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Departamento de Letras PROCESSAMENTO INCREMENTAL DE SENTENÇAS E PROCESSOS DE PERCEPÇÃO VISUAL: QUESTÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS Aluno: Ayrthon Moreira Breder Orientador: Erica dos Santos Rodrigues Introdução O presente relatório refere-se a projeto de iniciação científica na área de Psicolinguística voltado à investigação, a partir da interface linguagem-visão, de questões relacionadas à dinâmica temporal dos processos envolvidos na produção de fala. A pesquisa é de natureza experimental e vincula-se ao projeto de Rodrigues [1], conduzido no LAPAL (Laboratório de Psicolinguística e Aquisição da Linguagem). Apresenta-se um histórico do trabalho que vem sendo desenvolvido no âmbito desse projeto, com foco nos desdobramentos da pesquisa no último ano. O projeto tem como objetivo geral avaliar como se dá o fluxo informacional entre o nível da mensagem e o da codificação gramatical, se a conclusão do primeiro nível do processamento linguístico seria pré-requisito para o início do nível seguinte, ou seja, se uma mensagem rudimentar precisaria ser elaborada antes de se iniciar o processamento gramatical - wholistic approach [2], ou se informação do nível da mensagem poderia ser paulatinamente enviada para a codificação gramatical, sem que a mensagem tivesse sido já concluída - incremental approach [3]. Focalizou-se, nesta fase da pesquisa, como questões de custo de processamento relativas à formulação de estruturas linguísticas (nível da codificação gramatical) interagem com o tipo de perspectiva a partir da qual se apresenta uma dada informação (nível da mensagem). Como será visto na revisão da literatura, no momento de conceptualização de uma mensagem, é necessário definir, além do conteúdo que se deseja transmitir, também a perspectiva a partir da qual se deseja apresentar tal conteúdo – por exemplo, no caso de uma ação transitiva (beliscar) envolvendo dois personagens (x e y), pode-se desejar focalizar o agente (x) ou o paciente verbal (y), o que terá impacto no tipo de estrutura linguística selecionada. Se o elemento focalizado for o agente, espera-se a produção de uma sentença ativa – x beliscou y e, se for o paciente, de uma sentença passiva y foi beliscado por x, ou, em alguns casos, de uma sentença ativa com um predicado de perspectiva y levou um beliscão de x. A escolha da estrutura linguística é em parte, pois, determinada pelo tipo de perspectiva assumida, mas fatores ligados a custo de formulação sintática podem afetar esse processo. Neste relatório apresentamos resultados de um experimento de produção induzida de sentenças envolvendo descrição de cenas transitivas com dois personagens (um agente e um paciente), em que se buscou avaliar particularmente a relação expressão de perspectiva/custo de processamento. Antes, no entanto, apresentaremos uma breve revisão da literatura sobre o assunto e um relato de resultados prévios, de experimentos desenvolvidos no âmbito do presente projeto, em que a questão da incrementalidade e da expressão de perspectiva foi já analisada. Por fim, reporta-se em detalhes o estudo mais recente de descrição de cenas.

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PROCESSAMENTO INCREMENTAL DE SENTENÇAS E PROCESSOS DE PERCEPÇÃO VISUAL: QUESTÕES TEÓRICAS E

METODOLÓGICAS

Aluno: Ayrthon Moreira Breder

Orientador: Erica dos Santos Rodrigues Introdução

O presente relatório refere-se a projeto de iniciação científica na área de Psicolinguística voltado à investigação, a partir da interface linguagem-visão, de questões relacionadas à dinâmica temporal dos processos envolvidos na produção de fala. A pesquisa é de natureza experimental e vincula-se ao projeto de Rodrigues [1], conduzido no LAPAL (Laboratório de Psicolinguística e Aquisição da Linguagem). Apresenta-se um histórico do trabalho que vem sendo desenvolvido no âmbito desse projeto, com foco nos desdobramentos da pesquisa no último ano.

O projeto tem como objetivo geral avaliar como se dá o fluxo informacional entre o nível da mensagem e o da codificação gramatical, se a conclusão do primeiro nível do processamento linguístico seria pré-requisito para o início do nível seguinte, ou seja, se uma mensagem rudimentar precisaria ser elaborada antes de se iniciar o processamento gramatical - wholistic approach [2], ou se informação do nível da mensagem poderia ser paulatinamente enviada para a codificação gramatical, sem que a mensagem tivesse sido já concluída - incremental approach [3].

Focalizou-se, nesta fase da pesquisa, como questões de custo de processamento relativas à formulação de estruturas linguísticas (nível da codificação gramatical) interagem com o tipo de perspectiva a partir da qual se apresenta uma dada informação (nível da mensagem).

Como será visto na revisão da literatura, no momento de conceptualização de uma mensagem, é necessário definir, além do conteúdo que se deseja transmitir, também a perspectiva a partir da qual se deseja apresentar tal conteúdo – por exemplo, no caso de uma ação transitiva (beliscar) envolvendo dois personagens (x e y), pode-se desejar focalizar o agente (x) ou o paciente verbal (y), o que terá impacto no tipo de estrutura linguística selecionada. Se o elemento focalizado for o agente, espera-se a produção de uma sentença ativa – x beliscou y e, se for o paciente, de uma sentença passiva y foi beliscado por x, ou, em alguns casos, de uma sentença ativa com um predicado de perspectiva y levou um beliscão de x. A escolha da estrutura linguística é em parte, pois, determinada pelo tipo de perspectiva assumida, mas fatores ligados a custo de formulação sintática podem afetar esse processo.

Neste relatório apresentamos resultados de um experimento de produção induzida de sentenças envolvendo descrição de cenas transitivas com dois personagens (um agente e um paciente), em que se buscou avaliar particularmente a relação expressão de perspectiva/custo de processamento. Antes, no entanto, apresentaremos uma breve revisão da literatura sobre o assunto e um relato de resultados prévios, de experimentos desenvolvidos no âmbito do presente projeto, em que a questão da incrementalidade e da expressão de perspectiva foi já analisada. Por fim, reporta-se em detalhes o estudo mais recente de descrição de cenas.

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Resenha da literatura

A Produção da Linguagem é uma área da Psicolinguística que busca caracterizar os tipos de informação que são acessados no fluxo da fala, a natureza das representações construídas e os processos cognitivos que são implementados durante a produção de enunciados linguísticos.

Os processos de produção da linguagem são em geral caracterizados a partir de uma abordagem modular e serial [4, 5], em que são distinguidas diferentes etapas de formulação de um enunciado linguístico, cada qual responsável pelo processamento de um tipo específico de informação, sendo o resultado do processamento em cada nível input para o nível seguinte. Na figura a seguir, ilustra-se como se dá o processo de construção de uma sentença.

Figura 1: Esquema das etapas envolvidas no processo de formulação de enunciados linguísticos (cf. [6]) A primeira etapa no processo de produção de uma sentença é chamada de

conceptualização da mensagem. Nessa etapa, entre outros aspectos, é necessário definir o conteúdo do que se deseja expressar e a perspectiva a partir da qual a informação será codificada linguisticamente [7]. Assim, em uma cena como a representada na figura 2, tendo já especificado a finalidade e o conteúdo da mensagem (p. ex. descrever a relação espacial dos objetos que compõem a imagem), é necessário definir a perspectiva a partir da qual pretende descrever a cena.

Figura 2: Imagem ilustrativa de estímulo utilizado em tarefa de descrição de cena

O falante pode, por exemplo, descrever a relação espacial a partir do “ângulo” do chapéu

ou da bolsa, o que resulta em representações conceituais distintas - ESQUERDA (chapéu, bolsa);

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DIREITA (bolsa, chapéu) – as quais, posteriormente, na etapa de formulação linguística propriamente dita, resultariam em sentenças também distintas - O chapéu está à esquerda da bolsa ou A bolsa está à direita do chapéu. A expressão de perspectiva não se restringe à localização espacial; perspectiva está presente por exemplo na expressão de relações de parentesco (João é filho de Pedro, ou Pedro é pai de João), no relato de eventos temporais, no uso das pessoas do discurso, e também na codificação de ações transitivas (João deu um soco em Pedro, ou Pedro levou um soco de João), etc.

A decisão de que perspectiva tomar irá depender de um conjunto de fatores, por exemplo fatores relativos à saliência perceptual, fatores conversacionais, fatores pragmáticos, etc.

Após a conceptualização da mensagem, há o processo de busca, no léxico mental, dos itens lexicais que possam expressar o conteúdo da mensagem. O léxico mental é uma espécie de memória de palavras, e os itens lexicais podem ser caracterizados como um conjunto de propriedades semânticas (conceitos), gramaticais (lemas) e fonológicas (lexemas). As propriedades de natureza gramatical (informação relativa à classe gramatical, estrutura argumental, concordância, etc.) são consideradas na etapa de codificação gramatical. Nessa etapa é que se dá a estruturação sintática da sentença, um processo altamente complexo que permite que os itens lexicais sejam organizados em uma estrutura de natureza hierárquica, com impacto para ordenação linear desses mesmos itens. A representação sintática resultante das operações que ocorrem na codificação gramatical irá servir de input para as etapas de codificação morfofonológica (em que os morfemas que codificam as relações gramaticais são selecionados) e de codificação fonética (construção da representação fonética da sentença, incluindo aspectos prosódicos), com consequente programação dos gestos articulatórios que permitirão que o enunciado possa ser pronunciado.

Todos esses processos ocorrem de forma automática, muito rápida, e o próprio falante não tem acesso direto, consciente ao que se passa em sua mente durante a formulação de uma sentença. Daí a necessidade de realizar experimentos empregando técnicas que permitam testar hipóteses sobre esses processos.

A pesquisa de iniciação científica que se vem desenvolvendo, a qual como dito na introdução, vincula-se a um projeto maior, tem buscado avaliar a questão da incrementalidade no processo de produção de sentenças e de custo de formulação sintática. Como será visto na próxima seção, têm sido conduzidos experimentos com vistas a avaliar quão incremental é o mapeamento de informação do nível da mensagem para o da codificação gramatical, como informação relativa à perspectiva (especificada no nível da mensagem) impacta a seleção da estrutura linguística que será empregada e se/como custo de estruturação sintática é considerado nesse processo.

Trajetória da Pesquisa

A fase inicial da presente pesquisa voltou-se diretamente para a investigação de como se dá a passagem de um nível de conceptualização da mensagem para a formulação propriamente linguística de enunciados. Partiu-se de duas hipóteses: a chamada hipótese incremental (incremental hypothesis), segundo a qual tão logo a conceptualização de uma mensagem é iniciada, informações de natureza gramatical também começam a ser processadas [3] e a hipótese não-incremental (chamada de wholistic hypothesis – de whole = todo), que prevê que um enunciado só começa a ser estruturado linguisticamente quando uma representação semântica completa do que se deseja dizer foi concebida [2].

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Um conjunto de experimentos foi realizado com vistas a explorar a questão da incrementalidade. Nesses experimentos, foi empregada uma tarefa de descrição de cenas, com manipulação dos estímulos visuais e de recursos atencionais. As imagens utilizadas nas condições experimentais correspondiam a cenas representando ações de um personagem sobre outro (exemplo: personagem A empurrando personagem B) e potencialmente poderiam ser descritas empregando-se diferentes tipos de estruturas linguísticas, a depender do elemento focalizado na cena.

A proposta dos experimentos era verificar (i) se a codificação linguística correspondente ao conteúdo proposicional que expressa a cena tem início apenas quando o participante extrai informação básica do que está visualmente representado (gist of the cene) ou se a codificação linguística pode ter início ainda sem informação completa sobre a cena, a partir, por exemplo, do mapeamento visual de um dos personagens; (ii) em que medida foco atencional (manipulado partir de um recurso visual de captura de atenção) sobre um dos personagens ou as condições de planejamento de informação linguística (com cenas apresentadas por completo ou incrementalmente) poderiam afetar as escolhas linguísticas realizadas para expressar o conteúdo da cena; (iii) custos de processamento associados às escolhas linguísticas realizadas.

Nesse conjunto de experimentos, foi empregada a técnica de rastreamento ocular (eyetracking), a qual tem se mostrado bastante informativa sobre processos cognitivos não conscientes, implementados em milésimos de segundos, no curso do processamento. Essa técnica permite capturar os movimentos oculares dos falantes/ouvintes em tarefas que envolvem leitura de textos e visualização de imagens estáticas ou dinâmicas durante a produção ou compreensão de sentenças. No caso especificamente dos estudos realizados, a técnica foi usada para avaliar como se dá o mapeamento visual de uma cena com fins de formular uma descrição linguística da mesma. Os experimentos foram realizados com adultos estudantes universitários e conduzidos em ambiente laboratorial, fazendo-se uso do rastreador Tobii TX300, com resolução temporal de 3ms, acoplado a uma tela de 1920 x 1080px. O programa utilizado para a montagem dos experimentos foi o Tobii Studio3. As respostas dos sujeitos foram gravadas e analisadas no programa Sound Forge 8.

Os resultados obtidos convergiram no sentido da hipótese não-incremental (wholistic), segundo a qual uma mensagem rudimentar prévia é gerada antes de ter início a etapa de construção linguística do enunciado. Verificou-se que, mesmo quando se emprega um recurso atencional para tornar mais saliente um dos personagens (seja este o agente ou o paciente da cena), ao se examinarem os 300ms iniciais de visualização da cena – tempo considerado necessário para extração de informação básica sobre a cena (gist of the scene) - não se observa relação entre os personagens que receberam mais fixações oculares durante esse período e a estrutura sintática escolhida para descrever a cena. Isso significa que, mesmo que ocorra maior fixação no paciente nos 300ms iniciais, não há uma preferência, por exemplo, por uma sentença na voz passiva, em que o paciente fica destacado (O rapaz foi empurrado pela menina). A ausência de relação entre as fixações iniciais e o tipo de estrutura escolhida sugere, pois, como observado por Griffin & Bock [2], que antes de se comprometer com um ponto de partida (no caso, um dado personagem da cena), o falante gera uma mensagem rudimentar de modo a poder expressar o conteúdo proposicional apreendido na cena.

Cumpre, não obstante, notar que o recurso de captura de atenção tem potencial de ampliar o número de ocorrências de uma dada estrutura sintática. Assim, embora tenha se identificado uma diferença significativa entre ativas e passivas (p < 0,05), com preferência expressiva por estruturas ativas, mesmo quando o recurso focalizava o paciente da cena, há um incremento no número de passivas na condição em que o recurso atencional focalizava o paciente quando

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comparada à condição em que o recurso focalizava o agente. Esse resultado sugere que recursos de direcionamento de atenção podem favorecer uma particular interpretação da cena, e essa interpretação pode ocasionalmente vir a se refletir na estrutura linguística, mas, como observado, sem que isso implique necessariamente uma relação entre fixação num dado personagem e tipo de estrutura escolhida. Na verdade, o processo de formulação de sentenças parece ser guiado por questões de custo de processamento, uma vez que estruturas ativas são preferidas em ambas as condições.

Outro aspecto explorado experimentalmente foi se e como o nível de planejamento prévio do conteúdo proposicional de um enunciado pode vir a afetar/determinar o grau de incrementalidade da passagem do nível da conceptualização da mensagem para o nível da formulação linguística [8]. Em um dos experimentos realizados, de modo a aproximar a situação experimental de situação natural de produção em que não há tempo de planejamento prévio, as cenas foram apresentadas incrementalmente e a produção das sentenças ocorreu de modo concomitante a esta apresentação. As cenas foram criadas para eliciar estruturas ativas e passivas, de modo a poder comparar os resultados com o dos experimentos anteriores.

Foi verificado que o modo de apresentação dos estímulos influenciou o tipo de escolha linguística e questões relativas a custo de processamento ficaram ainda mais evidenciadas. Estruturas ativas continuaram sendo privilegiadas. Houve, contudo, em relação aos outros experimentos, um incremento na produção de passivas nas condições em que a apresentação da cena favorecia o paciente. Também bastante relevante foi a produção de sentenças com verbos de perspectiva em estruturas ativas, o que revela que, quando há uma opção lexical que permita indicar a perspectiva mas mantendo a voz ativa, esta opção lexical é muitas vezes escolhida no lugar da voz passiva. Assim, por exemplo, dada uma cena de uma moça (Maria) chutando um rapaz (João), os participantes, para dar destaque ao paciente, muitas vezes produziam João levou um chute de Maria, ao invés de João foi chutado pela Maria. Esse resultado sugere que questões de custo parecem afetar a definição da estrutura sintática e as escolhas lexicais no processo de mapeamento de um dado conteúdo do nível de conceptualização para o da estruturação linguística propriamente dita.

Como continuação a essa pesquisa, foi proposto um experimento em que uma mesma cena potencialmente pudesse ser descrita por meio de uma sentença passiva ou de uma sentença ativa com verbo de perspectiva. Embora os resultados obtidos no estudo anterior tenham sugerido que a complexidade sintática de uma sentença é considerada no processo de codificação linguística de uma dada mensagem (com uma dada perspectiva), como o tipo de cena (e suas possibilidades de codificação) não foi controlado no experiment anterior, fez-se necessário um novo estudo. Na próxima seção apresenta-se o experimento proposto para avaliar mais pontualmente a questão de custo e expressão de perspectiva. Experimento atual

Conforme indicado acima, o experimento realizado teve por objetivo avaliar a relação entre expressão de perspectiva e custo de codificação linguística. A hipótese de trabalho é que, na descrição de uma cena transitiva, envolvendo dois personagens, em que um deles esteja em perspectiva e que haja mais de uma possibilidade de codificar tal perspectiva, haverá uma preferência por estruturas menos custosas. Assim no caso de a cena tanto poder ser descrita por uma sentença passiva como por uma sentença ativa com predicado de perspectiva, espera-se um maior número de ocorrências desta última, já que o custo da ativa com predicado de perspectiva seria de ordem lexical e não sintático.

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Metodologia

Variáveis independentes:

A variável independente foi o tipo cena, com três níveis: cena com foco no agente, cena com foco no paciente com ação não compatível com verbo de perspectiva, cena com foco no paciente com ação compatível com verbo de perspectiva. A indicação da perspectiva a partir da qual a cena deveria ser descrita (agente ou paciente) foi implementada a partir de um recurso de animação do Power Point, como explicado na seção de procedimentos.

Variáveis dependentes:

A variável dependente foi o tipo de sentença produzida, tendo as sentenças sido categorizadas em ativa, passiva, ativa com predicado de perspectiva. Também foram contabilizadas respostas não válidas, em que, na descrição da cena, o participante não fez referência aos dois personagens envolvidos na ação representada na imagem.

Participantes:

Participaram como voluntários 27 adultos, com nível superior completo e incompleto.

Procedimento e material:

O experimento consistiu numa tarefa de descrição de cenas, em que um total de 30 cenas foram apresentadas aos participantes, todas representando ações envolvendo dois personagens - João e Maria: 10 cenas apresentavam foco no agente (João filmou Maria) e 20 foco no paciente, das quais 10 poderiam ser expressas preferencialmente por sentença passiva (Maria foi pesada por João) e 10 por sentenças passivas ou ativas com predicado de perspectiva (João foi chutado por Maria ou João levou um chute de Maria). O foco em cada personagem era dado por um recurso de animação do Power Point (pulso por um 1,5s). A figura 3 a seguir ilustra os três tipos de cenas. Note-se que, na situação experimental, os personagens focalizados ganhavam destaque com o recurso de pulso, o que não é possível de reproduzir nas imagens. No lugar do pulso, nas imagens abaixo usamos uma seta para indicar qual era o personagem focalizado.

(i) (ii) (iii) Figura 3: Exemplos de estímulos usados em cada uma das três condições experimentais. Da esquerda para a direita,

tem-se (i) cena com foco no agente; (ii) cena com foco no paciente/ação não compatível com predicado de perspectiva; (iii) cena com foco no paciente/ação compatível com predicado de perspectiva.

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Um computador registrou todos os movimentos realizados na tela e as sentenças

produzidas pelos participantes. As informações foram salvas em formato de vídeo. Os estímulos foram aleatorizados e foram organizadas quatro listas com sequências

distintas para evitar efeitos de ordem ou de priming sintático entre os estímulos. A instrução dada aos participantes era de que deveriam descrever a cena do slide do

Power Point sempre mencionando os dois personagens – João e Maria. Foram orientados também a começar as sentenças com o personagem destacado, usando apenas uma sentença para fazer a descrição de cada imagem. A passagem de uma cena para a seguinte era realizada pelo próprio participante pressionando a barra de espaço no teclado do computador utilizado na aplicação da tarefa.

Aparato:

Para a criação das ilustrações, utilizou-se o aplicativo Bitstrips e, para a montagem e apresentação dos slides, utilizou-se o Microsoft PowerPoint 2013. A gravação das respostas produzidas pelos participantes foi feita pelo software aTube Catcher. Um computador portátil foi utilizado para a aplicação do experimento e para o registro tanto dos movimentos realizados na tela, quanto das sentenças produzidas pelos participantes durante a execução da tarefa. Esses dados foram salvos em formato de vídeo pelo próprio aTube Catcher.

Resultados:    

De forma global, verificou-se uma preferência por sentenças ativas, um dado relevante em especial quando se considera que 2/3 dos estimulos apresentavam foco no paciente (ver gráfico 1).

Gráfico 1: Percentual de tipos de sentenças produzidas nas 3 condições experimentais Em relação ao total de ativas por condição experimental, observou-se, como esperado,

uma maior concentração desse tipo de estrutura na condição em que o agente da cena foi focalizado (quase 100%). Analisando-se as duas condições em que o participante deveria iniciar a sentença pelo paciente, verifica-se que a condição com maior número de ocorrências de verbos na voz ativa foi aquela em que a cena poderia ser descrita com uma sentença com predicado de perspectiva (62% de ativas vs. 38% de passivas). Mesmo na condição cuja cena teria menos probabilidade de ser descrita usando-se voz ativa, há ocorrências de sentenças ativas em 1/3 dos estímulos (32% de ativas vs. 68% de passivas). O gráfico 2, a seguir, apresenta a distribuição de ativas e passivas por condição experimental:

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Gráfico 2: Total de ocorrências de sentenças ativas e passivas por condição experimental

Esses resultados gerais estão em consonância com o que foi verificado em experimentos

anteriores, nos quais houve uma preferência expressiva por sentenças ativas, independentemente do elemento focalizado (agente ou paciente). Neste último experimento, em que, diferentemente dos anteriores, havia um comando explícito (e não apenas um recurso de manipulação de atenção) para que o participante iniciasse a frase com o elemento destacado, essa tendência se manteve no conjunto global de resultados e, mesmo na condição em que não seria esperada a ocorrência de ativas (foco no paciente – perspectiva), há tentativas de formulação empregando a estrutura menos custosa.

Quando se analisam os três tipos de resposta (passiva, ativa com sujeito agente e ativa com sujeito paciente), tem-se o quadro apresentado no gráfico 3 abaixo.

Gráfico 3: Total de ocorrências dos 3 tipos de resposta por condição experimental Na condição “cena com foco no agente”, não há ativas iniciando pelo paciente. Há duas

ocorrências de verbos na passiva, possivelmente decorrentes de um lapso de atenção no momento de apresentação do elemento focalizado.

Na condição “cena com foco no paciente – perspectiva”, como esperado, há um grande número de sentenças passivas (176) e um número reduzido de ativas com sujeito agente (29). Quanto às ativas com sujeito paciente, estas também não são muito expressivas (55), mas correspondem a quase o dobro das ativas com sujeito agente. São exemplos de ativas com sujeito paciente sentenças como João está tendo o cabelo penteado por Maria (esperado: João foi

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penteado/está sendo penteado por Maria) e Maria tem sua fotografia tirada por João (esperado: Maria foi fotografada por João), em que o objeto direto do verbo ter é que está sendo apassivado; ou de sentenças como Maria tem sua fotografia tirada por João (esperado: Maria foi fotografada por João) e Maria levou um balde d'água de João/Maria está levando um banho de João/ Maria recebendo água de João, em que um predicado de perspectiva foi utilizado. Embora a condição não favoreça ativas, o participante parece buscar uma alternativa de menor custo.

Por fim, na condição “cena com foco no paciente + perspectiva”, sentenças ativas com sujeito paciente apresentam um número expressivo de ocorrências (122), um total ligeiramente maior do que o de passivas (100). Não há, contudo, diferença estatística significativa entre essas duas condições (p=0,09). Quando comparamos repostas do tipo sentença ativa com sujeito paciente desta condição com a condição “cena com foco no paciente – perspectiva”, a diferença é altamente significativa, o que indica que as cenas selecionadas foram adequadas e que, havendo possibilidade de empregar uma estrutura menos custosa sintaticamente (ativas), estas são produzidas.

Discussão dos resultados

Diferentemente dos estudos anteriores, neste experimento houve um comando explícito de que os participantes deveriam iniciar a frase pelo personagem destacado na apresentação de cada cena. No caso das cenas em que o paciente era focalizado, havia duas condições distintas – uma em que a ação representada deveria levar o participante a privilegiar a escolha de uma sentença na voz passiva, e outra, em que ação poderia ser expressa por uma sentença passiva ou por uma sentença ativa com emprego de um predicado de perspectiva.

Os resultados do experimento foram na direção dos obtidos em experimentos prévios, nos quais se verificou que há uma preferência por sentenças ativas. Mesmo na condição com foco no paciente em que se esperava apenas a produção de passivas, houve ocorrências de ativas. Esse dado sugere que o participante busca uma opção léxico-sintática que permite expressar perspectiva, mas mantendo uma estrutura sintática menos custosa (frase ativa).

Na condição com foco no paciente cuja ação representada poderia ser expressa ou por voz passiva ou por verbo de perspectiva, houve uma produção expressiva de ativas. Em termos estatísticos, contudo, não foi significativa a diferença entre ativas e passivas nessa condição. Não se pode, portanto, descartar a hipótese nula. Tendo em vista, contudo, que o comportamento dos participantes foi na direção esperada (com número maior de ativas nessa condição), faz-se necessário ampliar o número de participantes para se avaliar se não se está incorrendo em erro estatístico do tipo II (isto é, quando a análise estatística dos dados não permite rejeitar a hipótese nula, embora esta seja falsa).

Conclusão e próximas etapas da pesquisa

No conjunto de experimentos realizados até o momento, obtivemos evidências na direção da hipótese de que, na descrição de uma cena, antes de se comprometer com um dada perspectiva, o falante, gera uma representação conceitual da cena como um todo, correspondente ao conteúdo proposicional apreendido da cena (gist of the scene). Isso parece ocorrer mesmo nos casos em que, com o emprego de um recurso de manipulação de atenção, busca-se influenciar o participante a assumir mais prontamente uma dada perspectiva. Logo, os resultados envolvendo descrição de cenas sugerem que a perspectiva a partir da qual um conteúdo será expresso parece

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ser especificada em um segundo momento, após a definição do conteúdo proposional. Os resultados também indicam que fatores ligados a custo de estruturação sintática afetam as escolhas linguísticas feitas para codificar uma dada perspectiva. Um aspecto que ainda precisa ser mais explorado diz respeito a quanto as condições de produção podem afetar esse processo. Por exemplo, há evidências de que o quanto é planejado pode ser função de fatores extralinguísticos tal como disponibilidade de recursos no momento da produção [9]. Nesse sentido, não haveria conflito entre a hipótese de uma produção incremental, conforme proposto em [3] e a ideia de que, no momento da formulação linguística, uma mensagem rudimentar já teria sido concebida [10]. O quanto a questão das demandas de produção e do planejamento prévio podem afetar a codificação de perspectiva é um ponto que merece ser explorado nos estudos futuros.

Bibliografia

1- RODRIGUES, E. dos S. Processamento linguístico e incrementalidade: o que os olhos podem informar sobre o curso temporal da produção e compreensão de sentenças. Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ Edital Nº 17/2012). 2- GRIFFIN, Z. M.; BOCK, K. What the eyes say about speaking. Psychological Science, v. 11, p. 274–279, 2000. 3- GLEITMAN, L. R.; JANUARY, D.; NAPPA, R.; TRUESWELL, J. C. al. On the give and take between event apprehension and utterance formulation. Journal of Memory and Language, v. 57, p. 544–569, 2007. 4- LEVELT, W. J. M. Speaking: From intention to articulation. Cambridge: MIT Press,1989. 5- BOCK, J. K.; LEVELT, W. J. M. Language production: grammatical encoding. In: GERNSBACHER, M. A. (Ed.). Handbook of Psycholinguistics. San Diego, CA: Academic Press, 1994, p. 945-984. 6- RODRIGUES, Erica dos S. Produção da Linguagem. In: MAIA, Marcus. (Org.). Psicolinguística, psicolinguísticas: uma introdução. São Paulo: Editora Contexto, p. 85-98, 2015. 7- LEVELT, W. Producing spoken languagem: A blueprint of the speaker. In: BROWN, C.; HAGOORT, P. (Eds.) The neurocognition of language (chapter 4). Oxford University Press, p.83-122, 1999. 8 - KONOPKA, A. E.; BROWN-SCHMIDT, S. Message Encoding. In: GOLDRICK, M.; FERREIRA, V. ; MIOZZO, M. (Eds). The Oxford Handbook of Language Production. Oxford University Press, p. 3-20, 2014. 9 - WAGNER, V. ; JESCHENIAK, J.; SCHRIEFERS, H. On the flexibility of grammatical advance planning during sentence production: Effects of cognitive load on multiple lexical access. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, v. 36, n. 2, 2010, p. 323-340.

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10 - MOMMA, S.; SLEVC, R. ; PHILLIPS, C. The timing of verb selection in English active and passive sentences. Proceedings of MAPLL: Mental Architecture for Processing and Learning of Language, 2014.