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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL - CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS Prof. Dr. CELSO CORRÊA PINTO DE CASTRO CLAUDIUS GOMES DE ARAGÃO VIANA HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO DA ESCOLA MILITAR DO REALENGO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais. Rio de Janeiro, março de 2010

Prof. Dr. CELSO CORRÊA PINTO DE CASTRO CLAUDIUS GOMES DE ...livros01.livrosgratis.com.br/cp145206.pdf · Aos professores Angela de Castro Gomes e Fernando da Silva Rodrigues, pelas

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FUNDAO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE

HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

Prof. Dr. CELSO CORRA PINTO DE CASTRO

CLAUDIUS GOMES DE ARAGO VIANA

HISTRIA, MEMRIA E PATRIMNIO DA ESCOLA MILITAR DO REALENGO

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentao de

Histria Contempornea do Brasil - CPDOC como requisito parcial para a obteno do

grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.

Rio de Janeiro, maro de 2010

Livros Grtis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grtis para download.

2

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Viana, Claudius Gomes de Arago

Histria, memria e patrimnio da Escola Militar do Realengo / Claudius Gomes de

Arago Viana. - 2010.

176 f.

Dissertao (mestrado) - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria

Contempornea do Brasil, Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens

Culturais.

Orientador: Celso Correa Pinto de Castro.

Inclui bibliografia.

1. Escola Militar do Realengo. 2. Espao urbano - Realengo (Rio de Janeiro, RJ). I.

Castro, Celso, 1963-. II. Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea

do Brasil. Programa de Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais. III. Ttulo.

CDD - 355.2098153

3

FUNDAO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE

HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

HISTRIA, MEMRIA E PATRIMNIO DA ESCOLA MILITAR DO REALENGO

Trabalho de concluso de curso apresentado por

CLAUDIUS GOMES DE ARAGO VIANA

E aprovado em 16 de maro de 2010

pela banca examinadora:

Professor orientador:

Prof. Dr. CELSO CORRA PINTO DE CASTRO - CPDOC/FGV.

Professor externo do programa:

Prof. Dr. FERNANDO DA SILVA RODRIGUES - Arquivo Histrico do Exrcito.

Professor interno do programa:

Profa. Dra. NGELA MARIA DE CASTRO GOMES - CPDOC/FGV.

Suplente:

Profa. Dra. LETCIA BORGES NEDEL - CPDOC/FGV.

Rio de Janeiro, maro de 2010

4

Para Yukimi,

com amor.

5

AGRADECIMENTOS

A realizao deste trabalho s foi possvel devido contribuio e ao apoio de

diversas pessoas. Nesse momento final, o risco de omitir referncias a alguma delas no

supera a necessidade de agradecer a outras tantas.

especialmente importante agradecer Fundao Getulio Vargas, instituio de

excelncia, pelas condies que permitiram meu ingresso e permanncia no Programa de

Ps-Graduao em Histria, Poltica e Bens Culturais. Registro a motivao transmitida

pelos professores Maria Celina D'Araujo, Vitor Fonseca, Fernando Lattman-Weltman,

Dulce Chaves Pandolfi e Helena Bomeny, a cada um dos quais agradeo tambm pelos

ensinamentos recebidos.

Agradeo a todos os colegas de turma pelas sugestes, contribuies e idias

apresentadas, tanto em sala de aula quanto durante as discusses que tivemos oportunidade

de travar, e pela amizade que certamente se estender alm dessa fase de nossas vidas.

Devo agradecimentos especiais jovem revisora Jeovana Costa, responsvel pelo

que houver de correto no uso da linguagem neste trabalho, e ao meu irmo Anderson

Viana, tanto pelas belas fotografias quanto pela disponibilidade constante em me

acompanhar nas "excurses" de campo em Realengo.

Aos professores Angela de Castro Gomes e Fernando da Silva Rodrigues, pelas

valiosas contribuies apresentadas na banca de qualificao, meus sinceros

agradecimentos, estendidos ao professor Matias Spektor pela incansvel boa vontade e

pelas sugestes apresentadas, e professora Letcia Nedel, pela disponibilidade ao aceitar

o convite para compor a banca examinadora.

Esta pesquisa no existiria - literalmente - se faltasse a confiana que me foi

concedida desde os primeiros momentos pelo professor Celso Castro, que ultrapassando

em muito as obrigaes de uma boa orientao, forneceu-me amplas amostras do

profissionalismo, da inteligncia e da generosidade que constituem suas marcas pessoais; e

nem sem os incentivos constantemente recebidos, com todo entusiasmo e paixo, do meu

irmo Luiz Claudio, credor do meu mais intenso respeito.

Finalmente, estendo os mais profundos agradecimentos a todos aqueles que

comemoram comigo a concluso deste trabalho.

6

Ultrapassado o "momento atual", todas as

suas incgnitas e indeterminaes aparecem

aos olhos do observador como relativamente

ingnuas ou falsas. Iluses aparentemente

desfeitas pela ao eficaz de leis

rigorosamente estruturais, cegas e

independentes da vontade. No limite, os

conflitos passados parecem ter sido mera

encenao ideolgica. O que um engano,

porque toda conjuntura passada tambm teve

seus conflitos, expectativas e projetos coletivos

- uns vitoriosos, outros derrotados - que

explicam o caminho tomado pela histria.

(Jos Lus Fiori - O vo da coruja).

7

SUMRIO

DEDICATRIA ........................................................................................................... 04

AGRADECIMENTOS ................................................................................................. 05

SUMRIO .................................................................................................................... 07

LISTAS ......................................................................................................................... 09

1. Figuras ...................................................................................................................... 09

2. Tabelas ...................................................................................................................... 11

RESUMO ...................................................................................................................... 12

ABSTRACT ................................................................................................................... 13

INTRODUO ............................................................................................................ 14

I. TERRAS REALENGAS ........................................................................................... 23

1.1. O Realengo do Campo Grande .............................................................................. 23

1.1.1. Origem do termo ................................................................................................. 23

1.1.2. Breve histria fundiria ...................................................................................... 24

1.2. Os militares no Realengo do sculo XIX .............................................................. 28

1.2.1. A Escola Geral de Tiro do Campo Grande (1857 - 1890) .................................. 29

1.2.2. A Escola Prtica do Exrcito na Capital Federal (1891 - 1897) ......................... 45

1.2.3. A Escola Preparatria e de Ttica do Realengo (1898 - 1905) ........................... 49

1.2.4. A Fbrica de Cartuchos do Realengo ................................................................. 50

1.2.5. A Escola de Sargentos (1893 - 1896) ................................................................. 57

1.3. Algumas consideraes sobre o captulo ............................................................... 59

II. A ESCOLA MILITAR DO REALENGO ............................................................... 64

2.1. Da Casa do Trem Escola Militar do Brazil ........................................................ 64

2.1.1. Sedes das escolas militares nos sculos XVIII e XIX ........................................ 64

2.1.2. O ensino militar no incio do sculo XX ............................................................ 67

8

2.2. A Escola Militar, em Realengo .............................................................................. 72

2.2.1. Preldio: o perodo de 1905 a 1911 .................................................................... 73

2.2.2. A dcada de 1910 ................................................................................................ 80

2.2.3. As reformas das dcadas de 1920 e 1930 ........................................................... 84

2.2.4. O longo adeus ..................................................................................................... 93

2.3. Outras reas militares ............................................................................................ 96

2.3.1. A Fbrica de Cartuchos ...................................................................................... 96

2.3.2. A Vila Militar de Deodoro .................................................................................. 104

2.3.3. O Campo dos Afonsos ........................................................................................ 111

III. PATRIMNIO E MEMRIA DA ESCOLA MILITAR ...................................... 120

3.1. Primeiras consideraes ......................................................................................... 120

3.2. Depois da escola .................................................................................................... 123

3.3. As reas militares no Realengo .............................................................................. 127

3.4. reas militares e urbanizao ................................................................................ 137

3.5. Lugar de memria, lugar de histria ..................................................................... 145

CONCLUSO .............................................................................................................. 162

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 167

1. Fontes primrias ........................................................................................................ 167

2. Livros e artigos ......................................................................................................... 167

3. Filmes ....................................................................................................................... 174

4. Pginas da internet ................................................................................................... 175

9

LISTAS

1. Figuras

Figura 1 - rea geogrfica de interesse da pesquisa ..................................................... 21

Figura 2 - Freguesias do Rio de Janeiro, no final do sculo XIX ................................. 28

Figura 3 - O Bartolomeu de Gusmo, de Augusto Severo ........................................... 47

Figura 4 - Vista da fbrica de plvora, prxima lagoa Rodrigo de Freitas ................ 52

Figura 5 - Mapa da cidade do Rio de Janeiro, 1895 ..................................................... 61

Figura 6 - Praia da Saudade e Escola Militar ............................................................... 74

Figura 7 - O Balo Militar nmero 1 ............................................................................ 75

Figura 8 - Parquia de Nossa Senhora da Conceio ................................................... 81

Figura 9 - Escola Militar, em data anterior a 1920 ....................................................... 82

Figura 10 - Fachada da Escola Militar, em 2009 .......................................................... 83

Figura 11 - Visita de Santos Dumont Escola de Aviao Militar, 1928 .................... 85

Figura 12 - "Bonequinha de seda" ................................................................................ 87

Figura 13 - Cine-Teatro Realengo ................................................................................ 90

Figura 14 - IAPI de Realengo ....................................................................................... 91

Figura 15 - Vista area de Realengo, 1940 ................................................................... 92

Figura 16 - Vista area da Escola Militar do Realengo, 1940 ...................................... 93

Figura 17 - Obras de ampliao da Fbrica de Cartuchos do Realengo ....................... 98

Figura 18 - Oficina de cartuchos da Fbrica do Realengo ............................................ 99

Figura 19 - Vista de oficina da Fbrica de Cartuchos do Realengo ............................. 100

Figura 20 - Casa do diretor da Fbrica do Realengo .................................................... 101

Figura 21 - Projeto da Vila Militar ............................................................................... 104

Figura 22 - Lanamento da pedra fundamental da Vila Militar ................................... 106

Figura 23 - Estao da Vila Militar .............................................................................. 107

10

Figura 24 - Quartel-general da Infantaria Divisionria, na Vila Militar de Deodoro ... 110

Figura 25 - Aeroplano sobrevoa a Fazenda de Afonsos ............................................... 112

Figura 26 - Escola de Aviao na dcada de 1910 ....................................................... 114

Figura 27 - Vista da Escola de Aviao em Afonsos ................................................... 115

Figura 28 - Terraplenagem da Escola de Aviao ........................................................ 116

Figura 29 - Oficinas da Escola de Aviao Militar ...................................................... 117

Figura 30 - Vista do Campo dos Afonsos em 1940 ...................................................... 118

Figura 31 - Vista lateral da antiga Escola Militar ......................................................... 122

Figura 32 - Runas da Fbrica do Realengo .................................................................. 123

Figura 33 - Detalhe da fachada da Fbrica do Realengo .............................................. 126

Figura 34 - Porto da Fbrica de Cartuchos na rua Carlos Wenceslau ......................... 132

Figura 35 - Residncia funcional da Fbrica de Cartuchos .......................................... 134

Figura 36 - Coreto do Campo de Marte ........................................................................ 135

Figura 37 - Picadeiro da Escola Militar ........................................................................ 136

Figura 38 - Residncias funcionais da Fbrica de Cartuchos do Realengo .................. 137

Figura 39 - Antiga fachada, rua Bernardo de Vasconcelos .......................................... 138

Figura 40 - Antiga fachada, rua Bernardo de Vasconcelos .......................................... 139

Figura 41 - Antigo estabelecimento comercial em Realengo ....................................... 141

Figura 42 - Vista da rea III da Fbrica de Cartuchos ................................................. 142

Figura 43 - Vistas da Fbrica de Cartuchos .................................................................. 144

Figura 44 - Edificao em runas na Fbrica de Cartuchos .......................................... 145

Figura 45 - Fachada de uma antiga residncia .............................................................. 148

Figura 46 - Residncia na estrada So Pedro de Alcntara .......................................... 149

Figura 47 - Residncia na estrada So Pedro de Alcntara .......................................... 150

11

2. Tabelas

Tabela 1 - Matrculas na Escola Geral de Tiro do Campo Grande ............................... 43

Tabela 2 - Instituies de ensino do Exrcito em Realengo (1859 - 1912) .................. 59

12

RESUMO

Esta dissertao analisa a influncia das instituies militares, particularmente a Escola

Militar, no perodo de 1912 a 1944, na configurao urbana de Realengo, bairro localizado

no subrbio do municpio do Rio de Janeiro. Tendo como principal corpus documental os

relatrios do Ministrio da Guerra e a legislao pertinente, so estabelecidos marcos

histricos para anlise do processo de transformao da antiga zona rural do municpio em

uma rea militar, enfatizando os impactos que incidiram sobre a regio em decorrncia da

transferncia da sede da Escola Militar do Brazil, da Praia Vermelha para o Realengo.

Preliminarmente, so identificadas as primeiras unidades militares que ocuparam a regio,

estabelecendo conexes entre o funcionamento dessas organizaes, a constituio do seu

patrimnio e o desenvolvimento urbano de Realengo. Para contextualizao, tambm so

apresentadas as sedes ocupadas pela Escola Militar ao longo do sculo XIX e as

circunstncias que motivaram sua sada da Praia Vermelha no incio do sculo XX. O

recorte temporal se inicia no perodo compreendido entre o incio do sculo XIX, quando

as chamadas terras realengas foram doadas Cmara da cidade do Rio de Janeiro por D.

Joo VI; atravessa o sculo XX, quando se consolidaram o patrimnio da Escola Militar

em Realengo e a urbanizao do bairro; e chega aos dias atuais, quando, aps a extino da

escola, a decadncia e o abandono so as marcas das antigas edificaes militares do

bairro. Tambm so assinalados o funcionamento da Fbrica de Cartuchos e a criao de

duas grandes reas militares, a Vila Militar de Deodoro e o Campo dos Afonsos. Por fim,

so levantadas as perspectivas e aes do Exrcito Brasileiro e de outros rgos da

sociedade na preservao do patrimnio e da memria da antiga escola.

Palavras-chave: Exrcito Brasileiro. Escola Militar. Realengo.

13

ABSTRACT

This thesis examines the influence of the military, particularly the Military School in the

period 1912 to 1944, on the urban form of Realengo, located on the suburb of Rio de

Janeiro. With the main body of documentary formed by the reports of the War Department

and related laws, are established marks for analysis of the transformation process of the

former rural municipality in a military area, emphasizing the impact that focused on the

region due to the transfer of the Military School of Brazil, from the Praia Vermelha to

Realengo. Preliminarily, we identify the first military units that occupied the region,

establishing connections between the functioning of these organizations, the constitution of

their heritage and the urban development of Realengo. For background, are also presented

the seats occupied by the Military School during the nineteenth century and the

circumstances that motivated his departure from Praia Vermelha in the early twentieth

century. The time line begins in the period from the early nineteenth century, when the

calls realengas lands were donated to the town of Rio de Janeiro by D. Joo VI, through

the twentieth century, when it had consolidated assets of the Military School in Realengo

and urbanization of the neighborhood, and reaches the present day, when, following the

end of the school, the decay and neglect are the hallmarks of the old military buildings in

the neighborhood. Also indicated are the operation of the factory cartridges and the

creation of two large military areas, the Vila Militar de Deodoro and the Campo dos

Afonsos. Finally, we investigate the perspectives and actions of the Brazilian Army and

other organs of society in preserving the heritage and memory of the old school.

Key-words: Brazilian Army. Military School. Realengo.

14

INTRODUO

Entre os anos de 1912 e 1944, o bairro de Realengo, localizado na Zona Oeste do

municpio do Rio de Janeiro, sediou a Escola Militar do Realengo, instituio de formao

dos oficiais do Exrcito Brasileiro. Juntamente com a Fbrica de Cartuchos, construda no

final do sculo XIX, a Escola Militar exerceu influncia no processo de desenvolvimento e

na configurao urbana da regio, formando um patrimnio material ligado memria, no

apenas de sua prpria histria, mas tambm das origens do bairro, singularizado pelo valor

paisagstico e simblico das antigas construes militares, representativas de diversos

estilos arquitetnicos e perodos histricos.

Aps a extino da Escola Militar, em 1944, e da Fbrica de Cartuchos, em 1977,

demolies e reformas desfiguraram os antigos prdios - alguns construdos ainda no

sculo XIX - em um processo de deteriorao que se acelerou a partir da dcada de 1990.

O fracionamento dos terrenos desocupados pelas instalaes militares e os novos usos

pblicos das reas que as constituam, bem como a venda de fraes dessas reas para

entidades particulares, tambm descaracterizaram o bairro, e poucas aes efetivas foram

realizadas para a preservao da memria das origens e da presena da Escola Militar e da

Fbrica de Cartuchos na regio. Para preencher essa lacuna, a proposta desta dissertao

pesquisar a ocupao de Realengo pelas instituies militares e o papel dessas instituies

no desenvolvimento urbano local, baseando-se na histria de suas antigas reas e

edificaes.

A Zona Oeste do Rio de Janeiro concentra, ainda hoje, vrias unidades do

Exrcito Brasileiro, bem como da Marinha do Brasil, da Fora Area Brasileira e das

Foras Auxiliares1. A criao da Escola Geral de Tiro do Campo Grande, na segunda

metade do sculo XIX, assinalou o incio da ocupao de extensas reas dessa regio da

cidade pelos efetivos militares, que buscavam locais nos quais fossem possveis o emprego

de armamentos e a realizao de experincias, exerccios e manobras. J no incio do

sculo XX, os processos de modernizao e profissionalizao do Exrcito podem ser

citados entre os fatores que determinaram a transferncia da Escola Militar para Realengo,

e, posteriormente, de outras unidades militares para as proximidades, o que influenciou

sobremaneira na configurao do espao urbano da regio.

1 Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro e Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro.

15

Cabe inicialmente uma explicao sobre a pertinncia do tema, a partir da

premissa de que a organizao espacial urbana est ligada aos contextos polticos,

econmicos e sociais que a moldaram ao longo do tempo. Nessa tica, esta dissertao se

constitui em uma contribuio histrica, e presta subsdios para o conhecimento das

transformaes atravessadas por uma expressiva parte do territrio do Rio de Janeiro a

partir da segunda metade do sculo XIX. Em outro sentido, a mesma premissa se aplica

instituio que moldou o territrio em questo, pois a pesquisa tambm aborda aspectos da

evoluo institucional do Exrcito Brasileiro e de suas relaes com a sociedade. Cabe

tambm ressaltar que, segundo novos programas de ao governamental, encontra-se em

progresso a desmobilizao das funes militares das reas que constituram o objeto de

pesquisa, crescendo de importncia a apresentao de um estudo que registre esse processo

de maneira sistemtica.

A explicao acima conduz ao objetivo geral da pesquisa: analisar a influncia das

instituies militares, particularmente a Escola Militar, no perodo de 1912 a 1944, na

configurao urbana do bairro de Realengo.

Esse objetivo tem relevncia na medida em que contribui tanto com os estudos

sobre a organizao do espao urbano do Rio de Janeiro, quanto com aqueles que dizem

respeito ao desenvolvimento das instituies militares, nesse caso particular, o Exrcito

Brasileiro. Nesse aspecto, a histria da Escola Militar do Realengo exemplar, pois rene

tpicos sobre ocupao fundiria e desenvolvimento urbano, paralelamente com eventos

relativos a evoluo do Exrcito, que retrocedem at a segunda metade do sculo XIX. A

ocupao das reas do Realengo tambm ilustra objetivos e projetos polticos dos perodos

imperial e republicano: a regio, que nesses perodos serviu como palco de acontecimentos

relevantes na histria militar do pas, conserva em seus prdios, ruas e praas variadas

informaes sobre o funcionamento dos estabelecimentos militares que a ocuparam,

agiram sobre a paisagem do bairro e formaram uma estrutura urbana peculiar ao longo do

sculo XX, tornando-se, durante certo tempo, o centro da vida social da localidade nos

aspectos econmico, social e cultural, e constituindo-se em um reflexo dos ideais de

progresso e modernidade propostos para o Exrcito e para a sociedade brasileira naquele

perodo.

O princpio bsico do trabalho foi buscar a compreenso das finalidades e das

aes das instituies militares que, ao longo dos sculos XIX e XX, foram implantadas

em grandes reas da regio de Realengo e suas adjacncias, modificando essas reas

16

atravs da construo das instalaes fsicas necessrias ao seu funcionamento. A partir

desse princpio, foram selecionadas fontes que trouxessem informaes sobre os projetos e

discusses relacionados com tais implantaes. Na medida em que foi observada a estreita

ligao entre as reas em estudo e o desenvolvimento da instruo militar no Exrcito, foi

necessrio incluir tambm no plano de trabalho pesquisas sobre as diversas reformas dos

regulamentos militares de ensino.

Os critrios para apurao e anlise do material e das fontes selecionadas se

sustentaram em dois pontos principais. Primeiro, a pesquisa e a reunio de dados sobre as

instituies militares como agentes modeladores do espao urbano, papel que exerceram a

partir da constituio de reas destinadas ao atendimento de suas necessidades e objetivos

especficos. A partir da, e como segundo ponto, nas constataes particulares do

pesquisador, tambm militar e morador da localidade, que possui memrias e impresses

pessoais sobre a configurao do bairro, e valeu-se dessa condio para organizar,

interpretar, revisar e ordenar as informaes obtidas do conjunto composto pela

documentao, bibliografia e iconografia relacionadas ao assunto. Desse modo, o resultado

da seleo de materiais de pesquisa buscou reunir elementos que explicassem 1) as razes

da constituio das reas militares em Realengo, e 2) qual a influncia dessas reas no

desenvolvimento e na configurao da localidade e suas adjacncias.

Cabe ressaltar que a pesquisa sobre a ocupao fundiria do bairro e sobre a

histria de seu desenvolvimento urbano, em si, no indita. Encontram-se referncias a

esses processos tanto em textos mais antigos, como as crnicas de Noronha Santos (1934,

1965, 1981) e Brasil Gerson (1954), quanto em pesquisas mais recentes, como as

apresentadas por Fridman (1998 e 1999). Mas, embora esses trabalhos assinalem a

presena de tropas militares em Realengo a partir de 1850, no detalham sua natureza, suas

particularidades e nem os processos sociais e polticos mais amplos que determinaram sua

transferncia para a regio, ou mesmo as consequncias da sua permanncia no bairro em

longo prazo; de fato, atentam principalmente para o processo de ocupao das terras nas

primeiras dcadas do sculo XIX, quando as sesmarias localizadas ao longo da antiga

estrada Real de Santa Cruz foram retomadas pela Coroa Portuguesa e cedidas Cmara

Municipal.

Noronha Santos, escritor e cronista, produziu diversas descries da paisagem e

hbitos cariocas, bem como da formao histrica do territrio da cidade, nas obras Meios

de transporte no Rio de Janeiro (1934), As freguesias do Rio antigo (1965) e Cronicas da

17

cidade do Rio de Janeiro (1981), em um trabalho de natureza semelhante ao realizado por

Brasil Gerson em Histria das ruas do Rio de Janeiro (1954). Ambos destacam que as

primeiras ocupaes do Realengo se deram atravs da concesso de sesmarias a foreiros

que utilizavam as terras da regio para pastagem do gado e para o cultivo de pequenas

plantaes. J as pesquisas de Fania Fridman, apresentadas nos textos As propriedades

pblicas no Rio de Janeiro (1998) e Donos do Rio em nome do rei - uma histria fundiria

da cidade do Rio de Janeiro (1999), realizam levantamentos e anlises mais minuciosos da

constituio fundiria e imobiliria na cidade do Rio de Janeiro, em uma perspectiva

histrica, ligada s questes relativas formao dos territrios carioca e fluminense.

Nesse contexto, a autora dedica ateno formao das terras realengas, e ao

apossamento das primeiras propriedades na regio.

necessrio, ainda, destacar o trabalho mais recente de Fernandes (2006), que

cita a existncia de vrias unidades militares, algumas com a extenso de diversos bairros,

na rea urbana do Rio de Janeiro, e prope a investigao das Foras Armadas como um

agente modelador do espao urbano da cidade na primeira metade do sculo XX.

As pesquisas acima descritas esto mais diretamente relacionadas com as questes

das apropriaes e da formao histrica do territrio do Rio de Janeiro, mas, como dito

anteriormente, concedem pouco destaque ao detalhamento das estruturas urbanas que se

formaram no Realengo devido presena das tropas militares. Tambm no concedem

ateno ao que se refere influncia da Escola Militar no desenvolvimento do bairro e ao

patrimnio material construdo durante sua existncia; acrescente-se que, a esse respeito,

os registros em trabalhos acadmicos so relativamente escassos, exceto pelas referncias

em alguns livros de memrias de antigos alunos da escola. J no caso da pesquisa ora

apresentada, o tema aprofundado atravs da reunio de informaes sobre o papel da

Escola Militar, e das instituies que a antecederam, como agentes da organizao espacial

urbana. Nesse aspecto, a abordagem singular, pois apesar da existncia de importantes

estudos sobre a Escola Militar, esses concedem maior destaque aos aspectos sociais e

polticos da ao de seus integrantes na histria nacional, ou se interessam pela questo da

evoluo tcnica e pedaggica do ensino militar.

O principal corpus documental da pesquisa para os perodos anteriores a 1940 foi

a srie de relatrios do Ministrio da Guerra2, disponibilizado na pgina eletrnica da

2 Cujas referncias neste trabalho adotaro o seguinte formato: Relatrio do Ministro da Guerra (nome),

(ano), (pgina).

18

Universidade de Chicago3. As fontes primrias consultadas incluem, ainda: a Coleo das

Leis da Repblica Federativa do Brasil; o Almanak Laemert, publicao editada entre

1844 e 1889, composta de informaes sobre os membros da Corte e dos ministrios,

sees sobre as provncias, legislao, dados do censo e propaganda comercial; os Annaes

do Parlamento Brazileiro, publicados pela Typographia Imperial e Constitucional de J.

Villeneuve & C. e os Annaes do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa.

O uso de leis, regulamentos e relatrios como fonte de informaes no deve ser

tomado como indicao de que foi assumida integralmente a ideia de que o funcionamento

das instituies militares corresponde ao cumprimento automtico de normas;

compreende-se que, algumas vezes, as aes descritas ou propostas nesses documentos, na

realidade, no foram alm de tentativas, nem sempre bem sucedidas ou executadas de

modo muito mais desordenado do que os registros apresentam, alm de esbarrarem em

resistncias tais como as frequentes restries oramentrias. Desse modo, essas fontes

servem ao trabalho muito mais como indicao de intenes ou como subsdios para a

ordenao cronolgica de eventos do que, no mais das vezes, como referncia concreta a

resultados. Para interpretao dos contextos da produo desses registros, recorreu-se a

referncias bibliogrficas compostas por estudos e anlises sobre a histria dos militares e

da Escola Militar, tomando como base as obras de autores destacados no tema,

prioritariamente os trabalhos de Motta (1976), Castro (1990, 1995, 2002) e Rodrigues

(2008).

Jeovah Motta foi autor do livro Formao do oficial do Exrcito Brasileiro:

currculos e regimes na Academia Militar / 1810-1944 (1976), no qual descreve o

funcionamento das instituies de formao militar, analisando as modificaes realizadas

nos currculos, planos de ensino e na estrutura da Escola Militar, desde a criao da Real

Academia at a implantao da Academia Militar em Resende. Essa obra permanece como

uma das principais referncias em grande parte dos estudos sobre o assunto.

Entre os trabalhos de Celso Castro, destacam-se como orientao para esta

pesquisa as obras que tm a Escola Militar como tema: O esprito militar: um estudo de

antropologia social na Academia Militar das Agulhas Negras (1990), produzido a partir de

3 O Latin-American Microform Project do Center for Research Libraries um projeto patrocinado pela

Fundao Andrew W. Mellon para produzir imagens digitais de sries de publicaes emitidas pelo Poder

Executivo do Governo do Brasil entre 1821 e 1993, e pelos governos das provncias, desde as mais antigas

disponveis para cada provncia at o fim do Imprio em 1889. O projeto proporciona acesso via internet aos

documentos, facilitando assim a sua utilizao por pesquisadores e prestando apoio s pesquisas latino-

americanas. Disponvel em .

19

pesquisas de campo realizadas pelo autor, que discute os processos de construo da

identidade militar entre oficiais; Os militares e a repblica: um estudo sobre cultura e

ao poltica (1995) onde apresentada a tese da influncia do Exrcito no governo

republicano, fundamentada na ideia da excepcionalidade da instituio; e A inveno do

Exrcito Brasileiro (2002), que analisa rituais e smbolos do Exrcito, destacando o

perodo em que o coronel Jos Pessoa foi comandante da Escola Militar, e as aes desse

personagem na implantao de projetos para constituio de uma elite no Exrcito

Brasileiro, concentrada em modificaes nos modelos de formao acadmica.

Em trabalho mais recente, Uma carreira: as formas de acesso escola de

formao de oficiais do Exrcito brasileiro no perodo de 1905 a 1946 (2008), Rodrigues

traou um panorama histrico bastante completo da Escola Militar, demonstrando, ainda,

que os critrios de seleo de candidatos para o ingresso no oficialato possuam um carter

discriminatrio, destinado a constituir uma elite na instituio, e destacando os

mecanismos institucionais que conduziam esse processo.

Assim como as referncias bibliogrficas citadas acima foram selecionadas para

apoiar as anlises sobre os contextos histricos, tambm foram eleitas referncias tericas

que balizam certos momentos da pesquisa. Esses conceitos esto desenvolvidos no terceiro

captulo, ponto da dissertao no qual foram necessrios para subsidiar a compreenso de

determinadas constataes com as quais a investigao se defrontou.

Considerando as questes envolvidas, o primeiro conceito utilizado foi o de

lugares de memria (Nora, 1993), que leva a entender que o espao fsico, suporte da

memria coletiva, carregado de sentidos. Os lugares de memria so tambm construes

histricas, revelando processos sociais que possuem significados e funes prprias, ideia

que conduziu o pesquisador nas indagaes sobre os objetivos, finalidades e aes dos

agentes que constituram os espaos militares do Realengo.

O segundo conceito adotado foi o de representao (Pesavento, 1995), que

permite refletir sobre a variao das percepes atravs do tempo e sobre a ligao das

memrias a diferentes interesses. O conceito subsidia a interpretao do significado do

abandono e da deteriorao das antigas construes, constatados nas pesquisas de campo,

bem como a interpretao dos discursos sobre os espaos e sociabilidades. Leva, ainda,

reflexes sobre o que a autora chama de "pasteurizao" ou uniformidade do urbano: a

20

destruio da memria, a substituio do "velho" pelo novo, a uniformizao das

construes e a generalizao da impessoalidade no contexto urbano.

A pesquisa buscou ainda outras referncias, encontrando por vezes obstculos

relacionados existncia, ao estado de conservao, ou s possibilidades de acesso a

monumentos, documentos e outros registros histricos. Entre essas fontes, assinala-se:

a. Os livros escritos por ex-alunos, como por exemplo as obras: Cadete do

Realengo (Arago, 1959); Cadetes em desfile (Pedroso, 1969); Recordaes de uma velha

escola (Bley, 1974); Memrias do Realengo (Lins, 1981); A ltima noite da Escola Militar

da Praia Vermelha (Lobato Filho, 1992).

b. Os arquivos de documentos produzidos na Escola Militar e em outras

organizaes militares j extintas que existiram na localidade, pertencentes atualmente ao

acervo do Arquivo Histrico do Exrcito.

c. Acervos de legislaes, cuja crescente digitalizao e disponibilizao na rede

mundial de computadores facilitou consideravelmente a pesquisa, sobretudo nas consultas

aos stios eletrnicos do Senado Federal, da Cmara dos Deputados e da Imprensa

Nacional, que possuem colees completas de leis do Imprio e da Repblica. Quanto

documentao histrica referente ao Exrcito Brasileiro, embora em sua maior parte no se

encontre em formato digital, foi possvel consult-la com relativa facilidade de acesso,

desde as Ordens do Dia do sculo XIX at o atual Boletim do Exrcito. Essas consultas

foram realizadas no Arquivo Histrico do Exrcito, na Biblioteca do Exrcito e no

Batalho Escola de Engenharia, hoje localizado no palcio de Santa Cruz, que foi criado

em 1855 e foi contemporneo das primeiras instituies militares que ocuparam a

localidade de Realengo.

Inicialmente, o projeto de trabalho previa o recurso de utilizao da metodologia

da histria oral para realizao de entrevistas com antigos militares da Escola Militar, com

trabalhadores da Fbrica de Cartuchos e com moradores da regio. De fato, no foi

possvel encontrar moradores do bairro que possussem recordaes sobre o perodo de

funcionamento da Escola Militar; algumas poucas pessoas foram contemporneas da

Fbrica do Realengo, e os ex-alunos da escola concentraram suas recordaes nas

atividades militares, ou reforaram discursos j encontrados na bibliografia. Como o

resultado obtido ficou aqum do esperado, as entrevistas no foram includas na

dissertao.

21

Por fim, foi realizada uma srie de visitas s antigas construes do bairro, e

nessas oportunidades foram realizados registros fotogrficos de sua localizao e estado.

Esse procedimento teve como objetivo a composio de um acervo, formado por imagens

que ilustrassem as diversas referncias apresentadas ao longo do trabalho. A perspectiva de

que em breve o acesso a essas edificaes no ser mais possvel tornou oportuna essa

ao. Em relao s imagens antigas utilizadas, todos os esforos foram feitos para

determinar e citar sua origem, mas nem sempre isso foi possvel. Dada a natureza deste

trabalho, a inteno de sua exposio to somente organiz-las como informao

acadmica e torn-las acessveis e teis. Eventuais omisses ou equvocos nos crditos

sero corrigidos com prazer, caso as fontes se manifestem.

Figura 1 - rea geogrfica de interesse da pesquisa.

Situao geogrfica da rea de interesse da pesquisa. esquerda, no alto, o estado do Rio

de Janeiro, dividido em regies e municpios; abaixo, o municpio do Rio de Janeiro,

dividido em bairros. A rea destacada em verde corresponde ao bairro de Realengo.

direita: O detalhe ampliado o centro do bairro, onde se destacam os grandes espaos

ocupados pela antiga Escola Militar e pelas reas da Fbrica de Cartuchos, desativada na

dcada de 1970. Fonte: Atlas Escolar 2000 e Google Maps Brasil (com adaptaes).

A dissertao est estruturada em trs captulos. O primeiro se constitui pela

apresentao da formao histrica e da ocupao fundiria do bairro, com nfase na

ocupao da regio pelos efetivos militares. Esse captulo tem como objetivo especfico

identificar as primeiras organizaes militares que ocuparam as terras de Realengo,

estabelecendo conexes entre seu funcionamento e o incio da constituio do patrimnio

do Exrcito na regio, bem como com o desenvolvimento do bairro. Os eventos narrados

esto situados no perodo compreendido entre o incio do sculo XIX, quando as chamadas

22

terras realengas foram doadas Cmara da cidade do Rio de Janeiro por D. Joo VI, e o

incio do sculo XX, quando a Escola Militar foi transferida para a localidade.

O segundo captulo est dividido em trs sees. A primeira apresenta as sedes

ocupadas pela Escola Militar ao longo do sculo XIX e expe as circunstncias que

motivaram sua sada da fortaleza da Praia Vermelha, no incio do sculo XX. A segunda

descreve a constituio do patrimnio da escola no Realengo e a urbanizao do bairro na

primeira metade do sculo XX. A terceira seo trata do funcionamento da Fbrica de

Cartuchos e da criao de duas grandes reas militares nas adjacncias de Realengo: a Vila

Militar de Deodoro e o Campo dos Afonsos. So descritas as transformaes introduzidas

na regio e, secundariamente, nas reas prximas, aps a construo dos conjuntos

arquitetnicos da Escola Militar e da Fbrica de Cartuchos. Buscou-se associar as

edificaes s suas funes originais e ao contexto histrico em que foram construdas,

alm de seus reflexos na configurao urbana da localidade.

O terceiro captulo enfoca as transformaes ocorridas aps a extino da Escola

Militar, os usos posteriores de suas instalaes, a situao atual dessas reas e sua

influncia na configurao urbana do bairro e de suas adjacncias. Tambm so destacadas

as perspectivas dos comandos militares e de rgos da sociedade na preservao da

memria da antiga escola.

Por fim, a concluso sintetiza as anlises e resultados da pesquisa.

23

CAPTULO I - TERRAS REALENGAS

Este captulo tem como objetivo identificar as primeiras organizaes militares

que ocuparam as terras de Realengo, estabelecendo conexes entre seu funcionamento e o

incio da constituio do patrimnio pblico na regio, bem como com o desenvolvimento

do bairro. Os eventos narrados a seguir esto situados no perodo compreendido entre o

incio do sculo XIX, quando as chamadas terras realengas foram doadas Cmara da

cidade do Rio de Janeiro por D. Joo VI, e o incio do sculo XX, quando a Escola Militar

foi transferida para a localidade.

1.1. O Realengo do Campo Grande

1.1.1. Origem do termo

Na antiga diviso administrativa da cidade, as terras que formam o atual bairro de

Realengo, subrbio da Zona Oeste do municpio do Rio de Janeiro, faziam parte da

Freguesia4 de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande, formando, segundo Noronha

Santos (1965), um grande campo de 850 por 503 metros5. A questo da origem da

denominao da localidade j foi explorada por vrios autores, como Gerson (1954), o

prprio Noronha Santos (1965), Paz (1987), Fres (2004) e Wenceslau (2004), mas

convm situar essa discusso. Existem duas verses correntes: a primeira, atribuda

tradio popular, sustenta que o nome resultaria da abreviao da expresso Real Engenho

(Real Eng), gravada nas placas que indicavam os caminhos para a regio. Em uma

segunda verso, a palavra Realengo seria oriunda do termo latino reguengo, possuindo

como significado6: 1) real, rgio; 2) digno de rei; ou 3) sem dono, pblico; abandonado,

em desordem. H uma aparente contradio, que pode ser desfeita, em aplicar esses

sentidos opostos para a mesma palavra. As terras realengas eram, simultaneamente, reais

e sem dono, por pertencerem Coroa Portuguesa e constiturem uma categoria que

poderia ser apreendida como "de uso pblico". Essa segunda verso reforada pelo fato

4 Freguesia (Fridman, 2008) a designao portuguesa de parquia; constitua um territrio submetido

jurisdio espiritual de um cura, que durante os perodos colonial e imperial brasileiro tambm exercia a

administrao civil. 5 No original: "o grande campo do Realengo, (...), representa um paralelograma de 465 braas de comprido

sobre 275 de largo (...)". 6 Verbete Realengo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009. Disponvel em

. Acesso em 16 de abril de 2009.

24

de que, com o mesmo sentido, o termo pode ser encontrado em referncias a outras reas

localizadas em territrios de antigas colnias portuguesas ou espanholas7. Em qualquer dos

casos, os campos realengos constituam reas de serventia pblica, administrados pela

Cmara Municipal e reservados para descanso, depsito e pastagem do gado daqueles que

no possuam terras prprias (Noronha Santos, 1965).

1.1.2. Breve histria fundiria

Atravessando a cidade do Rio de Janeiro, a antiga estrada Real de Santa Cruz

ligava duas propriedades imperiais, a Quinta da Boa Vista e a Fazenda Real no Curato de

Santa Cruz. Noronha Santos (1934) relata que ao longo desse caminho existiam quatro

pontos de hospedagem para os viajantes: o primeiro, na localidade denominada Campinho,

prximo ao atual bairro de Madureira; o segundo, no Realengo do Campo Grande; o

terceiro, na Venda do Santssimo; o quarto na Fazenda do Mato da Pacincia. Essas

localidades adquiriram, ao longo dos sculos XIX e XX, as caractersticas urbanas que

apresentam nos dias atuais: Madureira assumiu uma feio predominantemente comercial,

enquanto Santssimo e Pacincia se transformaram em localidades tipicamente

residenciais. Por sua vez, Realengo atravessou um processo de urbanizao singular em

relao a esses e a outros bairros da cidade, transformando-se, a partir da segunda metade

do sculo XIX, de um povoado agrcola em uma localidade militar, residencial e industrial

(Fridman, 1999).

As terras da localidade foram doadas como sesmaria8, em 1805, a Ildefono de

Oliveira Caldeira, o Visconde de Gericin. Porm, poucos anos depois, foi constatado que

para obt-las, Caldeira havia ludibriado os oficiais da Corte responsveis pelas

demarcaes, alm de realizar negociaes no autorizadas com as terras9. Foi ento

expedido pela Coroa um alvar anulando a doao da sesmaria e concedendo-a Cmara

7 Esses sentidos podem ser reconhecidos, por exemplo, nos dois trechos seguintes: (...) a sua costa sul tem

uma grande enseada, que faz diversos ancoradouros, dos quais o principal e mais frequentado chamado

Porto Velho. O seu terreno todo realengo, aforado aos seus habitantes (Neves, 1830); (...) las palabras

real y realengo, aunque que definidas ordinariamente lo que pertenece ao Rey, tienen aplicacion diferente,

porque la segunda solo es propria de la jurisdicion, territorio patrimonio del Rey (Dicionrio Martimo

Espanhol, 1831). 8 Regime jurdico de doao de terras para cultivo, em vigor durante o Perodo Colonial. Desde o incio da

colonizao, a Coroa Portuguesa decidiu que todas as terras brasileiras pertenceriam ao rei, e, portanto,

poderiam ser objeto de concesses de sesmarias. Para uma discusso mais extensa do conceito, ver Fridman

(1999), ou Nozoe (2006). 9 Dois trabalhos sobremaneira completos, em relao aos conflitos que envolveram os apossamentos de terras

na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro durante os sculos XVIII e XIX, so encontrados em Fridman

(1999) e Pedroza (2008).

25

Municipal. Essa resoluo, datada de 27 de junho de 1814, foi transcrita nos Annaes do Rio

de Janeiro do ano de 1835:

Dom Joo por Graa de Deos Prncipe Regente de Portugal e Algarves,

&c. Fao saber aos que a presente Carta virem, que sendo-me presente

em consulta da Mesa do Pao a obrepo10

e subrepo11

com que nos

anos de 1805, obteve Ildefono de Oliveira Caldeira por sesmaria aos

terrenos denominados - realengos - na fazenda do Campo Grande do

termo desta Cidade, que estavam de subidos tempos reservados para a

pastagem de gado que desce de serra acima para os aougues dela;

reduzindo-se a ltima evidncia a torpeza e indignidade com que para

consegui-las foram manobradas as diligncias precisas perante os oficiais

da Cmara daquele ano, que iludidos pela sinistra informao do capito

do distrito Manoel Joaquim de Souza as julgaram devolutas,

manifestando-se por isso aquela simulada venda que dela fez logo o

sobredito Caldeira a D. Francisca de Castro, o impudente conluio com

que foram impetradas. Constatando-se outro sim o grave prejuzo que

sade destes povos pode vir da falta de hum pasto publico, onde

descansem os gados destinados para o seu sustento. Tendo ainda

considerao ao mais que com a informao do Juiz dos Feitos da Coroa

Real e Fazenda, se exps na referida consulta com cujo parecer me

Dignei conformar por minha imediata Resoluo de 6 de maio do

presente ano: hei por bem declarar nula e de nenhum efeito a sobredita

sesmaria, e sua confirmao; e sou outro sim servido conceder as terras

dessa nula sesmaria Cmara dessa Cidade como realengo, para

depsito, descanso e pastagem dos gados que se conduzirem para

abastecimento e sustentao dos moradores dela, ou sejam dos

contratadores e mercantes respectivos, onde quaisquer outros condutores,

fazendeiros e viandantes, sem delas se poder fazer algum outro uso, nem

10

Obrepo: ardil para conseguir aquilo que no fcil obter pelos meios ordinrios; astcia; manha; dolo;

logro, engano. Verbete Obrepo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009. Disponvel em

. Acesso em 16 de abril de 2009. 11

Subrepo: graa conseguida por meio de uma falsa exposio ou por meios ilcitos; fraude ou surpresa

feita a um superior; subtrao. Verbete Subbrepo, in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2009.

Disponvel em . Acesso em 16 de abril de 2009.

26

em tempo algum se poderem aforar, arrendar, vender, ou por qualquer

maneira alienar debaixo da pena de nulidade, ficando os oficiais da

Cmara obrigados a fazer tambm medir e demarcar as ditas terras na

forma das Leis expedida para os tombos do Conselho, e a traz-las

limpas como convm. Pelo que mando aos Ministros, justias e mais

pessoas a quem tocar cumpram e faam cumprir esta Carta, que por

firmeza do referido mandei passar por mim assinada e selada de meu selo

pendente, assim com nela se contm. Pagou de novos direitos 540 ris;

que se carregaro ao tesoureiro deles a fl 92 do livro 3o de sua receita

como se v do conhecimento assinado a fl 35 do livro 8 dos registros

gerais. Dada no Rio de Janeiro, aos 27 de junho de 1814. O prncipe com

guarda. Joo Pedro Maynarde da Fonseca, a fez escrever. Monsenhor

Miranda, Francisco Antonio da Silveira.12

Aps retomadas, as terras foram cedidas pela Coroa Portuguesa Cmara

Municipal e reservadas para criao de gado13

, preservando-se, entretanto, as propriedades

de alguns antigos ocupantes, localizadas ao longo da antiga estrada Real de Santa Cruz. A

esses ltimos foi imposta, pelo Aviso da Secretaria de Estado dos Negcios da Marinha e

Domnios Ultramarinos de 18 de maro de 1821, a obrigao de cultivarem um pedao de

terra de seis braas de frente e dezoito de fundo, conservando-o limpo e com plantaes

nos terrenos que j tivessem sido tratados. Esse encargo deveria ser passado aos futuros

proprietrios, e em caso de desrespeito ao aviso, a pena consistiria na obrigao de lavrar

uma parte extra das terras, alm do pagamento de multa equivalente a 100 ris por braa,

que seria revertida para as obras do hospital militar da cidade.

Aps a Independncia, o Ato Adicional de 1834 reformou a antiga Constituio

do Imprio Portugus. Entre outras medidas, encontrava-se a desvinculao da Cidade do

Rio de Janeiro da provncia que at ento trazia o mesmo nome, tornando-a uma unidade

distinta denominada Municpio Neutro14

. Assim, a Cmara do Municpio Neutro se tornou

titular do patrimnio da cidade, que inclua as vastas extenses de terras no Realengo.

12

Balthazar da Silva Lisboa. Anais do Rio de Janeiro, Tomo V, 1835. Preservada a ortografia original. 13

Resoluo de 27 de junho de 1814, transcrita nos Anais do Rio de Janeiro, Tomo V, 1835, de Balthazar da

Silva Lisboa. 14

Sucessivamente denominado Distrito Federal (1891), aps a Proclamao da Repblica e a promulgao

da Constituio de 1891; Estado da Guanabara (1960), aps a transferncia da Capital Federal para Braslia;

e Municpio do Rio de Janeiro (1974), aps a fuso da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro.

27

Cabe assinalar que, alm dessas, tambm se incluam nesse patrimnio terras e imveis

localizados na sesmaria de Estcio de S, doada em 16 de julho de 1565, e na sesmaria dos

Sobejos (de "sobras") situada entre a sesmaria de Estcio de S e o mar - a faixa de

terrenos de marinha, desde a praia do Flamengo at a Sade, atualmente de propriedade da

Unio Federal. Ainda nos dias atuais, permanece registrado no Regulamento-Geral do

Cdigo de Administrao Financeira e Contabilidade Pblica do Municpio do Rio de

Janeiro15

que:

Artigo 213 - Constituem patrimnio do Municpio do Rio de Janeiro os

seus direitos, os seus bens mveis e imveis e a renda proveniente do

exerccio das atividades de sua competncia e da explorao dos seus

servios.

Pargrafo nico - O patrimnio imobilirio do Municpio constitudo,

entre outros, por bens imveis do antigo Estado da Guanabara, nos

termos do Artigo 13 da Lei Complementar n 20, de 1 de julho de 1974,

incluindo-se:

(...)

5. O domnio direto sobre os imveis aforados nas reas das Sesmarias

da Cidade do Rio de Janeiro, a saber:

(...)

c. Sesmaria chamada Realenga, doada Cidade do Rio de Janeiro por

Carta firmada por D. Joo VI em 27 de junho de 1814.

A partir da segunda metade do sculo XIX novas propriedades foram adquiridas

pela Unio nas reas vizinhas a Realengo, como as fazendas Sapopemba e Afonsos,

principalmente por interesse do antigo Ministrio da Guerra. As propriedades pblicas na

regio, que no incio do sculo XX atingiam 4,1 quilmetros quadrados (Fridman, 1998),

foram em grande parte, ao longo do tempo, transferidas para particulares, subdivididas ou

simplesmente ocupadas ilegalmente. Atualmente, as terras constituem os bairros de

15

Decreto n 3.321, de 18 de setembro de 1981. Aprova o regulamento-geral do cdigo de administrao

financeira e contabilidade pblica do municpio do Rio de Janeiro.

28

Realengo, Coronel Magalhes Bastos, Vila Militar de Deodoro, Jardim Novo, Marechal

Mallet, Campo dos Afonsos e Sulacap, fazendo parte da XXXIII Regio Administrativa do

municpio do Rio de Janeiro.

Figura 2 - Freguesias do Rio de Janeiro, no final do sculo XIX.

Territrio do Rio de Janeiro, segundo a antiga diviso administrativa. Fonte: ABREU,

Evoluo Urbana do Rio de Janeiro, 1987.

O desenvolvimento do bairro durante o sculo XX ser assunto dos captulos

seguintes. curioso destacar que, desde o ano 2002, passou-se a comemorar o aniversrio

de Realengo16

com uma programao festiva. Dados os eventos narrados, o ano de 1814

pode ser considerado um marco de sua histria, como referncia resoluo que anulou a

sesmaria de Ildefono Caldeira e preservou a dos demais ocupantes.

1.2. Os militares no Realengo do sculo XIX

Pelas razes vistas acima, o ano de 1814, data de referncia dos primeiros

registros de propriedades no Realengo, pode ser considerado um marco histrico na

criao do bairro. Nessa ocasio, suas terras estavam destinadas s atividades agro-

pastoris. Contudo, ao final do sculo XIX, grandes reas da regio j se encontravam

ocupadas por instalaes do Exrcito, que determinaram a configurao do bairro e

16

Lei Municipal n 3.483, de 20 de dezembro de 2002. Institui a Semana de Realengo na forma que

menciona. Criada a partir do Projeto de Lei n 2.138/2000, apresentado pelo vereador Rubens Andrade, do

Partido Socialista Brasileiro.

29

exerceram o papel de agente modelador do espao urbano. Esse processo de transformao

apresentado no texto em seguida, que busca reunir elementos que expliquem 1) as razes

da constituio das reas militares em Realengo, e 2) qual a influncia dessas reas no

desenvolvimento e na configurao da localidade e suas adjacncias.

1.2.1. A Escola Geral de Tiro do Campo Grande (1857 - 1890)

Anulada a sesmaria dos terrenos realengos, grande parte das terras da regio

voltou a ser propriedade do poder pblico - da Cmara da Provncia do Rio de Janeiro, at

1834, e da Cmara do Municpio Neutro, aps essa data. Em 1852, os campos de Realengo

foram utilizados para realizao de testes com foguetes fabricados no Laboratrio

Pirotcnico do Campinho17

, uma dependncia do Arsenal de Guerra da Corte que, durante

a segunda metade do sculo XIX, produzia explosivos e munies para uso das tropas do

Exrcito. Devido ao sucesso das experincias, foi logo em seguida nomeada uma comisso

para escolher na regio um local prprio para instalao de uma linha de tiro, que servisse

de modo regular queles exerccios. Definida a zona adequada, foi firmado um acordo, em

1857, no qual a Cmara Municipal cedeu parte das terras ao Ministrio da Guerra, que

manifestava o interesse de estabelecer tambm uma escola militar na localidade. Os

amplos espaos disponveis, prprios para a realizao de exerccios de tiro, e a ento

recente chegada da estrada de ferro D. Pedro II foram alguns dos fatores considerados para

escolha do local. Ainda no ano de 1857 iniciaram-se obras para abertura de um campo de

tiro e adaptaes para que um edifcio servisse como quartel para a recm criada Escola

Geral de Tiro do Campo Grande18

.

Procurou-se por muito tempo achar, nas immediaes da crte, alguma

localidade com espao, que oferecesse desenvolvimento longitudinal

suficiente para os grandes alcances; e os que ero examinados no

offerecio as condies necessarias, nem quanto sua extenso, nem

quanto sua posio do ponto de vista da distancia, e facilidade de

comunicao: hoje, a abertura ao transito publico da estrada de ferro de

D. Pedro II, resolveu a difficuldade, e decidio a escolha do indicado

17

Anurio da Escola Militar, 1914, p. 21. 18

Relatrio do Ministro da Guerra Jeronymo Francisco Coelho, 1857, p. 43.

30

lugar, estabelecendo-se a Escola de Tiro no campo denominado -

Realengo - foreiro [I]ma

cmara municipal da corte, com quem o

governo entrou em prvio acordo.19

A criao da Escola de Tiro do Campo Grande coincide com a fase de ampliao

e profissionalizao (Castro, 1995) em que o ensino militar ingressou na dcada de 1850.

Entre essas mudanas relaciona-se a criao, em 1851, dos cursos de cavalaria e infantaria

no Rio Grande do Sul, alm de cursos preparatrios20

para os candidatos ao ingresso na

Escola Militar, estabelecimento de formao de oficiais do Exrcito Brasileiro que

funcionava, desde 1810, no Largo Real da S Nova (atualmente, Largo de So Francisco

de Paula). Nesse contexto, a Escola de Tiro se inseria no movimento de valorizao dos

contedos profissionais do ensino militar21

, e sua instalao em Realengo tornou-a a

primeira organizao militar a ocupar a atual Zona Oeste22

da cidade do Rio de Janeiro,

precedendo o deslocamento de grandes efetivos do Exrcito e a constituio de uma rea

militar na regio.

A escola funcionou provisoriamente durante dois anos, at ter sua criao

aprovada23

e regulamentada24

. Sua funo idealizada era proporcionar aos oficiais a

oportunidade de adquirir conhecimentos tericos e prticos para dirigir os soldados nos

exerccios de tiro25

, de modo a generalizar e padronizar entre as tropas do Exrcito os

19

Idem. 20

A Escola de Aplicao do Exrcito foi criada para atender a previso feita no Decreto n 634, de 20 de

setembro de 1851, e regulamentada pelo Decreto n 1.536, de 23 de janeiro de 1855. 21

A descrio mais completa das transformaes que a Escola Militar atravessou durante os sculos XIX e

XX , provavelmente, a obra de Jehovah Motta (1976), na qual tambm se encontra ampla discusso sobre a

questo da valorizao dos contedos profissionais do ensino militar. No que se refere ao presente trabalho,

as referncias a esses assuntos esto circunscritas ao mximo s suas ligaes com os estabelecimentos de

ensino instalados em Realengo. 22

Nessa oportunidade, a atual Zona Oeste correspondia aos domnios das chamadas freguesias rurais

(Guaratiba, Jacarepagu, Santa Cruz e Campo Grande). Em 1918, no governo do prefeito Amaro Cavalcanti,

foi criada uma zona rural no territrio composto anteriormente pelas freguesias rurais. Lucena (2009) afirma

que essa proposta correspondia a um projeto poltico de constituio de um cinturo agrcola, para promover

no Distrito Federal um mercado prprio, onde a abundncia e facilidade de transporte proporcionasse a

reduo de preos dos alimentos. 23

Lei n 1.114, de 27 de setembro de 1860. Fixa a despesa e ora a receita para o exerccio de 1861/1862.

Ficou aprovada, conforme o Artigo 6, a criao da Escola de Tiro estabelecida no Campo Grande, e

autorizado o Ministro e Secretrio de Estados dos Negcios da Guerra a despender a quantia de 302:787$700

com sua instalao. 24

Decreto n 2.422, de 18 de maio de 1859. Aprova o regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo

Grande. 25

Decreto n 2.422, de 18 de maio de 1859. Aprova o regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo

Grande. Pargrafo 4, artigo 7.

31

procedimentos de manuseio dos armamentos. Segundo o regulamento da poca26

, cada

uma das unidades militares do pas deveria enviar para a Escola de Tiro um oficial

subalterno, oficiais inferiores e cadetes, a fim de serem instrudos durante um ano e

regressarem aps esse perodo aos respectivos quartis, para difundir os conhecimentos

recebidos27

.

No lugar denominado o Campo Grande, a cinco leguas e meia de

distancia, nos arrabaldes dessa crte, tem o governo resolvido a

construco de diferentes obras para ali se estabelecer uma Escola de

Tiro, especialmente destinada para o manejo e exercicios das bocas de

fogo de toda a especie; e bem assim para a pratica do tiro das armas

especiaes modernas. Nella tero de praticar officiaes e praas do exercito,

e os alumnos da escola militar e de applicao. No dito campo j est

aberta a nova linha de tiro, de extenso excedente a mil braas, e trata-se

agora de limpa-la, aplaina-la e aperfeioa-la. Para quartis da

officialidade e mais praas, comprou ali o governo um predio novo,

espaoso e solidamente construdo, pela quantia de 17:000$000. Tero

ainda de fazer-se varias outras obras indispensaveis aos differentes

misteres do servio desta Escola de Tiro.28

Grande parte dos efetivos militares brasileiros, tanto durante o Perodo Colonial

quanto no Imprio e na Repblica, estava concentrada no Rio de Janeiro, fato que pode ser

associado s primeiras necessidades de defesa do litoral e ao destaque da cidade no cenrio

geopoltico nacional at a inaugurao de Braslia, em 1961. Os aquartelamentos, at a

segunda metade do sculo XIX, encontravam-se distribudos entre a regio do Centro e as

fortificaes construdas na entrada da baa de Guanabara, no atual bairro da Urca. Como

exceo, aparece o antigo forte de Nossa Senhora da Conceio do Campinho, localizado

no desfiladeiro do Iraj, nos limites das Freguesias de Nossa Senhora da Apresentao do

Iraj e de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepagu29

. Nesse local, no incio da dcada de

1850, foi instalado o Laboratrio Pirotcnico do Campinho, que, embora no se

26

Relatrio do Ministro da Guerra Jeronymo Francisco Coelho, 1857, p. 43. 27

Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1860, p. 8. 28

Relatrio do Ministro da Guerra Jernimo Francisco Coelho, 1857, p. 43. 29

Atualmente, correspondendo s Regies Administrativas de Jacarepgua e Iraj.

32

constitusse propriamente em um quartel, encontrava-se sob administrao do Ministrio

da Guerra. Assim, a criao da Escola de Tiro e o consequente deslocamento de tropas

para o Realengo exigiram uma srie de investimentos, no apenas para a execuo de obras

de interesse direto da instruo militar, como a construo de quartis, paiis, fortificaes

e linhas de tiro, mas tambm para a implantao de uma infraestrutura urbana que

atendesse a populao deslocada para a localidade. A realizao dessas obras, que

incluram medies de terrenos, abertura e calamentos de ruas, canalizao de gua

potvel, drenagem de guas pluviais e iluminao, foi incrementada a partir do final da

dcada de 186030

.

Quanto a esse ponto, importante lembrar que, at meados do sculo XIX, a

inexistncia de grandes estruturas urbanas na periferia da cidade do Rio de Janeiro no

estava circunscrita ao Realengo. A cidade dessa poca ainda era modesta, fato atribudo

por Abreu (1997), em grande parte, inexistncia de transportes coletivos. Apenas em

1858 foi inaugurada a primeira ferrovia31

, e, em 1868, a primeira linha de bondes32

,

inicialmente trao animal e depois movidos eletricidade. A chegada desses meios de

transporte tornou possvel a expanso da cidade, julgada necessria j no final do sculo,

quando a regio do Centro e seu entorno imediato foram considerados saturados33

.

Tornou-se ento necessria a ocupao de outras reas, entre as quais os campos

do Realengo, que, assim como os de outras freguesias rurais, eram encarados como uma

reserva para a expanso da cidade. Em 1862, poucos anos aps a criao da Escola de

Tiro, j era registrada uma representao dirigida comisso de assemblias provinciais da

Cmara Municipal, na qual moradores do Realengo requeriam a criao de uma nova

freguesia, por meio da separao de suas terras das freguesias de Iraj e Campo Grande34

.

30

Apenas aps a implantao da Escola de Tiro que passam a ser observadas destinaes de verbas para

obras pblicas no Realengo, encontrando-se as mais antigas referncias localidade entre as seguintes:

- Decreto n 4.308, de 30 de dezembro de 1868. Ora a receita e fixa a despesa da Cmara Municipal da

Corte para o ano de 1869.

- Decreto n 4.661-A, de 31 de dezembro de 1870. Ora a receita e fixa a despesa da Cmara Municipal

da Corte para o ano de 1871. 31

Em 29 de maro de 1858 foi inaugurada a primeira ferrovia partindo da cidade, a Estrada de Ferro de D.

Pedro II, denominada, aps 22 de novembro de 1889, de Central do Brasil. Na mesma ocasio, foram

inauguradas as estaes da Central (ento Pedro II), Engenho Novo (ento Venda Grande) e Cascadura.

(Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de julho de 2009). 32

A inaugurao da primeira linha de ferro-carris da Botanical Garden ocorreu em 9 de outubro de 1868,

realizando o trajeto entre o ponto inicial na esquina da rua Gonalves Dias com a rua do Ouvidor e o Largo

do Machado. (Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de

julho de 2009). 33

Conforme a Nota Tcnica n 5: Rio Estudos n 95, p. 14. Maro 2003. Disponvel em

. Acesso em 12 de agosto de 2009. 34

Anais do Parlamento, sesso de 13 de maio de 1862.

33

A solicitao foi recusada, j que moradores da freguesia de Iraj protestaram contra o

desmembramento do territrio35

; mas isso tambm pode indicar que a regio no reunia

ainda um nmero expressivo de habitantes.

Essa disponibilidade de espao na regio do Realengo mostrava-se adequada aos

objetivos do funcionamento da Escola de Tiro. Somando essa condio ao fato de que

grande parte dos terrenos da regio j constituam propriedades pblicas - minimizando

eventuais custos para adquiri-los - foram iniciadas obras para construo das instalaes

que possibilitassem a realizao das atividades previstas em seu regulamento. Em 1864 foi

concluda a construo da linha de tiro36

e das obras de drenagem para desvio das guas

pluviais que pudessem prejudicar a sua conservao. Tambm foi contratada a abertura de

uma espaosa praa contgua escola, com a finalidade de servir para a prtica de

exerccios militares37

. No mesmo ano essa praa foi construda, com a dimenso de 2.500

braas quadradas, e passou a ser utilizada para a execuo de manobras e exerccios pelos

alunos da Escola Tiro, da Escola Militar e do 7 Batalho da Guarda Nacional38

, que ento

ocupava uma das dependncias do aquartelamento. Como as caractersticas do local foram

consideradas favorveis para o desenvolvimento dos exerccios, a praa foi ampliada para

5.000 braas quadradas, e canalizado o riacho que a atravessava ao meio39

.

O impulso inicial das obras e das atividades de instruo na Escola de Tiro

precisou ser interrompido em 1865, devido ao incio do conflito entre o Brasil e o

Paraguai. No final de 1864, foi recebida uma ordem do governo40

para fechamento dos

estabelecimentos militares de ensino no pas, entre os quais a Escola Militar, a Escola

Preparatria e a prpria Escola de Tiro, pois os alunos desses estabelecimentos, com

exceo dos menores de idade, deveriam retornar aos seus quartis a fim de participar do

esforo de guerra. Embora essa deciso tenha chegado a ser executada, uma nova ordem41

determinou que fossem reabertas as aulas da Escola Preparatria, que permaneceu em

atividade durante o ano de 1865. Entretanto, na Escola de Tiro, assim como na Escola

35

Anais do Parlamento, sesso de 3 de setembro de 1862. 36

Aviso do Ministrio da Guerra de 28 de julho de 1863, expedido pela 3 Diretoria. 37

Relatrio do Ministro da Guerra Jos Mariano de Mattos, 1863-2, p. S3-12. 38

Decreto n 4.261, de 15 de outubro de 1868. Divide em dois o 7 Batalho de Infantaria da Guarda

Nacional do Municpio da Corte. O primeiro, com a designao de 7 e o nmero de seis companhias, tinha

por distrito as freguesias de Iraj, Jacarepagu, e Campo Grande at o Realengo; e o segundo, com igual

nmero de companhias e a designao de 8, seria formado nas freguesias de Campo Grande, Santa Cruz e

Guaratiba. 39

Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1864, p. S5-9. 40

Aviso da repartio do Ajudante-General, ofcio de 22 de dezembro de 1864. 41

Aviso da 1 Diretoria Geral do Ministrio da Guerra, 9 de janeiro de 1865.

34

Militar, as atividades foram efetivamente suspensas pelo perodo de cinco anos. No

Realengo permaneceram apenas dois alferes e um destacamento de 20 praas do Batalho

de Engenheiros, comandados por um segundo tenente42

, para realizao de trabalhos de

manuteno da rea. Nos anos seguintes, nenhuma nova obra foi iniciada, sendo realizados

somente pequenos reparos para conservao da escola, reconstrues de madeiramento e

vigamentos arruinados, e o escoramento de edifcios que ameaavam desabar43

.

Fugiria aos objetivos deste trabalho abordar com maior preciso os cinco anos do

conflito com o Paraguai ou suas repercusses mais amplas no cenrio poltico, social e

econmico nacional. Mesmo em relao s suas consequncias para as reformulaes do

Exrcito, suficiente observar que, ao trmino da guerra, surgiu entre os militares a

expectativa de que a instituio atravessaria uma fase de desenvolvimento, que envolveria

a sua modernizao em diversos sentidos: na administrao, nos equipamentos e

armamentos utilizados, no processo de recrutamento e no ensino militar. Os parmetros

dessas mudanas seriam a experincia prpria da campanha contra os paraguaios e a

observao das prticas adotadas pelos exrcitos dos pases europeus, particularmente dos

envolvidos no conflito franco-alemo de 1870. Assim, na fase ps-guerra foi adotado um

programa de modernizao assentado em trs pontos: o desenvolvimento da instruo

militar, a reforma das normas de recrutamento e a modernizao do armamento44

. Quanto a

esse ltimo, as providncias adotadas envolviam estudos para aquisio de novas armas,

atribuio desempenhada pela Comisso de Melhoramentos de Material do Exrcito,

entidade existente desde 1849 e que obtinha relevncia no contexto das reformas da dcada

de 1870. Tendo como atribuio examinar os melhoramentos tecnolgicos realizados pelos

pases considerados mais adiantados em relao aos materiais blicos e propor a aquisio

daqueles que conviesse adotar, a comisso passou a utilizar com frequncia a linha de tiro

do Realengo, realizando testes com os armamentos que equipariam o Exrcito nas dcadas

seguintes: as carabinas belgas Comblain, para a infantaria, as baterias de artilharia de

origem alem Krupp e as espingardas francesas Chassepots. Tambm foram realizadas

experincias de desenvolvimento de materiais de fabricao nacional, como o foguete

Martins, de inveno do alferes da guarda nacional Carlos Augusto Rodrigues Martins45

.

42

Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1864, p. S2-4. 43

Relatrio do Ministro da Guerra Jos Egydio Gordilho de Barbuda, 1870, p. 29. 44

Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1873, p. 3. 45

Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1872, p. 5.

35

A substituio dos antigos armamentos pelos mais modernos, adquiridos na

Europa, exigia a formao de militares habilitados, tanto para o manuseio quanto para o

ensino do manejo das novas armas, o que determinou a reabertura da Escola de Tiro.

Porm, o recomeo das atividades de instruo no Realengo exigia a recuperao das

instalaes, inativas j por sete anos. Dependentes de verbas, apenas em 1872 as obras

foram retomadas, coordenadas pela Diretoria Geral de Obras Militares da Corte46

.

Tambm seriam promovidas alteraes nas instituies de ensino militar, e, para

adaptar a Escola de Tiro ao contexto dessas mudanas, foi proposto um novo projeto de

regulamento47

, prevendo a reorganizao do seu funcionamento e de sua subordinao

administrativa, desligando-a da Escola Militar e passando a consider-la uma dependncia

do Comando Geral da Artilharia48

. Esse, talvez, tenha sido um artifcio para destacar o

carter prtico e profissionalizante da escola, aproximando-a mais dos corpos de tropa do

que dos estabelecimentos de ensino. O novo regulamento, mais completo e detalhado do

que o anterior, tambm deixava bem definidas as funes dos diversos empregados da

administrao e instrutores, limitava o tempo de ensino e criava conselhos de disciplina, de

instruo e de economia.

Alm da reorganizao administrativa, foi percebida a necessidade de realizao

de obras para atender s novas atribuies da escola. Apesar dos investimentos realizados

at ento, os alojamentos eram precrios para a acomodao dos alunos, empregados e

praas dos destacamentos, e a linha de tiro insuficiente para as experincias com as armas

mais modernas, especialmente as de artilharia, que j atingiam distncias considerveis.

Para possibilitar a expanso das reas da escola, foram realizados levantamentos e

avaliaes para a aquisio de novos terrenos na regio49

.

O novo regulamento da Escola de Tiro entrou em vigor em 187350

, sendo mais

abrangente do que o anterior em diversos aspectos, inclusive em relao determinao

sobre quais militares deveriam frequent-la para receber suas instrues. Agora, o curso da

escola, de um ano de durao, deveria ser realizado por oficiais, inferiores e cadetes das

trs armas, alm das praas dos destacamentos sediados no prprio estabelecimento. A

46

Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1871-2, p. A-L-SN. 47

Relatrio do Ministro da Guerra Jos Maria da Silva Paranhos, 1871-1, p. 38. 48

Decreto n 5.122, de 24 de outubro de 1872. Tambm so encontradas referncias a esse assunto no

relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1871-2, p. A-J-2. 49

Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1872, p. 18 e seguintes. 50

Decreto n 5.276, de maio de 1873. Aprova o novo regulamento para a Escola Geral de Tiro do Campo

Grande.

36

escola deveria, ainda, completar e aperfeioar a instruo dos alunos que conclussem o

curso de qualquer uma das trs armas do Exrcito (na poca, infantaria, cavalaria e

artilharia) nas duas escolas militares do Imprio, habilitando-os na teoria e na prtica do

tiro com armamento. Com a proposta de obter uma maior regularidade no ensino e torn-lo

mais especializado, os alunos passariam a ser divididos em duas turmas, uma de artilharia e

outra de infantaria e cavalaria, que estudariam os armamentos correspondentes. No

currculo da primeira, constava o manejo dos canhes raiados La Hitte de calibres 4 e 12

de campanha, calibre 4 de montanha e do canho Whitworth, calibre 12. Para a segunda,

seriam ensinados as nomenclaturas, o manejo e o uso das armas leves Comblain, Spencer,

Chassepot e Winchester e das pistolas a Mini.

Os testes e exerccios com armamentos se tornaram constantes no Realengo, e em

pouco tempo, a extenso da linha de tiro, principal rea de instruo, tornou-se insuficiente

para o alcance atingido pelos novos armamentos. Para superar esse problema, sua extenso

foi ampliada, e sua estrutura acrescida de instalaes prprias para as experincias e

exerccios de tiro: foram construdas duas casas blindadas, um miradouro, um blockhauss e

espaldes51

. Os edifcios da escola tambm passaram por melhoramentos: no flanco direito

foi construdo um novo alojamento para os alunos, e para as praas do destacamento foi

destinado o flanco esquerdo. Foram construdas, ainda, uma enfermaria e uma farmcia,

que atendiam, alm dos alunos, as praas dos destacamentos, os oficiais da escola e as

pessoas de suas famlias, uma vez que no existia nenhum outro servio de sade na

regio52

.

Em relao ao desenvolvimento da localidade, assinala-se que no incio da dcada

de 1870 a Cmara Municipal dividiu os terrenos que ainda lhe pertenciam em ruas, praas

e lotes, canalizando gua e melhorando as condies de urbanizao (Fridman, 1998).

Atendendo uma representao de moradores do bairro, dirigida ao Ministrio do Imprio,

foi criada tambm a primeira escola pblica da regio, destinada instruo primria de

meninos53

.

51

Posies fortificadas, construdas junto s reas de exerccios de tiro ou com explosivos, para proporcionar

segurana aos atiradores ou observadores. 52

Relatrio do Ministro da Guerra Joo Jos de Oliveira Junqueira, 1873, p. 43. 53

Decreto n 4.782, de 30 de agosto de 1871. Cria mais uma cadeira pblica de instruo primria para o

sexo masculino nas Freguesias de Campo Grande e de Jacarepagu.

37

Quanto ao ensino nas demais escolas militares, o regulamento s foi efetivamente

modificado em 187454

. Em linhas gerais, constaram dessa reforma a transferncia da

administrao da Escola Central para o Ministrio do Imprio, desligando-a do ensino

militar; o deslocamento da Escola Militar do Largo de So Francisco para a fortaleza da

Praia Vermelha, concentrando ali as matrias tericas e prticas voltadas para a formao

dos quadros de oficiais, com o funcionamento anexo do curso da Escola Preparatria; e a

instruo militar bsica passou a ser ministrada nos Depsitos de Instruo e Escolas

Regimentais, destinados instruo das praas.

Em 1874, o exrcito contava com um efetivo de 14.581 praas e 1.474 oficiais. A

diversidade dos modelos de armamento adotados por esse contingente pode ser observada

na descrio dos armamentos empregados nas instrues da Escola de Tiro: as turmas de

infantaria e cavalaria realizavam exerccios com as clavinas Winchester e Spencer,

espingardas a Comblain e a Mini, e com pistolas. As turmas de artilharia, com canhes

dos sistemas la Hitte, calibre 4 de montanha, calibres 4 e 12 de campanha, Krupp de 0.08,

Whitworth de calibre 32 e com o morteiro de 0,22, alm de foguetes de cauda central.

Assistiam, ainda, s experincias e estudos feitos pela Comisso de Melhoramentos de

Material com os canhes do sistema Whitworth de 4 polegadas de carregamento pela boca

e pela culatra, com metralhadoras, com espoletas, e sobre as caractersticas dos diferentes

tipos de plvora, alm de receber instruo relativa s armas portteis. Na regio tambm

passaram a ser realizados exerccios militares por outros contingentes de tropas, que se

exercitavam no tiro ao alvo com os canhes Krupp, Whitworth e Hotchkiss, com morteiros

de 22 cm e com canhes raiados de sistema francs55

.

A importncia conferida execuo das obras no Realengo e, consequentemente,

instruo prtica de tiro e consolidao da regio como uma rea militar pode ser

avaliada pelas despesas realizadas. O custo das obras realizadas na localidade, entre 1875 e

1876, elevavam-se a 610:428$423. Comparativamente, os gastos somados em todas as

demais provncias para conserto de quartis, fortalezas e outros edifcios, durante o mesmo

perodo, atingiram 591:317$89256

. O custo para implantao de todas essas mudanas era

elevado, e a crescente inflao das dcadas de 1870/80, impulsionada pelos gastos dos seis

anos de guerra, havia aumentado vertiginosamente a dvida externa brasileira (Silva Neto,

2004), obrigando o governo a adotar providncias para reduo de despesas. Entre essas

54

Decreto n 5.529, de 17 de janeiro de 1874. Aprova o regulamento para as escolas do Exrcito. 55

Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1876, p. 28. 56

Relatrio do Ministro da Guerra Luis Alves de Lima e Silva, 1876, 1876-1, p. 38.

38

medidas, decidiu-se pela dissoluo da Comisso de Melhoramentos do Material do

Exrcito57

, cujas atribuies passariam a ser desempenhadas por comisses de oficiais das

armas cientficas (engenharia e artilharia) com conhecimentos adequados, que seriam

convocados quando houvesse a necessidade de proceder estudos sobre novas invenes ou

aperfeioamentos no material blico. Estas comisses seriam transitrias, e delas deveriam

participar profissionais como os diretores da Fbrica de Plvora da Estrela, do Laboratrio

do Campinho e do Arsenal de Guerra da Corte. Com essa medida, o que se pretendia era

possibilitar a continuidade dos trabalhos de avaliao dos novos materiais sem acarretar

aumentos de despesa, pois esses encargos seriam exercidos independentemente do

pagamento de abonos ou outras vantagens aos oficiais.

Em 1878 foi inaugurada a estao de Realengo, aumentando a facilidade de

acesso pela linha frrea58

. As condies de espao disponveis na localidade, somadas

estrutura j estabelecida na Escola de Tiro, faziam com que as reas do Realengo fossem

consideradas cada vez mais adequadas para a realizao de manobras militares. Para

atender s necessidades de receber e alojar os militares que participavam desses exerccios,

foi autorizada a execuo de uma nova srie de obras, entre as quais a construo de um

depsito de gua, um armazm para plvora e o aumento do edifcio que acomodava a

farmcia, sendo tambm realizadas obras no prprio nacional destinado residncia do

comandante e reformados os alojamentos para os oficiais59

. Em 188160

, foi construdo um

novo quartel, com acomodaes para 80 alunos, reconstrudos o muro e o gradil da linha

de tiro, e reformadas as cavalarias. Tambm foi autorizada a criao de uma pequena

biblioteca para uso dos instrutores e dos alunos, sendo providenciada a aquisio de livros.

Apesar de todos esses melhoramentos, o Ministrio da Guerra julgava insuficiente

o desenvolvimento da Escola de Tiro em relao s suas possibilidades de apoio

formao dos oficiais do Exrcito, passando a considerar a necessidade de realizar uma

nova reforma do seu regulamento. Pela nova proposta, a escola teria como funo

complementar o ensino da Escola Militar da Corte, ao qual se atribua deficincia nos

aspectos prticos, inclusive no estudo do tiro das diferentes armas em uso.

57

Relatrio do Ministro da Guerra Manuel Luis Osrio, 1877, p. 15. 58

Conforme Barata, disponvel em . Acesso em 28 de julho de

2009. 59

Observe-se a importncia conferida ao espao como mecanismo disciplinar (Conforme Foucault, 1985),

bem como a associao entre disciplina e higiene. 60

Aviso de 3 de agosto de 1881. Relatrio do Ministro da Guerra Franklin Amrico de Menezes Dria, 1881,

p. 22.

39

O principal aspecto dessa proposta de reforma era introduzir a obrigatoriedade de

que os alunos da Escola Militar, ao conclurem o curso das armas de infantaria, cavalaria

ou artilharia, permanecessem por algum tempo no Realengo, a fim de estudar e praticar o

uso dos diversos armamentos. Para isso, o regulamento deveria tornar obrigatria a

frequncia Escola de Tiro, de modo que