arquitetnicos da Escola Militar e da Fbrica de Cartuchos. Buscou-se associar as
edificaes s suas funes originais e ao contexto histrico em que foram construdas,
alm de seus reflexos na configurao urbana da localidade.
O terceiro captulo enfoca as transformaes ocorridas aps a extino da Escola
Militar, os usos posteriores de suas instalaes, a situao atual dessas reas e sua
influncia na configurao urbana do bairro e de suas adjacncias. Tambm so destacadas
as perspectivas dos comandos militares e de rgos da sociedade na preservao da
memria da antiga escola.
Por fim, a concluso sintetiza as anlises e resultados da pesquisa.
23
CAPTULO I - TERRAS REALENGAS
Este captulo tem como objetivo identificar as primeiras organizaes militares
que ocuparam as terras de Realengo, estabelecendo conexes entre seu funcionamento e o
incio da constituio do patrimnio pblico na regio, bem como com o desenvolvimento
do bairro. Os eventos narrados a seguir esto situados no perodo compreendido entre o
incio do sculo XIX, quando as chamadas terras realengas foram doadas Cmara da
cidade do Rio de Janeiro por D. Joo VI, e o incio do sculo XX, quando a Escola Militar
foi transferida para a localidade.
1.1. O Realengo do Campo Grande
1.1.1. Origem do termo
Na antiga diviso administrativa da cidade, as terras que formam o atual bairro de
Realengo, subrbio da Zona Oeste do municpio do Rio de Janeiro, faziam parte da
Freguesia4 de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande, formando, segundo Noronha
Santos (1965), um grande campo de 850 por 503 metros5. A questo da origem da
denominao da localidade j foi explorada por vrios autores, como Gerson (1954), o
prprio Noronha Santos (1965), Paz (1987), Fres (2004) e Wenceslau (2004), mas
convm situar essa discusso. Existem duas verses correntes: a primeira, atribuda
tradio popular, sustenta que o nome resultaria da abreviao da expresso Real Engenho
(Real Eng), gravada nas placas que indicavam os caminhos para a regio. Em uma
segunda verso, a palavra Realengo seria oriunda do termo latino reguengo, possuindo
como significado6: 1) real, rgio; 2) digno de rei; ou 3) sem dono, pblico; abandonado,
em desordem. H uma aparente contradio, que pode ser desfeita, em aplicar esses
sentidos opostos para a mesma palavra. As terras realengas eram, simultaneamente, reais
e sem dono, por pertencerem Coroa Portuguesa e constiturem uma categoria que
poderia ser apreendida como "de uso pblico". Essa segunda verso reforada pelo fato
4 Freguesia (Fridman, 2008) a designao portuguesa de parquia; constitua um territrio submetido
jurisdio espiritual de um cura, que durante os perodos colonial e imperial brasileiro tambm exercia a
administrao civil. 5 No original: "o grande campo do Realengo, (...), representa um paralelograma de 465 braas de comprido
sobre 275 de largo (...)". 6 Verbete Realengo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009. Disponvel em
. Acesso em 16 de abril de 2009.
24
de que, com o mesmo sentido, o termo pode ser encontrado em referncias a outras reas
localizadas em territrios de antigas colnias portuguesas ou espanholas7. Em qualquer dos
casos, os campos realengos constituam reas de serventia pblica, administrados pela
Cmara Municipal e reservados para descanso, depsito e pastagem do gado daqueles que
no possuam terras prprias (Noronha Santos, 1965).
1.1.2. Breve histria fundiria
Atravessando a cidade do Rio de Janeiro, a antiga estrada Real de Santa Cruz
ligava duas propriedades imperiais, a Quinta da Boa Vista e a Fazenda Real no Curato de
Santa Cruz. Noronha Santos (1934) relata que ao longo desse caminho existiam quatro
pontos de hospedagem para os viajantes: o primeiro, na localidade denominada Campinho,
prximo ao atual bairro de Madureira; o segundo, no Realengo do Campo Grande; o
terceiro, na Venda do Santssimo; o quarto na Fazenda do Mato da Pacincia. Essas
localidades adquiriram, ao longo dos sculos XIX e XX, as caractersticas urbanas que
apresentam nos dias atuais: Madureira assumiu uma feio predominantemente comercial,
enquanto Santssimo e Pacincia se transformaram em localidades tipicamente
residenciais. Por sua vez, Realengo atravessou um processo de urbanizao singular em
relao a esses e a outros bairros da cidade, transformando-se, a partir da segunda metade
do sculo XIX, de um povoado agrcola em uma localidade militar, residencial e industrial
(Fridman, 1999).
As terras da localidade foram doadas como sesmaria8, em 1805, a Ildefono de
Oliveira Caldeira, o Visconde de Gericin. Porm, poucos anos depois, foi constatado que
para obt-las, Caldeira havia ludibriado os oficiais da Corte responsveis pelas
demarcaes, alm de realizar negociaes no autorizadas com as terras9. Foi ento
expedido pela Coroa um alvar anulando a doao da sesmaria e concedendo-a Cmara
7 Esses sentidos podem ser reconhecidos, por exemplo, nos dois trechos seguintes: (...) a sua costa sul tem
uma grande enseada, que faz diversos ancoradouros, dos quais o principal e mais frequentado chamado
Porto Velho. O seu terreno todo realengo, aforado aos seus habitantes (Neves, 1830); (...) las palabras
real y realengo, aunque que definidas ordinariamente lo que pertenece ao Rey, tienen aplicacion diferente,
porque la segunda solo es propria de la jurisdicion, territorio patrimonio del Rey (Dicionrio Martimo
Espanhol, 1831). 8 Regime jurdico de doao de terras para cultivo, em vigor durante o Perodo Colonial. Desde o incio da
colonizao, a Coroa Portuguesa decidiu que todas as terras brasileiras pertenceriam ao rei, e, portanto,
poderiam ser objeto de concesses de sesmarias. Para uma discusso mais extensa do conceito, ver Fridman
(1999), ou Nozoe (2006). 9 Dois trabalhos sobremaneira completos, em relao aos conflitos que envolveram os apossamentos de terras
na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro durante os sculos XVIII e XIX, so encontrados em Fridman
(1999) e Pedroza (2008).
25
Municipal. Essa resoluo, datada de 27 de junho de 1814, foi transcrita nos Annaes do Rio
de Janeiro do ano de 1835:
Dom Joo por Graa de Deos Prncipe Regente de Portugal e Algarves,
&c. Fao saber aos que a presente Carta virem, que sendo-me presente
em consulta da Mesa do Pao a obrepo10
e subrepo11
com que nos
anos de 1805, obteve Ildefono de Oliveira Caldeira por sesmaria aos
terrenos denominados - realengos - na fazenda do Campo Grande do
termo desta Cidade, que estavam de subidos tempos reservados para a
pastagem de gado que desce de serra acima para os aougues dela;
reduzindo-se a ltima evidncia a torpeza e indignidade com que para
consegui-las foram manobradas as diligncias precisas perante os oficiais
da Cmara daquele ano, que iludidos pela sinistra informao do capito
do distrito Manoel Joaquim de Souza as julgaram devolutas,
manifestando-se por isso aquela simulada venda que dela fez logo o
sobredito Caldeira a D. Francisca de Castro, o impudente conluio com
que foram impetradas. Constatando-se outro sim o grave prejuzo que
sade destes povos pode vir da falta de hum pasto publico, onde
descansem os gados destinados para o seu sustento. Tendo ainda
considerao ao mais que com a informao do Juiz dos Feitos da Coroa
Real e Fazenda, se exps na referida consulta com cujo parecer me
Dignei conformar por minha imediata Resoluo de 6 de maio do
presente ano: hei por bem declarar nula e de nenhum efeito a sobredita
sesmaria, e sua confirmao; e sou outro sim servido conceder as terras
dessa nula sesmaria Cmara dessa Cidade como realengo, para
depsito, descanso e pastagem dos gados que se conduzirem para
abastecimento e sustentao dos moradores dela, ou sejam dos
contratadores e mercantes respectivos, onde quaisquer outros condutores,
fazendeiros e viandantes, sem delas se poder fazer algum outro uso, nem
10
Obrepo: ardil para conseguir aquilo que no fcil obter pelos meios ordinrios; astcia; manha; dolo;
logro, engano. Verbete Obrepo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009. Disponvel em
. Acesso em 16 de abril de 2009. 11
Subrepo: graa conseguida por meio de uma falsa exposio ou por meios ilcitos; fraude ou surpresa
feita a um superior; subtrao. Verbete Subbrepo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009.
Disponvel em . Acesso em 16 de abril de 2009.
26
em tempo algum se poderem aforar, arrendar, vender, ou por qualquer
maneira alienar debaixo da pena de nulidade, ficando os oficiais da
Cmara obrigados a fazer tambm medir e demarcar as ditas terras na
forma das Leis expedida para os tombos do Conselho, e a traz-las
limpas como convm. Pelo que mando aos Ministros, justias e mais
pessoas a quem tocar cumpram e faam cumprir esta Carta, que por
firmeza do referido mandei passar por mim assinada e selada de meu selo
pendente, assim com nela se contm. Pagou de novos direitos 540 ris;
que se carregaro ao tesoureiro deles a fl 92 do livro 3o de sua receita
como se v do conhecimento assinado a fl 35 do livro 8 dos registros
gerais. Dada no Rio de Janeiro, aos 27 de junho de 1814. O prncipe com
guarda. Joo Pedro Maynarde da Fonseca, a fez escrever. Monsenhor
Miranda, Francisco Antonio da Silveira.12
Aps retomadas, as terras foram cedidas pela Coroa Portuguesa Cmara
Municipal e reservadas para criao de gado13
, preservando-se, entretanto, as propriedades
de alguns antigos ocupantes, localizadas ao longo da antiga estrada Real de Santa Cruz. A
esses ltimos foi imposta, pelo Aviso da Secretaria de Estado dos Negcios da Marinha e
Domnios Ultramarinos de 18 de maro de 1821, a obrigao de cultivarem um pedao de
terra de seis braas de frente e dezoito de fundo, conservando-o limpo e com plantaes
nos terrenos que j tivessem sido tratados. Esse encargo deveria ser passado aos futuros
proprietrios, e em caso de desrespeito ao aviso, a pena consistiria na obrigao de lavrar
uma parte extra das terras, alm do pagamento de multa equivalente a 100 ris por braa,
que seria revertida para as obras do hospital militar da cidade.
Aps a Independncia, o Ato Adicional de 1834 reformou a antiga Constituio
do Imprio Portugus. Entre outras medidas, encontrava-se a desvinculao da Cidade do
Rio de Janeiro da provncia que at ento trazia o mesmo nome, tornando-a uma unidade
distinta denominada Municpio Neutro14
. Assim, a Cmara do Municpio Neutro se tornou
titular do patrimnio da cidade, que inclua as vastas extenses de terras no Realengo.
12
Balthazar da Silva Lisboa. Anais do Rio de Janeiro, Tomo V, 1835. Preservada a ortografia original. 13
Resoluo de 27 de junho de 1814, transcrita nos Anais do Rio de Janeiro, Tomo V, 1835, de Balthazar da
Silva Lisboa. 14
Sucessivamente denominado Distrito Federal (1891), aps a Proclamao da Repblica e a promulgao
da Constituio de 1891; Estado da Guanabara (1960), aps a transferncia da Capital Federal para Braslia;
e Municpio do Rio de Janeiro (1974), aps a fuso da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro.
27
Cabe assinalar que, alm dessas, tambm se incluam nesse patrimnio terras e imveis
localizados na sesmaria de Estcio de S, doada em 16 de julho de 1565, e na sesmaria dos
Sobejos (de "sobras") situada entre a sesmaria de Estcio de S e o mar - a faixa de
terrenos de marinha, desde a praia do Flamengo at a Sade, atualmente de propriedade da
Unio Federal. Ainda nos dias atuais, permanece registrado no Regulamento-Geral do
Cdigo de Administrao Financeira e Contabilidade Pblica do Municpio do Rio de
Janeiro15
que:
Artigo 213 - Constituem patrimnio do Municpio do Rio de Janeiro os
seus direitos, os seus bens mveis e imveis e a renda proveniente do
exerccio das atividades de sua competncia e da explorao dos seus
servios.
Pargrafo nico - O patrimnio imobilirio do Municpio constitudo,
entre outros, por bens imveis do antigo Estado da Guanabara, nos
termos do Artigo 13 da Lei Complementar n 20, de 1 de julho de 1974,
incluindo-se:
(...)
5. O domnio direto sobre os imveis aforados nas reas das Sesmarias
da Cidade do Rio de Janeiro, a saber:
(...)
c. Sesmaria chamada Realenga, doada Cidade do Rio de Janeiro por
Carta firmada por D. Joo VI em 27 de junho de 1814.
A partir da segunda metade do sculo XIX novas propriedades foram adquiridas
pela Unio nas reas vizinhas a Realengo, como as fazendas Sapopemba e Afonsos,
principalmente por interesse do antigo Ministrio da Guerra. As propriedades pblicas na
regio, que no incio do sculo XX atingiam 4,1 quilmetros quadrados (Fridman, 1998),
foram em grande parte, ao longo do tempo, transferidas para particulares, subdivididas ou
simplesmente ocupadas ilegalmente. Atualmente, as terras constituem os bairros de
15
Decreto n 3.321, de 18 de setembro de 1981. Aprova o regulamento-geral do cdigo de administrao
financeira e contabilidade pblica do municpio do Rio de Janeiro.
28
Realengo, Coronel Magalhes Bastos, Vila Militar de Deodoro, Jardim Novo, Marechal
Mallet, Campo dos Afonsos e Sulacap, fazendo parte da XXXIII Regio Administrativa do
municpio do Rio de Janeiro.
Figura 2 - Freguesias do Rio de Janeiro, no final do sculo XIX.
Territrio do Rio de Janeiro, segundo a antiga diviso administrativa. Fonte: ABREU,
Evoluo Urbana do Rio de Janeiro, 1987.
O desenvolvimento do bairro durante o sculo XX ser assunto dos captulos
seguintes. curioso destacar que, desde o ano 2002, passou-se a comemorar o aniversrio
de Realengo16
com uma programao festiva. Dados os eventos narrados, o ano de 1814
pode ser considerado um marco de sua histria, como referncia resoluo que anulou a
sesmaria de Ildefono Caldeira e preservou a dos demais ocupantes.
1.2. Os militares no Realengo do sculo XIX
Pelas razes vistas acima, o ano de 1814, data de referncia dos primeiros
registros de propriedades no Realengo, pode ser considerado um marco histrico na
criao do bairro. Nessa ocasio, suas terras estavam destinadas s atividades agro-
pastoris. Contudo, ao final do sculo XIX, grandes reas da regio j se encontravam
ocupadas por instalaes do Exrcito, que determinaram a configurao do bairro e
16
Lei Municipal n 3.483, de 20 de dezembro de 2002. Institui a Semana de Realengo na forma que
menciona. Criada a partir do Projeto de Lei n 2.138/2000, apresentado pelo vereador Rubens Andrade, do
Partido Socialista Brasileiro.
29
exerceram o papel de agente modelador do espao urbano. Esse processo de transformao
apresentado no texto em seguida, que busca reunir elementos que expliquem 1) as razes
da constituio das reas militares em Realengo, e 2) qual a influncia dessas reas no
desenvolvimento e na configurao da localidade e suas adjacncias.
1.2.1. A Escola Geral de Tiro do Campo Grande (1857 - 1890)
Anulada a sesmaria dos terrenos realengos, grande parte das terras da regio
voltou a ser propriedade do poder pblico - da Cmara da Provncia do Rio de Janeiro, at
1834, e da Cmara do Municpio Neutro, aps essa data. Em 1852, os campos de Realengo
foram utilizados para realizao de testes com foguetes fabricados no Laboratrio
Pirotcnico do Campinho17
, uma dependncia do Arsenal de Guerra da Corte que, durante
a segunda metade do sculo XIX, produzia explosivos e munies para uso das tropas do
Exrcito. Devido ao sucesso das experincias, foi logo em seguida nomeada uma comisso
para escolher na regio um local prprio para instalao de uma linha de tiro, que servisse
de modo regular queles exerccios. Definida a zona adequada, foi firmado um acordo, em
1857, no qual a Cmara Municipal cedeu parte das terras ao Ministrio da Guerra, que
manifestava o interesse de estabelecer tambm uma escola militar na localidade. Os
amplos espaos disponveis, prprios para a realizao de exerccios de tiro, e a ento
recente chegada da estrada de ferro D. Pedro II foram alguns dos fatores considerados para
escolha do local. Ainda no ano de 1857 iniciaram-se obras para abertura de um campo de
tiro e adaptaes para que um edifcio servisse como quartel para a recm criada Escola
Geral de Tiro do Campo Grande18
.
Procurou-se por muito tempo achar, nas immediaes da crte, alguma
localidade com espao, que oferecesse desenvolvimento longitudinal
suficiente para os grandes alcances; e os que ero examinados no
offerecio as condies necessarias, nem quanto sua extenso, nem
quanto sua posio do ponto de vista da distancia, e facilidade de
comunicao: hoje, a abertura ao transito publico da estrada de ferro de
D. Pedro II, resolveu a difficuldade, e decidio a escolha do indicado
17
Anurio da Escola Militar, 1914, p. 21. 18
Relatrio do Ministro da Guerra Jeronymo Francisco Coelho, 1857, p. 43.
30
lugar, estabelecendo-se a Escola de Tiro no campo denominado -
Realengo - foreiro [I]ma
cmara municipal da corte, com quem o
governo entrou em prvio acordo.19
A criao da Escola de Tiro do Campo Grande coincide com a fase de ampliao
e profissionalizao (Castro, 1995) em que o ensino militar ingressou na dcada de 1850.
Entre essas mudanas relaciona-se a criao, em 1851, dos cursos de cavalaria e infantaria
no Rio Grande do Sul, alm de cursos preparatrios20
para os candidatos ao ingresso na
Escola Militar, estabelecimento de formao de oficiais do Exrcito Brasileiro que
funcionava, desde 1810, no Largo Real da S Nova (atualmente, Largo de So Francisco
de Paula). Nesse contexto, a Escola de Tiro se inseria no movimento de valorizao dos
contedos profissionais do ensino militar21
, e sua instalao em Realengo tornou-a a
primeira organizao militar a ocupar a atual Zona Oeste22
da cidade do Rio de Janeiro,
precedendo o deslocamento de grandes efetivos do Exrcito e a constituio de uma rea
militar na regio.
A escola funcionou provisoriamente durante dois anos, at ter sua criao
aprovada23
e regulamentada24
. Sua funo idealizada era proporcionar aos oficiais a
oportunidade de adquirir conhecimentos tericos e prticos para dirigir os soldados nos
exerccios de tiro25
, de modo a generalizar e padronizar entre as tropas do Exrcito os
19
Idem. 20
A Escola de Aplicao do Exrcito foi criada para atender a previso feita no Decreto n 634, de 20 de
setembro de 1851, e regulamentada pelo Decreto n 1.536, de 23 de janeiro de 1855. 21
A descrio mais completa das transformaes que a Escola Militar atravessou durante os sculos XIX e
XX , provavelmente, a obra de Jehovah Motta (1976), na qual tambm se encontra ampla discusso sobre a
questo da valorizao dos contedos profissionais do ensino militar. No que se refere ao presente trabalho,
as referncias a esses assuntos esto circunscritas ao mximo s suas ligaes com os estabelecimentos de
ensino instalados em Realengo. 22
Nessa oportunidade, a atual Zona Oeste correspondia aos domnios das chamadas freguesias rurais
(Guaratiba, Jacarepagu, Santa Cruz e Campo Grande). Em 1918, no governo do prefeito Amaro Cavalcanti,
foi criada uma zona rural no territrio composto anteriormente pelas freguesias rurais. Lucena (2009) afirma
que essa proposta correspondia a um projeto poltico de constituio de um cinturo agrcola, para promover
no Distrito Federal um mercado prprio, onde a abundncia e facilidade de transporte proporcionasse a
reduo de preos dos alimentos. 23
Lei n 1.114, de 27 de setembro de 1860. Fixa a despesa e ora a receita para o exerccio de 1861/1862.
Ficou aprovada, conforme o Artigo 6, a criao da Escola de Tiro estabelecida no Campo Grande, e
autorizado o Ministro e Secretrio de Estados dos Negcios da Guerra a despender a quantia de 302:787$700
com sua instalao. 24
Decreto n 2.422, de 18 de maio de 1859. Aprova o regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo
Grande. 25
Decreto n 2.422, de 18 de maio de 1859. Aprova o regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo
Grande. Pargrafo 4, artigo 7.
31
procedimentos de manuseio dos armamentos. Segundo o regulamento da poca26
, cada
uma das unidades militares do pas deveria enviar para a Escola de Tiro um oficial
subalterno, oficiais inferiores e cadetes, a fim de serem instrudos durante um ano e
regressarem aps esse perodo aos respectivos quartis, para difundir os conhecimentos
recebidos27
.
No lugar denominado o Campo Grande, a cinco leguas e meia de
distancia, nos arrabaldes dessa crte, tem o governo resolvido a
construco de diferentes obras para ali se estabelecer uma Escola de
Tiro, especialmente destinada para o manejo e exercicios das bocas de
fogo de toda a especie; e bem assim para a pratica do tiro das armas
especiaes modernas. Nella tero de praticar officiaes e praas do exercito,
e os alumnos da escola militar e de applicao. No dito campo j est
aberta a nova linha de tiro, de extenso excedente a mil braas, e trata-se
agora de limpa-la, aplaina-la e aperfeioa-la. Para quartis da
officialidade e mais praas, comprou ali o governo um predio novo,
espaoso e solidamente construdo, pela quantia de 17:000$000. Tero
ainda de fazer-se varias outras obras indispensaveis aos differentes
misteres do servio desta Escola de Tiro.28
Grande parte dos efetivos militares brasileiros, tanto durante o Perodo Colonial
quanto no Imprio e na Repblica, estava concentrada no Rio de Janeiro, fato que pode ser
associado s primeiras necessidades de defesa do litoral e ao destaque da cidade no cenrio
geopoltico nacional at a inaugurao de Braslia, em 1961. Os aquartelamentos, at a
segunda metade do sculo XIX, encontravam-se distribudos entre a regio do Centro e as
fortificaes construdas na entrada da baa de Guanabara, no atual bairro da Urca. Como
exceo, aparece o antigo forte de Nossa Senhora da Conceio do Campinho, localizado
no desfiladeiro do Iraj, nos limites das Freguesias de Nossa Senhora da Apresentao do
Iraj e de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepagu29
. Nesse local, no incio da dcada de
1850, foi instalado o Laboratrio Pirotcnico do Campinho, que, embora no se
26
Relatrio do Ministro da Guerra Jeronymo Francisco Coelho, 1857, p. 43. 27
Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1860, p. 8. 28
Relatrio do Ministro da Guerra Jernimo Francisco Coelho, 1857, p. 43. 29
Atualmente, correspondendo s Regies Administrativas de Jacarepgua e Iraj.
32
constitusse propriamente em um quartel, encontrava-se sob administrao do Ministrio
da Guerra. Assim, a criao da Escola de Tiro e o consequente deslocamento de tropas
para o Realengo exigiram uma srie de investimentos, no apenas para a execuo de obras
de interesse direto da instruo militar, como a construo de quartis, paiis, fortificaes
e linhas de tiro, mas tambm para a implantao de uma infraestrutura urbana que
atendesse a populao deslocada para a localidade. A realizao dessas obras, que
incluram medies de terrenos, abertura e calamentos de ruas, canalizao de gua
potvel, drenagem de guas pluviais e iluminao, foi incrementada a partir do final da
dcada de 186030
.
Quanto a esse ponto, importante lembrar que, at meados do sculo XIX, a
inexistncia de grandes estruturas urbanas na periferia da cidade do Rio de Janeiro no
estava circunscrita ao Realengo. A cidade dessa poca ainda era modesta, fato atribudo
por Abreu (1997), em grande parte, inexistncia de transportes coletivos. Apenas em
1858 foi inaugurada a primeira ferrovia31
, e, em 1868, a primeira linha de bondes32
,
inicialmente trao animal e depois movidos eletricidade. A chegada desses meios de
transporte tornou possvel a expanso da cidade, julgada necessria j no final do sculo,
quando a regio do Centro e seu entorno imediato foram considerados saturados33
.
Tornou-se ento necessria a ocupao de outras reas, entre as quais os campos
do Realengo, que, assim como os de outras freguesias rurais, eram encarados como uma
reserva para a expanso da cidade. Em 1862, poucos anos aps a criao da Escola de
Tiro, j era registrada uma representao dirigida comisso de assemblias provinciais da
Cmara Municipal, na qual moradores do Realengo requeriam a criao de uma nova
freguesia, por meio da separao de suas terras das freguesias de Iraj e Campo Grande34
.
30
Apenas aps a implantao da Escola de Tiro que passam a ser observadas destinaes de verbas para
obras pblicas no Realengo, encontrando-se as mais antigas referncias localidade entre as seguintes:
- Decreto n 4.308, de 30 de dezembro de 1868. Ora a receita e fixa a despesa da Cmara Municipal da
Corte para o ano de 1869.
- Decreto n 4.661-A, de 31 de dezembro de 1870. Ora a receita e fixa a despesa da Cmara Municipal
da Corte para o ano de 1871. 31
Em 29 de maro de 1858 foi inaugurada a primeira ferrovia partindo da cidade, a Estrada de Ferro de D.
Pedro II, denominada, aps 22 de novembro de 1889, de Central do Brasil. Na mesma ocasio, foram
inauguradas as estaes da Central (ento Pedro II), Engenho Novo (ento Venda Grande) e Cascadura.
(Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de julho de 2009). 32
A inaugurao da primeira linha de ferro-carris da Botanical Garden ocorreu em 9 de outubro de 1868,
realizando o trajeto entre o ponto inicial na esquina da rua Gonalves Dias com a rua do Ouvidor e o Largo
do Machado. (Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de
julho de 2009). 33
Conforme a Nota Tcnica n 5: Rio Estudos n 95, p. 14. Maro 2003. Disponvel em
. Acesso em 12 de agosto de 2009. 34
Anais do Parlamento, sesso de 13 de maio de 1862.
33
A solicitao foi recusada, j que moradores da freguesia de Iraj protestaram contra o
desmembramento do territrio35
; mas isso tambm pode indicar que a regio no reunia
ainda um nmero expressivo de habitantes.
Essa disponibilidade de espao na regio do Realengo mostrava-se adequada aos
objetivos do funcionamento da Escola de Tiro. Somando essa condio ao fato de que
grande parte dos terrenos da regio j constituam propriedades pblicas - minimizando
eventuais custos para adquiri-los - foram iniciadas obras para construo das instalaes
que possibilitassem a realizao das atividades previstas em seu regulamento. Em 1864 foi
concluda a construo da linha de tiro36
e das obras de drenagem para desvio das guas
pluviais que pudessem prejudicar a sua conservao. Tambm foi contratada a abertura de
uma espaosa praa contgua escola, com a finalidade de servir para a prtica de
exerccios militares37
. No mesmo ano essa praa foi construda, com a dimenso de 2.500
braas quadradas, e passou a ser utilizada para a execuo de manobras e exerccios pelos
alunos da Escola Tiro, da Escola Militar e do 7 Batalho da Guarda Nacional38
, que ento
ocupava uma das dependncias do aquartelamento. Como as caractersticas do local foram
consideradas favorveis para o desenvolvimento dos exerccios, a praa foi ampliada para
5.000 braas quadradas, e canalizado o riacho que a atravessava ao meio39
.
O impulso inicial das obras e das atividades de instruo na Escola de Tiro
precisou ser interrompido em 1865, devido ao incio do conflito entre o Brasil e o
Paraguai. No final de 1864, foi recebida uma ordem do governo40
para fechamento dos
estabelecimentos militares de ensino no pas, entre os quais a Escola Militar, a Escola
Preparatria e a prpria Escola de Tiro, pois os alunos desses estabelecimentos, com
exceo dos menores de idade, deveriam retornar aos seus quartis a fim de participar do
esforo de guerra. Embora essa deciso tenha chegado a ser executada, uma nova ordem41
determinou que fossem reabertas as aulas da Escola Preparatria, que permaneceu em
atividade durante o ano de 1865. Entretanto, na Escola de Tiro, assim como na Escola
35
Anais do Parlamento, sesso de 3 de setembro de 1862. 36
Aviso do Ministrio da Guerra de 28 de julho de 1863, expedido pela 3 Diretoria. 37
Relatrio do Ministro da Guerra Jos Mariano de Mattos, 1863-2, p. S3-12. 38
Decreto n 4.261, de 15 de outubro de 1868. Divide em dois o 7 Batalho de Infantaria da Guarda
Nacional do Municpio da Corte. O primeiro, com a designao de 7 e o nmero de seis companhias, tinha
por distrito as freguesias de Iraj, Jacarepagu, e Campo Grande at o Realengo; e o segundo, com igual
nmero de companhias e a designao de 8, seria formado nas freguesias de Campo Grande, Santa Cruz e
Guaratiba. 39
Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1864, p. S5-9. 40
Aviso da repartio do Ajudante-General, ofcio de 22 de dezembro de 1864. 41
Aviso da 1 Diretoria Geral do Ministrio da Guerra, 9 de janeiro de 1865.
34
Militar, as atividades foram efetivamente suspensas pelo perodo de cinco anos. No
Realengo permaneceram apenas dois alferes e um destacamento de 20 praas do Batalho
de Engenheiros, comandados por um segundo tenente42
, para realizao de trabalhos de
manuteno da rea. Nos anos seguintes, nenhuma nova obra foi iniciada, sendo realizados
somente pequenos reparos para conservao da escola, reconstrues de madeiramento e
vigamentos arruinados, e o escoramento de edifcios que ameaavam desabar43
.
Fugiria aos objetivos deste trabalho abordar com maior preciso os cinco anos do
conflito com o Paraguai ou suas repercusses mais amplas no cenrio poltico, social e
econmico nacional. Mesmo em relao s suas consequncias para as reformulaes do
Exrcito, suficiente observar que, ao trmino da guerra, surgiu entre os militares a
expectativa de que a instituio atravessaria uma fase de desenvolvimento, que envolveria
a sua modernizao em diversos sentidos: na administrao, nos equipamentos e
armamentos utilizados, no processo de recrutamento e no ensino militar. Os parmetros
dessas mudanas seriam a experincia prpria da campanha contra os paraguaios e a
observao das prticas adotadas pelos exrcitos dos pases europeus, particularmente dos
envolvidos no conflito franco-alemo de 1870. Assim, na fase ps-guerra foi adotado um
programa de modernizao assentado em trs pontos: o desenvolvimento da instruo
militar, a reforma das normas de recrutamento e a modernizao do armamento44
. Quanto a
esse ltimo, as providncias adotadas envolviam estudos para aquisio de novas armas,
atribuio desempenhada pela Comisso de Melhoramentos de Material do Exrcito,
entidade existente desde 1849 e que obtinha relevncia no contexto das reformas da dcada
de 1870. Tendo como atribuio examinar os melhoramentos tecnolgicos realizados pelos
pases considerados mais adiantados em relao aos materiais blicos e propor a aquisio
daqueles que conviesse adotar, a comisso passou a utilizar com frequncia a linha de tiro
do Realengo, realizando testes com os armamentos que equipariam o Exrcito nas dcadas
seguintes: as carabinas belgas Comblain, para a infantaria, as baterias de artilharia de
origem alem Krupp e as espingardas francesas Chassepots. Tambm foram realizadas
experincias de desenvolvimento de materiais de fabricao nacional, como o foguete
Martins, de inveno do alferes da guarda nacional Carlos Augusto Rodrigues Martins45
.
42
Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1864, p. S2-4. 43
Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1870, p. 29. 44
Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1873, p. 3. 45
Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1872, p. 5.
35
A substituio dos antigos armamentos pelos mais modernos, adquiridos na
Europa, exigia a formao de militares habilitados, tanto para o manuseio quanto para o
ensino do manejo das novas armas, o que determinou a reabertura da Escola de Tiro.
Porm, o recomeo das atividades de instruo no Realengo exigia a recuperao das
instalaes, inativas j por sete anos. Dependentes de verbas, apenas em 1872 as obras
foram retomadas, coordenadas pela Diretoria Geral de Obras Militares da Corte46
.
Tambm seriam promovidas alteraes nas instituies de ensino militar, e, para
adaptar a Escola de Tiro ao contexto dessas mudanas, foi proposto um novo projeto de
regulamento47
, prevendo a reorganizao do seu funcionamento e de sua subordinao
administrativa, desligando-a da Escola Militar e passando a consider-la uma dependncia
do Comando Geral da Artilharia48
. Esse, talvez, tenha sido um artifcio para destacar o
carter prtico e profissionalizante da escola, aproximando-a mais dos corpos de tropa do
que dos estabelecimentos de ensino. O novo regulamento, mais completo e detalhado do
que o anterior, tambm deixava bem definidas as funes dos diversos empregados da
administrao e instrutores, limitava o tempo de ensino e criava conselhos de disciplina, de
instruo e de economia.
Alm da reorganizao administrativa, foi percebida a necessidade de realizao
de obras para atender s novas atribuies da escola. Apesar dos investimentos realizados
at ento, os alojamentos eram precrios para a acomodao dos alunos, empregados e
praas dos destacamentos, e a linha de tiro insuficiente para as experincias com as armas
mais modernas, especialmente as de artilharia, que j atingiam distncias considerveis.
Para possibilitar a expanso das reas da escola, foram realizados levantamentos e
avaliaes para a aquisio de novos terrenos na regio49
.
O novo regulamento da Escola de Tiro entrou em vigor em 187350
, sendo mais
abrangente do que o anterior em diversos aspectos, inclusive em relao determinao
sobre quais militares deveriam frequent-la para receber suas instrues. Agora, o curso da
escola, de um ano de durao, deveria ser realizado por oficiais, inferiores e cadetes das
trs armas, alm das praas dos destacamentos sediados no prprio estabelecimento. A
46
Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1871-2, p. A-L-SN. 47
Relatrio do Ministro da Guerra Jos Maria da Silva Paranhos, 1871-1, p. 38. 48
Decreto n 5.122, de 24 de outubro de 1872. Tambm so encontradas referncias a esse assunto no
relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1871-2, p. A-J-2. 49
Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1872, p. 18 e seguintes. 50
Decreto n 5.276, de maio de 1873. Aprova o novo regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo
Grande.
36
escola deveria, ainda, completar e aperfeioar a instruo dos alunos que conclussem o
curso de qualquer uma das trs armas do Exrcito (na poca, infantaria, cavalaria e
artilharia) nas duas escolas militares do Imprio, habilitando-os na teoria e na prtica do
tiro com armamento. Com a proposta de obter uma maior regularidade no ensino e torn-lo
mais especializado, os alunos passariam a ser divididos em duas turmas, uma de artilharia e
outra de infantaria e cavalaria, que estudariam os armamentos correspondentes. No
currculo da primeira, constava o manejo dos canhes raiados La Hitte de calibres 4 e 12
de campanha, calibre 4 de montanha e do canho Whitworth, calibre 12. Para a segunda,
seriam ensinados as nomenclaturas, o manejo e o uso das armas leves Comblain, Spencer,
Chassepot e Winchester e das pistolas a Mini.
Os testes e exerccios com armamentos se tornaram constantes no Realengo, e em
pouco tempo, a extenso da linha de tiro, principal rea de instruo, tornou-se insuficiente
para o alcance atingido pelos novos armamentos. Para superar esse problema, sua extenso
foi ampliada, e sua estrutura acrescida de instalaes prprias para as experincias e
exerccios de tiro: foram construdas duas casas blindadas, um miradouro, um blockhauss e
espaldes51
. Os edifcios da escola tambm passaram por melhoramentos: no flanco direito
foi construdo um novo alojamento para os alunos, e para as praas do destacamento foi
destinado o flanco esquerdo. Foram construdas, ainda, uma enfermaria e uma farmcia,
que atendiam, alm dos alunos, as praas dos destacamentos, os oficiais da escola e as
pessoas de suas famlias, uma vez que no existia nenhum outro servio de sade na
regio52
.
Em relao ao desenvolvimento da localidade, assinala-se que no incio da dcada
de 1870 a Cmara Municipal dividiu os terrenos que ainda lhe pertenciam em ruas, praas
e lotes, canalizando gua e melhorando as condies de urbanizao (Fridman, 1998).
Atendendo uma representao de moradores do bairro, dirigida ao Ministrio do Imprio,
foi criada tambm a primeira escola pblica da regio, destinada instruo primria de
meninos53
.
51
Posies fortificadas, construdas junto s reas de exerccios de tiro ou com explosivos, para proporcionar
segurana aos atiradores ou observadores. 52
Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1873, p. 43. 53
Decreto n 4.782, de 30 de agosto de 1871. Cria mais uma cadeira pblica de instruo primria para o
sexo masculino nas Freguesias de Campo Grande e de Jacarepagu.
37
Quanto ao ensino nas demais escolas militares, o regulamento s foi efetivamente
modificado em 187454
. Em linhas gerais, constaram dessa reforma a transferncia da
administrao da Escola Central para o Ministrio do Imprio, desligando-a do ensino
militar; o deslocamento da Escola Militar do Largo de So Francisco para a fortaleza da
Praia Vermelha, concentrando ali as matrias tericas e prticas voltadas para a formao
dos quadros de oficiais, com o funcionamento anexo do curso da Escola Preparatria; e a
instruo militar bsica passou a ser ministrada nos Depsitos de Instruo e Escolas
Regimentais, destinados instruo das praas.
Em 1874, o exrcito contava com um efetivo de 14.581 praas e 1.474 oficiais. A
diversidade dos modelos de armamento adotados por esse contingente pode ser observada
na descrio dos armamentos empregados nas instrues da Escola de Tiro: as turmas de
infantaria e cavalaria realizavam exerccios com as clavinas Winchester e Spencer,
espingardas a Comblain e a Mini, e com pistolas. As turmas de artilharia, com canhes
dos sistemas la Hitte, calibre 4 de montanha, calibres 4 e 12 de campanha, Krupp de 0.08,
Whitworth de calibre 32 e com o morteiro de 0,22, alm de foguetes de cauda central.
Assistiam, ainda, s experincias e estudos feitos pela Comisso de Melhoramentos de
Material com os canhes do sistema Whitworth de 4 polegadas de carregamento pela boca
e pela culatra, com metralhadoras, com espoletas, e sobre as caractersticas dos diferentes
tipos de plvora, alm de receber instruo relativa s armas portteis. Na regio tambm
passaram a ser realizados exerccios militares por outros contingentes de tropas, que se
exercitavam no tiro ao alvo com os canhes Krupp, Whitworth e Hotchkiss, com morteiros
de 22 cm e com canhes raiados de sistema francs55
.
A importncia conferida execuo das obras no Realengo e, consequentemente,
instruo prtica de tiro e consolidao da regio como uma rea militar pode ser
avaliada pelas despesas realizadas. O custo das obras realizadas na localidade, entre 1875 e
1876, elevavam-se a 610:428$423. Comparativamente, os gastos somados em todas as
demais provncias para conserto de quartis, fortalezas e outros edifcios, durante o mesmo
perodo, atingiram 591:317$89256
. O custo para implantao de todas essas mudanas era
elevado, e a crescente inflao das dcadas de 1870/80, impulsionada pelos gastos dos seis
anos de guerra, havia aumentado vertiginosamente a dvida externa brasileira (Silva Neto,
2004), obrigando o governo a adotar providncias para reduo de despesas. Entre essas
54
Decreto n 5.529, de 17 de janeiro de 1874. Aprova o regulamento para as escolas do Exrcito. 55
Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1876, p. 28. 56
Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1876, 1876-1, p. 38.
38
medidas, decidiu-se pela dissoluo da Comisso de Melhoramentos do Material do
Exrcito57
, cujas atribuies passariam a ser desempenhadas por comisses de oficiais das
armas cientficas (engenharia e artilharia) com conhecimentos adequados, que seriam
convocados quando houvesse a necessidade de proceder estudos sobre novas invenes ou
aperfeioamentos no material blico. Estas comisses seriam transitrias, e delas deveriam
participar profissionais como os diretores da Fbrica de Plvora da Estrela, do Laboratrio
do Campinho e do Arsenal de Guerra da Corte. Com essa medida, o que se pretendia era
possibilitar a continuidade dos trabalhos de avaliao dos novos materiais sem acarretar
aumentos de despesa, pois esses encargos seriam exercidos independentemente do
pagamento de abonos ou outras vantagens aos oficiais.
Em 1878 foi inaugurada a estao de Realengo, aumentando a facilidade de
acesso pela linha frrea58
. As condies de espao disponveis na localidade, somadas
estrutura j estabelecida na Escola de Tiro, faziam com que as reas do Realengo fossem
consideradas cada vez mais adequadas para a realizao de manobras militares. Para
atender s necessidades de receber e alojar os militares que participavam desses exerccios,
foi autorizada a execuo de uma nova srie de obras, entre as quais a construo de um
depsito de gua, um armazm para plvora e o aumento do edifcio que acomodava a
farmcia, sendo tambm realizadas obras no prprio nacional destinado residncia do
comandante e reformados os alojamentos para os oficiais59
. Em 188160
, foi construdo um
novo quartel, com acomodaes para 80 alunos, reconstrudos o muro e o gradil da linha
de tiro, e reformadas as cavalarias. Tambm foi autorizada a criao de uma pequena
biblioteca para uso dos instrutores e dos alunos, sendo providenciada a aquisio de livros.
Apesar de todos esses melhoramentos, o Ministrio da Guerra julgava insuficiente
o desenvolvimento da Escola de Tiro em relao s suas possibilidades de apoio
formao dos oficiais do Exrcito, passando a considerar a necessidade de realizar uma
nova reforma do seu regulamento. Pela nova proposta, a escola teria como funo
complementar o ensino da Escola Militar da Corte, ao qual se atribua deficincia nos
aspectos prticos, inclusive no estudo do tiro das diferentes armas em uso.
57
Relatrio do Ministro da Guerra Manuel Luis Osrio, 1877, p. 15. 58
Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de julho de
2009. 59
Observe-se a importncia conferida ao espao como mecanismo disciplinar (Conforme Foucault, 1985),
bem como a associao entre disciplina e higiene. 60
Aviso de 3 de agosto de 1881. Relatrio do Ministro da Guerra Franklin Amrico de Menezes Dria, 1881,
p. 22.
39
O principal aspecto dessa proposta de reforma era introduzir a obrigatoriedade de
que os alunos da Escola Militar, ao conclurem o curso das armas de infantaria, cavalaria
ou artilharia, permanecessem por algum tempo no Realengo, a fim de estudar e praticar o
uso dos diversos armamentos. Para isso, o regulamento deveria tornar obrigatria a
frequncia Escola de Tiro, de modo que